Você está na página 1de 372

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LÓGICA E METAFÍSICA

SPINOZA E A QUESTÃO DA EXTERIORIDADE

Uma leitura do Tratado Teológico-Político

Carmel da Silva Ramos

Rio de Janeiro

2021
Carmel da Silva Ramos

SPINOZA E A QUESTÃO DA EXTERIORIDADE

Uma leitura do Tratado Teológico-Político

Tese de doutorado

Tese apresentada como requisito para obtenção do grau


Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação
Lógica e Metafísica do Departamento de Filosofia da
UFRJ

Orientador: Prof. Dr. Ulysses Pinheiro

Rio de Janeiro
2021
Ramos, Carmel da Silva
R175Ra
moc Spinoza e a questão da exterioridade. Uma leitura
do Tratado Teológico-Político / Carmel da Silva
Ramos. -- Rio de Janeiro, 2021.
372 f.

Orientador: Ulysses Pinheiro.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Lógica e
Metafísica, 2021.

1. Spinoza. 2. Teologia-política. 3.
Exterioridade. 4. Filosofia da religião. 5. História
da filosofia moderna. I. Pinheiro, Ulysses, orient.
II. Título
Carmel da Silva Ramos

SPINOZA E A QUESTÃO DA EXTERIORIDADE

Uma leitura do Tratado Teológico-Político

Tese apresentada como requisito para obtenção do grau


Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação
Lógica e Metafísica do Departamento de Filosofia da
UFRJ

Rio de Janeiro, 19 de novembro de 2021

Prof. Dr. Ulysses Pinheiro (UFRJ)


(Orientador)

Profa. Dra. Nastassja Saramago de Araujo Pugliese


(UFRJ)

Prof. Dr. Luís César Guimarães Oliva


(USP)

Prof. Dr. Fabiano de Lemos Britto


(UERJ)

Profa. Dra. Tessa Moura Lacerda


(USP)
AGRADECIMENTOS

Durante o longo e por vezes monótono tempo de confecção dessa tese, frequentei
pessoas e instituições diversas. Fui eu mesma pessoas diversas. A listagem a seguir evoca
brevemente os nomes daquelas e daqueles que, no ciclo perpétuo de destruição e rearranjo de
mim mesma, foram decisivos para que o trabalho cumprisse seu tortuoso curso.

Agradeço inicialmente à CAPES por ter me concedido uma bolsa de doutorado


integral; e também por ter financiado minha estadia de seis meses na Universidade de Paris
VIII Vincennes-Saint-Denis. A experiência de viver em outro país foi transformadora em
muitos sentidos. Profissionalmente, pude me beneficiar de excelentes bibliotecas, eventos
muito proveitosos e dos cursos do professor Charles Ramond, ao qual também agradeço pela
orientação no sanduíche.

Tenho muito a agradecer ao professor Ulysses Pinheiro, com quem tenho debatido
filosofia incessantemente ao longo dos últimos dez anos, debate este que terminou por se
converter numa sincera amizade. Ulysses acompanhou minha trajetória como pesquisadora
desde o princípio – e foi sempre para mim uma referência em termos de rigor e imaginação
filosófica.

Reconheço, ainda, a participação direta dos professores Fabiano Lemos e Maria das
Graças Moraes Augusto em minha formação. É graças a eles que pude reconhecer que há, na
filosofia, algum espaço para o estranho trabalho que me agrada fazer. Apesar de estudarmos
temas e autores diferentes, Fabiano e Graça são fonte de inspiração para mim. Seus
comentários na ocasião da primeira qualificação foram de extrema utilidade para definir os
rumos metodológicos desta pesquisa.

A professora Carolina Araújo desempenhou papel central em meu percurso tanto por
suas aulas sobre Platão, das quais me lembro até hoje, quanto por conduzir iniciativas que
visam a permanência das mulheres na filosofia. Foi através da Rede Brasileira de Mulheres
Filósofas que pude, enfim, me reconhecer como pesquisadora e enfrentar algumas das
inseguranças que me assombravam desde o início da graduação.

Aos professores Nastassja Pugliese, Luís César Guimarães Oliva e Tessa Moura
Lacerda, agradeço a participação na banca e os comentários que servirão ao aperfeiçoamento
deste trabalho. Nastassja e Tessa, um agradecimento adicional por insistirem, em suas
pesquisas e práticas acadêmicas, na existência das mulheres na filosofia.
Agradeço o apoio incondicional da minha família – minha mãe, pai e irmão –, pois
sem sua ajuda constante toda a minha determinação para permanecer na carreira acadêmica
teria sido inútil. Agradeço ao Erick, cuja gentileza inunda meus dias. Obrigada por sua
paciência e amor.

Agradeço aos amigos que fiz no sanduíche: Mario Donoso e Jack Stetter, com quem
pude travar discussões relevantes sobre a obra de Spinoza, centrais para o encaminhamento
deste trabalho. Agradeço à querida Luisa, que muitas vezes salvou minha vida quando estava
perdida tentando habitar outro país. Agradeço ao Uriel, por dividir comigo a experiência de
pertencer a um lugar que não parece desejar nos receber. Ao Roger, amigo querido, por todo
incentivo tão frequente, pelas boas conversas e trocas e, claro, por ter conseguido para mim
parte da bibliografia desta tese na biblioteca da USP. À Juliane e ao Paulo, por todas as
conversas, sérias ou não, pela viagem incrível que fizemos, e pela presença fiel e divertida. À
Rayane e ao Jean, por serem amigos sinceros. Ao Daniel, por toda a ajuda material e
espiritual, essencial para que eu pudesse enfrentar a difícil tarefa de escrever uma tese
durante uma pandemia. Ao Victor, por dividir comigo bons momentos, além, é claro, de toda
a identificação existencial. Ao Hiran, Manuella, Melina e Anna: amigos da época da escola e
que seguem sendo companhias inseparáveis. À Monique e ao Bruno, parceiros na fundação
da Revista Seiscentos, com os quais ainda quero manter uma longa interlocução filosófica.

Agradeço, enfim, aos meus alunos de História e Ciências Sociais, com os quais tenho
vivenciado uma nova relação com a filosofia, desta vez sob o signo do ensino.
O que é preciso evitar, não sei por quê, é o
espírito do sistema. Pessoas com coisas, pessoas
sem coisas, coisas sem pessoas, pouco importa,
eu espero poder varrer tudo isso em pouco
tempo. Não vejo como. O mais simples seria não
começar. Mas sou obrigado a começar. Quer
dizer que sou obrigado a continuar. Acabarei
talvez por estar muito cercado, numa confusão.
Idas e vindas incessantes, atmosfera de bazar.
Estou tranquilo, vamos.

— Samuel Beckett, O Inominável


RESUMO

O objetivo desta tese é propor uma leitura do Tratado Teológico-Político, obra publicada
anonimamente por Baruch de Spinoza (1632—16977) na Holanda em 1670, a partir da
questão da exterioridade. Para fazê-lo, forja uma linguagem própria que tomará os dados
biográficos, os acontecimentos históricos contemporâneos e não-contemporâneos ao século
XVII, a filosofia deste autor ao qual atribuímos o nome de Spinoza e de outros
convencionalmente designados como filósofos, como igualmente legítimos na construção de
seu conteúdo. Ainda, sua análise não se comprometerá com a supressão das contradições –
apostando, em contrapartida, em seu aspecto produtivo. De posse deste método, a tese
procura permanecer na dificuldade que uma filosofia da imanência enfrenta ao lidar com o
objeto religioso, normalmente definido como pertencente à esfera transcendente. Se a
exterioridade é, na obra metafísica de Spinoza, constantemente rejeitada, no mais das vezes
associada à potência de destruição, ela será surpreendentemente retomada no tratado em
questão. A reinserção do discurso religioso será marcada, porém, por uma tensão indecidível
entre exterioridade e interioridade. Os capítulos da tese serão, assim, estruturados
tematicamente, organizando-se num ritmo dramático que procura reproduzir, em sua forma, o
conflito entre uma abordagem de fora e de dentro do texto. Examinaremos, no primeiro
capítulo, o culto ao exterior como fonte de superstição; no segundo, a tentativa de criar, para
interpretar o texto bíblico, uma regra geral de imanência – a qual implicará, ela mesma, a
introdução de elementos externos. Esta primeira apreciação favorável da exterioridade será
radicalizada, no terceiro capítulo, com a figura do Cristo: o qual possui uma fratura
constitutiva, pois subscreve, ao mesmo tempo, a via racional e a via moral como estratégias
salvíficas. O marco cristológico nos conduzirá à interpretação do Estado hebreu, na qual será
operada uma redefinição da servidão a partir do par exterioridade-interioridade. A
comunicação necessária entre interno e externo será verificada, por fim, nas discussões
jurídicas do tratado, tais como a lei divina, o dogma, a obediência civil e religiosa e a sedição.
Ao término deste percurso, a tese terá reelaborado algumas hipóteses explicativas
consideradas já estabelecidas na filosofia de Spinoza, e terá se perguntado sobre a sua
contribuição possível na confecção da modernidade política. Pretende-se que a indefinição
entre interioridade e exterioridade permita conceber uma relação de resistência face ao objeto
religioso, não mais pautada em sua simples exclusão do horizonte filosófico.

Palavras-chave: Spinoza. Teologia política. Exterioridade. Filosofia da religião. História da


Filosofia Moderna
RÉSUMÉ

L'objectif de cette thèse est de proposer une lecture du Traité théologico-politique, publié
anonymement par Baruch de Spinoza (1632-1677) en Hollande en 1670, à partir de la
question de l'extériorité. Pour ce faire, ce travail développe son propre langage qui prendra
les éléments biographiques, les événements historiques contemporains ou non du XVIIe
siècle, la philosophie de cet auteur auquel on attribue le nom de Spinoza et d'autres
conventionnellement considérés comme philosophes, comme également légitimes dans la
construction de son contenu. En plus, cette analyse ne s'engagera pas dans la suppression des
contradictions – soulignant, au contraire, leur aspect productif. Cette méthode établie, la thèse
ne cherche pas à dépasser la difficulté que rencontre une philosophie de l'immanence face à
l'objet religieux, normalement défini comme appartenant à la sphère transcendante. Si
l'extériorité est, dans l'œuvre métaphysique de Spinoza, constamment rejetée, le plus souvent
associée à la puissance de destruction, elle sera étonnamment reprise dans le traité en
question. La réintroduction du discours religieux sera cependant marquée par une tension
indécidable entre extériorité et intériorité. Les chapitres de la thèse seront donc structurés de
manière thématique, s'organisant selon un rythme dramatique qui cherche à reproduire, dans
sa forme, le conflit entre une approche extérieure et intérieure du texte. Nous examinerons,
dans le premier chapitre, le culte de l'extérieur comme source de superstition ; dans le second,
l'essai de créer, pour interpréter le texte biblique, une règle générale d'immanence – qui
impliquera elle-même l'introduction d'éléments extérieurs. Cette première conception
favorable de l'extériorité sera radicalisée, dans le troisième chapitre, avec la figure du Christ :
qui possède une fracture constitutive, puisqu'il souscrit, en même temps, à la voie rationnelle
et à la voie morale comme stratégies salvatrices. Le cadre christologique nous conduira à
l'interprétation de l'État hébreu, dans lequel une redéfinition de la servitude sera opérée à
partir du couple extériorité-intériorité. La communication nécessaire entre l'interne et
l'externe se vérifiera, enfin, dans les discussions juridiques du traité, telles que la loi divine, le
dogme, l'obéissance civile et religieuse et la sédition. Au terme de ce parcours, la thèse aura
retravaillé certaines hypothèses explicatives considérées comme déjà établies dans la
philosophie de Spinoza, et se sera interrogée sur leur possible contribution dans la fabrication
de la modernité politique. Nous soutiendrons que l'imprécision entre l'intériorité et
l'extériorité permettra la construction d'une relation de résistance envers l'objet religieux, qui
ne sera plus fondée sur sa simple exclusion de l'horizon philosophique.

Mots-clés : Spinoza. Théologie politique. Extériorité. Philosophie de la religion. Histoire de


la philosophie moderne.
SUMÁRIO

Advertência 13

Prefácio 20

Introdução. Não posso começar: devo começar 24

Uma filosofia perversa 25


Discurso para os ausentes 34
Spinoza à distância 40
Topologia da exterioridade 45

Capítulo 1. O culto ao exterior 71

O asilo da ignorância 76
Uma emendatio da religião 82
Entre o espinho e o cometa 96

Capítulo 2. Escritura e leitura 110

A penúria das palavras 115


Uma alternativa aos signos 124
O trabalho da leitura 134
A carta e o livro 151

Capítulo 3. A boca de Deus 160

O Cristo segundo a carne 167


O Cristo segundo o espírito 186
Desvio para a parábola 197
Paulo contemporâneo 207
O Cristo e a sociabilidade 218

Capítulo 4. A anomalia teocrática 230

Acústica e autoridade 237


As origens do Estado hebreu 244
Um patriotismo servil 253
Odium theologicum 257

Capítulo 5. O direito e o sagrado 269

A lei 273
O dogma 285
Obediência e liberdade 289

Conclusão. As últimas revelações do ser 324

Uma meditação sobre a morte 331


Nem antigo, nem moderno 338
Um bestiário 342

Bibliografia 349
ABREVIAÇÕES

Obras de Spinoza

KV (Korte Verhandeling van God, de mensch en deszelvs welstand)

PPC (Renati des Cartes Principiorum Philosophiæpars I, & II)

CM (Cogitata Metaphysica)

TIE (Tractatus de intellectus emendatione)

TTP (Tractatus Theologico-Politicus)

TP (Tractatus Politicus)

E (Ethica Ordine Geometrico demonstrata).


- Apêndice (ap.)
- Axioma (ax.)
- Corolário (cor.)
- Definição (def.)
- Definição dos afetos (da.)
- Definição geral dos afetos (dga.)
- Demonstração (dem.)
- Escólio (esc.)
- Explicação (expl.)
- Postulado (post.)
- Prefácio, (pref.)
- Proposição (P.)

As citações serão também acompanhadas de uma referência à obra completa de Spinoza


publicada por Carl Gebhardt (Heidelberg: Carl Winters, 1925. 4 volumes), a qual sempre
citarei por G, seguido da identificação do volume em números romanos, seguido, por sua vez,
dos parágrafos em números arábicos.
13

Advertência.

Para constar nos autos.

A fim de preparar o leitor, farei uma descrição sinóptica da estrutura da tese,


anunciando seu tema, sua hipótese central e sua metodologia. Em nenhum outro momento
deste trabalho serei tão didática quanto aqui.

Esta é uma tese que pretende tanto apresentar um comentário detido de um texto
canônico da história da filosofia ocidental quanto formular, a partir desse fio condutor,
hipóteses próprias referentes a um problema mais geral. É uma tese de história da filosofia
com interpretações muito ativas, que se situa, por causa disso, no limite entre o comentário e
a livre apropriação. Seu tema é a exterioridade, particularmente o modo como ela foi figurada
por um autor que nem sempre foi considerado um clássico, mas que hoje é presença frequente
nos debates filosóficos acadêmicos e extra-acadêmicos: Baruch de Spinoza. Escolhi tratar da
exterioridade tomando um texto deste autor como norte, a partir do qual farei conexões com
outras de suas obras: o Tratado Teológico Político. Não se trata aqui de toda e qualquer
exterioridade, mas sim daquela que, por uma série de argumentos eles mesmos externos,
conquistados a partir de um sobrevoo pela filosofia contemporânea, pode ser associada à sua
singular compreensão de teologia. O leitor está diante de um trabalho de filosofia da religião,
mas que envolverá discussões sobre ética e política no panorama filosófico específico do
século XVII – que, guardadas as devidas proporções, estabelece semelhanças inesperadas
com o horizonte contemporâneo da questão teológico-política.

Para definir a teologia como discurso sobre o exterior, apoiei-me numa série de
referências a princípio inconciliáveis com o spinozismo, arriscando-me abertamente no
anacronismo. Neste aspecto, resgatei sobretudo alguns conceitos presentes nas obras do
jurista alemão Carl Schmitt. Em Teologia Política, seu livro de 1922, Schmitt apresenta uma
dupla caracterização do problema teológico-político: como um processo de secularização,
sublinhando a transferência cultural dos operadores teológicos para o domínio do político e,
deste modo, pensando a questão num sentido mais superficial; e como aliança estrutural entre
os dois domínios, vinculando-os mais profundamente. Neste último sentido, a teologia é
tomada como uma espécie de fora que funciona como motor e alimento constante das
14

distinções políticas subsequentes – elas mesmas compreendidas como resultado da disputa


entre amigo e inimigo. Sem propriamente subscrever as teses schmittianas — que se
comprometem positivamente com a teologia enquanto campo existencial prévio determinante
de toda e qualquer relação política —, procurei me ater ao modo como a questão é por ele
articulada, a fim de erguer algumas interrogações que, creio, são nossas ainda hoje: pode a
política prescindir de uma série de valores existenciais externamente posicionados à sua
ordem e que a constituem como fundamento inquestionável? Pode a política, enfim, não ser
dogmática?

Como complemento à indagação schmittiana, trouxe também mais dois autores:


Jacques Derrida e Giorgio Agamben. Derrida nos confronta com uma outra maneira de
pensar o fundamento: desta vez, este é figurado no interior da ordem imanente,
confundindo-se com ela. Suas ideias foram igualmente úteis na medida em que
operacionalizam uma inversão a ser recuperada em nossa investigação sobre Spinoza: a ideia
de que, contra a narrativa que a modernidade conta sobre si própria, segundo a qual teria
definitivamente separado fé e saber, teologia e ciência, religião e razão, há, inclusive em
nossos comprometimentos supostamente mais iluministas, um componente inescapável de
credo. Já Agamben contribuirá com o conceito de exclusão inclusiva, segundo o qual há, na
política, um procedimento de inclusão exatamente daquilo que parece escapar da ordem, quer
dizer, da exceção. A exceção é ao mesmo tempo aquilo que funda a ordem e que deve, para
que esta mantenha seu funcionamento normal, ser dela excluída. Também aqui
encontraremos um parentesco com a exterioridade: pois o soberano, devido a esta topologia
conflituosa, ocupará um estranho não-lugar, ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento
jurídico. A fratura que parece ser, para Agamben, um problema, será, para nós, positivamente
integrada: a tensão entre interioridade e exterioridade será a marca do pensamento
teológico-político de Spinoza, a qual não nos interessa reconduzir a uma síntese superior. É
justamente na manutenção desta ruptura, nos incessantes processos de interiorização do
exterior e exteriorização do interior que encontraremos uma proposta de resistência política, a
qual deriva de uma concepção de religião que não a reduza, por um lado, à mera
exterioridade bruta, tampouco, por outro, à imanentização estática que tudo conforma e
tranquiliza.
15

As posições de Spinoza acerca do objeto religioso encaminharam uma série de


comentadores a uma tentativa de determinar o pertencimento histórico de seu pensamento.
Spinoza é rotulado seja como moderno, por suas pretensões protoiluministas, seja como
antimoderno, devido ao seu alegado coletivismo político. Tomando partido nesse debate,
produziremos em torno do nome de Spinoza um conjunto de posições que não podem ser
facilmente classificadas nem como antigas, nem como modernas. Criticaremos, primeiro, a
tentativa, operada pela literatura secundária, de fazer pertencer essa filosofia que tem como
um de seus motes o despertencimento. Por se situar num momento de crise e de indefinição
de valores — o fin de siècle europeu —, Spinoza não é o porta-voz perfeito de uma posição
ou de outra. Esta participação nas querelas de seu tempo sob o signo de seu afastamento — o
qual configura, mais uma vez segundo Agamben, o contemporâneo, e que parece traduzir
com exatidão o momento de transição e de guerra cultural no qual nos encontramos hoje — é
para nós mais interessante do que devolver o spinozismo a uma identidade bem-acabada.
Interessa-nos um Spinoza que desative uma série de associações já estabelecidas e tomadas
como evidentes de nosso pensamento político, e que nos permita, assim, repensar os limites
de nossas percepções políticas consideradas mais verossímeis.

Para voltar à discussão interna à obra de Spinoza, diria que minha hipótese central é a
de que há, no Tratado Teológico Político, um resgate da exterioridade. Se, na metafísica,
Spinoza esforça-se para a todo tempo expulsar e reintroduzir a exterioridade na imanência,
associando-a, no mais das vezes, à potência de destruição, é em seu pensamento teológico
que verificamos, ao contrário, um esforço para mantê-la em sua integridade, diríamos, de
fenômeno incompreensível e em última análise irracional. Se há, então, um discurso positivo
sobre o religioso e, ao mesmo tempo, um combate travado contra as perspectivas tradicionais,
sua proposta de resistência política é se opor à religião com religião – modificando
substancialmente, é claro, sua gramática e seu texto fundador, a ponto de torná-la
irreconhecível. Discordamos, portanto, daqueles que tomam esse livro como a expressão de
um espírito antirreligioso. Será preciso, aqui, muita cautela: essa estranha religião tem um
engajamento nítido com a liberdade. Não se pode negar que ela se estruture como crítica da
transcendência e da servidão engendrada pelas prerrogativas da teologia tradicional. Há,
porém, o combate com uma outra instância: aquela que, num esforço por tudo imanentizar,
termina por dar à razão vestes religiosas. O pensamento religioso erguido por Spinoza não
16

pode e não deve ser remetido a quaisquer compromissos confessionais – não queremos, aqui,
criar nenhuma Igreja! –, e o que unifica seus dois inimigos imediatos é a filiação de ambos às
identidades estabilizadoras.

Para detectar as minúcias desta reintegração do exterior, teremos de traçar um longo


percurso, ele mesmo aparentado a uma mise-en-scène teatral. Diga-se de passagem: esta tese
obedece a certo arco dramático, a ser detalhado no Prefácio e Introdução que seguem.
Começaremos nosso itinerário por descrever o culto ao exterior – identificado nas crenças
finalistas que provocam preconceitos que, se generalizados, perpetuam o modo de vida
supersticioso e a servidão político-afetiva. O primeiro capítulo descreve um dos inimigos de
Spinoza: a teologia tradicional de culto ao exterior em sua infernal flutuação entre esperança
e medo. No segundo capítulo, examinaremos as regras do método crítico de interpretação da
Escritura – mostrando como interessa a Spinoza produzir uma regra geral de imanência que
interiorize, no texto, os componentes relevantes à sua compreensão. Um certo desprezo pela
linguagem acompanhará sua denúncia do fetiche pelo papel e tinta – outras versões do culto
supersticioso ao exterior. Já ali, um primeiro lampejo do tratamento positivo da exterioridade
surge: a dessacralização do texto bíblico exige que ele seja considerado de modo a posteriori,
retraçando as fronteiras herdadas entre externo e interno. Como o uso mais proveitoso da
exterioridade ainda é, aqui, muito tímido, estes dois primeiros capítulos compõem, juntos, um
bloco crítico: seu objetivo é evidenciar o aspecto polêmico da filosofia da religião de
Spinoza.

Um momento de grande virada ocorre, em sequência, no capítulo 3, que se dedica a


analisar a figura do Cristo. Novamente tendo como princípio a manutenção dos paradoxos,
procuro mostrar como o Cristo assume uma configuração fraturada: pode ser compreendido
de perspectivas diversas, por exemplo, segundo a carne e segundo o espírito. Sua
comunicação sui generis com Deus o permitiu ter uma plasticidade persuasiva em suas
estratégias de ensino. Pode, assim, fazer ensinamentos racionais tanto quanto apelar para o
discurso parabólico. Esta duplicidade, ao invés de um problema, constituirá exatamente todo
o alcance de sua doutrina salvífica, capaz de adequar-se tanto ao engenho do sábio quanto do
ignorante. É também neste capítulo que o leitor verificará uma radicalização do método de
escrita desta tese – que se preocupará, para pensar o Cristo e outros conceitos da filosofia da
17

religião de Spinoza, em proliferar as entradas para um mesmo problema e, explorando


múltiplas possibilidades discursivas, fazer-nos derivar.

A nova perspectiva acerca da exterioridade introduzida no capítulo sobre o Cristo nos


exigirá repensar a lógica da servidão. O capítulo 4 reinterpretará a experiência teocrática a
partir da presença atuante do exterior. Se sempre há troca entre interioridade e exterioridade,
como compreender a servidão afetiva e política – inicialmente descrita, nos dois primeiros
capítulos, como um culto ao fora? O estado hebreu foi uma experiência histórica complexa –
teocracia na teoria, democracia em muitas de suas práticas cotidianas. O componente de
servidão é identificado em três processos: uma primeira interiorização de Deus – que, trazido
para a esfera profana, passa a legislar sobre o corpo e a vida dos seus súditos,
sacralizando-os; uma segunda interiorização da lei na mente dos indivíduos – que passam a
organizar sua conduta e vida afetiva através do direito de Estado – e, por fim, a exteriorização
desta rede afetiva em ódio ao exterior. Como os afetos que determinam esta realidade são
principalmente o amor devoto e o ódio teológico, é bem verdade que a servidão não se
perpetuará sem um componente ativo, ou seja, sem a observação dos interesses dos súditos.
Em todo caso, na dinâmica entre interioridade e exterioridade, a servidão será compreendida
como uma captura de fora da interioridade dos indivíduos, cuja resposta exterior autônoma
não será propriamente nula, mas mínima. É extremamente perigoso eliminar a comunicação
livre entre interno e externo, e se houve paz e benefício neste Estado, foi apenas a paz dos
desertos.

O último capítulo de nosso percurso pensará as questões relativas ao direito, tais como
a lei, o dogma, a obediência religiosa e civil e, por último, a desobediência – ou, para falar
em termos spinozistas, a sedição. Mostraremos a ambiguidade intrínseca ao conceito de lei
divina – ao mesmo tempo prescritiva e descritiva, pertencendo indistintamente à esfera da
natureza e do direito. Encontraremos a dinâmica entre interno e externo na observação do
dogma tanto quanto nos diversos gêneros de comportamento obediente. Contra alguns
comentadores que consideram a obediência como mera adequação passiva a uma imposição
externa, apresentaremos uma extensa tipificação da obediência em suas facetas piedosa,
interessada, submissa e esclarecida, e o modo como sempre haverá contribuição do interior.
No que se refere ao problema da salvação – tema em que a potência da exterioridade é
normalmente verificada pelos comentadores –, defenderemos que, ao contrário de um
18

indicativo solitário, ele traduz, na verdade, um paradigma explicativo do pensamento de


Spinoza acerca da religião. Por último, será na imprevisível associação entre liberdade e
obediência, que implicará, também, uma nova versão sobre a sedição, que constataremos um
dos índices mais marcadamente antimodernos de Spinoza – a ser complementado, é verdade,
pela busca moderna pela liberdade de expressão no contexto civil.

A Introdução e a Conclusão são os passos mais autoexplicativos deste trabalho – e


creio que pouco resta a acrescentar sobre eles. São momentos em que me permito contemplar
a tese à distância e a falar em primeira pessoa. É somente assumindo a exterioridade como
lugar de enunciação que poderei interpelar mais diretamente o leitor sobre metodologia
filosófica e teologia-política, os temas constitutivos deste trabalho.

Uma última palavra sobre a metodologia silenciosa deste trabalho. Disse que esta tese
tinha um objetivo duplo: a de ser uma espécie de comentário e, ao mesmo tempo, de
meditação autoral. Ouso dizer que esta tese é também uma terceira coisa: um sutil manifesto
por uma certa linguagem filosófica outra. Há uma tese subterrânea a esta tese, verificável
apenas em sua performance. Suas escolhas estilísticas a todo tempo informam sobre uma
maneira particular de compreender — e de escrever — a própria filosofia: os elementos que
compõem a capa da edição original do TTP são tão legítimos quanto os causos públicos
acerca dos milagres no século XVII ou quanto os rumores sobre o suicídio de Spinoza,
quanto a reflexão de Badiou sobre Paulo e de Agamben sobre os franciscanos, quanto a
concepção hobbesiana de lei natural e quanto a definição de impostura na literatura de
Molière, quanto a reconstrução estruturalista dos argumentos de Spinoza por parte de seus
comentadores e quanto seu diálogo epistolar com seus detratores. A doutrina, os gêneros
textuais, a biografia, as hesitações, os silêncios, as queixas, os risos e os maldizeres de
Spinoza: todos serão reconduzidos da exterioridade à interioridade de nossa exposição.

Este texto é um exemplo do modo como se pode associar a filosofia tanto à história
quanto à literatura: no primeiro caso, tomando-a como um estudo dos mortos; no segundo,
como tentativa de produzir, na linguagem, seus próprios objetos de reflexão. Reproduzo, na
forma, aquilo que é também o conteúdo deste trabalho: o conflito entre o dentro e o fora. Ao
se deixar assim contaminar, ao perseguir deliberadamente a contaminação, a tese questiona os
limites muito bem determinados entre o filosófico e o não-filosófico, o que a encaminha a um
19

estranho produto final. É, no fim das contas, uma maneira de resistir à perpetuação do cânone
tanto trazendo o não-canônico para o centro da investigação quanto transformando
radicalmente a apreciação clássica de um autor tradicional. É mesmo sobre Spinoza que se
fala? É esta uma reprodução fiel das teses do Tratado Teológico-Político? É mesmo uma tese
de filosofia? Se este trabalho impulsionar o leitor a tornar minimamente complicados o nome
de Spinoza e a imagem reificada de sua obra, terei satisfeito meu vício.

Fim da concessão ao leitor.


20

Prefácio.

Tomara que chegue o tempo, graças a Deus que


em certas rodas já chegou, em que a linguagem é
mais eficientemente empregada quando mal
empregada. Como não podemos eliminar a
linguagem de uma vez por todas, devemos pelo
menos não deixar por fazer nada que possa
contribuir para sua desgraça.

— Samuel Beckett, Carta a Axel Kaun1

Esta tese tem de começar pelo desmascaramento de uma impostura. Este trabalho não
é um comentário bem-comportado da filosofia de Spinoza. Seu resultado é tão estranho, os
caminhos que percorre tão infiéis, que talvez não seja sequer um comentário malcomportado
– simplesmente não é um comentário.

A maior impostura está em seu título. Reivindicando para si o lugar comum das
longas monografias estruturalistas – convocando uma questão e um autor que lhe sirva de
sustentação – é, na verdade, uma subversão delas. Uma subversão, porém, muito sutil, pois,
ignorados este prefácio e a introdução seguinte, talvez não seja notada. Possivelmente uma
perversão: parece inscrever-se, em sua forma e conteúdo, numa certa tradição, apenas para
contaminá-la de seu interior. Larvatus prodeo: afirma o adágio cartesiano disposto em suas
anotações privadas de juventude. Tal como ele, avanço mascarada no teatro filosófico deste
mundo.

A máxima cartesiana pode ser entendida ora como cautela, ora como disfarce. E pode
até mesmo induzir a uma espécie de terceira via, fruto da combinação dos dois motivos:
disfarçar-se por prudência. A ambiguidade aí contida, a qual não nos interessa eliminar, pode
bem explicar certos esforços de despistamento encontrados, por exemplo, nas Meditações. O
fato de Descartes afirmar, no Resumo, que não abordaria na Quarta Meditação o pecado ou o
erro moral, apenas para lá fazer exatamente o contrário2, tanto quanto a supressão de
quaisquer referências ao nome de um de seus principais inimigos teóricos – Aristóteles – na

1
ANDRADE, F.S. Samuel Beckett. O silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. P. 169.
2
As referências às obras de Descartes seguirão os volumes e a numeração de páginas da edição das obras
completas preparada por Charles Adam e Paul Tannery, cf. DESCARTES, R. Œuvres de Descartes (11 vols).
Publiées par Charles Adam et Paul Tannery. Paris : Vrin, 1996. A citação apresentará a abreviação “AT”,
seguida do volume correspondente em números romanos, seguida, por sua vez, da numeração de página em
números arábicos. Para o caso da passagem em questão, ver AT IX-1, 46.
21

Segunda Meditação, particularmente quando se trata de definir a natureza do eu obtido pelo


argumento do cogito3, são exemplos suficientes. Ecos deste avançar mascarado encontram-se
também na ironia encoberta no título de O que é a filosofia?, livro de 1991 de autoria de
Gilles Deleuze e Félix Guattari. O título sugere algum parentesco com os manuais de
filosofia, mas eis que, confrontados com seu conteúdo, percebemos que, na verdade, deles se
afastam visivelmente. O que é a filosofia? Seus leitores provavelmente terminarão sem
sabê-lo.

Em certo sentido, é possível ler as páginas que seguem como um comentário:


interrogações são postas, há um autor central e um texto eleito como guia, a literatura
especializada é mobilizada para subscrever ou contrapor suas teses. Os problemas, porém,
não parecem se resolver: ao contrário, se multiplicam. A intervenção externa,
deliberadamente externa, que em alguns casos arrisca-se no anacronismo, não constitui um
momento isolado do texto: é, antes, seu fio condutor. Daí os dois níveis da exterioridade, que
também comparece no título: conteudisticamente, a tese persegue o modo como um autor
clássico da história da filosofia ocidental figurou o exterior, particularmente o objeto
religioso, e como, num outro nível, foi-me possível pensar, a partir da exterioridade, algumas
questões de metodologia filosófica que me ocupam já há algum tempo. Foi preciso, em suma,
resgatar o exterior, manter-se sempre em tensão com ele: a história e a literatura, dois dos
principais espectros que assombram a filosofia em sua pretensão de soberania, participam da
peça. É um discurso sobre um outro – a teologia-política –, mas também inescapavelmente
um discurso sobre si próprio – uma metafilosofia.

Elaborei uma nova linguagem para construir este objeto que, antes de achar-se nela,
não existia. Por isso, esta tese trata não só de um controverso tema de filosofia política
moderna e contemporânea, mas também propõe indiretamente uma discussão sobre a
linguagem. Forçada a inventar uma gramática para dar conta do objeto que persigo, meu
comportamento foi análogo ao de uma atriz que adentra o teatro filosófico deste mundo
confeccionando para si um disfarce, quer dizer, um personagem próprio: com seus trejeitos e
indumentárias correspondentes. Insistindo na imagem teatral, a tese emprega ela mesma
recursos performáticos, sobretudo considerando o ritmo dos capítulos e subcapítulos, que são
como os atos e cenas de sua mise-en-scène. A exterioridade começa, nos dois primeiros atos,

3
AT IX-1, 20.
22

por ser constantemente rejeitada – para, num coup-de-théâtre, ser estranhamente reabsorvida
no terceiro. Daí por diante, os dois últimos capítulos a reabilitam positivamente. O
personagem da exterioridade salta de coadjuvante para roubar o lugar que lhe é seu por
direito: o de personagem principal.

A metodologia aqui adotada é também um modo de posicionar-se na história da


filosofia. Não se trata de recusar a leitura dos clássicos, mas sim de, insistindo numa certa
prática de leitura e escrita, mostrar que os autores e suas doutrinas são apenas construções a
posteriori. Espera-se, ao fim do percurso, que a própria noção de autoria e de texto filosófico
– aquele a quem chamamos despreocupadamente Baruch de Spinoza e o livro ao qual lhe
atribuímos origem, o Tratado Teológico-Político – sejam, no mínimo, complicadas e
desativadas de sua sacralidade prévia. Recusar lançar mais um comentário que empilhará as
estantes de obras sobre Spinoza, resistir ao alargamento do possível, ousar penetrar o
impossível, incomodar o cânone, não participar da dinâmica sem fim do que pode ser dito,
questionar as regras mesmas do jogo tal como ele se estabeleceu e se estabelece
historicamente. Dizer preferiria não ao invés de dizer sim ou não.

Contra as evidências, contra o verossímil. Para os adeptos deste último, toda tentativa
de leitura que recuse identificar, nos textos e na história, regularidades prévias, interpretações
inquestionáveis, metodologias herdadas, autores canônicos e incontornáveis, contextos
objetivos, só pode soar como inteiramente aberrante. Roland Barthes, num livro de combate à
crítica acadêmica francesa, opõe, a estas normatividades, o método, que tem por função
conduzir uma dúvida “acerca do acaso e da natureza”4. Toda filosofia é, ela mesma e sempre,
um discurso do método. Não escapamos desta consequência, com a diferença de que o
itinerário de produção do método foi simultâneo à perseguição do próprio tema ao qual ele
visa apreender. Por mais irracionalista que esta postura possa parecer, talvez ela seja menos
absurda caso reenviada à noção de crítica kantiana. Trata-se apenas de levar o
antidogmatismo às últimas consequências.

Como nota Jacques Schlanger5, o prefácio – e suas possíveis variações em prólogo,


introdução, proêmio, prolegômeno, advertência – é o lugar em que o autor se dá a ver

4
BARTHES, R. Crítica e verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. Revisão: Geraldo Gerson de Souza. São
Paulo: Perspectiva, 2005. P. 191.
5
SCHLANGER, J. Gestes des philosophes. Paris, Aubier: 1994. P. 40.
23

publicamente pondo sua máscara. Nos bastidores do espetáculo, anuncio aos olhos do
público: avanço mascarada. Pode-se perguntar qual é o lugar de um prefácio na economia
expositiva de um trabalho dedicado a pensar a exterioridade. Um prefácio tanto quanto uma
introdução devem ocupar o lugar de uma exterioridade máxima e neles pouco ou nada será
dito sobre Spinoza. Observaremos este outro personagem à distância, considerando apenas
aquilo que outros disseram sobre ele. Um desvio necessário à literatura e à história nos
conduzirá neste esforço de mostrar aquilo que não está diretamente tematizado no curso da
investigação. Um último sinal de advertência antes que seja iniciada a encenação: não se trata
de desmascarar o personagem por completo. Apenas contemplaremos um ato – o de pôr a
máscara –, que nada tem a ver com a revelação de um suposto númeno oculto que garantiria a
estabilidade da ficção. Não há pacto ficcional com o espectador para o bem da narrativa.
Desvendar os segredos do ator não interessa, pois a condição da máscara é perpétua. O
público já está confortavelmente sentado em suas cadeiras. O silêncio se instaura e as luzes se
apagam. As cortinas se levantam.
24

Introdução.

NÃO POSSO COMEÇAR: DEVO COMEÇAR

Fazer a metafísica da linguagem articulada é


fazer com que a linguagem sirva para expressar
aquilo que habitualmente ela não expressa: é
usá-la de um modo novo, excepcional e
incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de
comoção física, é dividi-la e distribuí-la
ativamente no espaço, é tomar as entonações de
uma maneira concreta absoluta e devolver-lhes o
poder que teriam de dilacerar e manifestar
realmente alguma coisa, é voltar-se contra a
linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias,
poder se-ia dizer alimentares, contra suas origens
de animal acuado, é, enfim, considerar a
linguagem sob a forma do Encantamento.

— Antonin Artaud, O teatro e seu duplo6

Toda crítica deve incluir em seu discurso (mesmo


que fosse do modo mais indireto e pudico) um
discurso implícito sobre ela mesma; toda crítica é
crítica da obra e crítica de si mesma [...].

— Roland Barthes, Crítica e verdade7

Em seu já citado Gestes des Philosophes, Jacques Schlanger investiga a história da


filosofia a partir do conceito de gesto, por ele identificado às “maneiras de pensar e de fazer,
maneiras de agir e reagir, tons, estilos, posturas [...]”8 inscritos nos textos embora não
diretamente tematizados neles. O uso da primeira pessoa, gesto cartesiano por excelência, é
classificado como um uso de si aberto, em que o autor-filósofo não procura se esconder por
trás da linguagem impessoal de um “nós” indeterminado. Ao afirmar ego sum, ego existo, o
autor se faz presente no texto e, tomando-se como paradigma, usa a si próprio para usar
também o leitor.9 O “eu” é uma espécie de referência universal que assume experiências
compartilhadas pelo leitor a fim de melhor convencê-lo e engajá-lo no percurso
argumentativo do texto. As implicações éticas e religiosas deste gesto exemplar são claras: o
filósofo assume o lugar do profeta ao anunciar um modo de vida a ser seguido.10 Ainda, o uso

6
ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Tradução de Monica Stahel e Teixeira
Coelho. P. 46-47.
7
BARTHES, R. “O que é a crítica?”. In : Crítica e verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. Revisão: Geraldo
Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2005. P. 160.
8
Tradução minha a partir de SCHLENGER, J. 1994, P. 7.
9
SCHLENGER, J. 1994, P. 14-15.
10
SCHLENGER, J. 1994, P. 18.
25

da primeira pessoa é também uma marca da modernidade: a filosofia deixa de ocupar um


lugar social e conceitual evidente para ser alvo de questionamentos céticos, de modo que
resta, ao autor, refugiar-se em sua própria experiência como sustentação de sua filosofia (não
mais na autoridade bíblica, não mais na tradição).11 Não se pode esquecer, porém, que
Descartes é também o filósofo mascarado. Schlanger interpreta o larvatus prodeo como a
construção de uma persona pública: a do filósofo René Descartes, que assumirá um novo tom
e um novo conjunto de gestos, transcendendo sua identidade privada.

Como não contrastar, porém, a visibilidade máxima implicada no uso da primeira


pessoa com este comprometimento com o disfarce? Como compreender as estratégias
daquele que pretende se tornar visível ao teatro filosófico do mundo apenas sob a condição
de, nele, não se dar completamente ao olhar? A tensão entre luz e sombra e, se se quiser,
entre interioridade e exterioridade instaurada pelo confronto insolúvel entre estes dois gestos
poderá ser mais bem apreciada numa conversa com fantasmas.

Uma filosofia perversa

Os gestos cartesianos interessaram sobremaneira ao escritor irlandês Samuel Beckett.


Tal interesse é confirmado desde seus primeiros trabalhos: como em “Whoroscope”, seu
primeiro poema, publicado em 1930. Escrito de véspera para participar de um concurso cujo
fundo temático era o tempo, a publicação é fruto do período de juventude de Beckett, época
em que, morador de Paris, lecionava inglês na École Normale Supérieure e assessorava a
produção literária de James Joyce. O conjunto de 98 versos que o compõem narram, em
primeira pessoa, as peripécias da vida e as manias – como o fato de preferir seus ovos
chocados entre 8 e 10 dias – de Descartes12.

Já em Murphy, romance beckettiano de 1938, o personagem homônimo é descrito


como um “solipsista exausto”13. Murphy é um personagem que quase não se comunica com o
mundo exterior – temos acesso à sua interioridade e exterioridade apenas através de um
narrador onisciente. O capítulo VI, cujo título ostenta uma referência cômica à Proposição 35

11
SCHLENGER, J. 1994, P. 16.
12
Para um estudo completo e mais atualizado de Whoroscope, ver o livro de Edward Bizub intitulado Beckett et
Descartes dans l’œuf. Aux sources de l’œuvre beckettienne : de Whoroscope à Godot. Paris : Classiques Garnier,
2012.
13
BECKETT, S. 2013, P. 66.
26

da Parte V da Ética de Spinoza – “amor intellectualis qyo Murphy se ipsum amat”14 –, é


talvez o excerto mais cartesiano15 do romance: ali, o “espírito de Murphy”16 é definido como
“uma grande esfera oca, hermeticamente selada ao universo exterior”17. Contra a conclusão
da Sexta Meditação, que advoga pela união íntima entre as substâncias pensante e extensa e
postula que a alma não é um piloto alojado seu navio corporal18, Murphy:

[...] sentia-se partido em dois, de um lado corpo, de outro espírito. Aparentemente,


comunicavam-se entre si, caso contrário ele não teria descoberto que possuíam
alguma coisa em comum. Mas ele tinha a sensação de que seu espírito era estanque
em relação ao corpo e não compreendia por que canal a comunicação se dava, nem
como as duas experiências transbordavam uma na outra. Estava convencido de que
não havia comunicação direta entre as duas. (BECKETT, S. 2013, P.86)

Um ódio ao eu exterior, obrigado a se relacionar com o “grande mundo”19, combinado


a um amor ao eu interior, habitante perpétuo do “pequeno mundo”20, local compartilhado
com os residentes da instituição psiquiátrica onde passa a trabalhar e na qual sente-se
finalmente em casa, é suficiente para verificar o modo como Beckett procura, contra
Descartes, habitar a fratura dualista. Samuel I. Mintz, num artigo de 195921, sustentava a
importância de ler Murphy como um romance cartesiano. A mesma ênfase dualista motivou o
crítico Hugh Kenner a propor a imagem de um “centauro cartesiano”22 a fim de descrever as
figuras que compõem os textos de Beckett. Molloy, Moran, Watt: o personagem-síntese de
Beckett é um homem pilotando uma bicicleta, cindido em dois. Que seja somente para
recusar as conclusões cartesianas, é notável que Beckett se apropria de modo complexo dos
signos que encontrou e produziu em torno do nome de Descartes.

A listagem de elementos cartesianos dispersos ao longo da obra de Beckett pode ser


ainda complementada. Não apenas as teses ou os problemas cartesianos o inspiram: o
indivíduo Descartes também parece ter desempenhado um papel importante na elaboração de
seus trabalhos futuros. Como se sabe, Beckett leu a biografia de Descartes escrita por Adrien
Baillet em 1691. Baillet nos informa sobre como Descartes encarnava esta espécie de

14
Ibid, P. 85.
15
Beckett obviamente contraria a tese cartesiana, mas herda do cartesianismo o modo de construir o problema
dualista.
16
Ibid.
17
Ibid.
18
AT IX-1, 64.
19
Ibid.
20
BECKETT, S. 2013, P. 141.
21
MINTZ, S. I. “Beckett’s Murphy: A Cartesian Novel”. In : Perspective, 2, 3 (1959), pp.156-65.
22
KENNER, H. Samuel Beckett. A Critical Study. New York: Grove Press, 1961.
27

oblomovismo avant la lettre. Seu regime de sono era extenso e preferia passar boa parte de
seus dias deitado na cama:

Ele dormia muito, ou ao menos seu despertar não era nunca forçado; quando se sentia
perfeitamente desvencilhado do sono estudava meditando deitado, e só se levantava a
meio-corpo, por intervalo, para escrever seus pensamentos. É o que o fazia
frequentemente permanecer dez e às vezes doze horas na cama. (Tradução minha de
BAILLET, A. 1946, P. 277).

Em carta a Elisabeth de 28 de junho de 1643, Descartes de fato confessa ter


empregado “mui poucas horas, por dia, nos pensamentos que ocupam a imaginação, e mui
poucas horas, por ano, nos que ocupam o entendimento só, e [...] dediquei todo o resto de
meu tempo ao relaxamento dos sentidos e ao repouso do espírito”23. O cansaço físico e
espiritual que encaminha ao repouso também não está de todo ausente dos textos filosóficos
de Descartes: é por conceder a si próprio um momento de relaxamento após o árduo dia de
trabalho que o eu meditativo, arrastado pelo ritmo ordinário de sua vida, prefere suspender a
investigação da Primeira Meditação que tanto o atordoara de dúvidas.24 Não é difícil fabricar
a imagem de um Descartes horizontalizado, trancado num quarto a meditar consigo próprio:
tão esgotado quanto Murphy, Molloy, Malone e Mahood.

São igualmente relevantes para Beckett as propriedades estilísticas da obra cartesiana.


Lembremos que as Meditações, tanto quanto o Discurso, empregam a primeira pessoa a fim
de erigir uma espécie de percurso intelectual: a primeira, lançando mão de um eu que durante
grande parte do itinerário investigativo permanece desprovido de corpo, e que, num exercício
dialético, procura listar as razões para aceitar e duvidar de determinados conhecimentos
outrora recebidos. Este eu vazio deve ser ocupado pelo leitor, a fim de que se engaje no
exercício espiritual e seja conduzido pela mão em direção à verdade da doutrina. É preciso
mostrar, dos efeitos para as causas, o caminho de descoberta da verdade: aplicando, assim, a
análise tal como descrita nas Respostas às Segundas Objeções.25 O Discurso, por sua vez,
narra a “história de um espírito”26: como num quadro, é pintada uma fábula acerca das
experiências de Descartes, um eu com uma história que não podemos repetir. Trata-se, desta
vez, não de “ensinar o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas

23
DESCARTES, R. 1973, P. 314.
24
AT IX-1, 18.
25
AT IX-1, 121.
26
A expressão deve-se a Jean-Louis Guez de Balzac, em carta a Descartes de 30 de março de 1628 (cf. AT I,
570).
28

apenas mostrar de que maneira me esforcei para conduzir a minha”27. O eu, agora, é opaco.
Nas Meditações o caso é fundamentalmente de ensino; no Discurso, de espelho, no qual,
tomando o narrador como paradigma, pode-se, imitando suas virtudes, aplicá-las em sua
realidade particular. Inútil reafirmar o destino que a primeira pessoa tem em Beckett,
sobretudo considerando a trilogia dos romances assim chamados do pós-guerra: Molloy,
Malone Morre e O Inominável o atestam.

Depois de O Inominável, romance de 1953 no qual o ensimesmamento parece atingir


seu nível máximo, o que resta a explorar no âmbito da primeira pessoa? Não teria Beckett,
enfim, esgotado suas possibilidades? Como ir além deste eu que, como diz Blanchot, está
“condenado a falar sem descanso”28, não podendo continuar, mas obrigado a fazê-lo? “Eu
tinha encurralado a mim mesmo”29, diz Beckett numa entrevista30 de 1961. A solução, talvez,
venha com Companhia, de 1979, em algum sentido já prefigurada em Film, de 1965: cindir o
eu para então exteriorizá-lo, interditar o uso da primeira pessoa e multiplicar as vozes.
Permanecer nas incursões autobiográficas – pois se trata, ainda, de perscrutar as memórias
individuais –, mas desta vez num jogo com novas regras. Recusar-se a autorreferência,
proibir a contemplação no espelho: Buster Keaton horrorizando-se ao olhar para a câmera e
ao se dar conta de que percebe-se a si próprio. Ainda objetivando esgotar as palavras, é
preciso relacioná-las a um outro que fala e que possui a linguagem por mim, como em
Companhia:

O uso da segunda pessoa caracteriza a voz. O da terceira, aquele outro, o intruso. Se


ele pudesse falar a quem e de quem fala a voz, então haveria uma primeira. Mas não
pode. Não o fará. Não podes. Não o farás. (BECKETT, S. 1982, P. 43).

Até mesmo o gosto de Beckett por listas parece ter uma origem longínqua em
Descartes. Lembremos de Molloy permutando todas as combinações possíveis das pedrinhas
de chupar levadas de seu bolso à sua boca, e de Murphy intercalando a ordem de comer seus
pãezinhos. Os movimentos da partida de xadrez entre Murphy e o Sr. Endon são

27
DESCARTES, R. 1973, P. 38; AT VI, 4.
28
BLANCHOT, M. 1959, P.289.
29
“Malone brotou de Molloy, L’Innommable de Malone, mas depois – e por um longo tempo – eu não tinha
mais nenhuma certeza do que me restava a dizer. Eu tinha encurralado a mim mesmo. Tentando me libertar,
escrevi aqueles pequenos textos, aquelas historinhas se você preferir, que chamo de ‘écrits pour rien’”, cf.
ANDRADE, F.S. 2001, P. 189.
30
Empregarei a expressão “entrevista” de modo apenas convencional. A ideia de abertura para o diálogo que um
contexto como tal sugere é alheia à concepção de linguagem que Beckett apresenta em sua obra e que
pretendemos retraçar aqui.
29

cuidadosamente documentados, tanto quanto as trocas possíveis entre acender o interruptor e


levantar o indicador ensaiadas pelo último:

Murphy encontrou-o [o sr. Endon] no transepto sul, graciosamente parado junto ao


almofadão do hipomaníaco, ensaiando todas as combinações possíveis em que o
indicador podia ser acionado e a luz, acesa e apagada. Começando por luz apagada
para começar, chegou a: acesa, indicada, apagada; acesa, apagada, indicada; indicada,
acesa, apagada. Continuando em seguida com a luz acesa para começar, chegou a:
apagada, acesa, indicada; apagada, indicada, acesa; indicada, apagada e estava
seriamente pensando em acender quando Murphy deteve a sua mão. (BECKETT, S.
2013, P. 193)

A quarta regra do método apresentada no Discurso institui que deve-se: “fazer em


toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada
omitir”31. A enumeração é, nas Regras, definida como um “movimento contínuo do
pensamento”32, que não pode ser interrompido, sob pena de comprometer a intuição das
conexões entre as partes. Além de metódica, o que quer dizer que deve proceder por ordem, a
enumeração é “diligente e [...] cuidada”33, pois envolve uma aplicação concentrada do
espírito, de tal forma que ele possa se assegurar, sozinho, de que nada omitiu por descuido.

Beckett se apropria subversivamente da regra da enumeração: como Descartes bem


previra, “se fosse preciso percorrer separadamente cada uma das coisas em particular que se
relacionam com o objeto proposto, nenhuma vida humana bastaria para tal [...]”34. O
esgotamento das possibilidades do objeto via enumeração envolve, na mesma medida, o
esgotamento do eu que enumera. Este é, segundo Gilles Deleuze, o procedimento beckettiano
básico de dissolução do eu: a ciência do inventário. Deleuze sugere, num ensaio tardio de
199235, que Beckett está mais comprometido com o esgotamento do que com o cansaço. Ao
cansado, apesar de impossibilitado de realizar, resta ainda o poder de criar possibilidades.
Procedendo por disjunções exclusivas, enumera possibilidades no interior de uma lógica de
meios e fins: sair ou não sair de casa, calçar ou não os sapatos, comer ou não uma maçã,
vestir-se a fim de cobrir-se do frio, levantar os braços para chamar a atenção. O esgotado,
porém, além de cansado do real, cansa-se do possível: não só não pode mais realizar, como
também lhe é interdita a criação de novas possibilidades. Os heróis miseráveis de Beckett,

31
DESCARTES, R. 1973, P. 46.
32
Na Regra VII. Cf. DESCARTES, R. 2002a, P. 39.
33
Ibid, P. 40.
34
DESCARTES, R. 2002a, P. 42.
35
DELEUZE, G. « L’épuisé ». In : BECKETT, S. Quad et autres pièces pour la télévision. Suivi de L’épuisé par
Gilles Deleuze. Lonrai : Les Éditions de Minuit, 1992.
30

mendigos, vagabundos, desempregados, fracassados de modo geral, seja quando presos num
quarto meditando, seja arrastando-se por estradas que não levam a lugar algum, nada buscam,
nada expressam, nem mesmo expressam a impossibilidade de expressar: simplesmente
esgotam-se.

O esgotamento, porém, exige trabalho, é mais uma ciência do que uma arte: daí a
postura de alguns dos personagens de Beckett, indivíduos sentados, nem totalmente vivos,
nem inteiramente entregues à morte, mas dispostos à mesa de estudo enumerando todas as
possibilidades para nada. Exibir as possibilidades não para escolher uma dentre outras, mas
para manter-se nesse nível de suspensão. Neste projeto, há o obstáculo da linguagem
ordinária: se a linguagem nomeia o possível, é preciso uma mutação no interior da língua de
modo a esgotar justamente aquilo que não tem nome. Para esgotar o possível por meio de
palavras é preciso uma metalíngua em que as relações entre as palavras sejam idênticas às
relações entre os objetos. Deleuze denominará esta primeira mutação de língua I, e
identificará em Beckett ainda mais três metalínguas, nas quais se trata sempre da tarefa do
esgotamento, fazendo uso, respectivamente, dos fluxos de vozes, da imagem e, por fim, do
espaço.

É curioso notar que, apesar de admitir a influência de Descartes e dos pós-cartesianos


nos escritos de Beckett, Deleuze não tenha remetido esta primeira maneira de esgotar, a da
criação de séries e combinatórias, à ambiguidade do esgotamento também verificada em
Descartes. O esgotamento pode ser compreendido tanto como o exaurir das possibilidades
enumerativas, uma exigência do método, quanto como o cansaço dos gestos do eu meditativo
e do eu-autor. É bem verdade, no entanto, que os interesses de Beckett são opostos aos de
Descartes, de modo que talvez o fato de recorrer a ele tenha a ver com uma espécie de
perversão. Talvez seja esta perversão aquilo que coordena, de fundo, a apropriação dos
demais emblemas cartesianos. Trata-se de aceitar os termos do cartesianismo sob a condição
de fazê-los errar. Descartes pretende ter fornecido uma prova da existência de Deus, do
corpo próprio e do mundo exterior; pretende ter superado o solipsismo e dado fim à
sistematicidade do erro introduzida pelo Deus enganador; pretende ter reabilitado o poder
cognitivo dos sentidos, ter fornecido uma prova final contra o argumento do sonho e demais
argumentos céticos da Primeira Meditação, pretende ter, talvez não propriamente provado,
mas ao menos apontado a existência inquestionável da interação entre as substâncias pensante
31

e extensa. Ainda, a enumeração tem como propósito o alcance de uma conclusão, pois é um
procedimento de prova ou, no mínimo, uma via para conquista da certeza cognitiva,
driblando a fraqueza da memória. O que interessa a Beckett, porém, é o fracasso de Descartes
apesar dele mesmo: como se pudesse manter-se indefinidamente no presente eterno da
Segunda Meditação, fazendo seus personagens enumerarem para nada.

Beckett tangencia ao menos um tema em que o próprio Descartes reconhece seu


fracasso: a moral. Em Molloy, há uma passagem que parece referir-se à metáfora do
caminhante na floresta que surge na Terceira Parte do Discurso. Para justificar a tese de que o
comportamento resoluto é, nas ações da vida que não suportam quaisquer delongas, o melhor
caminho, Descartes propõe a uma situação ficcional: imagine-se um indivíduo perdido numa
floresta. Nesta circunstância, é preferível seguir em linha reta e permanecer nesta via: pois,
embora assim talvez não se encontre a saída, certamente encontrar-se-á em algum lugar.
Enquanto o duvidoso é, nas ciências, imediatamente associado ao falso, na vida o provável
pode ser legitimamente incorporado ao verdadeiro. Ao fim da primeira parte de Molloy, o
personagem encontra-se neste mesmo estado: extraviado numa floresta, com sua perna cada
vez mais inválida. Ele, então, conjectura:

E por ter ouvido falar, ou mais provavelmente lido em algum lugar no tempo em que
achava que tinha interesse em me instruir, ou me divertir, ou me embrutecer, ou matar
o tempo, que acreditando andar sempre em linha reta, na floresta, você só faz na
verdade girar em círculos, fazia o melhor que podia para girar em círculos, esperando
ir assim em linha reta. (BECKETT, S. 2014, P.122)

A transgressão cômica do ensinamento moral cartesiano parece revelar algo


importante sobre o modo como Beckett procura se apropriar do cartesianismo. Os termos dos
problemas e os dados referentes à vida de Descartes são acolhidos apenas para rir-se deles e
fazê-los fracassar. Para fazê-los errar nos dois sentidos da expressão, isto é, para torná-los
equívocos e também para desviá-los de seus contextos e interesses originários. Este
expediente ocorre não só no caso da moral, um tema já reconhecidamente inacabado,
fragmentado, corrompido e provisório do cartesianismo, como também na metafísica,
domínio no qual ele parecia ter acreditado encontrar fundamentos sólidos. Interessa a Beckett
não permitir que as hipóteses anunciadas nas Meditações não só não encontrem o real, mas
que falhem até mesmo no nível do possível. A imagem do caminhante na floresta girando em
32

círculos parece tão adequada para descrever a releitura beckettiana de Descartes quanto a do
homem pilotando uma bicicleta.

Analisamos, até aqui, um Beckett mascarado. Há alguns outros momentos em que


podemos ter acesso a Beckett pondo a máscara: em suas entrevistas, cartas e diálogos, nos
quais aprofunda sua relação com a linguagem e com a filosofia. Quanto à última, suas
declarações tornam complicadas as inscrições de sua obra em quaisquer doutrinas filosóficas
ou tradições de pensamento, cartesianas ou não. De um lado, é verdade que Beckett manipula
determinados autores clássicos da história filosofia ocidental, sobretudo os do século XVII –
Descartes, como vimos, mas também Malebranche, Leibniz, Geulincx, Berkeley, para citar
outros nomes. De outro, insiste em se afastar de modo radical do discurso filosófico: “Não
sou um filósofo”36 e “Não sou um intelectual”37, são duas de suas afirmações célebres. Numa
entrevista para Nouvelles Littéraires de 1961, recusa terminantemente a influência dos
filósofos contemporâneos em sua obra. É categórico: “nunca leio os filósofos”38 e “nunca
entendo o que eles escrevem39. Gabriel D'Aubarède, o entrevistador, insiste: mesmo assim,
muitos acreditam que a compreensão existencialista do ser é uma chave de acesso possível
para os textos beckettianos. A resposta desloca o problema para o nível da expressão: “eu não
teria tido nenhuma razão para escrever meus romances se pudesse ter expressado seu assunto
em termos filosóficos”40. Numa outra entrevista do mesmo ano, a linguagem de Heidegger e
Sartre é considerada “filosófica demais para mim”41.

Em 1949, Beckett trava um diálogo significativo com Georges Duthuit em torno de


algumas figuras da pintura contemporânea, dentre elas Pierre Tal Coat, André Masson e
Bram Van Velde. Em se tratando de Pierre Tal Coat e Henri Matisse, Beckett sustenta que
estão menos distantes da pintura realista, comprometida com os valores de verdade e beleza,
do que pode parecer à primeira vista. Afinal, estavam apenas “lutando para ampliar a
formulação de um compromisso”42, situando-se ainda no interior do possível. Confrontado

36
ANDRADE, F.S. 2001, P. 192.
37
Ibid, P. 190.
38
Ibid, P. 189.
39
Ibid.
40
Ibid, P. 190.
41
Ibid, P. 192.
42
Ibid, P. 174.
33

por seu interlocutor a precisar, afinal de contas, que outro plano há para além do factível,
Beckett retruca:

Logicamente, nenhum. No entanto, estou falando de uma arte que lhe dá as costas
enojada, cansada de suas explorações trocadilhescas, cansada de fingir-se capaz, de
ser capaz, de fazer um pouco melhor a velha coisa, de trilhar um pouco além a
mesma terrível estrada. (ANDRADE, F.S. 2001, P.174-175).

Positivamente, ela prefere:

A expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do
que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar,
aliado à obrigação de expressar. (ANDRADE, F.S. 2001, P.175).

Esta última sentença é imediatamente desqualificada por seu interlocutor como


“pessoal e violenta”43, incapaz, segundo ele, de ajudar a compreender Tal Coat e os demais
pintores que se propuseram discutir. E há alguma razão nisto: Beckett parece, aqui,
particularmente distante da atividade da interpretação que caracteriza uma certa abordagem
da arte e da filosofia. Em 1956, desta vez em entrevista para o New York Times, procura se
afastar da apoteose da palavra joyceana assim descrevendo as prerrogativas de uma arte
outra:

Eu lido com a impotência, a ignorância. Não acho que a impotência tenha sido
explorada no passado. Parece haver um tipo de axioma estético de que a expressão é
realização – deve ser uma realização. Meu modesto terreno de exploração é toda
aquela zona do ser que tem sido constantemente negligenciada pelos artistas como
algo inutilizável – como algo incompatível com a arte por definição. (ANDRADE,
F.S. 2001, P.186).

A reapropriação irônica do cartesianismo, que caracterizei como perversão, nos


instrui de um só golpe sobre o modo como Beckett entendia a filosofia e a literatura. Quando
procurava afirmar categoricamente que não era filósofo, que não entendia seus escritos e que
não apreciava sua linguagem, talvez estivesse atentando para o fato de que a filosofia, apesar
de descomprometida, em alguns casos, com o real, ainda não fora capaz de abandonar
completamente o possível. O exercício de criação de possibilidades, de enumeração das
razões para aceitar e duvidar de uma hipótese é posto, nas Meditações, a serviço do encontro
com uma verdade última que garantirá a regularidade do sistema e que, ao fim e ao cabo,
apaziguará a dúvida cética. A sensação final do eu que medita é o conforto de ter encontrado
o ponto fixo, tal como o fizera outrora Arquimedes, em seu ideal anunciado já no início da
Segunda Meditação. Falta à filosofia o comprometimento que a literatura tem ou, ao menos,

43
Ibid, P. 175.
34

pode ter, com o nada: a ausência de objetivo, o situar-se fora da lógica de meios e fins, a
enumeração que visa esgotar e nada mais. Talvez para Beckett a filosofia ainda fosse
excessivamente cansada.

Quais são os gestos beckettianos, entrevistos em sua apropriação de Descartes, que


retomaremos em nossa metodologia? Em primeiro lugar, o fato de considerar, sem qualquer
grau de distinção hierárquica, conceitos, procedimentos estilísticos e, por fim, dados
biográficos. Contra certa postura realista que pretende resguardar um nível de extrema
incomunicabilidade à doutrina, isolando-a da intervenção externa, costuraremos, em torno do
operador Spinoza, dados que podem estabelecer relações com ele. Trata-se, aqui,
evidentemente, não de perseguir a verdade – a qual depende do estabelecimento de uma série
de descontinuidades e de nivelamentos – mas de forjar um objeto linguístico tal como o faz a
literatura beckettiana. Em segundo, seremos perversos: não só observaremos a cesura do
sistema, como buscaremos conscientemente seus paradoxos, fabricaremos suas possibilidades
de esgotamento, pois também estes podem ser instrutivos.

Discurso para os ausentes

Além da literatura, a história é outro espectro que amedronta a filosofia. Descartes,


por exemplo, rejeitava o recurso à tradição e aos livros empoeirados do passado como forma
de afirmar-se moderno. Constrói, entre ciência e história, uma cisão que talvez só seja
remodelada no século XIX com Hegel. Diz Descartes nas Regras:

Mesmo se todos estivessem de acordo, o seu ensino não nos bastaria: nunca nos
tornaremos matemáticos, por exemplo, embora saibamos de cor todas as
demonstrações feitas pelos outros, se com o espírito não formos capazes de resolver
todo e qualquer problema; nem nos tornaremos filósofos se, tendo lido todos os
raciocínios de Platão e Aristóteles, não pudermos formar um juízo sólido sobre
quanto nos é proposto. Com efeito, daríamos a impressão de termos aprendido não
ciências, mas histórias. (DESCARTES, R. 2002a, P. 19; AT X, 367)

Não percorreremos todas as amostras do desprezo à história distribuídos pela história


da filosofia: outros já o fizeram de maneira mais competente44. Mais do que mero fantasma
intimidante, a história se tornou, para a filosofia, um fardo – para empregar aqui a expressão

44
Ver principalmente “O fardo da história” (In : WHITE, H. Trópicos do Discurso Ensaios sobre a crítica da
cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 2014. P. 39-63), de Hayden White e
também “História Stultitiae e História Sapientiae” (In : Discurso, [S. l.], n. 17, p. 151-172, 1988. DOI:
10.11606/issn.2318-8863.discurso.1988.37935.Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37935. Acesso em: 4 ago. 2021) de Carlos Alberto Ribeiro de
Moura.
35

de Hayden White. A tal ponto que muitos filósofos interessados pelos autores clássicos se
viram na posição de justificar seu compromisso com o passado e, ao mesmo tempo, com
aquilo que, segundo alguns, constitui o domínio próprio da filosofia: os conceitos
impregnados nas doutrinas dos autores, dotados de caráter eterno. Como sustenta Carlos
Alberto Ribeiro de Moura, para não recusar por completo a referência à história, foi preciso
distinguir uma história stultitiae – o estudo do passado enquanto compilado morto de ideias,
motivado por pura curiosidade e espírito de erudição – da história sapientiae – aquela que
toma os sistemas filosóficos como necessariamente contemporâneos do presente, pois dizem
respeito a uma sabedoria que perdura independentemente das modificações temporais.45
Mantém-se, assim, a oposição entre história e filosofia mediante o par
singularidade-eternidade, com a diferença de que, neste caso, o objeto histórico não é tomado
em seu aspecto singular, mas naquilo que o faz escapar de seu tempo histórico e que o
permite se imortalizar para além dos contextos iniciais de sua enunciação. Daí porque o
ofício mais apropriado para descrever o filósofo ou o historiador da filosofia é o da
arquitetura. O arquiteto pode caminhar no interior das estruturas da doutrina observando
suas engrenagens internas, o modo como aquele monumento conceitual subsiste por si
próprio sem referência a aspectos exteriores. Sua função será notar tais aparatos técnicos e
examiná-los criticamente, reenviando suas perguntas, a todo tempo, a um compromisso com
o núcleo fundamental do pensamento daquele autor. Este arquiteto que contempla a
edificação não propriamente a cria desde os fundamentos, mas a reconstrói e aprimora. Assim
o define, por exemplo, Martial Gueroult:

O método das estruturas consiste em explorar mais a interioridade da obra do que


uma suposta interioridade de seu autor. Porque mesmo que seu autor não se encontre
mais entre nós, sua obra estará diante de nós nos livros, como um monumento, um
objeto cujo sentido só é percebido quando se colocam em evidência as disposições
conceituais que a tornaram possível. Esse método é, portanto, antes de tudo, um
método de análise. Mas ele não é simples análise. A análise, com efeito, decompõe os
elementos de um sistema e pode demonstrar como de fato esses elementos se
agrupam nele, mas ela se restringe a isso e não se preocupa em nos mostrar por que o
agrupamento se dá de uma maneira e não de outra. O método das estruturas, ao
contrário, se esforça para descobrir esse porquê. Ele não só coloca em evidência as
estruturas, como também indica de alguma maneira as razões. É por isso que, mesmo
quando as estruturas de uma filosofia não consistem em uma ordem de razões, o
método das estruturas é sempre um método de razões: sempre há uma razão que
preside o posicionamento deste ou daquele elemento. Assim também, dentro de um
dado contexto filosófico, me parece que certas conclusões podem ser obtidas de
forma semelhante e até mais facilmente através de combinações, ou de vias, ou de
demonstrações, legítimas dentro do quadro do sistema contemplado, as quais,

45
MOURA, C.A.R. 1988, P. 152, 156.
36

entretanto, não são aquelas que o autor escolheu. Trata-se, portanto, de investigar
porque essas foram escolhidas em vez de outras. A resposta a essa pergunta permite
progredir um passo na compreensão da obra. Por exemplo, a propósito de Spinoza,
uma coisa é analisar suas demonstrações e expor por que entre várias demonstrações
possíveis ele escolheu ou teve de escolher uma no lugar de outra. Ou, ainda, explicar
por que suas demonstrações, que são, segundo ele, "mais claras e mais simples", só
aparecem à margem da dedução principal e são relegadas a simples escólios. A
dedução cartesiana segundo a ordem das razões, a combinatória tão complexa própria
de Malebranche, com seus deslocamentos de equilíbrio e seus deslizamentos de
conceitos etc., requerem a solução de problemas análogos. Quando respondemos a
essas questões, quando descobrimos a razão da ordem, ou das vias, ou das
combinações adotadas, circulamos pelo monumento filosófico com a mesma
desenvoltura do arquiteto cujo edifício ele desvendou os segredos, ou seja, os fatores
de seu equilíbrio, os cálculos que presidiram sua edificação em função das intenções
do construtor. Ora, a compreensão dessa arquitetônica dos conceitos rege por fim a
compreensão dos próprios conceitos de acordo com as intenções mais profundas da
doutrina. (GUEROULT, M. 2015, P. 164-165)46

É possível, porém, trazer outro ofício para detalhar a prática filosófica – e suponho,
evidentemente, uma definição meramente convencional para filosofia, pois uma das
consequências da postura que gostaria de adotar aqui é justamente a indeterminação das
bordas que a distinguem enquanto um campo de saber autônomo e incontaminável por
discursos outros. A associação com esta segunda ocupação deve vir acompanhada de uma
compreensão alternativa da linguagem, distinta daquela suposta, embora não tematizada, por
Gueroult. Segundo este último, a linguagem tem caráter referencialista, quer dizer, tem o
poder de exprimir ou representar os sistemas filosóficos existentes para além de si própria.
Se, ao contrário, os objetos filosóficos forem pensados como construções que se dão no
interior da linguagem, a filosofia passa a envolver, em seu esforço de leitura e de escrita,
sempre a construção de uma nova gramática. Tal construção não tem de seguir as regras de
funcionamento de uma doutrina bem-acabada, suposta como existente para além da prática
interpretativa e à qual a leitura deveria se adequar, mas pode surgir enquanto narrativa ela
mesma instauradora de seus impasses e tensões particulares. É a um historiador que se deve
esta nova imagem da filosofia, originalmente pensada para traduzir o ofício da história, mas
que deliberadamente descontextualizaremos, adiante, para atender nossos interesses:

Em outras palavras, o historiador defronta o campo histórico mais ou menos da


mesma maneira que o gramático defrontaria uma nova língua. Seu primeiro problema
consiste em distinguir entre os elementos lexicais, gramaticais e sintáticos do campo.
Só então poderá ele intentar a interpretação do que significam determinadas
configurações de elementos ou transformações de suas relações. Em suma, o

46
GUEROULT, M. “O método em história da filosofia”. In : SKÉPSIS, ISSN 1981-4194, Ano VIII, Nº 12, 2015.
P. 160-170. Disponível em:
http://philosophicalskepticism.org/wp-content/uploads/2015/09/O-m%C3%A9todo-em-hist%C3%B3ria-da-filos
ofia-1.pdf. Última visualização em 04/08/2021.
37

problema do historiador é construir um protocolo linguístico, preenchido com as


dimensões lexicais, gramaticais, sintáticas e semânticas, por meio do qual irá
caracterizar o campo, e os elementos nele contidos, nos seus próprios termos (e não
nos termos em que vêm rotulados nos documentos) e assim prepará-los para a
explicação e representação que posteriormente oferecerá deles em sua narrativa. Por
sua vez, esse protocolo linguístico preconceptual será – em virtude de sua natureza
essencialmente prefigurativa – caracterizável em função do modo tropológico
dominante em que será vazado. (WHITE, H. 2019, P. 45)

Eis por que, para White, a história é concebida como um ato poético, seguido de um
ato narrativo: “No ato poético que precede a análise formal do campo o historiador cria seu
objeto de análise e também predetermina a modalidade das estratégias conceptuais de que se
valerá para explicá-lo”47. Os documentos históricos não estão dados previamente: antes de
partir para uma interpretação dos mesmos é preciso determinar um “campo” – uma
gramática, uma língua – para, só então, narrar. Todo o trabalho histórico é produtor de uma
nova linguagem que precisa criar o próprio documento e, nessa medida, é também um
discurso sobre o método adotado em cada caso. Cada proposta narrativa assumirá seus
compromissos – White também se dedica a determinar, num esforço classificatório, os
gêneros de narrativas históricas possíveis48. Dizer que há narração tampouco significa
subscrever suas estruturas clássicas. Em nossa narrativa, por exemplo, apesar de não
querermos, por agora, adiantar muito dela, não nos preocuparemos em apresentar uma
continuidade linear dotada de estruturas previsíveis. A peça será constantemente marcada por
declives e tensões, quebras de expectativas e aporias e, principalmente, descontextualizações
constantes. É o que significa, para nós, sermos mais gramáticos do que arquitetos: pois
importa aqui não desvendar uma estrutura doutrinária finalizada, mas sim fabricar um novo
texto, o que é o mesmo que criar uma nova língua.

Para finalizar este excurso em torno das possibilidades antirrealistas de leitura da


história, em particular a história das ideias, uma última palavra acerca dos procedimentos de
descontextualização tão caros ao trabalho que segue. A contextualização parece ser um
princípio hermenêutico inquestionável para o historiador da filosofia minimamente rigoroso:
é preciso situar os conceitos dos autores aos seus contextos de inscrição originários. Só assim
seria possível entender o que, para ele, significaria subscrever tal tese ou recusar tal
argumento. Seria possível contextualizar Descartes afirmando que o desprezo pela história

WHITE, H. 2019, P. 45.


47

Tal é o seu objetivo na Introdução de seu Meta-história, intitulada justamente “A poética da História” (ver
48

WHITE, H. 2019, P. 17-56).


38

era fundamentalmente um modo de se posicionar contra a filosofia acadêmica da época, tão


afeiçoada aos trabalhos de Aristóteles e à Escritura Sagrada. Assim, a atitude cartesiana seria
teoricamente enriquecida, revestida de substância histórica e, por fim, mais bem
compreendida conforme as intenções de seu autor. É possível se perguntar, junto a Jacques
Derrida, se a noção de “contexto” é tão rigorosa, tão evidente e tão necessária à filosofia
quanto parece à primeira vista. Coloquemos algumas perguntas de orientação crítica: é
possível efetivamente esgotar o contexto de inscrição de um discurso? É possível
determiná-lo de forma rigorosa? Quais são suas condições de possibilidade? Derrida propõe
que, para responder a tais questões, seja considerado o parentesco fundamental entre escrita e
ausência:

1) Um signo escrito, no sentido corrente da palavra, é, portanto, uma marca


que permanece, que não se esgota no presente da sua inscrição e que pode
dar lugar a uma iteração na ausência e para além da presença do sujeito
empiricamente determinado que, num contexto dado, emitiu ou produziu. É
por isso que, tradicionalmente pelo menos, se distingue a “comunicação
escrita” da “comunicação falada”.

2) Do mesmo modo, um signo escrito comporta uma força de ruptura com o


seu contexto, quer dizer, o conjunto das presenças que organizam o
momento da sua inscrição. Esta força de ruptura não é um predicado
acidental, mas a própria estrutura da escrita. Se se trata do contexto dito
“real”, o que acabo de afirmar é demasiado evidente. Fazem parte deste
pretenso contexto real um certo “presente” da inscrição, a presença do
escritor que a escreveu, todo o ambiente e o horizonte da sua experiência e
sobretudo a intenção, o querer-dizer, que animaria num dado momento a sua
inscrição. Pertence ao signo ser justamente legível mesmo se o momento de
sua produção está irremediavelmente perdido e mesmo se eu não souber o
que o seu pretenso autor-escritor quis dizer com consciência e com intenção
no momento em que escreveu, quer dizer, abandonou à sua deriva essencial.
Tratando-se agora do contexto semiótico e interno, a força de ruptura não é
menor: devido à sua iterabilidade essencial, pode-se sempre isolar um
sintagma escrito fora do encadeamento no qual é tomado ou dado, sem
fazer-lhe perder qualquer possibilidade de funcionamento, senão qualquer
possibilidade de “comunicação”, precisamente. Pode-se eventualmente
reconhecer-lhe outros inscrevendo-o ou enxertando-o em outras cadeias.
Nenhum contexto pode fechar-se sobre si. Nem nenhum código, sendo o
código aqui simultaneamente a possibilidade e a impossibilidade da escrita,
da sua iterabilidade essencial (repetição/alteridade). (DERRIDA, J. 1991, P.
354)

A pergunta pelas condições de possibilidade da determinação científica do contexto


pode nos encaminhar a uma conclusão interessante e mesmo oposta ao nosso desejo imediato
de contextualização: do ponto de vista da escrita, a descontextualização é, antes de um dado
externo, acrescentado a ela por meio de uma escolha metodológica, o requisito mesmo de sua
existência. A impossibilidade de esgotamento do contexto não é um acidente – nos dois
39

sentidos da expressão, como acontecimento contingente, meramente suplementar, e também


como uma desgraça da fortuna, como um evento desagradável –, mas uma propriedade
intrínseca e produtiva da escrita, aquilo que a abre para uma multiplicidade de escritas e
leituras infinitas. Para que, na escrita, uma determinada frase seja comunicada à posteridade –
e a discussão sobre linguagem e contexto não está, é certo, apartada do universo da história –
é preciso que ela se descontextualize, pois seu destinatário está sempre ausente. Não significa
que uma leitura da história da filosofia deva ter como tarefa uma anticontextualização
militante, o que poderia perigosamente recair numa postura clássica de desprezo pela história,
em prol, mais uma vez, de certa noção positivista da filosofia como ramo científico.
Descontextualizar, na filosofia, e ao menos no modo como o faremos adiante, acarretará tanto
usar as interpretações contextualizantes já consagradas – como, por exemplo, aquelas
dirigidas ao Tratado Teológico-Político, que o situam como um texto de intervenção na
situação política da Holanda do século XVII – quanto propor novas comunicações ainda
impensadas, previstas já no tecido da escrita, com textos não-contemporâneos a Spinoza,
fazendo-os convir ou se afastar não por seu pertencimento a uma mesma realidade tomada
como dada, mas através de novas relações articuladas na linguagem. O antirrealismo pode
tornar tão interessantes e tão equivalentes as propostas contextualizantes e
descontextualizantes – sem abandonar o rigor do método que se propôs –, tomando ambas
como estratégias de elaboração ficcionais igualmente legítimas no interior da narrativa.

Charles Ramond, ao definir a prática da desconstrução, evoca a imagem do corte de


um tecido — um signo já familiar ao pharmakón derridiano. Ao cortá-lo, destruímos o tecido
inicial mas, no mesmo ato, produzimos um novo. A desconstrução é sempre um ato
destrutivo imediatamente seguido de outro construtivo.49 O que gostaríamos de fazer com o
Tratado Teológico Político é justamente recortá-lo, romper suas estruturas regularizantes e
reescrevê-lo – o que, em última análise, todos aqueles que se dedicam à leitura e à escrita
também o fazem, de modo mais ou menos consciente e comprometido com estratégias
narrativas arriscadas.

49
RAMOND, C. Le vocabulaire de Derrida. Ligugé, Poitiers: Ellipses, 2004. P. 20.
40

Spinoza à distância

É possível identificar uma espécie de deriva teológica na filosofia contemporânea ao


menos desde o fim dos anos 1990. Certamente por influência do controverso Politische
Theologie, de Carl Schmitt, publicado em 1922, autores localizados à esquerda do espectro
político procuram, cada um à sua maneira, dar conta do que pode ser classificado como o
retorno do teológico-político hoje (o que implica, naturalmente, num questionamento da ideia
mesma de retorno). Em 1994, na ilha de Capri, reúnem-se Jacques Derrida, Gianni Vattimo,
Hans-Georg Gadamer e outros filósofos para discutir justamente o ressurgimento da religião
nas disputas políticas daquele momento histórico. Alguns anos depois, em 1997, Alain
Badiou publica um livro sobre São Paulo, no qual procura reabilitar a figura do apóstolo em
seus ensinamentos para um universalismo de nossos tempos. No curso de seu projeto de
investigação biopolítica intitulado Homo Sacer, Giorgio Agamben também situa-se no campo
da interlocução entre teologia e política, sobretudo em O Reino e a Glória, de 2007, quinto
volume publicado da série. Para não mencionar O tempo que resta, de 2000, obra que se
concentra numa análise detida da Carta aos Romanos, de Paulo, e na confecção do conceito
de inoperosidade e em suas implicações para uma definição da resistência política no
contemporâneo.

No Brasil, Marilena Chaui50 dedicou-se a pensar o retorno do teológico-político em


seu sentido amplo, particularmente no modo como, desde a metade dos anos 1980 até a
ascensão de Bolsonaro em 2018, o país observa um franco crescimento do protestantismo
evangélico seja nos meios de comunicação – estações radiofônicas, canais televisivos –, seja
na expansão material da quantidade de templos, os quais tomam espaços antes dedicados à
cultura e ao esporte.51 Com um olhar de hoje, sabemos que a política brasileira vive um de
seus momentos mais marcadamente teológicos.52 Na investigação crítica das causas destes

50
Chaui enfrenta diretamente o tema nos artigos: “Fundamentalismo religioso: a questão do poder
teológico-político”, de 2006 (disponível em:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolconbr/Chaui.pdf, última visualização 25/05/2021 às
15h19min), “O retorno do teológico-político”, de 1998 (Disponível em:
http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/o_retorno_do_teologico.pdf. Última visualização: 25/05/2021, às
15h20min) e “Theological-Political Power: Spinoza against Schmitt”. In : Crisis and Critique. Volume 8, Issue
1, (9-8-2021). Edited by Agon Hamza & Frank Ruda. P. 76-91.
51
Para uma interpretação sistemática do pensamento de Chaui acerca do teológico-político, ver o artigo de
BARROS, D.F. “Marilena Chaui, pensadora contemporânea do teológico-político”. In: Cadernos Espinosanos,
(37), 125-145, 2017. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2017.137716.
52
Chaui cita a unção do presidente Jair Messias Bolsonaro em 6 de janeiro de 2019 como um exemplo de gesto
inscrito na lógica da teologia política. Bolsonaro foi ungido pelo pastor evangélico Edir Macedo numa espécie
41

fenômenos, Spinoza desempenha, para Chaui, um papel essencial. Para ela, sua filosofia se
constitui como oposição direta às teses schmittianas. Enquanto Schmitt procura percorrer o
fundo necessariamente teológico de toda a política, Spinoza, num esforço crítico, aponta o
que há de político em toda a teologia. Analisando o potencial afetivo dos regimes teocráticos,
bem como a superstição que engendram, Spinoza evidencia como a teologia é
necessariamente danosa para a política, uma vez que cria disputas indesejáveis em nada
parecidas com os conflitos que orientam a realidade política democrática. A pretensão de
universalidade do discurso teológico, aliada a legitimidade política que confere para si
próprio, só pode redundar em perseguições e fragmentações do Estado: a teologia pode ser
uma máquina poderosa de sedições de caráter reacionário (aquelas que, de fora do Estado,
pretendem apropriar-se deste e questionar o poder soberano estabelecido pela multidão).
Ainda, é por tomar para si a experiência da contingência – o fato de os indivíduos estarem
perpetuamente submetidos à potência das causas exteriores, que é, segundo Chaui, a condição
mesma do contemporâneo – e guiá-la a partir do medo, que o poder transcendente da teologia
domina de modo eficaz as mentes dos cidadãos. Em seus termos:

A teologia, portanto, é um sistema de imagens com pretensão ao conceito com o


escopo de obter, por um lado, o reconhecimento da autoridade do teólogo (e não da
verdade intrínseca de sua interpretação) e, por outro, a submissão dos que o escutam,
tanto maior se for conseguida por consentimento interior. O teólogo visa à obtenção
do desejo de obedecer e de servir. Eis porque toda teologia é política. Inútil para a fé
— pois esta se reduz a conteúdos muito simples e a poucos preceitos de justiça e
caridade —, perigosa para a razão livre — que opera segundo uma necessidade
interna autônoma —, a teologia é danosa para a política porque impossibilita o
trabalho dos conflitos sociais em vista da paz, da segurança e da liberdade dos
cidadãos. (CHAUI, M. 1998, P. 24-25).

Entre filosofia e teologia, portanto, só pode haver uma relação de manifesta oposição.
Ao passo que a primeira visa a liberdade, a partir do cultivo do conhecimento adequado, a
segunda tem como fim a obediência pautada na revelação tal como descrita num texto
tomado como sagrado, o qual não detém caráter científico, pois nada pode ensinar sobre a
natureza (apenas sobre uma certa moral).53 Toda a base da teologia-política tradicional é uma
concepção personalista de divindade: Deus, um ente que se posiciona para além do mundo, é
o único fundamento legítimo do imperium, o qual se realiza mais perfeitamente como

de espetacularização da figura do soberano enviado por Deus (o nome “messias” e a data escolhida para o
acontecimento comprovam este propósito). Ver CHAUI, M. 2021, P. 77.
53
CHAUI, M. 2021, P. 81-86.
42

teocracia.54 A concepção de um Deus imanente na Parte I da Ética é, por oposição, uma teoria
ontológica com ressonâncias políticas próprias. Contra a teologia-política schmittiana,
Spinoza parece lançar uma ontologia-política da imanência que redundará, em última
instância, no absolutum imperium, ou seja, na radicalidade democrática.

Nesta mesma chave, Antonio Negri insistiu na total ausência de apoio exterior da
política spinozista, atribuindo a Spinoza uma concepção de tempo que o tornará radicalmente
democrático. Contra as mediações hegelianas que implicam no poder transcendental do
Estado, Spinoza tem a oferecer a plenitude da presença, uma espécie de tempo imediato sem
destinos ou teleologias: apenas afirmação pura da potência. Politicamente, esta atualidade
absoluta do tempo será capaz de construir uma coletividade – orientada pelo amor a Deus –
cuja legitimidade está apenas em si própria. Assim, enquanto o espírito moderno, encabeçado
sobretudo pelo hegelianismo e suas cópias insípidas, como o próprio Negri as classifica, não
tem ferramentas conceituais para justificar a democracia, o spinozismo conduz perfeitamente
da potência da multidão ao seu estabelecimento ulterior como potestas democrática. A
filosofia de Spinoza opõe ao individualismo e às mediações modernas a potência de
coletividade e a imediação democráticas. Sua atualidade reside justamente naquilo que possui
de marcadamente antimoderno:

O ciclo da definição de modernidade aberto por Hegel, isto é, o ciclo no qual a


redução da potência à forma transcendental absoluta alcança seu apogeu, e no qual,
consequentemente, a crise da relação é dominada pelo exorcismo da potência e pela
redução da mesma a irracionalidade e nada, esse ciclo chega então a seu termo. E é
aqui que o espinosismo conquista para si um lugar na filosofia contemporânea, não
mais simplesmente em termos de índice histórico de referência, mas como paradigma
operante. Isso acontece porque o espinosismo representa desde sempre um ponto fixo
na crítica do moderno: de fato, ele opõe à concepção do sujeito-indivíduo, da
mediação e do transcendental, a qual informa o conceito do moderno de Descartes a
Hegel e Heidegger, uma concepção do sujeito coletivo, do amor e do corpo como
potências da presença. O espinosismo é uma teoria do tempo arrancada do finalismo
e fundação de uma ontologia entendida como processo de constituição. (NEGRI, A.
2016, P. 120)

A interpretação negriana de Spinoza surge acompanhada, então, de uma localização


do último na história das ideias políticas. Há para ele, desde Descartes, a confecção de um
conceito de modernidade, a formação da ideologia burguesa sustentada pela referência ao
poder transcendente que se verificará no leviatã hobbesiano e na vontade geral de Rousseau,

54
CHAUI, M. 2021, P. 86-95.
43

terminando por se concretizar na “síntese do público e do soberano”55 formulada por Hegel.


Spinoza, passando ao largo desta tradição, confecciona uma outra proposta de modernidade.
Um materialismo que provavelmente se inaugura com Maquiavel, para quem as relações
políticas se estabelecem via conflito e estão sempre prontas a ser desestabilizadas por uma
resistência de base democrática. O poder absoluto não é mais um outro, cuja legitimidade
seria assegurada pela transcendência teológica, mas será fundado no aqui e agora, no comum.
A ideia segundo a qual as instituições são moldadas pelo conflito, pelas lutas políticas
particulares, terá em Marx seu desenvolvimento acabado: eis o sentido do comunismo.
Spinoza é, na história, figura anômala: aquele que pensou as questões políticas mais urgentes
de seu tempo com o olhar herético desde o princípio.

Há também aqueles que identificaram em Spinoza justamente um espírito


protomoderno. O fantasma do spinozismo teria sido não um contraponto, mas um passo
essencial da consolidação do conceito de modernidade. Segundo Jonathan Israel, o
iluminismo radical, do qual Spinoza foi um importante iniciador e inspirador, é um conjunto
de princípios que envolvem “democracia; igualdade racial e sexual; liberdade individual de
estilo de vida; total liberdade de pensamento, expressão e de imprensa; erradicação da
autoridade religiosa do processo legislativo e educacional; e total separação da Igreja e do
Estado”56. O diagnóstico de Israel se refere duplamente a algumas das ideias já dispostas nas
obras de Spinoza e ao modo como fora recebido pelas correntes clandestinas posteriores. Já
em vida, Spinoza cultivava uma fama de filósofo ateu ou, no mínimo, libertino – como se
pode depreender do fato de ter sofrido o cherem ainda muito jovem, com apenas 23 anos.
Henry Oldenburg, que depois viera a se tornar um de seus principais correspondentes sobre
assuntos teológicos, quando viajava em 1661 pela Holanda, decidiu visitar Spinoza em sua
casa. Àquela altura, Spinoza não havia ainda publicado qualquer texto e, ao contrário de
Oldenburg – já secretário da Royal Society de Londres – não gozava de qualquer prestígio
intelectual. Mesmo assim, Oldenburg vai visitá-lo e passa horas em sua companhia, o que,
segundo Israel57, sugere que outros, aconselhando-o, nutriam uma imagem de Spinoza como
um dos pensadores mais notáveis da época. A influência de Spinoza se dá, então, não apenas

55
NEGRI, A. 2016, P. 165.
56
Tradução minha de ISRAEL, J. 2010, P. VII-VIII.
57
ISRAEL, J. 2001, P. 161.
44

a partir das ideias que desenvolve em suas obras, mas também como uma espécie de ícone
público que encarnava ideias radicais e de caráter emancipatório.

Embora a Ética só tenha sido publicada postumamente, as linhas de força do sistema


de Spinoza já estavam organizadas no Breve Tratado, confeccionado entre 1660 e 1661. Lá, a
identificação entre Deus e a natureza, atribuindo a Deus tanto pensamento quanto extensão,
figurando-o como causa imanente, ao invés de transitiva, de todas as coisas, sua determinação
eterna e necessária dos eventos, a ausência, portanto, da liberdade da vontade concebida
como livre-arbítrio, tanto quanto a relatividade das noções morais de “bem” e “mal” ao modo
de entender puramente humano, por exemplo, já tinham sido estabelecidas. As consequências
teológicas destas ideias seriam a crítica ao Deus personalista, a ausência do livre-arbítrio
como fundamento das ações e consequentemente responsabilizações morais, a crítica do
milagre – para citar apenas algumas. Subscrevendo o diagnóstico de Pierre Bayle, Israel
acredita que o sistema de Spinoza deu corpo à ideias irreligiosas de tradições antigas,
modernas e até mesmo orientais – além, é claro, de ter lançado ideias próprias,
particularmente no que se refere à sua doutrina da substância e à sua influente interpretação
bíblica, o que poderia explicar em parte seu apelo.58 No curso da produção do ideal de
modernidade, Spinoza é, então, um predecessor importante de Rousseau e da própria
Revolução Francesa.

Pensar a questão do retorno do teológico-político hoje envolve, portanto, refletir sobre


uma modernidade que parece ter em Spinoza uma referência inescapável. Seja como
antimoderno ou como moderno por excelência, suas ideias dialogam insistentemente com o
modo como construímos historicamente nossa identidade política no Ocidente. Spinoza é um
espectro que ronda a modernidade. Retornar a um dos textos em que lida primariamente com
a questão da teologia nos fará, na mesma medida, repensar sobre seu lugar histórico e sobre
as especificidades de nossa crise política de hoje. Será preciso, além de uma metodologia
particular, um retorno às operações conceituais que fundamentam a concepção de
teologia-política para além do spinozismo, de modo a retornar a ele de olhos mais atentos.
Para nós que temos nos empenhado em ir ao encalço de alguns fantasmas, é tempo de
acrescentar mais alguns ao bando.

58
ISRAEL, J. 2001, P. 230.
45

Topologia da exterioridade

“Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos


secularizados”59: eis a sentença com a qual é inaugurado o terceiro capítulo do primeiro
volume de Teologia política (1922), do jurista alemão Carl Schmitt. A hipótese da íntima
correlação entre teologia e política deve ser entendida em dois níveis: um primeiro, mais
superficial, diz respeito aos processos de transferência histórica de um domínio para o outro;
um segundo, mais profundo, trata da “estrutura sistemática”60 comum entre os campos. No
primeiro caso, pensa-se sobretudo em secularização61; no segundo, em analogia.

Exemplos paradigmáticos dos processos de secularização são o Deus onipotente que


se transforma no legislador onipotente e o milagre, comparável à ideia de exceção em
jurisprudência. Schmitt, no entanto, pretende ir além da simples identificação de
deslocamentos culturais em direção ao que denomina consideração sociológica ou analógica
destes conceitos. Tal sociologia não recorre a uma explicação que toma uma mudança de
pensamento como epifenômeno de variações políticas e sociais (caso dos autores
contrarrevolucionários), tampouco de uma radicalização desta explicação que insista, desta
vez, nas relações econômicas e de classe (marxismo), uma vez que ambos estão
comprometidos com relações causais que buscam comunicar, cada uma à sua maneira, as
realidades material e espiritual. A sociologia que persegue Schmitt pretende, primeiro,
manter-se no nível espiritual; e, segundo, apontar em que medida diferenças na compreensão
metafísica de uma época tornam determinadas concepções políticas aceitáveis, apropriadas
ou auto-evidentes. Tal sociologia pretende trazer à luz algo como a metafísica ou a teologia –
os termos, nesta altura do texto, são intercambiáveis62 – de um grupo. Enquanto, no XVII e

59
SCHMITT, C. 2006, P. 35. Tomo como base, aqui, a tradução de Elisete Antoniuk publicada pela Editora Del
Rey. Noto, de passagem, a escolha do termo “concisos” para traduzir “prägnanten”, o termo originalmente
empregado por Schmitt (SCHMITT, C. 2015b, P. 43). Segundo o Dicionário de Alemão Wahrig, o adjetivo
“prägnant” pode ser vertido por “significativo; conciso; preciso” (WAHRIG-BURFEIND, R. 2011, P. 809). A
tradução inglesa opta pelo adjetivo “significant” (SCHMITT, C. 2005, P. 36), discordando da opção de
Antoniuk.
60
Ibid.
61
Para um tratamento mais detido da questão da secularização, que procura dar conta de seu desenvolvimento
histórico e filosófico, ver o livro de Jean-Claude Monod, La querelle de la sécularisation. De Hegel à
Blumenberg. Paris: Vrin, 2002.
62
“Pressuposto, portanto, dessa forma de sociologia de conceitos jurídicos é a conceptualidade radical, ou seja,
uma consequência levada até o âmbito metafísico e teológico. A imagem metafísica que uma certa época faz do
mundo tem a mesma estrutura do que lhe parece, simplesmente, como forma de sua organização política.”
SCHMITT, C. 2006, P. 43.
46

no XVIII, o conceito de um Deus transcendente ao mundo guiava a ideia de um soberano


transcendente ao Estado – daí a proposição cartesiana segundo a qual Deus estabelece leis na
natureza da mesma forma que um rei em seu reino63 –, a partir do XIX, ao contrário, as
distinções políticas são governadas pelo pano-de-fundo metafísico da imanência. A
democracia é um produto direto de uma metafísica imanentista, que centra a soberania e a
legitimidade no pouvoir constituant do povo, um elemento que é compreendido no interior da
ordem. Num momento premonitório de seu texto, Schmitt profetiza que concepções políticas
baseadas numa metafísica da transcendência terão cada vez menos crédito, pois os indivíduos
tenderão a preferir ora uma intensificação de noções políticas derivadas do terreno
imanentista-panteísta ora uma indiferença positiva em relação a qualquer metafísica que se
apresente.64

O texto de Schmitt, porém, é marcado por uma oscilação incômoda, quase que por um
mistério. De um lado, o que fica claro em especial a partir do primeiro parágrafo do capítulo,
seu interesse parece recair sobre uma relação comparativa ou analógica, quer dizer, sobre
uma correlação em nível primário. Os conceitos políticos teriam uma origem em comum com
os conceitos teológicos: mas, em algum momento da história, teriam simplesmente se
desligado da teologia e se secularizado. Schmitt apenas forneceria, assim, uma espécie de
diagnóstico histórico ou cultural sobre os processos de construção de determinados conceitos
clássicos do domínio político. Já a descrição que faz de sua sociologia dos conceitos políticos
parece transcender o exercício meramente analógico em direção a uma verdadeira relação de
imbricação e dependência estrutural. En passant, Schmitt define o deísmo como um
movimento dotado de uma “teologia e metafísica”65 cuja característica central é a expulsão do
milagre do mundo; metafísica esta que teria como consequência a ideia de Estado
constitucional moderno. Neste exemplo, teologia e política se apresentam como
ordenamentos que se confundem, posto que conceitualmente nutridos um pelo outro (para
não mencionar o fato de Schmitt atribuir uma teologia inclusive ao deísmo, uma escola de
pensamento particularmente crítica da teologia tradicional). A pergunta que surge, neste
momento, é a seguinte: por fim, a questão da teologia-política schmittiana determina uma

63
Cf. carta a Mersenne de 15 de abril de 1630 (AT I, 145).
64
SCHMITT, C. 2006, P. 46.
65
SCHMITT, C. 2006, P. 35.
47

simples aproximação entre os dois campos ou, mais do que isso, pretende mostrar que toda
política é consequência de um solo metafísico de fundo que a sustenta?66

Quando nos confrontamos com O conceito do político – texto de Schmitt


originalmente publicado em 1927, lançado em livro em 1932 e reeditado em 1963 –,
particularmente com a crítica ao liberalismo ali desenvolvida, esta interrogação assume novos
contornos. Schmitt pretende, naquele contexto, fornecer uma essência para o político que não
o reduza a outros domínios como o estatal, o cultural, o social, o estético ou o econômico. Tal
como na estética importa definir o belo e o feio, na moral o bem e o mal e, na economia, o
útil e o nocivo, a polêmica estruturante da política é a oposição amigo e inimigo. Desta
forma, o domínio adquire autonomia, uma vez que é perfeitamente possível designar um
indivíduo ou um Estado como meu amigo sem que para tanto ele seja classificado como bom,
belo ou útil. O inimigo político não é, tampouco, necessariamente feio, mau e, mais ainda,
não precisa ser um concorrente – talvez seja possível fazer negócios com ele, diz Schmitt.67
Faz parte de seu diagnóstico, no entanto, apontar que, àquela altura, vive-se um momento em
que o Estado passa a ser total, e a consequência disso é a interposição dos demais campos no
político, de tal forma que o que anteriormente, na época do Estado absoluto do século XVIII,
pensava-se como simplesmente social (o cultural, o religioso, até mesmo o econômico) e
apartado do Estado e do domínio político passa a adquirir conteúdo político robusto.68

A oposição amigo-inimigo visa chamar a atenção para a necessidade de circunscrição,


de tomada de posição. O que ela evidencia é que uma posição política necessariamente deriva
de uma realidade concreta e de um conteúdo polêmico.69 Não há política sem conteúdo – daí
porque uma guerra travada em nome da humanidade não seja nada além de uma guerra
levada a cabo por um grupo específico que, com objetivos políticos interessados, lança-se

66
Alexandre Franco de Sá parece também ter compreendido esta ambiguidade. Para ele, a tese da teologia
política tal como enunciada no texto de 1922 é mais modesta e diz respeito, antes, à origem da modernidade do
que ao estabelecimento de uma dependência íntima entre os dois âmbitos. Schmitt estaria preocupado em propor
uma articulação entre os conceitos políticos fundantes da modernidade e uma origem teológica determinada. Ela
é, tomando o texto mais literalmente, uma tese particular e metodológica a respeito do Estado moderno. O que
não quer dizer que já não escondesse, em seus termos, “um conteúdo político implícito” (que parece ser o
mesmo que tentamos apontar ao tratar da dita sociologia dos conceitos). Ver o ensaio “Um olhar
teológico-político sobre o liberalismo político contemporâneo”, In: Metamorfose do poder. Prolegômenos
schmittianos a toda sociedade futura. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012.
67
SCHMITT, C. 2015a, P. 51.
68
Ibid, P. 54, 58-59.
69
Ibid, P. 59-61.
48

falsamente como neutro.70 Não há neutralidade em se tratando de política. Toda tentativa de


despolitização é, antes, uma politização que não se reconhece como tal. É particularmente
elucidativa desta tese a análise schmittiana do fundo antropológico das teorias políticas.
Segundo Schmitt, todas as teorias derivam ou bem de uma antropologia pessimista – que
considera o homem como mau por natureza – ou bem de uma otimista – que o considera
como bom.71 Para além de todas as classificações éticas, uma antropologia pessimista tem
como nota característica tomar o homem como um ser problemático e conflituoso, o qual
deve ser constrangido pelo Estado. É nesta intuição fundamental que se baseiam as teorias
autoritárias, em especial a hobbesiana. Em contrapartida, na antropologia otimista o cenário é
de orientação anarquista ou liberal. Anarquista, uma vez que o Estado insurge como uma
intromissão à manifestação da bondade inata do homem; liberal, quando, numa formulação
mais branda, deve ser um produto de sua bondade, um instrumento para a expressão de sua
racionalidade. A resistência ao Estado cresce na mesma medida em que a crença irrestrita na
bondade humana; e identifica-se, enfim, um princípio antropológico comum entre
anarquismo e liberalismo.

Se lembramos, porém, de sua definição da essência do político como a polêmica


amigo-inimigo, é fácil entrever que anarquismo e sobretudo liberalismo não são classificados
como teorias políticas sem maiores complicações72. Ao mesmo tempo em que há uma
concepção de natureza humana condicionando os operadores políticos dos dois espectros, na
medida em que procuram, por definição, recusar a ideia de conflito e polêmica, Schmitt não
aceita que sejam posições políticas em sentido autêntico, já que não podem traduzir-se em
uma teoria estatal sólida (é certo que isto vale mais para o liberalismo do que para o
anarquismo, que recusa uma teoria de estatal por princípio). Em seus termos, o liberalismo
não encontrou “uma teoria do Estado positiva e uma reforma do Estado própria, mas
procurou apenas vincular o político a partir do ético e submetê-lo ao econômico”73. É
estabelecida, assim, mais uma das ambiguidades do texto de Schmitt, uma oscilação entre
considerar, de um lado, o liberalismo ora como uma posição política – pois deriva de uma

70
Ibid, P. 68-69.
71
Schmitt avança esta análise ao longo do parágrafo 7 do texto em questão. Cf. SCHMITT, C. 2015a, P.
105-121.
72
Para uma análise mais demorada da crítica schmittiana ao liberalismo, ver o livro de Bernardo Ferreira: O
Risco do Político. Crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004.
73
SCHMITT, C. 2015a, P. 109.
49

antropologia e, por meio das neutralizações e despolitizações, se dirige polemicamente contra


o Estado –, ora como uma espécie de amálgama sem conteúdo político verdadeiro – posto
que, ao procurar meios para obstruir o Estado, não pode sequer ser designado como um
“princípio de construção político verdadeiro”74. Uma passagem importante da seção 8 do
texto deixa esta ambiguidade particularmente evidente:

Contudo, a questão é se a partir do conceito puro e consequente do liberalismo


individualista pode ser adquirida uma ideia especificamente política. Isto não pode
deixar de ser negado. Pois a negação do político que está contida em cada
individualismo consequente conduz a uma prática política de desconfiança contra
todas as potências políticas e formas de Estado que se possam pensar, mas nunca a
uma teoria positiva própria do Estado e da política. Há, em consequência disso, uma
política liberal enquanto contraposição polêmica contra as circunscrições estatais,
eclesiásticas ou outras da liberdade individual, enquanto política relativa ao
comércio, à Igreja, à escola, à cultura, não há, porém, uma política liberal pura e
simples, mas sempre apenas uma crítica liberal da política. (SCHMITT, C. 2015a, P.
123).

Esta ideia de uma política inautêntica que parece governar a crítica schmittiana ao
liberalismo nos permite recolocar, em outros termos, a questão que já vínhamos perseguindo
desde nossa reconstrução da ambiguidade específica do Teologia Política, isto é, a questão da
dependência de um conteúdo político a um elemento teológico que lhe é anterior. Ao postular
que toda teoria política depende de uma antropologia qualquer, Schmitt parece encontrar-se
com a versão forte da questão da teologia-política, com aquela interpretação possível da
expressão “estrutura sistemática”: toda teoria política depende de uma antropologia assim
como os operadores políticos são necessariamente subordinados a um solo teológico amplo.
Ao mesmo tempo, insiste que o liberalismo não pode ser classificado enquanto uma teoria
estatal robusta; e chega mesmo a opor liberalismo e política: onde há liberalismo, uma vez
que não há conflito, ou seja, não há distinção amigo-inimigo, não há política75. O liberalismo
é, então, uma teoria política que se caracteriza pela negação política da política ou, ao
contrário, um conteúdo simplesmente disperso, que, ao introduzir elementos éticos e
econômicos (“o pathos ético e o cálculo econômico”76), resulta simplesmente numa reação
crítica ao Estado, mas que não pode, estritamente falando, ser denominada política? A

74
Ibid.
75
“Em particular, ligaram-se [os liberais] às forças da democracia, que são inteiramente iliberais porque são
essencialmente políticas e até conduzem ao Estado total”. Ver SCHMITT, C. 2015a, P. 122.
76
Cf. SCHMITT, C. 2015a, P.128.
50

interrogação se encontra com nossa pergunta anterior na medida em que está colocando em
xeque, mais uma vez, a conexão entre política e um conteúdo que lhe transcende.

Para concluir esta investigação, será interessante visitar a crítica schmittiana ao


normativismo, positivismo ou legalismo jurídico, isto é, à tese segundo a qual as normas
jurídicas são válidas abstratamente por si mesmas. Esta crítica surge fundamentalmente no
primeiro capítulo de O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum
(1950). Naquela altura, Schmitt procura erguer uma oposição geral entre a regularidade da
terra e a irregularidade do mar, imobilismo e movimento, determinação e liberdade.
Historicamente, numa primeira aproximação, pode-se dizer que a terra é capaz de conectar-se
ao direito por uma tripla raiz: a medida interna do trabalho, a possibilidade de demarcação
que organizará este trabalho e, por último, as circunscrições do solo que possibilitam as
organizações humanas (família, clã, tribo e estamento).77 Retira-se disso uma conexão
originária entre terra e possibilidade de direito e, mais fundamentalmente ainda, entre terra,
ordenação (Ordnung) e localização (Ortung). A impossibilidade de demarcação do mar, sua
existência enquanto entidade fluida, não permite que sobre ele seja despejado um conteúdo de
direito – muito embora, sobretudo a partir do século XVI, num longo processo de tomada do
mar inaugurado pela Inglaterra, a partir do qual se observou o aparecimento de verdadeiras
talassocracias, pode-se dizer que uma ordem e, consequentemente, uma lei, foram criadas
para o mar.78 Esta lei, no entanto, deve ser pensada muito mais como subproduto de uma
conexão entre a terra e o mar do que propriamente do mar como entidade autônoma.79 Faz
parte do diagnóstico de Schmitt a ideia de que vive-se um tempo – lembremos que o texto foi
redigido na década de cinquenta – em que uma terceira ordem espacial se impõe: o domínio
aéreo, o qual implicará, como nos outros casos, uma mutação consequente do direito e do
poder, uma nova “ordem global” (globaler Ordnung), para empregar sua expressão. Direito,
portanto, tem a ver, para Schmitt, com espacialidade e com circunscrição, com criação de
fronteiras fixas.

A tomada de terra é, neste sentido, o ato originário do direito.80 Não há direito


posterior, não há conteúdo jurídico, não há ordem constituída, sem este ato fundante. Este ato

77
SCHMITT, C. 2014, P. 37.
78
Ibid, P. 40, 46.
79
Ibid.
80
Ibid, P. 41.
51

funda a ordem jurídica duplamente: para o interior e para o exterior.81 Para o interior, na
medida em que é a partir dele que as leis podem ser estatuídas, justificando o funcionamento
de certa comunidade ali estabelecida; para o exterior, uma vez que são criadas fronteiras entre
grupos que tomaram porções de terra específicas (as relações de amizade e inimizade, isto é,
as relações políticas, podem ser estabelecidas, então, entre grupos que possuem ordens
jurídicas particulares alimentadas por este apoderamento territorial inicial). Uma ressalva
importante: este acontecimento originário do direito não deve ser pensado em termos
metafóricos, analógicos ou ficcionais. Neste aspecto, Schmitt parece estar abolindo a
distinção entre teoria e prática: a tomada de terra é um instrumento conceitual que tem
validade lógica, é certo, mas também histórica. Muito embora, do ponto de vista histórico,
tais apropriações tenham ocorrido na confusão das circunstâncias, de tal modo que muito
dificilmente, para fins heurísticos, podem ser apartados de uma teia de demais eventos que,
em conjunto, explicam a fundação da ordem jurídica82, não se pode retirar este caráter
concreto do conceito. É importante que a tomada de terra seja pensada como evento
existencial – prático, histórico, concreto –, e será justamente esta característica que o
distinguirá do modo como o normativismo jurídico explica (ou melhor: não explica ou
mesmo esquece) a fundação do direito, quer dizer, apelando para o valor da norma por si
mesma, confundindo ser e dever-ser. Assim, quando Schmitt afirma que a tomada de terra é o
“enraizar no reino de sentido da história”83 e quando declara que deste evento originário
“nutre-se todo direito subsequente e tudo aquilo que depois ainda vier a ser promulgado e
decretado como estatuições”84, não está produzindo metáforas territoriais, não está criando
uma ficção conceitual jurídica útil para seu raciocínio: está, antes apontando para o caráter
histórico-concreto-existencial (e lógico, certamente) deste evento. Nada muito diferente do
expediente que encontramos em O Conceito do Político, particularmente quanto à
necessidade de reenviar as distinções políticas para seu âmbito concreto e existencial, contra,
naquela altura, o liberalismo, que se baseia justamente numa definição abstrata de

81
Ibid, P. 41-43.
82
“Aqui, porém, é preciso levar em conta uma dupla consideração: primeiro, devemos reconhecer a tomada de
terra como um fato da história do direito, como um grande acontecimento histórico, não como mera construção
do pensamento, ainda que na realidade histórica essas tomadas de terra tenham acontecido como eventos
tumultuosos e o direito à terra tenha se originado algumas vezes de migrações torrenciais de povos e de
campanhas de conquista, outras vezes da defesa bem-sucedida de um país em face do estrangeiro.” Cf.
SCHMITT, C. 2014. P. 43.
83
Grifo meu. SCHMITT, C. 2014, P. 45.
84
Nesta passagem, o grifo é do próprio Schmitt. Ibid.
52

humanidade. Talvez possamos afirmar que, em Schmitt, a ordem concreta é uma espécie de
fio condutor, exercendo a função de um solo inescapável, para o qual os conceitos devem a
todo tempo ser remetidos.85

Um novo conceito de nomos – que é, antes, uma recuperação de seu sentido originário
–, que seja capaz de evidenciar esta conexão íntima entre ordenação e localização, entre o
evento de tomada de terra e as formulações jurídicas posteriores, tem de ser apresentado.
Numa formulação breve, o nomos é “a medida que parte o chão e o solo da Terra e os localiza
em uma ordenação determinada; é também a forma, assim adquirida, da ordem política,
social e religiosa”86. Espacialidade e concretude histórica são os conceitos compreendidos
nesta formulação do nomos. Tal ideia de nomos deve ser capaz de combater certo
posicionamento encontrado, segundo Schmitt, em muitos juristas do direito positivo, que
consiste em classificar como não-jurídica qualquer reflexão a respeito da origem. Uma
investigação sobre a realidade concreta já existente – sobre a ordem ordenada (ordo
ordinatus) ou sobre o poder constituído (pouvoir constitué) – não deve ser confundida com
um exame sobre o que condiciona esta realidade, ou seja, sobre a ordem ordenante (ordo
ordinans) ou sobre o poder constituinte (pouvoir constituant). Os juristas do direito positivo,
então, ao se concentrarem apenas na questão da legalidade já constituída, costumam remeter
a questão da origem à constituição ou à simples vontade do Estado, o qual funciona como
origem positiva de si mesmo. Repensar o conceito de nomos é, antes de mais nada, uma
forma de resistir ao esquecimento da questão da origem.

A mesma reprimenda inaugura a reflexão do filósofo italiano Giorgio Agamben


acerca do estado de exceção: falta uma teoria completa do estado de exceção sobretudo
porque a ele é negado, pelos juristas e especialistas em direito público, o status de conceito
jurídico, sendo tomado, antes, como mera quaestio facti.87 O operador “estado de exceção”
revela, de forma incômoda, um vínculo indesejado por muitos entre jurídico e político, direito
e vivente. Trata-se de uma noção que só pode ser pensada à luz de uma realidade jurídica já
dada e que tem paradoxalmente o poder de suspendê-la. Eis por que, segundo Agamben, o

85
Mais uma vez, remeto a um ensaio de Alexandre Franco de Sá a respeito da ordem concreta em Schmitt:
“Decisão, crença e o sentido da ordem concreta” In: Poder, Direito e Ordem. Ensaios sobre Carl Schmitt.
Capítulo II: “Entre o povo e o político: Schmitt e a ordem concreta”. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012. P.
113-129.
86
SCHMITT, C. 2014, P. 69.
87
AGAMBEN, G. 2004, P. 11-12
53

estado de exceção está, ao mesmo tempo, dentro e fora da ordem, sendo “a forma legal
daquilo que não pode ser legal”88. O estado de exceção se comunica com a ordem através de
uma estranha relação de suspensão da mesma. Tanto Schmitt quanto Agamben estão
apontando, um por meio da crítica ao normativismo jurídico, outro através de uma reflexão
da topologia do estado de exceção, para o modo como uma espécie de resto existencial,
concreto ou vivente está a todo tempo contaminando a ordem jurídica, e que é preciso
enfrentá-lo caso se queira avançar uma definição satisfatória do que configura o político e o
jurídico como um todo.

Talvez possamos generalizar ainda mais esta disputa que parece orientar as passagens
dos três textos de Schmitt que discutimos até então e também a brevíssima intuição de
Agamben, de origem schmittiana. Quando se trata de pensar a conexão entre teologia e
política, quando se critica o liberalismo por não partir de uma antropologia conflituosa,
incapaz de gerar uma teoria do estado consequente, quando o normativismo jurídico é
recusado por se esquecer dos elementos existenciais que fundam o direito e, por último,
quando o estado de exceção é tomado como uma questão de fato mais do que a uma pergunta
que goza de legitimidade jurídica, coloca-se sempre em xeque a relação ampla entre uma
ordem e um elemento que lhe escapa. A interrogação geral que orienta todos estes textos
parece ser: o que funda uma ordem qualquer, seja ela política, jurídica, social, religiosa ou
econômica? O que lhe dá direito de existência? Qual a conexão a ser pensada entre
interioridade (a ordem) e exterioridade (o fundamento)?

Trata-se de uma pergunta que carrega não apenas uma faceta política, mas se verifica
em alguns momentos da história da filosofia ocidental. Quando se reflete sobre o que causa o
mundo não está se perguntando, afinal, sobre o elemento que o torna possível, que lhe
confere regularidade, que o legitima? Buscando, de maneira a posteriori, pelas causas dos
fenômenos observados no presente, numa espécie de regressão ao infinito, chega-se
necessariamente a um momento em que, para recuperar a expressão de Wittgenstein, a pá
entorta89. Percorrendo de justificativa em justificativa, atinge-se o momento de se deter sobre

88
AGAMBEN, G. 2004. P. 12.
89
“ ‘Como posso seguir uma regra?’ — Se isto não é uma pergunta pelas causas, é então uma pergunta pela
justificação para o fato de que eu ajo segundo a regra assim. Se esgotei as justificações, então atingi a rocha dura
e minha pá entortou. Estou então inclinado a dizer: ‘é assim que ajo’.”. Cf. WITTGENSTEIN, L. Investigações
filosóficas, §217. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975. P. 95.
54

um princípio injustificável: sem ele é impossível criar. Não é possível demonstrar o tudo,
pois, segundo Aristóteles na Metafísica: “nesse caso ir-se-ia ao infinito e, consequentemente,
não haveria nenhuma demonstração”90. O fundamento parece ser inabordável e impossível de
ser criticado: faz parte de sua definição mesma que ele seja dogmaticamente posto. Eis a
démarche dos argumentos cosmológicos de São Tomás de Aquino, que reenviam a origem do
mundo a um primeiro motor incausado, e também das disputas argumentativas em torno das
provas da existência de Deus – que, sabemos, entretiveram a filosofia durante alguns séculos.

É certo que Schmitt está comprometido não só com o que denominaremos, a partir de
agora, a questão da exterioridade, como também com uma resposta específica para ela. Para
Schmitt, é necessário postular um fundamento exterior à ordem que a alimente. É preciso
separar a questão da exterioridade, que reconhece como problemático o direito de existência
da ordem, de uma solução determinada para ela. Nossa estratégia, ao tomá-lo como guia,
subscreve sua proposta até certo ponto: gostaríamos não exatamente de aceitar sua solução,
mas caminhar com ele até o ponto em que encontramos, nos seus textos, esta questão sendo a
todo tempo recolocada nas mais variadas versões. Podemos nos beneficiar, também, de um
segundo autor – que se interessou, até onde posso ver, pelo mesmo problema que Schmitt,
avançando para ele, porém, uma resposta distinta.

Em outubro de 1989, por ocasião da abertura de um colóquio realizado na Cardozo


Law School, Jacques Derrida se concentrará na questão do direito, que se traduzirá, naquela
altura, numa discussão acerca da possibilidade da justiça no interior das investigações
desconstrucionistas. Sua conferência fora pronunciada em inglês, o que, longe de ser fator
supérfluo, condiciona algumas de suas análises ao longo da apresentação, sobretudo uma
reflexão a respeito de algumas expressões singulares do idioma. A primeira delas, to enforce
law, mostra-se de início relevante, pois encerra em si uma associação entre força e lei, quer
dizer, a ideia de que a justiça derivada da lei é uma espécie de força de caráter autorizado. A
tradução francesa de to enforce law por appliquer la loi e a portuguesa por algo que circularia
entre os termos “cumprir”, “impor” ou mesmo “aplicar a lei”, não parecem dar conta deste
nexo originário. Há uma força atuante tanto na fundação da lei quanto em sua aplicação, e seu

90
ARISTÓTELES. 2015, P. 145.
55

emprego é a condição mesma para pôr a justiça em marcha. Toda a interrogação subsequente,
já poderíamos supor, consistirá em poder distinguir a força autorizada, da qual a lei não pode
prescindir, da força desnecessária, ou, antes, da força injusta. O que distingue força legítima e
ilegítima, violência implicada na fundação da lei e violência supérflua?

Ainda quanto à análise das expressões típicas de cada idioma, Derrida enfatiza o
termo alemão Gewalt – palavra que participa do título de um ensaio importante de Walter
Benjamin, com o qual se ocupará na segunda parte da conferência. “Zur Kritik der Gewalt”
(1921) é, reclama Derrida, insuficientemente traduzido por “Critique de la violence”, em
francês, e “Critique of Violence”, em inglês. A razão disso é que o termo alemão Gewalt
significa não apenas violência, mas também “poder legítimo, autoridade, força pública”91.
Diz-se, em alemão, para poder legislativo, Gesetzgebende Gewalt; para poder espiritual da
igreja, geistliche Gewalt; e, enfim, para poder do Estado, Staatsgewalt. Destaca-se, em todos
estes casos, um vínculo óbvio entre instituição, autoridade ou poder constituído e uma
violência em seu interior, uma espécie de violência constituinte. Uma tradução recente para o
português, atenta a esta ambiguidade, preferiu verter o título do texto benjaminiano por
“Sobre a crítica do poder como violência”92.

Seja como for, observa-se que, assim como no caso da expressão to enforce law, está
implicada em Gewalt uma relação entre justiça e força. Há, portanto, uma violência que
instaurou o poder autorizado; e deve-se considerar que o momento de fundação do poder
instituído não admite classificações como justiça ou injustiça, legalidade ou ilegalidade, uma
vez que se trata da própria condição de possibilidade de toda justiça e de toda legalidade
posterior. “Trata-se de julgar aquilo que permite julgar, aquilo que se autoriza o julgamento”93
: pensar esta questão no interior do debate desconstrucionista significa, então, atentar para a
viabilidade da norma e de qualquer critério em geral lá onde ela ainda não foi fabricada.
Perguntar-se se a desconstrução permite a justiça é uma questão ainda mais geral acerca da
possibilidade de um discurso que, num primeiro momento, tendemos a classificar como um
discurso de síntese – a justiça, pensada ao lado da força e da violência originária como aquilo

91
DERRIDA, J. 2018a. P. 9.
92
Cf. BENJAMIN, W. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2016. P.57-82.
93
Cf. DERRIDA, J. 2018a, P. 5.
56

que justamente vem impor um critério –, no interior de uma prática que retira seu sentido
justamente do aniquilamento das unidades e das homogeneizações rígidas.

Surpreendentemente ou não, a desconstrução surgirá não apenas como uma zona na


qual a justiça pode ser pensada, mas, mais forte do que isso, lá onde a justiça, se algo assim
existisse, tem seu espaço próprio. Uma armadilha se impõe: propor que a desconstrução seja
o terreno próprio da justiça. Faz parte do exercício desconstrutivo a dissolução inclusive do
lugar a partir de onde se fala: levado às últimas consequências, ele implica um
questionamento sobre as margens, sobre a ideia de que há campos “próprios” reservados para
cada discurso, e, enfim, sobre a noção de filosofia como um campo de saber autônomo.94 Não
se pode esquecer em que medida a necessidade de impor um próprio se conecta com a noção
de soberania.95 Pensada, no entanto, enquanto prática, performance ou exercício, ao invés de
como um método, a desconstrução, na medida em que se propõe a desestabilizar, a complicar
e a evidenciar os paradoxos das concepções que dizem respeito ao próprio (o sujeito, a
responsabilidade, a intencionalidade, mas também a moral e as determinações jurídicas)
avança justamente uma crítica do fundamento, da possibilidade do direito e da justiça.

Desconstrução e justiça, portanto, longe de serem operadores inconciliáveis,


estabelecem uma relação particularmente íntima, se esta relação for pensada, é certo, sob o
signo da obliquidade. Não é, então, em superfície que esta relação se dá, razão pela qual, para
a pergunta sobre se a desconstrução permite a justiça não se pode retrucar com um simples
“sim” ou “não” – soluções que, uma vez mais, são armadilhas da síntese, cujos dispositivos
parecem, a todo tempo, assombrar a investigação crítica. Não é de modo direto que a
desconstrução põe o problema da justiça: é seu próprio operar que está interessado em “fazer
justiça”, por meio das complicações e desestabilizações, de tal forma que talvez esteja nela a
única maneira de tematizar a justiça sem ser simultaneamente injusto. Os discursos justos em
primeira instância, que afirmam “eis um comportamento justo”, por exemplo, não estão
comprometidos com um parâmetro dentre outros, parâmetro este estabelecido a partir de uma
violência ou força originárias, que se arrogam, a partir daí, o direito de julgar sobre isto e
aquilo? Não é a fundação de um parâmetro a fonte de toda injustiça? Não é o poder

94
Cf. DERRIDA, J. Marges de la philosophie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972.
95
Para a associação entre o próprio e a ideia de soberania, consultar o seminário A besta e o soberano,
particularmente seu primeiro volume. Cf. DERRIDA, J. A besta e o soberano (Seminário). Vol I (2001-2002).
Rio de Janeiro: Via Verita, 2016.
57

constituído, sob certo aspecto, sempre e necessariamente injusto? É neste sentido que, ao se
recusar a fundar algo, ao se situar sempre no campo da pergunta pelo que condiciona a
ordem, sem avançar para ela um critério, que, talvez, a desconstrução surja como a única
maneira de ser justo. E, aqui, já podemos entrever em que sentido a solução derridiana opta
pelo caminho oposto da schmittiana: confrontados com o problema do fundamento,
guardadas as peculiaridades dos debates com os quais se envolveram, enquanto um pretende
sublinhar a impossibilidade de prescindir de um fundamento exterior à ordem, outro parece
justamente implicado num exercício de questionamento incessante desta ordem e de seu
fundamento.

Um segundo grande movimento da conferência de Derrida convoca duas referências


para insistir no problema da conexão entre desconstrução e justiça: Pascal e Montaigne. O
fragmento que importa de Pascal é aquele que persegue o vínculo já estabelecido entre justiça
e força: “Justiça, força. – É justo que aquilo que é justo seja seguido, é necessário que aquilo
que é mais forte seja seguido”96. Uma leitura mais convencionalista deste trecho, segundo
Derrida, procuraria sublinhar que Pascal duvida que as leis sejam justas nelas mesmas – elas
retiraram sua justiça, antes, simplesmente do fato de serem leis, sendo dependentes de uma
autoridade externa para sua validação. O seguinte trecho de Montaigne poderia ser submetido
a mesma interpretação:

Ora, as leis se mantêm em crédito, não porque elas são justas, mas porque
são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não têm outro [...].
Quem a elas obedece porque são justas não lhes obedece justamente pelo
que deve. (Grifo meu. Apud DERRIDA, J. 2018a, P. 21).

Segundo a leitura convencionalista, haveria algo como uma ideologia jurídica oculta,
que instalaria a justiça de acordo com seus interesses, empregando a força como um
instrumento de sua imposição. A justiça como o direito do mais forte, entendida no sentido de
uma tirania, cuja identificação permitiria uma crítica aos “aparelhos ideológicos de Estado”97.
Está subentendida, então, uma relação entre força e justiça que as considera como operadores
separados; na qual a força é um meio para um fim. A força é um elemento externo à justiça,

96
Apud. DERRIDA, J. 2018a, P. 18.
97
Derrida não faz esta associação, mas ela nos parece útil para compreender o que pretende designar como
interpretação convencionalista. A referência é ao texto de Althusser “Idéologie et appareils idéologiques d’État.
(Notes pour une recherche)”. Artigo originalmente publicado na revista La Pensée, no 151, juin 1970. In:
ALTHUSSER, L. Positions (1964-1975), p. 67-125. Paris : Les Éditions sociales, 1976.
58

um poder – que pode ser pensado, por exemplo, como um poder econômico – ao qual ela se
ajusta.

Talvez, no entanto, uma leitura alternativa e mais ativa possa ser proposta. Pode ser
que a relação entre força e justiça visada por Pascal e Montaigne procure evidenciar o modo
como a justiça depende da força num sentido mais substancial do que o de um instrumento ou
de um método de imposição do qual, em momento seguinte, ela poderia se desfazer. A força é
uma propriedade intrínseca da justiça, seu predicado essencial, presente tanto na
instauração desta quanto em sua manutenção subsequente. Este momento fundador da
justiça ou da ordem não é, nele mesmo, justo ou injusto, legal ou ilegal: é um ato puro,
indiferente, que não pode receber quaisquer distinções jurídicas, uma vez que é a sua causa
(seria preciso fundar um operador adicional para julgar aquilo que permite julgar, e assim
sucessivamente ao infinito). Esta característica do direito, ou seja, a de manter com a força
uma relação profunda de retroalimentação, não é nova para nós: ela já estava compreendida
nos textos que visitamos de Schmitt, particularmente, creio, no primeiro capítulo de O Nomos
da Terra. Não é exatamente isto que a tomada de terra significa – uma atitude violenta,
abrupta, um ato puro, de caráter originário e instaurador, que não pode padecer de quaisquer
classificações jurídicas, pois é aquilo que as permite? O que Derrida designa como violência
performativa do ato instaurador do direito é o que Schmitt designa como o ato de tomada de
terra inicial que cria a ordem; e tanto um quanto o outro enfatizam a conexão entre justiça e
força/violência. A afinidade parece tão óbvia que é algo notório que Schmitt não seja, neste
momento, requisitado ao debate, e talvez seja útil se perguntar pelas razões de tal omissão.98

O místico também não pode nos escapar, pois surge tanto na passagem de Montaigne
quanto na de Pascal99. Derrida afirma que interpreta este místico num sentido
wittgensteiniano, sem, no entanto, desenvolver esta afirmação. Se recuperarmos as passagens
do Tractatus Logico-Philosophicus nas quais o místico é apresentado, poderíamos deduzir, de
modo algo limitado, que o místico é aquilo que escapa à linguagem, algo que se mostra, que
diz respeito à estrutura do mundo, mas sobre o qual não se pode erguer um logos, e, portanto,

98
Os silêncios também são dignos de nota. O que quer dizer a ausência de Schmitt numa conferência em que
Derrida se propõe justamente a pensar a fundação do direito – um tema schmittiano, como procuramos mostrar
nesta introdução? Schmitt não é um autor inteiramente estrangeiro a Derrida; ele é citado, para recuperar apenas
um exemplo, no curso A besta e o soberano.
99
Derrida aventa a possibilidade de Pascal, no aludido fragmento dos Pensamentos, estar citando Montaigne
sem nomeá-lo. Ver DERRIDA, J. 2018a, P.20.
59

aquilo sobre o quê a filosofia não pode falar (fundamentalmente, para ele, o ético e o estético,
ou simplesmente a metafísica). O místico é aquilo que se mostra na linguagem mas que não
pode receber dela um discurso de segunda ordem100. Voltando, então, ao trecho Montaigne:
sua afirmação circula em torno da ideia de crença. O fundamento da autoridade é um ato de
fé: dar crédito a, confiar, crer – nas leis, na autoridade do soberano, no Estado. Existiria um
caráter ficcional imanente à toda estrutura autoritária, um investimento ou uma relação de
reconhecimento implícita, de modo que a autoridade dependeria muito mais daqueles aos
quais subjuga do que daqueles que valida. Guardemos este sentido de ficção para um
momento posterior de nossa investigação acerca do direito.

Mais fundamental, agora, é a ideia de silêncio, também imposta pelo místico, e que
nos permite compreender os paradoxos da justiça. Sobre o fundamento não se pode erguer
nenhum discurso, porque ele é condição de todo o discurso. “Há um silêncio murado na
estrutura violenta do ato fundador. Murado, emparedado, porque esse silêncio não é exterior
à linguagem”101: eis aqui o ponto nevrálgico, o momento em que a discussão derridiana
atinge repentinamente o que temos procurado conquistar, ou seja, a questão da exterioridade.
O místico, então, diz-se em dois sentidos: primeiro, no silêncio, no inefável, na
impossibilidade de abordagem ou crítica do fundamento; depois, e mais importante, o místico
não pode ser separado da realidade mesma que constitui. O paradoxo do místico é ser, ao
mesmo tempo, aquilo que torna possível a linguagem mas que não pode ser dela separado;
que torna a linguagem possível linguisticamente. Neste sentido, as leis, a ordem, a justiça
subsequente, são seu próprio fundamento; o fundamento retorna sobre si mesmo, revelando
seu caráter infundado. À questão da exterioridade do fundamento, Derrida, parece-nos,
responde diferentemente de Schmitt: o caráter infundado do fundamento não o desloca para o
exterior da ordem constituída – ao contrário, o faz ocupar uma posição interior à ordem
mesma, conservando-a e nutrindo-a.

100
Limito-me aqui a apresentar algumas passagens que justificam as afirmações sobre Wittgenstein. “É claro
que a ética não se deixa exprimir. A ética é transcendental. (Ética e estética são uma só)” (6.421); “O místico
não é como o mundo é, mas que ele é.” (6.44); “A intuição do mundo sub specie aeterni é sua intuição como
totalidade - limitada” (6.45) e “Há por certo o inefável. Isso se mostra, é o Místico.” (6.522). Reproduzo as
citações a partir da tradução preparada por Luiz Henrique Lopes dos Santos. Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus
Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.
101
Grifo meu. DERRIDA, J. 2018a, P. 25.
60

A ideia de que o fundamento nutre constantemente a ordem nos permite tomar uma
dupla posição: ou Derrida ou Schmitt. Entre estes autores, então, duas formas distintas de
compreender o caráter infundado do fundamento. Ambos estão comprometidos com a
discussão sobre o que funda uma ordem qualquer. Ambos veem neste movimento instaurador
um ato violento. Um, no entanto, posiciona este fundamento fora da ordem; outro, a mantém
em seu interior. Para Schmitt, o infundado deve ocupar um espaço regular fora da ordem,
deve como que alimentá-la à distância. Para Derrida, o infundado é imanente à ordem, o que
resulta numa posição ligeiramente mais complicada, e que deve ser compreendida à luz do
místico, que é aquilo que condiciona silenciosamente a linguagem, sendo o silêncio ele
mesmo uma forma de manifestação linguística. O fundamento, da mesma forma, cria a ordem
e nela permanece, se confundindo com ela e operando como seu motor oculto. Ele é
infundado, portanto, porque não pode reenviar a nada diferente de si próprio: ele é seu
próprio fundamento.

Para concluir a pergunta inicial acerca da compatibilidade entre desconstrução e


justiça, Derrida concluirá o seguinte: esta segunda forma de compreender o caráter infundado
do fundamento, no direito, traduz-se no fato de que as leis só podem ser justificadas por elas
mesmas, de serem, em suma, uma violência sem fundamento. Longe de nos desesperar, esta
conclusão talvez seja particularmente desejável, pois é deste caráter infundado que emergirá a
possibilidade da justiça. O direito tem sua origem num fundamento que é ele mesmo
infundado. Ele é por definição desconstrutível. Para ele podem ser apresentadas a todo o
instante interpretações alternativas, redimensionamentos históricos ou textuais etc. Derrida,
aqui, aventa a possibilidade de que a desconstrução permitiria algo como um progresso
histórico. Embora a justiça, derivada do direito constituído, não possa ser desconstruída,
porque sua prática depende de um fundamento, isto é, de um parâmetro postulado, o direito,
cujo fundamento é infundado, pode. A justiça precisa de um fundamento para se realizar,
precisa discriminar, julgar: mas o direito que a nutre pode ser a todo tempo posto em questão.
Logo, justiça e desconstrução, longe de serem operadores opostos, estão estreitamente
associados, a tal ponto que Derrida arriscará afirmar que a desconstrução é a própria justiça
102
.

102
DERRIDA, J. 2018a, P.27.
61

Além de ter conduzido uma reflexão acerca do direito, Derrida interessou-se por outra
discussão também verificada em Schmitt: aquela do religioso. O debate em torno do “retorno
do religioso hoje”103 surge num texto intitulado “Fé e saber. As duas fontes da ‘religião’ nos
limites da simples razão”, apresentado em um seminário ocorrido em 1994 na ilha de Capri,
na Itália. Qualificar este fenômeno como “retorno” é já tomar posição: subentende-se uma
primeira vitória das Luzes em sua suposta tentativa de expulsar o religioso do mundo,
seguida de uma derrota manifestada pelo ressurgimento (por vezes classificado como
violento) da religião ao longo do século XX. Opõe-se, de forma ingênua, razão, ciência,
crítica, de um lado; religião, fundamentalismo, dogmatismo, de outro.104 Um esquema tão
nitidamente construído ignora que, talvez, a existência mesma da razão não determine o
desaparecimento integral da religião: ao contrário, talvez seja possível pensar que entre as
duas há uma relação íntima de copertencimento, o que Derrida procurará desvendar lendo
principalmente o texto “A religião nos limites da simples razão”, de Immanuel Kant.

Encontra-se, em Kant, segundo Derrida, uma distinção entre as religiões de simples


culto (des blossen Cultus) e a religião moral (moralische)105. As primeiras inscrevem-se na
lógica da recompensa: age-se bem para obter um prêmio de Deus; já a segunda, que só pode
ser dita no singular, uma vez que só se tem dela um único exemplo, persegue a boa conduta
da vida não como meio para obter a salvação, mas para manter-se sempre digno dela como se
o bom comportamento fosse um simples dever. Ela pode ser classificada como fé reflexiva na
medida em que a vida moral que promulga pode concordar com a razão, diferindo, enfim, da
fé dogmática, que, ao contrário, repele qualquer racionalidade. Em última análise, a religião
moral propõe um agir que pressupõe, paradoxalmente, a morte de Deus. Agir bem como se
Deus não estivesse observando, tendo o bem como fim e não como meio. Neste sentido, a
moralidade pode ser lida como uma versão secularizada do cristianismo, a tal ponto que
podemos sustentar, afirma Derrida, que “a moralidade pura e o cristianismo são
indissociáveis em sua essência e em seu conceito”106. O imperativo categórico kantiano, com
efeito, é devedor do cristianismo naquilo que contém de pretensão universalizante. Esta
memória esquecida, criptoteológica, do fundo cristão de toda moralidade, será útil para

103
DERRIDA, J. “Fé e saber. As duas fontes da ‘religião’ nos limites da simples razão”. In : DERRIDA, J.
VATTIMO, G. (orgs). A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2018b.
104
DERRIDA, J. 2018, P. 15.
105
Apresento a discussão e o vocabulário kantiano a partir de Derrida, cf. DERRIDA, J. 2018b, P. 20-21.
106
Ibid, P. 21.
62

pensar os limites daquilo que costumamos designar como racional ou objetivo e para
questionar a validade da oposição entre fé e saber.

Se insistirmos na ideia de que o agir moral não é nada além de uma versão
secularizada do agir cristão, temos de lidar com a consequência incômoda, surpreendente e
paradoxal, de que o cristianismo atinge sua vocação, sua máxima aceitação, justamente
quando se anula, quando não se assume como religião, mas simplesmente como moral. A
morte de Deus seria, assim, ao contrário de sua expulsão do mundo, sua introdução maior, e a
universalização da religião seria obtida a partir de seu total apagamento. Esta constatação é o
ponto de partida de um debate entre René Girard e Gianni Vattimo, que concordam que a
modernidade é consequência do cristianismo e não sua supressão.107 O cristianismo não
desapareceu, apenas sofreu mutações de modo a se adaptar ao mundo moderno, mutações
essas que derivam de seu cada vez maior desaparecimento enquanto religião
institucionalizada.

É certo que, para estes autores, trata-se de uma implicação positiva, que manifestaria a
vitória do cristianismo sobre a Terra. Para além desta conclusão interessada, esta associação,
obtida através dos conceitos kantianos, pode nos levar a pensar acerca dos
comprometimentos implícitos de certos operadores políticos que, à primeira vista, tomamos
como desinteressados. Assim para o caso da tolerância. Não é a tolerância para com o outro
um conceito de origem cristã? Até mesmo os teóricos das Luzes parecem tê-lo reconhecido:
mesmo Voltaire, em seu Dictionnaire philosophique108, sublinha que a tolerância é um
conceito cristão, muito embora os cristãos de sua época, segundo ele, tenham se portado
como os mais intolerantes de todos os homens. Ao invocar uma espécie de cristianismo
primitivo, Voltaire se situaria, ao invés de numa linhagem de combate antirreligioso, como
um autor pró-restabelecimento de uma religião autêntica e mais originária: e Derrida está
pronto para assumir, neste momento, que tanto Voltaire quanto Heidegger ocupariam lado a
lado uma certa tradição de orientação católica.

107
Ver GIRARD, R. VATTIMO, G. Christianisme et modernité. Paris : Flammarion, 2014. Ver também o
clássico de Marcel Gauchet: Le désenchantement du monde. Paris: Éditions Gallimard, 1985.
108
Assim como no caso de Kant, retomo os conceitos e o vocabulário de Voltaire a partir do modo como Derrida
os discute. Ver DERRIDA, J. 2018b, P. 34.
63

Conclusão de Derrida: razão e religião emanam da mesma fonte; a razão, ao invés de


opor-se a religião, na verdade a “transporta, suporta e pressupõe”109. Esta fonte comum
detectada por Derrida é um ato de fé (e, aqui, voltamos a Montaigne: obedecer às leis é um
ato de crença, é preciso acreditar nas ficções, dar-lhes crédito). Há um ato de fé inicial, um
“performativo de promessa”110, que sustenta todo vínculo social e, em última análise, todas as
instituições. Um testemunho e um comprometimento em dizer a verdade que condiciona toda
manifestação da razão, que Derrida denomina “crédito fiduciário”111 e que é de vocação
religiosa.

Se razão e religião emanam de uma mesma fonte, o esquema que os opunha termo a
termo, com o qual a investigação se iniciou, deve ser substituído por outro, que suponha seu
copertencimento e que, enfim, possa promover uma crítica ou suscitar maior prudência
quanto à aceitação irrestrita da razão como sustentáculo dos operadores políticos. Parece-nos
uma conclusão demasiadamente radical a de que Derrida estaria argumentando a favor da tese
mais forte da teologia-política, ou seja, subscrevendo a ideia de que todos os operadores
políticos brotam de um solo teológico determinado. Sua posição é mais a de cautela: até que
ponto a razão é neutra? Conceitos como o de modernidade, tolerância, secularização e
democracia não são tão interessados quanto aqueles que presunçosamente acusamos de
dogmatismo religioso? Esta intuição nos levará a desconfiar sobretudo das interpretações
democrático-liberais-seculares de Spinoza, que enxergam, em especial no Tratado
Teológico-Político, o início de um processo de total rompimento entre fé e saber. Seguindo a
intuição de Derrida – a de que, em suma, a secularização é, antes, uma sacralização
disfarçada, e que a oposição razão-religião, ao invés de útil, esconde o problema mais
fundamental do pertencimento dos operadores políticos à determinadas crenças de base –,
parece que podemos fornecer uma interpretação no mínimo mais complicada – o que
evidentemente não quer dizer mais teológica – para o texto spinozista em questão.

Embora não tenha dedicado um tratado à política, as ideias metafísicas de Descartes


podem ser, a partir de certa metodologia de leitura, associadas às intuições políticas de seu

109
DERRIDA, J. 2018b, P. 43.
110
DERRIDA, J. 2018b, P. 62.
111
Ibid.
64

tempo. Mencionamos brevemente que, no terceiro capítulo de Teologia Política, Carl Schmitt
cita ao menos três teses cartesianas vinculadas à noção de um soberano absoluto: a tese da
criação contínua, a da livre criação das verdades eternas e a crença – pois é discutível se
configura propriamente uma tese – na superioridade das obras criadas por um único
arquiteto ou legislador. Quando confrontadas com as intuições e evidências políticas do
século XVII, a partir da dita sociologia dos conceitos jurídicos schmittiana, o cartesianismo
proporciona, além de um acurado diagnóstico histórico, um olhar atento para os paradoxos
inerentes à própria noção de soberania – que podem reconfigurar, em última análise, a relação
entre exterioridade e interioridade e a própria articulação entre os domínios da teologia e da
política.

Segundo Schmitt, “Atger notou que o monarca, na teoria do Estado do século XVII,
foi identificado com Deus e que tem, no Estado, a mesma, exata e análoga posição conferida
ao Deus do sistema cartesiano no mundo”112. Citando o Essai sur l’histoire des doctrines du
contrat social, de Frédéric Atger, Schmitt subscreve a tese segundo a qual “o príncipe
desenvolve todas as virtualidades do Estado por uma espécie de criação contínua. O príncipe
é o Deus cartesiano transposto no mundo político”113. O que diz exatamente tal tese?
Descartes a apresenta sucintamente na Terceira Meditação em dois breves parágrafos, como
forma de responder a uma possível objeção à prova da existência de Deus – ou, mais
especificamente, à suposição de que eu posso existir sem causa:

E ainda que possa supor que talvez tenha sido sempre como sou agora, nem
por isso poderia evitar a força desse raciocínio, e não deixo de conhecer que
é necessário que Deus seja o autor de minha existência. Pois todo o tempo
de minha vida pode ser dividido em uma infinidade de partes, cada uma das
quais não depende de maneira alguma das outras; e assim do fato de ter sido
um pouco antes não se segue que eu deva ser atualmente, a não ser que neste
momento alguma causa me produza e me crie, por assim dizer, novamente,
isto é, me conserve.

Com efeito, é uma coisa muito clara e muito evidente (para todos os que
considerarem com atenção a natureza do tempo) que uma substância, para
ser conservada em todos os momentos de sua duração, precisa do mesmo
poder e da mesma ação, que seria necessário para produzi-la e criá-la de
novo, caso não existisse ainda. De sorte que a luz natural nos mostra
claramente que a conservação e a criação não diferem senão com respeito à
nossa maneira de pensar, e não em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu me
interrogue a mim mesmo para saber se possuo algum poder e alguma virtude
que seja capaz de fazer de tal modo que eu, que sou agora, seja ainda no
futuro: pois, já que eu sou apenas uma coisa pensante (ou ao menos já que

112
SCHMITT, C. 2006, P. 43.
113
Tradução minha a partir do trecho citado no original em SCHMITT, C. 2006, P. 43.
65

não se trata até aqui precisamente senão dessa parte de mim mesmo), se um
tal poder residisse em mim, decerto eu deveria ao menos pensá-lo e ter
conhecimento dele: mas não sinto nenhum poder em mim e por isso
reconheço evidentemente que dependo de algum ser diferente de mim.
(DESCARTES, R. 1973, P. 118; AT IX-1, 38-39)

A conclusão de que Deus cria e conserva depende, em primeiro lugar, de uma tese
acerca da estrutura do tempo. O tempo é de natureza descontínua, quer dizer, é composto por
uma infinidade de partes cujas conexões não estão dadas previamente. É pelo fato de poder
ser dividido em infinitas partes, de tal modo que o que aconteceu antes não determina o que
aconteceu depois, que as substâncias, para persistirem na duração, necessitam de um
princípio causal não apenas para sua criação inicial, mas para sua permanência na existência.
Observe-se que a tese da descontinuidade do tempo não é tematizada, no trecho, por
Descartes, mas apenas tomada como um dado, de modo que seria possível discordar do
encaminhamento do argumento questionando a validade de sua premissa maior. Ainda, é
tomada como “uma coisa muito clara e muito evidente”114 que a força necessária para manter
um ente na existência é a mesma exigida para criá-lo desde a primeira vez. Assim, aceitando
o modo como Descartes constrói o problema a partir destas duas teses, sua demonstração
conclui que o ato de criação e de conservação não se distinguem; e que certamente não
reconheço que eu – que por enquanto sou apenas uma coisa pensante – tenha este poder de
me pôr inicialmente na existência, menos ainda para me permitir permanecer nela. Entre
criação e conservação há, portanto, apenas uma distinção de razão, e o ato de criação
contínua deve ser remetido não a mim, mas a Deus.

O mesmo pode ser dito quanto ao poder soberano. O soberano absoluto é não só
aquele que cria o ordenamento jurídico a partir de uma situação de exceção – o que se
evidencia pelo fato de que é apenas ele que tem o poder de decretar o estado de exceção no
interior da normalidade –, mas aquele elemento que, dada sua topologia tensa, permite que a
normalidade se conserve: "O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente,
porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser
suspensa in toto"115. Assim como o Deus cartesiano, o soberano está ao mesmo tempo dentro
e fora do ordenamento: fora, pois foi responsável por sua criação ex nihilo; dentro, pois
permanece conservando a ordem de que é a origem.

114
DESCARTES, R. 1973, P. 118; AT, IX-1, 39.
115
SCHMITT, C. 2006, P. 8.
66

Complica-se, assim, a relação algo estanque estabelecida entre transcendência e


imanência, exterioridade e interioridade. Não à toa, a tese da criação contínua estabelece um
estranho parentesco entre a metafísica cartesiana e a de Spinoza: se Deus concorre na criação,
é possível que, em algum grau, participe da existência das criaturas de que é a causa e se
identifique mesmo que parcialmente com a natureza. Certamente para obter uma
identificação total com o conceito de causa imanente spinozista seria preciso reformular o
próprio princípio de causalidade, propondo, ao invés de uma separação entre causa e efeito, a
possibilidade de encontro total entre ambas. Não seria, aliás, inteiramente gratuito esperarmos
estas pequenas aproximações entre duas metafísicas de início tão incompatíveis, se
lembrarmos, por exemplo, que a recusa das causas finais, tão importante para a ontologia
spinozista, já aparece de modo tímido na metafísica e na física cartesianas116.

O parentesco entre soberania e exceção é complementado pela tese da livre criação


das verdades eternas, sucintamente anunciada numa carta de Descartes a Mersenne de 1630:
“Não temais, de modo algum, vos rogo, assegurar e publicar em todo lugar, que é Deus que
estabelece essas leis na natureza, assim como um rei estabelece leis em seu reino”117. As leis
da natureza não são anteriores a Deus: ao contrário, são leis da natureza porque Deus assim
as determinou. O modo de produção das verdades eternas operado por Deus na criação é
análogo ao movimento de decisão do soberano ao tornar possível o ordenamento jurídico: é
ele quem determina o conjunto básico de valores que servirão de motor para as distinções
jurídicas posteriores. Lembremos, também, da lógica contratualista, e da importância que o
pensamento hobbesiano tinha para Schmitt: no estado de natureza não há direito, mas é
somente por meio de uma decisão sobre esta exceção que o direito pôde, enfim, ser criado. É
somente no estado de associação civil que as leis e as distinções entre o justo e o injusto, o
bem e o mal, operam: pois há uma base de legitimidade mínima, conquistada pelo
procedimento de transferência de direitos, que funciona como uma espécie de solo comum
nutrindo para sempre a ordem política. Voltando a Schmitt: o século XVII, dominado pelo
ideal decisionista em sua metafísica, tomou o decisionismo na política, traduzido nas feições
de um monarca absoluto, como uma noção plausível e evidente.

Trataremos da recusa das causas finais por parte de Descartes no primeiro capítulo deste trabalho.
116

117
DESCARTES, R. “Carta de Descartes a Mersenne. Amsterdam, 15 de abril de 1630”. In : Modernos &
Contemporâneos - International Journal of Philosophy [issn 2595-1211], v. 1, n. 2, 9 set. 2018. P. 212; AT I,
145.
67

Um último elemento confirmatório acrescenta-se à lista: Descartes afirma que “não há


tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres,
como naquelas em que um só trabalhou”118. Nesta espécie de conto narrado na Segunda Parte
do Discurso do Método, Descartes fornece uma narrativa de viés mais imediatamente político
a fim de justificar seu desejo por recomeçar novamente a filosofia desde os fundamentos. Os
personagens principais deste conto são dois: o arquiteto e o legislador, os quais, ao fim da
narrativa, se confundem. Pois, assim como os edifícios empreendidos por um único
construtor são visivelmente mais perfeitos, as cidades mais civilizadas são aquelas em que
“algum prudente legislador”119, ao invés de compelido a trabalhar a partir do legado das
constituições passadas, pôde fundá-las a partir de seu único engenho desde as origens.

Em todas estas declarações, mais ou menos adaptáveis às teses schmittianas acerca da


exceção e da soberania, observa-se um princípio inquestionável: a superioridade do um sobre
o múltiplo. A sociologia dos conceitos jurídicos schmittiana, ao suspender a pergunta pelas
determinações causais e de influências entre o âmbito material e o espiritual, pôde concluir
que há um inquestionável presente tanto na ordem metafísica quanto na política. A partir de
certa metafísica de fundo que priorizava a operação do um transcendente, a monarquia surgiu
como a opção política mais de acordo com ela. Não que a metafísica tenha criado uma
evidência política, tampouco o contrário: a metafísica apenas mostra-se presente como o pano
de fundo do qual emergem as noções políticas. Isto é válido não só para o século XVII.
Mesmo na democracia evidente ao longo dos séculos XVIII e XIX, porém, o soberano como
a figura detentora do poder e da decisão sobre a exceção permanecem: a topologia
dentro-fora do soberano não é diagnóstico histórico, mas essência da política cuja origem
histórica é o século XVII.

Eis por que investigar a noção de soberania é defrontar-se com uma situação
paradoxal, assim definida por Giorgio Agamben no primeiro volume de sua série Homo
Sacer. Desvelado a partir de uma interpretação do decisionismo schmittiano, o soberano
ocupa este complicado lugar: nem dentro nem fora do ordenamento jurídico120. A relação
fundamental que coordena a soberania é, assim, a da exclusão inclusiva da exceção. Trata-se
de uma espécie de exclusão que, ao invés de deixar de estabelecer qualquer parentesco com a

118
DESCARTES, R. 1973, P. 42; AT VI, 11.
119
Ibid, AT VI, 12.
120
AGAMBEN, G. 2014a, P. 22-23.
68

ordem, posicionando-se simplesmente fora dela, permanece, ao contrário, nela incluída sob o
regime de sua suspensão. Está previsto no interior do ordenamento jurídico, por meio da
figura de soberania, a possibilidade de a todo tempo desativar a ordem: um poder que o
soberano detém pela simples razão de estar, ele mesmo, nem completamente dentro nem
inteiramente fora do ordenamento. Basta se perguntar, por exemplo, pelo ato inicial que criou
o ordenamento de direito – não foi ele produzido a partir de uma exceção, isto é, a partir de
uma arbitrariedade fundadora? Pois, antes da confecção do ordenamento, não poderia ainda
haver direito, tampouco todas as noções dele subsequentes: lei, transgressão, justo e injusto.
Além disso, com que direito o soberano poderia posicionar-se fora do direito para julgar
sobre a exceção – a não ser que estivesse sempre já posicionado fora dela? A condição de
possibilidade de funcionamento da ordem, toda a legitimidade de que dispõe, todo o “vigor
da lei”121, depende do parentesco que estabelece a todo momento com algo que lhe escapa.
Embora pareça um oxímoro de difícil acesso, não é de todo surpreendente observarmos, hoje,
situações jurídicas que parecem fazer referência, para se justificarem, a elementos
extrajurídicos: os momentos de exceções do direito, aparentemente isolados, explicitam
somente o modo como o seu funcionamento normal está em constante dependência de algo
que lhe escapa.

Talvez a complexa topologia exterioridade-interioridade não seja tão difícil de


vislumbrar se pensarmos no modo como compreendemos, em nossa política contemporânea,
a figura do estrangeiro122. O estrangeiro é aquele que carece de quaisquer reconhecimentos
jurídicos e políticos. Neste aspecto, ele pode ser pensado como aquele que está localizado
fora da pólis. Para que o estrangeiro exista, porém, é preciso que faça referência a algum
ordenamento político-jurídico: por exemplo, uma nação. Todo estrangeiro é estrangeiro para
um país, todo fora-da-lei é, também, um fora “para” alguma lei específica. Neste aspecto, ele
mantém alguma relação com o ordenamento: mesmo que seja uma relação de exclusão.
Pode-se dizer que o estrangeiro está incluído na ordem via sua expulsão; que está fora dela
justamente porque, em seu conceito, participa dela a partir de outro aspecto.

121
AGAMBEN, G. 2014a, P. 25.
122
Sobre a figura do estrangeiro no pensamento de Spinoza, recomendo o trabalho de Bruno Albarelli: “Do
conceito de indivíduo à figura do estrangeiro na filosofia política de Spinoza” (Tese de doutorado. PPGLM,
2019). Disponível em: https://ppglm.files.wordpress.com/2019/05/tese-bruno-de-andrade-albarelli.pdf. Última
visualização: 01/09/2021 às 09h26min.
69

Agamben sublinha o fato de a definição de exceção schmittiana fazer referência a um


teólogo em sua justificação123 – o dinamarquês Søren Kierkegaard –, de modo que o
procedimento de exclusão inclusiva se conecta igualmente com as relações estabelecidas
entre teologia e política. Poderíamos avançar a hipótese de trabalho – que, por enquanto, será
anunciada apenas como uma aposta a ser comprovada nas investigações posteriores –
segundo a qual a teologia é o outro da política que, na modernidade, foi dela excluída, mas
que por vezes retorna à superfície mostrando que está ali operando silenciosamente como seu
fundamento oculto. Com a relação de exceção, toda uma perspectiva abre-se para a filosofia
política, que pode se concentrar em investigar criticamente que domínios foram, na
construção de nossa visão moderna e contemporânea do político, excluídos, apenas para nela
reingressarem clandestinamente.

A discussão sobre os procedimentos de exclusão inclusiva mobiliza uma reflexão


anterior sobre a própria origem de nossos conceitos políticos. São eles alimentados por
posições mais fundamentais de ordem metafísica e mesmo teológica? Esta relação de nutrição
com o “fora” se dá apenas via transcendência, via imanência dos valores, ou, como quer
Agamben interpretando Schmitt, numa relação que justamente confunde a topologia entre o
dentro e o fora, conquistando um terceiro elemento: dentro-e-fora-ao-mesmo-tempo? Se o
fora se comunica incessantemente com o dentro, se a teologia alimenta a política, se o
soberano é o próprio índice da exceção, como é possível que haja autonomia das noções
políticas? Ainda, separar, do ponto de vista institucional, o poder teológico do político
significa o mesmo que expulsar a teologia do modo como pensamos e refletimos sobre a
política hoje, apesar de toda nossa dependência da razão? Qual o resto de teologia que insiste
em reaparecer nos momentos mais inesperados de nosso fazer político? Reconfigurar a
relação entre exterioridade e interioridade, tendo a conexão entre teologia e política como
caso paradigmático desta operação, nos permitirá refletir sobre todas estas perguntas.

Se há, como sustentam os autores analisados, um parentesco entre teologia e


exterioridade, pode ser que perseguindo as modulações do discurso sobre o exterior
especificamente em sua obra dedicada à análise da teologia possamos responder, via Spinoza,

123
AGAMBEN, G. 2014a, P. 23.
70

à indagação sobre o retorno do religioso hoje. Embora pareça recusar os dogmas da teologia
tradicional, é preciso verificar com mais precisão se a exterioridade é totalmente expulsa de
seu pensamento. Responder a esta indagação implicará pensar igualmente o lugar histórico de
Spinoza na confecção do moderno. Ainda, ela não poderá ser respondida sem supor uma nova
metodologia, que procure evidenciar as tensões entre a destruição de uma teologia tradicional
e a construção de um discurso religioso alternativo, num movimento em tudo aparentado ao
procedimento de uma exclusão que subrepticiamente inclui por outros meios. Talvez esta
orientação metodológica nos leve a retirar conclusões diferentes daquelas que vêm
governando a literatura secundária até aqui124. As minúcias das hipóteses de Schmitt, Derrida
e Agamben tampouco serão descartadas: os processos de secularização, o pertencimento
profundo de um posicionamento político a uma teologia, a violência instauradora do direito,
da justiça e das instituições, a obediência às leis e a racionalidade tecnocientífica enquanto
baseadas num ato de fé, a topologia do soberano: todas estas intuições, esperamos, retornarão
e assombrarão nossas análises subsequentes.

Comecemos.

124
Estas interpretações serão nomeadas e examinadas detalhadamente em capítulos posteriores.
71

Capítulo 1.
O CULTO AO EXTERIOR

“Está demonstrado que as coisas não podem ser


de outro modo: pois, tudo tendo um fim, tudo
concorre necessariamente para o melhor fim.
Observem bem, os narizes foram feitos para usar
óculos, e por isso temos óculos; as pernas foram
visivelmente instituídas para vestir calças, e por
isso temos calças. As pedras foram formadas
para ser talhadas e para construir castelos; por
isso, monsenhor tem um belo castelo: o maior
barão da província deve ser o mais bem alojado;
e os porcos tendo sido feitos para ser comidos,
comemos porco o ano todo; portanto, aqueles que
afirmaram que tudo vai bem disseram uma tolice:
deviam ter dito que tudo vai da melhor maneira
possível.”

— Voltaire, Cândido ou o otimismo1

O princípio das causas finais consiste em


procurar as causas dos efeitos da natureza através
do fim que seu autor deve ter se proposto ao
produzir estes efeitos. Pode-se dizer, mais
geralmente, que o princípio das causas finais
consiste em encontrar as leis dos fenômenos
através de princípios metafísicos.

— Jean le Rond D’Alembert, artigo “Causas


finais” da Enciclopédia2

Eu não seria cristão sem os milagres, diz Santo


Agostinho.

— Blaise Pascal, Pensamentos3

Observarei somente que os demônios não tinham


muita dificuldade em persuadir os homens de que
havia mistério e prodígio por toda parte. Pois, é
necessário confessar, para a vergonha de nossa
espécie, que ela tem uma propensão natural a
isto.

— Pierre Bayle, Pensamentos Diversos Sobre o


Cometa4

A polêmica em torno da causalidade final, tal como desenvolvida ao longo do século


XVII, se desdobra em ao menos três momentos-chave: a crítica inconclusiva cartesiana, o

1
VOLTAIRE. Cândido ou o otimismo. São Paulo: Editora 34, 2016. P. 18.
2
Apud. DUFLO, C. 1996, P. 123.
3
Artigo 158 dos Pensamentos, cf. edição estabelecida por Michel Le Guern (812 para Brunschvicg, 169 para
Lafuma e 168 para Tourneur-Anzieu). Ver PASCAL, B. Pensées. Paris : Gallimard, 1977. P. 155.
4
PD, §65. BAYLE, P. Pensées diverses sur la comète. Paris : Flammarion, 2007. P. 161.
72

desmonte spinozista e, por fim, a reabilitação leibniziana.5 A crítica cartesiana surge no


contexto da Quarta Meditação, quando se trata de fornecer uma solução ao problema da
teodiceia; uma questão de ordem teológica que pode ser condensada na seguinte indagação:
se Deus é perfeito, por que as criaturas erram? Em termos cartesianos: como explicar que
Deus, um ser perfeito, e que, portanto, não pode desejar enganar, tenha criado seres que
duvidam e, mais ainda, que manifestamente erram? Aplicando a Deus o princípio de
causalidade6, deve-se dele esperar a criação de seres no mínimo igualmente perfeitos, o que é
uma exigência lógica; da perfeição retira-se também a qualidade de ser veraz, de modo que
não se segue dela o desejo por criar homens sistematicamente condenados ao erro, uma
implicação ao mesmo tempo lógica e teológica. Para responder à primeira indagação,
Descartes se ampara na tese da impenetrabilidade dos desígnios de Deus. Enquanto minha
natureza é fraca e limitada, a natureza divina é “imensa, incompreensível e infinita”7, donde a
impossibilidade epistêmica de aceder aos seus propósitos. Se assim o é, não posso tomar o
gênero de causas que se baseiam nos fins como parte do meu método, uma vez que, como
afirma sua primeira regra, não posso acolher como verdadeiro senão aquilo que se apresenta
evidentemente como tal8. Se os fins de Deus não se apresentam como evidentemente
verdadeiros e, mais do que isso, nunca poderão se apresentar, devo simplesmente abandonar
sua busca e considerar, ao menos nas coisas físicas e naturais, outro gênero de causas
explicativas. Como se sabe, Descartes desenvolverá uma física centrada na descrição das
propriedades mecânicas dos corpos, enfatizando, em contrapartida, a causalidade eficiente:
aquela que os explica em termos de seus movimentos.9 Tal análise será aplicada, por

5
Para construir esta exposição, foi fundamental a consulta ao livro de Colas Duflo, La finalité dans la nature.
De Descartes à Kant. Paris: PUF, 1996. Além de forjar uma espécie de linha do tempo da questão, sua
exposição tem a vantagem de tomar o tema em sua profundidade, insistindo em seus aspectos metafísicos,
físicos e teológicos.
6
Eis o princípio de causalidade tal como formulado na Terceira Meditação: “Agora, é coisa manifesta pela luz
natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde é
que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lha comunicar se não a
tivesse em si mesma?”, cf. DESCARTES, R. 1973, P. 112; AT IX-1, 32.
7
DESCARTES, R. 1973, P. 125; AT IX-1, 44.
8
DESCARTES, R. 1973, P.45; AT VI, 18.
9
Embora Descartes, na Quarta Meditação, não defenda explicitamente a redução à causalidade eficiente, nos
Princípios o afirma categoricamente no artigo XXVIII da Primeira Parte, cujo título testemunha: “Que devem
ser examinadas não as causas finais das coisas criadas, mas as causas eficientes”, cf. DESCARTES, R. 2002b, P.
47; AT VIII, 15. Interessante observar que a tradução francesa do enunciado deste artigo, preparada pelo abade
Picot (AT IX-1), omite o vocabulário técnico de “causas finais” e “causas eficientes”, substituindo o primeiro
por “por qual fim Deus criou cada coisa” (« pour quelle fin Dieu a fait chaque chose ») e o segundo por “qual
modo ele quis que ela fosse produzida” (« par quel moyen il a voulu qu’elle fût produite »). Sabe-se que a
estrutura em tópicos dos Princípios tem uma função pedagógica: o texto foi composto pensando em sua
penetração no contexto escolar, com o objetivo de popularizar o cartesianismo; de modo que é razoável supor
73

exemplo, em seu Tratado do Homem, no qual o corpo humano será descrito tal como uma
estátua ou uma máquina de terra forjada por Deus10, bem como nas Paixões da Alma,
especialmente para precisar os movimentos excitados pelas paixões em nossa composição
sanguínea11. Para livrar Deus do segundo dos problemas, a saber, o do desejo de ter criado
entes em si imperfeitos, Descartes aposta na consideração da diversidade da criação. É
preciso avaliar as obras divinas em conjunto, não isolando um dos seres, pois a partir desta
perspectiva algo que pareceria imperfeito em si pode surgir como muito perfeito em sua
natureza. Esta relativização sugere, aliás, uma crítica ao antropocentrismo, uma vez que estes
fins, já outrora desconhecidos, podem ser orientados a uma série de criaturas ao invés de
reunidos na figura humana12.

É curioso notar que, embora Descartes, no mais das vezes, se recuse a tratar de temas
teológicos13, propondo uma separação rígida entre aquilo que compete à filosofia e aquilo que
compete à teologia, não deixa de empregar, na discussão sobre a causalidade final, justamente
argumentos de ordem teológica. O problema com o qual está lidando, na Quarta Meditação, é
teológico; a solução que apresenta para ele, ainda que apele, à primeira vista, para uma
constatação epistêmica, também o é na medida mesma em que compara nossa potência
cognitiva com a de Deus. O duplo sentido da questão e de sua solução é, antes de mais nada,
uma postura cartesiana: não a de não tratar da teologia, mas a de, ao confundi-la com
discussões metafísicas e epistêmicas, abordá-la de modo oblíquo. Se considerarmos, aliás, a
ressalva acrescentada ao Resumo das Meditações, segundo a qual a Quarta Meditação não

que suavização do vocabulário filosófico venha servir, igualmente, para fins de melhor adaptação e assimilação
ao público ao qual o texto se dirigia.
10
AT XI, 120.
11
Lembrando que Descartes afirma não ter escrito as Paixões como um orador, tampouco como um filósofo
moral, mas sim como um médico (« en physicien », cf. AT XI, 326), quer dizer, oscilando entre o ponto de vista
da noção primitiva de pensamento e da noção primitiva de extensão. Ver, para tanto, o artigo de BEYSSADE,
J.M. « La classification cartésienne des passions ». In: Études sur Descartes. L’histoire d’un esprit. Paris:
Éditions du Seuil, 2001.
12
O conhecimento da grandeza do universo, em outros termos, o abandono do antropocentrismo, é um dos
quatro saberes listados por Descartes para que se possa bem julgar. Isto significa que ele tem também uma
função prática na fundação de nossos juízos morais. Ver a carta a Elisabeth de 15 de setembro de 1645 (AT IV,
292).
13
Para um tratamento desta recusa, ver o capítulo “A letra e a graça” do livro Descartes e o ódio à escrita de
Ulysses Pinheiro (PINHEIRO, U. Descartes e o ódio à escrita. Curitiba: Kotter Editorial, 2019. P. 57-100).
Ainda no escopo de trabalhos que pretendem dar conta das atitudes cartesianas a partir de seus textos – suas
recusas, hesitações, justificativas, promessas etc. – ver também RAMOND, C. Descartes. Promesses et
paradoxes. Paris: Vrin, 2011.
74

tratará do erro moral, isto é, do pecado14, tampouco de temas relativos à fé, e a presença
explícita dessa discussão no texto, talvez possamos dizer que as recusas cartesianas
significam menos a ausência do tema censurado do que, na verdade, sua abordagem
criptografada. O tema da causalidade final, em Descartes, é criptoteológico.

Se a teologia se faz presente na Quarta Meditação sob o signo da ambiguidade, ou


seja, mascarado, a suposta recusa da causalidade final guarda também seus disfarces. Que
não possamos conhecer os fins impenetráveis de Deus não significa que eles não existam.
Descartes não opera, portanto, uma recusa ativa das causas finais, mas parece afastá-las da
metafísica e da física simplesmente por razões de método. Mais ainda: em algumas
passagens, autoriza as explicações finalistas no que se refere à teologia e à moral. A
revelação nos ensina que Deus age por fins15; e a experiência que temos da união de nossa
alma com o corpo, por exemplo, nas paixões, evidencia que tendemos a conservar nosso
composto de alma e corpo, fugindo dos objetos nocivos e nos aproximando daqueles que nos
convêm16. Do modus operandi cartesiano, caracterizado por recuos e ressalvas, sintomas de
seu larvatus prodeo17 que condena a teologia a uma apreciação secreta, verificamos que a
disputa pelas causas finais está longe de ser um tema metafísico vazio: é a própria concepção
de divindade e sua intervenção na natureza que está em xeque.

O esforço leibniziano, após o caminho aberto – ou fechado – por Descartes, é o de


demonstrar que é possível assumir tanto a causalidade eficiente quanto a final; e, mais ainda,
que a causalidade final é necessária para dar conta de determinados eventos físicos18. Há, em
primeiro lugar, um argumento teológico: basta contemplar a “admirável estrutura dos
animais”19 para deduzir a intencionalidade divina ao criá-los. Deus cria estabelecendo uma

14
“Mas, entretanto, é de notar que não trato de modo algum, neste lugar, do pecado, isto é, do erro que se
comete na busca do bem e do mal, mas somente daquele que sobrevém no julgamento e no discernimento do
verdadeiro e do falso; e que não pretendo falar aí das coisas que competem à fé ou à conduta da vida, mas
somente daqueles que dizem respeito às verdades especulativas e conhecidas por meio da tão-só luz natural”, cf.
DESCARTES, R. 1973, P. 89; AT IX-1, 11.
15
AT V, 158.
16
Ver, por exemplo, os ensinamentos da natureza tal como apresentados na Sexta Meditação. Além disso,
verificar o artigo 40 das Paixões: “Pois cumpre notar que o principal efeito de todas as paixões nos homens é
que incitam e dispõem a sua alma a querer as coisas para as quais elas lhes preparam os corpos; de sorte que o
sentimento de medo incita a fugir, o da audácia a querer combater e assim por diante” (DESCARTES, R. 1973,
P. 242; AT XI, 359).
17
“Ut comœdi, moniti ne in fronte appareat pudor, personam induunt, sic ego hoc mundi teatrum conscensurus,
in quo hactenus spectator exstiti, larvatus prodeo”, cf. AT X, 213.
18
Cf. LEIBNIZ, G.W. Essais de Théodicée. Paris: GF Flammarion, 1969. §247, P. 265.
19
Cf. artigo XIX do Discurso de metafísica. Ver LEIBNIZ, G.W. 2004, P. 42.
75

infinidade de fins: contemplando tudo, ao mesmo tempo. O erro está em se concentrar em


apenas um destes desígnios: eis a limitação, embora não a falsidade, do antropocentrismo.
Todas as coisas no universo são feitas para o homem, mas apenas no sentido em que todos os
objetos se acomodam uns aos outros, pelo princípio de harmonia universal20. Há também um
argumento de ordem física: a ausência de suposição de fins na mecânica levaria a uma lei
diferente daquela que rege os encontros dos corpos.21 Assim, se o corpo fosse inteiramente
material, desprovido de fins, e se a explicação de seu movimento pudesse ser esgotada com
referência às suas propriedades geométricas, numa situação de choque entre um corpo menor
e um maior, estando o maior em repouso, o menor não perderia em nada sua velocidade ao
transmitir ao maior. Isto se mostra falso devido à lei, instituída, segundo Leibniz, por
sabedoria divina, “de conservar sempre a mesma força e a mesma direção no total”22. O
mesmo argumento poderia ser aplicado para outros fenômenos físicos, que dependem da
suposição de leis naturais, instituídas por Deus, organizadas sempre conforme o princípio da
acomodação. Concluindo por uma via conciliatória entre os dois modelos de causalidade,
Leibniz sustenta que a causalidade final nos permite adorar a Deus, ao responsabilizá-lo pela
hábil criação do universo, ao mesmo tempo em que, no pormenor dos fenômenos físicos, é
difícil delas prescindir; enquanto que a causalidade eficiente, por ser mais profunda e
imediata, permite conclusões úteis na física e na medicina23. Esta conciliação parece se dar,
então, remetendo a causalidade eficiente a Deus e deduzindo dele dois reinos que coexistem –
e que podem ser compreendidos pelo homem – de modo paralelo: Deus enquanto
compreendido como “Arquiteto” (causa eficiente de nosso ser) e enquanto “Senhor” (nossa
causa final)24. Permanece assim resguardada a objetividade das noções morais, derivadas da
autoridade teológica, tanto quanto as leis da física.

A breve apresentação dos argumentos e das motivações destes autores relativamente


ao tópico das causas finais demonstra que esta discussão se defronta com sérias
consequências teológicas. Em certo sentido, a penetração de tópicos teológicos e morais no
tema da causalidade final está manifesta na definição que D’Alembert, na Enciclopédia,
apresenta para ela: trata-se de buscar princípios metafísicos para dar conta das leis dos

20
Discurso de Metafísica, arts. 1-3; Monadologia, arts. 54-56.
21
Discurso de metafísica, art. XXI; LEIBNIZ, G.W. 2004, P. 47.
22
Ibid.
23
Discurso de metafísica, art. XXII.
24
Monadologia, art. 90.
76

fenômenos naturais25. É nesse sentido que eliminar as causas finais da criação divina é, como
bem percebeu Leibniz, extremamente perigoso, uma vez que deixa de sustentar que o bem é o
fim de sua criação26. Se Deus não tivesse criado o mundo com um propósito, de nada valeria
louvá-lo pelas coisas tais como se apresentam: pois se poderia louvá-lo por ter feito
precisamente o contrário27. Leibniz se dirige não apenas à tímida recusa cartesiana das causas
finais, mas também à sua concepção da criação indiferente, que toma Deus como um déspota,
monarca absoluto da criação28 – Deus não criou as coisas porque são boas, mas as coisas são
boas porque Deus as criou, para recuperar a inversão spinozista quanto ao tema dos juízos de
valor29. A crítica a estes “últimos inovadores”30, que relativizam as noções de bem e mal,
desassociando-as da intencionalidade divina, se aplica tanto a Descartes quanto a Spinoza,
sobretudo quando lembramos que, para Leibniz31, tanto quanto para Bayle32, o spinozismo é
um prosseguimento exagerado e indignado do cartesianismo. É preciso sublinhar, no entanto,
a novidade spinozista, sua contribuição específica a esta querela: o culto às causas finais
engendra todo um modo-de-vida, uma ética, portanto; e, se praticado por uma comunidade de
indivíduos, pode servir de sustentáculo para determinados regimes políticos. Sucintamente, é
somente com Spinoza que a causalidade final é frontalmente recusada e denunciada, ao passo
que discussão adquire seus contornos propriamente teológico-políticos.

O asilo da ignorância

O Apêndice ao primeiro livro da Ética de Spinoza é provavelmente um de seus textos


mais inflamados. Ele abre, ao lado do Prefácio do Tratado Teológico-Político, uma brecha
para a denúncia e a polêmica, ao abordar, do ponto de vista de seu conteúdo, os preconceitos

25
Ver epígrafe.
26
Leibniz também se posiciona abertamente contra a tese cartesiana da livre criação das verdades eternas, pois,
segundo ele, destrói-se com ela “todo o amor de Deus e toda a sua glória” (Discurso de metafísica, art. II;
LEIBNIZ, G.W. 2004, P. 4).
27
Discurso de metafísica, art. II.
28
Ver a análise que fizemos de Schmitt leitor de Descartes na Introdução. Sobre o tema da criação das verdades
eternas em Leibniz e Spinoza, ver o livro de DEVILLAIRS, L. Descartes, Leibniz. Les vérités éternelles. Paris:
PUF, 1998.
29
E III, P. IX, esc.
30
« derniers novateurs », cf. Discurso de metafísica, art. II; LEIBNIZ, G.W. 1995, P. 36; LEIBNIZ, G.W. 2004,
P. 4.
31
Segundo Leibniz, o spinozismo é « un cartésianisme outré », quer dizer, um cartesianismo exagerado ou
indignado. Ver Teodiceia, art. 393; LEIBNIZ, G.W. 1969, P. 348.
32
Bayle afirma sobre Spinoza no verbete homônimo de seu Dicionário: « Il est aussi orthodoxe sur la nature de
Dieu que M. Descartes même, mais il faut savoir qu’il ne parlait point ainsi selon sa persuasion. On n’a pas tort
de penser que l’abus, qu’il fit de quelques maximes de ce philosophe, le conduisit au précipice ». Cf. BAYLE, P.
Écrits sur Spinoza. Paris : Berg International Éditeurs, 1983, P.23.
77

imaginativos e o mecanismo supersticioso que engendram.33 Já foi suficientemente


sublinhado o caráter singular dos escólios e apêndices no interior da ordem geométrica:
Deleuze sugere a existência de algo como uma “ética subterrânea dos escólios”34; e Pierre
Macherey, em seu comentário ao primeiro livro, chama a atenção para a linguagem utilizada
sobretudo no Apêndice35. Macherey destaca o emprego da fórmula “que tudo foi
predeterminado por Deus” (omnia a Deo fuerunt praedeterminata)36, expressão enganadora
caso se considere o que foi demonstrado nas proposições anteriores, a saber, que a produção
divina não se refere a um momento do tempo, um suposto passado longínquo no qual um ato
criador único deu início à cadeia de determinações, mas, ao contrário, se efetua eternamente
no presente, como um infinito em ato. Macherey aposta, assim, que Spinoza aplica
intencionalmente uma nova linguagem uma vez que se trata justamente de se dirigir àqueles
que não acompanharam a cadeia de verdades tal como exposta pela via racional. Spinoza
estaria se adaptando ao modo de expressão da imaginação, sem que isso signifique abrir mão
das teses anteriormente expostas. É bem verdade que o tema do ad captum é caro a Spinoza:
seja enquanto regra de vida sugerida no TIE37, seja ao tratar dos mecanismos de manifestação
pública da religião e recurso à obediência38, seja, por fim, enquanto materializado nas
estratégias pedagógicas e expositivas de suas obras. O que gostaria de reter das sugestões de
Deleuze e Macherey é uma atenção dirigida à forma do texto, na medida mesma em que estes
detalhes não escapam à formulação de seu conteúdo. Se levada às últimas consequências,
acredito que esta postura recuse a tendência – tão a posteriori quanto qualquer esforço
interpretativo, mas que por vezes se arroga o direito e a soberania do a priori – a tomar o
texto da Ética como uma regularidade previamente dada, quando, ao nos confrontarmos com

33
Foke Akkerman, insistindo no caráter retórico do TTP, identifica alguns prefácios polêmicos no interior de
alguns de seus capítulos. São polêmicos pois nomeiam um adversário e seu modo de proceder, o que ocorre
especialmente ao início dos capítulos III, XII, XIII e XIV. Ver AKKERMAN, F. “Le caractère rhétorique du
Traité théologico politique”. In: Cahiers de Fontenay, Fontenay-aux-Roses, no 36 a 38, mars 1985, p.381-390.
A interpretação de Akkerman será trabalhada em detalhes adiante.
34
Ver, para tanto, o texto “Espinosa e as três Éticas”. In: DELEUZE, G. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34,
2011.P. 177-193.
35
MACHEREY, P. 1998, P.208.
36
ESPINOSA, B. 2015a, P. 108-109; E I, Ap.
37
A primeira regra da espécie de moral provisória enunciada por Spinoza no §17 do TIE prescreve: “Conforme
a compreensão do vulgo falar e fazer tudo aquilo que nada ofereça de impedimento para que atinjamos nosso
escopo” (Ad captum vulgi loqui et illa omnia operari, quae nihil impedimenti adferunt, quo minus nostrum
scopum attingamus), cf. ESPINOSA, B. 2015c, P.35.
38
Este tema será desenvolvido no Capítulo 5 deste estudo.
78

ele, obtemos, na contramão disso, uma pluralidade de formas de argumentar que podem nos
permitir uma apreciação não-plana do texto.

Por isso é necessário evidenciar quais são os esforços formais empregados por
Spinoza ao longo do Apêndice. Enquanto na cadeia demonstrativa tratava-se de conquistar, o
mais rapidamente possível, a ideia verdadeira dada39, ou seja, a ideia de Deus, no Apêndice a
via é diametralmente oposta: para conhecer o itinerário preconceituoso, é preciso percorrer a
cadeia das ideias inadequadas, que, tal como afirma EII, P. XXXVI, se seguem umas às
outras com a mesma necessidade que as adequadas. As ideias inadequadas são reais40; e,
como tais, causam efeitos41, que mostrar-se-ão nefastos: por isso deve-se não os negligenciar,
mas compreendê-los e emendá-los42. Ao contrário, portanto, de uma postura que tomaria as
ideias inadequadas como meras falsificações da realidade, o ponto de partida é a assunção de
sua existência e potência. A via que apostará, de início, é a genealógica, que nomeia o
preconceito fundamental a partir do qual os demais se erigem e descreve sua origem
histórica. Este preconceito nada mais é do que o finalismo, ou seja, a suposição de que os
homens, as coisas naturais e Deus agem em vista de um fim. São duas as constatações
existenciais que explicam seu apelo: a primeira é a de que os homens nascem ignorantes das
causas das coisas; e a segunda é a de que se orientam sempre em vista do que lhes é útil, do
qual são conscientes. Estas duas condições, quando combinadas, geram a seguinte situação:
os homens consideram-se livres, pois conscientes de seus desejos e apetites; esta liberdade se
justifica, ainda, por ignorarem as causas de suas próprias volições e se isolarem da cadeia
causal, como se a ela não pertencessem, quer dizer, como se suas volições lhes fossem
exteriores. Como agem buscando sempre a utilidade, orientam suas ações em vista de um
fim, o que os motiva apenas a buscar as causas finais das coisas. Procuram, então, ouvir dos
outros as causas finais que os motivam – e, aqui, é interessante como a relação entre acústica
e autoridade, tão cara ao mecanismo da revelação, já aparece em seus rudimentos.43 Já que
nem sempre podem ouvir as explicações dos demais, terminam eles mesmos por projetar suas

39
TIE, §49.
40
EII, P. XXXIII.
41
EI, P. XXXVI.
42
Conforme afirma a última sentença do Apêndice: “São estes os preconceitos que aqui me encarreguei de
destacar. Se ainda restam alguns da mesma farinha, cada um poderá emendá-los com um pouco de meditação
(mediocri meditatione emendari)”, cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 121; EI, Ap.
43
Há uma importante relação entre acústica e autoridade, sobretudo no que se refere ao campo religioso. Esta
questão será trabalhada em detalhes no capítulo 4, cujo tema central é a anomalia teocrática.
79

causas finais para compreender as ações dos outros e o comportamento das coisas naturais.
Constatam, fora de si, a existência de meios para obter seus fins, de modo que concluem que
tudo foi ordenado, na natureza, com o objetivo de lhes prover. A lógica de meios e fins
começa, então, seu circuito infernal de universalização: se estes meios, encontrados dispostos
de modo tão harmonioso e útil na natureza, não foram por eles forjados, pensam existir um
criador ou criadores44, dotado da mesma liberdade que possuem, que os dispôs para sua
própria e única fruição. Eis, aqui, a base do antropocentrismo: a projeção de uma
característica que julgam falsamente lhes pertencer nos objetos naturais e num possível
criador dos mesmos. Isto justificaria, também, a atitude de louvar este ou estes criadores:
pois, já que criaram a natureza em função do homem, este deve prestar-lhe culto. O finalismo
transcende a categoria de um simples preconceito para se converter em superstição: pois
funda uma ética, quer dizer, um modo de vida e de se relacionar com a divindade.

Esta primeira aproximação à questão do finalismo deve ser entendida como esforço
genealógico na medida em que se pergunta não tanto sobre o que é o finalismo, ou seja, sobre
sua natureza ou seu ser, mas, para recuperar a definição nietzscheana, “sob que condições o
homem inventou para si”45 o culto das causas finais. Para Spinoza, a projeção de causas finais
na natureza é um exercício quase que espontâneo de invenção humana, um esforço
imaginativo particularmente conveniente – muito embora, é preciso sempre sublinhar, seu
caráter fictício não suprima sua realidade. A comparação com a genealogia da moral
nietzschiana é tanto mais iluminadora quando passamos para o segundo momento
genealógico do Apêndice: aquele que trata da formação dos juízos de valor, quer dizer, dos
operadores morais. É por considerarem que a natureza se ordena conforme o que lhes é útil e
nocivo que forjaram, então, as noções de “bem, mal, ordem, confusão, quente, frio, beleza e
feiúra”46, noções que nada dizem sobre as coisas nelas mesmas, mas sobre o encontro dos
corpos humanos com elas; assim como as noções de “louvor, vitupério, pecado e mérito”47,
derivadas da crença irrestrita em sua liberdade e posterior necessidade de responsabilização.
A consequência última desta postura é o ceticismo: a relativização de todas as noções

44
Monoteísmo e politeísmo têm um pressuposto em comum, a saber, o fato de tomarem Deus como livre
criador. Por isso a denúncia se aplica a ambos.
45
NIETZSCHE, F. 2009, P. 9. Pode ser útil consultar também a interpretação foucaultiana da genealogia de
Nietzsche, presente, por exemplo, no artigo de 1971 intitulado “Nietzsche, a Genealogia, a História”. In :
FOUCAULT, M. 2000, P. 260-281.
46
ESPINOSA, B. 2015a, P. 117; EI, AP.
47
Ibid.
80

qualitativas, uma vez que, para cada corpo, haverá uma resultante, portanto uma noção de
bem, mal, ordem e confusão etc. diversa.

Os dois momentos genealógicos do Apêndice são divididos por um abismo, como


uma fenda textual: o momento metafísico, em que Spinoza retorna a um formato de
argumentação mais próximo ao da ordem geométrica. Apenas próximo, uma vez que se trata
não de deduzir o finalismo a partir de suas causas, mas de seus efeitos. O finalismo, primeiro,
opera uma inversão entre causa e efeito; e, segundo, suprime a perfeição divina. A tentativa
de compreender a natureza supondo as causas finais aceita a causa mais distante como mais
perfeita que a causa imediata, submetendo o meio ao fim. Isto é absurdo considerando a
produção divina, na qual o mais perfeito é aquilo que se segue mais imediatamente de sua
essência (conforme o atesta a doutrina dos modos finitos exposta em EI, Ps. 21, 22 e 23), e
não aquilo que necessita de causas intermediárias para se produzir. O finalismo, ainda,
suprime a perfeição de Deus, pois se uma coisa age para adquirir outra, significa que algo lhe
falta, portanto, que é imperfeita.48 É absurdo supor que Deus deseja algo, pois o desejo é uma
manifestação de imperfeição. Este mesmo expediente argumentativo ressurgirá na crítica aos
milagres: ao invés de atestarem a potência divina, trabalham, na verdade, para evidenciar sua
imperfeição.

No interior deste momento que denominamos metafísico, por oposição ao


genealógico, Spinoza aposta, como forma de argumentação, no diálogo49. Em algumas breves
linhas, mimetiza o que seria uma conversa com um interlocutor finalista. O exemplo é
simples: uma pedra que cai do telhado sobre a cabeça de alguém e o mata. Diante deste
evento, dirá o finalista: a vontade de Deus explica este infortúnio, uma vez que, se assim não
o fosse, como dar conta da infeliz concorrência de tantas circunstâncias (a pedra cair
justamente no momento em que havia alguém próximo?)? O antifinalista retruca: pode-se
explicar também pelo movimento do vento e o caminho escolhido pelo homem. Mas o
finalista seguirá insistindo na impossibilidade do acaso: por que o vento, naquele momento?;
por que o homem, ali? Num último recurso, ainda que o antifinalista procure recorrer a

48
A mesma crítica se aplica aos “teólogos e metafísicos” (ESPINOSA, B. 2015a, P. 115; EI, Ap.) que distinguem
entre os fins de indigência e assimilação, pois, embora sustentem que Deus cria em vista de si, ainda é o caso
que, antes da criação, nada havia à disposição de Deus, de modo que teve de criar as coisas porque lhe faltavam.
49
Um outro momento dialógico do spinozismo ocorre no interior do Breve Tratado, com a diferença de que, lá,
os personagens são explicitados e suas contribuições surgem em discurso direto. Ver ESPINOSA, B. 2014a, P.
69. Os dois diálogos surgem como complementos ao Capítulo II da Primeira Parte da obra.
81

causas alternativas, por exemplo, o movimento do vento se explica pelo mar agitado da
véspera; o movimento do homem se explica porque foi convidado por um amigo; o finalista
não desistirá e se perguntará a razão do movimento do mar e a razão do movimento do
homem. O exercício regressivo na busca de causas só poderá cessar caso se refugie na
vontade divina, denominada, neste momento, por Spinoza, de asilo da ignorância. A
ignorância das causas mantém a admiração desmedida, ou seja, o estupor, e conduz ao
modo-de-vida supersticioso. A compreensão da necessidade dos eventos, por meio da
dedução de suas causas naturais, ao contrário, suprime a admiração e consequentemente a
necessidade de impor uma autoridade.

A argumentação de Spinoza nos permite identificar o que há de perigoso no cultivo


das explicações finalistas: seu apelo à exterioridade. Ao invés de buscar as causas dos
eventos no interior da ordem natural, os homens postulam um princípio que lhes escapa,
nomeadamente a vontade divina. Este movimento só pode acontecer porque, em primeiro
lugar, é a eles próprios que se consideram como isolados da natureza; para, em seguida,
exagerar estas mesmas características à divindade. O estopim do complexo supersticioso é
um preconceito que parece inofensivo: a liberdade da vontade, mas que, se cultivada,
engendra todo um modo de vida supersticioso, caracterizado pelo cultivo à ignorância. Visto
deste modo, pode parecer que Descartes e Spinoza estão, relativamente ao tema da
causalidade final, de comum acordo.50 Não se pode esquecer, no entanto, que Descartes
mantém a existência das causas finais, ainda que as exclua das explicações dos fenômenos
físicos. Muito embora sua postura seja o silêncio quanto aos propósitos divinos, em lugar de
uma multiplicação das causas explicativas que levaria, em última instância, ao delírio, a tese
da impenetrabilidade dos desígnios de Deus é perigosa e suficientemente próxima daquilo
que Spinoza define como asilo da ignorância. E mais: para Descartes, o homem é dotado de
liberdade – entendida tradicionalmente como possibilidade de escolha entre opostos51 –, e é

50
Martial Gueroult expõe com clareza os limites da comparação entre as posições de Descartes e Spinoza
quanto ao tema. Ver GUEROULT, M. 1969, P. 398-400.
51
“Pois [a vontade] consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou
negar, perseguir ou fugir) ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o
entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos
obrigue a tanto.” (cf. DESCARTES, R. 1973, P. 126; AT IX-1,46). Para um tratamento mais demorado da
questão da liberdade no pensamento de Descartes, que considera as variações de formulação dos textos latino e
francês tanto quanto possíveis modificações conteudísticas, ver o artigo de BEYSSADE, M. “A doutrina da
liberdade de Descartes: Diferenças entre os textos francês e latino da Quarta Meditação”. In : Analytica - Revista
de Filosofia, 13 (2), 2013, P. 225-242.
82

exatamente por uma comparação negativa que, na Quarta Meditação, Descartes conclui a
liberdade divina. O Deus cartesiano ainda é criador indiferente e livre; e, neste sentido, basta
um mínimo de ideias inadequadas para disparar o complexo supersticioso, já que as ideias
inadequadas seguem umas das outras de forma necessária. Assim, embora nos pareça
exagerada a conclusão de Gueroult, para quem o Apêndice é uma refutação direta do
cartesianismo52, é correto afirmar que os dois autores localizam-se em direções diversas
quanto ao tema.

Notamos, ao início de nossa análise, a importância de evidenciar os aspectos formais


da argumentação do Apêndice. Como conectar, agora, a crítica ao finalismo a estas opções
estilísticas? Ora, a genealogia, as provas pelos efeitos e o diálogo têm ao menos uma
característica em comum: apelam para condições existenciais. Pode ser que a cadeia dedutiva
não torne suficientemente evidentes os perigos éticos, teológicos e políticos dos preconceitos
imaginativos. A função retórica destes gêneros é, portanto, tratar de um tema prático
adaptando-se às formas práticas de exposição, proporcionando um encontro entre a forma e o
conteúdo do texto. Há um outro momento importante da obra de Spinoza em que o tema dos
preconceitos imaginativos é tomado frontalmente: o Prefácio do TTP. Não será nenhuma
surpresa também lá encontrar formas de argumentar próximas daquelas ensaiadas no
Apêndice, ou seja, que propõem caminhos alternativos à dedução racional lá onde ela se
mostra menos eficaz: ao tratar não apenas de ética, mas de política e de religião.

Uma emendatio53 da religião

Não é incomum constatar, seguindo aquilo que Spinoza registra sobre si mesmo, o
tratamento desapaixonado que confere à afetividade humana: seja em seu aspecto ético, seja
quanto às suas consequências políticas. Lembramos com facilidade de passagens como a do
Prefácio ao Terceiro Livro da Ética, que declara abordar as ações e apetites humanos com o
mesmo método empregado nas seções anteriores acerca de Deus e da Mente, ou seja, “como

52
GUEROULT, M. 1969, P. 400.
Apesar de pressupô-lo, esta seção não se dedicará a um tratamento detalhado da noção de emendatio no
53

pensamento de Spinoza. Para uma discussão mais competente da questão, particularmente do modo como é
desenvolvida ao longo do TIE, recomenda-se o trabalho de Cristiano Novaes de Rezende: Intellectus Fabrica:
um ensaio sobre a teoria da definição no Tractatus de Intellectus Emendatione de Espinosa. 2009. Tese
(Doutorado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009. doi:10.11606/T.8.2009.tde-05022010-114514. Acesso em: 2021-02-09.
83

se fosse questão de linhas, planos ou corpos”54. No mesmo tom da análise que compete às
coisas matemáticas, os parágrafos iniciais do Tratado Político prometem não rir, deplorar,
tampouco maldizer as ações humanas55, mas tão-somente entendê-las. Evidência de um
materialismo nascente, que se traduz, na política, na criação de uma “ciência do Estado” para
alguns56; signo de uma atitude epistemológica clássica, para outros57.

Separar aquilo que Spinoza diz sobre si mesmo daquilo que opera discursivamente
pode nos encaminhar a outra apreciação do texto, mais interessada em detectar suas fissuras
do que em formular sua síntese superior. Fokke Akkerman outrora sublinhou, num artigo já
clássico58, os procedimentos retóricos59 empregados ao longo do TTP, que se encontram
sobretudo ao início de alguns capítulos (III, XII, XIII, XIV) e que obtêm expressão máxima
no Prefácio. Um dos aspectos retóricos por ele detectados, entendidos, aqui, como estratégias
discursivas para obter a persuasão do leitor, sem qualquer sentido pejorativo, é a polêmica.
Neste aspecto, o início do Capítulo XII é exemplar: Spinoza descreve, de modo veemente, o
posicionamento de seus adversários (os teólogos) para então demonstrar sua falsidade.
Ataque e defesa compõem, em uníssono, uma estratégia literária de convencimento. Além
disso, o capítulo XVI oferece, para além da cadeia de exposição racional, imagens,
comparações e exemplos históricos que contribuem para o sabor do texto. Esta profusão de
indícios textuais motiva Akkerman a aventar a hipótese de leitura segundo a qual são as
disciplinas próprias ao TTP – a teologia e a política – que exigem uma metodologia
diversificada, quer dizer, que não podem ser reduzidas à cadeia racional e demonstrativa da
Ética. O TTP é classificado como um complemento necessário da Ética, que empreende de
modo mais eficaz o propósito de intervenção na situação política da Holanda do século XVII.
Tal leitura carrega em si dois pressupostos metodológicos: em primeiro lugar, considera a
Ética como obra solar do spinozismo, a partir da qual todos os outros textos emanam

54
ESPINOSA, B. 2015a, P. 235; EIII, Pref.
55
TP, Cap. 1, [4].
56
Cf. BALIBAR, E. Spinoza et la politique. « Cap. 3: Le « Traité Politique » : une science de l’État ». Paris :
PUF, 2015. P. 63-90.
57
Notadamente Michel Foucault, recuperando um fragmento de Nietzsche da Gaia Ciência (parágrafo 333). Ver
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2013. P. 29.
58
AKKERMAN, F. 1985, p.381-390.
59
Para um estudo mais amplo da latinidade de Spinoza, verificar a seguinte bibliografia: PROIETTI, O.
“Adulescens luxu perditus Classici Latini Nell’Opera di Spinoza”. In : Rivista di Filosofia Neo-Scolastica 77, n.
2 (aprile-giugno 1985), p. 210-257; KAJANTO, L. “Aspects of Spinoza’s Latinity”. In : Arctos Acta Philologica
Fennica 13, p. 49-83, 1979 e PUGLIESE, N. “The Reception of Classical Latin Literature in Early Modern
Philosophy: the case of Ovid and Spinoza”. In : Archai, n. 25, Brasília, 2019, e02502.
84

secundariamente; em segundo, julga que a Ética em si é um tratado estanque, ignorando a


pluralidade de formas de argumentar que ali se encontram, e que se consumam ao menos a
partir de nossa análise do Apêndice na seção anterior deste capítulo. Ainda assim, a proposta
de Akkerman é interessante por identificar os esforços formais com os conteudísticos.
Podemos tomar, de suas elaborações, apenas aquela que inclui o TTP no registro retórico: ela
será útil para questionarmos, igualmente, certa ideia do spinozismo como filosofia
desapaixonada; e, além disso, para tomarmos o texto do TTP em seu caráter propriamente
acidentado.

Ora, é exatamente este tom polêmico-persuasivo, inscrito sobretudo na herança


spinozista em relação aos autores latinos, que nos faz questionar a ideia de um estilo árido e
desinteressado. No Prefácio, talvez Spinoza não ria das ações e afetos humanos, mas
certamente os deplora e os maldiz. É no registro apaixonado que se inserem declarações
como a de que, submergidos na superstição, os homens “inventam mil e uma coisa e
interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela ensandecesse com
eles”60; tanto quanto, ao descrever a crença do vulgo na aversão de Deus pelos sábios e na
possibilidade de predição de seus decretos em animais e a partir das declarações de
indivíduos loucos, os deplora: “a que ponto o medo ensandece os homens!”61. E não se deve
crer que passagens como estas se encontrem apenas no TTP, texto com relação ao qual,
devido ao empenho da literatura secundária, já estamos alertas para tal compromisso retórico,
mas também na Ética: segundo Spinoza, o preconceito finalista afirma não a potência do
intelecto humano, mas sim que “a natureza e os Deuses, ao igual que os homens, deliram”62.
Como que sem paciência, Spinoza acrescenta: “Vê, peço, a que ponto chegaram as coisas!”63.
Um trabalho minucioso e algo exaustivo poderia ser dedicado à localização das diversas
passagens em que Spinoza se agita, em que trai seu próprio método, questionando o ideal de
uma atitude impassível quando se trata de descrever os vícios humanos. Não se trata, é claro,
de retirar destes indícios textuais conclusões psicológicas sobre a pessoa de Spinoza, como
um ente anterior à obra: é preciso reenviar estas constatações sempre ao texto – no nosso

60
ESPINOSA, B. 2019, P. 124 ; G III, 5.
61
Ibid. A tradução francesa de Lagrée e Moreau para o trecho é menos enérgica que a de Diogo Pires Aurélio,
sobretudo por não acrescentarem, como ele, um ponto de exclamação à frase de Spinoza. Em todo caso, o trecho
segue deplorando o comportamento delirante do vulgo, que é o que propriamente nos interessa aqui.
62
ESPINOSA, B. 2015a, P. 113; EI, Ap.
63
Ibid.
85

caso, uma obra spinozista não tão regular – ; e a um autor através dele construído. As
informações biográficas serão legitimadas no processo de construção deste personagem desde
que submetidas à horizontalidade do registro discursivo.64

Estas pequenas deslealdades ao próprio método surgem especialmente quando o tema


em questão são os preconceitos e superstições humanas: um tópico particularmente delicado,
ao que parece, para o Spinoza que se deduz dos textos ora considerados, e pode-se
conjecturar quanto às razões históricas para tanto65. Do Apêndice do Livro I ao Prefácio do
TTP, uma mudança, no entanto: enquanto o termo superstição surge, no primeiro, apenas
uma única vez66, para significar algo como uma extrapolação da atitude preconceituosa, sua
transformação em modo-de-vida, a superstição é o tema primário do Prefácio, como
vocabulário técnico e como conceito67. A superstição é o tópos de abertura do Prefácio, neste
aspecto, abertura de uma abertura, constituindo seu tema por excelência, tal como nos indica
sua primeira frase: “Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro,
ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas de alguma
superstição”68. O tratamento da superstição surge no interior do momento designado por
Akkerman de exordium: seus seis primeiros parágrafos são dedicados a desenvolver uma
teoria da superstição. Os meios para fazê-lo envolvem as constatações experienciais
universais, mescladas a conceitos spinozistas empregados sem explicações detalhadas, como
se partilhassem da linguagem corrente, além de referências implícitas e explícitas a autores
latinos tais como Terêncio, Tácito, Cícero, Lucrécio e Quinto Cúrcio 69.

A constatação mais básica, o dado bruto a partir do qual se explica a origem da


superstição, é o fato de os homens estarem submetidos ao poder das causas exteriores: todos

64
Ou seja, desde que destituídas do pano-de-fundo realista, que separa fatos e textos, conforme a metodologia
deste trabalho explicitada na Introdução.
65
Penso sobretudo no caráter combativo do TTP às instâncias teológicas de sua época. Para uma análise
completa e bem informada destas querelas, ver o livro de Steven Nadler, A book Forged in Hell. Spinoza’s
Scandalous Treatise and the Birth of the Secular Age. Princenton and Oxford: Princeton University Press: 2011.
66
“E assim esse preconceito virou superstição [prejudicium in superstitionem versum], deitando profundas
raízes nas mentes, o que foi causa de que cada um se dedicasse com máximo esforço a entender e explicar as
causas finais de todas coisas.”, cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 113; EI, Ap.
67
G III, 5-6.
68
ESPINOSA, B. 2019, P. 123; G III, 5.
69
Tal como apresentado nas notas à tradução francesa do TTP, preparadas em conjunto por Jacqueline Lagrée e
Pierre-François Moreau. Ver SPINOZA, B. 2016, P. 697-701.
86

os homens lhe estão naturalmente sujeitos70, e até sabem que assim o é, embora seja mais
fácil identificar no outro do que ser consciente de si próprio71. Para recuperar uma formulação
da Ética: as causas externas nos afetam de uma diversidade de maneiras, de tal modo que
“flutuamos tal qual ondas do mar agitadas por ventos contrários, ignorantes de nosso
desenlace e do destino”72. A potência das causas exteriores surge aqui designada por fortuna,
uma expressão cara ao vocabulário estoico73, mas que receberá, ao longo do TTP, uma
reformulação – se quisermos, uma emendatio74. Nestes parágrafos iniciais de abertura da
obra, porém, ela surge tal como empregada classicamente, quer dizer, para significar os
eventos externos e os bens que lhe são advindos, tais como a saúde, as honras e as riquezas75.
Nem sempre a avaliação destas causas exteriores nos permite tomar, na vida, uma decisão
totalmente segura76; e, é claro, os bens incertos não deixam de exercer seu poder atrativo.

70
“Se esta é a causa da superstição, há que concluir, primeiro, que todos os homens lhe estão naturalmente
sujeitos (digam o que disserem os que julgam que ela deriva do fato de os mortais terem todos uma qualquer
ideia, mais ou menos confusa, da divindade) [...]”. Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 124; G III, 6.
71
“Julgo que toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convencido de que a maioria dos homens se
ignoram a si próprios”. Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 123; GIII, 5.
72
ESPINOSA, B. 2015a, P. 337; E III, P. LIX, esc.
73
O verbete “fortuna”, do Vocabulário Latino da Filosofia de Jean-Michel Fontanier, afirma: “Ao comentar a
fala do rei Evandro no Canto VIII da Eneida (334 Fortuna omnipotens et ineluctabile fatum, “a Fortuna
onipotente e um destino inelutável [me instalaram nestes lugares]”), o gramático Servius nota que o poeta se
exprimiu como os estóicos, “que atribuem o nascer e o morrer aos destinos, tudo o que está entre [os dois] à
fortuna; pois tudo na vida humana é incerto”. Mas depende do sábio, de sua virtus própria, tornar-se
independente dessa certeza exterior: ficar insensível a suas seduções e invulnerável a seus golpes”.
(FONTANIER, J.M. Vocabulário latino da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009. P. 70.). Sobre o
vocabulário estóico do TTP, ver LAGRÉE, J. « Le vocabulaire stoïcien du TTP ». In: LAGRÉE, J. Spinoza et le
débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2004. P. 82-95.
74
Notadamente no Capítulo III.
75
Outra influência possível para o tema da fortuna, em Spinoza, é Maquiavel. Spinoza certamente o leu e o tinha
em alta conta, como demonstra TP V, 7, em que o trata por “agudíssimo” (ESPINOSA, B. 2009b, P. 46). Sabe-se
que a reflexão sobre o papel favorável ou desfavorável da fortuna na política é central ao pensamento de
Maquiavel, que dedicou até mesmo um poema à sua volubilidade e inconstância, cf. ARANOVICH, P. F. Di
Fortuna e Dell´Occasione 1, di Niccolò Machiavelli. Cadernos De Ética E Filosofia Política, 1(18), 231-247,
2011. Recuperado de https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/55731.
76
Um problema correlato é detectado por Descartes na Terceira Parte do Discurso do Método. Nem sempre
dispomos do conhecimento necessário para tomar a melhor decisão, mas as ações da vida não suportam, às
vezes, quaisquer delongas – daí a necessidade de erigir uma moral par provision, quer dizer, um conjunto de
máximas práticas aplicáveis somente durante o tempo em que durar a pesquisa nas demais áreas de
conhecimento (Metafísica e Física, segundo a árvore do conhecimento proposta por Descartes na Carta-Prefácio
aos Princípios da Filosofia). Ocorre que Descartes jamais apresentou uma moral de caráter definitivo; e pode
ser que a própria estrutura da união da alma com o corpo – o fato de que a noção primitiva de união só poder ser
corretamente apreendida através da vida e das conversações comuns (cf. Carta a Elisabeth de 28 de Junho de
1643) – seja um impedimento estrutural à sua formulação. Sobre este assunto, ver nosso trabalho em torno do
tema da filosofia prática cartesiana tal como desenvolvida em sua correspondência com Elisabeth: RAMOS,
C.S. Conservar a vida e não temer a morte: filosofia prática na correspondência entre Descartes e Elisabeth.
Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em
https://ppglm.files.wordpress.com/2008/12/dissertac3a7c3a3o-carmel-ramos.pdf. Última visualização em
07/04/2020 às 11h30min.
87

Uma discussão próxima a esta, que se indaga sobre a escolha pelos bens certos ou duvidosos,
é apresentada, em tom confessional, ao longo dos treze primeiros parágrafos do TIE. No
Prefácio, sem o emprego da primeira pessoa, é com um olhar agudo, daquele que observa à
distância, e que deplora o comportamento humano, que o império da fortuna é descrito. Se a
fortuna é favorável, portanto, os homens “ostentam uma tal sabedoria que até se sentem
ofendidos se alguém lhes quiser dar um conselho”77; se, em contrapartida, é prejudicial e
adversa, buscam desesperadamente quaisquer fontes de conselhos. Quando associam o evento
presente a um bem ou a um mal que já vivenciaram, julgam que se trata de um presságio; e
daí concluem uma ação direta da divindade. Desconfiam da razão, então, e passam a crer
naquilo que há de mais impressionante e extravagante: os delírios da imaginação, tais como a
cólera divina, a possibilidade de predição do futuro nos corpos dos animais e a sabedoria dos
loucos e insensatos.

Dada a observação destas posturas, Spinoza passa, então, a desvendar a psicologia da


superstição. Eis mais um elemento ausente do Apêndice, e isto por uma razão de método: não
se podia deduzir, naquela altura, a causa dos preconceitos imaginativos a partir da mente
humana, pois seria preciso aguardar as conclusões das partes II e III do livro.78 Como se verá
em seguida, o TTP emprega um vocabulário que, para o leitor informado, é spinozista, sem,
porém, que uma definição exata dos termos seja avançada. É assim para o medo, paixão
classificada como “a causa que origina, conserva e alimenta a superstição”79. Spinoza parece
se apoiar no fato de que todos, em maior ou menor grau, já experienciaram o que comumente
se designa por medo; ou então que tenham tido acesso às definições spinozistas para este
afeto. Sua explicação é acrescida de um exemplo histórico, a saber, o de Alexandre. A fonte
na qual se baseia para reportar este evento é o historiador Quinto Cúrcio, cujas referências
são feitas de modo rigoroso80 – precisando o livro e o parágrafo – já no corpo do texto.
Segundo Spinoza reportando Quinto Cúrcio, Alexandre teria solicitado o auxílio de adivinhos
apenas quando “temeu pela primeira vez a sorte”81. Tendo vencido a batalha contra Dario,
logo abandonou os adivinhos, recobrando a confiança em si mesmo. Em seguida, mais uma

77
ESPINOSA, B. 2019, P. 123; G III, 5.
78
“A bem da verdade, não é este o lugar para deduzir isso da natureza da mente humana”, cf. ESPINOSA, B.
2015a, P. 111; E I, Apêndice.
79
ESPINOSA, B. 2019, P. 124; G III, 6.
80
Sobre o modo como Spinoza cita ao longo do TTP, ver LAGRÉE, J. « La pratique de la citation dans le TTP
». In: LAGRÉE, J. Spinoza et le débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2004. P. 95-110.
81
ESPINOSA, B. 2019, P. 124; G III, 6.
88

vez, quando foi abandonado pelos Bactrianos e se viu ferido, exigiu que fossem feitos
sacrifícios para descobrir a cadeia de acontecimentos. O exemplo de Alexandre é suficiente
para justificar que a superstição só se mantém quando há medo; que os objetos e as práticas
insólitas aos quais foi dado culto religioso, num determinado período histórico, também
retiram desta paixão sua origem, e que o poder dos adivinhos era tanto maior quanto maior
fosse a fragilização do Estado. Além disso, o fato de Alexandre flutuar, ao sabor das
circunstâncias, num vaivém incessante entre medo e autoconfiança, mostra que a superstição
se alimenta da novidade. Deixar-se governar pela variabilidade das causas exteriores tem
como consequência o fato de que o indivíduo se torna algo viciado em novas causas que
mantenham sua flutuação.82 Embora o caso histórico em questão faça referência ao
governante, também o povo é vítima da superstição. Recuperando mais uma vez um
ensinamento de Cúrcio, Spinoza sustenta que “não há nada mais eficaz que a superstição para
governar a multidão”83. A consequência é, de um extremo a outro, a consideração dos reis
como se fossem deuses; ou o ódio por eles como se fossem uma peste, ameaça maligna ao
gênero humano.

Uma consulta a algumas proposições da Parte III e IV da Ética pode nos munir de
definições e características mais técnicas em relação ao fenômeno supersticioso. Na
Definição dos afetos, o medo é classificado como “a tristeza inconstante originada da ideia de
uma coisa futura ou passada de cuja ocorrência até certo ponto duvidamos”84. A primeira
informação valiosa a seu respeito é o fato de nunca irromper sozinho, mas sempre
acompanhado de seu afeto complementar: a esperança85. Esta última é “a alegria inconstante
originada da ideia de uma coisa futura ou passada de cuja ocorrência até certo ponto
duvidamos”86. Medo e esperança são, portanto, variações de tristeza e alegria acompanhadas
de uma situação mental específica: a dúvida. Caso a dúvida quanto à ocorrência do evento,
passado ou futuro, seja suprimida, o medo transforma-se em desespero e a esperança em
segurança.87 Além disso, pode-se experimentar gozo ou remorso, quer dizer, alegria ou

82
“[...] em segundo lugar, que ela deve ser extremamente variável e inconstante, como todas as ilusões da mente
e os acessos de furor [...]”. ESPINOSA, B. 2019, P. 124; G III, 6.
83
ESPINOSA, B. 2019, P. 125; G III, 6.
84
ESPINOSA, B. 2015a, P. 347; EIII, Definição dos Afetos, XIII.
85
“Segue destas definições que não se dá Esperança sem Medo, nem Medo sem esperança”. EIII, Definição dos
Afetos, XIII, Explicação. Ver também EIII, P. L, esc.
86
ESPINOSA, B. 2015a, P. 347; EIII, Definição dos Afetos, XII.
87
EIII, P. XVIII, esc.2.
89

tristeza derivada da ideia de uma coisa passada que aconteceu contra toda Esperança88. Este
conjunto de três pares – medo/esperança, desespero/segurança, remorso/gozo – procede
daquilo que Jean-Marie Vaysse designa como a “projeção temporal da afetividade”89. É
principalmente o fator tempo que marcará a modulação destes afetos: e veja-se que, do ponto
de vista do afeto, não importa que a imagem resgate o passado ou se lance no futuro, desde
que seja presentificada à mente e, assim, que o indivíduo a experimente em relação à sua
situação atual90. Na teoria dos afetos, então, uma curiosa teoria do tempo se constrói, cuja
consequência última parece ser a redução do passado e do futuro ao presente mediante sua
contemplação imagética.

Não é apenas uma interessante teoria do tempo, porém, que se mescla à discussão
sobre a esperança e o medo: também há uma intrigante classificação dos estados mentais, em
especial da dúvida. A dependência necessária entre esperança e medo se explica pelo
movimento mental característico deste estado de suspensão. A dúvida não é uma ideia
estática, positiva em si mesma91, mas a oscilação entre duas afirmações simultâneas e
contrárias a respeito de um mesmo objeto, a situação derivada da composição relacional entre
ambas. “Simultânea”, aqui, entendido no sentido de que a mente comporta estas duas ideias, e
não quanto à simultaneidade temporal92. Na situação de flutuação do ânimo característica da
dúvida, a mente opera em ritmo de vaivém, exibindo ora uma ideia, ora outra. O mesmo
ocorre quando a mente experimenta dois afetos contrários: daí por que Spinoza se arrisque a
dizer que a flutuação de ânimo e a dúvida não diferem senão em graus (cabe reservar a
expressão flutuação de ânimo para o afeto e a dúvida para a imaginação, no entanto).93
Quando alguém é dominado pela esperança, duvida da ocorrência passada ou futura daquele
evento e, logo, imagina tanto algo que põe sua existência quanto algo que a exclui. Imaginar

88
Ver, além de EIII, P. XVIII, esc.2, EIII, Definição dos Afetos, XVI e XVII.
89
VAYSSE, J.M. « Spinoza et le problème de la peur : metus et timor », Philonsorbonne [En ligne], 6 | 2012,
mis en ligne le 04 février 2013. URL : http://journals.openedition.org/philonsorbonne/410 ; DOI :
10.4000/philonsorbonne.410. Consultado em 08/04/2020 às 15h03min. O artigo de Vaysse também é
interessante por acentuar a distinção spinozista entre medo (metus) e temor (timus), este último que é “o Desejo
de evitar, por meio de um mal menor, um mal maior de que temos medo”, cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 361;
EIII, Definição dos Afetos, XXXIX. O temor é, portanto, uma espécie de medo conjugado a uma valoração
material – do ponto de vista do modo como o corpo do indivíduo é afetado – sobre o bem e o mal.
90
EIII, P. XVIII.
91
EII, P. XXXIII.
92
Destaca-se, mais uma vez, a relevância do fator temporal para a caracterização spinozista dos estados mentais.
93
Sobre a comparação entre a flutuação de ânimo e a dúvida, ver EIII, P.XVII, esc.
90

algo que exclui a existência daquilo que somos afetados de alegria é recair em tristeza94 – o
que rapidamente fará o indivíduo experimentar, em sequência, o medo. O mesmo vale para
quem experimenta, inicialmente, o medo: a dúvida faz com que se contemplem imagens que
excluem a existência da coisa odiada, o que afetará o indivíduo de alegria95 – fazendo-o
recobrar a esperança96.

A partir daí, compreende-se também o mecanismo psicológico que fundamenta a


crença em presságios97. Quer dizer: aquela causa exterior que, de maneira não-necessária,
originou uma esperança ou um medo num indivíduo – a vinda de um cometa, tomada
acidentalmente como a fonte de determinadas catástrofes naturais, afetando o indivíduo de
medo, por exemplo98 – será tomada como signo da ocorrência de um bem ou de um mau
futuro. Soma-se a isto o fato de que a mente se esforça para contemplar o que lhe causa
alegria e para excluir aquilo que lhe causa tristeza, de modo que temos a tendência a crer
mais naquilo que esperamos do que naquilo que tememos99. A crença nos presságios
reintroduz a lógica de meios e fins, outrora identificada por Spinoza como proveniente da
ilusão finalista (a fonte primária de todo preconceito e superstição). O vínculo entre ilusão
finalista e superstição se estabelece da seguinte forma: considera-se a disposição das coisas
naturais como meios, impostos pela divindade, para obtenção fins desejados; da mesma
maneira, toma-se uma causa acidental qualquer ou bem como meio ou bem como obstáculo à
realização daquilo que se espera – o que nos fará, respectivamente, tentar empregá-los ou
afastá-los. Eis, aqui, os componentes psicológicos oportunos para a criação das mais absurdas
superstições em relação às ações da divindade.

Para compreender, de um só golpe, o estado mental característico da dúvida, a


possibilidade por ele aberta para o surgimento do complexo esperança-medo-esperança100,
bem como o risco que engendra quanto à crença em presságios, podemos ler e especular a
partir do exemplo de Spinoza:

94
EIII, P.XIX.
95
EIII, P. XX.
96
Recupero a argumentação de Spinoza presente em EIII, Definição dos Afetos, XIII, Explicação.
97
EIII, P. L.
98
O exemplo é obviamente retirado de um tema caro ao século XVII, o qual foi extensamente discutido por
Pierre Bayle em seu Pensamentos diversos sobre o cometa (1683).
99
EIII, P. XXV.
100
A partir daqui, pelas razões já expostas, farei referência ao medo e à esperança sempre como o complexo
medo-esperança-medo.
91

Suponhamos pois um menino que pela primeira vez ontem pela manhã tenha visto
Pedro, ao meio-dia Paulo e ao entardecer Simeão, e que hoje de novo pela manhã
tenha visto Pedro. Pela Proposição 18 desta parte é patente que tão logo veja a luz
matutina, imaginará o sol percorrendo a mesma parte do céu que no dia anterior, ou
seja, um dia inteiro, e simultaneamente com o amanhecer imaginará Pedro, com o
meio-dia Paulo e com o entardecer Simeão, isto é, imaginará a existência de Paulo e
de Simeão com relação ao tempo futuro; e inversamente, se ao entardecer vir Simeão,
relacionará Paulo e Pedro ao tempo passado, a saber, imaginando-os simultaneamente
com o tempo passado; e isto com tanto mais constância quanto com mais frequência
os tenha visto nesta ordem. Porque, se acontece alguma vez de num outro entardecer
ver Jacó em lugar de Simeão, então no dia seguinte imaginará com o entardecer ora
Simeão, ora Jacó, mas não a ambos em simultâneo; pois supõe-se que viu no período
da tarde só um deles, não ambos em simultâneo. E assim sua imaginação flutuará e
com o futuro entardecer imaginará ora um, ora outro, isto é, não contemplará nenhum
certamente, mas ambos contingentemente como futuros. E esta flutuação da
imaginação será a mesma se for a imaginação das coisas que contemplamos da
mesma maneira com relação ao tempo passado ou ao presente, e consequentemente
imaginaremos como contingentes as coisas relacionadas tanto com o tempo presente
quanto com o passado ou o futuro. (ESPINOSA, B. 2015a, P. 207-209; EII, P. XLIV,
esc.).

Com a introdução do elemento Jacó, uma dúvida é instalada: quem virá ao


entardecer? Não podendo imaginar, ao mesmo tempo, a vinda de um e a vinda de outro, pois
apareceram em separado, a mente do menino flutuará afirmando cada uma das ideias por vez.
101
Isto é suficiente para descrever o comportamento da mente face à dúvida. Acrescentemos
mais alguns dados a este exemplo. Digamos que, na ocasião de sua vinda ao entardecer,
Simeão tenha presenteado o menino com uma galinha, o que o afetou de alegria. E que,
quando Jacó apareceu pela primeira vez, houve uma forte chuva com vento. Ora, este menino
experimentará, com efeito, a esperança de que Simeão venha, pois não só a vinda de Jacó fez
instalar-se uma dúvida, condição inicial da esperança, mas também Simeão foi para ele
motivo de alegria, uma exigência da mesma. De igual modo, este menino sentirá medo da
vinda de Jacó, já que trata-se de uma imagem que exclui a ocorrência do evento futuro do
qual é afetado de alegria, a saber, a vinda de Simeão e a galinha. Caso, neste dia, ao
entardecer, chova e vente, interpretará este acontecimento como um signo da vinda de Jacó:

101
O topos do vaivém mental encontra ecos na literatura filosófica do século XVII. Desta feita, pode-se pensar,
por exemplo, na quarta regra do método enunciado por Descartes, que promulga “fazer em toda parte
enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir” (DESCARTES, R.
1973, P. 46): enumerar e revisar são atitudes que envolvem um resgate das ideias já vistas, que devem ser mais
uma vez contempladas para fins de certificação, num movimento regressivo que envolve ao menos uma ida e
uma vinda. Ademais, para resolver a questão de a qual noção primitiva o texto das Paixões da Alma se refere –
se a de pensamento, extensão ou união – Jean-Marie Beyssade (BEYSSADE, J.M. « La classification
cartésienne des passions ». In: Études sur Descartes. Lonrai: Éditions du Seuil, 2001. P. 335.) conclui por uma
espécie de “movimento de vaivém” que atravessa constantemente o texto. É claro que, também aqui, as
discussões sobre a forma de exposição encontram problemas conteudísticos, notadamente a dificuldade de se
tratar, ao mesmo tempo e sem contradição, a distinção real entre alma e corpo e sua união (cf. Carta a Elisabeth
de 28 de junho de 1643).
92

tomará a chuva como causa contingente de sua aparição, portanto, como um bom presságio.
Qualquer outro elemento que tenha ocorrido quando da vinda de Jacó, aliás, poderá ser
associado a sua chegada, atuando como presságio da realização do evento futuro: pois, aqui,
mais se imagina – considera-se as causas exteriores como acidentes – do que se compreende
– toma-se as mesmas como necessárias102.

Poder-se-ia pensar, então, que, face à existência do complexo


esperança-medo-esperança, o indivíduo deveria se esforçar ao máximo para eliminar a
inconstância, ou seja, para eliminar a dúvida. Acontece, porém, que o erro já se deu: sua
mente foi impotente o suficiente para se deixar adentrar neste circuito infernal. Este “erro” se
explica porque mesmo a segurança e o desespero, estados em que a esperança e medo são
suprimidos porque suprimida a dúvida, ainda comportam tristeza, aberta ou secretamente.103
No medo, por razões óbvias, quer dizer, pelo fato de ser diretamente derivado da tristeza
acompanhada do estado de dúvida; na esperança, igualmente, uma vez que, como
explicamos, ela jamais surge sem medo. A segurança e o gozo, embora sejam alegrias,
supõem um estado de esperança inicial: a segurança supõe que houve alguma vez dúvida,
portanto, afetivamente, flutuação entre esperança e medo; o gozo por ser imediatamente
dependente de um estado de esperança contrariado pela supressão da dúvida104. Nada é
preciso adicionar sobre o desespero e o remorso: tristezas em superfície. Acrescente-se a isso
o fato de que a supressão da dúvida não necessariamente impõe a certeza. Pode ser que o
indivíduo cesse de duvidar simplesmente por ter suprimido a causa da flutuação, e não por ter
adquirido uma ideia verdadeira. Quer dizer, a certeza é uma propriedade intrínseca da ideia
verdadeira; a ausência de dúvida pode se manifestar na aderência a uma ideia falsa.105 Neste
sentido, a segurança e o desespero podem advir do estado de ausência de dúvida mais do que
da aquisição de conhecimento adequado. Assim sendo, a mera existência destes afetos indica
um indivíduo com debilidades cognitivas, uma mente impotente, portanto, que se deixa
dominar pela dúvida face às causas exteriores. É claro que um conhecimento exaustivo da

102
Toda a proposição XLIV da Parte II, incluindo o exemplo que transcrevemos, é dedicada a fundamentar esta
associação entre imaginação/contingência e razão/necessidade.
103
EIV, P. XLVI.
104
Cf. o que afirma Deleuze (apud. VAYSSE, J.M. 2013, P. 138): “[...] Deleuze qui dit que Spinoza « va si loin
que, jusque dans l’espoir, dans la sécurité, il sait retrouver cette graine de tristesse qui suffit à en faire des
sentiments d’esclaves » [...]”.
105
Ver EIII, Definição dos Afetos, XV, Explicação e EII, P. XLIX, esc.
93

“ocorrência das coisas singulares”106 é impossível, o que não significa deixar-se dominar pela
flutuação de ânimo. Daí por que a supressão de esperança, medo e derivados assume um
contorno ético relevante: é preciso se esforçar para conhecer as causas racionalmente, o que
terá como consequência não propriamente a supressão de uma dúvida já alimentada, mas o
fato de que ela não surgirá em primeira instância. Contra a superstição, que é um
posicionamento possível em relação aos eventos da fortuna, que conduz o indivíduo a ser
imaginativamente tomado de dúvida e afetivamente oscilar entre esperança e medo, deve-se,
então, buscar conhecer as razões dos eventos do ponto de vista da razão, quer dizer,
compreendendo sua necessidade. Mais uma vez, para retomar a conexão com o Apêndice da
Parte I, a crença na liberdade da vontade desponta como o preconceito fundamental: é por
considerar-se como um elemento exterior à natureza, não submetido à sua necessidade, livre,
portanto, que os eventos da fortuna exercerão seus efeitos mais funestos, desestabilizando
afetivamente o indivíduo imerso na ignorância das causas externas.

Face ao embate contra a superstição, seria sedutor investir o spinozismo de


motivações protoiluministas. Esta leitura foi proposta, por exemplo, por André Tosel107, que
interpreta o TTP como um “manifesto de uma filosofia da liberação”108. Apoiando-se
sobretudo na reforma intelectual que promulga o TIE, conjugada com algumas passagens
antissuperstição do Prefácio do TTP, para Tosel o spinozismo se sustenta de forma polêmica
contra um passado supersticioso, uma antiga servidão travestida de religião que Spinoza se
incumbe, agora, de erradicar. Herdeiro máximo do espírito da revolução científica, Spinoza
soube levar às últimas consequências os saberes adquiridos por Bacon, Hobbes, Galileu e
Descartes, retirando todas as suas implicações éticas e políticas. Estrutura-se, assim, uma
primeira grande oposição entre o Antigo e o Novo, entre as “trevas da Antiguidade pagã,
judaica e cristã, contra a luz do entendimento e da natureza”109. Contra as instituições, os
saberes tradicionais, as disputas escolásticas sem fim, o spinozismo vem trazer o regime de
acumulação progressiva do saber, que encaminharia a humanidade a uma espécie de
maioridade intelectual, garantindo o deslocamento de uma sociedade bárbara primitiva (que,
segundo Tosel, é a idade do preconceito teológico) a uma civilização esclarecida. Este

106
ESPINOSA, B. 2015a, P. 347; EIII, Definição dos Afetos, XV, Explicação.
107
A formulação mais bem acabada desta leitura encontra-se em Jonathan Israel. Ver Introdução.
108
TOSEL, A. Spinoza ou le crépuscule de la servitude. Essai sur le Traité Théologico-Politique. Paris:
Aubier-Montaigne, 1984. P. 7.
109
Tradução minha de TOSEL, A. 1984, P. 17.
94

modelo é, além disso, radicalmente democrático e laico: o acesso ao conhecimento é


permitido a todos aqueles que não se deixam tomar pelos preconceitos dos teólogos, e o
conhecimento tem caráter radicalmente secular, já que não submetido à autoridade da
Escritura. O TTP vem, então, fornecer um conhecimento não-religioso da Escritura,
emancipando o indivíduo por um processo de racionalização. Todas as oposições estanques
que esta leitura constrói – antigo versus novo, servidão versus liberdade, atraso versus
progresso, barbárie versus civilização, superstição versus conhecimento – podem ser
remetidas a uma só única, a saber, religião versus filosofia, localizando, evidentemente,
religião no campo amplo da superstição.

Não é difícil reconhecer os limites desta leitura, e o próprio Tosel soube fazê-lo. A
uma certa altura de sua análise, pergunta-se se é mesmo legítimo identificar superstição e
religião, e conclui que, já no Prefácio, há possibilidade de pensar em algo como uma religião
verdadeira, classificada por Spinoza de vera religio110. Sem maiores definições, Spinoza
apenas afirma que, para garantir a obediência do povo, tanto a vana quanto a vera religio
foram historicamente rodeadas de “culto e aparato”111 – aquilo que Giorgio Agamben procura
definir, em suas investigações sobre teologia-política112, como a glória. Segue-se daí que a
superstição, então, é mais uma religião deteriorada do que a tendência natural de todo
complexo religioso; e que se deve identificar não superstição e religião, mas superstição e
vana religio. Os supersticiosos são, antes, “adversários da religião”113, mais do que seus
propulsores. Nas palavras de Tosel, ela designa “as práticas eclesiásticas dominantes, a
apologia da credulidade, a perseguição aos dissidentes, o apelo permanente ao Estado para
conduzir a guerra religiosa contra os heréticos”114. Tosel conclui que Spinoza parece estar de
acordo que, mesmo no passado, houve algo como uma religião originária, não-institucional,
que pregava simplesmente a paz, a concórdia e o amor ao próximo. Isto notadamente impõe
um problema para a rígida separação que construiu outrora, a qual supunha, entre outras
coisas, o desprezo pelo passado: como ele pode ser, ao mesmo tempo, fonte de erro
(paganismo, antiga servidão) e algo a ser resgatado, reintroduzido nas práticas religiosas e

110
TOSEL, A. 1984, P. 24-25.
111
ESPINOSA, B. 2019, P. 125; GIII, 6.
112
Ver AGAMBEN, G. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo : homo sacer,
II, 2. São Paulo: Boitempo, 2011.
113
ESPINOSA, B. 2019, P.124; GIII, 5.
114
Tradução minha de TOSEL, A. 1984, P. 24.
95

políticas contemporâneas? Tal interrogação nos instrui mais sobre os limites da perspectiva
de Tosel do que acerca de um problema interno ao spinozismo. Por ter tão apressadamente
associado religião e superstição, de um lado, e filosofia e conhecimento, de outro,
escapou-lhe o nexo complexo que se estabelece, já desde o Prefácio do TTP, entre os dois
termos do problema. Neste aspecto, insistir na cultura latina de Spinoza pode ser já de grande
auxílio: como nos lembram oportunamente Lagrée e Moreau em suas notas, opor religião e
superstição (religio/superstitio) é um procedimento clássico, encontrado em Cícero115 e
Sêneca116; e a fórmula vana religio encontra-se, por exemplo, em Quinto Cúrcio117. É
oportuno lembrar, também, da carta a Oldenburg118 em que são elencadas as razões para a
escrita do TTP: entre as duas primeiras, a necessidade de eliminar os preconceitos dos
teólogos e combater as acusações de ateísmo. Por último, a Ética fornece uma surpreendente
definição de Religião: “tudo que desejamos e fazemos [agimos] do qual somos causa
enquanto temos a ideia de Deus, ou seja, enquanto conhecemos Deus, refiro à Religião”119. É
certo que a religião, àquela altura da história política da Europa, assumia contornos
supersticiosos, o que não significa que ela se esgotasse em superstição, e tampouco que a
solução é tão-somente dar-lhe cabo. Esta seria uma postura fácil e algo simplista. Na verdade,
todo o TTP se concentra em reformular a gramática bíblica – profecia, profetas, a função e o
ensinamento do Cristo, a lei divina, os milagres, a verdadeira interpretação da Escritura etc. –
para fins de combate, emendando a teologia e alcançando uma prática religiosa que permita a
salvação da maior parte dos indivíduos.

Diante do império da fortuna, da potência das causas exteriores, duas são as posturas
possíveis: ou bem a superstição ou bem a religião120. Trata-se de criar algo como uma
teologia da imanência, contra o culto supersticioso da exterioridade121. O TTP, portanto, está

115
De natura deorum, II, 71.
116
De clementia, II, 5.
117
Historiae Alexandri Magni, IV, 10.
118
Carta 30.
119
ESPINOSA, B. 2015a, P. 433; EIV, P.XXXVII, esc.1.
120
Estes modos de vida, como demonstra Tosel (TOSEL, A. 1984, P.28), não são exclusivos, do contrário seria
difícil imaginar um interlocutor possível para o TTP. Está claro, por um lado, que ele se dirige ao leitor-filósofo;
ao mesmo tempo, seria supérfluo escrever um livro para aqueles já inteiramente libertos da superstição. Este
leitor, portanto, conserva algum grau de superstição, mas seu traço distintivo é o fato de estar aberto ao
raciocínio filosófico. Apesar de tratar, igualmente, da possibilidade de salvação do vulgo, o TTP não lhe é
diretamente dirigido; e a salvação de todo o corpo da sociedade é sobretudo um problema para o sábio.
121
A frase carrega um tom propositalmente forte e, é certo, necessita de uma argumentação mais completa para
ser sustentada. Demonstrá-la é um dos objetivos deste estudo como um todo, o qual só poderá ser atingido com
as análises dos demais capítulos.
96

longe de ser um livro irreligioso – desde que circunscrevamos religião à definição spinozista,
naturalmente.

Entre o espinho e o cometa

Em 24 de março de 1656, na sexta-feira da terceira semana da Quaresma, um milagre


se produziu na Abadia de Port-Royal de Paris. Marguerite Périer, filha de Gilberte Pascal e
sobrinha de Blaise Pascal, foi curada de uma fístula lacrimal após ter contato direto com uma
relíquia santa. O objeto em questão, oferecido ao monastério da parte de M. de la Poterie, era
um relicário no qual alegadamente estava contido um espinho da Santa Coroa pertencente a
Jesus Cristo. Marguerite, então com apenas dez anos, sofria deste mal ao menos desde 1652;
e passara os anos que a separam da cura milagrosa transitando pelas mãos de médicos que ora
prescreviam uma operação pelo fogo, ora procuravam livrá-la de seu estado por métodos
mais brandos. No ano de 1655, já vivendo no monastério em Paris, sob os cuidados de sua tia
Jacqueline – que ali professava uma vida religiosa –, Marguerite seguia o tratamento pelas
águas sem sucesso, testemunhando o agravamento de sua condição. Quando, em 1656,
ocorreu o milagre, a agitação tomou não apenas sua família, já desgastada pelos anos de
busca incessante pela resolução do caso, mas também os demais personagens envolvidos no
contexto teológico e político no qual irrompeu. Sabe-se que as polêmicas em torno do
jansenismo têm lugar público na França ao menos desde 1646, ano em que Isaac Habert
apresenta uma série de oito proposições consideradas heréticas retiradas do Augustinus
(1640) de Jansenius; e que, em 1650, cinco das oito teses são epistolarmente enviadas ao
papa Inocêncio X, que termina por condená-las na bula de 1653. O milagre advém, então, em
momento oportuno para acirrar ainda mais as disputas e perseguições entre jansenistas e
jesuítas: em termos das consequências do evento, os primeiros não deixarão de ver nele um
signo do apoio sobrenatural à doutrina; enquanto que os segundos, sem questionar a
existência do fato, criticam tanto sua exploração política quanto o significado do milagre,
fenômeno para o qual a explicação teológica mais imediata é a de que surge para converter a
idolatria, mais do que para atestar a legitimidade de uma doutrina. Embora não tenha
desempenhado papel central no processo de verificação jurídica do milagre, o qual ficara a
encargo de Florin Périer, pai de Marguerite, e tampouco tenha participado diretamente da
elaboração de documentos contra os panfletos difamatórios que tão-logo surgiram, o episódio
97

sem dúvida impressionou Blaise Pascal; e pode-se especular a respeito do impacto que teve
no projeto de elaboração de sua Apologia da religião cristã.122

A França do século XVII, no entanto, vivenciou outro evento extraordinário de


implicações relevantes para as reflexões teológicas de então: a vinda do grande cometa de
1680. É a Pierre Bayle que se deve a habilidade de compor um paciente tratado sobre o
fenômeno, no qual discute, entre outros temas, os presságios, o ateísmo, a idolatria e a
superstição e, naturalmente, o que se deve entender pelos milagres. Trata-se do Pensamentos
Diversos sobre o Cometa123, escrito endereçado a um doutor da Sorbonne amigo de Bayle,
publicado, em sua forma final, no ano de 1683. Segundo Bayle, o milagre é “uma interrupção
da ordem que Deus estabeleceu na natureza”124; e é preciso ter cautela ao classificar um
evento como miraculoso. Faz parte de seu objetivo no tratado erigir critérios fixos para
distinguir os milagres verdadeiros dos falsos, pois a ameaça principal, no que tange a este
fenômeno, é sua apropriação idólatra. Eis o raciocínio de Bayle: há duas espécies de
milagres, os “falantes” (parlants) e os, na falta de um termo preciso, “enganadores” ou
“mudos”125. Os primeiros apresentam claramente o verdadeiro Deus por oposição às falsas
divindades. Os segundos, sem a mesma clareza, não distinguem a autoria, apenas
demonstram que há, acima do homem, algo dotado de grande potência. Tal distinção surge no
contexto de prova da seguinte hipótese: da bondade e sabedoria divinas não se segue que
Deus fará milagres do segundo gênero entre os infiéis, uma vez que o único efeito seria a
atribuição da causa do fenômeno aos deuses que já incorretamente adoram; e, portanto, o
aprofundamento da idolatria. Entre os milagres deste gênero, Bayle lista “um cometa, um
furacão, um terremoto, meteoros e prodígios terríveis que Deus faria por si só contra a ordem

122
Devo a cronologia destes fatos ao completo estudo de Tetsuya Shiokawa, cf. SHIOKAWA, T. Pascal et les
miracles. Paris : Editions A.-G. Nizet, 1977. Seu trabalho discute as circunstâncias médicas e políticas que
antecedem e sucedem o milagre, bem como o impacto que obteve na confecção da obra de Pascal. Verificar,
adicionalmente, para esta última questão, o artigo de Michel Adam, « La signification du miracle dans la pensée
de Pascal ». In: Revue Philosophique de la France et de l'Étranger, T. 171, No. 4 (Octobre-Décembre 1981), pp.
401-423.
123
Abreviação de Pensées diverses écrites à un docteur de Sorbonne à l'occasion de la Comète qui parut au
mois de décembre 1680.
124
Todas as passagens citadas dos Pensamentos diversos são traduções minhas a partir do texto original, cf.
BAYLE, P. Pensées diverses sur la comète. Paris: Flammarion, 2007. A partir de agora, faço referência ao texto
em questão sempre por PD, acrescentando em seguida o parágrafo do qual a citação é retirada. Para o caso da
passagem supracitada, verificar PD, §232.
125
Sigo aqui a classificação de Jacqueline Lagrée, que, para fins de exposição, prefere nomear o segundo gênero
de milagres como “mudos”, por oposição aos primeiros. Ver LAGRÉE, J. « La critique des miracles : Spinoza et
Bayle ». In : Spinoza et le débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2004. P. 170.
98

da natureza”126. Os primeiros milagres, em contrapartida, são feitos por homens que carregam
o espírito de Deus, com o objetivo de convencer os infiéis da falsidade de seu credo. Apenas
a palavra não convence, logo, é preciso o suplemento dos milagres “falantes” para que a
persuasão seja mais eficaz, para que Sua palavra seja efetivamente ouvida. Assim, à mera
palavra destes pregadores, “o fogo perde sua atividade, os rios racham em dois, os mortos
saem de suas tumbas, as enfermidades mais incuráveis são curadas”127 (lembremos de
Marguerite). Bayle tece também uma crítica à exploração política dos milagres e demais
prodígios por parte dos príncipes e dos grandes senhores da corte128, e, ao mesmo tempo,
sustenta que a crença neles não livra o povo dos costumes moralmente reprováveis129.

Pode parecer algo surpreendente que estes dois episódios tenham obtido tamanha
importância no século XVII, época conhecida pela posteridade por ter lançado as bases para a
separação institucional entre o poder teológico e o político, tanto quanto a racionalização e
naturalização das explicações dos eventos físicos – uma mudança cosmológica que, segundo
alguns, teria encontrado seu desenvolvimento mais bem acabado no Iluminismo.130 Mais do
que fornecer contraexemplos a esta generalização, os dois casos evidenciam que a questão
dos milagres não se compreende fora de uma significação teológico-política. A definição
teológica é posta a serviço de uma doutrina, e não por acaso é submetida a atestações legais,
tais como o processo jurídico de verificação do milagre do Espinho Santo e, num sentido
mais amplo, a tentativa bayleana de fornecer um critério para dar legitimidade miraculosa a
determinados eventos. Quem tem direito sobre os milagres? Quem pode ser seu proprietário
e determinar sua interpretação exata? É uma questão de soberania – e, como tal, de direito
do mais forte. Para os propósitos específicos do presente capítulo, estes dois eventos que
circundam, de uma ponta a outra, a escrita e publicação do TTP em 1670, podem fornecer
uma visão ampla do local em que a crítica spinozista aos milagres e à superstição ocupa nos
debates teóricos da Europa do século XVII. De um lado, uma posição apologética, que vê no
milagre a confirmação de uma doutrina; de outro, uma postura que, ainda que ligeiramente
mais moderada, manifesta o mesmo ímpeto de soberania e de autorização. No extremo
oposto, o comentário spinozista, que nega a existência tout court de fenômenos sobre ou

126
PD, §217.
127
PD, §218.
128
PD, §151, 152.
129
PD, §148.
130
Sobre estas leituras e o lugar histórico de Spinoza, ver a Introdução deste estudo.
99

antinaturais. O milagre é um dos aparatos de sustentação do modo de vida supersticioso; e, se


tem alguma realidade, é apenas como figura textual, que desnuda a ignorância das causas
exteriores por parte daquele que o identifica.

Na economia argumentativa do TTP, é notável a estranheza do capítulo dedicado ao


milagre. Somos avisados, ao final dele, de que a oscilação metodológica impressa à questão é
proposital, na medida em que o assunto é inteiramente filosófico e deve ser apreciado com
argumentos baseados em “princípios conhecidos pela luz natural”131. A abordagem dos
milagres difere daquela outrora aplicada à profecia: não é possível conhecer a essência da
profecia, e o que se pode afirmar dela são apenas conclusões derivadas de princípios
revelados: portanto, mais sua história do que sua definição. Eis por que a questão profética é
fundamentalmente teológica – ultrapassando os limites da compreensão humana – ao invés
de filosófica. Ao contrário, os milagres são tomados por Spinoza como uma interrogação
sobre a transcendência, ou, se quisermos, sobre a exterioridade. Trata-se de se perguntar se a
intervenção externa na natureza é possível, quer dizer, “se se pode aceitar que algo aconteça
na natureza que repugne às suas leis ou que delas não possa derivar”132. Ou seja: o milagre
põe em xeque a existência de um poder que atua para além da natureza e, portanto, para além
de Deus. O milagre fora tematizado ao longo de todo o capítulo do ponto de vista de sua
definição filosófica, e quando as passagens da Escritura surgiam era apenas a título de
confirmação desta definição. Após este aviso metodológico ao final do capítulo, Spinoza se
arrisca, no entanto, em outra empreitada: tratar da definição do milagre, isto é, de sua
essência, a partir de princípios retirados da Escritura133. O que se segue é uma argumentação
que parece contrariar sobretudo uma ideia já defendida na análise da profecia: a de que os
profetas nada têm a ensinar sobre a natureza.134 Ora, mas aquilo que Spinoza obtém sobretudo

131
GIII, 95; ESPINOSA, B. 2019, P. 215.
132
Idem à nota 120.
133
Spinoza parece considerar que o único momento em que toma os milagres a partir de princípios e dogmas
retirados da Escritura em confronto com a ordem natural é após este aviso ao fim do capítulo. Quando
interpreta, antes, outras passagens da mesma, com os objetivos de demonstrar que “esta não entende pelos
decretos de Deus e, consequentemente, pela sua providência, outra coisa senão a própria ordem da natureza, que
deriva necessariamente de suas leis eternas” (GIII, 82; ESPINOSA, B. 2019, P. 202) e quando trata “do modo
como interpretar os milagres da Escritura” (Ibid), põe-se da perspectiva daquele que deduz o fenômeno sem se
perguntar, ainda, sobre sua verdade; procurando reportar, por inferência, apenas aquilo que a Escritura
expressamente diz. Assim, os parágrafos que ocupam a maior parte do capítulo devem ser entendidos como a
história do milagre, descrevendo mais o seu sentido do que sua essência e consequente concordância com a
natureza.
134
G III, 42-43.
100

a partir da análise de uma passagem do Eclesiastes é justamente uma definição acerca do


comportamento da natureza: quando “O Filósofo”135, isto é, Salomão, afirma que nada há de
novo sob o sol, está sustentando que ela tem uma “ordem fixa e imutável”136 e que, portanto,
um fenômeno como o milagre, que viria justamente interromper esta ordem, é simplesmente
impossível. Não parece gratuito que Spinoza retire este ensinamento do discurso de Salomão,
cuja sabedoria ele sublinha por vezes ao longo do TTP, e cujo status é o de Filósofo e não o
de Profeta137. Mesmo assim, ele retira a mesma conclusão do Salmo CXLVIII e de uma
passagem de Jeremias, frisando que a Escritura não ensina nada que repugne à natureza e
que, caso se possa provar que ela o ensina, deve-se concluir que fora um “acrescento feito aos
Livros Sagrados por homens sacrílegos”138. Tudo isto é dito, no capítulo VI, em face da
separação entre conhecimento natural e conhecimento revelado já conquistada nos dois
primeiros capítulos; e a questão se torna ainda mais enigmática quando comparada ao método
de interpretação da Escritura apresentado no capítulo seguinte, que expressamente mostra que
não se deve tomar o texto sagrado do ponto de vista de sua conexão com a verdade, mas
apenas quanto ao seu sentido e ensinamento moral139.

O tratamento spinozista do milagre é visto, por alguns comentadores140, como um


caso particular das muitas contradições que se encontram no TTP, terminando por abalar a
separação estabelecida entre Escritura e verdade. Carlos Fraenkel141, por exemplo, sustenta
que, embora Spinoza diga se afastar da posição dogmática142 – aquela que procura interpretar
a Bíblia a partir da razão, como o faz Maimônides143 –, ao abordar a eleição hebraica, a lei
divina e o milagre, está justamente adotando tal procedimento. Há, segundo ele, uma tensão

135
ESPINOSA, B. 2019, P. 215; G III, 95.
136
Ibid.
137
“Será, então, preferível citar outras passagens da Escritura, principalmente as que foram ditadas por aquele
que falava baseado na luz natural, em que superou todos os sábios do seu tempo, e cujas palavras o povo
acolheu com tanto respeito como as dos profetas: estou a pensar em Salomão, de quem os Livros Sagrados
exaltam menos a profecia e a piedade que a prudência e a sabedoria”. G III, 66; ESPINOSA, B. 2019, P. 186.
138
GIII, 91; ESPINOSA, B. 2019, P. 212.
139
G III, 100.
140
Além dos trabalhos de Fraenkel e Nadler, é interessante verificar as contribuições de Warren Zev Harvey
(“Spinoza on Biblical Miracles”, In: Journal of the History of Ideas, Vol. 74, No. 4 (October 2013), pp.
659-675) e Oded Schechter (“Spinoza’s Miracles: Scepticism, Dogmatism, and Critical Hermeneutics”, In:
REBIGER, B. (ed.). Yearbook of the Maimonides Centre For Advanced Studies. 1st ed., De Gruyter,
Berlin/Boston, 2018, pp. 89–108. Disponível online em JSTOR, www.jstor.org/stable/j.ctvbkjwt0.8. Último
acesso em 21/04/ 2020 às 18h03min).
141
FRAENKEL, C. “Spinoza on Miracles and the Truth of the Bible”. In: Journal of the History of Ideas,
Volume 74, Number 4, October 2013, pp. 643-658.
142
G III, 180.
143
G III, 181.
101

entre dois objetivos igualmente spinozistas: de um lado, a importância política de se manter


que há verdades na Bíblia, a fim de que os cidadãos mantenham sua obediência, e, de outro, a
necessidade crítica de sustentar que a Escritura nada tem a dizer sobre o conhecimento
natural, e, neste caso, defender a liberdade de expressão contra a ortodoxia religiosa que toma
o texto como autoridade última144. Steven Nadler145 endossa o problema, apostando numa
solução que divide a experiência sensorial do narrador, sua consequente interpretação e a
verdadeira causa de tal evento. Para ele, Spinoza não afirma que não se encontrará nenhuma
passagem na Bíblia em que o evento narrado de acordo com a interpretação do profeta
contradiga expressamente a luz natural, mas sim que o evento em si, tal como ocorreu para
além da experiência sensorial do indivíduo, necessariamente apresentará uma causa natural.
Assim para a experiência narrada em Josué 10: 12-15: Josué experienciou um dia sem ocaso,
interpretou este evento como uma ação direta de Deus, mas a causa verdadeira deste evento
pode ser explicada por algum fenômeno atmosférico, ou seja, fazendo referência a
disposições naturais146.

Estas soluções e até mesmo a construção do problema apontam, contudo, para um


pressuposto não tematizado por Spinoza ao longo do TTP. Ao afirmar que os ensinamentos
bíblicos, quando corretamente interpretados, não contradizem a verdade, e que podem,
portanto, ser conciliados com as causas naturais, Spinoza não está adotando a posição
dogmática. O dogmatismo, aliás, é compreendido por ele não como a conciliação entre razão
e escritura, mas como a escravização da segunda por parte da primeira147. Para além disso,
não se pode esquecer que o TTP é escrito conforme a filosofia de Spinoza – não, é claro,
compreendida enquanto um pensamento filosófico singular entre os demais, como alternativa
possível ao aristotelismo ou ao cartesianismo, mas, mais do que isso, como a própria
verdade. Spinozismo e Escritura concordam inteiramente – não porque se pode usar o
primeiro para intervir diretamente na segunda, mas porque, guardados seus métodos
específicos, mantidas suas regras de interpretação imanentes, seu conteúdo concorda, em

144
FRAENKEL, C. 2013, P. 658.
145
NADLER, S. “Scripture and Truth: A Problem in Spinoza's ‘Tractatus Theologico-Politicus’”. In: Journal of
the History of Ideas, Vol. 74, No. 4 (October 2013), pp. 623-642.
146
NADLER, S. 2013, P. 640.
147
“Entre os que não sabem separar a filosofia da teologia, discute-se se é a Escritura que deve estar ao serviço
da razão ou se, pelo contrário, é a razão que deve estar ao serviço da Escritura; por outras palavras, se é o
sentido da Escritura que deve adaptar-se à razão ou esta que deve adaptar-se à Escritura. Os céticos, que negam
a certeza da razão, defendem esta última tese, ao passo que a primeira é defendida pelos dogmáticos.” Cf. G III,
180; ESPINOSA, B. 2019, P. 311.
102

última instância, com a verdade – que é eterna. Os ensinamentos da filosofia e da Escritura


pertencem a um território comum sub specie aeternitatis148. A este respeito, uma citação aos
Pensamentos Metafísicos, texto que guarda, aliás, uma análise subterrânea da Escritura, é
oportuna:

Enfim, se ocorrem ainda nas Sagradas Escrituras outras coisas que suscitam
escrúpulos, não é este o lugar de explicá-las, pois aqui inquirimos apenas o que
podemos alcançar certissimamente pela razão natural, e é suficiente demonstrá-lo
com evidência para sabermos que as páginas sagradas devem também ensinar o
mesmo, pois a verdade não repugna a verdade [veritas veritati non repugnat], nem a
Escritura pode ensinar frivolidades como as que são vulgarmente forjadas. Com
efeito, se descobríssemos nela algo que fosse contrário à luz natural, poderíamos
confutá-la com a mesma liberdade pela qual confutamos o Alcorão e o Talmude. Mas
longe de nós pensar que se possa encontrar nas Sagradas Escrituras algo que repugne
à luz da natureza. (Grifo meu. GM II, 8; ESPINOSA, B. 2015b, P. 243)

Esta citação, além de confirmar nosso ponto, indica que o TTP não é o primeiro
momento em que Spinoza se dedica a pensar a questão dos milagres. Nos CM, algumas
noções caras ao TTP são adiantadas, e alguns dos temas que ali surgem serão, na Ética,
simplesmente abandonados.149 Um exemplo destas duas afirmações ocorre na discussão sobre
a onipotência divina. Spinoza admite que Deus possui uma potência absoluta e outra
ordenada: a primeira, quando se considera “sua onipotência sem atentar a seus decretos”150 e

148
“De duas maneiras as coisas são concebidas por nós como atuais: ou enquanto as concebemos existir com
relação a um tempo e um lugar certos, ou enquanto as concebemos estar contidas em Deus e seguir da
necessidade da natureza divina. E as que são concebidas desta segunda maneira como verdadeiras ou reais,
concebemo-las sob o aspecto da eternidade e suas ideias envolvem a essência eterna e infinita de Deus, como
mostramos na Proposição 45 da Parte 2, da qual se verá também o Escólio”. Cf. ESPINOSA, B 2015a, P.
559-561; EV, P. XXIX, esc.
149
A mera presença ou ausência de conceitos e teses na Ética não é evidência de que Spinoza os modificou ou
abanou em absoluto: tal conclusão depende da assunção desta obra como aquela em que é apresentada a versão
legítima de sua doutrina. Aqui, no entanto, como já deve estar claro a esta altura, não estamos comprometidos
com este princípio de leitura. Contra a suspeita que se pode levantar a respeito da confiabilidade dos Princípios
da Filosofia Cartesiana bem como dos Pensamentos Metafísicos que os seguem, devido ao fato de se
apresentarem como a exposição da doutrina de um outro, três argumentos podem ser apresentados, um interno,
outro externo e um ao mesmo tempo interno e externo. O argumento interno é o seguinte: ambos são tão
legítimos quanto seus demais trabalhos na medida em que não se trata, para Spinoza, de mera exposição de uma
doutrina qualquer, a qual ele poderia expor a uma certa distância, mas sim da exposição da verdade, da Filosofia
ou da Metafísica que, do ponto de vista da eternidade, não se distingue entre cartesiana ou spinozista. Já o
argumento externo atenta para o fato de que, em última análise, a validade de um texto, mesmo daqueles
autorizados por uma assinatura, é sempre determinada por critérios que lhe escapam. Por último, a possibilidade
de reportar, sem modificações, o conteúdo de um texto, sobretudo quando vem acompanhada da variação de sua
forma, não é imune de críticas. A transmissão de uma mensagem por diferentes canais, mantendo-a intacta, é,
como demonstra Jacques Derrida em « signature événement contexte », um dogma da comunicação e, mais
ainda, da própria definição histórica da linguagem. À diferença de Descartes, Spinoza aposta na síntese; e, para
seguir um princípio que já defendemos em outro contexto (rever, para tanto, nossa Introdução metodológica),
mudanças de forma não surgem sem mudanças de conteúdo. O resultado do texto, portanto, é uma entidade
singular e irrepetível, que apenas faz lembrar o cartesianismo, mas que necessariamente o modifica.
150
CM II, IX; ESPINOSA, B. 2015b, P. 247.
103

a segunda “quando nos referimos a seus decretos”151. Por decretos de Deus deve-se entender,
tal como no TTP, as leis da natureza na medida em que foram por ele determinadas152. Além
destas duas, há também a potência ordinária – aquela que fixa o mundo numa ordem – e a
extraordinária – em que esta ordem é suspensa, “como por exemplo todos os milagres, tais
como a fala de um asno, a aparição de anjos e coisas semelhantes”153. Uma crítica é
acrescentada en passant a esta categoria de fenômenos: pode-se com razão duvidar dos
milagres, pois tanto maior seria a potência divina se Deus permanecesse na ordem que fixou
de uma vez por todas na natureza, ao invés de interrompê-la em função dos homens. Esta
questão, diz Spinoza, deve ser respondida pelos teólogos, e não pelos filósofos: e com isto
Spinoza se cala.

Pode parecer, então, que, diferentemente do que faz no TTP, Spinoza classifica o
milagre como um tópico essencialmente teológico. Mas observe-se que esta afirmação não
põe fim à discussão sobre a existência do milagre em si, ou do poder de Deus para fazê-lo,
mas apenas à especulação sobre se é mais digno de Deus manter a ordem que determinou na
natureza ou suspendê-la. Compete à teologia conjecturar quanto à manifestação que mais
convém à potência de Deus, embora a filosofia possa perfeitamente apresentar uma definição
do milagre154, como, aliás, Spinoza efetivamente o faz no trecho ao elencar uma potência
extraordinária de Deus. Um pouco adiante, ainda nos CM, Spinoza prefere se calar sobre
outro tema: os anjos. Ainda que também sejam entes criados por Deus, não devem ser
indagados pela filosofia, pois sua essência se mostra apenas por revelação, e não por
princípios deduzidos da luz natural. Pertencem, portanto, à teologia, cujo conhecimento é “de
gênero totalmente diverso do conhecimento natural, [e] de modo algum deve ser misturado
com esse”155. A distinção entre teologia e filosofia cara ao TTP parece, ainda, mantida. A
pergunta é se o mesmo pode ser dito da categorização epistêmica dos milagres enquanto um
debate inteiramente filosófico.

151
Ibid.
152
G III, 82-83.
153
CM II, IX; ESPINOSA, B. 2015b, P. 247.
154
“Enfim, um filósofo não pergunta o que Deus pode fazer pela suma potência, mas julga a natureza das coisas
a partir das leis que Deus incutiu nelas; por isso julga ser fixo e confirmado o que a partir daquelas leis
conclui-se ser fixo e confirmado; embora não negue que Deus possa mudar aquelas leis e todas as outras. Por
consequência, não indagamos, ao falarmos da alma, o que Deus pode fazer, mas apenas o que se segue das leis
da natureza”. Cf. CM, II, XII; ESPINOSA, B. 2015b, P. 259.
155
Ibid.
104

Para responder a uma possível objeção quanto à imortalidade da mente humana, que
se segue de modo claro tanto de princípios revelados quanto das leis da natureza, Spinoza
retorna, nos CM, ao tema dos milagres. Admite que Deus pode destruir as leis da natureza
que ele mesmo decretou para fazer milagres156, que são feitos não contra, mas acima dela.
Fazer milagres acima da natureza significa que “Deus tem ainda muitas leis para operar que
não comunicou ao intelecto humano”157, mas que, tão logo fossem por ele descobertas, seriam
tão naturais quanto as já conhecidas. O milagre parece derivar, como no TTP, mais da
ignorância das causas por parte dos homens do que de uma potência de intervenção divina
sobre a natureza. Parece haver, no entanto, uma diferença fundamental: Deus ter escolhido
não comunicar estas leis ao intelecto humano não equivale aos homens não buscarem
conhecer as causas dos eventos exteriores. No primeiro caso, mesmo que tentem, não poderão
compreender as coisas; no segundo, elas já estão dispostas na natureza, e basta ao homem
deduzir sua origem a partir dos princípios contidos em sua mente.

Estas passagens nos levam a crer que a posição de Spinoza em relação ao milagre, nos
CM, embora já surpreendentemente munida de um instrumental que será recuperado no TTP
– a noção de decreto como idêntico à determinação divina, a de conhecimento revelado por
oposição à conhecimento natural e a distinção entre filosofia e teologia –, difere dele ao
menos em dois aspectos significativos: aqui, Spinoza parece de fato conceder a Deus uma
potência extraordinária sobre a natureza, conservando a expressão milagre para se referir a
certos eventos para além da mera ignorância do indivíduo e, segundo, parece crer que o

156
Interpreto esta passagem a partir do modo como os tradutores dos CM ao português (cf. ESPINOSA, B.
2015b) a interpretaram, quer dizer, supondo, a partir do original latino, que Spinoza está aceitando a hipótese de
que Deus às vezes destrói as leis naturais – e não como o interpreta Charles Appuhn na tradução francesa,
segundo o qual esta é uma hipótese de um possível objetor (« Nous ne sommes point arrêtés par cette objection
possible que Dieu peut à un moment quelconque détruire ces lois naturelles pour produire des miracles [...] », cf.
SPINOZA, B. 1964, P. 387). Atilano Domínguez, em sua versão, segue os passos de Appuhn: “No importa que
alguien nos replique que Dios destruye algunas veces dichas leyes naturales para efectuar los milagros [...]”, cf.
SPINOZA, B. 1988a, P. 280. Em abono da primeira solução, remeto à uma passagem anterior, na qual Spinoza,
ao tratar do ofício do filósofo, afirma que este “não pergunta o que Deus pode fazer pela suma potência, mas
julga a natureza das coisas a partir das leis que Deus incutiu nelas [...] embora não negue que Deus possa mudar
aquelas leis e todas as outras” (CM, II, XII; ESPINOSA, B. 2015b, P. 259). Esta última passagem não cria
problemas interpretativos quando comparada à solução de Appuhn, que traduz: « ne cherche pas ce que la
souveraine puissance de Dieu peut faire; il juge de la Nature des choses par les lois que Dieu a établies en elles
[...] sans nier que Dieu puisse changer ces lois et tout le reste », cf. SPINOZA, B. 1964, P.386, tampouco à de
Domínguez: “no pregunta qué puede hacer Dios con su poder supremo, sino que juzga sobre la naturaleza de las
cosas a partir de las leyes que Dios les fijó. [...] aunque no niegue que Dios puede cambiar esas leyes y todo el
resto”, cf. SPINOZA, B. 1988a, P. 280. É justamente a possibilidade de mudança das leis que encaminha a
sugestão de que Deus pode destruir as leis naturais para criar milagres e, assim, ser dotado de uma potência
extraordinária.
157
CM, II, XII; ESPINOSA, B. 2015b, P. 261.
105

milagre é um tema que não é inteiramente filosófico, mas que ocupa um estranho não-lugar
de instabilidade entre filosofia e teologia158. Entre CM e TTP há uma desproporção
metodológica no tratamento da questão, a qual pode ser reportada a uma tensão mais ampla
entre interioridade (se pertencer ao campo da filosofia, em que é desligado de seu caráter
ontológico) e exterioridade (se a ele for conferida realidade remetendo aos fundamentos da
Escritura, ou seja, se for um fenômeno teológico).

Após as problematizações epistêmicas relativas ao assunto do milagre, falta ainda


discutir efetivamente os argumentos spinozistas que operam o desmonte de sua crença.
Conforme seu modus operandi ao tratar dos preconceitos imaginativos, Spinoza polemiza,
deplora e maldiz. Polemiza, desta vez, não com os teólogos, mas com o vulgo, acusando-o de
deslumbramento ao classificar como divino tudo aquilo que aparece como além da
capacidade de compreensão humana159. Deplora sobretudo sua “estultícia” (vulgi stultitia)160,
que, tal como no preconceito finalista, concebe os milagres como ação de Deus orientada a
seu benefício. Maldiz, ao tomar por vergonhosa a ideia que os israelitas, abandonados por
Moisés, forjaram de Deus: um vitelo161. Inclui também a origem histórica do milagre: foram
os antigos Judeus que, com o objetivo de converter os gentios, narraram os milagres de sua
divindade específica, insistindo em sua maior potência e constância em relação à pluralidade
de entidades naturais (o Sol, a Luz, a Terra, a Água, o Ar etc.) que seus interlocutores
adoravam como se fossem deuses.162 Teria sido este o estopim para a fé em acontecimentos
extraordinários, que, Spinoza reconhece, se mantém até aquele momento, reforçada por uma
espécie de memória coletiva inconsciente do vulgo que o reenvia a este ato fundador163. A
memória é fundamental para que a superstição nasça, uma vez que é responsável por criar
certa imagem da natureza capaz de distinguir o ordinário do extraordinário164. Quando uma

158
Henri Laux não exibe a mesma preocupação ao identificar a ambivalência do exame spinozista do milagre, o
qual, segundo ele, tem um status ao mesmo tempo de texto bíblico e de leitura da religião. Para ele, o milagre
deve ser compreendido no interior de um campo “sócio-epistemológico”, na medida em que revela o
comportamento de um estrato social, o vulgo, sua maneira de compreensão dos eventos naturais e a tradução
desta interpretação numa narrativa. Ver LAUX, H. Imagination et religion chez Spinoza. Paris: Vrin, 1993. P. 50.
159
G III, 81-82. ESPINOSA, B. 2019, P.201-202.
160
G III, 82; ESPINOSA, B. 2019, P. 202.
161
G III, 87; ESPINOSA, B, 2019, P. 208.
162
G III, 81-82.
163
Sobre a importância da memória coletiva na manutenção do milagre, ver LAGRÉE, J. 2004, P. 164 e LAUX,
H. 1993, P. 67-73.
164
“Mas, visto que os milagres foram feitos de acordo com a compreensão do vulgo, o qual ignorava totalmente
os princípios das coisas naturais, não há dúvida que aquilo que os antigos consideravam milagre era o que não
podiam explicar da maneira como o vulgo habitualmente explica as coisas naturais, isto é, recorrendo à memória
106

comunidade funda-se justamente numa crença supersticiosa – para Spinoza, os judeus em


relação à sua eleição –, a memória socialmente partilhada influirá diretamente na percepção
de um evento, particularmente em sua categorização enquanto habitual ou insólito. Ao
mesmo tempo, enquanto superstição, o milagre depende da admiração, ou seja, da
consideração de um evento como singular em relação aos demais que ocupam a mente165 (ou
a memória), de modo que experimenta uma necessidade constante de atualização e de desejo
por novidade. O milagre, de seu ponto de vista social e afetivo, portanto, é fruto de uma
dinâmica que articula a memória coletiva do vulgo – o velho, a tradição – e o vício pelo novo
derivado da ignorância das reais causas dos eventos (lembremos do exemplo de Alexandre,
do qual Spinoza deduz a variabilidade e inconstância da superstição166).

Enquanto o preconceito finalista revelava uma espécie de exterioridade qualitativa,


que impunha fins e valores a Deus, o problema do milagre é induzir a uma exterioridade
quantitativa, ou seja, à imaginação de “duas potências numericamente distintas uma da outra:
a potência de Deus e a potência das coisas naturais [...]”167. São diversos os argumentos via
luz natural ensaiados por Spinoza para desqualificar a crença nos milagres, e não caberia
reconstruir todos, exaustivamente, aqui. Vale observar seu movimento geral, que repete e
pressupõe a tese da identificação entre Deus e Natureza. Assim, tudo que é verdadeiro o é por
decreto divino; e as leis naturais devem ser igualmente compreendidas como tal. De modo
que, para que algo contrarie a ordem da natureza, estabelecida por decreto de Deus, seria
preciso que contrariasse igualmente ao decreto; e, portanto, seria forçoso concluir que Deus
agiria contra a sua própria natureza.168 A consequência última da crença nos milagres é,
portanto, a impiedade, ou, para pôr em termos mais diretos, o ateísmo.169 O milagre implica
crer que Deus age em contradição com sua própria essência, fazendo-nos dele duvidar até o
máximo ceticismo. Além disso, os milagres não podem nos instruir sobre a essência,
existência ou providência divinas, pois não passam de obras limitadas, de cujos efeitos não se
pode concluir a existência de uma potência infinita. Logo, não se pode deles concluir a

para se recordar de uma coisa semelhante que ele costuma imaginar sem se admirar”. Grifos meus. G III, 84;
ESPINOSA, B. 2019, P. 204.
165
“Esta afecção da Mente, ou seja, a imaginação de uma coisa singular, enquanto se acha sozinha na Mente, é
chamada Admiração [...]” EIII, P. LII, esc.; ESPINOSA, B. 2015a, P. 319.
166
G III, 6.
167
G III, 81; ESPINOSA, B. 2019, P. 201.
168
G III, 82-83.
169
G III, 87.
107

existência de Deus, mas, no máximo a de uma causa cuja potência é maior. Ao contrário, as
leis da natureza se estendem ao infinito, procedendo numa ordem fixa e imutável, donde,
através delas, pode-se conhecer a essência de um ente que também é dotado destas mesmas
características. Daí porque os milagres não nos oferecem um conhecimento de Deus, mas a
ordem da natureza, sim.170 Neste quadro de rejeição do milagre enquanto evento real, quer
dizer, de deslegitimação de seu caráter ontológico, Spinoza lhe confere, ao longo do capítulo
VI, ao menos duas definições – uma retirada da experiência e outra a partir da luz natural:

O vulgo chama, portanto, milagres ou obras de Deus aos fatos insólitos da


natureza e, em parte por devoção, em parte pelo desejo de contrariar os que
cultivam as ciências da natureza, prefere ignorar as causas naturais das
coisas e anseia por ouvir falar só do que mais ignora e que, por isso mesmo,
mais admira. (G III, 81; ESPINOSA, B. 2019, P. 201-202)

A partir, pois, do fato de nada acontecer na natureza que não dependa de


suas leis, de estas se estenderem a tudo o que o entendimento divino
concebe e de, finalmente, a natureza manter uma ordem fixa e imutável,
resulta claro que a palavra “milagre” só pode ser entendida relativamente às
opiniões humanas e não significa senão um fato cuja causa natural não
podemos explicar (ou, pelo menos, quem escreve ou narra o milagre não
pode explicar) por analogia com outra coisa que ocorre habitualmente. (G
III, 83-84; ESPINOSA, B. 2019, P. 204)

Mesmo que esvaziados de seu alcance sobrenatural, é significativo que Spinoza


mantenha a existência conceitual do milagre, reservando para ele uma significação polêmica.
Ainda que o sábio se esforce para demonstrar sua falsidade, reinterpretando corretamente um
evento a partir do reenvio às suas causas naturais, a crença no milagre não deixa de existir e
de produzir efeitos para o vulgo – e, em certo sentido, de produzir o vulgo.171 Por isso, não
basta simplesmente afirmar a inexistência dos milagres: é necessário manter o conceito em
operação, concedendo-lhe um novo sentido. O milagre é reduzido a um signo discursivo: sua
realidade é restrita à pena de quem o escreve ou à boca de quem o narra. Por isso sua
definição guarda um caráter intencional: o milagre é sempre milagre para alguém, que investe
um evento de tal coloração insólita. Tal como nos CM, o TTP também parece reservar uma
tensão própria para o milagre: mantém-se sua realidade enquanto fenômeno
discursivo-teológico, a fim de detectar e denunciar o modo de operação do vulgo e, ao
mesmo tempo, esvazia-se o milagre de todo o teor filosófico ao abolir sua existência para
além do texto. À pergunta sobre a existência ou não dos milagres devemos fornecer respostas

170
G III, 86.
171
Esta é a hipótese de Henri Laux, para quem o vulgo não é apenas produtor do milagre, mas também seu
produto. Ver LAUX, H. 1993, P. 52.
108

conflitantes a depender de em qual âmbito – teologia ou filosofia, exterioridade ou


interioridade – nos situamos.

É necessário acrescentar, portanto, uma observação sobre o caráter geral da narração,


uma espécie de teoria experiencial da narrativa172 que anuncia a teoria da interpretação do
capítulo seguinte. Uma narrativa expressa, em geral, mais a opinião daquele que narra do que
o que efetivamente ocorreu. Quando um fato novo comparece aos olhos e/ou aos ouvidos de
um indivíduo qualquer, confronta-se com seus preconceitos, sua ignorância sobre a natureza e
seu interesse. Por isso não é surpreendente constatar que um mesmo fato recebe, por
diferentes penas e bocas, apreciações diversas. Mais ainda, um mesmo homem pode ser
afetado de diferentes maneiras por um mesmo objeto em circunstâncias variadas do tempo.173
Tal teoria remonta à estrutura da imaginação: que relata, dos objetos exteriores, mais seu
efeito sobre os corpos do que a essência destes objetos.174 Dado o funcionamento da narração,
uma interpretação consequente da Escritura deve conhecer, no mínimo, o caráter do narrador:
suas opiniões prévias, sua língua e cultura etc. para ser capaz de distinguir entre fato e
opinião. Isso explica igualmente porque a Escritura, por vezes, apresenta uma concepção tão
disparatada da divindade, como um ser “com corpo e com poder régio, cujo trono estaria
assente na abóbada celeste, por cima das estrelas, que julga estarem a uma pequena distância
da Terra”175: trata-se tão-somente da opinião do narrador e não da essência de Deus. A
Escritura, então, se concentra em narrar (narrare)176 os fatos mais impressionantes para a
imaginação, despertando a admiração do vulgo e consequentemente sua piedade.
Contrariamente aos “historiadores políticos” (historici politici)177, que narram a devastação de
um Estado atentando-se aos eventos de forma menos apaixonada, a Escritura aposta numa
linguagem poética e interessada, que atribui tudo a Deus, comovendo, assim, a plebe e
incutindo-lhe devoção178.

172
Esta teoria está expressa em G III, 92-94.
173
O que se explica pelo fato de o corpo humano ser composto por muitos indivíduos. Ver EII, P. XIII, post.3 e
também EIII, P. LI.
174
EII, P. XVI.
175
G III, 93; ESPINOSA, B. 2019, P. 213.
176
G III, 90. ESPINOSA, B. 2019, P. 2010.
177
G III, 91; ESPINOSA, B. 2019, P. 211.
178
“A Devoção é o Amor àquele que admiramos”, cf. E III, Definição dos Afetos, X; ESPINOSA, B. 2015a, P.
345. Ver também EIII, P. LII. A devoção incutida pelo milagre se explica, então, pela admiração que suscita ao
narrar eventos extraordinários, atribuindo a causa a um objeto que já nutrimos amor: Deus. Eis a linguagem
afetiva melhor adaptada ao engenho do vulgo.
109

Tanto a profecia quanto o milagre são desqualificados em seu potencial cognitivo,


reenviando ao caráter meramente discursivo – como texto ou como palavra – de sua
narrativa, com a diferença fundamental de que a profecia, para Spinoza, de fato é um
fenômeno dotado de existência, uma forma de comunicação de Deus com os homens cuja
causa ignoramos179. Ao narrar milagres, no entanto, a Escritura nos dá a ver a imaginação do
narrador, a transmissão da representação individual de um evento, e não a ordem e conexão
das coisas naturais. A desqualificação do milagre enquanto texto é acompanhada de uma
postura geral de desprezo pela linguagem, que se opõe, do ponto de vista da verdade, ao
método. Esta postura terá consequências teológico-políticas notáveis, sobretudo em relação
ao culto da palavra escrita e à sacralização do livro: exterior ao pensamento. As implicações
da noção de signo discursivo tomarão nossa atenção no próximo capítulo.

Em relação à discussão sobre o preconceito finalista, o caráter psicológico da


superstição e a significação do milagre, devemos reter o seguinte: estas três instâncias
organizam uma maneira possível de se relacionar com Deus a partir da crença em sua
exterioridade. Exterioriza-se a si próprio, como indivíduo que, por sua liberdade, pode se
posicionar fora da ordem natural, e exterioriza-se Deus, compreendido como uma espécie de
contra ou suprapoder à natureza. A consequência do culto ao exterior é a servidão ética e
política. Uma alternativa está sempre disponível, no entanto: trata-se da vera religio, que traz
Deus para o mundo e que faz o indivíduo inserir a si próprio e suas ações numa longa cadeia
causal de Deus derivada. Apesar de iniciar o TTP com um tom de reprovação à exterioridade,
notaremos, no curso de nosso estudo, o modo como ela será frequentemente posta em tensão
com a interioridade até o ponto de sua reabilitação. Este processo de retomada da
exterioridade foi, em certo sentido, anunciado pela tensão identificada no tratamento do
milagre. A exterioridade tomada enquanto superstição continua sendo condenável e índice
maior de servidão, o que não significa que uma certa exterioridade, compreendida em sua
dinâmica com o interior, possa ser útil e mesmo necessária aos fins argumentativos do
Tratado.

179
G III, 16. Para um exame da profecia, ver o Capítulo 4.
110

Capítulo 2.
ESCRITURA E LEITURA

Certamente, minha linguagem não mata


ninguém. No entanto: quando digo “essa
mulher”, a morte real é anunciada e já está
presente em minha linguagem; minha linguagem
quer dizer que essa pessoa que está ali agora
pode ser separada dela mesma, subtraída à sua
existência e à sua presença e subitamente
mergulhada num nada de existência e de
presença; minha linguagem significa
essencialmente a possibilidade dessa destruição;
ela é, a todo momento, uma alusão resoluta a esse
acontecimento.

— Maurice Blanchot, A literatura e o direito à


morte1

O que de terrível sem dúvida, ó Fedro, tem a


escrita é realmente a sua semelhança com a
pintura. E de fato os seres que esta engendra
estão como se fossem vivos; porém se lhes
perguntas algo, solene e total é o seu silêncio. E o
mesmo fazem também os discursos; poderias crer
que um pensamento anima o que eles dizem; mas
se algo perguntas do que é dito, querendo
aprender, uma só coisa apenas eles indicam e a
mesma sempre. E uma vez escrito, fica rolando
por toda parte todo discurso, igualmente entre os
que sabem como entre aqueles com os quais nada
tem a ver, e nunca sabe a quem ele justamente
deve falar e a quem não. Transgredido e não com
justiça censurado, do pai sempre ele precisa
como assistente; pois ele próprio não é capaz
nem de se defender nem de se assistir por si
mesmo.

— Platão, Fedro2

Se há uma operação epistêmica característica do período clássico, esta é, como


demonstram as conclusões de Foucault, a substituição do império da semelhança pela
soberania da representação3. Este abismo recém aberto entre os signos e os seres encontra
uma expressão evidente no Quixote, o primeiro dos romances modernos: em sua primeira
parte, o personagem dedica-se a provar a correspondência de sua existência com os signos
dispostos, enquanto Lei, nos romances de cavalaria, procurando tornar a experiência
consoante ao texto. Mais ainda, deve demonstrar a veracidade dos signos organizados

1
BLANCHOT, 1997, p. 311.
2
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Editora 34, 2016. P. 195.
3
FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris : Éditions Gallimard, 1966. P. 61-91.
111

enquanto escritura, atestar, por meio de sua representação, que a linguagem obtém uma
contraparte nas coisas mesmas. Já na segunda parte do romance, o personagem mesmo
converte-se em livro, e necessita fundar um sistema semiótico a partir do qual suas vivências
anteriores possam ser protegidas e justificadas. Dom Quixote se depara com personagens que
leram sua narrativa, desconhecida para ele mesmo, devendo, agora, conquistar sua
semelhança consigo próprio, ser-lhe fiel. O romance dobra-se sobre si mesmo, uma vez que
não se trata, como outrora, de justificar a semelhança com as narrativas exteriores, mas sim
de, convertido em signo, fazer a si próprio corresponder a um outro signo. As palavras criam
uma realidade própria, fechada, sem necessidade de correspondência ao mundo, limitadas a
se comunicarem entre si. Assim, a representação se funda a partir da decepção com a
semelhança, realocando a relação associativa que, no Renascimento, palavras e coisas
possuíam, para um sistema de referências imanente dos signos. Este novo paradigma permite
compreender a fundação de novos regimes discursivos no século XVII, como a probabilidade
e a análise combinatória, e, sobretudo, a própria literatura.

A crítica à noção de semelhança percorre toda a obra de Descartes. Ao examinar a


causa de minhas ideias, concluo que, apesar de sua origem poder ser remetida aos objetos
externos, “não é uma consequência necessária que lhes devam ser semelhantes”4. Assim, por
exemplo, observo que manifesto, em mim, duas ideias distintas do sol: uma, que parece
provir de fora, ou seja, dos sentidos, segundo a qual ele me é representado como uma figura
muito pequena; outra, proveniente seja da Astronomia, seja produzida por mim mesmo,
através da qual o sol parece maior que a Terra inteira. Duas ideias não apenas diferentes, mas
contrárias, acerca de um mesmo objeto; e, é preciso confessar, a ideia imediatamente
derivada de sua contemplação exterior é aquela que me parece mais dessemelhante ao sol.5 A
desconfiança no poder cognitivo dos sentidos, exagerada até a figura do gênio maligno,
depende de um divórcio fundamental entre as minhas percepções e os objetos das quais
derivam, cuja reconciliação posterior se dará apenas com a introdução de outra divindade,
desta vez veraz, capaz de eliminar a sistematicidade de meu erro. Esta criatura que
“empregou toda a sua indústria em enganar-me”6 pode transformar toda a minha existência
numa espécie de sonho contínuo, em que os objetos que nela surgem são tão semelhantes

4
DESCARTES, R. 1973, P. 111; AT IX-1, 31.
5
AT IX-1, 31.
6
DESCARTES, R. 1973, P. 96; AT IX-1, 17.
112

aqueles que julgara reais e verdadeiros que não pareço ter uma razão rigorosa para
descartá-los como ilusórios. A confusão entre o sono e a vigília só será totalmente desfeita ao
fim do percurso das Meditações, recorrendo à memória, incapaz de conferir a mesma
coerência aos sonhos que aos eventos que ocorrem quando estamos despertos.7 É bem
verdade que, naquela altura da argumentação, os sentidos e a memória já tinham recuperado
seu potencial epistêmico, de modo que, ao menos em relação às comodidades e
incomodidades do corpo, posso empregá-los sem maiores hesitações. É interessante observar,
no entanto, que a justificativa final contra a ilusão contínua do sonho repete a regra do
Quixote: o que parece atestar a realidade de minhas percepções atuais é sua conexão com
percepções anteriores, criando uma cadeia de referências que vai não dos signos às coisas,
mas de signo a signo. Reservas quanto à noção de semelhança que parte da constatação da
desconexão entre objetos e percepções, de um lado; criação de um sistema semiótico baseado
na representação para justificar a veracidade de minhas percepções, de outro.

Tal descontinuidade não se restringirá ao campo das percepções, mas determinará,


também, uma desconfiança quanto ao uso da linguagem. Antes de Descartes, Francis Bacon
já listava, enquanto impedimentos ao conhecimento, os ídolos do foro: aqueles encontrados
no comércio entre os homens, revelado sobretudo através da fala8. As palavras “obstruem o
entendimento”, o “violentam” e o “confundem”9, porque são constituídas de acordo com a
percepção do homem vulgar, necessariamente limitada e atenta ao aspecto mais óbvio dos
objetos. Ainda que uma reforma da linguagem seja empreendida, de modo a tornar seu
significado mais correspondente à natureza, as palavras resistem ao domínio da razão.
Palavras podem funcionar como um início ao processo cognitivo, mas, depois, é necessário
imprimir-lhes ordem através de definições exatas de seus significados. Mesmo assim, em
temas relativos à natureza e à matéria, introduzir definições aos termos encontraria o
obstáculo de que as próprias definições necessitam adotar a forma verbal – daí ser preferível
fundar um método que se concentre em noções e axiomas10. Escapando à autoridade da razão,

7
AT IX-1, 71-72.
8
BACON, F. The New Organon. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. Livro I, §39, 43, 59, 60. P.
40-42; 48-49.
9
Cf. BACON, F. 2003, P. 42; Novum Organum, Livro I, §43.
10
Novum Organum, Livro I, §59.
113

os termos que compõem a linguagem causam disputas entre os homens, que se concentram,
muitas vezes, em nomes, tornando a filosofia e as ciências “sofísticas e improdutivas”11.

A cisão entre palavras e coisas é similarmente o pressuposto da cautela cartesiana


quanto à linguagem ordinária: tal qual Bacon, Descartes enumera, nos Princípios, as quatro
principais causas do erro, cuja última é “o fato de ligarmos nossos conceitos a palavras que
não correspondem exatamente às coisas”12. A traição das palavras é reenviada a uma
deslealdade anterior, da qual dependem: o uso irrefletido da memória. A confiança irrestrita
no significado das palavras determina que não se pense mais no conceito por ela
representado, confiando mais à memória do que ao entendimento. Esta memória jamais
armazenará, na palavra, um conceito tão distinto da coisa quanto se se concentrasse no
conceito, de modo que, ao assentir puramente ao verbo, os indivíduos terminam por afirmar
aquilo que não entendem, mas que creem ter entendido outrora; ou, pior, dão crédito ao
significado das palavras, e aos conceitos que representam, tal como receberam de outros
indivíduos. O culto às palavras é inserido numa crítica mais ampla aos preconceitos
acumulados desde a infância, dada a dimensão herdada da linguagem enquanto estrutura que
escapa ao arbítrio individual. Como a alma estava, na infância, estreitamente ligada ao corpo,
erigiu uma série de noções que dizem respeito mais ao modo como seu corpo era
sensivelmente afetado do que à essência das coisas mesmas13. As noções permaneceram, na
juventude, aliadas a um esquecimento de sua origem: admitidos como “veríssimos e
evidentíssimos como se tivessem sido conhecidos pelos sentidos ou nela colocados pela
natureza”14.

A linguagem comum revela seu aspecto enganador também ao confundir o ato de ver
com o de julgar. Quando digo que vejo o mesmo pedaço de cera, modificado após o contato
com o fogo, o termo ver esconde uma operação que é, na verdade, intelectual. Vejo
simplesmente um conjunto de propriedades físicas: antes do fogo, o pedaço de cera “é duro, é
frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som”15; depois do fogo, torna-se líquido,
quente e silencioso. A visão pode apenas me fornecer a variabilidade de propriedades. Que se

11
Cf. BACON, F. 2003, P.48; Ibid.
12
DESCARTES, R. 2002b, P. 97; AT IX-2, 60-61.
13
AT IX-2, 58-59.
14
DESCARTES, R. 2002b, P. 93; AT IX-2, 59.
15
DESCARTES, R. 1973, P. 104; AT IX-1, 23.
114

trata do mesmo pedaço de matéria, no entanto, é um juízo do entendimento, conjugado à


vontade, que tomo como simultâneo ao ato de ver. Da mesma forma, quando digo que vejo
homens pela janela, deveria, antes, atentar-me apenas às informações fornecidas por meus
olhos: chapéus e casacos, que poderiam muito bem pertencer a “homens fictícios que se
movem apenas por molas”16. A linguagem, portanto, surge como impedimento ao
conhecimento, na medida em que, separada de sua semelhança intrínseca às coisas, se vê a
todo tempo obrigada a justificar seu parentesco com elas.

Face à linguagem, Spinoza é, como Descartes e Bacon, um clássico? Foucault parece


acreditar que sim, mas a ausência de uma discussão mais minuciosa do spinozismo em seu
trabalho é, no mínimo, digna de nota. Em As Palavras e as Coisas, no capítulo dedicado à
descrição da épistème clássica, há uma menção nominal, en passant, em que Spinoza é
igualado a Descartes e a Malebranche quanto à função que dedica à imaginação (que oscila
entre o erro e seu uso matemático; seja como for, como atestação da finitude do intelecto
humano).17 O tratamento quase imperceptível que Foucault dedica a Spinoza poderia estar
baseado no fato de que o tema da linguagem simplesmente não é o foco da doutrina deste
último. Ora, mas o mesmo não poderia ser dito de Descartes? O cartesianismo certamente
possui uma teoria das paixões, uma doutrina da liberdade, uma concepção sui generis de
Deus, mas não há um espaço privilegiado para a reflexão sobre os signos, e, no entanto,
Foucault consagra, sobretudo às Regras, uma parte importante da construção de seu
argumento sobre a crítica que o século XVII promove à noção de semelhança. O quase
silêncio de Foucault sobre Spinoza poderia sugerir que ele é, em relação à modernidade,
como diria Antonio Negri, uma anomalia selvagem?18

Para responder a esta indagação, devemos nos confrontar com o aspecto duplo que a
linguagem assume no spinozismo: de um lado, sua crítica à linguagem, que surge de modo
fragmentário ao longo de toda a sua obra, com a qual parece abraçar as posturas de seus
contemporâneos. De outro, uma compreensão de método, materializada na Ética e nos

16
DESCARTES, R. 1973, P. 105; AT IX-2, 25.
17
FOUCAULT, M. 1966, P. 84.
18
O silêncio de Foucault sobre Spinoza, em especial a ausência de uma discussão detalhada sobre sua concepção
de signo, é notado por Lorenzo Vinciguerra em seu trabalho Spinoza et le signe. Paris : Vrin, 2005. P. 11. A
referência específica, aqui, é ao As Palavras e as Coisas. É bem verdade que Spinoza surge em outros
momentos da obra de Foucault: por exemplo, em A Verdade e as Formas Jurídicas, numa comparação com
Nietzsche.
115

Princípios da Filosofia Cartesiana, que o afasta desta concepção, fazendo-o reconciliar


linguagem e ser. Este aparente desvio configura um preâmbulo necessário às discussões
travadas ao longo do TTP, que acrescentam, ao tema da linguagem, uma teoria da
interpretação bem como uma crítica à sacralização da palavra tomada enquanto escritura.

A penúria das palavras 19

As considerações spinozistas sobre a linguagem estão dispersas ao longo de seus


textos: em geral, a linguagem surge menosprezada no interior de um argumento, para fazer
referência ao caráter meramente verbal de determinadas entidades conceituais ou operações.
A palavra está a uma distância considerável do ser: a quimera ou “aquilo cuja natureza
envolve aberta contradição”20, como um círculo quadrado, nada é além de uma palavra
(verbum), pois não existe na imaginação, tampouco no entendimento.21 É possível exprimir,
na linguagem, um círculo quadrado, mas, do ponto de vista de sua realidade, trata-se de mera
negação. Uma análise do uso ordinário dos termos verdadeiro e falso permite igualmente
concluir que, ao invés de termos transcendentais, que se referem a propriedades dos entes, as
expressões não têm realidade senão imprópria ou retoricamente.22 O vulgo começou por
atribuir verdade e falsidade às narrações: julgando verdadeira aquela que correspondia a um
acontecimento e falsa aquela que não teve lugar. Retirando o termo de seu uso comum, os
filósofos recuperaram a expressão para tratar da conveniência entre ideia e ideado; e, como as
ideias nada são senão narrações ou “histórias mentais da natureza”23, transferiram os termos
também para as coisas “mudas” (res mutas)24, as quais se dizem verdadeiras ou falsas na
medida em que expressam ou não algo de que é em si. O uso dos vocábulos “verdadeiro” e
“falso”, então, isola uma característica intrínseca ao objeto e, dada a distância entre palavras
e coisas, admite que se afirme ou negue algo que não pode ser efetivamente da coisa
separado. A verdade nada é para além da ideia verdadeira, assim como a brancura não pode
ser compreendida como uma propriedade que paira além do corpo branco. Assim, as
expressões contraditórias, meramente ficcionais, são igualadas a determinadas propriedades
na medida em que são simplesmente denominações extrínsecas das coisas, atribuições

19
Verborum penuriam. Cf. ESPINOSA, B. 2015c, P. 87; TIE, §96.
20
ESPINOSA, B. 2015b, P. 197; CM, I, 1, Nota.
21
CM, I, III.
22
CM, I, VI.
23
ESPINOSA, B. 2015b, P. 217; Ibid.
24
Ibid.
116

retóricas, que podem existir na linguagem, mas são desprovidas de ser. Daí por que, ao longo
dos Cogitata Metaphysica, Spinoza denuncie os “filósofos verbalistas” (Philosophos
verbales) e “gramaticistas” (grammaticales)25, cujo raciocínio emerge dos nomes às coisas,
ao invés de das coisas aos nomes, e que tome as disputas sobre nomes como polêmicas fúteis,
vagas e vazias26. É que as palavras vivem afastadas das coisas, e, por isso, podem trair, fingir,
mentir: em suma, dar voz à negação.

Não é apenas, porém, a composição arbitrária entre signos exteriores que a linguagem
permite: o fingimento pode se dar também em relação a mim mesmo. As palavras
proporcionam um fenômeno próximo do autoengano: o fingimento sobre suas próprias
capacidades e estados mentais. Assim para a ilusão do livre-arbítrio, já tantas vezes
denunciada por Spinoza27: os homens se dizem livres, ou seja, reputam a origem de suas
ações à sua vontade, mas com isso apenas exprimem “palavras das quais não têm nenhuma
ideia”28. Nutrem esta opinião pois, conscientes de suas ações, creem-nas independentes das
causas que as determinam. Uma sentença como, por exemplo, “sou livre para determinar o
fluxo de minha vida”, tem uma referência vazia, deixando entrever a ignorância do falante,
que não domina as causas de suas ações. Além disso, alguns, ao confundirem palavras e
ideias, acreditam poder “querer contra o que sentem, quando o fazem somente por palavras”29
. Para compreender este fenômeno, é preciso insistir na diferença entre ideias e palavras, um
aspecto em que a teoria das ideias spinozista difere da cartesiana. Enquanto para Descartes a
ideia é como um quadro, ou seja, representa de forma neutra um objeto ou um conceito, cuja
afirmação ou negação só poderá acontecer posteriormente num juízo operado pela vontade30,
a ideia, para Spinoza, é nela mesma afirmação ou negação, pois a vontade não é uma

25
ESPINOSA, B. 2015b, P. 199; CM, I, 1.
26
“Se alguém quiser chamar de contingente o que eu chamo de possível e, ao invés, de possível o que eu chamo
de contingente, não o contradirei, pois não costumo disputar sobre nomes”. ESPINOSA, B. 2015b, P. 211; CM,
I, III.
27
Ver, para tanto, o Capítulo I deste estudo.
28
ESPINOSA, B. 2015a, P. 191; EII, P. XXV, esc.
29
ESPINOSA, B. 2015a, P. 221; EII, P. XLIX, esc.
30
“Entre meus pensamentos, alguns são como imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de
ideia: como no momento em que eu represento um homem ou uma quimera, ou o céu, ou um ano, ou mesmo
Deus. Outros, além disso, têm algumas outras formas: como, no momento em que eu quero, que eu temo, que eu
afirmo ou que eu nego, então concebo efetivamente uma coisa como o sujeito da ação de meu espírito, mas
acrescento também alguma outra coisa por esta ação à ideia que tenho daquela coisa; e deste gênero de
pensamentos, uns são chamados vontades ou afecções, e outros juízos”. Cf. DESCARTES, R. 1973, P. 109; AT
IX-1, 29.
117

faculdade específica do intelecto, mas apenas a volição que a ideia, nela mesma, envolve31. A
ideia carrega já em si mesma um desejo, de modo que as palavras, se não corresponderem a
ele, serão simplesmente vazias de ser. Para evitar a confusão entre palavras e ideias, portanto
32
, é necessário separar a natureza da ideia, que é um produto do pensamento, das palavras e
demais imagens, formadas por movimentos corporais, que envolvem o conceito de extensão.

Estas considerações iniciais ainda não nos permitem concluir a total impossibilidade
da linguagem para expressar o ser: elas apenas introduzem um ruído em seu poder
expressivo. Na verdade, tal como Bacon e Descartes, Spinoza pode estar apenas atentando
para o uso cauteloso que devemos fazer dos termos da linguagem. No TIE, novamente as
palavras são associadas à potência humana para o fingimento: a capacidade da mente para
fingir é tanto maior quanto maior for seu desconhecimento das coisas, ou seja, quanto menos
inteligir.33 O conhecimento da natureza da alma impede que se possa fingir sua corporeidade,
assim como o conhecimento da essência do corpo nos impossibilita pensar uma mosca de
extensão infinita. Os exemplos se multiplicam: “árvores falarem, homens mudarem num
instante em pedras e em fontes, espectros aparecerem nos espelhos, o nada fazer-se algo, e
também Deuses mudarem em bestas ou em homens”34 – são ficções (fictiones), cuja
possibilidade verbal se sustenta, como vimos, dada a distância entre palavras e coisas.

Tais considerações remetem à capacidade da linguagem para expressar a falsidade.


Que pensar, no entanto, quanto ao uso dos nomes para expressar essências de coisas, como a
natureza imaterial da alma, a finitude do corpo da mosca, a existência de Deus, e as demais
entidades que, ao menos a princípio, tendemos a considerar como reais ao invés de
ficcionais? Ora, enquanto as quimeras parecem existir apenas na linguagem, as palavras
existem na imaginação: são signos das coisas (signa rerum), constituídas arbitrariamente e
conforme a compreensão do vulgo35. Parece haver uma gradação, então, das quimeras e
ficções, cuja existência é meramente linguística, para as palavras, que pertencem à
imaginação. A reserva quanto às palavras parece de fato inscrever Spinoza na tradição que se

31
EII, P. XLIX.
32
A distinção entre as perspectivas de Descartes e Spinoza, nesta argumentação, serve apenas para observarmos
o caráter necessariamente volitivo das ideias no último, do qual deriva a impossibilidade de afirmar verbalmente
contra aquilo que se sente. Em relação à origem imaginativa das palavras, porém, os dois autores parecem estar
de acordo.
33
TIE, §58.
34
ESPINOSA, B. 2015c, P. 61; TIE, §58.
35
TIE, §89.
118

inicia com ídolos de Bacon, atravessa a denúncia das causas dos erros elencadas por
Descartes nos Princípios, para, enfim, atingir a definição spinozista das palavras como
produto da imaginação, compostas “na memória de maneira vagante a partir de alguma
disposição do corpo”36, podendo, assim, serem fontes de muitos erros. Conceitos cuja
expressão verbal é negativa, tais como “incorpóreo”, “infinito”, “incriado”, “imortal” etc.,
muitas vezes fazem referência à entidades intelectuais cuja natureza é, na verdade, positiva,
mas que as palavras, enquanto produtos da imaginação, não são capazes de exprimir. Como é
mais fácil imaginar o contrário do corpóreo, do finito, do criado e do mortal do que
compreender, em sua positividade, tais conceitos, as palavras traduzem essa disposição
imaginativa via negação. Para aqueles que organizam seu pensamento pelas palavras ou
nomes, são gerados, então, diversos preconceitos em relação à essência de determinadas
entidades.

A natureza imaginativa ou sígnica37 das palavras é confirmada por uma proposição


decisiva da Ética38, a qual enuncia a seguinte lei: se o corpo humano for afetado por dois ou
mais corpos em simultâneo, a imaginação posterior que a mente fará de um destes corpos a
encaminhará à consideração do outro. O corpo exterior, ao agir sobre o corpo humano,
imprime nele determinados vestígios (vestigiis): e, no caso de ter sido afetado
simultaneamente por dois corpos, estes vestígios serão tomados em simultâneo; ou, então, a
consideração de um destes corpos isoladamente remeterá a esta ação fundadora, na qual está
sempre relacionada, como signo, ao outro. É assim que se estrutura a memória: “alguma
concatenação de ideias que envolvem a natureza das coisas que estão fora do Corpo humano,
a qual ocorre na Mente segundo a ordem e a concatenação das afecções do Corpo humano”39.
Isto basta para demonstrar que não é por uma relação de semelhança ou algum princípio
ordenador intrínseco que as imagens se mostram à imaginação: a regra é tão somente uma
espécie de eco da ocasião primeira do encontro do Corpo humano com os objetos externos.
Segue-se, então, que a palavra, enquanto entidade imaginária ou sígnica, só pode sustentar,
com o objeto da qual é representação, uma relação arbitrária.

36
ESPINOSA, B. 2015c, P. 83; TIE, §88.
37
Para um estudo completo do signo em Spinoza, remeto mais uma vez aos trabalhos de Lorenzo Vinciguerra: «
Spinoza et les signes des choses », In : Revue des Sciences philosophiques et théologiques. Vol. 82, No. 1,
CHOSE, OBJET, SIGNE CHEZ SPINOZA (Janvier 1998), pp. 31-48; e Spinoza et le signe. Paris : Vrin, 2005.
38
EII, P. XVIII, esc.
39
ESPINOSA, B. 2015a, P. 171; EII, P. XVIII, esc.
119

Distingue-se, de um lado, a concatenação das imagens provenientes dos encontros dos


corpos, que é pessoal e arbitrária; e, de outro, a concatenação das ideias na mente, que é
universal e ordenada segundo as causas primeiras. Assim se explica o funcionamento geral da
linguagem: a palavra pomum fará um romano pensar no fruto que não é em nada semelhante
ao som articulado por aqueles termos. O que o pomum e o fruto têm em comum, para o corpo
do romano, é simplesmente a concomitância de seu aparecimento: o fato de muitas vezes este
indivíduo ter ouvido a palavra enquanto via o fruto. Da mesma forma, um soldado, ao
encontrar vestígios de um cavalo na areia, é imediatamente levado ao pensamento do
cavaleiro e da guerra; mas um camponês, ao pensar no cavalo, associará a ele o arado e o
campo. De modo que os signos, e as palavras incluídas, narram a história pessoal do
indivíduo, a maneira como costumeiramente a memória, a partir dos encontros corporais,
concatenou determinadas imagens. A memória é uma série de imagens que se desloca de um
signo a outro sem qualquer princípio ordenador intrínseco, e as palavras são manifestações
desta arbitrariedade.

Isto parece significar que as palavras só podem se referir, na mente dos indivíduos, a
entidades singulares. Ora, como pensar, então, a comunicação? A linguagem não necessita se
basear em entidades universais para garantir um mínimo de regularidade na referência aos
mesmos objetos? Se a comunicação é possível, é de se esperar que ela se estruture a partir de
termos universais. A resposta de Spinoza, neste momento, é mais uma ocasião para listar a
impostura das palavras: elas não só permitem as ficções, mas são o canal de expressão das
ideias transcendentais (Ser, Coisa, algo) e universais (Homem, Cavalo, Cão)40. Os termos
(termini) transcendentais existem pela única razão de o corpo só ser capaz de forjar
distintamente e em simultâneo uma quantidade limitada de imagens. Se esta quantidade for
ultrapassada, as imagens passarão a se confundir, e, como a mente é capaz de imaginar tantos
corpos quantas imagens forem formadas em seu corpo41, a confusão do corpo rapidamente
dará lugar a uma confusão na mente. Assim, os corpos serão agrupados, sem distinções, em
atributos gerais como os de Ser, Coisa etc., de modo que a singularidade de cada uma destas
imagens será abolida. Os termos universais têm uma origem similar. São forjadas em
simultâneo, no corpo, uma grande quantidade de imagens, contendo propriedades singulares,
de modo que a imaginação não poderá abarcar nem as pequenas diferenças entre os corpos,

40
EII, P. XL, esc.1.
41
EII, P. XVII, cor.; EII, P. XVIII.
120

tampouco a quantidade deles. Ela só poderá considerar distintamente as propriedades nas


quais estas diversas imagens convêm na medida em que o corpo humano é por elas afetado.
Por isso, a mente exprimirá através de um universal, por exemplo, homem, todos os infinitos
singulares pelos quais o corpo foi afetado, apagando suas particularidades. Tanto os
transcendentais quanto os universais, portanto, são termos (termini) ou nomes (nomina) que
“significam ideias confusas em sumo grau”42. Isto dá conta da origem dos diversos ruídos na
comunicação: sob o nome de homem, alguns entendem “o animal de estatura ereta”43; outros,
“um animal que ri”44, outros ainda “um bípede, sem penas”45, porque foram mais
frequentemente afetados por determinados corpos singulares, e se acostumaram a forjar, pela
imaginação, um conjunto de imagens em detrimento de outro. Os transcendentais e os
universais são expressões singulares que se querem universais.

Enquanto os transcendentais pertencem a um vocabulário mais técnico e filosófico, os


universais fundamentam a própria linguagem ordinária46. Se entendermos que os universais
são a condição básica da linguagem, a conclusão que obtivemos para as palavras poderá ser
generalizada para a comunicação. Ora, as palavras exprimem apenas recortes confusos dos
corpos externos, interpretações, ao invés de essências; logo, quando digo homem, considero
imagens diferentes daquelas que meu interlocutor considerará ao escutar o mesmo som. A
linguagem é sempre expressão determinada da história corporal e imaginativa de um
indivíduo singular. Portanto, um diálogo só pode ser uma estranha situação em que dois
indivíduos apresentam, cada um à sua maneira, um uso específico da linguagem, como um
monólogo a dois – um pouco como os personagens de Racine, que entram em cena apenas
para entoar seus longos e bem articulados solilóquios.

De fato, o teor intrinsecamente falsificador da linguagem encaminhou alguns


comentadores a conclusões extremas. Diante deste quadro, David Savan47 se pergunta se é

42
ESPINOSA, B. 2015a, P. 199; EII, P. XL, esc.1.
43
Ibid.
44
Ibid.
45
Ibid.
46
Que Spinoza está consciente de uma distinção, ainda que primária, entre a linguagem em seu uso comum e em
sua acepção filosófica é patente pela explicação que fornece para o afeto da Indignação: “Sei que estes nomes
significam outra coisa no uso comum. Contudo meu intuito não é explicar a significação das palavras, mas a
natureza das coisas, e indicá-las com vocábulos cuja significação usual não repugna inteiramente àquela com
que quero empregá-los; e basta tê-lo advertido uma vez.”, cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 349; EIII, Def. dos
Afetos, XX.
47
SAVAN, D. “Spinoza and Language”. In : The Philosophical Review, Vol. 67, No. 2 (Apr., 1958), pp.
212-225.
121

possível, por fim, que Spinoza transmita adequadamente, empregando a linguagem, sua
própria filosofia. Pode o adequado, quer dizer, a própria verdade, ser comunicada através de
um meio inadequado, ou seja, a linguagem? Savan acredita que um desvencilhamento do
caráter imaginativo das palavras, em direção a algo como um uso uniforme das mesmas, não
é possível no interior do spinozismo. Como evidência de sua interpretação, elenca uma série
de contradições engendradas pelas palavras dispostas ao longo da Ética: por exemplo, o fato
de Spinoza empregar a expressão ser48, já outrora denunciada como um transcendental vazio49
; ou então, na definição de substância, lançar mão da operação de conceber (intelligere), a
qual, ainda na Ética, fora classificada como igualmente fictícia, uma vez que não há uma
faculdade absoluta de entender – tampouco de desejar ou de amar – para além das próprias
ideias50. Spinoza estaria consciente destas contradições flagrantes posto que informado de que
qualquer empreitada comunicativa que envolvesse o uso da linguagem necessariamente
recairia em tais percalços. A proposta positiva de Savan é apostar nos entes de razão: modos
de pensar que auxiliam a mente a “reter, explicar e imaginar as coisas entendidas”51 e que não
possuem qualquer existência para além da mente. Segundo ele, a Ética compreenderia a
linguagem como um auxílio em direção à transmissão da verdadeira filosofia. Como não
possuem existência independente, não pretendendo corresponder a qualquer objeto real, os
entes de razão não encaminhariam, como as palavras, necessariamente aos preconceitos; pois
podem ser tomados como meios para um fim, e abandonados tão logo a verdade filosófica
fosse corretamente compreendida (um pouco como Wittgenstein considerava a função de seu
Tractatus: descartar a escada após ter atingido o topo52).

Contra esta interpretação, Moreau53 apoia-se numa ideia apresentada numa carta a
Pierre Balling54. Seu interlocutor havia erigido a hipótese de que experimentara um

48
EI, defs. III e VI.
49
EII, P. XL, esc.1.
50
“Da mesma maneira demonstra-se que não se dá na Mente nenhuma faculdade absoluta de entender
(facultatem absolutam intelligendi), desejar, amar etc. Donde segue que estas faculdades e similares ou são
inteiramente fictícias ou não são nada além de entes Metafísicos, ou seja, universais que costumamos formar a
partir dos particulares”. Cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 215; EII, P. XLVIII, esc.
51
ESPINOSA, B. 2015b, P. 197; CM I, 1.
52
Diz uma das últimas proposições do Tractatus: “Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me
entende acaba por reconhecê-las como contrasensos, após ter escalado através delas - por elas - para além delas.
(Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.). Deve sobrepujar essas proposições, e então
verá o mundo corretamente.” (Tractatus, §6.54). Cf. WITTGENSTEIN, L. 2010. P. 281.
53
MOREAU, P.F. 1994, P. 315-319.
54
Carta XVII.
122

presságio: teria ouvido gemidos de seu filho, parecidos com aqueles que ele emitira quando
doente, os quais foram tão logo seguidos de seu falecimento. Ainda que os gemidos não
passem de produtos da imaginação, o presságio, sob certas condições, é um fenômeno real.
Os efeitos da imaginação, como os gemidos, podem provir seja do corpo, seja da alma. No
segundo caso, a imaginação segue os traços do entendimento, encadeando as imagens como
este último concatena as demonstrações. O paralelo entre as imagens e as demonstrações será
tal que para cada conhecimento do intelecto a imaginação formará, de imediato, uma imagem
correspondente. Estas imagens, então, provindo da constituição da alma, podem ser como
presságios de coisas futuras, já que a alma dispõe, ainda que confusamente, do poder de
pressentir o que acontecerá. Esta tese soa, aliás, perfeitamente consequente com o
necessitarismo spinozista: a cadeia de causas está desde sempre determinada em Deus55, e
pode ser que a alma humana, em alguns casos, tenha acesso a ela confusamente. A
consequência será a produção de uma imagem (o gemido) para um evento futuro (a morte do
filho)56. Tendo em vista que Spinoza jamais afirmou categoricamente a impropriedade
intrínseca da linguagem para exprimir o ser, e considerando que as palavras são imagens,
também elas podem ser organizadas em paralelo à ordem do intelecto – fundando, então, um
uso adequado para expressar as coisas, incluindo a própria filosofia.

Seguindo esta proposta, Céline Hervet57 distingue entre as noções comuns e os termos
universais. Assim para o caso de “homem”: contra a proposta aristotélica, que se apoia no
gênero e na diferença específica para defini-lo, Spinoza apresenta uma definição de homem
que atenta para sua constituição, ou seja, para o fato de possuir mente e corpo58, corpo este
cuja formação obedece à lei geral de movimento e repouso a qual todos os demais corpos
estão submetidos59. Trata-se de uma noção comum pois retira propriedades comuns dos
objetos a partir do encadeamento do entendimento60 e não das imagens corporalmente

55
EI, P. XXIX, P. XXXII, XXXIII, XXXV, XXXVI.
56
Interessante contrastar a posição de Spinoza face ao presságio na Carta XVII e, por exemplo, no Prefácio ao
TTP, tal como reconstruímos no capítulo anterior. Embora, na maior parte dos casos, os presságios sejam meros
produtos da imaginação, derivados da ignorância das causas, é possível que sejam fenômenos efetivos caso a
imaginação se conduza seguindo o intelecto.
57
HERVET, C. De l’imagination à l’entendement. La puissance du langage chez Spinoza. Paris : Classiques
Garnier, 2012. P. 183.
58
EII, P. XIII, cor.
59
EII, P. XIII, Lema I.
60
“Finalmente, porque temos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas (ver Corol. da
Prop. 38 e Prop. 39 com seu Corol. e Prop. 40 desta parte); e a isto chamarei de razão e conhecimento de
segundo gênero”. Cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 201; EII, P. XL, esc.2.
123

forjadas. A palavra “homem” pode reenviar, portanto, tanto a esta noção comum – como
parece ser o caso no Prefácio à Ética IV, com a ideia de naturæ humanæ exemplar61 – quanto
à sua imagem universal, que, como vimos, é confusa e particular à história de cada indivíduo.
Assim, as soluções de Moreau e Hervet, as quais subscrevemos, nos permitem encontrar ao
menos uma possibilidade para uma espécie de reforma dos signos, justificando seu uso
adequado no contexto filosófico.

Antes de dar prosseguimento à discussão, gostaria apenas de sublinhar uma


associação que, a esta altura, já deve estar suficientemente explícita ao leitor. Ao conferir às
palavras uma origem imaginativa e, mais especificamente ainda, sígnica, Spinoza nos permite
construir um nexo entre signo, palavra ou linguagem e exterioridade. A natureza do signo é
ser exterior ao objeto ao qual se refere, porque a relação que constrói com ele não é sequer a
de semelhança (já ela extrínseca), mas sim a mera simultaneidade de eventos corporais, que
são eles mesmos singulares, pessoais e intransferíveis. Compreende-se a insistência de
Spinoza na ideia de que a verdade não necessita de signos62: os signos são elementos
exteriores à verdade, não nutrindo com ela qualquer relação essencial, portanto, inúteis à
demonstração filosófica que exige justamente uma composição necessária – e,
acrescentaríamos, matemática – entre os termos que compõem a cadeia dedutiva. As palavras
pertencem ao primeiro gênero de conhecimento, também denominado opinião ou imaginação,
gênero este que opera por noções universais, que, como vimos, podem ser tanto forjadas a
partir dos singulares quanto através de signos, quando “ouvidas ou lidas certas palavras, nos
recordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas pelas quais imaginamos
as coisas”63: eis a causa única da falsidade.64

A exterioridade da palavra em relação ao objeto é acompanhada por uma


exterioridade da linguagem em relação ao indivíduo: basta lembrarmos que a linguagem é
uma estrutura que o escapa, cuja origem é social e, portanto, histórica e geograficamente
transmitida. Há, portanto, uma dupla exterioridade na linguagem65: a que a separa do objeto

61
“Pois, porque desejamos formar uma ideia de homem que observemos como modelo da natureza humana, nos
será útil reter estes mesmos vocábulos no sentido em que disse”. Cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 377; EIV,
Prefácio.
62
TIE, 35-36; 44; EII, P. XLIII, esc.
63
ESPINOSA, B. 2015a, P. 201; EII, P. XL, esc.2.
64
EII, P. XLI.
65
HERVET, C. 2012, P. 185.
124

ao qual se refere – por ser uma imagem extraída do encontro de um corpo individual com o
corpo exterior sem abarcar suas propriedades intrínsecas, como faz uma noção comum – e
aquela em que o indivíduo, sem passar pela experiência direta de concatenação das imagens
por meio deste encontro, apenas aceita a linguagem ex audire, herdando-a como um
patrimônio. Neste sentido, o culto às palavras não difere da superstição engendrada pela
crença nas causas finais e nos milagres. Cultuar as palavras, na filosofia, é o equivalente a
raciocinar a partir dos signos exteriores das coisas, ou seja, a ser verbalista ou gramaticista; e,
na teologia, a ser preconceituoso, ou seja, a sacralizar a letra bíblica.66 Daí por que, para
expressar a filosofia, talvez seja necessário corrigir a linguagem, de tal forma que ela
recupere o elo perdido entre palavras e coisas, expressando uma relação intrínseca entre signo
e ser.

Uma alternativa aos signos

O que é, afinal de contas, o more geometrico? Como nota Charles Ramond67, a


expressão surge uma única vez na Ética, notadamente no Prefácio da Terceira Parte: Spinoza
a emprega para caracterizar a forma como preferiu tratar dos afetos humanos, distanciando-se
tanto de Descartes, que, embora tenha se empenhado em compreender os afetos por suas
causas primeiras, supunha uma intervenção direta da alma sobre o corpo, e, portanto, a
possibilidade de domínio desta sobre aqueles; quanto dos filósofos moralistas, os quais
amaldiçoaram ou ridicularizaram os afetos, considerando-os como vícios ou desvios da
natureza humana68. Já neste trecho, o more geometrico é tomado como alternativa ao
cartesianismo e ao moralismo, sendo, como eles, um método de pensamento. Ao invés de
simplesmente uma figura retórica, e já insisti outrora no uso spinozista da retórica ao menos
em algumas passagens importantes do TTP69, esta ordem diz respeito a uma maneira de
pensar, a qual pretende alcançar demonstrações a partir de razões certas. A expressão ordine
geometrico, análoga a ela, vem compor o título do tratado em questão: Ethica Ordine
Geometrico demonstrata, de tal forma que este modo específico de demonstrar, que investe

66
A crítica à sacralização do texto Bíblico é um subtema da crítica geral à linguagem promovida por Spinoza.
Discutiremos tal tópico ainda neste capítulo.
67
RAMOND, C. 2007, P. 127.
68
“Estes, sem dúvida, hão de admirar que eu me proponha a tratar dos vícios e inépcias dos homens à maneira
Geométrica (more Geometrico tractare) e queira demonstrar com uma razão certa aquilo que reiteradamente
proclamam ser contrário à razão, vão, absurdo e horrendo.” ESPINOSA, B. 2015a, P. 235; EIII, Pref.
69
Ver a análise que proponho do Prefácio do TTP no capítulo anterior.
125

nas definições, axiomas, e proposições, não se encontrará apenas no tratamento dos afetos na
Parte III, mas ensaiado ao longo de toda a obra.

Não encontramos, no entanto, uma reflexão metodológica ou justificativas mais


elaboradas para a adoção deste método ao longo da Ética. Na verdade, para compreender a
escolha spinozista pelo método euclidiano ou exposição sintética é necessário recuarmos ao
TIE. Spinoza busca conquistar, neste texto, um método que encaminhe diretamente à fruição
do sumo bem, ou seja, “o conhecimento da união que a mente tem com a Natureza inteira”70 e
o posterior compartilhamento deste saber com os demais indivíduos71. O método pode ser
dividido em três segmentos principais: deve, primeiro, distinguir a ideia verdadeira,
mostrando em que sentido não pode ser confundida com as ideias falsas, fictícias e dúbias;
em seguida, deve apresentar regras pelas quais as coisas podem ser conhecidas através da
norma da ideia verdadeira conquistada, forjando uma teoria da definição e da dedução
consequentes e, por último, tem de “constituir uma ordem para não nos fatigarmos com
inutilidades”72. É certo que Spinoza atingiu ao menos os dois primeiros escopos do método:
os parágrafos finais do TIE inserem considerações a respeito do conhecimento das coisas
singulares, bem como sobre a potência do intelecto, que parecem ainda permanecer no
interior de sua segunda seção. Sabemos que o texto permaneceu para sempre inacabado, e
talvez a estranheza destes parágrafos finais, que parecem vagar sem rumo, se explique pela
hipótese de Deleuze, segundo a qual Spinoza teria interrompido a redação do TIE por lhe
faltar o conceito das noções comuns73. Seja como for, basta, para nós, seguir as teses
correspondentes à primeira e à segunda partes do método para entrevermos uma conexão
essencial entre o modo de exposição da Ética e a forma de pensamento considerada ideal por
Spinoza.

A primeira parte do método constata inicialmente que é supérfluo regredir ao infinito


numa busca por um método preliminar que o legitime.74 Isto se explica por duas razões:
primeiro porque, tal como nas coisas naturais, por exemplo, para forjar o ferro, foi preciso um

70
ESPINOSA, B. 2015c, P. 33; TIE, §13.
71
TIE, §14. Sobre o desejo que aquele que vive conduzido pela razão tem de compartilhar a fruição do bem com
os demais indivíduos, ver também EIV, P. XXXVII. Nesta proposição, Spinoza definirá tal desejo por piedade.
72
ESPINOSA, B. 2015c, P. 55; TIE, §49.
73
“Na verdade, a razão do inacabamento do Tratado nos parece muito clara: é porque ele descobre e inventa as
noções comuns que Espinosa se apercebe que as posições do Tratado da correção do intelecto são insuficientes
em vários aspectos, e precisaria remanejar o conjunto, ou então refazer tudo.” Cf. DELEUZE, G. 2002, P. 124.
74
TIE, §30.
126

martelo, e, para, fazê-lo, é necessário ainda outro martelo e assim se constrói uma cadeia de
instrumentos que remete ao infinito, os homens dispuseram de instrumentos inatos com os
quais puderam, aos poucos, forjar ferramentas e objetos de uso mais complexos, também o
intelecto dispõe de uma “força nativa”75, com a qual pode confeccionar utensílios intelectuais,
partindo do mais simples e rudimentar até que atinja uma sabedoria mais elaborada76. O
questionamento pela origem dos instrumentos, então, tende não apenas a afastar o intelecto
do reto caminho para a conquista do verdadeiro, mas a conduzi-lo a uma situação de
ceticismo generalizado em que simplesmente não há conhecimento algum, de tal forma que
este comportamento de incessante dúvida produziria um indivíduo correspondente a um
autômato desprovido de mente.77

Esta primeira justificativa apela para a experiência que temos da potência do intelecto
para forjar por si próprio instrumentos mentais. Uma razão suplementar recorre à natureza
mesma das ideias verdadeiras. Distingue-se Pedro, um ente real, da ideia de Pedro, que
também é real, mas que constitui a essência objetiva deste ente. Enquanto real, a ideia de
Pedro é igualmente inteligível, e pode ser, ela mesma, objeto de outra ideia: a ideia da ideia
de Pedro – e assim ao infinito. A experiência mental de possuir cada uma destas ideias se
traduz no fato de que sei o que é Pedro, que também sei que sei, e, caso queiramos prosseguir
na cadeia de ideias, que sei que sei que sei. Ora, para compreender a essência objetiva de
Pedro, não é necessário que eu percorra esta cadeia reflexiva de ideias: basta simplesmente
que eu tenha, em primeira instância, a ideia de Pedro, ou seja, que possua sua essência
objetiva. A certeza, portanto, não é uma propriedade exterior à ideia, mas está compreendida
como propriedade intrínseca da primeira destas ideias, isto é, da mais simples ideia de Pedro.
O método, então, não pode ser a busca por esta certeza, como se ela fosse um signo exterior à
verdade, mas deve-se conduzir em direção apenas à aquisição da ideia verdadeira e a uma
reflexão sobre ela. A primeira parte do método se constitui, portanto, como “conhecimento
reflexivo ou ideia da ideia”78 – a construção de uma cadeia reflexiva a partir das propriedades
desta ideia verdadeira, obtendo conclusões a respeito de nossa potência de inteligir. Deste
modo, a mente pode comandar todos os seus demais pensamentos conforme a norma

75
ESPINOSA, B. 2015c, P. 45; TIE, §31.
76
TIE, §31-32.
77
A comparação entre o cético e o autômato é desenvolvida em TIE, §47.
78
ESPINOSA, B. 2015c, P. 47-49; TIE, §38.
127

introduzida por esta ideia verdadeira. É certo que o método será tanto melhor quanto mais
perfeita for a ideia que toma como norma, daí porque ele será perfeitíssimo se se dirigir
conforme a norma do Ente perfeitíssimo, isto é, Deus.79

Feito isso, é necessário ingressar na segunda parte do método, que deverá forjar ideias
claras e distintas a partir da pura mente e, em seguida, concatenar tais ideias conforme a
ordem da natureza80. Para conceber ideias claras e distintas é necessário conhecer os objetos
através de sua essência ou de sua causa próxima. Se a coisa for incriada, ou, o que é o
mesmo, se for causa de si própria, deve ser concebida através de sua essência; se for criada,
quer dizer, se para a sua existência foi preciso uma causa suplementar, deve ser concebida
através de sua causa próxima.81 Para conquistar a essência, o melhor caminho não é a via
axiomática, pois os axiomas se aplicam a infinitas coisas e, assim, não conseguem atingir
perfeitamente os singulares. Mais próprio para o conhecimento destas coisas será a busca por
uma definição, que pode circunscrever de modo preciso uma essência particular afirmativa.
Daí porque a primeira seção desta segunda parte do método consiste numa teoria da boa
definição, estabelecendo suas condições e o modo de as descobrir. Eis, sucintamente, a teoria
da definição genética spinozista: a definição perfeita “deverá explicar a essência íntima da
coisa”82; e, mais especificamente ainda, descrever o processo de construção daquele objeto.

Considere-se o caso do círculo. Defini-lo como “uma figura cujas linhas conduzidas
do centro para a circunferência são iguais”83 é apenas enumerar uma de suas propriedades,
que, apesar de estar conectada a sua essência íntima, ainda não a revela por completo. Ao
contrário, defini-lo como “uma figura descrita por uma linha qualquer, da qual uma
extremidade é fixa e a outra é móvel”84, compreende sua causa próxima e descreve, ainda que
com um grau de ficção85, o processo de construção mental do círculo. Dela se pode derivar a

79
Ibid.
80
ESPINOSA, B. 2015c, P. 85; TIE, §91.
81
TIE, §92.
82
ESPINOSA, B. 2015c, P. 85; TIE, §95.
83
ESPINOSA, B. 2015c, P. 87; Ibid.
84
Ibid; TIE, §96.
85
Sobre o grau de fingimento e arbitrariedade aceito na confecção das ideias verdadeiras e, como concluímos,
também da definição genética, conforme o que Spinoza afirma no §72: “Por exemplo: para formar o conceito de
globo, finjo arbitrariamente uma causa, a saber, que um semicírculo roda em torno do centro, e a partir da
rotação o globo como que se origina. Essa obviamente é uma ideia verdadeira, e embora saibamos que globo
algum nunca foi originado assim na Natureza, essa é, contudo, uma percepção verdadeira e o modo mais fácil de
formar o conceito de globo” (ESPINOSA, B. 2015c, P. 71). Ver também HERVET, C. 2012, P. 193 e
ZOURABICHVILI, F. 2002, P. 152-153.
128

primeira definição que citamos: a propriedade de que as linhas conduzidas do centro para a
circunferência são iguais. Portanto, para as coisas criadas, duas são as condições básicas da
boa definição: primeiro, que se defina pela causa próxima e, segundo, que esta definição seja
virtualmente exaustiva, no sentido de que permita que todas as demais propriedades daquele
objeto sejam corretamente inferidas.86 Com relação à coisa incriada, são quatro as exigências
de sua definição: que não faça referência à causa (já que o ente é sua própria razão de ser),
que sua existência seja dada, que não seja explicada por abstrações e, como na definição das
coisas criadas, que permita a dedução de todas as suas demais propriedades87.

Os últimos parágrafos do TIE (§106-§110) se dedicam a descrever as propriedades do


intelecto, rememorando algumas das conclusões já obtidas ao longo do percurso
argumentativo do texto. Trata-se de enumerar tais propriedades para que possa ser
conquistada uma definição do intelecto e, assim, deduzir suas forças e sua natureza. Spinoza
parece estar performando a segunda parte do método, que envolve a definição e a dedução. O
texto assume uma dimensão experimental: se, antes, o método era descrito com uma certa
distância, agora ele será apreendido na prática. A reflexão brevemente ensaiada nestas linhas
finais tem por objetivo conduzir, em última análise, à intelecção das coisas eternas. Ou seja:
parece que Spinoza pretende passar do conhecimento das propriedades do intelecto, o que o
permitirá obter dele uma boa definição, para a dedução de sua causa próxima, que será, em
última análise, Deus. Assim, poderia atingir o dito conhecimento das coisas eternas e o sumo
bem, objetivo final do tratado como um todo. Estas são apenas especulações a partir do
material inacabado que o texto nos fornece. A bem da verdade, podemos afirmar com
segurança apenas que Spinoza está descrevendo um método de pensamento e de cognição
que envolve uma reflexão sobre a ideia verdadeira, uma teoria da definição e ao menos os
rudimentos de uma teoria da dedução, que procura reproduzir, na mente, a ordem da
natureza.

Sobretudo nestas passagens finais, Spinoza insiste na ideia de que devemos ordenar
nossa mente conforme a disposição da natureza. A mente deve tê-la como como um modelo
(exemplar)88, de tal modo que “reproduza [referat] objetivamente a formalidade da natureza,

86
TIE, §96.
87
TIE, §97.
88
TIE, §42.
129

tanto no todo quanto em suas partes”89, cuidando para não “perverter”90 sua essência, ordem e
união91. A ideia de reprodução deve ser aqui entendida em termos miméticos, ou seja,
introduzindo uma busca por semelhança entre intelecto e natureza? Para retomar os termos
das discussões anteriores: pode-se dizer que, apesar de condenar a relação de semelhança por
seu caráter extrínseco, sobretudo na crítica à origem imaginativa da linguagem, Spinoza
procura mostrar que ela é válida ao menos quando se trata de fundar um método de cognição
da natureza?

A intenção de criar, com a natureza, uma conexão via imitação, não parece facilmente
decorrer da descrição do método definitório e dedutivo que vimos acima. Mais do que uma
relação de semelhança, trata-se de estabelecer uma espécie de paralelismo entre a ordem do
intelecto e a ordem da natureza, de obter uma configuração matemática das ideias conforme a
norma da ideia verdadeira: e não de fazer dela a cópia aproximada de um original arquetípico.
Além disso, e esta parece ser uma consequência mais séria desta interpretação, a semelhança
pressupõe, como vimos, uma fratura inicial entre original e cópia: neste caso, entre a mente e
a natureza, o que implicaria, portanto, a consideração do indivíduo dotado de mente como
uma entidade separada das demais coisas naturais, como um império dentro de um império92.
A semelhança subentende uma exteriorização primeira do indivíduo em relação à natureza, a
qual é insistentemente recusada por Spinoza, e ainda denunciada como principal fonte do
modo de vida supersticioso93. Parece mais consequente supor que, para Spinoza, já estamos
ontológica e inescapavelmente unidos à natureza: precisamos do método apenas para nos
conscientizarmos desta união, a fim de experimentarmos nossa própria eternidade94.

Resta saber como comunicar, por meio da linguagem, a verdade. Como escrever as
definições e as deduções, ou seja, como reproduzir discursivamente o método? Ora, sua
formulação mais exata parece ser o modelo sintético. Segundo Descartes, o modo de escrever
dos antigos geômetras obedece a uma ordem e a uma maneira de demonstrar95. A ordem

89
ESPINOSA, B. 2015c, P. 85; TIE, §91.
90
ESPINOSA, B. 2015c, P. 87; TIE, §95.
91
TIE, §99.
92
Imperium in imperio. Ver EIII, Pref.
93
Cf. o Capítulo 1.
94
Para uma discussão mais detalhada, remeto ao livro de Pascal Sévérac, Le devenir actif chez Spinoza. Paris :
Honoré Champion, 2005.
95
Reconstruo a exposição cartesiana desenvolvida ao longo das Respostas às Segundas Objeções, cf. AT IX-1,
121-123.
130

concerne ao modo como as proposições devem ser encadeadas: o que vem primeiro deve ser
conhecido sem a ajuda do que vem depois, e as proposições seguintes devem ser
demonstradas recorrendo a estas conclusões anteriormente demonstradas. Por isso, nas
Meditações, a distinção entre alma e corpo só foi demonstrada na Sexta delas, uma vez que
dependia não só de uma correta compreensão da alma (conquistada na Segunda Meditação),
mas também de um conhecimento da essência do corpo (obtido na Quinta). Já a maneira de
demonstrar pode optar tanto pela análise ou resolução quanto pela síntese ou composição. A
análise “mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta e
revela como os efeitos dependem das causas”96; e tem o mérito de engajar o leitor no texto,
construindo um itinerário quase espontâneo de aceitação das teses, posto que o envolve na
experiência de sua conquista. Por isso, em termos de compreensão da verdade, a análise é
extremamente eficiente, e seu resultado é fazer com que o leitor tome a coisa a ser
demonstrada como se fosse uma invenção de seu próprio engenho. Este mérito é, ao mesmo
tempo, também seu defeito: embora produza uma experiência irrefutável da verdade, a
análise exige maior grau de atenção, pois é fácil nela se perder e do caminho se desviar caso
se perca um passo que seja do itinerário da descoberta. É fácil teimar em não aceitá-lo e
julgar que este trajeto é apenas um processo cognitivo particular dentre outros, uma vez que,
dele, não se deduz claramente a necessidade da passagem das premissas às suas conclusões.

Diversamente, a síntese pode tanto examinar as causas por seus efeitos quanto os
efeitos pelas causas, servindo-se, para tanto, “de uma longa série de definições, postulados,
axiomas, teoremas e problemas”97. Nela, a necessidade da conclusão é extremamente clara, e
o leitor teimoso ou pouco atento, “por mais obstinado e opiniático que seja”98, não pode
duvidar do modo como as consequências estão contidas em seus antecedentes
argumentativos. Apesar de atestar a necessidade e a suficiência dos argumentos, a síntese não
garante qualquer experiência subjetiva da verdade, e o aprendizado, que, para Descartes, ao
menos do que se pode deduzir da exposição das Segundas Respostas, exige que as teses
sejam incorporadas ao raciocínio do leitor, não será inteiramente satisfatório. Sua posição é a
de que a análise tem uma função pedagógica mais eficaz, sobretudo no que concerne aos
assuntos metafísicos. Enquanto que para a Geometria a síntese se presta mais perfeitamente,

96
DESCARTES, R. 1973, P. 176; AT IX-1, 121.
97
DESCARTES, R. 1973, P. 176-177; AT IX-1, 122.
98
Ibid.
131

uma vez que as noções primeiras desta área estão mais de acordo com os sentidos, as noções
primeiras da Metafísica estão frequentemente envolvidas por uma teia de preconceitos
acumulados desde a infância, os quais devem ser expurgados para a compreensão dos saberes
referentes a esta ciência. A justificativa para a escolha da forma meditativa é, logo, a
superioridade didática da análise a qual ela dá voz, o fato de colocar autor e leitor numa
espécie de diálogo silencioso, empenhados num percurso comum de aquisição do verdadeiro.

Já Luís Meyer, prefaciando os Princípios da Filosofia Cartesiana e Pensamentos


Metafísicos, manifesta uma posição diversa acerca da síntese. Segundo ele, a síntese ou o
método matemático é “a melhor e mais segura via para indagar e ensinar a verdade”99 – é
superior não apenas na exibição da necessidade e suficiência da cadeia demonstrativa, mas
também em termos pedagógicos. No entanto, ele constata, a síntese costuma ser empregada
apenas para tratar de assuntos matemáticos, fazendo coincidir a forma de exposição com o
tema a ser discutido. No mais das vezes, os tratados filosóficos optam por um método algo
aleatório, não nomeado por Meyer, mas descrito como aquele em que “todo o assunto é
deslindado através de definições e divisões continuamente concatenadas entre si e aqui e ali
entremeadas por questões e explicações”100. Esta falta de rigor expositivo e mesmo de
negação da aplicação de qualquer método, seja analítico ou sintético, gerou apenas uma
multiplicação de livros, os quais contêm argumentos apenas prováveis, teses no máximo
verossímeis, tão logo destruídas por refutações, elas mesmas apresentadas sem método e,
assim, em breve também demolidas. A falta de ordem cria um cenário de tagarelar incessante,
que em tudo se opõe à demonstração, cujas imagens correspondentes seriam a instabilidade
da multidão de livros, no primeiro caso, e a tranquilidade da verdade imóvel, no segundo.
Diferentemente destes, Descartes teria sido, segundo Meyer, aquele que primeiro e mais
eficazmente desenvolveu teses filosóficas próprias com ordem e certeza matemática, muito
embora tenha pendido mais para a análise do que para a síntese. Apesar de reconhecer
legitimidade aos dois métodos, Meyer prefere insistir na utilidade e comodidade da síntese:
muitos não conseguem, pela análise, compreender a filosofia cartesiana, e, menos ainda,
comunicá-la aos demais. A proposta do texto de Spinoza que vem em seguida, então, é
desobstruir o caminho de ensino, apresentando ao leitor as teses cartesianas, outrora dispostas
analiticamente, na ordem dos geômetras. Meyer não o afirma categoricamente, mas seu texto

99
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2015b, P. 33; PPC, Pref.
100
Ibid.
132

deixa sugerir que, contra Descartes, a necessidade das demonstrações deve ser priorizada em
relação à descrição do itinerário de aquisição, porque a análise ainda abre caminho para a
tagarelice sobre as coisas101. Opõem-se, aqui, dois usos distintos da linguagem: num
primeiro, distante do ser, a linguagem tenta alcançá-lo sem sucesso; no segundo, idêntica a
ele, o exprime e o reproduz de modo unívoco. A análise é insuficiente porque, ao narrar o
descobrimento da verdade, justamente afasta-se dela, permitindo o equívoco derivado da
constituição imaginativa da linguagem.

Tanto para Descartes quanto para Spinoza, as formas expositivas de seus respectivos
textos obedecem a exigências epistêmicas mais fundamentais. Para o primeiro, a análise
reproduz graficamente a ordem da descoberta das proposições, que não corresponde a ordem
do ser das mesmas: por isso as Meditações podem partir da constatação existencial do eu para
a dedução da existência de Deus, ainda que Deus seja ontologicamente anterior às criaturas.
Para o segundo, a síntese, empregando axiomas, definições e deduções (dispostas
textualmente enquanto demonstrações), reproduz a própria estrutura da Natureza, portanto do
ser, e procura devolver o pensamento ao seu paralelismo com ela. A coincidência
conquistada entre ordem do ser (ratio essendi) e ordem do conhecimento (ratio cognoscendi)
102
parece comprometer Spinoza com uma tese mais forte do que a cartesiana, em que a
linguagem da análise ainda é tomada como mera adaptação à verdade, facilitando sua
compreensão sem ao mesmo tempo se identificar com ela.

Como a linguagem se comporta, em contrapartida, na síntese? Os operadores


sintéticos, quer dizer, as definições, axiomas e proposições, podem ou bem ser tratados como
signos, e, neste sentido, tomados como meras mediações linguísticas para os eventos
cognitivos mentais, ou bem dá-se a eles um outro status, estabelecendo entre o texto e as
demonstrações a mesma relação que estas últimas procuram metodologicamente manter com
a natureza. Neste caso, seguindo as intuições de Moreau e Hervet, as instâncias sígnicas
foram reformadas, isto é, organizadas conforme a ordem do intelecto e não conforme o
encadeamento imaginativo. Assim como a mente, ao aplicar o método da definição e da

101
“Donde ocorreu que muitos que deram nome a Descartes, ou arrebatados por um cego impulso, ou levados
pela autoridade de outros, guardaram tão somente de memória a posição e os dogmas dele, e quando lhes ocorre
uma conversa sobre isso, só sabem palrar e tagarelar sobre tais coisas, mas nada demonstrar, tal como era hábito
outrora, e ainda hoje é, aos sequazes da filosofia peripatética”, cf. ESPINOSA, B. 2015b, P. 37; PPC, Pref.
102
Por isso a primeira parte da Ética é dedicada a Deus, muito embora ela demore ainda onze proposições para
provar sua existência.
133

dedução, reproduz a ordem da natureza, o texto filosófico, ao reproduzir a ordem da mente,


recorrendo à síntese, reproduz, ainda que indiretamente, a própria ordem da natureza. Assim
deve ser compreendida a célebre passagem de Spinoza em que as demonstrações são
comparadas aos olhos da mente103, expressão que surge também numa passagem do TTP,
questionando aqueles que sustentam ser possível compreender os atributos de Deus apenas
por uma crença não-demonstrativa, já que as coisas invisíveis “não podem ser vistas por
outros olhos que não sejam as demonstrações”104. A escolha do método sintético de exposição
não é, por conseguinte, um mero artifício textual105, mas uma exigência da reprodução, no
texto escrito, da ordem da natureza, bem como condição de possibilidade de comunicação
unívoca da verdade.

É neste sentido que Spinoza afirma, já no TTP, que Euclides “pode facilmente ser
explicado a toda a gente e em qualquer língua”106. Naquele contexto, tal transparência é
retirada da máxima simplicidade e extrema inteligibilidade das ideias euclidianas, mas a
mesma propriedade se segue do fato de ser uma exposição demonstrativa, que concretiza a
própria estrutura da mente na configuração linguística – subvertendo-a internamente. Ainda
que se aproprie do latim, a escrita das demonstrações necessita expurgar da língua suas
particularidades históricas mediante sua domesticação na ordem sintética, de tal forma que
ela seja capaz de exprimir a eternidade e seja, por fim, transparente à leitura. A perversão
interna do latim, reconduzindo-o ao ser, permite que forma e conteúdo não mais se distingam
— criando uma espécie de idioma da racionalidade capaz de exprimir a filosofia.

Para responder, então, à nossa indagação inicial, podemos afirmar que, face à
épistème clássica, Spinoza ocupa uma posição dupla. De um lado, está de acordo com ela: a
crítica à linguagem e sua separação em relação às coisas está nitidamente distribuída por
vários de seus textos. De outro, há uma importante reivindicação do método de exposição
sintético que permite que a verdade seja comunicada. Poderíamos dizer, então, que a posição

103
EV, P. XXIII, esc.
104
ESPINOSA, B. 2019, P. 300; G III, 170.
105
Como sustenta Gleizer, a síntese não é “uma mera roupagem exterior que ele [Spinoza] utilizaria para revestir
suas ideias” (GLEIZER, M.A. 2013, P. 23), mas uma exigência mesma do método dedutivo tal como
desenvolvido no TIE.
106
Vale a pena ler a continuação desta passagem: “Euclides, que só escreveu coisas extremamente simples e
inteligíveis, pode facilmente ser explicado a toda gente e em qualquer língua. Nem é preciso, para apreendermos
o seu pensamento e ficarmos certos do seu verdadeiro sentido, ter um conhecimento completo da língua em que
escreveu: basta um conhecimento vulgar e quase infantil.” ESPINOSA, B. 2019, P. 231; G III, 111.
134

de Spinoza face à linguagem se bifurca em dois caminhos, comprometendo-se com os limites


epistemológicos de seu tempo (a linguagem é necessariamente enganadora) e ao mesmo
tempo projetando-se para além dele (a linguagem, quando convertida em método, pode
exprimir o ser). Spinoza pertence a seu tempo sob o signo de seu afastamento, tal como
Agamben define o contemporâneo ao classificar a obra de Nietzsche.107

Este longo preâmbulo serviu para nos situar quanto à posição geral que Spinoza
sustenta acerca da linguagem, e também para nos preparar para a discussão sobre a leitura
que emerge no contexto teológico-político. Ao contrário da Ética, o texto Bíblico foi escrito
numa língua histórica, o hebraico, apelando para narrações imaginativas, exteriores à
estrutura mesma da mente. Aquilo que representa um obstáculo à escrita filosófica será
exatamente o que produzirá o vigor da Escritura. Se a Ética, devido ao seu parentesco com a
forma mesma do pensamento e da verdade, não exige estratégias específicas de decifração, já
que seu discurso é transparente à mente, o contrário deve ser dito do texto Bíblico: seu caráter
singular exige que, para lê-lo, seja necessário fundar um método de leitura que permita que
sua mensagem possa ser descriptografada de suas linhas extravagantes.

O trabalho da leitura

Além dos diversos tomos de comentário que legou à história da filosofia,


compreendendo autores como Malebranche, Fichte, Descartes e Spinoza, Martial Gueroult
acrescentou às suas pesquisas uma discussão a respeito do método a ser adotado nas mesmas
108
. As conclusões desta reflexão se originam não de uma percepção abstrata, mas do
confronto direto com as obras e as doutrinas supramencionadas.109 Há, segundo ele, duas
posturas gerais em relação ao objeto filosófico – noto, desde já, que Gueroult pressupõe a
existência de algo como um objeto propriamente filosófico, distinto dos demais discursos

107
“Nietzsche situa, portanto, a sua pretensão de ‘atualidade’, a sua ‘contemporaneidade’ em relação ao
presente, numa desconexão e numa discordância. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente
contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com ele nem se adequa às suas exigências e é, por isso,
nesse sentido, inatual; mas, precisamente por isso, exatamente através dessa separação e desse anacronismo, ele
é capaz, mais que os outros, de perceber e de apreender o seu tempo. [...]”. Cf. AGAMBEN, G. 2015. P. 22.
108
Sobre este tema, há uma discussão mais desenvolvida no livro póstumo de Gueroult intitulado Philosophie de
l’histoire de la philosophie (Paris : Aubier Montaigne, 1979) e também no artigo “The History of Philosophy as
a Philosophical Problem” (In: The Monist, Vol. 53, No. 4, Philosophy of the History of Philosophy (October,
1969), pp. 563-587).
109
Cf. GUEROULT, M. « La méthode en histoire de la philosophie ». In : Philosophiques, vol. 1, n° 1, 1974, p.
7-19. Uma tradução desta conferência para o português foi publicada em 2015 na Revista Sképsis, cf. SKÉPSIS,
(ISSN 1981-4194), ANO VIII, Nº 12, 2015, P. 160-170.
135

como a literatura e a ciência, por exemplo –, a saber, a história da filosofia horizontal e a


vertical. No primeiro caso, o historiador da filosofia se encerra num ponto de vista dinâmico,
mais interessado na transfiguração dos conceitos e temas ao longo da história do que
exatamente na realidade da obra nela mesma. Tal perspectiva é necessariamente externa à
doutrina, uma vez que revela os aspectos culturais, sociológicos, econômicos, políticos,
religiosos, ideológicos etc. que lhe circulam. Trata-se de um procedimento metodológico que
tem o mérito de fornecer uma visão histórica e de conjunto, mas que negligencia um aspecto
fundamental, que é, segundo Gueroult, aquilo que compete essencialmente à filosofia: a
doutrina. O expediente horizontal está terminantemente comprometido, portanto, com sua
função histórica. Já a metodologia vertical procura se situar sub specie aeternitatis. As
doutrinas são tomadas em sua significação profunda110, ignorando as particularidades da
história: eis uma perspectiva verdadeiramente filosófica. Há, no entanto, uma subdivisão no
interior desta última. Pode-se partir verticalmente para uma análise das fontes e da biografia,
concentrando-se preferencialmente na figura do autor. A obra é, neste caso, epifenômeno de
uma subjetividade singular, de modo que será necessário descrever o contexto de confecção e
recepção da doutrina, seus aspectos culturais e linguísticos, relegando a originalidade
sistemática seja ao que pode ser recuperado nesta cadeia de referências prévias, seja à
psicologia do indivíduo que a produziu e registrou.

O recurso às questões biográficas não é supérfluo, mas, segundo Gueroult, apenas


acessório: deve fornecer um complemento essencial ao estudo propriamente filosófico, que
consiste no método das estruturas. Neste último, substitui-se o interesse pela interioridade do
indivíduo pela interioridade da doutrina. Não se trata simplesmente de análise descritiva, mas
crítica, no sentido em que se pergunta a razão do ordenamento argumentativo num sistema
determinado (tal método se pretende aplicável a toda e qualquer “filosofia”, supondo que, se
há filosofia, há sistema). A reconstrução estruturalista é comparada, finalmente, ao ofício da
arquitetura:

Quando respondemos a essas questões, quando descobrimos a razão da ordem, ou das


vias, ou das combinações adotadas, circulamos pelo monumento filosófico com a
mesma desenvoltura do arquiteto cujo edifício ele desvendou os segredos, ou seja, os

110
“Esse é o lugar do que chamarei de história vertical da filosofia, história menos propriamente histórica do
que a outra, menos preocupada com o movimento coletivo das ideias, mas filosófica no sentido em que
ela busca a significação filosófica profunda de tais ou tais obras analisadas uma a uma.”, cf. GUEROULT, M.
2015, P. 162.
136

fatores de seu equilíbrio, os cálculos que presidiram sua edificação em função


das intenções do construtor. Ora, a compreensão dessa arquitetônica dos
conceitos rege por fim a compreensão dos próprios conceitos de acordo com as
intenções mais profundas da doutrina. (GUEROULT, M. 2015, P. 165)

Quando se trata de abordar o spinozismo, por exemplo, deve-se não só proceder a


uma reconstrução das demonstrações, como também se perguntar pela preferência do autor
por uma demonstração em particular; ou ainda, a justificativa para tais demonstrações
figurarem no escólio ao invés de na demonstração principal. O método das estruturas fora
igualmente aplicado por Gueroult para examinar a filosofia cartesiana, reivindicando para si
uma legitimidade de maior grau: trata-se do único método capaz de ser fiel às exigências
mesmas que Descartes manifestava para sua própria filosofia. Na medida em que a filosofia
cartesiana descreve a si própria como “rigorosamente demonstrativa”111, cumpre ao
historiador da filosofia, diante do cartesianismo, ser leal a esta regra. A imitação da ordem
das razões, no comentário, é a única maneira de fazer surgir esta significação profunda da
doutrina, de revelar o seu segredo virtualmente contido na obra, mas ainda não plenamente
visível aos olhos do leitor. Observa-se que a mesma exigência de fidelidade às recônditas
intenções do autor é reclamada por Leo Strauss, que acredita que para ser fidedigno a
Spinoza, sobretudo em se considerando o TTP, era necessário aplicar, em sua análise, o
método de leitura da Escritura ali formulado.112

Na medida em que as ditas doutrinas se mostram ao historiador da filosofia a partir das


obras ou dos livros, o dispositivo gueroultiano é primordialmente um método de leitura e
interpretação113. Um exame crítico de suas hipóteses deveria sublinhar, no mínimo, seus
comprometimentos hermenêuticos, derivados de um pano-de-fundo realista, segundo o qual,
para além do texto, os conceitos e a verdade almejada pela filosofia subsistem em algo como
um mundo independente das ideias. Deste solo emerge também uma concepção
referencialista da linguagem: o objeto filosófico tem existência ontológica para além de suas

111
GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons. I : L’âme et Dieu. Paris : Aubier, 1968. P. 12.
112
STRAUSS, L. “How to Study Spinoza's Theologico-Political Treatise”. In : Persecution and the art of
writing. Chicago: The University of Chicago Press, 1980. Para uma leitura crítica do texto de Strauss, ver.
PINHEIRO, U. “Espinosa e o leitor da posteridade. Exame crítico da interpretação de Leo Strauss do Tratado
Teológico-Político”. In : Kléos, n .15, P. 115-133, 2011. Não nos concentraremos numa análise da interpretação
de Strauss ao longo deste trabalho, embora nossos pressupostos metodológicos apresentados na Introdução e
retomados em vários momentos importantes de nossa argumentação por si já apontem nossa distância em
relação à sua proposta interpretativa.
113
“Porque mesmo que seu autor não se encontre mais entre nós, sua obra estará diante de nós nos livros, como
um monumento, um objeto cujo sentido só é percebido quando se colocam em evidência as disposições
conceituais que a tornaram possível.”, cf. GUEROULT. M. 2015, P. 164.
137

configurações discursivas. A distinção entre história horizontal e vertical da filosofia, análise


histórica e análise das estruturas, e, mais ainda, entre ponto de vista externo e interno, se
apoia, portanto, numa série de operadores – autoria, texto, obra, argumento etc. –, já muito
questionados por certa tradição pós-estruturalista114, cujas propostas subscrevo. Contraposta a
estas perspectivas, a postura gueroultiana é, quando menos, epistemologicamente
conservadora. Preferencialmente a estas críticas, o aspecto de suas premissas que gostaria de
questionar é a suposição de que o texto filosófico guarda em si um mistério115. Tal ideia é
introduzida sobretudo pela busca por uma “significação filosófica profunda”116 e pela
comparação com a arquitetura: o arquiteto caminha no interior da construção doutrinária
observando os segredos que dela pôde apreender. Veja-se que o historiador não confecciona,
por ele mesmo, estas razões: ele as descobre, trazendo-as para a luz do dia, despindo o véu da
linguagem que as eclipsa, uma vez que já estavam virtualmente contidas na doutrina e
camufladas no texto.

Ora, já nos confrontamos até o presente momento com as denúncias feitas por Spinoza
quanto ao complexo supersticioso, em especial no que concerne às suas consequências para a
fabricação de um modo de vida de culto à exterioridade. Um dos objetivos do TTP, sabemos,
é fundar um novo método de leitura da Escritura, contrapondo-se, para tanto, ao método
interpretativo de orientação teológica, carregado de uma série de preconceitos. O pressuposto
segundo o qual “nos Livros Sagrados se escondem mistérios profundíssimos”117 é um destes
mal-entendidos centrais. Que uma interpretação seja fundamentalmente a explicitação de um
texto obscuro ou de significado incerto é, inclusive, um dos sentidos em operação do
vocábulo interpretatio na teologia tal como praticada na Renascença tardia118. Uma exegese,

114
Remeto o leitor aos trabalhos de Michel Foucault e Jacques Derrida. Para o primeiro, ver a L’archéologie du
savoir. Paris : Éditions Gallimard, 1969 e também « Qu'est-ce qu'un auteur ? ». In : Dits et Écrits, Tome I. Paris
: Éditions Gallimard, 1994. Texte n°69, P.789-821. Para o segundo, « signature événement contexte ». In :
Marges de la Philosophie. Paris : Les Éditions de Minuit, 1972. P. 365-393. Para mais esclarecimentos
metodológicos, ver a Introdução deste trabalho.
115
Talvez seja necessário supor algum grau de mistério para erguer toda e qualquer hermenêutica. Há uma
diferença fundamental, parece-nos, em construí-la a partir da suposição de que o mistério é realmente existente
– e que, portanto, o texto é dado – e tomar o fundamento do texto como ele mesmo instável e determinado a
posteriori. Nosso problema é menos com as determinações em si do que com a elevação delas à categoria
ontológica.
116
GUEROULT. M. 2015, P. 162.
117
ESPINOSA, B. 2019, P. 218; G III, 98.
118
Retomo a definição tal como apresentada por SERJEANTSON, R. “Francis Bacon and the “Interpretation of
Nature” in the Late Renaissance”. In : Isis, Vol. 105, No. 4 (December 2014), pp. 681-705. Serjeantson recupera
a seguinte definição para o termo interpretatio: “dicitur alicuius obscuri & aenigmatici sermonis facta
138

portanto, em se considerando o modo como este termo pertence originalmente a um contexto


teológico de apreciação da Escritura, talvez não possa se desfazer tão facilmente de seus
compromissos dogmáticos. É interessante constatar, assim, esta aliança inesperada entre
método gueroultiano e método teológico: o primeiro como versão secularizada, no sentido
schmittiano,119 do segundo. Há, na análise das estruturas, um notável resquício
cripto-teológico, e devemos nos perguntar se a adoção deste resto talvez não implique em
aceitar o edifício teológico como um todo120. Ao método de leitura teológico, que preza pela
profundidade e verticalidade, Spinoza tentará opor uma compreensão horizontal e mesmo
superficial de leitura, que parte da intuição de que o ensinamento fundamental da Escritura,
sua doutrina universal é, antes de encoberto e inacessível, evidente e claríssimo121.

O método spinozista de leitura da Escritura reconhece ao menos duas denominações:


o verdadeiro método para interpretar a Escritura ou simplesmente método histórico. Spinoza
institui que “o método de interpretar a Escritura não difere do método de interpretar a
natureza; concorda até inteiramente com ele”122. É preciso tomar esta declaração,
aparentemente tão isenta de problemas, em toda sua espessura. Ecoa nesta formulação um
topos já presente na Idade Média: a suposição de que, tal como a Escritura, a Natureza é uma
espécie de livro que deve ser conformemente interpretada. Alain de Lille, no século XII,
registrava em versos o que E.R. Curtius designa como o metaforismo do livro123: Omnis
mundi creatura/ Quasi liber et pictura/ Nobis est speculum124. Na Idade Média, o nexo entre
os livros era harmônico: em ambos seria possível reconhecer a pena divina e, logo, os dois
livros são considerados fonte legítima de material investigativo. A partir do século XVI,

declaratio.”, cf Johann Altensteig, Lexicon theologicum (Cologne, 1576), apud. SERJEANTSON, R. 2014, P.
695.
119
Ou seja, o de transferência cultural e comprometimento sistemático com a teologia. Ver a Introdução.
120
E talvez muito mais que um resquício, na medida em que Gueroult sustenta uma visão algo sacralizada dos
textos filosóficos clássicos, classificando-os mesmo como “monumentos eternos do pensamento humano,
fonte perene, geradora incessante de reflexão e de luz” (GUEROULT, M. 2015, P. 160). A associação entre
o status originário da escritura e a atitude teológica de sacralização do texto é igualmente notada em
FOUCAULT, M. 1994, P. 795.
121
Da crítica spinozista à hermenêutica teológica não se segue, naturalmente, que devemos ler o TTP supondo
esta mesma superficialidade atribuída ao texto bíblico.
122
ESPINOSA, B. 2019, P. 218; G III, 98.
123
Há, em seu estudo intitulado Literatura Europeia e Idade Média Latina, um capítulo particularmente rico
dedicado ao tema do livro como símbolo, no qual analisa a literatura e tradição filosófica grega e romana, a
transfiguração da metáfora na Idade Média e no Renascimento, e, enfim, dedica sua atenção às ocorrências da
metáfora do livro em Dante e Shakespeare. Cf. CURTIUS, E.R. Literatura Europeia e Idade Média Latina. “O
livro como símbolo”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. P. 375-429.
124
“Toda criatura do mundo é para nós como que um livro, um quadro ou um espelho”. Apud CURTIUS, E. R.
2013, P. 395.
139

porém, devido a fatores como a Reforma, o desenvolvimento das tecnologias de impressão e


as grandes descobertas geográficas, a continuidade é rompida125. Embora Montaigne se
inscreva nos vestígios deixados por Alain de Lille, recuperando, além da harmonia entre
natureza e livro, o signo do espelho126, em Descartes já encontramos uma evidência da
mencionada desproporcionalidade moderna: numa passagem do Discurso do Método, o
“grande livro do mundo”127, a ser penetrado através de viagens, experiências e toda sorte de
conhecimento fixado na prática, é contraposto aos saberes inertes e ultrapassados
conservados nas obras letradas da tradição. A descontinuidade entre os livros, acompanhada
por certo desprezo pelas obras empoeiradas do passado, será ampliada, mais tardiamente, por
Diderot e Rousseau128. Podemos arriscar a hipótese de que a ruptura entre Escritura e
Natureza, e a consequente separação entre dois gêneros de livros, cada um com mensagens e
códigos distintos, pode ser compreendida como uma instância da fenda introduzida, a partir
sobretudo do século XVII, entre palavras e coisas. As obras escritas – aí compreendida,
obviamente, a Escritura como o livro por excelência – têm seu potencial epistêmico limitado,
a ser contraposto à exuberância e espontaneidade dos dados fornecidos pelas coisas.

Muito embora a tese segundo a qual o método de interpretação da Escritura e da


Natureza são análogos pareça indicar uma postura mais próxima da medieval, o uso da
metáfora do livro, em Spinoza, desloca a noção de semelhança para um nível mais
complicado. Na verdade, ao afirmar que os métodos são idênticos, Spinoza está sustentando
que, quando aplicados a realidades distintas, produzirão resultados distintos. Os métodos
convergem numa espécie de regra geral de imanência, segundo a qual cada livro deve ser
tomado como o único recurso para sua própria compreensão, sem referência a elementos
externos. Se cada livro é uma espécie de realidade fechada em si mesma, segue-se que as

125
Cf. ARMOGATHE, J.R. « Les deux livres ». In : Revue de Théologie et de Philosophie. Troisième série, Vol.
133, No. 3, La Bible à la croisée des savoirs (2001), pp. 211-225 (15 pages). Ver também LAGRÉE, J. « Le
thème des deux livres de la Nature et de l’Écriture ». In : L’Écriture sainte au temps de Spinoza et dans le
système spinoziste. T & D, 4, 1992, P. 11-37; LAGRÉE, J. 2004, P. 29-47 e FORCE, J. POPKIN, R. (ed). The
books of nature and Scripture. Dordrecht : Kluwer Academic, 1994.
126
“Este mundo tão grande, que alguns ampliam ainda, como as espécies de um gênero, é o espelho em que nos
devemos mirar para nos conhecermos de maneira exata. Em suma, quero que seja esse o livro do nosso aluno”.
Cf. MONTAIGNE, M. 2016, P. 193; Essais, I, 26.
127
“E, resolvendo-me a não mais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar em mim próprio, ou
então no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha mocidade em viajar, em ver cortes e exércitos, em
frequentar gente de diversos humores e condições, em recolher diversas experiências, em provar-me a mim
mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e, por toda parte, em fazer tal reflexão sobre as coisas que se
me apresentavam, que eu pudesse tirar delas algum proveito”. Cf. DESCARTES, R. 1973, P. 41 ; AT VI, 9.
128
Cf. CURTIUS, E.R. 2013, P. 400-401.
140

regras interpretativas obtidas do material bruto da Natureza, que se estrutura conforme as


demonstrações, e as técnicas de acesso à Escritura, que opta pela narração, serão
necessariamente diferentes. Constatamos, então, que os métodos possuem uma espécie de
harmonia formal, que introduz, ela mesma, uma desigualdade de conteúdo.

Para apreciar esta subversão também em sua consistência histórica, é necessário


compreender o sentido de interpretação em marcha ao longo do Capítulo VII do TTP.
Quando a noção de interpretação da natureza é articulada, no século XVII, a referência mais
imediata é certamente Francis Bacon129, autor no qual conceito surge já no título de sua obra
magna: o Novum Organum sive indicia vera de Interpretatione Naturae (1620). Interessa a
Bacon distinguir, num primeiro momento, as antecipações das interpretações da natureza:

Para os propósitos do ensino, escolhemos chamar o raciocínio que os


homens usualmente aplicam à natureza antecipações da natureza (porque é
um assunto arriscado e apressado), e chamar o raciocínio que é extraído das
coisas de maneira adequada interpretação da natureza. (Tradução minha de
BACON, F. 2003, P. 38)

Embora esta definição ainda não nos informe quanto às técnicas precisas de
antecipação e interpretação, a separação primordial entre elas parece ser a do cultivo das
ciências tradicionais, de um lado, e a apresentação de uma nova maneira de raciocinar, de
outro130. As antecipações dialogam mais facilmente com aquilo que é comum e familiar,
tocando a imaginação, ao passo que as interpretações tomam os detalhes de objetos variados,
não podendo, portanto, tocar o intelecto tão facilmente131. Por isso as antecipações são
aceitáveis nas ciências que exigem “opiniões e visões aceitas”132, mas não naquelas em que é
preciso se ater à natureza das coisas. Para progredir na ciência, de nada adianta remodelar o
velho edifício: é necessário construí-lo novamente desde suas bases, aplicando uma nova
metodologia: nos termos de Bacon, é necessário um “novo começo”133. É neste espírito
baconiano que Descartes abre suas Meditações – afirmando que, de modo a se desvencilhar
das falsas opiniões, não bastava refletir nos termos da tradição imbuída de preconceitos, mas
“era necessário, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então

129
Há uma citação nominal a Bacon na Carta 37.
130
Conforme inclusive o que sustenta SERJEANTSON, R. 2014, P. 683.
131
Novum Organum, I, XXVII-XXIX.
132
BACON, F. 2003, P. 38; Novum Organum, I, XXIX.
133
BACON, F. 2003, P. 39. Novum Organum, I, XXI.
141

dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo
de firme e de constante nas ciências”134.

Em termos mais precisos, a interpretação da natureza baconiana compreende duas


grandes partes: a primeira consiste em obter axiomas a partir da natureza, a segunda em
“deduzir e derivar”135 experimentos a partir dos axiomas. Uma história natural e
experimental deve ser formada a partir da compilação dos dados naturais: compreendendo
compilação no sentido de descoberta e acumulação, não de invenção. Compilados os dados, é
preciso criar tabelas em que estejam expostos de modo claro e ordenado, a fim de não
confundir as informações naturais durante o processo de formulação da história natural e
experimental. Um terceiro e último passo consiste na pura indução, que é, segundo Bacon, “a
chave da interpretação”136.

Nesta apresentação ligeiramente mais direta das técnicas baconianas, surpreende o


emprego do termo história, no sentido preciso de compilação de dados. Para responder a uma
possível objeção quanto à aplicação da interpretação da natureza, Bacon atesta que, ao invés
de se dirigir apenas à filosofia natural, seu método se aplica universalmente à lógica, à ética e
à política.137 Isto porque a interpretação da natureza é propriamente um método, quer dizer,
uma maneira de proceder aplicável a todas as ciências: se a lógica comum faz uso, para tanto,
do silogismo, a lógica nova, baconiana, apostará na indução. A história que compete à
interpretação da natureza cria um compêndio das paixões humanas, assim como das
instâncias políticas, dos movimentos mentais etc. A história de que trata Bacon envolve
recolher e organizar os elementos dispostos na Natureza, à diferença da lógica comum, que
apenas mapeia as atividades da mente.

Ora, este é um dos sentidos de história presentes na explicitação spinozista do método


de interpretação da Escritura:

Na realidade, assim como o método para interpretar a natureza consiste


essencialmente em descrever a história da mesma natureza [historia naturae] e
concluir daí, como de dados certos, as definições das coisas naturais, também para
interpretar a Escritura é necessário elaborar sua história autêntica [sinceram

134
DESCARTES, R. 1973, P. 93; AT IX-1, 13.
135
BACON, F. 2003, P. 109; Novum Organum, II, X.
136
BACON, F. 2003, P. 110; Novum Organum, II, X.
137
Novum Organum, I, CXXVII.
142

historiam] e concluir dela, como de dados e princípios certos, o pensamento de seus


autores como legítima consequência. (ESPINOSA, B. 2019, P. 218. G III, 98)

É notável a ambiguidade do termo latino historia ao longo de todo TTP138. Historia


tem o sentido de investigação tipicamente baconiana: coleta de dados empíricos e posterior
manipulação indutiva dos mesmos. Ao mesmo tempo, lembremos, historia figura no capítulo
sobre os milagres, no qual Spinoza é forçado a apresentar uma teoria rudimentar da narração
de modo a sustentar seu ponto quanto à singularidade dos relatos miraculosos presentes na
Escritura. Neste aspecto, faz sentido pensar em “história” no plural: as histórias são meras
narrações particularizadas conforme a maneira como tocam a imaginação do narrador. Em
suas “crônicas e histórias, os homens narram mais as suas opiniões que os próprios fatos, e
um só e mesmo caso é descrito por dois homens com opiniões diversas de forma tão diferente
que parecem estar a falar de casos distintos”139. Quando, no mesmo capítulo, esclarece que,
ao tratar da profecia, foi obrigado a fazer apenas a sua história, contrapondo ao método
aplicado na consideração do milagre, quer dizer que recolheu os dados presentes na Escritura
conforme seus fundamentos revelados. A história da profecia (historiam prophetiae)140 o
permitiu conhecer o modo como um conjunto de indivíduos a concebeu num certo período
histórico: a definição mesma do objeto profético, no entanto, é inacessível, uma vez que a
essência de algo se compreende recorrendo aos instrumentos filosóficos e não aos
histórico-linguísticos. Com relação aos temas que escapam à luz natural, a referência última
não é o livro da natureza, mas o livro da Escritura. Portanto, para conhecer os temas que lhe
dizem respeito, é necessário elaborar uma história que tome aquele livro como realidade
última.

A metáfora dos dois livros, então, longe de propor uma harmonia entre Natureza e
Escritura, introduz uma distância intransponível quanto à linguagem. À história da Natureza
deve ser aplicado o método dedutivo conforme coordenado pela luz natural; à história da
Escritura, também a dedução, mas a partir de princípios revelados. Os diferentes códigos em
que são escritos os livros engendram, igualmente, uma separação entre saberes: a filosofia

138
Por isso Jacqueline Lagrée e Pierre François-Moreau optaram por traduzir o termo latino historia ora por «
enquête » ou « étude », ora por « récit historique » ou mesmo « histoires ». O primeiro recupera “o sentido
grego e baconiano de investigação ou de conhecimento empírico, sem referência à uma dimensão histórica”. Já
o segundo, “o sentido de narração com uma dimensão diacrônica” (Cf. SPINOZA, B. 2016, P. 734-735). Diogo
Pires Aurélio, em sua tradução, prefere manter “história” para os dois sentidos.
139
ESPINOSA, B. 2019, P. 212; G II, 92.
140
G III, 95.
143

tem como objetivo a verdade, fundamentando-se em noções comuns; a fé, apenas a


“obediência e a piedade”141, cujos fundamentos são “as narrativas históricas e a língua, pelo
que não podemos deduzi-la senão da Escritura e da revelação”142. Por isso a Escritura deve
sempre ser considerada do ponto de vista contextual, que atenta para o sentido de sua
doutrina – jamais para sua verdade.

A oposição entre narração e definição, sentido e verdade, história e eternidade, é


abalada, porém, por uma curiosa passagem dos Cogitata Metaphysica. Spinoza conclui,
refletindo sobre a origem dos vocábulos verdadeiro e falso, que inicialmente o vulgo os
empregava para tratar das narrações: verdadeira é aquela que corresponde aos fatos, falsa
aquela que deles discrepa. Em seguida, porque as palavras escapam ao domínio do vulgo e
integram sem demora o vocabulário filosófico, passaram a ser usadas em sentido técnico para
expressar o princípio de conveniência entre ideia e ideado. Eis que surge, então, a seguinte
comparação: “as ideias nada mais são do que narrações [narrationes], ou seja, histórias
mentais da natureza [historiae naturae mentales]”143. Spinoza emprega o termo narração
associado à historia para tratar das ideias, de modo a conceber o processo de transferência
semântica ocorrido na passagem da língua vernacular para a linguagem filosófica. Por um
processo metafórico, há um passo final que consiste num retorno ao seu ponto de origem,
quer dizer, o vocabulário comum. A significação atual para os termos é fruto de um
movimento circular de transferências e metamorfoses: “como quando dizemos verdadeiro ou
falso o ouro, como se o ouro a nós representado narrasse algo de si próprio, o que ele é ou
não é em si”144. É certo que esta passagem se inscreve no pano-de-fundo da metáfora dos dois
Livros. É apenas compreendendo a Natureza como livro que entendemos em que sentido as
ideias podem ser narrações e histórias, que são passíveis de interpretações tal como um texto
e suas instâncias específicas o são. Se a distinção entre narração e verdade é afrouxada por
esta passagem, é porque ela parece, surpreendentemente, combinar história e eternidade –
tanto em sua acepção como método quanto em sua compreensão narrativa. Enquanto as
narrativas dos profetas, fruto de sua imaginação singular, parecem datadas à sua estrutura
mental, que diz mais sobre seus preconceitos do que sobre a natureza das coisas, a história

141
ESPINOSA, B. 2019, P. 309; G III, 179.
142
ESPINOSA, B. 2019, P. 310; G III, 179.
143
ESPINOSA, B. 2015b, P. 217; CM I, VI.
144
Ibid.
144

mental fornecida no interior da ideia espelha as propriedades necessárias, portanto eternas, de


um objeto qualquer.

Para compreender melhor esta associação, talvez possamos distinguir, tomando


historia como método, uma concepção intensiva de uma extensiva de história. A concepção
extensiva, que parece ser aquela adotada por Gueroult ao descrever a história horizontal da
filosofia e a história vertical de orientação biográfica, toma o passado como elemento exterior
ao texto, cuja função é enriquecer ou relativizar a presença de um conceito apontando para
sua recorrência em momentos alternativos do tempo. Já a história intensiva se concentra num
único livro enquanto realidade incomunicável a um suposto passado – e a qualquer elemento
exterior – que lhe engendra. É apenas no interior de uma concepção intensiva de história que
se pode conceber a associação entre história e eternidade: o livro da natureza contém as
propriedades eternas dos objetos, suas definições mesmas, e para acessá-las é necessário
tomar o livro natural como entidade imanente. Embora a maior parte do livro da Escritura
contenha histórias singulares e, portanto, associadas à finitude, o método intensivo pode nos
encaminhar à descoberta de seu ensinamento eterno. Aplicando as regras do método
histórico, descobrimos o que há de regular na mensagem dos diversos profetas, penetrando o
sentido último de suas narrativas insólitas: “que existe um Deus único e onipotente, que só
ele deve ser adorado, que ele olha por todos e ama sobretudo aqueles que o adoram e amam o
próximo como a si mesmo etc.”145 Como isto está presente no ensinamento de todos os
profetas, constitui propriamente a doutrina universal da Escritura, recomendada “como
doutrina eterna e da maior utilidade para qualquer mortal”146.

Ignorando o uso subversivo da metáfora dos dois livros, que os aproxima justamente
afastando-os, não parece possível compreender, igualmente, como a distinção entre narração
e verdade não se sustenta de modo rígido. Talvez seja sedutor divisar em Spinoza um
precursor da relativização histórica, que considera a Escritura como um subproduto do ofício
humano. Como veremos na seção seguinte, é verdade que há, no TTP, um apelo para uma
visão dessacralizada do texto bíblico. Ao mesmo tempo, Spinoza pontua que aquele texto
possui uma mensagem eterna, e que é, por causa dela, sagrado147. É sobretudo uma visão

145
ESPINOSA, B. 2019, P. 222; G III, 102.
146
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 222; G III, 102.
147
A mensagem eterna da Escritura é o que permitirá a elaboração de uma teologia-política positiva por parte de
Spinoza.
145

extensiva da história que parece fundamentar, entre outras coisas, a disputa entre filosofia e
religião que muitos comentadores procuram manter148. James C. Morrison, num artigo
dedicado a pensar a noção spinozista de história149, sustenta a relevância do “fato histórico”150
para a religião, e sua equivalente desimportância para a filosofia. Ainda que mencione as
passagens importantes do TTP em que Spinoza introduz a comparação dos dois livros,
Morrison acredita que a historia se aplica à natureza apenas em seu sentido metodológico,
reservando as narrações apenas para a Escritura. Ignorando a aplicação das narrações ao livro
da Natureza, não percebe a diluição da oposição entre narração e verdade e, portanto, entre
história e eternidade. Considerando a Natureza como livro, a história como método, as ideias
como narrações, Spinoza acredita estar deduzindo as propriedades necessárias dos objetos.
Mais do que isso, pensando no livro da Escritura, considerando suas narrações
particularizadas, é possível deduzir, pelo método histórico, um ensinamento universal, que é
igualmente um ensinamento eterno – e que se harmoniza, é claro, com o que se pode deduzir
do Livro da Natureza. O método histórico de leitura da Escritura, antes de incentivar o
potencial relativizador do recurso ao passado, permite que se encontre a mensagem universal
da Escritura. A história é, antes de contraposta à eternidade, a única maneira de atingi-la.

Quais são, então, as regras do método histórico especificamente com relação ao Livro
da Escritura? A primeira regra do método é a inclusão de um estudo da língua em que foi
escrito151. Retornamos, aqui, às conclusões que obtivemos quanto ao tema da linguagem em
Spinoza: o livro da natureza está escrito à maneira dos geômetras, o que configura uma
linguagem reformada, capaz de seguir a própria estrutura do pensamento. Já o livro da
Escritura está redigido em hebraico, uma língua histórica, cujo domínio é público,
pertencendo tanto ao vulgo quanto aos sábios. Para entender toda a sua mensagem é
necessário conhecer a história daquela língua particular – tal como é preciso deduzir, das
ações da natureza, sua estrutura eterna. O conhecimento da língua hebraica é exigido não só
para o conhecimento do Antigo Testamento, língua na qual fora originalmente escrito, como
também para o do Novo: pois, segundo Spinoza, apesar de os livros que o compõem terem

148
E que pretendemos, por uma série de argumentos, questionar. Se a Escritura – compreendida segundo o
método verdadeiro – fundamenta uma religião que sustenta algum parentesco com a eternidade, é possível que
se associe mais facilmente com a filosofia.
149
MORRISON, J.C. “Spinoza and history”. In : KENNINGTON, R (ed.). The Philosophy of Baruch Spinoza.
Washington, D.C. : The Catholic University of America Press, 2018. P.173-195.
150
Ibid, P. 177.
151
G III, 100.
146

sido “divulgados noutros idiomas, no entanto, hebraízam”152. O hebraico é, portanto, ora o


idioma em primeira instância do livro, ora seu núcleo íntimo. A segunda regra prescreve que
as afirmações de cada livro devem ser reduzidas a seu cerne, organizando aquelas que tratam
do mesmo assunto. Ainda, devem ser listadas as afirmações ambíguas, obscuras e que soem
contraditórias entre si.153 Para detectar se uma frase é obscura, deve-se seguir a regra geral de
imanência: a obscuridade diz respeito a quanto aquela afirmação é coerente com outras
proposições do mesmo livro, e não a sua conveniência com a verdade. Buscar a verdade das
narrações da Escritura é o mesmo que procurar relacioná-la a elementos exteriores, ou seja,
tomar um livro pelo outro. A terceira e última regra deve envolver as circunstâncias de
confecção e recepção dos livros particulares que compõem a Escritura. Cumpre investigar as
informações detalhadas sobre o autor, incluindo “a vida, os costumes e as intenções”154, ou
seja, seu ingenium particular, além da época e a língua em que escreveu. Deve, também,
tratar do destino do livro, tanto no que se refere ao destinatário de sua doutrina quanto no diz
que respeito às suas circunstâncias específicas de recepção e manuseio: “como foi
originalmente acolhido, a que mãos foi parar, quantas versões diferentes teve, a conselho de
quem foi incluído entre os Livros Sagrados [...]”155 e o modo como foi reconhecido como
sagrado. Estes saberes são essenciais para distinguir ensinamento moral de Lei, quer dizer, o
que é apresentado a título de ensinamento eterno e aquilo que é particular a uma época e a um
povo. Spinoza parece ter em mente especificamente as leis válidas durante o primeiro Estado
hebreu, tal como formuladas por Moisés tendo em vista a segurança do Estado, em
contraposição aos ensinamentos morais e universais do Cristo no tocante à salvação das
almas.156

A última máxima do método histórico, porém, talvez não seja tão facilmente acolhida
no interior do ideal de leitura imanente inicialmente proposto. À primeira vista, há uma clara
oposição entre os elementos contidos textualmente no interior do livro, gravados com tinta, e
as informações que o circulam e que constituem seja a condição de possibilidade de seu
engendramento, seja de sua distribuição. Como pode ser que as informações sobre a
psicologia do autor, a quem se dirigia ou mesmo os dados sobre a confecção, destino e

152
ESPINOSA, B. 2019, P. 220; G III, 100.
153
Ibid.
154
ESPINOSA, B. 2019, P. 221; G III, 101.
155
Ibid.
156
Tal tema será mais detalhadamente discutido nos capítulos 3 e 4 deste estudo.
147

recepção do livro estejam contidos no interior da Escritura mesma? A tese de Spinoza parece
implicar que todos os saberes que se relacionam à Escritura são compreendidos no interior do
livro. Tais informações, na medida em que são condição de sua inteligibilidade, o compõem
tal como os elementos graficamente documentados. Para ser fiel à regra geral de imanência,
Spinoza precisa também constituir de modo a posteriori o texto da Escritura, incluindo
elementos que tenderíamos a separar do livro enquanto volume. Ou seja, é necessário operar
uma inversão: ao invés de tomar o texto como regularidade prévia, que emana de seu interior
uma doutrina e um conjunto de narrativas, o texto é, antes, um efeito, uma circunscrição de
uma cadeia de informações que incluem a língua, os dados biográficos do autor, a época, a
distribuição etc. A constituição da Escritura como livro parece remeter à compreensão
spinozista de indivíduo tal como formulada em EII, P. XIII: o indivíduo não é uma substância
cuja existência antecede suas relações, mas é, antes, um subproduto das mesmas.157 Enquanto,
nos corpos, a regra geral de composição de um indivíduo é a lei de movimento e repouso, a
partir da qual o indivíduo é formado segundo o grau de conveniência de suas partes, a lei
geral de constituição da Escritura como livro é a maior ou menor conveniência à doutrina
geral. O processo de constituição deste livro, bem entendido, não é arbitrário: há uma regra
rigorosa que o guia, que consiste em tomar como parte do livro apenas os elementos que,
eternamente, estão contidos em sua história. O livro da Escritura é algo que inclui, mas que
não se identifica à realidade imediata do texto registrado.

Deste ponto de vista, parece que o livro da Escritura se torna uma obra
excessivamente abrangente. Por um lado, ela poderia incluir textos de outros profetas que não
compõem o cânone: por exemplo, o Corão de Maomé. Esta objeção é feita epistolarmente a
Spinoza por Velthuysen158: seguindo as prescrições de Spinoza, o Corão deveria ser integrado
à Bíblia, uma vez que Maomé profetizou igualmente o exercício das virtudes morais ao seu
povo, exprimindo igualmente a Palavra de Deus. Como demonstra Alexandre Matheron159,

157
Diz a Definição de EII, P. XIII: “Quando alguns corpos de mesma ou diversa grandeza são constrangidos por
outros de tal maneira que aderem uns aos outros, ou se movem com o mesmo ou diverso grau de rapidez, de tal
maneira que comunicam seus movimentos uns aos outros numa proporção certa, dizemos que esses corpos estão
unidos uns aos outros e todos em simultâneo compõem um só corpo ou Indivíduo, que se distingue dos outros
por essa união de corpos” (Cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 155-157).
158
Na Carta 42.
159
MATHERON, A. « Le statut ontologique de l'Écriture sainte et la doctrine spinoziste de l'individualité ». In :
MATHERON, A. Études sur Spinoza et les philosophies de l'âge classique. Lyon: ENS Éditions, 2011. P.
407-415.
148

porém, ainda que Spinoza insista que Maomé é um impostor160, uma vez que suprime a
liberdade de expressão, o mesmo poderia ser dito de Moisés – que, no Estado hebreu,
impedia a livre circulação de pensamento e expressão entre os súditos. Mesmo assim, é
possível separar o que há de supersticioso na mensagem mosaica e encontrar seu núcleo
eterno, no qual está de acordo com os demais livros. Assim, embora por um fator contingente
o Corão não esteja integrado ao texto bíblico – cuja presença ou ausência de certos livros é
determinada via concílio, embora segundo a norma ordenadora da palavra de Deus161 –, se ele
fosse tomado globalmente ao lado dos demais livros, sua mensagem íntima seria equivalente
à doutrina universal da Escritura, e, em última análise, poderia compor, com os demais textos,
um só indivíduo. Com isto entendemos em que sentido a constituição do texto permanece a
posteriori, incluindo não só informações aparentemente externas, mas demais textos que
possam parecer, num primeiro momento, distintos e contrários. Matheron denomina esta
estratégia de circulação do sentido162: tomados individualmente, os livros têm suas doutrinas
próprias, mas, comparado com os demais registros textuais estabelecidos canonicamente,
governados conforme esta doutrina universal, compõem um único todo.

Resta acrescentar, para eliminar a aparente circularidade do argumento, que o estatuto


de texto sagrado tanto quanto a seleção dos textos que compõem o cânone é igualmente um
dado histórico que faz parte da constituição do livro – e é talvez neste sentido contingente que
a Bíblia deve excluir demais textos e ensinamentos como o de Maomé. Embora Matheron
classifique a aproximação entre Escritura e Indivíduo como meramente metafórica163 – afinal,
a Escritura não é realmente um indivíduo, seus livros não são corpos que se compõem
segundo a lei de movimento e repouso –, apenas no nível da pura analogia já conquistamos
nossa conclusão, a saber, a de que há, tanto na constituição da Escritura como texto quanto na
constituição dos corpos como Indivíduos, uma inversão de perspectiva, em que os dados
históricos são anteriores à constituição do Livro ele mesmo.

160
Cf. resposta de Spinoza na Carta 43.
161
G III, 164.
162
MATHERON, A. 2011, P. 410.
163
Para ele, a Escritura pode ser tomada como um indivíduo inclusive no sentido ontológico: basta considerar o
fato de que a palavra de Deus existe na mente e, portanto, no corpo e no comportamento de seus leitores. A
Escritura tem uma existência ontológica se abandonarmos o ponto de vista semântico e adotarmos o pragmático.
A posição de Matheron parece sugerir que a existência semântica é menos “real” do que a existência
pragmática, o que é estranho considerando a metafísica spinozista. Em todo caso, não se trata de objetar a
posição de Matheron aqui, mas de seguir suas intuições para conquistar nossa hipótese de inversão.
149

Apesar de sustentar, devido a seus compromissos com a teoria baconiana de


interpretação, uma noção particularmente radical do processo de constituição de um texto, as
regras que coordenam sua interpretação parecem obedecer a um princípio implícito que é, ele
mesmo, clássico. A doutrina universal da Escritura consiste naquele saber claramente
ensinado de modo regular por todos os profetas em todos os livros. Esta doutrina constitui a
base de todas as narrativas insólitas, das profecias e dos milagres. Certamente, sobre Deus, a
Escritura não ensina sua essência e propriedades, como ele age etc.: é manifesto que os
profetas divergem absolutamente sobre estes assuntos. Definida, então, a doutrina, é tempo de
interpretar as passagens específicas de acordo com o modo como se relacionam com ela.
Enquanto muitos intérpretes, como Maimônides, procuraram domesticar o sentido da
Escritura aos saberes racionais, o método spinozista quer domesticar a Escritura à própria
Escritura. A partir do texto, é possível estabelecer graus de necessidade de determinados
ensinamentos. Alguns ensinamentos são mais básicos e fundamentais do que outros. As
passagens obscuras, portanto – aquelas em que não é fácil deduzir seu significado pelo
contexto – devem ser interpretadas a partir do quão coerentes são com a doutrina universal.
Se ainda assim as passagens permanecerem contraditórias entre si, é necessário lançar mão
dos critérios de relativização já apresentados: contemporizar a respeito do autor, de suas
opiniões, das circunstâncias de confecção de seu livro, a quem se dirigiam etc. Ou seja: tanto
em relação ao ensinamento universal quanto aos caracteres respectivos de cada livro, o
princípio ordenador deve ser o de dissolver as contradições e fissuras do texto em prol de sua
univocidade doutrinária.

O mesmo princípio de eliminação das ambiguidades é encontrado na listagem das


dificuldades do método. Além de uma dificuldade inicial quanto à obtenção de um
conhecimento total do hebraico, devido em grande parte ao fato de não se dispor de uma
investigação sobre “os fundamentos e o ensino dessa língua”164, é acrescida a ambiguidade
inerente à língua. Spinoza faz referência não às ambiguidades inerentes a qualquer
linguagem, mas a características particulares do hebraico, como a confusão entre as letras do
mesmo órgão, os significados múltiplos das conjunções e advérbios, a ausência de uma
correspondência total entre os tempos verbais do hebraico com as demais línguas e a ausência
de vogais e de sinais gráficos para separar as orações e indicar seu tom expressivo.165 Que

164
ESPINOSA, B. 2019, P. 226; G II, 106.
165
G III, 107-109.
150

estas propriedades sejam tomadas como impedimentos à compreensão do “verdadeiro sentido


de todas as frases da Escritura”166 revela um Spinoza comprometido com um princípio
organizador de coerência e supressão das possibilidades multidimensionais do texto. Não faz
parte de seu horizonte a ideia de que as contradições possam ser produtivas. Em último caso,
observando que uma ambiguidade não pode mais ser resolvida através de nenhum dos
métodos considerados, o intérprete deve simplesmente se resignar e suspender o juízo,
desistindo de encontrar uma solução para aquele tema específico na Escritura. Quanto aos
temas incompreensíveis, também não é útil perder tempo a persegui-los: o verdadeiro sentido
da Escritura, sua mensagem salvífica, é clara e acessível; e tudo o mais se refere a coisas
ininteligíveis, as quais não são necessárias para a salvação das almas. Por isso, a
impossibilidade de compreensão “é mais um problema de curiosidade que de utilidade”167.

Gostaria de finalizar este incurso sobre as regras de interpretação spinozista da


Escritura apresentando um exemplo de aplicação do método histórico de interpretação, para
que seja entendido exatamente tanto a regra geral de imanência quanto a aplicação implícita
deste princípio de supressão das ambiguidades. O método afirma que, diante de passagens
que se contradizem, é necessário se perguntar sobre “em que altura, em que época, ou para
quem é que elas foram Escritas”168. Spinoza, então, investiga duas falas do Cristo: em
primeiro lugar, quando diz que “felizes os que choram porque serão consolados”169; em
segundo, “mas àquele que te bate na face direita oferece-lhe também a outra”170. Ora, a
primeira frase, dita no livro de Mateus, não esclarece por si só quem são “aqueles que
choram”. A sequência do livro nos permite concluir que são apenas aqueles indivíduos que
choram o reino de Deus. Isto atesta para a necessidade de conferir todos os momentos do
livro em que aquela formulação surge, refletindo sobre sua autoria. Já a segunda frase
contradiz flagrantemente a lei de Moisés, e o próprio Cristo afirma não querer destruí-la
(Mateus, V, 17). A frase foi pronunciada por Cristo, de modo que é preciso determinar seu
ingenium. Cristo ensinava não como um legislador, como Moisés, mas como um doutor ou
mestre, dirigindo-se ao coração dos homens. A frase é dita a indivíduos que viviam oprimidos
politicamente em seu Estado. O mesmo ensinamento, dado na mesma circunstância de

166
ESPINOSA, B. 2019, p. 226; G III, 107.
167
ESPINOSA, B. 2019, P. 232; G III, 112.
168
ESPINOSA, B. 2019, P. 223; G III, 103.
169
Apud. ESPINOSA, B. 2019, P. 223; G III, 103.
170
Ibid.
151

corrupção estatal, é feito por Jeremias (Lamentações, III). Segue-se que este ensinamento é
feito, em duas ocorrências, em tempos de exceção, sem que seja proclamado como uma lei:
de modo que não contrariam a afirmação de Moisés, que pregou em tempos de estabilidade
do Estado. No interior de um Estado saudável, deve-se exigir a aplicação da justiça e das leis
da pátria. Quem pratica um crime deve ser punido: não por vingança, mas pela manutenção
da justiça. O perdão aos ímpios, portanto, só tem cabimento no interior de um Estado em
crise, no qual não se pode confiar no poder estatal como recurso mediador.

De posse das regras de interpretação da Escritura, que procuram observar seja um


princípio de interiorização absoluta, retraçando as fronteiras entre o que está no interior de
um texto e o que está fora dele, seja uma combinação inesperada entre história e eternidade,
podemos avançar em nossa caracterização deste livro já constituído como objeto. Falta
refletir, agora, não mais sobre sua edificação e interpretação, mas sobre seu uso. Como é
possível fazer um uso da Escritura que não encaminhe à servidão? Como é possível cultuá-lo
de modo não supersticioso, inseri-lo numa filosofia naturalista sem, ao mesmo tempo,
enfraquecer sua mensagem de salvação?

A carta e o livro

Em sua carta à Senhora Cristina de Lorena, na qual pretendia demonstrar a


compatibilidade das teses copernicanas com passagens da Escritura171, Galileu Galilei afirma
profeticamente que, caso as opiniões que sustenta em seu escrito revelem algum erro ou
suscitem algum escrúpulo por parte da Santa Igreja, que ele seja “mesmo rasgado e
queimado, pois não pretendo tirar dele nenhum fruto que não seja piedoso e católico”172.
Sabe-se que, no ano seguinte, isto é, em 1616, o sistema copernicano será condenado pelo
Índice; e que um escrito particular de Galileu, o Diálogo sobre os dois máximos sistemas do
mundo ptolomaico e copernicano, de 1632, partilhará do mesmo destino. Mais do que as
circunstâncias históricas que antecedem e sucedem a carta de 1615, tal texto interessa-nos
sobremaneira por ser um testemunho, dos seiscentos, de uma tentativa de pensar a afinidade

171
A teoria claramente subscrita, ao longo da carta, é o copernicanismo, frequentemente apenas descrita como
aquela que preconiza a mobilidade da Terra e a estabilidade do sol (GALILEI, G. 2009, P. 58). Já as passagens
da Escritura mais problemáticas para esta tese são as seguintes: Salmos 18, 6 e 103, 5; Crônicas 16, 30;
Eclesiastes I, 4-6 e Josué 10, 12 (cf. GALILEI, G. 2009, P. 10). Galileu dedicará uma análise concentrada à
passagem de Josué.
172
GALILEI, G. Ciência e fé. São Paulo: Editora UNESP, 2009. P. 57.
152

de teses científicas – teses que dizem respeito, portanto, ao conhecimento natural – com
declarações provenientes da Escritura – ou seja, o conhecimento revelado. A estratégia geral
de Galileu, na carta, é de nada tratar das demonstrações científicas que poderiam ser
aventadas em favor do copernicanismo; preferindo, na verdade, adentrar o terreno das
querelas teológicas – um expediente que, especulam alguns173, mais pode ter facilitado do que
evitado sua condenação posterior. Lançando mão de artifícios retóricos, dentre eles o abuso
dos argumentos de autoridade174, Galileu emite teses curiosamente próximas daquelas
amplificadas por Spinoza ao longo do Tratado Teológico-Político. É tomado como ponto de
partida o fato de que a Escritura não pode jamais mentir, quer dizer, enunciar o falso – desde
que seu sentido seja corretamente penetrado pelo leitor. Para ele, há uma passagem fluida,
quanto ao sentido, entre o livro das Sagradas Letras e “o livro aberto do céu”175. Entre estas
duas obras escritas, só pode haver concordância, pois duas verdades não podem se
contradizer.176 Ainda assim, há pelo menos duas ressalvas iniciais antes de partir para a leitura
do livro sagrado: em primeiro lugar, deve-se tomar em conta seu caráter moral, cuja intenção
primordial é a salvação das almas, portanto a beatitude, e jamais o ensinamento sobre a
disposição da natureza. Recuperando a fórmula atribuída por ele mesmo ao Cardeal Barônio,
“a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se vai para o céu e não como vai o céu”177.
Esta função beatífica explica o segundo aspecto, a saber, sua linguagem particular: o
significado “literal” e “nu” das palavras178 está conformado ao modo de perceber do vulgo,
cujo intelecto é incapaz de aceder às verdades ocultas nela dispostas179. Apesar disso, a
Escritura segue gozando do status de texto sagrado e inspirado, a partir do qual é
perfeitamente possível conhecer a essência de Deus de forma adequada.

Embora não prepare um método de leitura complexo como o spinozista, Galileu, para
conquistar o total concordismo entre os livros, aposta que se deve, antes de mais nada, buscar

173
Esta é a conclusão de Moss, em seu artigo "Galileo's Letter to Christina: Some Rhetorical Considerations”. In
: Renaissance Quarterly, Vol. 36, No. 4 (Winter, 1983), pp. 547-576). O aspecto interessante de seu texto é que
tal tese é sustentada a partir de uma análise das estratégias retóricas da carta.
174
A carta é permeada por transcrições de passagens de Santo Agostinho, além de trazer os testemunhos de
Pitágoras, Platão, Dionísio Areopagita, Diego de Zúñiga, Tomás de Vio, Cosme Magalhães e outros.
175
GALILEI, G. 2009, P. 76.
176
GALILEI, G. 2009, P. 64.
177
Ibid.
178
Galileu separa o significado literal ou nu das palavras (P. 58), as palavras “tais como aparecem” (P. 55), e
mesmo seu “som” imediato (P. 58), dos “verdadeiros Sentidos da Escritura” (P. 69) e das “glosas ou
interpretações” (P. 77).
179
GALILEI, G. 2009, P. 58-59.
153

demonstrações certas sobre as teses naturais, as quais são obtidas via experiência sensível180.
Tão logo conquistadas, estas devem ser confrontadas com as passagens que soam conflitantes
com o significado mais imediato das palavras na Escritura e, caso haja contradição, é
necessário ir além do mero som das palavras, em direção à interpretação verdadeira, que
deverá, por princípio, concordar com a verdade natural cientificamente provada. Este
princípio é aplicado por Galileu na consideração da controversa passagem de Josué (10, 13),
em que é afirmado que o sol deteve-se no meio do céu, e que o dia foi prolongado. O
heliocentrismo de Copérnico pode explicar esta passagem de modo muito mais satisfatório do
que a tese então aceita pelas autoridades teológicas, quer dizer, o sistema ptolomaico181. A
consequência lógica deste último seria a de que, parado o sol, o dia seria mais curto – e não
mais longo. Supondo que o sol ocupa posição central no sistema dos astros e que, além disso,
é fonte de movimento para os demais corpos, como a Terra e a Lua, basta cessar o sol para
cessar o movimento geral do sistema, alcançando, então, a conclusão do prolongamento de
um dia inteiro182. O sistema copernicano permite considerar o texto em sua literalidade – o
que, na verdade, é um artifício de Galileu para conquistar o assentimento de seus
interlocutores, que subscreviam as teses ptolomaicas e a manutenção do sentido mais
imediato do texto.

Não é simples categorizar a posição de Galileu como dogmática, pois, como vimos,
seu esforço por fazer concordar conhecimento natural e conhecimento revelado é
acompanhado de ressalvas quanto aos limites científicos da Escritura, bem como sobre seu
caráter didático, adaptado à compreensão do vulgo183. Estas duas ressalvas são igualmente
aceitas por Spinoza, embora, delas, ele jamais retire a possibilidade de concordismo – ou, ao
menos, não de um concordismo que implique uma intervenção direta sobre a Escritura. A tese

180
GALILEI, G. 2009, P. 78, 80.
181
GALILEI, G. 2009, P. 95.
182
GALILEI, G. 2009, P. 98.
183
Para um exercício comparativo entre as propostas de Galileu e Spinoza, ver LAGRÉE, J. “Les deux livres de
la nature et de L’Écriture”. In : LAGRÉE, J. Spinoza et le débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de
Rennes, 2004. P. 35-38. Segundo Lagrée, há uma relação de continuidade entre as intuições de Galileu e
Spinoza, uma vez que o primeiro teria aberto o caminho para a consideração da natureza não mais como texto
(posto que ela não possui destinatário, tampouco um sentido predeterminado), mas como um produto da ação de
Deus, que obedece às suas leis universais, necessárias e imutáveis. Ver também RUDAVSKY, T.M. “Galileo and
Spinoza: Heroes, Heretics, and Hermeneutics”. In : Journal of the History of Ideas, Vol. 62, No. 4 (Oct., 2001),
pp. 611-631.
154

de que duas verdades não podem se contradizer aparece quase ipsis literis em Spinoza184,
embora não se possa dizer propriamente que há “concordismo”, mas sim um paralelismo, do
ponto de vista da eternidade, entre a verdade emanada pela natureza e pelo texto. Há
aproximações inclusive quanto ao escopo e linguagem da Filosofia, compreendida por
Galileu como aquilo que está escrito no grande livro da natureza, com caracteres
matemáticos:

A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante
nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a
língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua
matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras
geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem
eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. (GALILEI, G. 1978.
P.119)

Como vimos acima, Spinoza também reivindica para si uma compreensão geométrica
da linguagem filosófica, apesar de a atribuição mesma de uma linguagem para ela seja
problemática se considerarmos a crítica que se empenha em elaborar à sua gênese
imaginativa. Há, também em Spinoza, uma tentativa de dar sentido à passagem de Josué em
que o milagre do prolongamento do dia é narrado – para ele, o texto claramente revela uma
incompreensão por parte daquele que o narra185, e não cabe ao intérprete procurar nele
intervir de modo a forçá-lo a dizer aquilo que manifestamente não diz. Neste momento,
Spinoza quase deixa escapar uma referência a Galileu, aludindo àqueles que “aprenderam a
filosofar de forma mais correta e sabem que a Terra se move ao passo que o Sol está parado,
ou melhor, não se move à volta da Terra”186 e que tentam, a seu ver sem sucesso, interferir no
texto de modo a fazê-lo concordar com as conclusões astronômicas. Talvez estas
comparações plenas de reservas possam ser derivadas de uma postura única, que revelará, em
si mesma, todo afastamento que há entre Galileu e Spinoza. Parece que Galileu parte de uma
sacralização do texto bíblico, que o faz supor, entre outras coisas, a sabedoria dos profetas. Já
Spinoza apoia-se num desprezo, ao mesmo tempo, pela escritura e pela Escritura. Para
entender este desprezo, é necessário analisarmos o modo como o signo do livro é tratado em
momentos centrais do TTP.

184
Ver, para tanto, nossa análise do milagre no capítulo anterior. Uma passagem interessante neste sentido é CM
II, VIII.
185
G III, 35-36.
186
ESPINOSA, B. 2019, P. 153; G III, 36.
155

Em primeiro lugar, é necessário diferenciar a palavra ou o verbo de Deus da Escritura.


187
A Escritura é tão-somente um conjunto de livros, que documenta narrativas com papel e
tinta. Se há algum sentido em que a Escritura pode ser dita sagrada e divina, restringe-se à
capacidade de aquelas palavras incitarem a devoção. Aqui, cabe um breve retorno à teoria da
linguagem que vimos acima: o sentido das palavras é coordenado por seu uso no seio de uma
comunidade qualquer, dotada de uma certa história e memória coletiva.188 Portanto, para que
um livro seja dito sagrado, é necessário que estas palavras estejam organizadas, segundo
aquele uso, para que sua mensagem seja ela mesma santificadora, quer dizer, para que se
“destine ao exercício da piedade e da religião”189. As palavras – diferentemente das
demonstrações filosóficas – têm origem necessariamente imaginativa e, portanto, têm como
propriedade essencial a equivocidade: de modo que podem ou não expressar uma mensagem
piedosa. Um livro não é santo em virtude de sua autoridade prévia, como uma “espécie de
carta que Deus mandou lá do céu aos homens”190: a santidade diz respeito apenas ao seu
destino. A partir do momento em que as regras daquela linguagem forem alteradas pelo uso,
ou que as palavras forem modificadas, o Livro, que as carrega, se tornará “impuro e profano”
191
. Retomando a crítica que apresenta, no Apêndice ao Livro I da Ética, aos termos
qualitativos (tais como belo e feio, perfeito e imperfeito, bom e mau, ordem e confusão etc.),
Spinoza conclui que nada pode ser designado sagrado ou profano em termos absolutos, mas
apenas na medida em que se relaciona à mente, incitando-a ao comportamento piedoso. Tal
postura torna-se ainda mais interessante se a tomarmos em seu sentido mais geral, quer dizer,
estendendo-a para pensar outros livros que não a Escritura: não há propriamente uma
mensagem oculta presa aos caracteres gráficos do texto, que caberia ao intérprete revelar, mas
todo estabelecimento de sentido só pode se dar como investimento posterior sobre aquela
obra. O sentido de um livro é, portanto, sempre a posteriori. Seria possível até mesmo aplicar
estas teses para sugerir as alianças sub-reptícias que certa tradição hermenêutica, orientada
pela busca do sentido último, a priori e evidente do texto, mantém com a postura teológica de
sacralização da letra, como procuramos fazer ao abordar o método gueroultiano.

187
G III, 158. Esta diferenciação é tematizada ao longo de todo o capítulo XII do TTP.
188
Ver também a argumentação desenvolvida em G III, 160.
189
ESPINOSA, B. 2019, P. 289; G III, 160.
190
ESPINOSA, B. 2019, P. 287; G III, 158.
191
ESPINOSA, B. 2019, P. 289; G III, 160.
156

Do ponto de vista teológico, a linguagem se distingue, pois, entre o Verbo de Deus e


as palavras (também verbos) escritas no Livro Sagrado (que só o é sagrado como
consequência de seu uso santo, bem entendido). Ora, mas se as palavras estão escritas na
Escritura, também o verbo de Deus está escrito em algum lugar: no coração e na mente dos
homens. Spinoza retoma textualmente192, neste aspecto, a distinção paulina entre as cartas de
recomendação e a carta de Cristo: as primeiras, escritas com tinta, em tábuas petrinas; as
segundas, com o espírito de Deus, em tábuas de corações carnais193. Por isso, justifica Paulo,
vós sois a carta: onde se lê “carta”, pode-se substituir por “livro” para alcançar a proposta de
Spinoza. Como fundamento desta distinção, que se configura tanto da perspectiva da teologia
quanto da linguagem, encontra-se uma operação que não é outra senão aquela que opõe
interno e externo. O verbo divino é interno, posto que escrito no coração e na mente dos
homens, diferentemente das palavras, dispostas no livro como letras, sempre exteriores ao
sentido, e que podem ou não ser organizadas de tal forma a expressarem uma mensagem de
salvação. Além disso, o meio em que foi transmitida aos antigos judeus, quer dizer, por
escrito, determinou o modo como a religião fora por aquele povo compreendida:
simplesmente como Lei.194 Para transfigurar a religião, e, mais do que isso, interiorizá-la,
seria preciso aguardar o advento de um novo tempo, em que o Verbo divino fosse
comunicado sem mediações textuais, na figura do Cristo. Há, portanto, uma desqualificação
da religião compreendida como Lei – pura exterioridade – a partir de sua transmissão
enquanto escritura.

O cálculo que desmembra exterioridade e interioridade cria, ainda, mais uma oposição
significativa no que se refere ao tema do livro: a eternidade do verbo divino, de um lado, e a
corruptibilidade das palavras escritas, de outro. Uma análise da própria Escritura permite
aceder, segundo Spinoza, a pelo menos três sentidos para a expressão “palavra de Deus”
(debar Jehova)195: ela pode significar a lei divina universal, quer dizer, a religião definida

192
G III, 162.
193
“Começamos de novo a nos recomendar a nós mesmos? Ou será que precisamos, como alguns, de cartas de
recomendação para vós ou da vossa parte? A nossa carta sois vós, escrita nos nossos corações, conhecida e lida
por todas as pessoas — vós que sois manifestos como carta de Cristo, ministrada por nós; escrita não com tinta
mas com espírito de Deus vivo; não em tábuas petrinas, mas em tábuas de corações carnais” (2Cr 3, 1-3) Cf.
Bíblia, 2018. P. 272.
194
Spinoza justifica o recurso à escrita recorrendo à complexão dos hebreus, que “eram quase como crianças”
(ESPINOSA, B. 2019, P. 287; G III, 159). Sobre o ingenium do povo hebreu e o modo como Spinoza dele
deriva uma teologia-política determinada, ver o Capítulo 4 deste trabalho.
195
G III, 162.
157

como católica, a ordem da natureza e o destino, promulgadas conforme o decreto divino, e,


finalmente, a ação do profeta outorgada por sua comunicação via revelação. A Escritura só
pode ser corretamente designada por palavra de Deus, portanto, porque ensina a lei divina
universal, apresenta as previsões do futuro como profecias de Deus e, por último, pelo fato de
seus autores terem estabelecido com Deus uma comunicação que não se reduz ao
conhecimento instituído via luz natural.196 Desta perspectiva, a palavra de Deus, apesar de
disposta na Escritura, lhe escapa em direção à eternidade. Um livro pode ser facilmente
corrompido: suas páginas podem amarelar, microorganismos podem se alimentar daquele
papel, de modo que o suporte físico perder-se-á para sempre no tempo e no espaço.197 A
mensagem santa que este livro carrega, no entanto, é eterna. Para recuperar uma formulação
já citada de Spinoza, embora os livros da Bíblia não sejam como uma carta que Deus enviou
aos homens do céu, sua Palavra pode, num certo sentido, ser compreendida como sendo
despachada desta região perpétua198. O mesmo argumento explica as razões de esta
mensagem não poder conter erros, ser deturpada ou truncada.199 Estas características dizem
respeito a uma má escrita que possa vir a impossibilitar a compreensão do sentido do texto,
relacionando-se apenas à palavra e à sua forma. São propriedades exteriores ao sentido e à
mensagem que o Livro carrega. Separando forma de sentido, linguagem de ser, o que, como
vimos, não é um expediente novo em seu pensamento, Spinoza pode preservar a mensagem
religiosa das instabilidades e vicissitudes da história. Considerando apenas que sua
mensagem consiste em “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós
mesmos”200, a Escritura, entendida como suporte para o verbo divino, chegou até nós intacta.
A distinção entre os traços no papel, a pura letra, e o sentido do texto, fundamenta, também,
ora um uso religioso, ora um tratamento supersticioso e mesmo fetichizado do objeto-Livro:

Não pretendo, pois, afirmar que a Escritura, na medida em que contém a lei divina,
conservou sempre os mesmos acentos, as mesmas letras e, em suma, as mesmas

196
GIII, 162-163.
197
Aqui uma ambiguidade interessante: embora seja corruptível devido justamente ao seu estatuto de linguagem,
há algum sentido em que o livro pode ser dito duradouro, embora não eterno. As palavras de uma língua
dificilmente podem ser alteradas, uma vez que são de domínio público, compartilhadas tanto pelo vulgo quanto
pelos sábios. O mesmo não pode ser dito do sentido de uma passagem qualquer: os sábios detém o monopólio
dos livros sagrados, bem como a autoridade para interpretá-los. Ou seja, da corruptibilidade da língua deriva-se
uma certa capacidade de perpetuação, num sentido oposto à eternidade da palavra de Deus. Ver o que diz
Spinoza em G III, 105-106.
198
Eis uma particularidade da Escritura em relação aos demais livros: não parece se seguir que todos os
documentos possuam uma mensagem eterna, apenas aqueles que visam apresentar o verbo eterno de Deus.
199
G III, 164-165.
200
ESPINOSA, B. 2019, P. 293; G III, 165.
158

palavras (deixo aos Massoretas e aos que têm uma adoração supersticiosa pela letra
o trabalho de o demonstrar); quero apenas dizer que o sentido, que é a única coisa
que conta para que uma frase se possa apelidar de divina, chegou até nós intacto,
muito embora se presuma que as palavras em que originalmente foi expresso possam
ter sido muitas vezes alteradas. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 293; G III,
164-165)

Observa-se que o desprezo de Spinoza pela linguagem assume seus contornos


teológico-políticos, que o permitem, em última análise, a crítica à sacralização da letra, que
nada mais é do que uma nova versão do culto ao exterior. Aos traços gráficos do livro,
Spinoza reserva, como deve ser, uma apreciação histórica e crítica, analisando-o sob a ótica
de sua corruptibilidade: constata que os livros de ambos os Testamentos foram escritos
paulatinamente ao longo do tempo, muitas vezes de modo a intervir em circunstâncias
específicas (como no caso das epístolas), sublinhando o fato de os livros que a compõem
terem sido selecionados por homens, aprovados via concílio, que tinham como norte a busca
pela palavra de Deus; e até mesmo recorrendo à evidência de que os quatro evangelhos do
Novo Testamento não foram assim estabelecidos por decreto direto divino, uma vez que seria
estranho supor que Deus teria preferido narrar a história de Cristo não uma, mas quatro vezes.
201
Estas considerações só podem ser feitas separando linguagem e ser, que justamente
permite reservar à palavra divina um estatuto superior e anterior ao mero texto, curiosamente
aparentando-a à Filosofia. O verbo divino e a Filosofia promovem o encontro entre ser e
linguagem, de modo que deixam de ser linguagem para configurar o pensamento e a salvação
em si mesmos, expostos sem mediações: por isso são eternos. É neste sentido que Spinoza
opera uma crítica dupla à escritura e à Escritura: a primeira, por ser mero suporte gráfico,
submetida a todos os percalços inerentes à linguagem; a segunda, se for entendida apenas
como livro, como texto corruptível apartado de sua mensagem e função piedosa. O desprezo
pela linguagem – consequentemente pelos demais signos que dela decorrem, como a escrita e
o livro – origina, então, uma distinção teológica entre um culto religiosamente adequado, que
encaminha à salvação (um culto a uma palavra não-escrita), e um culto supersticioso (à
palavra escrita), cuja consequência é, mais uma vez, a superstição. A dessacralização do
texto bíblico é concebida, por Spinoza, nos termos de uma desqualificação da linguagem, em
continuidade com sua crítica à sua gênese imaginativa. Apesar das ressalvas que dirige ao

201
GIII, 163-164.
159

tratamento do texto bíblico, falta a Galileu, segundo Spinoza, uma verdadeira dessacralização
da escrita e uma maior consciência dos limites expressivos da linguagem.

De posse deste método de interpretação da Escritura, é tempo de nos dirigirmos


diretamente aos ensinamentos múltiplos que ela carrega, condensados nas figuras de seus
profetas, apóstolos e no caso único do Cristo. É tempo de entender em que sentido as
mediações corporais – acústicas, visuais e textuais –, assim como a ausência de mediações
serão causa de variados modelos de teologia-política, cada uma com uma função distinta na
economia da salvação. A partir da figura do Cristo, uma nova tensão será instaurada: a
exterioridade, construída até então como gênero de vida supersticioso, será positivamente
recuperada.
160

Capítulo 3.
A BOCA DE DEUS

Se [Jesus] foi mais infeliz, não foi menos hábil, e


alguns aspectos de sua história fazem crer que a
maior falha de sua política foi não ter se provido
o bastante para sua própria segurança. De resto,
não considero que ele tenha tomado medidas
piores que os dois outros legisladores [Moisés e
Maomé], cuja memória permaneceu como árbitro
da crença de tantos povos.

— Anônimo clandestino do século XVIII,


Tratado dos três impostores1

Assim Espinosa é o Cristo dos filósofos, e os


maiores filósofos não mais são do que apóstolos,
que se afastam ou se aproximam deste mistério.
Espinosa, o tornar-se-filósofo infinito. Ele
mostrou, erigiu, pensou o "melhor" plano de
imanência, isto é, o mais puro, aquele que não se
dá ao transcendente, nem propicia o
transcendente, aquele que inspira menos ilusões,
maus sentimentos e percepções errôneas...

— Deleuze & Guattari, Que é a filosofia?2

Não penseis que vim para lançar paz sobre a


terra. Não vim para lançar paz, mas sim uma
espada. Vim para separar uma pessoa do seu pai e
uma filha da sua mãe e uma nora da sua sogra, e
os inimigos de cada um [são] os que vivem em
sua casa. Aquele que ama pai ou mãe mais do
que a mim não é digno de mim. E aquele que não
pega na sua cruz e [não] segue atrás de mim, esse
não é digno de mim. Quem encontrou a sua vida
irá perdê-la e quem perdeu a sua vida por minha
causa irá encontrá-la.

— Evangelho de Mateus 10, 34-393

Na passagem do século XVII para o XVIII, o termo impostura parece oscilar entre o
campo semântico do erro epistêmico e o da falsificação teológico-política4. A expressão ecoa
no título de uma das mais célebres peças de Molière: O Tartufo, designada originalmente por
Tartufo, ou o hipócrita, quando de sua publicação em 1664, para tornar-se Panuflo, ou o

1
Grifo meu. ANÔNIMO. 2007, P. 105.
2
DELEUZE, G. GUATTARI, F. 1992. P. 79.
3
Bíblia. 2016, P. 94.
4
Cf. definição para a expressão imposture do Dictionnaire de l’Académie Française (1694, primeira edição):
“Calomnie, ce que l’on impute faussement à quelqu’un dans le dessein de luy nuire”, assim como “Il se dit
encore de l’illusion des sens. Il est difficile de se deffendre de l’imposture des sens. L'imposture des sens séduit
souvent la raison”. Recuperado de https://www.dictionnaire-academie.fr/article/A1P0367-30. Última
visualização: 28/09/2021.
161

impostor em 1667, após sua polêmica estreia e rápida proibição por parte de Luís XIV5. Na
peça, Molière denuncia o comportamento do Tartufo, que insiste em sua aparência devota e
moralmente incorruptível, enganando Orgon e sua mãe a ponto de quase tomar posse de seus
bens. Orgon está de tal modo por ele enfeitiçado que é preciso tanto uma grande cena de
desmascaramento, arquitetada por sua esposa Elmire, quanto uma intervenção final do
próprio rei a fim de trazer à luz sua dissimulação.

A querela que se seguiu ao sucesso da peça pretendia estabelecer se a denúncia de


Molière poderia ou não ser generalizada: todos os devotos são dissimulados ou trata-se de
uma crítica pontual a um desvio de caráter possível, mas não necessário, do indivíduo
religioso? Ou, ainda, pode-se dizer que a peça se empenha em denunciar não o falso devoto,
mas sim o libertino que se traveste de beato? Em 1667, uma carta anônima intitulada Lettre
sur la comédie de l’imposteur se impõe como grande documento em defesa das acusações de
libertinagem oculta da peça, fixando uma polêmica pública entre, de um lado, Molière e seus
seguidores e, de outro, seus detratores, que se estende pelo menos até 1669. A introdução de
uma distinção entre a hipocrisia e a impostura é uma das contribuições interessantes desta
polêmica ao debate em torno da dissimulação. Segundo Jean-Pierre Cavaillé, enquanto o
hipócrita “simula virtudes que não tem”6, especialmente aquelas da piedade e devoção, o
impostor é “aquele que impõe, ou seja, que engana, que abusa e que igualmente calunia”7. A
hipocrisia tem conotação diretamente religiosa, ao passo que a impostura pode dizer respeito
aos enganos de toda sorte. Ao mesmo tempo, o hipócrita mantém intacta a ambiguidade entre
o comportamento dos falsos e dos verdadeiros devotos, que não se distinguem no aspecto
exterior, ao passo que, no caso do impostor, uma vez que se trata de um fim premeditado, a
pergunta por sua autenticidade ou dissimulação simplesmente perde o sentido. Segundo
Cavaillé, ao modificar o título da peça de “hipócrita” para “impostor”, Molière pretendia
distinguir o Tartufo dos falsos devotos, eliminando brechas para possíveis acusações de
libertinagem.

5
Para uma reconstrução crítica da querela do Tartufo, ver o artigo de Jean-Pierre Cavaillé: « Hypocrisie et
Imposture dans la querelle du Tartuffe (1664-1669) : La Lettre sur la comédie de l’imposteur (1667) », Les
Dossiers du Grihl [Online], Les dossiers de Jean-Pierre Cavaillé, Libertinage, athéisme, irréligion. Essais et
bibliographie, Online since 09 June 2007, conexão em 22 de fevereiro de 2021. URL :
http://journals.openedition.org/dossiersgrihl/292.
6
CAVAILLÉ, J-P. 2007, §18.
7
Ibid.
162

Os temas da impostura e libertinagem se cruzam com o nome de Spinoza a partir do


título de outra obra importante, desta vez do século XVIII: La vie et l’esprit de Mr Benoît
Spinosa8. A publicação original de 1719 compreendia duas partes: na primeira, era
apresentada uma biografia de Spinoza atribuída ao jornalista Jean Maximilien Lucas,
testemunho fundamental da elaboração para a posteridade da imagem de um Spinoza
ascético; e, na segunda, muitas vezes divulgada e republicada simplesmente como Traité des
trois imposteurs, uma crítica severa e acalorada das três grandes religiões abraâmicas. O
título faz referência a uma espécie de rumor medieval em torno de um suposto panfleto latino
denominado De tribus impostoribus, no qual seriam desmascarados os três grandes
impostores em matéria de religião e política: Moisés, Jesus Cristo e Maomé. Em 1719, em
Haia, Charles Levier e Thomas Johnston publicam anonimamente um texto que dá corpo
àquilo que até então constituía apenas uma lenda9. O texto, de fato, está em débito direto com
Spinoza: nele encontramos a defesa de suas teses metafísicas, como a identificação entre
Deus e natureza e a crítica à causalidade final10; teológicas, como a denúncia da presumida
sabedoria dos profetas11, das superstições derivadas da vãs religiões e da manipulação dos
afetos do medo e da esperança como origem principal destas12; e também metodológicas,
como a consideração da questão teológica necessariamente aliada à questão política,
sobretudo refletindo sobre os segredos de que dispõem os regimes autoritários para se
manterem no poder13. Há passagens diretamente retiradas da Ética, particularmente de seu
Apêndice14. São também recortados excertos do Leviatã de Hobbes, especialmente dos
capítulos XII15 e XLV16, do De arcanis de Vanini17 e do De la vertu des payens de La Mothe

8
Traduzida em português por A Vida e o Espírito de Baruch de Espinosa: Tratado dos Três Impostores. Éclair
Antonio Almeida Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
9
Como material de apoio sobre o panfleto, recomendo o volume BERTI, S. CHARLES-DAUBERT, F.
POPKIN, R.H. (eds). Heterodoxy, Spinozism, and Free Thought in Early-Eighteenth-Century Europe. Studies on
the Traité des Trois Imposteurs. Springer Netherlands: 1996; e os artigos de BENITEZ, M. « La Diffusion Du
‘Traité Des Trois Imposteurs’ Au XVIIIe Siècle » In : Revue D'histoire Moderne Et Contemporaine (1954-),
vol. 40, no. 1, 1993, pp. 137–151 e de LAVAERT, S. “The Traité des trois imposteurs: a philosophical plot, or
(re)translation as strategy of Enlightenment". In : Cadernos de Tradução. 2019, vol.39, n.1, pp.73-93.
10
EI, Ap.
11
Cf. capítulos I e II do TTP.
12
Cf. Prefácio do TTP. Ver também o primeiro capítulo deste estudo.
13
G III, 7.
14
Cf. todo o Capítulo II do Tratado dos três impostores.
15
Capítulo IV do Tratado.
16
Capítulo XXI do Tratado.
17
Os´quatro capítulos do Tratado dedicados a Jesus Cristo: VII-X.
163

Le Vayer.18 Em suma, o Tratado é uma verdadeira colcha de retalhos dos fragmentos e das
teses mais inflamadas do spinozismo e demais doutrinas consideradas radicais. A difusão do
texto ao longo dos últimos quarenta anos do século XVIII, configurando provavelmente um
dos panfletos clandestinos mais bem sucedidos do período, contribuiu fortemente para a
inscrição do spinozismo na linha de continuidade dos pensamentos libertinos e do iluminismo
radical.

Sobre a figura de Jesus, o Tratado nos ensina que, tal como Moisés e Maomé,
tratava-se de um legislador.19 Jesus possuía táticas políticas e morais claras: e, ao contrário do
que dizia, anulava a lei mosaica ao introduzir uma lei própria, muito mais duradoura, uma vez
que se dirigia à interioridade humana e prometia uma recompensa no além-mundo. A astúcia
de Jesus consistiu em se aproveitar de um momento de fraqueza da República hebraica para,
por meio de milagres, ou seja, tocando sua imaginação, tomar a confiança de um povo já
ignorante e consequentemente obediente. Quando, face à mulher adúltera, os escribas e os
fariseus lhe perguntaram se concordava com seu apedrejamento, Jesus simplesmente fugiu da
pergunta, retrucando que, ao invés de julgar os demais, deviam olhar para seus próprios
pecados: “Que seja o [homem] entre vós, que nunca errou, o primeiro a atirar-lhe uma pedra”
20
. Com isso, evitava tanto a resposta negativa – que o faria desobedecer a lei mosaica –
quanto a afirmativa – que seria qualificada como cruel. Similarmente, quando os fariseus, a
fim de pregar uma armadilha, lhe interrogaram se deveriam pagar tributo a César, Jesus
solicitou a moeda e, vendo nela estampada a face de César, disse: “Pagai as coisas de César a
César; e as coisas de Deus a Deus”21. Assim, não cometeria o crime de lesa-majestade, caso
afirmasse que não se deveria pagar, e tampouco questionaria a lei de Moisés, caso negasse.

Quanto à sua moral, os autores do Tratado insistem que ela não traz nada de novo.22
Crenças como a imortalidade da alma, a ressurreição e a existência do inferno já existiam
entre os fariseus. Além disso, outros dos ensinamentos de Jesus nada mais são do que cópias
das principais ideias dos filósofos antigos, particularmente de Epicuro e Epiteto. Este último

18
Ibid. Informações obtidas em BERTI, S. « L'Esprit de Spinosa : ses origines et sa première édition dans leur
contexte spinozien ». In : BERTI, S. CHARLES-DAUBERT, F. POPKIN, R.H. (eds). Heterodoxy, Spinozism,
and Free Thought in Early-Eighteenth-Century Europe. Studies on the Traité des Trois Imposteurs. Springer
Netherlands: 1996. P. 8.
19
Capítulos VII-X.
20
João 8, 7-8. Tradução cf. Bíblia. 2017. P. 358.
21
Mateus 22, 21-22. Ibid, P. 131.
22
Capítulo IX do Tratado.
164

já preconizava, por exemplo, que é melhor ser desafortunado e racional do que rico sem
razão, que a fortuna e a razão raramente encontram-se reunidas num mesmo indivíduo e que a
vida feliz deve vir acompanhada de prudência, justiça e honestidade. As mais belas frases do
Cristo, seguindo Celso a partir do testemunho de Orígenes, nada mais são do que pastiches
daquelas de Platão. Tomando a distinção entre hipocrisia e impostura presente em Molière,
Jesus Cristo era, mais do que hipócrita, um impostor, pois seu desígnio de enganar quanto
aos temas religiosos era inteiramente premeditado.

Como desvendar o impostor? No Tartufo, é preciso uma cena de impacto: um coup de


théâtre23. O fingimento do personagem é trazido à superfície por meio de uma peça nele
pregada: Orgon esconde-se debaixo da mesa enquanto sua esposa Elmire finge aceitar as
investidas amorosas do Tartufo24. Durante a encenação, Orgon destaca-se da peça e como que
assume o papel do espectador, que pode observar o quadro à distância com maior
visibilidade. Tem, por um momento, a chance de contemplar a peça tal como nós a vemos,
através da criação de uma peça dentro da peça (tomando aqui a ambiguidade da expressão:
tanto a peça como ardil ficcional quanto como objeto artístico). Estruturalmente, aliás, a cena
é de uma tensão notável, pois trabalha com o pressuposto não-dito do fingimento como
essência mesma do teatro.25 A importância de trazer a verdade à aparência, quer dizer, de
torná-la plenamente perceptível aos sentidos, é reforçada pelas falas de Elmire quando da
arquitetação do plano: seu objetivo é expor “à luz”26 a verdade, fazer Orgon “ver e entender
claramente”27. O próprio Tartufo confessa, aliás, que sempre pôs Orgon em condições de “ver
tudo sem acreditar em nada”28: o que é, talvez, uma bela definição do procedimento do
impostor. Trata-se, agora, de fazê-lo ver e acreditar. Assim, sem saber que era observado, o
Tartufo entrega a si próprio: admitindo, contra o que vinha pregando, que se pode

23
Segundo o Dicionário da Academia Francesa, 9ª edição, um coup de théâtre é uma “peripécia absolutamente
inesperada que modifica a situação dramática” e, em sentido figurado, um “acontecimento imprevisto que
transtorna uma situação”, cf. https://www.cnrtl.fr/definition/academie9/coup. Última visualização: 04/05/2021
às 10h28min.
24
Trata-se da Cena V do Ato IV. O desmascaramento como um todo, desde sua arquitetação até conclusão,
ocorre entre as cenas III e VII do Ato IV.
25
Sobre esta tensão, verificar KREMER, N. SERMAIN, J-P. TRAN-GERVAT, Y-M. (eds.). Imposture et fiction
dans les récits d'Ancien Régime. Paris: Éditions Hermann, 2016.
26
MOLIÈRE. 2005, P. 93
27
Ibid.
28
Não sigo, para este verso, a tradução de Jenny Klabin Segall, que adapta a ideia para preservar a rima e o
ritmo do texto. No original, lemos: “De tous nos entretiens il est pour faire gloire, / Et je l'ai mis au point de voir
tout sans rien croire.” (MOLIÈRE. 1825, P. 62), vertido por ela como “De todo encontro nosso há de fazer farol,
/ E a ponto o pus de até negar a luz do sol” (MOLIÈRE. 2005, P. 102).
165

perfeitamente acomodar os seus desejos ao céu e não o céu aos seus desejos29. É o próprio
artifício do engano que confessa: o mal está não no pecado em si, mas em torná-lo público,
isto é, visível, aparente aos sentidos.30 A falsidade do Tartufo só pode ser combatida por meio
de outra: o golpe de uma encenação, uma mentira que funcionará como prova da verdade.31

Para o desmascaramento, a estratégia retórica do panfleto sobre os três impostores


parece ser a mesma: trazer à superfície, para que possa ser percebido pelos sentidos, a
essência enganosa do impostor, expondo-o à contemplação do leitor num momento de
percepção máxima. É preciso tocar o leitor com acusações poderosas – Jesus tinha projetos
escusos de poder, mentia sobre a originalidade de seus ensinamentos etc. – a fim de incitar
sua imaginação. Ao contrário do teatro, o panfleto parece ainda ter algum compromisso com
a verdade: embora compactue com as estratégias de visibilidade dramática, lhe escapa esta
tensão estruturante entre mentira e verdade. A peça é ela mesma uma mentira pois o teatro o
é; em seu interior há um personagem mentiroso, o qual só pode ser desmascarado por um
exercício ele mesmo ficcional: os tensionamentos se multiplicam e com ele também o efeito
dramático. Seria possível questionar a radicalidade e a eficiência da forma do panfleto, que,
para comunicar um ensinamento moral, parece assumir de início um comprometimento
excessivamente realista.

Conteudisticamente, porém, o espírito de Spinoza não parece estar impresso nas


linhas do Tratado, ao menos não no caso da apreciação do Cristo. Embora Spinoza concorde
que Moisés foi um excelente legislador, não dá ao Cristo este mesmo título: seu propósito era
ensinar e não estatuir leis; e é exatamente por isso que não anulou a lei de Moisés, já que seu
ensinamento se dirigia a outras finalidades.32 Tampouco é claro se, para Spinoza, o Cristo
possuía uma política: jamais o afirma contundentemente. O tema da impostura até surge no
corpus spinozista, mas para classificar o profeta Maomé – que, por ter retirado a liberdade de

29
“Veda de fato o céu certos contentamentos, / Mas com ele haverá sempre acomodamentos. / Conforme for
preciso, existe uma ciência / Que espicha sem embargo os laços da consciência, / E retifica o mal que haja
nalguma ação, / Julgando-lhe a pureza, apenas, da intenção [...]” (MOLIÈRE. 2005, P. 100).
30
“Não custa, enfim, destruir-se essa inquietação vossa. / De um segredo integral comigo estais segura; / Só no
rumor da coisa, o mal se configura. / O escândalo do mundo é o que a ofensa produz, / E pecado não é o que não
vem à luz.” (MOLIÈRE. 2005, P. 101).
31
A fala de Elmire, antes da cena de desmascaramento, é suficientemente instrutiva: “Tudo o que eu diga tem de
me ser permitido, / E é por vos convencer, conforme o hei prometido. / Vou, com a insídia à qual o impostor me
reduz, / Desmascará-lo e expor-lhe a alma hipócrita à luz, / Alentar de seu fogo a cobiça atrevida / E deixar
campo livre à manobra indevida. / É para que saibas quem é que em tal disfarce / Minha alma vai fingir em seu
jogo alistar-se [...]” (MOLIÈRE. 2005, P. 95).
32
G III, 64 e 71.
166

seu povo, talvez possa ser classificado como impostor33. Esta mesma liberdade é plenamente
assegurada pela religião católica universal e pelos profetas verdadeiros; e, uma vez que é esta
a religião ensinada pelo Cristo, conclui-se que tal liberdade também é endossada por ele.

Neste contexto de identificação da impostura, Spinoza havia sido confrontado por


Velthuysen34 com a objeção de que, segundo sua redução da palavra de Deus às virtudes
práticas, não se podia mais provar que Maomé fora um falso profeta, uma vez que o Corão
ensina tais virtudes e os turcos as praticam. Ora, diz Spinoza, cabe aos próprios profetas, e
não a ele e a sua filosofia, provar sua autenticidade. Ademais, se for provado que Maomé
ensinou a prática da justiça e caridade ao próximo e que atestou com signos certos a verdade
de sua profecia, deve-se admitir que possuía o espírito do Cristo e que, portanto, não era um
impostor. O Cristo é não só um exemplo histórico de ensinamento da religião universal, como
também um critério de definição contra a impostura. Se o espírito do Cristo se caracteriza por
este princípio mínimo de observação da justiça e da caridade, alcançamos a conclusão,
conforme atenta Moreau35, de que o espírito do Cristo é mesmo historicamente anterior à
própria existência do Cristo histórico.

Para o choque de seus intérpretes mais libertinos, o spinozismo se apropria


positivamente da figura do Cristo. Apesar de não dedicar a ele um capítulo inteiro, seu nome
surge mais de cinquenta vezes ao longo de todo o TTP36, em momentos importantes da
argumentação, como na discussão sobre os profetas, a lei divina e as cerimônias37. Como
compreender esta apropriação, sobretudo considerando um pensamento que, em suas grandes
linhas, parece se afastar da cosmologia e moral cristãs?38 Que função específica o Cristo
desempenha na filosofia de Spinoza, em sua correspondência e sobretudo na economia
argumentativa do TTP?

33
Carta XLIII.
34
Carta XLII.
35
MOREAU, P.F. « Les origines du christianisme dans le Traité théologico-politique ». In : La Pensée, vol.
398, no. 2, 2019, pp. 52-62.
36
G III, 21, 28, 31, 32, 43, 54, 64, 65, 68, 70, 71, 76, 79, 90, 103, 104, 152, 154, 156, 157, 158, 163, 164, 166,
172, 178, 225, 233, 234 e 262.
37
Respectivamente G III, 21, 64-65 e 70-71.
38
Misrahi procura demonstrar como, apesar da admiração de Spinoza pelo Cristo, seu pensamento é um embate
às principais crenças cristãs, constituindo, ao invés de cristianismo, uma espécie de ateísmo prático. Ver
MISRAHI, R. « Spinoza face au christianisme ». In : Revue Philosophique de la France et de l'Étranger, T. 167,
No. 2, Spinoza (I) (Avril-Juin 1977), pp. 233-268.
167

O Cristo segundo a carne

As pesquisas de Victor Sanz39 e Henri Laux40 definiram a correspondência41 de


Spinoza como um importante complemento à sua filosofia da religião. As cartas de
correspondentes como Willem van Blyenbergh (1632-1696), Lambert van Velthuysen
(1622-1685) – através de Jacob Ostens (1630-1678) –, Niels Stensen (1638-1686), Albert
Burgh (1650-1708), Henry Oldenburg (ca. 1618 - 1677) e Hugo Boxel (1607/1612?-1680?)42
e as respectivas respostas de Spinoza, quando existiram, são especialmente informativas seja
quanto ao contexto de confecção e recepção do Tratado Teológico-Político, seja no que diz
respeito à discussão de temas sensíveis tais como a identificação entre Deus e Natureza, o
necessitarismo – por vezes identificado, nas correspondências mencionadas, como puro
fatalismo43 –, o problema do mal, a questão dos milagres, a doutrina da salvação, sua peculiar
visão do Cristo, os limites da razão, a autoridade histórica da Igreja Romana, os princípios de
interpretação da Escritura, e até mesmo discussões acerca de temas sobrenaturais em geral
como os espectros, numa espécie de radicalização da discussão sobre os milagres.
Especificamente quanto ao Cristo, as cartas trocadas com Oldenburg e Burgh nos orientam de
modo mais relevante.

39
Victor Sanz publicou uma série de artigos analisando o tema da religião na correspondência de Spinoza a
partir de um recorte de seus interlocutores. São eles: “La religión en la correspondencia de Spinoza (I): La
relación Blyenbergh-Spinoza”. In: Pensamiento, vol.53, núm.207 (1997), pp.453-472, “La religión en la
correspondencia de Spinoza (II): Velthuysen-Spinoza”. In: Pensamiento, vol.56, núm, 214, enero-abril 2000,
pp.27-51, “Dos conversos frente a Spinoza: Stensen y Burgh ante el Tratado teológico-político”. In: Acta
philosophica, vol.8 (1999), fasc.1, págs. 119-134, “Spinoza y Oldenburg acerca de la religión. In : Anuario
Filosófico, 1999 (32), 487-518 e “La religión en la correspondencia de Spinoza: Boxel-Spinoza”. In: A. L.
GONZÁLEZ, A.L. ZORROZA, I. (eds.). In umbra intelligentiae. Estudios en homenaje al prof. Juan Cruz
Cruz. Eunsa, Pamplona, 2011, pp. 729-745.
40
LAUX, H. “Le Traité théologico-politique dans la correspondance de Spinoza”. In : Revue de Métaphysique et
de Morale, No. 1, Correspondance de Spinoza (JANVIER-MARS 2004), pp. 41-57.
41
Uma palavra sobre as edições utilizadas para citar a correspondência de Spinoza. Não possuímos, em
português, uma tradução estabelecida das cartas – que seja publicada numa edição bilíngue acompanhada do
aparato crítico necessário. Em vista disso, utilizarei sempre a tradução de Samuel Thimounier Ferreira (2019 e
2021) para citar a correspondência com Oldenburg. Preferirei, depois dela, consultar e citar a tradução de
Atilano Domínguez (1988b) para o espanhol – o que não é de todo recomendado, uma vez que terei de propor
traduções indiretas. Também citarei, para fins de praticidade, a tradução de J. Guinsburg e Newton Cunha
(2014b), quando, comparando-a com as traduções de Maxime Rovere (2010) e Charles Appuhn (1966), ela não
apresentar maiores problemas.
42
Há poucas informações sobre a vida de Boxel. Suas datas de nascimento e falecimento são conjecturas. Cf.
VAN BUNGE, W. KROP, H. STEENBAKKERS, P. VAN DE VEN, J. (eds). The Bloomsbury Companion to
Spinoza. Bloomsbury: London. 2014, P. 27. Uma boa tradução para o português, acrescida de uma nota
introdutória esclarecedora, foi preparada por Samuel Thimounier, revisada por Homero Santiago e publicada em
Cadernos Espinosanos. São Paulo, n.35, jul-dez 2016 (P. 523-571).
43
Sobretudo por Blyenbergh e Oldenburg. Ver cartas 30 e 74.
168

O comércio epistolar entre Henry Oldenburg (ca. 1618 - 1677) – filósofo alemão
fundador da Royal Society e da revista Philosophical transactions – e Spinoza de que temos
registro data desde 1661. A carta de Oldenburg de agosto daquele ano sugere um encontro
presencial prévio em Rijnsburg, em que, segundo Oldenburg, travaram uma conversa “sobre
Deus, sobre a extensão e o pensamento infinitos, sobre a discrepância e a conveniência desses
atributos, sobre a maneira da união da alma humana com o corpo [...], sobre os princípios da
filosofia cartesiana e baconiana”44. Agora, Oldenburg deseja que se aprofundem na distinção
entre o pensamento e a extensão e nas críticas de Spinoza à filosofia de Bacon e Descartes.
Alguns anos depois, já em 1665, Spinoza transmite a Oldenburg estar compondo o Tratado
Teológico-Político, conforme os objetivos que já conhecemos45, e sua comunicação só será
retomada dez anos depois para abordar a tentativa fracassada de publicação da Ética e os
efeitos devastadores da recepção do tratado de 1670.

Que fatores podem explicar este longo silêncio? É preciso lembrar, em primeiro lugar,
que uma epidemia de peste bubônica assolou a cidade de Amsterdã entre os anos de 1663 e
166646, o que forçou Spinoza a se refugiar na propriedade do médico Simon de Vries próxima
a Schiedam entre 1663-1664 e 1664-1665, como atesta sua correspondência com Blyenbergh
47
. Em 1665, a cidade de Londres, onde vive Oldenburg, também foi arrasada pela epidemia,
que resultou na morte de aproximadamente cem mil pessoas. Como justificativas
suplementares para este hiato de dez anos, Atilano Domínguez elenca também a guerra da
Inglaterra com a Holanda em 1665-1667 e a prisão de Oldenburg durante alguns meses no
ano de 166748. É preciso trabalhar igualmente com a hipótese de que algumas epístolas se

44
FERREIRA, S.T. 2019, P. 102. Para as passagens da correspondência entre Spinoza e Oldenburg, utilizarei a
tradução proposta por Samuel Thimounier Ferreira em sua dissertação de mestrado. No curso da escrita desta
tese, a tradução de Ferreira foi publicada em livro pela Editora Autêntica. Ver ESPINOSA, B. Correspondência
entre Espinosa e Oldenburg. Tradução, apresentação, estudo, preparação do texto latino e notas de Samuel
Thimounier Ferreira. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
45
Cf. Carta XXX.
46
Daniel Defoe assim escreve na abertura de seu Diário do ano da peste: “It was about the Beginning of
September 1664, that I, among the Rest of my Neighbours, heard in ordinary Discourse, that the Plague was
return’d again in Holland; for it had been very violent there, and particularly at Amsterdam and Roterdam, in the
Year of 1663, whither they say, it was brought, some said from Italy, others from the Levant among some
Goods, which were brought home by their Turkey Fleet; others said it was brought from Candia; others from
Cyprus. It matter’d not, from whence it come; but all agreed, it was come into Holland again.” DEFOE, D. A
Journal of the Plague Year. Edited with an Introduction and Notes by Cynthia Wall. Penguin Books: London,
2003. P. 3.
47
Esta é a hipótese de Meinsma, referida por Atilano Domínguez em notas à sua tradução da correspondência
com Spinoza. Verificar SPINOZA, B. 1988b, P. 166, nota 131.
48
SPINOZA, B. 1988b, P. 344, nota 355.
169

perderam, e que a publicação do Tratado Teológico-Político tenha fornecido um motivo


crucial para o afastamento dos amigos, cujas opiniões religiosas, como estará nítido na
correspondência de 1675, divergem fundamentalmente.

Em vista destes momentos cronológicos distintos, que traduzem igualmente diferentes


interesses filosóficos, Samuel Thimounier Ferreira49 propõe que a correspondência entre
Spinoza e Oldenburg seja dividida em três momentos: um período inicial entre 1661 e 1663,
em que são introduzidos questionamentos sobre a metafísica de Spinoza; um período
intermediário em 1665, em que são trocadas notícias e informações, mas também algumas
discussões de caráter filosófico, como a “conveniência das partes com o todo e a coerência
entre si”50 e um período final em 1675, cujo foco é a polêmica em torno do cristianismo.
Acrescentaríamos apenas a observação de que o período amplo no qual se insere a
correspondência com Oldenburg – em seu início e término – é exatamente aquele da
emergência do TTP enquanto livro, de modo que seu conjunto de cartas é um termômetro
importante para sua compreensão como obra, quer dizer, como produto público que necessita
de um período de gestação e que, mediante sua circulação, receberá as reações dos leitores.

A retomada do contato epistolar entre os amigos após o hiato de dez anos ocorre
teoricamente51 em 8 de junho de 167552, e parte de um comentário reconciliador de
Oldenburg: ele afirma que sua primeira leitura do TTP havia sido demasiado imatura, pois
julgou o livro com as lentes da teologia tradicional. Reconsiderando as teses da filosofia da
religião spinozista, terminou por se convencer de que Spinoza está

[...] tão longe de tramar qualquer dano contra a verdadeira religião ou a


sólida filosofia, que, ao contrário, trabalhas por recomendar e estabelecer o
genuíno fim cristão da religião e, também, a sublimidade e a excelência da
frutuosa filosofia. (FERREIRA, S.T. 2019, P. 186)

Oldenburg convoca Spinoza, então, a compartilhar com ele suas pesquisas atuais com
este fim. A resposta de Spinoza infelizmente se perdeu, mas sabemos, pela carta 62, que ele
havia transmitido ao seu interlocutor o projeto da Ética, bem como seu desejo iminente de
publicá-la. Confessando sua preocupação, Oldenburg roga para que Spinoza não insira neste

49
FERREIRA, S. 2019.
50
FERREIRA, S.T. 2019, P. 47.
51
Sabemos que muitas cartas de Spinoza se perderam ou foram destruídas por seus amigos quando de sua morte.
Assim, temos sempre de trabalhar com a hipótese de que as correspondências que nos chegaram não reflitam
exatamente as condições efetivas de seu relacionamento com seus interlocutores.
52
Na carta 61.
170

texto “qualquer coisa que pareça de algum modo abalar a prática da virtude religiosa”53. A
súplica de seu amigo parece recobrar as reações adversas que obteve a publicação do Tratado
Teológico-Político. A suspeita de que Spinoza e o spinozismo estavam ameaçados se
confirma rapidamente: circulava, por volta do mês de junho daquele ano, um boato de que
Spinoza pretendia publicar um livro em que demonstrava a inexistência de Deus. O rumor foi
levado ao príncipe e aos magistrados; e, somado a isto, alguns cartesianos que pareciam estar
simpatizando com sua filosofia passaram a destratá-lo como forma de se desvencilhar de
possíveis acusações. A decisão de Spinoza diante deste contexto é prudente: prefere adiar a
publicação da Ética54 – a qual só será efetivamente publicada por seus amigos postumamente,
em suas obras completas de 1677. Diante disso, Spinoza lança um pedido duplo a Oldenburg:
que lhe indique quais são os dogmas de sua filosofia que parecem constituir um obstáculo à
prática da virtude e que apresente as principais objeções dirigidas pelos doutos ao TTP, para
que possa utilizá-las nas notas anexas que pretende acrescentar à obra e desfazer os
preconceitos que foram alimentados acerca dele desde sua publicação55.

Para Oldenburg, as ideias mais polêmicas do TTP são a confusão entre Deus e a
natureza, a supressão da autoridade dos milagres e, por fim, sua misteriosa opinião acerca do
Cristo, que parece negar dois fenômenos indispensáveis para a fundamentação da fé: sua
encarnação e satisfação. Dissolvidos estes problemas56, Spinoza poderia, teoricamente, ser
aceito entre o grupo dos “cristãos sensatos e fortes de razão”57. Para este grupo, certamente a
imanência de Deus à natureza põe um problema insolúvel para o estabelecimento de valores
morais objetivos, dependentes de uma imagem de Deus como juiz ou monarca absoluto que,
exterior ao mundo, distribui prêmios e punições. Ainda, o descrédito aos milagres parece
retirar toda a confiança depositada na verdade e autoridade da doutrina. Lembremos da
importância concedida por um cristão convicto como Pascal aos milagres como fundamento
da fé58. A questão do descrédito dos milagres se confunde, em última análise, com a opinião
criptografada que Spinoza nutre relativamente ao Cristo e também com a própria

53
FERREIRA, S. T. 2019, P. 188.
54
Carta 68.
55
Ibid.
56
Observe-se, de passagem, que Oldenburg transmite a Spinoza opinião de que muitos leitores o consideravam
uma espécie de impostor, já que, segundo eles, escondia sua real posição acerca do Cristo: “Ainda por cima,
afirmam que escondes tua opinião sobre Jesus Cristo, redentor do mundo e único mediador dos homens, e
sobre sua encarnação e sua satisfação [...]” (Grifo meu. Cf. FERREIRA, S.T. 2019, P. 192).
57
FERREIRA, S. T. 2019, P. 192.
58
Conforme a discussão que propomos acerca dos milagres no Capítulo 1 deste estudo.
171

credibilidade da Escritura. Afinal, se os milagres não existem, como dar conta do fenômeno
da ressurreição, por exemplo? Em sequência, como manter a autoridade da Escritura e de
seus narradores – profetas, apóstolos, santos, sábios –, cujo artifício retórico principal são
justamente as narrativas de caráter insólito e sobrenatural?

A réplica de Spinoza insiste, de modo geral, que sua filosofia da religião não depende
absolutamente da tese do Deus sive natura59: uma leitura atenta do TTP mostrará que a
religião está fundada em outras bases, quer dizer, numa leitura qualificada da Escritura que
tome como seu objetivo principal atingir a obediência e instruir sobre a piedade (e não sobre
a verdade). Já conhecemos a crítica spinozista ao milagre: trata-se de uma narrativa que
revela desconhecimento das verdadeiras causas dos eventos. Por ser fruto da ignorância, o
milagre engendra a superstição – o culto a uma exterioridade fetichizada. Ora, a religião não
deve ser baseada na ignorância, que só serve para alimentar a obediência servil e a admiração
cega, escravizando o povo num circuito afetivo inescapável de esperança e medo. Ao invés
de fornecer uma prova irrefutável da religião, o milagre revela um ímpeto por refugiar-se na
ignorância das causas: o conhecimento da natureza é, neste aspecto, muito mais instrutivo da
potência de Deus do que ele, embora arranque menos admiração. Diferentemente do
procedimento de argumentação por redução ao absurdo, o milagre perpetua uma retórica de
redução à ignorância60: o asilo da ignorância61, uma expressão da Ética utilizada em
referência ao conceito de vontade divina. Spinoza opõe religião e superstição62, a primeira
baseada na sabedoria e a segunda na ignorância63, evidenciando que seu objetivo é menos o
de destruir toda e qualquer proposta religiosa e mais emendar a religião contra os abusos das
autoridades religiosas e políticas tradicionais.

Em relação ao Cristo, Spinoza introduz, na correspondência com Oldenburg, uma


distinção importante. A salvação não depende absolutamente do conhecimento do Cristo

59
Como afirma expressamente Spinoza na Carta 73: “Contudo, erram de toda maneira alguns que pensam que o
Tratado Teológico-Político se apoia no fato de Deus e a natureza (pela qual entendem alguma massa ou matéria
corpórea) serem uma única e mesma coisa”, cf. FERREIRA, S.T. 2019, P. 194.
60
Cf. Carta 75.
61
EI, Ap.; ESPINOSA, B. 2015a, P. 117.
62
Em consonância com a oposição que constrói no Prefácio do TTP. Ver o Capítulo 1 deste estudo.
63
“Aqui acrescento somente que entre religião e superstição reconheço esta diferença principal: que esta tem por
fundamento a ignorância, e aquela, a sabedoria; e creio ser este o motivo por que os cristãos se distinguem entre
os demais: não pela fé, nem pela caridade, nem pelos outros frutos do Espírito Santo, mas só pela opinião;
porque, como todos, defendem-se com os milagres sozinhos, isto é, com a ignorância, que é a fonte de toda
maldade, e por isso convertem a fé, ainda que verdadeira, em superstição.” FERREIRA, S. T. 2019, P. 194; G
IV, 307-308.
172

segundo a carne (Christum secundùm carnem)64, mas apenas do espírito do Cristo (spiritu
illo Christi)65. Sem definir mais detalhadamente os aspectos doutrinários relativos à
consideração do Cristo carnal, há apenas uma breve delimitação do Cristo espiritual como o
“filho eterno de Deus”66 ou Sua “sabedoria eterna”67. Esta sabedoria manifestou-se
sobremaneira na figura histórica de Jesus Cristo: e, com direito, os apóstolos puderam
pregá-la e glorificar-se diante dos demais indivíduos. Esta sabedoria permite o alcance do
estado de beatitude, capaz de ensinar corretamente sobre o verdadeiro e o falso tanto quanto
sobre o bem e o mal. Por último, em relação ao fenômeno da encarnação, Spinoza repete o
que já havia afirmado no TTP68: simplesmente não entende o conceito e, mais ainda, insiste
que se trata de um absurdo, como pensar a existência de um círculo quadrado. Termina sua
carta afastando-se dos cristãos que Oldenburg parecia querer dele aproximar: esperando ser
por eles – ou seja, pelos “outros”, com os quais não se identifica plenamente69 – melhor
entendido.

Ainda para recusar a evidência da encarnação, Spinoza fornece um argumento


suplementar70: atenta para o fato de que Deus não é dotado de um corpo limitado
espacialmente, mas que possui uma extensão infinita, e que, portanto, está em toda parte. O
corpo humano, ao contrário, é mantido dentro de certos limites pelo peso do ar. É neste
sentido que aceitar o fenômeno da encarnação é o mesmo que confundir duas essências
contrárias, tal como a de um círculo quadrado. As passagens bíblicas que parecem confirmar
a encarnação, elencadas como evidências textuais por Oldenburg71 – João 1,14, em que se
afirma que o verbo se fez carne e a Epístola aos Hebreus 2,16, em que Paulo afirma que o
filho de Deus assumirá a semente de Abraão –, são somente percepções de seus locutores,

64
G IV, 308.
65
G IV, 309.
66
FERREIRA, S.T. 2019, P. 194.
67
Ibid.
68
“Devo, no entanto, advertir aqui que me abstenho de falar do que certas Igrejas afirmam sobre Cristo – e nem
sequer para o negar –, pois confesso com toda a franqueza que não compreendo. Tudo o que até agora afirmei
são conjeturas a partir da própria Escritura. E em parte alguma eu li que Deus apareceu a Cristo, ou que lhe
falou, mas sim que Deus foi revelado por Cristo aos apóstolos, que Cristo é o caminho da salvação e,
finalmente, que a lei antiga foi transmitida por um anjo e não diretamente por Deus, etc.” ESPINOSA, B. 2019,
P. 137; G III, 21. No trecho, embora sem mencionar, Spinoza parece fazer uma referência criptografada à
encarnação e ressurreição atribuídas ao Cristo.
69
“E julgo que essas coisas são suficientes para explicar o que penso sobre aqueles três pontos principais. Se
elas hão de agradar os cristãos que conheces, tu poderás sabê-lo melhor.” FERREIRA, S.T. 2019, P. 194; G IV
309.
70
Cf. carta 75.
71
Carta 74.
173

“aparições e revelações”72 adaptadas à sua capacidade de compreensão. Ademais, Oldenburg


precisaria considerar que as passagens aludidas foram escritas em “línguas orientais”73
dificilmente compreendidas pelas línguas europeias, o que exige um conhecimento filológico
para sua exata compreensão. A Escritura afirma, em outras passagens, que Deus se
manifestou em uma nuvem e que habitou o tabernáculo e o templo: o que não significa dizer
que assumiu a forma corporal da nuvem e dos demais objetos. Quando Cristo afirmou ser o
templo de Deus quis dizer, na verdade, que Deus se manifestava maximamente nele: eis a
razão de João ter usado, como linguagem, a ideia de que o verbo se fez carne. Para desfazer o
mal-entendido da encarnação, portanto, é preciso, ao menos em parte, recorrer a
conhecimentos profundos da língua em que o texto foi escrito e também a uma análise dos
seus locutores: suas características psicológicas, seu ingenium, um exercício comparativo
com demais passagens sobre o mesmo assunto e ditas pelo mesmo narrador, que determinam
o caráter meramente retórico de algumas de suas imagens.

Já o acontecimento da ressurreição assume uma interpretação mais sutil. Em primeiro


lugar, deve-se considerar que o Cristo apareceu ressuscitado apenas aos santos – o que pode
ser entendido como um efeito da imaginação destes em vistas da comunicação divina. Que os
narradores destes eventos realmente neles acreditem e que assim a Escritura os narre com
todos os contornos vívidos não é passível de dúvida: são aparições ou revelações adaptadas
ao seu modo de entender. No entanto, há algum sentido em que a ressurreição pode ser
tomada como verdadeira: quando compreendida alegoricamente. Literalmente é possível
constatar que houve a paixão, a morte e o sepultamento de Cristo; alegoricamente pode-se
falar numa ressurreição de caráter espiritual do Cristo e de seus seguidores74. Trata-se,
segundo Spinoza, de uma ressurreição meramente espiritual: ao aderirem à doutrina é como
se tivessem saído do estado de morte em que se encontravam para viver segundo uma vida
verdadeira e eterna. É seguindo o exemplo da vida e da morte do Cristo que ressuscitam. Em
relação ao Cristo, ressuscitou apenas espiritualmente porque com sua vida forneceu um
exemplo de singular santidade.75 Assim o confirma Paulo: para ele, Cristo não apareceu
jamais segundo a carne, mas somente em seu espírito, visto que apenas o conheceu

72
FERREIRA, S.T. 2019, P. 200; G IV, 314.
73
FERREIRA, S.T. 2019, P. 200; GIV, 315.
74
Na carta 78, Spinoza afirma: “Ademais, aceito contigo literalmente a paixão, a morte e o sepultamento de
Cristo; porém alegoricamente sua ressurreição”, cf. FERREIRA, S.T. 2019, P. 204.
75
G IV, 314-315.
174

posteriormente aos demais apóstolos76. Segundo Spinoza, além disso, a força dos argumentos
do capítulo 15 da Primeira Epístola aos Coríntios só pode ser mantida caso se reserve um
sentido alegórico à ressurreição.

Ao afirmar que Paulo não conheceu o Cristo segundo a carne, Spinoza parece estar se
referindo a algo diferente da compreensão do Cristo segundo a carne de que falava outrora.
Paulo não conheceu o Cristo carnal porque não teve contato direto com a pessoa do Cristo: ao
contrário, nesta altura, perseguia a congregação de Deus.77 É apenas por uma revelação
espiritual posterior que conhece o Cristo segundo o espírito e passa a pregar a boa nova. Os
teólogos e demais cristãos do tempo de Spinoza, principais interlocutores de sua
correspondência com Oldenburg, porém, não podem ser criticados por isso, mas sim por
insistirem em uma doutrina que considera os aspectos carnais do Cristo. Quais são estes
aspectos? Para compreendê-lo, é necessário apostar num exercício dedutivo que considere
quais são os aspectos que se opõem ao Cristo segundo o espírito, uma vez que temos, deste
último, um conceito mais claro. A concepção do Cristo segundo a carne parece dizer respeito,
em primeiro lugar, à crença literal nos fenômenos da encarnação e ressurreição que Spinoza
visa insistentemente recusar. Não tanto por estes mistérios em si, mas sim pelo fato de
emanarem de um terreno que é exatamente aquele reservado para as narrativas bíblicas: o
campo da história. São todos os aspectos particularizados da vida do Cristo, tudo aquilo que,
retirado seu ensinamento nuclear no tocante à piedade, é supérfluo. Ao Cristo segundo a
carne podem ser remetidas todas as narrativas de sua vida e paixão tal como perpetradas
pelos apóstolos, todas as narrativas de caráter sobrenatural que repousam apenas na
ignorância e cujo único fim é fomentar um maravilhamento cego.

Além disso, à noção de carne são remetidas todas as propriedades mundanas,


imediatas, temporais, perecíveis, contingentes e supérfluas. Veja-se o que é dito sobre o
“homem carnal” (homo tamen carnalis) no contexto dedutivo da lei divina no TTP:

O homem carnal, todavia, não pode compreender estas coisas, que lhe
parecem vãs porque tem de Deus um conhecimento por demais insuficiente
e porque não encontra nesse supremo bem nada em que possa tocar, comer

76
Spinoza parece fazer referência a Segunda Epístola aos Coríntios, 5, 16-17, onde se lê: “De modo que,
doravante, não conhecemos ninguém segundo [a] carne. Ainda que conhecêssemos Cristo segundo [a] carne,
agora já não conhecemos. Assim, se alguém está em Cristo, [é] uma nova criação”, cf. Bíblia. 2018, P. 277.
77
Como afirma em 2 Cor 15, 9-10: “Pois eu sou o menor dos apóstolos, eu que nem sou digno de ser chamado
apóstolo, porque persegui a congregação de Deus. Todavia, por uma graça de Deus, sou o que sou.” Bíblia.
2018, P. 260.
175

ou, enfim, que tenha relação com a carne, sua principal fonte de prazer, dado
que um tal bem é de natureza meramente especulativa e intelectual.
(ESPINOSA, B. 2019, P. 180; G III, 61).

Os “homens carnais” (hominum carnalium) surgem mais uma vez neste capítulo,
desta vez no interior de uma interpretação de Paulo. Segundo Spinoza, Paulo não fala
abertamente quando confere a Deus propriedades antropomórficas, sendo apenas “por causa
da fraqueza da carne que lhe atribui a misericórdia, a graça, a cólera, etc.”78, adaptando-se ao
seu público composto por homens carnais79. Ainda, a ideia de um governo orientado para o
corpo apenas, em referência à estabilidade e segurança do Estado, aos bens da fortuna, está na
base da argumentação de Spinoza para recusar a eleição dos hebreus. É apenas o auxílio
externo de Deus que garantiu a eleição daquele povo, que deve ser entendida em referência
ao seu aspecto temporal e histórico, ou seja, à eficiência de seu governo.80 A distinção entre o
corpo e o espírito também é importante para que se separe o texto escrito da Escritura,
documentado com tinta em tábuas perecíveis, sujeitas à corrupção, e o verbo eterno de Deus,
escrito no coração do homem, isto é, em sua mente – o qual é imperecível às intermitências
da história, tendo chegado até nós intacto.81 O TIE, por fim, nos confirma, em sua moral de
abertura, que os bens associados à carne – riquezas, honras e prazeres – são incertos,
engendrando, no mais das vezes, tristeza, inveja, temor e ódio. A perseguição dos bens
corporais distrai a mente da contemplação do verdadeiro bem, este último engendrado pelo
amor depositado em uma coisa eterna e infinita, isto é, Deus.82

Que outro dispositivo argumentativo está na base destas teses senão a diferença entre
interno e externo? Assim, à carne, são reservados todos os aspectos supérfluos e exteriores e,
ao espírito, o que há de necessário e interno.83 Quando aplicamos esta distinção,
frequentemente ativada na obra de Spinoza, ao caso do Cristo, concluímos que o Cristo
segundo a carne refere-se ao que há de perecível nele, quer dizer, à sua história particular
entendida na lógica ressurreição-encarnação, que se unem para construir uma imagem de
adoração incondicional e de deslumbramento. Por contraste, devemos esperar do Cristo

78
ESPINOSA, B. 2019, P. 185; G III, 65.
79
Spinoza se refere à Primeira Carta aos Coríntios, 3, 1,2, em que Paulo afirma: “Quanto a mim, irmãos, não
pude vos falar como a [pessoas] espirituais, mas como a carnais, como a crianças em Cristo.” (Bíblia. 2018, P.
223).
80
G III, 46-51.
81
G III, 158-162.
82
Ver toda a argumentação de TIE, §1-13.
83
A distinção entre interno e externo não é idêntica, aqui, à distinção entre os modos dos atributos da substância
(corpo e mente).
176

segundo o espírito apenas aquilo que há de interno e essencial. Ocorre que, para alguns
ignorantes, é apenas reconhecendo imaginativamente o exemplo do Cristo, o que inclui um
entrelaçamento pelo espanto causado pelo caráter sobrenatural destas narrativas, que seu
ensinamento eterno pode surtir efeito. Embora não se exija o conhecimento de tais aspectos,
para alguns indivíduos o Cristo segundo a carne – a crença literal em sua encarnação e
ressurreição, agora podemos dizer – talvez seja a única via salvífica. Apesar de, num primeiro
nível da argumentação, recusar a exterioridade, Spinoza se vê forçado a reintroduzi-la em
temas centrais de sua filosofia da religião, como, veremos, acontece no caso da figura do
Cristo.

Uma última objeção de Oldenburg recai sobre a concepção spinozista do Cristo,


sublinhando a exterioridade da própria argumentação de seu interlocutor. A intuição de
Oldenburg é simples: “nos evangelhos, a ressurreição de Cristo parece ser transmitida tão
literalmente quanto as demais coisas”84. Qual é o argumento para justificar que uma
passagem da Escritura – aquela que versa sobre a paixão, morte e sepultura do Cristo – seja
tomada literalmente e outras – sobre sua ressurreição – alegoricamente? Alguns dos
argumentos avançados por Spinoza para refutar a encarnação e a ressurreição carnal parecem
ser, à semelhança dos argumentos para recusar os milagres, de caráter racional. Lembremos
do que afirma ao fim Capítulo VI do TTP: a desconstrução dos milagres recorreu a princípios
da luz natural pois o objeto de investigação é inteiramente filosófico, representando um
problema para a caracterização mesma de Deus e da natureza (a existência de um poder
exterior que contradiga a determinação divina dada desde toda a eternidade). Ora, se for
assim, os eventos cristológicos também devem ser compreendidos filosoficamente, pois
demandam, para sua desconstrução, o uso de instrumentos racionais: a encarnação é um
absurdo filosófico, pois supõe que Deus é um ente limitado corporalmente; da mesma forma,
a ressurreição carnal não aconteceu verdadeiramente, foi apenas uma ilusão dos santos.
Spinoza de fato não o assume, mas a objeção de Oldenburg questiona também os princípios
de análise da Escritura por ele mesma advogados no TTP: não submeter o texto bíblico ao
critério da verdade, mas apenas o do sentido. Assim, tanto metodologicamente quanto
moralmente, já vislumbramos a complexidade da figura do Cristo, que parece articular, sem
se decidir, os domínios da filosofia e da teologia.

84
Carta 79. Tradução conforme FERREIRA, S. T. 2019, P. 206.
177

Aderindo a um tom mais apaixonado e retórico, Albert Burgh85 (1650-1708) dirige


suas críticas à filosofia spinozista numa carta cujo objetivo central é a tentativa de conversão
de seu interlocutor86. Burgh e Spinoza pareciam nutrir trocas filosóficas pregressas,
compondo um mesmo círculo de amigos. Filho de Conraad Burgh, um importante juiz de
Amsterdã ligado aos espíritos livres de sua época, estuda filosofia na Universidade de Leiden
e domina tanto o pensamento de Descartes quanto o de Spinoza. Para o escândalo de sua
família e de seu círculo social, converte-se ao catolicismo após uma viagem à Itália no ano de
1673, para terminar compondo a ordem franciscana em Roma alguns anos depois.87 Segue,
nisto, seu amigo Niels Stensen (1638-1686), que também conheceu pessoalmente Spinoza
quando de seus estudos de medicina em Amsterdã e em Leiden entre os anos de 1660 e 1663.
Stensen se converte ao catolicismo em 1667 quando passa a viver em Florença, e se tornará
sacerdote em 1675 e bispo em 1677. Além de reflexões teológicas, Stensen deixou uma
produção científica importante, tendo descoberto, a partir de suas investigações anatômicas, o
ducto que carrega seu nome (também denominado “ducto parotídeo”, através do qual a saliva
é transportada). Stensen dirige uma epístola a Spinoza intitulada “Sobre a verdadeira filosofia
ao reformador da nova filosofia”88, cujo objetivo é igualmente convertê-lo, embora tente uma
crítica menos indignada. É possível que Burgh – cuja carta é assinada em setembro de 1675
– tenha se inspirado em Stensen para compor sua apologia, uma vez que esta última, embora
publicada apenas em 1675, fora redigida em 1671. Além disso, em sua resposta a Burgh,
Spinoza menciona o fato de terem debatido conjuntamente a conversão de Stensen, tendo-a,
anteriormente, reprovado: Burgh, agora, seguia seus passos.89 Estas duas cartas inserem-se,
portanto, num panorama mais amplo de tentativas de ataque e doutrinação católica dirigidas a

85
Carta 67.
86
Seria interessante comparar a empreitada de Burgh com a de Niels Stensen, que também se converteu ao
catolicismo na Itália e dirige uma carta a Spinoza buscando sua conversão. Stensen adota uma estratégia menos
violenta que a de Burgh. Não temos a resposta de Spinoza a esta carta. Cf. SPINOZA, B. 1988b, P. 367-377
(Carta 67A). Para um estudo comparativo das correspondências, ver o artigo de Victor Sanz supramencionado.
87
Informações biográficas obtidas na Introdução de Maxime Rovere à sua tradução da correspondência de
Spinoza (SPINOZA, B. 2010, P. 25-26 e 37-38), no artigo de Victor Sanz (SANZ, V. 1999, P. 121, nota 8 e P.
127, nota 47) e nas notas de Atilano Domínguez à sua tradução da correspondência integral de Spinoza
(SPINOZA, B. 1988b, P. 354-377 e 395-401).
88
A carta é classificada na tradução preparada por Atilano Domínguez como 67A, cf. SPINOZA, B. 1988b, P.
367-377; G IV 292-298.
89
Carta 76. G IV, 317; SPINOZA, B. 1988b, P. 395.
178

Spinoza e ao spinozismo, compondo reações mais imediatas de um determinado público


teológico às teses apresentadas no Tratado Teológico-Político.90

Burgh se queixa, em seu tom explosivo, da grande extensão do engenho de seu


interlocutor, que lamentavelmente deixou-se conduzir “pelo miserável e orgulhosíssimo
príncipe dos espíritos malignos”91. Ao TTP, reserva a imputação de livro ímpio, que confunde
filosofia e teologia, ainda que pretenda diabolicamente separar os dois campos. Heresia,
perversão da natureza, miséria, blasfêmia, soberba diabólica, pecado: eis alguns dos termos
utilizados por Burgh para tocar violentamente os ânimos de Spinoza. Insere também algumas
frases que procuram exercitar sua capacidade autorreflexiva: convidando Spinoza a
reconsiderar sua própria doutrina e soberba filosófica e a arrepender-se de seus pecados.92 A
carta é conduzida mais do que pela polêmica, pelo ódio contra seu adversário. É, do ponto de
vista da forma, uma peça jurídica de acusação: como sustenta Paulo Vieira Neto93, compõe o
cânone do gênero jurídico ao possuir um exórdio – páginas iniciais da carta em que Burgh
dirige-se pessoalmente a Spinoza –, uma narração – em que procura determinar a origem do
pecado de Spinoza, a saber, a arrogância de afirmar ter encontrado a melhor filosofia –, uma
confirmatio – em que lança uma lista de oito argumentos ou, nos termos de Vieira Neto,
“lugares comuns”94 que evidenciam a aceitação da religião católica – e, por fim, uma
peroração – exortação ao arrependimento e ao reconhecimento de seu erro. Victor Sanz95, por
seu turno, divide mais economicamente a carta em dois momentos: a pars destruens – o
primeiro grande movimento do texto, em que Burgh, de modo grosseiro, critica a relação que
Spinoza estabelece com a teologia como um discurso “outro” – e a pars construens, em que

90
Tais reações adversas podem constituir um argumento histórico relevante contra aqueles que sustentam que o
TTP tem como audiência principalmente os teólogos cristãos (conforme, por exemplo, Steven Frankel em
“Politics and Rhetoric: The Intended Audience of Spinoza's "Tractatus Theologico-Politicus". In : The Review of
Metaphysics, Vol. 52, No. 4 (Jun., 1999), pp. 897-924). Ou, ainda, se for assim, que Spinoza, ao menos
imediatamente, fracassou em sua empreitada.
91
As passagens da correspondência entre Spinoza e Burgh serão traduzidas a partir da tradução de Atilano
Domínguez. Por tratar-se de uma tradução indireta, procurei evitar as citações ao considerar esta troca epistolar.
Ver SPINOZA, B. 1988b, P. 354.
92
Frases como as seguintes são recorrentes ao longo da carta de Burgh: “Pero reflexione seriamente, por favor,
sobre lo que usted dice” (SPINOZA, B. 1988b, P. 355; G IV, 282), “El remedio, sin embargo, es fácil:
arrepiéntase de sus pecados tomando conciencia de la perniciosa arrogancia de su mísero y demente
razonamiento.” (SPINOZA, B. 1988b, P. 356; G IV, 283) e “Dése por vencido y arrepiéntase de sus errores y
pecados; revístase de humildad y regenérese” (SPINOZA, B. 1988b, P. 359; G IV, 285).
93
VIEIRA NETO, P. “A correspondência entre Espinosa e Burgh”. In : Discurso (31), 2000: P. 463-496.
Recuperado de: https://doi.org/10.11606/issn.2318-8863.discurso.2000.38050. Última visualização: 22/03/2021
às 16h32min.
94
Ibid, P. 473.
95
SANZ, V. 1999, P. 128.
179

são escolasticamente elencadas oito justificativas para o domínio da instituição eclesiástica


católica. Burgh enquadra Spinoza como um juiz moral e teológico, e, veremos, o recurso ao
cânone na forma será um espelho do conteúdo mesmo de sua exposição, que apela para a
tradição eclesiástica e a ortodoxia também para defender sua fé.

São muitas as acusações de Burgh: Spinoza seria culpado pela arrogância de


considerar sua própria filosofia como a única verdadeira96, por ter tentado explicar a Escritura
por ela própria, contrariando a autoridade da Igreja previamente detentora do direito
hermenêutico sobre o texto97, por sua opinião sobre o Cristo, negando sua encarnação e
padecimento pelas mãos do gênero humano98 e por negar a existência do sobrenatural – por
exemplo, a aparição dos espíritos99. Ora, como pode Spinoza sustentar ter encontrado a
filosofia verdadeira sem ter examinado todas as existentes? Ainda que as tivesse examinado,
com base em qual princípio poderia sustentar a exclusividade da sua contra as demais? No
mesmo tom, pergunta sobre a fundamentação de sua interpretação da Escritura: em que pode
baseá-la a não ser em sua própria razão idiossincrática, como pode saber que sua aplicação de
tais princípios é correta e suficiente? Quanto ao Cristo, segundo Burgh, a arrogância
filosófica de Spinoza é capaz de fazê-lo duvidar do testemunho de toda a história de profetas,
apóstolos, mártires, doutores e membros da Igreja de modo geral que deram, desde sempre,
testemunho de sua santidade. Que a doutrina tradicional relativa ao Cristo não concorde com
os princípios de sua filosofia não deveria ser motivo para reputá-la como falsa: afinal,
Spinoza toma como falso tudo aquilo que não entende e que escapa à razão, tudo o que não
pode ser domesticado pelos princípios de sua filosofia. O mesmo vale para a existência dos
objetos sobrenaturais: o que pode a razão contra os espíritos bons e maus, as sereias, os
kobolds e inúmeras criaturas e artefatos cuja existência e poder é incompreensível à mente
humana? De modo geral, em sua narração, Burgh, por um viés apenas negativo, atenta para a
ausência de uma justificação para a própria razão: o que pode a razão dizer sobre aquilo que
lhe é exterior? Como pode a razão defender a si própria? Se, para Spinoza, a teologia é o
outro da razão, para Burgh o oposto é o caso.

96
G IV, 281.
97
G IV, 282.
98
G IV, 282-283.
99
G IV, 284.
180

Em seguida, na confirmatio, Burgh elenca uma série de oito argumentos que buscam
salientar, respectivamente: o consenso de homens eruditos e piedosos quanto à verdade da
doutrina da fé católica100, a perpetuação histórica da Igreja enquanto instituição pelos séculos
101
, o estabelecimento da Igreja através da pregação de indivíduos pobres e miseráveis, que
somente pelo exercício de sua virtude, à revelia das autoridades políticas e contando com
todas adversidades do mundo, foram capazes de fundá-la como doutrina poderosa102, as
propriedades da antiguidade, imutabilidade, infalibilidade, irreformabilidade, unidade,
impossibilidade de afastamento sem recair em condenação eterna, sua extensão vastíssima
pelo mundo e sua perpetuação até o fim do mundo103, sua ordem admirável enquanto
instituição, o que dá testemunho da providência divina em sua manutenção104, a patente
piedade de seus discípulos, a ponto de que um herege ou filósofo mereça apenas se igualar ao
católico mais imperfeito105, a confissão pública dos hereges arrependidos106 e, por fim, a
miserável vida dos ateus, sobretudo no momento de sua morte, quando reconhecem estarem
desprovidos de Deus107.

Ao lado da crítica à autojustificação da razão, os argumentos de Burgh apontam para


uma espécie de teoria da verdade como consenso, além de fiar-se na experiência e
observação históricas do poder da Igreja enquanto instituição de autoridade e fonte
inquestionável da emanação da verdadeira fé. Que ao menos um conjunto de verdades seja
provada apenas por consenso entre os homens, herdadas historicamente por ouvir dizer, é
natural não só à história da Igreja, mas à história da humanidade como um todo. Do contrário,
como se poderia dar crédito às narrativas históricas não experimentadas em primeira pessoa?
A descrença no sobrenatural em razão de sua incapacidade de incompreensão é a mesma,
segundo Burgh, que opera no descrédito àquilo que não é experimentado – classificado
rapidamente como impossível. Assim como Julio César, no campo secular, teria duvidado da
existência da pólvora e seu poder bélico destrutivo, uma vez que ia de encontro “ao seu juízo
e experiência e máxima ciência militar”108, Spinoza, em referência ao domínio religioso,

100
G IV, 285-286.
101
G IV, 286-287.
102
G IV, 287.
103
G IV, 288.
104
G IV, 288-289.
105
G IV, 289.
106
G IV, 289-290.
107
G IV, 290.
108
Tradução a partir de SPINOZA, B. 1988b, P. 359; G IV, 284-285.
181

negaria o sobrenatural apenas por não poder adaptá-lo perfeitamente aos limites de seu
entendimento.109 Ainda, é somente pelo testemunho escritos dos antigos historiadores ou pela
existência mesma de uma série de monumentos que se pode dizer que houve um povo
romano e um imperador chamado Julio César e que este, após reprimir a liberdade
republicana, trocou seu regime pela monarquia.110 Não há como fugir da confiança no
testemunho e consenso comum de outros homens, estabelecido ao longo dos séculos e de
onde deriva a certeza, pois não se pode experimentar tudo. É simplesmente impossível, para
Burgh, que tantos indivíduos tenham querido e conseguido enganar todo o gênero humano
por tanto tempo.111 Como Spinoza poderá responder judicialmente a estas duas grandes
acusações?

É esperado que estes argumentos não surtam efeito algum sobre Spinoza. Antes de
partir apressadamente para a conclusão de que a empreitada de Burgh está fadada ao fracasso,
é preciso considerar que sua expectativa não é a de estabelecer um diálogo com Spinoza –
como quer Oldenburg – mas sim o de polemizar, chocar, provocar e atingir os afetos de seu
leitor. A impossibilidade do diálogo é menos a consequência fracassada da empreitada de
Burgh do que sua postura de princípio: pretende partir para a guerra, não debater. Talvez
prevendo a postura de Spinoza – demasiado seguro quanto à sua própria filosofia –, Burgh
resolva destilar seu anti-spinozismo com o tempero daquilo que é considerado por seu
interlocutor como antifilosófico, ou seja, a retórica passional e o endosso da autoridade
teológica. Embora tenha sido mal-sucedido, Burgh não parece ingênuo, e sua aposta na
violência é verdadeiramente uma escolha metodológica. Talvez por reconhecer a
exterioridade do ponto de vista de seu adversário, Spinoza confessa ter inicialmente
considerado deixar a carta sem resposta, mas diz ter mudado de ideia devido à influência de
alguns amigos que lhe solicitaram uma reação112. A réplica de Spinoza, assim, é menos
contida do que se poderia esperar, apostando também em alguns recursos retóricos e
eventualmente imitando o tom recriminatório de Burgh. A diferença é que lamenta não sua
impiedade, mas sim de sua falta de razão. Em sua carta, denuncia que Burgh, ao se converter,
incorporou não apenas as crenças dos católicos, mas seu modo de operar via odium

109
G IV, 284-285; SPINOZA, B. 1988b, P. 359.
110
G IV, 286; SPINOZA, B. 1988b, P. 360.
111
G IV, 286.
112
G IV, 317.
182

theologicum113: Burgh maldiz e se enfurece com seus adversários, incapaz de criar uma
discussão em termos filosóficos como parece ter sido o caso de Oldenburg.

Para responder à primeira acusação, ou seja, aquela que questionava os limites da


razão, Spinoza desloca a discussão para o terreno que lhe é próprio: o da filosofia e conquista
da verdade. Sua resposta traz uma sentença que, se descontextualizada, soa mais como uma
confirmação da acusação de arrogância filosófica de seu interlocutor do que propriamente
uma resposta nos termos filosóficos que teoricamente reivindica para si. Ele o afirma
categoricamente: “Eu não pretendo ter encontrado a melhor filosofia, mas sei que tenho
conhecimento da verdadeira”114. Nesta sentença ambígua e de forte poder retórico, esconde-se
também sua concepção de verdade como norma de si mesma e do falso115. Uma das
propriedades essenciais da ideia verdadeira é a certeza que envolve. Portanto, duvidar ter
encontrado a filosofia verdadeira seria o mesmo que duvidar que os ângulos internos de um
triângulo são equivalentes a dois retos.116 É uma certeza de ordem matematicamente
demonstrável – e não moral, como aquela em marcha na religião e no endosso da Escritura
como fonte de autoridade117 – que fundamenta a certeza (e não a crença) no encontro com a
filosofia verdadeira (e não a melhor). Assim, Spinoza pode devolver a acusação: como Burgh
pode ter certeza de que encontrou a melhor religião sem ter examinado todas as religiões até
aquela altura existentes? Ainda que tenha examinado, como sabe ter encontrado a correta?
Qual o critério de justificação da fé? Enquanto a razão é autofundante, a fé – ao menos aquela
perpetrada por Burgh, quer dizer, que se fia na ignorância das causas e cultua signos
exteriorizados como um fetiche – necessita de um suplemento exterior para se fundar. A
disputa entre Burgh e Spinoza é também uma discussão em torno da preferência pelo discurso
de uma certa fé versus o discurso racional de ordem filosófica. E, mais ainda, um debate em
torno da questão mais fundamental da exterioridade: o que pode a razão como campo exterior
à teologia (Burgh) e o que pode a teologia como campo exterior à razão (Spinoza)?

Seria tentador identificar, neste momento, os ímpetos proto-iluministas de Spinoza, o


qual estaria desafiando o sobrenatural em prol da conservação da inquestionabilidade da

113
Retomarei o tema do ódio teológico no capítulo seguinte.
114
Cito a tradução de J. Guinsburg, Newton Cunha e Roberto Romano. Cf. SPINOZA, B. 2014b, P. 286; G IV,
320.
115
Ver EII, P. XLIII.
116
G IV, 320.
117
G III, 185.
183

razão. Tanto Vieira Neto quanto Sanz sublinham, nesta linha, seja, no caso do primeiro, a
distinção radical entre fé e razão elaborada por Spinoza ao longo da carta118, para fins de
estabelecimento da autonomia da razão119, seja, no caso do segundo, a aposta, a partir de uma
certa altura, “em uma linguagem radical e decididamente antirreligiosa”120. Já Edwin Curley
utiliza a correspondência com Burgh para refletir de modo amplo sobre a filosofia da religião
spinozista, e conclui que, tanto no TTP e no TP, em que Spinoza aventa a possibilidade de
uma religião nacional121, quanto na própria correspondência dirigida a Burgh, na qual procura
defender que a observação da piedade não é exclusiva a uma religião, há um tratamento mais
matizado da fé, que não parece se reduzir somente a um ímpeto antirreligioso.122 Para ele,
Spinoza claramente constrói, ao longo de sua obra, uma definição de religião universal cujo
fim último é senão a erradicação completa da superstição, ao menos a desativação de seu
potencial mais pernicioso. É certo que à teologia não é reservado, no spinozismo, qualquer
status científico, mas o conhecimento filosófico e o modo de vida que ele engendra são
definidos por Spinoza como frutos da religião verdadeira: a fé católica universal. Ainda, que
uma certa teologia reformada não engendre conhecimento, mas comportamento moral
adequado, ou seja, observação estrita da justiça e da caridade, estas a fazem curiosamente
reencontrar ao menos exteriormente com o modo-de-vida perpetrado pela filosofia. Elaborar
este conjunto de dogmas e estabelecer continuidades ocultas entre o discurso filosófico e o
discurso religioso emendado é, embora não dito, o que é efetivamente feito ao longo do TTP.

Há, realmente, uma separação radical construída na carta a Burgh, mas não entre fé e
razão, e sim entre razão e superstição travestida de religião: a verdadeira fé é, numa passagem
importante da carta, reintegrada ao exercício da razão.123 Esta concessão à exterioridade se dá
por meio de sua introdução reformada no interior da imanência. A crítica ao culto ao exterior,
ao fetiche da religião, à superstição, em suma, é seguida pela reintegração ao cenário
filosófico da fé tomada em seu núcleo verdadeiro e universal: a piedade comportamental. É

118
VIEIRA NETO, P. 2000, P. 467, P. 489, P. 493.
119
VIEIRA NETO, P. 2000, P. 493.
120
SANZ, V. 1999, P. 131.
121
TP, VIII, 46; G III, 345. Trataremos mais desenvolvidamente da discussão em torno da religião nacional no
Capítulo 5 deste estudo.
122
Curley avança uma interessante definição de superstição: é supersticiosa toda religião que sustenta que a
salvação só é possível no interior de si própria, e propõe que Spinoza pode ser classificado como um autor
pluralista. Ver CURLEY, E. “Spinoza’s exchange with Albert Burgh”. In : MELAMED, Y. ROSENTHAL, M.
(eds.), Spinoza's 'Theological-Political Treatise': A Critical Guide (Cambridge Critical Guides, pp. 11-28).
Cambridge: Cambridge University Press, 2010. doi:10.1017/CBO9780511781339.002.
123
G IV, 318.
184

justamente por isso que Spinoza insere, em sua carta, uma passagem da Primeira Epístola de
João que surge nada menos que na epígrafe do Tratado Teológico-Político e que atenta para a
piedade como critério da fé. “Nisso sabemos que permanecemos n’Ele e Ele em nós: porque
nos deu a partir do Seu espírito”124, diz João. Retiraremos todas as implicações filosóficas e
teológicas do recurso a esta passagem em outro momento deste estudo125, mas basta afirmar,
aqui, que ela é acionada por Spinoza para defender, com João, que “o único e certíssimo
signo da verdadeira fé católica e da verdadeira posse do Espírito Santo é [...] a justiça e a
caridade [...]”126. É na santidade da vida, guiada por estes princípios, que se identifica a
presença do Cristo: seu espírito é o único guia para o amor da justiça e da caridade. Todos os
aspectos exteriores ao comportamento piedoso, como aqueles que contribuem para a
perpetuação da Igreja como instituição, são supérfluos e resultado da superstição dos homens.
A prática de justiça e caridade está, por se identificar à verdadeira religião, acima de todas as
religiões históricas e seus mecanismos de culto e aparato.

Ora, que a Igreja católica reúna, como quer Burgh, uma quantidade maior de
indivíduos eruditos e piedosos explica-se facilmente por sua quantidade superior de adeptos
em relação às demais religiões.127 Ainda, Burgh tem de concordar, a honestidade não é
exclusividade da Igreja católica: ao contrário, em todas as religiões encontram-se indivíduos
piedosos.128 O que sustentou historicamente a Igreja, o que justifica sua antiguidade, é menos
a verdade de sua doutrina e mais a eficácia da superstição. Com o poder das narrativas
miraculosas, seus pregadores encantam a plebe e a viciam num circuito infernal de medo e
esperança: e a antiguidade da Igreja é nada mais que uma forma política e lucrativa de
subjugar os homens129. Um exame atento de sua história permitiria a Burgh constatar os
falsos ensinamentos dos pontífices, bem como suas astúcias para manter sua primazia entre as
religiões.130 Spinoza acusa Burgh de empregar o mesmo falso argumento dos hebreus, que
remetem à tradição e à antiguidade de seu culto para justificar sua verdade: por exemplo, ao
se considerarem como o povo mais antigo e escolhido, que detinha uma vocação exclusiva
em relação ao dom profético e, portanto, o monopólio da palavra escrita e não escrita de

124
Bíblia. 2018, P. 527. Primeira Carta de João, 4, 13.
125
No Capítulo 5.
126
SPINOZA, B. 2014b, P. 285; G IV, 318.
127
G IV, 317.
128
GIV, 317-318.
129
G IV, 322.
130
G IV, 324.
185

Deus.131 Apesar de concentrar sua crítica no aparato institucional da Igreja Romana, acusa o
Judaísmo e o Islamismo de aplicar os mesmos expedientes, sugerindo que a organização da
superstição num complexo teológico-político baseado na ignorância do povo não é
exclusividade de uma religião, mas de sim de um modo exteriorizado de considerar a fé, que
se fia apenas em seu caráter histórico e em suas propriedades supérfluas.132

A carta a Burgh, assim, nos oferece mais elementos na construção desta noção nunca
tão bem determinada de Cristo segundo a carne. Seu principal combate contra Burgh é em
relação aos aspectos exteriores da religião: suas cerimônias, regras de culto, dogmas,
narrativas tomadas literalmente, sua pompa e mecanismos de perpetuação no poder. Não
poderiam estes aspectos históricos e supérfluos ser remetidos à compreensão carnal do
Cristo? Quando Spinoza afirma para Oldenburg que, para salvar-se, não é necessário
conhecer o Cristo segundo a carne, mas apenas o Cristo segundo o espírito133, não está
pontuando justamente o caráter exterior dos elementos que circundam a religião, para além de
seu núcleo moral? O Cristo segundo a carne se insere no domínio da história: tanto da
história do Cristo – compreendida como miraculosa especialmente quanto aos fenômenos da
encarnação e ressurreição, como vimos na correspondência com Oldenburg – quanto do
Cristo como uma espécie de fundamento de uma série de práticas supersticiosas da Igreja
enquanto instituição – como vimos com Burgh. Se contra Oldenburg o Cristo segundo o
espírito era um antídoto à superstição individual de uma fé domesticada, contra Burgh ele
visa combater a superstição institucionalizada que perpetua o subjugamento do povo e o
odium theologicum para com os seguidores de religiões divergentes (ou de nenhuma
religião).

O que está em jogo, em suma, no tratamento parcialmente racionalizado aos eventos


da vida do Cristo? Por que Spinoza reserva a ele uma distinção entre os aspectos carnais e
espirituais, históricos e eternos, teológicos e filosóficos? Ao invés de insistir no modo como o
Cristo poderia revelar uma contradição interna ao sistema, um momento de autotraição do
spinozismo, tais duplicidades anunciam uma compreensão fraturada de um dos mais

131
G IV, 321.
132
As críticas à Igreja Romana estão distribuídas por toda a carta, mas aparecem mais fortemente em G IV
316-318, 322-323, 324; SPINOZA, B. 1988b, P. 395-396, 399-400. A crítica ao judaísmo surge em G IV, 321;
SPINOZA, B. 1988b, P. 398 e ao islamismo em G IV, 322; SPINOZA, B. 1988b, P. 399.
133
G IV, 308.
186

importantes conceitos de sua filosofia da religião. É preciso que o Cristo mantenha esta
dualidade para que sua mensagem seja compreendida por todos. Será preciso insistir nas
implicações epistêmicas, morais e políticas desta oposição adiante, de modo a conquistar a
imagem de um Cristo spinozista que procure integrar pela via da desagregação, que insista
mais na violência do que na paz, e que conserve, em seu interior, uma tensão insolúvel entre
exterioridade e interioridade.

O Cristo segundo o espírito

Em novembro de 1677, alguns meses após a morte de Spinoza, são publicadas suas
Obras Póstumas, contendo, além de textos como a Ética, o Tratado Político e o Tratado da
Emenda do Intelecto, um prefácio não assinado134. Por razões que talvez revelem o interesse
de determinada tradição em conferir certo ateísmo ou, no mínimo, um espírito antirreligioso
ao spinozismo, tal Prefácio, como nota Bernard Pautrat135, não vem despertando debate na
literatura especializada. No texto, além de uma brevíssima apreciação biográfica, a qual
omite sua origem judaica, o fato de ter sido vítima do chérem, concentrando-se
fundamentalmente em seu interesse por Descartes e no objetivo de perseguir a verdade,
biografia esta seguida de um resumo da Ética e da refutação de duas objeções feitas ao
Tratado Teológico-Político (a de que Spinoza confundiria Deus e a natureza e a de que seria
um fatalista; objeções respondidas pelo próprio Spinoza em sua correspondência136), Jarig
Jelles – aquele a quem se atribui a autoria do texto em questão – se esforça para conciliar
sobretudo os ensinamentos das Partes IV e V da Ética com certa versão particular do
cristianismo, em continuidade com o que já vinha defendendo em sua Profissão de Fé (texto
publicado apenas em 1684, após sua morte, mas submetido epistolarmente, em 1673, à
apreciação de Spinoza)137.

134
Para uma discussão detalhada acerca da autoria do prefácio, reenvio ao texto de Akkerman e Hubbeling:
“The preface to Spinoza's posthumous works, 1677, and its author Jarig Jelles (c. 1619/20-1683)”. In : Lias,
Lovaina, n. 6, p. 103-173, 1979.
135
A tradução francesa do Prefácio é preparada por Pautrat, publicada em 2017 pela Éditions Allia. Cabe notar
que sua tradução é feita a partir do latim, que é, em si, uma tradução, provavelmente de autoria de Louis Meyer,
do original em holandês. Tais questões são debatidas pelo próprio Pautrat na introdução do volume mencionado.
Ver JELLES, J. Préface aux Oeuvres Posthumes de Spinoza. Paris : Éditions Allia, 2017.
136
Ver as cartas 73 e 75.
137
Profissão de fé cristã e universal (1684) é um texto de Jarig Jelles escrito conforme um panfleto, redigido
após a publicação do Tratado Teológico-Político (1670), e que, portanto, se insere no contexto de polêmica
teológica suscitado por este último. Jelles envia seu texto a Spinoza em 1673, conforme a carta 48A da edição
de Maxime Rovere (SPINOZA, B. Correspondance. Paris: Flammarion, 2010). Seu objetivo é conciliar
cartesianismo e cristianismo. Na edição da correspondência de Spinoza preparada por Rovere encontram-se, no
187

De forma algo surpreendente, o texto de Jelles abandona as citações das cartas de


Spinoza e as objeções, por assim dizer, metafísicas, para introduzir um problema de ordem
teológica: o problema do mal. Do fato de que tudo deriva de Deus poder-se-ia supor que
também o mal tem nele sua origem; o que, mais uma vez, Spinoza dá conta em sua
correspondência, entre outras coisas atentando para a irrealidade do mal138. Este é o pretexto
de Jelles para acrescentar que a determinação divina não pode causar “nenhuma dissensão
com aquilo que numerosos Cristãos não somente creem, mas também defendem como uma
verdade necessária”139. A partir de então, o Prefácio se concentrará em sua totalidade num
empenho obstinado de conciliação entre a regra ou norma de vida apresentada na Ética e
aquilo que ensinam “tanto Cristo nosso Salvador quanto seus Apóstolos na Escritura Santa”
. Nos termos de Jelles, o objetivo do Prefácio é:
140

[...] que aquilo que nosso Filósofo demonstra ser prescrito pela Razão a propósito da
Regra do bem viver e do soberano bem do homem convém escrupulosamente com o
que ensinaram o Salvador e os Apóstolos; que os dogmas Morais da Religião Cristã,
dito de outra forma, o que somos inclinados a fazer para ser salvos, aí se encontra
perfeitamente contido; enfim, que este estudo pelo qual nos esforçamos para
compreender a verdade dos artigos da Doutrina Cristã e de viver e agir segundo ela,
concorda em todos os pontos com a Escritura Santa e com a Religião Cristã.
(JELLES, J. 2017, P. 103).

Para combinar spinozismo e cristianismo, o percurso de Jelles será, primeiro, o de


demonstrar que o conhecimento adequado, que encaminha, conforme a Ética, ao amor
intelectual a Deus e em última análise à beatitude, não fere os preceitos da religião cristã. Em
segundo, o de refletir sobre a figura do Cristo. Seus argumentos insistem no aspecto racional
do cristianismo a partir da interpretação de algumas passagens bíblicas. Daí a importância do
termo logos, advertida já desde a sua Profissão de fé: “Grandes filólogos testemunham que,
na Escritura santa, a palavra logos (tal como o é na língua de origem, habitualmente traduzida
por Verbo) poderia ser mais bem traduzida, de forma mais fiel ao sentido, pela palavra
Razão”141. Jelles refere-se à Epístola aos Romanos 12, 1, obtendo de Paulo a ideia de que a
religião cristã é racional.142 A passagem, vertida pela Bíblia de Jerusalém por “culto

Anexo IV, trechos do texto, mas uma tradução completa, acrescida do original em holandês, está disponível em
italiano, sob o título Professione della fede universale e cristiana, contenuta in una lettera a N.N. Belydenisse
des algemeenen en christelyken geloofs, vervattet in een Brief aan N.N. Roma: Edizioni Quodlibet, 2004.
138
Ver a correspondência com Blyenbergh, particularmente as cartas 19, 21 e 23.
139
Cf. JELLES, J. 2017, P. 61. Todas as passagens de Jelles (tanto do Prefácio quanto de seu Profissão de fé) são
traduções minhas a partir das edições francesas.
140
JELLES, J. 2017, P.63.
141
SPINOZA, B. 2010, P. 417.
142
JELLES, J. 2017, P. 71.
188

espiritual”143, deixa escapar o sentido preciso do adjetivo logikós que surge neste momento do
texto, o qual será central para Jelles em sua empreitada de associação entre cristianismo e
spinozismo mediados pela racionalidade. Culto racional ao invés de espiritual, prescrito e
fundado na razão.

O mesmo recurso argumentativo é empregado quando se trata de pensar uma


passagem do Evangelho de João (João 1, 1-5). No princípio era o logos e não o verbo.
Opõe-se, aqui, segundo Jelles, razão interna e externa. Uma significa o intelecto de Deus, sua
essência e, em última análise, o próprio Deus (nada mais spinozista); outra, sua palavra
compreendida acusticamente, “os verbos proferidos pela boca”144, que não são nada além de
“movimentos de ar”145, e que nada têm a ver com a sentença que inaugura o evangelho de
João. Trata-se de uma repetição de um argumento já exposto no panfleto de 1673, o que pode
servir de evidência a favor da identificação de Jelles como autor do Prefácio. Também lá a
razão interior, logos, é identificada ao intelecto e, em última análise, à essência de Deus, e a
exterior é definida comunicacionalmente, sendo aquela através da qual “fazemos conhecer e
compreender nossos conceitos aos outros”146. A contraposição entre um domínio externo e
outro interno, e a consequente valorização do interno, governará outras das análises de Jelles,
bem como, veremos, do próprio Spinoza (é certo que com maiores complicações). Seja como
for, o que é importante, nesta altura do texto, é estabelecer uma relação entre cristianismo e
racionalidade interior, e conquistar, através dela, a associação almejada, isto é, entre
cristianismo e spinozismo.

A religião cristã – também denominada por Jelles de Nova Aliança –, que tem o
Cristo como mediador, consiste numa atualização das leis que Deus manifestou aos israelitas:
ao invés de gravá-las nas tábuas, como havia feito primeiramente, com o Cristo Deus propôs
uma espécie de compreensão intelectual das mesmas. Além disso, enquanto os ministros da
“Antiga Aliança” eram conduzidos pela “letra” ou pela “Escritura” – por autoridade, portanto

143
“Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo,
santo e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual”, cf. Bíblia de Jerusalém. 2016. P. 1986. Numa tradução
mais recente e de orientação laica, Frederico Lourenço verte a expressão por “culto razoável”, além de atentar,
em nota, para o emprego do adjetivo logikós no trecho: “Exorto-vos, por conseguinte, irmãos, pelos
compadecimentos de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja
esse o vosso culto razoável”. Cf. Bíblia. 2018. P. 201.
144
JELLES, J. 2017, P. 85.
145
Idem.
146
SPINOZA, B. 2010, P. 417.
189

–, os da Nova eram conduzidos pelo espírito, isto é, pelo intelecto ou pela razão.147 A missão
do Cristo, então, é a de fornecer tais ensinamentos aos homens “a fim de que eles não sejam
conduzidos cegamente, como os Judeus pela lei ou pelo mandamento, mas pela luz do
conhecimento”.148 O papel conceitual do Cristo deve ser compreendido em oposição ao papel
de Moisés: representante da lei e da Antiga Aliança. A função deste último era a de garantir
que os homens obedecessem à lei de forma externa, isto é, por simples força de autoridade;
ao passo que a do Cristo era propor uma conduta segundo “a luz da Graça e da Verdade”149.
Veja-se que a Nova Aliança não propõe que a lei seja completamente supérflua, mas a
atualiza, realiza ou aperfeiçoa, de forma que a obediência engendrada diferirá da primeira na
medida em que será consciente de si. Não é tanto o conteúdo da obediência que difere, mas
sim a forma de obedecer. Jelles ergue, então, duas definições de obediência: uma primeira,
externa, guiada apenas pela força da autoridade; outra, interna, que se justifica através do
conhecimento da verdade: obedece-se porque se compreende adequadamente que a Lei é o
melhor caminho a ser seguido, nos termos de Jelles, por um conhecimento da coisa150. No
mais, começa a se erguer, aqui, uma qualificação ligeiramente desfavorável do judaísmo, o
que poderia explicar, por exemplo, a omissão tendenciosa da origem de Spinoza no momento
biográfico do Prefácio; apreciação esta que, não parece demasiado pontuar, não é estrangeira
ao que faz o próprio Spinoza ao longo do TTP151 (ainda que, em seu caso, contrariamente ao
de Jelles, esta classificação inferiorizante não seja acompanhada de uma defesa explícita do
cristianismo).

Jelles também baseia sua interpretação do Cristo numa leitura dos testemunhos
daquele que designa por o apóstolo, isto é, Paulo. Em primeiro lugar, Paulo surge como
crítico da Lei: Cristo teria vindo para livrar-nos da Lei (Rm 7, 6), através de seu corpo a lei é
morta para nós (Rm 7, 4), a lei cessa uma vez vinda a fé (Ga 3, 23-25), a lei não foi instituída
para os justos (Ga 5, 22-23): tudo isto deve ser interpretado, seguindo Jelles, como uma
referência não apenas à Lei cerimonial, mas particularmente à Lei moral. Novamente, não se

147
JELLES, J. 2017, P. 79, 81.
148
JELLES, J. 2017, P. 81.
149
Idem.
150
JELLES, J. 2017, P. 87.
151
Sabe-se que alguns levaram às últimas consequências a inferiorização dos judeus e do próprio judaísmo
promovida por Spinoza ao longo do TTP; sobretudo a passagem de abertura do Capítulo III, dedicado a negar a
vocação e exclusividade dos hebreus quanto ao dom profético. Ver, para tanto, o provocativo livro de Jean
Claude Milner, Le sage trompeur. Libres raisonnements sur Spinoza et let Juifs. Court traité de lecture I, o qual
examinaremos em mais detalhes no capítulo seguinte.
190

trata de uma desobrigação completa da lei, mas sim do fato de que não se deve viver ou
operar tomando como princípio o que foi por ela instituído. Na polêmica acerca do critério de
salvação, Jelles, lendo Paulo, sustenta a excelência da fé em relação às obras comandadas
pela lei (sem que isto a elimine por completo). Ainda lendo Paulo, especialmente um trecho
da carta aos Efésios (4, 11-13), Jelles trata da edificação do corpo de Cristo. Apóstolos,
profetas, anunciadores da boa-nova, pastores, professores: todos devem encaminhar o povo à
apreensão de Deus da forma que Cristo o fez, devem conduzi-los a sua ciência; e, assim,
construir uma unidade, formar uma síntese que é o seu corpo. Reside neste corpo uma
espécie de ideal regulador da fé.

Por último, em concordância com a ideia de que o Cristo vem subscrever disposições
internas, Jelles propõe uma divisão entre a orelha externa e a interna. Esta divisão é como
uma modulação de uma contraposição mais ampla já surgida ao longo do Prefácio, que
opunha, de forma geral, o paradigma da exterioridade via Moisés (razão externa, verbo) e o
paradigma da interioridade via Cristo (razão interna, logos). Diz Paulo em Romanos 10, 17:
“Assim, a fé [vem] de [a] audição, a audição através de [a] palavra de Cristo”152. A fé
designada pelo termo audição (auditûs) não diz respeito ao ouvir dizer sensível, ou seja, à
orelha externa, mas ao compreender (intelligere), o que é feito pela orelha interna, em outros
termos, pelo intelecto ou pela razão. Fé é o mesmo que compreensão, portanto, e à dimensão
da exterioridade é sempre conferida a ideia de autoridade e obediência passiva; enquanto à da
interioridade a de compreensão e liberdade.

São inúmeros os pontos de contato entre aquilo que propõem Jelles e Spinoza. Como
não associar a descrição sucinta que faz da religião Cristã, baseada em dois dogmas
principais da Lei – amar a Deus com todo o coração, alma e espírito e amar ao próximo como
a si mesmo153 – com o credo mínimo avançado por Spinoza no capítulo XIV do TTP154? Além
disso, a resistência à exterioridade, traduzida numa crítica oculta à Moisés como propondo o
império da lei e uma salvação meramente comportamental e mundana, por oposição a uma

152
Cf. Bíblia. 2018, P. 196. O mesmo trecho, na tradução da Bíblia de Jerusalém: “Pois a fé vem da pregação e a
pregação é pela palavra de Cristo”, P. 1984.
153
JELLES, J. 2017, P. 71.
154
“Por sua vez, a doutrina evangélica não contém senão a simples fé: crer em Deus e reverenciá-lo ou, o que
vem a dar no mesmo, obedecer-lhe. [...] Depois, a própria Escritura também ensina com toda a clareza e em
muitas passagens o que cada um deve fazer para agradar a Deus, quando diz que toda a lei consiste unicamente
em amar o próximo.” Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 304; G III, 174.
191

salvação eterna e interna, que é aquela apresentada pelo Cristo, são interpretações deduzidas
com facilidade do mesmo texto (a resistência à exterioridade é, em geral, um topos do
spinozismo). Jelles e Spinoza compartilham, assim, uma interpretação sobre a religião Cristã,
uma cristologia e uma doutrina da salvação. A carta em que Spinoza afirma a Oldenburg155
que redigira o TTP para defender a liberdade de filosofar, combater os preconceitos dos
teólogos bem como as acusações de ateísmo, poderia ser pensada, ao invés de como uma
formulação branda a favor de uma posição secular, como, antes, uma afirmação secreta de
certo cristianismo – e Spinoza seria, portanto, um criptocristão, já que, ao contrário de Jelles,
isto só seria deduzido a partir das entrelinhas de seu texto.

A figura do Cristo, no entanto, não pode ser sem maiores dificuldades reduzida a um
simples elogio da interioridade, e a hipótese de um Spinoza criptocristão pode ser, neste
aspecto, no mínimo dificultada. Já desde o capítulo sobre a profecia, Spinoza adianta que, se
há os profetas comuns e Moisés, o mais excelente entre eles, há um terceiro ator que
ultrapassa a todos em termos de comunicação com Deus: o Cristo. Cristo não pode sequer ser
elencado entre os profetas, pela simples razão de que sua interlocução com Deus dispensava
qualquer intermediário corporal. Enquanto a Moisés Deus se manifestou através de uma
verdadeira voz, com Cristo ele se comunicou de mente a mente (de mente ad mentem156).
Quando o Cristo falava aos apóstolos os ensinamentos que intelectualmente obtinha, quem ali
falava era a própria Voz de Deus e Cristo era a sua boca157 (e aqui vem à mente a imagem do
Cristo como uma espécie de grande boca monstruosa que fala aos apóstolos e aos homens). A
sabedoria divina assumia em Cristo a natureza humana e Cristo era, portanto, o caminho da
salvação158.

155
Refiro-me à Carta 30.
156
“Por conseguinte, enquanto Moisés falava com Deus face a face, tal como um homem fala habitualmente
com um companheiro (isto é, por meio de seus dois corpos) Cristo comunicou com Deus de mente para mente”.
ESPINOSA, B. 2019, P. 137; G III, 21.
157
“Isto aplica-se, repito, unicamente aos profetas, que em nome de Deus prescreveram leis, não a Cristo.
Porque embora Cristo pareça também ter prescrito leis em nome de Deus, deve afirmar-se que ele teve uma
percepção verdadeira e adequada das coisas: Cristo, com efeito, não foi tanto um profeta como a boca de Deus”.
ESPINOSA, B. 2019, P. 184; G III, 64.
158
Cristo não é a encarnação de Deus, mas, antes, sua manifestação enquanto modo infinito imediato do
pensamento. Como já foi dito acima, na carta 73, Spinoza revela a Oldenburg que dizer que, no Cristo, Deus
assumiu uma forma humana, é tão absurdo quanto afirmar que um círculo tomou a forma de um quadrado. Ver,
sobre este tópico, o artigo de Yitzhak Y. Melamed intitulado “‘Christus secundum spiritum’. Spinoza, Jesus and
the infinite intellect”. In : STAHL, N. (ed.), The Jewish Jesus. Routledge, 2012. P. 140-151.
192

Quando consideramos a mecânica cognitiva estabelecida em outras das obras de


Spinoza, tudo leva a crer que Cristo conheceu Deus através do terceiro gênero de
conhecimento ou ciência intuitiva. Se percorrermos as referências centrais da teoria do
conhecimento spinozista, teremos o seguinte quadro: no Breve Tratado, o conhecimento por
“intelecção clara e distinta”159 permite a resolução do enigma da quarta proporcional apenas
pela intuição, pois “não precisa do ouvir dizer, nem da experiência, nem da arte de raciocinar,
porque com sua intuição vê imediatamente a proporcionalidade e todos os cálculos”160. No
Tratado da Emenda do Intelecto, é o quarto modo de percepção que parece fazer jus à
exigência de imediaticidade encontrada no caso do Cristo. Trata-se do conhecimento de algo
por sua essência ou por sua causa próxima, como quando, ao conhecer a essência da alma, sei
que está unida ao corpo; que dois e três são cinco e que, dadas duas retas paralelas a uma
terceira, estas devem também ser paralelas entre si. No exemplo da quarta proporcional, a
resolução é dada por meio da exata compreensão de sua proporcionalidade, sem recorrer a
qualquer operação matemática ou a uma demonstração estabelecida seja por um mestre
exterior seja pelas regras matemáticas conhecidas através do livro de Euclides. Pelo fato de
que conheço algo, sei o que é conhecer algo: como se o próprio conhecimento já fosse índice
de si mesmo, garantindo a si próprio sem recorrer a elementos exteriores. Na Ética, o terceiro
gênero de conhecimento ou a ciência intuitiva, que “procede da ideia adequada da essência
formal de alguns atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas”161,
parece o mais exato para dar conta da descrição do Cristo. No exemplo da quarta
proporcional, é por uma intuição simples que se observa que, na sequência de 1, 2, 3, o
próximo número é 6. Não há necessidade de operação alguma: basta que se observe a
sequência para sabê-lo. Para recuperar a etimologia do termo latino intuição, que advém do
verbo intueri162, trata-se de um conhecimento obtido com o mesmo grau de imediaticidade
com o qual se “vê” algo: intuir é ver com os olhos do espírito. Ainda que, nos três textos, a
descrição do terceiro gênero de conhecimento envolva dificuldades (afinal, Spinoza parece

159
ESPINOSA, B. 2014a, P. 92.
160
ESPINOSA, B. 2014a, P. 93.
161
ESPINOSA, B. 2015a, P. 201.
162
“Ninguém pode olhar em direção (in-tuieri) ao sol, recordava em sonho a Cipião o espectro de seu glorioso
ancestral. Derivado desse verbo, o substantivo masculino intuitus não é antigo e só passou a ser usado a partir do
século IV (o alótropo intuitio é extremamente raro). Os Padres latinos utilizam-no sobretudo em sentido
figurado para designar um olhar do espírito que capta de imediato uma realidade em sua totalidade: assim como
os homens, no juízo final, terão a visão instantânea de sua vida inteira (Agostinho: mentis intuitu), também os
conceitos simples são apreendidos por um intuitus puro da alma”. Cf. FONTANIER, J.-M. P. 86.
193

fazer referência a uma experiência psicológica sem dar para ela maiores explicações),
pode-se, à primeira vista, sustentar sua associação ao modo como Cristo se comunicou com
Deus. O terceiro gênero é o único descrito, nas diversas referências, sem a necessidade de um
intermediário sensível como o ouvir dizer ou as experiências arbitrárias e sem o recurso a
uma operação matemática qualquer. É esta mesma imediaticidade intelectual que, parece,
encontramos no caso do Cristo.

Destacando a imediaticidade da comunicação do Cristo com Deus, Alexandre


Matheron se pergunta se é lícito compreendê-la nos termos do terceiro gênero de
conhecimento163. Em última análise, se pergunta se o Cristo pode ser identificado a um
filósofo spinozista. É certo que se trata, em seu caso, de uma percepção adequada: desprovido
dos acessórios audiovisuais, Cristo acessa Deus intelectualmente. Spinoza poderia, talvez,
estar fundando uma nova categoria de conhecimento imediato para dar conta da absoluta
singularidade do Cristo, categoria esta que não estaria compreendida em suas demais obras de
caráter metafísico e epistemológico por motivos óbvios – se só o Cristo manifestou este
conhecimento, qual o sentido de estabelecê-la como regra? Matheron acredita, no entanto,
que supor esta nova categoria implicaria ou bem admitir que o conhecimento do Cristo fora
inadequado ou bem confirmar que ela se sustentou via terceiro gênero. Suponha-se o
primeiro caso: Deus teria revelado seus decretos de modo imediato como simples conclusões
desprovidas de suas premissas. Isto tornaria a comunicação, por definição, inadequada. Por
outro lado, se estas conclusões fossem reveladas imediatamente conforme a compreensão do
Cristo, adaptadas ao seu intelecto particular, haveria um problema adicional quanto à missão
que o próprio Deus o instruiu. Se a mensagem fosse particularizada, como seria possível
comunicá-la a todo do gênero humano, garantindo seu universalismo? A não ser que
aceitássemos um sentido de adaptação como correspondente à Razão humana, o que seria
equivalente a sustentar a posição do Cristo como filósofo spinozista, ou seja, que conheceu
via terceiro gênero: voltaríamos, portanto, à classificação epistemológica interna ao sistema.

O problema é que Spinoza classifica esta comunicação como revelada: ou seja, há


algo compartilhado entre ela e o conhecimento profético. Para dar conta deste sentido de
revelação, Matheron esvazia seu alcance teológico, sublinhando a tese de Spinoza segundo a
qual, num certo sentido, todo conhecimento natural, posto que derivado de Deus, é por ele

163
MATHERON, A. 1971, P. 92-94.
194

revelado. Para complementar seu argumento, descreve minuciosamente o credo mínimo da fé


tal como desenvolvido no Capítulo XIV do TTP em sua conexão com os ensinamentos do
Cristo.164 A mensagem do Cristo pode ser compatibilizada em suas grandes linhas com o
credo mínimo. Mais do que isso, o Cristo não mesclou, aos ensinamentos, quaisquer
elementos antropomórficos tais como fizeram, por exemplo, Moisés e os demais profetas.
Sua mensagem é, neste sentido, purificada dos elementos audiovisuais.

Não parece haver problema, seguindo a leitura de Matheron, para conceder que o
Cristo compreendeu Deus adequadamente e que adaptou retoricamente sua mensagem.
Quando se trata de considerar as implicações para o problema da obediência, porém, o
paradoxo parece atingir um nível irrecuperável. Nas palavras de Matheron, “a proposição
relativa à salvação dos sábios, separada de suas premissas e ensinada a um auditório de
ignorantes, transforma-se necessariamente em uma proposição relativa à salvação dos
ignorantes”.165 A possibilidade de compatibilizar o Cristo ao spinozismo se vê, assim,
dificultada. Matheron se vê forçado a concluir a absoluta singularidade do Cristo, talvez até
num sentido ainda mais radical, uma vez que, pelas afirmações de Spinoza, sequer podemos
concluir se seu intelecto era mesmo humano.166 Talvez este paradoxo do Cristo – aquele da
necessária duplicação de sua mensagem – realmente se explique a partir da absoluta
singularidade de seu conhecimento de Deus. Vejamos em detalhes as palavras de Spinoza
acerca da epistemologia do Cristo:

E embora se compreenda que Deus pode, sem dúvida, comunicar-se aos homens
imediatamente, pois comunica a sua essência à nossa mente sem precisar de qualquer
meio corporal, todavia, para que um homem percebesse só pela mente certas coisas
que não estão contidas nos primeiros princípios do nosso conhecimento, nem deles
se podem deduzir, a sua mente teria de ser necessariamente superior e, de longe,
mais perfeita que a mente humana. Por isso, não creio que alguém tenha atingido
tanta perfeição, a não ser Cristo, a quem os preceitos divinos que conduzem os
homens à salvação foram revelados imediatamente, sem palavras nem visões. Deus
manifestou-se, portanto, aos apóstolos através da mente de Cristo, como outrora a
Moisés por meio de uma voz que vinha do ar. E, assim, à voz de Cristo, tal como
àquela que Moisés ouvia, pode chamar-se a voz de Deus. Neste sentido, podemos
também dizer que a sabedoria divina, isto é, a sabedoria que é superior à do homem,
assumiu em Cristo a natureza humana e Cristo foi o caminho da salvação. (Grifos
meus. ESPINOSA, B. 2019. P. 137; G III, 20-21).

164
MATHERON, A. 1971, P. 94-114.
165
Tradução minha de MATHERON, A. 1971, P. 146.
166
MATHERON, A. 1971, P. 148, P. 261.
195

O trecho admite ao menos duas interpretações possíveis. Se Cristo entendeu


verdadeiramente a essência das coisas que Deus lhe revelou, deve-se concluir que as obteve e
que, portanto, as ensinou, enquanto verdades eternas e não enquanto leis. Disso se segue que
aquilo que revelou aos apóstolos é de fato um ensinamento, no sentido de que os fez
compreender a necessidade e as razões últimas do que vinha pregar. Como consequência,
seus ensinamentos não diziam respeito às questões corporais, como a segurança e a
comodidade dos homens, mas à própria salvação destes. Se Cristo adaptou seus
ensinamentos, foi somente às leis da própria razão humana, pois, ao contrário de Moisés, seu
ensinamento tinha um alcance universal – não servia apenas para o contexto particular e
temporal de manutenção de um Estado. Cristo atenta para as disposições interiores167,
preocupa-se em erguer um ensinamento moral, em encaminhar à beatitude e, assim, fala
como um doutor ao invés de como um legislador.

Uma segunda leitura do trecho, porém, iria na direção de questionar tais associações
tão descomplicadas. Esta descrição tão fluida, que serviria tão acuradamente para opor termo
a termo dois paradigmas de teologia-política – uma baseada na exterioridade da lei e outra na
interioridade do conhecimento –, muito embora parecesse se adequar com aquilo que
debatemos acerca da exclusão da exterioridade no spinozismo e também com a cristologia de
Jelles, parece ruir se confrontada com outras passagens que ainda tematizam o Cristo. Numa
passagem mais adiante daquela que acabamos ler, Spinoza admite que “ninguém, além de
Cristo, recebeu qualquer revelação de Deus sem o recurso à imaginação, quer dizer, a
palavras ou imagens [...]”168. E o exemplo adâmico adverte:

Sendo assim, Cristo percebeu verdadeira e adequadamente as coisas


reveladas e, portanto, se alguma vez as prescreveu como leis, foi por causa
da ignorância e da obstinação do povo. Fez, neste particular, as vezes de
Deus, adaptando-se à maneira de ser do povo e, por isso mesmo, se bem
que falasse um pouco mais claramente do que os outros profetas, ensinou as
coisas reveladas de forma obscura e muitas vezes por parábolas,
especialmente quando se dirigia àqueles a quem ainda não era dado entender
o reino dos céus (veja-se Mateus, cap.XIII, 10, etc.). Mas àqueles a quem
era dado conhecer os mistérios dos céus, é claro que ensinou essas mesmas
coisas como verdades eternas e não as prescreveu como leis, e por isso os
libertou da servidão da lei ao mesmo tempo que a confirmava, estabelecia e
inscrevia no mais fundo dos seus corações. (Grifos meus. ESPINOSA, B.
2019, P.184; G III, 65).

167
ESPINOSA, B. 2019, P. 223; G III, 103.
168
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 138; G III, 21.
196

O que este trecho revela é, simplesmente, que Cristo agiu também como profeta. Ou
seja: não satisfeito em dar ensinamentos como um legislador ou príncipe, no tom exigido pela
lei, admite-se que até mesmo se comunicou obscuramente, por meio de parábolas, quando
necessário. Isto ainda não faz vir abaixo a distinção entre Moisés e Cristo, mas a complica: o
que parece realmente distingui-los não é bem a exterioridade de um e a interioridade de outro,
mas a capacidade do Cristo de, no paradigma da interioridade, assumir as feições ou mesmo
as exigências do paradigma contrário. O Cristo, dada a sua natureza mesma de contato
imediato com Deus, é antes de tudo, no spinozismo, uma figura plástica, capaz de adaptar-se
às necessidades de seus interlocutores. Não parece, então, conforme vinha sustentando Jelles,
que o Cristo é simplesmente a figura da interioridade e, mais ainda, que a salvação pela fé e a
consequente recusa da exterioridade que ela engendra possa ser descartada tão rapidamente.
Mais: o corpo de Cristo está longe de ser uma síntese. A imagem que resulta da análise
destes trechos é, antes, a de um corpo internamente fraturado, que assume em seu interior
teologias-políticas não apenas distintas, mas mesmo opostas. Assim, talvez Spinoza não seja
um criptocristão; a não ser que estejamos dispostos a classificar esta estranha imagem que
constrói do Cristo de cristianismo. Esta classificação só seria admitida se pudéssemos pensar
uma espécie de elogio do Cristo como figura disruptiva, que guarda em si uma ambiguidade e
uma possibilidade de adaptação a contextos diversos. Em todo o caso, e é isto que nos
importa aqui, não se trata do mesmo gênero de cristologia que encontramos em Jelles.

A hipótese acerca da plasticidade do Cristo parece se sustentar se pensarmos na


especificidade de sua comunicação com Deus, a qual, como evidenciam os trechos, foi a de
uma espécie de revelação adequada, de compreensão clara e distinta de objetos inacessíveis
pela razão comum. Segundo Jean Lacroix169, é isto que torna o Cristo o ponto que une as duas
concepções de salvação que parecem conviver de modo tenso no spinozismo: a via filosófica,
defendida na Ética, e a via religiosa, isto é, da obediência, apresentada no TTP. Só mesmo o
Cristo compreendeu adequadamente que a obediência é um caminho para a salvação tanto
quanto o exercício do conhecimento de terceiro gênero170; e, portanto, interioridade e

169
LACROIX, J. Spinoza et le problème du salut. Paris : PUF, 1970. P. 103, 109-110.
170
A razão não ensina por si só que a obediência é uma via possível para a salvação: somente o testemunho da
Escritura o confirma. Pode-se supor, então, que fora este o conhecimento do Cristo, a revelação adequada que
obteve. Conforme o que Spinoza afirma na nota XXXI: “Isto é, que para a salvação ou beatitude seja suficiente
abraçar esses decretos divinos como regras ou mandamentos, e que não é necessário concebê-los como verdades
eternas, não é a razão mas a revelação que o pode ensinar, como se vê pelo que se demonstrou no capítulo IV.”
ESPINOSA, B. 2019, P. 319; G III, 263.
197

exterioridade convivem nele. Estamos de acordo, é certo, que o Cristo é esta figura múltipla
que guarda em si diversas possibilidades de salvação – mas será que, pelo mesmo argumento,
não poderíamos dizer que, ao invés de ser um signo da síntese do sistema, o Cristo não é
justamente o oposto, isto é, a encarnação mesma de sua desagregação? Não é apenas por
uma exigência metodológica por supressão das contradições que, com o olhar enviesado,
tentamos impor ao Cristo este papel unificador? Talvez uma nova postura metodológica,
neste momento, seja capaz de render conclusões mais interessantes: ao invés de dar ao Cristo
uma função apaziguadora, ao contrário, poderíamos utilizá-lo para multiplicar as contradições
até seu paroxismo. Passaríamos a nos perguntar, a partir de então, quais são as implicações
teológico-políticas da aceitação dessa fratura que é a do Cristo, procurando manter a
oposição entre interioridade e exterioridade como um par produtivo a partir do qual tais
conclusões possam emergir.

Desvio para a parábola

A preocupação com o destino da mensagem teológica, que, no spinozismo, surge


modificado como o tema da adaptação à compreensão do vulgo (ad captum vulgi loqui),
definitivamente não é uma questão interna à sua filosofia, mas uma inquietação anterior,
presente já nos evangelistas. No que se refere ao tratamento da parábola em Mateus, seja em
sua introdução, seja como enunciado conclusivo, a delimitação do público-alvo faz-se
presente: a parábola do semeador, por exemplo, é dirigida às multidões incluindo os
discípulos, os quais, num momento posterior, exigem de Jesus a razão do emprego da forma
parabólica tanto quanto sua explicação suplementar171. O mesmo quanto às parábolas do trigo
e do joio, do grão de mostarda e do fermento: “Todas essas coisas disse Jesus, em parábolas,
às multidões, e sem [ser por] parábola nada lhes dizia [...]”172. Depois do primeiro ciclo de
parábolas em Mateus 13, com a saída da multidão, Jesus se concentra em explicar o sentido
da parábola do joio e do trigo apenas aos discípulos, complementando seu ensinamento
através de um acréscimo de mais três parábolas: a do tesouro, a da pérola e a da rede. Uma
estrutura muito próxima é encontrada em Marcos, em que Jesus também propõe a divisão

171
Mt 13, 2-3: “E reuniram-se em direção a ele muitas multidões, de tal forma que, subindo para um barco, se
sentou e toda a multidão ficou de pé na praia. E disse-lhes muitas coisas, falando em parábolas [...]” (Bíblia.
2017b, P. 102) e Mt 13, 10-11: “E aproximando-se dele os discípulos disseram-lhe: ‘Por que razão lhes fala em
parábolas?’. Ele, respondendo, disse-lhes: ‘Porque a vós foi dado a conhecer os mistérios do reino dos céus; a
eles não foi dado’”. (Bíblia. 2017, P. 102).
172
Grifo meu. Bíblia. 2017, P. 104; Mt 13, 34.
198

entre pregação exotérica e ensinamento esotérico: “Com muitas parábolas como essas,
pregava-lhes a palavra, conforme eram capazes de compreender. Sem parábolas não lhes
falava; porém em particular explicava aos discípulos”173. Embora seja complicado estabelecer
alianças entre os discursos parabólicos de Lucas e os de Mateus e Marcos – estes últimos
dotados de estrutura expositiva particularmente similar –, é verdade que também nele um
questionamento sobre a função e o destino das parábolas surge: “Pedro disse-lhe: ‘Senhor, é
para nós que dizes essa parábola, ou é para todos?’” (Lc 12, 41). De todo modo, não é
simples estabelecer decisivamente que as parábolas se dirigem apenas à multidão
não-iniciada, uma vez que, nestes exemplos, seus interlocutores e suas funções oscilam.

Segundo Roland Barthes174, a parábola é uma variação do exemplum tal como descrito
pelos antigos. O exemplum procede “de um particular a outro particular pelo elo implícito do
geral”175. É como um argumento por analogia, que insiste nas semelhanças entre dois objetos
para fins persuasivos. De caráter metafórico e paradigmático, pode assumir formas variadas:
“uma palavra, um fato, um conjunto de fatos e a narração desses fatos”176 e subdivide-se em
real ou fictício. No interior da variação ficcional, a parábola constitui uma espécie de
comparação curta, por oposição à fábula, que relata um conjunto de ações. Observamos
diversas destas propriedades nas parábolas cristológicas: o componente metafórico, cujas
imagens simples e rurais – a semente, o semeador, o trigo, o joio, o grão de mostarda, a terra.
etc – se articulam em prol de uma mensagem edificante de caráter universalizável. Além das
imagens, há uma narrativa construída com elementos vagos e inventados, personagens
ficcionais de uma breve história. Da mesma forma, a relação de semelhança é insistentemente
repetida na fórmula de algumas parábolas de Jesus, sobretudo aquelas que versam sobre o
reino dos céus: “Assemelha-se o reino dos céus a...”177, “O reino dos céus é semelhante a...”178
, “semelhante é o reino dos céus...”179 e “É como...”180.

A parábola, então, é uma espécie de discurso duplo, que emprega fórmulas


tradicionais para atingir seus objetivos. Como justificar, porém, seu uso? Outros meios

173
Bíblia. 2017, P. 174; Mc 4, 33-34.
174
BARTHES, R. “A antiga retórica”. In: BARTHES, R. 2001, P. 55-56.
175
Ibid.
176
BARTHES, R. 2001, P. 55.
177
Bíblia. 2017, P. 103; Mt 13, 24.
178
Ibid; Mt 13, 31.
179
Bíblia. 2017, P. 104; Mt 13, 44.
180
Bíblia. 2017, P. 173; Mc 4, 31.
199

retóricos não seriam mais eficientes para transmitir o Verbo divino? Jesus justifica o uso das
parábolas para as multidões afirmando que a elas não foi dado conhecer o mistério do reino
dos céus – “a vós é dado conhecer o mistério do reino de Deus; mas, para os que estão de
fora, tudo é feito em parábolas”181, recuperando nisto o profeta Isaías: “olhando, olhem e não
vejam; e ouvindo, ouçam e não compreendam,/não vão eles converter-se e [tudo] lhes seja
perdoado”182. Mateus acrescenta que o uso das parábolas tem a ver com o cumprimento da
profecia de Isaías, que proclama: “abrirei em parábolas a minha boca/e proclamarei coisas
ocultas desde a criação do mundo”183. A parábola corresponde, em parte, à obediência a uma
autoridade outrora estabelecida. Além disso, há algo sobre a manutenção de seu mistério.
Como testemunham os discípulos, de fato o conteúdo da parábola é de difícil acesso, pois
nem mesmo eles foram capazes de absorvê-lo, exigindo uma explicação suplementar lançada
apenas em contexto fechado. Assim, talvez seja necessário buscar a razão de ser da parábola
menos numa tentativa de abertura de diálogo e mais na construção de um mistério, o qual
poderá ser útil para conquistar admiração e tocar o ânimo das multidões intrigadas.

Persigamos as aparições da parábola nos textos de Spinoza. Em carta a Blyenbergh184,


aponta que a parábola é, ao lado das leis, um recurso retórico dos profetas para transmitir
Deus ao vulgo185. Os profetas comunicaram ao povo sob a forma de leis, ou seja, como meios
para adquirir a salvação, regras de vida que apenas derivam de Deus tomado como causa
imanente, descrevendo-o como um legislador supremo que distribui prêmios e punições por
sua livre vontade. A linguagem da lei e da parábola, que toma Deus como entidade
antropomórfica, que exprime sentimentos e que é dotado de uma vontade própria, à
semelhança da vontade humana, é mais acessível à compreensão do vulgo do que tomar a
salvação como o próprio amor a Deus e a prática da virtude que este amor engendra, cujo
prêmio não é nada além da própria virtude.

Há duas ocorrências da expressão parábola nesta carta: “[...] e, pela mesma razão, os
profetas forjaram parábolas [parabolas] [...] ”186 e “adaptaram sua linguagem a essa história

181
Bíblia. 2017, P. 172; Mc 4, 11.
182
Ibid. Mc 4, 12.
183
Bíblia. 2017, P. 104; Mt 13, 35.
184
Carta 19.
185
G IV, 92-93.
186
SPINOZA, B. 2014b, P. 108; G IV, 93.
200

ou parábola [parabolam], de preferência à verdade [...]”187. As expressões surgem como


introdução e conclusão de um trecho em que é descrito o comportamento dos profetas em
relação ao ensinamento salvífico: parece que todo o esforço profético, seu modo de proceder
particular, constitui ele mesmo uma espécie de parábola. Quer dizer, o ato de forjar para Deus
uma imagem antropomórfica, caracterizá-lo como rei ou legislador que distribui a salvação
ou perdição como recompensa ou castigo, e que detém, além disso, sentimentos para com os
homens, é já em si uma parábola. Veja-se que, neste caso, a parábola profética não é uma
narrativa ficcional singular entre outras, mas sim a estrutura básica da comunicação dos
profetas com o vulgo, seu método de exposição e estratégia retórica como um todo: o qual
deriva, em última análise, da relação epistêmica que nutrem com Deus. Pode ser que haja
narração aqui, mas sem dúvida ela é uma espécie de narrativa geral sobre o caráter de Deus
que se confunde com sua própria compreensão e consequente expressão por parte dos
profetas, muito além de invencionismo tático empregado em situações específicas. Não
parece demasiado concluir que o conhecimento dos profetas, seu status epistêmico, é, ele
mesmo, parabólico.

Em resposta, Blyenbergh188 discorda de Spinoza por acreditar que isto engendraria um


sério problema para uma definição perfeita de divindade. Inicia-se, entre os dois, uma disputa
sobre o conceito de parábola, a qual mobilizará, como fundo, a própria concepção particular
de divindade mantida por cada um, tanto quanto certa compreensão do caráter do texto
bíblico como um todo. Subjacente à crítica de Blyenbergh está a ideia de que, da forma como
Spinoza a descreveu, a parábola é uma espécie de discurso falso, errôneo, imperfeito, que
desvirtuaria e mesmo travestiria o sentido exato do Verbo divino comunicado aos profetas189.
Para retomar uma discussão que iniciamos neste capítulo, Blyenbergh acusa Spinoza de dar à
parábola os contornos de uma impostura. Se for assim, Deus deveria ser reputado como uma
figura impostora, a causa mesma do erro dos profetas, uma vez que teria querido partilhar
uma mensagem falsificada: neste caso, Deus é claramente descrito como uma entidade dotada
de vontade à semelhança humana, a qual simplesmente não pode ser desobedecida. É absurdo
pensar que Deus tenha desejado algo contra a sua própria vontade; e contra a vontade divina
nada pode se dar. Ainda, supondo, novamente contra os princípios de Spinoza, que Deus teria

187
SPINOZA, B. 2014b, P. 109; Ibid.
188
Carta 20.
189
G IV, 118b.
201

um fim com este ensinamento, é contraditório, para Blyenbergh, supor que este fim seja
induzir os homens ao erro: em primeiro lugar porque se trata de um Deus perfeito, em
segundo pois ele não teria desejado que seu Verbo fosse desvirtuado parabolicamente.
Positivamente, Blyenbergh acredita que a Sagrada Escritura conserva em si uma “verdade
infalível e divina”190, de modo que seria necessário tomar os discursos parabólicos
literalmente, ou seja, como narrativas reais, sob pena de introduzir fraquezas e contradições
em Deus. Deus é perfeito o suficiente para determinar o melhor método para se comunicar
com o vulgo, de acordo com sua compreensão, sem necessitar introduzir falsificações em seu
Verbo191.

Contra os teólogos vulgares – cuja opinião Blyenbergh partilha –, Spinoza concede à


Escritura tanto ou mais autoridade, respeitando seus limites e sua separação fundamental em
relação à filosofia. Assim, critica aqueles que se apegam “à letra e ao sentido exterior”192,
falhando em reconhecer que a Escritura guarda em si estratégias retóricas como a parábola.
O erro de Blyenbergh, além de sua concepção inspirada de Escritura, é atribuir à parábola um
sentido muito afastado do comum. A parábola não é um desvio da verdade, uma impostura,
mas uma maneira de expressão que a reveste de signos mais acessíveis. Para responder à
objeção de Blyenbergh, Spinoza mobiliza uma distinção entre adaptação e falsidade. Adaptar
uma mensagem a diferentes modos de perceber e a contextos diversos não é torná-la uma
mentira, mas manter seu núcleo essencial fixo e variar outros aspectos exteriores que
facilitam sua apreensão. O exemplo de parábola aduzido por Spinoza, neste momento, é 1
Reis 22, 19: "Miquéias retrucou: ‘Escuta a palavra de Iahweh: Eu vi Iahweh assentado sobre
seu trono/todo exército do céu estava diante dele, à sua direita e à sua esquerda’”193. O profeta
Miquéias pretendia comunicar a Acab, a mando de Deus, que este seria enganado, tendo
usado, para tanto, a imagem de um Deus antropomórfico: Deus conversa à maneira humana,
possui um corpo limitado espacialmente para poder sentar-se, é figurado como um rei
todo-poderoso em seu trono, dotado de um exército etc. Ao contrário de Blyenbergh, que crê
que a Escritura têm por fim ensinar as sutis especulações dos teólogos – daí sua
argumentação envolver certa concepção de vontade divina, de Deus como ser soberanamente

190
SPINOZA, B. 2014b, P. 124; G IV, 118b.
191
G IV, 120b.
192
SPINOZA, B. 2014b, P. 136; G IV, 132.
193
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 504.
202

perfeito e um recurso à causalidade final –, Spinoza sustenta que seu único fim é incutir o
amor a Deus no povo, e que, para tanto, a parábola e demais recursos estilísticos que
descrevem Deus antropomorficamente são meios eficientes. A oscilação entre classificar a
parábola ora como discurso obscuro194, ora como claro195, explica-se a partir de qual ponto de
vista tomamos: aos olhos do filósofo, a parábola é sempre obscura e, como quer Blyenbergh,
travestida, impostora; para aquele que compreende corretamente o teor da Escritura, seus
meios e seu fim, ela é um instrumento linguístico para fins de clareza. Blyenbergh, além de
não possuir um conhecimento correto da verdadeira filosofia, não é capaz de distinguir
adequadamente entre os dois livros: o da Natureza, por um lado, o da Escritura, por outro,
agindo dogmaticamente como aquele que domestica o segundo livro ao primeiro.

Em termos da compreensão spinozista da parábola, podemos deduzir, a partir desta


discussão, que ela permanece envolvendo algum grau de narração – o profeta conta ao rei
como viu Deus –, desta vez não uma narração geral sobre o caráter de Deus, como
anteriormente, mas uma história específica com fins de orientação moral e política. O profeta
teve uma visão, a qual partilha com seu interlocutor, de modo que seu conteúdo e
endereçamento obedecem às funções específicas daquela circunstância histórica singular. É,
portanto, particularizada. Está claro que a parábola veterotestamentária, cujo exemplo é
aduzido por Spinoza, parece investir menos na analogia e na ficção de caráter geral com fim
edificante e universalizável do que as parábolas cristológicas que mencionamos brevemente
acima.

No TTP, a primeira menção às parábolas ocorre justamente no capítulo sobre a


profecia:

É, além disso, evidente a razão por que os profetas perceberam e ensinaram quase
tudo por parábolas e enigmas e exprimiram sob forma corpórea tudo o que é
espiritual: é que, assim, as coisas adequam-se melhor à natureza da imaginação. E já
não é para admirar o fato de as Escrituras ou os profetas falarem tão imprópria e
obscuramente do espírito ou da mente de Deus, como nos Números, cap. XI, 17, nos
Reis, liv. I, cap. XXII, 2, etc. Ou de Miqueias ver Deus sentado, enquanto Daniel o vê
como um ancião vestido de branco e Ezequiel como uma chama; de os discípulos de
Cristo terem visto o espírito santo como uma pomba que descia e os apóstolos o
verem como línguas de fogo; ou, finalmente, de Paulo, antes da conversão, ter visto
uma grande luz. Tudo isso está, com efeito, plenamente de acordo com as

194
G III, 28-29. Analisaremos a obscuridade das parábolas em seguida.
195
“E era uma expressão suficientemente clara daquilo que, em nome de Deus, o profeta devia fazer conhecer
nessa ocasião (não se tratando de ensinar as sutilezas dogmáticas da teologia).” Cf. SPINOZA, B. 2014b, P. 137;
G IV, 132.
203

imaginações vulgares sobre Deus e os espíritos. (ESPINOSA, B. 2019, P. 144; G III,


28-29).

Observa-se que o recurso a parábolas e demais artifícios de expressão que têm origem
na imaginação é distribuído igualmente entre profetas e apóstolos, entre o Antigo e o Novo
Testamento. O componente da imaginação é novo em relação à correspondência com
Blyenbergh: parece acrescentar uma definição técnica ao que se pretendia anteriormente
exprimir. Com a imaginação, Spinoza traz também a associação com o corpo, quer dizer, com
a maneira específica de conhecer que diz mais sobre os preconceitos e estados particulares do
profeta/apóstolo/narrador do que sobre a verdade da coisa. Isto confirma nosso diagnóstico
anterior: a parábola é não só um mecanismo expressivo, mas um meio de pensamento. A
parábola é o paradigma epistêmico principalmente dos profetas, pois pensar parabolicamente
é pensar imaginativamente. Os profetas falavam em parábolas e enigmas pois assim
conheceram Deus: sem qualquer má-fé. Do ponto de vista dos ganhos em relação à
correspondência, o trecho traz uma nota característica nova: o componente da obscuridade. A
parábola é uma espécie de enigma, um falar impróprio, cujo fim talvez seja menos tornar
acessível um conteúdo e mais tocar a imaginação de maneira mais potente. Permanecer no
mistério, portanto.

Em seguida, o termo parábola, ainda no TTP, surge para classificar “esta história ou
parábola [parabolam] do primeiro homem”196. Spinoza refere-se à narrativa disposta em
Gênesis 2-3 acerca de Adão, Eva e o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Segundo ele, esta parábola tem por objetivo ensinar que não se deve procurar o bem por ser
oposto ao mal, mas sim por ser o bem pura e simplesmente. Ou seja, Deus teria ensinado a
Adão a amar o bem por ele mesmo, agindo de ânimo livre e perseverante. Este princípio
básico, que concorda inteiramente com a lei divina natural que se pretende expor no capítulo
em questão, poderia servir de base para a leitura de toda a parábola do primeiro homem, mas
Spinoza hesita em fazê-lo. Seja por não estar certo de que este seja o objetivo do autor da
parábola, seja por conta da discussão em torno de se esta narrativa deve ser considerada como
uma parábola ou como “uma narração pura e simples”197. Com isto, parece ter em mente
aqueles que investem a narrativa do Gênesis de realismo, ou seja, que tomam a Escritura em
seu aspecto literal. Em consonância com a disputa realismo versus antirrealismo das

196
ESPINOSA, B. 2019, P. 185; G III, 66.
197
Ibid.
204

narrativas bíblicas, Spinoza refere-se ao livro de Jó198, sobre o qual há uma discussão em
torno de sua autoria e veracidade. Para alguns, trata-se de uma história verdadeira; para
outros, não passa de uma parábola escrita pelo próprio Moisés. Recupera-se, aqui, o sentido
de narrativa inventada, não-literal, em marcha na classificação da parábola do primeiro
homem no Gênesis. Assim, termina por revelar mais notas características de sua compreensão
da parábola: uma narrativa ficcional, quer dizer, inventada, que tem por fim comunicar
obscuramente um ensinamento adaptado às condições específicas do corpo e da imaginação
do narrador.

Ainda quanto às passagens veterotestamentárias de teor parabólico, Spinoza menciona


os salmos XV e XXIV199. Segundo sua leitura, os salmos em questão visam partilhar
ensinamentos morais, quer dizer, estabelecer os meios da beatitude. Seu objetivo, neste
contexto argumentativo, é distinguir entre o que é imprescindível à salvação – a prática da
justiça – e o que lhe é exterior – as cerimônias que não visam se não bem estar material.
Apesar de tratarem da beatitude, estes salmos têm por peculiaridade adotarem a forma da
parábola: lemos, no primeiro, “Iahweh, quem pode hospedar-se em tua tenda?/Quem pode
habitar em teu monte sagrado?”200 e, no segundo, “Quem pode subir à montanha de
Iahweh?/Quem pode ficar de pé no seu lugar santo?”201, além de, mais a frente no mesmo
salmo, “Quem é este rei da glória?/É Iahweh, o forte e valente,/Iahweh, o valente das
guerras”202. Estas passagens devem ser lidas metaforicamente: “[...] por monte de Deus, por
tendas divinas e por ocupação destas é evidente que se entende aqui a beatitude e a
tranquilidade de ânimo, e não o monte de Jerusalém ou o tabernáculo de Moisés”203.
Observemos as descrições de Deus: é um rei forte, valente e glorioso – todas qualidades
humanas ampliadas excessivamente. Os salmos, apesar de não apresentarem uma narrativa,
mantém o recurso parabólico a elementos imaginários, fictícios, inventados, neste caso não
para versar sobre ou endereçar-se a um indivíduo particular, mas, como nas parábolas
cristológicas, a fim de fornecer um ensinamento de gênero universal.

198
G III, 144.
199
G III, 71-72.
200
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 875.
201
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 885.
202
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 886.
203
ESPINOSA, B. 2019, P. 192; G III, 72.
205

A esta altura, podemos já resumir as principais propriedades da parábola segundo


Spinoza. Por um lado, a parábola é a própria forma de imaginar característica dos profetas.
Pensar parabolicamente é construir uma narrativa antropomórfica geral em torno de Deus:
dotado de uma natureza humana exagerada à máxima potência, cujo modo de ação é a do
rei-juiz e legislador: o decreto, o mandamento e a lei. Por outro, trata-se de um discurso
particular emitido na maior parte dos casos pelos profetas, abundantes sobretudo no Antigo
Testamento. Os profetas apreenderam Deus imaginativamente e, portanto, assim o
transmitiram ao povo. Dotada de uma estrutura narrativa inventada, quer dizer, ficcional, sua
consequência é descrever Deus com qualidades antropomórficas, no interior de uma lógica de
recompensas e punições – sob o domínio da lei. Seu fim é, em parte, adaptar-se ao modo de
compreender do vulgo e ensinar mais claramente o princípio básico da Escritura, que é amar
a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo, jamais arriscando-se nas
especulações teológicas. Ainda, a parábola, por tocar a imaginação, é por vezes enigmática,
misteriosa e obscura, de modo que, quando assim o é, trata-se menos de dialogar e mais de
tocar os ânimos e provocar a admiração do interlocutor. É facultado à parábola profética o
poder de dirigir-se apenas a um indivíduo particular – promovendo, assim, um decreto
singularizado – ou ao todo da humanidade – sendo, como no caso dos salmos acerca da
beatitude, um ensinamento de caráter universal. Não obedece obrigatoriamente a estrutura da
analogia e semelhança, mas é necessariamente um expediente do domínio metafórico.

Com isto resumimos a parábola profética – mas não ainda a parábola


cristológica-apostólica. Embora este talvez seja o meio de comunicação preferido do Cristo
com a multidão, a referência a ela é tão escassa, por parte de Spinoza, que é quase como se
fosse o contrário, ou seja, como se, ao invés de suas abundantes e recorrentes parábolas, o
Cristo escolhesse majoritariamente se comunicar a partir do modelo do Sermão da Montanha,
proferindo verdades eternas. A parábola é a única concessão spinozista aos aspectos míticos
do Cristo204 – que, lembremos, operava milagres e exorcismos!205 –, e mesmo assim uma
concessão ainda especialmente tímida e reservada. Assim, parece claro que Spinoza não dá a

204
Pode ser que Spinoza se integre à linha interpretativa de orientação pré-iluminista e cientificista neste
aspecto. Conforme identifica Horsley (2004, P. 13), estes leitores recusam o que há de fantástico no
procedimento cristológico em prol de uma suposta autenticidade secular. Tentaremos mostrar, adiante, que,
insistindo na fratura introduzida pelo discurso parabólico, é possível matizar a leitura spinozista tanto do Cristo
quanto dos apóstolos – pois estes, diferentemente do Cristo, são classificados por Spinoza como profetas.
205
Mc 1, 23-27; 32-34; 39.
206

devida seriedade ao tema da parábola tal como ela surge nos evangelhos sinópticos. A única
passagem em que se refere ao uso das parábolas por parte do Cristo, em todo o TTP, é aquela
a que já aludimos anteriormente: se o Cristo eventualmente recorreu a parábolas, foi por
causa da ignorância do povo, e o fez apenas à multidão inculta, jamais aos apóstolos, aos
quais procurava sempre desvelar seu sentido oculto e conversar conforme a lógica das
verdades eternas. No trecho, Spinoza procura ainda distinguir a parábola cristológica da
parábola profética: Cristo falava “um pouco mais claramente do que os outros profetas”206, e,
se recorreu às parábolas, não foi tão inocentemente quanto eles. Os profetas assim se
comunicavam porque assim compreendiam: sabemos que o Cristo, ao contrário, conheceu
Deus de mente a mente e não parabolicamente. Portanto, o recurso a parábolas era, de sua
parte, deliberado, uma vez que estava numa condição epistemicamente privilegiada. Talvez
se possa retirar desta expressão mais clara o fim necessariamente edificante de suas
parábolas, o qual nem sempre está presente na parábola profética. Muitas vezes, como no
caso do exemplo de Miquéias, a parábola tinha por fim uma previsão, um aviso simples e
particular de Deus em relação a um homem singular, enfrentando uma situação singular. A
parábola cristológica procura, ao invés disso, através de uma narrativa mais desenvolvida,
transmitir verdades morais de caráter universal. Talvez seja por isso que, para ela, a dúvida
sobre seu realismo ou antirrealismo sequer se instaure: a parábola do semeador, da semente
que cresce por si só ou do grão de mostarda são claramente ficções relativas a personagens
enfrentando situações gerais. Esta suposta maior clareza de objetivos e de expressão, porém,
contrasta com o fato de os discípulos de Jesus frequentemente lhe exigirem explicações
posteriores: à multidão, no entanto, resta apenas o mistério, que encoraja a admiração.

Se Cristo fazia-se às vezes de Deus, sendo sua própria boca207, os apóstolos agiam
como doutores que ensinavam sua doutrina à multidão. Adotaram, por sua vez, formas de
argumentar particulares, tendo-se especializado no gênero epistolar. No interior destas cartas,
empregavam também parábolas. Embora sua postura para com as parábolas cristológicas
beire o silêncio, Spinoza dedica um capítulo inteiro do TTP ao exame da estilística dos
apóstolos, concentrando-se num em particular: Paulo. Analisar seu modo de proceder pode
nos beneficiar de um conhecimento exato da distinção entre as parábolas proféticas e as

206
ESPINOSA, B. 2019, P. 184; G III, 65.
207
G III, 64.
207

cristológico-apóstolicas, assim como nos munir de instrumentos para pensar as implicações


do ensinamento destes últimos para a política e a sociabilidade em geral.

Paulo contemporâneo

Numa tentativa de recuperar a forma da militância do apóstolo Paulo para fins


políticos contemporâneos e laicizados, Alain Badiou, num livro de 1997208, constata que só
mesmo um universal (a singularidade universal proveniente do acontecimento) para combater
outro (a universalidade do sujeito capitalista, apenas ameaçada pelo projeto, ainda que
“pervertido e ensanguentado”209, de Lenin e Mao). Contra a pluralidade multicultural, a
ideologia das identidades não-universalizáveis que facilmente encaminha das fragmentações
minoritárias – “raciais, religiosas, nacionais ou sexuais”210 – à captura eficiente pelo universal
monetário, somente uma nova verdade incapturável pode emergir. Não que seja necessário
reabilitar o sujeito cristão paulino, mas, ao menos, a forma de seu ensinamento, o qual se
estrutura numa referência perpétua a um acontecimento fundador: a ressurreição ou o
acontecimento-Cristo. O problema paulino é, portanto, segundo Badiou, fundar um sujeito
que não se identifique a quaisquer particularismos identitários (logo, universal) cuja lei
invocada seja sem fundamento.211 A operação do acontecimento permitirá substituir a ideia de
um fundo estanque por um processo, uma vez que o sujeito não existe previamente ao
acontecimento cristológico, mas se faz apenas em referência incessante a ele. Ainda, a
verdade anunciada por este sujeito que se constitui pós-acontecimento será de caráter
subjetivo, de modo que não poderá se traduzir enquanto Lei. Por fim, a estrutura da
singularidade universal exige uma fidelidade absoluta ao processo do acontecimento, tanto
quanto uma total indiferença às opiniões particulares que podem surgir: a verdade é imune às
circunstâncias.212

Algumas notas características desta singularidade universal paulina se depreendem da


própria práxis de sua militância. Do ponto de vista de sua biografia, é notável que sua

208
Cuja tradução foi publicada no Brasil em 2009. Ver BADIOU, A. São Paulo. A fundação do universalismo.
Tradução de Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2009.
209
BADIOU, A. 2009, P. 14.
210
Ibid.
211
BADIOU, A. 2009, P. 21.
212
BADIOU, A. 2009, P. 22.
208

“conversão”213 se operou para além do convencional. Não houve uma figura mediadora que
lhe incutiu o Evangelho, não houve uma condução por uma entidade exterior. Paulo funda-se
a si próprio como apóstolo porque foi tomado pelo acontecimento da ressurreição do Cristo
que também fez nele acontecer sua própria ressurreição – produção? – enquanto apóstolo: por
isso parte apenas de sua própria fé incondicionada, fazendo de um evento pessoal a marca da
impessoalidade de seu ensinamento.214 O período de quatorze anos da peregrinação paulina,
tanto quanto os territórios que escolheu visitar, revelam uma prática geográfica de
descentramento, a qual é efeito de sua universalidade.215 Em suas intervenções epistolares,
dirigidas a um conjunto de fiéis ocupando um território, toma-os como representantes da
totalidade da região. De um pequeno grupo de cristãos a todos os cidadãos, de cidadãos para
a humanidade inteira, é a operação da universalidade que se impõe.216 As escolhas das
imagens que permeiam sua retórica, enfim, à diferença da paisagem rural evocada nas
parábolas do Cristo, é urbana e cosmopolita, reivindicando, mais uma vez, este lugar amplo
de cidadão do mundo.217 É, segundo Badiou, o exercício político em sua forma evidente:

Paulo jamais perde de vista, por mais longe que esteja, os núcleos de fiéis cuja
criação ele estimulou. Suas epístolas são simplesmente intervenções na vida desses
núcleos e têm tudo da paixão política. Luta contra as divisões internas, evocação de
princípios fundamentais, renovação da confiança nos dirigentes locais, análises de
questões litigiosas, exigência imperativa de uma ação de proselitismo sustentada,
organização das finanças... Nada falta daquilo que um ativista de qualquer causa
organizada pode reconhecer como as preocupações e as veemências da intervenção
coletiva. (BADIOU, A. 2009, P. 30)

A militância paulina, porém, não se deu sem desvios, querelas e obstáculos: ao


contrário, envolveu-se em disputas em relação à correta compreensão da lei. Qual a posição
de Paulo em torno da polêmica a respeito da observação dos ritos tal como estabelecida na
Assembleia de Jerusalém, particularmente em torno do problema da circuncisão?218 Segundo
Badiou, a posição judaico-cristã é dialética: o acontecimento-Cristo não tem poder de anular
o rito antigo, de tornar supérflua a Lei, mas de enriquecê-la e reafirmá-la. A novidade vem
como índice confirmatório da tradição. A continuidade entre o Antigo e o Novo implica,
portanto, a necessidade dos ritos. Já Paulo insiste, em contrapartida, na total indiferença entre

213
Badiou questionará se o uso da expressão “conversão” é adequado para tratar do caso paulino, considerando
as razões que seguem. Ver BADIOU, A. 2009, P. 26.
214
BADIOU, A. 2009, P. 27-28.
215
BADIOU, A. 2009, P. 28.
216
BADIOU, A. 2009, P. 29.
217
BADIOU, A. 2009, P. 30.
218
BADIOU, A. 2009, P. 32-33.
209

as posições pró e contra a circuncisão. O enunciado minimalista de seu ensinamento se


concentrava no acontecimento da ressurreição e em suas implicações: ressurreição de Cristo,
mas também de todo aquele que o aceitasse. A ressurreição não teria por consequência a
perseguição ao discurso tradicional judaico: “A circuncisão não é nada; e o prepúcio nada é”
219
. A constituição de uma subjetividade inédita implica a total desativação dos signos
anteriores em direção ao estabelecimento de uma nova verdade que modifica o próprio
sentido e necessidade destes signos. Não se pode facilmente inscrever a posição paulina como
herética, uma vez que não se trata, para ele, de demonstrar a inutilidade da circuncisão como
ato, mas sim sua total perda de sentido e inoperosidade, para recuperar um termo
agambeniano220, no interior da nova realidade instituída. Neste aspecto, é a própria Lei que se
torna inoperosa, tomada aqui por seu exemplo particular da circuncisão.

Em sua práxis, Paulo parece se distinguir tanto do judeu quanto do grego, tomados,
por ele, não como um povo existente, tampouco como religião institucionalizada, mas sim
enquanto “disposições subjetivas”221. Para dar conta delas, Badiou elabora uma teoria dos
discursos222. O sujeito-judeu tem como nota característica central de seu discurso o recurso ao
signo. É, portanto, a figura de autoridade do profeta que melhor o representa. Há uma
conexão intrínseca com a tradição e, naturalmente, com o império da Lei e das práticas já
estabelecidas. É o discurso da transcendência, daquilo que escapa à totalidade da natureza e
se impõe como exclusividade e exceção vocacional. Já o sujeito-grego é mais bem acolhido
pela figura do sábio ou do filósofo. Contra a transcendência da exceção judaica, a imanência
da totalização natural grega. A racionalidade da argumentação é seu principal recurso
retórico: o logos. Paulo projeta, então, uma associação de fundo entre os dois discursos: nos
dois casos, há dominação operando, quer dizer, a manutenção da figura do mestre.223 Que ela

219
1Cor 7, 19. Bíblia. 2017, P. 236.
220
O tornar inoperoso é exatamente a definição do messiânico para Agamben, que também dedicou um livro à
análise política da figura paulina, embora com objetivos diversos daqueles de Badiou. Apesar de parecerem
concordar neste aspecto da desativação da lei, suas posturas de fundo são radicalmente distintas, por razões a
serem esclarecidas ao fim desta seção. Em suma, Badiou deseja recuperar o sentido político da mensagem
paulina inutilizando seu caráter teológico, ao passo que para Agamben trata-se justamente de subverter o
teológico internamente – daí sua insistência no messiânico. Agamben dedica um rápido momento de crítica ao
dito “universalismo” paulino que Badiou pretende construir, questionando os limites de uma “produção do
Mesmo” (AGAMBEN, G. 2016, P. 68) em Paulo. Sobre a questão da inoperosidade, ver especificamente a
Quinta Jornada, cf. AGAMBEN. G. 2016. P. 113-117.
221
BADIOU, A. 2009, P. 52.
222
Ao longo de todo o capítulo 4 de seu livro sobre São Paulo.
223
BADIOU, A. 2009, P. 53.
210

implique, no primeiro caso, uma obediência à Lei e, no segundo, ao cosmos, evidencia que
nenhuma das duas pode se prestar como projeto de universalidade. Neste aspecto, avança
Badiou, o discurso cristão é totalmente ilegal, fundado não pela autoridade do signo,
tampouco por aquela da totalidade, mas pela instabilidade inerente ao acontecimento.

A figura que emerge do discurso universalista cristão é a do apóstolo. De um apóstolo


particular que, à diferença dos demais, nada testemunhou – e, assim, não pode ser veículo de
nenhuma memória.224 Para justificar seu apostolado, sua referência é inteiramente subjetiva: a
experiência do acontecimento que tudo modificou. A referência à ressurreição como ponto de
instituição do Novo tem menos a ver com um evento histórico e mais com a operação que ele
determina, menos com história do que com graça. Esta operação não é outra senão a vitória
sobre a morte, realocada incessantemente ao seu caráter subjetivo: Cristo venceu a morte e
também nós, que o seguimos, a venceremos. Neste aspecto, o apostolado paulino não se apoia
na autoridade da revelação, nos signos, na letra ou na vivência, mas apenas em si próprio,
distinguindo-se do discurso profético. Por outro lado, o apóstolo não é aquele que conhece. O
discurso paulino é, assim, inteiramente antifilosófico. O conhecimento das verdades eternas
está à mesma distância da singularidade do acontecimento que o discurso apoiado na
autoridade da memória. Ambos se inserem na lógica do mestre, pois pretendem apoiar seus
respectivos discursos seja em garantias miraculosas, seja em argumentos. O puro
acontecimento não pode nada garantir porque nada lhe é anterior: a constituição do apóstolo e
do sujeito é fruto da possibilidade aberta pelo acontecimento-Cristo e não o contrário.

Enquanto o discurso do sábio pretende obter uma verdade, conhecer algo já dado, o
apóstolo visa instituir uma nova verdade, introduzir uma possibilidade e desativar o que já
está dado.225 Face à dinâmica do discurso paulino, o discurso filosófico só pode zombar: foi
exatamente esta a reação que obteve de seu público quando tentou pregar a ressurreição dos
mortos aos filósofos atenienses no Areópago, tal como relatado em Atos.226 Badiou faz
referência ainda a um quarto gênero discursivo, também diferente do cristão, que se

224
BADIOU, A. 2009, P. 55.
225
BADIOU, A. 2009, P. 56.
226
“Ouvindo eles [acerca da] ressurreição dos mortos, uns zombavam, mas outros disseram: “iremos te ouvir
sobre isto outra vez”. Dessa maneira Paulo saiu do meio deles. Contudo, alguns homens, aderindo a ele,
acreditaram, entre os quais Dionísio, o Areopagita; e uma mulher de nome Dâmaris; e outros com eles.” At 17,
32-34. Bíblia. 2017, P. 105.
211

caracteriza por insistir no inexprimível, denominado “discurso subjetivo da glorificação”227.


Trata-se de um discurso místico que pretende não dizer, mas simplesmente mostrar o milagre,
procurando convencer pela via do sobrenatural. O discurso da glorificação foi ensaiado, ao
lado do discurso grego, por Pascal, ao insistir na potência e mesmo necessidade das profecias
e dos milagres para o estabelecimento do cristianismo228. É um discurso do não-discurso,
porque se recusa a exprimir. Paulo também o recusa porque entende sua militância para além
do fascínio no incompreensível: é preciso declarar publicamente a potência do
acontecimento.

Qual é, afinal, o sujeito político construído pelo discurso apostólico-cristão, fundado


apenas no acontecimento? Será um sujeito internamente dividido: é uma condição da
universalidade que ele seja estruturado conforme um “não...mas”229. Não a carne – o império
da Lei –, tampouco o espírito – representado seja pelo pensamento da sabedoria, seja pelo do
inominável místico. É fácil determinar o afastamento deste sujeito daquilo que se conecta à
postura da carne: afinal, a Lei estanque, representada pelo discurso judaico não tanto em seu
conteúdo, mas em sua forma de obediência, é seu inimigo declarado. Ao mesmo tempo, o
sujeito cristão não negará por completo o espírito, mas instituirá um novo pensamento sobre
ele, não mais centrado no apaziguamento da sabedoria, mas no devir incessante entre o
abandono da lei e a instituição da graça do acontecimento. Neste aspecto, este novo sujeito
estará eternamente suspenso nesta divisão – nem carne, nem espírito – sem que jamais se
unifique posteriormente como pretendem unificar-se os sujeitos dos discursos filosófico e
místico. Há uma instabilidade constitutiva de sua identidade, uma negação da lei que é
rapidamente sucedida por uma aposta positiva numa nova possibilidade de situar-se no
mundo em referência ao acontecimento, um processo de vaivém sem fim que determina sua
singularidade universal. Resta definir se esta divisão poderá compor, com a operação do
acontecimento, uma alternativa à fragmentação identitária anteriormente referida que não seja
facilmente capturada pelo universalismo estável da Lei. O acontecimento é suficiente para
viabilizar uma crítica eficaz à estrutura de dominação imperial?

Spinoza também produziu um discurso sobre Paulo e lidou com questões que se
entrelaçam com aquelas de Badiou. Na verdade, analisou não apenas a figura de Paulo, mas a

227
BADIOU, A. 2009, P. 63.
228
BADIOU, A. 2009, P. 59.
229
BADIOU, A. 2009, P. 76.
212

do apóstolo em geral, embora seja notável sua preferência por ele. Além dele, examina
sucintamente João230 e Tiago231, o que quase nos autoriza a tornar intercambiáveis as
interpretações spinozistas para o apóstolo em geral e para Paulo em particular. No capítulo XI
do TTP, em que procura refletir sobre a especificidade e função do discurso apostólico,
declara já de início: “Ninguém que leia o Novo Testamento poderá pôr em dúvida que os
apóstolos foram profetas”232. A distinção entre duas vias de pregação remete ao próprio
Paulo: “Irmãos, se eu agora for encontrar convosco falando-vos em línguas, que vos
aproveitarei, a não ser que vos fale ou por revelação ou por conhecimento ou por profecia ou
por doutrina?”233.

Falar como um profeta, quer dizer, expor por revelação, é pregar a palavra através de
uma autoridade. A profecia inscreve-se no domínio da transmissão passiva da mensagem. O
profeta é um mediador no sentido de reproduzir aquilo que imagina ser a ordem de Deus sem
refletir sobre ela, valendo-se, para tanto, de recursos audiovisuais.234 Há também uma
particularidade na própria caracterização de Deus: o Deus dos profetas legisla e decreta,
impondo-se através de seu poder absoluto.235 Na profecia trata-se sobretudo de incutir
dogmas ao vulgo: e se, como vimos, há um gênero específico de parábola profética, pode-se
concluir que ela tem por finalidade não incitar à reflexão, mas incutir a obediência. Há um
vínculo não-dito entre imaginação – conhecimento estabelecido através da dinâmica corporal
– e autoridade que terá de ser investigado em mais detalhes quando formos analisar o Estado
hebreu236: o caso em que o discurso profético forneceu as bases de uma organização social
complexa. Profetas como Moisés – o mais excelente entre eles –, Jeremias e outros,
precisavam atestar a todo tempo a validade de seu discurso por meio de um signo
confirmatório exterior237. Por isso, a estrutura da revelação profética, seja ela oral ou escrita –

230
João é importante para que Spinoza elabore sua concepção de justiça e caridade, embora não faça uma análise
de sua metodologia expositiva, como o faz com Paulo. Uma citação de sua primeira epístola surge na epígrafe
do TTP, cuja função analisaremos no capítulo 5. Para as menções a João ao longo do TTP, ver G III, 171,
175-176.
231
Tiago é considerado à luz de sua posição a favor das obras na polêmica da salvação, posição esta que o pôs
em disputa direta com Paulo. Assim como João, interessa a Spinoza seu conteúdo doutrinário muito mais do que
seu estilo. Ver G III, 157, 175.
232
ESPINOSA, B. 2019, P. 279; G III, 151.
233
1Cor 14, 6-7; Bíblia. 2017, P. 256.
234
Spinoza aborda extensamente a noção de profecia e de profeta nos dois primeiros capítulos do TTP. Não é de
nosso interesse discutir estas questões neste momento: retornaremos a ela no capítulo seguinte.
235
G III, 152.
236
O que será feito no Capítulo 4 deste estudo.
237
G III, 151.
213

pois também se profetizou por meio de epístolas, como a de Elias a João – é a do decreto.
Paradigma da exterioridade, portanto.

À diferença do profeta, porém, o apóstolo não decreta, mas ensina. Aqui Spinoza
começa a se afastar sem retorno da perspectiva de Badiou, para quem o discurso apostólico
jamais poderia se assemelhar ao filosófico. O uso da razão torna aquele que ensina um
doutor, que prega não segundo a ordem de um terceiro, mas conforme seu próprio
discernimento.238 Neste caso, o apóstolo não é um mediador: muito embora possa comunicar
um ensinamento que recebeu do Cristo, não necessita atestar seu lugar privilegiado de
mensageiro a todo tempo, tampouco justificar sua metodologia própria. Analisando o estilo
das epístolas paulinas, Spinoza chama a atenção para as “expressões que denotam incerteza e
perplexidade”239, como em Rom 3, 28 – “pois consideramos ser...”240 e 8, 18 – “pois eu
considero que...”241, além do emprego recorrente da primeira pessoa. Ainda que sentenças que
atestem o mandamento divino surjam ao longo das epístolas, sua referência é apenas o
conteúdo da doutrina ensinada por Cristo na montanha, e não a uma ordem exteriormente
revelada por Deus. A metodologia expositiva dos apóstolos, consequência de sua
epistemologia própria, consiste em discutir, através do raciocínio, com seus interlocutores –
ao invés de apenas reproduzir passivamente um conteúdo que tomaram por ouvir dizer. Paulo
ensina por meio de argumentos e demonstrações, optando pela luz natural ao invés da
revelação:

Tanto a maneira de falar, como a maneira de discutir, dos apóstolos nas epístolas
indicam, com toda clareza, que elas não foram escritas por revelação e mandato
divino, mas apenas pelo seu próprio discernimento natural, e não contêm senão
advertências fraternas à mistura com uma delicadeza que é completamente alheia à
autoridade dos profetas, tal como aquele pedido de desculpa de Paulo, na Epístola
aos Romanos, cap. XV, 15: escrevi em termos um pouco mais agrestes, irmãos. O
mesmo se pode, aliás, concluir do fato de não se ler em parte alguma que os
apóstolos tenham recebido ordens para escrever, mas unicamente para pregarem por
toda parte aonde fossem e confirmarem as suas palavras através de sinais. Porque a
sua presença, tal como os sinais, eram absolutamente necessários para converter e
confirmar os gentios na religião, como o próprio Paulo expressamente indica na
Epístola aos Romanos, cap. I, 11: porque – diz – desejo muito ver-vos, para repartir
convosco o dom do Espírito, a fim de que sejais confirmados. (ESPINOSA, B. 2019,
P. 281-282; G III, 153)

238
G III, 153.
239
ESPINOSA, B. 2019, P. 279; G III, 151.
240
Bíblia. 2017, P. 174.
241
Bíblia. 2017, P. 189.
214

Como não se orientavam por ordens, os apóstolos possuíam maior liberdade para
adotar diversas metodologias, e a maior prova disso está justamente em sua manifesta
discordância. Enquanto Paulo sustentava que a salvação tem origem apenas na graça de Deus,
não importando as obras, mas somente a fé, Tiago, ao contrário, sublinhava a proeminência
das obras em relação à fé242. Também há liberdade quanto à movimentação espacial: podiam
escolher os locais onde fossem pregar, o que poderia ser motivo para contendas no interior do
grupo. Aos profetas, no entanto, pouco ou nenhum espaço era reservado para a livre
movimentação intelectual ou espacial, de modo que, quando se locomoviam, era
expressamente por envio e ordem divinas. O próprio endereçamento da mensagem
determinava condições de pregação muito específicas: enquanto os profetas foram chamados
para pregar a um povo determinado, numa determinada circunstância, a orientação da
pregação apostólica era universal: por isso não precisavam que lhes fosse revelado o local da
pregação tampouco o conteúdo da mesma. É certo que as dissonâncias de fundamento não
poderiam ser radicais a ponto de promover total afastamento em relação à concepção mesma
da religião. Ao mesmo tempo, o dissenso provocado pela plena liberdade de escolha de seus
métodos de ensino está na origem de diversos cismas no interior da Igreja.243 Perdeu-se o
controle sobre o estabelecimento dos dogmas mínimos que reúnem os grupos numa só fé,
deixando-se levar por especulações inúteis no campo da teologia que nada tem a ver com a
religião tal como foi definida na Escritura. Lembremos que a transposição dos limites da
religião histórica é uma das críticas fundamentais do TTP244, a qual é acompanhada da
proposta de uma solução: que se retorne aos dogmas fundamentais e simplíssimos ensinados
pelo Cristo aos seus discípulos.

Se é assim, por que Spinoza afirma, ao início do capítulo, que os apóstolos foram
profetas? Em outros termos, o que há de propriamente profético no expediente apostólico?
Em primeiro lugar o eventual recurso aos signos exteriores como confirmação seja daquilo
que pregavam por viva voz, seja de sua autoridade mesma enquanto apóstolo.245
Adaptaram-se assim ao paradigma da exterioridade dos profetas de modo a serem mais bem
recebidos entre aqueles mais afeitos à imaginação. Em outro momento, Spinoza admite que

242
G III, 157.
243
G III, 157-158.
244
Principalmente quando ela assume a forma da perseguição a opiniões contrárias que se tornam leis. Ver G III,
245.
245
G III, 155.
215

Paulo também emprega parábolas: não as de caráter narrativo, mas a analogia geral que
concebe e exprime Deus em termos antropomórficos.246 Ainda, sabemos que um dos recursos
principais do discurso apostólico, não tão observável em Paulo, é a narração da história de
vida do Cristo.247 Quando narravam a história do Cristo, evidenciando seu caráter
sobrenatural composto por milagres tais como o da encarnação e ressurreição, agiam como
profetas. Esta narrativa pode cumprir um duplo objetivo: fornecer um modelo de natureza
humana a ser imitado – neste caso, inscrevendo-se no paradigma da exterioridade – ou incitar
a uma reflexão mais apurada (e mais livre) sobre os ensinamentos do próprio Cristo –
convocando o paradigma da interioridade. A narrativa de sua vida, em última análise, pode
facilmente fornecer material para dedução e posterior apropriação ativa de suas
características piedosas.

Segundo Spinoza, Paulo está perfeitamente consciente da duplicidade que o constitui


enquanto apóstolo, revelando: “fui constituído arauto e apóstolo”248 e também “fui
constituído arauto e apóstolo e mestre”249. Por escrito ou por viva voz, assim, os apóstolos
têm a liberdade de agir com a mesma plasticidade do Cristo: ora tomando para si o paradigma
da exterioridade, ora o da interioridade. O discurso duplo de Paulo, que mimetiza as
estratégias do Cristo, é reconhecido: em 1 Rom 3, 5, descreve a ira e a injustiça de Deus
admitindo falar “à maneira humana”250, tal como, em 1 Rom 6, 19 afirma: “falo
humanamente por causa da fraqueza da vossa carne”251. A possibilidade de uso de um
discurso duplicado reenvia ela mesma a uma ontologia e epistemologia fraturadas. Neste
aspecto, pode ser que as conclusões de Spinoza nos encaminhem a uma situação distinta
daquela descrita por Badiou, exigindo de nós uma redefinição da figura do apóstolo.
Enquanto para Badiou o apóstolo é aquele que funda o novo, por meio de uma referência ao
acontecimento da ressurreição que o desloca incessantemente ao vaivém do “não...mas”, o
apóstolo spinozista não pretende trazer um novo ensinamento, mas promover um novo uso
dos signos e discursos já estabelecidos. Embora, nos dois casos, o apóstolo seja dotado de
uma identidade dividida, apenas no de Badiou alimenta-se do acontecimento singular. Talvez

246
G III, 65.
247
G III, 156.
248
1 Tim 2, 7; Bíblia. 2017, P. 400.
249
2 Tim 1, 11; Bíblia. 2017, P. 414.
250
Bíblia. 2017, P. 171.
251
Bíblia. 2017, P. 183.
216

o apóstolo spinozista tenha a vantagem de não necessitar se comprometer com qualquer


signo, mesmo os signos instáveis, tendo sua essência definida apenas por sua potência. O
apóstolo é aquele que, tal como o Cristo, detém não uma identidade, mas uma potência: a de
fazer um uso subversivo tanto do discurso profético quanto do filosófico.

Que diferença há entre usar perversamente os signos já estabelecidos e fundar um


novo regime discursivo?252 A fundação conserva suas armadilhas, um perigo iminente de
reintroduzir a identidade e os particularismos identitários por outros meios – e talvez isso se
passe com o acontecimento de Badiou. Ainda que o sujeito cristão seja dotado de uma
instabilidade, não há algo de unificador no recurso ao acontecimento como ponto de partida
de sua constituição? O sujeito pode ser internamente dividido, habitar o devir, mas e quanto
ao acontecimento, que parece funcionar como uma espécie de ideal regulador? Não há algo
de inescapavelmente metafísico na atitude de criar um novo paradigma discursivo como
terceira via incontaminável pelas demais? É sintomático que, mais adiante em sua
investigação, Badiou procure recuperar “algumas graças, para as quais de maneira alguma é
necessário imaginar um Todo-Poderoso”253. Para ele, Paulo permite que fundemos um
materialismo da graça de orientação laicizante que a liberte de seu “aprisionamento religioso”
254
, mas é preciso se perguntar se é possível reintroduzir a teologia – o discurso sobre a
exterioridade, se quisermos – sem adotar conjuntamente suas consequências metafísicas.
Uma primeira graça, segundo ele, está na imanentização do espírito permitida pelo
procedimento da encarnação, o qual posteriormente nos iguala ao próprio Deus mediante a
morte do Cristo (que, de agora em diante, será como humano).255 A introdução desta graça no

252
Lembro, sobretudo, da literatura do irlandês Samuel Beckett, particularmente da relação que estabelecia com
os signos filosóficos. Alguns intérpretes, via existencialismo, veem em sua obra a falência da linguagem no
mundo moderno: Beckett estaria, enfim, expressando algo (cf. ESSLIN, M. The Theatre of the Absurd. New
York, Vintage Books, 2004). Quando se trata de estabelecer sua influência cartesiana, outros insistem na
separação entre alma e corpo que estrutura os personagens de seus romances, os quais vivem numa eterna tensão
dualista entre um pensamento ativo e um corpo que apodrece (como Murphy, Molloy, Malone, etc.): a imagem
perfeita de um centauro cartesiano (KENNER, H. Samuel Beckett. A Critical Study. New York: Grove Press,
1961 e também COETZEE, J.M. Ensaios recentes: Textos sobre literatura (2006-2017). Tradução de Sérgio
Flaksman. São Paulo: Editora Carambaia, 2020). Conforme já adiantamos na Introdução, uma leitura atenta de
suas raras declarações em entrevistas e cartas parece sugerir, ao contrário, um uso perverso da filosofia, o qual
surge acompanhado de uma reflexão sobre os limites referencialistas da linguagem: tomar de assalto os signos
tradicionais já disponíveis – o cogito, o corpo, as enumerações do método cartesiano etc. – e, por um exercício
interno, transformar seu sentido para torná-los cômicos e desativá-los de seu caráter solene. Sem pretender, com
isso, significar algo.
253
BADIOU, A. 2009, P. 78.
254
Ibid.
255
“Essa é a única necessidade da morte do Cristo: ela é o meio de uma igualdade com o próprio Deus. Por esse
pensamento da carne, cujo real é a morte, nos é concedido como graça o fato de estar no mesmo elemento que o
217

mundo ainda não é o acontecimento em si, mas a composição de seu local.256 A morte é o
local do acontecimento da ressurreição, acontecimento que é ele mesmo pura graça: “se esse
[o acontecimento] surgir exige condições de imanência, ele é da ordem da graça”257. Ou seja:
tanto o procedimento de imanentização quanto o acontecimento por ele permitido são
excepcionais, advindos do puro movimento da exterioridade reintroduzido, da ação da
providência no mundo. Observa-se que Badiou precisa manter inquestionáveis tanto o local
da realização do acontecimento quanto o acontecimento em si: os quais agem como os dois
postulados ou dogmas de seu universalismo. Uma vez admitida, a exterioridade contaminará
todo o sistema. É um produto que não se adquire separadamente.

Em seu comentário à Carta aos Romanos, Agamben tece duras críticas ao


universalismo que Badiou tenta reabilitar a partir de Paulo. Em primeiro lugar, sublinha que
historicamente Paulo foi utilizado como o apóstolo do universal, posto que classificava sua
própria doutrina como “católica” – que significa, como se sabe, justamente universal. Tal
reivindicação ocorria no interior dos circuitos eclesiásticos e tradicionais: o que revelaria, de
início, uma estranha aliança implícita, ainda que frágil, entre Badiou e a posição confessional
que ele visa inutilizar.258 Em seguida, ainda apontando as alianças inconscientes de Badiou
com discursos que afirma em primeiro plano abominar, chama a atenção para o uso talvez
irrefletido de noções no mínimo problemáticas como “benevolência” e “tolerância” –
“somente é possível transcender as diferenças se a benevolência em relação aos costumes e às
opiniões apresentar-se como uma indiferença tolerante às diferenças [...]”259, ele o afirma.
Tais noções são ativadas, segundo Agamben, como ações do Estado em relação a conflitos de
ordem religiosa: e Badiou parece ser, justamente, um crítico dos procedimentos da máquina
estatal.260 Poderíamos avançar a crítica de Agamben e dizer que estes conceitos participam,
inclusive, de um vocabulário liberal em se tratando de filosofia política: é mesmo este
universalismo que Badiou pretendia construir? Por fim, e esta parece ser a crítica mais
fundamental de Agamben, Badiou fecha os olhos para o messianismo de Paulo, o qual
procura justamente criar uma tensão intransponível não entre os discursos do judeu e do

próprio Deus. A morte do Cristo é a montagem de uma imanentização do espírito”, cf. BADIOU, A. 2009, P.
81.
256
BADIOU, A. 2009, P. 82.
257
BADIOU, A. 2009, P. 83.
258
AGAMBEN, G. 2016, P. 68.
259
BADIOU, A. 2009, P. 116.
260
AGAMBEN, G. 2016, P. 69.
218

grego frente um ao outro, mas do judeu e do grego em relação às suas próprias identidades. O
ponto central do messianismo é desativar a coincidência consigo mesmo, torná-la impossível,
separar-se de si próprio: sem que isso signifique repousar numa identidade estabilizada
posterior – no caso de Badiou, o acontecimento que torna possível criar um sujeito universal
a partir de um solo comum.261 É através de uma aceitação da herança teológica que, de seu
interior, resgata seus aspectos subversivos, desativando seus compromissos dogmáticos, que
Agamben pensará a função paulina para a filosofia política contemporânea, mantendo-se
atento para não assumir inconscientemente conceitos tradicionais.

Talvez outra maneira de lidar, dentro do campo político da esquerda, com a


exterioridade e os signos religiosos de modo geral, seja aceitar plenamente sua contaminação
e buscar, de seu interior, novas estratégias de leitura. Assumir o compromisso com o
teológico para combater um teológico de outra orientação. Talvez a figura do apóstolo
spinozista nos ensine sobre uma postura que é, apesar de si própria – pois Spinoza certamente
é um pensador metafísico – mais radicalmente antimetafísica e por isso mesmo anti-Lei: a de
procurar não criar novas as determinações262 – a abertura para uma nova possibilidade cria
uma ontologia, e dificilmente a ontologia pode se desfazer de seus compromissos metafísicos
–, mas de usar aquelas já existentes para, por meio de uma modificação a qualitativa, produzir
uma perversão no que já está constituído. Nesta consideração geral da teologia, que se reflete
em sua interpretação da figura do apóstolo como de fato internamente dividido e
caracterizado por uma tensão perpétua, Spinoza está mais próximo de Agamben do que de
Badiou.

O Cristo e a sociabilidade

A proposição LXVIII da Parte IV da Ética participa de um conjunto maior de


proposições cujo intuito é abordar o indivíduo livre – ou, nas palavras de Spinoza, aquele

261
“Para Paulo não se trata de ‘tolerar’ ou de atravessar as diferenças para encontrar para além delas o mesmo e
o universal. O universal não é para ele um princípio transcendente a partir do qual se olha para as diferenças –
ele não dispõe de um tal ponto de vista –, mas uma operação que divide as próprias divisões nomísticas e que as
torna inoperantes, sem nunca, porém, alcançar um solo último. No fundo, para o judeu e para o grego, não há o
homem universal ou o cristão, nem como princípio nem como fim: há apenas um resto, há apenas a
impossibilidade do judeu e do grego de coincidir com si mesmos. A vocação messiânica separa toda klesis de si
mesma, coloca-a em tensão consigo mesma, sem lhe fornecer uma identidade ulterior: judeu como não judeu,
grego como não grego”, cf. AGAMBEN, G. 2016, P. 69.
262
A crítica seria menos dura se o fundamento fosse ficcional. Não parece ser este o caso do acontecimento tal
como Badiou o define.
219

sobre cujo “engenho e maneira de viver gostaria de fazer ainda algumas observações”263. No
ciclo argumentativo que se inicia pela advertência supracitada retirada do escólio da
Proposição LXVI – em que Spinoza claramente define o escopo das demonstrações
seguintes, provocando uma espécie tour de force explícito na exposição – e termina apenas na
proposição LXXIII, findando também a parte IV, trata-se de descrever as ressonâncias éticas,
sociais, políticas e principalmente teológicas do modo de vida daquele que age conduzido ou
sob o ditame da razão. Lemos bem: teológicas. O enunciado da proposição 68 revela: “se os
homens nascessem livres, não formariam nenhum conceito de bem e mal enquanto fossem
livres”264. A demonstração atenta para o fato de que aquele que é livre, quer dizer, que age
sob a condução da razão, detém apenas ideias adequadas. Ora, o conceito de mal nada mais é
do que o resultado de um afeto triste265, que promove uma passagem para uma perfeição
menor. O afeto triste, por sua vez, origina-se de uma ideia inadequada.266 Sendo assim, o mal
é resultado, ele mesmo, de uma ideia inadequada: e não pode ser concebido pelo homem
livre. Para provar que tampouco o bem é por ele concebido, basta lembrar que o bem é um
conceito correlato ao mal, estabelecido através de comparação, o qual não existe na natureza
da coisa.

Até aqui, parecemos seguir com desenvoltura o curso elegante da exposição


geométrica. O desvio teológico aparece, em seguida, no escólio da mesma proposição.
Primeiro: a hipótese aventada pelo enunciado da proposição – a de que os homens nascem
livres – é evidentemente falsa; e isso por conta da proposição 4 da mesma parte, que insere o
homem na natureza, donde não está imune ao poder das causas externas e do padecimento
afetivo, portanto267. A hipótese só pode fazer sentido se considerada a potência através da
qual Deus criou o homem – nos termos de Spinoza, “a potência pela qual cuidou apenas da
utilidade do homem [...]”268. O mesmo pensamento ocorreu a Moisés na narrativa do primeiro
homem. A passagem remete o leitor consciente das polêmicas caras ao TTP imediatamente a
duas discussões: em primeiro lugar, a da autoria do Pentateuco269; em segundo, àquela da

263
ESPINOSA, B. 2015a, P. 481; EIV, P. LXVI, esc.
264
ESPINOSA, B. 2015a, P. 483; E IV, P. LXVIII.
265
EIV, P. LXIV, cor.
266
EII, P. XXIX.
267
Diz o enunciado da Proposição II da Parte IV: “Nós padecemos apenas enquanto somos uma parte da
Natureza que não pode ser concebida por si sem as outras” (ESPINOSA, B. 2015a, P. 385).
268
ESPINOSA, B. 2015a, P. 483; E IV, P. LXVIII, esc.
269
No capítulo VIII do TTP Spinoza argumenta extensamente contra a hipótese tradicional judaica segundo a
qual Moisés seria o autor do Pentateuco. Cf. G III, 117-123.
220

condição ontológica da narrativa em si270. Quanto à primeira discussão, Spinoza parece, ao


contrário do que faz no TTP, subscrever a hipótese segundo a qual Moisés é o autor do
Pentateuco. Quanto à segunda, não se compromete com qualquer solução, uma vez que seu
objetivo é outro: refletir sobre as implicações teológicas, lá onde elas se encontram com as
filosóficas, da história em questão. É significativo que as expressões que utilize sejam
aquelas empregadas no método de interpretar a Escritura: “aquela história [historiâ] do
primeiro homem”271 e, mais a frente, “[...] é narrado [narratur] que Deus proibira o homem
livre de comer [...]”272. Como há histórias que podem ser perfeitamente reais e, da mesma
forma, narradas, a questão permanece em suspenso. Spinoza avança: nesta história ou
parábola – pois, se seguirmos a discussão do TTP, pode ser que seja uma parábola meramente
inventada –, a potência divina é concebida apenas em sua ação para criar a existência humana
cuidando apenas de sua utilidade. Por isso Deus é narrado como aquele que proibiu o homem
livre – livre porque é tomado apenas como efeito da potência divina que produziu sua
existência – de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, ameaçando-o com um
castigo em caso de desobediência: o medo da morte. Deus é representado, como nas
parábolas proféticas, como juiz ou legislador. Observa-se que o homem era livre antes de
pecar, uma vez que encontrou uma esposa que lhe era extremamente útil – pois nada pode ser
mais útil ao homem conduzido pela razão do que um igual que lhe convém273. Tudo mudou
quando passou a considerar os animais como semelhantes e a lhes imitar, tornando-se, assim,
afetivamente similar a eles274 e afastando-se da condução da vida pela razão.

O primeiro desvio teológico do escólio, neste momento, dá lugar a um segundo. Após


ter introduzido a narrativa bíblica para fins de reflexão em torno do tema da condução da
razão que compete ao homem livre e a relação específica da potência divina com ele, somos
surpreendidos pelo aparecimento do Cristo. O homem livre, imitando os animais, tornou-se
imediatamente servo de seus afetos, perdendo consequentemente o Espírito de Cristo. Ora,
do ponto de vista da narrativa histórica, este espírito só será resgatado posteriormente pelos
patriarcas. Spinoza complementa sua reflexão histórica com uma definição filosófica deste
Espírito, que não é senão “a ideia de Deus, da qual, apenas, depende que o homem seja livre e

270
G III, 66.
271
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2015a, P. 483; EIV, P. LXVIII, esc.
272
Grifo meu. Ibid.
273
EIV, P. XXXV.
274
EIII, P. XXVII.
221

que deseje para os outros homens o bem que deseja para si, como demonstramos acima”275. O
homem fora, então, expulso do paraíso idílico, pois perdeu sua liberdade e tornou-se
desprovido da ideia de Deus. E eis que o Cristo emerge à superfície mais uma vez como
momento de tensão entre a interioridade do discurso filosófico baseado na razão e a
exterioridade da abordagem teológica orientada pela obediência. Com a diferença crucial de
que não estamos, agora, no contexto argumentativo do TTP, texto no qual já nos
acostumamos, seja pela retórica, seja pela dificuldade inerente ao tema, a detectar tais
brechas: mas sim no próprio curso da suposta solidez argumentativa da Ética. Seria preciso
uma análise mais longa para concluí-lo, mas estamos diante de uma passagem suficiente para
ao menos sugerir que a tensão entre filosofia e teologia se estrutura nas duas direções: seja
quando se toma a teologia como ponto de partida, encontrando sua contaminação filosófica,
seja, ao contrário, quando se parte da filosofia, que parece não ser tão pura quanto o autor do
capítulo XV do TTP pretende que seja.

Não discutiremos aqui o modo como o tratamento da história/parábola do primeiro


homem contrasta com sua abordagem no TTP.276 Apenas lembremos que naquele contexto
Spinoza parecia se esforçar para demonstrar como Adão, mesmo antes da queda, não era
livre, uma vez que tomava as falas de Deus como mandamentos. O que nos chama a atenção
particularmente neste escólio é o modo como, em primeiro lugar, filosofia e teologia estão
articuladas – evidenciando que, assim como o TTP guarda em si fissuras filosóficas, a Ética
abriga desvios teológicos – e, em segundo, como a questão específica do Espírito do Cristo é
pensada em sua extensão social. Ser livre é desejar para os outros o bem que se deseja a si
próprio: e, para, justificá-lo, Spinoza faz menção àquela que talvez seja a proposição mais
política de toda a Ética: a proposição XXXVII da Parte IV.

Não espanta que a Proposição XXXVII, ela mesma, derive teologicamente. É em seu
primeiro escólio, afinal, que encontramos tanto uma definição de Religião quanto de piedade
– um afeto a todo tempo mobilizado no TTP. Remete-se à religião todo o comportamento que
tem a ideia de Deus como guia. A piedade, por seu turno, é apresentada como o desejo de
agir bem derivado de uma vida conduzida pela razão. Não é estranho, porém, essa
permanência no paraíso idílico, ou seja, supor que os homens agem sob a condução da

ESPINOSA, B. 2015a, P. 485; EIV, P. LXVIII, esc.


275

Para uma análise comparativa das duas referências, ver CHAUI, M. A nervura do real. Imanência e liberdade
276

em Espinosa. Volume II: Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. P. 483-485.
222

razão? Neste caso, sequer seria preciso erigir leis: todos viveriam em concórdia pois a sua
utilidade, compreendida racionalmente, seria também a utilidade do todo. A sociabilidade,
então, se construiria organicamente num mundo em que os homens seriam maximamente
úteis uns aos outros.277 Não é isso, entretanto, o que ocorre: é não só impossível não padecer,
como vimos anteriormente, como é uma constatação de fato que os homens, na maioria das
vezes, vivem conduzidos mais por seus afetos, manifestando interesses e flutuações
particulares que podem vir a entrar em conflito com a dos outros indivíduos. Neste cenário, a
pergunta óbvia é como fazer concordar os diferentes a fim de que não mais se ameacem
mutuamente. Em termos mais técnicos, como fazer convergir os direitos naturais
individuais? A resposta de Spinoza, no escólio 2 desta proposição, é a de que os homens são
também conduzidos pelo temor de um dano maior. Assim, só mesmo um afeto mais forte e
contrário pode coibir outro278, e desta lei do comportamento afetivo humano é que se poderá
retirar um princípio fundador das organizações em comunidade. Este temor será a lei de
fundamento da Sociedade, em que o direito de estabelecer leis, de definir o que é o justo e o
injusto, o pecado e o mérito, passará dos particulares individuais para o todo comum, o qual
tomará para si “o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bem e o mal; [...] o
poder de prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e firmá-las não pela razão, que
não pode coibir os afetos, mas por ameaças”279. A isto denomina-se Cidade; às suas partes
componentes, definidas por seu direito, cidadãos. Que a Sociedade se estruture pelos afetos, e
que sua manutenção dependa da permanência constante de ameaças, significa que é
impossível que o espírito do Cristo, quer dizer, a liberdade, se manifeste? Qual a contribuição
específica do Cristo para tratar da fundação da política e da sociabilidade, se a liberdade da
condução da razão nunca é plena?

Como nota André Tosel, o paradoxo do TTP é o fato de exigir um retorno a um


cristianismo que jamais existiu280. Enquanto Moisés é tomado como líder político de
excelência, que comandou de modo eficaz uma teocracia, o Cristo recebe, a princípio, da
parte de Spinoza, um tratamento apolítico, eventualmente antipolítico. Sua mensagem se
dirigiria não à instauração de uma nova Lei comportamental, mas apenas à normas de

277
“E se os homens vivessem sob a condução da razão, cada um possuiria (pelo Corol. 1 da Prop. 35 desta
parte) este seu direito sem nenhum dano para outro”. Cf. ESPINOSA, B 2015a, P. 435; EIV, P. XXXVII, esc. 2.
278
E IV, P. VII e E III, P. XXXIX.
279
ESPINOSA, B. 2015a, P. 437; E IV, P. 37, esc.2.
280
TOSEL, A. 1984, P. 257.
223

condução moral, à edificação de uma regra de vida. Além disso, Spinoza acredita que o
cristianismo primitivo não tinha objetivo de se lançar institucionalmente e, ao contrário, que
seus adeptos agiam, em suas organizações particulares, “contra a vontade dos que detinham o
poder e de quem eram súditos [..]”281. Embora posteriormente, transformado em Igreja, o
poder eclesiástico tenha fundado Estados, é questionável que, em sua origem, o cristianismo
tenha manifestado tais ambições. Ora, agir contra o poder político dominante não é em si uma
forma de lançar-se politicamente? O erro desta leitura está, obviamente, em restringir a
política à sua esfera institucional, fechando os olhos para o caráter político da peregrinação
de seus seguidores e de sua administração interna.

A leitura despolitizante do Cristo encontra ecos em outras ocasiões da história da


filosofia. Num ensaio de juventude282, Gilles Deleuze procura associar o ensinamento
Evangélico, propagado pelo Cristo, e a postura burguesa manifestada nas sociedades
capitalistas. Segundo Deleuze, a oposição entre natureza e espírito introduzida pelo primeiro
é análoga à separação entre vida privada e Estado em marcha na visão de mundo do segundo.
A operação fundamental que os une consiste num processo paradoxal de interiorização do
interior. Parece óbvio, em primeiro lugar, que o cristianismo se dirige ao exterior: basta
pensar, por exemplo, nos milagres – acontecimentos insólitos nos quais é preciso ostentar, na
natureza, a potência divina –, e no modo como institui para si certa maneira de portar-se no
mundo. Para Deleuze, porém, essa ética jamais será política, uma vez que aquilo que
pretende exteriorizar não é qualquer sentido de comunidade localizada histórica e
socialmente, mas a própria vida interior despolitizada. O interior se externaliza para fundar
uma espécie de ética particular, num movimento de transposição do espírito para a natureza.
Na medida em que esta última divisão remete, em última análise, ao dualismo mente e corpo,
trata-se de projetar a unidade perdida no mundo – compreendida, no entanto, sob o signo de
vida interior. A exteriorização do interior que corresponde à mensagem do Evangelho – viver
no mundo de acordo com as determinações internas – deve ser seguida de uma tarefa

281
ESPINOSA, B. 2019, P. 375; G III, 237.
282
Trata-se do texto « Du Christ à la Bourgeoisie », que encontra-se no volume DELEUZE, G. Lettres et autres
textes. Paris : Les Éditions de Minuit, 2015. O texto está publicado em português na coletânea DELEUZE, G.
Cartas e outros textos. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Edição preparada por David Lapoujade. São Paulo: n-1
edições, 2018.
224

paradoxal: trazer novamente ao interior esta interioridade compreendida de fora. Nas


palavras de Deleuze:

E, desde então, a miséria dessa consciência é tal, que para estabelecer uma certa
unidade do corpo e do espírito é preciso que ela veja fora de si, exteriormente, essa
própria unidade sob forma de vida interior. É preciso que ela veja fora de si,
exteriormente, sua própria interioridade. Por isso é preciso um Mediador que traga a
boa nova. O Evangelho é a exterioridade de uma interioridade; e este paradoxo se
exprime essencialmente na noção de parábola. O cristão apreende em si mesmo a
dissociação da vida natural e da vida espiritual: e a união das duas vidas como vida
interior ele só apreende do lado de fora. Sua tarefa paradoxal é interiorizar a vida
interior. Interiorizar o Cristo. (DELEUZE, G. 2018, P. 268)

Perseguindo este aspecto exterior do cristianismo, Richard Horsley sustenta, com uma
série de argumentos históricos e hermenêuticos, que o Reino de Deus deve ser entendido
como algo de concreto, ou seja, como a modificação da sociedade em sentido atual – e não
num além-mundo283. Contra certa tendência individualista moderna que procura relegar a
religião apenas a uma espécie de vida íntima separada, Horsley procura mostrar em que
sentido a não-violência do Cristo é, ela mesma, política – e, portanto, comprometida com o
exterior284. A exteriorização que o Cristo visa conquistar, no caso de Horsley, pretende
efetivamente agir num “mundo social, histórico, localizado”285 – mais ainda, num mundo
marcado pela violência, no qual a tarefa cristã seja marcada pela resistência às leis imperiais.

Quando se trata de delimitar a participação específica do Cristo na construção das


relações sociais e políticas no spinozismo, alguns comentadores procuram demonstrar como
ele pode ser a base de uma sociedade democrática e tolerante, na qual imperam os princípios
da justiça e liberdade. Para Laurent Bove286, a boa nova trazida pelo Cristo vem recuperar os
princípios básicos da sociedade degenerada após a queda do primeiro Estado hebreu. Ao
invés de propor uma resistência direta às leis históricas, o Cristo promovia, paradoxalmente,
sua obediência. A lei do Cristo – que, por sua estrutura, sequer deveria receber o nome de lei
– pretendia retornar às bases que constituem o vínculo social tal como descrito nas
proposições finais do quarto livro da Ética. Afinal, a sociedade, ainda que manifeste leis

283
HORSLEY, R. 2010. P. 149-153.
284
HORSLEY, R.. 2010, P. 133-138.
285
DELEUZE, G. 2018, P. 267.
286
BOVE, L. « Le « retour aux principes » de l’État de Moïse. Éléments pour une lecture politique et
matérialiste de l'enseignement du Christ chez Spinoza ». In : Revista Conatus - Filosofia De Spinoza (ISSN
1981-7509), 2009, 4(8), 73–82. Recuperado de https://revistas.uece.br/index.php/conatus/article/view/4760.
Última visualização: 27/04/2021 às 17h02min.
225

singularizadas, carrega em si uma “positividade vital”287 que é a própria ligação entre os


homens via fraternidade. Ao separar lei política, associando-a à singularidade da história, de
lei ética, remontando-a à universalidade da justiça, o Cristo evidenciava o caráter supérfluo
da lei de Estado ao mesmo tempo em que sacralizava a ligação social. A fraternidade que
existia no primeiro Estado hebreu, quando do domínio de Moisés, no qual se perpetuavam
práticas democráticas como distribuição igualitária de terras288, por exemplo, será
reintroduzida desta vez estendendo a fraternidade para todo o gênero humano. Ao retirar a lei
de seu caráter particular e histórico, de seu nacionalismo judaico, o Cristo subscreve um
universalismo que é “inseparável do ideal político de igualdade social, fraternidade e
liberdade coletiva [...]”289. Observa-se que Bove procura inscrever suas conclusões acerca do
Cristo numa uma perspectiva “política, materialista e revolucionária”290, mais
especificamente marxista, do spinozismo.

Steven Frankel291, apesar de situar-se em outro ponto do espectro político, alcança


conclusões parecidas: o Cristo é, para Spinoza, a figura responsável por introduzir os
rudimentos de uma sociedade democrática a partir de uma teologia liberal. Segundo sua
interpretação, o Cristo – assim referido por Spinoza, segundo Frankel, para afastar-se do
caráter singularizado da figura histórica de Jesus – é um “filósofo ideal”292 superior a Moisés,
que foi apenas um político excelente. Entre lei divina, de um lado, e lei política, de outro, sua
leitura mantém a oposição estanque entre o paradigma da exterioridade – imaginação,
profecia, obediência, – e o da interioridade – intuição, conhecimento natural, liberdade –,
sem matizar a complexidade das duas figuras. Em termos do conteúdo da mensagem
cristológica, conclui que ela é, em primeiro plano, apenas ética. Ainda assim, é possível
deduzir suas implicações políticas, uma vez que o Cristo repudiava a repressão institucional
presente na ordem teocrática e posicionava-se a favor de uma ordem social baseada na
tolerância. O problema é que o ensinamento cristológico não é acessível à multidão imersa
nos preconceitos carnais e incapaz de compreender a verdade e eternidade das normas

287
Tradução minha, cf. BOVE, L. 2009, P. 75.
288
G III, 216. Trataremos dos aspectos paradoxais da teocracia hebraica, a qual funcionava, na prática, como
uma democracia, no capítulo seguinte.
289
Tradução minha. Ibid.
290
Tradução minha. BOVE, L. 2009, P. 73.
291
FRANKEL, S. “The Invention of Liberal Theology: Spinoza's Theological-Political Analysis of Moses and
Jesus”. In : The Review of Politics, Vol. 63, No. 2 (Spring, 2001), pp. 287-315. Recuperado de:
http://www.jstor.org/stable/1408669. Última visualização: 27/04/2021 às 16h59min.
292
FRANKEL, S. 2001, P. 301.
226

sociais. Resta a ela perseguir uma liberdade não-filosófica por outras vias, sobretudo a
autoridade bíblica. É, em todo caso, a partir do ensinamento do Cristo que Spinoza poderá
elaborar uma lei moral acessível à multidão. Frankel não tematiza o fato de Spinoza conceder
que mesmo o Cristo ensinou conforme a lógica da lei, empregando eventualmente parábolas,
quer dizer, que a obediência derivada da autoridade da Escritura é encontrada também em sua
mensagem.

Por último, Henri Laux293 procura demonstrar, em consonância com os comentários


acima, o papel político do Cristo, apesar da inexistência de uma intenção institucional de sua
parte e seu foco maior na questão moral. Há, porém, ao menos três aspectos em que a moral
cristológica encontra-se com a política: o endosso da liberdade – o Cristo veio libertar os
indivíduos da servidão da lei294 –, da justiça – tanto da parte daqueles que choram pelo reino
de Deus e pela negligência de sua justiça por parte dos homens295 quanto como uma espécie
de princípio político de adaptação às circunstâncias específicas, como no caso da ação
não-violenta de dar a outra face àquele que bate, de modo a reintroduzir a justiça perdida296 –
e do direito do Estado – como na circunstância em que Pilatos fez crucificar o Cristo, tomada
como exemplo de que não se devem instituir leis sobre opiniões, uma vez que o desejo de
dominação que culminou em sua morte é o mesmo que encaminha à ruína do Estado.297 O
Cristo é mobilizado como exemplo para tratar de princípios básicos da realidade Estatal –
logo, políticos no sentido mais primário da expressão. Em consonância com as conclusões de
Bove, Laux acredita que o Cristo vem representar a sacralidade do vínculo social
democrático, que tem na resistência à lei histórica, na prática da justiça e na liberdade de
expressão seus pilares fundamentais.

Neste capítulo, fomos novamente impelidos a reconfigurar algumas distinções que


orientam sub-repticiamente a literatura secundária spinozista. A oposição interno-externo
parece ter servido a uma compreensão apolítica e eventualmente antipolítica do Cristo.
Insistindo em seu pertencimento à esfera privada do coração, em sua redução à figura do
filósofo à margem das disputas políticas de seu tempo, deriva-se da mensagem cristológica

293
LAUX, H. « Le Christ et la politique chez Spinoza ». In : La Pensée. 2019/, N° 398, Ps. 74-85. Recuperado
de: https://www.cairn.info/revue-la-pensee-2019-2-page-74.htm. Última visualização: 27/04/2021 às 16h57min.
294
G III, 54.
295
G III, 103.
296
G III, 103-104.
297
G III, 225.
227

uma oposição à teologia-política mosaica, como se o universalismo moral da mensagem


necessariamente impedisse sua materialização num regime político determinado (e como se a
política se resumisse, enfim, aos seus desdobramentos institucionais). É, afinal, uma
definição estreita de teologia-política que coordena estas interpretações, a qual é utilizada
como sinônimo da bruta exterioridade, reconvertida em superstição e finalmente concretizada
em teocracia. A reconfiguração topológica que propomos – convidando a considerar um
Cristo marcado, ao mesmo tempo, pelo interno e pelo externo – permitiu criticar, porém, não
apenas a despolitização pura e simples, tal como encontramos em Jelles, Matheron e Deleuze
298
, por exemplo, mas também uma despolitização de segunda ordem que coordena as leituras
dos comentadores que citamos: aquelas em que, apesar de ser concedido um papel político ao
Cristo, este é tomado como princípio de uma sociabilidade e política agregadoras. É
oportuno lembrar, neste momento, de uma passagem controversa do Evangelho de Mateus:

Não penseis que vim para lançar a paz sobre a terra. Não vim para lançar a paz, mas
sim uma espada. Vim para separar uma pessoa do seu pai e uma filha da sua mãe e
uma nora da sua sogra, e os inimigos de cada um [são] os que vivem em sua casa.
Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. E quem ama o
filho ou filha acima de mim não é digno de mim. E aquele que não pega na sua cruz e
[não] segue atrás de mim, esse não é digno de mim. Quem encontrou a sua vida irá
perdê-la e quem perdeu a sua vida por minha causa irá encontrá-la. (Bíblia. 2017, P.
94; Mt 10, 34-39)

Eis uma passagem que admite, é certo, uma multiplicidade de leituras, mas que
constitui um problema principalmente para aqueles que identificam no Cristo um
ensinamento tranquilizador. Um esforço para ler apenas metaforicamente a separação no seio
da comunidade familiar perderia o que há de propriamente violento na imagem da espada,
contraposta à paz, logo ao início do trecho. Lendo-a positivamente, isto é, aceitando os signos
que convoca, quais seriam as consequências do ponto de vista de uma teoria da sociabilidade
política? Ora, num caminho inverso, a de que o Cristo pretende justamente desagregar
indivíduos, pô-los em combate direto: em acordo com o conceito de Cristo, meio-termo
indecidível entre filósofo e profeta, que tentamos operacionalizar. As leituras de Bove,
Frankel e Laux parecem fechar os olhos para este grão de separação introduzido por Spinoza
no Cristo já desde sua condição ontológica e epistêmica. Há uma fratura fundamental que o
constitui, de modo que sua dupla mensagem talvez só possa atingir esta suposta síntese da
exterioridade comportamental por um esforço constante de adaptação da linguagem a

298
Guardadas as devidas particularidades de suas interpretações.
228

contextos diversos, dividindo para poder talvez unir. A cidade é, assim, o coeficiente dos
investimentos afetivos e direitos naturais individuais que se estruturam em termos de
disputas, tomando como princípio o amor a Deus, para alguns, a obediência servil à lei, para
outros.

Neutralizar a ambiguidade do ensinamento Cristo ou, no mínimo, não retirar as


implicações políticas de sua situação ontológica e epistêmica particular, não parece, em
última análise, adaptar-se bem à manutenção do direito natural no contexto civil que
constitui, segundo o próprio Spinoza, sua principal divergência em relação a Hobbes.299 Se,
no estado de natureza, o direito equivale à potência, o que termina por posicionar os
indivíduos em perpétuo estado de guerra, e se o direito natural permanece incapturável em
sua totalidade mesmo após a constituição do estado de associação civil, algo da guerra de
todos contra todos opera silenciosamente ainda lá onde víamos paz, tolerância e concórdia. A
paz não é a ausência de guerra300 – Spinoza mesmo o afirma. Assim, a política é a
continuação da guerra por outros meios301: e o Cristo fraturado não está alheio a esta batalha.
Este concurso algo selvagem de direcionamentos opostos e plurais, que não necessariamente
encontra um acordo final, já anunciado pelo Cristo, é certamente um desenho que melhor se
adapta ao corte afiado da espada.

Richard Horsley, para além dos estudos restritos ao spinozismo, já se concentrou em


desvelar os interesses que coordenam a construção da imagem de um Jesus despolitizado: que
só o é em superfície, escolhendo subrepticiamente uma política entre outras302. Afinal de
contas, Jesus é um ícone comercializável e extremamente rentável para a publicidade
ocidental, operando como símbolo ideológico do individualismo.303 Tomá-lo como um
“mestre de sabedoria”304 – o que ser confunde, no spinozismo, com tomá-lo como um filósofo
que se move apenas no interior do terceiro gênero de conhecimento – é eficaz para tornar sua
mensagem individualizada e restrita à esfera moralizante.305 Há, porém, nos comentadores

299
Cf. Carta 50. G IV, 238.
300
ESPINOSA, B. 2009b, P.44-45; G III, 296.
301
Retomo a inversão da clássica frase de Carl Von Clausewitz (1780-1831) proposta por Michel Foucault em
seu curso ministrado entre os anos de 1975-1976 no Collège de France: « Il faut défendre la société ».
302
Em seu já mencionado Jesus e a espiral da violência. Resistência judaica popular na Palestina Romana, de
1987, mas também em Jesus e o império. O reino de Deus e a nova desordem mundial, de 2003.
303
HORSLEY, R. 2004, P. 9.
304
HORSLEY, R. 2004, P. 14.
305
Embora a empreitada de enraizar o Cristo historicamente seja por si admirável, alguns dos pressupostos
metodológicos de Horsley não são os nossos. Para justificar o rigor de sua investigação, recorre a princípios de
229

que insistem no aspecto agregador da política do Cristo – arauto da democracia, da justiça,


da tolerância e da liberdade –, uma despolitização de outra ordem: a despolitização da
síntese. Até mesmo Badiou estava dela consciente: apesar de seu universalismo e das sínteses
menores que mantém, é importante dividir o sujeito político perpetrado por Paulo na
suspensão incessante do “não...mas”, como forma de torná-lo incapturável e combativo ao
universalismo capitalista dominante. Ora, se é esta a decomposição política, violenta, que
multiplica as formas de se relacionar com a lei, que o Cristo spinozista sugere, qual política
alternativa não-despolitizante este princípio desagregador poderá gerar?306

cientificidade e objetividade histórica – algo como o “verdadeiro” contexto histórico no qual o Jesus estava
inserido e eventualmente o “verdadeiro Jesus”, uma espécie de númeno escondido – por ele mesmo
questionados quando empregados pelo leitor de orientação ideológica contrária (individualista e despolitizante).
Afinal, segundo ele, foi o Ocidente moderno pós-iluminista que separou a religião da política e estabeleceu
critérios de cientificidade para isolar da reconstrução histórica os “resíduos de tudo que seja milagroso, mítico
ou fantástico” (HORSLEY, R. 2004, P.13). Não é um resíduo deste mesmo cientificismo que faz Horsley
reclamar uma leitura mais relacional e histórica supostamente por ser mais correspondente ao real? E quanto à
necessária limitação epistêmica ao interpretar os signos passados, que faz com que o historiador, por mais que se
esforce, talvez não possa se livrar tão facilmente do contemporâneo? Horsley poderia, sem perigo para sua
análise, atacar legitimamente seus inimigos por seus compromissos políticos, sem que seu argumento via
reconstrução histórica enfraquecesse.
306
Esta é uma das indagações centrais deste trabalho e talvez só será respondida ao fim do percurso da
investigação. Por meio da perseguição constante às fissuras da filosofia da religião spinozista, reproduzidas no
modo de escrita algo selvagem deste texto, pensar uma teologia-política outra.
230

Capítulo 4.
A ANOMALIA TEOCRÁTICA

Eu os odeio com ódio implacável!


Eu os tenho como meus inimigos!

— Salmo 1391

Mesmo depois do acidente automobilístico fatal,


quando seus corpos jaziam nos caixões na igreja
de Sils, nosso ódio por eles ainda persistia.

— Thomas Bernhard, O imitador de vozes2

No curso de seu projeto de rastrear o emprego spinozista da noção de experiência,


para além da estrita cadeia dedutiva da Ética que parece descartá-la, Pierre François-Moreau
chama a atenção para o uso de uma expressão que apesar de não figurar no centro do sistema,
surge vez ou outra em pontos chaves da análise: trata-se do conceito de ingenium3. O termo
surge no escólio da Proposição XXXI de E III; no contexto de elaboração daquela que ficou
conhecida como a tese da imitação afetiva4. A simples imaginação de que um terceiro ama,
deseja ou odeia algo que nós próprios amamos, desejamos ou odiamos é suficiente para que o
sentimento inicial, em nós, seja reforçado e para que, enfim, sua constância seja aumentada.
No caso oposto, quer dizer, o de sabermos que alguém tem aversão a algo que amamos, esta
constatação nos fará flutuar entre a aversão advinda da imitação do sentimento do terceiro e o
amor que ora nutríamos por este objeto. Donde o corolário: cada um se esforça para que os
outros amem aquilo que ama e odeiem aquilo que odeia, esforço que será definido, no escólio
subsequente, pelo afeto da ambição:

Este esforço de fazer com que os outros aprovem o que cada um ama ou odeia é, na
verdade, Ambição (ver Esc. da Prop. 29 desta parte); assim vemos que cada um por
natureza apetece que os outros vivam conforme seu engenho [ex ipsius ingenio
vivant], e vemos também que, enquanto todos igualmente o apetecem, igualmente são
impedimento uns para os outros e, enquanto todos querem ser louvados ou amados
por todos, são odiados uns pelos outros. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2015a, P. 287;
EIII, P. XXXI, esc.).

1
Cf. Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 1010.
2
BERNHARD, T. 2009, P. 40.
3
MOREAU, P.F. 1994. P. 379.
4
Um tratamento completo deste tema é fornecido por Alexandre Matheron na seção III do Capítulo V da
Segunda Parte de Individu et communauté chez Spinoza. A ambição se faz presente inclusive na fundação do
estado civil e na renúncia ao uso da lógica contratualista em sua formulação hobbesiana. Cf. MATHERON, A.
1988, P. 150-179.
231

A tradução que aqui adotamos verte a expressão ingenium por “engenho”; já a opção
de Tomaz Tadeu para o mesmo trecho é pelo termo “inclinação”5. A exata expressão também
surge em diversas passagens importantes do TTP, sendo ali entendida, por Diogo Pires
Aurélio, mais frequentemente por “maneira de ser”6 e “engenho”7, embora também
encontremos as expressões “índole” (ao menos uma ocorrência)8 e “idiossincrasia” (ao menos
uma ocorrência)9. Para manter uma conexão mais imediata com o texto original, optamos por
registrar o termo tal como aparece em latim: ingenium.

Moreau insiste que o conceito de ingenium é um recurso que escapa à ordem dedutiva
da Ética, e que, portanto, advém da experiência, de uma espécie de fora textual que lhe é
igualmente constitutivo. Argumenta, ainda, que o ingenium não diz respeito a uma
constituição passional específica (no caso da proposição, ao amor, ódio e desejo), mas é um
dado singular de cada indivíduo: daí a passagem do “nós”, no enunciado e demonstração da
proposição, para o “cada um” do corolário e escólio transcrito. A lei de estilo matemático,
então, diz respeito à configuração geral de imitação dos sentimentos de um outro, mas apenas
a experiência pode demonstrar como este complexo passional se realiza em relação ao
ingenium de cada indivíduo. O efeito de uma paixão não é determinado apenas pela potência
das causas exteriores, mas por elas em contato com todas as características prévias do
indivíduo no qual age.10 Este conjunto de características é seu ingenium: que não é
exclusividade do homem passional, mas que se verifica igualmente no indivíduo conduzido
pela razão11. É como se houvesse uma regra formal, que garante uma lei de movimento, sem
que o conteúdo deste arranjo possa ser determinado, uma vez que se trata de um dado
existencial irredutível.

5
SPINOZA, B. 2009a, P. 120.
6
ESPINOSA, B. 2019, P. 181, 190, 185.
7
ESPINOSA, B. 2019, P. 222, 79, 198, 199.
8
ESPINOSA, B. 2019, P.190.
9
ESPINOSA, B. 2019, P. 286. Em nota (ESPINOSA, B. 2019, P. 416), Diogo Pires Aurélio justifica a tradução
por “engenho” atentando para a insuficiência de expressões como “índole, compleição ou temperamento”,
incapazes, segundo ele, de abranger o caráter ao mesmo tempo inato e adquirido do vocábulo original. Daí sua
opção pelo termo mais literal, que mantém, ainda, suas ressonâncias renascentistas. Observa-se que a tradução
francesa do TTP, preparada por Pierre François Moreau e Jacqueline Lagrée, em todas as ocorrências
consideradas, opta constantemente pelo termo “complexion”.
10
E II, P. XIII, ax.I; EIII, P. LVII.
11
E nem mesmo o sábio é isento de paixões. Ver E IV, P. LXVI, esc.
232

Se a Ética se ocupa – embora não em sua totalidade12 – do ingenium individual, o


TTP, recorrendo ao método histórico e crítico, lança luz sobre o ingenium coletivo. Mais
especificamente, quando se trata do Estado hebreu, do ingenium daquela nação num
determinado momento de sua história13. É este conjunto de dados existenciais irredutíveis que
justificará o ensinamento mosaico – que participa, aliás, do conjunto de crenças daquele povo
14
–, assim como as leis em vigor naquela sociedade. Para entender sua produção e
reprodução, e de seu exemplo retirar alguns preceitos políticos universais, é necessário, então,
traçar seu ingenium: que, é importante realçar, deriva não de traços essenciais e eternos de
sua natureza, mas do modo como este povo se comportou em determinado período histórico a
partir do que se pode deduzir da Escritura corretamente interpretada. Ver-se-á que o tema da
exterioridade não será alheio a esta discussão.

O primeiro tratamento do ingenium do povo hebraico serve para amparar a


desqualificação da tese de sua vocação e exclusividade do dom profético. Para desmontar a
ficção da superioridade de um Estado – e de um povo – perante a Deus, é necessário
reconfigurar alguns conceitos: governo de Deus, auxílio externo ou interno de Deus, escolha
divina e fortuna. Tal vocabulário deverá ser inserido no contexto de um pensamento
imanentista e, sobretudo, de uma filosofia da natureza de caráter determinista. Tal como na
releitura do fenômeno profético foi necessário reter “revelação” ao campo semântico
naturalista15, classificando toda comunicação, posto que vem de Deus, como revelada, na
medida em que nenhuma lei da natureza escapa ao decreto divino, governo de Deus
confunde-se com a própria ordem imutável das coisas. Contra a ideia de uma intervenção
externa num momento qualquer do tempo, o que fundamenta este conceito é o necessitarismo
spinozista: a ideia de que foi através de um único ato, dado desde toda a eternidade, que a
produção divina se deu.

12
Prova disso é E IV, P. XXXVII, esc. 1, que desloca o tema do ingenium para a discussão acerca dos
fundamentos da cidade.
13
Há passagens, ao longo do TTP, também sobre o ingenium dos gregos e romanos. Ver a reconstrução que
propõe Moreau em MOREAU, P.F. 1994, P.433-436, assim como Matheron em MATHERON, A. 1971, P.
49-59.
14
Como fica evidente no capítulo sobre os profetas. Ver, sobretudo, a passagem de G III, 38-41; ESPINOSA, B.
2019, P. 156-159.
15
O mesmo expediente será adotado na desqualificação da leitura transcendente do milagre, exposta no Capítulo
1 deste trabalho.
233

A classificação se bifurca quando se trata do auxílio divino. Novamente: em termos


gerais, o auxílio de Deus não se distingue das coisas naturais, uma vez que nelas se expressa
a própria potência de Deus. No entanto, este auxílio pode atuar segundo duas vias: por meio
da natureza humana ou a partir de coisas exteriores a ela. O auxílio que compete à natureza
humana diz respeito àquilo que pode ser obtido diretamente pelas leis da natureza humana.
Ou seja: “conhecer as coisas pelas suas causas primeiras; dominar as paixões, ou seja,
adquirir o hábito da virtude”16. Já o auxílio exterior atua sobre a necessidade de viver em
segurança e de ter boa saúde: são os bens relativos ao corpo. Como estes objetivos não
podem ser deduzidos diretamente das leis da natureza humana, são classificados como
exteriores a ela: dependem mais da fortuna e das causas imperscrutáveis, portanto. Assim,
supor que o auxílio divino atua direta e especialmente sobre as leis da natureza humana seria
supor que Deus criou homens diferentes – e superiores – a outros. Portanto, o único auxílio
que Deus pode fornecer diz respeito às características exteriores de um indivíduo ou de uma
nação (que é o que importa no caso do Estado hebreu). Do ponto de vista de uma nação, o
que lhe pode ser mais útil é a manutenção de sua segurança, sobretudo com a fundação de leis
fixas, a ocupação de uma região na terra e a proteção contra a ameaça estrangeira. Se há
algum sentido na tese da eleição hebraica, este deve ser direcionado ao auxílio exterior
divino, que permitiu que seu Estado se perpetuasse por tantos anos. Não foi por sua
“inteligência ou serenidade”17, mas pela “organização social e pela fortuna”18 que os hebreus
se distinguiram dos outros povos. Disso se segue que Deus lhes proporcionou um auxílio
meramente temporal; e que suas leis, da mesma forma, diziam respeito unicamente a sua
realidade singular. Contrariamente aos ensinamentos do Cristo, de caráter universal, as leis
reveladas e prescritas aos judeus, na medida em que visavam a conservação de seu Estado,
não podem ser generalizadas ao todo da natureza humana (somente uma lei dirigida ao
interior dos homens poderia ser assim universalizada).

Veja-se que o par exterioridade/interioridade opera no desenvolvimento de ao menos


um dos argumentos – que é talvez o principal – para desqualificar a vocação hebraica. E que
a posição de Spinoza não deixa de evidenciar alguma ironia: se não foi por nenhuma razão
interna ao povo, isto é, por algum feito que lhe foi próprio, qual o valor de uma escolha

16
ESPINOSA, B. 2019, P. 165; G III, 46.
17
ESPINOSA, B. 2019, P. 166; G III, 47.
18
Ibid.
234

exterior, que se dá apenas devido a fatores que escapam à sua potência singular? O argumento
se torna ainda mais duro quando é deslocado à caracterização interna dos hebreus, ou seja, às
suas capacidades intelectuais e morais. Do ponto de vista intelectual, para Spinoza, os
hebreus eram um povo rude. Em certa medida, o tema do ingenium do povo hebraico reenvia
à discussão sobre o gênero de ensinamento de Moisés. Para falar ao alcance de seu povo – ad
captum vulgi loqui, recuperando a expressão do TIE19 –, Moisés precisou desempenhar o
papel de legislador, ameaçando a transgressão e premiando a obediência. Isso se devia, no
entanto, ao fato de hebreus estarem habituados à superstição e de se encontrarem, após a
libertação dos egípcios, “rudes e alquebrados pela mais miserável escravidão”20. Até mesmo
no contexto de fundação de seu primeiro Estado, governado por Moisés, não se pode dizer
que foram livres: também ali, vivendo o regime teocrático, combatiam por sua servidão como
se fosse por sua salvação21. Não nutriam acerca de Deus uma ideia adequada;
consequentemente, não estavam propícios para a verdadeira vida, tampouco para a liberdade.
Mais de uma vez Spinoza não deixa de caracterizar as ideias que os hebreus nutriam de Deus
como “absolutamente vulgares” e “infantis”22; e é desta crença inadequada, que tem origem
sobretudo numa concepção antropomórfica da figura divina23, que se justifica o fato de não
estarem igualmente preparados para a beatitude. Os hebreus, portanto, estavam dominados
pela superstição; o que significa dizer, como vimos, que concebiam Deus e a natureza de
maneira teleológica, acreditando na eleição e no dom profético como benefícios exclusivos,
fornecidos pela divindade devido à sua preferência por seu povo. Cultuavam, portanto, o
exterior. A superstição faz um indivíduo oscilar entre a esperança e o medo; e, numa
comunidade política, permite que os soberanos dominem as mentes dos cidadãos de forma
mais sólida, já que “não há nada mais eficaz que a superstição para governar a multidão”24.

Um argumento suplementar, ainda no escopo da caracterização intelectual e moral do


povo hebraico, surge logo ao início do terceiro capítulo do TTP. Este argumento não é jamais
concluído por Spinoza; na verdade, a tese que ele visa provar paira no ar, e se inscreve na

19
TIE, §17.
20
A formulação surge em dois momentos do TTP. Ver ESPINOSA, B. 2019, P. 158, 195; G III, 41, 75.
21
Laurent Bove apresenta uma análise interessante do estado hebreu, na qual procura mostrar em que sentido
pode-se encontrar, ali, uma expressão do fenômeno da servidão voluntária. Ver BOVE, L. 1996, sobretudo os
capítulos VII e VIII.
22
ESPINOSA, B. 2019, P. 164; G III, 45.
23
G III, 41.
24
ESPINOSA, B. 2019, P. 125; G III, 6.
235

dura exposição feita sobre hebreus ao longo de todo o capítulo (que contrasta, veremos, com
o tom mais científico da análise de seu estado que encontramos no capítulo XVII). Uma tese
geral o fundamenta: a beatitude se encontra unicamente na fruição do bem, não na certeza de
ser o único a dele fruir. A exclusividade da verdadeira felicidade não acrescenta nada à
felicidade; e se ela existe, deve-se reputar ou bem a um caráter infantil ou bem, pior ainda, à
inveja e à má vontade. O indivíduo que se regozija com a infelicidade alheia só pode ser,
portanto, igualmente infeliz. Neste momento, um tour-de-force: Spinoza passa rapidamente
para a análise da Escritura, que afirma categoricamente que Deus escolheu os hebreus dentre
as demais nações. Como não se pode derivar da Escritura um ensinamento invejoso, deve-se
corretamente interpretar a sentença: trata-se de se adequar à compreensão dos hebreus; de
exortá-los ao cumprimento da lei, uma vez que, como vimos, só conheciam este gênero de
ensinamento. Ora, mas se os hebreus acreditavam exatamente na exclusividade do dom
profético e, mais ainda, em sua preferência geral em relação a Deus enquanto nação, a
rudimentar teoria afetiva que se desenha nas linhas iniciais do parágrafo se aplica também a
eles. Os hebreus não apenas não conheceram a verdadeira felicidade e a beatitude, isto é, não
apenas fracassaram do ponto de vista moral e intelectual, mas manifestaram um sentimento
infantil, invejoso e de má vontade. São estes os afetos que conviviam no interior daquela
nação; a serem complementados, na manutenção de seu primeiro Estado, pela devoção e ódio
teológico.

A necessidade das cerimônias também se justifica com o apelo ao ingenium do povo


hebreu. Spinoza se esforça para demonstrar, com o apoio de passagens do Antigo Testamento,
que as práticas de culto não só não encaminham à beatitude como eram restritas ao Estado
hebreu. Se elas se perpetuaram após o fim de seu Estado foi mais como sinal indicativo de
pertencimento a uma seita, como costumes adquiridos desde a infância, do que propriamente
como encaminhamento necessário à salvação. O mesmo, aliás, se aplica às cerimônias dos
cristãos: condutas como o batismo ou a ceia dominical são mais “sinais exteriores da Igreja
universal”25, sem possuir algo de santificante em si mesmos (e Spinoza duvida inclusive se
são ensinamentos perpetuados pelo Cristo). Sua argumentação relativamente às práticas de
culto externo, então, se estende à pompa religiosa em geral. Enquanto a lei divina,
desenvolvida em detalhes ao longo do Capítulo IV, encaminha os homens à verdadeira vida e

25
ESPINOSA, B. 2019, P. 196; G III, 76.
236

à salvação, as cerimônias se inscrevem no complexo relativo à felicidade temporal do Estado,


prometendo bens exteriores como as honras, a saúde, a segurança e tudo aquilo que diz
respeito à comodidade do corpo. A lei divina, na medida em que é deduzida da natureza
humana, tem caráter universal; já as cerimônias e demais instituições do Estado hebreu, na
medida em que deduzidas de seu ingenium, têm caráter transitório e particularizado, não
durando senão enquanto durar aquela configuração estatal específica.

A topologia que demarca uma realidade interior e outra exterior se metamorfoseia em


outras oposições particulares, que guiam os argumentos: lei divina e cerimônias; felicidade
temporal e felicidade eterna; espírito e corpo e, por fim, até mesmo moral e política. É o caso
de se perguntar se, para Spinoza, a política não é apenas o manejo contingente – entendendo
o termo como a cadeia necessária de eventos tal como aparece aos homens, e não como foi
instituída por Deus – das causas exteriores, de modo que, do ponto de vista do indivíduo
racional, que compreende o encadeamento, ela poderia ser descartada e substituída pela vida
moral plena, que Spinoza denomina, na Ética, de religião verdadeira. É claro que isto não é
factível na medida em que o realismo político de Spinoza, como expresso na abertura do
Tratado Político, toma como dado bruto o fato de os homens serem conduzidos por suas
paixões, procurando erguer uma teoria política consequente.26

Spinoza conclui, então, que, mesmo nos momentos em que são apresentados preceitos
morais ao longo do Pentateuco, estes não são apresentados como tais, mas sim como
comandos exteriores, como “ordens adequadas à compreensão e à maneira de ser [ingenium]
exclusivamente da nação hebraica, visando apenas, por isto mesmo, a prosperidade de seu
Estado”27. Daí por que Cristo não veio anunciar novas leis ou revogar as antigas: seus
ensinamentos em nada se encontram com os de Moisés, pois dizem respeito a outro assunto:
não há comunicabilidade entre os ensinamentos de ambos. A lei de Moisés não visava
ensinar, mas coagir: e isto por conta da “ignorância dos fariseus” [Pharisaeorum ignorantiam]

26
Diz Spinoza já no TTP: “Se os homens fossem por natureza constituídos de modo a que não desejassem senão
o que a verdadeira razão indica, com certeza que a sociedade não necessitaria de quaisquer leis, bastado apenas
fornecer aos homens os verdadeiros ensinamentos morais para que, espontaneamente e de inteira e livre
vontade, fizessem aquilo que é verdadeiramente útil. Quão diferente, porém é a constituição da natureza
humana! De fato, todos procuram o que lhes é útil, cobiçam coisas e julgam-nas úteis, não pelo ditame da sã
razão, antes arrastados pela libido e os afetos de ânimo, os quais não têm em conta o futuro nem as outras
coisas. Daí que nenhuma sociedade possa subsistir sem o poder e a força, nem, por conseguinte, sem leis que
moderem e coíbam a libido e os desenfreados impulsos dos homens”. Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 194-194; G
III, 73-74.
27
ESPINOSA, B. 2019, P. 190; G III, 70.
237

28
, que confundiam o viver em beatitude com a defesa das leis da república. Se Moisés
instituiu as cerimônias foi simplesmente para conter a insubmissão e o caráter bruto do povo,
incutindo-lhes a obediência diária, não permitindo que fizessem nada por seu bel-prazer,
lembrando-lhes a todo instante que estavam submetidos ao direito do Estado.

O comportamento dos hebreus parece oscilar, nos distintos momentos de sua história,
isto é, após a libertação da escravização dos egípcios e no interior de seu Estado teocrático,
entre a insubmissão e a extrema devoção29. Insubmissão inicial devido à experiência de
escravização que ora tiveram, que os fez rejeitar, a princípio, a dominação por outrem; e a
extrema devoção desenvolvida após a instituição das leis e do firmamento do pacto com
Deus: que garantia, através da religião de Estado, a obediência irrestrita – ou melhor, a
servidão. Informados quanto ao seu ingenium, resta precisar as origens e o funcionamento
deste Estado que poderia ter sido eterno30. Destacaremos a lógica afetiva que o guia,
procurando descrevê-la a partir da pluralidade de processos de interiorização e exteriorização
que o constituem particularmente.

Acústica e autoridade

Para compreender as particularidades do Estado hebraico, é necessário não só


determinar o ingenium de seu povo, mas também o de seu líder. Moisés foi o soberano que o
coordenou e o fez prosperar, libertando os hebreus da servidão egípcia para, em seguida,
encaminhá-los a outro gênero de submissão. Além de chefe de estado, foi um profeta de
excelência, destacado dos demais pelo gênero de comunicação que entreteve com Deus. Esta
característica o tornava moral e teologicamente superior aos demais indivíduos, um traço
importante para garantir a legitimidade de sua posição política. Para compreender a
singularidade de Moisés, devemos, antes de mais, percorrer a interpretação spinozista da
profecia ou conhecimento revelado.

28
ESPINOSA, B. 2019, P. 191; G III, 71.
29
ESPINOSA, B. 2019, P. 195; G III, 75.
30
É interessante refletir sobre a possível eternidade do Estado hebreu. Ao fim do capítulo XVII, Spinoza
declara: “Vemos, assim, de que modo a religião foi introduzida na república dos Hebreus e em que medida o seu
Estado teria podido ser eterno, se a justa cólera do legislador o tivesse deixado continuar na mesma”. (Grifo
meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 357; G III, 220). De maneira similar, ao início do XVIII: “Embora o Estado
hebreu, tal como o concebemos no capítulo anterior, pudesse ter durado indefinidamente, ninguém, contudo,
pode hoje em dia imitá-lo, nem seria aconselhável”. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 359; G III, 221).
238

Para a tradição judaica, como nota Gershom Scholem, a revelação assume os


contornos de um acontecimento de ordem acústica:

A verdade era, no sentido hebraico original, a palavra de Deus perceptível de maneira


acústica, ou seja, na linguagem. A revelação, segundo o ensinamento da sinagoga, é
um acontecimento acústico e não visual, ou que ao menos se produz numa esfera que
se relaciona metafisicamente com aquilo que é acústico e sensível. (Tradução minha.
SCHOLEM, G. 2018, P. 11)

A definição de profecia ou revelação que se encontra no primeiro capítulo do TTP


está em parte de acordo com o que propõe Scholem. Em parte porque esta – definida já nas
primeiras linhas como “o conhecimento certo de alguma coisa revelada por Deus aos
homens”31 – é um evento que pode assumir os contornos de uma experiência acústica e/ou
visual. A Profecia ou Revelação pode se dar tanto por palavras quanto por figuras – e em
alguns casos pelos dois. É, portanto, um fenômeno de caráter audiovisual que depende da
imaginação. Trata-se de um meio de comunicação que Deus escolheu estabelecer com alguns
homens (não todos, só aqueles dotados de uma imaginação vívida e de um caráter virtuoso,
isto é, piedoso32), para a qual não se podem apresentar maiores razões do ponto de vista do
entendimento. Assim, não é possível compreender as causas do fenômeno profético, mas
tampouco elas são importantes. É preciso lembrar que o TTP se situa do ponto de vista da
questão do sentido e não da questão do ser: assim, trata-se sobretudo de deduzir
discursivamente princípios compreensivos a partir da Escritura, sem se perguntar sobre o
valor de verdade destas mesmas deduções. “Quanto às causas de tais ensinamentos”33, isto é,
dos ensinamentos proféticos, “essas não nos interessam”34, diz Spinoza.

O conhecimento profético só se distingue do conhecimento natural nisto: no fato de


que suas causas não podem ser deduzidas diretamente das leis da natureza. Como
consequência, não se deve buscar no conhecimento profético, e menos ainda na Escritura, que
é a sua fonte, um saber científico. A profecia nada tem a ensinar sobre a natureza. Spinoza
concede que a profecia se estende para além dos limites do entendimento humano, mas
resiste, ao mesmo tempo, em conceder-lhe o status de saber “divino” – divino significando,
aqui, o mesmo que sobrenatural. A razão para isto é simples: a identidade entre Deus e
natureza torna inoperante a distinção entre conhecimento divino (sobrenatural) e natural, uma

31
ESPINOSA, B. 2019, P. 131; G III, 15.
32
Sobre a imaginação vívida e o caráter piedoso dos profetas, ver todo o Capítulo II do TTP.
33
ESPINOSA, B. 2019, P. 144; G III, 28.
34
Ibid.
239

vez que todo conhecimento, na medida em que deriva de um decreto de Deus, pode ser dito,
ao mesmo tempo, natural e divino.

Há mais sobre a profecia: as palavras e/ou imagens podem ser ditas verdadeiras ou
imaginárias. Serão verdadeiras quando o profeta tiver uma visão ou ouvir uma voz autêntica e
serão imaginárias quando, por exemplo, a revelação for dada em sonho. A voz com que Deus
chamou a Samuel (Samuel I, cap. III) poderia ser considerada, num primeiro momento, como
verdadeira, mas, como Moisés difere dos demais profetas, cumpre afirmar que, na verdade, a
voz que ouviu era parecida com a voz de Heli e que, portanto, a revelação aconteceu-lhe em
sonho. Nesta altura do texto, o argumento de Spinoza parece tendencioso: é necessário que a
voz de Deus ouvida por Samuel seja imaginária porque é preciso garantir a singularidade de
Moisés enquanto profeta. Os demais trechos bíblicos que corroboram com seu argumento
parecem ser secundários ou elencados de forma interessada, isto é, a fim de cumprir este
objetivo.

Qual é, afinal, a singularidade de Moisés? Trata-se, em primeiro lugar, do único


profeta que ouviu Deus por uma voz autêntica. A Escritura afirma que Moisés comunicou-se
com Deus face a face, isto é, “como um homem fala com seu amigo”35 (cf. Êxodo, 33, 11),
mas, ao mesmo tempo, que Deus escolheu não lhe revelar sua face, mostrando-se apenas de
costas (cf. Êxodo, 33, 23). Este “face a face” deve ser lido, então, segundo Spinoza, por mais
estranho que possa parecer, apenas no registro acústico. Além disso, a Moisés Deus se
revelou numa conversa, isto é, sem recurso a enigmas, sem uma visão hieroglífica. A
distinção entre palavras e figuras autênticas e palavras e figuras imaginárias, necessária para
garantir a singularidade de Moisés, pode induzir a uma confusão. Toda profecia é um trabalho
da imaginação, seja ela obtida por intermediários autênticos ou “imaginários” (talvez fosse
melhor denominar fictícios). O que é importante ressaltar, no caso da profecia, é esta
necessidade de mediações. Entre o profeta e a mensagem divina interpõe-se o corpo; e isto
até mesmo no caso de Moisés. Sua comunicação se estabelece através de um intermediário
sensível que é a voz (“por meio dos seus dois corpos”36, isto é, de Deus e de Moisés). Se a
profecia é um exemplo de conhecimento imaginativo e se sua nota característica é a
interposição de mediações, entende-se que a imaginação é o modo de conhecer que faz uso de

35
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 151.
36
ESPINOSA, B. 2019, P. 137; G III, 21.
240

mediações sensíveis, isto é, de elementos ou signos exteriores à ideia (que, no caso da


profecia, são as palavras e as figuras).

O conhecimento de ordem acústica, aquele em marcha no paradigma mosaico, não é


de todo estrangeiro à teoria do conhecimento spinozista. No Breve Tratado, para definir os
modos pelos quais são adquiridos “alguns conceitos ou a consciência do conhecimento de nós
mesmos e das coisas que estão fora de nós”37, Spinoza ergue uma hierarquia entre o
conhecimento adquirido simplesmente por crença (opinião), por uma verdadeira crença
(crença) e por uma intelecção clara e distinta (saber). O conhecimento por “ouvir dizer” se
insere na primeira categoria e está necessariamente sujeito ao erro38.

Para exemplificar estes três modos de conhecer, Spinoza recorre a um exemplo


conhecido por seus intérpretes, que se encontra tanto no TIE quanto na Ética, a saber, o
enigma da quarta proporcional. Como encontrar, numa sequência de três números, um quarto,
que esteja para o terceiro assim como o segundo para o primeiro? Entre aqueles que
procuram solucioná-lo, há os que ouviram dizer que a regra de três é um método confiável.
Agem, portanto, sem se perguntar se aquele que afirmou isto mentiu, isto é, sem maiores
reflexões, e repetem o ensinamento adquirido de alhures “como um papagaio repete o que lhe
ensinaram”39. No TIE, tal categorização é, no que se refere ao conhecimento por ouvir dizer,
retomada. “Há uma percepção que temos a partir do ouvir ou a partir de algum signo, como
se diz, arbitrário”40. São-lhe apresentados, no entanto, exemplos adicionais: o dia de meu
nascimento, quem são meus pais e “coisas semelhantes”41 são apreendidos apenas por “ouvir
dizer”42 (ex auditu). Ao retomar o exemplo da quarta proporcional, Spinoza agora determina
seu interlocutor: os mercadores (mercatores) são capazes de resolver o enigma a partir
daquilo que ouviram, sem demonstração, de seus mestres. Por último, é na Ética que, pela
primeira vez, o conhecimento por ouvir dizer é definido como conhecimento de primeiro
gênero ou imaginação, ao lado do conhecimento dado por experiência vaga. São “signos”,

37
ESPINOSA, B. 2014a, P. 92.
38
Estamos, aqui, num contexto de definição do conhecimento natural, ou seja, aquele que pode ser deduzido das
leis da natureza. Trata-se de um contexto distinto daquele do TTP, em que o que governa é a interpretação da
Escritura; e, no qual, a imaginação tem seu valor. Como já dito, a questão do erro – que é a questão da verdade
ou do ser – é substituída, naquele contexto, pela questão do sentido/coerência do texto.
39
ESPINOSA, B. 2014a, P. 93.
40
ESPINOSA, B. 2015c, P. 37.
41
Ibid.
42
Ibid.
241

isto é, elementos que foram ouvidos ou lidos ao longo da vida e que, com a ajuda da
memória, compõem ideias pelas quais imaginamos as coisas. No momento costumeiro de
apresentar o exemplo da quarta proporcional, são também os “negociantes” (mercatores43)
que “não cederam ao esquecimento o que escutaram do mestre sem nenhuma demonstração”
44
.

Vale observar, de passagem, a importância social, política e econômica dos


mercadores no contexto holandês ao qual pertencia Spinoza. Como nota Celine Hervet45, a
introdução do grupo social dos mercadores ou negociantes para descrever o conhecimento ex
audire não é gratuita: ela nos informa, também, sobre o componente de autoridade que lhe é
intrínseco. Os mercadores perpetuam e transmitem um saber obtido hierarquicamente através
de seus mestres, funcionando, eles mesmos, como mestres de seus pupilos. Nos três casos,
predomina a associação entre acústica e autoridade. Típico do conhecimento imaginativo é
tanto a generalização indevida a partir de experiências arbitrárias quanto a total ausência de
reflexão, isto é, trata-se de um conhecimento herdado por uma autoridade exterior – que pode
ser um mestre, os pais ou mesmo uma tradição –, cuja nota característica é a passividade.
Ouvir é sinônimo de assentir a uma autoridade externa. O conhecimento imaginativo não é
uma conquista, mas sim algo recebido e aceito sem maiores demonstrações. Esta associação
entre acústica e autoridade estará sempre presente, portanto, no paradigma profético.

Até o momento, temos nos preocupado em definir as causas da revelação, sobretudo


de seu ponto de vista cognitivo. Que aconteceria se invertêssemos nossa investigação e nos
perguntássemos, de agora em diante, por seus efeitos? Isto certamente envolveria a inserção
de um terceiro elemento nesta mecânica acústica: o auditório. Se a profecia é um
acontecimento que necessita, ao menos, de três atores – Deus, que revela sua mensagem, o
profeta, no caso, Moisés, que a ouve, e o auditório, que escuta a profecia de Moisés –, quais
são as consequências desta associação entre acústica e autoridade no que diz respeito a este
terceiro elemento, isto é, ao povo? Qual é, afinal de contas, a especificidade do ensinamento
mosaico e qual a teologia-política que pode ser dele deduzida?

43
O termo latino é o mesmo tanto no TIE quanto na E. Marcamos aqui apenas uma diferença de tradução.
44
ESPINOSA, B. 2015a, P. 201.
45
No artigo « Puissance et pouvoir de la parole. Judith Butler au prisme de l'anthropologie spinoziste du langage
», publicado na Revista Seiscentos, vol. 1, 2021.
242

Viver em segurança e em boa saúde é, para além da beatitude, um dos objetivos que
os homens podem “honestamente”46 pôr para si próprios. Para atingi-los, nada mais útil do
que a edificação de um corpo social ordenado com leis fixas. A construção de um Estado
atende à demanda por bens exteriores, e sua função é tentar ao máximo resistir ao império da
fortuna. Quanto mais seguro e cômodo for um Estado, e quanto mais tempo ele for capaz de
se autoconservar, mais excelente será.47 É exatamente nisto que reside, segundo Spinoza, a
“escolha” dos judeus: não por suas qualidades morais ou por sua inteligência, mas pela
potência de seu Estado derivada da virtude política de seu líder. A escolha dos judeus é,
portanto, uma anti-escolha, na medida mesma em que é esvaziada do sentido de vocação
(compreendida aqui como chamamento espiritual, no sentido de vocação que encontramos
em Paulo48, por exemplo). Este é o argumento central de Spinoza para recusar a noção de
vocação e exclusividade dos hebreus: tanto no que se refere à ideia de povo escolhido quanto
da de dom profético. A excelência de seu Estado, denominada felicidade temporal, difere
daquele gênero de felicidade proporcionada pela beatitude, que busca o conhecimento
adequado e o domínio das paixões, isto é, uma felicidade eterna. A felicidade temporal é
conquistada por uma observância estrita à lei: isto é, através da obediência do povo, de suas
ações exteriores. Ergue-se, assim, toda uma caracterização do Estado em geral, através da
definição do Estado hebreu em particular, que unifica uma série de operadores, dentre eles os
bens exteriores, o Estado, a lei e a obediência:

Deixo, porém, esta questão, visto que para o meu propósito era suficiente mostrar que
a eleição dos Judeus não tinha a ver senão com a liberdade e a felicidade temporal,
quer dizer, com o Estado, com o modo e os meios através dos quais eles o
conseguiram, e bem assim com as leis, na medida em que eram necessárias para a
estabilidade desse Estado particular, e com a maneira, enfim, como estas foram
reveladas. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 168; G III, 49)

Atenção à sentença final: e, com a maneira, enfim, como estas foram reveladas (et
denique modum, quo ipsae revelatae fuerunt). Ou seja: profeticamente. Acrescenta-se a esta
teia de características o elemento cognitivo: os bens exteriores, o Estado, a lei, a obediência e
a imaginação. Mais ainda: a acústica, uma vez que estamos, aqui, tratando especificamente
do caso de Moisés. Ergue-se todo um paradigma teológico acerca da forma de governar

46
ESPINOSA, B. 2019, P. 165; G III, 46.
47
Ver, para tanto, o Capítulo III do TTP.
48
Remeto ao endereçamento inicial da Carta aos Romanos e às análises de Agamben sobre o trecho. Ver
AGAMBEN, G. 2016.
243

coordenado por propriedades exteriores, o qual podemos, a partir de agora, designar por
paradigma da exterioridade.

O exemplo adâmico49 é, também, particularmente interessante para compreender o


funcionamento deste paradigma – ou, se quisermos, desta teologia-política – dominado pela
lei. Se Deus tivesse proibido Adão de comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do
mal manifestando sua vontade, isto é, dizendo que não queria que Adão o fizesse, então seria
simplesmente contraditório que Adão o tivesse comido (o que contraria o texto mesmo da
Escritura). Isto porque, em Deus, entendimento não se distingue de vontade, de modo que
querer, entender ou simplesmente determinar são um único e mesmo ato: Deus não poderia
ter querido algo e este algo não ter se dado necessariamente. Disso se conclui, então, e o
mesmo pode ser deduzido da Escritura, que Deus apenas revelou a Adão a consequência – o
mal – que adviria de tal ato, sem demonstrar sua total necessidade. Adão, por sua vez,
compreendeu a admoestação divina como uma lei: algo que é instituído por uma autoridade e
da qual deriva um prêmio ou um castigo, o que é diferente de compreender algo como uma
verdade eterna, isto é, pela necessidade de sua essência.

O mesmo se aplica ao caso dos hebreus50: como Deus usou de meios corporais para se
comunicar com eles, isto é, imaginativamente e, mais ainda, acusticamente, o decálogo foi
por eles entendido antes como lei do que como verdade eterna. Faltava aos hebreus o
conhecimento de Deus como uma verdade eterna, de modo que tiveram, então, de
compreendê-lo como um príncipe ou um legislador que institui determinações conforme seu
capricho. Por fim, Moisés, que, sabemos, também necessitou de mediações e intermediários
exteriores para se comunicar com Deus, acolheu igualmente sua mensagem como se fossem
preceitos, sem perceber que estes preceitos eram o melhor, isto é, verdades eternas que
encaminhariam à construção de uma sociedade estável e à manutenção da obediência por
parte do povo. É enquanto um legislador e um príncipe, ou seja, enquanto uma autoridade que
dá ordens que, se obedecidas, garantem um prêmio e, se infringidas, uma sanção, que Moisés
atua como o líder do Estado hebraico. Quando diz que não se deve matar, roubar ou praticar o
adultério, não prova as razões dos malefícios destas práticas, não as demonstra: mas as
institui verticalmente.

49
G III, 63-64.
50
Ibid.
244

Eis a teologia-política de Moisés: baseada na autoridade que obtém a partir da


comunicação que estabelece com Deus acusticamente, institui as leis para o povo da mesma
forma como as compreendeu, isto é, enquanto leis e não enquanto verdades eternas. O que se
pode concluir do exemplo mosaico é que, mesmo quando alternamos os níveis de abordagem,
isto é, quando saímos de sua comunicação com Deus para pensar sua comunicação com o
povo, há uma continuidade: não há diferença qualitativa, não há desnível quando há
modificação dos personagens em cena. Nos diferentes casos, Moisés – tanto em relação à
causa quanto ao efeito de seu ensinamento – é um representante de uma maneira de governar
guiada pela exterioridade e pela transcendência.

As origens do Estado hebreu

Em Altíssima pobreza, Giorgio Agamben segue sua investigação acerca das conexões
entre o direito e o vivente tomando como norte, desta vez, a vida monástica51. Nela, Agamben
encontrou um modo de vida inseparável de sua forma, uma confusão entre o direito e o
vivente, entre teoria e prática e, enfim, entre externo e interno. O conjunto de regras
destinadas ao comportamento diário, de “preceitos e técnicas ascéticas, de claustros e
horologia, tentações solitárias e liturgias corais, exortações fraternas e ferozes punições”52
características do monasticismo e, depois, do franciscanismo, exige que os termos “regra” e
“vida”, quando postos em relação, adquiram um novo significado, condensados na expressão
forma-de-vida. Para compreender esta indistinção, a análise do termo habitus é elucidativa.
Embora originalmente significasse “modo de ser ou agir”, a expressão passa a tomar, no
contexto da vida monástica, o sentido de “modo de vestir”53. O novo sentido do termo visa
estar à altura de um fenômeno prático: a moralização das vestes dos monges. O capuz, as
mangas curtas da túnica, as alças de lã ou o manto revelam, cada um, uma disposição de
caráter: respectivamente, a inocência e a simplicidade das crianças, a renúncia ao mundo, a
aptidão para o trabalho manual e a humildade. Além de um processo de sacralização da vida,
expresso na escolha por cada peça de vestimenta, podemos identificar, aqui, uma tentativa de
criar uma fluidez entre externo e interno e, finalmente, uma identidade entre ambos. A roupa
é um signo exterior de uma condição interior, um sinal de comprometimento que não escapa

51
Cf. AGAMBEN, G. 2014b.
52
AGAMBEN, G. 2014b, P. 9.
53
Reconstruo a exposição de Agamben presente nos pontos 1.6 e 1.7 do primeiro capítulo de Altíssima Pobreza.
Ver AGAMBEN, G. 2014b, P. 24-30.
245

à ambiguidade própria do habitus: que designa, ao mesmo tempo, “veste e modo de vida”54.
O vocabulário topológico, ainda que útil para fins de identificação, é, aqui, algo enganador,
pois introduz uma separação que não se verifica do ponto de vista da vida. Não é como se as
vestes representassem ou meramente expressassem uma condição interna, o que supõe uma
distância, ainda que mínima, entre um estado da alma e um emblema corporal. O hábito
compõe, com aquele que o ostenta, uma entidade única e só separável artificialmente, algo
como a união da alma com o corpo conforme descrita por Descartes, cuja imagem não pode
ser associada à do piloto que comanda um navio, mas sim a de um eu que, ao perceber seu
corpo, conclui que lhe está “conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e
misturado”55, compondo com ele um único todo.

O processo de interiorização dos signos exteriores, que culmina na inseparabilidade


entre externo e interno, parece se verificar não apenas no contexto do monasticismo e
franciscanismo, mas também na descrição spinozista acerca da manutenção do primeiro
Estado hebreu. Como afirma no Capítulo V do TTP, a vida do povo hebreu era um constante
exercício de obediência, na qual os mínimos aspectos cotidianos eram formalizados:

Não podia lavrar, semear ou ceifar à vontade, mas só de acordo com um certo e
determinado preceito da lei; nem sequer podia comer alguma coisa, vestir-se, cortar o
cabelo ou a barba, divertir-se ou fazer fosse o que fosse a não ser de acordo com as
ordens e indicações prescritas na lei. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 195-196; G
III, 75-76)

No trecho, Spinoza elenca algumas intervenções diretas sobre o corpo: não apenas a
vestimenta, ecoando o monasticismo tal como descrito por Agamben, mas também o ato de
cortar o cabelo e a barba, além dos costumes cotidianos que possuíam força-de-lei, e,
portanto, se convertiam em técnicas de governo, revestidas de significação política. Na
medida em que estas práticas visavam a criar uma noção de comunidade, contribuindo para a
edificação do Estado, a construção da identidade nacional e o gerenciamento da obediência,
pode-se constatar aí a existência de algo como uma biopolítica56. Empregamos o termo com
alguma liberdade, pois o conceito foucaultiano é originalmente atribuído a um momento
histórico específico: o estabelecimento da Idade Moderna, quando a vida natural (zoé),

54
AGAMBEN, G. 2014b, P. 27.
55
DESCARTES, R. 1973, P. 144; AT IX-1, 64.
56
Para o conceito de biopolítica, é fundamental verificar FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Cours
au Collège de France. 1978-1979. Paris: Gallimard/Seuil, 2004 e Surveiller et punir. Paris : Éditions Gallimard,
1975.
246

classicamente expulsa da esfera política, é integrada à pólis.57 Denominaremos biopolítica


hebraica a estratégia de governo caracterizada pelo gesto de sacralização da vida. Tal
sacralização se configura como a tentativa constante de interiorizar o exterior, de modo a
torná-los uma só realidade estática, impedindo maximamente qualquer contribuição da parte
da interioridade.

Temos, agora, de nos voltar diretamente ao texto de Spinoza, de modo a compreender


as vicissitudes da origem e manutenção daquele Estado. Sabemos que os hebreus eram um
povo de ingenium rude, cuja história a Escritura narrará a partir do momento em que se
desvencilharam da escravização egípcia. O evento fundador deste Estado é o pacto que
estabeleceram com Deus.58 Depois de libertos da opressão, se encontraram em estado de
natureza, no qual o direito natural voltou a pertencer a cada indivíduo. Nesta condição, sob o
conselho de Moisés, decidiram transferir o direito que os pertencia não a um mortal, mas a
Deus. O direito e toda legitimidade jurídica derivaria daquilo que Deus proclamasse por meio
da revelação profética. Foi por um ato livre que resolveram transferir sua potência individual,
e a fundação daquele Estado se aproxima da fundação de uma sociedade qualquer que se
estabelece por meio do pacto.

Há toda uma discussão sobre até que ponto a teoria política de Spinoza pode
efetivamente abranger a lógica do contrato, na medida em que esta parece introduzir um
imperium in imperio59 e algo como uma transcendência à ordem natural. Em carta a Jarig
Jelles60, Spinoza afirma que a diferença central entre a sua teoria política e a hobbesiana é o
fato de manter o direito natural mesmo após a fundação do Estado, o que introduz uma
desconfiança quanto ao dispositivo da transferência. Um dos objetivos do capítulo XVII do
TTP, dedicado ao exame do Estado hebreu, é demonstrar como é impossível e desnecessário
que os indivíduos transfiram a integralidade de sua potência individual ao soberano61:

57
Estamos mais próximos das conclusões de Agamben, para quem a biopolítica não é uma técnica nascida num
determinado momento da história de desenvolvimento do poder soberano, mas diz respeito à estrutura mesma de
tal poder. Cf. o que afirma na Introdução de Homo Sacer I: “A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão
antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não
faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim
(segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar nos âmbitos mais
diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii.” (AGAMBEN, G. 2014a, P. 14).
58
G III, 205.
59
A expressão surge, por exemplo, em E III, Prefácio.
60
Carta L.
61
Cf. o próprio título do capítulo (“Ostenditur neminem omnia in summam potestatem transferre posse, nec esse
necesse [...]”) e o que é defendido em G III, 201-202.
247

impossível porque, se abdicassem de toda a sua potência, deixariam de ser homens;


desnecessário pois, na prática, um Estado funciona melhor na medida em que deixa um
mínimo de espaço para a livre circulação das potências individuais (por exemplo, permitindo
a liberdade de consciência e expressão). Seja como for, parece que a teoria spinozista
comporta e, mais do que isso, que lhe é mais natural esperar que a formação da sociedade
civil se dê por uma organização fluida dos afetos individuais do que através da lógica da
transferência via contrato. O TP parece já abandonar o vocabulário contratualista, embora o
TTP ainda faça referência a ela62. Para nossos interesses momentâneos, cumpre assumir que,
ao menos no caso dos hebreus, Spinoza é claro: o evento fundador daquele Estado é o pacto,
e um pacto de ordem particular, estabelecido não com uma figura mortal, mas com o próprio
Deus.

A forma de governo efetivada pelo Estado hebraico poderia, num primeiro momento,
ser concebida como a expressão máxima da teologia-política, ao menos enquanto entendida
em sua manifestação superficial63, ou seja, como a intromissão direta do poder institucional
religioso na esfera política. Na medida em que tem Deus como único soberano legítimo, dado
o pacto que o povo com ele fundou, pode-se dizer que, ali, a conexão e mesmo a dependência
com o externo atingem seu caso mais paradigmático. A teocracia, forma de governo em que
os cidadãos estão subordinados ao direito revelado por Deus, seria o caso exemplar da
teologia-política: a de um Estado cujo conteúdo fundante lhe escapa. No entanto, a
caracterização que Spinoza avança do Estado hebreu nos exige uma reformulação desta
apreciação inicial. Distingue-se, de um lado, a tirania, forma de governo cuja fundação e
manutenção é dada por um processo de sacralização do soberano. Uma vez que os Estados
são mais ameaçados por seus cidadãos do que por inimigos externos (inútil reforçar a maior
importância dada ao interior neste caso), muitos reis, de modo a conquistar sua superioridade
perante o povo, procuraram “fazer crer que a sua estirpe ascendia aos deuses imortais”64. Um
expediente inverso é concretizado na teocracia (ou, ao menos, no exemplo específico da
teocracia hebraica): não a elevação de um soberano ao título de Deus, mas o deslocamento de

62
G III, 191-193; 205-207. Um tratamento mais detalhado deste problema pode ser encontrado em
MATHERON, A. « Le problème de l'évolution de Spinoza. Du Traité théologico-politique au Traité politique ».
In : MATHERON, A. 2011. P. 205-2018.
63
Para os dois sentidos possíveis da questão da teologia-política que elaboramos a partir de Schmitt, ver
Introdução.
64
ESPINOSA, B. 2019, P. 338; G III, 204.
248

Deus para a esfera profana. Neste aspecto, não há, como na formulação teológico-política,
mais adequada para a descrição da tirania, uma referência constante ao exterior, mas sim uma
tentativa de interiorizar este exterior e fazê-lo participar da realidade política.

Alexandre Matheron, a fim de expressar a absoluta particularidade do Estado hebreu,


considera que ali ocorreu uma sacralização do político, porque fora abolida toda distinção
entre religião e Estado.65 De fato, estes termos, naquela realidade, se tornaram
intercambiáveis, prova disso é que, como veremos, a legislação do Estado era idêntica aos
próprios comandos revelados aos judeus no monte Sinai66. Tal explicação deixa escapar, no
entanto, um aspecto a nosso ver essencial da descrição spinozista do Estado hebreu, a saber, a
inserção da vida dos cidadãos no cálculo estatal, ou seja, seu aspecto marcadamente
biopolítico. É bem verdade que o Estado se realiza justamente revestindo a política de um
traço sagrado, mas a política de que se trata aqui tem de ser entendida num sentido mais
amplo. Sugiro uma expressão alternativa à de Matheron: a teocracia hebraica realiza algo
próximo do fenômeno da encarnação67, no qual Deus participa das ações cotidianas da vida
individual e coletiva. E o Verbo se fez carne e habitou entre nós68: Deus enviou seu filho para
participar da esfera terrena, dando-lhe corpo e humanidade69, tornando-o vivo.

Embora este Estado tenha, por consequência, se autoproclamado o “Reino de Deus”70


e identificado Deus como o “Rei dos hebreus”71, seu funcionamento prático revela uma
particularidade interessante – se quisermos, uma anomalia. Duas características saltam aos
olhos: em primeiro lugar, o fato de terem estabelecido uma complicada relação com os
estrangeiros, motivada sobretudo pelo ódio piedoso: os inimigos daquele Estado não eram
inimigos quaisquer, mas inimigos de Deus; em segundo, e mais importante, transformar Deus
em figura legisladora, única detentora de direito, levou à identificação entre direito civil e
religião, de modo que as leis da pátria eram as leis da religião, que o crime civil era um crime
contra Deus, e que quem morria pela religião morria igualmente pela pátria.72 Apesar de todas

65
MATHERON, A. 1971, P.23.
66
G III, 206.
67
Para um estudo do conceito de encarnação, que enfatiza as disputas teológicas envolvidas em sua fabricação,
ver o trabalho de Ulrich B. Müller intitulado A encarnação do Filho de Deus. Concepções da encarnação no
cristianismo incipiente e os primórdios do docetismo (2004).
68
Tradução conforme Bíblia de Jerusalém, 2016, P. 1843; Jo 1, 14-15.
69
Fl 2, 6-7.
70
ESPINOSA, B. 2019, P. 341; G III, 206.
71
Ibid.
72
G III, 206.
249

estas características associadas à teocracia, a sociedade hebraica, do ponto de vista de seu


funcionamento prático, possuía os traços de uma democracia.

O pacto inicial transferiu o direito individual a uma figura ausente, e como a renúncia
se deu de maneira integral, estendendo-se à totalidade dos indivíduos, todos se tornaram
iguais perante a Deus. Como o que caracteriza o regime democrático é a transferência em
massa dos direitos naturais a todos73, o Estado hebreu era uma democracia avant la lettre:
pois quem governava, na prática, era o povo. Ocorre que a este primeiro pacto seguiu-se um
segundo, que terminou por abolir o primeiro. Assustados ao ouvirem a voz de Deus,
conscientes de que sua morte se daria naquele momento mesmo74, os hebreus “transferiram
por completo para Moisés o seu direito a consultar Deus e interpretar os seus éditos”75.
Passaram a se submeter não diretamente ao mandamento divino, mas à Sua mensagem
mediada pela palavra de Moisés. É claro que Moisés, a partir de então, passou a ser superior
aos demais cidadãos, mas estava, também ele, submetido ao direito divino tal como os
demais. Em seu exercício, no entanto, a sociedade não deixou de ser igualitária e de se
aproximar da democracia; e diversos artifícios singulares o confirmam.

Aos administradores do Estado, isto é, aos príncipes dos hebreus, estava vedado o
direito de interpretar livremente o corpus das leis, ao mesmo tempo em que este estava
disponível a toda a sociedade76. Era instituído que, de sete em sete anos, o povo deveria se
reunir para ser instruído nas leis pelo pontífice, além de ser obrigatória sua leitura e releitura
individual. Para não despertarem o ódio teológico do povo, então, os príncipes deveriam
observar maximamente as leis, cujo direito de interpretação era restrito à tribo dos levitas.
Além disso, o fato de o exército ser formado apenas por cidadãos impedia que fosse usurpado
pelos administradores com o fim de conter as sedições do povo. Impedia, também, que os
príncipes temessem a liberdade do exército, uma vez que, devido à devoção, estavam
convencidos a combater “não pela glória do príncipe, mas pela glória divina”77. Jamais,
portanto, a guerra era mais desejada do que a paz78. Como os que combatiam no exército
eram também os soldados, comandantes e juízes, era de seu interesse que a paz fosse

73
G III, 195; 206; 245.
74
Dt 5: 23-27.
75
ESPINOSA, B. 2019, P. 341. G III, 207.
76
G III, 212.
77
ESPINOSA, B. 2019, P. 349; G III, 213.
78
G III, 214.
250

observada. Também o receio de um novo profeta continha os príncipes em seus limites.79 A


qualquer momento poderia surgir um indivíduo piedoso que dizia trazer mensagens de Deus,
as quais poderiam inspirar os ânimos do povo contra ele. Isto aconteceria, é claro, apenas na
situação de o povo se sentir oprimido. Em situações em que o governo se comportava de
modo normal, o príncipe poderia moderar a ação do profeta: verificando sua vida, os sinais
confirmatórios de que era profeta, e, mais importante, se sua mensagem estava de acordo com
a legislação já instituída por Moisés. Caso contrário, o príncipe tinha o direito de o condenar
à morte. Um princípio de horizontalidade fundamentava a escolha pelos chefes: que só o
eram em razão da idade e virtude individual, e não por hierarquias externas como a nobreza
ou o direito de sangue80. A ausência prática da intervenção divina criou uma administração
que funcionava por meio de poderes e contrapoderes, contenções estritas e observação
máxima das leis por parte de cada estrato social. Na medida em que se consideravam todos
submetidos à mesma religião, a menor usurpação de direito por parte de um indivíduo era
imediatamente controlada pelos demais, que viam, nesta tentativa, não uma afronta externa,
mas um perigo direto e imediato a eles próprios.

Isto para apenas mencionar as atitudes que contribuíam para evitar que o poder
soberano se tiranizasse. Outras ações foram importantes para conter a insubmissão do povo,
evitando as sedições. Contribuía a isto, sobretudo, a observância dos interesses dos cidadãos.
Como se sabe, Spinoza situa o desejo na definição mesma da natureza humana: ele motiva
suas ações e também seus preconceitos, tais como a ficção do livre-arbítrio que sustenta o
finalismo supersticioso81. Caso seja possível criar um Estado em que este interesse seja
contemplado, os cidadãos estarão a ele “condicionados”82 e não pensarão em abandoná-lo. No
Estado hebreu, o direito de propriedade estava assegurado a todos os cidadãos, que possuíam
indefinidamente a mesma quantidade de terras que o príncipe.83 A caridade era igualmente
praticada, pois o amor por sua pátria, consequentemente por seus concidadãos, impedia que
se deixasse alguém incorrer em pobreza extrema. Praticavam, assim, um intenso altruísmo84.
O hábito diário da obediência era incutido sem que fosse consentido um espaço para livre

79
G III, 213-214.
80
Ibid.
81
Ver o Capítulo 1 deste trabalho.
82
ESPINOSA, B. 2019, P. 352; G III, 215.
83
G III, 216.
84
Ibid.
251

deliberação: os trabalhos manuais de subsistência só eram permitidos em certas épocas do


ano, segundo regras determinadas, e até mesmo os períodos de descanso e divertimento eram
convertidos em obrigações legais, instituídos como forma de obedecer à vontade divina. Para
evitar o tédio, o culto deveria se realizar em intervalos de tempo específicos, e a veneração
pelo templo e pelas leis, advindas do amor que tinham por si próprios e pelo Estado
compreendido como Reino de Deus, também serviam à moderação dos ânimos.85 O tripé
afetivo que sustentava o Estado hebreu, do ponto de vista dos cidadãos, articula amor próprio,
ódio exterior e devoção – esta última que, ao surgir combinada sobretudo com o ódio
diariamente conservado, eleva a extremos a resistência ao estrangeiro, e transforma a
condenação ao exílio, dado seu horror, como pena extinta.86

São, portanto, algumas medidas práticas – distribuição igualitária de terras, emprego


da caridade, observação estrita da lei segundo um princípio de horizontalidade social e
obediência cotidiana – associadas a determinados afetos – amor, ódio e devoção – que
mantinham o povo coeso e submisso, evitando a sedição e contribuindo para a estabilidade do
Estado. Esta caracterização parece suficiente para sustentar a hipótese de que, do ponto de
vista de seu funcionamento, o Estado hebreu mais se assemelhava a uma democracia, na qual
o direito pertencia a todos, do que a uma teocracia, na qual Deus atua como soberano
unilateral. O motivo para esta dualidade teórico-prática é justamente a tentativa, por ele
operada, de conter em si o exterior, quer dizer, de trazer Deus para a esfera imanente.
Evidentemente, isto não significa que possamos retirar daí um endosso spinozista da
teocracia: como sustenta Bove87, parece claro que o Estado hebreu realizava uma espécie de
servidão voluntária88, de modo que, para eles, “a obediência já nem devia parecer-lhes
escravidão mas liberdade”89; e que exemplificam exatamente aquele gênero de súditos sobre
os quais Spinoza teorizava, sem mencionar, ao início do capítulo: “homens que não
acreditem, não amem, não odeiem, não desprezem nem sejam arrebatados por nenhum outro

85
G III, 217.
86
G III, 215.
87
Nos já citados capítulos VII e VIII de BOVE, L. 1996.
88
O conceito remete ao texto de Etienne de la Boétie, intitulado Discurso da servidão voluntária, traduzido para
o português por Laymert Garcia dos Santos e publicado em 1982 pela Editora Brasiliense. Não faremos todas as
associações possíveis entre La Boétie e Spinoza neste trabalho. Na conclusão deste estudo, apostaremos numa
conexão possível entre a servidão voluntária e a explicação spinozista para o suicídio, e indicaremos uma
bibliografia adicional sobre o tema.
89
ESPINOSA, B. 2019, P. 352; G III, 216.
252

afeto a não ser em virtude apenas do direito do Estado”90. A dominação dos hebreus se dava
sobre seus ânimos, e não há dominação mais eficaz do que esta. Se experimentaram alguma
estabilidade, ela não pode receber o nome de paz, pois a paz não é a mera ausência de guerra
91
; e aquela cidade cujos súditos são inertes, incapazes de manifestar livre pensamento, é mais
corretamente denominada uma solidão do que de uma cidade92. Além disso, não seria
possível, nem aconselhável, procurar imitar os pressupostos do Estado hebreu93 . Não seria,
em primeiro lugar, sequer possível estabelecer um novo pacto com Deus; tampouco, em
segundo, útil criar um Estado que vivesse tão excluído do comércio exterior tal como o
Estado hebreu o era. Lembremos que a Holanda do século XVII devia sua relativa liberdade
de culto e expressão, ao menos em parte, à livre circulação comercial e abertura ao
estrangeiro.94 Em suma, os hebreus combatiam por sua servidão como se fosse por sua
salvação, a paz que experimentavam era, como afirma Leo Strauss, a paz dos desertos95, e
esta servidão, quando analisada, nos instrui sobre aspectos relevantes acerca da função social
que a religião pode num Estado assumir.

Spinoza dedicas as páginas finais do capítulo XVII, assim como as iniciais do XVIII,
para tratar da decadência deste Estado, a qual se deu não pela insubmissão do povo, mas pelo
fato de o pacto ser rompido e de um rei mortal ser instituído, abrindo o caminho, aos poucos,
para a fundação de novas seitas96. A república dos hebreus transformou-se, então, numa
monarquia, e o direito deixou de ser repartido a todo corpo da sociedade como o era outrora.
É claro que a exposição de Spinoza é muito mais detalhada e complexa, mas o tema da
decadência do Estado não nos interessará diretamente aqui.97 Gostaríamos de nos voltar a um
aspecto propositalmente negligenciado ao longo de nossa exposição, e que deve tomar, agora,
uma atenção concentrada: a dinâmica afetiva daquele Estado, composta pelo duplo par amor

90
ESPINOSA, B. 2019, P. 337; G III, 202.
91
ESPINOSA, B. 2009b, P. 45; TP, V, 4.
92
TP, V, 5.
93
ESPINOSA, B. 2019, P. 359; G III, 221 para este trecho.
94
Ver, para esta hipótese histórica, o trabalho de Henry Méchoulan intitulado Amsterdam au temps de Spinoza.
Argent et liberté. Paris: PUF, 1990.
95
STRAUSS, L. 1996, P. 297.
96
O monoteísmo cumpre papel importante na manutenção do primeiro Estado hebreu. É Alexandre Matheron
quem chama a atenção para este aspecto: de fato, condensar a devoção em um único Deus parece mais eficaz, do
ponto de vista das consequências para o Estado e o direito, do que multiplicá-la em diversas crenças, as quais
podem, inclusive, gerar desavenças entre os súditos. Ver MATHERON, A. 1971, P. 18.
97
Limito-me a remeter o leitor ao o artigo de Sylvain Zac, que descreve detalhadamente a interpretação
spinozista da origem e destruição do Estado hebreu, cf. ZAC, S. “Spinoza et l’état des Hébreux”. In: Revue
Philosophique de la France et de l'Étranger, T. 167, No. 2, Spinoza (I) (Avril-Juin 1977), pp. 201-232.
253

devoto e odium theologicum, e, é claro, a uma descrição desta mecânica a partir dos
processos de interiorização e exteriorização que lhe constituem.

Um patriotismo servil

Naquele que é talvez seu mais célebre conto fantástico, Guy de Maupassant tece a
seguinte observação em tom aristocrático:

14 de julho — Festa da República. Passeei pelas ruas. Os foguetes e as bandeiras me


divertem como a uma criança. Porém, é muito estúpido ficar feliz numa data fixa, por
decreto do governo. O povo é uma tropa de imbecis, ora estupidamente paciente, ora
ferozmente revoltado. Dizem-lhe: “Divirta-se”. Ele se diverte. Dizem: “Vá guerrear
com o vizinho”. Ele vai guerrear. Dizem: “Vote pelo imperador”. Ele vota pelo
imperador. Depois lhe dizem: “Vote pela República”. E ele vota pela República.
(MAUPASSANT, G. 2009, P. 697)

O que escandaliza, na divagação do narrador, é que não apenas o voto é controlado, o


que poderia mais comodamente ser explicado apelando para a esfera do cálculo de interesse
racional, mas também os momentos de diversão: é, segundo ele, muito estúpido alegrar-se em
data fixa, decretada pelo governo. Como explicar esta espécie de servidão que, de tão íntima,
é capaz de governar até mesmo os ânimos dos súditos?

Spinoza, como vimos, se viu confrontado, no TTP, com um problema próximo.


Embora a transferência total da potência individual ao soberano seja impossível, a
experiência demonstra que se pode conceber sem contradição indivíduos cujos afetos sejam
maximamente coordenados pelo Estado98: assim o era no Estado hebreu. Esta captura afetiva
não se deu, no entanto, por meios puramente impositivos, quer dizer, sem iniciativa da parte
do povo. Em primeiro lugar porque os hebreus decidiram, no pleno exercício de suas
faculdades, sem serem coagidos por outrem, a renunciar a seu direito quando estabeleceram o
primeiro pacto com Deus e o segundo com Moisés. Em segundo, porque, dada a
administração daquele Estado, tinham direito pleno à propriedade e a um auxílio mútuo,
perpetuado pela caridade para com os concidadãos, que tornava a existência pacífica e
estável. A adesão ao poder se explica por investimentos do desejo e do interesse, este último
definido como “a força e a vida de todas as ações humanas”99. Sua servidão, portanto, era
voluntária.

98
ESPINOSA, B. 2019, P. 337; G III, 202.
99
ESPINOSA, B. 2019, P. 352; G III, 215-216.
254

Pode-se descrever o funcionamento político-afetivo do Estado hebreu como um


processo complexo que engloba simultâneas interiorizações e exteriorizações. Há, como
vimos, um primeiro procedimento de interiorização da figura divina, que passa a atuar
plenamente na esfera terrestre, informando e coordenando tanto a política institucional quanto
a vida dos súditos. Depois deste primeiro procedimento global de interiorização do exterior e
de sacralização da própria vida, há um segundo: desta vez, as leis são incorporadas aos
ânimos dos súditos, resultando na escravização afetiva. A interiorização da lei gera, por fim,
um terceiro movimento, quer dizer, um comportamento, pois se exterioriza no duplo processo
de caridade para os iguais e ódio teológico para os estrangeiros. Em seguida, trataremos de
compreender os dois últimos processos em termos das dinâmicas afetivas daquele povo.

Que seja anunciado brutalmente: a interiorização da lei que implica servidão afetiva é
operada através do amor. Segundo Descartes100, o amor é “uma emoção da alma causada pelo
movimento dos espíritos que a incita a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem
convenientes”101. O primeiro passo para amar um objeto, um animal ou uma pessoa é dedicar
a ele certa estima, ou seja, considerá-lo como conveniente à nossa própria constituição. Em
seguida, esta estima nos levará a construir com o objeto exterior uma espécie de todo “do
qual pensamos constituir apenas uma parte, e do qual a coisa amada é a outra”102. Assim, a
palavra voluntariamente, presente na definição inicial do amor, deve ser remetida não
propriamente ao desejo, que é, segundo Descartes, uma paixão à parte relacionada ao futuro,
mas sim ao investimento positivo na construção ficcional – pois trata-se apenas de um
produto da imaginação – deste todo.

Ainda segundo Descartes, o amor pode modificar-se em simples afeição, amizade ou


devoção.103 No primeiro caso, a estima nutrida pelo objeto amado é menor do que aquela que
nutrimos por nós próprios (como quando nos afeiçoamos a um animal de estimação). No
segundo, a estima é idêntica: e só se pode manter amizade com um homem, único que admite
uma consideração de igualdade mínima. A devoção, por fim, ocorre quando a estima pelo
objeto é maior do que aquela que temos por nós mesmos: consideramo-nos inferiores a ele.

100
Tratei brevemente da definição cartesiana de amor numa seção de minha dissertação de mestrado. Ver
RAMOS, C. S. 2017, P. 227-237.
101
DESCARTES, R. 1973, P. 257; AT XI, 387.
102
Ibid, P. 258; Ibid.
103
AT XI, 389-391.
255

Trata-se de um sentimento normalmente manifestado para com a divindade ou o soberano, ou


ainda para com país ou a cidade de origem, embora também seja possível ser devoto a um
homem particular. As diversas modificações do amor são facilmente reconhecíveis por seus
modos de exteriorização: na simples afeição, posto que nos consideramos mais importantes,
estamos mais dispostos a abdicar do objeto do que de nosso interesse; ao passo que, no
extremo oposto, ou seja, na devoção, o objeto amado é posicionado em primeiro plano, e
preferimos a morte à sua perda:

No que concerne à devoção, seu principal objeto é, sem dúvida, a soberana


Divindade, em relação à qual não podemos deixar de ser devotos quando a
conhecemos como se deve; mas podemos também sentir devoção por nosso príncipe,
pelo nosso país ou nossa cidade, e mesmo por um homem particular, quando o
estimamos mais do que a nós próprios. Ora, a diferença que existe entre essas três
espécies de amor aparece principalmente através de seus efeitos; pois, posto que em
todas nos consideramos unidos e juntos à coisa amada, estamos sempre prontos a
abandonar a parte menor do todo que se compõe com ela para preservar a outra; o
que faz com que [...] na devoção se prefira de tal modo a coisa amada ao eu próprio
que não se receia morrer para conservá-la. Viram-se muitas vezes exemplos disso nos
que se expuseram à morte certa em defesa de seu príncipe e de sua cidade, e até,
algumas vezes, de pessoas particulares às quais se haviam devotado. (DESCARTES,
R. 1973, P. 259; AT XI, 390-391)

Como demonstrou Alexandre Matheron104, o todo resultante da situação amorosa faz


com que o amante usufrua das perfeições daquele objeto amado, como se o digerisse. Na
experiência da devoção, a identidade do amante é incorporada ao todo que compõe com o
objeto amado. Por isso perder o objeto, ameaçar a existência do todo, é como perder-se a si
próprio. Destaca-se, por fim, o modo como a devoção parece pertencer, para Descartes, a um
ambiente teológico-político por excelência.

Ainda que discorde desta definição de amor – pois a vontade de unir-se à coisa amada
é simplesmente uma propriedade, e não a essência deste afeto105 –, é certo que Spinoza
concorda com Descartes ao classificar a devoção como um afeto fundamentalmente
teológico-político. Para ele, a devoção é “o amor àquele que admiramos”106. A admiração, por
sua vez, definida como a imaginação de uma coisa singular que ocupa a mente sozinha107, se
metamorfoseia em consternação se a dirigimos a um objeto que tememos, em horror se o que
nos toca é a ira ou a inveja de um homem e em veneração se é a prudência/indústria de um

104
MATHERON, A. « Amour, digestion et puissance selon Descartes ». In : MATHERON, A. 2011, P.55-65.
105
EIII, Def. dos Afetos, VI, Explicação.
106
ESPINOSA, B. 2015a, P. 345; EIII, Def. dos Afetos, X.
107
EIII, P. LII, esc.
256

homem o que nos chama a atenção. No caso da veneração, “contemplamos este homem como
nos superando amplamente”108: nos termos cartesianos que vimos acima, a estima que
nutrimos por ele é maior do que aquela que nutrimos por nós próprios. É, portanto, unindo o
amor à admiração transfigurada em veneração que se concebe a devoção.

Retornemos, enfim, aos hebreus. Este sentimento de morte iminente pela pátria era
por eles conhecido: “todos deviam [...] estar-lhe tão ligados que preferiam morrer a serem
dominados por estrangeiros”109. Nada mais vergonhoso do que trair a pátria amada, o que era
o mesmo que trair a Deus; nada pior do que habitar em terra estrangeira, e nenhuma pena
poderia ser equiparável ao terror do exílio. O amor que tinham à pátria e, na medida em que
dela participavam compondo um único todo, o amor que nutriam por si próprios, os fazia
estimar-se além da medida, resultando na certeza de sua vocação e exclusividade do dom
profético. A exagerada estima de si derivada de extremo amor próprio tem, para Spinoza, um
nome preciso: a soberba110. Embora não mencione a soberba no capítulo dedicado à dedução
afetiva do Estado hebreu, as passagens sobre o amor que nutriam por Deus e pela pátria, bem
como a severa desconstrução da ideia de nação escolhida operada ao longo do capítulo III nos
permite avançar esta classificação.

O amor convertido em devoção e soberba era temperado por um afeto adicional: a


piedade. Na Ética, a piedade é definida como “o Desejo de fazer bem que é engendrado por
vivermos sob a condução da razão”111. Ora, não parece ser esta a piedade dos hebreus. Parece
claro que não viviam sob a condução da razão: moviam-se, antes, por certa ficção em torno
de seu ideal de nação, conservado pelo amor à pátria e, em última análise, a si próprios
enquanto todo. Ainda, a razão envolve o universalismo, de modo que a prática externa do
bem deve valer para todo e qualquer indivíduo (como no ensinamento do Cristo). O bem era
praticado, naquele Estado, apenas para com os concidadãos: como vimos, a caridade deveria
ser maximamente observada, de modo a evitar a pobreza e a miséria. Se há piedade neste
amor, trata-se de uma de gênero particularmente limitado, devido a sua origem passional,
manifestada apenas na constância do bom comportamento para com os iguais.

108
ESPINOSA, B. 2015a, P. 319; Ibid.
109
ESPINOSA, B. 2019, P. 350; G III, 214.
110
EIII, Def. dos Afetos, XXVIII.
111
ESPINOSA, B. 2015a, P. 433; EIV, P.XXXVII, esc.1.
257

Apesar de dirigido a um Deus compreendido de modo antropomórfico, apesar de


engendrar a soberba e de limitar a prática do bem aos concidadãos, o afeto que sustenta a vida
psíquica e social dos hebreus é este amor devoto. Respondemos, em parte, nossa indagação
inicial, corroborada pela perplexidade do narrador do conto de Maupassant: “não há nada que
mais arrebata os ânimos que a alegria nascida da devoção, isto é, do amor junto com a
admiração”112. É, portanto, um afeto positivo, que aumenta a potência de agir, que faz passar
de uma perfeição menor a uma maior, um dos pilares de sustentação daquela regime de
escravização – e este componente ativo explica porque sua vida não lhes parecia servidão,
mas liberdade113. Explica também toda a potência deste processo de interiorização máxima da
lei: tudo o que vinha determinado por autoridade exterior era tomado como índice da
perpetuação daquele Estado de aspecto divino e da perpetuação da própria existência dos
indivíduos e da comunidade. O amor devoto, porém, era complementado por uma paixão
adicional, esta de caráter negativo, e que contribuía para sua servidão.

Odium theologicum

Com a publicação, em 1670, do Tratado Teológico-Político, um dos afetos


despertados no leitor teólogo – ou, simplesmente, no leitor interessado em assuntos de ordem
teológica – certamente foi o ódio. Para confirmá-lo, basta considerar seja a numerosa
quantidade de refutações produzidas ao Tratado já a partir do ano de sua publicação, seja o
tom agressivo com o qual o livro foi recebido. Uma das primeiras reações documentadas foi a
do teólogo alemão Jakob Thomasius, antigo professor de Leibniz na Universidade de Leipzig,
que clamou pelo banimento do texto em todos os países, afirmando que seu autor era ateu e
suas ideias ímpias. Provavelmente composto em 1670, mas apenas publicado em Utrecht em
1671, a Epistola ad amicum de Johan Melchior – que fora professor de teologia em Duisberg
– censurava o livro e estabelecia o caráter irreligioso de seu autor. Em 1675, Johannes
Bredenburg escreveu sua Enervatio Tractatus Theologico-Politici, posicionando-se contra,
entre outras teses, o suposto fatalismo de Spinoza e o dano que a sua concepção de religião
poderia causar para a correta adoração a Deus. Talvez a classificação mais radical venha, no
entanto, da pena de Blyenbergh, interlocutor de Spinoza que já conhecemos. Para ele, o TTP
ostenta um conjunto de opiniões “forjadas no inferno”114, que deveriam ser consideradas

112
ESPINOSA, B. 2019, P. 353; G III, 216-217.
113
ESPINOSA, B. 2019, P. 352; G III, 216.
114
NADLER, S. 2011, P. 232.
258

detestáveis não só por todo cristão, mas por todo indivíduo razoável. Subscrevendo a
fórmula, um panfleto anônimo contendo a suposta lista de livros que pertenciam a Johan de
Witt, publicado a fim de prejudicar sua imagem, classificava o TTP como um livro forjado no
inferno, num esforço conjunto entre seu autor e o próprio diabo.115 Spinoza estabeleceu
contato direto com estas manifestações de ódio e repulsa, sobretudo se considerarmos os
testemunhos epistolares de Lambert De Velthuysen, endereçado a Jacob Ostens116 e
encaminhado a Spinoza em 1671117, e de Albert Burgh, em 1675118, a ele dirigido.

A proliferação dos ataques, tanto por parte dos teólogos calvinistas e cartesianos,
conservadores e moderados, quanto aquelas verificadas nas respostas institucionais
persecutórias que, por razões a serem especuladas, surgiram apenas três anos após a
publicação do dito livro119, motivaram Spinoza a retardar a publicação da Ética, inicialmente
prevista para o ano de 1668. Naquela altura, circulava um rumor de que o autor do já
abominável tratado pretendia lançar um novo livro, no qual demonstrava a inexistência de
Deus. Alguns teólogos resolveram, diante disso, levar o assunto ao príncipe e aos
magistrados.120 É quase irônico, se não fosse confirmatório de certo comportamento, que no
Prefácio do TTP Spinoza faça alusão ao fato de que é mais fácil detectar os indivíduos que
professam a religião cristã por seus arroubos públicos de ódio do que por suas ações de
piedade121. A razão para “combaterem-se com tal ferocidade e manifestarem cotidianamente
uns para com os outros um ódio tão exacerbado”122 é o fato de o vulgo dirigir, aos líderes da
religião, uma glória e uma pompa mundana, incutindo-lhes afetos como o da avareza e

115
As informações deste parágrafo foram fundamentalmente retiradas de NADLER, S. 2011. Ps. 215-240.
Estudos importantes sobre a recepção do TTP logo após a sua publicação podem ser encontrados em ISRAEL, J.
“The early Dutch and German reaction to the Tractatus Theologico-Politicus: foreshadowing the
Enlightenment’s more general Spinoza reception?”. In: MELAMED, Y. ROSENTHAL, M. (eds). Spinoza’s
Theological-Political Treatise: A Critical Guide. Cambridge: Cambridge University Press, 72-100;
KOLAKOWSKI, L. “Bredenburg. L’irrationalisation de la religion, produit du rationalisme”. In: Chrétiens sans
Église. La Conscience religieuse et le lien confessionnel au XVIIe siècle. Paris: Gallimard, 1987. P. 250-292;
GOOTJES, A. “The First Orchestrated Attack on Spinoza: Johannes Melchioris and the Cartesian Network in
Utrecht”. In: Journal of the History of Ideas, Volume 79, Number 1, January 2018, pp. 23-43 e BEGLEY, B.
“Naturalism and its political dangers: Jakob Thomasius against Spinoza's Theological-Political Treatise. A
study and the translation of Thomasius’ text”. In: The Seventeenth Century, Volume 34, 2019 - Issue 5, Ps.
1-22.
116
Ver Carta 42.
117
Conforme a resposta de Spinoza na carta 43.
118
Ver carta 67.
119
Cf. NADLER, S. 2011, P. 229.
120
Ver a Carta 68.
121
G III, 8.
122
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P.126; G III, 8.
259

ambição. Rapidamente, o culto se transformou numa oportunidade para deixar o vulgo


maravilhado, ao invés de fornecer uma instrução para a verdadeira vida.123 Uma denúncia
análoga foi feita por Louis Meyer no Prólogo de seu A filosofia intérprete da Escritura Santa
(1666): os teólogos não poderão considerar seu livro senão com cólera e indignação, pois é
assim que recebem os escritos daqueles que ousam questionar os dogmas estabelecidos por
seus mestres. Seu poder se limita a “desvalorizar um nome desde que o conhecem, e a
torná-lo odioso ao populacho e ao vulgo ignorante”124. Todos estes registros nos fazem crer
que o ódio não era uma exceção, mas uma atitude corriqueira e mesmo esperada da parte de
certo grupo religioso ao menos no interior das querelas teológicas da Holanda do século
XVII.

Há quem defenda, não obstante, que o próprio Spinoza manifestava sub-repticiamente


certo ódio por um grupo social em particular. Em Le Sage Trompeur, Jean Claude Milner
descortina um Spinoza distinto daquele que é historicamente recuperado pelas leituras
proto-iluministas125. O pressuposto oficial destas últimas, segundo Milner, é o de que, para
que os judeus possam participar dos direitos dos homens e dos cidadãos, não é necessário que
abdiquem de seu vínculo confessional126. Por meio de uma análise minuciosa da
argumentação que se estende ao longo do que denomina o manifesto Hodie Judaei –
transcrevendo as palavras iniciais do §12 do terceiro capítulo do TTP127 –, sua conclusão é a
de que para que um Estado seja materialmente possível, segundo Spinoza, é necessário que
não exista nenhum indivíduo que se assuma publicamente judeu.128 Para que possam gozar
dos direitos dos homens e dos cidadãos, portanto, exige-se seu apagamento, através de uma
integração forçada. Com todo o escândalo que a tese pode suscitar, dada a origem do autor,

123
Pierre-François Moreau (MOREAU, P.F. “Sacerdos levita pontifex: les prêtres dans le lexique du Traité
théologico-politique”. In: Kairos, 11 (1998) 33–40) sustenta que Spinoza está, aqui, tratando do ódio teológico.
Vale lembrar, porém, que Spinoza não emprega esta expressão no contexto do Prefácio: ela surgirá apenas no
Capítulo XVII, para tratar do ódio que o povo hebreu, no regime teocrático, poderia vir a dirigir a seu soberano.
É claro que a expressão tem uma história pregressa e posterior ao uso spinozista, mas nos resguardamos, aqui, a
empregar a expressão somente para descrever o fenômeno específico do ódio encontrado na teocracia hebraica.
124
Grifo e tradução meus. MEYER, L. 1988, P. 21.
125
Para estas leituras, ver Introdução.
126
MILNER, J.C. 2013, P. 104.
127
G III, 56.
128
Na verdade, Milner amplia esta conclusão para o nascimento da Europa democrática como um todo, que,
segundo ele, surge não apesar do extermínio judaico, mas por causa dele. Ver MILNER, J.C. Les penchants
criminels de l’Europe démocratique. Paris : Verdier, 2003.
260

Milner não teme pronunciar a expressão perseguição; e sua sugestão é pura e simplesmente a
de um Spinoza antissemita.

Os controversos dois últimos parágrafos do terceiro capítulo do TTP129 se inserem no


seguinte contexto argumentativo: Spinoza procura deslegitimar a tese da vocação dos hebreus
sob duas condições principais – a eternidade e a incondicionalidade desta. O complexo que se
pavimenta nestes parágrafos envolve tanto referências à teoria afetiva spinozista –
notadamente sua teoria do ódio – quanto questionáveis130 dados históricos. Um objetor
imaginário poderia contestar as conclusões spinozistas atentando para o fato de que os judeus,
ainda que sem Estado próprio, subsistiram até àquela época, mesclando-se em outras nações.
Isto poderia sugerir a sua capacidade de coesão e, talvez, no futuro, mobilizar a refundação de
um Estado identitário autônomo. Tal como o texto se apresenta, a razão para a coesão dos
judeus é, segundo Spinoza, o ódio que suscitam nas demais nações; ódio este criado e
motivado pelo fato de terem se apartado destas, de insistirem nas práticas de culto externo e,
por fim, graças ao sinal da circuncisão (que embora não seja propriamente um culto externo,
dado seu ocultamento aos olhos, configura prática cerimonial característica desta seita). Isto
verificar-se-ia no exemplo Espanhol, no qual o rei constrangeu os judeus ou bem à conversão
ou ao exílio. Como muitos teriam preferido a conversão, e tendo os mesmos obtido cargos
honoríficos, logo se integraram à sociedade, o que levou ao desaparecimento do nome judeu.
No caso português, ao contrário, a conversão não levou à integração, por conta, sempre
segundo Spinoza, de não terem recebido os mesmos cargos que na Espanha.

Milner mostra-se sobremaneira interessado no tratamento spinozista do ódio porque é


neste ponto que encontra um flagrante paralogismo131. A hipótese de que o ódio mantém a
existência dos judeus é provada pela tese oposta, a saber, a de que o desaparecimento do ódio
os extingue (conforme concluído a partir do exemplo espanhol). Não deve, porém, o ato
inicial do rei da Espanha, o de constranger os judeus à conversão ou ao exílio, ser também ele
classificado como um ato de ódio? E, se assim o for, não é o fim do ódio que faz os judeus
desaparecerem, mas, ao contrário, um ato de ódio direcionado a um objetivo específico:
prova-se, portanto, a tese oposta. Milner assume, ao longo de sua exposição, uma versão

129
G III, 56-57.
130
Conforme MILNER, J.C. 2013, P. 26, 34 e também MÉCHOULAN, H. Les juifs du silence au Siècle d’Or
espagnol. Paris: Albin Michel, 2003.
131
MILNER, J.C. 2013, P. 33.
261

minimalista da hermenêutica da suspeita de Leo Strauss, que promulga, em termos breves,


que os erros notáveis de um texto clássico, do qual espera-se observação estrita das regras
lógicas, quando escritos em tempos de perseguição política, são, na verdade, mensagens
cifradas, que devem, assim, ser corretamente interpretados pelo leitor atento.132 As conclusões
são aquelas já aludidas: Spinoza lança-se, na contradição do texto, pró-integração dos judeus,
seja no contexto de Estado autoritário (constrangimento sem ódio) seja no de um Estado livre
(no qual a razão deve operar em prol da assimilação)133; o que nada mais é do que uma versão
velada do endosso à sua perseguição.

As consequências que Milner retira de sua leitura, embora argumentadas com rigor,
não serão subscritas por nós. É importante reter de sua interpretação, no entanto, alguns
aspectos. Em primeiro lugar, o mérito de trazer a questão do ódio para o centro do debate
teológico-político no contexto retórico do TTP. Em segundo, aberto este caminho, ela nos
servirá de contraste. Enquanto Milner se concentra no ódio que as demais nações dirigem aos
judeus, gostaríamos, aqui, de tratar do ódio que estes nutriram pelas demais nações num certo
período de sua história – o que denominaremos, a partir de agora, de ódio pelo exterior. Uma
análise do mecanismo de desenvolvimento do ódio no cotidiano do primeiro Estado hebreu
nos encaminha não apenas à conclusão de que, para Spinoza, uma comunidade política pode
funcionar de maneira exemplar ainda que seu vínculo afetivo básico seja seu ódio comum a
um inimigo exterior, mas também a de que, no exemplo da teocracia hebraica, o ódio cumpre
papel relevante no movimento de interiorização do exterior: que, como vimos, é o princípio
de funcionamento daquela teocracia de contornos democráticos.

Assim, o amor devoto explica apenas em parte a dinâmica afetiva do Estado hebreu.
Falta seu complemento imediato: o ódio. Uma vez que se tratava de uma teocracia, os afetos
comunitários estavam sempre informados pelo processo de sacralização da existência, de
modo que se tratava não de qualquer ódio, mas de odium theologicum. Eis, segundo Spinoza,
o “pior ódio dos súditos”134. O amor próprio, patriótico, era complementado por um ódio ao
exterior: odiar as demais nações fazia parte de suas práticas cotidianas. Este ódio se
considerava piedoso: e apenas se considerava, uma vez que, efetivamente, o ódio jamais pode

132
MILNER, J.C. P. 20.
133
MILNER, J.C. 2013, P. 101.
134
ESPINOSA, B. 2019, P. 348; G III, 212.
262

sê-lo135. O ódio profundo que sentiam pelos estrangeiros, inimigos do reino de Deus, era
ainda aumentado pela reciprocidade136: as demais nações, porque odiadas aparentemente sem
razão137, odiavam o Estado hebreu na mesma medida.

Se o TTP nos apresenta o ódio exemplificado na teocracia hebraica, a Ética nos


fornecerá indicações preciosas em direção a uma teoria geral deste afeto. Sabe-se que, para
Spinoza, são três os afetos primários: a alegria, a tristeza e o desejo138. O ódio nada mais é
que uma variação de tristeza; notadamente quando surge, na mente, associada a uma causa
externa139. O comportamento daquele consumido pelo ódio é o de “afastar ou destruir a coisa
de que tem ódio”140. Contrariamente à definição cartesiana do ódio, segundo a qual esta
paixão implica a criação de um “todo só inteiramente separado da coisa pela qual se tem
aversão”141, o ódio spinozista parece, ao menos numa primeira apreciação, trazer algo de mais
ativo, na medida em que decreta a destruição do objeto digno de ódio. Outra diferença
notável é o fato de que, para Descartes, as espécies de ódio não são tão numerosas quanto as
de amor142 – que, como vimos, assume uma tríade de modificações possíveis143; enquanto
que, para Spinoza, ao menos se seguirmos o curso expositivo da terceira parte da Ética,
encontraremos tantas espécies de ódio quanto de amor, definidas sempre em par. Alguns
destes gêneros seriam a superestima e o despeito (dois indivíduos postos em relação); a inveja
e a misericórdia (novamente dois indivíduos); apreço e a indignação (um indivíduo face às
ações que um terceiro comete em relação a outro), a soberba e a abjeção (um indivíduo em
relação a si próprio)144, para citar alguns exemplos. Apesar disso, do ponto de vista da terapia
afetiva particular a cada autor, Descartes concede importância superior ao ódio, na medida
em que este é mais necessário que o amor: é mais importante repelir as coisas que nos fazem
mal do que acrescentar uma perfeição da qual podemos prescindir sem maiores danos.145 Para

135
EIV, P. XLV.
136
EIII, P. XLIII.
137
EIII, P. XL.
138
EIII, P. XI, esc. Contrariamente a Descartes, que elenca uma lista de seis paixões primitivas: a admiração, o
amor, o ódio, o desejo, a alegria e a tristeza. Ver artigo 69 das Paixões da Alma (AT XI, 380).
139
ESPINOSA, B. 2015a, P. 261; EIII, P. XIII, esc.
140
Grifo meu. Ibid.
141
Grifo meu. DESCARTES, R. 1973, P. 258; AT XI, 387.
142
AT XI, 391.
143
AT XI, 389-390.
144
Ver as Definições dos Afetos, ao fim da EIII, para uma exposição detalhada.
145
Diz Descartes no artigo 137 das Paixões: “O que mostra que todas as cinco [paixões] são muito úteis com
respeito ao corpo, e mesmo que a tristeza antecede de alguma forma e é mais necessária que a alegria, e o ódio
mais que o amor, porque importa mais repelir as coisas que prejudicam e podem destruir do que adquirir as que
263

Spinoza, o ódio, enquanto variação da tristeza, faz com que, na mente, passemos a uma
menor perfeição e, no corpo, tenhamos nossa potência de agir diminuída146 – o que cada
indivíduo, dado seu esforço por perseverar em seu ser147, tentará evitar. A princípio, então, o
ódio não pode ser cultivado nem mesmo como recurso último de sobrevivência, como parece
ser possível no interior da teoria moral cartesiana.148

O que pode explicar, então, que os hebreus tenham feito do ódio uma prática
cotidiana, acrescentando-a à sua biopolítica, convertendo-o, aos poucos, numa segunda
natureza149? Uma primeira resposta possível é a de que, entre eles, o ódio não surgia jamais
sozinho, mas combinado a um extremo amor próprio: pela pátria, pelos demais cidadãos e
pelo seu Deus. A constância do amor gerava devoção às leis e à religião, bem como um
altruísmo notável. Na verdade, o ódio que nutriam por tudo que era exterior, que escapa à
realidade de seu Estado e religião, era complementar a este extremo amor próprio. Talvez
possamos lançar a hipótese de que o fenômeno que experimentavam era próximo ao que
Spinoza denomina flutuação de ânimo: evidentemente não da mesma flutuação que
caracteriza a superstição ou a dúvida, uma vez que não se dirigem ao mesmo objeto150. Como
a mente não pode, por definição, buscar incessantemente aquilo que diminui sua potência de

acrescentam alguma perfeição sem a qual se pode subsistir”. Cf. DESCARTES, R. 1973, P. 276; AT XI, 430.
Sobre a importância do ódio para a conservação do composto alma-corpo, ver o artigo de SHARP, H. “Hate's
Body: Danger and the Flesh in Descartes Passions of the Soul”. In: History of Philosophy Quarterly, Volume 28,
Number 4, October 2011.
146
A tristeza é uma paixão que faz a mente passar a uma menor perfeição. Como a ordem e a conexão das ideias
é a mesma ordem e conexão das coisas (EII, P. VII), estabelece-se simultaneamente uma contraparte no corpo,
que é a diminuição de sua potência de agir. Isto é mais amplamente defendido em EIII, P. XI.
147
Conforme a tese do conatus exposta sobretudo nas seguintes proposições da Parte III: VI, VII, VIII, IX, XII.
148
Naturalmente, Descartes não advoga uma teoria pró-ódio: mais correto seria dizer que, para sua filosofia
moral, é a generosidade, estranho meio-termo entre paixão e emoção intelectual ou virtude, que cumpre este
papel. Sua formulação a respeito do ódio parece ser mais um exercício comparativo, alertando sobre a
importância de nos afastarmos dos objetos exteriores que possam nos causar incomodidades. De todo modo,
cumpre reforçar que, para Spinoza, “odium nunquam potest esse bonum”, cf. EIV, P. XLV; ESPINOSA, B.
2015a, P. 446.
149
É assim que Spinoza classifica, no Capítulo XVII do TTP, o amor dos hebreus pela pátria combinado ao seu
ódio pelas demais nações. Não é claro exatamente a que esta segunda natureza se refere. Ao tratar do fenômeno
do suicídio, em EIV, P. XX, esc., Spinoza afirma que uma das possibilidades para explicar a inobservância da
conservação de seu ser são causas externas latentes, que “de tal maneira dispõem a imaginação e afetam o
Corpo, que este se reveste de uma outra natureza contrária à anterior e cuja ideia não pode dar-se na Mente”
(ESPINOSA, B. 2015a, P. 409). Trata-se da criação de outra natureza, inconsciente e contrária à primeira.
Embora estas duas características não pareçam em marcha no caso hebraico, a ideia de criação de uma nova
natureza se faz presente. Analisaremos brevemente a proposição spinozista acerca do suicídio em nossa
Conclusão.
150
Para uma definição do fenômeno da flutuação do ânimo, ver EIII, P. XVII, esc.Tratamos da flutuação também
no Capítulo 1, ao analisar o circuito de esperança e medo característico da superstição.
264

agir151, pode ser que os hebreus alternassem continuamente entre o amor que sentiam pela
pátria e por seus concidadãos e o ódio que sentiam pelo exterior. Explico: o amor exagerado a
si – que é o afeto primário do povo hebreu – pode fazer com que tudo aquilo considerado
contrário a esta natureza, isto é, que a coíba de alguma forma, seja afetado de tristeza. A
contemplação subsequente das imagens destas nações enquanto aquilo que contribui para sua
destruição (diminuição de perfeição e potência de agir), isto é, como aquilo que lhe afeta de
tristeza, gera o ódio152; a mente se esforçará, então, para recordar aquilo que exclui a
existência deste objeto153, que é, neste caso, a própria existência do Estado hebreu! Veja-se
como eles retornariam à contemplação de si próprios com alegria e, portanto, ao amor
próprio, numa espécie de circuito interminável de amor-ódio que alimenta suas práticas
cotidianas e funda sua identidade nacional. Neste caso, o ódio é tão importante para a
moderação dos ânimos daquele povo quanto o amor, na medida em que, neles, um fornecia
um complemento necessário ao outro. Este ódio seria, ainda, retroalimentado por sua
reciprocidade154: dada não apenas a singularidade, mas a absoluta contrariedade do culto
externo hebraico em relação às demais nações155, despertavam o ódio delas; o que termina por
criar um “novo Ódio”156, ainda mais profundo e duradouro que o primeiro.

A hipótese de um pertencimento afetivo e identitário ao objeto digno de ódio parece


reforçada pela própria lei geral de funcionamento dos afetos: basta lembrar que a ideia
resultante do contato com o objeto exterior envolve não apenas a natureza deste último, mas a
natureza do primeiro em contato com ele.157 De modo que o afeto diz tanto sobre o corpo
afetante quanto sobre o corpo afetado, e que um mesmo objeto pode afetar indivíduos
diferentes de diferentes maneiras, tanto quanto afetar um mesmo indivíduo de diferentes
maneiras em tempos diversos.158 Ou seja: no ódio ao exterior dos hebreus está igualmente
compreendido algo de sua própria identidade enquanto nação. A mesma conclusão pode ser
obtida quando se pensa no ato de imaginar, no qual o afeto se baseia. Ora, imaginar nada

151
Ver acima nota com as passagens sobre a tese do conatus.
152
EIII, P. XXII.
153
EIII, P. XIII.
154
EIII, P. XLIII.
155
De fato, como vimos na breve exposição da hipótese de Milner, Spinoza parece situar a origem do ódio das
demais nações para com os hebreus nas práticas religiosas dos próprios, isto é, na singularidade de seu culto
externo. Ver GIII, 56-57, 215.
156
ESPINOSA, B. 2015a, P. 305; EIII, P. XLIII, esc.
157
EII, P. XVI.
158
EIII, P. LI.
265

mais é do que contemplar as afecções do corpo humano como presentes.159 Como se sabe, a
existência em ato da causa exterior do afeto não é requerida para a existência e manutenção
deste mesmo afeto. Prova disso é o fato de que pode-se ser afetado de alegria e tristeza tanto
pela imagem de uma coisa passada ou futura quanto pela imagem de uma coisa presente.160 O
que o ódio exige, então, é apenas a presentificação das imagens resultantes das afecções
corporais que afetam o corpo de tristeza: em nosso caso, a apresentação da existência das
nações estrangeiras à mente dos hebreus. Ainda que o ódio tenha como atitude consequente o
afastamento ou a destruição da coisa odiada, quer dizer, do ponto de vista da mente, a
exclusão daquelas imagens, o ato de tornar presente a mente é ele mesmo um ato de inclusão.
Mesmo que se esforce para excluir, portanto, o ódio necessita incluir.

Tanto o amor dos hebreus pela pátria quanto o ódio que dirigiam às nações
estrangeiras era temperado por um afeto adicional: a piedade. Do ponto de vista do amor, a
piedade era responsável por incitar o altruísmo, ou seja, a caridade para com o próximo161; do
ponto de vista do ódio, fazia nascer um “ódio permanente e mais arraigado nos ânimos que
qualquer outro [...] e não há, decerto, ódio maior e mais pertinaz que um ódio assim”162. O
ódio dos hebreus é, num outro contexto, também classificado como ódio teológico [odium
theologium]: para não incitar tal gênero de ódio no povo, os príncipes deviam observar
rigorosamente as leis do Estado, ou seja, as leis da religião.163 De início, então, o ódio piedoso
parece se relacionar ao contexto religioso; e podemos apostar, numa primeira aproximação,
que ele se dá justamente quando o indivíduo ou o povo julga que um terceiro pecou ou
cometeu algum dano para com Deus.

A piedade, como vimos, é definida na Ética como “o desejo de fazer bem que é
engendrado por vivermos sob a condução da razão”164. Ali, ela desempenha função
importante na fundação e manutenção de uma sociedade de homens conduzidos sob a razão.
Já no TTP, a piedade é um dos signos confirmatórios do verdadeiro profeta. Deus se serve dos

159
EII, P. XVII, esc.; EIII, P. XXVII, dem.
160
EIII, P. XVIII.
161
GIII, 216.
162
ESPINOSA, B. 2019, P. 351; G III, 215.
163
“Os príncipes deviam, portanto, até no seu próprio interesse, procurar administrar tudo segundo as leis
prescritas e bem conhecidas de todos, se queriam ser alvo das maiores honras por parte do povo, que nesse caso
os venerava como ministros do Estado de Deus e como alguém que fazia as vezes de Deus. Caso contrário, seria
impossível escaparem ao pior ódio dos súditos, que costuma ser o ódio teológico”. ESPINOSA, B. 2019, P. 348;
G III, 212.
164
ESPINOSA, B. 2015a, P. 433; EIV, P. XXXVII, esc. I.
266

piedosos para manifestar sua piedade e dos ímpios para executar sua cólera.165 Portanto, ao
lado de uma imaginação vívida, os profetas tinham “o ânimo voltado unicamente para a
justiça e o bem”166. Já mostramos que Spinoza é categórico ao afirmar que os hebreus não
vivam sob a condução da razão: bem ao contrário, nutriam uma ideia inadequada de Deus e
jamais conheceram a verdadeira virtude. De modo que, seguindo esta tese, todo o enunciado
da Proposição XXXVII da Parte IV pode ser lido negativamente: não vivem sob a condução
da razão, não desejam o bem para os demais homens e é tanto menor o conhecimento de
Deus que possuem.167 Se a piedade surge, então, apenas no contexto do conhecimento
adequado e da vida sob a condução da razão, algo como um ódio piedoso é simplesmente
uma categoria fictícia, um oxímoro. Quando analisamos com cuidado as passagens em que
este tema surge, veremos que Spinoza promove uma classificação em segundo nível: não se
trata de um ódio efetivamente piedoso, mas de um ódio que tomava a si próprio como
piedoso. “Julgavam até que tal ódio era piedoso”168 e “na medida em que se considerava
piedoso...”169: psicologicamente, o ódio piedoso nada mais é que uma espécie de autoengano
coletivo. O fenômeno específico do autoengano não nos interessará aqui, ao menos não
enquanto pode ser descrito metafísica e epistemologicamente. É sob o registro
político-afetivo, e não sob o registro do ser, que este fenômeno nos é relevante: ou seja, do
ponto de vista dos efeitos por ele produzidos no interior de um Estado como o dos hebreus, o
que nos encaminha a uma meditação mais geral sobre o seu papel na configuração de uma
comunidade política determinada.

A investigação em torno da psicologia afetiva dos hebreus nos permite endossar e


complementar a conclusão de Christophe Miqueu170: nem cidadãos (porque de ânimo
corrompido), nem escravos171 (porque aceitaram livremente o pacto e dele se beneficiavam),

165
ESPINOSA, B. 2019, P. 149; G III, 31.
166
Ibid.
167
O enunciado integral da proposição é o seguinte: “O bem que cada um que segue a virtude apetece para si,
ele também o desejará para outros homens, e tanto mais quanto maior conhecimento de Deus ele tiver”. Cf.
ESPINOSA, B. 2015a, P. 431; E IV, P. XXXVII. Os hebreus certamente desejavam o bem aos demais cidadãos,
mas disso não se segue que tinham um conhecimento adequado de Deus, tampouco que viviam sob a condução
da razão.
168
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 350; G III, 214.
169
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 351; G III, 215.
170
MIQUEAU, C. « L'amour de la patrie. À propos de la singularité de l'État mosaïque. ». In : JAQUET, C. (et
al.). Spinoza, philosophe de l’amour. Saint-Étienne : Publications de l’Université de Saint-Étienne, 2005.
171
Emprego, neste trabalho, a expressão “escravos” apenas para fazer referência ao uso que Spinoza faz do
conceito. Há, contemporaneamente, um debate importante que procura modificar a nomenclatura para
“escravizados”, de modo a evidenciar o caráter antinatural da exploração à qual determinados grupos foram
267

os hebreus eram patriotas. A servidão deste extremo patriotismo é derivada da


impossibilidade de movimentação afetiva livre. Toda a interioridade daquele povo era
coordenada por uma imposição externa – isto é, pela lei determinada pelo soberano. A origem
externa desta captura dos ânimos tem como resposta uma exteriorização que flutua entre
amor devoto e ódio teológico – e a contribuição da interioridade do povo, neste processo, é
mínima. Não é que não haja resposta, mas sim que esta se deixa alinhar com os investimentos
que vêm de fora. Há, portanto, diversas maneiras de conformar-se a uma lei, e o que
distinguirá a mera obediência da servidão, neste caso, será não a presença ou ausência de
interioridade, mas, no caso da servidão, uma participação mínima desta última na
comunicação necessária entre o dentro e o fora. Criticamente, pode-se dizer que a servidão
mais eficaz é aquela que procura fazer coincidir o mais integralmente possível o externo e o
interno. A interioridade por si só não é signo de liberdade, assim como a exterioridade não
encaminha necessariamente à servidão. Opõe-se, entre obediência e servidão, uma dinâmica
interno-externo livre e uma dinâmica capturada de fora, qualitativamente estática. No
capítulo seguinte, nos dedicaremos a uma tipificação geral da obediência a partir dos graus de
contribuição livre do interior, indo da obediência esclarecida à submissão máxima ou
servidão, tal como verificamos no exemplo histórico hebraico.

Para finalizarmos nossa investigação em torno do ódio teológico, cabe apenas


formular uma última intuição. Procurando justificar o aspecto alegadamente piedoso deste
ódio, Spinoza faz alusão aos versículos 21 e 22 do Salmo 139172, que proclamam: “Não
odiaria os que te odeiam, Iahweh? / Não detestaria os que se revoltam contra ti? / Eu os odeio
com ódio implacável! / Eu os tenho como meus inimigos!”173. Tais versos participam de um
conjunto de salmos designados imprecatórios, ou seja, que em sua totalidade ou em alguns de
seus excertos, entoam maldições, mobilizando como afetos principais o ódio, a raiva e o
desejo de vingança. Há toda uma literatura contemporânea que busca dar conta da utilidade

historicamente submetidos. Procurei, em outros casos, substituir “escravidão” por “escravização” ou “servidão”
com base no mesmo argumento. Para uma discussão sobre a perpetuação das relações de dominação na
semântica da língua, ver o artigo de Elizabeth Harkot-de-La-Taille e Adriano Rodrigues dos Santos: “Sobre
escravos e escravizados: percursos discursivos da conquista da liberdade”, In : III Simpósio Nacional Discurso,
Identidade e Sociedade (III SIDIS). Dilemas e desafios na contemporaneidade. Disponível em:
https://www.iel.unicamp.br/sidis/anais/pdf/HARKOT_DE_LA_TAILLE_ELIZABETH.pdf.
172
G III, 214.
173
Bíblia de Jerusalém. 2016. P. 1010.
268

terapêutica de salmos deste gênero para o coração cristão; e, mais ainda, que se preocupa em
conciliar o ensinamento do Cristo, tal como expresso no Sermão da Montanha, com as
violentas declarações, por exemplo, do Salmo 137174, que clama pelo esmagamento dos bebês
da Babilônia contra a rocha.175 Não só as interpretações teológicas estão comprometidas com
uma necessidade de síntese, como insistem, igualmente, em neutralizar o ódio, tendo como
premissa a ideia de que ele jamais pode exercer papel integrador. Na contramão destas
leituras, Spinoza sublinha que o ódio encontra ao menos um exemplo histórico em que, ao
invés de impedir, sustentou, com estabilidade e segurança, certa comunidade política.

174
O livro de Daniel Nehrbass tem o mérito de tomar as passagens imprecatórias em sua positividade, muito
embora ainda procure retirar o ódio da esfera humana, já que, segundo sua interpretação, trata-se de entregá-lo
ao juízo divino – uma leitura apaziguadora, cuja motivação é fornecer a estas passagens uma função terapêutica.
Seu livro também apresenta uma boa compilação das leituras que vêm sendo feitas destas passagens,
considerando o problema conciliatório com o ensinamento do Cristo. Ver NEHRBASS, D. Praying Curses: The
Therapeutic and Preaching Value of the Imprecatory Psalms. Eugene: Pickwick Publications, 2013. Nehrbass
menciona uma quantidade razoável de artigos, mas gostaríamos de chamar a atenção para o importante trabalho
de VOS, J. G. "The Ethical Problem of the Imprecatory Psalms." In: Westminster Theological Journal 4
(1942):123-38.
175
“Ó devastadora filha de Babel, / feliz quem devolver a ti / o mal que nos fizeste! / Feliz quem agarrar e
esmagar / teus nenês contra a rocha!”, cf. Salmo 137, vs. 8-9. Tradução via Bíblia de Jerusalém. 2016. P, 1008.
269

Capítulo 5.
O DIREITO E O SAGRADO

E em primeiro lugar é evidente que a lei, em


geral, não é um conselho, mas uma ordem. E
também não é ordem dada por qualquer um a
qualquer um, pois é dada por quem se dirige a
alguém já anteriormente obrigado a lhe obedecer.

— Thomas Hobbes, Leviatã1

Não há violência natural ou física. Pode-se, em


linguagem figurada, falar de violência com
respeito a um terremoto, ou mesmo a uma dor
física. Mas sabe-se que não se trata aí de uma
Gewalt que possa dar lugar a um julgamento,
diante de alguma instância judicial. O conceito
de violência pertence à ordem simbólica do
direito, da política e da moral – de todas as
formas de autoridade ou de autorização ou pelo
menos de pretensão à autoridade.

— Jacques Derrida, Prenome de Benjamin2

Toda a lei divina se resume, portanto, neste


preceito: amar a Deus como supremo bem, isto é,
e como já dissemos, sem ser por receio de algum
suplício ou castigo, nem por amor de qualquer
outra coisa de que desejaríamos gozar.

— Spinoza, Tratado Teológico-Político3

Ao se deparar com a folha de rosto da edição de 1670 do Tratado Teológico-Político,


o leitor contemporâneo é de imediato capturado por alguns enigmas. Como era de praxe no
século XVII, o longo título da obra a ser apresentada nas páginas que seguem ostenta aquilo
que deve ser tomado como seu argumento principal. No caso em questão, eis um tratado no
qual serão mobilizados os domínios da teologia e da política, contendo, literalmente,
“algumas dissertações, em que se demonstra que a liberdade de filosofar não só é compatível
com a preservação da piedade e da paz, como, inclusivamente, não pode ser abolida sem se
abolir ao mesmo tempo a paz da república e a piedade”4. O extenso subtítulo é sucedido por
uma citação da primeira Epístola de João, que proclama: per hoc cognoscimus, quod in Deo

1
HOBBES, T. 2019, P. 226.
2
DERRIDA, J. 2018a. P. 74-75.
3
ESPINOSA, B. 2019, P. 180; G III, 61.
4
Conforme a tradução proposta por Diogo Pires Aurélio. Ver ESPINOSA, B. 2019, P. 119.
270

manemus et Deus manet in nobis, quod de Spiritu suo dedit nobis5. Enfim, o terceiro
elemento da série é a falsa designação do local de publicação – Hamburgo –, bem como do
selo editorial – um suposto Henrich Künraht –, dois artifícios aplicados a fim de despistar os
censores. Não há qualquer indicação de autoria.

A citação anexada de João, proveniente da tradução latina da Bíblia preparada por


Emmanuel Tremellius, é corrigida em dois pontos principais. Ao invés de in hoc, grafa-se per
hoc; no lugar de ipse, escreve-se novamente Deus6. Do ponto de vista da tradução, isto
significa que Spinoza tinha em mente “através disso” ao invés de “nisso”, e que prefere
repetir o nome de Deus, talvez para fins de clareza, e não manter o demonstrativo “o
mesmo”. Embora as modificações sejam, até onde podemos perceber, semanticamente
insignificantes, o trecho em si desempenha um curioso papel se considerarmos os contextos
argumentativos nos quais é manipulado. A citação é empregada, mais uma vez com
alterações, no capítulo XIV do TTP, assim como numa das cartas de Spinoza a Albert Burgh.
Na passagem do TTP, a citação é acionada para justificar uma tese acerca da conexão entre
obediência e fé. Se for detectada obediência, verifica-se igualmente a fé, e sem obediência a
fé é simplesmente morta. É isto que, segundo Spinoza, ensina expressamente o apóstolo João
no trecho: “sabemos que permanecemos nele e que ele permanece em nós: porque nos deu do
seu espírito, quer dizer, a caridade”7. Nos versículos imediatamente anteriores, João teria
definido Deus como caridade, tendo a partir daí concluído que aquele que a possui manifesta
também Seu espírito. A argumentação do apóstolo, mediada pela interpretação spinozista,
reitera que, sendo Deus invisível, só é possível acessá-lo mediante o exercício da caridade
para com o próximo, pois assim nos fazemos participantes de um de seus atributos. A
hipótese é complementada por outra passagem da mesma epístola (II, 3-4)8, em que João
insiste na necessidade de conhecer os preceitos divinos para de fato a Ele conhecer. Por
contraste, aqueles que “perseguem homens honestos e amigos da justiça pelo fato de

5
Em tradução a partir do grego, Frederico Lourenço assim verte o trecho em questão (1 João, IV, 13): “nisso
sabemos que permanecemos n’Ele e Ele em nós: porque nos deu a partir do Seu espírito” (2018, P. 527). Já na
Bíblia de Jerusalém, lemos: “Nisto reconhecemos que permanecemos nele e ele em nós: ele nos deu seu
Espírito” (2016, P. 2131).
6
São os tradutores da edição da PUF que o notam, cf. SPINOZA, B. 2016, P. 697.
7
ESPINOSA, B. 2019, P. 306; G III, 176.
8
“E nisso conhecemos que O conhecemos: se observarmos os Seus mandamentos. Aquele que diz que O
conheceu e não observa os Seus mandamentos é mentiroso e nele a verdade não está.” Cf. Bíblia. 2018, P. 521.
271

discordarem deles e não defenderem os mesmos dogmas”9 são os únicos a que se deve
denominar anticristos (antichristos).

É no mesmo contexto argumentativo que a citação joanina é transcrita na epístola


endereçada a Burgh, cumprindo a função de atestar que é apenas através da santidade da vida
que se determina “que permanecemos em Deus e Deus permanece em nós”10. A fim de
refutar a afirmação de seu interlocutor, recém convertido ao catolicismo, segundo a qual é em
sua religião que se encontram indivíduos que professam uma vida mais admirável e santa11,
João é convocado como prova de que, ao contrário, há, em toda e qualquer Igreja, homens
dignos de estima. De modo que, conclui Spinoza sarcasticamente, é apenas a superstição,
quer dizer, os elementos acessórios de culto e aparato, que parecem distinguir a Igreja
Romana das demais. Spinoza reivindica o que denomina fé católica – entendida, aqui, no
sentido de fé universal – como o núcleo da vera religio, que consiste, em suma, como ensina
João, na prática da justiça e da caridade. É nestes indivíduos que se encontra o espírito do
Cristo, que os conduz, com amor, a uma vida em que tais princípios sejam maximamente
observados. Assim se compreende a classificação, na passagem que analisávamos do TTP,
dos indivíduos de vida censurável como “anticristos”: são simplesmente aqueles que não
praticam o amor ao próximo, e que, portanto, estão despossuídos do espírito cristão. As duas
passagens parecem fazer eco às repreensões dirigidas aos teólogos distribuídas ao longo do
TTP, mas que encontram uma formulação mais dura no Prefácio, no qual Spinoza se espanta
com o fato de que os indivíduos que se dizem, como Burgh, cristãos, sejam justamente
aqueles que mais alimentam e professam o ódio para com os demais12.

Desprovido da análise contextual, o trecho joanino poderia ser muito rapidamente


reduzido a uma abordagem spinozista: ele revelaria, antes de mais, o pertencimento dos
modos finitos a Deus, a condição de expressão da substância infinita que nos caracteriza
individualmente. Neste caso, prevaleceria a leitura conceitual. O percurso que adotamos
acima, porém, desloca a passagem para um domínio mais religioso que filosófico, em que seu
núcleo semântico não é ou não é apenas a tese da total identificação entre Deus e natureza, e

9
ESPINOSA, B. 2019, P. 306; G III, 176.
10
Carta 76. Tradução minha a partir de SPINOZA, B. 1988b, P. 396.
11
Cf. carta 67.
12
G III, 8.
272

sim o dogma da obediência anunciado em tantas passagens centrais do TTP.13 Que este
excerto surja nada menos do que na epígrafe da obra em questão nos alerta, tanto quanto seu
extenso título e os dados fictícios sobre sua publicação, a respeito de uma propriedade
importante da reflexão spinozista sobre a teologia e a política: além de ser um trabalho
dedicado a estabelecer um campo livre para o filosofar, no qual não seja obstruído pelas
determinações institucionais – sejam elas vindas das autoridades civis ou eclesiásticas –, é
também sua função tratar da religião tomada de modo minimalista como prática da caridade.
14
Como desejam alguns, e como os autoriza a pensar o título e a reveladora carta a
Oldenburg em que são elencados os objetivos da confecção do texto15, o Tratado talvez seja
de fato um manifesto pró-liberdade de expressão, mas não deixa de ser também a elaboração
de uma filosofia da religião concentrada naquilo que Spinoza define, e que teremos de
discutir com mais cautela, como obediência.

Também através de uma análise contextual, Victor Sanz, ao se perguntar sobre o


sentido da teologia na obra de Spinoza16, alcança o vínculo entre obediência e religião. Ele
avança, mais ainda, uma oposição entre filosofia e teologia, autorizada por diversas
passagens, nas quais a filosofia é associada à busca pela verdade e a teologia ou a fé
tão-somente à atividade piedosa17. O movimento argumentativo geral do TTP é, de fato, o de
separar filosofia e teologia de modo a conquistar a liberdade de filosofar: reservando, para a
filosofia, o campo da palavra livre e, para a religião, o do comportamento piedoso. Sanz,
porém, prossegue: o contraste entre filosofia e teologia se metamorfoseia numa discrepância
entre liberdade e obediência, aqui entendida como servidão. Recuperando uma expressão de
Saner, Sanz arremata: a filosofia de Spinoza se preocupa em estatuir “estratégias contra a
obediência”18, de tal forma que esta última configura “um obstáculo para a liberdade de
pensamento”19. Certamente a pesquisa contextual ilumina aspectos significativos do emprego

13
Especialmente nos capítulos XIII, XIV e XV.
14
Para erguer tal hipótese, não é necessário nos comprometermos com uma leitura exotérica ou esotérica do
texto de Spinoza, como se, no título, surgisse o tema aberto do livro e, na epígrafe, sua mensagem cifrada. O
recurso à intenção do autor, bem como a uma noção de legitimidade interpretativa, é um princípio hermenêutico
supérfluo aqui.
15
A Carta 30.
16
No artigo intitulado “¿En qué sentido es « teológico » el Tratado « Teológico-Político » ? Sobre « teología » y
« religión » en Spinoza”. In: Scripta theologica: revista de la Facultad de Teología de la Universidad de
Navarra, ISSN 0036-9764, Vol. 33, Fasc. 1, 2001, págs. 213-230.
17
Por exemplo, G III, 10, 168, 174, 179, 206.
18
SANER, H. apud SANZ, P. 221.
19
SANZ, V. 2001, P. 222.
273

de determinadas expressões na obra de Spinoza, algumas vezes dispostas sem o mesmo rigor
definitório com o qual os leitores da Ética estão acostumados. Ao mesmo tempo, ela não
pode surgir desacompanhada de um exame argumentativo mais profundo – desta vez, de
análise conceitual –, sobretudo num caso em que a obediência opera para além do território
religioso. É provável também que as intuições contemporâneas contaminem uma apreciação
mais neutra da obediência: hoje, quando pensamos em obediência, imediatamente a
traduzimos em servidão. Que tanto o sábio quanto o ignorante obedeçam, ainda que
motivados por diferentes razões, é central para que Spinoza possa conquistar a estabilidade e
segurança da vida comum, tal como parece ser sua intenção se considerarmos seu projeto
teológico-político de modo amplo. Daí a necessidade de se investigar contextualmente, mas
também conceitualmente, o tema da obediência em sua obra.

Para fazê-lo, é necessário um percurso pela filosofia do direito estabelecida ao longo


do TTP: quem obedece, obedece a uma lei, imposta por um soberano detentor de direito. Na
medida em que a obediência é uma resposta a um constrangimento legal, variando-se a
definição de lei, varia-se consequentemente o gênero de obediência em questão. Qual é, aliás,
a origem da soberania, capaz de conferir força-de-lei a determinados preceitos? Ainda, como
definir a desobediência – ou, nos termos de Spinoza, a sedição? Talvez possamos encontrar
nas querelas jurídicas nas quais o TTP se engaja mais uma manifestação da fratura entre
interno e externo que já identificamos na Escritura, no Cristo e no Estado hebreu.

A lei
No capítulo do Leviatã dedicado a tratar das leis civis, Thomas Hobbes estipula
algumas propriedades da lei em geral: em primeiro lugar, a lei não é mero conselho, mas um
comando; em segundo, não um comando de qualquer um a qualquer outro, mas sim dado
“por quem se dirige a alguém já anteriormente obrigado a lhe obedecer”20. Estão
compreendidos nestas breves linhas alguns aspectos que não devem ser perdidos de vista ao
considerarmos a estrutura geral da lei: o fato de que é sempre uma imposição de poder – e,
por isso, sempre envolve algum grau de força e violência – e, mais do que isso, que só se
configura como tal se advier de uma fonte de autoridade que detenha o direito sobre esta
violência. Embora seja do interesse de Hobbes, no capítulo do qual extraímos a definição,
refletir sobre a lei civil, acompanhar sua dedução das leis naturais nos permitirá refletir sobre

20
HOBBES, T. 2019, P. 226.
274

os limites do alcance político da razão tanto quanto a necessidade das operações teológicas a
fim de conquistar a máxima legitimidade da violência e, portanto, da construção de algo
como uma esfera de direito.

Antes de partir para uma reconstrução da argumentação hobbesiana, talvez seja


preciso mencionar rapidamente o nome de Walter Benjamin. No ensaio Zur kritik der Gewalt
– o qual reproduzo aqui em seu título original de modo a sublinhar o recurso à profunda
expressão Gewalt21 –, Benjamin procura justamente refletir sobre esta conexão inescapável
entre a esfera do direito e aquela da violência. Antes de um elemento que lhe transcende, a
violência é aquilo que o funda e conserva: o Estado surge como a instituição que detém tanto
a legitimidade quanto o emprego da violência, o que se evidencia, por exemplo, no incômodo
que lhe causa o direito de greve. É no direito ao uso da violência por parte dos trabalhadores
que é descortinada a violência originária do Estado enquanto instituição: que se vê, assim,
ameaçado, não por conta do exercício de uma conduta individual ou coletiva violenta, mas
sim por não poder admitir uma esfera paralela de exercício de direito (que se constitui,
também ela, violentamente). O fascínio experimentando pelo povo diante do grande
criminoso, bem como o temor que o direito lhe dirige, explica-se da mesma forma: não tanto
pela transgressão em si, mas por, no ato do crime, conceder a si próprio um direito ao
exercício do direito22. O perigo reside no que há de propriamente fundante na transgressão.
Talvez não precisemos sequer ir tão longe: é mesmo por princípio, como mostra Derrida
interpretando Benjamin23, que a violência está atrelada ao direito, pois é apenas em sentido
figurado que concebemos um terremoto ou uma dor física como violenta, e, mais
corretamente, concebemos a violência do Estado ou de um criminoso na medida que
manifestam algum grau de pretensão à autoridade. Ainda que a tradição jusnaturalista tenha
procurado extirpar a violência do estado natural neutralizando-a na edificação do estado civil,
a argumentação de Hobbes denuncia um recurso à violência que parece confirmar as
intuições de Benjamin: numa palavra, sua passagem das leis naturais para as leis divinas
comprovará que sem violência – neste caso, divina – não há força-de-lei.

21
Gewalt pode significar poder autorizado e, ao mesmo tempo, violência. Para uma discussão mais aprofundada,
ver a Introdução.
22
BENJAMIN, W. 2016, P. 66.
23
DERRIDA, J. 2018a, P. 74-75.
275

Uma lei é dita natural, segundo Hobbes, quando é o “ditame da reta razão no tocante
àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de
assegurar a conservação da vida e das partes de nosso corpo”24. O que configura a lei natural,
então, é tanto sua origem racional quanto a finalidade de subsistência. Contra aqueles que
remetem as leis naturais seja a um acordo entre as nações mais sábias – incapazes de precisar
quem deverá julgar quanto aos saberes das demais nações –, seja a uma espécie de consenso
geral entre toda humanidade dotada de razão – posto que, se assim o fosse, a violação da lei
deveria ser verificada apenas na irracionalidade das crianças e dos loucos, o que é
manifestamente desmentido pelos fatos –, Hobbes, a fim de garantir a efetividade das leis,
prefere se fiar na objetividade e validade intersubjetiva da razão. O cálculo racional impõe,
assim, uma lei fundamental, princípio ordenador de todas as demais: a paz deve ser
primeiramente buscada, exceto quando isso não for possível devido ao ambiente no qual se
encontra, engendrando a necessidade de defesa, ou melhor, a preparação para a guerra. A
dedução das demais leis naturais deverá observar, porém, o cenário ideal, isto é, aquele no
qual a conquista de uma paz duradoura é tomada como fim e não adaptada ao sabor das
circunstâncias desfavoráveis.

Acontece que as leis naturais são muitas: no que toca à vida em sociedade, Hobbes
apresenta, no tratado Do Cidadão, um conjunto de nada menos que vinte25. Sua dedução via
razão mais parece uma listagem de virtudes morais: a quinta lei, por exemplo, incita a
misericórdia, a oitava proíbe a arrogância, a nona ordena a humildade. Não por acaso: posto
que racionais, as leis naturais são reconhecidas como boas por todo o gênero humano. Se a
razão institui que a paz é não apenas útil, mas boa em si mesma, os meios para sua obtenção
devem usufruir do mesmo status. Estes meios são as próprias virtudes morais como “a
modéstia, a equidade, a confiança, a humanidade, a misericórdia”26: incitam o
comportamento adequado e criam um modelo da prática virtuosa, de modo que a lei natural
pode ser corretamente classificada como lei moral. Ainda que estas leis se multipliquem e
possam vir a confundir o vulgo, há uma espécie de teste simples que resume sua aplicação em
todos os casos possíveis: basta que, diante da dúvida, o indivíduo se coloque no lugar do

24
HOBBES, T. 2002, P. 38.
25
Nos capítulos dois e três da Primeira Parte. O mesmo percurso argumentativo é adotado no Leviatã, nos
capítulos 14 e 15 também de sua Primeira Parte. Neste último, as leis naturais totalizam dezenove.
26
HOBBES, T. 2002, P. 72.
276

outro. Eis uma maneira funcional de dissuadir aquele que pretende infringir as leis naturais,
tão amplamente condensada na formulação “não faça aos outros o que não quiseres que te
façam”27, citada em latim, por Hobbes, como “quod tibi fiere non vis, alteri ne feceris”28.

Como já anunciado, nem sempre o ambiente coletivo é favorável à prática da virtude:


pensemos, por exemplo, no estado de natureza, aquele em que justamente há igualdade de
poder e, portanto, igualdade de ameaça. Se não há reciprocidade, não faz sentido buscar a
paz: é preferível defender-se. Não há razão que se manifeste numa comunidade de irracionais.
A lei natural se transfigura em seu oposto: a guerra deve ser anteposta à paz. A flexibilização
da lei às circunstâncias só tem vigor, no entanto, externamente. No que diz respeito ao foro
interno, corte ou tribunal da consciência, a perseguição das virtudes é sempre obrigatória e
seu conteúdo imutável e eterno. Até mesmo aquele que, em suas ações, observar as leis, mas
o fizer de má consciência, está violando as leis de natureza: pois não basta a ação, é
necessário sua harmonização com o princípio interior. Hobbes vislumbra, aqui, algo como a
violação da lei ainda que se aja dentro dela.

O poder da razão encontra ao menos um limite. Embora garanta objetividade, não


engendra autoridade ou força-de-lei. Deduzir as leis naturais do cálculo racional não é
suficiente para assegurá-las como leis: pois uma lei é “o discurso de quem tem o direito de
mandar que façam ou deixem de fazer determinadas coisas”29. Se a lei natural goza de alguma
autoridade, é apenas aquela conquistada no processo de conclusão racional – o que ainda é
fraco, uma vez que não há propriamente um mandato proveniente de uma fonte de direito.
Daí por que é necessário fundar a autoridade da lei natural em Deus, e justificar tal
movimento argumentativo apelando para passagens da Sagrada Escritura. A autoridade das
leis naturais, portanto, é a maior de todas, pois Deus é quem as ordena e é ele a maior fonte
de direito (e de violência). A cada uma das vinte leis naturais, Hobbes apresentará um
conjunto de passagens bíblicas confirmatórias. Até mesmo o recurso geral de se colocar no
lugar do outro é referido: Cristo o ensina no Evangelho de Mateus (7, 12). A lei de Cristo,
portanto, exposta nos capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho de Mateus, é, de um só golpe, lei da
natureza, lei moral e lei divina.

27
HOBBES, T. 2002, P. 69.
28
Ibid.
29
HOBBES, T. 2002, P. 74.
277

Da identificação entre lei natural e divina, Pierre François-Moreau retira uma


conclusão ousada30: é como se a lei pudesse ser obtida pela via racional, partindo das causas
em direção às consequências, tanto quanto pela via da Escritura, conhecendo suas
consequências sem atingir suas causas. É verdade que o movimento argumentativo de
Hobbes supõe uma identificação entre as consequências das duas vias que não corresponde à
identificação de obtenção de suas respectivas causas. Ao mesmo tempo, esta hipótese parece
deixar escapar que não se trata apenas de uma questão de acesso epistêmico:
independentemente da forma com a qual as conheçamos, o conjunto de leis naturais goza de
obrigatoriedade a partir do momento em que está escrito num livro que detém ele mesmo o
monopólio de legislação sobre a violência impositiva. A conclusão final de Moreau é que lei
natural e lei divina recuperam seu elo ulteriormente em seu pertencimento à lei civil, que é
seu destino incontornável: por um lado, a origem racional da lei natural o permite repousar
sua teoria do Estado na razão; de outro, pode conquistar o status de obrigatoriedade moral
concedido por sua referência à Escritura. Uma vez que compete sempre ao soberano legislar
sobre a interpretação das leis, a referência teológica não atrapalhará a “margem de manobra”
31
da autoridade civil. Esta identificação, porém, não parece necessitar, como quer Moreau, de
seu desdobramento no contexto do estado civil: em todo caso, é menos a funcionalidade do
argumento e mais seus pressupostos ocultos que nos interessam precisar aqui.

Dos movimentos argumentativos hobbesianos expostos acima, podemos retirar


algumas breves conclusões. Em primeiro lugar, a lei é sempre prescritiva em um sentido
forte, pois, mais do que aconselhar, ordena um determinado comportamento e pressupõe a
possibilidade de violação – a qual, mais do que uma simples divergência de opiniões,
encontra-se no registro da transgressão e do crime. A razão funciona como uma espécie de
princípio inquestionável sobre o qual pode ser construída a objetividade e universalidade das
leis: por detrás dos panos, é uma certa noção de humanidade e racionalidade – que exclui, não
por acaso, as crianças, os loucos e possivelmente as mulheres, ainda que não mencionadas –
que funda a regularidade da ordem jurídica. Seja como for, há pelo menos um limite para a
razão: o do direito. Sozinha, não pode configurar lei em sentido estrito, porque não
propriamente manda, apenas exibe como razoável. Falta a razão o poder da violência. É claro

30
MOREAU, P.F. « Loi divine et loi naturelle selon Hobbes ». In : Revue Internationale de Philosophie, Vol. 33,
No. 129, HOBBES (1679-1979) (1979), pp. 443-451.
31
MOREAU, P.F. 1979, P. 450.
278

que para garantir a maior autoridade possível para estas leis é necessário recorrer a Deus: ao
lado da razão, outro dos pressupostos inquestionáveis dos modernos. Mesmo assim, é preciso
encontrar um local em que a mensagem divina é comprovadamente transmitida: onde mais
senão nas Sagradas Escrituras? Também o texto será investido de autoridade prévia,
sacralizado pela pena de seu autor. Será interessante manter em mente, a seguir, estes
inquestionáveis argumentativos para entrever a especificidade da posição de Spinoza.

Em sentido absoluto, para Spinoza, uma lei é “aquilo em conformidade com o qual
cada indivíduo, ou todos, ou alguns de uma mesma espécie, agem de uma certa e determinada
maneira”32. Há a lei que depende da necessidade da natureza e aquela que deriva da decisão
humana. No primeiro caso, a lei não pode ser violada: ela descreve o comportamento de um
indivíduo – que, caso não obedeça, simplesmente deixará de ser um indivíduo daquela
espécie. A lei de movimento e repouso que rege os corpos, assim como a lei da mente
humana segundo a qual, ao se lembrar de uma coisa, lembra-se no mesmo ato de uma coisa
parecida ou de algo cuja experiência remonte à primeira, deriva da necessidade da natureza
humana, de modo que todos os homens lhe estão sujeitos. Trata-se, assim, de uma lei
descritiva, que não tem qualquer fim para além de si própria. Quando se passa para as leis
humanas, que mais propriamente são designadas por direito, adentra-se o âmbito prescritivo.
A transferência do direito natural individual para se submeter a certa regra coletiva é fruto de
convenção, uma vez que os homens a prescreveram para si próprios com um fim que escapa à
lei em si (neste caso, viver em comodidade e segurança). A noção de convenção poderia ser
muito rapidamente associada à de arbítrio, o que contrastaria com as críticas à liberdade da
vontade apresentadas por Spinoza ao longo de toda a sua obra. Pode-se manter o conceito de
decisão desde que se entenda o homem como parte da natureza e as leis como fruto da
potência de sua mente. O homem pode ser concebido sem recurso a estas leis: quer ele viva
sob a lógica de transferência de direito ou não, não deixará de ser homem. Não será mais
homem, porém, se sua mente não se ordenar mais segundo o princípio associativo
supramencionado. Ainda, o homem é a causa próxima da fixação destas leis, e são elas as
mais aptas a tratar das coisas singulares, porque são leis também particulares. Por fim, é

32
ESPINOSA, B. 2019, P. 177; G III, 57.
279

inerente à perspectiva do homem, cognitivamente limitado a apreender o fluxo eterno e total


das coisas, criar leis que considerem as coisas como possíveis ao invés de necessárias. 33

Spinoza abandonará, no entanto, a acepção descritiva de lei, pois a descrição só vale


para as configurações naturais, as quais o conceito de lei aplica-se apenas impropriamente.
Lembremos de Hobbes: a lei de natureza não pode ser corretamente assim designada, pois
deriva da razão, faltando-lhe o componente essencial do comando: “[...] uma lei, para falar de
maneira própria e acurada, é o discurso de quem tem o direito de mandar que façam ou
deixem de fazer determinadas coisas [...]”34. A lei exige violência, a qual só pode ser
associada à natureza em sentido figurado. Também Derrida interpretando Benjamin o
confessa: não se pode classificar, senão em linguagem figurada, uma catástrofe natural ou
uma dor física como violenta – trata-se de um conceito restrito à esfera simbólica do direito,
envolvendo pretensão de autoridade. Spinoza tem outra maneira de alcançar a mesma
conclusão: o conceito de lei aplica-se apenas metaforicamente à natureza, pois, em seu uso
vulgar, lei envolve poder e obediência. Enquanto a solução de Hobbes para o limite da
autoridade política da razão era recorrer à Escritura como fonte fidedigna da palavra de Deus,
identificando lei natural e lei divina por seu conteúdo, Spinoza definirá a lei divina como
natural partindo de uma concepção radicalmente distinta de divindade – que não o suponha
como um legislador ou um príncipe – e de Escritura – que não a tome como um texto sagrado
a priori. Ainda, a ideia de um Deus legislador será curiosamente mantida, em seu sentido
metafórico, ao tratar da aparição de suas leis e decretos. A expressão lei divina, que evoca o
poder, a violência e consequentemente a obediência, será mantida, mas esvaziada de toda sua
significação jurídica e, portanto, violenta – ocupando um estranho lugar entre o direito e a
natureza que será essencial para conquistar a duplicidade do tema da obediência.

Acompanhemos a argumentação de Spinoza para a lei prescritiva. Além de ter


primariamente o homem como objeto, a lei parece pressupor a possibilidade de violação: daí
por que o sentido absoluto de lei deverá ser substituído por um sentido mais operacional e
moral, segundo o qual uma lei é “uma regra de vida que o homem prescreve a si mesmo ou
aos outros em função de algum fim”35. Ora, Spinoza parece, então, estar reservando à noção
de lei apenas o sentido daquilo que compete à decisão humana. No interior deste gênero de

33
G III, 58.
34
Grifo meu. HOBBES, T. 2002. P. 74.
35
ESPINOSA, B. 2019, P. 178; G III, 58-59.
280

lei, distingue, com respeito ao seu fim, entre lei humana e lei divina. A lei humana “serve
unicamente para manter a segurança do indivíduo e da coletividade”36, ao passo que a lei
divina se dirige ao soberano bem, definido como o “verdadeiro conhecimento e amor de
Deus”37. Abandonado o terreno da descrição, é no campo da prescrição que uma nova
distinção surge. Estas leis serão “humanas” no sentido de serem ordenadas, fruto de uma
convenção individual e coletiva, envolvendo sempre a possibilidade de violação: mas serão,
ainda, leis humanas ainda mais humanas se tiverem como fim a segurança, e serão leis
humanas com status divino se se puserem como fim a conquista do sumo bem.

Esta lei divina, que é também humana, deve perseguir o sumo bem, que consiste, por
sua vez, no conhecimento e amor de Deus. Além de um fim específico, a lei divina exige uma
postura particular: deve ser perseguida por ela mesma, e não por temor de algum castigo ou
por um amor de outra coisa que se imagina que o amor de Deus engendrará. Por um lado, a
lei divina pode ser considerada prescritiva: enquanto Deus existe em nossa mente, os meios
para atingir o sumo bem são como as ordens que ele nos prescreve. Decreto, ordem: Spinoza
não poupa o vocabulário jurídico ao tratar de Deus.38 Ao mesmo tempo, para que seja efetiva,
a lei divina não pode adotar a postura de lei: tem de ser observada e as “ordens” de Deus
obedecidas a partir de uma correta compreensão de sua necessidade. Há uma distinção de
postura entre considerar algo como lei – o que supõe a possibilidade de violação e, portanto,
se inscreve na lógica de castigo e recompensa – e tomar como uma verdade eterna – no qual
será abraçado conscientemente, concluindo que a lei é o melhor caminho a ser seguido. O
amor a Deus consiste na correta compreensão desta necessidade. Há apenas uma exceção: a
lei divina revelada, que pode ser corretamente designada como divina, ainda que seu fim seja
a conservação dos bens relativos ao corpo. A lei de Moisés é, portanto, lei divina, apesar de
reservada a um grupo particular de indivíduos, num tempo histórico determinado, de modo a
garantir a manutenção de seu Estado: tendo sido ela instituída pela “luz profética”39, tal como

36
ESPINOSA, B. 2019, P. 179; G III, 59.
37
Ibid.
38
“O nosso supremo bem e a nossa felicidade resumem-se, pois, no conhecimento e amor de Deus. Os meios
que requer essa finalidade de todas as ações humanas, isto é, o próprio Deus na medida em que a ideia dele está
em nós, podem designar-se por ordens de Deus, uma vez que nos são de alguma forma prescritos por ele
enquanto existente em nossa mente. Por isso, a regra de vida que concerne essa finalidade chama-se, e muito
bem, lei divina”. ESPINOSA, B. 2019, P. 180; G III, 60.
39
ESPINOSA, B. 2019, P. 181; G III, 61.
281

ensina a Escritura, pode ser dita lei divina – embora num sentido diverso da lei divina natural
que cumpre perseguir ao longo do capítulo.

A lei, tomada em seu sentido prescritivo, possui um alcance esotérico e outro


exotérico.40 O sentido esotérico das leis é acessível apenas a alguns legisladores e àqueles que
compreendem as coisas através da razão. Trata-se menos de um conteúdo específico da lei e
mais de uma maneira de tomá-la, quer dizer, entender sua necessidade específica. Aos
demais, reserva-se uma acepção pública de lei como coação, inscrevendo-se na lógica do
castigo e da recompensa. A lei é vulgarmente considerada como imposição vertical de poder,
por parte dos legisladores, e como servidão, por parte dos indivíduos que obedecem, na
medida em que se insiste em seu despertencimento em relação ao seu fim. Veja-se que o
sentido exotérico das leis pode ser partilhado tanto pelos soberanos como pelos súditos: este é
exatamente o caso de Moisés e dos israelitas, os quais entenderam Deus como príncipe e
legislador e o decálogo como um conjunto de leis exteriores41. Também Adão assim
compreendeu a mensagem divina proibindo-o de comer da árvore do fruto da ciência do bem
e do mal: exteriormente, ou seja, sem considerar a necessidade daquele ensinamento,
atentando-se apenas à obrigação por ele introduzida42. A instituição de uma lei movida pelo
medo, tanto quanto seu cumprimento por pura imposição engendra um cenário de injustiça e
pura exterioridade. Por outro lado, aquele que as fundamenta conhecendo a necessidade do
fim, obedecendo-a por compreensão e não por imposição de outrem, esse conhece a
verdadeira justiça: eis o caso do Cristo. Ao invés de suspender completamente a lei, apenas a
desativou, propondo uma nova relação com ela: não mais de obediência cega, mas de
interiorização máxima43, por isso “os [àqueles a quem era dado conhecer os mistérios dos
céus] libertou da servidão da lei ao mesmo tempo que a confirmava, estabelecia e inscrevia
no mais fundo de seus corações”44. Ocorre que, para a manutenção de um Estado, por vezes é
necessário apostar nesta acepção exotérica da lei: sabe-se que a maior parte dos indivíduos
não compreendem seu fim, mas a vida em sociedade precisa ser coordenada de forma

40
G III, 61.
41
G III, 63.
42
G III, 63.
43
Não pretendo opor, aqui, a exterioridade da lei mosaica e interioridade do ensinamento cristológico. O
capítulo anterior sobre o Estado hebreu deve ter deixado claro que há, antes de exterioridade bruta, conexão
entre externo e interno iniciada pelo exterior. Ainda, na seção sobre a obediência deste capítulo, pretendo
mostrar como a interiorização da lei divina também exige um gênero de exteriorização.
44
ESPINOSA, B. 2019, P. 184; G III, 65.
282

convincente. É sintomático, então, que o Cristo e os apóstolos não tenham pregado em


parceria com o Estado, mas, em certo sentido, pelo menos nas primeiras comunidades cristãs,
à sua revelia (o que obviamente não significava que não tivessem pretensões políticas ou que
seu movimento não fosse, por si só, teológico-político)45.

Neste universo de múltiplas acepções para o termo lei, quais são, efetivamente, as
principais notas características da lei dita divina?46 De modo geral, ela deve ser separada de
todos os acessórios que circundam as religiões históricas. Em primeiro lugar, conserva um
aspecto universal: é derivada da natureza humana universal – em especial das propriedades
de seu entendimento considerado como sua melhor parte –, o que significa que é válida a
quaisquer indivíduos em todos os tempos e lugares. Para esta lei, a crença nas narrativas
bíblicas é supérflua: não é necessário conhecer ou ter fé nos relatos da Escritura para amar a
Deus, embora, para alguns, este seja o caminho mais acessível. A observação das cerimônias
e de toda pompa religiosa também lhe é exterior. A lei divina consiste puramente em algo
deduzido através da luz natural, ao passo que as cerimônias se mantêm apenas enquanto rito,
de modo a incutir no povo a obediência. Por fim, a lei divina também não engendra
recompensa para além de si própria: o prêmio por amar a Deus é este próprio amor, o castigo
é ser dele privado. O suplício dos insensatos é a sua insensatez: subscreve Spinoza
concordando com Salomão.47 Compreender a natureza, isto é, Deus, e consequentemente
amá-lo de ânimo livre, é experimentar o bem supremo que podemos encontrar nesta vida; já o
caminho oposto consiste na verdadeira servidão, que, diga-se de passagem, não é aqui
designada como pura obediência, mas sim obediência à carne, o que produz inconstância e
instabilidade de ânimo.

Apesar de o amor a Deus e a regra de vida que ele institui serem considerados suas
ordens e, portanto, um gênero de lei, Spinoza nitidamente critica uma certa postura em
relação ao cumprimento das leis. Embora afirme que, num certo sentido, os meios para
perseguir o sumo bem possam ser considerados como ordens, e a regra de vida que ele
engendra, uma lei, Deus não pode ser considerado, nem pela luz natural, nem pelo

45
“De fato, não foram reis que ensinaram, a princípio, a religião cristã, mas simples particulares que, por largo
tempo, contra a vontade dos que detinham o poder e de quem eram súditos, se reuniam habitualmente em Igrejas
privadas, instituíam cerimônias sagradas, administravam, organizavam e decidiam tudo sozinhos, sem terem
minimamente em conta o Estado”. ESPINOSA, B. 2019, P. 375-376; G III, 237.
46
G III, 61-62.
47
G III, 66.
283

ensinamento da Escritura, “como um legislador ou como um príncipe que prescreve leis aos
homens”48. A luz natural ensina que, em Deus, vontade e entendimento não se distinguem. É
apenas a visada humana em relação ao intelecto divino que opera esta separação: assim,
dizemos que Deus entende a natureza do triângulo quando compreendemos que a essência
deste objeto está compreendida como uma verdade eterna em seu intelecto. Dizemos,
também, que Deus tem uma vontade ou decreta algo quando consideramos que a essência
deste mesmo triângulo está contida na natureza divina pela necessidade desta última, da qual
depende. Ainda, afirmamos que Deus tem uma vontade quando a consideração da essência e
propriedades do triângulo como verdades eternas depende exclusivamente da necessidade e
do entendimento divino (e não do triângulo em si). Por consequência, Deus quer e entende no
mesmo ato, de modo que suas afirmações e negações envolvem sempre uma necessidade e
verdade eterna.

Esta tese é exemplificada recorrendo ao exemplo adâmico: seria contraditório supor


que Deus teria dito a Adão que não queria que ele experimentasse da árvore do conhecimento
do bem e do mal. Pois, se Deus assim o entendesse, assim o teria querido, e, num mesmo ato,
o decretado – de modo que o prosseguimento da narrativa, tal como descrita na Escritura,
seria tão somente impossível. Deus apenas o proibiu insistindo nos malefícios da
consequência daquele ato. Tendo Deus apenas revelado o castigo proveniente da ação, Adão
compreendeu sua mensagem como uma lei. Compreender como uma lei, no caso adâmico,
significa compreender a mensagem divina como “algo instituído a que se seguiria um prêmio
ou um castigo, não pela necessidade e pela natureza da ação perpetrada, mas unicamente pelo
capricho e pela autoridade absoluta de um príncipe”49. Ora, mas parece que esta perversão
não pode ser reputada a Deus: assim o narra tão-somente a Escritura, que se coloca da
perspectiva dos profetas e, neste caso, de Adão: que tomou Deus como um soberano. Logo,
foi por uma ignorância de Adão, e não pela natureza divina, que Deus fora concebido como
um príncipe agindo a seu bel-prazer. Adão certamente não compreendeu a lei divina que
garante o sumo bem.

Ao longo de toda a exposição do capítulo IV do TTP, salta aos olhos a equivocidade


do termo lei e, mais particularmente ainda, da polivalência da lei divina. Sentido absoluto

48
ESPINOSA, B. 2019, P. 182; G III, 62.
49
ESPINOSA, B. 2019, P. 183; G III, 63.
284

versus sentido jurídico; no interior do direito, sentido humano versus divino; no interior do
divino, uma espécie de convite a interpretar a lei divina como não-jurídica. Afinal, a qual
âmbito pertence a lei divina? Ora entendida no âmbito natural e, portanto, descritivo; ora no
âmbito do direito e, assim, da competência dos homens, a distinção parece disfuncional para
tratar do seu caso singular. A lei divina não pode ser dita absoluta: não descreve o
comportamento dos homens como o faz a lei geral de movimento e repouso ou a lei que dá
conta dos princípios associativos da mente humana. Basta considerar que há homens que
vivem segundo a lei divina e outros não e que nem por isso deixam de ser homens. Por outro,
também não se insere adequadamente na esfera do direito: trata-se de uma lei que, do ponto
de vista do fim, diz respeito a uma regra de vida, mas que não pode admitir a propriedade da
violência e do comando, quer dizer, não pode ser transformada em lei exterior sem ser
transfigurada em outra coisa que não a lei divina. A lei divina só pode ser corretamente assim
chamada se for absoluta, ou seja, se for tomada como necessidade e verdade eterna. Mas uma
estranha verdade eterna que não descreve e carece de necessidade; e que prescreve
comportamento sem constranger. A lei divina prescreve sem prescrever e é absoluta sem
descrever.

A esta altura, os procedimentos spinozistas de disjunção entre externo e interno já não


são novidades: a topologia é embaralhada seja para tratar da Escritura – que informações
estão dentro ou fora do texto –, do Cristo – por ter uma revelação adequada e ensinar
verdades eternas, mas também recorrer a obscuras parábolas – e da experiência singular do
Estado hebreu – cuja obediência não pode ser descrita apenas em termos de exterioridade
bruta, mas de uma exteriorização de uma interioridade capturada de fora. No caso específico
da lei divina, ela se traduz na permeabilidade entre as esferas natural e jurídica; entre o que é
definido como ético e legal, à semelhança das categorias de estado de exceção e homo sacer,
descritas por Agamben como pertencentes, ao mesmo tempo, à esfera do direito e do vivente.
50
O problema da exata categorização da lei divina talvez seja, antes, um sintoma de
tratamento de questões mais amplas por parte de Spinoza. É preciso manter esta fratura, seu
pertencimento à esfera natural e do direito, para que possa ser, adiante, transfigurada em
dogma. Algo da lei divina certamente se perderá neste percurso: sua propriedade de
ensinamento, sua necessidade absoluta e seu caráter de verdade eterna. Mas talvez um

50
Sobre Agamben e suas leituras dos dois operadores jurídico-políticos mencionados, ver a Introdução deste
estudo.
285

aspecto essencial possa ser mantido: a exteriorização. Talvez a instabilidade que caracteriza
os principais temas do TTP, sua eterna dinâmica entre externo e interno, seja mesmo
reproduzida nas propriedades formais do livro: um tratado duplo, que articula teologia e
política através de um hífen, que necessita separar os capítulos diretamente teológicos dos
diretamente políticos, e que, para garantir seus objetivos, precisa manter os domínios para
sempre apartados51.

O dogma

Em dois momentos-chave do capítulo XIV do TTP, Spinoza precisa o objetivo


principal de sua obra: próximo do início, o define como a conquista da distinção entre a fé e a
filosofia52; mais próximo do fim, reitera que “o que nós aqui apresentamos constitui o
principal objetivo do presente tratado”53. Eis um acréscimo às declarações da carta a
Oldenburg e à informação ostentada em seu extenso subtítulo. Mais do que a conquista da
liberdade de filosofar, do combate aos preconceitos dos teólogos e das acusações de ateísmo,
o Tratado visa separar a fé da filosofia. Para tanto, naturalmente, exige-se uma definição de
fé. A fé está diretamente relacionada à interpretação do texto bíblico. É determinando seu
escopo e linguagem que se poderá atingir, como conclusão fundamental, o exercício da fé e a
determinação do verdadeiro grupo de fiéis. Na altura do capítulo XIV do TTP, Spinoza já
havia se dedicado a determinar o objetivo central da Escritura: por meio de uma linguagem
adaptada ao ingenium dos profetas e do vulgo, incutir a piedade e a obediência a Deus. A
obediência pode ser facilmente conquistada observando o simples princípio de amar ao
próximo como a si mesmo54. Não importa a verdade sobre a essência de Deus, mas uma
observação estrita da sua lei. Assim sendo, para definir os dogmas da fé basta elencar os
princípios que, se retirados, retiram necessariamente a obediência e a piedade; e, se

51
Num interessante artigo, Jack Stetter reflete sobre o emprego do hífen no título do Tratado Teológico-Político.
À diferença da relação que estabelece, no capítulo XV da obra, entre razão e teologia, ou filosofia e teologia,
que poderia ser expressada pela partícula “e” (já que, neste caso, trata-se de manter a integralidade de cada
domínio), entre teologia e política deve haver “acomodação”, o que explica o emprego do hífen. Apesar de
desconfiar se esta conexão é efetivamente conquistada por Spinoza ao longo do TTP – a não ser sob o signo de
uma tensão insolúvel, a qual venho tentando descrever ao longo deste estudo –, o artigo de Stetter é engenhoso
ao chamar a atenção para um artifício formal que poderia passar por um simples detalhe sem relevância
filosófica. Ver STETTER, J. “Quand « ET » ne suffirait pas : À propos de l’usage d’un trait d’union dans le titre
du Traité Théologico-Politique de Spinoza”. Apresentado em Journées doctorales Franco-japonaises “Et”
,Université Paris 8, org, Christian Doumet, Março de 2014.
52
G III, 174.
53
ESPINOSA, B. 2019, P. 310; G III, 180.
54
G III, 174.
286

praticados, implicarão igualmente a obediência. Um novo vocabulário legal surge: fé, dogma,
obediência. O contexto deixa de ser jurídico, como no tratamento da lei divina, para se tornar
dogmático, inserindo-se no âmbito teológico-político como força de autoridade repressiva.

O dogma coage como a lei humana: envolve violência impositiva, mandamento


vertical daquele que detém autoridade para ordenar. Partilha, porém, de uma característica da
lei divina: o fato de dizer respeito especificamente a uma relação com Deus. Impõe uma regra
de vida cujo fim é a obediência, mas cujo meio é, diferentemente da lei divina universal, a
coação. O dogma está para além das leis estatuídas por um soberano numa República –
embora, é claro, se for de sua decisão, poderá conferir a ele força-de-lei55. Tal como a lei
divina, o dogma visa encaminhar à salvação das almas – mas faz isso por uma via que só
pode garantir felicidade dentro da lei, uma vez que, por definição, o sumo bem só pode ser
alcançado por esclarecimento, quer dizer, conhecimento da verdade. O cerne do dogma é,
portanto, o mandamento teológico: “[...] ninguém pode negar que aquele que ama o próximo
como a si mesmo porque Deus manda é realmente obediente e feliz segundo a lei, enquanto
aquele que despreza é rebelde e insubmisso”56. O dogma pode até mesmo carregar uma
informação falsa. Suspende-se a questão sobre a verdade ou falsidade do conteúdo do dogma
propriamente, pois sua função não é o conhecimento, mas a piedade e um certo sentido de
salvação.

O dogma também difere da lei divina pela necessidade de um suporte escrito. É a


partir da autoridade da Sagrada Escritura que se pode deduzir, como dogmas
correspondentes, todos os princípios que encaminham à obediência. Neste aspecto, os
dogmas se assemelham à religião dos judeus: “aos primitivos judeus”, diz Spinoza, “a
religião foi dada por escrito, como uma lei, porque nesse tempo eles eram quase como
crianças”57. É bem verdade que Salomão, Paulo e o Cristo elogiam tanto a luz natural quanto
a lei divina natural, e que também ela se encontra disposta na Escritura segundo uma leitura
qualificada da mesma. No entanto, pelo fato de não exigir a crença nos relatos históricos, que
constituem a base mesma da linguagem da Escritura58, segue-se que a lei divina pode

55
Cf. toda a argumentação do capítulo XIX do TTP. A religião só adquire força-de-lei por decreto do soberano
civil: a ele pertence integralmente o jus circa sacra.
56
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 304; G III, 174.
57
ESPINOSA, B. 2019, P. 287; G III, 159.
58
“Dito de outro modo, ela [a Escritura] não as deduz e encadeia a partir de axiomas e definições, mas limita-se
a dizê-las de um modo simples e, em abono do que diz, recorre exclusivamente à experiência, isto é, a milagres
287

perfeitamente dela prescindir. A subserviência ao texto insere-se na deferência mais ampla


aos aspectos acessórios à lei divina: a fé nos relatos históricos e a prática de cerimônias.
Engendra, além disso, uma postura de aceitação passiva da lei, na qual o dogma, embora
possua um conteúdo próximo ao da lei divina, modifica-a no aspecto fundamental de parecer
exigir uma relação estática entre interno e externo; ou, no mínimo, uma exteriorização de
uma interioridade cuja origem é um mandamento de fora, tal como acontece no Estado
hebreu. Já a exteriorização da lei divina, como sabemos, é conduzida livremente por um
princípio interno que tem como causa primeira o próprio amor. O problema é que, enquanto
as leis do Estado hebreu se dirigiam apenas à manutenção daquela república singular, os
dogmas da religião universal, tanto quanto a lei divina, visam a salvação da alma e, portanto,
se dirigem ao todo da humanidade.

Como explicar, enfim, a diferença de tom entre os capítulos IV e XIV? No primeiro, a


lei divina procura abrir espaço para a livre observação da lei, de modo que configura um
estranho meio-termo entre descrição natural e prescrição comportamental. No dogma, não há
dúvidas: trata-se pura e simplesmente de prescrição, que deve ser obedecida de modo cego.
Em certo sentido, este aspecto servil do dogma já estava compreendido na lei divina: o que
explicaria a manutenção, por parte de Spinoza, do vocabulário da lei e do decreto. Ao mesmo
tempo, é certo que o dogma exige uma adequação à exterioridade muito distinta da
compreensão interiorizada da necessidade e eternidade da lei divina. É provável que esta
tensão entre lei divina e dogma, duas versões do ensinamento da Escritura, não possa ser
dissolvida, sob pena de impedir a duplicidade necessária ao tema da salvação dos ignorantes.
O objetivo de Spinoza, com o dogma, é transformar a lei divina universal numa espécie de lei
humana, profana, que garantirá, paradoxalmente, a mesma salvação que a observação livre e
dinâmica da lei divina.

Ao mesmo tempo, não é bem verdade que o dogma está de todo ausente de conteúdo
interno: basta considerar que, ao invés de eliminar por completo quaisquer saberes
especulativos da Escritura, Spinoza procura, antes, limitá-los a um conjunto simplificado. São
eles:

e a relatos históricos, os quais são também narrados num estilo e com frases que se destinam a emocionar ao
máximo os ânimos do povo (sobre este aspecto, veja-se o que se demonstra no terceiro ponto do capítulo VI).”
Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 297; G III, 167.
288

1 — Existe um Deus, isto é, um ser supremo, sumamente justo e


misericordioso, ou modelo da verdadeira vida: com efeito, quem não sabe
ou não acredita que ele existe não lhe pode obedecer ou reconhecê-lo como
juiz.

2 — Deus é único: ninguém pode pôr em dúvida que também isto se requer
absolutamente para que Deus suscite a máxima devoção, admiração e amor,
visto que a admiração e o amor nascem apenas da excelência de um em
relação aos demais.

3 — Deus está presente em toda parte, ou seja, nada lhe é oculto: se se


acreditasse que para ele havia coisas escondidas, ou se se ignorasse que ele
vê tudo, então duvidar-se-ia ou ignorar-se-ia mesmo a equidade da sua
justiça, com a qual dirige tudo.

4 — Deus tem, sobre toda as coisas, direito e poder soberano e tudo quanto
faz é por seu beneplácito absoluto e graça singular, e não por coação de um
direito: na verdade, todos estão obrigados a obedecer-lhe em absoluto, mas
ele não está obrigado a nada perante ninguém.

5 — O culto e a obediência a Deus consistem unicamente na justiça e na


caridade, isto é, no amor para com o próximo.

6 — Só aqueles que obedecem a Deus, seguindo esta norma de vida, obtêm


a salvação, ao passo que os outros, os que vivem sob o império dos desejos,
estão perdidos: se os homens não acreditassem firmemente nisto, não
haveria nenhuma razão para preferirem obedecer antes a Deus do que aos
seus desejos.

7 — Finalmente, Deus perdoa os pecados aos que se arrependem: de fato,


como não há ninguém que não peque, se não se admitisse isto, todos
desesperariam da sua salvação e não teriam qualquer motivo para acreditar
na misericórdia divina. Mas aquele que acredita firmemente que Deus, pela
misericórdia e graça com que dirige todas as coisas, perdoa os pecados dos
homens, e que por este motivo se inflama ainda mais de amor para com
Deus, esse conhece verdadeiramente Cristo segundo o espírito e Cristo está
nele. (ESPINOSA, B. 2019, P. 307-308; G III, 177-178).

Existência, unicidade, onisciência, onipotência, justiça, misericórdia: eis alguns


princípios especulativos sobre Deus, ensinados pela Escritura, e que garantem a verificação
necessária da obediência. Dentre estes dogmas, talvez o que salte aos olhos seja o sétimo:
provavelmente o único da lista que não poderia tão facilmente ser acomodado à lei divina,
pela simples razão de apresentar um Deus antropomórfico59. Observando com cautela, as
descrições dos sete dogmas parecem seguir esta linguagem: a daquele que figura Deus pela
imaginação. Esta é a linguagem que a obediência exige. Neste caso, não se trata apenas de
modificação de linguagem, mas igualmente de conteúdo. É a própria relação com Deus que
se vê modificada ao modificar-se o modo como ele é compreendido. Tomando-o como uma
pessoa, que pode perdoar os pecados dos que se arrependem, Deus é descrito como um ser

59
Para uma análise detalhada das transfigurações antropomórficas contidas no credo mínimo, ver MATHERON,
A. 1971, P. 94-127.
289

em que vontade e intelecto se distinguem: exatamente aquilo que a lei divina dizia recusar ao
exigir o conhecimento adequado de Deus, único capaz de engendrar o seu amor e produzir a
busca pelo sumo bem. Que dogma e lei divina sejam distintos e incomensuráveis em pontos
essenciais é menos surpreendente que o fato paradoxal de que encaminham, em igual medida,
à salvação60: a composição entre mandamento e salvação é, aliás, um ensinamento apenas
acessível por revelação, e o máximo que se pode obter quanto a ele é uma certeza moral.
Manter esta fratura fundamental entre ensinamento interior e exterior, porém, é fundamental
para que se garanta “a salvação de quase todos”61 e talvez não seja exagerado dizer que é ela
que constitui propriamente o ensinamento fundamental e não-dito de todo o Tratado
Teológico-Político.

Lembremos: os dogmas não são simplesmente princípios que auxiliam ao exercício da


obediência, mas sim que, se retirados, retira-se a obediência e, se acrescentados, a
acrescentam necessariamente62. Uma leitura livre da Escritura pode direcionar o fiel a outros
dogmas que, se lhe forem úteis à conquista da obediência, serão tão legítimos quanto os
demais. A diferença é que este conjunto de sete preceitos constitui a base de um credo
mínimo e que, sem eles, a obediência piedosa torna-se tão-somente impossível. É preciso
manter a necessidade destes dogmas a fim de evitar controvérsias: daí sua generalidade,
estabelecida de modo que todos aqueles que professam a fé concordarão. A conexão entre o
resultado da obediência e a necessidade de postulação do princípio parece, então, essencial.
Se for assim, mesmo na servilidade do dogma há participação da interioridade e, portanto,
comunicação interno-externo; mesmo na fé há participação do conatus individual e, portanto,
atividade. Ora, se for assim, como é possível que a observação do dogma seja puramente
passiva? A investigação desloca-se, agora, para uma leitura detalhada das configurações
psicológicas, afetivas e teológico-políticas da obediência.

Obediência e liberdade

Mais de um século separa os tratados de Spinoza e os eventos políticos marcantes da


Holanda do século XVII do discurso de Benjamin Constant intitulado “Da liberdade dos
antigos comparada à dos modernos”. Pronunciado em 1819 na Athénée royal de Paris,

60
G III, 185, 188; 263.
61
ESPINOSA, B. 2019, P. 320; G III, 188.
62
G III, 175, 177, 178.
290

Constant pretende delimitar, como já anuncia o título, dois gêneros de liberdade: aquela que
se verifica nas sociedades antigas – por exemplo, na pólis grega, à exceção do caso singular
de Atenas, e na república romana – e a outra característica das sociedades modernas das quais
se assume participante. Enquanto nas sociedades modernas contemporâneas a Constant –
segundo a visão de um “inglês, um francês, um habitante dos Estados Unidos da América”63
– a liberdade é tomada como o direito de pensar e agir conforme suas inclinações individuais,
reservando à esfera privada máxima independência e soberania, nas sociedades antigas
reinava uma liberdade pública mais efetiva, seja permitindo o exercício político direto
(não-representativo, portanto), seja implicando uma vigilância severa sobre todos os aspectos
da vida. Ainda, a noção de liberdade religiosa, tão cara aos modernos, seria considerada, nas
sociedades antigas, como uma espécie de sacrilégio: deve-se seguir e obedecer a religião
instituída pelo corpo social. “A autoridade do corpo social se interpõe e incomoda a vontade
dos indivíduos”64: quem vos fala é um moderno.

Seu discurso não é, assim, apenas descritivo: trata-se de tomar partido pela liberdade
dos modernos e de denunciar os excessos perigosos que a revolução francesa recente, tanto
quanto alguns de seus teóricos mais célebres, foram responsáveis por. Uma das marcas da
superioridade do moderno, segundo Constant, é o fato de poder prescindir da guerra. Ao
passo que as sociedades antigas necessitavam da guerra contra as nações estrangeiras, seja
para escravizar mais indivíduos, seja para conquistar mais riquezas e território, as sociedades
modernas podem enriquecer apenas praticando o comércio. Num mundo europeu em que a
escravização já fora institucionalmente abolida, o comércio permitia justamente as trocas
entre as nações sem perda de capital humano, substituindo a lógica do saque pela da troca
pacífica. A despeito de certa ingenuidade retórica cara ao gênero dos discursos públicos, é
bem verdade que seu autor não vê – ou não quer ver – as mutações que tanto a escravização
quanto a guerra sofreram historicamente. A experiência que temos ao viver num país como o
Brasil, sobretudo considerando o tema da escravização, demonstra que inexistência
institucional não significa supressão prática. Assim, Constant jamais considera a manutenção
das relações de servidão por outros meios – por exemplo, através da existência da pobreza ou
da escravização institucional em outros países não-europeus – e menos ainda o surgimento de

63
Tradução minha. Ver CONSTANT, B. Œuvres politiques de Benjamin Constant. Avec Introduction, Notes et
Index par Charles Louandre. Paris : Charpentier et Cie, Libraires-Éditeurs, 1874. P. 260.
64
Grifo e tradução meus. Ver CONSTANT, B. 1874, P. 261.
291

novas relações de guerra pautadas e justificadas por interesses comerciais. Seja como for, o
ponto de Constant, porém, é glorificar o moderno e criticar, em última análise, o terror
revolucionário condensado nas atitudes de Robespierre, associando-o à liberdade dos antigos.

Figura ilustre do liberalismo francês65, Constant inspira outro personagem que se


tornará um célebre proponente do liberalismo do século XX: Isaiah Berlin. Compartilhando o
mesmo desconforto face a regimes políticos alegadamente intransigentes – Constant, em sua
leitura da Revolução Francesa, e Berlin das práticas do regime soviético –, a solução liberal
aprofunda a distinção entre os dois conceitos de liberdade, mantendo, no entanto, algumas
associações intactas. Segundo Berlin, há, ao menos naquele momento da história cujo
pano-de-fundo é a guerra fria, uma disputa de ideias entre dois grandes sistemas de
pensamento – que terminam por gerar práticas políticas subsequentes – na medida em que
respondem à questão da obediência e da coerção. As razões da obediência, a quem ou ao quê
ela se dirige e quais as consequências da desobediência individual são as questões que
dividem percepções morais e políticas. Definindo a coerção como privação de liberdade
individual, Berlin passa, então, a duas definições de liberdade não pretendendo ser exaustivo,
mas sim detectar as ideias que mais mobilizam os grupos políticos de seu tempo. De um lado,
um conceito propriamente moderno de liberdade, que pode ser designado como liberdade
negativa: liberdade é não-interferência. Ser livre significa, nas palavras de Stuart Mill,
“perseguir seu próprio bem de sua própria forma”66. A noção de Mill é reconhecida por
Berlin, porém, como suscetível a alguns problemas, um deles sendo a associação demasiado
rápida feita entre a negatividade – no sentido qualitativo – da coerção e a positividade da
não-interferência. Outros liberais clássicos, como John Locke, Adam Smith e Thomas
Hobbes, reconheciam que a liberdade entendida neste sentido não poderia ser completamente
concedida aos indivíduos, sob pena de mitigar outros aspectos relevantes para a organização
social: a segurança, a paz, a manutenção da ordem estatal e, por vezes, a própria liberdade.
Em nome da liberdade, de sua real efetivação, é preciso fundar a lei para limitá-la. Mesmo
assim, a coerção deve deixar um mínimo de trânsito livre para o exercício das competências
individuais, a livre troca de ideias, de modo a estabelecer uma espécie de proporção ótima

65
Para uma abordagem histórica sobre o nascimento do liberalismo francês tanto quanto o importante papel
desempenhado por Constant neste processo, ver ROSENBLATT, H. Liberal Values. Benjamin Constant and the
Politics of Religion. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 e VINCENT, S.K. Benjamin Constant and
the Birth of French Liberalism. New York: Palgrave Macmillan, 2011.
66
Apud. BERLIN, I. 2002, P. 174. Tradução minha.
292

entre a coerção do Estado e a liberdade do indivíduo. Um problema para a liberdade negativa


é, justamente, como estabelecer este limite: é preciso conferir mais à liberdade individual e
menos ao Estado ou ao contrário? Uma divisão entre esfera privada e esfera pública
naturalmente se impõe. Observa-se que o endosso da liberdade negativa não garante a
passagem para regimes democráticos ou minimamente livres, mas que, Berlin o reconhece, a
liberdade negativa pode perfeitamente coexistir com um regime que, apesar de garantir
plenamente as liberdades individuais, é coercivo no plano público: a pergunta pelos limites de
interferência em minha ação individual não é a mesma sobre aquele que me governa.

Já para o caso da liberdade positiva: enquanto a negativa trata-se de uma liberdade de,
a positiva de uma liberdade para. Mais preocupado com a natureza do soberano, este gênero
de liberdade é frequentemente responsabilizado, pelos proponentes da liberdade negativa,
pela ascensão de regimes tirânicos. É preciso notar, de início, que Berlin é menos caridoso
em seu tratamento da liberdade positiva do que da negativa; ainda, que sua argumentação se
concentra mais em tratar do que julga suas consequências nefastas do que propriamente de
sua definição. Assim, o “positivo” que a qualifica diz respeito à ideia de ser “seu próprio
mestre”: ser fiel a seus próprios princípios, ser um sujeito consciente e, em suma, racional – o
que me constituiria como um ser distinto dos demais que pertencem à natureza. O destino do
assenhoramento de si na cultura, no entanto, parece ter sido o da fragmentação do eu: de um
lado, um eu superficial, inclinado às paixões, que erra e ao qual o indivíduo não corresponde
completamente; de um outro, um eu racional mais oculto e fundamental, íntegro e autêntico,
o qual, afastadas as propriedades e comportamentos contingentes, me constitui
essencialmente como indivíduo. Esta natureza mais elevada pode vir a se confundir com uma
comunidade: uma tribo, uma raça, uma Igreja ou um Estado (para empregar os exemplos de
Berlin). Assim, em prol do exercício de meu verdadeiro eu, sou coagido a agir conforme
aquilo que a instituição julga o melhor; e, do ponto de vista daqueles que detém a soberania,
esta fratura pode inclusive justificar um discurso baseado na suposição de que coagir em vista
do bem de um indivíduo não pode significar, em termos estritos, propriamente coação; e,
mais ainda, que fazer com que o indivíduo aja conforme o desejo institucional é, antes,
fazê-lo agir conforme aquilo que seu eu interior, embora latente, inconsciente e cego para o
reto motivo, faria se estivesse em posse plena de suas capacidades. Historicamente, então,
esta fortuna da liberdade positiva gerou dois comportamentos possíveis: a auto-abnegação
293

dos desejos individuais de modo a obter independência e a autorrealização a partir da


identificação integral com um princípio ou ideal.

Há elementos nas duas descrições que permitiriam uma aproximação ao spinozismo.


Devido às suas alianças hobbesianas, Spinoza parece em algum sentido considerar o Estado
como limitador: embora não propriamente da liberdade, mas sim do direito natural. É claro
que esta limitação é executada em prol da real efetivação do direito natural na condição civil,
de modo a fugir da situação de ameaça constante inerente ao estado de natureza. Neste
sentido, como afirma em carta a Jarig Jelles67, o direito natural é mantido mesmo após a
confecção da realidade civil. Ainda, a liberdade de pensamento e fala, compreendida como
uma faceta do direito natural, não pode ser restringida pela República: há limites não tanto
políticos, mas mesmo ontológicos para a extensão da lei. Não se pode determinar um
indivíduo a pensar e a agir conforme os desígnios do soberano pois, do contrário, ele deixaria
de ser humano68. Assim, Spinoza poderia ser categorizado como um proponente moderado da
liberdade negativa: não tão próximo da ingenuidade de Mill, que parece crer que é necessário
tudo permitir, mas tampouco aliado de Locke e Smith ao supor que o Estado deva ser
diminuído em prol da expressão das individualidades. Spinoza seria, então, um herdeiro
direto de Hobbes: prefere a coletividade ao indivíduo em prol da liberdade do próprio
indivíduo. A noção de obediência spinozista, porém, parece cair como uma luva para o
exemplo caricatural de Berlin: explicitamente, Spinoza defende que um filho que age
conforme os mandos do pai não pode ser dito escravo, uma vez que, supõe-se, os pais o
dominam considerando seu bem individual. Da mesma forma, aquele que age conforme as
leis não é escravo, mas cidadão: o momento do pacto foi responsável por conferir
legitimidade ao poder de uma coletividade, de uma República, que só pode ser assim
chamada por tanto tempo quanto agir conforme o interesse do todo. Ora, não é isto que Berlin
denuncia ao atacar aqueles que parecem se julgar proprietários do melhor, da racionalidade,
capazes de impingir aos demais aquilo que eles, por sua ignorância, não são capazes de
entrever? Alia-se a isso a questão delicada e urgente que parece ser, para ele, a manutenção
de uma República estável a fim de garantir a existência de um sábio que convive com um
vulgo supersticioso e ignorante.

67
Carta 50.
68
Eis a discussão do capítulo XX do TTP, a qual abordaremos adiante.
294

De fato, a noção de liberdade spinozista só pode ser compreendida no interior de certa


noção de racionalidade. Ser livre não é agir conforme o seu bel-prazer, poder escolher
indeterminadamente entre opostos, mas perseguir o melhor, ou seja, aquilo que é ditado pela
razão. Lembremos de toda a crítica spinozista à liberdade da vontade formulada na Ética,
especialmente o modo como ela engendra uma vida de culto à exterioridade ao inverter a
relação entre causa e efeito, supondo um sujeito capaz de determinar e suspender a ordem de
eventos dada desde toda a eternidade. Por razões históricas, mas também conceituais, a
separação entre a vida privada e a pública simplesmente não surge no curso da argumentação
de Spinoza. Longe de um aspecto acessório, parece haver uma forte razão para isto: embora
aparentada às duas concepções de liberdade, a posição spinozista, tanto em seu sentido
metafísico quanto político, não corresponde perfeitamente a nenhuma das duas correntes.
Aquilo que modernamente convencionou-se denominar liberdade de expressão, e que
Spinoza procura classificar como liberdade de pensamento e de fala, só pode ser obtida no
contexto da República, o que implica obediência às leis. Obediência e liberdade não se
excluem: ao contrário, a primeira é condição para a segunda. E isto não significa endossar a
liberdade positiva, uma vez que se trata do gênero de liberdade que se encontra exatamente
nos proponentes da liberdade negativa: a livre expressão individual. A descrição de Berlin
leva a crer que, na liberdade positiva, as inclinações individuais não são efetivamente
respeitadas: apenas as inclinações que o soberano julga corretas. Ainda que critique Mill por
sustentar que a coerção é ruim por si e a não-interferência boa por si, Berlin parece manter o
postulado de que a coerção não se conjuga com a liberdade, o que é particularmente claro em
sua análise da degenerescência da liberdade positiva: um postulado que também é
silenciosamente mantido por Constant. A estranha associação entre obediência e liberdade se
pronuncia a favor da hipótese de um Spinoza não totalmente iluminista tampouco
integralmente antimoderno69: mas sim, talvez70, pré-moderno, situando-se num momento em
que as associações e distinções ainda não foram investidas de evidência.

69
Nem totalmente identificado às pretensões de Jonathan Israel e dos comentadores liberais, tampouco contrário
ao espírito moderno tal como pretende Antonio Negri. Ver a discussão da recepção política da obra de Spinoza
apresentada na Introdução deste estudo.
70
E, a esta altura da investigação, apenas talvez. Concluiremos por uma outra classificação em nossa Conclusão.
295

A obediência como dado natural da política é um princípio que remete ao menos tão
longe quanto a Aristóteles: tal como a alma governa o corpo e o intelecto governa a alma71,
que haja o governar e o ser governado é necessário e vantajoso para a sobrevivência das
partes72. Spinoza, por sua vez, trata a obediência mais como um dado da história do que da
natureza. A obediência existe lá onde há Estado civil organizado, mas é perfeitamente
concebível, sem impedimentos de princípio, uma comunidade formada inteiramente por
sábios que prescindam do domínio da lei73. Como os homens são mais frequentemente
governados por seus afetos e guiados por sua imaginação, necessitam obedecer para que ao
menos exteriormente ajam como se fossem racionais. A exterioridade pode fazer encontrar,
assim, numa mesma ordem política, sábios e ignorantes: todos obedecendo em uníssono às
leis independentemente das razões particulares. A princípio, então, obedecer significa
adequar-se a um princípio exterior a si próprio74. O tema da obediência é, portanto, mais uma
das ocorrências da questão da exterioridade no pensamento de Spinoza – e talvez o momento
mais crucial de sua aparição. Ao mesmo tempo, é quando há, enfim, o encontro entre teologia
e política: os dogmas da fé, para além de construírem uma certa relação com Deus,
engendram comportamentos para com os demais homens no interior de uma comunidade
dotada de direito. Se for assim, a questão da exterioridade, tomada a partir da obediência, será
o lugar privilegiado para abordar a conexão entre teologia e política no pensamento de
Spinoza.75

Segundo Charles Ramond, as interpretações de caráter emancipatório do spinozismo –


aquelas que insistem em subscrever um modelo de liberação de si próprio da submissão às
estruturas teológico-políticas – enfrentam um grave problema76. A obediência puramente
exterior, aquela que se verifica no caso dos ignorantes, é tão condutora da salvação quanto a
via racional. Obediência a um outro e obediência a si são reduzidos à pura exterioridade, do
contrário, como diz expressamente Spinoza, seria possível duvidar da salvação de quase
todos77. Este é um dado da revelação, ensinado pela Escritura, e que o filósofo, ao tentar

71
Aristóteles. De Anima, 410b10-15.
72
Aristóteles. Política, 1254a22-33.
73
G III, 58-59.
74
RAMOND, C. 2007, P. 139.
75
Cf. MACHEREY, P. 2018. « Spinoza et le problème de l’obéissance ». Disponível em:
https://philolarge.hypotheses.org/2387. Última visualização: 18/01/2021 às 16h02min. Ver também o artigo «
Spinoza et la simple obéissance », 2019, disponível no mesmo site.
76
RAMOND, C. 2007, P. 139; 2015, P. 13-35.
77
G III, 188.
296

comportá-lo racionalmente, fracassa. Haveria, então, uma dimensão conservadora da filosofia


de Spinoza, uma vez que a exterioridade convida a um comportamento de puro
assujeitamento, alheio à reflexão cuja origem é interior. No caso específico de Ramond,
trata-se de sublinhar a existência dessas passagens externalistas a fim de construir uma leitura
da política inteiramente apartada de considerações morais (remetidas à interioridade),
configurando aquilo que ele classifica como a lei do número e da quantidade. Em última
análise, a quantidade seria equivalente, na democracia, ao voto: não importam as razões que
conduzem às preferências políticas por um candidato ou outro, mas sim a quantidade de votos
que recebeu. Esta interpretação talvez seja consequente com a física spinozista, que suprime
o recurso à causalidade final e, portanto, a interposição de valores. Na política, ela conduz até
mesmo a certo materialismo estratégico na análise de conjunturas, embora este não pareça
ser, efetivamente, o objetivo da interpretação de Ramond. Embora a divisão entre sábios e
ignorantes seja certamente um índice de tendências conservadoras na filosofia de Spinoza –
como não inscrever a passagem de encerramento da Ética, que classifica a salvação como
difícil e rara, consequentemente como inacessível a todos, senão neste panorama de
hierarquia de classes78? –, o tema da obediência pode receber um tratamento mais matizado, a
ponto de dificilmente poder ser integralmente identificado ao puro assujeitamento exterior.
Autores como Pierre Macherey79 e Marc Maesschalck80 insistem, respectivamente, na
dificuldade de classificar a obediência como “simples” e na possibilidade de algo como uma
obediência criativa – neste último caso, que conduziria inclusive à liberação do imaginário
teológico-político em direção ao estabelecimento da democracia secular. Ramond já nos dá a
pista: o spinozismo pode ser lido como uma filosofia da exteriorização. Ocorre que há uma
diferença fundamental entre exterioridade – um princípio estático – e exteriorização – uma
dinâmica, que supõe a comunicação com algo interior. Uma leitura atenta do TTP poderá
mostrar que não há algo como a obediência isolada de um princípio, mas que se trata, sempre,
de um processo de exteriorização que mobiliza uma estrutura psicológico-afetiva
particularmente complexa.

A começar por um gênero de obediência que poderíamos designar como piedosa. Sua
principal característica é a simplicidade: para demonstrá-lo, basta uma breve recapitulação

78
Não de classes econômicas, mas sim de classes de indivíduos que compõem certa aristocracia intelectual.
79
MACHEREY, P. 2018 e 2019.
80
MAESSCHALCK, M. 2015.
297

dos principais argumentos dos capítulos anteriores. Sabe-se já que os profetas mais imaginam
do que compreendem, e que se sobressaem por sua piedade e devoção mais do que por sua
sabedoria81. Disso se segue que a Escritura, que nada mais é que um conjunto de seus relatos,
ensina de maneira particularmente simples, apelando para milagres e narrativas históricas
adaptadas à sua imaginação particular ao invés de complexas demonstrações axiomáticas. A
diversidade de opiniões sobre Deus presentes ao longo do livro só confirma a pluralidade
imaginativa de seus autores. Assim, se há alguma dificuldade neste livro, ela se deve às
propriedades da sua história: a língua em que foi, informações referentes à psicologia de cada
autor, bem como circunstâncias de confecção, destino e recepção de cada obra canônica
considerada; e não à dificuldade do assunto. O que a Escritura ensina, através dos relatos
proféticos e da construção de determinados modelos morais, é como perseguir uma certa
regra de vida que encaminhe à obediência a Deus. Como esta última não significa nada
menos do que o amor ao próximo, se há alguma ciência na Escritura, será apenas aquela cujos
preceitos proporcionem a obediência a Deus segundo este princípio. A Escritura não condena
a ignorância, mas tão-somente a insubmissão. O título do capítulo XIII articula os operadores
centrais do universo semântico da obediência. Ele o afirma:

Onde se mostra que a Escritura ensina apenas coisas muito simples e não tem por
objetivo senão a obediência; mesmo da natureza divina, ela não ensina senão aquilo
que os homens podem imitar através de uma certa regra de vida. (ESPINOSA, B.
2019, P. 297; G III, 167).

A obediência é associada à simplicidade enquanto ensinamento da Escritura, um livro


ele mesmo de conteúdo acessível e simples, correspondendo plenamente à ideia de
obediência enquanto pura submissão irrefletida a um princípio exterior. Obedecer, afinal de
contas, nada mais é do que imitar passivamente. Neste caso, a sugestão é de fato a de uma
obediência passiva. Um recurso ao Prefácio do TTP parece sugerir, ao contrário, que a
obediência de que trata a Escritura exige, além disso, uma certa condição psicológica
específica:

Depois, mostro que o verbo de Deus revelado não consiste em determinado número
de livros, mas num conceito simples da mente divina revelada aos profetas: obedecer
a Deus de plena vontade, praticando a justiça e a caridade. E mostro que esta
doutrina é ensinada na Escritura consoante a capacidade de compreensão e as
opiniões daqueles a quem os profetas e os apóstolos costumavam pregar este verbo
de Deus, de modo a que os homens o pudessem abraçar integralmente e sem
qualquer repugnância. (Grifos meus. ESPINOSA, B. 2019, P. 128; GIII, 10)

81
Cf. Capítulos I e II do TTP.
298

A obediência parece exigir uma certa postura: a Escritura ensina que não basta
obedecer, é preciso fazê-lo “de plena vontade”, abraçando-a “integralmente” e “sem qualquer
repugnância”. Da mesma forma, ao censurar aqueles que abusam de sua liberdade para com o
texto da Escritura, mas condenam a mesma liberdade aos demais – os verdadeiros sediciosos
teológico-políticos, dos quais trataremos mais à frente –, Spinoza sustenta que é necessário,
ao contrário, permitir que cada um possa ler a Escritura como bem lhe apetecer, desde que
isso contribua para o exercício da justiça e da caridade, quer dizer, para que se obedeça a
Deus “de ânimo ainda mais sincero” (pleniore animi consensu obedire posse)82. Este
exercício é legítimo ao interpretar pessoalmente os dogmas da fé, de modo a “aceitá-los sem
reticências e de ânimo plenamente convicto, a fim de obedecer a Deus com total
aquiescência” (sine ulle haesitatione, sed integroanimi consensu amplecti posse, ut
consequenter Deo pleno animi consensu obediat)83. Ao reforçar as conclusões do capítulo
XIII acerca do objetivo da Escritura, afirma: seu único objetivo é fazer com que os homens
obedeçam com sinceridade (ex vero animo obtemperent)84. Estas passagens sugerem que há
algum investimento interior, alguma motivação, que deve acompanhar a obediência a Deus.
Exteriorização de uma certa interioridade, portanto. Se for assim, o princípio básico da
religião revelada manifestado pela Escritura parece estar em contradição com a ideia de uma
obediência puramente exterior.

A acessibilidade da obediência, no entanto, contrasta diretamente com a raridade da


capacidade intelectual de alguns fiéis. É uma propriedade da obediência sua abertura para
uma determinação exterior, consequentemente, para sua universalização: ao contrário, a
sabedoria não admite mandamento. Ninguém pode ser sábio por decreto85, Spinoza o afirma.
Esta é, aliás, uma tese particularmente questionável se considerarmos o grau de atividade
exigido pela obediência piedosa, segundo Spinoza: é possível ordenar que se ame ao
próximo, ou seja, que se obedeça a Deus de plena vontade, integralmente e sem repugnância
– ex vero anime? As condições psicológicas e afetivas desta obediência não são tão
dificilmente determináveis quanto a sabedoria dos fiéis? É fato que na realidade política do
Estado hebreu, por exemplo, o domínio sobre os ânimos era tão pleno que o soberano podia

82
ESPINOSA, B. 2019, P. 303; G III, 173.
83
ESPINOSA, B. 2019, P. 309; G III, 178.
84
ESPINOSA, B. 2019, P. 304; G III, 174.
85
G III, 170.
299

determinar a flutuação afetiva dos súditos86. Embora o domínio não fosse integral, era, ao
menos naquele caso, máximo. Trata-se de uma condição de servidão: a obediência do Estado
hebreu, apesar das vantagens materiais de que seus participantes gozavam, mais deveria
receber o nome de submissão pura e simples. Tal como aqueles que dizem conhecer os
atributos de Deus sem demonstração emitem sons com palavras desprovidas de significação,
como se fossem papagaios ou autômatos87, os escravizados possuem sua interioridade
maximamente esvaziada de iniciativa própria, aprisionada por determinações que lhe
escapam. Parece, então, que há espaço para pensarmos uma obediência de outro gênero:
como a obediência piedosa, ela deriva da ignorância, desta vez acompanhada de uma
passividade não plena, mas máxima. O movimento que a caracteriza é o de uma
exteriorização de uma interioridade que fora já capturada de fora, ou seja, determinada por
decreto.

Para justificar que a Escritura apenas ensina como propriedades divinas necessárias à
obediência a justiça e a caridade, Spinoza procede a uma análise de algumas passagens da
Escritura. Recorrendo ao testemunho de Jeremias, Moisés e Josué, conclui que “Deus não
exige aos homens, através dos profetas, que conheçam dele outra coisa que não seja a justiça
e a caridade divinas, quer dizer, aqueles atributos que os homens podem imitar (imitari)
mediante uma certa regra de vida”88. Não se encontra na Escritura qualquer definição de Deus
no sentido especificamente spinozista, ou seja, aquele que dá conta da essência da coisa e do
processo de construção daquele objeto (caso se trate das coisas criadas). Como se trata aqui,
de Deus, portanto de algo incriado, lembremos das quatro propriedades exigidas para a
definição da coisa incriada segundo o TIE: que não se faça referência à causa, que existência
seja dada por princípio, que não haja recurso a abstrações e, positivamente, que sua definição
permita a dedução de todas as suas demais propriedades. Nada disso é encontrado a respeito
de Deus na Escritura, mas a encontramos perfeitamente nas primeiras proposições da Ética.
Assim, desenha-se aqui uma separação entre o conhecimento intelectual dos atributos de
Deus e o conhecimento de atributos “imitáveis”, que dizem respeito à fé e à religião revelada.
Como se trata de uma oposição exclusiva, o conhecimento intelectual dos atributos de Deus
não permite imitação nem a confecção de uma regra de vida consequente, o que o permite,

86
Cf. o Capítulo 4 deste trabalho.
87
G III, 170.
88
ESPINOSA, B. 2019, P. 301; G III, 171.
300

em contrapartida, algum consolo, quer dizer, uma maior abertura ao erro teórico sem maiores
riscos de pecado moral.

O que parece caracterizar de modo mais essencial a obediência piedosa é, então, a


necessidade de imitação. Talvez precisemos desviar brevemente para a Ética a fim de melhor
entender as propriedades epistêmicas e afetivas envolvidas no ato de imitar, tanto quanto no
de confeccionar um modelo. Se pudermos demonstrar que a teoria da imitação afetiva
spinozista supõe algum grau de atividade, teremos um argumento mais forte para nossa
hipótese de que a obediência exigida pela Escritura difere da servidão: ela não é inteiramente
exterior, comandada de fora, mas compartilha a propriedade criativa envolvida na vida ética e
na obediência daqueles que conhecem Deus pela via intelectual.

Na Ética, a imitação parece relacionar-se diretamente com a imitação dos afetos.


Definida na proposição XXVII da Parte III como o processo através do qual “por
imaginarmos afetada por um afeto uma coisa semelhante a nós e pela qual jamais nutrimos
nenhum afeto, somos então afetados por um afeto semelhante”89, a imitação é, conforme
classificação proposta por Alexandre Matheron90, um procedimento inscrito na economia das
paixões inter humanas. O princípio básico da imitação é, assim, a noção de semelhança: se
um corpo externo é semelhante ao nosso, mesmo que jamais tenhamos desenvolvido qualquer
afeto por ele, seremos afetados por um afeto semelhante àquele pelo qual este corpo é
afetado. Desenvolvemos, no capítulo sobre o Estado hebreu, o modo como a lei da imitação
afetiva rege o circuito de amor-próprio e ódio ao exterior a ponto de, ao invés de afastar,
tornar a coisa odiada parte presente e integrante da identidade nacional daquele povo.91 Não
confundir, entretanto, a imitação [imitatio] com a emulação [AEmulatio]: enquanto a primeira
se refere ao mecanismo de imitação da dinâmica do sentir alheio, o segundo refere-se
especificamente à modificação da imitação em desejo, configurando-se como “[...] o Desejo
de alguma coisa gerado em nós por imaginarmos outros semelhantes a nós tendo o mesmo
Desejo”92. A imitação, portanto, estrutura-se como lei de organização da mecânica corporal e
afetiva humanas, gerando alguma integração no comportamento emocional e psicológico dos
indivíduos enquanto tomam-se a si próprios como indivíduos (quer dizer, como semelhantes).

89
ESPINOSA, B. 2015a, P. 279; EIII, P. XXVII.
90
MATHERON, A. 1988, P. 150.
91
Cf. Capítulo 4 deste trabalho.
92
ESPINOSA, B. 2015a, P. 279; E III, P. 27, esc.
301

Ainda segundo a classificação proposta por Matheron93, a apresentação da imitação


afetiva é precedida por um conjunto de proposições (EIII, Ps. XIX - XXVI) nas quais são
expostos a origem, o desenvolvimento e as consequências de um outro mecanismo – não
nomeado por Spinoza, é preciso dizer – por Matheron definido como identificação.
Contrariamente à imitação, a identificação insere-se no grande grupo da vida passional
individual, pré-inter-humana, uma vez que, por não supor a semelhança com o objeto ao qual
se dirige, abre espaço para que seja depositada em relação a quaisquer objetos: animais,
objetos inanimados, Deus etc. Importante para o procedimento de identificação é a formação
de imagens sobre o objeto digno de amor ou ódio, mais do que, aliás, a existência mesma
daquele objeto (EII, P. XVII). Assim, diz Spinoza em EIII, P.XIX, “Quem imagina que aquilo
que ama é destruído, se entristecerá; porém se alegrará se imagina que aquilo é conservado”94
. É igualmente uma lei descritiva do funcionamento dos corpos o fato de a mente esforçar-se
por imaginar aquilo que aumenta a potência de agir do corpo (cf. EIII, P. 12). Ora, todas as
imagens que põem a existência da coisa amada afetarão o amante de alegria, que nada mais é
que a passagem da mente a uma perfeição maior (EIII, P. XI, esc.). Já as imagens que
excluem sua existência afetarão o amante de tristeza, imagens estas que o amante procurará
afastar. A imagem refletida desta dinâmica acontece no caso do ódio: ao objeto odiado,
esforçamo-nos para conceber imagens que excluem a sua existência, pois esta coíbe a
potência de agir do corpo. Da mesma forma, presentificar estas imagens de destruição da
coisa odiada fará o indivíduo ser afetado de alegria (EIII, P. XX); presentificar as imagens de
afirmação da coisa odiada fará o indivíduo ser afetado de tristeza (EIII, P. XXIII). Esta
dinâmica existente entre o objeto digno de amor ou de ódio também poderá ser reforçada pela
ação de um terceiro: caso imaginemos que ele afete de alegria ou de tristeza o objeto que
amamos, teremos uma reação de amor ou de ódio para com ele (EIII, P. XXII); caso afete de
alegria ou tristeza o objeto que odiamos, seremos, respectivamente, afetados de ódio e amor
para com ele (EIII, P.XXIV).

A particularidade da identificação, sobretudo quando se considera o afeto do amor, é


fazer coincidir o conatus daquele que ama com o do objeto amado.95 O comportamento do
amante será inteiramente coordenado pelas vicissitudes que ele imagina determinarem o

93
MATHERON, A. 1988, P. 144.
94
ESPINOSA, B. 2015a, P. 269; EIII, P. XIX.
95
MATHERON, A. 1988, P. 144.
302

objeto amado. Esta hipótese de Matheron é corroborada sobretudo por EIII, P. XV, cujo
enunciado afirma: “Esforçamo-nos para afirmar de nós e da coisa amada tudo o que a nós ou
a ela imaginarmos afetar de Alegria; e, ao contrário, negar tudo que a nós ou a ela afetar de
tristeza”96. Observe-se a introdução de um “a nós ou a ela” [quod nos, vel rem] que parece se
referir a um novo indivíduo, a um todo resultante da composição entre o amante e o objeto
amado. Como consequência, a identificação permite adotar o sistema de valores deste objeto:
como quando, por exemplo, amamos nossos pais e, apenas por ouvir dizer, adotamos o
sistema de valores e crenças que estes amam e julgam bom (uma vez que este sistema,
supomos, os afeta de alegria). O amor que depositamos a um objeto, ainda não considerado
como semelhante a nós, pode nos encaminhar a construir um modelo ético deste indivíduo.
Matheron remonta igualmente ao exemplo da relação de pai e filho descrita por Spinoza ao
longo da carta 17: o amor faz com que pai e filho constituam um único e mesmo ser, de modo
que, como tudo está determinado desde toda a eternidade, pode ser que, por um sonho ou
algum ato de imaginação, o pai seja capaz de determinar em sua mente a cadeia causal
referida ao seu filho. Ao tratar da relação de amor cartesiana, Matheron alcança conclusões
parecidas: o amor faz com que experimentemos uma relação de posse com as perfeições do
objeto amado, criando com ele um todo indissociável, de tal forma que a ameaça ao objeto é
uma ameaça à nós mesmos; e que nos sentimos aptos a dar nossa vida por ele: é, afinal, nossa
própria vida que doamos97.

Já Mario Donoso Gómez pretende analisar a existência, no corpus spinozista, de um


conceito alternativo de identificação98. Como Matheron, Donoso Gómez acredita que é
necessário distinguir identificação e imitação, uma vez que a identificação se dá entre um
indivíduo e um objeto, resultando na apropriação/assimilação de características do último
pelo primeiro, e a imitação se trata apenas de uma assimilação do modo de sentir do outro, e
não de suas características. De fato, se atentarmos para o escólio da proposição XIII,
concluiremos que a identificação, cujo foco argumentativo reside nas proposições XIX-XVI,
difere da imitação, que passa a ser apresentada apenas a partir da proposição XXVII. Neste
escólio, Spinoza se refere a uma espécie de “conflito do ânimo” [animi conflictu]99 que ocorre

96
Grifos meus. ESPINOSA, B. 2015a, P. 277; EIII, P. XXV.
97
MATHERON, A. 2011, P. 55-65.
98
DONOSO GOMÉZ, M. “Imitación e identificación en la teoría spinozista de los afectos”. In: Revista de
Filosofía, 44 (1), 9-24, 2019.
99
ESPINOSA, B. 2019, P. 275; EIII, P. XXIII, esc.
303

na alegria experimentada pela imaginação de que o objeto que odiamos é afetado pela
tristeza. Ora, aqui, identificação e imitação serão responsáveis pela produção do seguinte
conflito: enquanto o odiamos sem a consideração da semelhança, isto é, como apenas um
objeto qualquer, podemos, pela identificação, experimentar alegria com a sua tristeza; ao
mesmo tempo, basta o pressuposto da semelhança para que a imitação passe a tomar a frente:
se o considerarmos como uma pessoa como nós, cujo corpo nos é semelhante, sentiremos
afetos semelhantes, ou seja, seremos afetados de tristeza pela sua tristeza. A mente ficará
suspensa num estado de guerra afetiva de alegria/tristeza que dificilmente poderá perdurar. O
ponto é que, se há conflito, identificação e imitação não podem ser pensados como processos
afetivos intercambiáveis, como parecem sustentar, segundo Donoso Gómez, comentadores
como Moreau e Macherey100.

Uma passagem do Tratado Político, segundo Donoso Gómez, parece, porém,


convocar uma nova relação de identificação cuja causa é o desejo de diferenciar-se dos
demais:

É verdade que esta autoridade dos síndicos não poderá servir senão para que a forma
do estado se conserve e impedir, assim, que as leis sejam infringidas e que seja lícito
a alguém lucrar com a transgressão. Não pode, contudo, fazer com que não
aumentem os vícios que é impossível proibir por lei, como são aqueles em que os
homens demasiado ociosos caem e dos quais resulta, não raro, a ruína do estado. Os
homens, com efeito, uma vez em paz e abandonando o medo, de bárbaros ferozes
fazem-se a pouco e pouco cidadãos, ou seja, humanos, e de humanos fazem-se moles
e inertes, não procurando distinguir-se uns dos outros pela virtude mas pelo fausto e
luxo. A partir daí, começam a aborrecer-se com os costumes pátrios e a adotar os
alheios, ou seja, a ser servos. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2009b, P. 132; TP X, 4)

O trecho parece tratar de uma relação de servidão que não pode ser facilmente
descrita nos termos da alienação política dos parágrafos 9 e 10 do Capítulo II do TP, quer
dizer, ao ato de estar sob a jurisdição de outrem101. Aqui, não há o componente da soberania:
homens ociosos imitam os costumes alheios sem que sejam obrigados por qualquer elemento
de direito ou força. Ainda, à diferença da imitação, não é o modo de sentir do outro que é
recuperado, mas sim seus costumes, sua forma de vida específica. O objetivo de Donoso é
evidenciar como, neste parágrafo, Spinoza descreve um processo mais aparentado ao da

100
DONOSO GÓMEZ, M. 2019, P. 11, 18-19.
101
“Segue-se, além disso, que cada um está sob jurisdição de outrem [alterius esse juris] na medida em que está
sob o poder de outrem, e está sob jurisdição de si próprio [eatenus sui juris] na medida em que pode repelir toda
a força, vingar como lhe parecer um dano que lhe é feito e, de um modo geral, na medida em que pode viver
segundo o seu próprio engenho.” (ESPINOSA, B. 2009b, P. 17; TP II, 9).
304

identificação mas que, ao mesmo tempo, não se insere perfeitamente na interpretação de


Matheron, uma vez que implica a identificação com o outro a ponto de modificar a si próprio
a partir de um modelo. Esta identificação com os costumes estrangeiros envolveria, além
disso, a crença na posse da exclusividade do objeto, consequentemente a de superioridade
motivada por um desejo de distinção, como aponta o trecho.

A crítica de Donoso parece deixar escapar que a interpretação de Matheron não


elimina a possibilidade de estabelecer relações de identificação com outros homens por
princípio: apenas afirma que, dada a irrelevância do componente da semelhança, a
identificação pode se estruturar para todo e qualquer objeto. De fato, na identificação não há
a consideração do outro como semelhante a si, mas sim sua redução a objeto para mim, sua
transformação em imagem. Nada impede, não obstante, que seja um ser humano aquele a
quem estou reduzindo a um objeto. Spinoza aceita, inclusive, que a relação de identificação
seja reflexiva: a soberba é exatamente o estimar-se a si próprio além da medida, ou seja,
tomar a si próprio como um objeto de amor excessivo, alegrando-se com isso102. O indivíduo
esforça-se, assim, por contemplar imagens de si próprio que o afetem de alegria, recaindo
numa espécie de delírio autocentrado em que imagina poder todas as coisas. Neste caso, há
uma espécie de duplicação do próprio conatus, não propriamente a fundação de uma segunda
natureza, mas sim de uma afirmação excessiva da primeira. Seus próprios valores são
reforçados desmedidamente, num processo aberrante de afirmação de si sem limites em que o
todo resultante é uma repetição excêntrica e exagerada de si próprio. Ao mesmo tempo, o
trecho do TP ainda conserva alguma singularidade: sobretudo ao chamar a atenção para o
componente da distinção e superioridade consequente, o que gera, ainda segundo Donoso,
uma dupla alienação – a assimilação de nós aos outros e a mediação necessária da imagem do
outro em nossa relação com nós mesmos103.

Voltemos, no entanto, ao TTP: a imitação que deverá fundamentar a criação de uma


regra de vida pode ser tomada nos termos estritos da identificação ou da imitação? Por um
lado, trata-se, evidentemente, de imitar os atributos de Deus comunicados através dos
profetas, particularmente aqueles da justiça e caridade. Sendo assim, é menos um processo de
transferência afetiva do que de apropriação de costumes ou características psicológicas. Ao

102
EIII, P. XXVI, esc.
103
DONOSO GÓMEZ, M. 2019, P. 23.
305

mesmo tempo, a confecção desta regra de vida parece envolver a semelhança: eis exatamente
a função dos profetas, indivíduos provenientes do vulgo, com crenças com ele
compartilhadas, e que podem ser imitados de modo mais acessível. Observe-se que embora
estas características sejam reputadas a Deus, Spinoza precisa que o processo de imitação deve
ser desencadeado pelo exemplo dos profetas. Ou seja: nem totalmente imitação (porque não
se refere a afetos), nem totalmente identificação (porque envolve necessariamente a
semelhança). Menos ainda a identificação tal como descrita no TP, uma vez que não parece
vir acompanhada de um desejo de distinguir-se dos demais e de obter certa superioridade,
tampouco engendrar uma relação servil-alienante em que o conatus fosse dissolvido no
conatus alheio.

Ainda resta, porém, uma última alternativa: o procedimento de imitação referido no


TTP pode ser equivalente à identificação que toma o objeto amado como um objeto e não
como semelhante. Embora os profetas sejam pessoas, o que interessa ao obediente-piedoso é
amar não propriamente os profetas, mas a Deus na medida em que se manifesta através deles.
Que sejam seres humanos dotados de um corpo semelhante ao do obediente-piedoso não é
um componente necessário para que o amor por Deus se efetive. Se for assim, a leitura da
Escritura, das narrativas ali contidas, pode incentivar o amor por aqueles indivíduos enquanto
porta-vozes divinos, cujo resultado será a composição com este objeto
(Deus-através-dos-profetas) de um único todo. Se Deus ama aqueles profetas a ponto de se
comunicar com eles, pois são objetos que o afetam de alegria, também o obediente-piedoso
poderá amar os profetas e considerar seus valores e suas características psicológicas como
modelos de ação. Os valores que aqueles indivíduos revestem de amor serão, ao fim e ao
cabo, também por mim revestidos e, enfim, tornados meus próprios valores. Cria-se, enfim,
uma situação de imitação de diversas de suas propriedades, incluindo a justiça e a caridade.
Psicologicamente, o circuito mecânico envolverá um esforço por afirmar de nós e da coisa
amada as imagens que nos afetarão de alegria; e por amar igualmente terceiros que,
acreditamos, afetam a Deus de alegria, alcançando o dito amor ao próximo que é a mensagem
universal da Escritura. Pode ser que este amor a Deus engendre uma relação de
servilidade/alienação, ou será que mais propriamente deveríamos considerá-la como
obediência?
306

Em todo caso, a nossa pergunta, que justificava o desvio para a Ética104 e outras obras,
não é tanto sobre categorizar ou comportar a “imitação” do TTP no interior da filosofia
spinozista, procurando dissolver uma contradição imanente ao texto. Se for assim, aliás, a
nossa conclusão mais plausível é a de que a imitação do TTP mais corretamente deveria ser
designada como o processo de identificação da Ética. Ao invés disso, nossa indagação é se,
compreendendo o processo descrito no TTP, de maneira rigorosa ou não, como “imitação”,
pode-se encontrar, nele, um vestígio de atividade, que elimine a associação fácil entre
obediência e submissão. Do ponto de vista da dinâmica afetiva, seja a imitação, seja a
identificação, envolvem atividade. A identificação envolve um esforço necessário por
contemplar as imagens que afetam o objeto amado de alegria, e mesmo a dissolução do
conatus individual no conatus do objeto não parece ser bem um procedimento de alienação,
mas sim de criação de um terceiro indivíduo – fruto da união amorosa entre meu conatus e o
dele. Ainda, a imitação afetiva, derivada do pressuposto de semelhança, no caso da imitação
da afetividade dos profetas, deve se apegar ao que aqueles profetas têm de semelhante ao
indivíduo que lê ou ouve suas narrativas: seu corpo e experiência humana. Como os profetas
se distinguem justamente por uma vida piedosa, a imitação de seu proceder afetivo será
marcada por uma organização de afetos ativos que conduzem à piedade. E esta imitação é
originada por um princípio de ação relativo ao próprio conatus individual: não se trata da
imposição de uma ação de uma causa exterior105, mas da expressão de uma interioridade
naturalmente resistente106. Podemos concluir, assim, que a obediência piedosa não é
propriamente alienante, pois não se trata de captura exterior do conatus individual, mas sim
de um investimento interno livre, conectado ao próprio esforço por perseverar na existência,
na construção de um modelo ético consequente.

104
Há uma passagem do escólio da proposição LIV da Parte IV em que Spinoza afirma que os profetas
procuravam ensinar os afetos da humildade, arrependimento e reverência: “O vulgar, se não tem medo,
atemoriza, por isso não é de admirar que os Profetas, que não cuidavam da utilidade de uns poucos, mas da
comum, tenham recomendado tanto a Humildade, o Arrependimento e a Reverência” (cf. ESPINOSA, B. 2015a,
P. 461; EIV, P. LIV, esc.). Lembremos que o arrependimento é um dos dogmas do credo minimum, endossado a
partir da crença na misericórdia divina. Embora sejam afetos que conduzam, em última análise, à impotência, no
campo do pecado é verdade que constituem um mal menor. O trecho é importante por demonstrar que os
profetas não ensinavam apenas através de seu exemplo, ou seja, instruindo a obediência pela via da imitação das
características da justiça e caridade, mas sim que, de fato, também procuravam incentivar o cultivo de
determinados afetos – não pela via da imitação afetiva, mas muito provavelmente pelo simples ouvir dizer. A
relação entre acústica e autoridade, sobretudo no exemplo mosaico, foi mais bem trabalhada ao longo do
capítulo anterior deste trabalho.
105
EIII, P. IV.
106
EIII, P. VI.
307

Spinoza admite, além disso, a possibilidade de uma obediência por interesse. Neste
caso, a adequação ao mandamento teológico deve-se, por exemplo, ao medo do castigo ou a
sede por recompensa, tanto quanto o interesse em bens posteriores, como as riquezas, honras,
bens sensuais etc. Este mesmo estado psicológico é descrito como uma das maneiras de
portar-se face à lei ao longo do capítulo IV do TTP.107 Além disso, faz parte de um dos
recursos utilizados por Moisés para convencer os israelitas a formular o pacto: incutindo a
obediência por medo de um castigo e por promessas de recompensa.108 No interior desta
categoria, podemos incluir toda a obediência cuja motivação interna não seja o amor a Deus e
a imitação de suas propriedades de justiça e caridade, mas algum gênero de interesse
individual cuja variedade é tão grande quanto a variação do desejo humano.

E quanto aos fiéis dotados de uma capacidade intelectual mais avantajada, que os
permita conhecer adequadamente a Deus? Neste caso, podem desfazer-se da obrigatoriedade
da obediência? Não: apenas a alcançam por um outro caminho que não é o da imitação
comportamental. A esta obediência que vem acompanhada de conhecimento poderíamos
designar como obediência esclarecida. Ela constitui o exato oposto da obediência como
servidão: ao obedecer compreendendo-se a necessidade do mandamento, o decreto como que
se dilui, e deixa de ser obediência para tornar-se simplesmente liberdade. Inútil reforçar o
quanto ela é, tal como a obediência piedosa, dependente de uma certa condição psicológica
interna e de um conjunto de motivações e princípios. O capítulo IV do TTP, em que a lei
divina é anunciada, e em que é descrita a postura de absoluta compreensão de sua
necessidade e extensão para além da lei, é o momento em que este gênero de obediência – e
de vida – é mais longamente abordado. O lugar que ela deve ser procurada, no entanto, não é
na Escritura: mas, caso se queira condensá-la num livro que traz em si a explicitação da
filosofia verdadeira, a Ética. O TTP, embora se dirija ao sábio, não trata especificamente da
sua condição: mas sim de como abordar o problema da existência de indivíduos ignorantes.
Reduz a questão, assim, ao tema de como um sábio pode participar de uma comunidade
formada majoritariamente por indivíduos ignorantes sem abrir mão da perseguição e
manutenção de sua própria sabedoria.

107
G III, 59, 61.
108
G III, 174.
308

Até o momento, elencamos quatro categorias para a obediência: no ramo da


ignorância, a piedosa, a interessada e a submissa (que mais propriamente se chama servidão,
verificada num dado momento da história do estado dos hebreus); e, no ramo do
conhecimento, apenas a obediência esclarecida (que mais propriamente se classifica como
liberdade). Em todas elas, encontramos um espaço, ainda que mínimo, para o esforço livre do
conatus: a variação no espectro que vai da servidão à liberdade tem a ver com o grau maior
ou menor de livre trânsito interno-externo, ou seja, de livre manifestação do conatus
individual. Ora, mas a hipótese de um copertencimento necessário entre interno e externo não
poderia, na verdade, ser confrontada com o elogio spinozista das obras? Em algumas
passagens, como ao fim do capítulo XIII, Spinoza atesta que as opiniões (interioridade)
apartadas das obras (exterioridade) não podem ser consideradas ímpias ou piedosas109. A
medida da piedade é tão somente a obediência, que só se verifica na prática que ela engendra.
A obediência é definida de maneira redutora ao comportamento – portanto, à exterioridade
pura e simples. A fé daquele que é rebelde, mas cujas opiniões são piedosas, só pode ser
ímpia; assim como a daquele que obedece, mas cujas opiniões são ímpias, só pode ser
piedosa: “a fé sem obras é morta”110, afirma Spinoza seguindo Tiago. O argumento de que as
opiniões não são em si mesmas passíveis de juízos de valor é importante, inclusive, para que
Spinoza empreenda uma defesa da liberdade de expressão: que sejam permitidas as opiniões
e condenadas apenas as ações. Colerus relata uma anedota segundo a qual Spinoza, ao ser
interrogado por sua senhoria se ela seria salva, teria respondido que, para obter a salvação,
bastaria se esforçar para ter uma vida piedosa e de paz111. Este testemunho biográfico poderia
evidenciar não apenas a premência das obras, mas sua medida necessária para identificar a fé.
Ora, neste argumento a respeito da separação entre opinião e obra não é determinada a
inexistência das opiniões, mas tão-somente sua irrelevância do ponto de vista
teológico-político. A irrelevância da motivação da obediência é expressamente atestada por
Spinoza ao tratar da livre interpretação da Escritura a fim de criar dogmas pessoais, desde que
não encaminhe à insubmissão:

109
G III, 172.
110
ESPINOSA, B. 2019, P. 305; GIII, 175.
111
“Uma vez sua hospedeira perguntou-lhe se acreditava que ela pudesse salvar-se com a religião que
professava; ao que respondeu: Vossa religião é boa, vós não deveis procurar outra nem duvidar que vós não
obtenhais vossa salvação, contanto que ao vos dedicar à piedade, vós leveis ao mesmo tempo uma vida
agradável e tranquila.”, cf. COLERUS, J. Vida de Spinoza. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso.
Disponível em: http://benedictusdespinoza.pro.br/biografias-de-spinoza-colerus.html. Acesso em: 29/09/2021.
309

Também não interessa para a fé se uma pessoa acredita que Deus está em toda a
parte segundo a essência ou a potência, se rege as coisas pela liberdade ou pela
necessidade da natureza, se prescreve leis tal como faz um príncipe ou se as ensina
como verdades eternas, se o homem obedece a Deus por livre arbítrio ou pela
necessidade do decreto divino, se, enfim, a recompensa dos bons e o castigo dos
maus é natural ou sobrenatural. Do ponto de vista da fé, repito, não tem qualquer
importância a maneira como cada um entende essas e outras coisas parecidas,
contanto que daí não se tente extrair maior liberdade para pecar ou para ser menos
obediente a Deus. (Grifos meus. ESPINOSA, B. 2019, P. 308-309; G III, 178).

Para nós, isto basta: mostramos que a exterioridade é sempre acompanhada de um


princípio interior, que, embora não mude nada do ponto de vista da salvação, permite que se
obtenha uma leitura mais matizada da obediência. Em todos os casos, ela envolve graus
maiores ou menores de atividade, lembrando que, enfim, lá onde há obediência há também
liberdade. Este fenômeno pode ser chamado de dinâmica da exteriorização: modifica-se o
gênero da obediência para cada motivação interna considerada, sem prescindir da existência
interior. É preciso ajustar, assim, a tese da exterioridade absoluta da obediência: não é que a
interioridade seja suprimida, mas sim que, do ponto de vista da manutenção das relações
teológico-políticas no interior da República, ela é irrelevante. Compreende-se como este
princípio mínimo termina por articular as dimensões da teologia e da política: trata-se de um
princípio que se remete ao amor a Deus, mas que se traduz, politicamente, numa certa postura
para com os demais indivíduos na República.

É possível, então, associar obediência e liberdade? Pelo menos do ponto de vista


primariamente teológico, Spinoza parece acreditar que sim. Tomemos, agora, o caso da
obediência civil (embora, sabemos, a obediência teológica já contenha em si suas implicações
políticas). Numa república, a máxima paz e segurança se alcançam por meio da obediência às
leis. Aliás, a obediência ao soberano estabelecido via contrato é a condição básica da
existência da própria República112. Sem obediência, retorna-se ao estado de ameaça de todos
contra todos, em que as potências individuais se veem limitadas umas pelas outras, apesar de,
de direito, estarem permitidas a tudo fazer: “[...] o poder supremo não está sujeito a nenhuma
lei, mas todos lhe devem obedecer em tudo; foi a isto que se comprometeram todos, tácita ou
expressamente, quando transferiram para ele toda a potência de se defenderem, ou seja, todo
o seu direito”.113 Evidentemente, isto não significa que não haja liberdade, uma vez que ela
não consiste, como definem os modernos, na total ausência de coerção externa, mas sim

112
G III, 193-194.
113
ESPINOSA, B. 2019, P. 326; G III, 193.
310

numa vida guiada pelos princípios universais da razão no interior do Estado. É devido ao
móbil da obediência que esta acomodação é possível:

Pensará, talvez, alguém que, com tal argumento, fazemos dos súditos
escravos, já que se considera que é escravo aquele que age a mando de
outrem e livre o que se comporta como muito bem entende, coisa que,
todavia, não é absolutamente verdadeiro. Na realidade, o mais escravo é
aquele que se deixa arrastar pelo prazer e é incapaz de ver ou fazer seja o
que for que lhe seja útil. Só é livre aquele que vive com honestidade,
conduzido unicamente pela razão. Quanto à ação a mando de alguém, quer
dizer, a obediência, ela retira de certo modo a liberdade, mas não torna
automaticamente um homem escravo, pois só o móbil da ação a tanto pode
levar. Se o fim da ação não é a utilidade de quem a pratica, mas daquele que
a ordena, então o que pratica é escravo e inútil a si próprio; porém, numa
república e num Estado, onde a lei suprema é a salvação de todo o povo e
não daquele que manda, quem obedece em tudo ao soberano não deve
dizer-se escravo e inútil a si mesmo, mas apenas súdito. Por isso, a
república mais livre é aquela cujas leis se fundamentam na reta razão; aí,
com efeito, cada um, sempre que quiser, pode ser livre, isto é, viver
honestamente e conduzido pela razão. (Grifos meus. ESPINOSA, B. 2019,
P. 327; G III, 195)

Há, portanto, uma diferença entre os papéis de escravo e de súdito. Escravo é aquele
que obedece a uma lei que não visa seu interesse; súdito é aquele que obedece às leis
promulgadas pelo soberano estatuídas visando o interesse da comunidade, o súdito incluso.
Veja-se que Spinoza está considerando uma República digna de tal nome: a partir do
momento em que as leis passam a versar sobre o interesse particular do soberano, ignorando
o interesse da comunidade, desfaz-se o pacto que legitima a soberania e, por fim,
fragmenta-se a própria república114. O que trecho revela é que, se há Estado, há
necessariamente a obediência. E que a estratégia para manter a liberdade – que parece ser o
fim sempre almejado por Spinoza – é, paradoxalmente ou não, a determinação de uma
obediência qualificada conforme seu móbil, e não uma ação conduzida por um princípio
qualquer.

O problema (teológico-)político consiste, portanto, em como fazer com que soberano


e súditos ajam todos conforme a razão115. Se não é possível criar uma comunidade de
indivíduos inteiramente sábios – na qual as leis e quiçá o Estado seriam simplesmente
supérfluos –, como fazer com que a maior parte, não sendo sábio, aja tal como se o fosse?
Certamente algo será perdido neste processo de transfiguração: é evidente que a obediência
retira algo da liberdade, mas o que acarreta, em contrapartida, termina por compensar em

114
G III, 194.
115
BALIBAR, E. 2015, P. 112-113.
311

termos dos interesses da vida em comunidade. A resposta de Spinoza está na exterioridade,


ou melhor, na exteriorização. Os sábios pela perseguição ao sumo bem, os ignorantes por
obediência, todos cumprirão seu papel na economia das ações necessárias à manutenção da
segurança e paz da república. Como os ignorantes estão obedecendo a leis que teoricamente
são direcionadas ao seu próprio interesse, não são inteiramente servos. Mas certamente estão
excluídos da experiência de eternidade cara ao sábio que obedece à lei por conhecer sua real
necessidade.

A novidade spinozista consiste no fato de associar operadores que, para nós,


modernos ou pós-modernos, soam já de início não-associáveis: a liberdade deve ser obtida
não sem recurso às leis, mas justamente adequando-se a elas. A noção de liberdade moderna,
aliás, é índice da servidão: agir sem princípio, sem ser incomodado externamente, pode
significar agir sem cumprir o próprio interesse, perseguindo desenfreadamente o prazer
autodestrutivo. Para defender um princípio que foi historicamente capturado pelo ethos
liberal – o da liberdade de expressão, por exemplo – Spinoza não necessita aceitar a noção
liberal de liberdade: é, ao contrário, tornando a obediência como condição necessária da
liberdade que pretende defendê-lo. É difícil, portanto, definir Spinoza seja como um
completo revolucionário, seja como um completo conservador116; como um moderno ou
como um antimoderno. Nem com os princípios emancipatórios, tampouco com os ditatoriais:
o que pretende, afinal, a filosofia política spinozista? E, assim, mais uma de nossas
associações fáceis serão por ele destruídas: não apenas aquela que conecta indissoluvelmente
liberdade e ausência de coerção, mas também aquela que pensa a resistência política apenas
no terreno da sedição face ao Estado.

Uma opinião sediciosa

Seditiosam opinionem117: eis o modo como Spinoza classifica, desculpando-se pela


dureza da expressão, a posição que pretende fragmentar direito civil e sagrado. Mais
especificamente, a opinião particular que concede o primeiro ao soberano e o segundo às
autoridades eclesiásticas – uma crença, aliás, tão frívola118 que sequer merece refutação. Ao
lidar com a questão da liberdade de pensamento e fala, já no capítulo de encerramento do

116
NADLER, S. 2011, P. 197.
117
G III, 234.
118
“[...] adeo namque frivolae sunt, ut nec refutari mereantur”. Ibid.
312

TTP, uma tipificação geral das opiniões sediciosas é avançada: são sediciosas aquelas
opiniões “cuja aceitação implica a imediata cessação do pacto pelo qual cada um renunciou
ao direito de agir segundo seu próprio arbítrio”119. Exemplos: questionar o direito do
soberano, a necessidade de manter promessas, defender que se pode viver segundo seu
próprio arbítrio etc. O conteúdo das opiniões, então, não é a nota característica da subversão,
mas sim o modo como arrogam para si o direito a impor direito, contradizendo o pacto
originário que fundamenta a soberania e confere legitimidade ao exercício do poder. É, antes,
um critério relacional o índice da subversão: o quanto aquela opinião entra em conflito
jurídico direto com o decreto do soberano. Para aquele que toma a conservação da paz e
segurança da república como um bem supremo, uma vez que “suprimido o Estado, nada de
bom pode subsistir e tudo fica ameaçado, reinando apenas, por entre o medo geral, a cólera e
a impiedade”120, a subversão só pode ser maléfica. A sedição pertence, para Spinoza, ao
menos à primeira vista, ao universo semântico dos ardis políticos, da tentativa de
fragmentação do Estado e da violência ilegítima.

De fato, a expressão latina seditio abriga, como demonstra a pesquisa filológica, uma
apreciação negativa: segundo Gaffiot, trata-se da “ação de separar, desunião, divisão,
discórdia”121. É apenas o segundo sentido da entrada, porém – “sedição, sublevação, revolta”
122
–, aquele que parece coincidir com o uso spinozista em seus dois tratados políticos.123 Em
geral, as revoltas não são investidas de quaisquer leituras românticas, em que representassem
uma insurreição justa em prol da liberdade. Na verdade, as sublevações descritas no TTP
referem-se exclusivamente aos discursos e ações de ódio alimentadas por grupos religiosos
que procuram de modo escuso apoderar-se do poder institucional que não lhes foi
legitimamente transferido. As sedições motivadas por disputas religiosas ocorrem

119
ESPINOSA, B. 2019, P. 382; G III, 242.
120
ESPINOSA, B. 2019, P. 371; G III, 232.
121
GAFFIOT, F. 1934. P. 1414.
122
Ibid.
123
Diogo Pires Aurélio, em sua tradução do termo ao longo do TTP, traduz a expressão por algumas variantes.
No Prefácio, por exemplo, um texto de caráter decididamente retórico, Spinoza aplica o termo ao menos duas
vezes: em G III, 7, para tratar das sedições surgidas a pretexto da religião – traduzida por Aurélio, aqui, por
“conflitos” (ESPINOSA, B. 2019, P. 125) – e em G III, 9, mantendo o sentido de “sublevações” (ESPINOSA,
B. 2019, P. 127) para tratar da consequência nefasta da penetração das controvérsias filosóficas no ambiente
eclesiástico. Ao longo de sua tradução, outras recorrências do termo (ESPINOSA, B. 2019, P. 370, 372, 384; G
III, 231, 234, 244) são traduzidas ora por “sedição” e variantes, ora por “sublevação”. Diferentemente, no TP,
Aurélio opta uniformemente por revoltas (ESPINOSA, B. 2009b, P. 44, 49, 66, 71, 93; G III, 295, 298, 309, 313,
327).
313

frequentemente quando, numa república, há leis que versam sobre assuntos especulativos e
determinadas opiniões são alçadas à categoria de crime.124 Os homens são facilmente
encaminhados a atitudes subversivas quando controvérsias filosóficas têm palco na Igreja e
no Senado, incitando os ânimos a conflitos violentos.125 É da natureza humana
escandalizar-se quando as opiniões que nutrem são transformadas em crime, inclusive
aquelas que versam sobre sua maneira particular de exercer a piedade. É justamente este dado
que os motiva a considerar as sedições como justas ao invés de vergonhosas.126

Não obstante reservar o termo seditio para as subversões ilegítimas, parece correto
dizer que há espaço, no spinozismo, para algo como uma desobediência civil de caráter
virtuoso. Ao tratar das leis que versam sobre opiniões, apostando ainda no tom retórico,
Spinoza deplora a tentativa de estatuir “leis inúteis que só podem ser violadas por aqueles que
prezam as virtudes e as artes”127, ou seja, os homens livres. Nada há de pior para uma
república do que a tentativa sistemática de calar os indivíduos honestos, de temperamento
livre, que se dedicam ao progresso das ciências e das artes128. É preferencialmente a estes que
as leis que versam sobre opiniões visam atacar: frequentemente arquitetadas por aqueles que
não podem suportar “os engenhos livres”129 e que abusam de sua autoridade para com o vulgo
a fim de persegui-los. Como deve ser nomeada a desobediência a leis injustas, praticadas por
indivíduos de temperamento liberal? Será que esta declaração nos autoriza a pensar em algo
como uma sedição legítima ou, na medida em que o direito de pensar e de se exprimir não foi
e não pode ser jamais integralmente entregue no momento do pacto130, que não se trata
propriamente do sentido específico atribuído por Spinoza às sublevações, mas sim de
usurpação da parte do soberano e não de seus súditos? É certo que o soberano que age a seu
bel prazer, operando contra o interesse da República, encaminha a si próprio e ao Estado que
lhe foi confiado à ruína.131 Ocorre que a resposta spinozista a este problema não parece ser
um endosso às sublevações, mas sim a tentativa de rever e moderar a própria prática do poder
institucional. Numa república assim frágil, é o soberano, e não os súditos, que deve alternar

124
G III, 7.
125
G III, 9.
126
G III, 244.
127
ESPINOSA, B. 2019, P. 385; G III, 244-245.
128
G III, 243.
129
ESPINOSA, B. 2019, P. 384; G III, 244.
130
G III, 239-240.
131
G III, 240.
314

seu proceder político. A teoria política de Spinoza parece apostar em outra direção: ao invés
de maquinar os meios para tomar o poder, tentar fundar o poder de modo maximamente livre
para que a sedição não seja necessária. Se o verdadeiro fim da República é, como ele afirma,
a liberdade132, talvez tenhamos de admitir a hipótese um pouco indigesta de que, para
Spinoza, as sedições são sempre de caráter antilibertário, e que, por fim, conservação e
liberdade não se excluem.

Sedições são movimentos antilibertários, cuja causa frequente reside na cisão entre os
direitos civil e sagrado: duas teses que derivam do diagnóstico spinozista da situação
teológico-política da Holanda do século XVII. Sabe-se que a Holanda abrigava, além do
calvinismo ortodoxo, uma pluralidade de seitas religiosas não-confessionais, cujos
representantes foram denominadas por Leszek Kolakowski de “cristãos sem igreja”133. Os
movimentos religiosos assim designados “heréticos”134 que ali existiam, caracterizados
fundamentalmente por sua crítica à Reforma, são por ele divididos em três grandes grupos: as
tradições da mística semirrevolucionária – que não representam, segundo ele, força política
relevante –, do anabatismo moderado e, por fim, dos grupos anticonfessionais radicais, cuja
figura mais paradigmática é Dirk Coornhert (1522–1590)135. Coornhert alia crítica aos
dogmas protestantes, em especial ao princípio da graça irrestrita, o qual degenerava, segundo
ele, seja numa posição extremamente autoritária por parte daqueles que se tomavam como os
escolhidos do círculo clerical, seja na autorização de comportamentos libertinos, crentes na
salvação independente das obras ímpias praticadas, à construção de um novo conceito de
religião. Com ele, recuperava-se a importância das ações humanas na economia da salvação:

132
G III, 241.
133
Em seu livro homônimo de 1987. Nos próximos parágrafos, reconstruirei a argumentação de Kolakowski
quanto à querela dos remonstrantes e contrarremonstrantes.
134
Para Kolakowski, a noção do que é herético é constantemente retroalimentada pela definição do que é
ortodoxo e vice-versa; a ponto de ser impossível determinar qual delas iniciou a cadeia causal. Ver
KOLAKOWSKI, L. 1987, P. 69-72.
135
KOLAKOWSKI, L. 1987, P. 72. As informações historiográficas acerca da disputa entre remonstrantes e
contrarremonstrantes deste capítulo foram retiradas da exposição de Kolakowski (1987, P. 69-87). Recomendo a
seguinte bibliografia suplementar em torno da questão: NOBBS, D. Theocracy and Toleration: A Study of the
Disputes in Dutch Calvinism from 1600 to 1650. Cambridge, Cambridge University Press : 2012; VOOGT, G.
“Remonstrant-Counter-Remonstrant Debates: Crafting a Principled Defense of Toleration after the Synod of
Dordrecht (1619-1650). In : Church History and Religious Culture. 89.4, (2009), 489-524; ISRAEL, J. The
Dutch Republic : Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford, Oxford University Press: 1995; LEEUWEN,
T.M. (et. al) (ed). Arminius, Arminianism, and Europe. Jacobus Arminius (1559/60–1609). Leiden, Boston, Brill
: 2009 e DE WITT, D. “Rembrandt and the Climate of Religious Conflict in the 1620s”. In : 51. Bd., Beiheft.
Rembrandt — Wissenschaft auf der Suche. Beiträge des Internationalen Symposiums Berlin — 4. und 5.
November 2006 (2009), pp. 17-24 (8 pages).
315

pelo princípio da sinergia, as obras virtuosas são produzidas em concomitância com o poder
divino. Mais do que um sistema de exercício de poder, ao qual se deve uma obediência cega,
a religião é princípio de administração da vida comportamental individual: sistema moral,
portanto. É totalmente possível, neste mundo, perseguir a lei divina sem repousar a todo
tempo na graça, e, mais do que isso, não é necessário inscrever-se em qualquer grupo
religioso para tanto.

As ideias de Coornhert repercutiram, por sua vez, numa querela que, apesar de
relativamente distante historicamente da confecção e publicação do TTP, tomaram a atenção
de Spinoza. Para ele, a interferência dos políticos naquela que se tornou conhecida como a
controvérsia dos remonstrantes e contrarremonstrantes provou as seguintes teses:
[...] primeiro, que as leis estabelecidas em matéria religiosa, isto é, destinadas a
dirimir as controvérsias, servem mais para exasperar os homens do que para os
corrigir; depois, que há quem retire dessas leis pretexto para toda a espécie de
abusos; e, finalmente, que os cismas não nascem do grande zelo pela verdade (que é
fonte de afabilidade e benevolência), mas sim de um grande desejo de mandar.
(ESPINOSA, B. 2019, P. 386; G III, 246).

Os remonstrantes foram assim chamados devido ao documento de 1610 no qual, ainda


enquanto um grupo desorganizado, criticavam a Igreja reformada subscrevendo princípios
teológicos arminianos a respeito da questão da graça, da predestinação e do pecado original.
Ainda, nos anos de 1617 e 1619, lançaram outros documentos em que se posicionavam a
respeito de questões propriamente teológico-políticas particularmente caras ao TTP, dentre
elas a de que as práticas eclesiásticas devem ser integralmente controladas pelo poder civil e
de que a liberdade de expressão pública da religião deve ser garantida. Já os
contrarremonstrantes, de orientação calvinista, triunfaram com o Sínodo de Dordrecht, dando
início a um processo de perseguição dos remonstrantes – o que culminou inclusive na prisão
de diversos intelectuais liberais e republicanos, incluindo Hugo Grotius. Em suma, a disputa
se dava entre o calvinismo ortodoxo, de um lado, e os liberais republicanos, de outro. Ainda
segundo Kolakowski, é a partir desta perseguição mais obstinada que os remonstrantes se
estabeleceram como grupo religioso e político, necessariamente adotando, então, os
problemas que uma organização confessional deve enfrentar: revisando, enfim, o lema da
tolerância irrestrita das seitas sem que isso significasse adotar os mesmos princípios de
exclusividade e violência persecutória da religião ortodoxa. Em oposição ao calvinismo, que
baseava seu status de religião num princípio de obediência à verdade da doutrina, para a nova
316

confissão remonstrante possuir um elemento ordenador era uma questão de existência ou não
da organização: a religião, portanto, dizia respeito a uma prática de manutenção do grupo
enquanto grupo, que paradoxalmente procurava, por meio da confissão, manter-se
não-confessional.

Embora as lições retiradas por Spinoza da querela não pareçam implicar qualquer
endosso das posições remonstrantes, é notável o paralelo de suas teses com aquelas
avançadas por Spinoza ao longo do TTP. Afinal, a “opinião sediciosa” que visa separar as
autoridades responsáveis pelo direito civil e religioso a qual se refere é exatamente aquela
subscrita pelos contrarremonstrantes. É delicada a posição que ocupam os detentores do
direito em matéria sagrada: gozam de autoridade diante do povo e são capazes de reinar sob
seus ânimos. Estes podem, então, usar de sua influência para incutir discórdias e querelas a
fim de ocupar-se do Estado e, mais do que isso, a fim de dividi-lo. Eis o que ocorreu, na
prática, com o pontífice romano: ao qual foi concedido este direito e que, aos poucos, foi
ocupando também o poder dos reis. De modo duro, Spinoza classifica os eclesiásticos como
aqueles que, através da pena, buscam fazer o que os reis jamais poderiam alcançar através do
ferro e do fogo.136 Não há referência à disputa entre remonstrantes e contrarremonstrantes
especificamente neste trecho, mas os abusos e os cismas – que nada mais são do que as
fragmentações e separações contidas na expressão sedição – dela derivados têm uma causa
determinada: o jus circa sacra apartado do poder civil.

Permanecendo no interior daquilo que poderíamos designar a filosofia do direito


spinozista, temos necessariamente de mencionar sua posição em torno da controvérsia
histórica do jus circa sacra: um tema de debate caloroso do século XVII que envolveu
autores como Hobbes, Grotius, o próprio Spinoza e Leibniz137. Em outros termos, trata-se da
questão sobre se são as autoridades civis ou as religiosas as responsáveis por legiferar sobre
as coisas sagradas; a qual instituição pertence, enfim, o direito de defini-las e interpretá-las138.

136
G III, 235.
137
Para um tratamento da questão ao longo do século XVII, recomendo dois artigos de Mogens Laerke: o
primeiro, intitulado “Jus Circa Sacra. Elements of Theological Politics in 17th Century Rationalism: From
Hobbes and Spinoza to Leibniz” (In : Distinktion: Scandinavian Journal of Social Theory, 6:1, 2005, 41-64) e o
segundo “La controverse de Grotius, Hobbes et Spinoza sur le jus circa sacra. Textes, prétextes, contextes et
circonstances”, disponível em Revue de synthèse : TOME 137, 6e SÉRIE, N° 3-4, 2016.
138
A expressão surge já no título do capítulo XIX do TTP: Ostenditur jus circa sacra penes summas potestates
omnio esse, et religionis cultum externum reipublicae paci accommodari debere, si recte Deo obtemperare
velimus (G III, 228).
317

É tentador classificar todo o Tratado Teológico-Político como um texto cujo tema


fundamental é o jus circa sacra: acredito, no entanto, que esta leitura deixa escapar
principalmente as conclusões dos primeiros quinze capítulos da obra, que não estão apenas
tematizando a religião em sua disputa com a política em larga escala. Há uma distinção entre
a religião tal como aplicada nas relações políticas entre os homens, que consiste na
observação do credo mínimo da prática da caridade, e a religião tal como se relaciona com os
domínios de exercício vertical do poder. Considerando o sentido amplo da questão da
teologia-política adotado neste estudo, o complexo “teologia-política” pode ser aplicado para
a compreensão tanto do primeiro quanto do segundo nível. É justamente esta distinção que
opera na base da separação entre o culto externo – derivado do direito individual que pode ser
parcialmente transferido para todos, para muitos ou para um – versus o culto interno,
derivado do conatus individual intransferível.139

Discordo, neste aspecto, de uma série de comentadores que classificam enquanto


teológico-político somente aquilo que diz respeito ao poder consumado em instituições140.
Trata-se da separação entre um domínio da obediência exterior, que tem no Estado hebreu,
segundo eles, sua imagem mais paradigmática, versus o da experiência interior tal como
aventado pelo cristianismo não capturado pelo poder vertical. Tal ângulo da questão se
aproxima perigosamente da leitura de um Spinoza secular, contra o poder teológico-político,
ignorando suas estratégias de combate direto que envolvem uma reformulação da teologia
tradicional e a apresentação de um modelo teológico-político subversivo. Já demonstrada a
dinâmica e, mais do que isso, a ruína das fronteiras entre externo e interno na apreciação
geral da Escritura, no ensinamento cristológico e na experiência histórica hebraica, trata-se,
neste momento, de perseguir o embaralhamento entre externo e interno no que diz respeito à
filosofia do direito spinozista, perseguindo conceitos como o de lei natural, força-de-lei,
direito sobre o sagrado e obediência.

A posição de Spinoza no interior desta controvérsia é já adiantada no título do


capítulo: o jus circa sacra pertence integralmente aos soberanos; e, mais ainda, deve ser
submetido ao interesse maior da paz da república inclusive para que se possa obedecer a
Deus. Para demonstrá-la, Spinoza recorre a uma definição mínima de religião, que depende

139
G III, 229.
140
Ver, por exemplo, LAUX, H. 1993, P. 267 e TOSEL, A. 1984, P. 239.
318

das conquistas argumentativas dos capítulos anteriores: a religião consiste tão somente na
prática da justiça e da caridade.141 Por conseguinte, o reino de Deus não é uma realidade
supraterrena, mas aquele onde “a justiça e a caridade têm força de lei e de mandamento”142.
Se é assim, é preciso definir as condições em que a religião adquire força de lei, o que faz
Spinoza retornar ao arcabouço conceitual hobbesiano e estabelecer que é somente no estado
civil em que isto se verifica. No estado de natureza, tal como já discutido sobretudo ao longo
do capítulo XIV da mesma obra, não há justiça, caridade, lei, ou qualquer definição de
soberania. O direito é exercido em igualdade à potência individual: se um indivíduo pôde agir
daquele modo, o fez com total direito.143 As ações governadas pela razão tanto quanto aquelas
orientadas pelas paixões e interesses pessoais são legítimas no mesmo grau. O único princípio
a ser observado é o da sobrevivência. Logo, se a religião consiste na prática da justiça e da
caridade, e se o reino de Deus é aquele em que estes dois princípios adquirem força de lei, é
somente após firmado o contrato de transferência de direitos que se pode pensar em algo
como a religião e o reino de Deus. É apenas no estado civil que se pode garantir a existência
jurídica da religião.

Ora, quem determina o que deve ou não possuir força de lei, no estado civil, é o
soberano: aquele para quem os direitos individuais foram concedidos de comum acordo. É
apenas mediante seu decreto que a religião adquire força de lei e que é verdadeiramente
exequível o reinado de Deus sobre os homens. É suficiente lembrar do caso dos hebreus:
embora, num primeiro pacto, tenham transferido os direitos individuais para Deus, o que,
naquele contexto, era o mesmo do que transferir para ninguém e criar uma espécie de
democracia avant la lettre, um segundo pacto os fez entregar seus direitos para um soberano
único: Moisés. Na república dos hebreus, Moisés reinava como intermediário entre o povo e
Deus: e foi somente a partir de seu decreto que a religião ganhou força de lei e tornou-se,
mais do que isso, religião de Estado (leis civis e leis religiosas se identificavam, razão pela
qual o Estado pode ser classificado como teocrático).144 Com o estabelecimento de uma
religião da pátria, pôde-se, igualmente, punir e celebrar, considerar comportamentos e ações
como justas e piedosas, sendo a religião parâmetro avaliativo. Findo o Estado, finda a

141
Reconstruo a argumentação apresentada em G III, 229-230.
142
ESPINOSA, B. 2019, P. 368. G III, 229.
143
G III, 189-191.
144
G III, 230.
319

obrigatoriedade jurídica da religião: quando transferiram seu direito individual ao Rei da


Babilônia, o pacto foi cessado, sendo agora obrigados a dever obediência apenas aos decretos
instituídos por seu novo soberano145.

Um argumento suplementar faz referência à conquista de um espaço não-jurídico para


a lei divina. Apesar de aplicar o termo lei, como vimos, a lei divina universal carece de
violência, o que significa dizer que lhe falta o constrangimento e a força necessárias para se
qualificar como lei terrena. A necessidade da lei divina dirige-se à sua verdade e não à
obrigatoriedade de obediência. Apenas o soberano pode usar de sua força e emaná-la, se
quiser, para a lei divina. Se os homens fossem inteiramente racionais compreenderiam a
necessidade da lei divina e seria supérfluo estabelecê-la como lei de Estado. Como não o são,
o comportamento precisa ser regrado por meio da imposição de leis via um príncipe ou
legislador. Mais uma vez, a propriedade antijurídica da lei divina evidencia que a religião
verdadeira só pode ser imposta por aqueles que detêm o direito civil de “mandar e de
legislar”146.

O soberano deve governar, quer dizer, mandar e legislar, tendo como fim a salvação
do povo e a segurança do Estado. A religião tomada em suas manifestações externas deve ser
submetida a estes dois princípios e estar, portanto, em consonância com eles. Se mesmo a
religião universal, que se situa para além das determinações jurídicas, exige a prática da
piedade para com todos, isto deve se estender inclusive para a manutenção da paz da
república: deve-se agir considerando o bem de todos. Ora, o bem de todos, aquilo que
interessa a república coletivamente, só é determinado pelo detentor da soberania. Portanto,
mesmo as ações dos particulares que visem a religião devem adequar-se à piedade tal como
verificada no contexto político e jurídico ao qual pertencem. Esta argumentação visa provar
ao mesmo tempo que a religião deve se adequar aos interesses da república e que aquele que
deve interpretá-la é o próprio soberano. Piedade e impiedade são mesmo definidos apenas em
relação ao interesse supremo da República:

É certo que a piedade para com a pátria é a mais elevada que alguém pode praticar,
visto que, suprimido o Estado, nada de bom pode subsistir e tudo fica ameaçado,
reinando apenas, por entre o medo geral, a cólera e a impiedade. Daí que não haja
nada de piedoso que se possa praticar para com o próximo que não seja ímpio se
acaso resultar em prejuízo de toda a república; em contrapartida, não há nada de

145
G III, 230-231.
146
ESPINOSA, B. 2019, P. 370. G III, 231.
320

ímpio que possa fazer-se ao próximo que não se torne piedoso, se for feito pela
conservação sa república. (ESPINOSA, B. 2019, P. 371; G III, 232).

Estabelecidas estas teses, algumas questões se impõem. Em primeiro lugar, em que


sentido a exclusividade do direito civil sobre o sagrado não transforma o estado numa
teocracia? Teocracia aparentada ao Estado hebreu, no qual “o direito civil e a religião, que
consiste, como já demonstramos, unicamente em obedecer a Deus, eram uma só a mesma
coisa”147 e no qual os dogmas da religião tinham força-de-lei determinada por seu soberano,
isto é, Moisés? É verdade que a análise do Estado hebreu ressurge no capítulo XIX como
contraexemplo à realidade do Estado cristão. Ao passo que, no último, o direito sobre as
coisas sagradas fora frequentemente questionado, no primeiro, segundo Spinoza, não
configurava qualquer problema.148 A diferença está no fato de que a religião cristã fora
introduzida mo Estado posteriormente a sua fundação. Foram particulares que, propagando a
religião, fizeram com que os soberanos a introduzissem e conferissem a ela força-de-lei. Todo
o contrário para o Estado hebreu: como o pacto inicial fora firmado com ninguém menos do
que Deus, para, em seguida, ser desfeito elegendo Moisés como mediador, o direito sagrado
já estava disposto de início, coordenado e interpretado por seu soberano legítimo. Ocorre que
Spinoza não subscreve a teocracia como uma das melhores formas de governo: lembremos
que, ao tratar do Estado hebreu, o classifica como um exemplo histórico em que a conexão
entre interioridade e exterioridade era capturada por artifícios exteriores ao direito individual
de cada um.149 Portanto, embora ainda com um grau mínimo de liberdade interna, os hebreus
amavam, odiavam, julgavam o verdadeiro e o falso e até se vestiam, comiam, plantavam e
colhiam, perseguindo determinados hábitos diários com fim cerimonioso, como se sua vida
inteira fosse um constante exercício de obediência. Como não permitir, então, que este direito
sagrado concentrado no poder civil não faça o Estado degenerar em teocracia e, inicialmente
posto a favor da liberdade de opinião, só trabalhar para dirimi-la?

A resposta talvez não se encontre tão obviamente descrita no TTP. Na verdade, é o TP


que nos informa, revelando que este desenvolvimento estava ausente do tratado político
anterior:

Quanto ao que respeita à religião, já o expusemos bastante desenvolvidamente no


Tratado Teológico-Político. Omitimos, contudo, nessa altura, algumas coisas das

147
ESPINOSA, B. 2019, P. 340; G III, 206.
148
G III, 236.
149
Conforme as conclusões obtidas no capítulo 4 deste estudo.
321

quais não era aí o local para tratar, designadamente que todos os patrícios devem ser
da mesma religião, a saber, a simplicissima e maximamente universal, que
descrevemos no mesmo tratado. Deve, com efeito, acautelar-se especialmente que os
patrícios não se dividam em seitas, ou que uns sejam mais a favor destas, outros
daquelas, ou que, tomados pela superstição, tentem retirar aos súditos a liberdade de
dizer aquilo que sentem. Depois, embora deva dar-se a cada um a liberdade de dizer o
que sente, são contudo de proibir os grandes ajuntamentos. Por isso, àqueles que são
adeptos de uma outra religião deve ser permitido construírem tantos templos quantos
quiserem, mas pequenos, de uma dimensão fixa e em locais um tanto afastados uns
dos outros. Mas os templos dedicados à religião da pátria é muito importante que
sejam grandes e suntuosos e que, no seu culto principal, só aos patrícios e aos
senadores seja lícito oficiar, de tal forma que só aos patrícios seja lícito batizar,
consagrar o casamento, impor as mãos e serem, em suma, reconhecidos como
sacerdotes dos templos e como defensores e intérpretes da religião da pátria. Pelo
contrário, para pregar e para administrar o erário da igreja e os seus assuntos
quotidianos, devem ser escolhidos pelo senado alguns da plebe que serão como que
vigários do senado, ao qual, por isso, terão de prestar contas de tudo. (ESPINOSA, B.
2009b, P. 116-117; G III, 345).

Spinoza admite ter omitido do TTP a discussão sobre uma religião da pátria150.
Embora a expressão não seja encontrada ao longo do texto de 1670, o conceito é essencial
para que sejam conectados os capítulos teológicos aos políticos da obra, bem como para que
se compreenda a solução spinozista ao tema do jus circa sacra em consonância com sua
defesa irrestrita da liberdade de filosofar. Quanto a esta última, um segundo problema,
derivado do primeiro, se impõe: como conciliar a existência de uma religião de Estado com a
liberdade de culto individual? Não é natural pensar que a religião autorizada se sentirá
evidentemente ameaçada pela distribuição de seitas e igrejas que, muitas vezes, podem
ensinar dogmas contrários aos seus? O trecho acima e o TTP nos ensinam: basta fundar uma
religião especial desprovida do culto e aparato das religiões históricas. Os estados teocráticos,
ao menos aqueles mencionados, detém uma religião histórica, dotada de um núcleo moral, é
certo, mas também de um complexo cerimonioso particular, e transformam os dogmas desta
religião singular em leis de Estado. A consequência só pode ser a perseguição daqueles que
professam outras religiões com outros cultos singulares. No momento mesmo em que se
substitui as religiões históricas pela vera religio, que consiste no princípio mínimo de amar a
Deus a partir do amor ao próximo, sem que seja a ela acrescentado os elementos exteriores
das religiões históricas, a religião de Estado passa a ser simplesmente moral, desprovida dos

150
Em que sentido o trecho pode ser generalizado para as demais formas de governo para além da aristocracia?
Estas e outras questões são discutidas por Morgens Laerke em seu artigo “Spinoza on National Religion”. Ver,
no mesmo volume, o artigo de Daniel Garber sobre a questão: “Religion and the Civil State in the Tractatus
Politicus”. In : MELAMED, Y. SHARP, H. (eds). Spinoza's Political Treatise. A Critical Guide. Cambridge,
Cambridge University Press: 2018. Recuperado de: https://doi.org/10.1017/9781316756607. Última
visualização: 02/12/2020 às 16h52min.
322

hábitos e costumes. A solução spinozista para que o jus circa sacra não degenere em
teocracia e para que as demais confissões tenham espaço garantido na República é fundar
uma religião orientadora de Estado, com princípios de comportamento mínimos, que
garantam tanto que as religiões históricas não se apoderem do poder quanto que não
influenciem os princípios particulares às demais religiões históricas. Afinal, que religião
histórica pode se portar contra a prática da caridade e da piedade?

Ora, não é à confecção desta religião, evidenciando em que sentido ela se separa das
religiões históricas de culto à exterioridade bruta, ou seja, a um comportamento desinformado
dos princípios de amor a Deus, fetichizados em cerimônias supérfluas, que se dedicam os
primeiros quinze capítulos do TTP? E não é o argumento final pró-liberdade de filosofar,
expresso no capítulo XX da obra e que configura, segundo seu título e declarações
epistolares, o objetivo máximo do Tratado, dependente de uma noção de religião? É
suficiente, para a salvação moral e política, professar o credo mínimo: alguns o observarão
como lei divina, outros deverão ser constrangidos a professá-la como dogma da religião
verdadeira. Todos se encontrarão no modo como sustentarão uma relação entre interioridade
e exterioridade. Mais do que uma exterioridade vinda de fora – propriedade da superstição
ou, pior, da servidão teológico-política dos hebreus – a liberdade de sábios e ignorantes se
encontra na dinâmica entre comportamento e princípios; dogmas ou leis que serão causa ou
consequência de um comportamento virtuoso. É certo que estas conclusões nos fazem
duvidar das leituras que tomam Spinoza como um precursor do liberalismo político: as
religiões supersticiosas e a fragmentação do Estado devem ser combatidas com a fundação de
uma religião verdadeira que determine o comportamento dos indivíduos. Religião se combate
com religião; liberdade se obtém com obediência e não a partir dela.

Cabe acrescentar, por fim, algumas breves sugestões relativas ao tema da sedição no
spinozismo. Embora, como vimos, o conceito seja frequentemente remetido à esfera dos ardis
políticos ilegítimos, professados por indivíduos com interesses políticos determinados, não é
verdade que não haja, no interior mesmo da República, espaço para a resistência. A própria
definição de direito natural como conatus, isto é, esforço por perseverar na existência, e o
fato de ele ser intransferível, o demonstram. Como sustenta Antonio Negri, o horizonte
323

político de Spinoza é a guerra151: se, à diferença de Hobbes152, o direito natural é mantido


mesmo após a confecção do estado de associação civil, a República é resultado de um eterno
conflito entre direito natural e direito instituído. Lembremos, além disso, do mote do TTP: a
liberdade de expressão não é mero acessório à manutenção saudável da República, mas é sua
própria condição de possibilidade. Não há poder instituído sem uma potência que a ele resiste
indefinidamente. A existência deste contrapoder necessário nos encaminha à conclusão de
que Spinoza, ao invés de pensar a resistência em termos de uma revolução abrupta ou de um
programa estabelecido no interior de uma lógica de meios e fins, toma a resistência como
idêntica à existência. A resistência é o dado bruto da realidade política: ela é anterior à
constituição mesma do poder. Logo, há uma inversão de perspectiva: não se trata de buscar a
resistência, mas de conservar o poder de resistir permanentemente.

151
NEGRI, A. 2018, P. 201.
152
Cf. Carta 50.
324

Conclusão.
AS ÚLTIMAS REVELAÇÕES DO SER

Se “desde Marx” designa um por-vir assim como


um passado, o passado de um nome próprio, é
que o próprio do nome próprio permanecerá
sempre porvir.

— Jacques Derrida, Espectros de Marx1

Spinoza afirma ao mesmo tempo a exterioridade


radical da morte, toda morte é exterior, toda
morte vem de fora, nunca houve morte que viesse
de dentro. Spinoza faz parte daqueles para quem
a ideia mesma de uma pulsão de morte é um
conceito grotesco, absolutamente grotesco, que é
realmente... E... sim?

— Gilles Deleuze, Cursos sobre Spinoza2

E talvez até a esfera mais luminosa das relações


com o divino dependa, de todo modo, daquela -
mais obscura - que nos separa do animal.

— Giorgio Agamben, O Aberto3

Uma das linhas de força da metafísica spinozista é a sua total identificação entre Deus
e Natureza. A argumentação que pretende concluir esta tese surge, no Primeiro Livro da
Ética, acompanhada de uma reformulação implícita do princípio de causalidade. Se,
classicamente, há uma diferença ontológica entre a causa e o efeito – assim é, por exemplo,
na formulação cartesiana de tal princípio4 –, Spinoza admite que é possível considerar tanto
uma causa de gênero transitivo quanto uma de tipo imanente. A relação causal transitiva
supõe que os efeitos existirão fora da causa, ao passo que a imanente pensa tal relação a partir
de uma ação da causa sobre si mesma, na qual agente e paciente se confundem. Eis o modo

1
DERRIDA, J. 1994, P. 34.
2
Tradução minha a partir da aula de 17/03/1981, transcrita por Larrieu Suzanne e Véronique Boudon.
Disponível em: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=26. Último acesso: 30/08/2021 às
11h33min.
3
AGAMBEN, G. 2017a, P. 31.
4
“Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total
quanto no seu efeito: pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia
esta causa lha comunicar se não a tivesse em si mesma?” (DESCARTES, R. 1973, P. 11-112; AT IX-1, 32). A
tese segundo a qual deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto em seu efeito
pressupõe uma descontinuidade ontológica entre os seres implicados na relação causal. A diferença entre causa
e efeito parece igualmente pressuposta por Hobbes ao denunciar aqueles que – como Spinoza – identificam
Deus ao mundo, pois, segundo ele, seria o mesmo que não conceder ao mundo qualquer causa e, enfim, afirmar
que Deus não existe: “Depois, dizer, como alguns filósofos, que Deus é o mundo, ou a alma do mundo (isto é,
uma parte desse mesmo mundo), é falar dele em termos desrespeitosos: porque, assim dizendo, eles nada lhe
atribuem e na verdade negam a sua existência. Pois pela palavra Deus entendemos a causa do mundo; ora,
dizendo então que o mundo é Deus, afirma-se que ele não tem causa, o que é o mesmo que dizer que Deus não
existe.” (HOBBES, T. 2002, P. 249). Vê-se que Hobbes sequer aventa a possibilidade de algo como uma causa
imanente.
325

como Spinoza classifica os dois distintos conceitos de causa num dos diálogos que compõem
o Breve Tratado:

Razão: Vejo certamente como tu incitas contra mim todos os teus amigos, e o que não
lograste fazer com teus falsos raciocínios, intentas fazê-lo agora com a ambiguidade
das palavras, exercício a que costumam se dedicar aqueles que se opõem à verdade.
Porém, com este recurso não conseguirás trazer o Amor a tua causa. O que dizes,
então, é: a causa (considerando que é uma produtora dos efeitos) deve estar fora
deles. E o dizes porque tão somente conheces a causa transitiva e não a imanente, a
qual não produz em absoluto algo fora dela. Por exemplo, o intelecto é causa de seus
conceitos e, por isso, também eu o chamo causa (na medida dos, ou em relação a
seus conceitos, que dependem dele); e, por outro lado, o chamo todo, enquanto
consiste em seus conceitos. Portanto, tampouco Deus é, em relação a seus efeitos ou
criaturas, outra coisa que uma causa imanente, e, ademais, no que diz respeito à
segunda consideração, é um todo. (ESPINOSA, B. 2014a, P. 65. G IV, 130).

Para concluir, em EI, P. 18, que “Deus é causa imanente de todas as coisas, mas não
transitiva”5, é preciso combinar as conclusões das proposições 14, 15 e 16 do mesmo livro.
Sabemos graças à proposição 15 que tudo que é, é em Deus; e, através do corolário da
proposição 16, que Deus é “causa eficiente de todas as coisas que podem cair sob o intelecto
infinito”6; e, enfim, pela proposição 14, que nada existe nem pode ser concebido além de
Deus. Assim, Deus é a única substância – visto que não é possível que existam duas
substâncias infinitas – e, além disso, causou tudo que pode ser concebido por seu intelecto
infinito. Conclui-se que Deus causa todas as coisas no mesmo ato em que causa a si próprio –
e que é, portanto, idêntico aos seus efeitos, compondo com eles um único todo. Segundo
Gueroult7, a novidade desta proposição é provar a imanência de Deus às coisas, o que é
diferente de provar a imanência das coisas a Deus (já demonstrado pelas proposições 14 e
15). E assim podemos construir sua particular concepção de divindade, tal como apresentada
em carta a Oldenburg8:

Mas, para expor meu pensamento sobre aqueles três pontos principais que notas,
digo, em primeiro lugar, que sustento uma opinião sobre Deus e a natureza muito
diversa daquela que os cristãos recentes costumam defender. Com efeito, sustento
que Deus é causa imanente de todas as coisas, e não transitiva, como afirmam. Que
todas as coisas são, digo, em Deus e se movem em Deus, afirmo-o com Paulo e,
talvez, também com todos os filósofos antigos, embora doutro modo, e, ousaria dizer,
com todos os antigos hebreus, o quanto se permite conjeturar de algumas tradições,
ainda que adulteradas de muitos modos. (FERREIRA, S.T. 2019, P. 194; G IV,
306-307).

A noção de causa imanente surge inesperadamente também no contexto de


explicitação de um tema da gramática hebraica: o nome infinitivo. Foi preciso inventar, para

5
ESPINOSA, B. 2015a, P. 81; G II, 49.
6
ESPINOSA, B. 2015a, P. 75; G II, 41.
7
GUEROULT, M. 1969, P. 295.
8
Trata-se da Carta 73.
326

expressões como “visitar a mim mesmo” ou “constituir a mim mesmo como visitante”9, uma
nova classe gramatical que desse conta desta singular relação10:

Mas como ocorre às vezes que o agente e o paciente coincidem na mesma pessoa, os
hebreus tiveram necessidade de formar uma nova e sétima classe de infinitivos que
expressasse a ação referida simultaneamente ao agente e ao paciente, isto é, que
tivesse ao mesmo tempo a forma ativa e passiva. [...] Devido a isso foi preciso
inventar uma nova classe de infinitivos que expressasse a ação em relação ao agente
enquanto causa imanente [...]". (Tradução minha a partir de SPINOZA, B. 2005, P.
125).

A ontologia imanentista, que encerra a natureza sobre si própria, promove, no mesmo


ato, uma exclusão do exterior. Nada há fora deste sistema natural que opera uma dobra causal
sobre si próprio, que se realiza num grande movimento de autoconstituição intensiva. É a
uma formulação claríssima do Breve Tratado que devemos o reconhecimento desta topologia
voltada para dentro: “Deus é uma causa imanente e não transitiva, já que opera tudo em Si
mesmo e não fora, posto que fora d’Ele não há nada”11. Toda noção de exterioridade,
portanto, deverá ser pensada relacionalmente: há um exterior a um corpo determinado,
embora jamais um exterior absoluto ao todo da natureza.

No decorrer do desenvolvimento dos temas subsequentes de sua metafísica, Spinoza


mobiliza a interioridade para descrever o funcionamento da adequação e, em última análise,
da própria razão. A ideia adequada é aquela que “enquanto é considerada em si, sem relação
ao objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas da ideia verdadeira”12. Que
a ideia verdadeira estabeleça relações extrínsecas – por exemplo, que concorde com seu
ideado13 – dá-se como mera consequência secundária de sua propriedade definitória. Ainda,
no livro seguinte da Ética, a diferença entre a causa adequada e a inadequada consistirá na
capacidade de conceber, para a primeira, o efeito enquanto referido apenas a ela e, para a
segunda, recorrendo a algo externo.14 O agir, portanto, ocorre quando somos causa adequada
de algo, ou seja, quando podemos compreender um determinado acontecimento apenas a
partir de nossa natureza ou, o que é o mesmo, a partir de nosso interior. O padecimento, por
contraste, é quando “em nós ocorre algo, ou de nossa natureza segue algo, de que não somos
causa senão parcial”15 – quer dizer, algo de que concorremos para a produção, mas que
9
Recupero, aqui, os mesmos exemplos selecionados por Spinoza no trecho.
10
Devo o reconhecimento do fundo metafísico desta passagem a uma intuição de Giorgio Agamben. Em O Uso
dos Corpos, Agamben recupera a noção spinozista de causa imanente para desenvolver seu conceito de uso. Ver
AGAMBEN, G. 2017b, P. 48.
11
ESPINOSA, B. 2014a, P. 70; G I, 35.
12
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2015a, P. 127; EII, def. IV.
13
EI, ax. VI.
14
EIII, def. 1.
15
ESPINOSA, B. 2015a, P. 237; EIII, def. II.
327

depende, também, de uma causa que nos transcende. Nestes trechos, o exterior cumpre o
papel seja de propriedade simplesmente acessória – que, apesar de existente, é descartável ao
analisar a essência de uma ideia verdadeira –, seja de origem do padecimento individual e,
por fim, da inadequação. Mais do que simplesmente expulso da esfera natural, o exterior é,
agora, mesmo quando presente em seu interior, tomado negativamente.

Quando se trata de considerar a mecânica dos afetos, e a consequente terapia que


pretende liberar o indivíduo de sua servidão, novamente a exterioridade surge apenas para ser
recusada e, numa operação ainda mais radical, para ser associada à potência de destruição.
Se, afirma Spinoza, prestarmos atenção à essência da coisa e apenas a ela, ou seja, se nos
concentrarmos somente em seu interior, não encontraremos, ali, qualquer princípio de
dissolução. A proposição 4 da Parte III o atesta: “nenhuma coisa pode ser destruída senão por
uma causa externa”16, proposição esta que supostamente deveria ser evidente por si, e que,
curiosamente, Spinoza justifica sem recorrer a nenhuma das proposições anteriores. Somos
apresentados, em seguida, a uma espécie de versão positiva desta tese, segundo a qual
pertence à essência da própria coisa – ou seja, é dela uma propriedade intrínseca – o esforço
para “perseverar em seu ser”17. Como a condição perpétua do indivíduo na natureza é a de
estar submetido ao poder das causas exteriores e a de ser constantemente limitado por elas18,
toda a teoria afetiva posterior consistirá numa administração da potência destas causas sobre
nosso corpo e mente, de modo a conhecer tais causas e afetos e separá-los “do pensamento da
causa externa que imaginamos confusamente”19. Como afirma Charles Ramond, toda a teoria
spinozana da afetividade poderia ser descrita sob o signo da exterioridade.20

A exterioridade, porém, receberá uma nova caracterização ao ser introduzida no


campo religioso, particularmente no nexo entre teologia e política. Como procuramos
demonstrar a partir de uma leitura atenta de alguns dos temas centrais do Tratado
Teológico-Político, embora ela surja, de início, associada ao comportamento supersticioso –
que é, à sua maneira inadequada, um modo de posicionar-se face à potência das causas
externas, em particular ao poder caprichoso da fortuna –, as teses anunciadas ao longo da
16
ESPINOSA, B. 2015a, P. 249.
17
Ibid, P. 251; EIII, P. 7.
18
EIV, P. 2, 3, 4.
19
Ibid, P. 549; EV, P. XX, esc.
20
Devo a Charles Ramond a inspiração para descrever alguns pontos da metafísica e teoria dos afetos de
Spinoza a partir de sua posição quanto ao exterior. Ver, sobretudo, a entrada “Exterior/interior” de seu
Dicionário Spinoza, cf. RAMOND, C. 2007, P. 73-88.
328

obra – o método de interpretação da Escritura que recorre a elementos interpretativos de


dentro e fora do texto, a figura fraturada do Cristo que conserva, ela mesma, um
ensinamento moral de caráter interno e externo, a estrutura da servidão no Estado hebreu,
cujos membros são escravos não porque a eles é imposta uma exterioridade absoluta, mas sim
porque seus afetos são capturados de fora e, enfim, a obediência, que nunca é apenas uma
submissão passiva um princípio exterior, mas depende de uma dinâmica perpétua com o
interior – evidenciam que não há propriamente recusa total da exterioridade ou simples
associação desta com a servidão, mas uma tentativa de pensar, desta vez, sua potência
produtiva. Ao invés de procurar, como na Ética, dissolver esta exterioridade, por meio de um
procedimento incessante de interiorização das causas externas e de transformação do
inadequado no adequado, o tratamento da teologia se concentrará em manter a existência da
exterioridade enquanto exterioridade, de modo que não se traduza em servidão afetiva e
política plena.

Reconhecemos, então, no pensamento de Spinoza, um fenômeno de inclusão


exclusiva, tal como o descrevemos, em nossa Introdução, a partir das ideias de Giorgio
Agamben: há, do ponto de vista de sua metafísica, um esforço sistemático para recusar o
exterior, o qual se harmoniza com as diretrizes de sua crítica à teologia tradicional, mas que,
no detalhe, termina por reintroduzir a exterioridade por outros meios. A teologia é aquilo que,
dentro da imanência, permanece para sempre no exterior. Como o soberano schmittiano, ela
está, ao mesmo tempo, dentro e fora da ordem: dentro, pois pertence à natureza, e fora, não
como transcendência absoluta, é verdade, mas como exterioridade irredutível. Esta
reintrodução demonstra que, quanto à religião, Spinoza resolve travar um combate muito
singular: não o que, identificando religião e superstição, abandone por completo o exame da
teologia, mas sim aquele que, reconhecendo seu potencial de servidão, pretende retomá-la,
reescrevê-la e reapropriar-se de sua gramática a fim de estabelecer os meios para que haja,
inclusive nela, um encaminhamento possível para a liberdade.

A inclusão da teologia e consequentemente da exterioridade na imanência não se


identificaria, aqui, com a produção de uma espécie de filosofia maximamente confessional.
Longe das propostas contemporâneas que enxergam, na ausência de instituição eclesiástica,
uma espécie de vitória plena do cristianismo21, uma vez que, libertado do jugo do poder
temporal, poderia exercer sua influência penetrando nas concepções morais mais

21
Como aquelas defendidas por René Girard e Gianni Vattimo mencionadas em nossa Introdução.
329

fundamentais do Ocidente, a proposta de Spinoza está mais alinhada com a confecção de um


conceito inteiramente distinto de religião. Na medida em que a tensão entre exterioridade e
interioridade jamais se resolve, e que não nos interessou, em nosso percurso, tentar
resolvê-la, o pensamento de Spinoza acerca da religião será para sempre marcado por uma
tensão indecidível, a qual, acreditamos, mesmo as já referidas propostas imanentizadoras
pretendem apaziguar.

O Tratado Teológico-Político é, assim, palco de uma cena de duplo combate: por um


lado, um combate explícito com a transcendência pura, quer dizer, com a exterioridade
reivindicada pelas propostas teológicas tradicionais contaminadas de superstição e, por outro,
uma batalha sutil, talvez dificilmente perceptível, com a imanência estática, aquela que, sob a
roupagem de um ateísmo anti-institucional, perigosamente abre caminho para que se instale
uma nova lógica religiosa, desta vez revestida de moralidade secular, mas que termina por
perpetuar a transcendência à sua maneira. Há algo em comum entre duas propostas: cria-se,
nos dois casos, um império dentro de um império. Na primeira, a religião ocupará um fora do
mundo inquestionável a partir do qual poderá exercer seu poder impositivo verticalmente, e,
na segunda, é a própria razão que desempenhará este papel de mito exterior, funcionando,
apesar do que propaga sobre si própria, como um dogma. A estabilização e a neutralização do
conflito, a redução do real a uma única identidade, está plenamente atuante nos dois casos.

O confronto com estas duas posições, afinal, já se encontra prefigurado na tentativa de


recusar tanto a posição cética quanto a dogmática: “um com a razão, outro sem ela, hão de
ensandecer os dois”22. A teologia não é serva da razão e tampouco a razão serva da teologia:
Spinoza ergue-se contra a tentativa de rebaixamento proveniente das duas partes. Esta
conclusão depende da existência de temas que, se encaminhados a uma compreensão racional
interessada em resolver seus dilemas, implicará imediatamente a contaminação e redução
indesejadas. Pensemos na obediência: a razão não será capaz de compreender sem
contradições seu potencial salvífico – e tem de permanecer assim. Spinoza é explícito: “uma
vez que não podemos compreender pela luz natural que a simples obediência é uma via para a
salvação [...] impossível de alcançar pela razão”23 e, novamente, em nota a esta passagem,
“[...] que para a salvação ou beatitude seja suficiente abraçar esses decretos divinos como
regras ou mandamentos [...] não é a razão mas a revelação que o pode ensinar [...]”24. Em

22
ESPINOSA, B. 2019, P. 311; G III, 180.
23
Ibid, P. 319; G III, 188.
24
Ibid. G III, 263.
330

outros termos: a introdução da exterioridade na imanência tem de manter sua integralidade de


problema não solucionável, tem de se manter como um irracional – sob pena de reduzir a
teologia à filosofia e vice-versa. Toda a dificuldade é mostrar, agora, como esta manutenção
da teologia não se confunde com a criação de um pensamento que encaminhe à submissão
afetiva, política e existencial. Nosso propósito foi evidenciar como esta tensão, ao invés de
aparecer apenas na consideração da obediência, na qual, é certo, se faz mais explícita do que
em outros aspectos, é a estrutura básica da consideração do objeto religioso na filosofia de
Spinoza.

O que o comprometimento com este dilema nos ensina a respeito da filosofia da


religião, desta vez para além do pensamento de Spinoza? Em primeiro lugar, é recusada a
evidência prévia do objeto religioso, o qual será tomado como perpetuamente aberto para
disputas políticas. Neste aspecto, acreditamos que o esforço de Spinoza anuncia, desde o
século XVII, a deriva teológica que identificamos na filosofia contemporânea – com autores
como Agamben, Badiou e Derrida –, pois procura, à luz de um programa de resistência
política, retomar e profanar os textos sacralizados pela tradição. A religião não é uma carta
que Deus envia dos céus aos homens, quer dizer, não é inteiramente preparada pela tradição
— cabe a nós ousar forjá-la. É preciso tentar se apropriar do objeto religioso, impedir que
seja monopolizado pelos discursos de dominação. Em segundo, para não recair no erro de
fundar uma nova igreja, quer dizer, uma nova instituição que perpetue exatamente a lógica da
servidão das instituições tradicionais, é preciso repensar a própria metodologia de leitura: lá
onde a instituição encontra síntese, tranquilidade, identidade e, enfim, diluição em um Deus
conciliador; lá onde constrói uma relação estática entre exterior e interior, pode-se, a todo
tempo, complicá-la, introduzindo rupturas conceituais que resistam ao movimento totalizante,
este sim, emblemático da teologia-política. Com Spinoza, somos convidados a repensar o
fundo necessariamente dominador da expressão “teologia-política”, rasurando um signo
clássico: pois também ele pode ser disputado.

Embora o esforço por tornar cada vez mais complicada a relação entre interior e
exterior tenha sido o tema central de todo o nosso trabalho, talvez seja interessante recuperar
– novamente situando-nos, na conclusão, em algum grau de exterioridade em relação ao texto
principal – ao menos um momento da exposição metafísica de Spinoza em que esta tensão
parece decorrer da combinatória de suas teses. Conseguiremos contemplar, de um só golpe de
vista, o conflito que pretendemos ter desenvolvido em longas cadeias argumentativas nas
páginas anteriores. E nada mais adequado do que dedicar a conclusão deste trabalho a uma
331

meditação sobre a morte do autor cuja vida e doutrina nos ocupamos nas páginas anteriores –
o que faria de nós, aos olhos do spinozismo, pouco livres e pouco sábios25, e mesmo
traidores, embora sempre rigorosamente comprometidos com a desejada tensão entre
interioridade e exterioridade.

Uma meditação sobre a morte

Em sua biografia de Spinoza, publicada em holandês em 1705, o ministro da Igreja


luterana de Haia Jean Colerus (1647–1707) dedica a última seção para tratar das
circunstâncias da doença e consequente morte do autor. Seu principal objetivo parece ter sido
o de fornecer um relato seguro, com informações colhidas diretamente das fontes26, e
desfazer o emaranhado de fábulas e de mentiras27 que circulavam, ainda no século XVII,
acerca do evento funesto. Um primeiro rumor afirma que Spinoza morreu de medo de ser
levado à Bastilha quando se encontrava na França: pois, segundo um tal Senhor de
Pomponne, sua presença lá poderia ser causa de desordem pública, o que justificaria seu
encarceramento imediato. Ele teria escapado deste destino disfarçando-se com um hábito
franciscano, sendo, inclusive, avistado por muitas pessoas, que posteriormente foram capazes
de descrever imprecisamente alguns traços de sua aparência física. Segundo Colerus, não só
Spinoza jamais visitou a França28 como é muito improvável que o medo tenha sido a causa de
sua morte. O relato fidedigno do dia de sua morte é por ele assim apresentado:

25
Pois, conforme Spinoza, “não há nenhuma coisa em que o homem livre pense menos do que na morte, e sua
sabedoria não é uma meditação sobre a morte, mas sobre a vida” (ESPINOSA, B. 2015a, P. 483; EIV, P. LXVII).
Talvez seja já excessivo rememorar nossos comprometimentos metodológicos a esta altura da investigação, mas,
para não pecar por omissão, reforçamos: a busca pela exterioridade no pensamento de Spinoza foi acompanhada
da invenção de uma nova linguagem filosófica que pudesse, nela mesma, produzir este objeto conceitual. De tal
forma que as escolhas expositivas são, elas mesmas, posturas conteudísticas robustas. Assim, tanto na
Introdução quanto na Conclusão, recorremos a este ponto de vista maximamente exterior, que consistia em
aproximar-se à distância do tema central da tese, quer dizer, em descrever sua gênese sem propriamente
mencioná-lo. O resultado final da estrutura deste trabalho deve ser a emulação, em sua forma expositiva, da
tensão entre interioridade – situar-se dentro do pensamento de Spinoza – e exterioridade – situar-se fora dele.
Abordaremos, em seguida, Spinoza e sua morte, sem qualquer comprometimento em sermos spinozistas – quer
dizer, sem qualquer exigência de, para tanto, sermos fiéis à sua doutrina, pois esta última não é nada além de
uma compreensão a posteriori de seu significado.
26
Colerus assim anuncia no título e subtítulo de sua obra: “A vida de B. de Spinoza tirada dos escritos deste
famoso filósofo e do testemunho de diversas pessoas dignas de fé, que o conheceram particularmente”, cf.
COLERUS, J. LUCAS, J.M. 2007, P. 7.
27
A expressão é do próprio Colerus, cf. COLERUS, J. 2007, P. 82.
28
Talvez o boato seja fruto da viagem que Spinoza empreendeu em 1673 para Utrecht, cujo objetivo era
intermediar a possibilidade de paz com a França, em guerra com a Holanda desde o ano anterior. Assim nos
informa Diogo Pires Aurélio: “1673. Em maio, Espinosa parte para Utrecht, em missão diplomática, para tentar
negociar a paz com a França, apoiado pelos regentes holandeses e a convite do próprio chefe militar francês, que
acaba não o recebendo. Quando volta para Haia, consideram-no suspeito de ser espião francês.”, cf. ESPINOSA,
B. 2009b, P. LXXII.
332

No domingo pela manhã, antes que fosse a hora de ir à igreja, ele desceu novamente
de seu quarto, e falou com o hospedeiro e sua mulher. Ele havia feito vir de Amsterdã
um certo médico que eu só posso designar por duas letras, L. M., a quem encarregou
às pessoas da casa a comprar um galo velho e de o cozinharem logo, a fim de que ao
meio dia Spinoza pudesse tomar o caldo: assim o fez e comeu com bom apetite
depois que o hospedeiro e sua esposa regressaram da igreja. Depois do meio-dia o
médico L. M. ficou só junto com Spinoza, tendo voltado juntos os da casa às suas
devoções. Porém ao sair do sermão eles se inteiraram com surpresa que perto das três
horas Spinoza havia expirado em presença daquele médico, que, naquela mesma
tarde, retornou a Amsterdã no barco da noite sem preocupar-se o mínimo que fosse
pelo defunto. Se absteve de cumprir com esse dever tanto mais rapidamente quanto
que depois da morte de Spinoza se havia apoderado de um ducado de prata e um
pouco de dinheiro que o defunto havia deixado sobre a mesa, assim como de um
punhal de cabo de prata, e se retirou com seu butim. (Grifos meus. COLERUS, J. P.
27)29

Duas informações saltam aos olhos na versão dos fatos narrada por Colerus. Em
primeiro lugar, a presença das iniciais L.M. para se referir a um indivíduo que era a um só
tempo amigo de Spinoza e médico de profissão. Um conhecimento superficial de sua
biografia e dos personagens que compunham seu círculo de amizade nos faz crer que se trata
de Lodewijk Meyer (1629–1681), médico e filósofo autor de A filosofia intérprete da
Escritura Santa30, livro que chegou a ser publicado, sem indicação de autoria, num mesmo
volume com o Tratado Teológico-Político no ano de 167431. O outro dado relevante é o fato
de Spinoza ter supostamente morrido na presença de Meyer, numa espécie de expiração
assistida. O prosseguimento do texto, retornando ao registro das fábulas e mentiras, transmite
um rumor que sugere, para além do falecimento natural, uma intervenção direta de Spinoza
no aceleramento de sua morte:

Tem-se relatado muito diversamente as particularidades de sua doença e de sua


morte; e a qual forneceu matéria a muitos contestadores. Se palavreia: 1º que durante
o tempo de sua doença ele tinha tomado as precauções necessárias para não ser
surpreendido por visitas de gente cujo objetivo não seria outro além de importuná-lo;
2º que estas próprias palavras lhe saíram da boca uma e mesmo várias vezes: Oh,
Deus, tende piedade de mim, miserável pecador!; 3º que o ouviram frequentemente
suspirar ao pronunciar o nome de Deus. Ele deu motivo aqueles que estavam
presentes de lhe perguntar se agora acreditava na existência de um Deus, cujo juízo
depois de sua morte teria razões para temer, ele respondeu que a palavra se lhe havia
escapado e que lhe saía da boca por costume ou por hábito; 4º diz-se também que
tinha perto de si suco de mandrágora preparado, ao qual ele usaria quando sentisse
aproximar a morte; que em seguida correu as cortinas, perdeu toda consciência,
caindo em um profundo sono, e que foi assim que ele passou desta vida à eternidade;
5º que havia proibido expressamente que deixassem entrar quem quer que fosse em
seu quarto quando ele se aproximava de seu fim; como também que, ao ver-se na

29
Cito a partir da seguinte tradução: COLERUS, J. Vida de Spinoza. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha
Fragoso. Disponível em: <http://benedictusdespinoza.pro.br/biografias-de-spinoza-colerus.html>. Acesso em:
30.08.2021 às 16h.
30
Até onde pudemos detectar, não há uma tradução para o português da obra de Meyer, originalmente escrita em
latim.Verificar a tradução francesa, acompanhada de um importante aparato crítico: MEYER, L. 1988.
31
Mais informações sobre as obras de Spinoza publicadas ainda no século XVII podem ser encontradas no link:
https://spinozaweb.org/works. Especificamente sobre o volume de 1674, ver: https://spinozaweb.org/works/12.
Última visualização: 16/06/2021 às 15h09min.
333

extremidade, havia feito chamar ao hospedeiro e lhe havia pedido que impedisse a
presença de qualquer ministro, porque queria, disse ele, morrer pacificamente e sem
disputa, etc. (Grifos meus. COLERUS, J. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, P. 27)

É o acréscimo da referência ao suco de mandrágora que pode alimentar as suspeitas


de que Spinoza, face ao seu estado de falecimento iminente, teria se utilizado da bebida para
apressar o processo de sua destruição completa – autodestruindo-se. Através de uma
conversa com os hospedeiros da casa onde habitava, Colerus pretende desmentir um a um os
pontos elencados: Spinoza não proibiu a entrada de ninguém, não pronunciou qualquer
palavra, pois nada fora ouvido, não permaneceu todo o tempo em seu quarto, mas desceu à
planta baixa, e os proprietários nada sabiam a respeito do suco de mandrágora, embora todo
alimento consumido por Spinoza fosse por eles administrado e não se encontre, na nota do
boticário, a quem os hospedeiros foram pessoalmente enviados pelo próprio médico de
Spinoza – provavelmente Meyer –, qualquer registro do preparado. Colerus limita-se a dizer
que os hospedeiros ou desconheciam as informações difundidas ou teriam motivos sólidos
para nelas desacreditar por completo.

É possível, porém, questionar a veracidade das informações documentadas por


Colerus, ainda que elas venham de fonte primária. Como nota Piet Steenbakkers32, a biografia
de Colerus foi publicada somente em 1705 e as informações nela contidas muito
provavelmente extraídas em 1693 – ocasião em que o próprio Colerus hospedou-se na casa
do casal Van der Spyk. Entre o ano da morte de Spinoza, em 1677, e o encontro com os
indivíduos que a testemunharam de perto passaram-se ao menos dezesseis anos, o que é um
tempo considerável para que a memória trabalhe na produção de suas próprias ficções.
Soma-se a isso o tom por vezes tendencioso de Colerus, que procura construir uma boa
reputação para Spinoza, frequentemente por ele descrito como honesto, simples, de
temperamento estóico e comportamento idôneo33.

O boato de fato parecia circular na Holanda do século XVII, como confirma uma
descoberta do mesmo Steenbakkers. Ele encontrou, na biblioteca da Universidade de Utrecht,
um pequeno caderno de apenas 28 páginas, escrito em latim, contendo alguns comentários

32
STEENBAKKERS, P. 2010, P. 734.
33
Colerus, reproduzindo o casal Van der Spyck, assim classifica a postura de Spinoza em relação à sua
constituição física debilitada: “Que ele tenha encarregado sua hospedeira de dispensar aos ministros que
pudessem se apresentar, ou que ele tenha invocado o nome de Deus durante sua doença, isto é o que nem ela,
nem os da habitação ouviram, e do qual eles não têm conhecimento algum. Aquilo que lhes persuadiu do
contrário, é que depois que ele debilitou-se mostrou sempre, nos males que sofria uma firmeza verdadeiramente
estóica, a ponto dele mesmo repreender aos outros, quando acontecia deles lamentarem e testemunharem em
suas enfermidades pouca coragem ou excessiva sensibilidade.”, cf. COLERUS, J. Tradução de Emanuel Angelo
da Rocha Fragoso, P. 28.
334

breves sobre religião, política, filosofia, sexualidade e sobre alguns personagens ilustres
daquele contexto histórico-geográfico – dentre eles Spinoza.34 Como algumas notas são
datadas, é possível que o autor as tenha registrado entre os anos de 1678 e 1679, o que, como
novamente o nota Steenbakkers, o situa num momento histórico mais próximo da morte de
Spinoza do que a narrativa de memória do casal que o hospedava. Vejamos o que o autor do
caderno clandestino nos transmite a respeito da morte de Spinoza:

Quando a morte se aproximou, Spinoza ordenou que se colocasse os


medicamentos e outros produtos necessários ao lado de seu leito; ordenou
ao médico que partisse e fechasse a porta à chave. Ele viveu, então, ainda
durante três dias, como o testemunha seu médico familiar, que fez vigília no
andar acima dele. Foi assim que ele morreu. É duvidoso que ele tenha se
arrependido. (Tradução minha. STEENBAKKERS, P. 2010, P. 735)

Estão presentes na nota os medicamentos, o médico e a ordem de permanecer sozinho


trancado em seu quarto – mas são novas as informações sobre este mesmo médico ter
permanecido no local e a demora de três dias para que a morte fosse consumada. Ao que o
autor anônimo se refere quando diz que é duvidoso que Spinoza tenha se arrependido?
Talvez a sugestão de que ele teria utilizado os “medicamentos e outros produtos
necessários”35, dispostos ao seu lado, para acelerar o processo de sua morte. Esta anotação
privada ainda não o confirma – mas dá subsídios, contra Colerus, à possibilidade de suicídio
por parte de Spinoza36.

Para além do estabelecimento de certa verdade histórica a respeito de um evento


passado, alguns comentadores37 se perguntaram sobre a compatibilidade do suposto suicídio
de Spinoza com as suas teses a respeito do tema dispostas sobretudo no escólio da Proposição
XX do Livro IV da Ética. Naquele contexto, Spinoza elenca três possibilidades para a
efetivação do ato suicida:

34
A descoberta de Steenbakkers é brevemente relatada no artigo de 2010. Em 2011, ele e mais dois
pesquisadores – Jetze Touber e Jeroen van de Ven – tornam público o conteúdo integral do caderno, cf. “A
Clandestine Notebook (1678-1679) on Spinoza, Beverland, Politics, the Bible and Sex.”, In: Lias-journal of
Early Modern Intellectual Culture and Its Sources. Vol. 38, no. 2. Peeters, Leuven, pp. 225-+, 2011.
35
STEENBAKKERS, P. 2010, P. 735.
36
Pode ser adicionada ao inventário de elementos acerca da morte de Spinoza a descoberta, feita por Michelle
Margolis Chesner no acervo da biblioteca da Universidade de Columbia, daquela que pode ser considerada a sua
máscara mortuária. Ver o artigo de sua autoria “Spinoza’s Death Mask, and Reflections on Working at the
RBML, disponível em
https://blogs.cul.columbia.edu/jewishstudiesatcul/2021/07/29/spinozas-death-mask-and-reflections-on-working-
at-the-rbml/ (Última visualização: 30.08.2021 às 17h02min).
37
Ver, para as tentativas de compabilizar a teoria do conatus e o suicídio na metafísica e ética de Spinoza, os
artigos de DELASSUS, E. « Le suicide de Spinoza : un problème éthique et philosophique. ». In : ¿
Interrogations ?, N°15. Identité fictive et fictionnalisation de l’identité (I), décembre 2012 [en ligne],
http://www.revue-interrogations.org/Le-suicide-de-Spinoza-un-probleme (Última visualização: 30/08/2021 às
17h28min) e KIM, E. « Suicide, conatus et conflictualité chez Spinoza ». In: Astérion [En ligne], 23, 2020. URL
: http://journals.openedition.org/asterion/5222 (Última visualização: 30/08/2021 às 17h30min).
335

Ninguém, portanto, a não ser vencido por causas externas e contrárias à sua natureza,
negligencia apetecer o seu útil, ou seja, conservar o seu ser. Ninguém, insisto, tem
aversão aos alimentos ou se mata pela necessidade de sua natureza, mas apenas
coagido por causas exteriores, o que pode ocorrer de duas maneiras: alguém se mata
coagido por um outro que lhe torce a mão que por acaso empunhava a espada,
obrigando-o a dirigi-la contra o seu próprio coração. Ou então alguém que, como
Sêneca, por ordem de um Tirano é obrigado a cortar os pulsos, isto é, deseja evitar
um mal maior por um menor. Ou enfim porque causas externas latentes de tal
maneira dispõem a imaginação e afetam o Corpo, que este se reveste de uma outra
natureza contrária à anterior e cuja ideia não pode dar-se na Mente (pela Prop. 10 da
parte 3). Ora, que o homem, pela necessidade de sua natureza, se esforce para não
existir ou para mudar de forma, é tão impossível quanto que do nada se faça algo,
como cada um pode ver com um pouco de meditação. (ESPINOSA, B. 2015a, P.
409-411; E IV, P. XX, esc.)

A teoria spinozista, que atrela a essência individual ao conatus, não pode dar conta da
existência de um princípio destrutivo interno. Ao mesmo tempo, aceita que o suicídio – a
autodestruição – existe como fenômeno de fato: é realmente possível retirar a própria vida e
há mesmo exemplos históricos de indivíduos que cometeram o ato. Se for capaz de
explicá-lo, haverá igualmente uma resposta spinozista para um evento conceitualmente
próximo cuja existência ele também parece conceder38, mas que encontra impasses ao ser
figurado no interior de suas premissas metafísicas. Trata-se da servidão voluntária, tema
detalhadamente debatido em toda sua extensão retórica e política por Etienne de La Boétie
em seu Discurso da servidão voluntária. Mais do que a simples obediência a um princípio
exterior, a servidão voluntária consiste num desejo interno de submissão a um outro – um
acontecimento que La Boétie constata com assombro. Pois, segundo ele, é não só
extraordinário que as coletividades humanas – burgos, cidades, nações – se submetam ao
poder de um único – lembremos do subtítulo do discurso: o Contra Um – , mas que o façam
voluntariamente e que experimentem algum grau de satisfação ao fazê-lo. Estão, portanto,
“encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um”39. Embora não encontremos, no corpus
spinozista, qualquer referência direta a La Boétie e à discussão sobre a servidão voluntária, é
bem verdade que, no Prefácio do TTP, Spinoza atribui à monarquia, auxiliada pela religião, a
eficácia em fazer com que os homens “combatam pela servidão como se fosse pela salvação e
acreditem que não é vergonha, mas a maior das honras, dar o sangue e a alma pela vaidade de
um só homem [...]”40. A crítica explícita à monarquia, bem como a menção de uma busca
autônoma pela servidão, quase nos fazem esperar uma alusão qualquer a La Boétie logo em
seguida – mas Spinoza permanece em silêncio.41

38
O exemplo do Estado hebreu o atesta. Ver, para tanto, o Capítulo 4 deste estudo.
39
LA BOÉTIE, E. 1982, P. 12.
40
ESPINOSA, B. 2019, P. 125; G III, 7.
41
Sobre Spinoza e a servidão voluntária, ver os seguintes trabalhos: ALBARELLI, B. “Latência e Servidão
Voluntária: A oposição radical entre Espinosa e La Boétie”. In : Revista Seiscentos, vol. 1, 2021 (no prelo) e
336

No escólio da proposição há pouco transcrito, como dissemos, encontramos três


respostas possíveis para o fato bruto da autodestruição. Tais soluções ora dissolvem a
irracionalidade da ocorrência, ora a situam numa estranha topologia entre causas externas e
internas. As duas primeiras condições retratadas implicam que, embora o suicídio possa ser
classificado como autodestruição individual, é, na verdade, sempre a ação de uma causa
exterior: seja ela puramente física ou motivada por razões políticas. Matar-se por imposição
externa de um outro, que força nosso punho enquanto por acaso segurávamos uma espada,
dificilmente poderia ser caracterizado como suicídio: mais parece um ato de homicídio que
ocorre em circunstâncias extraordinárias. Afinal, embora a causa física mais imediata seja a
ação do próprio indivíduo, somente isolando este evento de toda a cadeia causal que o
determinou, o que inclui o movimento do outro, esse sim absolutamente externo ao primeiro,
é que se pode dizer que há suicídio. Ainda, no segundo caso, o do suicídio de Sêneca, há a
imposição de causas externas motivadas por razões políticas – mas o indivíduo se destrói
também por imposição de um outro que lhe é exterior. O elemento novo na explicação é a
busca por um “mal menor”: e, num certo sentido, é possível dizer que há expressão da
liberdade neste caso, ainda que paradoxalmente o indivíduo tenha, analisando suas
possibilidades, optado pela morte como uma maneira de se ver livre do sofrimento da vida.42
Não existiria, então, suicídio enquanto fenômeno paradoxal e irracional na filosofia de
Spinoza, assim como não parece haver acrasia: toda a escolha por aquilo que vejo como pior
é, na verdade, a escolha por um mal menor.43

A terceira causa, porém, pensa o suicídio em seu aspecto necessariamente conflituoso.


Causas externas latentes se apoderam do indivíduo – criando nele uma espécie de segunda
natureza que lhe é contrária. Spinoza admite, então, que há causas externas ocultas,
inconscientes para o indivíduo – pois sua “ideia não pode dar-se na mente”44 – e que agem
contra sua natureza primeira. O resultado do suicídio é a vitória destas causas externas

ABENSOUR, M. « Spinoza et l’épineuse question de la servitude volontaire ». In : Astérion, 13, 2015. URL :
http://journals.openedition.org/asterion/2594 ; DOI : https://doi.org/10.4000/asterion.2594. Última visualização:
31/08/2021 às 10h03min.
42
Eis a tese de Eric Delassous em seu artigo já citado anteriormente: o suicídio pode ser visto, na filosofia de
Spinoza, como uma expressão legítima da liberdade.
43
Sobre a acrasia e o suicídio no pensamento de Spinoza, ver o artigo de PINHEIRO, U. “Acrasia,
metamorfoses e o suicídio de Sêneca na Ética de Espinosa”. In : Analytica, Rio de Janeiro, vol 12 nº 2, 2008, p.
199-244. Ver também, do mesmo autor, “Servidão e acrasia segundo Espinosa”, In : O que nos faz pensar, [S.l.],
v. 14, n. 18, p. 195-212, sep. 2004. Disponível em:
<http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/195>. Acesso em: 31/08/2021 às
10h20min e “A heresia oculta de Espinosa. Meditações sobre a morte na Ética”, In : Analytica. Rio de Janeiro,
vol 14 nº 1, 2010, p. 217-242.
44
ESPINOSA, B. 2015a, P. 409; EIV, P. XX, esc.
337

impensadas. Ao contrário dos casos anteriores, o componente da consciência – presente na


situação de empunhar uma espada por imposição de outro e na escolha pelo mal menor – está
ausente aqui. Também ao contrário das anteriores, esta causa designada externa parece ser
estranhamente interna ao indivíduo – pois cria em seu interior uma segunda natureza.
Encontramo-nos diante da situação paradoxal – que tem de permanecer paradoxal para ser
uma explicação que enfrenta diretamente o suicídio – de uma causa que é ao mesmo tempo
externa e interna ao indivíduo. Externa, pois veio originalmente de fora; interna, pois,
apoderando-se de sua natureza, criou uma outra que lhe é contrária mas que não deixa de, por
isso, conviver em seu interior. O suicídio é sempre uma espécie de possessão45: assim como
nela, uma causa exterior se apodera inconscientemente da essência interna de um indivíduo,
nele produzindo uma nova natureza contrária à primeira.

É certo que a tensão entre exterioridade e interioridade, neste caso, implicará a


destruição do indivíduo – justamente pelo fato de esta segunda natureza efetivamente agir
contra a primeira. Perguntamos: estas causas externas-internas, caso não forem contrárias à
natureza primeira do indivíduo, podem conviver de modo não destrutivo com as causas
internas? Na possessão, causas externas apoderam-se do indivíduo criando, nele, uma outra
natureza que não será destruída, mas sensivelmente modificada. Num movimento análogo,
mas de orientação inversa, pode-se pensar que há, desta vez da parte da interioridade, uma
ação sobre o exterior-interior, a qual resguarde para sempre este conflito?

Se for assim, o retrato desta movimentação perpétua entre externo e interno será
equivalente à penetração da teologia – tomada como exterioridade – na esfera da imanência.
O suicídio será uma espécie de paradigma precursor útil – embora limitado, pois o conflito
será, em última análise, dissolvido, já que o indivíduo será destruído – para melhor visualizar
a relação construída com a teologia ao longo do TTP. A exterioridade trazida pela religião,
quando interiorizada, ou seja, quando reescrita e necessariamente transformada, não pode
funcionar como uma causa externa que auxilie, por exemplo, na salvação de quase todos os
indivíduos pela via da obediência? E não haverá sempre uma resposta da interioridade para o
exterior como movimento suplementar? Não pode implicar, em suma, uma nova relação com
o objeto religioso, que mantenha para sempre seu aspecto tenso, sua dinâmica insuperável,
não a ponto de eliminar a religião, mas de construir para ela um novo conceito que não a

45
Não teremos tempo de investir nesta analogia aqui. Recomendo como bibliografia suplementar o livro de
Stefan Andriopoulos, Possuídos. Crimes hipnóticos, ficção corporativa e invenção do cinema, publicado em
2014 pela editora Contraponto, que pode ser uma boa fonte de pesquisa sobre o tema.
338

encaminhe necessariamente à servidão? Afinal, a servidão é, como descrevemos no Estado


hebreu, justamente a limitação da dinâmica entre exterioridade e interioridade: há uma
espécie de possessão servil bem-sucedida ali, pois a exterioridade captura e impõe inclusive a
interioridade afetiva dos súditos, sem que eles possam dar a ela uma contrarresposta
suficiente.

Os benefícios da perpetuação da exterioridade são, como tentamos demonstrar nas


páginas anteriores, uma compreensão mais qualificada do objeto religioso na filosofia de
Spinoza, o que nos permitiu dar conta do caráter singular do texto bíblico, da figura do
Cristo, da obediência e, por fim, também explicar em outros termos a servidão política.
Enfim, o conflito externo-interno não tem de terminar em morte: ele pode ser a estrutura
mesma da vida, um perpétuo entrelace entre destruição de si e rearranjo dado na comunicação
entre as causas externas e internas. Sua manutenção constitui importante mecanismo de
resistência à captura tanto por uma exterioridade sobrenatural quanto por uma interioridade
estática que se queira absoluta, dissolvendo a religião na razão.

Esta nova postura face ao objeto religioso não nos informa também sobre a
modernidade ou antimodernidade de Spinoza?

Nem antigo, nem moderno

Até a idade de 22 anos, Spinoza pertencia à comunidade de judeus ibéricos


estabelecidos na cidade de Amsterdã. Sua origem o fez ter acesso a um vasto conhecimento
bíblico, incluindo o domínio do hebraico, retomado criticamente, em sua maturidade, no
Tratado Teológico-Político. Ocorre que, aos 23 anos, Spinoza é violentamente excluído desta
comunidade, permanecendo, até o fim de sua vida, sem qualquer vínculo confessional outro.
Spinoza não era sequer um cristão sem igreja – simplesmente não professava qualquer culto,
apesar de ter amigos das mais variadas correntes: desde Meyer, de família protestante,
passando por Jelles, que se converte tardiamente, tentando, inclusive, conciliar cristianismo e
spinozismo no Prefácio das Obras Completas e, por fim, de figuras como Adrien Koerbargh
– o mais radical entre eles, e que foi preso e logo morto por conta de seus posicionamentos
heterodoxos. No interior de uma sociedade como a holandesa – a qual, embora mais tolerante
do que o comum da Europa, ainda manifestava fortes tendências calvinistas, sobretudo no
estrato aristocrático –, a comunidade judaica já era, ela mesmo, estrangeira. Após o cherem,
Spinoza passa a ser uma espécie de estrangeiro entre os estrangeiros, separado daqueles que
já eram, eles mesmos, separados. Recusa, em 1673, a oferta para trabalhar como professor na
339

Universidade de Heidelberg – o que mais uma vez indica seu esforço por despertencimento
institucional. Para não mencionar seu autobanimento geográfico, pois abandona sua cidade de
nascimento para viver, até o fim de sua vida, exilado no campo: Rijnsburg, Voorburg e Haia
foram seus locais de moradia.46

Se a categoria de desviante foi de início imposta exteriormente, Spinoza passa a


aceitar tal condição e a produzir seu pensamento sob seu signo. As informações biográficas
não são sem interesse caso articuladas com sua doutrina. Afinal, seu lugar de enunciação é o
do não-pertecimento. Este estranho (não) lugar é justamente o de uma tensão entre estar
dentro – ser um cidadão holandês – e estar fora – ser de origem judaica, mas não participar
nem mesmo desta comunidade de separamento. Procuramos delimitar, nas páginas anteriores,
o modo como esta posição de pensamento e de escrita se prolonga, na doutrina, numa certa
relação conflituosa entre teologia e política. Resta-nos a pergunta: o que este
não-pertencimento pode nos dizer, agora, sobre o nosso próprio despertencimento de hoje –
assumindo que vivemos uma espécie de período de indefinição entre as conquistas modernas
em ruína e a produção cada vez mais acelerada de uma nova identidade que a venha
substituir? Qual o lugar de Spinoza nesta crise?

Refletindo sobre a questão do lugar histórico de certos autores e ideias, Giorgio


Agamben47 define o contemporâneo justamente a partir da experiência de não-pertencimento
a uma época, como vivência da tensão entre exterioridade e interioridade:

A contemporaneidade é, assim, uma relação singular com o próprio tempo, que adere
a ele e, ao mesmo tempo, toma distância dele; mais precisamente, essa é a relação
com o tempo que adere a ele através de uma dissociação e de um anacronismo.
Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que se ligam em todos os
pontos perfeitamente com ela, não são contemporâneos porque, exatamente por isso,
não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, G.
2015, P. 22-23)

Pensado como livro de intervenção na situação política da Holanda do século XVII, o


Tratado Teológico-Político é contemporâneo no sentido agambeniano da expressão. Reflete
sobre seu tempo e lugar, sobre seu presente: é, neste sentido, atual, pois adere às querelas de
seu tempo. Propõe a pergunta sobre como repensar a religião para além dos mecanismos de
servidão. Ainda, debate os preconceitos dos teólogos e do vulgo, seu modo de tomar o texto
bíblico, de reivindicar para si um poder sagrado distinto do poder civil, sua perseguição à
liberdade de pensamento e fala, sem coincidir, em sua solução, plenamente com a sua época.
46
Para mais informações sobre os dados biográficos de Spinoza em articulação com a sua doutrina, ver o livro
de Steven Nadler: Spinoza. A life. Cambridge, Cambridge University Press: 1999.
47
AGAMBEN, G. 2015, P. 21-33.
340

Não coincide já que defende uma nova maneira de tomar o texto bíblico, separa o discurso da
razão do discurso da fé e, institucionalmente, o direito civil do direito sagrado. Basta verificar
o testemunho de seus críticos – Velthuysen, Blyenbergh, o próprio Oldenburg até certo ponto
– e a recepção mais imediata do TTP para concluí-lo.

Tudo isso já é por nós conhecido. Diz respeito à relação de Spinoza com seu próprio
tempo e o modo como pode dialogar, justamente por este afastamento, com nossas intuições
políticas de hoje, já que o que era, nos seiscentos, anormal, tornou-se, para nós, uma certa
evidência do pensamento político – ao menos para um determinado grupo. Talvez haja,
porém, outra identificação com o tempo de agora – não tanto motivada pelas teses que
reivindica, mas pelos distanciamentos que toma.

A historiadora norte-americana Joan Dejean, ao tratar da Querela dos Antigos Contra


os Modernos que invadiu a França ao fim do século XVII e início do XVIII, dedica-se a
interpretar os fenômenos culturais daquela época a partir das questões que impactavam o
presente de sua escrita, isto é, a partir das chamadas Guerras Culturais que tiveram palco nos
Estados Unidos ao fim dos anos 199048, as quais, talvez, ainda hoje não tenhamos excedido
por completo. A aliança de temas e disputas entre os dois períodos permite que ela faça o
seguinte balanço em tom de alerta:

Ao longo da contenda do século XVII entre Antigos e Modernos, certos


desenvolvimentos iniciados sob patrocínio Moderno provaram ser de tal forma
cruciais ao futuro da república das letras, que muitos acreditaram, desde então, terem
os Modernos vencido a batalha. Em primeiro lugar, a literatura tornou-se um

48
Joan Dejean assim define a expressão “guerra cultural”: “O termo cultural é tão apropriado e essencial quanto
o termo guerra na designação das controvérsias que podem ser incluídas nesta categoria. O conflito em questão
é mais amargamente divisor e é empreendido em uma escala muito mais ampla do que o são, ao contrário, as
controvérsias sobre questões culturais. Contudo, em tempos de Guerras Culturais – na França do século XVII
tanto quanto nos Estados Unidos de hoje –, os assuntos intelectuais adquirem uma importância jamais vista nos
períodos de menor ansiedade. Nestes períodos, os tradicionalistas e os progressistas enquadram-se como
Antigos ou Modernos e travam batalha sobre questões tais como o assunto mais apropriado a uma literatura
digna de ser considerada grandiosa e o currículo literário mais adequado às necessidades do estudante
contemporâneo. O conflito resultante é arrastado à controvérsias contemporâneas acerca dos problemas sociais:
desde os direitos e o status das mulheres, até a ameaça inerente aos comportamentos induzidos por vícios (tanto
os causados pelas drogas atuais, quanto os, como no século XVII, causados pelo tabaco e pelo chocolate).
Supostamente, e com um certo grau de boa fé – pois o status de tais alegações não pode nunca ser precisamente
definido –, as modificações literárias que serviram de base inicial para a distinção entre Modernos e Antigos são
culpadas pelas ameaças de mudanças sociais: as mulheres tornaram-se indisciplinadas por causa de novos e
importantes livros; ou até mesmo, mais simplesmente, porque os Modernos começaram a desafiar a autoridade
dos Antigos, o comportamento induzido pelos vícios cresceu. Que alegações como estas aparentem ser
desesperadamente disparatadas apenas torna mais significativo o fato de serem amplamente difundidas e
supostamente fidedignas. Nestes momentos, como em nenhum outro, controvérsias sobre assuntos literários
auxiliam na criação impetuosa de uma atmosfera de final de século. Tanto no século XVII, quanto hoje, as
Guerras Culturais marcam um período de intensa divisão em que a sociedade passa a crer primeiramente que a
civilização como a conhecem está prestes a acabar, e, em seguida, que os fatores literários são sintomáticos
deste declínio e também responsáveis por ele.”, cf. DEJEAN, J. 2005, P. 29-30.
341

fenômeno radicalmente mais público, o centro de uma esfera cultural em que uma
variedade de grupos antes silenciosos começaram a engajar-se numa participação
ativa. Em segundo lugar, essa literatura dramaticamente mais pública representou um
papel fundamental no desenvolvimento das novas formas de afetividade e de
interioridade, quem sabe mesmo no desenvolvimento do que poderia ser chamada a
subjetividade moderna. E, em terceiro lugar, o romance – gênero literário
intimamente ligado a ambas as novidades da literatura, a publicidade e a interioridade
– alcançou sua primeira real proeminência. No equivalente seiscentista do meio
acadêmico atual, contudo, os papéis foram inversos. Os Antigos introduziram todos
os planos para a reforma institucional e pedagógica provando-se, no fim das contas,
vencedores, enquanto os Modernos praticamente não obtiveram sucesso em iniciar
mudanças. (DEJEAN, J. 2005, P. 11)

Se, como sustenta Dejean, o fin de siècle europeu experimentava justamente esta
indefinição quanto a temas culturais prementes – como atestam as discussões, na literatura,
sobre a retomada ou não dos clássicos e a reflexão acerca de qual pedagogia adotar nas
instituições de ensino –, e se pudermos associar este momento de disputa também ao lugar
histórico do Tratado Teológico-Político – ele mesmo um trabalho de fim de século, e que,
diga-se de passagem, foi rapidamente traduzido para o francês49 –, talvez possamos partir
para uma última associação entre Spinoza e o nosso tempo, igualmente marcado por uma
crise da modernidade que ainda não se resolveu por completo. Se ainda não superamos nossa
própria guerra cultural, e se Spinoza trava uma guerra também em seu tempo, talvez o que
nos associe a ele seja justamente esta indefinição e este não-pertencimento. Um
despertencimento que faz dele, como nós, nem inteiramente modernos – pois, se estivermos
corretos, a relação com a religião não é de mera recusa – tampouco plenamente antimodernos
– pois, afinal, há uma defesa explícita da liberdade de expressão individual e a manutenção
de um âmbito reservado à interioridade tão cara à modernidade50.

Reescrevendo a relação entre fé e saber, pode ser que Spinoza nos auxilie, na crise
que nos é própria, a repensar também nossas heranças iluministas – sem que isto signifique
um retorno a um passado mítico dominado por uma religião de orientação identitária. O que
interessa a nós é recuperar o Spinoza que vive nesta tensão entre modernidade e
antimodernidade: que é, parece-nos, a tensão própria do contemporâneo.

49
Não pretendo defender historiograficamente o pertencimento do Tratado Teológico-Político ao espírito de fim
de século francês – o que implicaria um outro gênero de análise e um outro conjunto de argumentos. Minha
ideia é associar alguns dados históricos para levantar hipóteses sobre alianças e distanciamentos no campo das
ideias, tendo o período histórico como fundo de sustentação provisório, mas não definitivo. As conexões não
têm a pretensão de serem reais, mas narrativas.
50
Remeto o leitor à Introdução para verificar os sentidos atribuídos, por alguns comentadores, à modernidade ou
antimodernidade de Spinoza.
342

Um bestiário

Se há, então, na constituição de algumas de nossas intuições políticas modernas, um


procedimento de exclusão inclusiva da teologia e de toda sua série de conceitos correlatos – o
que deverá implicar um novo esforço de consideração da história da filosofia política não a
partir da exclusão do religioso, mas tomando sua contaminação na esfera da imanência –, é
possível se perguntar se há outros campos e discursos cuja análise encaminha à mesma
conclusão: exclusão superficial acompanhada de reintrodução – sempre tensa – por outros
meios. Só poderemos, adiante, determinar os contornos desta discussão: certamente ela exige
um exame mais demorado e mais rigoroso do que poderemos fazer nesta breve conclusão. A
título de sugestão esquemática, como uma proposta de investigação condenada ao porvir,
elencaremos algumas referências canônicas da filosofia política a fim de evidenciar suas
descontinuidades e limites quando se trata de analisar um âmbito específico: a animalidade.
Naturalmente, interessa-nos, assim como desenvolvemos ao longo desta pesquisa, recorrer ao
cânone não para subscrevê-lo sem reservas, mas para fazer emergir dele seus compromissos
ocultos, imposturas e autotraições.

Na Política, Aristóteles é categórico: embora abelhas e formigas sejam animais


gregários, não se pode dizer que sejam naturalmente políticos em sentido pleno. Somente o
homem pode sê-lo por possuir, ao contrário dos animais, o poder da palavra – o logos.
Enquanto os animais dispõem do uso da voz para transmitir sensações de dor ou prazer,
apenas o homem pode construir, na linguagem, as distinções básicas da política, tais como as
noções de justo e injusto, derivadas do sentimento do útil e do prejudicial. A mesma
conclusão parece válida para a construção de comunidades éticas: pois o homem é também o
único capaz de poder diferenciar, na linguagem, conceitos de bem e mal – e, portanto, o único
habilitado a criar não apenas associações políticas, mas também familiares. A introdução do
homem na natureza é acompanhada de uma hierarquização: em sua melhor faceta, isto é,
quando se organiza em comunidades orientadas pela justiça, é o melhor dos animais. Da
mesma forma, quando da justiça se afasta, atinge o estado extremo oposto: será o pior dos
animais existentes.51 Embora pertença à natureza e seja, também ele, um animal, é verdade
que, no mesmo ato, destaca-se dela, pois é, ao contrário dos demais, racional. Experimenta,

51
“Tal como o homem é o melhor dos animais quando atinge o seu pleno desenvolvimento, do mesmo modo,
quando afastado da lei e da justiça, será o pior. A injustiça armada é, efetivamente, a mais perigosa; o homem
nasceu com armas que devem servir a sabedoria prática e a virtude mas que também podem ser usadas para fins
absolutamente opostos. É por isso que o homem sem virtude é a critura mais ímpia e selvagem, e a mais
grosseira de todas no que diz respeito aos prazeres do sexo e da alimentação.”, cf. ARISTÓTELES. 1998, P. 57.
343

assim, a estranha condição de estar dentro da natureza e, ao mesmo tempo, projetar-se para
além dela devido a suas capacidades elas mesmas naturalmente instituídas:

A razão pela qual um homem, mais do que uma abelha ou um animal gregário, é um
ser vivo político em sentido pleno, é óbvia. A natureza, conforme dizemos, não faz
nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os seres vivos, possui a palavra.
Assim, enquanto a voz indica prazer ou sofrimento, e nesse sentido é também
atributo de outros animais (cuja natureza também atinge sensações de dor e de prazer
e é capaz de as indicar) o discurso, por outro lado, serve para tornar claro o útil e o
prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto. É que, perante os outros seres
vivos, o homem tem as suas peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o justo e o
injusto; é a comunidade destes sentimentos que produz a família e a cidade.
(ARISTÓTELES. 1998, P. 55)

Pode-se dizer, então, que a tensão entre interioridade e exterioridade faz parte, em
Aristóteles, da própria condição humana, tensão esta que terá seu destino posterior, na
história da filosofia política, ao ser também marca estruturante da figura do soberano. Nosso
exercício arqueológico52 ainda incipiente pode, agora, saltar ao século XVI a fim de
encontrar, na discussão de Maquiavel acerca dos atributos do soberano – mais
especificamente sobre se é aconselhável ao príncipe manter sua palavra dada53 –, a
necessidade de um recurso às características animalescas como forma de conservar o poder.
O príncipe deve ser como que internamente fraturado, possuindo duas naturezas ao mesmo
tempo: a do animal e a do homem. Deve ser, pois, uma espécie de centauro. Em termos
políticos, isso se traduz em travar um combate tanto através das leis – próprias da
humanidade – quanto fazendo uso da força – a qual compete à brutalidade das bestas.54 Há,
porém, animais privilegiados, cujas características serão de mais utilidade na constituição
deste soberano nem totalmente humano, nem integralmente animal; o qual está, ao mesmo

52
Arqueológico pois não se trata de buscar, nas referências da tradição, a essência da animalidade ou, por
contraste, a da humanidade: mas sim verificar, à certa distância, o modo como o cânone construiu para si uma
separação que é, ela mesma, destituída considerando certos aspectos das próprias teorias dos autores elencados.
Retomo o sentido de arqueologia esquematicamente apresentado por Michel Foucault no artigo “O que são as
Luzes?”, no qual desenvolve a arqueologia como uma espécie de método oposto às pretensões universalistas de
um certo exercício transcendental de investigação: “Aquilo que, nós o vemos, traz como consequência que a
crítica vai se exercer não mais na pesquisa das estruturas formais que têm valor universal, mas como pesquisa
histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos que
fazemos, pensamos, dizemos. Nesse sentido, essa crítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar
possível uma metafísica: ela é genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método. Arqueológica – e
não transcendental – no sentido de que ela não procurará depreender as estruturas universais de qualquer
conhecimento ou de qualquer ação moral possível; mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos,
dizemos e fazemos como acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não
deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá da
contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos
e pensamos”, cf. FOUCAULT, M. 2000, P. 347-348.
53
Tema do capítulo XVIII de O Príncipe.
54
Sobre esta relação, ver o seminário de Jacques Derrida intitulado A besta e o soberano, cujo primeiro volume
foi publicado no Brasil pela editora Via Verita em 2016.
344

tempo, como já sabemos através de Schmitt e Agamben55, dentro e fora do ordenamento


político:

Estando, pois, um príncipe necessitado de saber usar bem a besta, deve adotar a
raposa e o leão: porque o leão não se defende das armadilhas, a raposa não se
defende dos lobos; precisa, pois, ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para
assustar os lobos: aqueles que se atêm simplesmente ao leão não percebem disto.
(MAQUIAVEL, N. 2017, P. 199)

No século XVII, talvez a contribuição canônica mais interessante a nossos propósitos


seja aquela de Thomas Hobbes. Hobbes lança mão, tanto em Do Cidadão quanto no Leviatã,
de um carregado conceito de natureza, além de recorrentes imagens e metáforas animalescas.
Sua antropologia filosófica, cujas consequências serão diretamente sentidas na política, se
apresenta como crítica à posição aristotélica, e, ao contrário de nós, não vê em Aristóteles a
mesma ruptura entre o homem e a natureza, mas sim um verdadeiro pertencimento –
indesejável para ele, é certo – ao mundo natural.56 Segundo Hobbes, Aristóteles toma o
homem e alguns animais gregários – formigas e abelhas fundamentalmente – como
contínuos do ponto de vista da natureza, quer dizer, como igualmente políticos.57 A formiga e
a abelha, embora irracionais, organizam-se em sociedade – não, é claro, via contrato de
transferência de direitos, mas através do consentimento natural a um bem comum. Todo o
esforço hobbesiano se concentra em demonstrar que a política é, ao contrário, uma
transcendência ou artificialidade em relação à natureza – este último um estado no qual os
homens se encontram, dada a igualdade radical de direitos, em perpétua guerra mútua. Os
homens necessitam, para criar comunidade política, de um suplemento, um algo mais que os
force a obedecer a uma vontade única:

Finalmente, o consentimento de tais criaturas brutas é natural, o dos homens apenas


por pacto, ou seja, artificial. Por isso não é de estranhar que algo mais seja necessário
aos homens, para que possam viver em paz. De modo que o consentimento ou o
contrato de associação, sem um poder comum pelo qual os particulares sejam
governados por medo ao castigo, não basta para constituir aquela segurança que é
requisito para o exercício da justiça natural. (HOBBES, T. 2002, P. 95)

Apesar de se organizarem em comunidade, os demais animais não possuem governo


civil, pois o mero consentimento e união das vontades para um mesmo fim não é suficiente
para que haja o constrangimento necessário à manutenção das relações políticas. Entre os
animais há concórdia, mas jamais pode haver sedição: sua união é estável e duradoura, não

55
Conforme a discussão sobre o primeiro capítulo de Homo Sacer I, de Giorgio Agamben, que propomos em
nossa Introdução.
56
Sobre as críticas de Hobbes ao pensamento político aristotélico, ver o livro de FRATESCHI, Y. A física da
política. Hobbes contra Aristóteles. Campinas: Editora UNICAMP, 2008.
57
Ver, em Do Cidadão, Capítulo V, §5 e, em Leviatã, o Capítulo XVII.
345

porque é civil, mas porque vivem apenas em vista da “sensação e do apetite”58. A paz que
obtém é fruto da inércia e da desrazão, paz que não compete ao homem, que naturalmente
está inclinado e mesmo destinado, pelo fato de ser racional, a desejar algo além da simplória
sensação. Ao mero consentimento bestial, Hobbes opõe a verdadeira união, fruto da
artificialidade do pacto criador de direito:

Portanto, se a convergência de muitas vontades rumo ao mesmo fim não basta para
conservar a paz e promover uma defesa duradoura, é preciso que, naqueles tópicos
necessários que dizem respeito à paz e autodefesa, haja tão-somente uma vontade de
todos os homens. Mas isso não se pode fazer, a menos que cada um de tal modo
submeta sua vontade a algum outro (seja este um só ou um conselho) que tudo o que
for vontade deste, naquelas coisas que são necessárias para a paz comum, seja havido
como sendo vontade de todos em geral, e de cada um em particular. E a reunião de
muitos homens que deliberam sobre o que deve ser feito, ou omitido, é o que eu
chamo de conselho. (HOBBES, T. 2002, P. 95-96).

O surpreendente é que o conceito de natureza, em Hobbes, é múltiplo e equívoco. O


estado de natureza, quando se trata dos homens, refere-se a uma condição de guerra perpétua
de todos contra todos. Nele, os homens são movidos por suas paixões individuais e desejo de
autoconservação, os quais, combinados à igualdade de direitos, culminam em guerra – e não
“uma guerra qualquer, mas uma guerra de todos contra todos”59. Ao mesmo tempo, as
existências não-humanas experimentam na natureza, ao contrário disso, uma paz calma e
duradoura, que impede estruturalmente a eclosão de injúrias e sedições.60 A natureza é
também a força que dita leis comportamentais válidas para o tribunal da consciência61,
embora sem eficácia plena no estado de natureza e no campo civil se a elas não for
acrescentado o componente de direito que emana do soberano.62 As leis naturais, segundo
Hobbes, as quais já mencionamos em outro momento de nossa investigação63, são as leis
derivadas da evidência da razão: elas indicam a razoabilidade da razão tomada como
princípio orientador inquestionável.64 São, também, leis morais e divinas65, retirando sua
autoridade em parte da razão, em parte da autoridade bíblica. Por último, é um ensinamento
desta mesma excêntrica natureza – que é, simultaneamente, guerra e paz, razão e desrazão –
que se deve transcender a natureza em busca da artificialidade contratual a fim de que a paz

58
HOBBES, T. 2002, P. 94.
59
HOBBES, T. 2002, P. 33.
60
“É bem verdade que em tais criaturas, que vivem apenas pela sensação e o apetite, o consentimento das
mentes é tão durável que não precisa haver nada mais para assegurá-lo, e por conseguinte para preservar a paz
entre elas, além de sua mera inclinação natural.”, cf. HOBBES, T. 2002, P. 94.
61
Do Cidadão, Capítulo III, §27.
62
Do Cidadão, Capítulo V, §1-4.
63
Na seção do Capítulo V dedicada a refletir sobre o conceito de lei.
64
Cf. Do Cidadão, Capítulo II, §1.
65
Do Cidadão, Capítulo IV, §1-2.
346

seja obtida. Se a natureza dita a busca pela paz e se, para os homens, só pode haver paz fora
da natureza, a conclusão é a de que a própria natureza ensina que é preciso ultrapassá-la:

Mas os homens não podem esperar uma conservação duradoura se continuarem no


estado de natureza, ou seja, de guerra, e isso devido à igualdade de poder que entre
eles há, e a outras faculdades com que estão dotados. Por conseguinte o ditado da reta
razão – isto é, a lei da natureza – é que procuraremos a paz, quando houver qualquer
esperança de obtê-la, e, se não houver nenhuma, que nos preparemos para a guerra.
(Grifos meus. HOBBES, T. 2002, P. 35-36).

A natureza hobbesiana, assim excluída da esfera política, recuperará sua influência no


estado de associação civil – mas apenas sob o signo de sua exclusão primeira. O “[...] homem
é um deus para o homem, e que o homem é o lobo do homem. O primeiro é verdade, se
compararmos os cidadãos entre si; e o segundo, se cotejamos as cidades”66: a célebre frase
que consta na Epístola dedicatória de Do Cidadão, de autoria de Plauto e erroneamente
atribuída a Hobbes, trata dos homens em condição organizada, embora ela sirva muito bem
para contemplar a cena bélica do estado de natureza. Salta aos olhos o emprego da metáfora
animal, aqui condensada na imagem do lobo, para descrever o comportamento das cidades
umas para com as outras. Que traços o lobo invoca? La Fontaine, em O lobo e o cordeiro, nos
ensina: o lobo é o representante da força, que impõe suas rédeas lá onde o cordeiro retruca
com a verdade dos fatos, num episódio que em tudo se aparenta à interpelação jurídica. O
direito fracassa diante da força, é por ela inteiramente vergado, demonstrando, como
proclamam os versos iniciais da fábula, que “a razão do mais forte é sempre a melhor”67, pois
o lobo devora o cordeiro “sem outra forma de processo”68. Nada distinto do que Hobbes
sustenta, mais adiante em Do Cidadão, a respeito do estado perpétuo de guerra que as cidades
entretêm, já que “estão em guerra [...] todos aqueles que não se juntaram na unidade de uma
pessoa”69.

Ainda na Epístola, Hobbes, apoiando-se no que o povo romano dizia e também em


dados históricos, tece uma comparação entre os soberanos e os animais de rapina – apenas
para concluir que, dada sua violência conquistadora, também o próprio povo era “uma fera
igualmente rapace”70. A Introdução do Leviatã é da mesma forma dedicada a traçar uma
extensa analogia entre o Estado e o homem artificial, recuperando a tensão entre a natureza e

66
HOBBES, T. 2002, P. 3.
67
Tradução minha a partir de LA FONTAINE, J. Fables choisies. Tome 1, mise en vers par J. de La Fontaine.
1755-1759, P. 20. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1049428h/f100. Última visualização:
14/09/2021 às 15h51min.
68
Ibid.
69
HOBBES, T. 2002, P. 324.
70
Ibid.
347

o domínio da política e, com ela, a marca animalesca do Estado, ele mesmo descrito como
um grande leviatã:

Assim como em tantas outras coisas, a Natureza (a arte mediante a qual Deus fez e
governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível
fazer um animal artificial. Pois, considerando que a vida não passa de um movimento
dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, por que não
poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem por meio de
molas e rodas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? Pois o que é o
coração, senão uma mola; e os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas, senão
outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado
pelo Artífice? E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais
excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande
LEVIATÃ a que se chama REPÚBLICA, ou ESTADO (em latim CIVITAS), que não
é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem
natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. (HOBBES, T. 2019, P. 11)

Todas estas comparações poderiam, é verdade, ser rebaixadas à categoria de


metáforas e analogias explicativas. A recorrência delas no pensamento hobbesiano, o qual já
possuía, como vimos, uma estranha definição de natureza, tanto quanto sua proliferação nas
diversas narrativas canônicas, devem nos fazer no mínimo desconfiar da fábula que a história
da filosofia conta sobre si própria. O animal retorna como fantasma para assombrar e ditar as
regras das concepções caras à política: do soberano ao fundamento do Estado, passando pelo
comportamento das cidades entre si, impera a lógica da guerra; e onde há direito há,
igualmente, força impositiva. Isto seria ao menos interessante para nos dar um panorama
mais crítico da história da filosofia e ao mesmo tempo para repensar os mitos de origem da
filosofia política, evidenciando relações que, apesar de si própria, a política não cessa de
alimentar desde o momento de sua constituição.

Cabe acrescentar uma última referência à nossa enumeração – a qual carrega algo de
inesperado, mas que já é ligeiramente conhecida por nós. A argumentação de Hobbes a
respeito da paz das agregações das bestas nos encaminha a um trecho de Spinoza em que uma
estranha descontinuidade entre o homem e a natureza surge, cujas metáforas não parecem ser
tampouco gratuitas:

Da cidade cujos súditos, transidos de medo, não pegam em armas, deve antes dizer-se
que está sem guerra do que dizer-se que tem paz. Porque a paz não é ausência de
guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de ânimo: a obediência, com efeito (pelo
art. 19, cap. II), é a vontade constante de executar aquilo que, pelo decreto comum da
cidade, deve ser feito. Além disso, aquela cidade cuja paz depende da inércia dos
súditos, os quais são conduzidos como ovelhas, para que aprendam só a servir, mais
corretamente se pode dizer uma solidão do que uma cidade.

Quando, por conseguinte, dizemos que o melhor estado é aquele onde os homens
passam a vida em concórdia, entendo a vida humana, a qual não se define só pela
circulação do sangue e outras coisas que são comuns a todos os animais, mas se
348

define acima de tudo pela razão, verdadeira virtude e vida da mente. (Grifos meus.
ESPINOSA, B. 2009, P. 44-45; G III, 296)

É o domínio do animal, descontínuo em relação ao homem ao menos na esfera da


política, análogo à exterioridade teológica inclusive no pensamento de Spinoza? A resposta
deveria considerar um número maior de passagens e de conceitos, mas certamente envolveria
uma escolha entre, de um lado, solucionar o dilema da transcendência da política –
semelhante ao problema, enfrentado por muitos71, da artificialidade da lógica contratualista,
surpreendentemente reivindicada por Spinoza em muitos momentos de sua argumentação – e,
de outro, optar por permanecer nele, retirando as implicações produtivas desta fratura.

Abelhas, formigas, leões, raposas, lobos, leviatãs e ovelhas: eis o bestiário da


filosofia política ocidental. Os níveis de tensão entre exterioridade e interioridade se
proliferam: Schmitt e Agamben o concluíram a partir do modo como a exceção deve a todo
tempo alimentar e fundamentar a normalidade, e o próprio soberano será o índice máximo
desta topologia. Em nossa investigação, procuramos mostrar como a política não pode tão
facilmente se desfazer da teologia, traduzida, aqui, em exterioridade, e isto nem mesmo no
pensamento de Spinoza, o qual se vê a todo tempo comprometido com a reinserção da
exterioridade na imanência, de tal forma que ela não sirva à perpetuação da dominação.
Agora, vemos que mais uma exterioridade se impõe: aquela da esfera do mundo natural e
consequentemente a dos conceitos ordinariamente associados à animalidade, tais como a
brutalidade, a força e a imposição de poder por vias violentas e ilegítimas. Enquanto
exercício crítico de nós mesmos, esta análise pode sugerir que a violência é um componente
ativo da política lá onde ela se traveste de direito. E que, aceitando esta constituição,
estratégias de resistência devem considerar uma nova relação com a animalidade, tanto
quanto, sugerimos, uma nova relação com a religião – a qual consiste em pensar aquilo que é
considerado um problema ou uma falência ativamente.

71
Já fizemos referência a este problema, tanto quanto a uma bibliografia sobre, no Capítulo 4.
349

Bibliografia.

I. Obras de Spinoza

a. Em latim

SPINOZA, B. Opera. 4 volumes. Editado por Carl Gebhardt. Heidelberg: Carl Winters, 1925.

b. Em português

SPINOZA, B. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009a.

ESPINOSA, B. Tratado Político. Tradução, introdução e notas Diogo Pires Aurélio. Revisão
de Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2009b.

_________. Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Tradução e notas de


Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Introdução de Emanuel
Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Prefácio de Marilena Chaui. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2014a.

SPINOZA, B. Obra completa II. Correspondência completa e vida. Tradução e notas de J.


Guinsburg e Newton Cunha. Organização de J. Guinsburg, Newton Cunha e Roberto
Romano. São Paulo: Perspectiva, 2014b.

ESPINOSA, B. Ética. Tradução Grupo de Estudos Espinosanos; coordenação Marilena


Chaui. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015a.

_________. Princípios da Filosofia Cartesiana e Pensamentos Metafísicos. Tradução


Homero Santiago, Luís César Guimarães Oliva. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015b.

_________. Tratado da Emenda do Intelecto. Tradução de Cristiano Novaes de Rezende.


Campinas: Editora da Unicamp, 2015c.

_________. Tratado Teológico-Político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires


Aurélio. 4ª edição. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s.a, 2019.
350

_________. Correspondência entre Espinosa e Oldenburg. Tradução, apresentação, estudo,


preparação do texto latino e notas Samuel Thimounier Ferreira. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2021.

c. Em francês

SPINOZA, B. Œuvres I-IV. Présentation, traduction et notes par Charles Appuhn. Paris: GF
Flammarion, 1964-1966.

_________. Correspondance. Traduction, présentation, notes, dossier, bibliographie et


chronologie par Maxime Rovere. Paris: GF Flammarion, 2010.

_________. Œuvres V. Traité Politique. Texte établi par Omero Proietti. Traduction,
introduction, notes, glossaires, index et bibliographie par Charles Ramond. Avec une notice
de Pierre-François Moreau et des notes d’Alexandre Matheron. Paris: PUF, 2015.

_________. Œuvres III. Traité Théologico-Politique. Texte établi par Fokke Akkerman.
Traduction et notes par Jacqueline Lagrée et Pierre François Moreau. Paris: PUF, 2016.

d. Em espanhol

_________. Tratado de la reforma del entendimiento. Principios de la filosofía de Descartes.


Pensamientos Metafísicos. Introducción, traducción, notas e índices de Atilano Domínguez.
Madrid: Alianza Editorial, 1988a.

_________. Correspondencia. Introducción, traducción, notas e índices de Atilano


Domínguez. Madrid: Alianza Editorial, 1988b.

_________. Compendio de gramática de la lengua hebrea. Introducción, traducción y notas


de Guadalupe González Diéguez. Madrid: Editorial Trotta, 2005.

II. Edições da Bíblia consultadas

Bíblia de Jerusalém. Direção editorial de Paulo Bazaglia. Coordenação editorial de José


Bortolini. Diagramação de Vittorio Saraceno. Coordenação gráfica de Arno Brustolin.
Impressão e acabamento PAULUS. São Paulo: Paulus, 2016.
351

Bíblia, volume I: Novo Testamento. Os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação


e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Bíblia, volume II : Novo Testamento. Apóstolos, Epístolas, Apocalipse. Tradução do grego,


apresentação e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Bíblia, volume III: Antigo Testamento. Os Livros Proféticos. Tradução do grego,


apresentação e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

III. Demais livros e artigos consultados

ABENSOUR, M. « Spinoza et l’épineuse question de la servitude volontaire ». In : Astérion,


13, 2015. URL : http://journals.openedition.org/asterion/2594 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/asterion.2594.

ACADÉMIE FRANÇAISE. Le dictionnaire de l'Académie françoise, dédié au Roy. T. 1.


A-L. Paris: Vve J. B. Coignard et J. B. Coignard, 1694. Disponível online em:
https://www.dictionnaire-academie.fr/.

ADAM, M. « La signification du miracle dans la pensée de Pascal ». In: Revue Philosophique


de la France et de l'Étranger, T. 171, No. 4 (Octobre-Décembre 1981), pp. 401-423.

AGAMBEN, G. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

_________. O reino e a glória. Uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo


Sacer, II, 2. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011.

_________. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014a.

_________. Altíssima pobreza. Regras monásticas e formas de vida. Tradução de Selvino J.


Assmann. São Paulo: Boitempo, 2014b.

_________. Nudez. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.

_________. O tempo que resta. Um comentário à Carta aos Romanos. Tradução de Davi
Pessoa e Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
352

_________. O Aberto. Tradução de Pedro Mendes. Revisão de tradução de Giuseppe Coco e


Izabela D’Urço. Revisão técnica de Joel Birman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2017a.

_________. O uso dos corpos. Homo Sacer, IV, 2. Tradução de Selvino J. Assmann. São
Paulo: Boitempo, 2017b.

AKKERMAN, F. HUBBELING, H. G. “The preface to Spinoza's posthumous works, 1677,


and its author Jarig Jelles (c. 1619/20-1683)”. In : Lias, Lovaina, n. 6, p. 103-173, 1979.

_________. “Le caractère rhétorique du Traité théologico politique”. In: Cahiers de


Fontenay, Fontenay-aux-Roses, no 36 a 38, mars 1985, p.381-390.

ALBARELLI, G. Do conceito de indivíduo à figura do estrangeiro na filosofia política de


Spinoza. (Tese de doutorado). Rio de Janeiro, PPGLM/UFRJ, 2019. Disponível em:
https://ppglm.files.wordpress.com/2019/05/tese-bruno-de-andrade-albarelli.pdf.

_________. “Latência e Servidão Voluntária: A oposição radical entre Espinosa e La Boétie”.


In : Revista Seiscentos, vol. 1, 2021.

ALTHUSSER, L. Positions (1964-1975). Paris : Les Éditions sociales, 1976.

ANDRADE, F.S. Samuel Beckett. O silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

ANDRIOPOULOS, S. Possuídos. Crimes hipnóticos, ficção corporativa e invenção do


cinema. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

ANÔNIMO. LUCAS, J.M. Tratado dos três impostores. A vida e o espírito de Baruch de
Espinosa. Tradução de Éclair Antonio Almeida Filho. Introdução de José R. Maia Neto e
notas de Regina Schöpke. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ARANOVICH, P. F. Di Fortuna e Dell´Occasione 1, di Niccolò Machiavelli. Cadernos De


Ética E Filosofia Política, 1(18), 231-247, 2011. Recuperado de
https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/55731.

ARISTÓTELES. Política. Tradução e notas António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho


Gomes. Lisboa: Vega, 1988.
353

_________. Metafísica. Volume II. Texto grego com tradução ao lado. Ensaio introdutório,
texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. São
Paulo: Edições Loyola, 2015.

ARMOGATHE, J.R. « Les deux livres ». In : Revue de Théologie et de Philosophie.


Troisième série, Vol. 133, No. 3, La Bible à la croisée des savoirs (2001), pp. 211-225 (15
pages).

ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Tradução de Monica
Stahel e Teixeira Coelho.

BACON, F. The New Organon. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

BADIOU, A. São Paulo. A fundação do universalismo. Tradução de Wanda Caldeira Brant.


São Paulo: Boitempo, 2009.

BAILLET, A. Vie de Monsieur Descartes. Paris: Éditions de La Table Ronde, 1946.

BALIBAR, E. Spinoza et la politique. Paris : PUF, 2015.

BARROS, D.F. “Marilena Chaui, pensadora contemporânea do teológico-político”. In:


Cadernos Espinosanos, (37), 125-145, 2017.
https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2017.137716.

BARTHES, R. A aventura semiológica. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

_________. Crítica e verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. Revisão: Geraldo Gerson de


Souza. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BAYLE, P. Écrits sur Spinoza. Paris : Berg International Éditeurs, 1983.

_________. Pensées diverses sur la comète. Paris : Flammarion, 2007.

BECKETT, S. O Inominável. Tradução de Ana Helena Souza. Prefácio de João Adolfo


Hanse. São Paulo: Globo, 2009.
354

_________. Murphy. Tradução, texto e notas de Fábio de Souza Andrade. Prefácio de Nuno
Ramos. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

_________. Companhia. Tradução Elsa Martins. Ilustrações Jader Marques Filho. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1982.

_________. Quad et autres pièces pour la télévision. Suivi de L’épuisé par Gilles Deleuze.
Lonrai : Les Éditions de Minuit, 1992.

_________. Molloy. Tradução e prefácio de Ana Helena Souza. São Paulo: Editora Globo,
2014.

BEGLEY, B. “Naturalism and its political dangers: Jakob Thomasius against Spinoza's
Theological-Political Treatise. A study and the translation of Thomasius’ text”. In: The
Seventeenth Century, Volume 34, 2019 - Issue 5, Ps. 1-22.

BENITEZ, M. « La Diffusion Du ‘Traité Des Trois Imposteurs’ Au XVIIIe Siècle » In :


Revue D'histoire Moderne Et Contemporaine (1954-), vol. 40, no. 1, 1993, pp. 137–151.

BENJAMIN, W. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

BERLIN, I. Liberty. Incorporating Four Essays on Liberty. Edited by Henry Hardy. Oxford:
Oxford University Press, 2002.

BERNHARD, T. O imitador de vozes. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia


das Letras, 2009.

BERTI, S. CHARLES-DAUBERT, F. POPKIN, R.H. (eds). Heterodoxy, Spinozism, and Free


Thought in Early-Eighteenth-Century Europe. Studies on the Traité des Trois Imposteurs.
Springer Netherlands: 1996.

BEYSSADE, J.M. Études sur Descartes. L’histoire d’un esprit. Paris: Éditions du Seuil,
2001.

BEYSSADE, M. “A doutrina da liberdade de Descartes: Diferenças entre os textos francês e


latino da Quarta Meditação”. In : Analytica - Revista de Filosofia, 13 (2), 2013, P. 225-242.
355

BIZUB, E. Beckett et Descartes dans l’œuf. Aux sources de l’œuvre beckettienne : de


Whoroscope à Godot. Paris : Classiques Garnier, 2012.

BLANCHOT, M. Le livre à venir. Paris: Gallimard, 1959.

_________. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

BOVE, L. La stratégie du conatus. Affirmation et résistance chez Spinoza. Paris: Vrin, 1996

_________. « Le « retour aux principes » de l’État de Moïse. Éléments pour une lecture
politique et matérialiste de l'enseignement du Christ chez Spinoza ». In : Revista Conatus -
Filosofia De Spinoza (ISSN 1981-7509), 2009, 4(8), 73–82.

CAVAILLÉ, J.P. « Hypocrisie et Imposture dans la querelle du Tartuffe (1664-1669) : La


Lettre sur la comédie de l’imposteur (1667) », Les Dossiers du Grihl [Online], Les dossiers
de Jean-Pierre Cavaillé, Libertinage, athéisme, irréligion. Essais et bibliographie, Online
since 09 June 2007, conexão em 22 de fevereiro de 2021. URL :
http://journals.openedition.org/dossiersgrihl/292.

CHAUI, M. “O retorno do teológico-político”. Disponível em:


http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/o_retorno_do_teologico.pdf, 1988.

_________. “Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológico-político”. In :


Filosofia Política Contemporãnea: Controvérsias sobre Civilização, Império e Cidadania.
Atilio A. Boron, 1a ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales -
CLACSO; São Paulo: Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. ISBN-13: 978-987-1183-40-1, 2006.

_________. A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa. Volume II: Liberdade.


São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

_________. “Theological-Political Power: Spinoza against Schmitt”. In : Crisis and Critique.


Volume 8, Issue 1, (9-8-2021). Edited by Agon Hamza & Frank Ruda. P. 76-91.

CHESNER, M. M. “Spinoza’s Death Mask, and Reflections on Working at the RBML.


Disponível em:
356

https://blogs.cul.columbia.edu/jewishstudiesatcul/2021/07/29/spinozas-death-mask-and-reflec
tions-on-working-at-the-rbml/.

COETZEE, J.M. Ensaios recentes: Textos sobre literatura (2006-2017). Tradução de Sérgio
Flaksman. São Paulo: Editora Carambaia, 2020.

COLERUS, J. Vida de Spinoza. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso. Disponível


em: http://benedictusdespinoza.pro.br/biografias-de-spinoza-colerus.html.

_________. LUCAS, J.M. Vies de Spinoza. Paris: Editions Allia, 2007.

CONSTANT, B. Œuvres politiques de Benjamin Constant. Avec Introduction, Notes et Index


par Charles Louandre. Paris : Charpentier et Cie, Libraires-Éditeurs, 1874.

CURLEY, E. “Spinoza’s exchange with Albert Burgh”. In : MELAMED, Y. ROSENTHAL,


M. (eds.), Spinoza's 'Theological-Political Treatise': A Critical Guide (Cambridge Critical
Guides, pp. 11-28). Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
doi:10.1017/CBO9780511781339.002.

CURTIUS, E.R. Literatura Europeia e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro Cabral.
Com a colaboração de Paulo Rónai. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

DEFOE, D. A Journal of the Plague Year. Edited with an Introduction and Notes by Cynthia
Wall. Penguin Books: London, 2003.

DEJEAN, J. Antigos contra Modernos. As Guerras Culturais e a construção de um fin de


siècle. Tradução de Zaida Maldonado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

DELASSUS, E. « Le suicide de Spinoza : un problème éthique et philosophique. ». In : ¿


Interrogations ?, N°15. Identité fictive et fictionnalisation de l’identité (I), décembre 2012 [en
ligne], http://www.revue-interrogations.org/Le-suicide-de-Spinoza-un-probleme.

DELEUZE, G. Cours sur Spinoza. Transcrito por Larrieu Suzanne e Véronique Boudon.
1980-1981. Disponível em: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=26.

_________. GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto


Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
357

_________. Espinosa. Filosofia prática. Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins.
Revisão técnica de Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes. São Paulo: Escuta, 2002.

_________. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011.

_________. Lettres et autres textes. Paris : Les Éditions de Minuit, 2015.

_________. Cartas e outros textos. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Edição preparada por
David Lapoujade. São Paulo: n-1 edições, 2018.

DERRIDA, J. Marges de la Philosophie. Paris : Les Éditions de Minuit, 1972.

_________. Margens da filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M.


Magalhães. Revisão técnica de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991.

_________. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova


Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

_________. A besta e o soberano (Seminário). Vol I (2001-2002). Tradução de Rio de


Janeiro: Via Verita, 2016.

_________. Força de lei. O “Fundamento místico da autoridade”. Tradução de Leyla


Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2018a.

_________. VATTIMO, G. (org.). A religião: o seminário de Capri. COm a participação de


Maurizio Ferraris ... [et al.]. São Paulo: Liberdade, 2018b.

DESCARTES, R. Œuvres de Descartes (11 vols). Publiées par Charles Adam et Paul
Tannery. Paris : Vrin, 1996.

_________. Discurso do Método. Meditações. Objeções e Respostas. As Paixões da Alma.


Cartas. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973.

_________. Regras para a Direção do Espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70,
2002a.
358

_________. Princípios da Filosofia. Tradução de Guido Antônio de Almeida (coordenador),


Raul Landim Filho, Ethel M. Rocha, Marcos Gleizer e Ulysses Pinheiro. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2002b.

_________. “Carta de Descartes a Mersenne. Amsterdam, 15 de abril de 1630”. In :


Modernos & Contemporâneos - International Journal of Philosophy [issn 2595-1211], v. 1,
n. 2, 9 set. 2018.

DEVILLAIRS, L. Descartes, Leibniz. Les vérités éternelles. Paris: PUF, 1998.

DE WITT, D. “Rembrandt and the Climate of Religious Conflict in the 1620s”. In : 51. Bd.,
Beiheft. Rembrandt — Wissenschaft auf der Suche. Beiträge des Internationalen
Symposiums Berlin — 4. und 5. November 2006 (2009), pp. 17-24 (8 pages).

DONOSO GOMÉZ, M. “Imitación e identificación en la teoría spinozista de los afectos”. In:


Revista de Filosofía, 44 (1), 9-24, 2019.

DUFLO, C. La finalité dans la nature. De Descartes à Kant. Paris : PUF, 1996.

ESSLIN, M. The Theatre of the Absurd. New York, Vintage Books, 2004.

FERREIRA, B. O Risco do Político. Crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento


de Carl Schmitt. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

FERREIRA, S. T. “Epístolas: Espinosa e Boxel”. In : Cadernos Espinosanos, (35), 2016, P.


523-571. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2016.114992.

_________. A correspondência entre Espinosa e Henry Oldenburg. (Dissertação de


mestrado). São Paulo: USP/FFLCH, 2019. Disponível em:
https://doi.org/10.11606/D.8.2019.tde-04092019-122952.

FONTANIER, J.M. Vocabulário latino da filosofia. De Cícero a Heidegger. Tradução de


Álvaro Cabral. Revisão da tradução de Maria Fernanda Alvares. Revisão técnica Jacira de
Freitas. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

FORCE, J. POPKIN, R. (ed). The books of nature and Scripture. Dordrecht : Kluwer
Academic, 1994.
359

FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris : Éditions Gallimard, 1966.

_________. L’archéologie du savoir. Paris : Éditions Gallimard, 1969.

_________. Surveiller et punir. Paris : Éditions Gallimard, 1975.

_________.« Qu'est-ce qu'un auteur ? ». In : Dits et Écrits, Tome I. Paris : Éditions


Gallimard, 1994. Texte n°69, P. 789-821.

_________.« Il faut défendre la société ». Cours au Collège de France, 1975-1976. Édition


établie, dans le cadre de l’Association pour le Centre Michel Foucault, sous la direction de
François Rwald et Alessandro Fontana, par Mauro Bertani et Alessandro Fontana. Paris:
Seuil/Gallimard, 1997.

_________. Ditos e Escritos II. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de
Pensamento. Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Tradução de Elisa
Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

_________. Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France. 1978-1979. Édition


établie sous la direction de François Ewald et Alessandro Fontana, par Michel Senellart.
Paris: Gallimard/Seuil, 2004.

_________. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Eduardo Jardim e Roberto


Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013.

FRAENKEL, C. “Spinoza on Miracles and the Truth of the Bible”. In: Journal of the History
of Ideas, Volume 74, Number 4, October 2013, pp. 643-658.

FRANKEL, S. “Politics and Rhetoric: The Intended Audience of Spinoza's "Tractatus


Theologico-Politicus". In : The Review of Metaphysics, Vol. 52, No. 4 (Jun., 1999), pp.
897-924).

_________. “The Invention of Liberal Theology: Spinoza's Theological-Political Analysis of


Moses and Jesus”. In : The Review of Politics, Vol. 63, No. 2 (Spring, 2001), pp. 287-315.

FRATESCHI, Y. A física da política. Hobbes contra Aristóteles. Campinas: Editora


UNICAMP, 2008.
360

GAFFIOT, F. Dictionnaire Latin Français. Paris : Hachette, 1934. Recuperado de:


https://www.lexilogos.com/latin/gaffiot.php.

GALILEI, G. O Ensaiador. In : BRUNO, G. GALILEI, G. TOMMASO, C. Sobre o infinito,


o universo e os mundos. O Ensaiador. A cidade do sol. Traduções de Helda Barraco, Nestor
Deola e Aristides Lôbo. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

_________. Ciência e fé. Cartas de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com a
Bíblia. Organização e tradução de Carlos Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Editora
UNESP, 2009.

GARBER, D. “Religion and the Civil State in the Tractatus Politicus”. In : MELAMED, Y.
SHARP, H. (eds). Spinoza's Political Treatise. A Critical Guide. Cambridge, Cambridge
University Press: 2018.

GAUCHET, M. Le désenchantement du monde. Paris: Éditions Gallimard, 1985.

GIRARD, R. VATTIMO, G. Christianisme et modernité. Paris : Flammarion, 2014.

GLEIZER, M.A. Lições introdutórias à Ética de Espinosa. Rio de Janeiro: Via Verita, 2013.

GOOTJES, A. “The First Orchestrated Attack on Spinoza: Johannes Melchioris and the
Cartesian Network in Utrecht”. In: Journal of the History of Ideas, Volume 79, Number 1,
January 2018, pp. 23-43.

GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons. I : L’âme et Dieu. Paris : Aubier, 1968.

_________. Spinoza I. Dieu. (Éthique, I). Paris : Aubier-Montaigne, 1969.

_________. “The History of Philosophy as a Philosophical Problem”. In: The Monist, Vol.
53, No. 4, Philosophy of the History of Philosophy (October, 1969), pp. 563-587.

_________. « La méthode en histoire de la philosophie ». In : Philosophiques, vol. 1, n° 1,


1974, p. 7-19.

_________. Philosophie de l’histoire de la philosophie. Paris : Aubier Montaigne, 1979.


361

_________. “O método em história da filosofia”. In : SKÉPSIS, ISSN 1981-4194, Ano VIII,


Nº 12, 2015. P. 160-170.

HARVEY, W.Z. “Spinoza on Biblical Miracles”, In: Journal of the History of Ideas, Vol. 74,
No. 4 (October 2013), pp. 659-675.

HERVET, C. De l’imagination à l’entendement. La puissance du langage chez Spinoza. Paris


: Classiques Garnier, 2012.

_________. « Puissance et pouvoir de la parole. Judith Butler au prisme de l'anthropologie


spinoziste du langage ». In : Revista Seiscentos. Vol 1, n. 1, 2021.

HOBBES, T. Do Cidadão. Tradução, Apresentação e Notas de Renato Janine Ribeiro. São


Paulo: Martins Fontes, 2002.

_________. Leviatã. Ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil.


Organizado por Richard Tuck. Edição brasileira supervisionada por Eunice Ostrensky.
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Tradução do aparelho
crítico por Claudia Berliner. Revisão da tradução por Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins
Fontes, 2019.

HORSLEY, R. Jesus e o Império. O Reino de Deus e a nova desordem mundial. Tradução de


Euclides Luiz Calloni. São Paulo: Paulus, 2004.

_________. Jesus e a espiral da violência. Resistência judaica popular na Palestina romana.


Tradução de Monika Ottermann. São Paulo: Paulus, 2010.

ISRAEL, J. The Dutch Republic : Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford, Oxford
University Press: 1995.

_________. Radical Enlightenment: Philosophy and the Making of Modernity 1650-1750.


Oxford: Oxford University Press, 2001.

_________. A Revolution of the Mind. Radical Enlightenment and the Intellectual Origins of
Modern Democracy. Princeton: Princeton University Press, 2010.
362

JELLES, J. Professione della fede universale e cristiana, contenuta in una lettera a N.N.
Belydenisse des algemeenen en christelyken geloofs, vervattet in een Brief aan N.N. A cura di
Leen Spruit. Roma: Edizioni Quodlibet, 2004.

_________. Préface aux Oeuvres Posthumes de Spinoza. Traduit du néerlandais par Louis
Meyer. Traduit du latin et précédé de “Le salut par l’Éthique” par Bernard Pautrat. Paris :
Éditions Allia, 2017.

KAJANTO, L. “Aspects of Spinoza’s Latinity”. In : Arctos Acta Philologica Fennica 13, p.


49-83, 1979.

KENNER, H. Samuel Beckett. A Critical Study. New York: Grove Press, 1961.

KIM, E. « Suicide, conatus et conflictualité chez Spinoza ». In: Astérion [En ligne], 23, 2020.
URL : http://journals.openedition.org/asterion/5222.

KOLAKOWSKI, L. Chrétiens sans Église. La Conscience religieuse et le lien confessionnel


au XVIIe siècle. Traduit du polonais par Anna Posner. Paris: Gallimard, 1987.

KREMER, N. SERMAIN, J-P. TRAN-GERVAT, Y-M. (eds.). Imposture et fiction dans les
récits d'Ancien Régime. Paris: Éditions Hermann, 2016.

LA BOÉTIE, E. Discurso da servidão voluntária. Tradução de Laymert Garcia dos Santos.


Comentários de Claude Lefort, Pierre Clastres e Marilena Chaui. Sâo Paulo: Editora
Brasiliense, 1982.

LACROIX, J. Spinoza et le problème du salut. Paris : PUF, 1970.

LAERKE, M. “Jus circa sacra. Elements of Theological Politics in 17th Century Rationalism:
From Hobbes and Spinoza to Leibniz”. In : Distinktion: Scandinavian Journal of Social
Theory, 6:1, 2005, 41-64.

_________.“La controverse de Grotius, Hobbes et Spinoza sur le jus circa sacra. Textes,
prétextes, contextes et circonstances”. In: Revue de synthèse : TOME 137, 6e Série, N° 3-4,
2016.
363

_________. “Spinoza on National Religion”. In : MELAMED, Y. SHARP, H. (eds).


Spinoza's Political Treatise. A Critical Guide. Cambridge, Cambridge University Press: 2018.

LA FONTAINE, J. Fables choisies. Tome 1, mise en vers par J. de La Fontaine. 1755-1759,


P. 20. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1049428h/f100.

LAGRÉE, J. « Le thème des deux livres de la Nature et de l’Écriture ». In : L’Écriture sainte


au temps de Spinoza et dans le système spinoziste. T & D, 4, 1992, P. 11-37.

_________. Spinoza et le débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2004.

LAUX, H. Imagination et religion chez Spinoza. Paris: Vrin, 1993.

_________. “Le Traité théologico-politique dans la correspondance de Spinoza”. In : Revue


de Métaphysique et de Morale, No. 1, Correspondance de Spinoza (JANVIER-MARS 2004),
pp. 41-57.

_________. « Le Christ et la politique chez Spinoza ». In : La Pensée. 2019/, N° 398, Ps.


74-85.

LAVAERT, S. “The Traité des trois imposteurs: a philosophical plot, or (re)translation as


strategy of Enlightenment". In : Cadernos de Tradução. 2019, vol.39, n.1, pp.73-93.

LEEUWEN, T.M. (et. al) (ed). Arminius, Arminianism, and Europe. Jacobus Arminius
(1559/60–1609). Leiden, Boston, Brill : 2009.

LEIBNIZ, G.W. Essais de Théodicée. Paris: GF Flammarion, 1969.

_________. Discours de métaphysique suivi de Monadologie. Paris: Gallimard, 1995.

_________. Discurso de metafísica e outros textos. Apresentação e notas de Tessa Moura


Lacerda. Tradução de Marilena Chaui e Alexandre da Cruz Bonilha. Revisão de Tessa Moura
Lacerda e Márcia Valéria Martinez de Aguiar .São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza. La première partie. La nature des


choses. Paris : PUF, 1998.
364

_________. « Spinoza et le problème de l’obéissance ». 2018. Disponível em:


https://philolarge.hypotheses.org/2387.

_________. « Spinoza et la simple obéissance ». 2019. Disponível em:


https://philolarge.hypotheses.org/2501.

MAESSCHALCK, M. « L’imaginaire théologico-politique. Ou de l’obéissance comme


source de puissance ». In : Presses Universitaires de France. « Les Études philosophiques ».
2015/2 n° 113, P. 283-308.

MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São


Paulo: Editora 34, 2017.

MATHERON, A. Le Christ et le salut des ignorants chez Spinoza. Paris : Aubier-Montaigne,


1971.

_________. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988.

_________. Études sur Spinoza et les philosophies de l'âge classique. Lyon: ENS Éditions,
2011.

MAUPASSANT, G. 125 contos de Guy de Maupassant. Escolhidos por Noemi Moritz Kon e
traduzidos por Amilcar Bettega. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MÉCHOULAN, H. Les juifs du silence au Siècle d’Or espagnol. Paris: Albin Michel, 2003.

MELAMED, Y. ROSENTHAL, M. (eds). Spinoza’s Theological-Political Treatise: A Critical


Guide. Cambridge: Cambridge University Press.

MEYER, L. La Philosophie Interprète de L’Écriture Sainte. Traduction du Latin, notes et


présentation par Jacqueline Lagrée et Pierre-François Moreau. Paris: Intertextes éditeur,
1988.

MILNER, J.C. Les penchants criminels de l’Europe démocratique. Paris : Verdier, 2003.

_________. Le sage trompeur. Libres raisonnements sur Spinoza et let Juifs. Court traité de
lecture I. Lagrasse: Éditions Verdier, 2013.
365

MINTZ, S. I. “Beckett’s Murphy: A Cartesian Novel”. In :Perspective, 2, 3 (1959),


pp.156-65.

MIQUEAU, C. « L'amour de la patrie. À propos de la singularité de l'État mosaïque. ». In :


JAQUET, C. (et al.). Spinoza, philosophe de l’amour. Saint-Étienne : Publications de
l’Université de Saint-Étienne, 2005.

MISRAHI, R. « Spinoza face au christianisme ». In : Revue Philosophique de la France et de


l'Étranger, T. 167, No. 2, Spinoza (I) (Avril-Juin 1977), pp. 233-268.

MOLIÈRE. Le Tartuffe, ou l'Imposteur, comédie en 5 actes et en vers de Molière. Paris: J.-N.


Barba, 1825. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k135033f.

_________. O Tartufo. O Misantropo. Tradução de Jenny Klabin Segall. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.

MONOD, J.C. La querelle de la sécularisation. De Hegel à Blumenberg. Paris: Vrin, 2002.

MONTAIGNE, M. Ensaios. Tradução e notas de Sérgio Milliet. Revisão técnica e notas


adicionais de Edson Querubini. Apresentação de Andre Scoralick. São Paulo: Editora 34,
2016.

MOREAU, P.F. Spinoza. L’expérience et l'éternité. Paris : PUF, 1994.

_________. « Loi divine et loi naturelle selon Hobbes ». In : Revue Internationale de


Philosophie, Vol. 33, No. 129, HOBBES (1679-1979) (1979), pp. 443-451.

_________.“Sacerdos levita pontifex: les prêtres dans le lexique du Traité


théologico-politique”. In: Kairos, 11 (1998) 33–40.

_________. « Les origines du christianisme dans le Traité théologico-politique ». In : La


Pensée, vol. 398, no. 2, 2019, pp. 52-62.

MORRISON, J.C. “Spinoza and history”. In : KENNINGTON, R (ed.). The Philosophy of


Baruch Spinoza. Washington, D.C. : The Catholic University of America Press, 2018.
P.173-195.
366

MOSS, J.D. "Galileo's Letter to Christina: Some Rhetorical Considerations”. In :


Renaissance Quarterly, Vol. 36, No. 4 (Winter, 1983), pp. 547-576).

MOURA, C.A.R. “História Stultitiae e História Sapientiae”. In : Discurso, [S. l.], n. 17, p.
151-172, 1988. DOI:10.11606/issn.2318-8863.discurso.1988.37935.

MÜLLER, U.B. A encarnação do Filho de Deus. Concepções da encarnação no cristianismo


incipiente e os primórdios do docetismo. Tradução de Werner Fuchs. São Paulo: Edições
Loyola, 2004.

NADLER, S. Spinoza. A life. Cambridge, Cambridge University Press: 1999.

_________. A book Forged in Hell. Spinoza’s Scandalous Treatise and the Birth of the
Secular Age. Princenton and Oxford: Princeton University Press: 2011.

_________. “Scripture and Truth: A Problem in Spinoza's ‘Tractatus Theologico-Politicus’”.


In: Journal of the History of Ideas, Vol. 74, No. 4 (October 2013), pp. 623-642.

NEGRI, A. Espinosa subversivo e outros escritos. Tradução Herivelto Pereira de Souza.


Seleção de textos, revisão técnica e apresentação de Homero Santiago. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2016.

_________. A anomalia selvagem. Poder e potência em Espinosa. Tradução de Raquel


Ramalhete. Prefácios de Gilles Deleuze, Pierre Macherey e Alexandre Matheron. Posfácios
de Antonio Negri e Marilena Chaui. São Paulo: Editora 34, 2018.

NEHRBASS, D. Praying Curses: The Therapeutic and Preaching Value of the Imprecatory
Psalms. Eugene: Pickwick Publications, 2013.

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza.


São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

NOBBS, D. Theocracy and Toleration: A Study of the Disputes in Dutch Calvinism from
1600 to 1650. Cambridge, Cambridge University Press : 2012.

PASCAL, B. Pensées. Édition présentée, établie et annotée par Michel Le Guern. Paris :
Gallimard, 1977.
367

PINHEIRO, U. “Servidão e acrasia segundo Espinosa”, In : O que nos faz pensar, [S.l.], v.
14, n. 18, p. 195-212, sep. 2004. Disponível em:
http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/195.

_________. “Acrasia, metamorfoses e o suicídio de Sêneca na Ética de Espinosa”. In :


Analytica, Rio de Janeiro, vol 12 nº 2, 2008, p. 199-244.

_________. “A heresia oculta de Espinosa. Meditações sobre a morte na Ética”, In :


Analytica. Rio de Janeiro, vol 14 nº 1, 2010, p. 217-242.

_________. “Espinosa e o leitor da posteridade. Exame crítico da interpretação de Leo


Strauss do Tratado Teológico-Político”. In : Kléos, n .15, P. 115-133, 2011.

_________. Descartes e o ódio à escrita. Curitiba: Kotter Editorial, 2019.

PLATÃO. Fedro. Tradução e apresentação de José Cavalcante de Souza. Posfácio e notas de


José Trindade Santos. São Paulo: Editora 34, 2016.

PROIETTI, O. “Adulescens luxu perditus Classici Latini Nell’Opera di Spinoza”. In : Rivista


di Filosofia Neo-Scolastica 77, n. 2 (aprile-giugno 1985), p. 210-257.

PUGLIESE, N. “The Reception of Classical Latin Literature in Early Modern Philosophy: the
case of Ovid and Spinoza”. In : Archai, n. 25, Brasília, 2019, e02502.

RAMOND, C. Le vocabulaire de Derrida. Ligugé, Poitiers: Ellipses, 2004.

_________. Dictionnaire Spinoza. Paris : Ellipses Édition, 2007.

_________. Descartes. Promesses et paradoxes. Paris: Vrin, 2011.

_________. « La Loi du Nombre (ou la démocratie comme « régime absolu ») ». In :


SPINOZA, B. Œuvres V. Traité Politique. Texte établi par Omero Proietti. Traduction,
introduction, notes, glossaires, index et bibliographie par Charles Ramond. Paris: PUF, 2015.
P. 7-43.

RAMOS, C.S. Conservar a vida e não temer a morte: filosofia prática na correspondência
entre Descartes e Elisabeth. (Dissertação de mestrado). Rio de Janeiro, PPGLM/UFRJ: 2017.
368

Disponível em
https://ppglm.files.wordpress.com/2008/12/dissertac3a7c3a3o-carmel-ramos.pdf.

REZENDE, C.N. Intellectus Fabrica: um ensaio sobre a teoria da definição no Tractatus de


Intellectus Emendatione de Espinosa. 2009. Tese (Doutorado em Filosofia) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

ROSENBLATT, H. Liberal Values. Benjamin Constant and the Politics of Religion.


Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

RUDAVSKY, T.M. “Galileo and Spinoza: Heroes, Heretics, and Hermeneutics”. In : Journal
of the History of Ideas, Vol. 62, No. 4 (Oct., 2001), pp. 611-631.

SÁ, A.F.D. Metamorfose do poder. Prolegômenos schmittianos a toda sociedade futura. Rio
de Janeiro: Via Verita, 2012.

_________. Poder, Direito e Ordem. Ensaios sobre Carl Schmitt. Rio de Janeiro: Via Verita,
2012.

SANZ, V. “La religión en la correspondencia de Spinoza (I): La relación


Blyenbergh-Spinoza”. In: Pensamiento, vol.53, núm.207 (1997), pp.453-472.

_________. “Dos conversos frente a Spinoza: Stensen y Burgh ante el Tratado


teológico-político”. In: Acta philosophica, vol.8 (1999), fasc.1, págs. 119-134.

_________. “Spinoza y Oldenburg acerca de la religión. In : Anuario Filosófico, 1999 (32),


487-518.

_________. “La religión en la correspondencia de Spinoza (II): Velthuysen-Spinoza”. In:


Pensamiento, vol.56, núm, 214, enero-abril 2000, pp.27-51.

_________. “¿En qué sentido es « teológico » el Tratado « Teológico-Político » ? Sobre «


teología » y « religión » en Spinoza”. In: Scripta theologica: revista de la Facultad de
Teología de la Universidad de Navarra, ISSN 0036-9764, Vol. 33, Fasc. 1, 2001, págs.
213-230.
369

_________. “La religión en la correspondencia de Spinoza: Boxel-Spinoza”. In: A. L.


GONZÁLEZ, A.L. ZORROZA, I. (eds.). In umbra intelligentiae. Estudios en homenaje al
prof. Juan Cruz Cruz. Eunsa, Pamplona, 2011, pp. 729-745.

SAVAN, D. “Spinoza and Language”. In : The Philosophical Review, Vol. 67, No. 2 (Apr.,
1958), pp. 212-225.

SCHECHTER, O. “Spinoza’s Miracles: Scepticism, Dogmatism, and Critical Hermeneutics”.


In: REBIGER, B. (ed.). Yearbook of the Maimonides Centre For Advanced Studies. 1st ed.,
De Gruyter, Berlin/Boston, 2018, pp. 89–108. Disponível online em JSTOR,
www.jstor.org/stable/j.ctvbkjwt0.8.

SCHOLEM, G. Le nom de Dieu et la théorie kabbalistique du langage. Paris: Éditions Allia,


2018.

SCHMITT, C. Political Theology. Four Chapters on the Concept of Sovereignty. Translated


with an Introduction by George Schwab. With a new Foreword by Tracy B. Strong. Chicago
and London: The University of Chicago Press, 2005.

_________. Teologia Política. Coordenador e supervisor Luiz Moreira. Tradutora Elisete


Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

_________. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Tradução
de Alexandre Franco de Sá, Bernardo Ferreira, José Maria Arruda e Pedro Hermílio Villas
Bôas Castelo Branco. Revisão técnica Bernardo Ferreira. Rio de Janeiro: Contraponto &
Editora PUC-Rio, 2014.

_________. O Conceito do Político. Tradução, introdução e notas de Alexandre Franco de


Sá. Lisboa: Edições 70, 2015a.

_________. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Berlin:
Duncker & Humblot, 2015b.

SCHLANGER, J. Gestes des philosophes. Paris, Aubier: 1994.

SERJEANTSON, R. “Francis Bacon and the “Interpretation of Nature” in the Late


Renaissance”. In : Isis, Vol. 105, No. 4 (December 2014), pp. 681-705.
370

SÉVÉRAC, P. Le devenir actif chez Spinoza. Paris : Honoré Champion, 2005.

SHARP, H. “Hate's Body: Danger and the Flesh in Descartes Passions of the Soul”. In:
History of Philosophy Quarterly, Volume 28, Number 4, October 2011.

SHIOKAWA, T. Pascal et les miracles. Paris : Editions A.-G. Nizet, 1977.

STEENBAKKERS, P. « La mort de Spinoza : Une rumeur inconnue ». In : Bulletin de


Bibliographie Spinoziste XXXII. Revue critique des études spinozistes pour l'année 2009.
Centre Sèvres, « Archives de Philosophie ». 2010/4 Tome 73, P. 733 à 764.

_________. (et al). “A Clandestine Notebook (1678-1679) on Spinoza, Beverland, Politics,


the Bible and Sex.”, In: Lias-journal of Early Modern Intellectual Culture and Its Sources.
Vol. 38, no. 2. Peeters, Leuven, pp. 225-+, 2011.

STETTER, J. “Quand « ET » ne suffirait pas : À propos de l’usage d’un trait d’union dans le
titre du Traité Théologico-Politique de Spinoza”. Apresentado em Journées doctorales
Franco-japonaises “Et” , Université Paris 8, org, Christian Doumet, Março de 2014.

STRAUSS, L. “How to Study Spinoza's Theologico-Political Treatise”. In : Persecution and


the art of writing. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

_________. La critique de la religion chez Spinoza ou Les fondements de la science


spinoziste de la Bible. Recherches pour une étude du « Traité théologico-politique ».
Traduction par Gérard Almaleh, Albert Baraquin et Mireille Depadt-Ejchenbaum. Paris : Les
Éditions du Cerf, 1996.

TOSEL, A. Spinoza ou le crépuscule de la servitude. Essai sur le Traité


Théologico-Politique. Paris: Aubier-Montaigne, 1984.

VAN BUNGE, W. KROP, H. STEENBAKKERS, P. VAN DE VEN, J. (eds). The Bloomsbury


Companion to Spinoza. Bloomsbury: London. 2014.

VAYSSE, J.M. « Spinoza et le problème de la peur : metus et timor », Philonsorbonne [En


ligne], 6 | 2012, mis en ligne le 04 février 2013. URL :
http://journals.openedition.org/philonsorbonne/410 ; DOI : 10.4000/philonsorbonne.410.
371

VIEIRA NETO, P. “A correspondência entre Espinosa e Burgh”. In : Discurso (31), 2000: P.


463-496. Recuperado de: https://doi.org/10.11606/issn.2318-8863.discurso.2000.38050.

VINCENT, S.K. Benjamin Constant and the Birth of French Liberalism. New York: Palgrave
Macmillan, 2011.

VINCIGUERRA, L. Spinoza et le signe. Paris : Vrin, 2005.

_________. « Spinoza et les signes des choses », In : Revue des Sciences philosophiques et
théologiques. Vol. 82, No. 1, CHOSE, OBJET, SIGNE CHEZ SPINOZA (Janvier 1998), pp.
31-48; e Spinoza et le signe. Paris : Vrin, 2005.

VOLTAIRE. Cândido ou o otimismo. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34,
2016.

VOOGT, G. “Remonstrant-Counter-Remonstrant Debates: Crafting a Principled Defense of


Toleration after the Synod of Dordrecht (1619-1650). In : Church History and Religious
Culture. 89.4, (2009), 489-524.

VOS, J. G. "The Ethical Problem of the Imprecatory Psalms." In: Westminster Theological
Journal 4 (1942):123-38.

WAHRIG-BURFEIND, R. Alemão. Dicionário Semibilíngue para brasileiros. Tradução de


Karina Jannini e Rita de Cássia Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

WHITE, H. Trópicos do Discurso Ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução de Alípio


Correia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 2014.

_________. Meta-história. A Imaginação histórica do século XIX. Tradução de José


Laurêncio de Melo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.

WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo:


Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975.

_________. Tractatus Logico-Philosophicus. Introdução de Bertrand Russell. Tradução,


Apresentação e Ensaio Introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2010.
372

ZAC, S. “Spinoza et l’état des Hébreux”. In: Revue Philosophique de la France et de


l'Étranger, T. 167, No. 2, Spinoza (I) (Avril-Juin 1977), pp. 201-232.

ZOURABICHVILI, F. Le conservatisme paradoxal de Spinoza. Enfance et royauté. Paris :


PUF, 2002.

Você também pode gostar