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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Rio de Janeiro
2021
Carmel da Silva Ramos
Tese de doutorado
Rio de Janeiro
2021
Ramos, Carmel da Silva
R175Ra
moc Spinoza e a questão da exterioridade. Uma leitura
do Tratado Teológico-Político / Carmel da Silva
Ramos. -- Rio de Janeiro, 2021.
372 f.
1. Spinoza. 2. Teologia-política. 3.
Exterioridade. 4. Filosofia da religião. 5. História
da filosofia moderna. I. Pinheiro, Ulysses, orient.
II. Título
Carmel da Silva Ramos
Durante o longo e por vezes monótono tempo de confecção dessa tese, frequentei
pessoas e instituições diversas. Fui eu mesma pessoas diversas. A listagem a seguir evoca
brevemente os nomes daquelas e daqueles que, no ciclo perpétuo de destruição e rearranjo de
mim mesma, foram decisivos para que o trabalho cumprisse seu tortuoso curso.
Tenho muito a agradecer ao professor Ulysses Pinheiro, com quem tenho debatido
filosofia incessantemente ao longo dos últimos dez anos, debate este que terminou por se
converter numa sincera amizade. Ulysses acompanhou minha trajetória como pesquisadora
desde o princípio – e foi sempre para mim uma referência em termos de rigor e imaginação
filosófica.
Reconheço, ainda, a participação direta dos professores Fabiano Lemos e Maria das
Graças Moraes Augusto em minha formação. É graças a eles que pude reconhecer que há, na
filosofia, algum espaço para o estranho trabalho que me agrada fazer. Apesar de estudarmos
temas e autores diferentes, Fabiano e Graça são fonte de inspiração para mim. Seus
comentários na ocasião da primeira qualificação foram de extrema utilidade para definir os
rumos metodológicos desta pesquisa.
A professora Carolina Araújo desempenhou papel central em meu percurso tanto por
suas aulas sobre Platão, das quais me lembro até hoje, quanto por conduzir iniciativas que
visam a permanência das mulheres na filosofia. Foi através da Rede Brasileira de Mulheres
Filósofas que pude, enfim, me reconhecer como pesquisadora e enfrentar algumas das
inseguranças que me assombravam desde o início da graduação.
Aos professores Nastassja Pugliese, Luís César Guimarães Oliva e Tessa Moura
Lacerda, agradeço a participação na banca e os comentários que servirão ao aperfeiçoamento
deste trabalho. Nastassja e Tessa, um agradecimento adicional por insistirem, em suas
pesquisas e práticas acadêmicas, na existência das mulheres na filosofia.
Agradeço o apoio incondicional da minha família – minha mãe, pai e irmão –, pois
sem sua ajuda constante toda a minha determinação para permanecer na carreira acadêmica
teria sido inútil. Agradeço ao Erick, cuja gentileza inunda meus dias. Obrigada por sua
paciência e amor.
Agradeço aos amigos que fiz no sanduíche: Mario Donoso e Jack Stetter, com quem
pude travar discussões relevantes sobre a obra de Spinoza, centrais para o encaminhamento
deste trabalho. Agradeço à querida Luisa, que muitas vezes salvou minha vida quando estava
perdida tentando habitar outro país. Agradeço ao Uriel, por dividir comigo a experiência de
pertencer a um lugar que não parece desejar nos receber. Ao Roger, amigo querido, por todo
incentivo tão frequente, pelas boas conversas e trocas e, claro, por ter conseguido para mim
parte da bibliografia desta tese na biblioteca da USP. À Juliane e ao Paulo, por todas as
conversas, sérias ou não, pela viagem incrível que fizemos, e pela presença fiel e divertida. À
Rayane e ao Jean, por serem amigos sinceros. Ao Daniel, por toda a ajuda material e
espiritual, essencial para que eu pudesse enfrentar a difícil tarefa de escrever uma tese
durante uma pandemia. Ao Victor, por dividir comigo bons momentos, além, é claro, de toda
a identificação existencial. Ao Hiran, Manuella, Melina e Anna: amigos da época da escola e
que seguem sendo companhias inseparáveis. À Monique e ao Bruno, parceiros na fundação
da Revista Seiscentos, com os quais ainda quero manter uma longa interlocução filosófica.
Agradeço, enfim, aos meus alunos de História e Ciências Sociais, com os quais tenho
vivenciado uma nova relação com a filosofia, desta vez sob o signo do ensino.
O que é preciso evitar, não sei por quê, é o
espírito do sistema. Pessoas com coisas, pessoas
sem coisas, coisas sem pessoas, pouco importa,
eu espero poder varrer tudo isso em pouco
tempo. Não vejo como. O mais simples seria não
começar. Mas sou obrigado a começar. Quer
dizer que sou obrigado a continuar. Acabarei
talvez por estar muito cercado, numa confusão.
Idas e vindas incessantes, atmosfera de bazar.
Estou tranquilo, vamos.
O objetivo desta tese é propor uma leitura do Tratado Teológico-Político, obra publicada
anonimamente por Baruch de Spinoza (1632—16977) na Holanda em 1670, a partir da
questão da exterioridade. Para fazê-lo, forja uma linguagem própria que tomará os dados
biográficos, os acontecimentos históricos contemporâneos e não-contemporâneos ao século
XVII, a filosofia deste autor ao qual atribuímos o nome de Spinoza e de outros
convencionalmente designados como filósofos, como igualmente legítimos na construção de
seu conteúdo. Ainda, sua análise não se comprometerá com a supressão das contradições –
apostando, em contrapartida, em seu aspecto produtivo. De posse deste método, a tese
procura permanecer na dificuldade que uma filosofia da imanência enfrenta ao lidar com o
objeto religioso, normalmente definido como pertencente à esfera transcendente. Se a
exterioridade é, na obra metafísica de Spinoza, constantemente rejeitada, no mais das vezes
associada à potência de destruição, ela será surpreendentemente retomada no tratado em
questão. A reinserção do discurso religioso será marcada, porém, por uma tensão indecidível
entre exterioridade e interioridade. Os capítulos da tese serão, assim, estruturados
tematicamente, organizando-se num ritmo dramático que procura reproduzir, em sua forma, o
conflito entre uma abordagem de fora e de dentro do texto. Examinaremos, no primeiro
capítulo, o culto ao exterior como fonte de superstição; no segundo, a tentativa de criar, para
interpretar o texto bíblico, uma regra geral de imanência – a qual implicará, ela mesma, a
introdução de elementos externos. Esta primeira apreciação favorável da exterioridade será
radicalizada, no terceiro capítulo, com a figura do Cristo: o qual possui uma fratura
constitutiva, pois subscreve, ao mesmo tempo, a via racional e a via moral como estratégias
salvíficas. O marco cristológico nos conduzirá à interpretação do Estado hebreu, na qual será
operada uma redefinição da servidão a partir do par exterioridade-interioridade. A
comunicação necessária entre interno e externo será verificada, por fim, nas discussões
jurídicas do tratado, tais como a lei divina, o dogma, a obediência civil e religiosa e a sedição.
Ao término deste percurso, a tese terá reelaborado algumas hipóteses explicativas
consideradas já estabelecidas na filosofia de Spinoza, e terá se perguntado sobre a sua
contribuição possível na confecção da modernidade política. Pretende-se que a indefinição
entre interioridade e exterioridade permita conceber uma relação de resistência face ao objeto
religioso, não mais pautada em sua simples exclusão do horizonte filosófico.
L'objectif de cette thèse est de proposer une lecture du Traité théologico-politique, publié
anonymement par Baruch de Spinoza (1632-1677) en Hollande en 1670, à partir de la
question de l'extériorité. Pour ce faire, ce travail développe son propre langage qui prendra
les éléments biographiques, les événements historiques contemporains ou non du XVIIe
siècle, la philosophie de cet auteur auquel on attribue le nom de Spinoza et d'autres
conventionnellement considérés comme philosophes, comme également légitimes dans la
construction de son contenu. En plus, cette analyse ne s'engagera pas dans la suppression des
contradictions – soulignant, au contraire, leur aspect productif. Cette méthode établie, la thèse
ne cherche pas à dépasser la difficulté que rencontre une philosophie de l'immanence face à
l'objet religieux, normalement défini comme appartenant à la sphère transcendante. Si
l'extériorité est, dans l'œuvre métaphysique de Spinoza, constamment rejetée, le plus souvent
associée à la puissance de destruction, elle sera étonnamment reprise dans le traité en
question. La réintroduction du discours religieux sera cependant marquée par une tension
indécidable entre extériorité et intériorité. Les chapitres de la thèse seront donc structurés de
manière thématique, s'organisant selon un rythme dramatique qui cherche à reproduire, dans
sa forme, le conflit entre une approche extérieure et intérieure du texte. Nous examinerons,
dans le premier chapitre, le culte de l'extérieur comme source de superstition ; dans le second,
l'essai de créer, pour interpréter le texte biblique, une règle générale d'immanence – qui
impliquera elle-même l'introduction d'éléments extérieurs. Cette première conception
favorable de l'extériorité sera radicalisée, dans le troisième chapitre, avec la figure du Christ :
qui possède une fracture constitutive, puisqu'il souscrit, en même temps, à la voie rationnelle
et à la voie morale comme stratégies salvatrices. Le cadre christologique nous conduira à
l'interprétation de l'État hébreu, dans lequel une redéfinition de la servitude sera opérée à
partir du couple extériorité-intériorité. La communication nécessaire entre l'interne et
l'externe se vérifiera, enfin, dans les discussions juridiques du traité, telles que la loi divine, le
dogme, l'obéissance civile et religieuse et la sédition. Au terme de ce parcours, la thèse aura
retravaillé certaines hypothèses explicatives considérées comme déjà établies dans la
philosophie de Spinoza, et se sera interrogée sur leur possible contribution dans la fabrication
de la modernité politique. Nous soutiendrons que l'imprécision entre l'intériorité et
l'extériorité permettra la construction d'une relation de résistance envers l'objet religieux, qui
ne sera plus fondée sur sa simple exclusion de l'horizon philosophique.
Advertência 13
Prefácio 20
O asilo da ignorância 76
Uma emendatio da religião 82
Entre o espinho e o cometa 96
A lei 273
O dogma 285
Obediência e liberdade 289
Bibliografia 349
ABREVIAÇÕES
Obras de Spinoza
CM (Cogitata Metaphysica)
TP (Tractatus Politicus)
Advertência.
Esta é uma tese que pretende tanto apresentar um comentário detido de um texto
canônico da história da filosofia ocidental quanto formular, a partir desse fio condutor,
hipóteses próprias referentes a um problema mais geral. É uma tese de história da filosofia
com interpretações muito ativas, que se situa, por causa disso, no limite entre o comentário e
a livre apropriação. Seu tema é a exterioridade, particularmente o modo como ela foi figurada
por um autor que nem sempre foi considerado um clássico, mas que hoje é presença frequente
nos debates filosóficos acadêmicos e extra-acadêmicos: Baruch de Spinoza. Escolhi tratar da
exterioridade tomando um texto deste autor como norte, a partir do qual farei conexões com
outras de suas obras: o Tratado Teológico Político. Não se trata aqui de toda e qualquer
exterioridade, mas sim daquela que, por uma série de argumentos eles mesmos externos,
conquistados a partir de um sobrevoo pela filosofia contemporânea, pode ser associada à sua
singular compreensão de teologia. O leitor está diante de um trabalho de filosofia da religião,
mas que envolverá discussões sobre ética e política no panorama filosófico específico do
século XVII – que, guardadas as devidas proporções, estabelece semelhanças inesperadas
com o horizonte contemporâneo da questão teológico-política.
Para definir a teologia como discurso sobre o exterior, apoiei-me numa série de
referências a princípio inconciliáveis com o spinozismo, arriscando-me abertamente no
anacronismo. Neste aspecto, resgatei sobretudo alguns conceitos presentes nas obras do
jurista alemão Carl Schmitt. Em Teologia Política, seu livro de 1922, Schmitt apresenta uma
dupla caracterização do problema teológico-político: como um processo de secularização,
sublinhando a transferência cultural dos operadores teológicos para o domínio do político e,
deste modo, pensando a questão num sentido mais superficial; e como aliança estrutural entre
os dois domínios, vinculando-os mais profundamente. Neste último sentido, a teologia é
tomada como uma espécie de fora que funciona como motor e alimento constante das
14
Para voltar à discussão interna à obra de Spinoza, diria que minha hipótese central é a
de que há, no Tratado Teológico Político, um resgate da exterioridade. Se, na metafísica,
Spinoza esforça-se para a todo tempo expulsar e reintroduzir a exterioridade na imanência,
associando-a, no mais das vezes, à potência de destruição, é em seu pensamento teológico
que verificamos, ao contrário, um esforço para mantê-la em sua integridade, diríamos, de
fenômeno incompreensível e em última análise irracional. Se há, então, um discurso positivo
sobre o religioso e, ao mesmo tempo, um combate travado contra as perspectivas tradicionais,
sua proposta de resistência política é se opor à religião com religião – modificando
substancialmente, é claro, sua gramática e seu texto fundador, a ponto de torná-la
irreconhecível. Discordamos, portanto, daqueles que tomam esse livro como a expressão de
um espírito antirreligioso. Será preciso, aqui, muita cautela: essa estranha religião tem um
engajamento nítido com a liberdade. Não se pode negar que ela se estruture como crítica da
transcendência e da servidão engendrada pelas prerrogativas da teologia tradicional. Há,
porém, o combate com uma outra instância: aquela que, num esforço por tudo imanentizar,
termina por dar à razão vestes religiosas. O pensamento religioso erguido por Spinoza não
16
pode e não deve ser remetido a quaisquer compromissos confessionais – não queremos, aqui,
criar nenhuma Igreja! –, e o que unifica seus dois inimigos imediatos é a filiação de ambos às
identidades estabilizadoras.
O último capítulo de nosso percurso pensará as questões relativas ao direito, tais como
a lei, o dogma, a obediência religiosa e civil e, por último, a desobediência – ou, para falar
em termos spinozistas, a sedição. Mostraremos a ambiguidade intrínseca ao conceito de lei
divina – ao mesmo tempo prescritiva e descritiva, pertencendo indistintamente à esfera da
natureza e do direito. Encontraremos a dinâmica entre interno e externo na observação do
dogma tanto quanto nos diversos gêneros de comportamento obediente. Contra alguns
comentadores que consideram a obediência como mera adequação passiva a uma imposição
externa, apresentaremos uma extensa tipificação da obediência em suas facetas piedosa,
interessada, submissa e esclarecida, e o modo como sempre haverá contribuição do interior.
No que se refere ao problema da salvação – tema em que a potência da exterioridade é
normalmente verificada pelos comentadores –, defenderemos que, ao contrário de um
18
Uma última palavra sobre a metodologia silenciosa deste trabalho. Disse que esta tese
tinha um objetivo duplo: a de ser uma espécie de comentário e, ao mesmo tempo, de
meditação autoral. Ouso dizer que esta tese é também uma terceira coisa: um sutil manifesto
por uma certa linguagem filosófica outra. Há uma tese subterrânea a esta tese, verificável
apenas em sua performance. Suas escolhas estilísticas a todo tempo informam sobre uma
maneira particular de compreender — e de escrever — a própria filosofia: os elementos que
compõem a capa da edição original do TTP são tão legítimos quanto os causos públicos
acerca dos milagres no século XVII ou quanto os rumores sobre o suicídio de Spinoza,
quanto a reflexão de Badiou sobre Paulo e de Agamben sobre os franciscanos, quanto a
concepção hobbesiana de lei natural e quanto a definição de impostura na literatura de
Molière, quanto a reconstrução estruturalista dos argumentos de Spinoza por parte de seus
comentadores e quanto seu diálogo epistolar com seus detratores. A doutrina, os gêneros
textuais, a biografia, as hesitações, os silêncios, as queixas, os risos e os maldizeres de
Spinoza: todos serão reconduzidos da exterioridade à interioridade de nossa exposição.
Este texto é um exemplo do modo como se pode associar a filosofia tanto à história
quanto à literatura: no primeiro caso, tomando-a como um estudo dos mortos; no segundo,
como tentativa de produzir, na linguagem, seus próprios objetos de reflexão. Reproduzo, na
forma, aquilo que é também o conteúdo deste trabalho: o conflito entre o dentro e o fora. Ao
se deixar assim contaminar, ao perseguir deliberadamente a contaminação, a tese questiona os
limites muito bem determinados entre o filosófico e o não-filosófico, o que a encaminha a um
19
estranho produto final. É, no fim das contas, uma maneira de resistir à perpetuação do cânone
tanto trazendo o não-canônico para o centro da investigação quanto transformando
radicalmente a apreciação clássica de um autor tradicional. É mesmo sobre Spinoza que se
fala? É esta uma reprodução fiel das teses do Tratado Teológico-Político? É mesmo uma tese
de filosofia? Se este trabalho impulsionar o leitor a tornar minimamente complicados o nome
de Spinoza e a imagem reificada de sua obra, terei satisfeito meu vício.
Prefácio.
Esta tese tem de começar pelo desmascaramento de uma impostura. Este trabalho não
é um comentário bem-comportado da filosofia de Spinoza. Seu resultado é tão estranho, os
caminhos que percorre tão infiéis, que talvez não seja sequer um comentário malcomportado
– simplesmente não é um comentário.
A maior impostura está em seu título. Reivindicando para si o lugar comum das
longas monografias estruturalistas – convocando uma questão e um autor que lhe sirva de
sustentação – é, na verdade, uma subversão delas. Uma subversão, porém, muito sutil, pois,
ignorados este prefácio e a introdução seguinte, talvez não seja notada. Possivelmente uma
perversão: parece inscrever-se, em sua forma e conteúdo, numa certa tradição, apenas para
contaminá-la de seu interior. Larvatus prodeo: afirma o adágio cartesiano disposto em suas
anotações privadas de juventude. Tal como ele, avanço mascarada no teatro filosófico deste
mundo.
A máxima cartesiana pode ser entendida ora como cautela, ora como disfarce. E pode
até mesmo induzir a uma espécie de terceira via, fruto da combinação dos dois motivos:
disfarçar-se por prudência. A ambiguidade aí contida, a qual não nos interessa eliminar, pode
bem explicar certos esforços de despistamento encontrados, por exemplo, nas Meditações. O
fato de Descartes afirmar, no Resumo, que não abordaria na Quarta Meditação o pecado ou o
erro moral, apenas para lá fazer exatamente o contrário2, tanto quanto a supressão de
quaisquer referências ao nome de um de seus principais inimigos teóricos – Aristóteles – na
1
ANDRADE, F.S. Samuel Beckett. O silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. P. 169.
2
As referências às obras de Descartes seguirão os volumes e a numeração de páginas da edição das obras
completas preparada por Charles Adam e Paul Tannery, cf. DESCARTES, R. Œuvres de Descartes (11 vols).
Publiées par Charles Adam et Paul Tannery. Paris : Vrin, 1996. A citação apresentará a abreviação “AT”,
seguida do volume correspondente em números romanos, seguida, por sua vez, da numeração de página em
números arábicos. Para o caso da passagem em questão, ver AT IX-1, 46.
21
Elaborei uma nova linguagem para construir este objeto que, antes de achar-se nela,
não existia. Por isso, esta tese trata não só de um controverso tema de filosofia política
moderna e contemporânea, mas também propõe indiretamente uma discussão sobre a
linguagem. Forçada a inventar uma gramática para dar conta do objeto que persigo, meu
comportamento foi análogo ao de uma atriz que adentra o teatro filosófico deste mundo
confeccionando para si um disfarce, quer dizer, um personagem próprio: com seus trejeitos e
indumentárias correspondentes. Insistindo na imagem teatral, a tese emprega ela mesma
recursos performáticos, sobretudo considerando o ritmo dos capítulos e subcapítulos, que são
como os atos e cenas de sua mise-en-scène. A exterioridade começa, nos dois primeiros atos,
3
AT IX-1, 20.
22
por ser constantemente rejeitada – para, num coup-de-théâtre, ser estranhamente reabsorvida
no terceiro. Daí por diante, os dois últimos capítulos a reabilitam positivamente. O
personagem da exterioridade salta de coadjuvante para roubar o lugar que lhe é seu por
direito: o de personagem principal.
Contra as evidências, contra o verossímil. Para os adeptos deste último, toda tentativa
de leitura que recuse identificar, nos textos e na história, regularidades prévias, interpretações
inquestionáveis, metodologias herdadas, autores canônicos e incontornáveis, contextos
objetivos, só pode soar como inteiramente aberrante. Roland Barthes, num livro de combate à
crítica acadêmica francesa, opõe, a estas normatividades, o método, que tem por função
conduzir uma dúvida “acerca do acaso e da natureza”4. Toda filosofia é, ela mesma e sempre,
um discurso do método. Não escapamos desta consequência, com a diferença de que o
itinerário de produção do método foi simultâneo à perseguição do próprio tema ao qual ele
visa apreender. Por mais irracionalista que esta postura possa parecer, talvez ela seja menos
absurda caso reenviada à noção de crítica kantiana. Trata-se apenas de levar o
antidogmatismo às últimas consequências.
4
BARTHES, R. Crítica e verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. Revisão: Geraldo Gerson de Souza. São
Paulo: Perspectiva, 2005. P. 191.
5
SCHLANGER, J. Gestes des philosophes. Paris, Aubier: 1994. P. 40.
23
publicamente pondo sua máscara. Nos bastidores do espetáculo, anuncio aos olhos do
público: avanço mascarada. Pode-se perguntar qual é o lugar de um prefácio na economia
expositiva de um trabalho dedicado a pensar a exterioridade. Um prefácio tanto quanto uma
introdução devem ocupar o lugar de uma exterioridade máxima e neles pouco ou nada será
dito sobre Spinoza. Observaremos este outro personagem à distância, considerando apenas
aquilo que outros disseram sobre ele. Um desvio necessário à literatura e à história nos
conduzirá neste esforço de mostrar aquilo que não está diretamente tematizado no curso da
investigação. Um último sinal de advertência antes que seja iniciada a encenação: não se trata
de desmascarar o personagem por completo. Apenas contemplaremos um ato – o de pôr a
máscara –, que nada tem a ver com a revelação de um suposto númeno oculto que garantiria a
estabilidade da ficção. Não há pacto ficcional com o espectador para o bem da narrativa.
Desvendar os segredos do ator não interessa, pois a condição da máscara é perpétua. O
público já está confortavelmente sentado em suas cadeiras. O silêncio se instaura e as luzes se
apagam. As cortinas se levantam.
24
Introdução.
6
ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Tradução de Monica Stahel e Teixeira
Coelho. P. 46-47.
7
BARTHES, R. “O que é a crítica?”. In : Crítica e verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. Revisão: Geraldo
Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2005. P. 160.
8
Tradução minha a partir de SCHLENGER, J. 1994, P. 7.
9
SCHLENGER, J. 1994, P. 14-15.
10
SCHLENGER, J. 1994, P. 18.
25
11
SCHLENGER, J. 1994, P. 16.
12
Para um estudo completo e mais atualizado de Whoroscope, ver o livro de Edward Bizub intitulado Beckett et
Descartes dans l’œuf. Aux sources de l’œuvre beckettienne : de Whoroscope à Godot. Paris : Classiques Garnier,
2012.
13
BECKETT, S. 2013, P. 66.
26
14
Ibid, P. 85.
15
Beckett obviamente contraria a tese cartesiana, mas herda do cartesianismo o modo de construir o problema
dualista.
16
Ibid.
17
Ibid.
18
AT IX-1, 64.
19
Ibid.
20
BECKETT, S. 2013, P. 141.
21
MINTZ, S. I. “Beckett’s Murphy: A Cartesian Novel”. In : Perspective, 2, 3 (1959), pp.156-65.
22
KENNER, H. Samuel Beckett. A Critical Study. New York: Grove Press, 1961.
27
oblomovismo avant la lettre. Seu regime de sono era extenso e preferia passar boa parte de
seus dias deitado na cama:
Ele dormia muito, ou ao menos seu despertar não era nunca forçado; quando se sentia
perfeitamente desvencilhado do sono estudava meditando deitado, e só se levantava a
meio-corpo, por intervalo, para escrever seus pensamentos. É o que o fazia
frequentemente permanecer dez e às vezes doze horas na cama. (Tradução minha de
BAILLET, A. 1946, P. 277).
23
DESCARTES, R. 1973, P. 314.
24
AT IX-1, 18.
25
AT IX-1, 121.
26
A expressão deve-se a Jean-Louis Guez de Balzac, em carta a Descartes de 30 de março de 1628 (cf. AT I,
570).
28
apenas mostrar de que maneira me esforcei para conduzir a minha”27. O eu, agora, é opaco.
Nas Meditações o caso é fundamentalmente de ensino; no Discurso, de espelho, no qual,
tomando o narrador como paradigma, pode-se, imitando suas virtudes, aplicá-las em sua
realidade particular. Inútil reafirmar o destino que a primeira pessoa tem em Beckett,
sobretudo considerando a trilogia dos romances assim chamados do pós-guerra: Molloy,
Malone Morre e O Inominável o atestam.
Até mesmo o gosto de Beckett por listas parece ter uma origem longínqua em
Descartes. Lembremos de Molloy permutando todas as combinações possíveis das pedrinhas
de chupar levadas de seu bolso à sua boca, e de Murphy intercalando a ordem de comer seus
pãezinhos. Os movimentos da partida de xadrez entre Murphy e o Sr. Endon são
27
DESCARTES, R. 1973, P. 38; AT VI, 4.
28
BLANCHOT, M. 1959, P.289.
29
“Malone brotou de Molloy, L’Innommable de Malone, mas depois – e por um longo tempo – eu não tinha
mais nenhuma certeza do que me restava a dizer. Eu tinha encurralado a mim mesmo. Tentando me libertar,
escrevi aqueles pequenos textos, aquelas historinhas se você preferir, que chamo de ‘écrits pour rien’”, cf.
ANDRADE, F.S. 2001, P. 189.
30
Empregarei a expressão “entrevista” de modo apenas convencional. A ideia de abertura para o diálogo que um
contexto como tal sugere é alheia à concepção de linguagem que Beckett apresenta em sua obra e que
pretendemos retraçar aqui.
29
31
DESCARTES, R. 1973, P. 46.
32
Na Regra VII. Cf. DESCARTES, R. 2002a, P. 39.
33
Ibid, P. 40.
34
DESCARTES, R. 2002a, P. 42.
35
DELEUZE, G. « L’épuisé ». In : BECKETT, S. Quad et autres pièces pour la télévision. Suivi de L’épuisé par
Gilles Deleuze. Lonrai : Les Éditions de Minuit, 1992.
30
mendigos, vagabundos, desempregados, fracassados de modo geral, seja quando presos num
quarto meditando, seja arrastando-se por estradas que não levam a lugar algum, nada buscam,
nada expressam, nem mesmo expressam a impossibilidade de expressar: simplesmente
esgotam-se.
O esgotamento, porém, exige trabalho, é mais uma ciência do que uma arte: daí a
postura de alguns dos personagens de Beckett, indivíduos sentados, nem totalmente vivos,
nem inteiramente entregues à morte, mas dispostos à mesa de estudo enumerando todas as
possibilidades para nada. Exibir as possibilidades não para escolher uma dentre outras, mas
para manter-se nesse nível de suspensão. Neste projeto, há o obstáculo da linguagem
ordinária: se a linguagem nomeia o possível, é preciso uma mutação no interior da língua de
modo a esgotar justamente aquilo que não tem nome. Para esgotar o possível por meio de
palavras é preciso uma metalíngua em que as relações entre as palavras sejam idênticas às
relações entre os objetos. Deleuze denominará esta primeira mutação de língua I, e
identificará em Beckett ainda mais três metalínguas, nas quais se trata sempre da tarefa do
esgotamento, fazendo uso, respectivamente, dos fluxos de vozes, da imagem e, por fim, do
espaço.
e extensa. Ainda, a enumeração tem como propósito o alcance de uma conclusão, pois é um
procedimento de prova ou, no mínimo, uma via para conquista da certeza cognitiva,
driblando a fraqueza da memória. O que interessa a Beckett, porém, é o fracasso de Descartes
apesar dele mesmo: como se pudesse manter-se indefinidamente no presente eterno da
Segunda Meditação, fazendo seus personagens enumerarem para nada.
E por ter ouvido falar, ou mais provavelmente lido em algum lugar no tempo em que
achava que tinha interesse em me instruir, ou me divertir, ou me embrutecer, ou matar
o tempo, que acreditando andar sempre em linha reta, na floresta, você só faz na
verdade girar em círculos, fazia o melhor que podia para girar em círculos, esperando
ir assim em linha reta. (BECKETT, S. 2014, P.122)
círculos parece tão adequada para descrever a releitura beckettiana de Descartes quanto a do
homem pilotando uma bicicleta.
36
ANDRADE, F.S. 2001, P. 192.
37
Ibid, P. 190.
38
Ibid, P. 189.
39
Ibid.
40
Ibid, P. 190.
41
Ibid, P. 192.
42
Ibid, P. 174.
33
por seu interlocutor a precisar, afinal de contas, que outro plano há para além do factível,
Beckett retruca:
Logicamente, nenhum. No entanto, estou falando de uma arte que lhe dá as costas
enojada, cansada de suas explorações trocadilhescas, cansada de fingir-se capaz, de
ser capaz, de fazer um pouco melhor a velha coisa, de trilhar um pouco além a
mesma terrível estrada. (ANDRADE, F.S. 2001, P.174-175).
A expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do
que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar,
aliado à obrigação de expressar. (ANDRADE, F.S. 2001, P.175).
Eu lido com a impotência, a ignorância. Não acho que a impotência tenha sido
explorada no passado. Parece haver um tipo de axioma estético de que a expressão é
realização – deve ser uma realização. Meu modesto terreno de exploração é toda
aquela zona do ser que tem sido constantemente negligenciada pelos artistas como
algo inutilizável – como algo incompatível com a arte por definição. (ANDRADE,
F.S. 2001, P.186).
43
Ibid, P. 175.
34
pode ter, com o nada: a ausência de objetivo, o situar-se fora da lógica de meios e fins, a
enumeração que visa esgotar e nada mais. Talvez para Beckett a filosofia ainda fosse
excessivamente cansada.
Mesmo se todos estivessem de acordo, o seu ensino não nos bastaria: nunca nos
tornaremos matemáticos, por exemplo, embora saibamos de cor todas as
demonstrações feitas pelos outros, se com o espírito não formos capazes de resolver
todo e qualquer problema; nem nos tornaremos filósofos se, tendo lido todos os
raciocínios de Platão e Aristóteles, não pudermos formar um juízo sólido sobre
quanto nos é proposto. Com efeito, daríamos a impressão de termos aprendido não
ciências, mas histórias. (DESCARTES, R. 2002a, P. 19; AT X, 367)
44
Ver principalmente “O fardo da história” (In : WHITE, H. Trópicos do Discurso Ensaios sobre a crítica da
cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 2014. P. 39-63), de Hayden White e
também “História Stultitiae e História Sapientiae” (In : Discurso, [S. l.], n. 17, p. 151-172, 1988. DOI:
10.11606/issn.2318-8863.discurso.1988.37935.Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37935. Acesso em: 4 ago. 2021) de Carlos Alberto Ribeiro de
Moura.
35
de Hayden White. A tal ponto que muitos filósofos interessados pelos autores clássicos se
viram na posição de justificar seu compromisso com o passado e, ao mesmo tempo, com
aquilo que, segundo alguns, constitui o domínio próprio da filosofia: os conceitos
impregnados nas doutrinas dos autores, dotados de caráter eterno. Como sustenta Carlos
Alberto Ribeiro de Moura, para não recusar por completo a referência à história, foi preciso
distinguir uma história stultitiae – o estudo do passado enquanto compilado morto de ideias,
motivado por pura curiosidade e espírito de erudição – da história sapientiae – aquela que
toma os sistemas filosóficos como necessariamente contemporâneos do presente, pois dizem
respeito a uma sabedoria que perdura independentemente das modificações temporais.45
Mantém-se, assim, a oposição entre história e filosofia mediante o par
singularidade-eternidade, com a diferença de que, neste caso, o objeto histórico não é tomado
em seu aspecto singular, mas naquilo que o faz escapar de seu tempo histórico e que o
permite se imortalizar para além dos contextos iniciais de sua enunciação. Daí porque o
ofício mais apropriado para descrever o filósofo ou o historiador da filosofia é o da
arquitetura. O arquiteto pode caminhar no interior das estruturas da doutrina observando
suas engrenagens internas, o modo como aquele monumento conceitual subsiste por si
próprio sem referência a aspectos exteriores. Sua função será notar tais aparatos técnicos e
examiná-los criticamente, reenviando suas perguntas, a todo tempo, a um compromisso com
o núcleo fundamental do pensamento daquele autor. Este arquiteto que contempla a
edificação não propriamente a cria desde os fundamentos, mas a reconstrói e aprimora. Assim
o define, por exemplo, Martial Gueroult:
45
MOURA, C.A.R. 1988, P. 152, 156.
36
entretanto, não são aquelas que o autor escolheu. Trata-se, portanto, de investigar
porque essas foram escolhidas em vez de outras. A resposta a essa pergunta permite
progredir um passo na compreensão da obra. Por exemplo, a propósito de Spinoza,
uma coisa é analisar suas demonstrações e expor por que entre várias demonstrações
possíveis ele escolheu ou teve de escolher uma no lugar de outra. Ou, ainda, explicar
por que suas demonstrações, que são, segundo ele, "mais claras e mais simples", só
aparecem à margem da dedução principal e são relegadas a simples escólios. A
dedução cartesiana segundo a ordem das razões, a combinatória tão complexa própria
de Malebranche, com seus deslocamentos de equilíbrio e seus deslizamentos de
conceitos etc., requerem a solução de problemas análogos. Quando respondemos a
essas questões, quando descobrimos a razão da ordem, ou das vias, ou das
combinações adotadas, circulamos pelo monumento filosófico com a mesma
desenvoltura do arquiteto cujo edifício ele desvendou os segredos, ou seja, os fatores
de seu equilíbrio, os cálculos que presidiram sua edificação em função das intenções
do construtor. Ora, a compreensão dessa arquitetônica dos conceitos rege por fim a
compreensão dos próprios conceitos de acordo com as intenções mais profundas da
doutrina. (GUEROULT, M. 2015, P. 164-165)46
É possível, porém, trazer outro ofício para detalhar a prática filosófica – e suponho,
evidentemente, uma definição meramente convencional para filosofia, pois uma das
consequências da postura que gostaria de adotar aqui é justamente a indeterminação das
bordas que a distinguem enquanto um campo de saber autônomo e incontaminável por
discursos outros. A associação com esta segunda ocupação deve vir acompanhada de uma
compreensão alternativa da linguagem, distinta daquela suposta, embora não tematizada, por
Gueroult. Segundo este último, a linguagem tem caráter referencialista, quer dizer, tem o
poder de exprimir ou representar os sistemas filosóficos existentes para além de si própria.
Se, ao contrário, os objetos filosóficos forem pensados como construções que se dão no
interior da linguagem, a filosofia passa a envolver, em seu esforço de leitura e de escrita,
sempre a construção de uma nova gramática. Tal construção não tem de seguir as regras de
funcionamento de uma doutrina bem-acabada, suposta como existente para além da prática
interpretativa e à qual a leitura deveria se adequar, mas pode surgir enquanto narrativa ela
mesma instauradora de seus impasses e tensões particulares. É a um historiador que se deve
esta nova imagem da filosofia, originalmente pensada para traduzir o ofício da história, mas
que deliberadamente descontextualizaremos, adiante, para atender nossos interesses:
46
GUEROULT, M. “O método em história da filosofia”. In : SKÉPSIS, ISSN 1981-4194, Ano VIII, Nº 12, 2015.
P. 160-170. Disponível em:
http://philosophicalskepticism.org/wp-content/uploads/2015/09/O-m%C3%A9todo-em-hist%C3%B3ria-da-filos
ofia-1.pdf. Última visualização em 04/08/2021.
37
Eis por que, para White, a história é concebida como um ato poético, seguido de um
ato narrativo: “No ato poético que precede a análise formal do campo o historiador cria seu
objeto de análise e também predetermina a modalidade das estratégias conceptuais de que se
valerá para explicá-lo”47. Os documentos históricos não estão dados previamente: antes de
partir para uma interpretação dos mesmos é preciso determinar um “campo” – uma
gramática, uma língua – para, só então, narrar. Todo o trabalho histórico é produtor de uma
nova linguagem que precisa criar o próprio documento e, nessa medida, é também um
discurso sobre o método adotado em cada caso. Cada proposta narrativa assumirá seus
compromissos – White também se dedica a determinar, num esforço classificatório, os
gêneros de narrativas históricas possíveis48. Dizer que há narração tampouco significa
subscrever suas estruturas clássicas. Em nossa narrativa, por exemplo, apesar de não
querermos, por agora, adiantar muito dela, não nos preocuparemos em apresentar uma
continuidade linear dotada de estruturas previsíveis. A peça será constantemente marcada por
declives e tensões, quebras de expectativas e aporias e, principalmente, descontextualizações
constantes. É o que significa, para nós, sermos mais gramáticos do que arquitetos: pois
importa aqui não desvendar uma estrutura doutrinária finalizada, mas sim fabricar um novo
texto, o que é o mesmo que criar uma nova língua.
Tal é o seu objetivo na Introdução de seu Meta-história, intitulada justamente “A poética da História” (ver
48
49
RAMOND, C. Le vocabulaire de Derrida. Ligugé, Poitiers: Ellipses, 2004. P. 20.
40
Spinoza à distância
50
Chaui enfrenta diretamente o tema nos artigos: “Fundamentalismo religioso: a questão do poder
teológico-político”, de 2006 (disponível em:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolconbr/Chaui.pdf, última visualização 25/05/2021 às
15h19min), “O retorno do teológico-político”, de 1998 (Disponível em:
http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/o_retorno_do_teologico.pdf. Última visualização: 25/05/2021, às
15h20min) e “Theological-Political Power: Spinoza against Schmitt”. In : Crisis and Critique. Volume 8, Issue
1, (9-8-2021). Edited by Agon Hamza & Frank Ruda. P. 76-91.
51
Para uma interpretação sistemática do pensamento de Chaui acerca do teológico-político, ver o artigo de
BARROS, D.F. “Marilena Chaui, pensadora contemporânea do teológico-político”. In: Cadernos Espinosanos,
(37), 125-145, 2017. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2017.137716.
52
Chaui cita a unção do presidente Jair Messias Bolsonaro em 6 de janeiro de 2019 como um exemplo de gesto
inscrito na lógica da teologia política. Bolsonaro foi ungido pelo pastor evangélico Edir Macedo numa espécie
41
fenômenos, Spinoza desempenha, para Chaui, um papel essencial. Para ela, sua filosofia se
constitui como oposição direta às teses schmittianas. Enquanto Schmitt procura percorrer o
fundo necessariamente teológico de toda a política, Spinoza, num esforço crítico, aponta o
que há de político em toda a teologia. Analisando o potencial afetivo dos regimes teocráticos,
bem como a superstição que engendram, Spinoza evidencia como a teologia é
necessariamente danosa para a política, uma vez que cria disputas indesejáveis em nada
parecidas com os conflitos que orientam a realidade política democrática. A pretensão de
universalidade do discurso teológico, aliada a legitimidade política que confere para si
próprio, só pode redundar em perseguições e fragmentações do Estado: a teologia pode ser
uma máquina poderosa de sedições de caráter reacionário (aquelas que, de fora do Estado,
pretendem apropriar-se deste e questionar o poder soberano estabelecido pela multidão).
Ainda, é por tomar para si a experiência da contingência – o fato de os indivíduos estarem
perpetuamente submetidos à potência das causas exteriores, que é, segundo Chaui, a condição
mesma do contemporâneo – e guiá-la a partir do medo, que o poder transcendente da teologia
domina de modo eficaz as mentes dos cidadãos. Em seus termos:
Entre filosofia e teologia, portanto, só pode haver uma relação de manifesta oposição.
Ao passo que a primeira visa a liberdade, a partir do cultivo do conhecimento adequado, a
segunda tem como fim a obediência pautada na revelação tal como descrita num texto
tomado como sagrado, o qual não detém caráter científico, pois nada pode ensinar sobre a
natureza (apenas sobre uma certa moral).53 Toda a base da teologia-política tradicional é uma
concepção personalista de divindade: Deus, um ente que se posiciona para além do mundo, é
o único fundamento legítimo do imperium, o qual se realiza mais perfeitamente como
de espetacularização da figura do soberano enviado por Deus (o nome “messias” e a data escolhida para o
acontecimento comprovam este propósito). Ver CHAUI, M. 2021, P. 77.
53
CHAUI, M. 2021, P. 81-86.
42
teocracia.54 A concepção de um Deus imanente na Parte I da Ética é, por oposição, uma teoria
ontológica com ressonâncias políticas próprias. Contra a teologia-política schmittiana,
Spinoza parece lançar uma ontologia-política da imanência que redundará, em última
instância, no absolutum imperium, ou seja, na radicalidade democrática.
Nesta mesma chave, Antonio Negri insistiu na total ausência de apoio exterior da
política spinozista, atribuindo a Spinoza uma concepção de tempo que o tornará radicalmente
democrático. Contra as mediações hegelianas que implicam no poder transcendental do
Estado, Spinoza tem a oferecer a plenitude da presença, uma espécie de tempo imediato sem
destinos ou teleologias: apenas afirmação pura da potência. Politicamente, esta atualidade
absoluta do tempo será capaz de construir uma coletividade – orientada pelo amor a Deus –
cuja legitimidade está apenas em si própria. Assim, enquanto o espírito moderno, encabeçado
sobretudo pelo hegelianismo e suas cópias insípidas, como o próprio Negri as classifica, não
tem ferramentas conceituais para justificar a democracia, o spinozismo conduz perfeitamente
da potência da multidão ao seu estabelecimento ulterior como potestas democrática. A
filosofia de Spinoza opõe ao individualismo e às mediações modernas a potência de
coletividade e a imediação democráticas. Sua atualidade reside justamente naquilo que possui
de marcadamente antimoderno:
54
CHAUI, M. 2021, P. 86-95.
43
55
NEGRI, A. 2016, P. 165.
56
Tradução minha de ISRAEL, J. 2010, P. VII-VIII.
57
ISRAEL, J. 2001, P. 161.
44
a partir das ideias que desenvolve em suas obras, mas também como uma espécie de ícone
público que encarnava ideias radicais e de caráter emancipatório.
58
ISRAEL, J. 2001, P. 230.
45
Topologia da exterioridade
59
SCHMITT, C. 2006, P. 35. Tomo como base, aqui, a tradução de Elisete Antoniuk publicada pela Editora Del
Rey. Noto, de passagem, a escolha do termo “concisos” para traduzir “prägnanten”, o termo originalmente
empregado por Schmitt (SCHMITT, C. 2015b, P. 43). Segundo o Dicionário de Alemão Wahrig, o adjetivo
“prägnant” pode ser vertido por “significativo; conciso; preciso” (WAHRIG-BURFEIND, R. 2011, P. 809). A
tradução inglesa opta pelo adjetivo “significant” (SCHMITT, C. 2005, P. 36), discordando da opção de
Antoniuk.
60
Ibid.
61
Para um tratamento mais detido da questão da secularização, que procura dar conta de seu desenvolvimento
histórico e filosófico, ver o livro de Jean-Claude Monod, La querelle de la sécularisation. De Hegel à
Blumenberg. Paris: Vrin, 2002.
62
“Pressuposto, portanto, dessa forma de sociologia de conceitos jurídicos é a conceptualidade radical, ou seja,
uma consequência levada até o âmbito metafísico e teológico. A imagem metafísica que uma certa época faz do
mundo tem a mesma estrutura do que lhe parece, simplesmente, como forma de sua organização política.”
SCHMITT, C. 2006, P. 43.
46
O texto de Schmitt, porém, é marcado por uma oscilação incômoda, quase que por um
mistério. De um lado, o que fica claro em especial a partir do primeiro parágrafo do capítulo,
seu interesse parece recair sobre uma relação comparativa ou analógica, quer dizer, sobre
uma correlação em nível primário. Os conceitos políticos teriam uma origem em comum com
os conceitos teológicos: mas, em algum momento da história, teriam simplesmente se
desligado da teologia e se secularizado. Schmitt apenas forneceria, assim, uma espécie de
diagnóstico histórico ou cultural sobre os processos de construção de determinados conceitos
clássicos do domínio político. Já a descrição que faz de sua sociologia dos conceitos políticos
parece transcender o exercício meramente analógico em direção a uma verdadeira relação de
imbricação e dependência estrutural. En passant, Schmitt define o deísmo como um
movimento dotado de uma “teologia e metafísica”65 cuja característica central é a expulsão do
milagre do mundo; metafísica esta que teria como consequência a ideia de Estado
constitucional moderno. Neste exemplo, teologia e política se apresentam como
ordenamentos que se confundem, posto que conceitualmente nutridos um pelo outro (para
não mencionar o fato de Schmitt atribuir uma teologia inclusive ao deísmo, uma escola de
pensamento particularmente crítica da teologia tradicional). A pergunta que surge, neste
momento, é a seguinte: por fim, a questão da teologia-política schmittiana determina uma
63
Cf. carta a Mersenne de 15 de abril de 1630 (AT I, 145).
64
SCHMITT, C. 2006, P. 46.
65
SCHMITT, C. 2006, P. 35.
47
simples aproximação entre os dois campos ou, mais do que isso, pretende mostrar que toda
política é consequência de um solo metafísico de fundo que a sustenta?66
66
Alexandre Franco de Sá parece também ter compreendido esta ambiguidade. Para ele, a tese da teologia
política tal como enunciada no texto de 1922 é mais modesta e diz respeito, antes, à origem da modernidade do
que ao estabelecimento de uma dependência íntima entre os dois âmbitos. Schmitt estaria preocupado em propor
uma articulação entre os conceitos políticos fundantes da modernidade e uma origem teológica determinada. Ela
é, tomando o texto mais literalmente, uma tese particular e metodológica a respeito do Estado moderno. O que
não quer dizer que já não escondesse, em seus termos, “um conteúdo político implícito” (que parece ser o
mesmo que tentamos apontar ao tratar da dita sociologia dos conceitos). Ver o ensaio “Um olhar
teológico-político sobre o liberalismo político contemporâneo”, In: Metamorfose do poder. Prolegômenos
schmittianos a toda sociedade futura. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012.
67
SCHMITT, C. 2015a, P. 51.
68
Ibid, P. 54, 58-59.
69
Ibid, P. 59-61.
48
70
Ibid, P. 68-69.
71
Schmitt avança esta análise ao longo do parágrafo 7 do texto em questão. Cf. SCHMITT, C. 2015a, P.
105-121.
72
Para uma análise mais demorada da crítica schmittiana ao liberalismo, ver o livro de Bernardo Ferreira: O
Risco do Político. Crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004.
73
SCHMITT, C. 2015a, P. 109.
49
Esta ideia de uma política inautêntica que parece governar a crítica schmittiana ao
liberalismo nos permite recolocar, em outros termos, a questão que já vínhamos perseguindo
desde nossa reconstrução da ambiguidade específica do Teologia Política, isto é, a questão da
dependência de um conteúdo político a um elemento teológico que lhe é anterior. Ao postular
que toda teoria política depende de uma antropologia qualquer, Schmitt parece encontrar-se
com a versão forte da questão da teologia-política, com aquela interpretação possível da
expressão “estrutura sistemática”: toda teoria política depende de uma antropologia assim
como os operadores políticos são necessariamente subordinados a um solo teológico amplo.
Ao mesmo tempo, insiste que o liberalismo não pode ser classificado enquanto uma teoria
estatal robusta; e chega mesmo a opor liberalismo e política: onde há liberalismo, uma vez
que não há conflito, ou seja, não há distinção amigo-inimigo, não há política75. O liberalismo
é, então, uma teoria política que se caracteriza pela negação política da política ou, ao
contrário, um conteúdo simplesmente disperso, que, ao introduzir elementos éticos e
econômicos (“o pathos ético e o cálculo econômico”76), resulta simplesmente numa reação
crítica ao Estado, mas que não pode, estritamente falando, ser denominada política? A
74
Ibid.
75
“Em particular, ligaram-se [os liberais] às forças da democracia, que são inteiramente iliberais porque são
essencialmente políticas e até conduzem ao Estado total”. Ver SCHMITT, C. 2015a, P. 122.
76
Cf. SCHMITT, C. 2015a, P.128.
50
interrogação se encontra com nossa pergunta anterior na medida em que está colocando em
xeque, mais uma vez, a conexão entre política e um conteúdo que lhe transcende.
77
SCHMITT, C. 2014, P. 37.
78
Ibid, P. 40, 46.
79
Ibid.
80
Ibid, P. 41.
51
funda a ordem jurídica duplamente: para o interior e para o exterior.81 Para o interior, na
medida em que é a partir dele que as leis podem ser estatuídas, justificando o funcionamento
de certa comunidade ali estabelecida; para o exterior, uma vez que são criadas fronteiras entre
grupos que tomaram porções de terra específicas (as relações de amizade e inimizade, isto é,
as relações políticas, podem ser estabelecidas, então, entre grupos que possuem ordens
jurídicas particulares alimentadas por este apoderamento territorial inicial). Uma ressalva
importante: este acontecimento originário do direito não deve ser pensado em termos
metafóricos, analógicos ou ficcionais. Neste aspecto, Schmitt parece estar abolindo a
distinção entre teoria e prática: a tomada de terra é um instrumento conceitual que tem
validade lógica, é certo, mas também histórica. Muito embora, do ponto de vista histórico,
tais apropriações tenham ocorrido na confusão das circunstâncias, de tal modo que muito
dificilmente, para fins heurísticos, podem ser apartados de uma teia de demais eventos que,
em conjunto, explicam a fundação da ordem jurídica82, não se pode retirar este caráter
concreto do conceito. É importante que a tomada de terra seja pensada como evento
existencial – prático, histórico, concreto –, e será justamente esta característica que o
distinguirá do modo como o normativismo jurídico explica (ou melhor: não explica ou
mesmo esquece) a fundação do direito, quer dizer, apelando para o valor da norma por si
mesma, confundindo ser e dever-ser. Assim, quando Schmitt afirma que a tomada de terra é o
“enraizar no reino de sentido da história”83 e quando declara que deste evento originário
“nutre-se todo direito subsequente e tudo aquilo que depois ainda vier a ser promulgado e
decretado como estatuições”84, não está produzindo metáforas territoriais, não está criando
uma ficção conceitual jurídica útil para seu raciocínio: está, antes apontando para o caráter
histórico-concreto-existencial (e lógico, certamente) deste evento. Nada muito diferente do
expediente que encontramos em O Conceito do Político, particularmente quanto à
necessidade de reenviar as distinções políticas para seu âmbito concreto e existencial, contra,
naquela altura, o liberalismo, que se baseia justamente numa definição abstrata de
81
Ibid, P. 41-43.
82
“Aqui, porém, é preciso levar em conta uma dupla consideração: primeiro, devemos reconhecer a tomada de
terra como um fato da história do direito, como um grande acontecimento histórico, não como mera construção
do pensamento, ainda que na realidade histórica essas tomadas de terra tenham acontecido como eventos
tumultuosos e o direito à terra tenha se originado algumas vezes de migrações torrenciais de povos e de
campanhas de conquista, outras vezes da defesa bem-sucedida de um país em face do estrangeiro.” Cf.
SCHMITT, C. 2014. P. 43.
83
Grifo meu. SCHMITT, C. 2014, P. 45.
84
Nesta passagem, o grifo é do próprio Schmitt. Ibid.
52
humanidade. Talvez possamos afirmar que, em Schmitt, a ordem concreta é uma espécie de
fio condutor, exercendo a função de um solo inescapável, para o qual os conceitos devem a
todo tempo ser remetidos.85
Um novo conceito de nomos – que é, antes, uma recuperação de seu sentido originário
–, que seja capaz de evidenciar esta conexão íntima entre ordenação e localização, entre o
evento de tomada de terra e as formulações jurídicas posteriores, tem de ser apresentado.
Numa formulação breve, o nomos é “a medida que parte o chão e o solo da Terra e os localiza
em uma ordenação determinada; é também a forma, assim adquirida, da ordem política,
social e religiosa”86. Espacialidade e concretude histórica são os conceitos compreendidos
nesta formulação do nomos. Tal ideia de nomos deve ser capaz de combater certo
posicionamento encontrado, segundo Schmitt, em muitos juristas do direito positivo, que
consiste em classificar como não-jurídica qualquer reflexão a respeito da origem. Uma
investigação sobre a realidade concreta já existente – sobre a ordem ordenada (ordo
ordinatus) ou sobre o poder constituído (pouvoir constitué) – não deve ser confundida com
um exame sobre o que condiciona esta realidade, ou seja, sobre a ordem ordenante (ordo
ordinans) ou sobre o poder constituinte (pouvoir constituant). Os juristas do direito positivo,
então, ao se concentrarem apenas na questão da legalidade já constituída, costumam remeter
a questão da origem à constituição ou à simples vontade do Estado, o qual funciona como
origem positiva de si mesmo. Repensar o conceito de nomos é, antes de mais nada, uma
forma de resistir ao esquecimento da questão da origem.
85
Mais uma vez, remeto a um ensaio de Alexandre Franco de Sá a respeito da ordem concreta em Schmitt:
“Decisão, crença e o sentido da ordem concreta” In: Poder, Direito e Ordem. Ensaios sobre Carl Schmitt.
Capítulo II: “Entre o povo e o político: Schmitt e a ordem concreta”. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012. P.
113-129.
86
SCHMITT, C. 2014, P. 69.
87
AGAMBEN, G. 2004, P. 11-12
53
estado de exceção está, ao mesmo tempo, dentro e fora da ordem, sendo “a forma legal
daquilo que não pode ser legal”88. O estado de exceção se comunica com a ordem através de
uma estranha relação de suspensão da mesma. Tanto Schmitt quanto Agamben estão
apontando, um por meio da crítica ao normativismo jurídico, outro através de uma reflexão
da topologia do estado de exceção, para o modo como uma espécie de resto existencial,
concreto ou vivente está a todo tempo contaminando a ordem jurídica, e que é preciso
enfrentá-lo caso se queira avançar uma definição satisfatória do que configura o político e o
jurídico como um todo.
Talvez possamos generalizar ainda mais esta disputa que parece orientar as passagens
dos três textos de Schmitt que discutimos até então e também a brevíssima intuição de
Agamben, de origem schmittiana. Quando se trata de pensar a conexão entre teologia e
política, quando se critica o liberalismo por não partir de uma antropologia conflituosa,
incapaz de gerar uma teoria do estado consequente, quando o normativismo jurídico é
recusado por se esquecer dos elementos existenciais que fundam o direito e, por último,
quando o estado de exceção é tomado como uma questão de fato mais do que a uma pergunta
que goza de legitimidade jurídica, coloca-se sempre em xeque a relação ampla entre uma
ordem e um elemento que lhe escapa. A interrogação geral que orienta todos estes textos
parece ser: o que funda uma ordem qualquer, seja ela política, jurídica, social, religiosa ou
econômica? O que lhe dá direito de existência? Qual a conexão a ser pensada entre
interioridade (a ordem) e exterioridade (o fundamento)?
Trata-se de uma pergunta que carrega não apenas uma faceta política, mas se verifica
em alguns momentos da história da filosofia ocidental. Quando se reflete sobre o que causa o
mundo não está se perguntando, afinal, sobre o elemento que o torna possível, que lhe
confere regularidade, que o legitima? Buscando, de maneira a posteriori, pelas causas dos
fenômenos observados no presente, numa espécie de regressão ao infinito, chega-se
necessariamente a um momento em que, para recuperar a expressão de Wittgenstein, a pá
entorta89. Percorrendo de justificativa em justificativa, atinge-se o momento de se deter sobre
88
AGAMBEN, G. 2004. P. 12.
89
“ ‘Como posso seguir uma regra?’ — Se isto não é uma pergunta pelas causas, é então uma pergunta pela
justificação para o fato de que eu ajo segundo a regra assim. Se esgotei as justificações, então atingi a rocha dura
e minha pá entortou. Estou então inclinado a dizer: ‘é assim que ajo’.”. Cf. WITTGENSTEIN, L. Investigações
filosóficas, §217. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975. P. 95.
54
um princípio injustificável: sem ele é impossível criar. Não é possível demonstrar o tudo,
pois, segundo Aristóteles na Metafísica: “nesse caso ir-se-ia ao infinito e, consequentemente,
não haveria nenhuma demonstração”90. O fundamento parece ser inabordável e impossível de
ser criticado: faz parte de sua definição mesma que ele seja dogmaticamente posto. Eis a
démarche dos argumentos cosmológicos de São Tomás de Aquino, que reenviam a origem do
mundo a um primeiro motor incausado, e também das disputas argumentativas em torno das
provas da existência de Deus – que, sabemos, entretiveram a filosofia durante alguns séculos.
É certo que Schmitt está comprometido não só com o que denominaremos, a partir de
agora, a questão da exterioridade, como também com uma resposta específica para ela. Para
Schmitt, é necessário postular um fundamento exterior à ordem que a alimente. É preciso
separar a questão da exterioridade, que reconhece como problemático o direito de existência
da ordem, de uma solução determinada para ela. Nossa estratégia, ao tomá-lo como guia,
subscreve sua proposta até certo ponto: gostaríamos não exatamente de aceitar sua solução,
mas caminhar com ele até o ponto em que encontramos, nos seus textos, esta questão sendo a
todo tempo recolocada nas mais variadas versões. Podemos nos beneficiar, também, de um
segundo autor – que se interessou, até onde posso ver, pelo mesmo problema que Schmitt,
avançando para ele, porém, uma resposta distinta.
90
ARISTÓTELES. 2015, P. 145.
55
emprego é a condição mesma para pôr a justiça em marcha. Toda a interrogação subsequente,
já poderíamos supor, consistirá em poder distinguir a força autorizada, da qual a lei não pode
prescindir, da força desnecessária, ou, antes, da força injusta. O que distingue força legítima e
ilegítima, violência implicada na fundação da lei e violência supérflua?
Ainda quanto à análise das expressões típicas de cada idioma, Derrida enfatiza o
termo alemão Gewalt – palavra que participa do título de um ensaio importante de Walter
Benjamin, com o qual se ocupará na segunda parte da conferência. “Zur Kritik der Gewalt”
(1921) é, reclama Derrida, insuficientemente traduzido por “Critique de la violence”, em
francês, e “Critique of Violence”, em inglês. A razão disso é que o termo alemão Gewalt
significa não apenas violência, mas também “poder legítimo, autoridade, força pública”91.
Diz-se, em alemão, para poder legislativo, Gesetzgebende Gewalt; para poder espiritual da
igreja, geistliche Gewalt; e, enfim, para poder do Estado, Staatsgewalt. Destaca-se, em todos
estes casos, um vínculo óbvio entre instituição, autoridade ou poder constituído e uma
violência em seu interior, uma espécie de violência constituinte. Uma tradução recente para o
português, atenta a esta ambiguidade, preferiu verter o título do texto benjaminiano por
“Sobre a crítica do poder como violência”92.
Seja como for, observa-se que, assim como no caso da expressão to enforce law, está
implicada em Gewalt uma relação entre justiça e força. Há, portanto, uma violência que
instaurou o poder autorizado; e deve-se considerar que o momento de fundação do poder
instituído não admite classificações como justiça ou injustiça, legalidade ou ilegalidade, uma
vez que se trata da própria condição de possibilidade de toda justiça e de toda legalidade
posterior. “Trata-se de julgar aquilo que permite julgar, aquilo que se autoriza o julgamento”93
: pensar esta questão no interior do debate desconstrucionista significa, então, atentar para a
viabilidade da norma e de qualquer critério em geral lá onde ela ainda não foi fabricada.
Perguntar-se se a desconstrução permite a justiça é uma questão ainda mais geral acerca da
possibilidade de um discurso que, num primeiro momento, tendemos a classificar como um
discurso de síntese – a justiça, pensada ao lado da força e da violência originária como aquilo
91
DERRIDA, J. 2018a. P. 9.
92
Cf. BENJAMIN, W. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2016. P.57-82.
93
Cf. DERRIDA, J. 2018a, P. 5.
56
que justamente vem impor um critério –, no interior de uma prática que retira seu sentido
justamente do aniquilamento das unidades e das homogeneizações rígidas.
94
Cf. DERRIDA, J. Marges de la philosophie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972.
95
Para a associação entre o próprio e a ideia de soberania, consultar o seminário A besta e o soberano,
particularmente seu primeiro volume. Cf. DERRIDA, J. A besta e o soberano (Seminário). Vol I (2001-2002).
Rio de Janeiro: Via Verita, 2016.
57
constituído, sob certo aspecto, sempre e necessariamente injusto? É neste sentido que, ao se
recusar a fundar algo, ao se situar sempre no campo da pergunta pelo que condiciona a
ordem, sem avançar para ela um critério, que, talvez, a desconstrução surja como a única
maneira de ser justo. E, aqui, já podemos entrever em que sentido a solução derridiana opta
pelo caminho oposto da schmittiana: confrontados com o problema do fundamento,
guardadas as peculiaridades dos debates com os quais se envolveram, enquanto um pretende
sublinhar a impossibilidade de prescindir de um fundamento exterior à ordem, outro parece
justamente implicado num exercício de questionamento incessante desta ordem e de seu
fundamento.
Ora, as leis se mantêm em crédito, não porque elas são justas, mas porque
são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não têm outro [...].
Quem a elas obedece porque são justas não lhes obedece justamente pelo
que deve. (Grifo meu. Apud DERRIDA, J. 2018a, P. 21).
Segundo a leitura convencionalista, haveria algo como uma ideologia jurídica oculta,
que instalaria a justiça de acordo com seus interesses, empregando a força como um
instrumento de sua imposição. A justiça como o direito do mais forte, entendida no sentido de
uma tirania, cuja identificação permitiria uma crítica aos “aparelhos ideológicos de Estado”97.
Está subentendida, então, uma relação entre força e justiça que as considera como operadores
separados; na qual a força é um meio para um fim. A força é um elemento externo à justiça,
96
Apud. DERRIDA, J. 2018a, P. 18.
97
Derrida não faz esta associação, mas ela nos parece útil para compreender o que pretende designar como
interpretação convencionalista. A referência é ao texto de Althusser “Idéologie et appareils idéologiques d’État.
(Notes pour une recherche)”. Artigo originalmente publicado na revista La Pensée, no 151, juin 1970. In:
ALTHUSSER, L. Positions (1964-1975), p. 67-125. Paris : Les Éditions sociales, 1976.
58
um poder – que pode ser pensado, por exemplo, como um poder econômico – ao qual ela se
ajusta.
Talvez, no entanto, uma leitura alternativa e mais ativa possa ser proposta. Pode ser
que a relação entre força e justiça visada por Pascal e Montaigne procure evidenciar o modo
como a justiça depende da força num sentido mais substancial do que o de um instrumento ou
de um método de imposição do qual, em momento seguinte, ela poderia se desfazer. A força é
uma propriedade intrínseca da justiça, seu predicado essencial, presente tanto na
instauração desta quanto em sua manutenção subsequente. Este momento fundador da
justiça ou da ordem não é, nele mesmo, justo ou injusto, legal ou ilegal: é um ato puro,
indiferente, que não pode receber quaisquer distinções jurídicas, uma vez que é a sua causa
(seria preciso fundar um operador adicional para julgar aquilo que permite julgar, e assim
sucessivamente ao infinito). Esta característica do direito, ou seja, a de manter com a força
uma relação profunda de retroalimentação, não é nova para nós: ela já estava compreendida
nos textos que visitamos de Schmitt, particularmente, creio, no primeiro capítulo de O Nomos
da Terra. Não é exatamente isto que a tomada de terra significa – uma atitude violenta,
abrupta, um ato puro, de caráter originário e instaurador, que não pode padecer de quaisquer
classificações jurídicas, pois é aquilo que as permite? O que Derrida designa como violência
performativa do ato instaurador do direito é o que Schmitt designa como o ato de tomada de
terra inicial que cria a ordem; e tanto um quanto o outro enfatizam a conexão entre justiça e
força/violência. A afinidade parece tão óbvia que é algo notório que Schmitt não seja, neste
momento, requisitado ao debate, e talvez seja útil se perguntar pelas razões de tal omissão.98
O místico também não pode nos escapar, pois surge tanto na passagem de Montaigne
quanto na de Pascal99. Derrida afirma que interpreta este místico num sentido
wittgensteiniano, sem, no entanto, desenvolver esta afirmação. Se recuperarmos as passagens
do Tractatus Logico-Philosophicus nas quais o místico é apresentado, poderíamos deduzir, de
modo algo limitado, que o místico é aquilo que escapa à linguagem, algo que se mostra, que
diz respeito à estrutura do mundo, mas sobre o qual não se pode erguer um logos, e, portanto,
98
Os silêncios também são dignos de nota. O que quer dizer a ausência de Schmitt numa conferência em que
Derrida se propõe justamente a pensar a fundação do direito – um tema schmittiano, como procuramos mostrar
nesta introdução? Schmitt não é um autor inteiramente estrangeiro a Derrida; ele é citado, para recuperar apenas
um exemplo, no curso A besta e o soberano.
99
Derrida aventa a possibilidade de Pascal, no aludido fragmento dos Pensamentos, estar citando Montaigne
sem nomeá-lo. Ver DERRIDA, J. 2018a, P.20.
59
aquilo sobre o quê a filosofia não pode falar (fundamentalmente, para ele, o ético e o estético,
ou simplesmente a metafísica). O místico é aquilo que se mostra na linguagem mas que não
pode receber dela um discurso de segunda ordem100. Voltando, então, ao trecho Montaigne:
sua afirmação circula em torno da ideia de crença. O fundamento da autoridade é um ato de
fé: dar crédito a, confiar, crer – nas leis, na autoridade do soberano, no Estado. Existiria um
caráter ficcional imanente à toda estrutura autoritária, um investimento ou uma relação de
reconhecimento implícita, de modo que a autoridade dependeria muito mais daqueles aos
quais subjuga do que daqueles que valida. Guardemos este sentido de ficção para um
momento posterior de nossa investigação acerca do direito.
Mais fundamental, agora, é a ideia de silêncio, também imposta pelo místico, e que
nos permite compreender os paradoxos da justiça. Sobre o fundamento não se pode erguer
nenhum discurso, porque ele é condição de todo o discurso. “Há um silêncio murado na
estrutura violenta do ato fundador. Murado, emparedado, porque esse silêncio não é exterior
à linguagem”101: eis aqui o ponto nevrálgico, o momento em que a discussão derridiana
atinge repentinamente o que temos procurado conquistar, ou seja, a questão da exterioridade.
O místico, então, diz-se em dois sentidos: primeiro, no silêncio, no inefável, na
impossibilidade de abordagem ou crítica do fundamento; depois, e mais importante, o místico
não pode ser separado da realidade mesma que constitui. O paradoxo do místico é ser, ao
mesmo tempo, aquilo que torna possível a linguagem mas que não pode ser dela separado;
que torna a linguagem possível linguisticamente. Neste sentido, as leis, a ordem, a justiça
subsequente, são seu próprio fundamento; o fundamento retorna sobre si mesmo, revelando
seu caráter infundado. À questão da exterioridade do fundamento, Derrida, parece-nos,
responde diferentemente de Schmitt: o caráter infundado do fundamento não o desloca para o
exterior da ordem constituída – ao contrário, o faz ocupar uma posição interior à ordem
mesma, conservando-a e nutrindo-a.
100
Limito-me aqui a apresentar algumas passagens que justificam as afirmações sobre Wittgenstein. “É claro
que a ética não se deixa exprimir. A ética é transcendental. (Ética e estética são uma só)” (6.421); “O místico
não é como o mundo é, mas que ele é.” (6.44); “A intuição do mundo sub specie aeterni é sua intuição como
totalidade - limitada” (6.45) e “Há por certo o inefável. Isso se mostra, é o Místico.” (6.522). Reproduzo as
citações a partir da tradução preparada por Luiz Henrique Lopes dos Santos. Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus
Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.
101
Grifo meu. DERRIDA, J. 2018a, P. 25.
60
A ideia de que o fundamento nutre constantemente a ordem nos permite tomar uma
dupla posição: ou Derrida ou Schmitt. Entre estes autores, então, duas formas distintas de
compreender o caráter infundado do fundamento. Ambos estão comprometidos com a
discussão sobre o que funda uma ordem qualquer. Ambos veem neste movimento instaurador
um ato violento. Um, no entanto, posiciona este fundamento fora da ordem; outro, a mantém
em seu interior. Para Schmitt, o infundado deve ocupar um espaço regular fora da ordem,
deve como que alimentá-la à distância. Para Derrida, o infundado é imanente à ordem, o que
resulta numa posição ligeiramente mais complicada, e que deve ser compreendida à luz do
místico, que é aquilo que condiciona silenciosamente a linguagem, sendo o silêncio ele
mesmo uma forma de manifestação linguística. O fundamento, da mesma forma, cria a ordem
e nela permanece, se confundindo com ela e operando como seu motor oculto. Ele é
infundado, portanto, porque não pode reenviar a nada diferente de si próprio: ele é seu
próprio fundamento.
102
DERRIDA, J. 2018a, P.27.
61
Além de ter conduzido uma reflexão acerca do direito, Derrida interessou-se por outra
discussão também verificada em Schmitt: aquela do religioso. O debate em torno do “retorno
do religioso hoje”103 surge num texto intitulado “Fé e saber. As duas fontes da ‘religião’ nos
limites da simples razão”, apresentado em um seminário ocorrido em 1994 na ilha de Capri,
na Itália. Qualificar este fenômeno como “retorno” é já tomar posição: subentende-se uma
primeira vitória das Luzes em sua suposta tentativa de expulsar o religioso do mundo,
seguida de uma derrota manifestada pelo ressurgimento (por vezes classificado como
violento) da religião ao longo do século XX. Opõe-se, de forma ingênua, razão, ciência,
crítica, de um lado; religião, fundamentalismo, dogmatismo, de outro.104 Um esquema tão
nitidamente construído ignora que, talvez, a existência mesma da razão não determine o
desaparecimento integral da religião: ao contrário, talvez seja possível pensar que entre as
duas há uma relação íntima de copertencimento, o que Derrida procurará desvendar lendo
principalmente o texto “A religião nos limites da simples razão”, de Immanuel Kant.
103
DERRIDA, J. “Fé e saber. As duas fontes da ‘religião’ nos limites da simples razão”. In : DERRIDA, J.
VATTIMO, G. (orgs). A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2018b.
104
DERRIDA, J. 2018, P. 15.
105
Apresento a discussão e o vocabulário kantiano a partir de Derrida, cf. DERRIDA, J. 2018b, P. 20-21.
106
Ibid, P. 21.
62
pensar os limites daquilo que costumamos designar como racional ou objetivo e para
questionar a validade da oposição entre fé e saber.
Se insistirmos na ideia de que o agir moral não é nada além de uma versão
secularizada do agir cristão, temos de lidar com a consequência incômoda, surpreendente e
paradoxal, de que o cristianismo atinge sua vocação, sua máxima aceitação, justamente
quando se anula, quando não se assume como religião, mas simplesmente como moral. A
morte de Deus seria, assim, ao contrário de sua expulsão do mundo, sua introdução maior, e a
universalização da religião seria obtida a partir de seu total apagamento. Esta constatação é o
ponto de partida de um debate entre René Girard e Gianni Vattimo, que concordam que a
modernidade é consequência do cristianismo e não sua supressão.107 O cristianismo não
desapareceu, apenas sofreu mutações de modo a se adaptar ao mundo moderno, mutações
essas que derivam de seu cada vez maior desaparecimento enquanto religião
institucionalizada.
É certo que, para estes autores, trata-se de uma implicação positiva, que manifestaria a
vitória do cristianismo sobre a Terra. Para além desta conclusão interessada, esta associação,
obtida através dos conceitos kantianos, pode nos levar a pensar acerca dos
comprometimentos implícitos de certos operadores políticos que, à primeira vista, tomamos
como desinteressados. Assim para o caso da tolerância. Não é a tolerância para com o outro
um conceito de origem cristã? Até mesmo os teóricos das Luzes parecem tê-lo reconhecido:
mesmo Voltaire, em seu Dictionnaire philosophique108, sublinha que a tolerância é um
conceito cristão, muito embora os cristãos de sua época, segundo ele, tenham se portado
como os mais intolerantes de todos os homens. Ao invocar uma espécie de cristianismo
primitivo, Voltaire se situaria, ao invés de numa linhagem de combate antirreligioso, como
um autor pró-restabelecimento de uma religião autêntica e mais originária: e Derrida está
pronto para assumir, neste momento, que tanto Voltaire quanto Heidegger ocupariam lado a
lado uma certa tradição de orientação católica.
107
Ver GIRARD, R. VATTIMO, G. Christianisme et modernité. Paris : Flammarion, 2014. Ver também o
clássico de Marcel Gauchet: Le désenchantement du monde. Paris: Éditions Gallimard, 1985.
108
Assim como no caso de Kant, retomo os conceitos e o vocabulário de Voltaire a partir do modo como Derrida
os discute. Ver DERRIDA, J. 2018b, P. 34.
63
Se razão e religião emanam de uma mesma fonte, o esquema que os opunha termo a
termo, com o qual a investigação se iniciou, deve ser substituído por outro, que suponha seu
copertencimento e que, enfim, possa promover uma crítica ou suscitar maior prudência
quanto à aceitação irrestrita da razão como sustentáculo dos operadores políticos. Parece-nos
uma conclusão demasiadamente radical a de que Derrida estaria argumentando a favor da tese
mais forte da teologia-política, ou seja, subscrevendo a ideia de que todos os operadores
políticos brotam de um solo teológico determinado. Sua posição é mais a de cautela: até que
ponto a razão é neutra? Conceitos como o de modernidade, tolerância, secularização e
democracia não são tão interessados quanto aqueles que presunçosamente acusamos de
dogmatismo religioso? Esta intuição nos levará a desconfiar sobretudo das interpretações
democrático-liberais-seculares de Spinoza, que enxergam, em especial no Tratado
Teológico-Político, o início de um processo de total rompimento entre fé e saber. Seguindo a
intuição de Derrida – a de que, em suma, a secularização é, antes, uma sacralização
disfarçada, e que a oposição razão-religião, ao invés de útil, esconde o problema mais
fundamental do pertencimento dos operadores políticos à determinadas crenças de base –,
parece que podemos fornecer uma interpretação no mínimo mais complicada – o que
evidentemente não quer dizer mais teológica – para o texto spinozista em questão.
109
DERRIDA, J. 2018b, P. 43.
110
DERRIDA, J. 2018b, P. 62.
111
Ibid.
64
tempo. Mencionamos brevemente que, no terceiro capítulo de Teologia Política, Carl Schmitt
cita ao menos três teses cartesianas vinculadas à noção de um soberano absoluto: a tese da
criação contínua, a da livre criação das verdades eternas e a crença – pois é discutível se
configura propriamente uma tese – na superioridade das obras criadas por um único
arquiteto ou legislador. Quando confrontadas com as intuições e evidências políticas do
século XVII, a partir da dita sociologia dos conceitos jurídicos schmittiana, o cartesianismo
proporciona, além de um acurado diagnóstico histórico, um olhar atento para os paradoxos
inerentes à própria noção de soberania – que podem reconfigurar, em última análise, a relação
entre exterioridade e interioridade e a própria articulação entre os domínios da teologia e da
política.
Segundo Schmitt, “Atger notou que o monarca, na teoria do Estado do século XVII,
foi identificado com Deus e que tem, no Estado, a mesma, exata e análoga posição conferida
ao Deus do sistema cartesiano no mundo”112. Citando o Essai sur l’histoire des doctrines du
contrat social, de Frédéric Atger, Schmitt subscreve a tese segundo a qual “o príncipe
desenvolve todas as virtualidades do Estado por uma espécie de criação contínua. O príncipe
é o Deus cartesiano transposto no mundo político”113. O que diz exatamente tal tese?
Descartes a apresenta sucintamente na Terceira Meditação em dois breves parágrafos, como
forma de responder a uma possível objeção à prova da existência de Deus – ou, mais
especificamente, à suposição de que eu posso existir sem causa:
E ainda que possa supor que talvez tenha sido sempre como sou agora, nem
por isso poderia evitar a força desse raciocínio, e não deixo de conhecer que
é necessário que Deus seja o autor de minha existência. Pois todo o tempo
de minha vida pode ser dividido em uma infinidade de partes, cada uma das
quais não depende de maneira alguma das outras; e assim do fato de ter sido
um pouco antes não se segue que eu deva ser atualmente, a não ser que neste
momento alguma causa me produza e me crie, por assim dizer, novamente,
isto é, me conserve.
Com efeito, é uma coisa muito clara e muito evidente (para todos os que
considerarem com atenção a natureza do tempo) que uma substância, para
ser conservada em todos os momentos de sua duração, precisa do mesmo
poder e da mesma ação, que seria necessário para produzi-la e criá-la de
novo, caso não existisse ainda. De sorte que a luz natural nos mostra
claramente que a conservação e a criação não diferem senão com respeito à
nossa maneira de pensar, e não em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu me
interrogue a mim mesmo para saber se possuo algum poder e alguma virtude
que seja capaz de fazer de tal modo que eu, que sou agora, seja ainda no
futuro: pois, já que eu sou apenas uma coisa pensante (ou ao menos já que
112
SCHMITT, C. 2006, P. 43.
113
Tradução minha a partir do trecho citado no original em SCHMITT, C. 2006, P. 43.
65
não se trata até aqui precisamente senão dessa parte de mim mesmo), se um
tal poder residisse em mim, decerto eu deveria ao menos pensá-lo e ter
conhecimento dele: mas não sinto nenhum poder em mim e por isso
reconheço evidentemente que dependo de algum ser diferente de mim.
(DESCARTES, R. 1973, P. 118; AT IX-1, 38-39)
A conclusão de que Deus cria e conserva depende, em primeiro lugar, de uma tese
acerca da estrutura do tempo. O tempo é de natureza descontínua, quer dizer, é composto por
uma infinidade de partes cujas conexões não estão dadas previamente. É pelo fato de poder
ser dividido em infinitas partes, de tal modo que o que aconteceu antes não determina o que
aconteceu depois, que as substâncias, para persistirem na duração, necessitam de um
princípio causal não apenas para sua criação inicial, mas para sua permanência na existência.
Observe-se que a tese da descontinuidade do tempo não é tematizada, no trecho, por
Descartes, mas apenas tomada como um dado, de modo que seria possível discordar do
encaminhamento do argumento questionando a validade de sua premissa maior. Ainda, é
tomada como “uma coisa muito clara e muito evidente”114 que a força necessária para manter
um ente na existência é a mesma exigida para criá-lo desde a primeira vez. Assim, aceitando
o modo como Descartes constrói o problema a partir destas duas teses, sua demonstração
conclui que o ato de criação e de conservação não se distinguem; e que certamente não
reconheço que eu – que por enquanto sou apenas uma coisa pensante – tenha este poder de
me pôr inicialmente na existência, menos ainda para me permitir permanecer nela. Entre
criação e conservação há, portanto, apenas uma distinção de razão, e o ato de criação
contínua deve ser remetido não a mim, mas a Deus.
O mesmo pode ser dito quanto ao poder soberano. O soberano absoluto é não só
aquele que cria o ordenamento jurídico a partir de uma situação de exceção – o que se
evidencia pelo fato de que é apenas ele que tem o poder de decretar o estado de exceção no
interior da normalidade –, mas aquele elemento que, dada sua topologia tensa, permite que a
normalidade se conserve: "O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente,
porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser
suspensa in toto"115. Assim como o Deus cartesiano, o soberano está ao mesmo tempo dentro
e fora do ordenamento: fora, pois foi responsável por sua criação ex nihilo; dentro, pois
permanece conservando a ordem de que é a origem.
114
DESCARTES, R. 1973, P. 118; AT, IX-1, 39.
115
SCHMITT, C. 2006, P. 8.
66
Trataremos da recusa das causas finais por parte de Descartes no primeiro capítulo deste trabalho.
116
117
DESCARTES, R. “Carta de Descartes a Mersenne. Amsterdam, 15 de abril de 1630”. In : Modernos &
Contemporâneos - International Journal of Philosophy [issn 2595-1211], v. 1, n. 2, 9 set. 2018. P. 212; AT I,
145.
67
Eis por que investigar a noção de soberania é defrontar-se com uma situação
paradoxal, assim definida por Giorgio Agamben no primeiro volume de sua série Homo
Sacer. Desvelado a partir de uma interpretação do decisionismo schmittiano, o soberano
ocupa este complicado lugar: nem dentro nem fora do ordenamento jurídico120. A relação
fundamental que coordena a soberania é, assim, a da exclusão inclusiva da exceção. Trata-se
de uma espécie de exclusão que, ao invés de deixar de estabelecer qualquer parentesco com a
118
DESCARTES, R. 1973, P. 42; AT VI, 11.
119
Ibid, AT VI, 12.
120
AGAMBEN, G. 2014a, P. 22-23.
68
ordem, posicionando-se simplesmente fora dela, permanece, ao contrário, nela incluída sob o
regime de sua suspensão. Está previsto no interior do ordenamento jurídico, por meio da
figura de soberania, a possibilidade de a todo tempo desativar a ordem: um poder que o
soberano detém pela simples razão de estar, ele mesmo, nem completamente dentro nem
inteiramente fora do ordenamento. Basta se perguntar, por exemplo, pelo ato inicial que criou
o ordenamento de direito – não foi ele produzido a partir de uma exceção, isto é, a partir de
uma arbitrariedade fundadora? Pois, antes da confecção do ordenamento, não poderia ainda
haver direito, tampouco todas as noções dele subsequentes: lei, transgressão, justo e injusto.
Além disso, com que direito o soberano poderia posicionar-se fora do direito para julgar
sobre a exceção – a não ser que estivesse sempre já posicionado fora dela? A condição de
possibilidade de funcionamento da ordem, toda a legitimidade de que dispõe, todo o “vigor
da lei”121, depende do parentesco que estabelece a todo momento com algo que lhe escapa.
Embora pareça um oxímoro de difícil acesso, não é de todo surpreendente observarmos, hoje,
situações jurídicas que parecem fazer referência, para se justificarem, a elementos
extrajurídicos: os momentos de exceções do direito, aparentemente isolados, explicitam
somente o modo como o seu funcionamento normal está em constante dependência de algo
que lhe escapa.
121
AGAMBEN, G. 2014a, P. 25.
122
Sobre a figura do estrangeiro no pensamento de Spinoza, recomendo o trabalho de Bruno Albarelli: “Do
conceito de indivíduo à figura do estrangeiro na filosofia política de Spinoza” (Tese de doutorado. PPGLM,
2019). Disponível em: https://ppglm.files.wordpress.com/2019/05/tese-bruno-de-andrade-albarelli.pdf. Última
visualização: 01/09/2021 às 09h26min.
69
123
AGAMBEN, G. 2014a, P. 23.
70
à indagação sobre o retorno do religioso hoje. Embora pareça recusar os dogmas da teologia
tradicional, é preciso verificar com mais precisão se a exterioridade é totalmente expulsa de
seu pensamento. Responder a esta indagação implicará pensar igualmente o lugar histórico de
Spinoza na confecção do moderno. Ainda, ela não poderá ser respondida sem supor uma nova
metodologia, que procure evidenciar as tensões entre a destruição de uma teologia tradicional
e a construção de um discurso religioso alternativo, num movimento em tudo aparentado ao
procedimento de uma exclusão que subrepticiamente inclui por outros meios. Talvez esta
orientação metodológica nos leve a retirar conclusões diferentes daquelas que vêm
governando a literatura secundária até aqui124. As minúcias das hipóteses de Schmitt, Derrida
e Agamben tampouco serão descartadas: os processos de secularização, o pertencimento
profundo de um posicionamento político a uma teologia, a violência instauradora do direito,
da justiça e das instituições, a obediência às leis e a racionalidade tecnocientífica enquanto
baseadas num ato de fé, a topologia do soberano: todas estas intuições, esperamos, retornarão
e assombrarão nossas análises subsequentes.
Comecemos.
124
Estas interpretações serão nomeadas e examinadas detalhadamente em capítulos posteriores.
71
Capítulo 1.
O CULTO AO EXTERIOR
1
VOLTAIRE. Cândido ou o otimismo. São Paulo: Editora 34, 2016. P. 18.
2
Apud. DUFLO, C. 1996, P. 123.
3
Artigo 158 dos Pensamentos, cf. edição estabelecida por Michel Le Guern (812 para Brunschvicg, 169 para
Lafuma e 168 para Tourneur-Anzieu). Ver PASCAL, B. Pensées. Paris : Gallimard, 1977. P. 155.
4
PD, §65. BAYLE, P. Pensées diverses sur la comète. Paris : Flammarion, 2007. P. 161.
72
5
Para construir esta exposição, foi fundamental a consulta ao livro de Colas Duflo, La finalité dans la nature.
De Descartes à Kant. Paris: PUF, 1996. Além de forjar uma espécie de linha do tempo da questão, sua
exposição tem a vantagem de tomar o tema em sua profundidade, insistindo em seus aspectos metafísicos,
físicos e teológicos.
6
Eis o princípio de causalidade tal como formulado na Terceira Meditação: “Agora, é coisa manifesta pela luz
natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde é
que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lha comunicar se não a
tivesse em si mesma?”, cf. DESCARTES, R. 1973, P. 112; AT IX-1, 32.
7
DESCARTES, R. 1973, P. 125; AT IX-1, 44.
8
DESCARTES, R. 1973, P.45; AT VI, 18.
9
Embora Descartes, na Quarta Meditação, não defenda explicitamente a redução à causalidade eficiente, nos
Princípios o afirma categoricamente no artigo XXVIII da Primeira Parte, cujo título testemunha: “Que devem
ser examinadas não as causas finais das coisas criadas, mas as causas eficientes”, cf. DESCARTES, R. 2002b, P.
47; AT VIII, 15. Interessante observar que a tradução francesa do enunciado deste artigo, preparada pelo abade
Picot (AT IX-1), omite o vocabulário técnico de “causas finais” e “causas eficientes”, substituindo o primeiro
por “por qual fim Deus criou cada coisa” (« pour quelle fin Dieu a fait chaque chose ») e o segundo por “qual
modo ele quis que ela fosse produzida” (« par quel moyen il a voulu qu’elle fût produite »). Sabe-se que a
estrutura em tópicos dos Princípios tem uma função pedagógica: o texto foi composto pensando em sua
penetração no contexto escolar, com o objetivo de popularizar o cartesianismo; de modo que é razoável supor
73
exemplo, em seu Tratado do Homem, no qual o corpo humano será descrito tal como uma
estátua ou uma máquina de terra forjada por Deus10, bem como nas Paixões da Alma,
especialmente para precisar os movimentos excitados pelas paixões em nossa composição
sanguínea11. Para livrar Deus do segundo dos problemas, a saber, o do desejo de ter criado
entes em si imperfeitos, Descartes aposta na consideração da diversidade da criação. É
preciso avaliar as obras divinas em conjunto, não isolando um dos seres, pois a partir desta
perspectiva algo que pareceria imperfeito em si pode surgir como muito perfeito em sua
natureza. Esta relativização sugere, aliás, uma crítica ao antropocentrismo, uma vez que estes
fins, já outrora desconhecidos, podem ser orientados a uma série de criaturas ao invés de
reunidos na figura humana12.
É curioso notar que, embora Descartes, no mais das vezes, se recuse a tratar de temas
teológicos13, propondo uma separação rígida entre aquilo que compete à filosofia e aquilo que
compete à teologia, não deixa de empregar, na discussão sobre a causalidade final, justamente
argumentos de ordem teológica. O problema com o qual está lidando, na Quarta Meditação, é
teológico; a solução que apresenta para ele, ainda que apele, à primeira vista, para uma
constatação epistêmica, também o é na medida mesma em que compara nossa potência
cognitiva com a de Deus. O duplo sentido da questão e de sua solução é, antes de mais nada,
uma postura cartesiana: não a de não tratar da teologia, mas a de, ao confundi-la com
discussões metafísicas e epistêmicas, abordá-la de modo oblíquo. Se considerarmos, aliás, a
ressalva acrescentada ao Resumo das Meditações, segundo a qual a Quarta Meditação não
que suavização do vocabulário filosófico venha servir, igualmente, para fins de melhor adaptação e assimilação
ao público ao qual o texto se dirigia.
10
AT XI, 120.
11
Lembrando que Descartes afirma não ter escrito as Paixões como um orador, tampouco como um filósofo
moral, mas sim como um médico (« en physicien », cf. AT XI, 326), quer dizer, oscilando entre o ponto de vista
da noção primitiva de pensamento e da noção primitiva de extensão. Ver, para tanto, o artigo de BEYSSADE,
J.M. « La classification cartésienne des passions ». In: Études sur Descartes. L’histoire d’un esprit. Paris:
Éditions du Seuil, 2001.
12
O conhecimento da grandeza do universo, em outros termos, o abandono do antropocentrismo, é um dos
quatro saberes listados por Descartes para que se possa bem julgar. Isto significa que ele tem também uma
função prática na fundação de nossos juízos morais. Ver a carta a Elisabeth de 15 de setembro de 1645 (AT IV,
292).
13
Para um tratamento desta recusa, ver o capítulo “A letra e a graça” do livro Descartes e o ódio à escrita de
Ulysses Pinheiro (PINHEIRO, U. Descartes e o ódio à escrita. Curitiba: Kotter Editorial, 2019. P. 57-100).
Ainda no escopo de trabalhos que pretendem dar conta das atitudes cartesianas a partir de seus textos – suas
recusas, hesitações, justificativas, promessas etc. – ver também RAMOND, C. Descartes. Promesses et
paradoxes. Paris: Vrin, 2011.
74
tratará do erro moral, isto é, do pecado14, tampouco de temas relativos à fé, e a presença
explícita dessa discussão no texto, talvez possamos dizer que as recusas cartesianas
significam menos a ausência do tema censurado do que, na verdade, sua abordagem
criptografada. O tema da causalidade final, em Descartes, é criptoteológico.
14
“Mas, entretanto, é de notar que não trato de modo algum, neste lugar, do pecado, isto é, do erro que se
comete na busca do bem e do mal, mas somente daquele que sobrevém no julgamento e no discernimento do
verdadeiro e do falso; e que não pretendo falar aí das coisas que competem à fé ou à conduta da vida, mas
somente daqueles que dizem respeito às verdades especulativas e conhecidas por meio da tão-só luz natural”, cf.
DESCARTES, R. 1973, P. 89; AT IX-1, 11.
15
AT V, 158.
16
Ver, por exemplo, os ensinamentos da natureza tal como apresentados na Sexta Meditação. Além disso,
verificar o artigo 40 das Paixões: “Pois cumpre notar que o principal efeito de todas as paixões nos homens é
que incitam e dispõem a sua alma a querer as coisas para as quais elas lhes preparam os corpos; de sorte que o
sentimento de medo incita a fugir, o da audácia a querer combater e assim por diante” (DESCARTES, R. 1973,
P. 242; AT XI, 359).
17
“Ut comœdi, moniti ne in fronte appareat pudor, personam induunt, sic ego hoc mundi teatrum conscensurus,
in quo hactenus spectator exstiti, larvatus prodeo”, cf. AT X, 213.
18
Cf. LEIBNIZ, G.W. Essais de Théodicée. Paris: GF Flammarion, 1969. §247, P. 265.
19
Cf. artigo XIX do Discurso de metafísica. Ver LEIBNIZ, G.W. 2004, P. 42.
75
20
Discurso de Metafísica, arts. 1-3; Monadologia, arts. 54-56.
21
Discurso de metafísica, art. XXI; LEIBNIZ, G.W. 2004, P. 47.
22
Ibid.
23
Discurso de metafísica, art. XXII.
24
Monadologia, art. 90.
76
fenômenos naturais25. É nesse sentido que eliminar as causas finais da criação divina é, como
bem percebeu Leibniz, extremamente perigoso, uma vez que deixa de sustentar que o bem é o
fim de sua criação26. Se Deus não tivesse criado o mundo com um propósito, de nada valeria
louvá-lo pelas coisas tais como se apresentam: pois se poderia louvá-lo por ter feito
precisamente o contrário27. Leibniz se dirige não apenas à tímida recusa cartesiana das causas
finais, mas também à sua concepção da criação indiferente, que toma Deus como um déspota,
monarca absoluto da criação28 – Deus não criou as coisas porque são boas, mas as coisas são
boas porque Deus as criou, para recuperar a inversão spinozista quanto ao tema dos juízos de
valor29. A crítica a estes “últimos inovadores”30, que relativizam as noções de bem e mal,
desassociando-as da intencionalidade divina, se aplica tanto a Descartes quanto a Spinoza,
sobretudo quando lembramos que, para Leibniz31, tanto quanto para Bayle32, o spinozismo é
um prosseguimento exagerado e indignado do cartesianismo. É preciso sublinhar, no entanto,
a novidade spinozista, sua contribuição específica a esta querela: o culto às causas finais
engendra todo um modo-de-vida, uma ética, portanto; e, se praticado por uma comunidade de
indivíduos, pode servir de sustentáculo para determinados regimes políticos. Sucintamente, é
somente com Spinoza que a causalidade final é frontalmente recusada e denunciada, ao passo
que discussão adquire seus contornos propriamente teológico-políticos.
O asilo da ignorância
25
Ver epígrafe.
26
Leibniz também se posiciona abertamente contra a tese cartesiana da livre criação das verdades eternas, pois,
segundo ele, destrói-se com ela “todo o amor de Deus e toda a sua glória” (Discurso de metafísica, art. II;
LEIBNIZ, G.W. 2004, P. 4).
27
Discurso de metafísica, art. II.
28
Ver a análise que fizemos de Schmitt leitor de Descartes na Introdução. Sobre o tema da criação das verdades
eternas em Leibniz e Spinoza, ver o livro de DEVILLAIRS, L. Descartes, Leibniz. Les vérités éternelles. Paris:
PUF, 1998.
29
E III, P. IX, esc.
30
« derniers novateurs », cf. Discurso de metafísica, art. II; LEIBNIZ, G.W. 1995, P. 36; LEIBNIZ, G.W. 2004,
P. 4.
31
Segundo Leibniz, o spinozismo é « un cartésianisme outré », quer dizer, um cartesianismo exagerado ou
indignado. Ver Teodiceia, art. 393; LEIBNIZ, G.W. 1969, P. 348.
32
Bayle afirma sobre Spinoza no verbete homônimo de seu Dicionário: « Il est aussi orthodoxe sur la nature de
Dieu que M. Descartes même, mais il faut savoir qu’il ne parlait point ainsi selon sa persuasion. On n’a pas tort
de penser que l’abus, qu’il fit de quelques maximes de ce philosophe, le conduisit au précipice ». Cf. BAYLE, P.
Écrits sur Spinoza. Paris : Berg International Éditeurs, 1983, P.23.
77
33
Foke Akkerman, insistindo no caráter retórico do TTP, identifica alguns prefácios polêmicos no interior de
alguns de seus capítulos. São polêmicos pois nomeiam um adversário e seu modo de proceder, o que ocorre
especialmente ao início dos capítulos III, XII, XIII e XIV. Ver AKKERMAN, F. “Le caractère rhétorique du
Traité théologico politique”. In: Cahiers de Fontenay, Fontenay-aux-Roses, no 36 a 38, mars 1985, p.381-390.
A interpretação de Akkerman será trabalhada em detalhes adiante.
34
Ver, para tanto, o texto “Espinosa e as três Éticas”. In: DELEUZE, G. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34,
2011.P. 177-193.
35
MACHEREY, P. 1998, P.208.
36
ESPINOSA, B. 2015a, P. 108-109; E I, Ap.
37
A primeira regra da espécie de moral provisória enunciada por Spinoza no §17 do TIE prescreve: “Conforme
a compreensão do vulgo falar e fazer tudo aquilo que nada ofereça de impedimento para que atinjamos nosso
escopo” (Ad captum vulgi loqui et illa omnia operari, quae nihil impedimenti adferunt, quo minus nostrum
scopum attingamus), cf. ESPINOSA, B. 2015c, P.35.
38
Este tema será desenvolvido no Capítulo 5 deste estudo.
78
ele, obtemos, na contramão disso, uma pluralidade de formas de argumentar que podem nos
permitir uma apreciação não-plana do texto.
Por isso é necessário evidenciar quais são os esforços formais empregados por
Spinoza ao longo do Apêndice. Enquanto na cadeia demonstrativa tratava-se de conquistar, o
mais rapidamente possível, a ideia verdadeira dada39, ou seja, a ideia de Deus, no Apêndice a
via é diametralmente oposta: para conhecer o itinerário preconceituoso, é preciso percorrer a
cadeia das ideias inadequadas, que, tal como afirma EII, P. XXXVI, se seguem umas às
outras com a mesma necessidade que as adequadas. As ideias inadequadas são reais40; e,
como tais, causam efeitos41, que mostrar-se-ão nefastos: por isso deve-se não os negligenciar,
mas compreendê-los e emendá-los42. Ao contrário, portanto, de uma postura que tomaria as
ideias inadequadas como meras falsificações da realidade, o ponto de partida é a assunção de
sua existência e potência. A via que apostará, de início, é a genealógica, que nomeia o
preconceito fundamental a partir do qual os demais se erigem e descreve sua origem
histórica. Este preconceito nada mais é do que o finalismo, ou seja, a suposição de que os
homens, as coisas naturais e Deus agem em vista de um fim. São duas as constatações
existenciais que explicam seu apelo: a primeira é a de que os homens nascem ignorantes das
causas das coisas; e a segunda é a de que se orientam sempre em vista do que lhes é útil, do
qual são conscientes. Estas duas condições, quando combinadas, geram a seguinte situação:
os homens consideram-se livres, pois conscientes de seus desejos e apetites; esta liberdade se
justifica, ainda, por ignorarem as causas de suas próprias volições e se isolarem da cadeia
causal, como se a ela não pertencessem, quer dizer, como se suas volições lhes fossem
exteriores. Como agem buscando sempre a utilidade, orientam suas ações em vista de um
fim, o que os motiva apenas a buscar as causas finais das coisas. Procuram, então, ouvir dos
outros as causas finais que os motivam – e, aqui, é interessante como a relação entre acústica
e autoridade, tão cara ao mecanismo da revelação, já aparece em seus rudimentos.43 Já que
nem sempre podem ouvir as explicações dos demais, terminam eles mesmos por projetar suas
39
TIE, §49.
40
EII, P. XXXIII.
41
EI, P. XXXVI.
42
Conforme afirma a última sentença do Apêndice: “São estes os preconceitos que aqui me encarreguei de
destacar. Se ainda restam alguns da mesma farinha, cada um poderá emendá-los com um pouco de meditação
(mediocri meditatione emendari)”, cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 121; EI, Ap.
43
Há uma importante relação entre acústica e autoridade, sobretudo no que se refere ao campo religioso. Esta
questão será trabalhada em detalhes no capítulo 4, cujo tema central é a anomalia teocrática.
79
causas finais para compreender as ações dos outros e o comportamento das coisas naturais.
Constatam, fora de si, a existência de meios para obter seus fins, de modo que concluem que
tudo foi ordenado, na natureza, com o objetivo de lhes prover. A lógica de meios e fins
começa, então, seu circuito infernal de universalização: se estes meios, encontrados dispostos
de modo tão harmonioso e útil na natureza, não foram por eles forjados, pensam existir um
criador ou criadores44, dotado da mesma liberdade que possuem, que os dispôs para sua
própria e única fruição. Eis, aqui, a base do antropocentrismo: a projeção de uma
característica que julgam falsamente lhes pertencer nos objetos naturais e num possível
criador dos mesmos. Isto justificaria, também, a atitude de louvar este ou estes criadores:
pois, já que criaram a natureza em função do homem, este deve prestar-lhe culto. O finalismo
transcende a categoria de um simples preconceito para se converter em superstição: pois
funda uma ética, quer dizer, um modo de vida e de se relacionar com a divindade.
Esta primeira aproximação à questão do finalismo deve ser entendida como esforço
genealógico na medida em que se pergunta não tanto sobre o que é o finalismo, ou seja, sobre
sua natureza ou seu ser, mas, para recuperar a definição nietzscheana, “sob que condições o
homem inventou para si”45 o culto das causas finais. Para Spinoza, a projeção de causas finais
na natureza é um exercício quase que espontâneo de invenção humana, um esforço
imaginativo particularmente conveniente – muito embora, é preciso sempre sublinhar, seu
caráter fictício não suprima sua realidade. A comparação com a genealogia da moral
nietzschiana é tanto mais iluminadora quando passamos para o segundo momento
genealógico do Apêndice: aquele que trata da formação dos juízos de valor, quer dizer, dos
operadores morais. É por considerarem que a natureza se ordena conforme o que lhes é útil e
nocivo que forjaram, então, as noções de “bem, mal, ordem, confusão, quente, frio, beleza e
feiúra”46, noções que nada dizem sobre as coisas nelas mesmas, mas sobre o encontro dos
corpos humanos com elas; assim como as noções de “louvor, vitupério, pecado e mérito”47,
derivadas da crença irrestrita em sua liberdade e posterior necessidade de responsabilização.
A consequência última desta postura é o ceticismo: a relativização de todas as noções
44
Monoteísmo e politeísmo têm um pressuposto em comum, a saber, o fato de tomarem Deus como livre
criador. Por isso a denúncia se aplica a ambos.
45
NIETZSCHE, F. 2009, P. 9. Pode ser útil consultar também a interpretação foucaultiana da genealogia de
Nietzsche, presente, por exemplo, no artigo de 1971 intitulado “Nietzsche, a Genealogia, a História”. In :
FOUCAULT, M. 2000, P. 260-281.
46
ESPINOSA, B. 2015a, P. 117; EI, AP.
47
Ibid.
80
qualitativas, uma vez que, para cada corpo, haverá uma resultante, portanto uma noção de
bem, mal, ordem e confusão etc. diversa.
48
A mesma crítica se aplica aos “teólogos e metafísicos” (ESPINOSA, B. 2015a, P. 115; EI, Ap.) que distinguem
entre os fins de indigência e assimilação, pois, embora sustentem que Deus cria em vista de si, ainda é o caso
que, antes da criação, nada havia à disposição de Deus, de modo que teve de criar as coisas porque lhe faltavam.
49
Um outro momento dialógico do spinozismo ocorre no interior do Breve Tratado, com a diferença de que, lá,
os personagens são explicitados e suas contribuições surgem em discurso direto. Ver ESPINOSA, B. 2014a, P.
69. Os dois diálogos surgem como complementos ao Capítulo II da Primeira Parte da obra.
81
causas alternativas, por exemplo, o movimento do vento se explica pelo mar agitado da
véspera; o movimento do homem se explica porque foi convidado por um amigo; o finalista
não desistirá e se perguntará a razão do movimento do mar e a razão do movimento do
homem. O exercício regressivo na busca de causas só poderá cessar caso se refugie na
vontade divina, denominada, neste momento, por Spinoza, de asilo da ignorância. A
ignorância das causas mantém a admiração desmedida, ou seja, o estupor, e conduz ao
modo-de-vida supersticioso. A compreensão da necessidade dos eventos, por meio da
dedução de suas causas naturais, ao contrário, suprime a admiração e consequentemente a
necessidade de impor uma autoridade.
50
Martial Gueroult expõe com clareza os limites da comparação entre as posições de Descartes e Spinoza
quanto ao tema. Ver GUEROULT, M. 1969, P. 398-400.
51
“Pois [a vontade] consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou
negar, perseguir ou fugir) ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o
entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos
obrigue a tanto.” (cf. DESCARTES, R. 1973, P. 126; AT IX-1,46). Para um tratamento mais demorado da
questão da liberdade no pensamento de Descartes, que considera as variações de formulação dos textos latino e
francês tanto quanto possíveis modificações conteudísticas, ver o artigo de BEYSSADE, M. “A doutrina da
liberdade de Descartes: Diferenças entre os textos francês e latino da Quarta Meditação”. In : Analytica - Revista
de Filosofia, 13 (2), 2013, P. 225-242.
82
exatamente por uma comparação negativa que, na Quarta Meditação, Descartes conclui a
liberdade divina. O Deus cartesiano ainda é criador indiferente e livre; e, neste sentido, basta
um mínimo de ideias inadequadas para disparar o complexo supersticioso, já que as ideias
inadequadas seguem umas das outras de forma necessária. Assim, embora nos pareça
exagerada a conclusão de Gueroult, para quem o Apêndice é uma refutação direta do
cartesianismo52, é correto afirmar que os dois autores localizam-se em direções diversas
quanto ao tema.
Não é incomum constatar, seguindo aquilo que Spinoza registra sobre si mesmo, o
tratamento desapaixonado que confere à afetividade humana: seja em seu aspecto ético, seja
quanto às suas consequências políticas. Lembramos com facilidade de passagens como a do
Prefácio ao Terceiro Livro da Ética, que declara abordar as ações e apetites humanos com o
mesmo método empregado nas seções anteriores acerca de Deus e da Mente, ou seja, “como
52
GUEROULT, M. 1969, P. 400.
Apesar de pressupô-lo, esta seção não se dedicará a um tratamento detalhado da noção de emendatio no
53
pensamento de Spinoza. Para uma discussão mais competente da questão, particularmente do modo como é
desenvolvida ao longo do TIE, recomenda-se o trabalho de Cristiano Novaes de Rezende: Intellectus Fabrica:
um ensaio sobre a teoria da definição no Tractatus de Intellectus Emendatione de Espinosa. 2009. Tese
(Doutorado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009. doi:10.11606/T.8.2009.tde-05022010-114514. Acesso em: 2021-02-09.
83
se fosse questão de linhas, planos ou corpos”54. No mesmo tom da análise que compete às
coisas matemáticas, os parágrafos iniciais do Tratado Político prometem não rir, deplorar,
tampouco maldizer as ações humanas55, mas tão-somente entendê-las. Evidência de um
materialismo nascente, que se traduz, na política, na criação de uma “ciência do Estado” para
alguns56; signo de uma atitude epistemológica clássica, para outros57.
Separar aquilo que Spinoza diz sobre si mesmo daquilo que opera discursivamente
pode nos encaminhar a outra apreciação do texto, mais interessada em detectar suas fissuras
do que em formular sua síntese superior. Fokke Akkerman outrora sublinhou, num artigo já
clássico58, os procedimentos retóricos59 empregados ao longo do TTP, que se encontram
sobretudo ao início de alguns capítulos (III, XII, XIII, XIV) e que obtêm expressão máxima
no Prefácio. Um dos aspectos retóricos por ele detectados, entendidos, aqui, como estratégias
discursivas para obter a persuasão do leitor, sem qualquer sentido pejorativo, é a polêmica.
Neste aspecto, o início do Capítulo XII é exemplar: Spinoza descreve, de modo veemente, o
posicionamento de seus adversários (os teólogos) para então demonstrar sua falsidade.
Ataque e defesa compõem, em uníssono, uma estratégia literária de convencimento. Além
disso, o capítulo XVI oferece, para além da cadeia de exposição racional, imagens,
comparações e exemplos históricos que contribuem para o sabor do texto. Esta profusão de
indícios textuais motiva Akkerman a aventar a hipótese de leitura segundo a qual são as
disciplinas próprias ao TTP – a teologia e a política – que exigem uma metodologia
diversificada, quer dizer, que não podem ser reduzidas à cadeia racional e demonstrativa da
Ética. O TTP é classificado como um complemento necessário da Ética, que empreende de
modo mais eficaz o propósito de intervenção na situação política da Holanda do século XVII.
Tal leitura carrega em si dois pressupostos metodológicos: em primeiro lugar, considera a
Ética como obra solar do spinozismo, a partir da qual todos os outros textos emanam
54
ESPINOSA, B. 2015a, P. 235; EIII, Pref.
55
TP, Cap. 1, [4].
56
Cf. BALIBAR, E. Spinoza et la politique. « Cap. 3: Le « Traité Politique » : une science de l’État ». Paris :
PUF, 2015. P. 63-90.
57
Notadamente Michel Foucault, recuperando um fragmento de Nietzsche da Gaia Ciência (parágrafo 333). Ver
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2013. P. 29.
58
AKKERMAN, F. 1985, p.381-390.
59
Para um estudo mais amplo da latinidade de Spinoza, verificar a seguinte bibliografia: PROIETTI, O.
“Adulescens luxu perditus Classici Latini Nell’Opera di Spinoza”. In : Rivista di Filosofia Neo-Scolastica 77, n.
2 (aprile-giugno 1985), p. 210-257; KAJANTO, L. “Aspects of Spinoza’s Latinity”. In : Arctos Acta Philologica
Fennica 13, p. 49-83, 1979 e PUGLIESE, N. “The Reception of Classical Latin Literature in Early Modern
Philosophy: the case of Ovid and Spinoza”. In : Archai, n. 25, Brasília, 2019, e02502.
84
60
ESPINOSA, B. 2019, P. 124 ; G III, 5.
61
Ibid. A tradução francesa de Lagrée e Moreau para o trecho é menos enérgica que a de Diogo Pires Aurélio,
sobretudo por não acrescentarem, como ele, um ponto de exclamação à frase de Spinoza. Em todo caso, o trecho
segue deplorando o comportamento delirante do vulgo, que é o que propriamente nos interessa aqui.
62
ESPINOSA, B. 2015a, P. 113; EI, Ap.
63
Ibid.
85
caso, uma obra spinozista não tão regular – ; e a um autor através dele construído. As
informações biográficas serão legitimadas no processo de construção deste personagem desde
que submetidas à horizontalidade do registro discursivo.64
64
Ou seja, desde que destituídas do pano-de-fundo realista, que separa fatos e textos, conforme a metodologia
deste trabalho explicitada na Introdução.
65
Penso sobretudo no caráter combativo do TTP às instâncias teológicas de sua época. Para uma análise
completa e bem informada destas querelas, ver o livro de Steven Nadler, A book Forged in Hell. Spinoza’s
Scandalous Treatise and the Birth of the Secular Age. Princenton and Oxford: Princeton University Press: 2011.
66
“E assim esse preconceito virou superstição [prejudicium in superstitionem versum], deitando profundas
raízes nas mentes, o que foi causa de que cada um se dedicasse com máximo esforço a entender e explicar as
causas finais de todas coisas.”, cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 113; EI, Ap.
67
G III, 5-6.
68
ESPINOSA, B. 2019, P. 123; G III, 5.
69
Tal como apresentado nas notas à tradução francesa do TTP, preparadas em conjunto por Jacqueline Lagrée e
Pierre-François Moreau. Ver SPINOZA, B. 2016, P. 697-701.
86
os homens lhe estão naturalmente sujeitos70, e até sabem que assim o é, embora seja mais
fácil identificar no outro do que ser consciente de si próprio71. Para recuperar uma formulação
da Ética: as causas externas nos afetam de uma diversidade de maneiras, de tal modo que
“flutuamos tal qual ondas do mar agitadas por ventos contrários, ignorantes de nosso
desenlace e do destino”72. A potência das causas exteriores surge aqui designada por fortuna,
uma expressão cara ao vocabulário estoico73, mas que receberá, ao longo do TTP, uma
reformulação – se quisermos, uma emendatio74. Nestes parágrafos iniciais de abertura da
obra, porém, ela surge tal como empregada classicamente, quer dizer, para significar os
eventos externos e os bens que lhe são advindos, tais como a saúde, as honras e as riquezas75.
Nem sempre a avaliação destas causas exteriores nos permite tomar, na vida, uma decisão
totalmente segura76; e, é claro, os bens incertos não deixam de exercer seu poder atrativo.
70
“Se esta é a causa da superstição, há que concluir, primeiro, que todos os homens lhe estão naturalmente
sujeitos (digam o que disserem os que julgam que ela deriva do fato de os mortais terem todos uma qualquer
ideia, mais ou menos confusa, da divindade) [...]”. Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 124; G III, 6.
71
“Julgo que toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convencido de que a maioria dos homens se
ignoram a si próprios”. Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 123; GIII, 5.
72
ESPINOSA, B. 2015a, P. 337; E III, P. LIX, esc.
73
O verbete “fortuna”, do Vocabulário Latino da Filosofia de Jean-Michel Fontanier, afirma: “Ao comentar a
fala do rei Evandro no Canto VIII da Eneida (334 Fortuna omnipotens et ineluctabile fatum, “a Fortuna
onipotente e um destino inelutável [me instalaram nestes lugares]”), o gramático Servius nota que o poeta se
exprimiu como os estóicos, “que atribuem o nascer e o morrer aos destinos, tudo o que está entre [os dois] à
fortuna; pois tudo na vida humana é incerto”. Mas depende do sábio, de sua virtus própria, tornar-se
independente dessa certeza exterior: ficar insensível a suas seduções e invulnerável a seus golpes”.
(FONTANIER, J.M. Vocabulário latino da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009. P. 70.). Sobre o
vocabulário estóico do TTP, ver LAGRÉE, J. « Le vocabulaire stoïcien du TTP ». In: LAGRÉE, J. Spinoza et le
débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2004. P. 82-95.
74
Notadamente no Capítulo III.
75
Outra influência possível para o tema da fortuna, em Spinoza, é Maquiavel. Spinoza certamente o leu e o tinha
em alta conta, como demonstra TP V, 7, em que o trata por “agudíssimo” (ESPINOSA, B. 2009b, P. 46). Sabe-se
que a reflexão sobre o papel favorável ou desfavorável da fortuna na política é central ao pensamento de
Maquiavel, que dedicou até mesmo um poema à sua volubilidade e inconstância, cf. ARANOVICH, P. F. Di
Fortuna e Dell´Occasione 1, di Niccolò Machiavelli. Cadernos De Ética E Filosofia Política, 1(18), 231-247,
2011. Recuperado de https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/55731.
76
Um problema correlato é detectado por Descartes na Terceira Parte do Discurso do Método. Nem sempre
dispomos do conhecimento necessário para tomar a melhor decisão, mas as ações da vida não suportam, às
vezes, quaisquer delongas – daí a necessidade de erigir uma moral par provision, quer dizer, um conjunto de
máximas práticas aplicáveis somente durante o tempo em que durar a pesquisa nas demais áreas de
conhecimento (Metafísica e Física, segundo a árvore do conhecimento proposta por Descartes na Carta-Prefácio
aos Princípios da Filosofia). Ocorre que Descartes jamais apresentou uma moral de caráter definitivo; e pode
ser que a própria estrutura da união da alma com o corpo – o fato de que a noção primitiva de união só poder ser
corretamente apreendida através da vida e das conversações comuns (cf. Carta a Elisabeth de 28 de Junho de
1643) – seja um impedimento estrutural à sua formulação. Sobre este assunto, ver nosso trabalho em torno do
tema da filosofia prática cartesiana tal como desenvolvida em sua correspondência com Elisabeth: RAMOS,
C.S. Conservar a vida e não temer a morte: filosofia prática na correspondência entre Descartes e Elisabeth.
Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em
https://ppglm.files.wordpress.com/2008/12/dissertac3a7c3a3o-carmel-ramos.pdf. Última visualização em
07/04/2020 às 11h30min.
87
Uma discussão próxima a esta, que se indaga sobre a escolha pelos bens certos ou duvidosos,
é apresentada, em tom confessional, ao longo dos treze primeiros parágrafos do TIE. No
Prefácio, sem o emprego da primeira pessoa, é com um olhar agudo, daquele que observa à
distância, e que deplora o comportamento humano, que o império da fortuna é descrito. Se a
fortuna é favorável, portanto, os homens “ostentam uma tal sabedoria que até se sentem
ofendidos se alguém lhes quiser dar um conselho”77; se, em contrapartida, é prejudicial e
adversa, buscam desesperadamente quaisquer fontes de conselhos. Quando associam o evento
presente a um bem ou a um mal que já vivenciaram, julgam que se trata de um presságio; e
daí concluem uma ação direta da divindade. Desconfiam da razão, então, e passam a crer
naquilo que há de mais impressionante e extravagante: os delírios da imaginação, tais como a
cólera divina, a possibilidade de predição do futuro nos corpos dos animais e a sabedoria dos
loucos e insensatos.
77
ESPINOSA, B. 2019, P. 123; G III, 5.
78
“A bem da verdade, não é este o lugar para deduzir isso da natureza da mente humana”, cf. ESPINOSA, B.
2015a, P. 111; E I, Apêndice.
79
ESPINOSA, B. 2019, P. 124; G III, 6.
80
Sobre o modo como Spinoza cita ao longo do TTP, ver LAGRÉE, J. « La pratique de la citation dans le TTP
». In: LAGRÉE, J. Spinoza et le débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2004. P. 95-110.
81
ESPINOSA, B. 2019, P. 124; G III, 6.
88
vez, quando foi abandonado pelos Bactrianos e se viu ferido, exigiu que fossem feitos
sacrifícios para descobrir a cadeia de acontecimentos. O exemplo de Alexandre é suficiente
para justificar que a superstição só se mantém quando há medo; que os objetos e as práticas
insólitas aos quais foi dado culto religioso, num determinado período histórico, também
retiram desta paixão sua origem, e que o poder dos adivinhos era tanto maior quanto maior
fosse a fragilização do Estado. Além disso, o fato de Alexandre flutuar, ao sabor das
circunstâncias, num vaivém incessante entre medo e autoconfiança, mostra que a superstição
se alimenta da novidade. Deixar-se governar pela variabilidade das causas exteriores tem
como consequência o fato de que o indivíduo se torna algo viciado em novas causas que
mantenham sua flutuação.82 Embora o caso histórico em questão faça referência ao
governante, também o povo é vítima da superstição. Recuperando mais uma vez um
ensinamento de Cúrcio, Spinoza sustenta que “não há nada mais eficaz que a superstição para
governar a multidão”83. A consequência é, de um extremo a outro, a consideração dos reis
como se fossem deuses; ou o ódio por eles como se fossem uma peste, ameaça maligna ao
gênero humano.
Uma consulta a algumas proposições da Parte III e IV da Ética pode nos munir de
definições e características mais técnicas em relação ao fenômeno supersticioso. Na
Definição dos afetos, o medo é classificado como “a tristeza inconstante originada da ideia de
uma coisa futura ou passada de cuja ocorrência até certo ponto duvidamos”84. A primeira
informação valiosa a seu respeito é o fato de nunca irromper sozinho, mas sempre
acompanhado de seu afeto complementar: a esperança85. Esta última é “a alegria inconstante
originada da ideia de uma coisa futura ou passada de cuja ocorrência até certo ponto
duvidamos”86. Medo e esperança são, portanto, variações de tristeza e alegria acompanhadas
de uma situação mental específica: a dúvida. Caso a dúvida quanto à ocorrência do evento,
passado ou futuro, seja suprimida, o medo transforma-se em desespero e a esperança em
segurança.87 Além disso, pode-se experimentar gozo ou remorso, quer dizer, alegria ou
82
“[...] em segundo lugar, que ela deve ser extremamente variável e inconstante, como todas as ilusões da mente
e os acessos de furor [...]”. ESPINOSA, B. 2019, P. 124; G III, 6.
83
ESPINOSA, B. 2019, P. 125; G III, 6.
84
ESPINOSA, B. 2015a, P. 347; EIII, Definição dos Afetos, XIII.
85
“Segue destas definições que não se dá Esperança sem Medo, nem Medo sem esperança”. EIII, Definição dos
Afetos, XIII, Explicação. Ver também EIII, P. L, esc.
86
ESPINOSA, B. 2015a, P. 347; EIII, Definição dos Afetos, XII.
87
EIII, P. XVIII, esc.2.
89
tristeza derivada da ideia de uma coisa passada que aconteceu contra toda Esperança88. Este
conjunto de três pares – medo/esperança, desespero/segurança, remorso/gozo – procede
daquilo que Jean-Marie Vaysse designa como a “projeção temporal da afetividade”89. É
principalmente o fator tempo que marcará a modulação destes afetos: e veja-se que, do ponto
de vista do afeto, não importa que a imagem resgate o passado ou se lance no futuro, desde
que seja presentificada à mente e, assim, que o indivíduo a experimente em relação à sua
situação atual90. Na teoria dos afetos, então, uma curiosa teoria do tempo se constrói, cuja
consequência última parece ser a redução do passado e do futuro ao presente mediante sua
contemplação imagética.
Não é apenas uma interessante teoria do tempo, porém, que se mescla à discussão
sobre a esperança e o medo: também há uma intrigante classificação dos estados mentais, em
especial da dúvida. A dependência necessária entre esperança e medo se explica pelo
movimento mental característico deste estado de suspensão. A dúvida não é uma ideia
estática, positiva em si mesma91, mas a oscilação entre duas afirmações simultâneas e
contrárias a respeito de um mesmo objeto, a situação derivada da composição relacional entre
ambas. “Simultânea”, aqui, entendido no sentido de que a mente comporta estas duas ideias, e
não quanto à simultaneidade temporal92. Na situação de flutuação do ânimo característica da
dúvida, a mente opera em ritmo de vaivém, exibindo ora uma ideia, ora outra. O mesmo
ocorre quando a mente experimenta dois afetos contrários: daí por que Spinoza se arrisque a
dizer que a flutuação de ânimo e a dúvida não diferem senão em graus (cabe reservar a
expressão flutuação de ânimo para o afeto e a dúvida para a imaginação, no entanto).93
Quando alguém é dominado pela esperança, duvida da ocorrência passada ou futura daquele
evento e, logo, imagina tanto algo que põe sua existência quanto algo que a exclui. Imaginar
88
Ver, além de EIII, P. XVIII, esc.2, EIII, Definição dos Afetos, XVI e XVII.
89
VAYSSE, J.M. « Spinoza et le problème de la peur : metus et timor », Philonsorbonne [En ligne], 6 | 2012,
mis en ligne le 04 février 2013. URL : http://journals.openedition.org/philonsorbonne/410 ; DOI :
10.4000/philonsorbonne.410. Consultado em 08/04/2020 às 15h03min. O artigo de Vaysse também é
interessante por acentuar a distinção spinozista entre medo (metus) e temor (timus), este último que é “o Desejo
de evitar, por meio de um mal menor, um mal maior de que temos medo”, cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 361;
EIII, Definição dos Afetos, XXXIX. O temor é, portanto, uma espécie de medo conjugado a uma valoração
material – do ponto de vista do modo como o corpo do indivíduo é afetado – sobre o bem e o mal.
90
EIII, P. XVIII.
91
EII, P. XXXIII.
92
Destaca-se, mais uma vez, a relevância do fator temporal para a caracterização spinozista dos estados mentais.
93
Sobre a comparação entre a flutuação de ânimo e a dúvida, ver EIII, P.XVII, esc.
90
algo que exclui a existência daquilo que somos afetados de alegria é recair em tristeza94 – o
que rapidamente fará o indivíduo experimentar, em sequência, o medo. O mesmo vale para
quem experimenta, inicialmente, o medo: a dúvida faz com que se contemplem imagens que
excluem a existência da coisa odiada, o que afetará o indivíduo de alegria95 – fazendo-o
recobrar a esperança96.
94
EIII, P.XIX.
95
EIII, P. XX.
96
Recupero a argumentação de Spinoza presente em EIII, Definição dos Afetos, XIII, Explicação.
97
EIII, P. L.
98
O exemplo é obviamente retirado de um tema caro ao século XVII, o qual foi extensamente discutido por
Pierre Bayle em seu Pensamentos diversos sobre o cometa (1683).
99
EIII, P. XXV.
100
A partir daqui, pelas razões já expostas, farei referência ao medo e à esperança sempre como o complexo
medo-esperança-medo.
91
Suponhamos pois um menino que pela primeira vez ontem pela manhã tenha visto
Pedro, ao meio-dia Paulo e ao entardecer Simeão, e que hoje de novo pela manhã
tenha visto Pedro. Pela Proposição 18 desta parte é patente que tão logo veja a luz
matutina, imaginará o sol percorrendo a mesma parte do céu que no dia anterior, ou
seja, um dia inteiro, e simultaneamente com o amanhecer imaginará Pedro, com o
meio-dia Paulo e com o entardecer Simeão, isto é, imaginará a existência de Paulo e
de Simeão com relação ao tempo futuro; e inversamente, se ao entardecer vir Simeão,
relacionará Paulo e Pedro ao tempo passado, a saber, imaginando-os simultaneamente
com o tempo passado; e isto com tanto mais constância quanto com mais frequência
os tenha visto nesta ordem. Porque, se acontece alguma vez de num outro entardecer
ver Jacó em lugar de Simeão, então no dia seguinte imaginará com o entardecer ora
Simeão, ora Jacó, mas não a ambos em simultâneo; pois supõe-se que viu no período
da tarde só um deles, não ambos em simultâneo. E assim sua imaginação flutuará e
com o futuro entardecer imaginará ora um, ora outro, isto é, não contemplará nenhum
certamente, mas ambos contingentemente como futuros. E esta flutuação da
imaginação será a mesma se for a imaginação das coisas que contemplamos da
mesma maneira com relação ao tempo passado ou ao presente, e consequentemente
imaginaremos como contingentes as coisas relacionadas tanto com o tempo presente
quanto com o passado ou o futuro. (ESPINOSA, B. 2015a, P. 207-209; EII, P. XLIV,
esc.).
101
O topos do vaivém mental encontra ecos na literatura filosófica do século XVII. Desta feita, pode-se pensar,
por exemplo, na quarta regra do método enunciado por Descartes, que promulga “fazer em toda parte
enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir” (DESCARTES, R.
1973, P. 46): enumerar e revisar são atitudes que envolvem um resgate das ideias já vistas, que devem ser mais
uma vez contempladas para fins de certificação, num movimento regressivo que envolve ao menos uma ida e
uma vinda. Ademais, para resolver a questão de a qual noção primitiva o texto das Paixões da Alma se refere –
se a de pensamento, extensão ou união – Jean-Marie Beyssade (BEYSSADE, J.M. « La classification
cartésienne des passions ». In: Études sur Descartes. Lonrai: Éditions du Seuil, 2001. P. 335.) conclui por uma
espécie de “movimento de vaivém” que atravessa constantemente o texto. É claro que, também aqui, as
discussões sobre a forma de exposição encontram problemas conteudísticos, notadamente a dificuldade de se
tratar, ao mesmo tempo e sem contradição, a distinção real entre alma e corpo e sua união (cf. Carta a Elisabeth
de 28 de junho de 1643).
92
tomará a chuva como causa contingente de sua aparição, portanto, como um bom presságio.
Qualquer outro elemento que tenha ocorrido quando da vinda de Jacó, aliás, poderá ser
associado a sua chegada, atuando como presságio da realização do evento futuro: pois, aqui,
mais se imagina – considera-se as causas exteriores como acidentes – do que se compreende
– toma-se as mesmas como necessárias102.
102
Toda a proposição XLIV da Parte II, incluindo o exemplo que transcrevemos, é dedicada a fundamentar esta
associação entre imaginação/contingência e razão/necessidade.
103
EIV, P. XLVI.
104
Cf. o que afirma Deleuze (apud. VAYSSE, J.M. 2013, P. 138): “[...] Deleuze qui dit que Spinoza « va si loin
que, jusque dans l’espoir, dans la sécurité, il sait retrouver cette graine de tristesse qui suffit à en faire des
sentiments d’esclaves » [...]”.
105
Ver EIII, Definição dos Afetos, XV, Explicação e EII, P. XLIX, esc.
93
“ocorrência das coisas singulares”106 é impossível, o que não significa deixar-se dominar pela
flutuação de ânimo. Daí por que a supressão de esperança, medo e derivados assume um
contorno ético relevante: é preciso se esforçar para conhecer as causas racionalmente, o que
terá como consequência não propriamente a supressão de uma dúvida já alimentada, mas o
fato de que ela não surgirá em primeira instância. Contra a superstição, que é um
posicionamento possível em relação aos eventos da fortuna, que conduz o indivíduo a ser
imaginativamente tomado de dúvida e afetivamente oscilar entre esperança e medo, deve-se,
então, buscar conhecer as razões dos eventos do ponto de vista da razão, quer dizer,
compreendendo sua necessidade. Mais uma vez, para retomar a conexão com o Apêndice da
Parte I, a crença na liberdade da vontade desponta como o preconceito fundamental: é por
considerar-se como um elemento exterior à natureza, não submetido à sua necessidade, livre,
portanto, que os eventos da fortuna exercerão seus efeitos mais funestos, desestabilizando
afetivamente o indivíduo imerso na ignorância das causas externas.
106
ESPINOSA, B. 2015a, P. 347; EIII, Definição dos Afetos, XV, Explicação.
107
A formulação mais bem acabada desta leitura encontra-se em Jonathan Israel. Ver Introdução.
108
TOSEL, A. Spinoza ou le crépuscule de la servitude. Essai sur le Traité Théologico-Politique. Paris:
Aubier-Montaigne, 1984. P. 7.
109
Tradução minha de TOSEL, A. 1984, P. 17.
94
Não é difícil reconhecer os limites desta leitura, e o próprio Tosel soube fazê-lo. A
uma certa altura de sua análise, pergunta-se se é mesmo legítimo identificar superstição e
religião, e conclui que, já no Prefácio, há possibilidade de pensar em algo como uma religião
verdadeira, classificada por Spinoza de vera religio110. Sem maiores definições, Spinoza
apenas afirma que, para garantir a obediência do povo, tanto a vana quanto a vera religio
foram historicamente rodeadas de “culto e aparato”111 – aquilo que Giorgio Agamben procura
definir, em suas investigações sobre teologia-política112, como a glória. Segue-se daí que a
superstição, então, é mais uma religião deteriorada do que a tendência natural de todo
complexo religioso; e que se deve identificar não superstição e religião, mas superstição e
vana religio. Os supersticiosos são, antes, “adversários da religião”113, mais do que seus
propulsores. Nas palavras de Tosel, ela designa “as práticas eclesiásticas dominantes, a
apologia da credulidade, a perseguição aos dissidentes, o apelo permanente ao Estado para
conduzir a guerra religiosa contra os heréticos”114. Tosel conclui que Spinoza parece estar de
acordo que, mesmo no passado, houve algo como uma religião originária, não-institucional,
que pregava simplesmente a paz, a concórdia e o amor ao próximo. Isto notadamente impõe
um problema para a rígida separação que construiu outrora, a qual supunha, entre outras
coisas, o desprezo pelo passado: como ele pode ser, ao mesmo tempo, fonte de erro
(paganismo, antiga servidão) e algo a ser resgatado, reintroduzido nas práticas religiosas e
110
TOSEL, A. 1984, P. 24-25.
111
ESPINOSA, B. 2019, P. 125; GIII, 6.
112
Ver AGAMBEN, G. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo : homo sacer,
II, 2. São Paulo: Boitempo, 2011.
113
ESPINOSA, B. 2019, P.124; GIII, 5.
114
Tradução minha de TOSEL, A. 1984, P. 24.
95
políticas contemporâneas? Tal interrogação nos instrui mais sobre os limites da perspectiva
de Tosel do que acerca de um problema interno ao spinozismo. Por ter tão apressadamente
associado religião e superstição, de um lado, e filosofia e conhecimento, de outro,
escapou-lhe o nexo complexo que se estabelece, já desde o Prefácio do TTP, entre os dois
termos do problema. Neste aspecto, insistir na cultura latina de Spinoza pode ser já de grande
auxílio: como nos lembram oportunamente Lagrée e Moreau em suas notas, opor religião e
superstição (religio/superstitio) é um procedimento clássico, encontrado em Cícero115 e
Sêneca116; e a fórmula vana religio encontra-se, por exemplo, em Quinto Cúrcio117. É
oportuno lembrar, também, da carta a Oldenburg118 em que são elencadas as razões para a
escrita do TTP: entre as duas primeiras, a necessidade de eliminar os preconceitos dos
teólogos e combater as acusações de ateísmo. Por último, a Ética fornece uma surpreendente
definição de Religião: “tudo que desejamos e fazemos [agimos] do qual somos causa
enquanto temos a ideia de Deus, ou seja, enquanto conhecemos Deus, refiro à Religião”119. É
certo que a religião, àquela altura da história política da Europa, assumia contornos
supersticiosos, o que não significa que ela se esgotasse em superstição, e tampouco que a
solução é tão-somente dar-lhe cabo. Esta seria uma postura fácil e algo simplista. Na verdade,
todo o TTP se concentra em reformular a gramática bíblica – profecia, profetas, a função e o
ensinamento do Cristo, a lei divina, os milagres, a verdadeira interpretação da Escritura etc. –
para fins de combate, emendando a teologia e alcançando uma prática religiosa que permita a
salvação da maior parte dos indivíduos.
Diante do império da fortuna, da potência das causas exteriores, duas são as posturas
possíveis: ou bem a superstição ou bem a religião120. Trata-se de criar algo como uma
teologia da imanência, contra o culto supersticioso da exterioridade121. O TTP, portanto, está
115
De natura deorum, II, 71.
116
De clementia, II, 5.
117
Historiae Alexandri Magni, IV, 10.
118
Carta 30.
119
ESPINOSA, B. 2015a, P. 433; EIV, P.XXXVII, esc.1.
120
Estes modos de vida, como demonstra Tosel (TOSEL, A. 1984, P.28), não são exclusivos, do contrário seria
difícil imaginar um interlocutor possível para o TTP. Está claro, por um lado, que ele se dirige ao leitor-filósofo;
ao mesmo tempo, seria supérfluo escrever um livro para aqueles já inteiramente libertos da superstição. Este
leitor, portanto, conserva algum grau de superstição, mas seu traço distintivo é o fato de estar aberto ao
raciocínio filosófico. Apesar de tratar, igualmente, da possibilidade de salvação do vulgo, o TTP não lhe é
diretamente dirigido; e a salvação de todo o corpo da sociedade é sobretudo um problema para o sábio.
121
A frase carrega um tom propositalmente forte e, é certo, necessita de uma argumentação mais completa para
ser sustentada. Demonstrá-la é um dos objetivos deste estudo como um todo, o qual só poderá ser atingido com
as análises dos demais capítulos.
96
longe de ser um livro irreligioso – desde que circunscrevamos religião à definição spinozista,
naturalmente.
sem dúvida impressionou Blaise Pascal; e pode-se especular a respeito do impacto que teve
no projeto de elaboração de sua Apologia da religião cristã.122
122
Devo a cronologia destes fatos ao completo estudo de Tetsuya Shiokawa, cf. SHIOKAWA, T. Pascal et les
miracles. Paris : Editions A.-G. Nizet, 1977. Seu trabalho discute as circunstâncias médicas e políticas que
antecedem e sucedem o milagre, bem como o impacto que obteve na confecção da obra de Pascal. Verificar,
adicionalmente, para esta última questão, o artigo de Michel Adam, « La signification du miracle dans la pensée
de Pascal ». In: Revue Philosophique de la France et de l'Étranger, T. 171, No. 4 (Octobre-Décembre 1981), pp.
401-423.
123
Abreviação de Pensées diverses écrites à un docteur de Sorbonne à l'occasion de la Comète qui parut au
mois de décembre 1680.
124
Todas as passagens citadas dos Pensamentos diversos são traduções minhas a partir do texto original, cf.
BAYLE, P. Pensées diverses sur la comète. Paris: Flammarion, 2007. A partir de agora, faço referência ao texto
em questão sempre por PD, acrescentando em seguida o parágrafo do qual a citação é retirada. Para o caso da
passagem supracitada, verificar PD, §232.
125
Sigo aqui a classificação de Jacqueline Lagrée, que, para fins de exposição, prefere nomear o segundo gênero
de milagres como “mudos”, por oposição aos primeiros. Ver LAGRÉE, J. « La critique des miracles : Spinoza et
Bayle ». In : Spinoza et le débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2004. P. 170.
98
da natureza”126. Os primeiros milagres, em contrapartida, são feitos por homens que carregam
o espírito de Deus, com o objetivo de convencer os infiéis da falsidade de seu credo. Apenas
a palavra não convence, logo, é preciso o suplemento dos milagres “falantes” para que a
persuasão seja mais eficaz, para que Sua palavra seja efetivamente ouvida. Assim, à mera
palavra destes pregadores, “o fogo perde sua atividade, os rios racham em dois, os mortos
saem de suas tumbas, as enfermidades mais incuráveis são curadas”127 (lembremos de
Marguerite). Bayle tece também uma crítica à exploração política dos milagres e demais
prodígios por parte dos príncipes e dos grandes senhores da corte128, e, ao mesmo tempo,
sustenta que a crença neles não livra o povo dos costumes moralmente reprováveis129.
Pode parecer algo surpreendente que estes dois episódios tenham obtido tamanha
importância no século XVII, época conhecida pela posteridade por ter lançado as bases para a
separação institucional entre o poder teológico e o político, tanto quanto a racionalização e
naturalização das explicações dos eventos físicos – uma mudança cosmológica que, segundo
alguns, teria encontrado seu desenvolvimento mais bem acabado no Iluminismo.130 Mais do
que fornecer contraexemplos a esta generalização, os dois casos evidenciam que a questão
dos milagres não se compreende fora de uma significação teológico-política. A definição
teológica é posta a serviço de uma doutrina, e não por acaso é submetida a atestações legais,
tais como o processo jurídico de verificação do milagre do Espinho Santo e, num sentido
mais amplo, a tentativa bayleana de fornecer um critério para dar legitimidade miraculosa a
determinados eventos. Quem tem direito sobre os milagres? Quem pode ser seu proprietário
e determinar sua interpretação exata? É uma questão de soberania – e, como tal, de direito
do mais forte. Para os propósitos específicos do presente capítulo, estes dois eventos que
circundam, de uma ponta a outra, a escrita e publicação do TTP em 1670, podem fornecer
uma visão ampla do local em que a crítica spinozista aos milagres e à superstição ocupa nos
debates teóricos da Europa do século XVII. De um lado, uma posição apologética, que vê no
milagre a confirmação de uma doutrina; de outro, uma postura que, ainda que ligeiramente
mais moderada, manifesta o mesmo ímpeto de soberania e de autorização. No extremo
oposto, o comentário spinozista, que nega a existência tout court de fenômenos sobre ou
126
PD, §217.
127
PD, §218.
128
PD, §151, 152.
129
PD, §148.
130
Sobre estas leituras e o lugar histórico de Spinoza, ver a Introdução deste estudo.
99
131
GIII, 95; ESPINOSA, B. 2019, P. 215.
132
Idem à nota 120.
133
Spinoza parece considerar que o único momento em que toma os milagres a partir de princípios e dogmas
retirados da Escritura em confronto com a ordem natural é após este aviso ao fim do capítulo. Quando
interpreta, antes, outras passagens da mesma, com os objetivos de demonstrar que “esta não entende pelos
decretos de Deus e, consequentemente, pela sua providência, outra coisa senão a própria ordem da natureza, que
deriva necessariamente de suas leis eternas” (GIII, 82; ESPINOSA, B. 2019, P. 202) e quando trata “do modo
como interpretar os milagres da Escritura” (Ibid), põe-se da perspectiva daquele que deduz o fenômeno sem se
perguntar, ainda, sobre sua verdade; procurando reportar, por inferência, apenas aquilo que a Escritura
expressamente diz. Assim, os parágrafos que ocupam a maior parte do capítulo devem ser entendidos como a
história do milagre, descrevendo mais o seu sentido do que sua essência e consequente concordância com a
natureza.
134
G III, 42-43.
100
135
ESPINOSA, B. 2019, P. 215; G III, 95.
136
Ibid.
137
“Será, então, preferível citar outras passagens da Escritura, principalmente as que foram ditadas por aquele
que falava baseado na luz natural, em que superou todos os sábios do seu tempo, e cujas palavras o povo
acolheu com tanto respeito como as dos profetas: estou a pensar em Salomão, de quem os Livros Sagrados
exaltam menos a profecia e a piedade que a prudência e a sabedoria”. G III, 66; ESPINOSA, B. 2019, P. 186.
138
GIII, 91; ESPINOSA, B. 2019, P. 212.
139
G III, 100.
140
Além dos trabalhos de Fraenkel e Nadler, é interessante verificar as contribuições de Warren Zev Harvey
(“Spinoza on Biblical Miracles”, In: Journal of the History of Ideas, Vol. 74, No. 4 (October 2013), pp.
659-675) e Oded Schechter (“Spinoza’s Miracles: Scepticism, Dogmatism, and Critical Hermeneutics”, In:
REBIGER, B. (ed.). Yearbook of the Maimonides Centre For Advanced Studies. 1st ed., De Gruyter,
Berlin/Boston, 2018, pp. 89–108. Disponível online em JSTOR, www.jstor.org/stable/j.ctvbkjwt0.8. Último
acesso em 21/04/ 2020 às 18h03min).
141
FRAENKEL, C. “Spinoza on Miracles and the Truth of the Bible”. In: Journal of the History of Ideas,
Volume 74, Number 4, October 2013, pp. 643-658.
142
G III, 180.
143
G III, 181.
101
144
FRAENKEL, C. 2013, P. 658.
145
NADLER, S. “Scripture and Truth: A Problem in Spinoza's ‘Tractatus Theologico-Politicus’”. In: Journal of
the History of Ideas, Vol. 74, No. 4 (October 2013), pp. 623-642.
146
NADLER, S. 2013, P. 640.
147
“Entre os que não sabem separar a filosofia da teologia, discute-se se é a Escritura que deve estar ao serviço
da razão ou se, pelo contrário, é a razão que deve estar ao serviço da Escritura; por outras palavras, se é o
sentido da Escritura que deve adaptar-se à razão ou esta que deve adaptar-se à Escritura. Os céticos, que negam
a certeza da razão, defendem esta última tese, ao passo que a primeira é defendida pelos dogmáticos.” Cf. G III,
180; ESPINOSA, B. 2019, P. 311.
102
Enfim, se ocorrem ainda nas Sagradas Escrituras outras coisas que suscitam
escrúpulos, não é este o lugar de explicá-las, pois aqui inquirimos apenas o que
podemos alcançar certissimamente pela razão natural, e é suficiente demonstrá-lo
com evidência para sabermos que as páginas sagradas devem também ensinar o
mesmo, pois a verdade não repugna a verdade [veritas veritati non repugnat], nem a
Escritura pode ensinar frivolidades como as que são vulgarmente forjadas. Com
efeito, se descobríssemos nela algo que fosse contrário à luz natural, poderíamos
confutá-la com a mesma liberdade pela qual confutamos o Alcorão e o Talmude. Mas
longe de nós pensar que se possa encontrar nas Sagradas Escrituras algo que repugne
à luz da natureza. (Grifo meu. GM II, 8; ESPINOSA, B. 2015b, P. 243)
Esta citação, além de confirmar nosso ponto, indica que o TTP não é o primeiro
momento em que Spinoza se dedica a pensar a questão dos milagres. Nos CM, algumas
noções caras ao TTP são adiantadas, e alguns dos temas que ali surgem serão, na Ética,
simplesmente abandonados.149 Um exemplo destas duas afirmações ocorre na discussão sobre
a onipotência divina. Spinoza admite que Deus possui uma potência absoluta e outra
ordenada: a primeira, quando se considera “sua onipotência sem atentar a seus decretos”150 e
148
“De duas maneiras as coisas são concebidas por nós como atuais: ou enquanto as concebemos existir com
relação a um tempo e um lugar certos, ou enquanto as concebemos estar contidas em Deus e seguir da
necessidade da natureza divina. E as que são concebidas desta segunda maneira como verdadeiras ou reais,
concebemo-las sob o aspecto da eternidade e suas ideias envolvem a essência eterna e infinita de Deus, como
mostramos na Proposição 45 da Parte 2, da qual se verá também o Escólio”. Cf. ESPINOSA, B 2015a, P.
559-561; EV, P. XXIX, esc.
149
A mera presença ou ausência de conceitos e teses na Ética não é evidência de que Spinoza os modificou ou
abanou em absoluto: tal conclusão depende da assunção desta obra como aquela em que é apresentada a versão
legítima de sua doutrina. Aqui, no entanto, como já deve estar claro a esta altura, não estamos comprometidos
com este princípio de leitura. Contra a suspeita que se pode levantar a respeito da confiabilidade dos Princípios
da Filosofia Cartesiana bem como dos Pensamentos Metafísicos que os seguem, devido ao fato de se
apresentarem como a exposição da doutrina de um outro, três argumentos podem ser apresentados, um interno,
outro externo e um ao mesmo tempo interno e externo. O argumento interno é o seguinte: ambos são tão
legítimos quanto seus demais trabalhos na medida em que não se trata, para Spinoza, de mera exposição de uma
doutrina qualquer, a qual ele poderia expor a uma certa distância, mas sim da exposição da verdade, da Filosofia
ou da Metafísica que, do ponto de vista da eternidade, não se distingue entre cartesiana ou spinozista. Já o
argumento externo atenta para o fato de que, em última análise, a validade de um texto, mesmo daqueles
autorizados por uma assinatura, é sempre determinada por critérios que lhe escapam. Por último, a possibilidade
de reportar, sem modificações, o conteúdo de um texto, sobretudo quando vem acompanhada da variação de sua
forma, não é imune de críticas. A transmissão de uma mensagem por diferentes canais, mantendo-a intacta, é,
como demonstra Jacques Derrida em « signature événement contexte », um dogma da comunicação e, mais
ainda, da própria definição histórica da linguagem. À diferença de Descartes, Spinoza aposta na síntese; e, para
seguir um princípio que já defendemos em outro contexto (rever, para tanto, nossa Introdução metodológica),
mudanças de forma não surgem sem mudanças de conteúdo. O resultado do texto, portanto, é uma entidade
singular e irrepetível, que apenas faz lembrar o cartesianismo, mas que necessariamente o modifica.
150
CM II, IX; ESPINOSA, B. 2015b, P. 247.
103
a segunda “quando nos referimos a seus decretos”151. Por decretos de Deus deve-se entender,
tal como no TTP, as leis da natureza na medida em que foram por ele determinadas152. Além
destas duas, há também a potência ordinária – aquela que fixa o mundo numa ordem – e a
extraordinária – em que esta ordem é suspensa, “como por exemplo todos os milagres, tais
como a fala de um asno, a aparição de anjos e coisas semelhantes”153. Uma crítica é
acrescentada en passant a esta categoria de fenômenos: pode-se com razão duvidar dos
milagres, pois tanto maior seria a potência divina se Deus permanecesse na ordem que fixou
de uma vez por todas na natureza, ao invés de interrompê-la em função dos homens. Esta
questão, diz Spinoza, deve ser respondida pelos teólogos, e não pelos filósofos: e com isto
Spinoza se cala.
Pode parecer, então, que, diferentemente do que faz no TTP, Spinoza classifica o
milagre como um tópico essencialmente teológico. Mas observe-se que esta afirmação não
põe fim à discussão sobre a existência do milagre em si, ou do poder de Deus para fazê-lo,
mas apenas à especulação sobre se é mais digno de Deus manter a ordem que determinou na
natureza ou suspendê-la. Compete à teologia conjecturar quanto à manifestação que mais
convém à potência de Deus, embora a filosofia possa perfeitamente apresentar uma definição
do milagre154, como, aliás, Spinoza efetivamente o faz no trecho ao elencar uma potência
extraordinária de Deus. Um pouco adiante, ainda nos CM, Spinoza prefere se calar sobre
outro tema: os anjos. Ainda que também sejam entes criados por Deus, não devem ser
indagados pela filosofia, pois sua essência se mostra apenas por revelação, e não por
princípios deduzidos da luz natural. Pertencem, portanto, à teologia, cujo conhecimento é “de
gênero totalmente diverso do conhecimento natural, [e] de modo algum deve ser misturado
com esse”155. A distinção entre teologia e filosofia cara ao TTP parece, ainda, mantida. A
pergunta é se o mesmo pode ser dito da categorização epistêmica dos milagres enquanto um
debate inteiramente filosófico.
151
Ibid.
152
G III, 82-83.
153
CM II, IX; ESPINOSA, B. 2015b, P. 247.
154
“Enfim, um filósofo não pergunta o que Deus pode fazer pela suma potência, mas julga a natureza das coisas
a partir das leis que Deus incutiu nelas; por isso julga ser fixo e confirmado o que a partir daquelas leis
conclui-se ser fixo e confirmado; embora não negue que Deus possa mudar aquelas leis e todas as outras. Por
consequência, não indagamos, ao falarmos da alma, o que Deus pode fazer, mas apenas o que se segue das leis
da natureza”. Cf. CM, II, XII; ESPINOSA, B. 2015b, P. 259.
155
Ibid.
104
Para responder a uma possível objeção quanto à imortalidade da mente humana, que
se segue de modo claro tanto de princípios revelados quanto das leis da natureza, Spinoza
retorna, nos CM, ao tema dos milagres. Admite que Deus pode destruir as leis da natureza
que ele mesmo decretou para fazer milagres156, que são feitos não contra, mas acima dela.
Fazer milagres acima da natureza significa que “Deus tem ainda muitas leis para operar que
não comunicou ao intelecto humano”157, mas que, tão logo fossem por ele descobertas, seriam
tão naturais quanto as já conhecidas. O milagre parece derivar, como no TTP, mais da
ignorância das causas por parte dos homens do que de uma potência de intervenção divina
sobre a natureza. Parece haver, no entanto, uma diferença fundamental: Deus ter escolhido
não comunicar estas leis ao intelecto humano não equivale aos homens não buscarem
conhecer as causas dos eventos exteriores. No primeiro caso, mesmo que tentem, não poderão
compreender as coisas; no segundo, elas já estão dispostas na natureza, e basta ao homem
deduzir sua origem a partir dos princípios contidos em sua mente.
Estas passagens nos levam a crer que a posição de Spinoza em relação ao milagre, nos
CM, embora já surpreendentemente munida de um instrumental que será recuperado no TTP
– a noção de decreto como idêntico à determinação divina, a de conhecimento revelado por
oposição à conhecimento natural e a distinção entre filosofia e teologia –, difere dele ao
menos em dois aspectos significativos: aqui, Spinoza parece de fato conceder a Deus uma
potência extraordinária sobre a natureza, conservando a expressão milagre para se referir a
certos eventos para além da mera ignorância do indivíduo e, segundo, parece crer que o
156
Interpreto esta passagem a partir do modo como os tradutores dos CM ao português (cf. ESPINOSA, B.
2015b) a interpretaram, quer dizer, supondo, a partir do original latino, que Spinoza está aceitando a hipótese de
que Deus às vezes destrói as leis naturais – e não como o interpreta Charles Appuhn na tradução francesa,
segundo o qual esta é uma hipótese de um possível objetor (« Nous ne sommes point arrêtés par cette objection
possible que Dieu peut à un moment quelconque détruire ces lois naturelles pour produire des miracles [...] », cf.
SPINOZA, B. 1964, P. 387). Atilano Domínguez, em sua versão, segue os passos de Appuhn: “No importa que
alguien nos replique que Dios destruye algunas veces dichas leyes naturales para efectuar los milagros [...]”, cf.
SPINOZA, B. 1988a, P. 280. Em abono da primeira solução, remeto à uma passagem anterior, na qual Spinoza,
ao tratar do ofício do filósofo, afirma que este “não pergunta o que Deus pode fazer pela suma potência, mas
julga a natureza das coisas a partir das leis que Deus incutiu nelas [...] embora não negue que Deus possa mudar
aquelas leis e todas as outras” (CM, II, XII; ESPINOSA, B. 2015b, P. 259). Esta última passagem não cria
problemas interpretativos quando comparada à solução de Appuhn, que traduz: « ne cherche pas ce que la
souveraine puissance de Dieu peut faire; il juge de la Nature des choses par les lois que Dieu a établies en elles
[...] sans nier que Dieu puisse changer ces lois et tout le reste », cf. SPINOZA, B. 1964, P.386, tampouco à de
Domínguez: “no pregunta qué puede hacer Dios con su poder supremo, sino que juzga sobre la naturaleza de las
cosas a partir de las leyes que Dios les fijó. [...] aunque no niegue que Dios puede cambiar esas leyes y todo el
resto”, cf. SPINOZA, B. 1988a, P. 280. É justamente a possibilidade de mudança das leis que encaminha a
sugestão de que Deus pode destruir as leis naturais para criar milagres e, assim, ser dotado de uma potência
extraordinária.
157
CM, II, XII; ESPINOSA, B. 2015b, P. 261.
105
milagre é um tema que não é inteiramente filosófico, mas que ocupa um estranho não-lugar
de instabilidade entre filosofia e teologia158. Entre CM e TTP há uma desproporção
metodológica no tratamento da questão, a qual pode ser reportada a uma tensão mais ampla
entre interioridade (se pertencer ao campo da filosofia, em que é desligado de seu caráter
ontológico) e exterioridade (se a ele for conferida realidade remetendo aos fundamentos da
Escritura, ou seja, se for um fenômeno teológico).
158
Henri Laux não exibe a mesma preocupação ao identificar a ambivalência do exame spinozista do milagre, o
qual, segundo ele, tem um status ao mesmo tempo de texto bíblico e de leitura da religião. Para ele, o milagre
deve ser compreendido no interior de um campo “sócio-epistemológico”, na medida em que revela o
comportamento de um estrato social, o vulgo, sua maneira de compreensão dos eventos naturais e a tradução
desta interpretação numa narrativa. Ver LAUX, H. Imagination et religion chez Spinoza. Paris: Vrin, 1993. P. 50.
159
G III, 81-82. ESPINOSA, B. 2019, P.201-202.
160
G III, 82; ESPINOSA, B. 2019, P. 202.
161
G III, 87; ESPINOSA, B, 2019, P. 208.
162
G III, 81-82.
163
Sobre a importância da memória coletiva na manutenção do milagre, ver LAGRÉE, J. 2004, P. 164 e LAUX,
H. 1993, P. 67-73.
164
“Mas, visto que os milagres foram feitos de acordo com a compreensão do vulgo, o qual ignorava totalmente
os princípios das coisas naturais, não há dúvida que aquilo que os antigos consideravam milagre era o que não
podiam explicar da maneira como o vulgo habitualmente explica as coisas naturais, isto é, recorrendo à memória
106
para se recordar de uma coisa semelhante que ele costuma imaginar sem se admirar”. Grifos meus. G III, 84;
ESPINOSA, B. 2019, P. 204.
165
“Esta afecção da Mente, ou seja, a imaginação de uma coisa singular, enquanto se acha sozinha na Mente, é
chamada Admiração [...]” EIII, P. LII, esc.; ESPINOSA, B. 2015a, P. 319.
166
G III, 6.
167
G III, 81; ESPINOSA, B. 2019, P. 201.
168
G III, 82-83.
169
G III, 87.
107
existência de Deus, mas, no máximo a de uma causa cuja potência é maior. Ao contrário, as
leis da natureza se estendem ao infinito, procedendo numa ordem fixa e imutável, donde,
através delas, pode-se conhecer a essência de um ente que também é dotado destas mesmas
características. Daí porque os milagres não nos oferecem um conhecimento de Deus, mas a
ordem da natureza, sim.170 Neste quadro de rejeição do milagre enquanto evento real, quer
dizer, de deslegitimação de seu caráter ontológico, Spinoza lhe confere, ao longo do capítulo
VI, ao menos duas definições – uma retirada da experiência e outra a partir da luz natural:
170
G III, 86.
171
Esta é a hipótese de Henri Laux, para quem o vulgo não é apenas produtor do milagre, mas também seu
produto. Ver LAUX, H. 1993, P. 52.
108
172
Esta teoria está expressa em G III, 92-94.
173
O que se explica pelo fato de o corpo humano ser composto por muitos indivíduos. Ver EII, P. XIII, post.3 e
também EIII, P. LI.
174
EII, P. XVI.
175
G III, 93; ESPINOSA, B. 2019, P. 213.
176
G III, 90. ESPINOSA, B. 2019, P. 2010.
177
G III, 91; ESPINOSA, B. 2019, P. 211.
178
“A Devoção é o Amor àquele que admiramos”, cf. E III, Definição dos Afetos, X; ESPINOSA, B. 2015a, P.
345. Ver também EIII, P. LII. A devoção incutida pelo milagre se explica, então, pela admiração que suscita ao
narrar eventos extraordinários, atribuindo a causa a um objeto que já nutrimos amor: Deus. Eis a linguagem
afetiva melhor adaptada ao engenho do vulgo.
109
179
G III, 16. Para um exame da profecia, ver o Capítulo 4.
110
Capítulo 2.
ESCRITURA E LEITURA
— Platão, Fedro2
1
BLANCHOT, 1997, p. 311.
2
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Editora 34, 2016. P. 195.
3
FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris : Éditions Gallimard, 1966. P. 61-91.
111
enquanto escritura, atestar, por meio de sua representação, que a linguagem obtém uma
contraparte nas coisas mesmas. Já na segunda parte do romance, o personagem mesmo
converte-se em livro, e necessita fundar um sistema semiótico a partir do qual suas vivências
anteriores possam ser protegidas e justificadas. Dom Quixote se depara com personagens que
leram sua narrativa, desconhecida para ele mesmo, devendo, agora, conquistar sua
semelhança consigo próprio, ser-lhe fiel. O romance dobra-se sobre si mesmo, uma vez que
não se trata, como outrora, de justificar a semelhança com as narrativas exteriores, mas sim
de, convertido em signo, fazer a si próprio corresponder a um outro signo. As palavras criam
uma realidade própria, fechada, sem necessidade de correspondência ao mundo, limitadas a
se comunicarem entre si. Assim, a representação se funda a partir da decepção com a
semelhança, realocando a relação associativa que, no Renascimento, palavras e coisas
possuíam, para um sistema de referências imanente dos signos. Este novo paradigma permite
compreender a fundação de novos regimes discursivos no século XVII, como a probabilidade
e a análise combinatória, e, sobretudo, a própria literatura.
4
DESCARTES, R. 1973, P. 111; AT IX-1, 31.
5
AT IX-1, 31.
6
DESCARTES, R. 1973, P. 96; AT IX-1, 17.
112
aqueles que julgara reais e verdadeiros que não pareço ter uma razão rigorosa para
descartá-los como ilusórios. A confusão entre o sono e a vigília só será totalmente desfeita ao
fim do percurso das Meditações, recorrendo à memória, incapaz de conferir a mesma
coerência aos sonhos que aos eventos que ocorrem quando estamos despertos.7 É bem
verdade que, naquela altura da argumentação, os sentidos e a memória já tinham recuperado
seu potencial epistêmico, de modo que, ao menos em relação às comodidades e
incomodidades do corpo, posso empregá-los sem maiores hesitações. É interessante observar,
no entanto, que a justificativa final contra a ilusão contínua do sonho repete a regra do
Quixote: o que parece atestar a realidade de minhas percepções atuais é sua conexão com
percepções anteriores, criando uma cadeia de referências que vai não dos signos às coisas,
mas de signo a signo. Reservas quanto à noção de semelhança que parte da constatação da
desconexão entre objetos e percepções, de um lado; criação de um sistema semiótico baseado
na representação para justificar a veracidade de minhas percepções, de outro.
7
AT IX-1, 71-72.
8
BACON, F. The New Organon. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. Livro I, §39, 43, 59, 60. P.
40-42; 48-49.
9
Cf. BACON, F. 2003, P. 42; Novum Organum, Livro I, §43.
10
Novum Organum, Livro I, §59.
113
os termos que compõem a linguagem causam disputas entre os homens, que se concentram,
muitas vezes, em nomes, tornando a filosofia e as ciências “sofísticas e improdutivas”11.
A linguagem comum revela seu aspecto enganador também ao confundir o ato de ver
com o de julgar. Quando digo que vejo o mesmo pedaço de cera, modificado após o contato
com o fogo, o termo ver esconde uma operação que é, na verdade, intelectual. Vejo
simplesmente um conjunto de propriedades físicas: antes do fogo, o pedaço de cera “é duro, é
frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som”15; depois do fogo, torna-se líquido,
quente e silencioso. A visão pode apenas me fornecer a variabilidade de propriedades. Que se
11
Cf. BACON, F. 2003, P.48; Ibid.
12
DESCARTES, R. 2002b, P. 97; AT IX-2, 60-61.
13
AT IX-2, 58-59.
14
DESCARTES, R. 2002b, P. 93; AT IX-2, 59.
15
DESCARTES, R. 1973, P. 104; AT IX-1, 23.
114
Para responder a esta indagação, devemos nos confrontar com o aspecto duplo que a
linguagem assume no spinozismo: de um lado, sua crítica à linguagem, que surge de modo
fragmentário ao longo de toda a sua obra, com a qual parece abraçar as posturas de seus
contemporâneos. De outro, uma compreensão de método, materializada na Ética e nos
16
DESCARTES, R. 1973, P. 105; AT IX-2, 25.
17
FOUCAULT, M. 1966, P. 84.
18
O silêncio de Foucault sobre Spinoza, em especial a ausência de uma discussão detalhada sobre sua concepção
de signo, é notado por Lorenzo Vinciguerra em seu trabalho Spinoza et le signe. Paris : Vrin, 2005. P. 11. A
referência específica, aqui, é ao As Palavras e as Coisas. É bem verdade que Spinoza surge em outros
momentos da obra de Foucault: por exemplo, em A Verdade e as Formas Jurídicas, numa comparação com
Nietzsche.
115
19
Verborum penuriam. Cf. ESPINOSA, B. 2015c, P. 87; TIE, §96.
20
ESPINOSA, B. 2015b, P. 197; CM, I, 1, Nota.
21
CM, I, III.
22
CM, I, VI.
23
ESPINOSA, B. 2015b, P. 217; Ibid.
24
Ibid.
116
retóricas, que podem existir na linguagem, mas são desprovidas de ser. Daí por que, ao longo
dos Cogitata Metaphysica, Spinoza denuncie os “filósofos verbalistas” (Philosophos
verbales) e “gramaticistas” (grammaticales)25, cujo raciocínio emerge dos nomes às coisas,
ao invés de das coisas aos nomes, e que tome as disputas sobre nomes como polêmicas fúteis,
vagas e vazias26. É que as palavras vivem afastadas das coisas, e, por isso, podem trair, fingir,
mentir: em suma, dar voz à negação.
Não é apenas, porém, a composição arbitrária entre signos exteriores que a linguagem
permite: o fingimento pode se dar também em relação a mim mesmo. As palavras
proporcionam um fenômeno próximo do autoengano: o fingimento sobre suas próprias
capacidades e estados mentais. Assim para a ilusão do livre-arbítrio, já tantas vezes
denunciada por Spinoza27: os homens se dizem livres, ou seja, reputam a origem de suas
ações à sua vontade, mas com isso apenas exprimem “palavras das quais não têm nenhuma
ideia”28. Nutrem esta opinião pois, conscientes de suas ações, creem-nas independentes das
causas que as determinam. Uma sentença como, por exemplo, “sou livre para determinar o
fluxo de minha vida”, tem uma referência vazia, deixando entrever a ignorância do falante,
que não domina as causas de suas ações. Além disso, alguns, ao confundirem palavras e
ideias, acreditam poder “querer contra o que sentem, quando o fazem somente por palavras”29
. Para compreender este fenômeno, é preciso insistir na diferença entre ideias e palavras, um
aspecto em que a teoria das ideias spinozista difere da cartesiana. Enquanto para Descartes a
ideia é como um quadro, ou seja, representa de forma neutra um objeto ou um conceito, cuja
afirmação ou negação só poderá acontecer posteriormente num juízo operado pela vontade30,
a ideia, para Spinoza, é nela mesma afirmação ou negação, pois a vontade não é uma
25
ESPINOSA, B. 2015b, P. 199; CM, I, 1.
26
“Se alguém quiser chamar de contingente o que eu chamo de possível e, ao invés, de possível o que eu chamo
de contingente, não o contradirei, pois não costumo disputar sobre nomes”. ESPINOSA, B. 2015b, P. 211; CM,
I, III.
27
Ver, para tanto, o Capítulo I deste estudo.
28
ESPINOSA, B. 2015a, P. 191; EII, P. XXV, esc.
29
ESPINOSA, B. 2015a, P. 221; EII, P. XLIX, esc.
30
“Entre meus pensamentos, alguns são como imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de
ideia: como no momento em que eu represento um homem ou uma quimera, ou o céu, ou um ano, ou mesmo
Deus. Outros, além disso, têm algumas outras formas: como, no momento em que eu quero, que eu temo, que eu
afirmo ou que eu nego, então concebo efetivamente uma coisa como o sujeito da ação de meu espírito, mas
acrescento também alguma outra coisa por esta ação à ideia que tenho daquela coisa; e deste gênero de
pensamentos, uns são chamados vontades ou afecções, e outros juízos”. Cf. DESCARTES, R. 1973, P. 109; AT
IX-1, 29.
117
faculdade específica do intelecto, mas apenas a volição que a ideia, nela mesma, envolve31. A
ideia carrega já em si mesma um desejo, de modo que as palavras, se não corresponderem a
ele, serão simplesmente vazias de ser. Para evitar a confusão entre palavras e ideias, portanto
32
, é necessário separar a natureza da ideia, que é um produto do pensamento, das palavras e
demais imagens, formadas por movimentos corporais, que envolvem o conceito de extensão.
Estas considerações iniciais ainda não nos permitem concluir a total impossibilidade
da linguagem para expressar o ser: elas apenas introduzem um ruído em seu poder
expressivo. Na verdade, tal como Bacon e Descartes, Spinoza pode estar apenas atentando
para o uso cauteloso que devemos fazer dos termos da linguagem. No TIE, novamente as
palavras são associadas à potência humana para o fingimento: a capacidade da mente para
fingir é tanto maior quanto maior for seu desconhecimento das coisas, ou seja, quanto menos
inteligir.33 O conhecimento da natureza da alma impede que se possa fingir sua corporeidade,
assim como o conhecimento da essência do corpo nos impossibilita pensar uma mosca de
extensão infinita. Os exemplos se multiplicam: “árvores falarem, homens mudarem num
instante em pedras e em fontes, espectros aparecerem nos espelhos, o nada fazer-se algo, e
também Deuses mudarem em bestas ou em homens”34 – são ficções (fictiones), cuja
possibilidade verbal se sustenta, como vimos, dada a distância entre palavras e coisas.
31
EII, P. XLIX.
32
A distinção entre as perspectivas de Descartes e Spinoza, nesta argumentação, serve apenas para observarmos
o caráter necessariamente volitivo das ideias no último, do qual deriva a impossibilidade de afirmar verbalmente
contra aquilo que se sente. Em relação à origem imaginativa das palavras, porém, os dois autores parecem estar
de acordo.
33
TIE, §58.
34
ESPINOSA, B. 2015c, P. 61; TIE, §58.
35
TIE, §89.
118
inicia com ídolos de Bacon, atravessa a denúncia das causas dos erros elencadas por
Descartes nos Princípios, para, enfim, atingir a definição spinozista das palavras como
produto da imaginação, compostas “na memória de maneira vagante a partir de alguma
disposição do corpo”36, podendo, assim, serem fontes de muitos erros. Conceitos cuja
expressão verbal é negativa, tais como “incorpóreo”, “infinito”, “incriado”, “imortal” etc.,
muitas vezes fazem referência à entidades intelectuais cuja natureza é, na verdade, positiva,
mas que as palavras, enquanto produtos da imaginação, não são capazes de exprimir. Como é
mais fácil imaginar o contrário do corpóreo, do finito, do criado e do mortal do que
compreender, em sua positividade, tais conceitos, as palavras traduzem essa disposição
imaginativa via negação. Para aqueles que organizam seu pensamento pelas palavras ou
nomes, são gerados, então, diversos preconceitos em relação à essência de determinadas
entidades.
36
ESPINOSA, B. 2015c, P. 83; TIE, §88.
37
Para um estudo completo do signo em Spinoza, remeto mais uma vez aos trabalhos de Lorenzo Vinciguerra: «
Spinoza et les signes des choses », In : Revue des Sciences philosophiques et théologiques. Vol. 82, No. 1,
CHOSE, OBJET, SIGNE CHEZ SPINOZA (Janvier 1998), pp. 31-48; e Spinoza et le signe. Paris : Vrin, 2005.
38
EII, P. XVIII, esc.
39
ESPINOSA, B. 2015a, P. 171; EII, P. XVIII, esc.
119
Isto parece significar que as palavras só podem se referir, na mente dos indivíduos, a
entidades singulares. Ora, como pensar, então, a comunicação? A linguagem não necessita se
basear em entidades universais para garantir um mínimo de regularidade na referência aos
mesmos objetos? Se a comunicação é possível, é de se esperar que ela se estruture a partir de
termos universais. A resposta de Spinoza, neste momento, é mais uma ocasião para listar a
impostura das palavras: elas não só permitem as ficções, mas são o canal de expressão das
ideias transcendentais (Ser, Coisa, algo) e universais (Homem, Cavalo, Cão)40. Os termos
(termini) transcendentais existem pela única razão de o corpo só ser capaz de forjar
distintamente e em simultâneo uma quantidade limitada de imagens. Se esta quantidade for
ultrapassada, as imagens passarão a se confundir, e, como a mente é capaz de imaginar tantos
corpos quantas imagens forem formadas em seu corpo41, a confusão do corpo rapidamente
dará lugar a uma confusão na mente. Assim, os corpos serão agrupados, sem distinções, em
atributos gerais como os de Ser, Coisa etc., de modo que a singularidade de cada uma destas
imagens será abolida. Os termos universais têm uma origem similar. São forjadas em
simultâneo, no corpo, uma grande quantidade de imagens, contendo propriedades singulares,
de modo que a imaginação não poderá abarcar nem as pequenas diferenças entre os corpos,
40
EII, P. XL, esc.1.
41
EII, P. XVII, cor.; EII, P. XVIII.
120
42
ESPINOSA, B. 2015a, P. 199; EII, P. XL, esc.1.
43
Ibid.
44
Ibid.
45
Ibid.
46
Que Spinoza está consciente de uma distinção, ainda que primária, entre a linguagem em seu uso comum e em
sua acepção filosófica é patente pela explicação que fornece para o afeto da Indignação: “Sei que estes nomes
significam outra coisa no uso comum. Contudo meu intuito não é explicar a significação das palavras, mas a
natureza das coisas, e indicá-las com vocábulos cuja significação usual não repugna inteiramente àquela com
que quero empregá-los; e basta tê-lo advertido uma vez.”, cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 349; EIII, Def. dos
Afetos, XX.
47
SAVAN, D. “Spinoza and Language”. In : The Philosophical Review, Vol. 67, No. 2 (Apr., 1958), pp.
212-225.
121
possível, por fim, que Spinoza transmita adequadamente, empregando a linguagem, sua
própria filosofia. Pode o adequado, quer dizer, a própria verdade, ser comunicada através de
um meio inadequado, ou seja, a linguagem? Savan acredita que um desvencilhamento do
caráter imaginativo das palavras, em direção a algo como um uso uniforme das mesmas, não
é possível no interior do spinozismo. Como evidência de sua interpretação, elenca uma série
de contradições engendradas pelas palavras dispostas ao longo da Ética: por exemplo, o fato
de Spinoza empregar a expressão ser48, já outrora denunciada como um transcendental vazio49
; ou então, na definição de substância, lançar mão da operação de conceber (intelligere), a
qual, ainda na Ética, fora classificada como igualmente fictícia, uma vez que não há uma
faculdade absoluta de entender – tampouco de desejar ou de amar – para além das próprias
ideias50. Spinoza estaria consciente destas contradições flagrantes posto que informado de que
qualquer empreitada comunicativa que envolvesse o uso da linguagem necessariamente
recairia em tais percalços. A proposta positiva de Savan é apostar nos entes de razão: modos
de pensar que auxiliam a mente a “reter, explicar e imaginar as coisas entendidas”51 e que não
possuem qualquer existência para além da mente. Segundo ele, a Ética compreenderia a
linguagem como um auxílio em direção à transmissão da verdadeira filosofia. Como não
possuem existência independente, não pretendendo corresponder a qualquer objeto real, os
entes de razão não encaminhariam, como as palavras, necessariamente aos preconceitos; pois
podem ser tomados como meios para um fim, e abandonados tão logo a verdade filosófica
fosse corretamente compreendida (um pouco como Wittgenstein considerava a função de seu
Tractatus: descartar a escada após ter atingido o topo52).
Contra esta interpretação, Moreau53 apoia-se numa ideia apresentada numa carta a
Pierre Balling54. Seu interlocutor havia erigido a hipótese de que experimentara um
48
EI, defs. III e VI.
49
EII, P. XL, esc.1.
50
“Da mesma maneira demonstra-se que não se dá na Mente nenhuma faculdade absoluta de entender
(facultatem absolutam intelligendi), desejar, amar etc. Donde segue que estas faculdades e similares ou são
inteiramente fictícias ou não são nada além de entes Metafísicos, ou seja, universais que costumamos formar a
partir dos particulares”. Cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 215; EII, P. XLVIII, esc.
51
ESPINOSA, B. 2015b, P. 197; CM I, 1.
52
Diz uma das últimas proposições do Tractatus: “Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me
entende acaba por reconhecê-las como contrasensos, após ter escalado através delas - por elas - para além delas.
(Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.). Deve sobrepujar essas proposições, e então
verá o mundo corretamente.” (Tractatus, §6.54). Cf. WITTGENSTEIN, L. 2010. P. 281.
53
MOREAU, P.F. 1994, P. 315-319.
54
Carta XVII.
122
presságio: teria ouvido gemidos de seu filho, parecidos com aqueles que ele emitira quando
doente, os quais foram tão logo seguidos de seu falecimento. Ainda que os gemidos não
passem de produtos da imaginação, o presságio, sob certas condições, é um fenômeno real.
Os efeitos da imaginação, como os gemidos, podem provir seja do corpo, seja da alma. No
segundo caso, a imaginação segue os traços do entendimento, encadeando as imagens como
este último concatena as demonstrações. O paralelo entre as imagens e as demonstrações será
tal que para cada conhecimento do intelecto a imaginação formará, de imediato, uma imagem
correspondente. Estas imagens, então, provindo da constituição da alma, podem ser como
presságios de coisas futuras, já que a alma dispõe, ainda que confusamente, do poder de
pressentir o que acontecerá. Esta tese soa, aliás, perfeitamente consequente com o
necessitarismo spinozista: a cadeia de causas está desde sempre determinada em Deus55, e
pode ser que a alma humana, em alguns casos, tenha acesso a ela confusamente. A
consequência será a produção de uma imagem (o gemido) para um evento futuro (a morte do
filho)56. Tendo em vista que Spinoza jamais afirmou categoricamente a impropriedade
intrínseca da linguagem para exprimir o ser, e considerando que as palavras são imagens,
também elas podem ser organizadas em paralelo à ordem do intelecto – fundando, então, um
uso adequado para expressar as coisas, incluindo a própria filosofia.
Seguindo esta proposta, Céline Hervet57 distingue entre as noções comuns e os termos
universais. Assim para o caso de “homem”: contra a proposta aristotélica, que se apoia no
gênero e na diferença específica para defini-lo, Spinoza apresenta uma definição de homem
que atenta para sua constituição, ou seja, para o fato de possuir mente e corpo58, corpo este
cuja formação obedece à lei geral de movimento e repouso a qual todos os demais corpos
estão submetidos59. Trata-se de uma noção comum pois retira propriedades comuns dos
objetos a partir do encadeamento do entendimento60 e não das imagens corporalmente
55
EI, P. XXIX, P. XXXII, XXXIII, XXXV, XXXVI.
56
Interessante contrastar a posição de Spinoza face ao presságio na Carta XVII e, por exemplo, no Prefácio ao
TTP, tal como reconstruímos no capítulo anterior. Embora, na maior parte dos casos, os presságios sejam meros
produtos da imaginação, derivados da ignorância das causas, é possível que sejam fenômenos efetivos caso a
imaginação se conduza seguindo o intelecto.
57
HERVET, C. De l’imagination à l’entendement. La puissance du langage chez Spinoza. Paris : Classiques
Garnier, 2012. P. 183.
58
EII, P. XIII, cor.
59
EII, P. XIII, Lema I.
60
“Finalmente, porque temos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas (ver Corol. da
Prop. 38 e Prop. 39 com seu Corol. e Prop. 40 desta parte); e a isto chamarei de razão e conhecimento de
segundo gênero”. Cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 201; EII, P. XL, esc.2.
123
forjadas. A palavra “homem” pode reenviar, portanto, tanto a esta noção comum – como
parece ser o caso no Prefácio à Ética IV, com a ideia de naturæ humanæ exemplar61 – quanto
à sua imagem universal, que, como vimos, é confusa e particular à história de cada indivíduo.
Assim, as soluções de Moreau e Hervet, as quais subscrevemos, nos permitem encontrar ao
menos uma possibilidade para uma espécie de reforma dos signos, justificando seu uso
adequado no contexto filosófico.
61
“Pois, porque desejamos formar uma ideia de homem que observemos como modelo da natureza humana, nos
será útil reter estes mesmos vocábulos no sentido em que disse”. Cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 377; EIV,
Prefácio.
62
TIE, 35-36; 44; EII, P. XLIII, esc.
63
ESPINOSA, B. 2015a, P. 201; EII, P. XL, esc.2.
64
EII, P. XLI.
65
HERVET, C. 2012, P. 185.
124
ao qual se refere – por ser uma imagem extraída do encontro de um corpo individual com o
corpo exterior sem abarcar suas propriedades intrínsecas, como faz uma noção comum – e
aquela em que o indivíduo, sem passar pela experiência direta de concatenação das imagens
por meio deste encontro, apenas aceita a linguagem ex audire, herdando-a como um
patrimônio. Neste sentido, o culto às palavras não difere da superstição engendrada pela
crença nas causas finais e nos milagres. Cultuar as palavras, na filosofia, é o equivalente a
raciocinar a partir dos signos exteriores das coisas, ou seja, a ser verbalista ou gramaticista; e,
na teologia, a ser preconceituoso, ou seja, a sacralizar a letra bíblica.66 Daí por que, para
expressar a filosofia, talvez seja necessário corrigir a linguagem, de tal forma que ela
recupere o elo perdido entre palavras e coisas, expressando uma relação intrínseca entre signo
e ser.
66
A crítica à sacralização do texto Bíblico é um subtema da crítica geral à linguagem promovida por Spinoza.
Discutiremos tal tópico ainda neste capítulo.
67
RAMOND, C. 2007, P. 127.
68
“Estes, sem dúvida, hão de admirar que eu me proponha a tratar dos vícios e inépcias dos homens à maneira
Geométrica (more Geometrico tractare) e queira demonstrar com uma razão certa aquilo que reiteradamente
proclamam ser contrário à razão, vão, absurdo e horrendo.” ESPINOSA, B. 2015a, P. 235; EIII, Pref.
69
Ver a análise que proponho do Prefácio do TTP no capítulo anterior.
125
nas definições, axiomas, e proposições, não se encontrará apenas no tratamento dos afetos na
Parte III, mas ensaiado ao longo de toda a obra.
70
ESPINOSA, B. 2015c, P. 33; TIE, §13.
71
TIE, §14. Sobre o desejo que aquele que vive conduzido pela razão tem de compartilhar a fruição do bem com
os demais indivíduos, ver também EIV, P. XXXVII. Nesta proposição, Spinoza definirá tal desejo por piedade.
72
ESPINOSA, B. 2015c, P. 55; TIE, §49.
73
“Na verdade, a razão do inacabamento do Tratado nos parece muito clara: é porque ele descobre e inventa as
noções comuns que Espinosa se apercebe que as posições do Tratado da correção do intelecto são insuficientes
em vários aspectos, e precisaria remanejar o conjunto, ou então refazer tudo.” Cf. DELEUZE, G. 2002, P. 124.
74
TIE, §30.
126
martelo, e, para, fazê-lo, é necessário ainda outro martelo e assim se constrói uma cadeia de
instrumentos que remete ao infinito, os homens dispuseram de instrumentos inatos com os
quais puderam, aos poucos, forjar ferramentas e objetos de uso mais complexos, também o
intelecto dispõe de uma “força nativa”75, com a qual pode confeccionar utensílios intelectuais,
partindo do mais simples e rudimentar até que atinja uma sabedoria mais elaborada76. O
questionamento pela origem dos instrumentos, então, tende não apenas a afastar o intelecto
do reto caminho para a conquista do verdadeiro, mas a conduzi-lo a uma situação de
ceticismo generalizado em que simplesmente não há conhecimento algum, de tal forma que
este comportamento de incessante dúvida produziria um indivíduo correspondente a um
autômato desprovido de mente.77
Esta primeira justificativa apela para a experiência que temos da potência do intelecto
para forjar por si próprio instrumentos mentais. Uma razão suplementar recorre à natureza
mesma das ideias verdadeiras. Distingue-se Pedro, um ente real, da ideia de Pedro, que
também é real, mas que constitui a essência objetiva deste ente. Enquanto real, a ideia de
Pedro é igualmente inteligível, e pode ser, ela mesma, objeto de outra ideia: a ideia da ideia
de Pedro – e assim ao infinito. A experiência mental de possuir cada uma destas ideias se
traduz no fato de que sei o que é Pedro, que também sei que sei, e, caso queiramos prosseguir
na cadeia de ideias, que sei que sei que sei. Ora, para compreender a essência objetiva de
Pedro, não é necessário que eu percorra esta cadeia reflexiva de ideias: basta simplesmente
que eu tenha, em primeira instância, a ideia de Pedro, ou seja, que possua sua essência
objetiva. A certeza, portanto, não é uma propriedade exterior à ideia, mas está compreendida
como propriedade intrínseca da primeira destas ideias, isto é, da mais simples ideia de Pedro.
O método, então, não pode ser a busca por esta certeza, como se ela fosse um signo exterior à
verdade, mas deve-se conduzir em direção apenas à aquisição da ideia verdadeira e a uma
reflexão sobre ela. A primeira parte do método se constitui, portanto, como “conhecimento
reflexivo ou ideia da ideia”78 – a construção de uma cadeia reflexiva a partir das propriedades
desta ideia verdadeira, obtendo conclusões a respeito de nossa potência de inteligir. Deste
modo, a mente pode comandar todos os seus demais pensamentos conforme a norma
75
ESPINOSA, B. 2015c, P. 45; TIE, §31.
76
TIE, §31-32.
77
A comparação entre o cético e o autômato é desenvolvida em TIE, §47.
78
ESPINOSA, B. 2015c, P. 47-49; TIE, §38.
127
introduzida por esta ideia verdadeira. É certo que o método será tanto melhor quanto mais
perfeita for a ideia que toma como norma, daí porque ele será perfeitíssimo se se dirigir
conforme a norma do Ente perfeitíssimo, isto é, Deus.79
Feito isso, é necessário ingressar na segunda parte do método, que deverá forjar ideias
claras e distintas a partir da pura mente e, em seguida, concatenar tais ideias conforme a
ordem da natureza80. Para conceber ideias claras e distintas é necessário conhecer os objetos
através de sua essência ou de sua causa próxima. Se a coisa for incriada, ou, o que é o
mesmo, se for causa de si própria, deve ser concebida através de sua essência; se for criada,
quer dizer, se para a sua existência foi preciso uma causa suplementar, deve ser concebida
através de sua causa próxima.81 Para conquistar a essência, o melhor caminho não é a via
axiomática, pois os axiomas se aplicam a infinitas coisas e, assim, não conseguem atingir
perfeitamente os singulares. Mais próprio para o conhecimento destas coisas será a busca por
uma definição, que pode circunscrever de modo preciso uma essência particular afirmativa.
Daí porque a primeira seção desta segunda parte do método consiste numa teoria da boa
definição, estabelecendo suas condições e o modo de as descobrir. Eis, sucintamente, a teoria
da definição genética spinozista: a definição perfeita “deverá explicar a essência íntima da
coisa”82; e, mais especificamente ainda, descrever o processo de construção daquele objeto.
Considere-se o caso do círculo. Defini-lo como “uma figura cujas linhas conduzidas
do centro para a circunferência são iguais”83 é apenas enumerar uma de suas propriedades,
que, apesar de estar conectada a sua essência íntima, ainda não a revela por completo. Ao
contrário, defini-lo como “uma figura descrita por uma linha qualquer, da qual uma
extremidade é fixa e a outra é móvel”84, compreende sua causa próxima e descreve, ainda que
com um grau de ficção85, o processo de construção mental do círculo. Dela se pode derivar a
79
Ibid.
80
ESPINOSA, B. 2015c, P. 85; TIE, §91.
81
TIE, §92.
82
ESPINOSA, B. 2015c, P. 85; TIE, §95.
83
ESPINOSA, B. 2015c, P. 87; Ibid.
84
Ibid; TIE, §96.
85
Sobre o grau de fingimento e arbitrariedade aceito na confecção das ideias verdadeiras e, como concluímos,
também da definição genética, conforme o que Spinoza afirma no §72: “Por exemplo: para formar o conceito de
globo, finjo arbitrariamente uma causa, a saber, que um semicírculo roda em torno do centro, e a partir da
rotação o globo como que se origina. Essa obviamente é uma ideia verdadeira, e embora saibamos que globo
algum nunca foi originado assim na Natureza, essa é, contudo, uma percepção verdadeira e o modo mais fácil de
formar o conceito de globo” (ESPINOSA, B. 2015c, P. 71). Ver também HERVET, C. 2012, P. 193 e
ZOURABICHVILI, F. 2002, P. 152-153.
128
primeira definição que citamos: a propriedade de que as linhas conduzidas do centro para a
circunferência são iguais. Portanto, para as coisas criadas, duas são as condições básicas da
boa definição: primeiro, que se defina pela causa próxima e, segundo, que esta definição seja
virtualmente exaustiva, no sentido de que permita que todas as demais propriedades daquele
objeto sejam corretamente inferidas.86 Com relação à coisa incriada, são quatro as exigências
de sua definição: que não faça referência à causa (já que o ente é sua própria razão de ser),
que sua existência seja dada, que não seja explicada por abstrações e, como na definição das
coisas criadas, que permita a dedução de todas as suas demais propriedades87.
Sobretudo nestas passagens finais, Spinoza insiste na ideia de que devemos ordenar
nossa mente conforme a disposição da natureza. A mente deve tê-la como como um modelo
(exemplar)88, de tal modo que “reproduza [referat] objetivamente a formalidade da natureza,
86
TIE, §96.
87
TIE, §97.
88
TIE, §42.
129
tanto no todo quanto em suas partes”89, cuidando para não “perverter”90 sua essência, ordem e
união91. A ideia de reprodução deve ser aqui entendida em termos miméticos, ou seja,
introduzindo uma busca por semelhança entre intelecto e natureza? Para retomar os termos
das discussões anteriores: pode-se dizer que, apesar de condenar a relação de semelhança por
seu caráter extrínseco, sobretudo na crítica à origem imaginativa da linguagem, Spinoza
procura mostrar que ela é válida ao menos quando se trata de fundar um método de cognição
da natureza?
A intenção de criar, com a natureza, uma conexão via imitação, não parece facilmente
decorrer da descrição do método definitório e dedutivo que vimos acima. Mais do que uma
relação de semelhança, trata-se de estabelecer uma espécie de paralelismo entre a ordem do
intelecto e a ordem da natureza, de obter uma configuração matemática das ideias conforme a
norma da ideia verdadeira: e não de fazer dela a cópia aproximada de um original arquetípico.
Além disso, e esta parece ser uma consequência mais séria desta interpretação, a semelhança
pressupõe, como vimos, uma fratura inicial entre original e cópia: neste caso, entre a mente e
a natureza, o que implicaria, portanto, a consideração do indivíduo dotado de mente como
uma entidade separada das demais coisas naturais, como um império dentro de um império92.
A semelhança subentende uma exteriorização primeira do indivíduo em relação à natureza, a
qual é insistentemente recusada por Spinoza, e ainda denunciada como principal fonte do
modo de vida supersticioso93. Parece mais consequente supor que, para Spinoza, já estamos
ontológica e inescapavelmente unidos à natureza: precisamos do método apenas para nos
conscientizarmos desta união, a fim de experimentarmos nossa própria eternidade94.
Resta saber como comunicar, por meio da linguagem, a verdade. Como escrever as
definições e as deduções, ou seja, como reproduzir discursivamente o método? Ora, sua
formulação mais exata parece ser o modelo sintético. Segundo Descartes, o modo de escrever
dos antigos geômetras obedece a uma ordem e a uma maneira de demonstrar95. A ordem
89
ESPINOSA, B. 2015c, P. 85; TIE, §91.
90
ESPINOSA, B. 2015c, P. 87; TIE, §95.
91
TIE, §99.
92
Imperium in imperio. Ver EIII, Pref.
93
Cf. o Capítulo 1.
94
Para uma discussão mais detalhada, remeto ao livro de Pascal Sévérac, Le devenir actif chez Spinoza. Paris :
Honoré Champion, 2005.
95
Reconstruo a exposição cartesiana desenvolvida ao longo das Respostas às Segundas Objeções, cf. AT IX-1,
121-123.
130
concerne ao modo como as proposições devem ser encadeadas: o que vem primeiro deve ser
conhecido sem a ajuda do que vem depois, e as proposições seguintes devem ser
demonstradas recorrendo a estas conclusões anteriormente demonstradas. Por isso, nas
Meditações, a distinção entre alma e corpo só foi demonstrada na Sexta delas, uma vez que
dependia não só de uma correta compreensão da alma (conquistada na Segunda Meditação),
mas também de um conhecimento da essência do corpo (obtido na Quinta). Já a maneira de
demonstrar pode optar tanto pela análise ou resolução quanto pela síntese ou composição. A
análise “mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta e
revela como os efeitos dependem das causas”96; e tem o mérito de engajar o leitor no texto,
construindo um itinerário quase espontâneo de aceitação das teses, posto que o envolve na
experiência de sua conquista. Por isso, em termos de compreensão da verdade, a análise é
extremamente eficiente, e seu resultado é fazer com que o leitor tome a coisa a ser
demonstrada como se fosse uma invenção de seu próprio engenho. Este mérito é, ao mesmo
tempo, também seu defeito: embora produza uma experiência irrefutável da verdade, a
análise exige maior grau de atenção, pois é fácil nela se perder e do caminho se desviar caso
se perca um passo que seja do itinerário da descoberta. É fácil teimar em não aceitá-lo e
julgar que este trajeto é apenas um processo cognitivo particular dentre outros, uma vez que,
dele, não se deduz claramente a necessidade da passagem das premissas às suas conclusões.
Diversamente, a síntese pode tanto examinar as causas por seus efeitos quanto os
efeitos pelas causas, servindo-se, para tanto, “de uma longa série de definições, postulados,
axiomas, teoremas e problemas”97. Nela, a necessidade da conclusão é extremamente clara, e
o leitor teimoso ou pouco atento, “por mais obstinado e opiniático que seja”98, não pode
duvidar do modo como as consequências estão contidas em seus antecedentes
argumentativos. Apesar de atestar a necessidade e a suficiência dos argumentos, a síntese não
garante qualquer experiência subjetiva da verdade, e o aprendizado, que, para Descartes, ao
menos do que se pode deduzir da exposição das Segundas Respostas, exige que as teses
sejam incorporadas ao raciocínio do leitor, não será inteiramente satisfatório. Sua posição é a
de que a análise tem uma função pedagógica mais eficaz, sobretudo no que concerne aos
assuntos metafísicos. Enquanto que para a Geometria a síntese se presta mais perfeitamente,
96
DESCARTES, R. 1973, P. 176; AT IX-1, 121.
97
DESCARTES, R. 1973, P. 176-177; AT IX-1, 122.
98
Ibid.
131
uma vez que as noções primeiras desta área estão mais de acordo com os sentidos, as noções
primeiras da Metafísica estão frequentemente envolvidas por uma teia de preconceitos
acumulados desde a infância, os quais devem ser expurgados para a compreensão dos saberes
referentes a esta ciência. A justificativa para a escolha da forma meditativa é, logo, a
superioridade didática da análise a qual ela dá voz, o fato de colocar autor e leitor numa
espécie de diálogo silencioso, empenhados num percurso comum de aquisição do verdadeiro.
99
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2015b, P. 33; PPC, Pref.
100
Ibid.
132
deixa sugerir que, contra Descartes, a necessidade das demonstrações deve ser priorizada em
relação à descrição do itinerário de aquisição, porque a análise ainda abre caminho para a
tagarelice sobre as coisas101. Opõem-se, aqui, dois usos distintos da linguagem: num
primeiro, distante do ser, a linguagem tenta alcançá-lo sem sucesso; no segundo, idêntica a
ele, o exprime e o reproduz de modo unívoco. A análise é insuficiente porque, ao narrar o
descobrimento da verdade, justamente afasta-se dela, permitindo o equívoco derivado da
constituição imaginativa da linguagem.
Tanto para Descartes quanto para Spinoza, as formas expositivas de seus respectivos
textos obedecem a exigências epistêmicas mais fundamentais. Para o primeiro, a análise
reproduz graficamente a ordem da descoberta das proposições, que não corresponde a ordem
do ser das mesmas: por isso as Meditações podem partir da constatação existencial do eu para
a dedução da existência de Deus, ainda que Deus seja ontologicamente anterior às criaturas.
Para o segundo, a síntese, empregando axiomas, definições e deduções (dispostas
textualmente enquanto demonstrações), reproduz a própria estrutura da Natureza, portanto do
ser, e procura devolver o pensamento ao seu paralelismo com ela. A coincidência
conquistada entre ordem do ser (ratio essendi) e ordem do conhecimento (ratio cognoscendi)
102
parece comprometer Spinoza com uma tese mais forte do que a cartesiana, em que a
linguagem da análise ainda é tomada como mera adaptação à verdade, facilitando sua
compreensão sem ao mesmo tempo se identificar com ela.
101
“Donde ocorreu que muitos que deram nome a Descartes, ou arrebatados por um cego impulso, ou levados
pela autoridade de outros, guardaram tão somente de memória a posição e os dogmas dele, e quando lhes ocorre
uma conversa sobre isso, só sabem palrar e tagarelar sobre tais coisas, mas nada demonstrar, tal como era hábito
outrora, e ainda hoje é, aos sequazes da filosofia peripatética”, cf. ESPINOSA, B. 2015b, P. 37; PPC, Pref.
102
Por isso a primeira parte da Ética é dedicada a Deus, muito embora ela demore ainda onze proposições para
provar sua existência.
133
É neste sentido que Spinoza afirma, já no TTP, que Euclides “pode facilmente ser
explicado a toda a gente e em qualquer língua”106. Naquele contexto, tal transparência é
retirada da máxima simplicidade e extrema inteligibilidade das ideias euclidianas, mas a
mesma propriedade se segue do fato de ser uma exposição demonstrativa, que concretiza a
própria estrutura da mente na configuração linguística – subvertendo-a internamente. Ainda
que se aproprie do latim, a escrita das demonstrações necessita expurgar da língua suas
particularidades históricas mediante sua domesticação na ordem sintética, de tal forma que
ela seja capaz de exprimir a eternidade e seja, por fim, transparente à leitura. A perversão
interna do latim, reconduzindo-o ao ser, permite que forma e conteúdo não mais se distingam
— criando uma espécie de idioma da racionalidade capaz de exprimir a filosofia.
Para responder, então, à nossa indagação inicial, podemos afirmar que, face à
épistème clássica, Spinoza ocupa uma posição dupla. De um lado, está de acordo com ela: a
crítica à linguagem e sua separação em relação às coisas está nitidamente distribuída por
vários de seus textos. De outro, há uma importante reivindicação do método de exposição
sintético que permite que a verdade seja comunicada. Poderíamos dizer, então, que a posição
103
EV, P. XXIII, esc.
104
ESPINOSA, B. 2019, P. 300; G III, 170.
105
Como sustenta Gleizer, a síntese não é “uma mera roupagem exterior que ele [Spinoza] utilizaria para revestir
suas ideias” (GLEIZER, M.A. 2013, P. 23), mas uma exigência mesma do método dedutivo tal como
desenvolvido no TIE.
106
Vale a pena ler a continuação desta passagem: “Euclides, que só escreveu coisas extremamente simples e
inteligíveis, pode facilmente ser explicado a toda gente e em qualquer língua. Nem é preciso, para apreendermos
o seu pensamento e ficarmos certos do seu verdadeiro sentido, ter um conhecimento completo da língua em que
escreveu: basta um conhecimento vulgar e quase infantil.” ESPINOSA, B. 2019, P. 231; G III, 111.
134
Este longo preâmbulo serviu para nos situar quanto à posição geral que Spinoza
sustenta acerca da linguagem, e também para nos preparar para a discussão sobre a leitura
que emerge no contexto teológico-político. Ao contrário da Ética, o texto Bíblico foi escrito
numa língua histórica, o hebraico, apelando para narrações imaginativas, exteriores à
estrutura mesma da mente. Aquilo que representa um obstáculo à escrita filosófica será
exatamente o que produzirá o vigor da Escritura. Se a Ética, devido ao seu parentesco com a
forma mesma do pensamento e da verdade, não exige estratégias específicas de decifração, já
que seu discurso é transparente à mente, o contrário deve ser dito do texto Bíblico: seu caráter
singular exige que, para lê-lo, seja necessário fundar um método de leitura que permita que
sua mensagem possa ser descriptografada de suas linhas extravagantes.
O trabalho da leitura
107
“Nietzsche situa, portanto, a sua pretensão de ‘atualidade’, a sua ‘contemporaneidade’ em relação ao
presente, numa desconexão e numa discordância. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente
contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com ele nem se adequa às suas exigências e é, por isso,
nesse sentido, inatual; mas, precisamente por isso, exatamente através dessa separação e desse anacronismo, ele
é capaz, mais que os outros, de perceber e de apreender o seu tempo. [...]”. Cf. AGAMBEN, G. 2015. P. 22.
108
Sobre este tema, há uma discussão mais desenvolvida no livro póstumo de Gueroult intitulado Philosophie de
l’histoire de la philosophie (Paris : Aubier Montaigne, 1979) e também no artigo “The History of Philosophy as
a Philosophical Problem” (In: The Monist, Vol. 53, No. 4, Philosophy of the History of Philosophy (October,
1969), pp. 563-587).
109
Cf. GUEROULT, M. « La méthode en histoire de la philosophie ». In : Philosophiques, vol. 1, n° 1, 1974, p.
7-19. Uma tradução desta conferência para o português foi publicada em 2015 na Revista Sképsis, cf. SKÉPSIS,
(ISSN 1981-4194), ANO VIII, Nº 12, 2015, P. 160-170.
135
110
“Esse é o lugar do que chamarei de história vertical da filosofia, história menos propriamente histórica do
que a outra, menos preocupada com o movimento coletivo das ideias, mas filosófica no sentido em que
ela busca a significação filosófica profunda de tais ou tais obras analisadas uma a uma.”, cf. GUEROULT, M.
2015, P. 162.
136
111
GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons. I : L’âme et Dieu. Paris : Aubier, 1968. P. 12.
112
STRAUSS, L. “How to Study Spinoza's Theologico-Political Treatise”. In : Persecution and the art of
writing. Chicago: The University of Chicago Press, 1980. Para uma leitura crítica do texto de Strauss, ver.
PINHEIRO, U. “Espinosa e o leitor da posteridade. Exame crítico da interpretação de Leo Strauss do Tratado
Teológico-Político”. In : Kléos, n .15, P. 115-133, 2011. Não nos concentraremos numa análise da interpretação
de Strauss ao longo deste trabalho, embora nossos pressupostos metodológicos apresentados na Introdução e
retomados em vários momentos importantes de nossa argumentação por si já apontem nossa distância em
relação à sua proposta interpretativa.
113
“Porque mesmo que seu autor não se encontre mais entre nós, sua obra estará diante de nós nos livros, como
um monumento, um objeto cujo sentido só é percebido quando se colocam em evidência as disposições
conceituais que a tornaram possível.”, cf. GUEROULT. M. 2015, P. 164.
137
Ora, já nos confrontamos até o presente momento com as denúncias feitas por Spinoza
quanto ao complexo supersticioso, em especial no que concerne às suas consequências para a
fabricação de um modo de vida de culto à exterioridade. Um dos objetivos do TTP, sabemos,
é fundar um novo método de leitura da Escritura, contrapondo-se, para tanto, ao método
interpretativo de orientação teológica, carregado de uma série de preconceitos. O pressuposto
segundo o qual “nos Livros Sagrados se escondem mistérios profundíssimos”117 é um destes
mal-entendidos centrais. Que uma interpretação seja fundamentalmente a explicitação de um
texto obscuro ou de significado incerto é, inclusive, um dos sentidos em operação do
vocábulo interpretatio na teologia tal como praticada na Renascença tardia118. Uma exegese,
114
Remeto o leitor aos trabalhos de Michel Foucault e Jacques Derrida. Para o primeiro, ver a L’archéologie du
savoir. Paris : Éditions Gallimard, 1969 e também « Qu'est-ce qu'un auteur ? ». In : Dits et Écrits, Tome I. Paris
: Éditions Gallimard, 1994. Texte n°69, P.789-821. Para o segundo, « signature événement contexte ». In :
Marges de la Philosophie. Paris : Les Éditions de Minuit, 1972. P. 365-393. Para mais esclarecimentos
metodológicos, ver a Introdução deste trabalho.
115
Talvez seja necessário supor algum grau de mistério para erguer toda e qualquer hermenêutica. Há uma
diferença fundamental, parece-nos, em construí-la a partir da suposição de que o mistério é realmente existente
– e que, portanto, o texto é dado – e tomar o fundamento do texto como ele mesmo instável e determinado a
posteriori. Nosso problema é menos com as determinações em si do que com a elevação delas à categoria
ontológica.
116
GUEROULT. M. 2015, P. 162.
117
ESPINOSA, B. 2019, P. 218; G III, 98.
118
Retomo a definição tal como apresentada por SERJEANTSON, R. “Francis Bacon and the “Interpretation of
Nature” in the Late Renaissance”. In : Isis, Vol. 105, No. 4 (December 2014), pp. 681-705. Serjeantson recupera
a seguinte definição para o termo interpretatio: “dicitur alicuius obscuri & aenigmatici sermonis facta
138
declaratio.”, cf Johann Altensteig, Lexicon theologicum (Cologne, 1576), apud. SERJEANTSON, R. 2014, P.
695.
119
Ou seja, o de transferência cultural e comprometimento sistemático com a teologia. Ver a Introdução.
120
E talvez muito mais que um resquício, na medida em que Gueroult sustenta uma visão algo sacralizada dos
textos filosóficos clássicos, classificando-os mesmo como “monumentos eternos do pensamento humano,
fonte perene, geradora incessante de reflexão e de luz” (GUEROULT, M. 2015, P. 160). A associação entre
o status originário da escritura e a atitude teológica de sacralização do texto é igualmente notada em
FOUCAULT, M. 1994, P. 795.
121
Da crítica spinozista à hermenêutica teológica não se segue, naturalmente, que devemos ler o TTP supondo
esta mesma superficialidade atribuída ao texto bíblico.
122
ESPINOSA, B. 2019, P. 218; G III, 98.
123
Há, em seu estudo intitulado Literatura Europeia e Idade Média Latina, um capítulo particularmente rico
dedicado ao tema do livro como símbolo, no qual analisa a literatura e tradição filosófica grega e romana, a
transfiguração da metáfora na Idade Média e no Renascimento, e, enfim, dedica sua atenção às ocorrências da
metáfora do livro em Dante e Shakespeare. Cf. CURTIUS, E.R. Literatura Europeia e Idade Média Latina. “O
livro como símbolo”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. P. 375-429.
124
“Toda criatura do mundo é para nós como que um livro, um quadro ou um espelho”. Apud CURTIUS, E. R.
2013, P. 395.
139
125
Cf. ARMOGATHE, J.R. « Les deux livres ». In : Revue de Théologie et de Philosophie. Troisième série, Vol.
133, No. 3, La Bible à la croisée des savoirs (2001), pp. 211-225 (15 pages). Ver também LAGRÉE, J. « Le
thème des deux livres de la Nature et de l’Écriture ». In : L’Écriture sainte au temps de Spinoza et dans le
système spinoziste. T & D, 4, 1992, P. 11-37; LAGRÉE, J. 2004, P. 29-47 e FORCE, J. POPKIN, R. (ed). The
books of nature and Scripture. Dordrecht : Kluwer Academic, 1994.
126
“Este mundo tão grande, que alguns ampliam ainda, como as espécies de um gênero, é o espelho em que nos
devemos mirar para nos conhecermos de maneira exata. Em suma, quero que seja esse o livro do nosso aluno”.
Cf. MONTAIGNE, M. 2016, P. 193; Essais, I, 26.
127
“E, resolvendo-me a não mais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar em mim próprio, ou
então no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha mocidade em viajar, em ver cortes e exércitos, em
frequentar gente de diversos humores e condições, em recolher diversas experiências, em provar-me a mim
mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e, por toda parte, em fazer tal reflexão sobre as coisas que se
me apresentavam, que eu pudesse tirar delas algum proveito”. Cf. DESCARTES, R. 1973, P. 41 ; AT VI, 9.
128
Cf. CURTIUS, E.R. 2013, P. 400-401.
140
Embora esta definição ainda não nos informe quanto às técnicas precisas de
antecipação e interpretação, a separação primordial entre elas parece ser a do cultivo das
ciências tradicionais, de um lado, e a apresentação de uma nova maneira de raciocinar, de
outro130. As antecipações dialogam mais facilmente com aquilo que é comum e familiar,
tocando a imaginação, ao passo que as interpretações tomam os detalhes de objetos variados,
não podendo, portanto, tocar o intelecto tão facilmente131. Por isso as antecipações são
aceitáveis nas ciências que exigem “opiniões e visões aceitas”132, mas não naquelas em que é
preciso se ater à natureza das coisas. Para progredir na ciência, de nada adianta remodelar o
velho edifício: é necessário construí-lo novamente desde suas bases, aplicando uma nova
metodologia: nos termos de Bacon, é necessário um “novo começo”133. É neste espírito
baconiano que Descartes abre suas Meditações – afirmando que, de modo a se desvencilhar
das falsas opiniões, não bastava refletir nos termos da tradição imbuída de preconceitos, mas
“era necessário, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então
129
Há uma citação nominal a Bacon na Carta 37.
130
Conforme inclusive o que sustenta SERJEANTSON, R. 2014, P. 683.
131
Novum Organum, I, XXVII-XXIX.
132
BACON, F. 2003, P. 38; Novum Organum, I, XXIX.
133
BACON, F. 2003, P. 39. Novum Organum, I, XXI.
141
dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo
de firme e de constante nas ciências”134.
134
DESCARTES, R. 1973, P. 93; AT IX-1, 13.
135
BACON, F. 2003, P. 109; Novum Organum, II, X.
136
BACON, F. 2003, P. 110; Novum Organum, II, X.
137
Novum Organum, I, CXXVII.
142
A metáfora dos dois livros, então, longe de propor uma harmonia entre Natureza e
Escritura, introduz uma distância intransponível quanto à linguagem. À história da Natureza
deve ser aplicado o método dedutivo conforme coordenado pela luz natural; à história da
Escritura, também a dedução, mas a partir de princípios revelados. Os diferentes códigos em
que são escritos os livros engendram, igualmente, uma separação entre saberes: a filosofia
138
Por isso Jacqueline Lagrée e Pierre François-Moreau optaram por traduzir o termo latino historia ora por «
enquête » ou « étude », ora por « récit historique » ou mesmo « histoires ». O primeiro recupera “o sentido
grego e baconiano de investigação ou de conhecimento empírico, sem referência à uma dimensão histórica”. Já
o segundo, “o sentido de narração com uma dimensão diacrônica” (Cf. SPINOZA, B. 2016, P. 734-735). Diogo
Pires Aurélio, em sua tradução, prefere manter “história” para os dois sentidos.
139
ESPINOSA, B. 2019, P. 212; G II, 92.
140
G III, 95.
143
141
ESPINOSA, B. 2019, P. 309; G III, 179.
142
ESPINOSA, B. 2019, P. 310; G III, 179.
143
ESPINOSA, B. 2015b, P. 217; CM I, VI.
144
Ibid.
144
Ignorando o uso subversivo da metáfora dos dois livros, que os aproxima justamente
afastando-os, não parece possível compreender, igualmente, como a distinção entre narração
e verdade não se sustenta de modo rígido. Talvez seja sedutor divisar em Spinoza um
precursor da relativização histórica, que considera a Escritura como um subproduto do ofício
humano. Como veremos na seção seguinte, é verdade que há, no TTP, um apelo para uma
visão dessacralizada do texto bíblico. Ao mesmo tempo, Spinoza pontua que aquele texto
possui uma mensagem eterna, e que é, por causa dela, sagrado147. É sobretudo uma visão
145
ESPINOSA, B. 2019, P. 222; G III, 102.
146
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 222; G III, 102.
147
A mensagem eterna da Escritura é o que permitirá a elaboração de uma teologia-política positiva por parte de
Spinoza.
145
extensiva da história que parece fundamentar, entre outras coisas, a disputa entre filosofia e
religião que muitos comentadores procuram manter148. James C. Morrison, num artigo
dedicado a pensar a noção spinozista de história149, sustenta a relevância do “fato histórico”150
para a religião, e sua equivalente desimportância para a filosofia. Ainda que mencione as
passagens importantes do TTP em que Spinoza introduz a comparação dos dois livros,
Morrison acredita que a historia se aplica à natureza apenas em seu sentido metodológico,
reservando as narrações apenas para a Escritura. Ignorando a aplicação das narrações ao livro
da Natureza, não percebe a diluição da oposição entre narração e verdade e, portanto, entre
história e eternidade. Considerando a Natureza como livro, a história como método, as ideias
como narrações, Spinoza acredita estar deduzindo as propriedades necessárias dos objetos.
Mais do que isso, pensando no livro da Escritura, considerando suas narrações
particularizadas, é possível deduzir, pelo método histórico, um ensinamento universal, que é
igualmente um ensinamento eterno – e que se harmoniza, é claro, com o que se pode deduzir
do Livro da Natureza. O método histórico de leitura da Escritura, antes de incentivar o
potencial relativizador do recurso ao passado, permite que se encontre a mensagem universal
da Escritura. A história é, antes de contraposta à eternidade, a única maneira de atingi-la.
Quais são, então, as regras do método histórico especificamente com relação ao Livro
da Escritura? A primeira regra do método é a inclusão de um estudo da língua em que foi
escrito151. Retornamos, aqui, às conclusões que obtivemos quanto ao tema da linguagem em
Spinoza: o livro da natureza está escrito à maneira dos geômetras, o que configura uma
linguagem reformada, capaz de seguir a própria estrutura do pensamento. Já o livro da
Escritura está redigido em hebraico, uma língua histórica, cujo domínio é público,
pertencendo tanto ao vulgo quanto aos sábios. Para entender toda a sua mensagem é
necessário conhecer a história daquela língua particular – tal como é preciso deduzir, das
ações da natureza, sua estrutura eterna. O conhecimento da língua hebraica é exigido não só
para o conhecimento do Antigo Testamento, língua na qual fora originalmente escrito, como
também para o do Novo: pois, segundo Spinoza, apesar de os livros que o compõem terem
148
E que pretendemos, por uma série de argumentos, questionar. Se a Escritura – compreendida segundo o
método verdadeiro – fundamenta uma religião que sustenta algum parentesco com a eternidade, é possível que
se associe mais facilmente com a filosofia.
149
MORRISON, J.C. “Spinoza and history”. In : KENNINGTON, R (ed.). The Philosophy of Baruch Spinoza.
Washington, D.C. : The Catholic University of America Press, 2018. P.173-195.
150
Ibid, P. 177.
151
G III, 100.
146
A última máxima do método histórico, porém, talvez não seja tão facilmente acolhida
no interior do ideal de leitura imanente inicialmente proposto. À primeira vista, há uma clara
oposição entre os elementos contidos textualmente no interior do livro, gravados com tinta, e
as informações que o circulam e que constituem seja a condição de possibilidade de seu
engendramento, seja de sua distribuição. Como pode ser que as informações sobre a
psicologia do autor, a quem se dirigia ou mesmo os dados sobre a confecção, destino e
152
ESPINOSA, B. 2019, P. 220; G III, 100.
153
Ibid.
154
ESPINOSA, B. 2019, P. 221; G III, 101.
155
Ibid.
156
Tal tema será mais detalhadamente discutido nos capítulos 3 e 4 deste estudo.
147
recepção do livro estejam contidos no interior da Escritura mesma? A tese de Spinoza parece
implicar que todos os saberes que se relacionam à Escritura são compreendidos no interior do
livro. Tais informações, na medida em que são condição de sua inteligibilidade, o compõem
tal como os elementos graficamente documentados. Para ser fiel à regra geral de imanência,
Spinoza precisa também constituir de modo a posteriori o texto da Escritura, incluindo
elementos que tenderíamos a separar do livro enquanto volume. Ou seja, é necessário operar
uma inversão: ao invés de tomar o texto como regularidade prévia, que emana de seu interior
uma doutrina e um conjunto de narrativas, o texto é, antes, um efeito, uma circunscrição de
uma cadeia de informações que incluem a língua, os dados biográficos do autor, a época, a
distribuição etc. A constituição da Escritura como livro parece remeter à compreensão
spinozista de indivíduo tal como formulada em EII, P. XIII: o indivíduo não é uma substância
cuja existência antecede suas relações, mas é, antes, um subproduto das mesmas.157 Enquanto,
nos corpos, a regra geral de composição de um indivíduo é a lei de movimento e repouso, a
partir da qual o indivíduo é formado segundo o grau de conveniência de suas partes, a lei
geral de constituição da Escritura como livro é a maior ou menor conveniência à doutrina
geral. O processo de constituição deste livro, bem entendido, não é arbitrário: há uma regra
rigorosa que o guia, que consiste em tomar como parte do livro apenas os elementos que,
eternamente, estão contidos em sua história. O livro da Escritura é algo que inclui, mas que
não se identifica à realidade imediata do texto registrado.
Deste ponto de vista, parece que o livro da Escritura se torna uma obra
excessivamente abrangente. Por um lado, ela poderia incluir textos de outros profetas que não
compõem o cânone: por exemplo, o Corão de Maomé. Esta objeção é feita epistolarmente a
Spinoza por Velthuysen158: seguindo as prescrições de Spinoza, o Corão deveria ser integrado
à Bíblia, uma vez que Maomé profetizou igualmente o exercício das virtudes morais ao seu
povo, exprimindo igualmente a Palavra de Deus. Como demonstra Alexandre Matheron159,
157
Diz a Definição de EII, P. XIII: “Quando alguns corpos de mesma ou diversa grandeza são constrangidos por
outros de tal maneira que aderem uns aos outros, ou se movem com o mesmo ou diverso grau de rapidez, de tal
maneira que comunicam seus movimentos uns aos outros numa proporção certa, dizemos que esses corpos estão
unidos uns aos outros e todos em simultâneo compõem um só corpo ou Indivíduo, que se distingue dos outros
por essa união de corpos” (Cf. ESPINOSA, B. 2015a, P. 155-157).
158
Na Carta 42.
159
MATHERON, A. « Le statut ontologique de l'Écriture sainte et la doctrine spinoziste de l'individualité ». In :
MATHERON, A. Études sur Spinoza et les philosophies de l'âge classique. Lyon: ENS Éditions, 2011. P.
407-415.
148
porém, ainda que Spinoza insista que Maomé é um impostor160, uma vez que suprime a
liberdade de expressão, o mesmo poderia ser dito de Moisés – que, no Estado hebreu,
impedia a livre circulação de pensamento e expressão entre os súditos. Mesmo assim, é
possível separar o que há de supersticioso na mensagem mosaica e encontrar seu núcleo
eterno, no qual está de acordo com os demais livros. Assim, embora por um fator contingente
o Corão não esteja integrado ao texto bíblico – cuja presença ou ausência de certos livros é
determinada via concílio, embora segundo a norma ordenadora da palavra de Deus161 –, se ele
fosse tomado globalmente ao lado dos demais livros, sua mensagem íntima seria equivalente
à doutrina universal da Escritura, e, em última análise, poderia compor, com os demais textos,
um só indivíduo. Com isto entendemos em que sentido a constituição do texto permanece a
posteriori, incluindo não só informações aparentemente externas, mas demais textos que
possam parecer, num primeiro momento, distintos e contrários. Matheron denomina esta
estratégia de circulação do sentido162: tomados individualmente, os livros têm suas doutrinas
próprias, mas, comparado com os demais registros textuais estabelecidos canonicamente,
governados conforme esta doutrina universal, compõem um único todo.
160
Cf. resposta de Spinoza na Carta 43.
161
G III, 164.
162
MATHERON, A. 2011, P. 410.
163
Para ele, a Escritura pode ser tomada como um indivíduo inclusive no sentido ontológico: basta considerar o
fato de que a palavra de Deus existe na mente e, portanto, no corpo e no comportamento de seus leitores. A
Escritura tem uma existência ontológica se abandonarmos o ponto de vista semântico e adotarmos o pragmático.
A posição de Matheron parece sugerir que a existência semântica é menos “real” do que a existência
pragmática, o que é estranho considerando a metafísica spinozista. Em todo caso, não se trata de objetar a
posição de Matheron aqui, mas de seguir suas intuições para conquistar nossa hipótese de inversão.
149
164
ESPINOSA, B. 2019, P. 226; G II, 106.
165
G III, 107-109.
150
166
ESPINOSA, B. 2019, p. 226; G III, 107.
167
ESPINOSA, B. 2019, P. 232; G III, 112.
168
ESPINOSA, B. 2019, P. 223; G III, 103.
169
Apud. ESPINOSA, B. 2019, P. 223; G III, 103.
170
Ibid.
151
corrupção estatal, é feito por Jeremias (Lamentações, III). Segue-se que este ensinamento é
feito, em duas ocorrências, em tempos de exceção, sem que seja proclamado como uma lei:
de modo que não contrariam a afirmação de Moisés, que pregou em tempos de estabilidade
do Estado. No interior de um Estado saudável, deve-se exigir a aplicação da justiça e das leis
da pátria. Quem pratica um crime deve ser punido: não por vingança, mas pela manutenção
da justiça. O perdão aos ímpios, portanto, só tem cabimento no interior de um Estado em
crise, no qual não se pode confiar no poder estatal como recurso mediador.
A carta e o livro
171
A teoria claramente subscrita, ao longo da carta, é o copernicanismo, frequentemente apenas descrita como
aquela que preconiza a mobilidade da Terra e a estabilidade do sol (GALILEI, G. 2009, P. 58). Já as passagens
da Escritura mais problemáticas para esta tese são as seguintes: Salmos 18, 6 e 103, 5; Crônicas 16, 30;
Eclesiastes I, 4-6 e Josué 10, 12 (cf. GALILEI, G. 2009, P. 10). Galileu dedicará uma análise concentrada à
passagem de Josué.
172
GALILEI, G. Ciência e fé. São Paulo: Editora UNESP, 2009. P. 57.
152
de teses científicas – teses que dizem respeito, portanto, ao conhecimento natural – com
declarações provenientes da Escritura – ou seja, o conhecimento revelado. A estratégia geral
de Galileu, na carta, é de nada tratar das demonstrações científicas que poderiam ser
aventadas em favor do copernicanismo; preferindo, na verdade, adentrar o terreno das
querelas teológicas – um expediente que, especulam alguns173, mais pode ter facilitado do que
evitado sua condenação posterior. Lançando mão de artifícios retóricos, dentre eles o abuso
dos argumentos de autoridade174, Galileu emite teses curiosamente próximas daquelas
amplificadas por Spinoza ao longo do Tratado Teológico-Político. É tomado como ponto de
partida o fato de que a Escritura não pode jamais mentir, quer dizer, enunciar o falso – desde
que seu sentido seja corretamente penetrado pelo leitor. Para ele, há uma passagem fluida,
quanto ao sentido, entre o livro das Sagradas Letras e “o livro aberto do céu”175. Entre estas
duas obras escritas, só pode haver concordância, pois duas verdades não podem se
contradizer.176 Ainda assim, há pelo menos duas ressalvas iniciais antes de partir para a leitura
do livro sagrado: em primeiro lugar, deve-se tomar em conta seu caráter moral, cuja intenção
primordial é a salvação das almas, portanto a beatitude, e jamais o ensinamento sobre a
disposição da natureza. Recuperando a fórmula atribuída por ele mesmo ao Cardeal Barônio,
“a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se vai para o céu e não como vai o céu”177.
Esta função beatífica explica o segundo aspecto, a saber, sua linguagem particular: o
significado “literal” e “nu” das palavras178 está conformado ao modo de perceber do vulgo,
cujo intelecto é incapaz de aceder às verdades ocultas nela dispostas179. Apesar disso, a
Escritura segue gozando do status de texto sagrado e inspirado, a partir do qual é
perfeitamente possível conhecer a essência de Deus de forma adequada.
Embora não prepare um método de leitura complexo como o spinozista, Galileu, para
conquistar o total concordismo entre os livros, aposta que se deve, antes de mais nada, buscar
173
Esta é a conclusão de Moss, em seu artigo "Galileo's Letter to Christina: Some Rhetorical Considerations”. In
: Renaissance Quarterly, Vol. 36, No. 4 (Winter, 1983), pp. 547-576). O aspecto interessante de seu texto é que
tal tese é sustentada a partir de uma análise das estratégias retóricas da carta.
174
A carta é permeada por transcrições de passagens de Santo Agostinho, além de trazer os testemunhos de
Pitágoras, Platão, Dionísio Areopagita, Diego de Zúñiga, Tomás de Vio, Cosme Magalhães e outros.
175
GALILEI, G. 2009, P. 76.
176
GALILEI, G. 2009, P. 64.
177
Ibid.
178
Galileu separa o significado literal ou nu das palavras (P. 58), as palavras “tais como aparecem” (P. 55), e
mesmo seu “som” imediato (P. 58), dos “verdadeiros Sentidos da Escritura” (P. 69) e das “glosas ou
interpretações” (P. 77).
179
GALILEI, G. 2009, P. 58-59.
153
demonstrações certas sobre as teses naturais, as quais são obtidas via experiência sensível180.
Tão logo conquistadas, estas devem ser confrontadas com as passagens que soam conflitantes
com o significado mais imediato das palavras na Escritura e, caso haja contradição, é
necessário ir além do mero som das palavras, em direção à interpretação verdadeira, que
deverá, por princípio, concordar com a verdade natural cientificamente provada. Este
princípio é aplicado por Galileu na consideração da controversa passagem de Josué (10, 13),
em que é afirmado que o sol deteve-se no meio do céu, e que o dia foi prolongado. O
heliocentrismo de Copérnico pode explicar esta passagem de modo muito mais satisfatório do
que a tese então aceita pelas autoridades teológicas, quer dizer, o sistema ptolomaico181. A
consequência lógica deste último seria a de que, parado o sol, o dia seria mais curto – e não
mais longo. Supondo que o sol ocupa posição central no sistema dos astros e que, além disso,
é fonte de movimento para os demais corpos, como a Terra e a Lua, basta cessar o sol para
cessar o movimento geral do sistema, alcançando, então, a conclusão do prolongamento de
um dia inteiro182. O sistema copernicano permite considerar o texto em sua literalidade – o
que, na verdade, é um artifício de Galileu para conquistar o assentimento de seus
interlocutores, que subscreviam as teses ptolomaicas e a manutenção do sentido mais
imediato do texto.
Não é simples categorizar a posição de Galileu como dogmática, pois, como vimos,
seu esforço por fazer concordar conhecimento natural e conhecimento revelado é
acompanhado de ressalvas quanto aos limites científicos da Escritura, bem como sobre seu
caráter didático, adaptado à compreensão do vulgo183. Estas duas ressalvas são igualmente
aceitas por Spinoza, embora, delas, ele jamais retire a possibilidade de concordismo – ou, ao
menos, não de um concordismo que implique uma intervenção direta sobre a Escritura. A tese
180
GALILEI, G. 2009, P. 78, 80.
181
GALILEI, G. 2009, P. 95.
182
GALILEI, G. 2009, P. 98.
183
Para um exercício comparativo entre as propostas de Galileu e Spinoza, ver LAGRÉE, J. “Les deux livres de
la nature et de L’Écriture”. In : LAGRÉE, J. Spinoza et le débat religieux. Rennes : Presses Universitaires de
Rennes, 2004. P. 35-38. Segundo Lagrée, há uma relação de continuidade entre as intuições de Galileu e
Spinoza, uma vez que o primeiro teria aberto o caminho para a consideração da natureza não mais como texto
(posto que ela não possui destinatário, tampouco um sentido predeterminado), mas como um produto da ação de
Deus, que obedece às suas leis universais, necessárias e imutáveis. Ver também RUDAVSKY, T.M. “Galileo and
Spinoza: Heroes, Heretics, and Hermeneutics”. In : Journal of the History of Ideas, Vol. 62, No. 4 (Oct., 2001),
pp. 611-631.
154
de que duas verdades não podem se contradizer aparece quase ipsis literis em Spinoza184,
embora não se possa dizer propriamente que há “concordismo”, mas sim um paralelismo, do
ponto de vista da eternidade, entre a verdade emanada pela natureza e pelo texto. Há
aproximações inclusive quanto ao escopo e linguagem da Filosofia, compreendida por
Galileu como aquilo que está escrito no grande livro da natureza, com caracteres
matemáticos:
A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante
nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a
língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua
matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras
geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem
eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. (GALILEI, G. 1978.
P.119)
Como vimos acima, Spinoza também reivindica para si uma compreensão geométrica
da linguagem filosófica, apesar de a atribuição mesma de uma linguagem para ela seja
problemática se considerarmos a crítica que se empenha em elaborar à sua gênese
imaginativa. Há, também em Spinoza, uma tentativa de dar sentido à passagem de Josué em
que o milagre do prolongamento do dia é narrado – para ele, o texto claramente revela uma
incompreensão por parte daquele que o narra185, e não cabe ao intérprete procurar nele
intervir de modo a forçá-lo a dizer aquilo que manifestamente não diz. Neste momento,
Spinoza quase deixa escapar uma referência a Galileu, aludindo àqueles que “aprenderam a
filosofar de forma mais correta e sabem que a Terra se move ao passo que o Sol está parado,
ou melhor, não se move à volta da Terra”186 e que tentam, a seu ver sem sucesso, interferir no
texto de modo a fazê-lo concordar com as conclusões astronômicas. Talvez estas
comparações plenas de reservas possam ser derivadas de uma postura única, que revelará, em
si mesma, todo afastamento que há entre Galileu e Spinoza. Parece que Galileu parte de uma
sacralização do texto bíblico, que o faz supor, entre outras coisas, a sabedoria dos profetas. Já
Spinoza apoia-se num desprezo, ao mesmo tempo, pela escritura e pela Escritura. Para
entender este desprezo, é necessário analisarmos o modo como o signo do livro é tratado em
momentos centrais do TTP.
184
Ver, para tanto, nossa análise do milagre no capítulo anterior. Uma passagem interessante neste sentido é CM
II, VIII.
185
G III, 35-36.
186
ESPINOSA, B. 2019, P. 153; G III, 36.
155
187
G III, 158. Esta diferenciação é tematizada ao longo de todo o capítulo XII do TTP.
188
Ver também a argumentação desenvolvida em G III, 160.
189
ESPINOSA, B. 2019, P. 289; G III, 160.
190
ESPINOSA, B. 2019, P. 287; G III, 158.
191
ESPINOSA, B. 2019, P. 289; G III, 160.
156
O cálculo que desmembra exterioridade e interioridade cria, ainda, mais uma oposição
significativa no que se refere ao tema do livro: a eternidade do verbo divino, de um lado, e a
corruptibilidade das palavras escritas, de outro. Uma análise da própria Escritura permite
aceder, segundo Spinoza, a pelo menos três sentidos para a expressão “palavra de Deus”
(debar Jehova)195: ela pode significar a lei divina universal, quer dizer, a religião definida
192
G III, 162.
193
“Começamos de novo a nos recomendar a nós mesmos? Ou será que precisamos, como alguns, de cartas de
recomendação para vós ou da vossa parte? A nossa carta sois vós, escrita nos nossos corações, conhecida e lida
por todas as pessoas — vós que sois manifestos como carta de Cristo, ministrada por nós; escrita não com tinta
mas com espírito de Deus vivo; não em tábuas petrinas, mas em tábuas de corações carnais” (2Cr 3, 1-3) Cf.
Bíblia, 2018. P. 272.
194
Spinoza justifica o recurso à escrita recorrendo à complexão dos hebreus, que “eram quase como crianças”
(ESPINOSA, B. 2019, P. 287; G III, 159). Sobre o ingenium do povo hebreu e o modo como Spinoza dele
deriva uma teologia-política determinada, ver o Capítulo 4 deste trabalho.
195
G III, 162.
157
Não pretendo, pois, afirmar que a Escritura, na medida em que contém a lei divina,
conservou sempre os mesmos acentos, as mesmas letras e, em suma, as mesmas
196
GIII, 162-163.
197
Aqui uma ambiguidade interessante: embora seja corruptível devido justamente ao seu estatuto de linguagem,
há algum sentido em que o livro pode ser dito duradouro, embora não eterno. As palavras de uma língua
dificilmente podem ser alteradas, uma vez que são de domínio público, compartilhadas tanto pelo vulgo quanto
pelos sábios. O mesmo não pode ser dito do sentido de uma passagem qualquer: os sábios detém o monopólio
dos livros sagrados, bem como a autoridade para interpretá-los. Ou seja, da corruptibilidade da língua deriva-se
uma certa capacidade de perpetuação, num sentido oposto à eternidade da palavra de Deus. Ver o que diz
Spinoza em G III, 105-106.
198
Eis uma particularidade da Escritura em relação aos demais livros: não parece se seguir que todos os
documentos possuam uma mensagem eterna, apenas aqueles que visam apresentar o verbo eterno de Deus.
199
G III, 164-165.
200
ESPINOSA, B. 2019, P. 293; G III, 165.
158
palavras (deixo aos Massoretas e aos que têm uma adoração supersticiosa pela letra
o trabalho de o demonstrar); quero apenas dizer que o sentido, que é a única coisa
que conta para que uma frase se possa apelidar de divina, chegou até nós intacto,
muito embora se presuma que as palavras em que originalmente foi expresso possam
ter sido muitas vezes alteradas. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 293; G III,
164-165)
201
GIII, 163-164.
159
tratamento do texto bíblico, falta a Galileu, segundo Spinoza, uma verdadeira dessacralização
da escrita e uma maior consciência dos limites expressivos da linguagem.
Capítulo 3.
A BOCA DE DEUS
Na passagem do século XVII para o XVIII, o termo impostura parece oscilar entre o
campo semântico do erro epistêmico e o da falsificação teológico-política4. A expressão ecoa
no título de uma das mais célebres peças de Molière: O Tartufo, designada originalmente por
Tartufo, ou o hipócrita, quando de sua publicação em 1664, para tornar-se Panuflo, ou o
1
Grifo meu. ANÔNIMO. 2007, P. 105.
2
DELEUZE, G. GUATTARI, F. 1992. P. 79.
3
Bíblia. 2016, P. 94.
4
Cf. definição para a expressão imposture do Dictionnaire de l’Académie Française (1694, primeira edição):
“Calomnie, ce que l’on impute faussement à quelqu’un dans le dessein de luy nuire”, assim como “Il se dit
encore de l’illusion des sens. Il est difficile de se deffendre de l’imposture des sens. L'imposture des sens séduit
souvent la raison”. Recuperado de https://www.dictionnaire-academie.fr/article/A1P0367-30. Última
visualização: 28/09/2021.
161
impostor em 1667, após sua polêmica estreia e rápida proibição por parte de Luís XIV5. Na
peça, Molière denuncia o comportamento do Tartufo, que insiste em sua aparência devota e
moralmente incorruptível, enganando Orgon e sua mãe a ponto de quase tomar posse de seus
bens. Orgon está de tal modo por ele enfeitiçado que é preciso tanto uma grande cena de
desmascaramento, arquitetada por sua esposa Elmire, quanto uma intervenção final do
próprio rei a fim de trazer à luz sua dissimulação.
5
Para uma reconstrução crítica da querela do Tartufo, ver o artigo de Jean-Pierre Cavaillé: « Hypocrisie et
Imposture dans la querelle du Tartuffe (1664-1669) : La Lettre sur la comédie de l’imposteur (1667) », Les
Dossiers du Grihl [Online], Les dossiers de Jean-Pierre Cavaillé, Libertinage, athéisme, irréligion. Essais et
bibliographie, Online since 09 June 2007, conexão em 22 de fevereiro de 2021. URL :
http://journals.openedition.org/dossiersgrihl/292.
6
CAVAILLÉ, J-P. 2007, §18.
7
Ibid.
162
8
Traduzida em português por A Vida e o Espírito de Baruch de Espinosa: Tratado dos Três Impostores. Éclair
Antonio Almeida Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
9
Como material de apoio sobre o panfleto, recomendo o volume BERTI, S. CHARLES-DAUBERT, F.
POPKIN, R.H. (eds). Heterodoxy, Spinozism, and Free Thought in Early-Eighteenth-Century Europe. Studies on
the Traité des Trois Imposteurs. Springer Netherlands: 1996; e os artigos de BENITEZ, M. « La Diffusion Du
‘Traité Des Trois Imposteurs’ Au XVIIIe Siècle » In : Revue D'histoire Moderne Et Contemporaine (1954-),
vol. 40, no. 1, 1993, pp. 137–151 e de LAVAERT, S. “The Traité des trois imposteurs: a philosophical plot, or
(re)translation as strategy of Enlightenment". In : Cadernos de Tradução. 2019, vol.39, n.1, pp.73-93.
10
EI, Ap.
11
Cf. capítulos I e II do TTP.
12
Cf. Prefácio do TTP. Ver também o primeiro capítulo deste estudo.
13
G III, 7.
14
Cf. todo o Capítulo II do Tratado dos três impostores.
15
Capítulo IV do Tratado.
16
Capítulo XXI do Tratado.
17
Os´quatro capítulos do Tratado dedicados a Jesus Cristo: VII-X.
163
Le Vayer.18 Em suma, o Tratado é uma verdadeira colcha de retalhos dos fragmentos e das
teses mais inflamadas do spinozismo e demais doutrinas consideradas radicais. A difusão do
texto ao longo dos últimos quarenta anos do século XVIII, configurando provavelmente um
dos panfletos clandestinos mais bem sucedidos do período, contribuiu fortemente para a
inscrição do spinozismo na linha de continuidade dos pensamentos libertinos e do iluminismo
radical.
Sobre a figura de Jesus, o Tratado nos ensina que, tal como Moisés e Maomé,
tratava-se de um legislador.19 Jesus possuía táticas políticas e morais claras: e, ao contrário do
que dizia, anulava a lei mosaica ao introduzir uma lei própria, muito mais duradoura, uma vez
que se dirigia à interioridade humana e prometia uma recompensa no além-mundo. A astúcia
de Jesus consistiu em se aproveitar de um momento de fraqueza da República hebraica para,
por meio de milagres, ou seja, tocando sua imaginação, tomar a confiança de um povo já
ignorante e consequentemente obediente. Quando, face à mulher adúltera, os escribas e os
fariseus lhe perguntaram se concordava com seu apedrejamento, Jesus simplesmente fugiu da
pergunta, retrucando que, ao invés de julgar os demais, deviam olhar para seus próprios
pecados: “Que seja o [homem] entre vós, que nunca errou, o primeiro a atirar-lhe uma pedra”
20
. Com isso, evitava tanto a resposta negativa – que o faria desobedecer a lei mosaica –
quanto a afirmativa – que seria qualificada como cruel. Similarmente, quando os fariseus, a
fim de pregar uma armadilha, lhe interrogaram se deveriam pagar tributo a César, Jesus
solicitou a moeda e, vendo nela estampada a face de César, disse: “Pagai as coisas de César a
César; e as coisas de Deus a Deus”21. Assim, não cometeria o crime de lesa-majestade, caso
afirmasse que não se deveria pagar, e tampouco questionaria a lei de Moisés, caso negasse.
Quanto à sua moral, os autores do Tratado insistem que ela não traz nada de novo.22
Crenças como a imortalidade da alma, a ressurreição e a existência do inferno já existiam
entre os fariseus. Além disso, outros dos ensinamentos de Jesus nada mais são do que cópias
das principais ideias dos filósofos antigos, particularmente de Epicuro e Epiteto. Este último
18
Ibid. Informações obtidas em BERTI, S. « L'Esprit de Spinosa : ses origines et sa première édition dans leur
contexte spinozien ». In : BERTI, S. CHARLES-DAUBERT, F. POPKIN, R.H. (eds). Heterodoxy, Spinozism,
and Free Thought in Early-Eighteenth-Century Europe. Studies on the Traité des Trois Imposteurs. Springer
Netherlands: 1996. P. 8.
19
Capítulos VII-X.
20
João 8, 7-8. Tradução cf. Bíblia. 2017. P. 358.
21
Mateus 22, 21-22. Ibid, P. 131.
22
Capítulo IX do Tratado.
164
já preconizava, por exemplo, que é melhor ser desafortunado e racional do que rico sem
razão, que a fortuna e a razão raramente encontram-se reunidas num mesmo indivíduo e que a
vida feliz deve vir acompanhada de prudência, justiça e honestidade. As mais belas frases do
Cristo, seguindo Celso a partir do testemunho de Orígenes, nada mais são do que pastiches
daquelas de Platão. Tomando a distinção entre hipocrisia e impostura presente em Molière,
Jesus Cristo era, mais do que hipócrita, um impostor, pois seu desígnio de enganar quanto
aos temas religiosos era inteiramente premeditado.
23
Segundo o Dicionário da Academia Francesa, 9ª edição, um coup de théâtre é uma “peripécia absolutamente
inesperada que modifica a situação dramática” e, em sentido figurado, um “acontecimento imprevisto que
transtorna uma situação”, cf. https://www.cnrtl.fr/definition/academie9/coup. Última visualização: 04/05/2021
às 10h28min.
24
Trata-se da Cena V do Ato IV. O desmascaramento como um todo, desde sua arquitetação até conclusão,
ocorre entre as cenas III e VII do Ato IV.
25
Sobre esta tensão, verificar KREMER, N. SERMAIN, J-P. TRAN-GERVAT, Y-M. (eds.). Imposture et fiction
dans les récits d'Ancien Régime. Paris: Éditions Hermann, 2016.
26
MOLIÈRE. 2005, P. 93
27
Ibid.
28
Não sigo, para este verso, a tradução de Jenny Klabin Segall, que adapta a ideia para preservar a rima e o
ritmo do texto. No original, lemos: “De tous nos entretiens il est pour faire gloire, / Et je l'ai mis au point de voir
tout sans rien croire.” (MOLIÈRE. 1825, P. 62), vertido por ela como “De todo encontro nosso há de fazer farol,
/ E a ponto o pus de até negar a luz do sol” (MOLIÈRE. 2005, P. 102).
165
perfeitamente acomodar os seus desejos ao céu e não o céu aos seus desejos29. É o próprio
artifício do engano que confessa: o mal está não no pecado em si, mas em torná-lo público,
isto é, visível, aparente aos sentidos.30 A falsidade do Tartufo só pode ser combatida por meio
de outra: o golpe de uma encenação, uma mentira que funcionará como prova da verdade.31
29
“Veda de fato o céu certos contentamentos, / Mas com ele haverá sempre acomodamentos. / Conforme for
preciso, existe uma ciência / Que espicha sem embargo os laços da consciência, / E retifica o mal que haja
nalguma ação, / Julgando-lhe a pureza, apenas, da intenção [...]” (MOLIÈRE. 2005, P. 100).
30
“Não custa, enfim, destruir-se essa inquietação vossa. / De um segredo integral comigo estais segura; / Só no
rumor da coisa, o mal se configura. / O escândalo do mundo é o que a ofensa produz, / E pecado não é o que não
vem à luz.” (MOLIÈRE. 2005, P. 101).
31
A fala de Elmire, antes da cena de desmascaramento, é suficientemente instrutiva: “Tudo o que eu diga tem de
me ser permitido, / E é por vos convencer, conforme o hei prometido. / Vou, com a insídia à qual o impostor me
reduz, / Desmascará-lo e expor-lhe a alma hipócrita à luz, / Alentar de seu fogo a cobiça atrevida / E deixar
campo livre à manobra indevida. / É para que saibas quem é que em tal disfarce / Minha alma vai fingir em seu
jogo alistar-se [...]” (MOLIÈRE. 2005, P. 95).
32
G III, 64 e 71.
166
seu povo, talvez possa ser classificado como impostor33. Esta mesma liberdade é plenamente
assegurada pela religião católica universal e pelos profetas verdadeiros; e, uma vez que é esta
a religião ensinada pelo Cristo, conclui-se que tal liberdade também é endossada por ele.
33
Carta XLIII.
34
Carta XLII.
35
MOREAU, P.F. « Les origines du christianisme dans le Traité théologico-politique ». In : La Pensée, vol.
398, no. 2, 2019, pp. 52-62.
36
G III, 21, 28, 31, 32, 43, 54, 64, 65, 68, 70, 71, 76, 79, 90, 103, 104, 152, 154, 156, 157, 158, 163, 164, 166,
172, 178, 225, 233, 234 e 262.
37
Respectivamente G III, 21, 64-65 e 70-71.
38
Misrahi procura demonstrar como, apesar da admiração de Spinoza pelo Cristo, seu pensamento é um embate
às principais crenças cristãs, constituindo, ao invés de cristianismo, uma espécie de ateísmo prático. Ver
MISRAHI, R. « Spinoza face au christianisme ». In : Revue Philosophique de la France et de l'Étranger, T. 167,
No. 2, Spinoza (I) (Avril-Juin 1977), pp. 233-268.
167
39
Victor Sanz publicou uma série de artigos analisando o tema da religião na correspondência de Spinoza a
partir de um recorte de seus interlocutores. São eles: “La religión en la correspondencia de Spinoza (I): La
relación Blyenbergh-Spinoza”. In: Pensamiento, vol.53, núm.207 (1997), pp.453-472, “La religión en la
correspondencia de Spinoza (II): Velthuysen-Spinoza”. In: Pensamiento, vol.56, núm, 214, enero-abril 2000,
pp.27-51, “Dos conversos frente a Spinoza: Stensen y Burgh ante el Tratado teológico-político”. In: Acta
philosophica, vol.8 (1999), fasc.1, págs. 119-134, “Spinoza y Oldenburg acerca de la religión. In : Anuario
Filosófico, 1999 (32), 487-518 e “La religión en la correspondencia de Spinoza: Boxel-Spinoza”. In: A. L.
GONZÁLEZ, A.L. ZORROZA, I. (eds.). In umbra intelligentiae. Estudios en homenaje al prof. Juan Cruz
Cruz. Eunsa, Pamplona, 2011, pp. 729-745.
40
LAUX, H. “Le Traité théologico-politique dans la correspondance de Spinoza”. In : Revue de Métaphysique et
de Morale, No. 1, Correspondance de Spinoza (JANVIER-MARS 2004), pp. 41-57.
41
Uma palavra sobre as edições utilizadas para citar a correspondência de Spinoza. Não possuímos, em
português, uma tradução estabelecida das cartas – que seja publicada numa edição bilíngue acompanhada do
aparato crítico necessário. Em vista disso, utilizarei sempre a tradução de Samuel Thimounier Ferreira (2019 e
2021) para citar a correspondência com Oldenburg. Preferirei, depois dela, consultar e citar a tradução de
Atilano Domínguez (1988b) para o espanhol – o que não é de todo recomendado, uma vez que terei de propor
traduções indiretas. Também citarei, para fins de praticidade, a tradução de J. Guinsburg e Newton Cunha
(2014b), quando, comparando-a com as traduções de Maxime Rovere (2010) e Charles Appuhn (1966), ela não
apresentar maiores problemas.
42
Há poucas informações sobre a vida de Boxel. Suas datas de nascimento e falecimento são conjecturas. Cf.
VAN BUNGE, W. KROP, H. STEENBAKKERS, P. VAN DE VEN, J. (eds). The Bloomsbury Companion to
Spinoza. Bloomsbury: London. 2014, P. 27. Uma boa tradução para o português, acrescida de uma nota
introdutória esclarecedora, foi preparada por Samuel Thimounier, revisada por Homero Santiago e publicada em
Cadernos Espinosanos. São Paulo, n.35, jul-dez 2016 (P. 523-571).
43
Sobretudo por Blyenbergh e Oldenburg. Ver cartas 30 e 74.
168
O comércio epistolar entre Henry Oldenburg (ca. 1618 - 1677) – filósofo alemão
fundador da Royal Society e da revista Philosophical transactions – e Spinoza de que temos
registro data desde 1661. A carta de Oldenburg de agosto daquele ano sugere um encontro
presencial prévio em Rijnsburg, em que, segundo Oldenburg, travaram uma conversa “sobre
Deus, sobre a extensão e o pensamento infinitos, sobre a discrepância e a conveniência desses
atributos, sobre a maneira da união da alma humana com o corpo [...], sobre os princípios da
filosofia cartesiana e baconiana”44. Agora, Oldenburg deseja que se aprofundem na distinção
entre o pensamento e a extensão e nas críticas de Spinoza à filosofia de Bacon e Descartes.
Alguns anos depois, já em 1665, Spinoza transmite a Oldenburg estar compondo o Tratado
Teológico-Político, conforme os objetivos que já conhecemos45, e sua comunicação só será
retomada dez anos depois para abordar a tentativa fracassada de publicação da Ética e os
efeitos devastadores da recepção do tratado de 1670.
Que fatores podem explicar este longo silêncio? É preciso lembrar, em primeiro lugar,
que uma epidemia de peste bubônica assolou a cidade de Amsterdã entre os anos de 1663 e
166646, o que forçou Spinoza a se refugiar na propriedade do médico Simon de Vries próxima
a Schiedam entre 1663-1664 e 1664-1665, como atesta sua correspondência com Blyenbergh
47
. Em 1665, a cidade de Londres, onde vive Oldenburg, também foi arrasada pela epidemia,
que resultou na morte de aproximadamente cem mil pessoas. Como justificativas
suplementares para este hiato de dez anos, Atilano Domínguez elenca também a guerra da
Inglaterra com a Holanda em 1665-1667 e a prisão de Oldenburg durante alguns meses no
ano de 166748. É preciso trabalhar igualmente com a hipótese de que algumas epístolas se
44
FERREIRA, S.T. 2019, P. 102. Para as passagens da correspondência entre Spinoza e Oldenburg, utilizarei a
tradução proposta por Samuel Thimounier Ferreira em sua dissertação de mestrado. No curso da escrita desta
tese, a tradução de Ferreira foi publicada em livro pela Editora Autêntica. Ver ESPINOSA, B. Correspondência
entre Espinosa e Oldenburg. Tradução, apresentação, estudo, preparação do texto latino e notas de Samuel
Thimounier Ferreira. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
45
Cf. Carta XXX.
46
Daniel Defoe assim escreve na abertura de seu Diário do ano da peste: “It was about the Beginning of
September 1664, that I, among the Rest of my Neighbours, heard in ordinary Discourse, that the Plague was
return’d again in Holland; for it had been very violent there, and particularly at Amsterdam and Roterdam, in the
Year of 1663, whither they say, it was brought, some said from Italy, others from the Levant among some
Goods, which were brought home by their Turkey Fleet; others said it was brought from Candia; others from
Cyprus. It matter’d not, from whence it come; but all agreed, it was come into Holland again.” DEFOE, D. A
Journal of the Plague Year. Edited with an Introduction and Notes by Cynthia Wall. Penguin Books: London,
2003. P. 3.
47
Esta é a hipótese de Meinsma, referida por Atilano Domínguez em notas à sua tradução da correspondência
com Spinoza. Verificar SPINOZA, B. 1988b, P. 166, nota 131.
48
SPINOZA, B. 1988b, P. 344, nota 355.
169
A retomada do contato epistolar entre os amigos após o hiato de dez anos ocorre
teoricamente51 em 8 de junho de 167552, e parte de um comentário reconciliador de
Oldenburg: ele afirma que sua primeira leitura do TTP havia sido demasiado imatura, pois
julgou o livro com as lentes da teologia tradicional. Reconsiderando as teses da filosofia da
religião spinozista, terminou por se convencer de que Spinoza está
Oldenburg convoca Spinoza, então, a compartilhar com ele suas pesquisas atuais com
este fim. A resposta de Spinoza infelizmente se perdeu, mas sabemos, pela carta 62, que ele
havia transmitido ao seu interlocutor o projeto da Ética, bem como seu desejo iminente de
publicá-la. Confessando sua preocupação, Oldenburg roga para que Spinoza não insira neste
49
FERREIRA, S. 2019.
50
FERREIRA, S.T. 2019, P. 47.
51
Sabemos que muitas cartas de Spinoza se perderam ou foram destruídas por seus amigos quando de sua morte.
Assim, temos sempre de trabalhar com a hipótese de que as correspondências que nos chegaram não reflitam
exatamente as condições efetivas de seu relacionamento com seus interlocutores.
52
Na carta 61.
170
texto “qualquer coisa que pareça de algum modo abalar a prática da virtude religiosa”53. A
súplica de seu amigo parece recobrar as reações adversas que obteve a publicação do Tratado
Teológico-Político. A suspeita de que Spinoza e o spinozismo estavam ameaçados se
confirma rapidamente: circulava, por volta do mês de junho daquele ano, um boato de que
Spinoza pretendia publicar um livro em que demonstrava a inexistência de Deus. O rumor foi
levado ao príncipe e aos magistrados; e, somado a isto, alguns cartesianos que pareciam estar
simpatizando com sua filosofia passaram a destratá-lo como forma de se desvencilhar de
possíveis acusações. A decisão de Spinoza diante deste contexto é prudente: prefere adiar a
publicação da Ética54 – a qual só será efetivamente publicada por seus amigos postumamente,
em suas obras completas de 1677. Diante disso, Spinoza lança um pedido duplo a Oldenburg:
que lhe indique quais são os dogmas de sua filosofia que parecem constituir um obstáculo à
prática da virtude e que apresente as principais objeções dirigidas pelos doutos ao TTP, para
que possa utilizá-las nas notas anexas que pretende acrescentar à obra e desfazer os
preconceitos que foram alimentados acerca dele desde sua publicação55.
Para Oldenburg, as ideias mais polêmicas do TTP são a confusão entre Deus e a
natureza, a supressão da autoridade dos milagres e, por fim, sua misteriosa opinião acerca do
Cristo, que parece negar dois fenômenos indispensáveis para a fundamentação da fé: sua
encarnação e satisfação. Dissolvidos estes problemas56, Spinoza poderia, teoricamente, ser
aceito entre o grupo dos “cristãos sensatos e fortes de razão”57. Para este grupo, certamente a
imanência de Deus à natureza põe um problema insolúvel para o estabelecimento de valores
morais objetivos, dependentes de uma imagem de Deus como juiz ou monarca absoluto que,
exterior ao mundo, distribui prêmios e punições. Ainda, o descrédito aos milagres parece
retirar toda a confiança depositada na verdade e autoridade da doutrina. Lembremos da
importância concedida por um cristão convicto como Pascal aos milagres como fundamento
da fé58. A questão do descrédito dos milagres se confunde, em última análise, com a opinião
criptografada que Spinoza nutre relativamente ao Cristo e também com a própria
53
FERREIRA, S. T. 2019, P. 188.
54
Carta 68.
55
Ibid.
56
Observe-se, de passagem, que Oldenburg transmite a Spinoza opinião de que muitos leitores o consideravam
uma espécie de impostor, já que, segundo eles, escondia sua real posição acerca do Cristo: “Ainda por cima,
afirmam que escondes tua opinião sobre Jesus Cristo, redentor do mundo e único mediador dos homens, e
sobre sua encarnação e sua satisfação [...]” (Grifo meu. Cf. FERREIRA, S.T. 2019, P. 192).
57
FERREIRA, S. T. 2019, P. 192.
58
Conforme a discussão que propomos acerca dos milagres no Capítulo 1 deste estudo.
171
credibilidade da Escritura. Afinal, se os milagres não existem, como dar conta do fenômeno
da ressurreição, por exemplo? Em sequência, como manter a autoridade da Escritura e de
seus narradores – profetas, apóstolos, santos, sábios –, cujo artifício retórico principal são
justamente as narrativas de caráter insólito e sobrenatural?
A réplica de Spinoza insiste, de modo geral, que sua filosofia da religião não depende
absolutamente da tese do Deus sive natura59: uma leitura atenta do TTP mostrará que a
religião está fundada em outras bases, quer dizer, numa leitura qualificada da Escritura que
tome como seu objetivo principal atingir a obediência e instruir sobre a piedade (e não sobre
a verdade). Já conhecemos a crítica spinozista ao milagre: trata-se de uma narrativa que
revela desconhecimento das verdadeiras causas dos eventos. Por ser fruto da ignorância, o
milagre engendra a superstição – o culto a uma exterioridade fetichizada. Ora, a religião não
deve ser baseada na ignorância, que só serve para alimentar a obediência servil e a admiração
cega, escravizando o povo num circuito afetivo inescapável de esperança e medo. Ao invés
de fornecer uma prova irrefutável da religião, o milagre revela um ímpeto por refugiar-se na
ignorância das causas: o conhecimento da natureza é, neste aspecto, muito mais instrutivo da
potência de Deus do que ele, embora arranque menos admiração. Diferentemente do
procedimento de argumentação por redução ao absurdo, o milagre perpetua uma retórica de
redução à ignorância60: o asilo da ignorância61, uma expressão da Ética utilizada em
referência ao conceito de vontade divina. Spinoza opõe religião e superstição62, a primeira
baseada na sabedoria e a segunda na ignorância63, evidenciando que seu objetivo é menos o
de destruir toda e qualquer proposta religiosa e mais emendar a religião contra os abusos das
autoridades religiosas e políticas tradicionais.
59
Como afirma expressamente Spinoza na Carta 73: “Contudo, erram de toda maneira alguns que pensam que o
Tratado Teológico-Político se apoia no fato de Deus e a natureza (pela qual entendem alguma massa ou matéria
corpórea) serem uma única e mesma coisa”, cf. FERREIRA, S.T. 2019, P. 194.
60
Cf. Carta 75.
61
EI, Ap.; ESPINOSA, B. 2015a, P. 117.
62
Em consonância com a oposição que constrói no Prefácio do TTP. Ver o Capítulo 1 deste estudo.
63
“Aqui acrescento somente que entre religião e superstição reconheço esta diferença principal: que esta tem por
fundamento a ignorância, e aquela, a sabedoria; e creio ser este o motivo por que os cristãos se distinguem entre
os demais: não pela fé, nem pela caridade, nem pelos outros frutos do Espírito Santo, mas só pela opinião;
porque, como todos, defendem-se com os milagres sozinhos, isto é, com a ignorância, que é a fonte de toda
maldade, e por isso convertem a fé, ainda que verdadeira, em superstição.” FERREIRA, S. T. 2019, P. 194; G
IV, 307-308.
172
segundo a carne (Christum secundùm carnem)64, mas apenas do espírito do Cristo (spiritu
illo Christi)65. Sem definir mais detalhadamente os aspectos doutrinários relativos à
consideração do Cristo carnal, há apenas uma breve delimitação do Cristo espiritual como o
“filho eterno de Deus”66 ou Sua “sabedoria eterna”67. Esta sabedoria manifestou-se
sobremaneira na figura histórica de Jesus Cristo: e, com direito, os apóstolos puderam
pregá-la e glorificar-se diante dos demais indivíduos. Esta sabedoria permite o alcance do
estado de beatitude, capaz de ensinar corretamente sobre o verdadeiro e o falso tanto quanto
sobre o bem e o mal. Por último, em relação ao fenômeno da encarnação, Spinoza repete o
que já havia afirmado no TTP68: simplesmente não entende o conceito e, mais ainda, insiste
que se trata de um absurdo, como pensar a existência de um círculo quadrado. Termina sua
carta afastando-se dos cristãos que Oldenburg parecia querer dele aproximar: esperando ser
por eles – ou seja, pelos “outros”, com os quais não se identifica plenamente69 – melhor
entendido.
64
G IV, 308.
65
G IV, 309.
66
FERREIRA, S.T. 2019, P. 194.
67
Ibid.
68
“Devo, no entanto, advertir aqui que me abstenho de falar do que certas Igrejas afirmam sobre Cristo – e nem
sequer para o negar –, pois confesso com toda a franqueza que não compreendo. Tudo o que até agora afirmei
são conjeturas a partir da própria Escritura. E em parte alguma eu li que Deus apareceu a Cristo, ou que lhe
falou, mas sim que Deus foi revelado por Cristo aos apóstolos, que Cristo é o caminho da salvação e,
finalmente, que a lei antiga foi transmitida por um anjo e não diretamente por Deus, etc.” ESPINOSA, B. 2019,
P. 137; G III, 21. No trecho, embora sem mencionar, Spinoza parece fazer uma referência criptografada à
encarnação e ressurreição atribuídas ao Cristo.
69
“E julgo que essas coisas são suficientes para explicar o que penso sobre aqueles três pontos principais. Se
elas hão de agradar os cristãos que conheces, tu poderás sabê-lo melhor.” FERREIRA, S.T. 2019, P. 194; G IV
309.
70
Cf. carta 75.
71
Carta 74.
173
72
FERREIRA, S.T. 2019, P. 200; G IV, 314.
73
FERREIRA, S.T. 2019, P. 200; GIV, 315.
74
Na carta 78, Spinoza afirma: “Ademais, aceito contigo literalmente a paixão, a morte e o sepultamento de
Cristo; porém alegoricamente sua ressurreição”, cf. FERREIRA, S.T. 2019, P. 204.
75
G IV, 314-315.
174
posteriormente aos demais apóstolos76. Segundo Spinoza, além disso, a força dos argumentos
do capítulo 15 da Primeira Epístola aos Coríntios só pode ser mantida caso se reserve um
sentido alegórico à ressurreição.
Ao afirmar que Paulo não conheceu o Cristo segundo a carne, Spinoza parece estar se
referindo a algo diferente da compreensão do Cristo segundo a carne de que falava outrora.
Paulo não conheceu o Cristo carnal porque não teve contato direto com a pessoa do Cristo: ao
contrário, nesta altura, perseguia a congregação de Deus.77 É apenas por uma revelação
espiritual posterior que conhece o Cristo segundo o espírito e passa a pregar a boa nova. Os
teólogos e demais cristãos do tempo de Spinoza, principais interlocutores de sua
correspondência com Oldenburg, porém, não podem ser criticados por isso, mas sim por
insistirem em uma doutrina que considera os aspectos carnais do Cristo. Quais são estes
aspectos? Para compreendê-lo, é necessário apostar num exercício dedutivo que considere
quais são os aspectos que se opõem ao Cristo segundo o espírito, uma vez que temos, deste
último, um conceito mais claro. A concepção do Cristo segundo a carne parece dizer respeito,
em primeiro lugar, à crença literal nos fenômenos da encarnação e ressurreição que Spinoza
visa insistentemente recusar. Não tanto por estes mistérios em si, mas sim pelo fato de
emanarem de um terreno que é exatamente aquele reservado para as narrativas bíblicas: o
campo da história. São todos os aspectos particularizados da vida do Cristo, tudo aquilo que,
retirado seu ensinamento nuclear no tocante à piedade, é supérfluo. Ao Cristo segundo a
carne podem ser remetidas todas as narrativas de sua vida e paixão tal como perpetradas
pelos apóstolos, todas as narrativas de caráter sobrenatural que repousam apenas na
ignorância e cujo único fim é fomentar um maravilhamento cego.
O homem carnal, todavia, não pode compreender estas coisas, que lhe
parecem vãs porque tem de Deus um conhecimento por demais insuficiente
e porque não encontra nesse supremo bem nada em que possa tocar, comer
76
Spinoza parece fazer referência a Segunda Epístola aos Coríntios, 5, 16-17, onde se lê: “De modo que,
doravante, não conhecemos ninguém segundo [a] carne. Ainda que conhecêssemos Cristo segundo [a] carne,
agora já não conhecemos. Assim, se alguém está em Cristo, [é] uma nova criação”, cf. Bíblia. 2018, P. 277.
77
Como afirma em 2 Cor 15, 9-10: “Pois eu sou o menor dos apóstolos, eu que nem sou digno de ser chamado
apóstolo, porque persegui a congregação de Deus. Todavia, por uma graça de Deus, sou o que sou.” Bíblia.
2018, P. 260.
175
ou, enfim, que tenha relação com a carne, sua principal fonte de prazer, dado
que um tal bem é de natureza meramente especulativa e intelectual.
(ESPINOSA, B. 2019, P. 180; G III, 61).
Os “homens carnais” (hominum carnalium) surgem mais uma vez neste capítulo,
desta vez no interior de uma interpretação de Paulo. Segundo Spinoza, Paulo não fala
abertamente quando confere a Deus propriedades antropomórficas, sendo apenas “por causa
da fraqueza da carne que lhe atribui a misericórdia, a graça, a cólera, etc.”78, adaptando-se ao
seu público composto por homens carnais79. Ainda, a ideia de um governo orientado para o
corpo apenas, em referência à estabilidade e segurança do Estado, aos bens da fortuna, está na
base da argumentação de Spinoza para recusar a eleição dos hebreus. É apenas o auxílio
externo de Deus que garantiu a eleição daquele povo, que deve ser entendida em referência
ao seu aspecto temporal e histórico, ou seja, à eficiência de seu governo.80 A distinção entre o
corpo e o espírito também é importante para que se separe o texto escrito da Escritura,
documentado com tinta em tábuas perecíveis, sujeitas à corrupção, e o verbo eterno de Deus,
escrito no coração do homem, isto é, em sua mente – o qual é imperecível às intermitências
da história, tendo chegado até nós intacto.81 O TIE, por fim, nos confirma, em sua moral de
abertura, que os bens associados à carne – riquezas, honras e prazeres – são incertos,
engendrando, no mais das vezes, tristeza, inveja, temor e ódio. A perseguição dos bens
corporais distrai a mente da contemplação do verdadeiro bem, este último engendrado pelo
amor depositado em uma coisa eterna e infinita, isto é, Deus.82
Que outro dispositivo argumentativo está na base destas teses senão a diferença entre
interno e externo? Assim, à carne, são reservados todos os aspectos supérfluos e exteriores e,
ao espírito, o que há de necessário e interno.83 Quando aplicamos esta distinção,
frequentemente ativada na obra de Spinoza, ao caso do Cristo, concluímos que o Cristo
segundo a carne refere-se ao que há de perecível nele, quer dizer, à sua história particular
entendida na lógica ressurreição-encarnação, que se unem para construir uma imagem de
adoração incondicional e de deslumbramento. Por contraste, devemos esperar do Cristo
78
ESPINOSA, B. 2019, P. 185; G III, 65.
79
Spinoza se refere à Primeira Carta aos Coríntios, 3, 1,2, em que Paulo afirma: “Quanto a mim, irmãos, não
pude vos falar como a [pessoas] espirituais, mas como a carnais, como a crianças em Cristo.” (Bíblia. 2018, P.
223).
80
G III, 46-51.
81
G III, 158-162.
82
Ver toda a argumentação de TIE, §1-13.
83
A distinção entre interno e externo não é idêntica, aqui, à distinção entre os modos dos atributos da substância
(corpo e mente).
176
segundo o espírito apenas aquilo que há de interno e essencial. Ocorre que, para alguns
ignorantes, é apenas reconhecendo imaginativamente o exemplo do Cristo, o que inclui um
entrelaçamento pelo espanto causado pelo caráter sobrenatural destas narrativas, que seu
ensinamento eterno pode surtir efeito. Embora não se exija o conhecimento de tais aspectos,
para alguns indivíduos o Cristo segundo a carne – a crença literal em sua encarnação e
ressurreição, agora podemos dizer – talvez seja a única via salvífica. Apesar de, num primeiro
nível da argumentação, recusar a exterioridade, Spinoza se vê forçado a reintroduzi-la em
temas centrais de sua filosofia da religião, como, veremos, acontece no caso da figura do
Cristo.
84
Carta 79. Tradução conforme FERREIRA, S. T. 2019, P. 206.
177
85
Carta 67.
86
Seria interessante comparar a empreitada de Burgh com a de Niels Stensen, que também se converteu ao
catolicismo na Itália e dirige uma carta a Spinoza buscando sua conversão. Stensen adota uma estratégia menos
violenta que a de Burgh. Não temos a resposta de Spinoza a esta carta. Cf. SPINOZA, B. 1988b, P. 367-377
(Carta 67A). Para um estudo comparativo das correspondências, ver o artigo de Victor Sanz supramencionado.
87
Informações biográficas obtidas na Introdução de Maxime Rovere à sua tradução da correspondência de
Spinoza (SPINOZA, B. 2010, P. 25-26 e 37-38), no artigo de Victor Sanz (SANZ, V. 1999, P. 121, nota 8 e P.
127, nota 47) e nas notas de Atilano Domínguez à sua tradução da correspondência integral de Spinoza
(SPINOZA, B. 1988b, P. 354-377 e 395-401).
88
A carta é classificada na tradução preparada por Atilano Domínguez como 67A, cf. SPINOZA, B. 1988b, P.
367-377; G IV 292-298.
89
Carta 76. G IV, 317; SPINOZA, B. 1988b, P. 395.
178
90
Tais reações adversas podem constituir um argumento histórico relevante contra aqueles que sustentam que o
TTP tem como audiência principalmente os teólogos cristãos (conforme, por exemplo, Steven Frankel em
“Politics and Rhetoric: The Intended Audience of Spinoza's "Tractatus Theologico-Politicus". In : The Review of
Metaphysics, Vol. 52, No. 4 (Jun., 1999), pp. 897-924). Ou, ainda, se for assim, que Spinoza, ao menos
imediatamente, fracassou em sua empreitada.
91
As passagens da correspondência entre Spinoza e Burgh serão traduzidas a partir da tradução de Atilano
Domínguez. Por tratar-se de uma tradução indireta, procurei evitar as citações ao considerar esta troca epistolar.
Ver SPINOZA, B. 1988b, P. 354.
92
Frases como as seguintes são recorrentes ao longo da carta de Burgh: “Pero reflexione seriamente, por favor,
sobre lo que usted dice” (SPINOZA, B. 1988b, P. 355; G IV, 282), “El remedio, sin embargo, es fácil:
arrepiéntase de sus pecados tomando conciencia de la perniciosa arrogancia de su mísero y demente
razonamiento.” (SPINOZA, B. 1988b, P. 356; G IV, 283) e “Dése por vencido y arrepiéntase de sus errores y
pecados; revístase de humildad y regenérese” (SPINOZA, B. 1988b, P. 359; G IV, 285).
93
VIEIRA NETO, P. “A correspondência entre Espinosa e Burgh”. In : Discurso (31), 2000: P. 463-496.
Recuperado de: https://doi.org/10.11606/issn.2318-8863.discurso.2000.38050. Última visualização: 22/03/2021
às 16h32min.
94
Ibid, P. 473.
95
SANZ, V. 1999, P. 128.
179
96
G IV, 281.
97
G IV, 282.
98
G IV, 282-283.
99
G IV, 284.
180
Em seguida, na confirmatio, Burgh elenca uma série de oito argumentos que buscam
salientar, respectivamente: o consenso de homens eruditos e piedosos quanto à verdade da
doutrina da fé católica100, a perpetuação histórica da Igreja enquanto instituição pelos séculos
101
, o estabelecimento da Igreja através da pregação de indivíduos pobres e miseráveis, que
somente pelo exercício de sua virtude, à revelia das autoridades políticas e contando com
todas adversidades do mundo, foram capazes de fundá-la como doutrina poderosa102, as
propriedades da antiguidade, imutabilidade, infalibilidade, irreformabilidade, unidade,
impossibilidade de afastamento sem recair em condenação eterna, sua extensão vastíssima
pelo mundo e sua perpetuação até o fim do mundo103, sua ordem admirável enquanto
instituição, o que dá testemunho da providência divina em sua manutenção104, a patente
piedade de seus discípulos, a ponto de que um herege ou filósofo mereça apenas se igualar ao
católico mais imperfeito105, a confissão pública dos hereges arrependidos106 e, por fim, a
miserável vida dos ateus, sobretudo no momento de sua morte, quando reconhecem estarem
desprovidos de Deus107.
100
G IV, 285-286.
101
G IV, 286-287.
102
G IV, 287.
103
G IV, 288.
104
G IV, 288-289.
105
G IV, 289.
106
G IV, 289-290.
107
G IV, 290.
108
Tradução a partir de SPINOZA, B. 1988b, P. 359; G IV, 284-285.
181
negaria o sobrenatural apenas por não poder adaptá-lo perfeitamente aos limites de seu
entendimento.109 Ainda, é somente pelo testemunho escritos dos antigos historiadores ou pela
existência mesma de uma série de monumentos que se pode dizer que houve um povo
romano e um imperador chamado Julio César e que este, após reprimir a liberdade
republicana, trocou seu regime pela monarquia.110 Não há como fugir da confiança no
testemunho e consenso comum de outros homens, estabelecido ao longo dos séculos e de
onde deriva a certeza, pois não se pode experimentar tudo. É simplesmente impossível, para
Burgh, que tantos indivíduos tenham querido e conseguido enganar todo o gênero humano
por tanto tempo.111 Como Spinoza poderá responder judicialmente a estas duas grandes
acusações?
É esperado que estes argumentos não surtam efeito algum sobre Spinoza. Antes de
partir apressadamente para a conclusão de que a empreitada de Burgh está fadada ao fracasso,
é preciso considerar que sua expectativa não é a de estabelecer um diálogo com Spinoza –
como quer Oldenburg – mas sim o de polemizar, chocar, provocar e atingir os afetos de seu
leitor. A impossibilidade do diálogo é menos a consequência fracassada da empreitada de
Burgh do que sua postura de princípio: pretende partir para a guerra, não debater. Talvez
prevendo a postura de Spinoza – demasiado seguro quanto à sua própria filosofia –, Burgh
resolva destilar seu anti-spinozismo com o tempero daquilo que é considerado por seu
interlocutor como antifilosófico, ou seja, a retórica passional e o endosso da autoridade
teológica. Embora tenha sido mal-sucedido, Burgh não parece ingênuo, e sua aposta na
violência é verdadeiramente uma escolha metodológica. Talvez por reconhecer a
exterioridade do ponto de vista de seu adversário, Spinoza confessa ter inicialmente
considerado deixar a carta sem resposta, mas diz ter mudado de ideia devido à influência de
alguns amigos que lhe solicitaram uma reação112. A réplica de Spinoza, assim, é menos
contida do que se poderia esperar, apostando também em alguns recursos retóricos e
eventualmente imitando o tom recriminatório de Burgh. A diferença é que lamenta não sua
impiedade, mas sim de sua falta de razão. Em sua carta, denuncia que Burgh, ao se converter,
incorporou não apenas as crenças dos católicos, mas seu modo de operar via odium
109
G IV, 284-285; SPINOZA, B. 1988b, P. 359.
110
G IV, 286; SPINOZA, B. 1988b, P. 360.
111
G IV, 286.
112
G IV, 317.
182
theologicum113: Burgh maldiz e se enfurece com seus adversários, incapaz de criar uma
discussão em termos filosóficos como parece ter sido o caso de Oldenburg.
113
Retomarei o tema do ódio teológico no capítulo seguinte.
114
Cito a tradução de J. Guinsburg, Newton Cunha e Roberto Romano. Cf. SPINOZA, B. 2014b, P. 286; G IV,
320.
115
Ver EII, P. XLIII.
116
G IV, 320.
117
G III, 185.
183
razão. Tanto Vieira Neto quanto Sanz sublinham, nesta linha, seja, no caso do primeiro, a
distinção radical entre fé e razão elaborada por Spinoza ao longo da carta118, para fins de
estabelecimento da autonomia da razão119, seja, no caso do segundo, a aposta, a partir de uma
certa altura, “em uma linguagem radical e decididamente antirreligiosa”120. Já Edwin Curley
utiliza a correspondência com Burgh para refletir de modo amplo sobre a filosofia da religião
spinozista, e conclui que, tanto no TTP e no TP, em que Spinoza aventa a possibilidade de
uma religião nacional121, quanto na própria correspondência dirigida a Burgh, na qual procura
defender que a observação da piedade não é exclusiva a uma religião, há um tratamento mais
matizado da fé, que não parece se reduzir somente a um ímpeto antirreligioso.122 Para ele,
Spinoza claramente constrói, ao longo de sua obra, uma definição de religião universal cujo
fim último é senão a erradicação completa da superstição, ao menos a desativação de seu
potencial mais pernicioso. É certo que à teologia não é reservado, no spinozismo, qualquer
status científico, mas o conhecimento filosófico e o modo de vida que ele engendra são
definidos por Spinoza como frutos da religião verdadeira: a fé católica universal. Ainda, que
uma certa teologia reformada não engendre conhecimento, mas comportamento moral
adequado, ou seja, observação estrita da justiça e da caridade, estas a fazem curiosamente
reencontrar ao menos exteriormente com o modo-de-vida perpetrado pela filosofia. Elaborar
este conjunto de dogmas e estabelecer continuidades ocultas entre o discurso filosófico e o
discurso religioso emendado é, embora não dito, o que é efetivamente feito ao longo do TTP.
Há, realmente, uma separação radical construída na carta a Burgh, mas não entre fé e
razão, e sim entre razão e superstição travestida de religião: a verdadeira fé é, numa passagem
importante da carta, reintegrada ao exercício da razão.123 Esta concessão à exterioridade se dá
por meio de sua introdução reformada no interior da imanência. A crítica ao culto ao exterior,
ao fetiche da religião, à superstição, em suma, é seguida pela reintegração ao cenário
filosófico da fé tomada em seu núcleo verdadeiro e universal: a piedade comportamental. É
118
VIEIRA NETO, P. 2000, P. 467, P. 489, P. 493.
119
VIEIRA NETO, P. 2000, P. 493.
120
SANZ, V. 1999, P. 131.
121
TP, VIII, 46; G III, 345. Trataremos mais desenvolvidamente da discussão em torno da religião nacional no
Capítulo 5 deste estudo.
122
Curley avança uma interessante definição de superstição: é supersticiosa toda religião que sustenta que a
salvação só é possível no interior de si própria, e propõe que Spinoza pode ser classificado como um autor
pluralista. Ver CURLEY, E. “Spinoza’s exchange with Albert Burgh”. In : MELAMED, Y. ROSENTHAL, M.
(eds.), Spinoza's 'Theological-Political Treatise': A Critical Guide (Cambridge Critical Guides, pp. 11-28).
Cambridge: Cambridge University Press, 2010. doi:10.1017/CBO9780511781339.002.
123
G IV, 318.
184
justamente por isso que Spinoza insere, em sua carta, uma passagem da Primeira Epístola de
João que surge nada menos que na epígrafe do Tratado Teológico-Político e que atenta para a
piedade como critério da fé. “Nisso sabemos que permanecemos n’Ele e Ele em nós: porque
nos deu a partir do Seu espírito”124, diz João. Retiraremos todas as implicações filosóficas e
teológicas do recurso a esta passagem em outro momento deste estudo125, mas basta afirmar,
aqui, que ela é acionada por Spinoza para defender, com João, que “o único e certíssimo
signo da verdadeira fé católica e da verdadeira posse do Espírito Santo é [...] a justiça e a
caridade [...]”126. É na santidade da vida, guiada por estes princípios, que se identifica a
presença do Cristo: seu espírito é o único guia para o amor da justiça e da caridade. Todos os
aspectos exteriores ao comportamento piedoso, como aqueles que contribuem para a
perpetuação da Igreja como instituição, são supérfluos e resultado da superstição dos homens.
A prática de justiça e caridade está, por se identificar à verdadeira religião, acima de todas as
religiões históricas e seus mecanismos de culto e aparato.
Ora, que a Igreja católica reúna, como quer Burgh, uma quantidade maior de
indivíduos eruditos e piedosos explica-se facilmente por sua quantidade superior de adeptos
em relação às demais religiões.127 Ainda, Burgh tem de concordar, a honestidade não é
exclusividade da Igreja católica: ao contrário, em todas as religiões encontram-se indivíduos
piedosos.128 O que sustentou historicamente a Igreja, o que justifica sua antiguidade, é menos
a verdade de sua doutrina e mais a eficácia da superstição. Com o poder das narrativas
miraculosas, seus pregadores encantam a plebe e a viciam num circuito infernal de medo e
esperança: e a antiguidade da Igreja é nada mais que uma forma política e lucrativa de
subjugar os homens129. Um exame atento de sua história permitiria a Burgh constatar os
falsos ensinamentos dos pontífices, bem como suas astúcias para manter sua primazia entre as
religiões.130 Spinoza acusa Burgh de empregar o mesmo falso argumento dos hebreus, que
remetem à tradição e à antiguidade de seu culto para justificar sua verdade: por exemplo, ao
se considerarem como o povo mais antigo e escolhido, que detinha uma vocação exclusiva
em relação ao dom profético e, portanto, o monopólio da palavra escrita e não escrita de
124
Bíblia. 2018, P. 527. Primeira Carta de João, 4, 13.
125
No Capítulo 5.
126
SPINOZA, B. 2014b, P. 285; G IV, 318.
127
G IV, 317.
128
GIV, 317-318.
129
G IV, 322.
130
G IV, 324.
185
Deus.131 Apesar de concentrar sua crítica no aparato institucional da Igreja Romana, acusa o
Judaísmo e o Islamismo de aplicar os mesmos expedientes, sugerindo que a organização da
superstição num complexo teológico-político baseado na ignorância do povo não é
exclusividade de uma religião, mas de sim de um modo exteriorizado de considerar a fé, que
se fia apenas em seu caráter histórico e em suas propriedades supérfluas.132
A carta a Burgh, assim, nos oferece mais elementos na construção desta noção nunca
tão bem determinada de Cristo segundo a carne. Seu principal combate contra Burgh é em
relação aos aspectos exteriores da religião: suas cerimônias, regras de culto, dogmas,
narrativas tomadas literalmente, sua pompa e mecanismos de perpetuação no poder. Não
poderiam estes aspectos históricos e supérfluos ser remetidos à compreensão carnal do
Cristo? Quando Spinoza afirma para Oldenburg que, para salvar-se, não é necessário
conhecer o Cristo segundo a carne, mas apenas o Cristo segundo o espírito133, não está
pontuando justamente o caráter exterior dos elementos que circundam a religião, para além de
seu núcleo moral? O Cristo segundo a carne se insere no domínio da história: tanto da
história do Cristo – compreendida como miraculosa especialmente quanto aos fenômenos da
encarnação e ressurreição, como vimos na correspondência com Oldenburg – quanto do
Cristo como uma espécie de fundamento de uma série de práticas supersticiosas da Igreja
enquanto instituição – como vimos com Burgh. Se contra Oldenburg o Cristo segundo o
espírito era um antídoto à superstição individual de uma fé domesticada, contra Burgh ele
visa combater a superstição institucionalizada que perpetua o subjugamento do povo e o
odium theologicum para com os seguidores de religiões divergentes (ou de nenhuma
religião).
131
G IV, 321.
132
As críticas à Igreja Romana estão distribuídas por toda a carta, mas aparecem mais fortemente em G IV
316-318, 322-323, 324; SPINOZA, B. 1988b, P. 395-396, 399-400. A crítica ao judaísmo surge em G IV, 321;
SPINOZA, B. 1988b, P. 398 e ao islamismo em G IV, 322; SPINOZA, B. 1988b, P. 399.
133
G IV, 308.
186
importantes conceitos de sua filosofia da religião. É preciso que o Cristo mantenha esta
dualidade para que sua mensagem seja compreendida por todos. Será preciso insistir nas
implicações epistêmicas, morais e políticas desta oposição adiante, de modo a conquistar a
imagem de um Cristo spinozista que procure integrar pela via da desagregação, que insista
mais na violência do que na paz, e que conserve, em seu interior, uma tensão insolúvel entre
exterioridade e interioridade.
Em novembro de 1677, alguns meses após a morte de Spinoza, são publicadas suas
Obras Póstumas, contendo, além de textos como a Ética, o Tratado Político e o Tratado da
Emenda do Intelecto, um prefácio não assinado134. Por razões que talvez revelem o interesse
de determinada tradição em conferir certo ateísmo ou, no mínimo, um espírito antirreligioso
ao spinozismo, tal Prefácio, como nota Bernard Pautrat135, não vem despertando debate na
literatura especializada. No texto, além de uma brevíssima apreciação biográfica, a qual
omite sua origem judaica, o fato de ter sido vítima do chérem, concentrando-se
fundamentalmente em seu interesse por Descartes e no objetivo de perseguir a verdade,
biografia esta seguida de um resumo da Ética e da refutação de duas objeções feitas ao
Tratado Teológico-Político (a de que Spinoza confundiria Deus e a natureza e a de que seria
um fatalista; objeções respondidas pelo próprio Spinoza em sua correspondência136), Jarig
Jelles – aquele a quem se atribui a autoria do texto em questão – se esforça para conciliar
sobretudo os ensinamentos das Partes IV e V da Ética com certa versão particular do
cristianismo, em continuidade com o que já vinha defendendo em sua Profissão de Fé (texto
publicado apenas em 1684, após sua morte, mas submetido epistolarmente, em 1673, à
apreciação de Spinoza)137.
134
Para uma discussão detalhada acerca da autoria do prefácio, reenvio ao texto de Akkerman e Hubbeling:
“The preface to Spinoza's posthumous works, 1677, and its author Jarig Jelles (c. 1619/20-1683)”. In : Lias,
Lovaina, n. 6, p. 103-173, 1979.
135
A tradução francesa do Prefácio é preparada por Pautrat, publicada em 2017 pela Éditions Allia. Cabe notar
que sua tradução é feita a partir do latim, que é, em si, uma tradução, provavelmente de autoria de Louis Meyer,
do original em holandês. Tais questões são debatidas pelo próprio Pautrat na introdução do volume mencionado.
Ver JELLES, J. Préface aux Oeuvres Posthumes de Spinoza. Paris : Éditions Allia, 2017.
136
Ver as cartas 73 e 75.
137
Profissão de fé cristã e universal (1684) é um texto de Jarig Jelles escrito conforme um panfleto, redigido
após a publicação do Tratado Teológico-Político (1670), e que, portanto, se insere no contexto de polêmica
teológica suscitado por este último. Jelles envia seu texto a Spinoza em 1673, conforme a carta 48A da edição
de Maxime Rovere (SPINOZA, B. Correspondance. Paris: Flammarion, 2010). Seu objetivo é conciliar
cartesianismo e cristianismo. Na edição da correspondência de Spinoza preparada por Rovere encontram-se, no
187
[...] que aquilo que nosso Filósofo demonstra ser prescrito pela Razão a propósito da
Regra do bem viver e do soberano bem do homem convém escrupulosamente com o
que ensinaram o Salvador e os Apóstolos; que os dogmas Morais da Religião Cristã,
dito de outra forma, o que somos inclinados a fazer para ser salvos, aí se encontra
perfeitamente contido; enfim, que este estudo pelo qual nos esforçamos para
compreender a verdade dos artigos da Doutrina Cristã e de viver e agir segundo ela,
concorda em todos os pontos com a Escritura Santa e com a Religião Cristã.
(JELLES, J. 2017, P. 103).
Anexo IV, trechos do texto, mas uma tradução completa, acrescida do original em holandês, está disponível em
italiano, sob o título Professione della fede universale e cristiana, contenuta in una lettera a N.N. Belydenisse
des algemeenen en christelyken geloofs, vervattet in een Brief aan N.N. Roma: Edizioni Quodlibet, 2004.
138
Ver a correspondência com Blyenbergh, particularmente as cartas 19, 21 e 23.
139
Cf. JELLES, J. 2017, P. 61. Todas as passagens de Jelles (tanto do Prefácio quanto de seu Profissão de fé) são
traduções minhas a partir das edições francesas.
140
JELLES, J. 2017, P.63.
141
SPINOZA, B. 2010, P. 417.
142
JELLES, J. 2017, P. 71.
188
espiritual”143, deixa escapar o sentido preciso do adjetivo logikós que surge neste momento do
texto, o qual será central para Jelles em sua empreitada de associação entre cristianismo e
spinozismo mediados pela racionalidade. Culto racional ao invés de espiritual, prescrito e
fundado na razão.
A religião cristã – também denominada por Jelles de Nova Aliança –, que tem o
Cristo como mediador, consiste numa atualização das leis que Deus manifestou aos israelitas:
ao invés de gravá-las nas tábuas, como havia feito primeiramente, com o Cristo Deus propôs
uma espécie de compreensão intelectual das mesmas. Além disso, enquanto os ministros da
“Antiga Aliança” eram conduzidos pela “letra” ou pela “Escritura” – por autoridade, portanto
143
“Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo,
santo e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual”, cf. Bíblia de Jerusalém. 2016. P. 1986. Numa tradução
mais recente e de orientação laica, Frederico Lourenço verte a expressão por “culto razoável”, além de atentar,
em nota, para o emprego do adjetivo logikós no trecho: “Exorto-vos, por conseguinte, irmãos, pelos
compadecimentos de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja
esse o vosso culto razoável”. Cf. Bíblia. 2018. P. 201.
144
JELLES, J. 2017, P. 85.
145
Idem.
146
SPINOZA, B. 2010, P. 417.
189
–, os da Nova eram conduzidos pelo espírito, isto é, pelo intelecto ou pela razão.147 A missão
do Cristo, então, é a de fornecer tais ensinamentos aos homens “a fim de que eles não sejam
conduzidos cegamente, como os Judeus pela lei ou pelo mandamento, mas pela luz do
conhecimento”.148 O papel conceitual do Cristo deve ser compreendido em oposição ao papel
de Moisés: representante da lei e da Antiga Aliança. A função deste último era a de garantir
que os homens obedecessem à lei de forma externa, isto é, por simples força de autoridade;
ao passo que a do Cristo era propor uma conduta segundo “a luz da Graça e da Verdade”149.
Veja-se que a Nova Aliança não propõe que a lei seja completamente supérflua, mas a
atualiza, realiza ou aperfeiçoa, de forma que a obediência engendrada diferirá da primeira na
medida em que será consciente de si. Não é tanto o conteúdo da obediência que difere, mas
sim a forma de obedecer. Jelles ergue, então, duas definições de obediência: uma primeira,
externa, guiada apenas pela força da autoridade; outra, interna, que se justifica através do
conhecimento da verdade: obedece-se porque se compreende adequadamente que a Lei é o
melhor caminho a ser seguido, nos termos de Jelles, por um conhecimento da coisa150. No
mais, começa a se erguer, aqui, uma qualificação ligeiramente desfavorável do judaísmo, o
que poderia explicar, por exemplo, a omissão tendenciosa da origem de Spinoza no momento
biográfico do Prefácio; apreciação esta que, não parece demasiado pontuar, não é estrangeira
ao que faz o próprio Spinoza ao longo do TTP151 (ainda que, em seu caso, contrariamente ao
de Jelles, esta classificação inferiorizante não seja acompanhada de uma defesa explícita do
cristianismo).
Jelles também baseia sua interpretação do Cristo numa leitura dos testemunhos
daquele que designa por o apóstolo, isto é, Paulo. Em primeiro lugar, Paulo surge como
crítico da Lei: Cristo teria vindo para livrar-nos da Lei (Rm 7, 6), através de seu corpo a lei é
morta para nós (Rm 7, 4), a lei cessa uma vez vinda a fé (Ga 3, 23-25), a lei não foi instituída
para os justos (Ga 5, 22-23): tudo isto deve ser interpretado, seguindo Jelles, como uma
referência não apenas à Lei cerimonial, mas particularmente à Lei moral. Novamente, não se
147
JELLES, J. 2017, P. 79, 81.
148
JELLES, J. 2017, P. 81.
149
Idem.
150
JELLES, J. 2017, P. 87.
151
Sabe-se que alguns levaram às últimas consequências a inferiorização dos judeus e do próprio judaísmo
promovida por Spinoza ao longo do TTP; sobretudo a passagem de abertura do Capítulo III, dedicado a negar a
vocação e exclusividade dos hebreus quanto ao dom profético. Ver, para tanto, o provocativo livro de Jean
Claude Milner, Le sage trompeur. Libres raisonnements sur Spinoza et let Juifs. Court traité de lecture I, o qual
examinaremos em mais detalhes no capítulo seguinte.
190
trata de uma desobrigação completa da lei, mas sim do fato de que não se deve viver ou
operar tomando como princípio o que foi por ela instituído. Na polêmica acerca do critério de
salvação, Jelles, lendo Paulo, sustenta a excelência da fé em relação às obras comandadas
pela lei (sem que isto a elimine por completo). Ainda lendo Paulo, especialmente um trecho
da carta aos Efésios (4, 11-13), Jelles trata da edificação do corpo de Cristo. Apóstolos,
profetas, anunciadores da boa-nova, pastores, professores: todos devem encaminhar o povo à
apreensão de Deus da forma que Cristo o fez, devem conduzi-los a sua ciência; e, assim,
construir uma unidade, formar uma síntese que é o seu corpo. Reside neste corpo uma
espécie de ideal regulador da fé.
Por último, em concordância com a ideia de que o Cristo vem subscrever disposições
internas, Jelles propõe uma divisão entre a orelha externa e a interna. Esta divisão é como
uma modulação de uma contraposição mais ampla já surgida ao longo do Prefácio, que
opunha, de forma geral, o paradigma da exterioridade via Moisés (razão externa, verbo) e o
paradigma da interioridade via Cristo (razão interna, logos). Diz Paulo em Romanos 10, 17:
“Assim, a fé [vem] de [a] audição, a audição através de [a] palavra de Cristo”152. A fé
designada pelo termo audição (auditûs) não diz respeito ao ouvir dizer sensível, ou seja, à
orelha externa, mas ao compreender (intelligere), o que é feito pela orelha interna, em outros
termos, pelo intelecto ou pela razão. Fé é o mesmo que compreensão, portanto, e à dimensão
da exterioridade é sempre conferida a ideia de autoridade e obediência passiva; enquanto à da
interioridade a de compreensão e liberdade.
São inúmeros os pontos de contato entre aquilo que propõem Jelles e Spinoza. Como
não associar a descrição sucinta que faz da religião Cristã, baseada em dois dogmas
principais da Lei – amar a Deus com todo o coração, alma e espírito e amar ao próximo como
a si mesmo153 – com o credo mínimo avançado por Spinoza no capítulo XIV do TTP154? Além
disso, a resistência à exterioridade, traduzida numa crítica oculta à Moisés como propondo o
império da lei e uma salvação meramente comportamental e mundana, por oposição a uma
152
Cf. Bíblia. 2018, P. 196. O mesmo trecho, na tradução da Bíblia de Jerusalém: “Pois a fé vem da pregação e a
pregação é pela palavra de Cristo”, P. 1984.
153
JELLES, J. 2017, P. 71.
154
“Por sua vez, a doutrina evangélica não contém senão a simples fé: crer em Deus e reverenciá-lo ou, o que
vem a dar no mesmo, obedecer-lhe. [...] Depois, a própria Escritura também ensina com toda a clareza e em
muitas passagens o que cada um deve fazer para agradar a Deus, quando diz que toda a lei consiste unicamente
em amar o próximo.” Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 304; G III, 174.
191
salvação eterna e interna, que é aquela apresentada pelo Cristo, são interpretações deduzidas
com facilidade do mesmo texto (a resistência à exterioridade é, em geral, um topos do
spinozismo). Jelles e Spinoza compartilham, assim, uma interpretação sobre a religião Cristã,
uma cristologia e uma doutrina da salvação. A carta em que Spinoza afirma a Oldenburg155
que redigira o TTP para defender a liberdade de filosofar, combater os preconceitos dos
teólogos bem como as acusações de ateísmo, poderia ser pensada, ao invés de como uma
formulação branda a favor de uma posição secular, como, antes, uma afirmação secreta de
certo cristianismo – e Spinoza seria, portanto, um criptocristão, já que, ao contrário de Jelles,
isto só seria deduzido a partir das entrelinhas de seu texto.
A figura do Cristo, no entanto, não pode ser sem maiores dificuldades reduzida a um
simples elogio da interioridade, e a hipótese de um Spinoza criptocristão pode ser, neste
aspecto, no mínimo dificultada. Já desde o capítulo sobre a profecia, Spinoza adianta que, se
há os profetas comuns e Moisés, o mais excelente entre eles, há um terceiro ator que
ultrapassa a todos em termos de comunicação com Deus: o Cristo. Cristo não pode sequer ser
elencado entre os profetas, pela simples razão de que sua interlocução com Deus dispensava
qualquer intermediário corporal. Enquanto a Moisés Deus se manifestou através de uma
verdadeira voz, com Cristo ele se comunicou de mente a mente (de mente ad mentem156).
Quando o Cristo falava aos apóstolos os ensinamentos que intelectualmente obtinha, quem ali
falava era a própria Voz de Deus e Cristo era a sua boca157 (e aqui vem à mente a imagem do
Cristo como uma espécie de grande boca monstruosa que fala aos apóstolos e aos homens). A
sabedoria divina assumia em Cristo a natureza humana e Cristo era, portanto, o caminho da
salvação158.
155
Refiro-me à Carta 30.
156
“Por conseguinte, enquanto Moisés falava com Deus face a face, tal como um homem fala habitualmente
com um companheiro (isto é, por meio de seus dois corpos) Cristo comunicou com Deus de mente para mente”.
ESPINOSA, B. 2019, P. 137; G III, 21.
157
“Isto aplica-se, repito, unicamente aos profetas, que em nome de Deus prescreveram leis, não a Cristo.
Porque embora Cristo pareça também ter prescrito leis em nome de Deus, deve afirmar-se que ele teve uma
percepção verdadeira e adequada das coisas: Cristo, com efeito, não foi tanto um profeta como a boca de Deus”.
ESPINOSA, B. 2019, P. 184; G III, 64.
158
Cristo não é a encarnação de Deus, mas, antes, sua manifestação enquanto modo infinito imediato do
pensamento. Como já foi dito acima, na carta 73, Spinoza revela a Oldenburg que dizer que, no Cristo, Deus
assumiu uma forma humana, é tão absurdo quanto afirmar que um círculo tomou a forma de um quadrado. Ver,
sobre este tópico, o artigo de Yitzhak Y. Melamed intitulado “‘Christus secundum spiritum’. Spinoza, Jesus and
the infinite intellect”. In : STAHL, N. (ed.), The Jewish Jesus. Routledge, 2012. P. 140-151.
192
159
ESPINOSA, B. 2014a, P. 92.
160
ESPINOSA, B. 2014a, P. 93.
161
ESPINOSA, B. 2015a, P. 201.
162
“Ninguém pode olhar em direção (in-tuieri) ao sol, recordava em sonho a Cipião o espectro de seu glorioso
ancestral. Derivado desse verbo, o substantivo masculino intuitus não é antigo e só passou a ser usado a partir do
século IV (o alótropo intuitio é extremamente raro). Os Padres latinos utilizam-no sobretudo em sentido
figurado para designar um olhar do espírito que capta de imediato uma realidade em sua totalidade: assim como
os homens, no juízo final, terão a visão instantânea de sua vida inteira (Agostinho: mentis intuitu), também os
conceitos simples são apreendidos por um intuitus puro da alma”. Cf. FONTANIER, J.-M. P. 86.
193
fazer referência a uma experiência psicológica sem dar para ela maiores explicações),
pode-se, à primeira vista, sustentar sua associação ao modo como Cristo se comunicou com
Deus. O terceiro gênero é o único descrito, nas diversas referências, sem a necessidade de um
intermediário sensível como o ouvir dizer ou as experiências arbitrárias e sem o recurso a
uma operação matemática qualquer. É esta mesma imediaticidade intelectual que, parece,
encontramos no caso do Cristo.
163
MATHERON, A. 1971, P. 92-94.
194
Não parece haver problema, seguindo a leitura de Matheron, para conceder que o
Cristo compreendeu Deus adequadamente e que adaptou retoricamente sua mensagem.
Quando se trata de considerar as implicações para o problema da obediência, porém, o
paradoxo parece atingir um nível irrecuperável. Nas palavras de Matheron, “a proposição
relativa à salvação dos sábios, separada de suas premissas e ensinada a um auditório de
ignorantes, transforma-se necessariamente em uma proposição relativa à salvação dos
ignorantes”.165 A possibilidade de compatibilizar o Cristo ao spinozismo se vê, assim,
dificultada. Matheron se vê forçado a concluir a absoluta singularidade do Cristo, talvez até
num sentido ainda mais radical, uma vez que, pelas afirmações de Spinoza, sequer podemos
concluir se seu intelecto era mesmo humano.166 Talvez este paradoxo do Cristo – aquele da
necessária duplicação de sua mensagem – realmente se explique a partir da absoluta
singularidade de seu conhecimento de Deus. Vejamos em detalhes as palavras de Spinoza
acerca da epistemologia do Cristo:
E embora se compreenda que Deus pode, sem dúvida, comunicar-se aos homens
imediatamente, pois comunica a sua essência à nossa mente sem precisar de qualquer
meio corporal, todavia, para que um homem percebesse só pela mente certas coisas
que não estão contidas nos primeiros princípios do nosso conhecimento, nem deles
se podem deduzir, a sua mente teria de ser necessariamente superior e, de longe,
mais perfeita que a mente humana. Por isso, não creio que alguém tenha atingido
tanta perfeição, a não ser Cristo, a quem os preceitos divinos que conduzem os
homens à salvação foram revelados imediatamente, sem palavras nem visões. Deus
manifestou-se, portanto, aos apóstolos através da mente de Cristo, como outrora a
Moisés por meio de uma voz que vinha do ar. E, assim, à voz de Cristo, tal como
àquela que Moisés ouvia, pode chamar-se a voz de Deus. Neste sentido, podemos
também dizer que a sabedoria divina, isto é, a sabedoria que é superior à do homem,
assumiu em Cristo a natureza humana e Cristo foi o caminho da salvação. (Grifos
meus. ESPINOSA, B. 2019. P. 137; G III, 20-21).
164
MATHERON, A. 1971, P. 94-114.
165
Tradução minha de MATHERON, A. 1971, P. 146.
166
MATHERON, A. 1971, P. 148, P. 261.
195
Uma segunda leitura do trecho, porém, iria na direção de questionar tais associações
tão descomplicadas. Esta descrição tão fluida, que serviria tão acuradamente para opor termo
a termo dois paradigmas de teologia-política – uma baseada na exterioridade da lei e outra na
interioridade do conhecimento –, muito embora parecesse se adequar com aquilo que
debatemos acerca da exclusão da exterioridade no spinozismo e também com a cristologia de
Jelles, parece ruir se confrontada com outras passagens que ainda tematizam o Cristo. Numa
passagem mais adiante daquela que acabamos ler, Spinoza admite que “ninguém, além de
Cristo, recebeu qualquer revelação de Deus sem o recurso à imaginação, quer dizer, a
palavras ou imagens [...]”168. E o exemplo adâmico adverte:
167
ESPINOSA, B. 2019, P. 223; G III, 103.
168
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 138; G III, 21.
196
O que este trecho revela é, simplesmente, que Cristo agiu também como profeta. Ou
seja: não satisfeito em dar ensinamentos como um legislador ou príncipe, no tom exigido pela
lei, admite-se que até mesmo se comunicou obscuramente, por meio de parábolas, quando
necessário. Isto ainda não faz vir abaixo a distinção entre Moisés e Cristo, mas a complica: o
que parece realmente distingui-los não é bem a exterioridade de um e a interioridade de outro,
mas a capacidade do Cristo de, no paradigma da interioridade, assumir as feições ou mesmo
as exigências do paradigma contrário. O Cristo, dada a sua natureza mesma de contato
imediato com Deus, é antes de tudo, no spinozismo, uma figura plástica, capaz de adaptar-se
às necessidades de seus interlocutores. Não parece, então, conforme vinha sustentando Jelles,
que o Cristo é simplesmente a figura da interioridade e, mais ainda, que a salvação pela fé e a
consequente recusa da exterioridade que ela engendra possa ser descartada tão rapidamente.
Mais: o corpo de Cristo está longe de ser uma síntese. A imagem que resulta da análise
destes trechos é, antes, a de um corpo internamente fraturado, que assume em seu interior
teologias-políticas não apenas distintas, mas mesmo opostas. Assim, talvez Spinoza não seja
um criptocristão; a não ser que estejamos dispostos a classificar esta estranha imagem que
constrói do Cristo de cristianismo. Esta classificação só seria admitida se pudéssemos pensar
uma espécie de elogio do Cristo como figura disruptiva, que guarda em si uma ambiguidade e
uma possibilidade de adaptação a contextos diversos. Em todo o caso, e é isto que nos
importa aqui, não se trata do mesmo gênero de cristologia que encontramos em Jelles.
169
LACROIX, J. Spinoza et le problème du salut. Paris : PUF, 1970. P. 103, 109-110.
170
A razão não ensina por si só que a obediência é uma via possível para a salvação: somente o testemunho da
Escritura o confirma. Pode-se supor, então, que fora este o conhecimento do Cristo, a revelação adequada que
obteve. Conforme o que Spinoza afirma na nota XXXI: “Isto é, que para a salvação ou beatitude seja suficiente
abraçar esses decretos divinos como regras ou mandamentos, e que não é necessário concebê-los como verdades
eternas, não é a razão mas a revelação que o pode ensinar, como se vê pelo que se demonstrou no capítulo IV.”
ESPINOSA, B. 2019, P. 319; G III, 263.
197
exterioridade convivem nele. Estamos de acordo, é certo, que o Cristo é esta figura múltipla
que guarda em si diversas possibilidades de salvação – mas será que, pelo mesmo argumento,
não poderíamos dizer que, ao invés de ser um signo da síntese do sistema, o Cristo não é
justamente o oposto, isto é, a encarnação mesma de sua desagregação? Não é apenas por
uma exigência metodológica por supressão das contradições que, com o olhar enviesado,
tentamos impor ao Cristo este papel unificador? Talvez uma nova postura metodológica,
neste momento, seja capaz de render conclusões mais interessantes: ao invés de dar ao Cristo
uma função apaziguadora, ao contrário, poderíamos utilizá-lo para multiplicar as contradições
até seu paroxismo. Passaríamos a nos perguntar, a partir de então, quais são as implicações
teológico-políticas da aceitação dessa fratura que é a do Cristo, procurando manter a
oposição entre interioridade e exterioridade como um par produtivo a partir do qual tais
conclusões possam emergir.
171
Mt 13, 2-3: “E reuniram-se em direção a ele muitas multidões, de tal forma que, subindo para um barco, se
sentou e toda a multidão ficou de pé na praia. E disse-lhes muitas coisas, falando em parábolas [...]” (Bíblia.
2017b, P. 102) e Mt 13, 10-11: “E aproximando-se dele os discípulos disseram-lhe: ‘Por que razão lhes fala em
parábolas?’. Ele, respondendo, disse-lhes: ‘Porque a vós foi dado a conhecer os mistérios do reino dos céus; a
eles não foi dado’”. (Bíblia. 2017, P. 102).
172
Grifo meu. Bíblia. 2017, P. 104; Mt 13, 34.
198
entre pregação exotérica e ensinamento esotérico: “Com muitas parábolas como essas,
pregava-lhes a palavra, conforme eram capazes de compreender. Sem parábolas não lhes
falava; porém em particular explicava aos discípulos”173. Embora seja complicado estabelecer
alianças entre os discursos parabólicos de Lucas e os de Mateus e Marcos – estes últimos
dotados de estrutura expositiva particularmente similar –, é verdade que também nele um
questionamento sobre a função e o destino das parábolas surge: “Pedro disse-lhe: ‘Senhor, é
para nós que dizes essa parábola, ou é para todos?’” (Lc 12, 41). De todo modo, não é
simples estabelecer decisivamente que as parábolas se dirigem apenas à multidão
não-iniciada, uma vez que, nestes exemplos, seus interlocutores e suas funções oscilam.
Segundo Roland Barthes174, a parábola é uma variação do exemplum tal como descrito
pelos antigos. O exemplum procede “de um particular a outro particular pelo elo implícito do
geral”175. É como um argumento por analogia, que insiste nas semelhanças entre dois objetos
para fins persuasivos. De caráter metafórico e paradigmático, pode assumir formas variadas:
“uma palavra, um fato, um conjunto de fatos e a narração desses fatos”176 e subdivide-se em
real ou fictício. No interior da variação ficcional, a parábola constitui uma espécie de
comparação curta, por oposição à fábula, que relata um conjunto de ações. Observamos
diversas destas propriedades nas parábolas cristológicas: o componente metafórico, cujas
imagens simples e rurais – a semente, o semeador, o trigo, o joio, o grão de mostarda, a terra.
etc – se articulam em prol de uma mensagem edificante de caráter universalizável. Além das
imagens, há uma narrativa construída com elementos vagos e inventados, personagens
ficcionais de uma breve história. Da mesma forma, a relação de semelhança é insistentemente
repetida na fórmula de algumas parábolas de Jesus, sobretudo aquelas que versam sobre o
reino dos céus: “Assemelha-se o reino dos céus a...”177, “O reino dos céus é semelhante a...”178
, “semelhante é o reino dos céus...”179 e “É como...”180.
173
Bíblia. 2017, P. 174; Mc 4, 33-34.
174
BARTHES, R. “A antiga retórica”. In: BARTHES, R. 2001, P. 55-56.
175
Ibid.
176
BARTHES, R. 2001, P. 55.
177
Bíblia. 2017, P. 103; Mt 13, 24.
178
Ibid; Mt 13, 31.
179
Bíblia. 2017, P. 104; Mt 13, 44.
180
Bíblia. 2017, P. 173; Mc 4, 31.
199
retóricos não seriam mais eficientes para transmitir o Verbo divino? Jesus justifica o uso das
parábolas para as multidões afirmando que a elas não foi dado conhecer o mistério do reino
dos céus – “a vós é dado conhecer o mistério do reino de Deus; mas, para os que estão de
fora, tudo é feito em parábolas”181, recuperando nisto o profeta Isaías: “olhando, olhem e não
vejam; e ouvindo, ouçam e não compreendam,/não vão eles converter-se e [tudo] lhes seja
perdoado”182. Mateus acrescenta que o uso das parábolas tem a ver com o cumprimento da
profecia de Isaías, que proclama: “abrirei em parábolas a minha boca/e proclamarei coisas
ocultas desde a criação do mundo”183. A parábola corresponde, em parte, à obediência a uma
autoridade outrora estabelecida. Além disso, há algo sobre a manutenção de seu mistério.
Como testemunham os discípulos, de fato o conteúdo da parábola é de difícil acesso, pois
nem mesmo eles foram capazes de absorvê-lo, exigindo uma explicação suplementar lançada
apenas em contexto fechado. Assim, talvez seja necessário buscar a razão de ser da parábola
menos numa tentativa de abertura de diálogo e mais na construção de um mistério, o qual
poderá ser útil para conquistar admiração e tocar o ânimo das multidões intrigadas.
Há duas ocorrências da expressão parábola nesta carta: “[...] e, pela mesma razão, os
profetas forjaram parábolas [parabolas] [...] ”186 e “adaptaram sua linguagem a essa história
181
Bíblia. 2017, P. 172; Mc 4, 11.
182
Ibid. Mc 4, 12.
183
Bíblia. 2017, P. 104; Mt 13, 35.
184
Carta 19.
185
G IV, 92-93.
186
SPINOZA, B. 2014b, P. 108; G IV, 93.
200
187
SPINOZA, B. 2014b, P. 109; Ibid.
188
Carta 20.
189
G IV, 118b.
201
um fim com este ensinamento, é contraditório, para Blyenbergh, supor que este fim seja
induzir os homens ao erro: em primeiro lugar porque se trata de um Deus perfeito, em
segundo pois ele não teria desejado que seu Verbo fosse desvirtuado parabolicamente.
Positivamente, Blyenbergh acredita que a Sagrada Escritura conserva em si uma “verdade
infalível e divina”190, de modo que seria necessário tomar os discursos parabólicos
literalmente, ou seja, como narrativas reais, sob pena de introduzir fraquezas e contradições
em Deus. Deus é perfeito o suficiente para determinar o melhor método para se comunicar
com o vulgo, de acordo com sua compreensão, sem necessitar introduzir falsificações em seu
Verbo191.
190
SPINOZA, B. 2014b, P. 124; G IV, 118b.
191
G IV, 120b.
192
SPINOZA, B. 2014b, P. 136; G IV, 132.
193
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 504.
202
perfeito e um recurso à causalidade final –, Spinoza sustenta que seu único fim é incutir o
amor a Deus no povo, e que, para tanto, a parábola e demais recursos estilísticos que
descrevem Deus antropomorficamente são meios eficientes. A oscilação entre classificar a
parábola ora como discurso obscuro194, ora como claro195, explica-se a partir de qual ponto de
vista tomamos: aos olhos do filósofo, a parábola é sempre obscura e, como quer Blyenbergh,
travestida, impostora; para aquele que compreende corretamente o teor da Escritura, seus
meios e seu fim, ela é um instrumento linguístico para fins de clareza. Blyenbergh, além de
não possuir um conhecimento correto da verdadeira filosofia, não é capaz de distinguir
adequadamente entre os dois livros: o da Natureza, por um lado, o da Escritura, por outro,
agindo dogmaticamente como aquele que domestica o segundo livro ao primeiro.
É, além disso, evidente a razão por que os profetas perceberam e ensinaram quase
tudo por parábolas e enigmas e exprimiram sob forma corpórea tudo o que é
espiritual: é que, assim, as coisas adequam-se melhor à natureza da imaginação. E já
não é para admirar o fato de as Escrituras ou os profetas falarem tão imprópria e
obscuramente do espírito ou da mente de Deus, como nos Números, cap. XI, 17, nos
Reis, liv. I, cap. XXII, 2, etc. Ou de Miqueias ver Deus sentado, enquanto Daniel o vê
como um ancião vestido de branco e Ezequiel como uma chama; de os discípulos de
Cristo terem visto o espírito santo como uma pomba que descia e os apóstolos o
verem como línguas de fogo; ou, finalmente, de Paulo, antes da conversão, ter visto
uma grande luz. Tudo isso está, com efeito, plenamente de acordo com as
194
G III, 28-29. Analisaremos a obscuridade das parábolas em seguida.
195
“E era uma expressão suficientemente clara daquilo que, em nome de Deus, o profeta devia fazer conhecer
nessa ocasião (não se tratando de ensinar as sutilezas dogmáticas da teologia).” Cf. SPINOZA, B. 2014b, P. 137;
G IV, 132.
203
Observa-se que o recurso a parábolas e demais artifícios de expressão que têm origem
na imaginação é distribuído igualmente entre profetas e apóstolos, entre o Antigo e o Novo
Testamento. O componente da imaginação é novo em relação à correspondência com
Blyenbergh: parece acrescentar uma definição técnica ao que se pretendia anteriormente
exprimir. Com a imaginação, Spinoza traz também a associação com o corpo, quer dizer, com
a maneira específica de conhecer que diz mais sobre os preconceitos e estados particulares do
profeta/apóstolo/narrador do que sobre a verdade da coisa. Isto confirma nosso diagnóstico
anterior: a parábola é não só um mecanismo expressivo, mas um meio de pensamento. A
parábola é o paradigma epistêmico principalmente dos profetas, pois pensar parabolicamente
é pensar imaginativamente. Os profetas falavam em parábolas e enigmas pois assim
conheceram Deus: sem qualquer má-fé. Do ponto de vista dos ganhos em relação à
correspondência, o trecho traz uma nota característica nova: o componente da obscuridade. A
parábola é uma espécie de enigma, um falar impróprio, cujo fim talvez seja menos tornar
acessível um conteúdo e mais tocar a imaginação de maneira mais potente. Permanecer no
mistério, portanto.
Em seguida, o termo parábola, ainda no TTP, surge para classificar “esta história ou
parábola [parabolam] do primeiro homem”196. Spinoza refere-se à narrativa disposta em
Gênesis 2-3 acerca de Adão, Eva e o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Segundo ele, esta parábola tem por objetivo ensinar que não se deve procurar o bem por ser
oposto ao mal, mas sim por ser o bem pura e simplesmente. Ou seja, Deus teria ensinado a
Adão a amar o bem por ele mesmo, agindo de ânimo livre e perseverante. Este princípio
básico, que concorda inteiramente com a lei divina natural que se pretende expor no capítulo
em questão, poderia servir de base para a leitura de toda a parábola do primeiro homem, mas
Spinoza hesita em fazê-lo. Seja por não estar certo de que este seja o objetivo do autor da
parábola, seja por conta da discussão em torno de se esta narrativa deve ser considerada como
uma parábola ou como “uma narração pura e simples”197. Com isto, parece ter em mente
aqueles que investem a narrativa do Gênesis de realismo, ou seja, que tomam a Escritura em
seu aspecto literal. Em consonância com a disputa realismo versus antirrealismo das
196
ESPINOSA, B. 2019, P. 185; G III, 66.
197
Ibid.
204
narrativas bíblicas, Spinoza refere-se ao livro de Jó198, sobre o qual há uma discussão em
torno de sua autoria e veracidade. Para alguns, trata-se de uma história verdadeira; para
outros, não passa de uma parábola escrita pelo próprio Moisés. Recupera-se, aqui, o sentido
de narrativa inventada, não-literal, em marcha na classificação da parábola do primeiro
homem no Gênesis. Assim, termina por revelar mais notas características de sua compreensão
da parábola: uma narrativa ficcional, quer dizer, inventada, que tem por fim comunicar
obscuramente um ensinamento adaptado às condições específicas do corpo e da imaginação
do narrador.
198
G III, 144.
199
G III, 71-72.
200
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 875.
201
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 885.
202
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 886.
203
ESPINOSA, B. 2019, P. 192; G III, 72.
205
204
Pode ser que Spinoza se integre à linha interpretativa de orientação pré-iluminista e cientificista neste
aspecto. Conforme identifica Horsley (2004, P. 13), estes leitores recusam o que há de fantástico no
procedimento cristológico em prol de uma suposta autenticidade secular. Tentaremos mostrar, adiante, que,
insistindo na fratura introduzida pelo discurso parabólico, é possível matizar a leitura spinozista tanto do Cristo
quanto dos apóstolos – pois estes, diferentemente do Cristo, são classificados por Spinoza como profetas.
205
Mc 1, 23-27; 32-34; 39.
206
devida seriedade ao tema da parábola tal como ela surge nos evangelhos sinópticos. A única
passagem em que se refere ao uso das parábolas por parte do Cristo, em todo o TTP, é aquela
a que já aludimos anteriormente: se o Cristo eventualmente recorreu a parábolas, foi por
causa da ignorância do povo, e o fez apenas à multidão inculta, jamais aos apóstolos, aos
quais procurava sempre desvelar seu sentido oculto e conversar conforme a lógica das
verdades eternas. No trecho, Spinoza procura ainda distinguir a parábola cristológica da
parábola profética: Cristo falava “um pouco mais claramente do que os outros profetas”206, e,
se recorreu às parábolas, não foi tão inocentemente quanto eles. Os profetas assim se
comunicavam porque assim compreendiam: sabemos que o Cristo, ao contrário, conheceu
Deus de mente a mente e não parabolicamente. Portanto, o recurso a parábolas era, de sua
parte, deliberado, uma vez que estava numa condição epistemicamente privilegiada. Talvez
se possa retirar desta expressão mais clara o fim necessariamente edificante de suas
parábolas, o qual nem sempre está presente na parábola profética. Muitas vezes, como no
caso do exemplo de Miquéias, a parábola tinha por fim uma previsão, um aviso simples e
particular de Deus em relação a um homem singular, enfrentando uma situação singular. A
parábola cristológica procura, ao invés disso, através de uma narrativa mais desenvolvida,
transmitir verdades morais de caráter universal. Talvez seja por isso que, para ela, a dúvida
sobre seu realismo ou antirrealismo sequer se instaure: a parábola do semeador, da semente
que cresce por si só ou do grão de mostarda são claramente ficções relativas a personagens
enfrentando situações gerais. Esta suposta maior clareza de objetivos e de expressão, porém,
contrasta com o fato de os discípulos de Jesus frequentemente lhe exigirem explicações
posteriores: à multidão, no entanto, resta apenas o mistério, que encoraja a admiração.
Se Cristo fazia-se às vezes de Deus, sendo sua própria boca207, os apóstolos agiam
como doutores que ensinavam sua doutrina à multidão. Adotaram, por sua vez, formas de
argumentar particulares, tendo-se especializado no gênero epistolar. No interior destas cartas,
empregavam também parábolas. Embora sua postura para com as parábolas cristológicas
beire o silêncio, Spinoza dedica um capítulo inteiro do TTP ao exame da estilística dos
apóstolos, concentrando-se num em particular: Paulo. Analisar seu modo de proceder pode
nos beneficiar de um conhecimento exato da distinção entre as parábolas proféticas e as
206
ESPINOSA, B. 2019, P. 184; G III, 65.
207
G III, 64.
207
Paulo contemporâneo
208
Cuja tradução foi publicada no Brasil em 2009. Ver BADIOU, A. São Paulo. A fundação do universalismo.
Tradução de Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2009.
209
BADIOU, A. 2009, P. 14.
210
Ibid.
211
BADIOU, A. 2009, P. 21.
212
BADIOU, A. 2009, P. 22.
208
“conversão”213 se operou para além do convencional. Não houve uma figura mediadora que
lhe incutiu o Evangelho, não houve uma condução por uma entidade exterior. Paulo funda-se
a si próprio como apóstolo porque foi tomado pelo acontecimento da ressurreição do Cristo
que também fez nele acontecer sua própria ressurreição – produção? – enquanto apóstolo: por
isso parte apenas de sua própria fé incondicionada, fazendo de um evento pessoal a marca da
impessoalidade de seu ensinamento.214 O período de quatorze anos da peregrinação paulina,
tanto quanto os territórios que escolheu visitar, revelam uma prática geográfica de
descentramento, a qual é efeito de sua universalidade.215 Em suas intervenções epistolares,
dirigidas a um conjunto de fiéis ocupando um território, toma-os como representantes da
totalidade da região. De um pequeno grupo de cristãos a todos os cidadãos, de cidadãos para
a humanidade inteira, é a operação da universalidade que se impõe.216 As escolhas das
imagens que permeiam sua retórica, enfim, à diferença da paisagem rural evocada nas
parábolas do Cristo, é urbana e cosmopolita, reivindicando, mais uma vez, este lugar amplo
de cidadão do mundo.217 É, segundo Badiou, o exercício político em sua forma evidente:
Paulo jamais perde de vista, por mais longe que esteja, os núcleos de fiéis cuja
criação ele estimulou. Suas epístolas são simplesmente intervenções na vida desses
núcleos e têm tudo da paixão política. Luta contra as divisões internas, evocação de
princípios fundamentais, renovação da confiança nos dirigentes locais, análises de
questões litigiosas, exigência imperativa de uma ação de proselitismo sustentada,
organização das finanças... Nada falta daquilo que um ativista de qualquer causa
organizada pode reconhecer como as preocupações e as veemências da intervenção
coletiva. (BADIOU, A. 2009, P. 30)
213
Badiou questionará se o uso da expressão “conversão” é adequado para tratar do caso paulino, considerando
as razões que seguem. Ver BADIOU, A. 2009, P. 26.
214
BADIOU, A. 2009, P. 27-28.
215
BADIOU, A. 2009, P. 28.
216
BADIOU, A. 2009, P. 29.
217
BADIOU, A. 2009, P. 30.
218
BADIOU, A. 2009, P. 32-33.
209
Em sua práxis, Paulo parece se distinguir tanto do judeu quanto do grego, tomados,
por ele, não como um povo existente, tampouco como religião institucionalizada, mas sim
enquanto “disposições subjetivas”221. Para dar conta delas, Badiou elabora uma teoria dos
discursos222. O sujeito-judeu tem como nota característica central de seu discurso o recurso ao
signo. É, portanto, a figura de autoridade do profeta que melhor o representa. Há uma
conexão intrínseca com a tradição e, naturalmente, com o império da Lei e das práticas já
estabelecidas. É o discurso da transcendência, daquilo que escapa à totalidade da natureza e
se impõe como exclusividade e exceção vocacional. Já o sujeito-grego é mais bem acolhido
pela figura do sábio ou do filósofo. Contra a transcendência da exceção judaica, a imanência
da totalização natural grega. A racionalidade da argumentação é seu principal recurso
retórico: o logos. Paulo projeta, então, uma associação de fundo entre os dois discursos: nos
dois casos, há dominação operando, quer dizer, a manutenção da figura do mestre.223 Que ela
219
1Cor 7, 19. Bíblia. 2017, P. 236.
220
O tornar inoperoso é exatamente a definição do messiânico para Agamben, que também dedicou um livro à
análise política da figura paulina, embora com objetivos diversos daqueles de Badiou. Apesar de parecerem
concordar neste aspecto da desativação da lei, suas posturas de fundo são radicalmente distintas, por razões a
serem esclarecidas ao fim desta seção. Em suma, Badiou deseja recuperar o sentido político da mensagem
paulina inutilizando seu caráter teológico, ao passo que para Agamben trata-se justamente de subverter o
teológico internamente – daí sua insistência no messiânico. Agamben dedica um rápido momento de crítica ao
dito “universalismo” paulino que Badiou pretende construir, questionando os limites de uma “produção do
Mesmo” (AGAMBEN, G. 2016, P. 68) em Paulo. Sobre a questão da inoperosidade, ver especificamente a
Quinta Jornada, cf. AGAMBEN. G. 2016. P. 113-117.
221
BADIOU, A. 2009, P. 52.
222
Ao longo de todo o capítulo 4 de seu livro sobre São Paulo.
223
BADIOU, A. 2009, P. 53.
210
implique, no primeiro caso, uma obediência à Lei e, no segundo, ao cosmos, evidencia que
nenhuma das duas pode se prestar como projeto de universalidade. Neste aspecto, avança
Badiou, o discurso cristão é totalmente ilegal, fundado não pela autoridade do signo,
tampouco por aquela da totalidade, mas pela instabilidade inerente ao acontecimento.
Enquanto o discurso do sábio pretende obter uma verdade, conhecer algo já dado, o
apóstolo visa instituir uma nova verdade, introduzir uma possibilidade e desativar o que já
está dado.225 Face à dinâmica do discurso paulino, o discurso filosófico só pode zombar: foi
exatamente esta a reação que obteve de seu público quando tentou pregar a ressurreição dos
mortos aos filósofos atenienses no Areópago, tal como relatado em Atos.226 Badiou faz
referência ainda a um quarto gênero discursivo, também diferente do cristão, que se
224
BADIOU, A. 2009, P. 55.
225
BADIOU, A. 2009, P. 56.
226
“Ouvindo eles [acerca da] ressurreição dos mortos, uns zombavam, mas outros disseram: “iremos te ouvir
sobre isto outra vez”. Dessa maneira Paulo saiu do meio deles. Contudo, alguns homens, aderindo a ele,
acreditaram, entre os quais Dionísio, o Areopagita; e uma mulher de nome Dâmaris; e outros com eles.” At 17,
32-34. Bíblia. 2017, P. 105.
211
Spinoza também produziu um discurso sobre Paulo e lidou com questões que se
entrelaçam com aquelas de Badiou. Na verdade, analisou não apenas a figura de Paulo, mas a
227
BADIOU, A. 2009, P. 63.
228
BADIOU, A. 2009, P. 59.
229
BADIOU, A. 2009, P. 76.
212
do apóstolo em geral, embora seja notável sua preferência por ele. Além dele, examina
sucintamente João230 e Tiago231, o que quase nos autoriza a tornar intercambiáveis as
interpretações spinozistas para o apóstolo em geral e para Paulo em particular. No capítulo XI
do TTP, em que procura refletir sobre a especificidade e função do discurso apostólico,
declara já de início: “Ninguém que leia o Novo Testamento poderá pôr em dúvida que os
apóstolos foram profetas”232. A distinção entre duas vias de pregação remete ao próprio
Paulo: “Irmãos, se eu agora for encontrar convosco falando-vos em línguas, que vos
aproveitarei, a não ser que vos fale ou por revelação ou por conhecimento ou por profecia ou
por doutrina?”233.
Falar como um profeta, quer dizer, expor por revelação, é pregar a palavra através de
uma autoridade. A profecia inscreve-se no domínio da transmissão passiva da mensagem. O
profeta é um mediador no sentido de reproduzir aquilo que imagina ser a ordem de Deus sem
refletir sobre ela, valendo-se, para tanto, de recursos audiovisuais.234 Há também uma
particularidade na própria caracterização de Deus: o Deus dos profetas legisla e decreta,
impondo-se através de seu poder absoluto.235 Na profecia trata-se sobretudo de incutir
dogmas ao vulgo: e se, como vimos, há um gênero específico de parábola profética, pode-se
concluir que ela tem por finalidade não incitar à reflexão, mas incutir a obediência. Há um
vínculo não-dito entre imaginação – conhecimento estabelecido através da dinâmica corporal
– e autoridade que terá de ser investigado em mais detalhes quando formos analisar o Estado
hebreu236: o caso em que o discurso profético forneceu as bases de uma organização social
complexa. Profetas como Moisés – o mais excelente entre eles –, Jeremias e outros,
precisavam atestar a todo tempo a validade de seu discurso por meio de um signo
confirmatório exterior237. Por isso, a estrutura da revelação profética, seja ela oral ou escrita –
230
João é importante para que Spinoza elabore sua concepção de justiça e caridade, embora não faça uma análise
de sua metodologia expositiva, como o faz com Paulo. Uma citação de sua primeira epístola surge na epígrafe
do TTP, cuja função analisaremos no capítulo 5. Para as menções a João ao longo do TTP, ver G III, 171,
175-176.
231
Tiago é considerado à luz de sua posição a favor das obras na polêmica da salvação, posição esta que o pôs
em disputa direta com Paulo. Assim como João, interessa a Spinoza seu conteúdo doutrinário muito mais do que
seu estilo. Ver G III, 157, 175.
232
ESPINOSA, B. 2019, P. 279; G III, 151.
233
1Cor 14, 6-7; Bíblia. 2017, P. 256.
234
Spinoza aborda extensamente a noção de profecia e de profeta nos dois primeiros capítulos do TTP. Não é de
nosso interesse discutir estas questões neste momento: retornaremos a ela no capítulo seguinte.
235
G III, 152.
236
O que será feito no Capítulo 4 deste estudo.
237
G III, 151.
213
pois também se profetizou por meio de epístolas, como a de Elias a João – é a do decreto.
Paradigma da exterioridade, portanto.
À diferença do profeta, porém, o apóstolo não decreta, mas ensina. Aqui Spinoza
começa a se afastar sem retorno da perspectiva de Badiou, para quem o discurso apostólico
jamais poderia se assemelhar ao filosófico. O uso da razão torna aquele que ensina um
doutor, que prega não segundo a ordem de um terceiro, mas conforme seu próprio
discernimento.238 Neste caso, o apóstolo não é um mediador: muito embora possa comunicar
um ensinamento que recebeu do Cristo, não necessita atestar seu lugar privilegiado de
mensageiro a todo tempo, tampouco justificar sua metodologia própria. Analisando o estilo
das epístolas paulinas, Spinoza chama a atenção para as “expressões que denotam incerteza e
perplexidade”239, como em Rom 3, 28 – “pois consideramos ser...”240 e 8, 18 – “pois eu
considero que...”241, além do emprego recorrente da primeira pessoa. Ainda que sentenças que
atestem o mandamento divino surjam ao longo das epístolas, sua referência é apenas o
conteúdo da doutrina ensinada por Cristo na montanha, e não a uma ordem exteriormente
revelada por Deus. A metodologia expositiva dos apóstolos, consequência de sua
epistemologia própria, consiste em discutir, através do raciocínio, com seus interlocutores –
ao invés de apenas reproduzir passivamente um conteúdo que tomaram por ouvir dizer. Paulo
ensina por meio de argumentos e demonstrações, optando pela luz natural ao invés da
revelação:
Tanto a maneira de falar, como a maneira de discutir, dos apóstolos nas epístolas
indicam, com toda clareza, que elas não foram escritas por revelação e mandato
divino, mas apenas pelo seu próprio discernimento natural, e não contêm senão
advertências fraternas à mistura com uma delicadeza que é completamente alheia à
autoridade dos profetas, tal como aquele pedido de desculpa de Paulo, na Epístola
aos Romanos, cap. XV, 15: escrevi em termos um pouco mais agrestes, irmãos. O
mesmo se pode, aliás, concluir do fato de não se ler em parte alguma que os
apóstolos tenham recebido ordens para escrever, mas unicamente para pregarem por
toda parte aonde fossem e confirmarem as suas palavras através de sinais. Porque a
sua presença, tal como os sinais, eram absolutamente necessários para converter e
confirmar os gentios na religião, como o próprio Paulo expressamente indica na
Epístola aos Romanos, cap. I, 11: porque – diz – desejo muito ver-vos, para repartir
convosco o dom do Espírito, a fim de que sejais confirmados. (ESPINOSA, B. 2019,
P. 281-282; G III, 153)
238
G III, 153.
239
ESPINOSA, B. 2019, P. 279; G III, 151.
240
Bíblia. 2017, P. 174.
241
Bíblia. 2017, P. 189.
214
Como não se orientavam por ordens, os apóstolos possuíam maior liberdade para
adotar diversas metodologias, e a maior prova disso está justamente em sua manifesta
discordância. Enquanto Paulo sustentava que a salvação tem origem apenas na graça de Deus,
não importando as obras, mas somente a fé, Tiago, ao contrário, sublinhava a proeminência
das obras em relação à fé242. Também há liberdade quanto à movimentação espacial: podiam
escolher os locais onde fossem pregar, o que poderia ser motivo para contendas no interior do
grupo. Aos profetas, no entanto, pouco ou nenhum espaço era reservado para a livre
movimentação intelectual ou espacial, de modo que, quando se locomoviam, era
expressamente por envio e ordem divinas. O próprio endereçamento da mensagem
determinava condições de pregação muito específicas: enquanto os profetas foram chamados
para pregar a um povo determinado, numa determinada circunstância, a orientação da
pregação apostólica era universal: por isso não precisavam que lhes fosse revelado o local da
pregação tampouco o conteúdo da mesma. É certo que as dissonâncias de fundamento não
poderiam ser radicais a ponto de promover total afastamento em relação à concepção mesma
da religião. Ao mesmo tempo, o dissenso provocado pela plena liberdade de escolha de seus
métodos de ensino está na origem de diversos cismas no interior da Igreja.243 Perdeu-se o
controle sobre o estabelecimento dos dogmas mínimos que reúnem os grupos numa só fé,
deixando-se levar por especulações inúteis no campo da teologia que nada tem a ver com a
religião tal como foi definida na Escritura. Lembremos que a transposição dos limites da
religião histórica é uma das críticas fundamentais do TTP244, a qual é acompanhada da
proposta de uma solução: que se retorne aos dogmas fundamentais e simplíssimos ensinados
pelo Cristo aos seus discípulos.
Se é assim, por que Spinoza afirma, ao início do capítulo, que os apóstolos foram
profetas? Em outros termos, o que há de propriamente profético no expediente apostólico?
Em primeiro lugar o eventual recurso aos signos exteriores como confirmação seja daquilo
que pregavam por viva voz, seja de sua autoridade mesma enquanto apóstolo.245
Adaptaram-se assim ao paradigma da exterioridade dos profetas de modo a serem mais bem
recebidos entre aqueles mais afeitos à imaginação. Em outro momento, Spinoza admite que
242
G III, 157.
243
G III, 157-158.
244
Principalmente quando ela assume a forma da perseguição a opiniões contrárias que se tornam leis. Ver G III,
245.
245
G III, 155.
215
Paulo também emprega parábolas: não as de caráter narrativo, mas a analogia geral que
concebe e exprime Deus em termos antropomórficos.246 Ainda, sabemos que um dos recursos
principais do discurso apostólico, não tão observável em Paulo, é a narração da história de
vida do Cristo.247 Quando narravam a história do Cristo, evidenciando seu caráter
sobrenatural composto por milagres tais como o da encarnação e ressurreição, agiam como
profetas. Esta narrativa pode cumprir um duplo objetivo: fornecer um modelo de natureza
humana a ser imitado – neste caso, inscrevendo-se no paradigma da exterioridade – ou incitar
a uma reflexão mais apurada (e mais livre) sobre os ensinamentos do próprio Cristo –
convocando o paradigma da interioridade. A narrativa de sua vida, em última análise, pode
facilmente fornecer material para dedução e posterior apropriação ativa de suas
características piedosas.
246
G III, 65.
247
G III, 156.
248
1 Tim 2, 7; Bíblia. 2017, P. 400.
249
2 Tim 1, 11; Bíblia. 2017, P. 414.
250
Bíblia. 2017, P. 171.
251
Bíblia. 2017, P. 183.
216
252
Lembro, sobretudo, da literatura do irlandês Samuel Beckett, particularmente da relação que estabelecia com
os signos filosóficos. Alguns intérpretes, via existencialismo, veem em sua obra a falência da linguagem no
mundo moderno: Beckett estaria, enfim, expressando algo (cf. ESSLIN, M. The Theatre of the Absurd. New
York, Vintage Books, 2004). Quando se trata de estabelecer sua influência cartesiana, outros insistem na
separação entre alma e corpo que estrutura os personagens de seus romances, os quais vivem numa eterna tensão
dualista entre um pensamento ativo e um corpo que apodrece (como Murphy, Molloy, Malone, etc.): a imagem
perfeita de um centauro cartesiano (KENNER, H. Samuel Beckett. A Critical Study. New York: Grove Press,
1961 e também COETZEE, J.M. Ensaios recentes: Textos sobre literatura (2006-2017). Tradução de Sérgio
Flaksman. São Paulo: Editora Carambaia, 2020). Conforme já adiantamos na Introdução, uma leitura atenta de
suas raras declarações em entrevistas e cartas parece sugerir, ao contrário, um uso perverso da filosofia, o qual
surge acompanhado de uma reflexão sobre os limites referencialistas da linguagem: tomar de assalto os signos
tradicionais já disponíveis – o cogito, o corpo, as enumerações do método cartesiano etc. – e, por um exercício
interno, transformar seu sentido para torná-los cômicos e desativá-los de seu caráter solene. Sem pretender, com
isso, significar algo.
253
BADIOU, A. 2009, P. 78.
254
Ibid.
255
“Essa é a única necessidade da morte do Cristo: ela é o meio de uma igualdade com o próprio Deus. Por esse
pensamento da carne, cujo real é a morte, nos é concedido como graça o fato de estar no mesmo elemento que o
217
mundo ainda não é o acontecimento em si, mas a composição de seu local.256 A morte é o
local do acontecimento da ressurreição, acontecimento que é ele mesmo pura graça: “se esse
[o acontecimento] surgir exige condições de imanência, ele é da ordem da graça”257. Ou seja:
tanto o procedimento de imanentização quanto o acontecimento por ele permitido são
excepcionais, advindos do puro movimento da exterioridade reintroduzido, da ação da
providência no mundo. Observa-se que Badiou precisa manter inquestionáveis tanto o local
da realização do acontecimento quanto o acontecimento em si: os quais agem como os dois
postulados ou dogmas de seu universalismo. Uma vez admitida, a exterioridade contaminará
todo o sistema. É um produto que não se adquire separadamente.
próprio Deus. A morte do Cristo é a montagem de uma imanentização do espírito”, cf. BADIOU, A. 2009, P.
81.
256
BADIOU, A. 2009, P. 82.
257
BADIOU, A. 2009, P. 83.
258
AGAMBEN, G. 2016, P. 68.
259
BADIOU, A. 2009, P. 116.
260
AGAMBEN, G. 2016, P. 69.
218
grego frente um ao outro, mas do judeu e do grego em relação às suas próprias identidades. O
ponto central do messianismo é desativar a coincidência consigo mesmo, torná-la impossível,
separar-se de si próprio: sem que isso signifique repousar numa identidade estabilizada
posterior – no caso de Badiou, o acontecimento que torna possível criar um sujeito universal
a partir de um solo comum.261 É através de uma aceitação da herança teológica que, de seu
interior, resgata seus aspectos subversivos, desativando seus compromissos dogmáticos, que
Agamben pensará a função paulina para a filosofia política contemporânea, mantendo-se
atento para não assumir inconscientemente conceitos tradicionais.
O Cristo e a sociabilidade
261
“Para Paulo não se trata de ‘tolerar’ ou de atravessar as diferenças para encontrar para além delas o mesmo e
o universal. O universal não é para ele um princípio transcendente a partir do qual se olha para as diferenças –
ele não dispõe de um tal ponto de vista –, mas uma operação que divide as próprias divisões nomísticas e que as
torna inoperantes, sem nunca, porém, alcançar um solo último. No fundo, para o judeu e para o grego, não há o
homem universal ou o cristão, nem como princípio nem como fim: há apenas um resto, há apenas a
impossibilidade do judeu e do grego de coincidir com si mesmos. A vocação messiânica separa toda klesis de si
mesma, coloca-a em tensão consigo mesma, sem lhe fornecer uma identidade ulterior: judeu como não judeu,
grego como não grego”, cf. AGAMBEN, G. 2016, P. 69.
262
A crítica seria menos dura se o fundamento fosse ficcional. Não parece ser este o caso do acontecimento tal
como Badiou o define.
219
sobre cujo “engenho e maneira de viver gostaria de fazer ainda algumas observações”263. No
ciclo argumentativo que se inicia pela advertência supracitada retirada do escólio da
Proposição LXVI – em que Spinoza claramente define o escopo das demonstrações
seguintes, provocando uma espécie tour de force explícito na exposição – e termina apenas na
proposição LXXIII, findando também a parte IV, trata-se de descrever as ressonâncias éticas,
sociais, políticas e principalmente teológicas do modo de vida daquele que age conduzido ou
sob o ditame da razão. Lemos bem: teológicas. O enunciado da proposição 68 revela: “se os
homens nascessem livres, não formariam nenhum conceito de bem e mal enquanto fossem
livres”264. A demonstração atenta para o fato de que aquele que é livre, quer dizer, que age
sob a condução da razão, detém apenas ideias adequadas. Ora, o conceito de mal nada mais é
do que o resultado de um afeto triste265, que promove uma passagem para uma perfeição
menor. O afeto triste, por sua vez, origina-se de uma ideia inadequada.266 Sendo assim, o mal
é resultado, ele mesmo, de uma ideia inadequada: e não pode ser concebido pelo homem
livre. Para provar que tampouco o bem é por ele concebido, basta lembrar que o bem é um
conceito correlato ao mal, estabelecido através de comparação, o qual não existe na natureza
da coisa.
263
ESPINOSA, B. 2015a, P. 481; EIV, P. LXVI, esc.
264
ESPINOSA, B. 2015a, P. 483; E IV, P. LXVIII.
265
EIV, P. LXIV, cor.
266
EII, P. XXIX.
267
Diz o enunciado da Proposição II da Parte IV: “Nós padecemos apenas enquanto somos uma parte da
Natureza que não pode ser concebida por si sem as outras” (ESPINOSA, B. 2015a, P. 385).
268
ESPINOSA, B. 2015a, P. 483; E IV, P. LXVIII, esc.
269
No capítulo VIII do TTP Spinoza argumenta extensamente contra a hipótese tradicional judaica segundo a
qual Moisés seria o autor do Pentateuco. Cf. G III, 117-123.
220
270
G III, 66.
271
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2015a, P. 483; EIV, P. LXVIII, esc.
272
Grifo meu. Ibid.
273
EIV, P. XXXV.
274
EIII, P. XXVII.
221
que deseje para os outros homens o bem que deseja para si, como demonstramos acima”275. O
homem fora, então, expulso do paraíso idílico, pois perdeu sua liberdade e tornou-se
desprovido da ideia de Deus. E eis que o Cristo emerge à superfície mais uma vez como
momento de tensão entre a interioridade do discurso filosófico baseado na razão e a
exterioridade da abordagem teológica orientada pela obediência. Com a diferença crucial de
que não estamos, agora, no contexto argumentativo do TTP, texto no qual já nos
acostumamos, seja pela retórica, seja pela dificuldade inerente ao tema, a detectar tais
brechas: mas sim no próprio curso da suposta solidez argumentativa da Ética. Seria preciso
uma análise mais longa para concluí-lo, mas estamos diante de uma passagem suficiente para
ao menos sugerir que a tensão entre filosofia e teologia se estrutura nas duas direções: seja
quando se toma a teologia como ponto de partida, encontrando sua contaminação filosófica,
seja, ao contrário, quando se parte da filosofia, que parece não ser tão pura quanto o autor do
capítulo XV do TTP pretende que seja.
Não espanta que a Proposição XXXVII, ela mesma, derive teologicamente. É em seu
primeiro escólio, afinal, que encontramos tanto uma definição de Religião quanto de piedade
– um afeto a todo tempo mobilizado no TTP. Remete-se à religião todo o comportamento que
tem a ideia de Deus como guia. A piedade, por seu turno, é apresentada como o desejo de
agir bem derivado de uma vida conduzida pela razão. Não é estranho, porém, essa
permanência no paraíso idílico, ou seja, supor que os homens agem sob a condução da
Para uma análise comparativa das duas referências, ver CHAUI, M. A nervura do real. Imanência e liberdade
276
em Espinosa. Volume II: Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. P. 483-485.
222
razão? Neste caso, sequer seria preciso erigir leis: todos viveriam em concórdia pois a sua
utilidade, compreendida racionalmente, seria também a utilidade do todo. A sociabilidade,
então, se construiria organicamente num mundo em que os homens seriam maximamente
úteis uns aos outros.277 Não é isso, entretanto, o que ocorre: é não só impossível não padecer,
como vimos anteriormente, como é uma constatação de fato que os homens, na maioria das
vezes, vivem conduzidos mais por seus afetos, manifestando interesses e flutuações
particulares que podem vir a entrar em conflito com a dos outros indivíduos. Neste cenário, a
pergunta óbvia é como fazer concordar os diferentes a fim de que não mais se ameacem
mutuamente. Em termos mais técnicos, como fazer convergir os direitos naturais
individuais? A resposta de Spinoza, no escólio 2 desta proposição, é a de que os homens são
também conduzidos pelo temor de um dano maior. Assim, só mesmo um afeto mais forte e
contrário pode coibir outro278, e desta lei do comportamento afetivo humano é que se poderá
retirar um princípio fundador das organizações em comunidade. Este temor será a lei de
fundamento da Sociedade, em que o direito de estabelecer leis, de definir o que é o justo e o
injusto, o pecado e o mérito, passará dos particulares individuais para o todo comum, o qual
tomará para si “o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bem e o mal; [...] o
poder de prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e firmá-las não pela razão, que
não pode coibir os afetos, mas por ameaças”279. A isto denomina-se Cidade; às suas partes
componentes, definidas por seu direito, cidadãos. Que a Sociedade se estruture pelos afetos, e
que sua manutenção dependa da permanência constante de ameaças, significa que é
impossível que o espírito do Cristo, quer dizer, a liberdade, se manifeste? Qual a contribuição
específica do Cristo para tratar da fundação da política e da sociabilidade, se a liberdade da
condução da razão nunca é plena?
277
“E se os homens vivessem sob a condução da razão, cada um possuiria (pelo Corol. 1 da Prop. 35 desta
parte) este seu direito sem nenhum dano para outro”. Cf. ESPINOSA, B 2015a, P. 435; EIV, P. XXXVII, esc. 2.
278
E IV, P. VII e E III, P. XXXIX.
279
ESPINOSA, B. 2015a, P. 437; E IV, P. 37, esc.2.
280
TOSEL, A. 1984, P. 257.
223
condução moral, à edificação de uma regra de vida. Além disso, Spinoza acredita que o
cristianismo primitivo não tinha objetivo de se lançar institucionalmente e, ao contrário, que
seus adeptos agiam, em suas organizações particulares, “contra a vontade dos que detinham o
poder e de quem eram súditos [..]”281. Embora posteriormente, transformado em Igreja, o
poder eclesiástico tenha fundado Estados, é questionável que, em sua origem, o cristianismo
tenha manifestado tais ambições. Ora, agir contra o poder político dominante não é em si uma
forma de lançar-se politicamente? O erro desta leitura está, obviamente, em restringir a
política à sua esfera institucional, fechando os olhos para o caráter político da peregrinação
de seus seguidores e de sua administração interna.
281
ESPINOSA, B. 2019, P. 375; G III, 237.
282
Trata-se do texto « Du Christ à la Bourgeoisie », que encontra-se no volume DELEUZE, G. Lettres et autres
textes. Paris : Les Éditions de Minuit, 2015. O texto está publicado em português na coletânea DELEUZE, G.
Cartas e outros textos. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Edição preparada por David Lapoujade. São Paulo: n-1
edições, 2018.
224
E, desde então, a miséria dessa consciência é tal, que para estabelecer uma certa
unidade do corpo e do espírito é preciso que ela veja fora de si, exteriormente, essa
própria unidade sob forma de vida interior. É preciso que ela veja fora de si,
exteriormente, sua própria interioridade. Por isso é preciso um Mediador que traga a
boa nova. O Evangelho é a exterioridade de uma interioridade; e este paradoxo se
exprime essencialmente na noção de parábola. O cristão apreende em si mesmo a
dissociação da vida natural e da vida espiritual: e a união das duas vidas como vida
interior ele só apreende do lado de fora. Sua tarefa paradoxal é interiorizar a vida
interior. Interiorizar o Cristo. (DELEUZE, G. 2018, P. 268)
Perseguindo este aspecto exterior do cristianismo, Richard Horsley sustenta, com uma
série de argumentos históricos e hermenêuticos, que o Reino de Deus deve ser entendido
como algo de concreto, ou seja, como a modificação da sociedade em sentido atual – e não
num além-mundo283. Contra certa tendência individualista moderna que procura relegar a
religião apenas a uma espécie de vida íntima separada, Horsley procura mostrar em que
sentido a não-violência do Cristo é, ela mesma, política – e, portanto, comprometida com o
exterior284. A exteriorização que o Cristo visa conquistar, no caso de Horsley, pretende
efetivamente agir num “mundo social, histórico, localizado”285 – mais ainda, num mundo
marcado pela violência, no qual a tarefa cristã seja marcada pela resistência às leis imperiais.
283
HORSLEY, R. 2010. P. 149-153.
284
HORSLEY, R.. 2010, P. 133-138.
285
DELEUZE, G. 2018, P. 267.
286
BOVE, L. « Le « retour aux principes » de l’État de Moïse. Éléments pour une lecture politique et
matérialiste de l'enseignement du Christ chez Spinoza ». In : Revista Conatus - Filosofia De Spinoza (ISSN
1981-7509), 2009, 4(8), 73–82. Recuperado de https://revistas.uece.br/index.php/conatus/article/view/4760.
Última visualização: 27/04/2021 às 17h02min.
225
287
Tradução minha, cf. BOVE, L. 2009, P. 75.
288
G III, 216. Trataremos dos aspectos paradoxais da teocracia hebraica, a qual funcionava, na prática, como
uma democracia, no capítulo seguinte.
289
Tradução minha. Ibid.
290
Tradução minha. BOVE, L. 2009, P. 73.
291
FRANKEL, S. “The Invention of Liberal Theology: Spinoza's Theological-Political Analysis of Moses and
Jesus”. In : The Review of Politics, Vol. 63, No. 2 (Spring, 2001), pp. 287-315. Recuperado de:
http://www.jstor.org/stable/1408669. Última visualização: 27/04/2021 às 16h59min.
292
FRANKEL, S. 2001, P. 301.
226
sociais. Resta a ela perseguir uma liberdade não-filosófica por outras vias, sobretudo a
autoridade bíblica. É, em todo caso, a partir do ensinamento do Cristo que Spinoza poderá
elaborar uma lei moral acessível à multidão. Frankel não tematiza o fato de Spinoza conceder
que mesmo o Cristo ensinou conforme a lógica da lei, empregando eventualmente parábolas,
quer dizer, que a obediência derivada da autoridade da Escritura é encontrada também em sua
mensagem.
293
LAUX, H. « Le Christ et la politique chez Spinoza ». In : La Pensée. 2019/, N° 398, Ps. 74-85. Recuperado
de: https://www.cairn.info/revue-la-pensee-2019-2-page-74.htm. Última visualização: 27/04/2021 às 16h57min.
294
G III, 54.
295
G III, 103.
296
G III, 103-104.
297
G III, 225.
227
Não penseis que vim para lançar a paz sobre a terra. Não vim para lançar a paz, mas
sim uma espada. Vim para separar uma pessoa do seu pai e uma filha da sua mãe e
uma nora da sua sogra, e os inimigos de cada um [são] os que vivem em sua casa.
Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. E quem ama o
filho ou filha acima de mim não é digno de mim. E aquele que não pega na sua cruz e
[não] segue atrás de mim, esse não é digno de mim. Quem encontrou a sua vida irá
perdê-la e quem perdeu a sua vida por minha causa irá encontrá-la. (Bíblia. 2017, P.
94; Mt 10, 34-39)
Eis uma passagem que admite, é certo, uma multiplicidade de leituras, mas que
constitui um problema principalmente para aqueles que identificam no Cristo um
ensinamento tranquilizador. Um esforço para ler apenas metaforicamente a separação no seio
da comunidade familiar perderia o que há de propriamente violento na imagem da espada,
contraposta à paz, logo ao início do trecho. Lendo-a positivamente, isto é, aceitando os signos
que convoca, quais seriam as consequências do ponto de vista de uma teoria da sociabilidade
política? Ora, num caminho inverso, a de que o Cristo pretende justamente desagregar
indivíduos, pô-los em combate direto: em acordo com o conceito de Cristo, meio-termo
indecidível entre filósofo e profeta, que tentamos operacionalizar. As leituras de Bove,
Frankel e Laux parecem fechar os olhos para este grão de separação introduzido por Spinoza
no Cristo já desde sua condição ontológica e epistêmica. Há uma fratura fundamental que o
constitui, de modo que sua dupla mensagem talvez só possa atingir esta suposta síntese da
exterioridade comportamental por um esforço constante de adaptação da linguagem a
298
Guardadas as devidas particularidades de suas interpretações.
228
contextos diversos, dividindo para poder talvez unir. A cidade é, assim, o coeficiente dos
investimentos afetivos e direitos naturais individuais que se estruturam em termos de
disputas, tomando como princípio o amor a Deus, para alguns, a obediência servil à lei, para
outros.
299
Cf. Carta 50. G IV, 238.
300
ESPINOSA, B. 2009b, P.44-45; G III, 296.
301
Retomo a inversão da clássica frase de Carl Von Clausewitz (1780-1831) proposta por Michel Foucault em
seu curso ministrado entre os anos de 1975-1976 no Collège de France: « Il faut défendre la société ».
302
Em seu já mencionado Jesus e a espiral da violência. Resistência judaica popular na Palestina Romana, de
1987, mas também em Jesus e o império. O reino de Deus e a nova desordem mundial, de 2003.
303
HORSLEY, R. 2004, P. 9.
304
HORSLEY, R. 2004, P. 14.
305
Embora a empreitada de enraizar o Cristo historicamente seja por si admirável, alguns dos pressupostos
metodológicos de Horsley não são os nossos. Para justificar o rigor de sua investigação, recorre a princípios de
229
cientificidade e objetividade histórica – algo como o “verdadeiro” contexto histórico no qual o Jesus estava
inserido e eventualmente o “verdadeiro Jesus”, uma espécie de númeno escondido – por ele mesmo
questionados quando empregados pelo leitor de orientação ideológica contrária (individualista e despolitizante).
Afinal, segundo ele, foi o Ocidente moderno pós-iluminista que separou a religião da política e estabeleceu
critérios de cientificidade para isolar da reconstrução histórica os “resíduos de tudo que seja milagroso, mítico
ou fantástico” (HORSLEY, R. 2004, P.13). Não é um resíduo deste mesmo cientificismo que faz Horsley
reclamar uma leitura mais relacional e histórica supostamente por ser mais correspondente ao real? E quanto à
necessária limitação epistêmica ao interpretar os signos passados, que faz com que o historiador, por mais que se
esforce, talvez não possa se livrar tão facilmente do contemporâneo? Horsley poderia, sem perigo para sua
análise, atacar legitimamente seus inimigos por seus compromissos políticos, sem que seu argumento via
reconstrução histórica enfraquecesse.
306
Esta é uma das indagações centrais deste trabalho e talvez só será respondida ao fim do percurso da
investigação. Por meio da perseguição constante às fissuras da filosofia da religião spinozista, reproduzidas no
modo de escrita algo selvagem deste texto, pensar uma teologia-política outra.
230
Capítulo 4.
A ANOMALIA TEOCRÁTICA
— Salmo 1391
Este esforço de fazer com que os outros aprovem o que cada um ama ou odeia é, na
verdade, Ambição (ver Esc. da Prop. 29 desta parte); assim vemos que cada um por
natureza apetece que os outros vivam conforme seu engenho [ex ipsius ingenio
vivant], e vemos também que, enquanto todos igualmente o apetecem, igualmente são
impedimento uns para os outros e, enquanto todos querem ser louvados ou amados
por todos, são odiados uns pelos outros. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2015a, P. 287;
EIII, P. XXXI, esc.).
1
Cf. Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 1010.
2
BERNHARD, T. 2009, P. 40.
3
MOREAU, P.F. 1994. P. 379.
4
Um tratamento completo deste tema é fornecido por Alexandre Matheron na seção III do Capítulo V da
Segunda Parte de Individu et communauté chez Spinoza. A ambição se faz presente inclusive na fundação do
estado civil e na renúncia ao uso da lógica contratualista em sua formulação hobbesiana. Cf. MATHERON, A.
1988, P. 150-179.
231
A tradução que aqui adotamos verte a expressão ingenium por “engenho”; já a opção
de Tomaz Tadeu para o mesmo trecho é pelo termo “inclinação”5. A exata expressão também
surge em diversas passagens importantes do TTP, sendo ali entendida, por Diogo Pires
Aurélio, mais frequentemente por “maneira de ser”6 e “engenho”7, embora também
encontremos as expressões “índole” (ao menos uma ocorrência)8 e “idiossincrasia” (ao menos
uma ocorrência)9. Para manter uma conexão mais imediata com o texto original, optamos por
registrar o termo tal como aparece em latim: ingenium.
Moreau insiste que o conceito de ingenium é um recurso que escapa à ordem dedutiva
da Ética, e que, portanto, advém da experiência, de uma espécie de fora textual que lhe é
igualmente constitutivo. Argumenta, ainda, que o ingenium não diz respeito a uma
constituição passional específica (no caso da proposição, ao amor, ódio e desejo), mas é um
dado singular de cada indivíduo: daí a passagem do “nós”, no enunciado e demonstração da
proposição, para o “cada um” do corolário e escólio transcrito. A lei de estilo matemático,
então, diz respeito à configuração geral de imitação dos sentimentos de um outro, mas apenas
a experiência pode demonstrar como este complexo passional se realiza em relação ao
ingenium de cada indivíduo. O efeito de uma paixão não é determinado apenas pela potência
das causas exteriores, mas por elas em contato com todas as características prévias do
indivíduo no qual age.10 Este conjunto de características é seu ingenium: que não é
exclusividade do homem passional, mas que se verifica igualmente no indivíduo conduzido
pela razão11. É como se houvesse uma regra formal, que garante uma lei de movimento, sem
que o conteúdo deste arranjo possa ser determinado, uma vez que se trata de um dado
existencial irredutível.
5
SPINOZA, B. 2009a, P. 120.
6
ESPINOSA, B. 2019, P. 181, 190, 185.
7
ESPINOSA, B. 2019, P. 222, 79, 198, 199.
8
ESPINOSA, B. 2019, P.190.
9
ESPINOSA, B. 2019, P. 286. Em nota (ESPINOSA, B. 2019, P. 416), Diogo Pires Aurélio justifica a tradução
por “engenho” atentando para a insuficiência de expressões como “índole, compleição ou temperamento”,
incapazes, segundo ele, de abranger o caráter ao mesmo tempo inato e adquirido do vocábulo original. Daí sua
opção pelo termo mais literal, que mantém, ainda, suas ressonâncias renascentistas. Observa-se que a tradução
francesa do TTP, preparada por Pierre François Moreau e Jacqueline Lagrée, em todas as ocorrências
consideradas, opta constantemente pelo termo “complexion”.
10
E II, P. XIII, ax.I; EIII, P. LVII.
11
E nem mesmo o sábio é isento de paixões. Ver E IV, P. LXVI, esc.
232
12
Prova disso é E IV, P. XXXVII, esc. 1, que desloca o tema do ingenium para a discussão acerca dos
fundamentos da cidade.
13
Há passagens, ao longo do TTP, também sobre o ingenium dos gregos e romanos. Ver a reconstrução que
propõe Moreau em MOREAU, P.F. 1994, P.433-436, assim como Matheron em MATHERON, A. 1971, P.
49-59.
14
Como fica evidente no capítulo sobre os profetas. Ver, sobretudo, a passagem de G III, 38-41; ESPINOSA, B.
2019, P. 156-159.
15
O mesmo expediente será adotado na desqualificação da leitura transcendente do milagre, exposta no Capítulo
1 deste trabalho.
233
16
ESPINOSA, B. 2019, P. 165; G III, 46.
17
ESPINOSA, B. 2019, P. 166; G III, 47.
18
Ibid.
234
exterior, que se dá apenas devido a fatores que escapam à sua potência singular? O argumento
se torna ainda mais duro quando é deslocado à caracterização interna dos hebreus, ou seja, às
suas capacidades intelectuais e morais. Do ponto de vista intelectual, para Spinoza, os
hebreus eram um povo rude. Em certa medida, o tema do ingenium do povo hebraico reenvia
à discussão sobre o gênero de ensinamento de Moisés. Para falar ao alcance de seu povo – ad
captum vulgi loqui, recuperando a expressão do TIE19 –, Moisés precisou desempenhar o
papel de legislador, ameaçando a transgressão e premiando a obediência. Isso se devia, no
entanto, ao fato de hebreus estarem habituados à superstição e de se encontrarem, após a
libertação dos egípcios, “rudes e alquebrados pela mais miserável escravidão”20. Até mesmo
no contexto de fundação de seu primeiro Estado, governado por Moisés, não se pode dizer
que foram livres: também ali, vivendo o regime teocrático, combatiam por sua servidão como
se fosse por sua salvação21. Não nutriam acerca de Deus uma ideia adequada;
consequentemente, não estavam propícios para a verdadeira vida, tampouco para a liberdade.
Mais de uma vez Spinoza não deixa de caracterizar as ideias que os hebreus nutriam de Deus
como “absolutamente vulgares” e “infantis”22; e é desta crença inadequada, que tem origem
sobretudo numa concepção antropomórfica da figura divina23, que se justifica o fato de não
estarem igualmente preparados para a beatitude. Os hebreus, portanto, estavam dominados
pela superstição; o que significa dizer, como vimos, que concebiam Deus e a natureza de
maneira teleológica, acreditando na eleição e no dom profético como benefícios exclusivos,
fornecidos pela divindade devido à sua preferência por seu povo. Cultuavam, portanto, o
exterior. A superstição faz um indivíduo oscilar entre a esperança e o medo; e, numa
comunidade política, permite que os soberanos dominem as mentes dos cidadãos de forma
mais sólida, já que “não há nada mais eficaz que a superstição para governar a multidão”24.
19
TIE, §17.
20
A formulação surge em dois momentos do TTP. Ver ESPINOSA, B. 2019, P. 158, 195; G III, 41, 75.
21
Laurent Bove apresenta uma análise interessante do estado hebreu, na qual procura mostrar em que sentido
pode-se encontrar, ali, uma expressão do fenômeno da servidão voluntária. Ver BOVE, L. 1996, sobretudo os
capítulos VII e VIII.
22
ESPINOSA, B. 2019, P. 164; G III, 45.
23
G III, 41.
24
ESPINOSA, B. 2019, P. 125; G III, 6.
235
dura exposição feita sobre hebreus ao longo de todo o capítulo (que contrasta, veremos, com
o tom mais científico da análise de seu estado que encontramos no capítulo XVII). Uma tese
geral o fundamenta: a beatitude se encontra unicamente na fruição do bem, não na certeza de
ser o único a dele fruir. A exclusividade da verdadeira felicidade não acrescenta nada à
felicidade; e se ela existe, deve-se reputar ou bem a um caráter infantil ou bem, pior ainda, à
inveja e à má vontade. O indivíduo que se regozija com a infelicidade alheia só pode ser,
portanto, igualmente infeliz. Neste momento, um tour-de-force: Spinoza passa rapidamente
para a análise da Escritura, que afirma categoricamente que Deus escolheu os hebreus dentre
as demais nações. Como não se pode derivar da Escritura um ensinamento invejoso, deve-se
corretamente interpretar a sentença: trata-se de se adequar à compreensão dos hebreus; de
exortá-los ao cumprimento da lei, uma vez que, como vimos, só conheciam este gênero de
ensinamento. Ora, mas se os hebreus acreditavam exatamente na exclusividade do dom
profético e, mais ainda, em sua preferência geral em relação a Deus enquanto nação, a
rudimentar teoria afetiva que se desenha nas linhas iniciais do parágrafo se aplica também a
eles. Os hebreus não apenas não conheceram a verdadeira felicidade e a beatitude, isto é, não
apenas fracassaram do ponto de vista moral e intelectual, mas manifestaram um sentimento
infantil, invejoso e de má vontade. São estes os afetos que conviviam no interior daquela
nação; a serem complementados, na manutenção de seu primeiro Estado, pela devoção e ódio
teológico.
25
ESPINOSA, B. 2019, P. 196; G III, 76.
236
Spinoza conclui, então, que, mesmo nos momentos em que são apresentados preceitos
morais ao longo do Pentateuco, estes não são apresentados como tais, mas sim como
comandos exteriores, como “ordens adequadas à compreensão e à maneira de ser [ingenium]
exclusivamente da nação hebraica, visando apenas, por isto mesmo, a prosperidade de seu
Estado”27. Daí por que Cristo não veio anunciar novas leis ou revogar as antigas: seus
ensinamentos em nada se encontram com os de Moisés, pois dizem respeito a outro assunto:
não há comunicabilidade entre os ensinamentos de ambos. A lei de Moisés não visava
ensinar, mas coagir: e isto por conta da “ignorância dos fariseus” [Pharisaeorum ignorantiam]
26
Diz Spinoza já no TTP: “Se os homens fossem por natureza constituídos de modo a que não desejassem senão
o que a verdadeira razão indica, com certeza que a sociedade não necessitaria de quaisquer leis, bastado apenas
fornecer aos homens os verdadeiros ensinamentos morais para que, espontaneamente e de inteira e livre
vontade, fizessem aquilo que é verdadeiramente útil. Quão diferente, porém é a constituição da natureza
humana! De fato, todos procuram o que lhes é útil, cobiçam coisas e julgam-nas úteis, não pelo ditame da sã
razão, antes arrastados pela libido e os afetos de ânimo, os quais não têm em conta o futuro nem as outras
coisas. Daí que nenhuma sociedade possa subsistir sem o poder e a força, nem, por conseguinte, sem leis que
moderem e coíbam a libido e os desenfreados impulsos dos homens”. Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 194-194; G
III, 73-74.
27
ESPINOSA, B. 2019, P. 190; G III, 70.
237
28
, que confundiam o viver em beatitude com a defesa das leis da república. Se Moisés
instituiu as cerimônias foi simplesmente para conter a insubmissão e o caráter bruto do povo,
incutindo-lhes a obediência diária, não permitindo que fizessem nada por seu bel-prazer,
lembrando-lhes a todo instante que estavam submetidos ao direito do Estado.
O comportamento dos hebreus parece oscilar, nos distintos momentos de sua história,
isto é, após a libertação da escravização dos egípcios e no interior de seu Estado teocrático,
entre a insubmissão e a extrema devoção29. Insubmissão inicial devido à experiência de
escravização que ora tiveram, que os fez rejeitar, a princípio, a dominação por outrem; e a
extrema devoção desenvolvida após a instituição das leis e do firmamento do pacto com
Deus: que garantia, através da religião de Estado, a obediência irrestrita – ou melhor, a
servidão. Informados quanto ao seu ingenium, resta precisar as origens e o funcionamento
deste Estado que poderia ter sido eterno30. Destacaremos a lógica afetiva que o guia,
procurando descrevê-la a partir da pluralidade de processos de interiorização e exteriorização
que o constituem particularmente.
Acústica e autoridade
28
ESPINOSA, B. 2019, P. 191; G III, 71.
29
ESPINOSA, B. 2019, P. 195; G III, 75.
30
É interessante refletir sobre a possível eternidade do Estado hebreu. Ao fim do capítulo XVII, Spinoza
declara: “Vemos, assim, de que modo a religião foi introduzida na república dos Hebreus e em que medida o seu
Estado teria podido ser eterno, se a justa cólera do legislador o tivesse deixado continuar na mesma”. (Grifo
meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 357; G III, 220). De maneira similar, ao início do XVIII: “Embora o Estado
hebreu, tal como o concebemos no capítulo anterior, pudesse ter durado indefinidamente, ninguém, contudo,
pode hoje em dia imitá-lo, nem seria aconselhável”. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 359; G III, 221).
238
31
ESPINOSA, B. 2019, P. 131; G III, 15.
32
Sobre a imaginação vívida e o caráter piedoso dos profetas, ver todo o Capítulo II do TTP.
33
ESPINOSA, B. 2019, P. 144; G III, 28.
34
Ibid.
239
vez que todo conhecimento, na medida em que deriva de um decreto de Deus, pode ser dito,
ao mesmo tempo, natural e divino.
Há mais sobre a profecia: as palavras e/ou imagens podem ser ditas verdadeiras ou
imaginárias. Serão verdadeiras quando o profeta tiver uma visão ou ouvir uma voz autêntica e
serão imaginárias quando, por exemplo, a revelação for dada em sonho. A voz com que Deus
chamou a Samuel (Samuel I, cap. III) poderia ser considerada, num primeiro momento, como
verdadeira, mas, como Moisés difere dos demais profetas, cumpre afirmar que, na verdade, a
voz que ouviu era parecida com a voz de Heli e que, portanto, a revelação aconteceu-lhe em
sonho. Nesta altura do texto, o argumento de Spinoza parece tendencioso: é necessário que a
voz de Deus ouvida por Samuel seja imaginária porque é preciso garantir a singularidade de
Moisés enquanto profeta. Os demais trechos bíblicos que corroboram com seu argumento
parecem ser secundários ou elencados de forma interessada, isto é, a fim de cumprir este
objetivo.
35
Bíblia de Jerusalém. 2016, P. 151.
36
ESPINOSA, B. 2019, P. 137; G III, 21.
240
37
ESPINOSA, B. 2014a, P. 92.
38
Estamos, aqui, num contexto de definição do conhecimento natural, ou seja, aquele que pode ser deduzido das
leis da natureza. Trata-se de um contexto distinto daquele do TTP, em que o que governa é a interpretação da
Escritura; e, no qual, a imaginação tem seu valor. Como já dito, a questão do erro – que é a questão da verdade
ou do ser – é substituída, naquele contexto, pela questão do sentido/coerência do texto.
39
ESPINOSA, B. 2014a, P. 93.
40
ESPINOSA, B. 2015c, P. 37.
41
Ibid.
42
Ibid.
241
isto é, elementos que foram ouvidos ou lidos ao longo da vida e que, com a ajuda da
memória, compõem ideias pelas quais imaginamos as coisas. No momento costumeiro de
apresentar o exemplo da quarta proporcional, são também os “negociantes” (mercatores43)
que “não cederam ao esquecimento o que escutaram do mestre sem nenhuma demonstração”
44
.
43
O termo latino é o mesmo tanto no TIE quanto na E. Marcamos aqui apenas uma diferença de tradução.
44
ESPINOSA, B. 2015a, P. 201.
45
No artigo « Puissance et pouvoir de la parole. Judith Butler au prisme de l'anthropologie spinoziste du langage
», publicado na Revista Seiscentos, vol. 1, 2021.
242
Viver em segurança e em boa saúde é, para além da beatitude, um dos objetivos que
os homens podem “honestamente”46 pôr para si próprios. Para atingi-los, nada mais útil do
que a edificação de um corpo social ordenado com leis fixas. A construção de um Estado
atende à demanda por bens exteriores, e sua função é tentar ao máximo resistir ao império da
fortuna. Quanto mais seguro e cômodo for um Estado, e quanto mais tempo ele for capaz de
se autoconservar, mais excelente será.47 É exatamente nisto que reside, segundo Spinoza, a
“escolha” dos judeus: não por suas qualidades morais ou por sua inteligência, mas pela
potência de seu Estado derivada da virtude política de seu líder. A escolha dos judeus é,
portanto, uma anti-escolha, na medida mesma em que é esvaziada do sentido de vocação
(compreendida aqui como chamamento espiritual, no sentido de vocação que encontramos
em Paulo48, por exemplo). Este é o argumento central de Spinoza para recusar a noção de
vocação e exclusividade dos hebreus: tanto no que se refere à ideia de povo escolhido quanto
da de dom profético. A excelência de seu Estado, denominada felicidade temporal, difere
daquele gênero de felicidade proporcionada pela beatitude, que busca o conhecimento
adequado e o domínio das paixões, isto é, uma felicidade eterna. A felicidade temporal é
conquistada por uma observância estrita à lei: isto é, através da obediência do povo, de suas
ações exteriores. Ergue-se, assim, toda uma caracterização do Estado em geral, através da
definição do Estado hebreu em particular, que unifica uma série de operadores, dentre eles os
bens exteriores, o Estado, a lei e a obediência:
Deixo, porém, esta questão, visto que para o meu propósito era suficiente mostrar que
a eleição dos Judeus não tinha a ver senão com a liberdade e a felicidade temporal,
quer dizer, com o Estado, com o modo e os meios através dos quais eles o
conseguiram, e bem assim com as leis, na medida em que eram necessárias para a
estabilidade desse Estado particular, e com a maneira, enfim, como estas foram
reveladas. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 168; G III, 49)
Atenção à sentença final: e, com a maneira, enfim, como estas foram reveladas (et
denique modum, quo ipsae revelatae fuerunt). Ou seja: profeticamente. Acrescenta-se a esta
teia de características o elemento cognitivo: os bens exteriores, o Estado, a lei, a obediência e
a imaginação. Mais ainda: a acústica, uma vez que estamos, aqui, tratando especificamente
do caso de Moisés. Ergue-se todo um paradigma teológico acerca da forma de governar
46
ESPINOSA, B. 2019, P. 165; G III, 46.
47
Ver, para tanto, o Capítulo III do TTP.
48
Remeto ao endereçamento inicial da Carta aos Romanos e às análises de Agamben sobre o trecho. Ver
AGAMBEN, G. 2016.
243
coordenado por propriedades exteriores, o qual podemos, a partir de agora, designar por
paradigma da exterioridade.
O mesmo se aplica ao caso dos hebreus50: como Deus usou de meios corporais para se
comunicar com eles, isto é, imaginativamente e, mais ainda, acusticamente, o decálogo foi
por eles entendido antes como lei do que como verdade eterna. Faltava aos hebreus o
conhecimento de Deus como uma verdade eterna, de modo que tiveram, então, de
compreendê-lo como um príncipe ou um legislador que institui determinações conforme seu
capricho. Por fim, Moisés, que, sabemos, também necessitou de mediações e intermediários
exteriores para se comunicar com Deus, acolheu igualmente sua mensagem como se fossem
preceitos, sem perceber que estes preceitos eram o melhor, isto é, verdades eternas que
encaminhariam à construção de uma sociedade estável e à manutenção da obediência por
parte do povo. É enquanto um legislador e um príncipe, ou seja, enquanto uma autoridade que
dá ordens que, se obedecidas, garantem um prêmio e, se infringidas, uma sanção, que Moisés
atua como o líder do Estado hebraico. Quando diz que não se deve matar, roubar ou praticar o
adultério, não prova as razões dos malefícios destas práticas, não as demonstra: mas as
institui verticalmente.
49
G III, 63-64.
50
Ibid.
244
Em Altíssima pobreza, Giorgio Agamben segue sua investigação acerca das conexões
entre o direito e o vivente tomando como norte, desta vez, a vida monástica51. Nela, Agamben
encontrou um modo de vida inseparável de sua forma, uma confusão entre o direito e o
vivente, entre teoria e prática e, enfim, entre externo e interno. O conjunto de regras
destinadas ao comportamento diário, de “preceitos e técnicas ascéticas, de claustros e
horologia, tentações solitárias e liturgias corais, exortações fraternas e ferozes punições”52
características do monasticismo e, depois, do franciscanismo, exige que os termos “regra” e
“vida”, quando postos em relação, adquiram um novo significado, condensados na expressão
forma-de-vida. Para compreender esta indistinção, a análise do termo habitus é elucidativa.
Embora originalmente significasse “modo de ser ou agir”, a expressão passa a tomar, no
contexto da vida monástica, o sentido de “modo de vestir”53. O novo sentido do termo visa
estar à altura de um fenômeno prático: a moralização das vestes dos monges. O capuz, as
mangas curtas da túnica, as alças de lã ou o manto revelam, cada um, uma disposição de
caráter: respectivamente, a inocência e a simplicidade das crianças, a renúncia ao mundo, a
aptidão para o trabalho manual e a humildade. Além de um processo de sacralização da vida,
expresso na escolha por cada peça de vestimenta, podemos identificar, aqui, uma tentativa de
criar uma fluidez entre externo e interno e, finalmente, uma identidade entre ambos. A roupa
é um signo exterior de uma condição interior, um sinal de comprometimento que não escapa
51
Cf. AGAMBEN, G. 2014b.
52
AGAMBEN, G. 2014b, P. 9.
53
Reconstruo a exposição de Agamben presente nos pontos 1.6 e 1.7 do primeiro capítulo de Altíssima Pobreza.
Ver AGAMBEN, G. 2014b, P. 24-30.
245
à ambiguidade própria do habitus: que designa, ao mesmo tempo, “veste e modo de vida”54.
O vocabulário topológico, ainda que útil para fins de identificação, é, aqui, algo enganador,
pois introduz uma separação que não se verifica do ponto de vista da vida. Não é como se as
vestes representassem ou meramente expressassem uma condição interna, o que supõe uma
distância, ainda que mínima, entre um estado da alma e um emblema corporal. O hábito
compõe, com aquele que o ostenta, uma entidade única e só separável artificialmente, algo
como a união da alma com o corpo conforme descrita por Descartes, cuja imagem não pode
ser associada à do piloto que comanda um navio, mas sim a de um eu que, ao perceber seu
corpo, conclui que lhe está “conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e
misturado”55, compondo com ele um único todo.
Não podia lavrar, semear ou ceifar à vontade, mas só de acordo com um certo e
determinado preceito da lei; nem sequer podia comer alguma coisa, vestir-se, cortar o
cabelo ou a barba, divertir-se ou fazer fosse o que fosse a não ser de acordo com as
ordens e indicações prescritas na lei. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 195-196; G
III, 75-76)
No trecho, Spinoza elenca algumas intervenções diretas sobre o corpo: não apenas a
vestimenta, ecoando o monasticismo tal como descrito por Agamben, mas também o ato de
cortar o cabelo e a barba, além dos costumes cotidianos que possuíam força-de-lei, e,
portanto, se convertiam em técnicas de governo, revestidas de significação política. Na
medida em que estas práticas visavam a criar uma noção de comunidade, contribuindo para a
edificação do Estado, a construção da identidade nacional e o gerenciamento da obediência,
pode-se constatar aí a existência de algo como uma biopolítica56. Empregamos o termo com
alguma liberdade, pois o conceito foucaultiano é originalmente atribuído a um momento
histórico específico: o estabelecimento da Idade Moderna, quando a vida natural (zoé),
54
AGAMBEN, G. 2014b, P. 27.
55
DESCARTES, R. 1973, P. 144; AT IX-1, 64.
56
Para o conceito de biopolítica, é fundamental verificar FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Cours
au Collège de France. 1978-1979. Paris: Gallimard/Seuil, 2004 e Surveiller et punir. Paris : Éditions Gallimard,
1975.
246
Há toda uma discussão sobre até que ponto a teoria política de Spinoza pode
efetivamente abranger a lógica do contrato, na medida em que esta parece introduzir um
imperium in imperio59 e algo como uma transcendência à ordem natural. Em carta a Jarig
Jelles60, Spinoza afirma que a diferença central entre a sua teoria política e a hobbesiana é o
fato de manter o direito natural mesmo após a fundação do Estado, o que introduz uma
desconfiança quanto ao dispositivo da transferência. Um dos objetivos do capítulo XVII do
TTP, dedicado ao exame do Estado hebreu, é demonstrar como é impossível e desnecessário
que os indivíduos transfiram a integralidade de sua potência individual ao soberano61:
57
Estamos mais próximos das conclusões de Agamben, para quem a biopolítica não é uma técnica nascida num
determinado momento da história de desenvolvimento do poder soberano, mas diz respeito à estrutura mesma de
tal poder. Cf. o que afirma na Introdução de Homo Sacer I: “A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão
antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não
faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim
(segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar nos âmbitos mais
diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii.” (AGAMBEN, G. 2014a, P. 14).
58
G III, 205.
59
A expressão surge, por exemplo, em E III, Prefácio.
60
Carta L.
61
Cf. o próprio título do capítulo (“Ostenditur neminem omnia in summam potestatem transferre posse, nec esse
necesse [...]”) e o que é defendido em G III, 201-202.
247
A forma de governo efetivada pelo Estado hebraico poderia, num primeiro momento,
ser concebida como a expressão máxima da teologia-política, ao menos enquanto entendida
em sua manifestação superficial63, ou seja, como a intromissão direta do poder institucional
religioso na esfera política. Na medida em que tem Deus como único soberano legítimo, dado
o pacto que o povo com ele fundou, pode-se dizer que, ali, a conexão e mesmo a dependência
com o externo atingem seu caso mais paradigmático. A teocracia, forma de governo em que
os cidadãos estão subordinados ao direito revelado por Deus, seria o caso exemplar da
teologia-política: a de um Estado cujo conteúdo fundante lhe escapa. No entanto, a
caracterização que Spinoza avança do Estado hebreu nos exige uma reformulação desta
apreciação inicial. Distingue-se, de um lado, a tirania, forma de governo cuja fundação e
manutenção é dada por um processo de sacralização do soberano. Uma vez que os Estados
são mais ameaçados por seus cidadãos do que por inimigos externos (inútil reforçar a maior
importância dada ao interior neste caso), muitos reis, de modo a conquistar sua superioridade
perante o povo, procuraram “fazer crer que a sua estirpe ascendia aos deuses imortais”64. Um
expediente inverso é concretizado na teocracia (ou, ao menos, no exemplo específico da
teocracia hebraica): não a elevação de um soberano ao título de Deus, mas o deslocamento de
62
G III, 191-193; 205-207. Um tratamento mais detalhado deste problema pode ser encontrado em
MATHERON, A. « Le problème de l'évolution de Spinoza. Du Traité théologico-politique au Traité politique ».
In : MATHERON, A. 2011. P. 205-2018.
63
Para os dois sentidos possíveis da questão da teologia-política que elaboramos a partir de Schmitt, ver
Introdução.
64
ESPINOSA, B. 2019, P. 338; G III, 204.
248
Deus para a esfera profana. Neste aspecto, não há, como na formulação teológico-política,
mais adequada para a descrição da tirania, uma referência constante ao exterior, mas sim uma
tentativa de interiorizar este exterior e fazê-lo participar da realidade política.
65
MATHERON, A. 1971, P.23.
66
G III, 206.
67
Para um estudo do conceito de encarnação, que enfatiza as disputas teológicas envolvidas em sua fabricação,
ver o trabalho de Ulrich B. Müller intitulado A encarnação do Filho de Deus. Concepções da encarnação no
cristianismo incipiente e os primórdios do docetismo (2004).
68
Tradução conforme Bíblia de Jerusalém, 2016, P. 1843; Jo 1, 14-15.
69
Fl 2, 6-7.
70
ESPINOSA, B. 2019, P. 341; G III, 206.
71
Ibid.
72
G III, 206.
249
O pacto inicial transferiu o direito individual a uma figura ausente, e como a renúncia
se deu de maneira integral, estendendo-se à totalidade dos indivíduos, todos se tornaram
iguais perante a Deus. Como o que caracteriza o regime democrático é a transferência em
massa dos direitos naturais a todos73, o Estado hebreu era uma democracia avant la lettre:
pois quem governava, na prática, era o povo. Ocorre que a este primeiro pacto seguiu-se um
segundo, que terminou por abolir o primeiro. Assustados ao ouvirem a voz de Deus,
conscientes de que sua morte se daria naquele momento mesmo74, os hebreus “transferiram
por completo para Moisés o seu direito a consultar Deus e interpretar os seus éditos”75.
Passaram a se submeter não diretamente ao mandamento divino, mas à Sua mensagem
mediada pela palavra de Moisés. É claro que Moisés, a partir de então, passou a ser superior
aos demais cidadãos, mas estava, também ele, submetido ao direito divino tal como os
demais. Em seu exercício, no entanto, a sociedade não deixou de ser igualitária e de se
aproximar da democracia; e diversos artifícios singulares o confirmam.
Aos administradores do Estado, isto é, aos príncipes dos hebreus, estava vedado o
direito de interpretar livremente o corpus das leis, ao mesmo tempo em que este estava
disponível a toda a sociedade76. Era instituído que, de sete em sete anos, o povo deveria se
reunir para ser instruído nas leis pelo pontífice, além de ser obrigatória sua leitura e releitura
individual. Para não despertarem o ódio teológico do povo, então, os príncipes deveriam
observar maximamente as leis, cujo direito de interpretação era restrito à tribo dos levitas.
Além disso, o fato de o exército ser formado apenas por cidadãos impedia que fosse usurpado
pelos administradores com o fim de conter as sedições do povo. Impedia, também, que os
príncipes temessem a liberdade do exército, uma vez que, devido à devoção, estavam
convencidos a combater “não pela glória do príncipe, mas pela glória divina”77. Jamais,
portanto, a guerra era mais desejada do que a paz78. Como os que combatiam no exército
eram também os soldados, comandantes e juízes, era de seu interesse que a paz fosse
73
G III, 195; 206; 245.
74
Dt 5: 23-27.
75
ESPINOSA, B. 2019, P. 341. G III, 207.
76
G III, 212.
77
ESPINOSA, B. 2019, P. 349; G III, 213.
78
G III, 214.
250
Isto para apenas mencionar as atitudes que contribuíam para evitar que o poder
soberano se tiranizasse. Outras ações foram importantes para conter a insubmissão do povo,
evitando as sedições. Contribuía a isto, sobretudo, a observância dos interesses dos cidadãos.
Como se sabe, Spinoza situa o desejo na definição mesma da natureza humana: ele motiva
suas ações e também seus preconceitos, tais como a ficção do livre-arbítrio que sustenta o
finalismo supersticioso81. Caso seja possível criar um Estado em que este interesse seja
contemplado, os cidadãos estarão a ele “condicionados”82 e não pensarão em abandoná-lo. No
Estado hebreu, o direito de propriedade estava assegurado a todos os cidadãos, que possuíam
indefinidamente a mesma quantidade de terras que o príncipe.83 A caridade era igualmente
praticada, pois o amor por sua pátria, consequentemente por seus concidadãos, impedia que
se deixasse alguém incorrer em pobreza extrema. Praticavam, assim, um intenso altruísmo84.
O hábito diário da obediência era incutido sem que fosse consentido um espaço para livre
79
G III, 213-214.
80
Ibid.
81
Ver o Capítulo 1 deste trabalho.
82
ESPINOSA, B. 2019, P. 352; G III, 215.
83
G III, 216.
84
Ibid.
251
85
G III, 217.
86
G III, 215.
87
Nos já citados capítulos VII e VIII de BOVE, L. 1996.
88
O conceito remete ao texto de Etienne de la Boétie, intitulado Discurso da servidão voluntária, traduzido para
o português por Laymert Garcia dos Santos e publicado em 1982 pela Editora Brasiliense. Não faremos todas as
associações possíveis entre La Boétie e Spinoza neste trabalho. Na conclusão deste estudo, apostaremos numa
conexão possível entre a servidão voluntária e a explicação spinozista para o suicídio, e indicaremos uma
bibliografia adicional sobre o tema.
89
ESPINOSA, B. 2019, P. 352; G III, 216.
252
afeto a não ser em virtude apenas do direito do Estado”90. A dominação dos hebreus se dava
sobre seus ânimos, e não há dominação mais eficaz do que esta. Se experimentaram alguma
estabilidade, ela não pode receber o nome de paz, pois a paz não é a mera ausência de guerra
91
; e aquela cidade cujos súditos são inertes, incapazes de manifestar livre pensamento, é mais
corretamente denominada uma solidão do que de uma cidade92. Além disso, não seria
possível, nem aconselhável, procurar imitar os pressupostos do Estado hebreu93 . Não seria,
em primeiro lugar, sequer possível estabelecer um novo pacto com Deus; tampouco, em
segundo, útil criar um Estado que vivesse tão excluído do comércio exterior tal como o
Estado hebreu o era. Lembremos que a Holanda do século XVII devia sua relativa liberdade
de culto e expressão, ao menos em parte, à livre circulação comercial e abertura ao
estrangeiro.94 Em suma, os hebreus combatiam por sua servidão como se fosse por sua
salvação, a paz que experimentavam era, como afirma Leo Strauss, a paz dos desertos95, e
esta servidão, quando analisada, nos instrui sobre aspectos relevantes acerca da função social
que a religião pode num Estado assumir.
Spinoza dedicas as páginas finais do capítulo XVII, assim como as iniciais do XVIII,
para tratar da decadência deste Estado, a qual se deu não pela insubmissão do povo, mas pelo
fato de o pacto ser rompido e de um rei mortal ser instituído, abrindo o caminho, aos poucos,
para a fundação de novas seitas96. A república dos hebreus transformou-se, então, numa
monarquia, e o direito deixou de ser repartido a todo corpo da sociedade como o era outrora.
É claro que a exposição de Spinoza é muito mais detalhada e complexa, mas o tema da
decadência do Estado não nos interessará diretamente aqui.97 Gostaríamos de nos voltar a um
aspecto propositalmente negligenciado ao longo de nossa exposição, e que deve tomar, agora,
uma atenção concentrada: a dinâmica afetiva daquele Estado, composta pelo duplo par amor
90
ESPINOSA, B. 2019, P. 337; G III, 202.
91
ESPINOSA, B. 2009b, P. 45; TP, V, 4.
92
TP, V, 5.
93
ESPINOSA, B. 2019, P. 359; G III, 221 para este trecho.
94
Ver, para esta hipótese histórica, o trabalho de Henry Méchoulan intitulado Amsterdam au temps de Spinoza.
Argent et liberté. Paris: PUF, 1990.
95
STRAUSS, L. 1996, P. 297.
96
O monoteísmo cumpre papel importante na manutenção do primeiro Estado hebreu. É Alexandre Matheron
quem chama a atenção para este aspecto: de fato, condensar a devoção em um único Deus parece mais eficaz, do
ponto de vista das consequências para o Estado e o direito, do que multiplicá-la em diversas crenças, as quais
podem, inclusive, gerar desavenças entre os súditos. Ver MATHERON, A. 1971, P. 18.
97
Limito-me a remeter o leitor ao o artigo de Sylvain Zac, que descreve detalhadamente a interpretação
spinozista da origem e destruição do Estado hebreu, cf. ZAC, S. “Spinoza et l’état des Hébreux”. In: Revue
Philosophique de la France et de l'Étranger, T. 167, No. 2, Spinoza (I) (Avril-Juin 1977), pp. 201-232.
253
devoto e odium theologicum, e, é claro, a uma descrição desta mecânica a partir dos
processos de interiorização e exteriorização que lhe constituem.
Um patriotismo servil
Naquele que é talvez seu mais célebre conto fantástico, Guy de Maupassant tece a
seguinte observação em tom aristocrático:
98
ESPINOSA, B. 2019, P. 337; G III, 202.
99
ESPINOSA, B. 2019, P. 352; G III, 215-216.
254
Que seja anunciado brutalmente: a interiorização da lei que implica servidão afetiva é
operada através do amor. Segundo Descartes100, o amor é “uma emoção da alma causada pelo
movimento dos espíritos que a incita a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem
convenientes”101. O primeiro passo para amar um objeto, um animal ou uma pessoa é dedicar
a ele certa estima, ou seja, considerá-lo como conveniente à nossa própria constituição. Em
seguida, esta estima nos levará a construir com o objeto exterior uma espécie de todo “do
qual pensamos constituir apenas uma parte, e do qual a coisa amada é a outra”102. Assim, a
palavra voluntariamente, presente na definição inicial do amor, deve ser remetida não
propriamente ao desejo, que é, segundo Descartes, uma paixão à parte relacionada ao futuro,
mas sim ao investimento positivo na construção ficcional – pois trata-se apenas de um
produto da imaginação – deste todo.
100
Tratei brevemente da definição cartesiana de amor numa seção de minha dissertação de mestrado. Ver
RAMOS, C. S. 2017, P. 227-237.
101
DESCARTES, R. 1973, P. 257; AT XI, 387.
102
Ibid, P. 258; Ibid.
103
AT XI, 389-391.
255
Ainda que discorde desta definição de amor – pois a vontade de unir-se à coisa amada
é simplesmente uma propriedade, e não a essência deste afeto105 –, é certo que Spinoza
concorda com Descartes ao classificar a devoção como um afeto fundamentalmente
teológico-político. Para ele, a devoção é “o amor àquele que admiramos”106. A admiração, por
sua vez, definida como a imaginação de uma coisa singular que ocupa a mente sozinha107, se
metamorfoseia em consternação se a dirigimos a um objeto que tememos, em horror se o que
nos toca é a ira ou a inveja de um homem e em veneração se é a prudência/indústria de um
104
MATHERON, A. « Amour, digestion et puissance selon Descartes ». In : MATHERON, A. 2011, P.55-65.
105
EIII, Def. dos Afetos, VI, Explicação.
106
ESPINOSA, B. 2015a, P. 345; EIII, Def. dos Afetos, X.
107
EIII, P. LII, esc.
256
homem o que nos chama a atenção. No caso da veneração, “contemplamos este homem como
nos superando amplamente”108: nos termos cartesianos que vimos acima, a estima que
nutrimos por ele é maior do que aquela que nutrimos por nós próprios. É, portanto, unindo o
amor à admiração transfigurada em veneração que se concebe a devoção.
Retornemos, enfim, aos hebreus. Este sentimento de morte iminente pela pátria era
por eles conhecido: “todos deviam [...] estar-lhe tão ligados que preferiam morrer a serem
dominados por estrangeiros”109. Nada mais vergonhoso do que trair a pátria amada, o que era
o mesmo que trair a Deus; nada pior do que habitar em terra estrangeira, e nenhuma pena
poderia ser equiparável ao terror do exílio. O amor que tinham à pátria e, na medida em que
dela participavam compondo um único todo, o amor que nutriam por si próprios, os fazia
estimar-se além da medida, resultando na certeza de sua vocação e exclusividade do dom
profético. A exagerada estima de si derivada de extremo amor próprio tem, para Spinoza, um
nome preciso: a soberba110. Embora não mencione a soberba no capítulo dedicado à dedução
afetiva do Estado hebreu, as passagens sobre o amor que nutriam por Deus e pela pátria, bem
como a severa desconstrução da ideia de nação escolhida operada ao longo do capítulo III nos
permite avançar esta classificação.
108
ESPINOSA, B. 2015a, P. 319; Ibid.
109
ESPINOSA, B. 2019, P. 350; G III, 214.
110
EIII, Def. dos Afetos, XXVIII.
111
ESPINOSA, B. 2015a, P. 433; EIV, P.XXXVII, esc.1.
257
Odium theologicum
112
ESPINOSA, B. 2019, P. 353; G III, 216-217.
113
ESPINOSA, B. 2019, P. 352; G III, 216.
114
NADLER, S. 2011, P. 232.
258
detestáveis não só por todo cristão, mas por todo indivíduo razoável. Subscrevendo a
fórmula, um panfleto anônimo contendo a suposta lista de livros que pertenciam a Johan de
Witt, publicado a fim de prejudicar sua imagem, classificava o TTP como um livro forjado no
inferno, num esforço conjunto entre seu autor e o próprio diabo.115 Spinoza estabeleceu
contato direto com estas manifestações de ódio e repulsa, sobretudo se considerarmos os
testemunhos epistolares de Lambert De Velthuysen, endereçado a Jacob Ostens116 e
encaminhado a Spinoza em 1671117, e de Albert Burgh, em 1675118, a ele dirigido.
A proliferação dos ataques, tanto por parte dos teólogos calvinistas e cartesianos,
conservadores e moderados, quanto aquelas verificadas nas respostas institucionais
persecutórias que, por razões a serem especuladas, surgiram apenas três anos após a
publicação do dito livro119, motivaram Spinoza a retardar a publicação da Ética, inicialmente
prevista para o ano de 1668. Naquela altura, circulava um rumor de que o autor do já
abominável tratado pretendia lançar um novo livro, no qual demonstrava a inexistência de
Deus. Alguns teólogos resolveram, diante disso, levar o assunto ao príncipe e aos
magistrados.120 É quase irônico, se não fosse confirmatório de certo comportamento, que no
Prefácio do TTP Spinoza faça alusão ao fato de que é mais fácil detectar os indivíduos que
professam a religião cristã por seus arroubos públicos de ódio do que por suas ações de
piedade121. A razão para “combaterem-se com tal ferocidade e manifestarem cotidianamente
uns para com os outros um ódio tão exacerbado”122 é o fato de o vulgo dirigir, aos líderes da
religião, uma glória e uma pompa mundana, incutindo-lhes afetos como o da avareza e
115
As informações deste parágrafo foram fundamentalmente retiradas de NADLER, S. 2011. Ps. 215-240.
Estudos importantes sobre a recepção do TTP logo após a sua publicação podem ser encontrados em ISRAEL, J.
“The early Dutch and German reaction to the Tractatus Theologico-Politicus: foreshadowing the
Enlightenment’s more general Spinoza reception?”. In: MELAMED, Y. ROSENTHAL, M. (eds). Spinoza’s
Theological-Political Treatise: A Critical Guide. Cambridge: Cambridge University Press, 72-100;
KOLAKOWSKI, L. “Bredenburg. L’irrationalisation de la religion, produit du rationalisme”. In: Chrétiens sans
Église. La Conscience religieuse et le lien confessionnel au XVIIe siècle. Paris: Gallimard, 1987. P. 250-292;
GOOTJES, A. “The First Orchestrated Attack on Spinoza: Johannes Melchioris and the Cartesian Network in
Utrecht”. In: Journal of the History of Ideas, Volume 79, Number 1, January 2018, pp. 23-43 e BEGLEY, B.
“Naturalism and its political dangers: Jakob Thomasius against Spinoza's Theological-Political Treatise. A
study and the translation of Thomasius’ text”. In: The Seventeenth Century, Volume 34, 2019 - Issue 5, Ps.
1-22.
116
Ver Carta 42.
117
Conforme a resposta de Spinoza na carta 43.
118
Ver carta 67.
119
Cf. NADLER, S. 2011, P. 229.
120
Ver a Carta 68.
121
G III, 8.
122
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P.126; G III, 8.
259
123
Pierre-François Moreau (MOREAU, P.F. “Sacerdos levita pontifex: les prêtres dans le lexique du Traité
théologico-politique”. In: Kairos, 11 (1998) 33–40) sustenta que Spinoza está, aqui, tratando do ódio teológico.
Vale lembrar, porém, que Spinoza não emprega esta expressão no contexto do Prefácio: ela surgirá apenas no
Capítulo XVII, para tratar do ódio que o povo hebreu, no regime teocrático, poderia vir a dirigir a seu soberano.
É claro que a expressão tem uma história pregressa e posterior ao uso spinozista, mas nos resguardamos, aqui, a
empregar a expressão somente para descrever o fenômeno específico do ódio encontrado na teocracia hebraica.
124
Grifo e tradução meus. MEYER, L. 1988, P. 21.
125
Para estas leituras, ver Introdução.
126
MILNER, J.C. 2013, P. 104.
127
G III, 56.
128
Na verdade, Milner amplia esta conclusão para o nascimento da Europa democrática como um todo, que,
segundo ele, surge não apesar do extermínio judaico, mas por causa dele. Ver MILNER, J.C. Les penchants
criminels de l’Europe démocratique. Paris : Verdier, 2003.
260
Milner não teme pronunciar a expressão perseguição; e sua sugestão é pura e simplesmente a
de um Spinoza antissemita.
129
G III, 56-57.
130
Conforme MILNER, J.C. 2013, P. 26, 34 e também MÉCHOULAN, H. Les juifs du silence au Siècle d’Or
espagnol. Paris: Albin Michel, 2003.
131
MILNER, J.C. 2013, P. 33.
261
As consequências que Milner retira de sua leitura, embora argumentadas com rigor,
não serão subscritas por nós. É importante reter de sua interpretação, no entanto, alguns
aspectos. Em primeiro lugar, o mérito de trazer a questão do ódio para o centro do debate
teológico-político no contexto retórico do TTP. Em segundo, aberto este caminho, ela nos
servirá de contraste. Enquanto Milner se concentra no ódio que as demais nações dirigem aos
judeus, gostaríamos, aqui, de tratar do ódio que estes nutriram pelas demais nações num certo
período de sua história – o que denominaremos, a partir de agora, de ódio pelo exterior. Uma
análise do mecanismo de desenvolvimento do ódio no cotidiano do primeiro Estado hebreu
nos encaminha não apenas à conclusão de que, para Spinoza, uma comunidade política pode
funcionar de maneira exemplar ainda que seu vínculo afetivo básico seja seu ódio comum a
um inimigo exterior, mas também a de que, no exemplo da teocracia hebraica, o ódio cumpre
papel relevante no movimento de interiorização do exterior: que, como vimos, é o princípio
de funcionamento daquela teocracia de contornos democráticos.
Assim, o amor devoto explica apenas em parte a dinâmica afetiva do Estado hebreu.
Falta seu complemento imediato: o ódio. Uma vez que se tratava de uma teocracia, os afetos
comunitários estavam sempre informados pelo processo de sacralização da existência, de
modo que se tratava não de qualquer ódio, mas de odium theologicum. Eis, segundo Spinoza,
o “pior ódio dos súditos”134. O amor próprio, patriótico, era complementado por um ódio ao
exterior: odiar as demais nações fazia parte de suas práticas cotidianas. Este ódio se
considerava piedoso: e apenas se considerava, uma vez que, efetivamente, o ódio jamais pode
132
MILNER, J.C. P. 20.
133
MILNER, J.C. 2013, P. 101.
134
ESPINOSA, B. 2019, P. 348; G III, 212.
262
sê-lo135. O ódio profundo que sentiam pelos estrangeiros, inimigos do reino de Deus, era
ainda aumentado pela reciprocidade136: as demais nações, porque odiadas aparentemente sem
razão137, odiavam o Estado hebreu na mesma medida.
135
EIV, P. XLV.
136
EIII, P. XLIII.
137
EIII, P. XL.
138
EIII, P. XI, esc. Contrariamente a Descartes, que elenca uma lista de seis paixões primitivas: a admiração, o
amor, o ódio, o desejo, a alegria e a tristeza. Ver artigo 69 das Paixões da Alma (AT XI, 380).
139
ESPINOSA, B. 2015a, P. 261; EIII, P. XIII, esc.
140
Grifo meu. Ibid.
141
Grifo meu. DESCARTES, R. 1973, P. 258; AT XI, 387.
142
AT XI, 391.
143
AT XI, 389-390.
144
Ver as Definições dos Afetos, ao fim da EIII, para uma exposição detalhada.
145
Diz Descartes no artigo 137 das Paixões: “O que mostra que todas as cinco [paixões] são muito úteis com
respeito ao corpo, e mesmo que a tristeza antecede de alguma forma e é mais necessária que a alegria, e o ódio
mais que o amor, porque importa mais repelir as coisas que prejudicam e podem destruir do que adquirir as que
263
Spinoza, o ódio, enquanto variação da tristeza, faz com que, na mente, passemos a uma
menor perfeição e, no corpo, tenhamos nossa potência de agir diminuída146 – o que cada
indivíduo, dado seu esforço por perseverar em seu ser147, tentará evitar. A princípio, então, o
ódio não pode ser cultivado nem mesmo como recurso último de sobrevivência, como parece
ser possível no interior da teoria moral cartesiana.148
O que pode explicar, então, que os hebreus tenham feito do ódio uma prática
cotidiana, acrescentando-a à sua biopolítica, convertendo-o, aos poucos, numa segunda
natureza149? Uma primeira resposta possível é a de que, entre eles, o ódio não surgia jamais
sozinho, mas combinado a um extremo amor próprio: pela pátria, pelos demais cidadãos e
pelo seu Deus. A constância do amor gerava devoção às leis e à religião, bem como um
altruísmo notável. Na verdade, o ódio que nutriam por tudo que era exterior, que escapa à
realidade de seu Estado e religião, era complementar a este extremo amor próprio. Talvez
possamos lançar a hipótese de que o fenômeno que experimentavam era próximo ao que
Spinoza denomina flutuação de ânimo: evidentemente não da mesma flutuação que
caracteriza a superstição ou a dúvida, uma vez que não se dirigem ao mesmo objeto150. Como
a mente não pode, por definição, buscar incessantemente aquilo que diminui sua potência de
acrescentam alguma perfeição sem a qual se pode subsistir”. Cf. DESCARTES, R. 1973, P. 276; AT XI, 430.
Sobre a importância do ódio para a conservação do composto alma-corpo, ver o artigo de SHARP, H. “Hate's
Body: Danger and the Flesh in Descartes Passions of the Soul”. In: History of Philosophy Quarterly, Volume 28,
Number 4, October 2011.
146
A tristeza é uma paixão que faz a mente passar a uma menor perfeição. Como a ordem e a conexão das ideias
é a mesma ordem e conexão das coisas (EII, P. VII), estabelece-se simultaneamente uma contraparte no corpo,
que é a diminuição de sua potência de agir. Isto é mais amplamente defendido em EIII, P. XI.
147
Conforme a tese do conatus exposta sobretudo nas seguintes proposições da Parte III: VI, VII, VIII, IX, XII.
148
Naturalmente, Descartes não advoga uma teoria pró-ódio: mais correto seria dizer que, para sua filosofia
moral, é a generosidade, estranho meio-termo entre paixão e emoção intelectual ou virtude, que cumpre este
papel. Sua formulação a respeito do ódio parece ser mais um exercício comparativo, alertando sobre a
importância de nos afastarmos dos objetos exteriores que possam nos causar incomodidades. De todo modo,
cumpre reforçar que, para Spinoza, “odium nunquam potest esse bonum”, cf. EIV, P. XLV; ESPINOSA, B.
2015a, P. 446.
149
É assim que Spinoza classifica, no Capítulo XVII do TTP, o amor dos hebreus pela pátria combinado ao seu
ódio pelas demais nações. Não é claro exatamente a que esta segunda natureza se refere. Ao tratar do fenômeno
do suicídio, em EIV, P. XX, esc., Spinoza afirma que uma das possibilidades para explicar a inobservância da
conservação de seu ser são causas externas latentes, que “de tal maneira dispõem a imaginação e afetam o
Corpo, que este se reveste de uma outra natureza contrária à anterior e cuja ideia não pode dar-se na Mente”
(ESPINOSA, B. 2015a, P. 409). Trata-se da criação de outra natureza, inconsciente e contrária à primeira.
Embora estas duas características não pareçam em marcha no caso hebraico, a ideia de criação de uma nova
natureza se faz presente. Analisaremos brevemente a proposição spinozista acerca do suicídio em nossa
Conclusão.
150
Para uma definição do fenômeno da flutuação do ânimo, ver EIII, P. XVII, esc.Tratamos da flutuação também
no Capítulo 1, ao analisar o circuito de esperança e medo característico da superstição.
264
agir151, pode ser que os hebreus alternassem continuamente entre o amor que sentiam pela
pátria e por seus concidadãos e o ódio que sentiam pelo exterior. Explico: o amor exagerado a
si – que é o afeto primário do povo hebreu – pode fazer com que tudo aquilo considerado
contrário a esta natureza, isto é, que a coíba de alguma forma, seja afetado de tristeza. A
contemplação subsequente das imagens destas nações enquanto aquilo que contribui para sua
destruição (diminuição de perfeição e potência de agir), isto é, como aquilo que lhe afeta de
tristeza, gera o ódio152; a mente se esforçará, então, para recordar aquilo que exclui a
existência deste objeto153, que é, neste caso, a própria existência do Estado hebreu! Veja-se
como eles retornariam à contemplação de si próprios com alegria e, portanto, ao amor
próprio, numa espécie de circuito interminável de amor-ódio que alimenta suas práticas
cotidianas e funda sua identidade nacional. Neste caso, o ódio é tão importante para a
moderação dos ânimos daquele povo quanto o amor, na medida em que, neles, um fornecia
um complemento necessário ao outro. Este ódio seria, ainda, retroalimentado por sua
reciprocidade154: dada não apenas a singularidade, mas a absoluta contrariedade do culto
externo hebraico em relação às demais nações155, despertavam o ódio delas; o que termina por
criar um “novo Ódio”156, ainda mais profundo e duradouro que o primeiro.
151
Ver acima nota com as passagens sobre a tese do conatus.
152
EIII, P. XXII.
153
EIII, P. XIII.
154
EIII, P. XLIII.
155
De fato, como vimos na breve exposição da hipótese de Milner, Spinoza parece situar a origem do ódio das
demais nações para com os hebreus nas práticas religiosas dos próprios, isto é, na singularidade de seu culto
externo. Ver GIII, 56-57, 215.
156
ESPINOSA, B. 2015a, P. 305; EIII, P. XLIII, esc.
157
EII, P. XVI.
158
EIII, P. LI.
265
mais é do que contemplar as afecções do corpo humano como presentes.159 Como se sabe, a
existência em ato da causa exterior do afeto não é requerida para a existência e manutenção
deste mesmo afeto. Prova disso é o fato de que pode-se ser afetado de alegria e tristeza tanto
pela imagem de uma coisa passada ou futura quanto pela imagem de uma coisa presente.160 O
que o ódio exige, então, é apenas a presentificação das imagens resultantes das afecções
corporais que afetam o corpo de tristeza: em nosso caso, a apresentação da existência das
nações estrangeiras à mente dos hebreus. Ainda que o ódio tenha como atitude consequente o
afastamento ou a destruição da coisa odiada, quer dizer, do ponto de vista da mente, a
exclusão daquelas imagens, o ato de tornar presente a mente é ele mesmo um ato de inclusão.
Mesmo que se esforce para excluir, portanto, o ódio necessita incluir.
Tanto o amor dos hebreus pela pátria quanto o ódio que dirigiam às nações
estrangeiras era temperado por um afeto adicional: a piedade. Do ponto de vista do amor, a
piedade era responsável por incitar o altruísmo, ou seja, a caridade para com o próximo161; do
ponto de vista do ódio, fazia nascer um “ódio permanente e mais arraigado nos ânimos que
qualquer outro [...] e não há, decerto, ódio maior e mais pertinaz que um ódio assim”162. O
ódio dos hebreus é, num outro contexto, também classificado como ódio teológico [odium
theologium]: para não incitar tal gênero de ódio no povo, os príncipes deviam observar
rigorosamente as leis do Estado, ou seja, as leis da religião.163 De início, então, o ódio piedoso
parece se relacionar ao contexto religioso; e podemos apostar, numa primeira aproximação,
que ele se dá justamente quando o indivíduo ou o povo julga que um terceiro pecou ou
cometeu algum dano para com Deus.
A piedade, como vimos, é definida na Ética como “o desejo de fazer bem que é
engendrado por vivermos sob a condução da razão”164. Ali, ela desempenha função
importante na fundação e manutenção de uma sociedade de homens conduzidos sob a razão.
Já no TTP, a piedade é um dos signos confirmatórios do verdadeiro profeta. Deus se serve dos
159
EII, P. XVII, esc.; EIII, P. XXVII, dem.
160
EIII, P. XVIII.
161
GIII, 216.
162
ESPINOSA, B. 2019, P. 351; G III, 215.
163
“Os príncipes deviam, portanto, até no seu próprio interesse, procurar administrar tudo segundo as leis
prescritas e bem conhecidas de todos, se queriam ser alvo das maiores honras por parte do povo, que nesse caso
os venerava como ministros do Estado de Deus e como alguém que fazia as vezes de Deus. Caso contrário, seria
impossível escaparem ao pior ódio dos súditos, que costuma ser o ódio teológico”. ESPINOSA, B. 2019, P. 348;
G III, 212.
164
ESPINOSA, B. 2015a, P. 433; EIV, P. XXXVII, esc. I.
266
piedosos para manifestar sua piedade e dos ímpios para executar sua cólera.165 Portanto, ao
lado de uma imaginação vívida, os profetas tinham “o ânimo voltado unicamente para a
justiça e o bem”166. Já mostramos que Spinoza é categórico ao afirmar que os hebreus não
vivam sob a condução da razão: bem ao contrário, nutriam uma ideia inadequada de Deus e
jamais conheceram a verdadeira virtude. De modo que, seguindo esta tese, todo o enunciado
da Proposição XXXVII da Parte IV pode ser lido negativamente: não vivem sob a condução
da razão, não desejam o bem para os demais homens e é tanto menor o conhecimento de
Deus que possuem.167 Se a piedade surge, então, apenas no contexto do conhecimento
adequado e da vida sob a condução da razão, algo como um ódio piedoso é simplesmente
uma categoria fictícia, um oxímoro. Quando analisamos com cuidado as passagens em que
este tema surge, veremos que Spinoza promove uma classificação em segundo nível: não se
trata de um ódio efetivamente piedoso, mas de um ódio que tomava a si próprio como
piedoso. “Julgavam até que tal ódio era piedoso”168 e “na medida em que se considerava
piedoso...”169: psicologicamente, o ódio piedoso nada mais é que uma espécie de autoengano
coletivo. O fenômeno específico do autoengano não nos interessará aqui, ao menos não
enquanto pode ser descrito metafísica e epistemologicamente. É sob o registro
político-afetivo, e não sob o registro do ser, que este fenômeno nos é relevante: ou seja, do
ponto de vista dos efeitos por ele produzidos no interior de um Estado como o dos hebreus, o
que nos encaminha a uma meditação mais geral sobre o seu papel na configuração de uma
comunidade política determinada.
165
ESPINOSA, B. 2019, P. 149; G III, 31.
166
Ibid.
167
O enunciado integral da proposição é o seguinte: “O bem que cada um que segue a virtude apetece para si,
ele também o desejará para outros homens, e tanto mais quanto maior conhecimento de Deus ele tiver”. Cf.
ESPINOSA, B. 2015a, P. 431; E IV, P. XXXVII. Os hebreus certamente desejavam o bem aos demais cidadãos,
mas disso não se segue que tinham um conhecimento adequado de Deus, tampouco que viviam sob a condução
da razão.
168
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 350; G III, 214.
169
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 351; G III, 215.
170
MIQUEAU, C. « L'amour de la patrie. À propos de la singularité de l'État mosaïque. ». In : JAQUET, C. (et
al.). Spinoza, philosophe de l’amour. Saint-Étienne : Publications de l’Université de Saint-Étienne, 2005.
171
Emprego, neste trabalho, a expressão “escravos” apenas para fazer referência ao uso que Spinoza faz do
conceito. Há, contemporaneamente, um debate importante que procura modificar a nomenclatura para
“escravizados”, de modo a evidenciar o caráter antinatural da exploração à qual determinados grupos foram
267
historicamente submetidos. Procurei, em outros casos, substituir “escravidão” por “escravização” ou “servidão”
com base no mesmo argumento. Para uma discussão sobre a perpetuação das relações de dominação na
semântica da língua, ver o artigo de Elizabeth Harkot-de-La-Taille e Adriano Rodrigues dos Santos: “Sobre
escravos e escravizados: percursos discursivos da conquista da liberdade”, In : III Simpósio Nacional Discurso,
Identidade e Sociedade (III SIDIS). Dilemas e desafios na contemporaneidade. Disponível em:
https://www.iel.unicamp.br/sidis/anais/pdf/HARKOT_DE_LA_TAILLE_ELIZABETH.pdf.
172
G III, 214.
173
Bíblia de Jerusalém. 2016. P. 1010.
268
terapêutica de salmos deste gênero para o coração cristão; e, mais ainda, que se preocupa em
conciliar o ensinamento do Cristo, tal como expresso no Sermão da Montanha, com as
violentas declarações, por exemplo, do Salmo 137174, que clama pelo esmagamento dos bebês
da Babilônia contra a rocha.175 Não só as interpretações teológicas estão comprometidas com
uma necessidade de síntese, como insistem, igualmente, em neutralizar o ódio, tendo como
premissa a ideia de que ele jamais pode exercer papel integrador. Na contramão destas
leituras, Spinoza sublinha que o ódio encontra ao menos um exemplo histórico em que, ao
invés de impedir, sustentou, com estabilidade e segurança, certa comunidade política.
174
O livro de Daniel Nehrbass tem o mérito de tomar as passagens imprecatórias em sua positividade, muito
embora ainda procure retirar o ódio da esfera humana, já que, segundo sua interpretação, trata-se de entregá-lo
ao juízo divino – uma leitura apaziguadora, cuja motivação é fornecer a estas passagens uma função terapêutica.
Seu livro também apresenta uma boa compilação das leituras que vêm sendo feitas destas passagens,
considerando o problema conciliatório com o ensinamento do Cristo. Ver NEHRBASS, D. Praying Curses: The
Therapeutic and Preaching Value of the Imprecatory Psalms. Eugene: Pickwick Publications, 2013. Nehrbass
menciona uma quantidade razoável de artigos, mas gostaríamos de chamar a atenção para o importante trabalho
de VOS, J. G. "The Ethical Problem of the Imprecatory Psalms." In: Westminster Theological Journal 4
(1942):123-38.
175
“Ó devastadora filha de Babel, / feliz quem devolver a ti / o mal que nos fizeste! / Feliz quem agarrar e
esmagar / teus nenês contra a rocha!”, cf. Salmo 137, vs. 8-9. Tradução via Bíblia de Jerusalém. 2016. P, 1008.
269
Capítulo 5.
O DIREITO E O SAGRADO
1
HOBBES, T. 2019, P. 226.
2
DERRIDA, J. 2018a. P. 74-75.
3
ESPINOSA, B. 2019, P. 180; G III, 61.
4
Conforme a tradução proposta por Diogo Pires Aurélio. Ver ESPINOSA, B. 2019, P. 119.
270
manemus et Deus manet in nobis, quod de Spiritu suo dedit nobis5. Enfim, o terceiro
elemento da série é a falsa designação do local de publicação – Hamburgo –, bem como do
selo editorial – um suposto Henrich Künraht –, dois artifícios aplicados a fim de despistar os
censores. Não há qualquer indicação de autoria.
5
Em tradução a partir do grego, Frederico Lourenço assim verte o trecho em questão (1 João, IV, 13): “nisso
sabemos que permanecemos n’Ele e Ele em nós: porque nos deu a partir do Seu espírito” (2018, P. 527). Já na
Bíblia de Jerusalém, lemos: “Nisto reconhecemos que permanecemos nele e ele em nós: ele nos deu seu
Espírito” (2016, P. 2131).
6
São os tradutores da edição da PUF que o notam, cf. SPINOZA, B. 2016, P. 697.
7
ESPINOSA, B. 2019, P. 306; G III, 176.
8
“E nisso conhecemos que O conhecemos: se observarmos os Seus mandamentos. Aquele que diz que O
conheceu e não observa os Seus mandamentos é mentiroso e nele a verdade não está.” Cf. Bíblia. 2018, P. 521.
271
discordarem deles e não defenderem os mesmos dogmas”9 são os únicos a que se deve
denominar anticristos (antichristos).
9
ESPINOSA, B. 2019, P. 306; G III, 176.
10
Carta 76. Tradução minha a partir de SPINOZA, B. 1988b, P. 396.
11
Cf. carta 67.
12
G III, 8.
272
sim o dogma da obediência anunciado em tantas passagens centrais do TTP.13 Que este
excerto surja nada menos do que na epígrafe da obra em questão nos alerta, tanto quanto seu
extenso título e os dados fictícios sobre sua publicação, a respeito de uma propriedade
importante da reflexão spinozista sobre a teologia e a política: além de ser um trabalho
dedicado a estabelecer um campo livre para o filosofar, no qual não seja obstruído pelas
determinações institucionais – sejam elas vindas das autoridades civis ou eclesiásticas –, é
também sua função tratar da religião tomada de modo minimalista como prática da caridade.
14
Como desejam alguns, e como os autoriza a pensar o título e a reveladora carta a
Oldenburg em que são elencados os objetivos da confecção do texto15, o Tratado talvez seja
de fato um manifesto pró-liberdade de expressão, mas não deixa de ser também a elaboração
de uma filosofia da religião concentrada naquilo que Spinoza define, e que teremos de
discutir com mais cautela, como obediência.
13
Especialmente nos capítulos XIII, XIV e XV.
14
Para erguer tal hipótese, não é necessário nos comprometermos com uma leitura exotérica ou esotérica do
texto de Spinoza, como se, no título, surgisse o tema aberto do livro e, na epígrafe, sua mensagem cifrada. O
recurso à intenção do autor, bem como a uma noção de legitimidade interpretativa, é um princípio hermenêutico
supérfluo aqui.
15
A Carta 30.
16
No artigo intitulado “¿En qué sentido es « teológico » el Tratado « Teológico-Político » ? Sobre « teología » y
« religión » en Spinoza”. In: Scripta theologica: revista de la Facultad de Teología de la Universidad de
Navarra, ISSN 0036-9764, Vol. 33, Fasc. 1, 2001, págs. 213-230.
17
Por exemplo, G III, 10, 168, 174, 179, 206.
18
SANER, H. apud SANZ, P. 221.
19
SANZ, V. 2001, P. 222.
273
de determinadas expressões na obra de Spinoza, algumas vezes dispostas sem o mesmo rigor
definitório com o qual os leitores da Ética estão acostumados. Ao mesmo tempo, ela não
pode surgir desacompanhada de um exame argumentativo mais profundo – desta vez, de
análise conceitual –, sobretudo num caso em que a obediência opera para além do território
religioso. É provável também que as intuições contemporâneas contaminem uma apreciação
mais neutra da obediência: hoje, quando pensamos em obediência, imediatamente a
traduzimos em servidão. Que tanto o sábio quanto o ignorante obedeçam, ainda que
motivados por diferentes razões, é central para que Spinoza possa conquistar a estabilidade e
segurança da vida comum, tal como parece ser sua intenção se considerarmos seu projeto
teológico-político de modo amplo. Daí a necessidade de se investigar contextualmente, mas
também conceitualmente, o tema da obediência em sua obra.
A lei
No capítulo do Leviatã dedicado a tratar das leis civis, Thomas Hobbes estipula
algumas propriedades da lei em geral: em primeiro lugar, a lei não é mero conselho, mas um
comando; em segundo, não um comando de qualquer um a qualquer outro, mas sim dado
“por quem se dirige a alguém já anteriormente obrigado a lhe obedecer”20. Estão
compreendidos nestas breves linhas alguns aspectos que não devem ser perdidos de vista ao
considerarmos a estrutura geral da lei: o fato de que é sempre uma imposição de poder – e,
por isso, sempre envolve algum grau de força e violência – e, mais do que isso, que só se
configura como tal se advier de uma fonte de autoridade que detenha o direito sobre esta
violência. Embora seja do interesse de Hobbes, no capítulo do qual extraímos a definição,
refletir sobre a lei civil, acompanhar sua dedução das leis naturais nos permitirá refletir sobre
20
HOBBES, T. 2019, P. 226.
274
os limites do alcance político da razão tanto quanto a necessidade das operações teológicas a
fim de conquistar a máxima legitimidade da violência e, portanto, da construção de algo
como uma esfera de direito.
21
Gewalt pode significar poder autorizado e, ao mesmo tempo, violência. Para uma discussão mais aprofundada,
ver a Introdução.
22
BENJAMIN, W. 2016, P. 66.
23
DERRIDA, J. 2018a, P. 74-75.
275
Uma lei é dita natural, segundo Hobbes, quando é o “ditame da reta razão no tocante
àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de
assegurar a conservação da vida e das partes de nosso corpo”24. O que configura a lei natural,
então, é tanto sua origem racional quanto a finalidade de subsistência. Contra aqueles que
remetem as leis naturais seja a um acordo entre as nações mais sábias – incapazes de precisar
quem deverá julgar quanto aos saberes das demais nações –, seja a uma espécie de consenso
geral entre toda humanidade dotada de razão – posto que, se assim o fosse, a violação da lei
deveria ser verificada apenas na irracionalidade das crianças e dos loucos, o que é
manifestamente desmentido pelos fatos –, Hobbes, a fim de garantir a efetividade das leis,
prefere se fiar na objetividade e validade intersubjetiva da razão. O cálculo racional impõe,
assim, uma lei fundamental, princípio ordenador de todas as demais: a paz deve ser
primeiramente buscada, exceto quando isso não for possível devido ao ambiente no qual se
encontra, engendrando a necessidade de defesa, ou melhor, a preparação para a guerra. A
dedução das demais leis naturais deverá observar, porém, o cenário ideal, isto é, aquele no
qual a conquista de uma paz duradoura é tomada como fim e não adaptada ao sabor das
circunstâncias desfavoráveis.
Acontece que as leis naturais são muitas: no que toca à vida em sociedade, Hobbes
apresenta, no tratado Do Cidadão, um conjunto de nada menos que vinte25. Sua dedução via
razão mais parece uma listagem de virtudes morais: a quinta lei, por exemplo, incita a
misericórdia, a oitava proíbe a arrogância, a nona ordena a humildade. Não por acaso: posto
que racionais, as leis naturais são reconhecidas como boas por todo o gênero humano. Se a
razão institui que a paz é não apenas útil, mas boa em si mesma, os meios para sua obtenção
devem usufruir do mesmo status. Estes meios são as próprias virtudes morais como “a
modéstia, a equidade, a confiança, a humanidade, a misericórdia”26: incitam o
comportamento adequado e criam um modelo da prática virtuosa, de modo que a lei natural
pode ser corretamente classificada como lei moral. Ainda que estas leis se multipliquem e
possam vir a confundir o vulgo, há uma espécie de teste simples que resume sua aplicação em
todos os casos possíveis: basta que, diante da dúvida, o indivíduo se coloque no lugar do
24
HOBBES, T. 2002, P. 38.
25
Nos capítulos dois e três da Primeira Parte. O mesmo percurso argumentativo é adotado no Leviatã, nos
capítulos 14 e 15 também de sua Primeira Parte. Neste último, as leis naturais totalizam dezenove.
26
HOBBES, T. 2002, P. 72.
276
outro. Eis uma maneira funcional de dissuadir aquele que pretende infringir as leis naturais,
tão amplamente condensada na formulação “não faça aos outros o que não quiseres que te
façam”27, citada em latim, por Hobbes, como “quod tibi fiere non vis, alteri ne feceris”28.
27
HOBBES, T. 2002, P. 69.
28
Ibid.
29
HOBBES, T. 2002, P. 74.
277
30
MOREAU, P.F. « Loi divine et loi naturelle selon Hobbes ». In : Revue Internationale de Philosophie, Vol. 33,
No. 129, HOBBES (1679-1979) (1979), pp. 443-451.
31
MOREAU, P.F. 1979, P. 450.
278
que para garantir a maior autoridade possível para estas leis é necessário recorrer a Deus: ao
lado da razão, outro dos pressupostos inquestionáveis dos modernos. Mesmo assim, é preciso
encontrar um local em que a mensagem divina é comprovadamente transmitida: onde mais
senão nas Sagradas Escrituras? Também o texto será investido de autoridade prévia,
sacralizado pela pena de seu autor. Será interessante manter em mente, a seguir, estes
inquestionáveis argumentativos para entrever a especificidade da posição de Spinoza.
Em sentido absoluto, para Spinoza, uma lei é “aquilo em conformidade com o qual
cada indivíduo, ou todos, ou alguns de uma mesma espécie, agem de uma certa e determinada
maneira”32. Há a lei que depende da necessidade da natureza e aquela que deriva da decisão
humana. No primeiro caso, a lei não pode ser violada: ela descreve o comportamento de um
indivíduo – que, caso não obedeça, simplesmente deixará de ser um indivíduo daquela
espécie. A lei de movimento e repouso que rege os corpos, assim como a lei da mente
humana segundo a qual, ao se lembrar de uma coisa, lembra-se no mesmo ato de uma coisa
parecida ou de algo cuja experiência remonte à primeira, deriva da necessidade da natureza
humana, de modo que todos os homens lhe estão sujeitos. Trata-se, assim, de uma lei
descritiva, que não tem qualquer fim para além de si própria. Quando se passa para as leis
humanas, que mais propriamente são designadas por direito, adentra-se o âmbito prescritivo.
A transferência do direito natural individual para se submeter a certa regra coletiva é fruto de
convenção, uma vez que os homens a prescreveram para si próprios com um fim que escapa à
lei em si (neste caso, viver em comodidade e segurança). A noção de convenção poderia ser
muito rapidamente associada à de arbítrio, o que contrastaria com as críticas à liberdade da
vontade apresentadas por Spinoza ao longo de toda a sua obra. Pode-se manter o conceito de
decisão desde que se entenda o homem como parte da natureza e as leis como fruto da
potência de sua mente. O homem pode ser concebido sem recurso a estas leis: quer ele viva
sob a lógica de transferência de direito ou não, não deixará de ser homem. Não será mais
homem, porém, se sua mente não se ordenar mais segundo o princípio associativo
supramencionado. Ainda, o homem é a causa próxima da fixação destas leis, e são elas as
mais aptas a tratar das coisas singulares, porque são leis também particulares. Por fim, é
32
ESPINOSA, B. 2019, P. 177; G III, 57.
279
33
G III, 58.
34
Grifo meu. HOBBES, T. 2002. P. 74.
35
ESPINOSA, B. 2019, P. 178; G III, 58-59.
280
lei, distingue, com respeito ao seu fim, entre lei humana e lei divina. A lei humana “serve
unicamente para manter a segurança do indivíduo e da coletividade”36, ao passo que a lei
divina se dirige ao soberano bem, definido como o “verdadeiro conhecimento e amor de
Deus”37. Abandonado o terreno da descrição, é no campo da prescrição que uma nova
distinção surge. Estas leis serão “humanas” no sentido de serem ordenadas, fruto de uma
convenção individual e coletiva, envolvendo sempre a possibilidade de violação: mas serão,
ainda, leis humanas ainda mais humanas se tiverem como fim a segurança, e serão leis
humanas com status divino se se puserem como fim a conquista do sumo bem.
Esta lei divina, que é também humana, deve perseguir o sumo bem, que consiste, por
sua vez, no conhecimento e amor de Deus. Além de um fim específico, a lei divina exige uma
postura particular: deve ser perseguida por ela mesma, e não por temor de algum castigo ou
por um amor de outra coisa que se imagina que o amor de Deus engendrará. Por um lado, a
lei divina pode ser considerada prescritiva: enquanto Deus existe em nossa mente, os meios
para atingir o sumo bem são como as ordens que ele nos prescreve. Decreto, ordem: Spinoza
não poupa o vocabulário jurídico ao tratar de Deus.38 Ao mesmo tempo, para que seja efetiva,
a lei divina não pode adotar a postura de lei: tem de ser observada e as “ordens” de Deus
obedecidas a partir de uma correta compreensão de sua necessidade. Há uma distinção de
postura entre considerar algo como lei – o que supõe a possibilidade de violação e, portanto,
se inscreve na lógica de castigo e recompensa – e tomar como uma verdade eterna – no qual
será abraçado conscientemente, concluindo que a lei é o melhor caminho a ser seguido. O
amor a Deus consiste na correta compreensão desta necessidade. Há apenas uma exceção: a
lei divina revelada, que pode ser corretamente designada como divina, ainda que seu fim seja
a conservação dos bens relativos ao corpo. A lei de Moisés é, portanto, lei divina, apesar de
reservada a um grupo particular de indivíduos, num tempo histórico determinado, de modo a
garantir a manutenção de seu Estado: tendo sido ela instituída pela “luz profética”39, tal como
36
ESPINOSA, B. 2019, P. 179; G III, 59.
37
Ibid.
38
“O nosso supremo bem e a nossa felicidade resumem-se, pois, no conhecimento e amor de Deus. Os meios
que requer essa finalidade de todas as ações humanas, isto é, o próprio Deus na medida em que a ideia dele está
em nós, podem designar-se por ordens de Deus, uma vez que nos são de alguma forma prescritos por ele
enquanto existente em nossa mente. Por isso, a regra de vida que concerne essa finalidade chama-se, e muito
bem, lei divina”. ESPINOSA, B. 2019, P. 180; G III, 60.
39
ESPINOSA, B. 2019, P. 181; G III, 61.
281
ensina a Escritura, pode ser dita lei divina – embora num sentido diverso da lei divina natural
que cumpre perseguir ao longo do capítulo.
40
G III, 61.
41
G III, 63.
42
G III, 63.
43
Não pretendo opor, aqui, a exterioridade da lei mosaica e interioridade do ensinamento cristológico. O
capítulo anterior sobre o Estado hebreu deve ter deixado claro que há, antes de exterioridade bruta, conexão
entre externo e interno iniciada pelo exterior. Ainda, na seção sobre a obediência deste capítulo, pretendo
mostrar como a interiorização da lei divina também exige um gênero de exteriorização.
44
ESPINOSA, B. 2019, P. 184; G III, 65.
282
Neste universo de múltiplas acepções para o termo lei, quais são, efetivamente, as
principais notas características da lei dita divina?46 De modo geral, ela deve ser separada de
todos os acessórios que circundam as religiões históricas. Em primeiro lugar, conserva um
aspecto universal: é derivada da natureza humana universal – em especial das propriedades
de seu entendimento considerado como sua melhor parte –, o que significa que é válida a
quaisquer indivíduos em todos os tempos e lugares. Para esta lei, a crença nas narrativas
bíblicas é supérflua: não é necessário conhecer ou ter fé nos relatos da Escritura para amar a
Deus, embora, para alguns, este seja o caminho mais acessível. A observação das cerimônias
e de toda pompa religiosa também lhe é exterior. A lei divina consiste puramente em algo
deduzido através da luz natural, ao passo que as cerimônias se mantêm apenas enquanto rito,
de modo a incutir no povo a obediência. Por fim, a lei divina também não engendra
recompensa para além de si própria: o prêmio por amar a Deus é este próprio amor, o castigo
é ser dele privado. O suplício dos insensatos é a sua insensatez: subscreve Spinoza
concordando com Salomão.47 Compreender a natureza, isto é, Deus, e consequentemente
amá-lo de ânimo livre, é experimentar o bem supremo que podemos encontrar nesta vida; já o
caminho oposto consiste na verdadeira servidão, que, diga-se de passagem, não é aqui
designada como pura obediência, mas sim obediência à carne, o que produz inconstância e
instabilidade de ânimo.
Apesar de o amor a Deus e a regra de vida que ele institui serem considerados suas
ordens e, portanto, um gênero de lei, Spinoza nitidamente critica uma certa postura em
relação ao cumprimento das leis. Embora afirme que, num certo sentido, os meios para
perseguir o sumo bem possam ser considerados como ordens, e a regra de vida que ele
engendra, uma lei, Deus não pode ser considerado, nem pela luz natural, nem pelo
45
“De fato, não foram reis que ensinaram, a princípio, a religião cristã, mas simples particulares que, por largo
tempo, contra a vontade dos que detinham o poder e de quem eram súditos, se reuniam habitualmente em Igrejas
privadas, instituíam cerimônias sagradas, administravam, organizavam e decidiam tudo sozinhos, sem terem
minimamente em conta o Estado”. ESPINOSA, B. 2019, P. 375-376; G III, 237.
46
G III, 61-62.
47
G III, 66.
283
ensinamento da Escritura, “como um legislador ou como um príncipe que prescreve leis aos
homens”48. A luz natural ensina que, em Deus, vontade e entendimento não se distinguem. É
apenas a visada humana em relação ao intelecto divino que opera esta separação: assim,
dizemos que Deus entende a natureza do triângulo quando compreendemos que a essência
deste objeto está compreendida como uma verdade eterna em seu intelecto. Dizemos,
também, que Deus tem uma vontade ou decreta algo quando consideramos que a essência
deste mesmo triângulo está contida na natureza divina pela necessidade desta última, da qual
depende. Ainda, afirmamos que Deus tem uma vontade quando a consideração da essência e
propriedades do triângulo como verdades eternas depende exclusivamente da necessidade e
do entendimento divino (e não do triângulo em si). Por consequência, Deus quer e entende no
mesmo ato, de modo que suas afirmações e negações envolvem sempre uma necessidade e
verdade eterna.
48
ESPINOSA, B. 2019, P. 182; G III, 62.
49
ESPINOSA, B. 2019, P. 183; G III, 63.
284
versus sentido jurídico; no interior do direito, sentido humano versus divino; no interior do
divino, uma espécie de convite a interpretar a lei divina como não-jurídica. Afinal, a qual
âmbito pertence a lei divina? Ora entendida no âmbito natural e, portanto, descritivo; ora no
âmbito do direito e, assim, da competência dos homens, a distinção parece disfuncional para
tratar do seu caso singular. A lei divina não pode ser dita absoluta: não descreve o
comportamento dos homens como o faz a lei geral de movimento e repouso ou a lei que dá
conta dos princípios associativos da mente humana. Basta considerar que há homens que
vivem segundo a lei divina e outros não e que nem por isso deixam de ser homens. Por outro,
também não se insere adequadamente na esfera do direito: trata-se de uma lei que, do ponto
de vista do fim, diz respeito a uma regra de vida, mas que não pode admitir a propriedade da
violência e do comando, quer dizer, não pode ser transformada em lei exterior sem ser
transfigurada em outra coisa que não a lei divina. A lei divina só pode ser corretamente assim
chamada se for absoluta, ou seja, se for tomada como necessidade e verdade eterna. Mas uma
estranha verdade eterna que não descreve e carece de necessidade; e que prescreve
comportamento sem constranger. A lei divina prescreve sem prescrever e é absoluta sem
descrever.
50
Sobre Agamben e suas leituras dos dois operadores jurídico-políticos mencionados, ver a Introdução deste
estudo.
285
aspecto essencial possa ser mantido: a exteriorização. Talvez a instabilidade que caracteriza
os principais temas do TTP, sua eterna dinâmica entre externo e interno, seja mesmo
reproduzida nas propriedades formais do livro: um tratado duplo, que articula teologia e
política através de um hífen, que necessita separar os capítulos diretamente teológicos dos
diretamente políticos, e que, para garantir seus objetivos, precisa manter os domínios para
sempre apartados51.
O dogma
51
Num interessante artigo, Jack Stetter reflete sobre o emprego do hífen no título do Tratado Teológico-Político.
À diferença da relação que estabelece, no capítulo XV da obra, entre razão e teologia, ou filosofia e teologia,
que poderia ser expressada pela partícula “e” (já que, neste caso, trata-se de manter a integralidade de cada
domínio), entre teologia e política deve haver “acomodação”, o que explica o emprego do hífen. Apesar de
desconfiar se esta conexão é efetivamente conquistada por Spinoza ao longo do TTP – a não ser sob o signo de
uma tensão insolúvel, a qual venho tentando descrever ao longo deste estudo –, o artigo de Stetter é engenhoso
ao chamar a atenção para um artifício formal que poderia passar por um simples detalhe sem relevância
filosófica. Ver STETTER, J. “Quand « ET » ne suffirait pas : À propos de l’usage d’un trait d’union dans le titre
du Traité Théologico-Politique de Spinoza”. Apresentado em Journées doctorales Franco-japonaises “Et”
,Université Paris 8, org, Christian Doumet, Março de 2014.
52
G III, 174.
53
ESPINOSA, B. 2019, P. 310; G III, 180.
54
G III, 174.
286
praticados, implicarão igualmente a obediência. Um novo vocabulário legal surge: fé, dogma,
obediência. O contexto deixa de ser jurídico, como no tratamento da lei divina, para se tornar
dogmático, inserindo-se no âmbito teológico-político como força de autoridade repressiva.
55
Cf. toda a argumentação do capítulo XIX do TTP. A religião só adquire força-de-lei por decreto do soberano
civil: a ele pertence integralmente o jus circa sacra.
56
Grifo meu. ESPINOSA, B. 2019, P. 304; G III, 174.
57
ESPINOSA, B. 2019, P. 287; G III, 159.
58
“Dito de outro modo, ela [a Escritura] não as deduz e encadeia a partir de axiomas e definições, mas limita-se
a dizê-las de um modo simples e, em abono do que diz, recorre exclusivamente à experiência, isto é, a milagres
287
Ao mesmo tempo, não é bem verdade que o dogma está de todo ausente de conteúdo
interno: basta considerar que, ao invés de eliminar por completo quaisquer saberes
especulativos da Escritura, Spinoza procura, antes, limitá-los a um conjunto simplificado. São
eles:
e a relatos históricos, os quais são também narrados num estilo e com frases que se destinam a emocionar ao
máximo os ânimos do povo (sobre este aspecto, veja-se o que se demonstra no terceiro ponto do capítulo VI).”
Cf. ESPINOSA, B. 2019, P. 297; G III, 167.
288
2 — Deus é único: ninguém pode pôr em dúvida que também isto se requer
absolutamente para que Deus suscite a máxima devoção, admiração e amor,
visto que a admiração e o amor nascem apenas da excelência de um em
relação aos demais.
4 — Deus tem, sobre toda as coisas, direito e poder soberano e tudo quanto
faz é por seu beneplácito absoluto e graça singular, e não por coação de um
direito: na verdade, todos estão obrigados a obedecer-lhe em absoluto, mas
ele não está obrigado a nada perante ninguém.
59
Para uma análise detalhada das transfigurações antropomórficas contidas no credo mínimo, ver MATHERON,
A. 1971, P. 94-127.
289
em que vontade e intelecto se distinguem: exatamente aquilo que a lei divina dizia recusar ao
exigir o conhecimento adequado de Deus, único capaz de engendrar o seu amor e produzir a
busca pelo sumo bem. Que dogma e lei divina sejam distintos e incomensuráveis em pontos
essenciais é menos surpreendente que o fato paradoxal de que encaminham, em igual medida,
à salvação60: a composição entre mandamento e salvação é, aliás, um ensinamento apenas
acessível por revelação, e o máximo que se pode obter quanto a ele é uma certeza moral.
Manter esta fratura fundamental entre ensinamento interior e exterior, porém, é fundamental
para que se garanta “a salvação de quase todos”61 e talvez não seja exagerado dizer que é ela
que constitui propriamente o ensinamento fundamental e não-dito de todo o Tratado
Teológico-Político.
Obediência e liberdade
60
G III, 185, 188; 263.
61
ESPINOSA, B. 2019, P. 320; G III, 188.
62
G III, 175, 177, 178.
290
Constant pretende delimitar, como já anuncia o título, dois gêneros de liberdade: aquela que
se verifica nas sociedades antigas – por exemplo, na pólis grega, à exceção do caso singular
de Atenas, e na república romana – e a outra característica das sociedades modernas das quais
se assume participante. Enquanto nas sociedades modernas contemporâneas a Constant –
segundo a visão de um “inglês, um francês, um habitante dos Estados Unidos da América”63
– a liberdade é tomada como o direito de pensar e agir conforme suas inclinações individuais,
reservando à esfera privada máxima independência e soberania, nas sociedades antigas
reinava uma liberdade pública mais efetiva, seja permitindo o exercício político direto
(não-representativo, portanto), seja implicando uma vigilância severa sobre todos os aspectos
da vida. Ainda, a noção de liberdade religiosa, tão cara aos modernos, seria considerada, nas
sociedades antigas, como uma espécie de sacrilégio: deve-se seguir e obedecer a religião
instituída pelo corpo social. “A autoridade do corpo social se interpõe e incomoda a vontade
dos indivíduos”64: quem vos fala é um moderno.
Seu discurso não é, assim, apenas descritivo: trata-se de tomar partido pela liberdade
dos modernos e de denunciar os excessos perigosos que a revolução francesa recente, tanto
quanto alguns de seus teóricos mais célebres, foram responsáveis por. Uma das marcas da
superioridade do moderno, segundo Constant, é o fato de poder prescindir da guerra. Ao
passo que as sociedades antigas necessitavam da guerra contra as nações estrangeiras, seja
para escravizar mais indivíduos, seja para conquistar mais riquezas e território, as sociedades
modernas podem enriquecer apenas praticando o comércio. Num mundo europeu em que a
escravização já fora institucionalmente abolida, o comércio permitia justamente as trocas
entre as nações sem perda de capital humano, substituindo a lógica do saque pela da troca
pacífica. A despeito de certa ingenuidade retórica cara ao gênero dos discursos públicos, é
bem verdade que seu autor não vê – ou não quer ver – as mutações que tanto a escravização
quanto a guerra sofreram historicamente. A experiência que temos ao viver num país como o
Brasil, sobretudo considerando o tema da escravização, demonstra que inexistência
institucional não significa supressão prática. Assim, Constant jamais considera a manutenção
das relações de servidão por outros meios – por exemplo, através da existência da pobreza ou
da escravização institucional em outros países não-europeus – e menos ainda o surgimento de
63
Tradução minha. Ver CONSTANT, B. Œuvres politiques de Benjamin Constant. Avec Introduction, Notes et
Index par Charles Louandre. Paris : Charpentier et Cie, Libraires-Éditeurs, 1874. P. 260.
64
Grifo e tradução meus. Ver CONSTANT, B. 1874, P. 261.
291
novas relações de guerra pautadas e justificadas por interesses comerciais. Seja como for, o
ponto de Constant, porém, é glorificar o moderno e criticar, em última análise, o terror
revolucionário condensado nas atitudes de Robespierre, associando-o à liberdade dos antigos.
65
Para uma abordagem histórica sobre o nascimento do liberalismo francês tanto quanto o importante papel
desempenhado por Constant neste processo, ver ROSENBLATT, H. Liberal Values. Benjamin Constant and the
Politics of Religion. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 e VINCENT, S.K. Benjamin Constant and
the Birth of French Liberalism. New York: Palgrave Macmillan, 2011.
66
Apud. BERLIN, I. 2002, P. 174. Tradução minha.
292
Já para o caso da liberdade positiva: enquanto a negativa trata-se de uma liberdade de,
a positiva de uma liberdade para. Mais preocupado com a natureza do soberano, este gênero
de liberdade é frequentemente responsabilizado, pelos proponentes da liberdade negativa,
pela ascensão de regimes tirânicos. É preciso notar, de início, que Berlin é menos caridoso
em seu tratamento da liberdade positiva do que da negativa; ainda, que sua argumentação se
concentra mais em tratar do que julga suas consequências nefastas do que propriamente de
sua definição. Assim, o “positivo” que a qualifica diz respeito à ideia de ser “seu próprio
mestre”: ser fiel a seus próprios princípios, ser um sujeito consciente e, em suma, racional – o
que me constituiria como um ser distinto dos demais que pertencem à natureza. O destino do
assenhoramento de si na cultura, no entanto, parece ter sido o da fragmentação do eu: de um
lado, um eu superficial, inclinado às paixões, que erra e ao qual o indivíduo não corresponde
completamente; de um outro, um eu racional mais oculto e fundamental, íntegro e autêntico,
o qual, afastadas as propriedades e comportamentos contingentes, me constitui
essencialmente como indivíduo. Esta natureza mais elevada pode vir a se confundir com uma
comunidade: uma tribo, uma raça, uma Igreja ou um Estado (para empregar os exemplos de
Berlin). Assim, em prol do exercício de meu verdadeiro eu, sou coagido a agir conforme
aquilo que a instituição julga o melhor; e, do ponto de vista daqueles que detém a soberania,
esta fratura pode inclusive justificar um discurso baseado na suposição de que coagir em vista
do bem de um indivíduo não pode significar, em termos estritos, propriamente coação; e,
mais ainda, que fazer com que o indivíduo aja conforme o desejo institucional é, antes,
fazê-lo agir conforme aquilo que seu eu interior, embora latente, inconsciente e cego para o
reto motivo, faria se estivesse em posse plena de suas capacidades. Historicamente, então,
esta fortuna da liberdade positiva gerou dois comportamentos possíveis: a auto-abnegação
293
67
Carta 50.
68
Eis a discussão do capítulo XX do TTP, a qual abordaremos adiante.
294
69
Nem totalmente identificado às pretensões de Jonathan Israel e dos comentadores liberais, tampouco contrário
ao espírito moderno tal como pretende Antonio Negri. Ver a discussão da recepção política da obra de Spinoza
apresentada na Introdução deste estudo.
70
E, a esta altura da investigação, apenas talvez. Concluiremos por uma outra classificação em nossa Conclusão.
295
A obediência como dado natural da política é um princípio que remete ao menos tão
longe quanto a Aristóteles: tal como a alma governa o corpo e o intelecto governa a alma71,
que haja o governar e o ser governado é necessário e vantajoso para a sobrevivência das
partes72. Spinoza, por sua vez, trata a obediência mais como um dado da história do que da
natureza. A obediência existe lá onde há Estado civil organizado, mas é perfeitamente
concebível, sem impedimentos de princípio, uma comunidade formada inteiramente por
sábios que prescindam do domínio da lei73. Como os homens são mais frequentemente
governados por seus afetos e guiados por sua imaginação, necessitam obedecer para que ao
menos exteriormente ajam como se fossem racionais. A exterioridade pode fazer encontrar,
assim, numa mesma ordem política, sábios e ignorantes: todos obedecendo em uníssono às
leis independentemente das razões particulares. A princípio, então, obedecer significa
adequar-se a um princípio exterior a si próprio74. O tema da obediência é, portanto, mais uma
das ocorrências da questão da exterioridade no pensamento de Spinoza – e talvez o momento
mais crucial de sua aparição. Ao mesmo tempo, é quando há, enfim, o encontro entre teologia
e política: os dogmas da fé, para além de construírem uma certa relação com Deus,
engendram comportamentos para com os demais homens no interior de uma comunidade
dotada de direito. Se for assim, a questão da exterioridade, tomada a partir da obediência, será
o lugar privilegiado para abordar a conexão entre teologia e política no pensamento de
Spinoza.75
71
Aristóteles. De Anima, 410b10-15.
72
Aristóteles. Política, 1254a22-33.
73
G III, 58-59.
74
RAMOND, C. 2007, P. 139.
75
Cf. MACHEREY, P. 2018. « Spinoza et le problème de l’obéissance ». Disponível em:
https://philolarge.hypotheses.org/2387. Última visualização: 18/01/2021 às 16h02min. Ver também o artigo «
Spinoza et la simple obéissance », 2019, disponível no mesmo site.
76
RAMOND, C. 2007, P. 139; 2015, P. 13-35.
77
G III, 188.
296
A começar por um gênero de obediência que poderíamos designar como piedosa. Sua
principal característica é a simplicidade: para demonstrá-lo, basta uma breve recapitulação
78
Não de classes econômicas, mas sim de classes de indivíduos que compõem certa aristocracia intelectual.
79
MACHEREY, P. 2018 e 2019.
80
MAESSCHALCK, M. 2015.
297
dos principais argumentos dos capítulos anteriores. Sabe-se já que os profetas mais imaginam
do que compreendem, e que se sobressaem por sua piedade e devoção mais do que por sua
sabedoria81. Disso se segue que a Escritura, que nada mais é que um conjunto de seus relatos,
ensina de maneira particularmente simples, apelando para milagres e narrativas históricas
adaptadas à sua imaginação particular ao invés de complexas demonstrações axiomáticas. A
diversidade de opiniões sobre Deus presentes ao longo do livro só confirma a pluralidade
imaginativa de seus autores. Assim, se há alguma dificuldade neste livro, ela se deve às
propriedades da sua história: a língua em que foi, informações referentes à psicologia de cada
autor, bem como circunstâncias de confecção, destino e recepção de cada obra canônica
considerada; e não à dificuldade do assunto. O que a Escritura ensina, através dos relatos
proféticos e da construção de determinados modelos morais, é como perseguir uma certa
regra de vida que encaminhe à obediência a Deus. Como esta última não significa nada
menos do que o amor ao próximo, se há alguma ciência na Escritura, será apenas aquela cujos
preceitos proporcionem a obediência a Deus segundo este princípio. A Escritura não condena
a ignorância, mas tão-somente a insubmissão. O título do capítulo XIII articula os operadores
centrais do universo semântico da obediência. Ele o afirma:
Onde se mostra que a Escritura ensina apenas coisas muito simples e não tem por
objetivo senão a obediência; mesmo da natureza divina, ela não ensina senão aquilo
que os homens podem imitar através de uma certa regra de vida. (ESPINOSA, B.
2019, P. 297; G III, 167).
Depois, mostro que o verbo de Deus revelado não consiste em determinado número
de livros, mas num conceito simples da mente divina revelada aos profetas: obedecer
a Deus de plena vontade, praticando a justiça e a caridade. E mostro que esta
doutrina é ensinada na Escritura consoante a capacidade de compreensão e as
opiniões daqueles a quem os profetas e os apóstolos costumavam pregar este verbo
de Deus, de modo a que os homens o pudessem abraçar integralmente e sem
qualquer repugnância. (Grifos meus. ESPINOSA, B. 2019, P. 128; GIII, 10)
81
Cf. Capítulos I e II do TTP.
298
A obediência parece exigir uma certa postura: a Escritura ensina que não basta
obedecer, é preciso fazê-lo “de plena vontade”, abraçando-a “integralmente” e “sem qualquer
repugnância”. Da mesma forma, ao censurar aqueles que abusam de sua liberdade para com o
texto da Escritura, mas condenam a mesma liberdade aos demais – os verdadeiros sediciosos
teológico-políticos, dos quais trataremos mais à frente –, Spinoza sustenta que é necessário,
ao contrário, permitir que cada um possa ler a Escritura como bem lhe apetecer, desde que
isso contribua para o exercício da justiça e da caridade, quer dizer, para que se obedeça a
Deus “de ânimo ainda mais sincero” (pleniore animi consensu obedire posse)82. Este
exercício é legítimo ao interpretar pessoalmente os dogmas da fé, de modo a “aceitá-los sem
reticências e de ânimo plenamente convicto, a fim de obedecer a Deus com total
aquiescência” (sine ulle haesitatione, sed integroanimi consensu amplecti posse, ut
consequenter Deo pleno animi consensu obediat)83. Ao reforçar as conclusões do capítulo
XIII acerca do objetivo da Escritura, afirma: seu único objetivo é fazer com que os homens
obedeçam com sinceridade (ex vero animo obtemperent)84. Estas passagens sugerem que há
algum investimento interior, alguma motivação, que deve acompanhar a obediência a Deus.
Exteriorização de uma certa interioridade, portanto. Se for assim, o princípio básico da
religião revelada manifestado pela Escritura parece estar em contradição com a ideia de uma
obediência puramente exterior.
82
ESPINOSA, B. 2019, P. 303; G III, 173.
83
ESPINOSA, B. 2019, P. 309; G III, 178.
84
ESPINOSA, B. 2019, P. 304; G III, 174.
85
G III, 170.
299
determinar a flutuação afetiva dos súditos86. Embora o domínio não fosse integral, era, ao
menos naquele caso, máximo. Trata-se de uma condição de servidão: a obediência do Estado
hebreu, apesar das vantagens materiais de que seus participantes gozavam, mais deveria
receber o nome de submissão pura e simples. Tal como aqueles que dizem conhecer os
atributos de Deus sem demonstração emitem sons com palavras desprovidas de significação,
como se fossem papagaios ou autômatos87, os escravizados possuem sua interioridade
maximamente esvaziada de iniciativa própria, aprisionada por determinações que lhe
escapam. Parece, então, que há espaço para pensarmos uma obediência de outro gênero:
como a obediência piedosa, ela deriva da ignorância, desta vez acompanhada de uma
passividade não plena, mas máxima. O movimento que a caracteriza é o de uma
exteriorização de uma interioridade que fora já capturada de fora, ou seja, determinada por
decreto.
Para justificar que a Escritura apenas ensina como propriedades divinas necessárias à
obediência a justiça e a caridade, Spinoza procede a uma análise de algumas passagens da
Escritura. Recorrendo ao testemunho de Jeremias, Moisés e Josué, conclui que “Deus não
exige aos homens, através dos profetas, que conheçam dele outra coisa que não seja a justiça
e a caridade divinas, quer dizer, aqueles atributos que os homens podem imitar (imitari)
mediante uma certa regra de vida”88. Não se encontra na Escritura qualquer definição de Deus
no sentido especificamente spinozista, ou seja, aquele que dá conta da essência da coisa e do
processo de construção daquele objeto (caso se trate das coisas criadas). Como se trata aqui,
de Deus, portanto de algo incriado, lembremos das quatro propriedades exigidas para a
definição da coisa incriada segundo o TIE: que não se faça referência à causa, que existência
seja dada por princípio, que não haja recurso a abstrações e, positivamente, que sua definição
permita a dedução de todas as suas demais propriedades. Nada disso é encontrado a respeito
de Deus na Escritura, mas a encontramos perfeitamente nas primeiras proposições da Ética.
Assim, desenha-se aqui uma separação entre o conhecimento intelectual dos atributos de
Deus e o conhecimento de atributos “imitáveis”, que dizem respeito à fé e à religião revelada.
Como se trata de uma oposição exclusiva, o conhecimento intelectual dos atributos de Deus
não permite imitação nem a confecção de uma regra de vida consequente, o que o permite,
86
Cf. o Capítulo 4 deste trabalho.
87
G III, 170.
88
ESPINOSA, B. 2019, P. 301; G III, 171.
300
em contrapartida, algum consolo, quer dizer, uma maior abertura ao erro teórico sem maiores
riscos de pecado moral.
89
ESPINOSA, B. 2015a, P. 279; EIII, P. XXVII.
90
MATHERON, A. 1988, P. 150.
91
Cf. Capítulo 4 deste trabalho.
92
ESPINOSA, B. 2015a, P. 279; E III, P. 27, esc.
301
93
MATHERON, A. 1988, P. 144.
94
ESPINOSA, B. 2015a, P. 269; EIII, P. XIX.
95
MATHERON, A. 1988, P. 144.
302
objeto amado. Esta hipótese de Matheron é corroborada sobretudo por EIII, P. XV, cujo
enunciado afirma: “Esforçamo-nos para afirmar de nós e da coisa amada tudo o que a nós ou
a ela imaginarmos afetar de Alegria; e, ao contrário, negar tudo que a nós ou a ela afetar de
tristeza”96. Observe-se a introdução de um “a nós ou a ela” [quod nos, vel rem] que parece se
referir a um novo indivíduo, a um todo resultante da composição entre o amante e o objeto
amado. Como consequência, a identificação permite adotar o sistema de valores deste objeto:
como quando, por exemplo, amamos nossos pais e, apenas por ouvir dizer, adotamos o
sistema de valores e crenças que estes amam e julgam bom (uma vez que este sistema,
supomos, os afeta de alegria). O amor que depositamos a um objeto, ainda não considerado
como semelhante a nós, pode nos encaminhar a construir um modelo ético deste indivíduo.
Matheron remonta igualmente ao exemplo da relação de pai e filho descrita por Spinoza ao
longo da carta 17: o amor faz com que pai e filho constituam um único e mesmo ser, de modo
que, como tudo está determinado desde toda a eternidade, pode ser que, por um sonho ou
algum ato de imaginação, o pai seja capaz de determinar em sua mente a cadeia causal
referida ao seu filho. Ao tratar da relação de amor cartesiana, Matheron alcança conclusões
parecidas: o amor faz com que experimentemos uma relação de posse com as perfeições do
objeto amado, criando com ele um todo indissociável, de tal forma que a ameaça ao objeto é
uma ameaça à nós mesmos; e que nos sentimos aptos a dar nossa vida por ele: é, afinal, nossa
própria vida que doamos97.
96
Grifos meus. ESPINOSA, B. 2015a, P. 277; EIII, P. XXV.
97
MATHERON, A. 2011, P. 55-65.
98
DONOSO GOMÉZ, M. “Imitación e identificación en la teoría spinozista de los afectos”. In: Revista de
Filosofía, 44 (1), 9-24, 2019.
99
ESPINOSA, B. 2019, P. 275; EIII, P. XXIII, esc.
303
na alegria experimentada pela imaginação de que o objeto que odiamos é afetado pela
tristeza. Ora, aqui, identificação e imitação serão responsáveis pela produção do seguinte
conflito: enquanto o odiamos sem a consideração da semelhança, isto é, como apenas um
objeto qualquer, podemos, pela identificação, experimentar alegria com a sua tristeza; ao
mesmo tempo, basta o pressuposto da semelhança para que a imitação passe a tomar a frente:
se o considerarmos como uma pessoa como nós, cujo corpo nos é semelhante, sentiremos
afetos semelhantes, ou seja, seremos afetados de tristeza pela sua tristeza. A mente ficará
suspensa num estado de guerra afetiva de alegria/tristeza que dificilmente poderá perdurar. O
ponto é que, se há conflito, identificação e imitação não podem ser pensados como processos
afetivos intercambiáveis, como parecem sustentar, segundo Donoso Gómez, comentadores
como Moreau e Macherey100.
É verdade que esta autoridade dos síndicos não poderá servir senão para que a forma
do estado se conserve e impedir, assim, que as leis sejam infringidas e que seja lícito
a alguém lucrar com a transgressão. Não pode, contudo, fazer com que não
aumentem os vícios que é impossível proibir por lei, como são aqueles em que os
homens demasiado ociosos caem e dos quais resulta, não raro, a ruína do estado. Os
homens, com efeito, uma vez em paz e abandonando o medo, de bárbaros ferozes
fazem-se a pouco e pouco cidadãos, ou seja, humanos, e de humanos fazem-se moles
e inertes, não procurando distinguir-se uns dos outros pela virtude mas pelo fausto e
luxo. A partir daí, começam a aborrecer-se com os costumes pátrios e a adotar os
alheios, ou seja, a ser servos. (Grifo meu. ESPINOSA, B. 2009b, P. 132; TP X, 4)
O trecho parece tratar de uma relação de servidão que não pode ser facilmente
descrita nos termos da alienação política dos parágrafos 9 e 10 do Capítulo II do TP, quer
dizer, ao ato de estar sob a jurisdição de outrem101. Aqui, não há o componente da soberania:
homens ociosos imitam os costumes alheios sem que sejam obrigados por qualquer elemento
de direito ou força. Ainda, à diferença da imitação, não é o modo de sentir do outro que é
recuperado, mas sim seus costumes, sua forma de vida específica. O objetivo de Donoso é
evidenciar como, neste parágrafo, Spinoza descreve um processo mais aparentado ao da
100
DONOSO GÓMEZ, M. 2019, P. 11, 18-19.
101
“Segue-se, além disso, que cada um está sob jurisdição de outrem [alterius esse juris] na medida em que está
sob o poder de outrem, e está sob jurisdição de si próprio [eatenus sui juris] na medida em que pode repelir toda
a força, vingar como lhe parecer um dano que lhe é feito e, de um modo geral, na medida em que pode viver
segundo o seu próprio engenho.” (ESPINOSA, B. 2009b, P. 17; TP II, 9).
304
102
EIII, P. XXVI, esc.
103
DONOSO GÓMEZ, M. 2019, P. 23.
305
mesmo tempo, a confecção desta regra de vida parece envolver a semelhança: eis exatamente
a função dos profetas, indivíduos provenientes do vulgo, com crenças com ele
compartilhadas, e que podem ser imitados de modo mais acessível. Observe-se que embora
estas características sejam reputadas a Deus, Spinoza precisa que o processo de imitação deve
ser desencadeado pelo exemplo dos profetas. Ou seja: nem totalmente imitação (porque não
se refere a afetos), nem totalmente identificação (porque envolve necessariamente a
semelhança). Menos ainda a identificação tal como descrita no TP, uma vez que não parece
vir acompanhada de um desejo de distinguir-se dos demais e de obter certa superioridade,
tampouco engendrar uma relação servil-alienante em que o conatus fosse dissolvido no
conatus alheio.
Em todo caso, a nossa pergunta, que justificava o desvio para a Ética104 e outras obras,
não é tanto sobre categorizar ou comportar a “imitação” do TTP no interior da filosofia
spinozista, procurando dissolver uma contradição imanente ao texto. Se for assim, aliás, a
nossa conclusão mais plausível é a de que a imitação do TTP mais corretamente deveria ser
designada como o processo de identificação da Ética. Ao invés disso, nossa indagação é se,
compreendendo o processo descrito no TTP, de maneira rigorosa ou não, como “imitação”,
pode-se encontrar, nele, um vestígio de atividade, que elimine a associação fácil entre
obediência e submissão. Do ponto de vista da dinâmica afetiva, seja a imitação, seja a
identificação, envolvem atividade. A identificação envolve um esforço necessário por
contemplar as imagens que afetam o objeto amado de alegria, e mesmo a dissolução do
conatus individual no conatus do objeto não parece ser bem um procedimento de alienação,
mas sim de criação de um terceiro indivíduo – fruto da união amorosa entre meu conatus e o
dele. Ainda, a imitação afetiva, derivada do pressuposto de semelhança, no caso da imitação
da afetividade dos profetas, deve se apegar ao que aqueles profetas têm de semelhante ao
indivíduo que lê ou ouve suas narrativas: seu corpo e experiência humana. Como os profetas
se distinguem justamente por uma vida piedosa, a imitação de seu proceder afetivo será
marcada por uma organização de afetos ativos que conduzem à piedade. E esta imitação é
originada por um princípio de ação relativo ao próprio conatus individual: não se trata da
imposição de uma ação de uma causa exterior105, mas da expressão de uma interioridade
naturalmente resistente106. Podemos concluir, assim, que a obediência piedosa não é
propriamente alienante, pois não se trata de captura exterior do conatus individual, mas sim
de um investimento interno livre, conectado ao próprio esforço por perseverar na existência,
na construção de um modelo ético consequente.
104
Há uma passagem do escólio da proposição LIV da Parte IV em que Spinoza afirma que os profetas
procuravam ensinar os afetos da humildade, arrependimento e reverência: “O vulgar, se não tem medo,
atemoriza, por isso não é de admirar que os Profetas, que não cuidavam da utilidade de uns poucos, mas da
comum, tenham recomendado tanto a Humildade, o Arrependimento e a Reverência” (cf. ESPINOSA, B. 2015a,
P. 461; EIV, P. LIV, esc.). Lembremos que o arrependimento é um dos dogmas do credo minimum, endossado a
partir da crença na misericórdia divina. Embora sejam afetos que conduzam, em última análise, à impotência, no
campo do pecado é verdade que constituem um mal menor. O trecho é importante por demonstrar que os
profetas não ensinavam apenas através de seu exemplo, ou seja, instruindo a obediência pela via da imitação das
características da justiça e caridade, mas sim que, de fato, também procuravam incentivar o cultivo de
determinados afetos – não pela via da imitação afetiva, mas muito provavelmente pelo simples ouvir dizer. A
relação entre acústica e autoridade, sobretudo no exemplo mosaico, foi mais bem trabalhada ao longo do
capítulo anterior deste trabalho.
105
EIII, P. IV.
106
EIII, P. VI.
307
Spinoza admite, além disso, a possibilidade de uma obediência por interesse. Neste
caso, a adequação ao mandamento teológico deve-se, por exemplo, ao medo do castigo ou a
sede por recompensa, tanto quanto o interesse em bens posteriores, como as riquezas, honras,
bens sensuais etc. Este mesmo estado psicológico é descrito como uma das maneiras de
portar-se face à lei ao longo do capítulo IV do TTP.107 Além disso, faz parte de um dos
recursos utilizados por Moisés para convencer os israelitas a formular o pacto: incutindo a
obediência por medo de um castigo e por promessas de recompensa.108 No interior desta
categoria, podemos incluir toda a obediência cuja motivação interna não seja o amor a Deus e
a imitação de suas propriedades de justiça e caridade, mas algum gênero de interesse
individual cuja variedade é tão grande quanto a variação do desejo humano.
E quanto aos fiéis dotados de uma capacidade intelectual mais avantajada, que os
permita conhecer adequadamente a Deus? Neste caso, podem desfazer-se da obrigatoriedade
da obediência? Não: apenas a alcançam por um outro caminho que não é o da imitação
comportamental. A esta obediência que vem acompanhada de conhecimento poderíamos
designar como obediência esclarecida. Ela constitui o exato oposto da obediência como
servidão: ao obedecer compreendendo-se a necessidade do mandamento, o decreto como que
se dilui, e deixa de ser obediência para tornar-se simplesmente liberdade. Inútil reforçar o
quanto ela é, tal como a obediência piedosa, dependente de uma certa condição psicológica
interna e de um conjunto de motivações e princípios. O capítulo IV do TTP, em que a lei
divina é anunciada, e em que é descrita a postura de absoluta compreensão de sua
necessidade e extensão para além da lei, é o momento em que este gênero de obediência – e
de vida – é mais longamente abordado. O lugar que ela deve ser procurada, no entanto, não é
na Escritura: mas, caso se queira condensá-la num livro que traz em si a explicitação da
filosofia verdadeira, a Ética. O TTP, embora se dirija ao sábio, não trata especificamente da
sua condição: mas sim de como abordar o problema da existência de indivíduos ignorantes.
Reduz a questão, assim, ao tema de como um sábio pode participar de uma comunidade
formada majoritariamente por indivíduos ignorantes sem abrir mão da perseguição e
manutenção de sua própria sabedoria.
107
G III, 59, 61.
108
G III, 174.
308
109
G III, 172.
110
ESPINOSA, B. 2019, P. 305; GIII, 175.
111
“Uma vez sua hospedeira perguntou-lhe se acreditava que ela pudesse salvar-se com a religião que
professava; ao que respondeu: Vossa religião é boa, vós não deveis procurar outra nem duvidar que vós não
obtenhais vossa salvação, contanto que ao vos dedicar à piedade, vós leveis ao mesmo tempo uma vida
agradável e tranquila.”, cf. COLERUS, J. Vida de Spinoza. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso.
Disponível em: http://benedictusdespinoza.pro.br/biografias-de-spinoza-colerus.html. Acesso em: 29/09/2021.
309
Também não interessa para a fé se uma pessoa acredita que Deus está em toda a
parte segundo a essência ou a potência, se rege as coisas pela liberdade ou pela
necessidade da natureza, se prescreve leis tal como faz um príncipe ou se as ensina
como verdades eternas, se o homem obedece a Deus por livre arbítrio ou pela
necessidade do decreto divino, se, enfim, a recompensa dos bons e o castigo dos
maus é natural ou sobrenatural. Do ponto de vista da fé, repito, não tem qualquer
importância a maneira como cada um entende essas e outras coisas parecidas,
contanto que daí não se tente extrair maior liberdade para pecar ou para ser menos
obediente a Deus. (Grifos meus. ESPINOSA, B. 2019, P. 308-309; G III, 178).
112
G III, 193-194.
113
ESPINOSA, B. 2019, P. 326; G III, 193.
310
numa vida guiada pelos princípios universais da razão no interior do Estado. É devido ao
móbil da obediência que esta acomodação é possível:
Pensará, talvez, alguém que, com tal argumento, fazemos dos súditos
escravos, já que se considera que é escravo aquele que age a mando de
outrem e livre o que se comporta como muito bem entende, coisa que,
todavia, não é absolutamente verdadeiro. Na realidade, o mais escravo é
aquele que se deixa arrastar pelo prazer e é incapaz de ver ou fazer seja o
que for que lhe seja útil. Só é livre aquele que vive com honestidade,
conduzido unicamente pela razão. Quanto à ação a mando de alguém, quer
dizer, a obediência, ela retira de certo modo a liberdade, mas não torna
automaticamente um homem escravo, pois só o móbil da ação a tanto pode
levar. Se o fim da ação não é a utilidade de quem a pratica, mas daquele que
a ordena, então o que pratica é escravo e inútil a si próprio; porém, numa
república e num Estado, onde a lei suprema é a salvação de todo o povo e
não daquele que manda, quem obedece em tudo ao soberano não deve
dizer-se escravo e inútil a si mesmo, mas apenas súdito. Por isso, a
república mais livre é aquela cujas leis se fundamentam na reta razão; aí,
com efeito, cada um, sempre que quiser, pode ser livre, isto é, viver
honestamente e conduzido pela razão. (Grifos meus. ESPINOSA, B. 2019,
P. 327; G III, 195)
Há, portanto, uma diferença entre os papéis de escravo e de súdito. Escravo é aquele
que obedece a uma lei que não visa seu interesse; súdito é aquele que obedece às leis
promulgadas pelo soberano estatuídas visando o interesse da comunidade, o súdito incluso.
Veja-se que Spinoza está considerando uma República digna de tal nome: a partir do
momento em que as leis passam a versar sobre o interesse particular do soberano, ignorando
o interesse da comunidade, desfaz-se o pacto que legitima a soberania e, por fim,
fragmenta-se a própria república114. O que trecho revela é que, se há Estado, há
necessariamente a obediência. E que a estratégia para manter a liberdade – que parece ser o
fim sempre almejado por Spinoza – é, paradoxalmente ou não, a determinação de uma
obediência qualificada conforme seu móbil, e não uma ação conduzida por um princípio
qualquer.
114
G III, 194.
115
BALIBAR, E. 2015, P. 112-113.
311
116
NADLER, S. 2011, P. 197.
117
G III, 234.
118
“[...] adeo namque frivolae sunt, ut nec refutari mereantur”. Ibid.
312
TTP, uma tipificação geral das opiniões sediciosas é avançada: são sediciosas aquelas
opiniões “cuja aceitação implica a imediata cessação do pacto pelo qual cada um renunciou
ao direito de agir segundo seu próprio arbítrio”119. Exemplos: questionar o direito do
soberano, a necessidade de manter promessas, defender que se pode viver segundo seu
próprio arbítrio etc. O conteúdo das opiniões, então, não é a nota característica da subversão,
mas sim o modo como arrogam para si o direito a impor direito, contradizendo o pacto
originário que fundamenta a soberania e confere legitimidade ao exercício do poder. É, antes,
um critério relacional o índice da subversão: o quanto aquela opinião entra em conflito
jurídico direto com o decreto do soberano. Para aquele que toma a conservação da paz e
segurança da república como um bem supremo, uma vez que “suprimido o Estado, nada de
bom pode subsistir e tudo fica ameaçado, reinando apenas, por entre o medo geral, a cólera e
a impiedade”120, a subversão só pode ser maléfica. A sedição pertence, para Spinoza, ao
menos à primeira vista, ao universo semântico dos ardis políticos, da tentativa de
fragmentação do Estado e da violência ilegítima.
De fato, a expressão latina seditio abriga, como demonstra a pesquisa filológica, uma
apreciação negativa: segundo Gaffiot, trata-se da “ação de separar, desunião, divisão,
discórdia”121. É apenas o segundo sentido da entrada, porém – “sedição, sublevação, revolta”
122
–, aquele que parece coincidir com o uso spinozista em seus dois tratados políticos.123 Em
geral, as revoltas não são investidas de quaisquer leituras românticas, em que representassem
uma insurreição justa em prol da liberdade. Na verdade, as sublevações descritas no TTP
referem-se exclusivamente aos discursos e ações de ódio alimentadas por grupos religiosos
que procuram de modo escuso apoderar-se do poder institucional que não lhes foi
legitimamente transferido. As sedições motivadas por disputas religiosas ocorrem
119
ESPINOSA, B. 2019, P. 382; G III, 242.
120
ESPINOSA, B. 2019, P. 371; G III, 232.
121
GAFFIOT, F. 1934. P. 1414.
122
Ibid.
123
Diogo Pires Aurélio, em sua tradução do termo ao longo do TTP, traduz a expressão por algumas variantes.
No Prefácio, por exemplo, um texto de caráter decididamente retórico, Spinoza aplica o termo ao menos duas
vezes: em G III, 7, para tratar das sedições surgidas a pretexto da religião – traduzida por Aurélio, aqui, por
“conflitos” (ESPINOSA, B. 2019, P. 125) – e em G III, 9, mantendo o sentido de “sublevações” (ESPINOSA,
B. 2019, P. 127) para tratar da consequência nefasta da penetração das controvérsias filosóficas no ambiente
eclesiástico. Ao longo de sua tradução, outras recorrências do termo (ESPINOSA, B. 2019, P. 370, 372, 384; G
III, 231, 234, 244) são traduzidas ora por “sedição” e variantes, ora por “sublevação”. Diferentemente, no TP,
Aurélio opta uniformemente por revoltas (ESPINOSA, B. 2009b, P. 44, 49, 66, 71, 93; G III, 295, 298, 309, 313,
327).
313
frequentemente quando, numa república, há leis que versam sobre assuntos especulativos e
determinadas opiniões são alçadas à categoria de crime.124 Os homens são facilmente
encaminhados a atitudes subversivas quando controvérsias filosóficas têm palco na Igreja e
no Senado, incitando os ânimos a conflitos violentos.125 É da natureza humana
escandalizar-se quando as opiniões que nutrem são transformadas em crime, inclusive
aquelas que versam sobre sua maneira particular de exercer a piedade. É justamente este dado
que os motiva a considerar as sedições como justas ao invés de vergonhosas.126
Não obstante reservar o termo seditio para as subversões ilegítimas, parece correto
dizer que há espaço, no spinozismo, para algo como uma desobediência civil de caráter
virtuoso. Ao tratar das leis que versam sobre opiniões, apostando ainda no tom retórico,
Spinoza deplora a tentativa de estatuir “leis inúteis que só podem ser violadas por aqueles que
prezam as virtudes e as artes”127, ou seja, os homens livres. Nada há de pior para uma
república do que a tentativa sistemática de calar os indivíduos honestos, de temperamento
livre, que se dedicam ao progresso das ciências e das artes128. É preferencialmente a estes que
as leis que versam sobre opiniões visam atacar: frequentemente arquitetadas por aqueles que
não podem suportar “os engenhos livres”129 e que abusam de sua autoridade para com o vulgo
a fim de persegui-los. Como deve ser nomeada a desobediência a leis injustas, praticadas por
indivíduos de temperamento liberal? Será que esta declaração nos autoriza a pensar em algo
como uma sedição legítima ou, na medida em que o direito de pensar e de se exprimir não foi
e não pode ser jamais integralmente entregue no momento do pacto130, que não se trata
propriamente do sentido específico atribuído por Spinoza às sublevações, mas sim de
usurpação da parte do soberano e não de seus súditos? É certo que o soberano que age a seu
bel prazer, operando contra o interesse da República, encaminha a si próprio e ao Estado que
lhe foi confiado à ruína.131 Ocorre que a resposta spinozista a este problema não parece ser
um endosso às sublevações, mas sim a tentativa de rever e moderar a própria prática do poder
institucional. Numa república assim frágil, é o soberano, e não os súditos, que deve alternar
124
G III, 7.
125
G III, 9.
126
G III, 244.
127
ESPINOSA, B. 2019, P. 385; G III, 244-245.
128
G III, 243.
129
ESPINOSA, B. 2019, P. 384; G III, 244.
130
G III, 239-240.
131
G III, 240.
314
seu proceder político. A teoria política de Spinoza parece apostar em outra direção: ao invés
de maquinar os meios para tomar o poder, tentar fundar o poder de modo maximamente livre
para que a sedição não seja necessária. Se o verdadeiro fim da República é, como ele afirma,
a liberdade132, talvez tenhamos de admitir a hipótese um pouco indigesta de que, para
Spinoza, as sedições são sempre de caráter antilibertário, e que, por fim, conservação e
liberdade não se excluem.
Sedições são movimentos antilibertários, cuja causa frequente reside na cisão entre os
direitos civil e sagrado: duas teses que derivam do diagnóstico spinozista da situação
teológico-política da Holanda do século XVII. Sabe-se que a Holanda abrigava, além do
calvinismo ortodoxo, uma pluralidade de seitas religiosas não-confessionais, cujos
representantes foram denominadas por Leszek Kolakowski de “cristãos sem igreja”133. Os
movimentos religiosos assim designados “heréticos”134 que ali existiam, caracterizados
fundamentalmente por sua crítica à Reforma, são por ele divididos em três grandes grupos: as
tradições da mística semirrevolucionária – que não representam, segundo ele, força política
relevante –, do anabatismo moderado e, por fim, dos grupos anticonfessionais radicais, cuja
figura mais paradigmática é Dirk Coornhert (1522–1590)135. Coornhert alia crítica aos
dogmas protestantes, em especial ao princípio da graça irrestrita, o qual degenerava, segundo
ele, seja numa posição extremamente autoritária por parte daqueles que se tomavam como os
escolhidos do círculo clerical, seja na autorização de comportamentos libertinos, crentes na
salvação independente das obras ímpias praticadas, à construção de um novo conceito de
religião. Com ele, recuperava-se a importância das ações humanas na economia da salvação:
132
G III, 241.
133
Em seu livro homônimo de 1987. Nos próximos parágrafos, reconstruirei a argumentação de Kolakowski
quanto à querela dos remonstrantes e contrarremonstrantes.
134
Para Kolakowski, a noção do que é herético é constantemente retroalimentada pela definição do que é
ortodoxo e vice-versa; a ponto de ser impossível determinar qual delas iniciou a cadeia causal. Ver
KOLAKOWSKI, L. 1987, P. 69-72.
135
KOLAKOWSKI, L. 1987, P. 72. As informações historiográficas acerca da disputa entre remonstrantes e
contrarremonstrantes deste capítulo foram retiradas da exposição de Kolakowski (1987, P. 69-87). Recomendo a
seguinte bibliografia suplementar em torno da questão: NOBBS, D. Theocracy and Toleration: A Study of the
Disputes in Dutch Calvinism from 1600 to 1650. Cambridge, Cambridge University Press : 2012; VOOGT, G.
“Remonstrant-Counter-Remonstrant Debates: Crafting a Principled Defense of Toleration after the Synod of
Dordrecht (1619-1650). In : Church History and Religious Culture. 89.4, (2009), 489-524; ISRAEL, J. The
Dutch Republic : Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford, Oxford University Press: 1995; LEEUWEN,
T.M. (et. al) (ed). Arminius, Arminianism, and Europe. Jacobus Arminius (1559/60–1609). Leiden, Boston, Brill
: 2009 e DE WITT, D. “Rembrandt and the Climate of Religious Conflict in the 1620s”. In : 51. Bd., Beiheft.
Rembrandt — Wissenschaft auf der Suche. Beiträge des Internationalen Symposiums Berlin — 4. und 5.
November 2006 (2009), pp. 17-24 (8 pages).
315
pelo princípio da sinergia, as obras virtuosas são produzidas em concomitância com o poder
divino. Mais do que um sistema de exercício de poder, ao qual se deve uma obediência cega,
a religião é princípio de administração da vida comportamental individual: sistema moral,
portanto. É totalmente possível, neste mundo, perseguir a lei divina sem repousar a todo
tempo na graça, e, mais do que isso, não é necessário inscrever-se em qualquer grupo
religioso para tanto.
As ideias de Coornhert repercutiram, por sua vez, numa querela que, apesar de
relativamente distante historicamente da confecção e publicação do TTP, tomaram a atenção
de Spinoza. Para ele, a interferência dos políticos naquela que se tornou conhecida como a
controvérsia dos remonstrantes e contrarremonstrantes provou as seguintes teses:
[...] primeiro, que as leis estabelecidas em matéria religiosa, isto é, destinadas a
dirimir as controvérsias, servem mais para exasperar os homens do que para os
corrigir; depois, que há quem retire dessas leis pretexto para toda a espécie de
abusos; e, finalmente, que os cismas não nascem do grande zelo pela verdade (que é
fonte de afabilidade e benevolência), mas sim de um grande desejo de mandar.
(ESPINOSA, B. 2019, P. 386; G III, 246).
confissão remonstrante possuir um elemento ordenador era uma questão de existência ou não
da organização: a religião, portanto, dizia respeito a uma prática de manutenção do grupo
enquanto grupo, que paradoxalmente procurava, por meio da confissão, manter-se
não-confessional.
Embora as lições retiradas por Spinoza da querela não pareçam implicar qualquer
endosso das posições remonstrantes, é notável o paralelo de suas teses com aquelas
avançadas por Spinoza ao longo do TTP. Afinal, a “opinião sediciosa” que visa separar as
autoridades responsáveis pelo direito civil e religioso a qual se refere é exatamente aquela
subscrita pelos contrarremonstrantes. É delicada a posição que ocupam os detentores do
direito em matéria sagrada: gozam de autoridade diante do povo e são capazes de reinar sob
seus ânimos. Estes podem, então, usar de sua influência para incutir discórdias e querelas a
fim de ocupar-se do Estado e, mais do que isso, a fim de dividi-lo. Eis o que ocorreu, na
prática, com o pontífice romano: ao qual foi concedido este direito e que, aos poucos, foi
ocupando também o poder dos reis. De modo duro, Spinoza classifica os eclesiásticos como
aqueles que, através da pena, buscam fazer o que os reis jamais poderiam alcançar através do
ferro e do fogo.136 Não há referência à disputa entre remonstrantes e contrarremonstrantes
especificamente neste trecho, mas os abusos e os cismas – que nada mais são do que as
fragmentações e separações contidas na expressão sedição – dela derivados têm uma causa
determinada: o jus circa sacra apartado do poder civil.
136
G III, 235.
137
Para um tratamento da questão ao longo do século XVII, recomendo dois artigos de Mogens Laerke: o
primeiro, intitulado “Jus Circa Sacra. Elements of Theological Politics in 17th Century Rationalism: From
Hobbes and Spinoza to Leibniz” (In : Distinktion: Scandinavian Journal of Social Theory, 6:1, 2005, 41-64) e o
segundo “La controverse de Grotius, Hobbes et Spinoza sur le jus circa sacra. Textes, prétextes, contextes et
circonstances”, disponível em Revue de synthèse : TOME 137, 6e SÉRIE, N° 3-4, 2016.
138
A expressão surge já no título do capítulo XIX do TTP: Ostenditur jus circa sacra penes summas potestates
omnio esse, et religionis cultum externum reipublicae paci accommodari debere, si recte Deo obtemperare
velimus (G III, 228).
317
139
G III, 229.
140
Ver, por exemplo, LAUX, H. 1993, P. 267 e TOSEL, A. 1984, P. 239.
318
das conquistas argumentativas dos capítulos anteriores: a religião consiste tão somente na
prática da justiça e da caridade.141 Por conseguinte, o reino de Deus não é uma realidade
supraterrena, mas aquele onde “a justiça e a caridade têm força de lei e de mandamento”142.
Se é assim, é preciso definir as condições em que a religião adquire força de lei, o que faz
Spinoza retornar ao arcabouço conceitual hobbesiano e estabelecer que é somente no estado
civil em que isto se verifica. No estado de natureza, tal como já discutido sobretudo ao longo
do capítulo XIV da mesma obra, não há justiça, caridade, lei, ou qualquer definição de
soberania. O direito é exercido em igualdade à potência individual: se um indivíduo pôde agir
daquele modo, o fez com total direito.143 As ações governadas pela razão tanto quanto aquelas
orientadas pelas paixões e interesses pessoais são legítimas no mesmo grau. O único princípio
a ser observado é o da sobrevivência. Logo, se a religião consiste na prática da justiça e da
caridade, e se o reino de Deus é aquele em que estes dois princípios adquirem força de lei, é
somente após firmado o contrato de transferência de direitos que se pode pensar em algo
como a religião e o reino de Deus. É apenas no estado civil que se pode garantir a existência
jurídica da religião.
Ora, quem determina o que deve ou não possuir força de lei, no estado civil, é o
soberano: aquele para quem os direitos individuais foram concedidos de comum acordo. É
apenas mediante seu decreto que a religião adquire força de lei e que é verdadeiramente
exequível o reinado de Deus sobre os homens. É suficiente lembrar do caso dos hebreus:
embora, num primeiro pacto, tenham transferido os direitos individuais para Deus, o que,
naquele contexto, era o mesmo do que transferir para ninguém e criar uma espécie de
democracia avant la lettre, um segundo pacto os fez entregar seus direitos para um soberano
único: Moisés. Na república dos hebreus, Moisés reinava como intermediário entre o povo e
Deus: e foi somente a partir de seu decreto que a religião ganhou força de lei e tornou-se,
mais do que isso, religião de Estado (leis civis e leis religiosas se identificavam, razão pela
qual o Estado pode ser classificado como teocrático).144 Com o estabelecimento de uma
religião da pátria, pôde-se, igualmente, punir e celebrar, considerar comportamentos e ações
como justas e piedosas, sendo a religião parâmetro avaliativo. Findo o Estado, finda a
141
Reconstruo a argumentação apresentada em G III, 229-230.
142
ESPINOSA, B. 2019, P. 368. G III, 229.
143
G III, 189-191.
144
G III, 230.
319
O soberano deve governar, quer dizer, mandar e legislar, tendo como fim a salvação
do povo e a segurança do Estado. A religião tomada em suas manifestações externas deve ser
submetida a estes dois princípios e estar, portanto, em consonância com eles. Se mesmo a
religião universal, que se situa para além das determinações jurídicas, exige a prática da
piedade para com todos, isto deve se estender inclusive para a manutenção da paz da
república: deve-se agir considerando o bem de todos. Ora, o bem de todos, aquilo que
interessa a república coletivamente, só é determinado pelo detentor da soberania. Portanto,
mesmo as ações dos particulares que visem a religião devem adequar-se à piedade tal como
verificada no contexto político e jurídico ao qual pertencem. Esta argumentação visa provar
ao mesmo tempo que a religião deve se adequar aos interesses da república e que aquele que
deve interpretá-la é o próprio soberano. Piedade e impiedade são mesmo definidos apenas em
relação ao interesse supremo da República:
É certo que a piedade para com a pátria é a mais elevada que alguém pode praticar,
visto que, suprimido o Estado, nada de bom pode subsistir e tudo fica ameaçado,
reinando apenas, por entre o medo geral, a cólera e a impiedade. Daí que não haja
nada de piedoso que se possa praticar para com o próximo que não seja ímpio se
acaso resultar em prejuízo de toda a república; em contrapartida, não há nada de
145
G III, 230-231.
146
ESPINOSA, B. 2019, P. 370. G III, 231.
320
ímpio que possa fazer-se ao próximo que não se torne piedoso, se for feito pela
conservação sa república. (ESPINOSA, B. 2019, P. 371; G III, 232).
147
ESPINOSA, B. 2019, P. 340; G III, 206.
148
G III, 236.
149
Conforme as conclusões obtidas no capítulo 4 deste estudo.
321
quais não era aí o local para tratar, designadamente que todos os patrícios devem ser
da mesma religião, a saber, a simplicissima e maximamente universal, que
descrevemos no mesmo tratado. Deve, com efeito, acautelar-se especialmente que os
patrícios não se dividam em seitas, ou que uns sejam mais a favor destas, outros
daquelas, ou que, tomados pela superstição, tentem retirar aos súditos a liberdade de
dizer aquilo que sentem. Depois, embora deva dar-se a cada um a liberdade de dizer o
que sente, são contudo de proibir os grandes ajuntamentos. Por isso, àqueles que são
adeptos de uma outra religião deve ser permitido construírem tantos templos quantos
quiserem, mas pequenos, de uma dimensão fixa e em locais um tanto afastados uns
dos outros. Mas os templos dedicados à religião da pátria é muito importante que
sejam grandes e suntuosos e que, no seu culto principal, só aos patrícios e aos
senadores seja lícito oficiar, de tal forma que só aos patrícios seja lícito batizar,
consagrar o casamento, impor as mãos e serem, em suma, reconhecidos como
sacerdotes dos templos e como defensores e intérpretes da religião da pátria. Pelo
contrário, para pregar e para administrar o erário da igreja e os seus assuntos
quotidianos, devem ser escolhidos pelo senado alguns da plebe que serão como que
vigários do senado, ao qual, por isso, terão de prestar contas de tudo. (ESPINOSA, B.
2009b, P. 116-117; G III, 345).
Spinoza admite ter omitido do TTP a discussão sobre uma religião da pátria150.
Embora a expressão não seja encontrada ao longo do texto de 1670, o conceito é essencial
para que sejam conectados os capítulos teológicos aos políticos da obra, bem como para que
se compreenda a solução spinozista ao tema do jus circa sacra em consonância com sua
defesa irrestrita da liberdade de filosofar. Quanto a esta última, um segundo problema,
derivado do primeiro, se impõe: como conciliar a existência de uma religião de Estado com a
liberdade de culto individual? Não é natural pensar que a religião autorizada se sentirá
evidentemente ameaçada pela distribuição de seitas e igrejas que, muitas vezes, podem
ensinar dogmas contrários aos seus? O trecho acima e o TTP nos ensinam: basta fundar uma
religião especial desprovida do culto e aparato das religiões históricas. Os estados teocráticos,
ao menos aqueles mencionados, detém uma religião histórica, dotada de um núcleo moral, é
certo, mas também de um complexo cerimonioso particular, e transformam os dogmas desta
religião singular em leis de Estado. A consequência só pode ser a perseguição daqueles que
professam outras religiões com outros cultos singulares. No momento mesmo em que se
substitui as religiões históricas pela vera religio, que consiste no princípio mínimo de amar a
Deus a partir do amor ao próximo, sem que seja a ela acrescentado os elementos exteriores
das religiões históricas, a religião de Estado passa a ser simplesmente moral, desprovida dos
150
Em que sentido o trecho pode ser generalizado para as demais formas de governo para além da aristocracia?
Estas e outras questões são discutidas por Morgens Laerke em seu artigo “Spinoza on National Religion”. Ver,
no mesmo volume, o artigo de Daniel Garber sobre a questão: “Religion and the Civil State in the Tractatus
Politicus”. In : MELAMED, Y. SHARP, H. (eds). Spinoza's Political Treatise. A Critical Guide. Cambridge,
Cambridge University Press: 2018. Recuperado de: https://doi.org/10.1017/9781316756607. Última
visualização: 02/12/2020 às 16h52min.
322
hábitos e costumes. A solução spinozista para que o jus circa sacra não degenere em
teocracia e para que as demais confissões tenham espaço garantido na República é fundar
uma religião orientadora de Estado, com princípios de comportamento mínimos, que
garantam tanto que as religiões históricas não se apoderem do poder quanto que não
influenciem os princípios particulares às demais religiões históricas. Afinal, que religião
histórica pode se portar contra a prática da caridade e da piedade?
Ora, não é à confecção desta religião, evidenciando em que sentido ela se separa das
religiões históricas de culto à exterioridade bruta, ou seja, a um comportamento desinformado
dos princípios de amor a Deus, fetichizados em cerimônias supérfluas, que se dedicam os
primeiros quinze capítulos do TTP? E não é o argumento final pró-liberdade de filosofar,
expresso no capítulo XX da obra e que configura, segundo seu título e declarações
epistolares, o objetivo máximo do Tratado, dependente de uma noção de religião? É
suficiente, para a salvação moral e política, professar o credo mínimo: alguns o observarão
como lei divina, outros deverão ser constrangidos a professá-la como dogma da religião
verdadeira. Todos se encontrarão no modo como sustentarão uma relação entre interioridade
e exterioridade. Mais do que uma exterioridade vinda de fora – propriedade da superstição
ou, pior, da servidão teológico-política dos hebreus – a liberdade de sábios e ignorantes se
encontra na dinâmica entre comportamento e princípios; dogmas ou leis que serão causa ou
consequência de um comportamento virtuoso. É certo que estas conclusões nos fazem
duvidar das leituras que tomam Spinoza como um precursor do liberalismo político: as
religiões supersticiosas e a fragmentação do Estado devem ser combatidas com a fundação de
uma religião verdadeira que determine o comportamento dos indivíduos. Religião se combate
com religião; liberdade se obtém com obediência e não a partir dela.
Cabe acrescentar, por fim, algumas breves sugestões relativas ao tema da sedição no
spinozismo. Embora, como vimos, o conceito seja frequentemente remetido à esfera dos ardis
políticos ilegítimos, professados por indivíduos com interesses políticos determinados, não é
verdade que não haja, no interior mesmo da República, espaço para a resistência. A própria
definição de direito natural como conatus, isto é, esforço por perseverar na existência, e o
fato de ele ser intransferível, o demonstram. Como sustenta Antonio Negri, o horizonte
323
151
NEGRI, A. 2018, P. 201.
152
Cf. Carta 50.
324
Conclusão.
AS ÚLTIMAS REVELAÇÕES DO SER
Uma das linhas de força da metafísica spinozista é a sua total identificação entre Deus
e Natureza. A argumentação que pretende concluir esta tese surge, no Primeiro Livro da
Ética, acompanhada de uma reformulação implícita do princípio de causalidade. Se,
classicamente, há uma diferença ontológica entre a causa e o efeito – assim é, por exemplo,
na formulação cartesiana de tal princípio4 –, Spinoza admite que é possível considerar tanto
uma causa de gênero transitivo quanto uma de tipo imanente. A relação causal transitiva
supõe que os efeitos existirão fora da causa, ao passo que a imanente pensa tal relação a partir
de uma ação da causa sobre si mesma, na qual agente e paciente se confundem. Eis o modo
1
DERRIDA, J. 1994, P. 34.
2
Tradução minha a partir da aula de 17/03/1981, transcrita por Larrieu Suzanne e Véronique Boudon.
Disponível em: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=26. Último acesso: 30/08/2021 às
11h33min.
3
AGAMBEN, G. 2017a, P. 31.
4
“Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total
quanto no seu efeito: pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia
esta causa lha comunicar se não a tivesse em si mesma?” (DESCARTES, R. 1973, P. 11-112; AT IX-1, 32). A
tese segundo a qual deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto em seu efeito
pressupõe uma descontinuidade ontológica entre os seres implicados na relação causal. A diferença entre causa
e efeito parece igualmente pressuposta por Hobbes ao denunciar aqueles que – como Spinoza – identificam
Deus ao mundo, pois, segundo ele, seria o mesmo que não conceder ao mundo qualquer causa e, enfim, afirmar
que Deus não existe: “Depois, dizer, como alguns filósofos, que Deus é o mundo, ou a alma do mundo (isto é,
uma parte desse mesmo mundo), é falar dele em termos desrespeitosos: porque, assim dizendo, eles nada lhe
atribuem e na verdade negam a sua existência. Pois pela palavra Deus entendemos a causa do mundo; ora,
dizendo então que o mundo é Deus, afirma-se que ele não tem causa, o que é o mesmo que dizer que Deus não
existe.” (HOBBES, T. 2002, P. 249). Vê-se que Hobbes sequer aventa a possibilidade de algo como uma causa
imanente.
325
como Spinoza classifica os dois distintos conceitos de causa num dos diálogos que compõem
o Breve Tratado:
Razão: Vejo certamente como tu incitas contra mim todos os teus amigos, e o que não
lograste fazer com teus falsos raciocínios, intentas fazê-lo agora com a ambiguidade
das palavras, exercício a que costumam se dedicar aqueles que se opõem à verdade.
Porém, com este recurso não conseguirás trazer o Amor a tua causa. O que dizes,
então, é: a causa (considerando que é uma produtora dos efeitos) deve estar fora
deles. E o dizes porque tão somente conheces a causa transitiva e não a imanente, a
qual não produz em absoluto algo fora dela. Por exemplo, o intelecto é causa de seus
conceitos e, por isso, também eu o chamo causa (na medida dos, ou em relação a
seus conceitos, que dependem dele); e, por outro lado, o chamo todo, enquanto
consiste em seus conceitos. Portanto, tampouco Deus é, em relação a seus efeitos ou
criaturas, outra coisa que uma causa imanente, e, ademais, no que diz respeito à
segunda consideração, é um todo. (ESPINOSA, B. 2014a, P. 65. G IV, 130).
Para concluir, em EI, P. 18, que “Deus é causa imanente de todas as coisas, mas não
transitiva”5, é preciso combinar as conclusões das proposições 14, 15 e 16 do mesmo livro.
Sabemos graças à proposição 15 que tudo que é, é em Deus; e, através do corolário da
proposição 16, que Deus é “causa eficiente de todas as coisas que podem cair sob o intelecto
infinito”6; e, enfim, pela proposição 14, que nada existe nem pode ser concebido além de
Deus. Assim, Deus é a única substância – visto que não é possível que existam duas
substâncias infinitas – e, além disso, causou tudo que pode ser concebido por seu intelecto
infinito. Conclui-se que Deus causa todas as coisas no mesmo ato em que causa a si próprio –
e que é, portanto, idêntico aos seus efeitos, compondo com eles um único todo. Segundo
Gueroult7, a novidade desta proposição é provar a imanência de Deus às coisas, o que é
diferente de provar a imanência das coisas a Deus (já demonstrado pelas proposições 14 e
15). E assim podemos construir sua particular concepção de divindade, tal como apresentada
em carta a Oldenburg8:
Mas, para expor meu pensamento sobre aqueles três pontos principais que notas,
digo, em primeiro lugar, que sustento uma opinião sobre Deus e a natureza muito
diversa daquela que os cristãos recentes costumam defender. Com efeito, sustento
que Deus é causa imanente de todas as coisas, e não transitiva, como afirmam. Que
todas as coisas são, digo, em Deus e se movem em Deus, afirmo-o com Paulo e,
talvez, também com todos os filósofos antigos, embora doutro modo, e, ousaria dizer,
com todos os antigos hebreus, o quanto se permite conjeturar de algumas tradições,
ainda que adulteradas de muitos modos. (FERREIRA, S.T. 2019, P. 194; G IV,
306-307).
5
ESPINOSA, B. 2015a, P. 81; G II, 49.
6
ESPINOSA, B. 2015a, P. 75; G II, 41.
7
GUEROULT, M. 1969, P. 295.
8
Trata-se da Carta 73.
326
expressões como “visitar a mim mesmo” ou “constituir a mim mesmo como visitante”9, uma
nova classe gramatical que desse conta desta singular relação10:
Mas como ocorre às vezes que o agente e o paciente coincidem na mesma pessoa, os
hebreus tiveram necessidade de formar uma nova e sétima classe de infinitivos que
expressasse a ação referida simultaneamente ao agente e ao paciente, isto é, que
tivesse ao mesmo tempo a forma ativa e passiva. [...] Devido a isso foi preciso
inventar uma nova classe de infinitivos que expressasse a ação em relação ao agente
enquanto causa imanente [...]". (Tradução minha a partir de SPINOZA, B. 2005, P.
125).
depende, também, de uma causa que nos transcende. Nestes trechos, o exterior cumpre o
papel seja de propriedade simplesmente acessória – que, apesar de existente, é descartável ao
analisar a essência de uma ideia verdadeira –, seja de origem do padecimento individual e,
por fim, da inadequação. Mais do que simplesmente expulso da esfera natural, o exterior é,
agora, mesmo quando presente em seu interior, tomado negativamente.
21
Como aquelas defendidas por René Girard e Gianni Vattimo mencionadas em nossa Introdução.
329
22
ESPINOSA, B. 2019, P. 311; G III, 180.
23
Ibid, P. 319; G III, 188.
24
Ibid. G III, 263.
330
Embora o esforço por tornar cada vez mais complicada a relação entre interior e
exterior tenha sido o tema central de todo o nosso trabalho, talvez seja interessante recuperar
– novamente situando-nos, na conclusão, em algum grau de exterioridade em relação ao texto
principal – ao menos um momento da exposição metafísica de Spinoza em que esta tensão
parece decorrer da combinatória de suas teses. Conseguiremos contemplar, de um só golpe de
vista, o conflito que pretendemos ter desenvolvido em longas cadeias argumentativas nas
páginas anteriores. E nada mais adequado do que dedicar a conclusão deste trabalho a uma
331
meditação sobre a morte do autor cuja vida e doutrina nos ocupamos nas páginas anteriores –
o que faria de nós, aos olhos do spinozismo, pouco livres e pouco sábios25, e mesmo
traidores, embora sempre rigorosamente comprometidos com a desejada tensão entre
interioridade e exterioridade.
25
Pois, conforme Spinoza, “não há nenhuma coisa em que o homem livre pense menos do que na morte, e sua
sabedoria não é uma meditação sobre a morte, mas sobre a vida” (ESPINOSA, B. 2015a, P. 483; EIV, P. LXVII).
Talvez seja já excessivo rememorar nossos comprometimentos metodológicos a esta altura da investigação, mas,
para não pecar por omissão, reforçamos: a busca pela exterioridade no pensamento de Spinoza foi acompanhada
da invenção de uma nova linguagem filosófica que pudesse, nela mesma, produzir este objeto conceitual. De tal
forma que as escolhas expositivas são, elas mesmas, posturas conteudísticas robustas. Assim, tanto na
Introdução quanto na Conclusão, recorremos a este ponto de vista maximamente exterior, que consistia em
aproximar-se à distância do tema central da tese, quer dizer, em descrever sua gênese sem propriamente
mencioná-lo. O resultado final da estrutura deste trabalho deve ser a emulação, em sua forma expositiva, da
tensão entre interioridade – situar-se dentro do pensamento de Spinoza – e exterioridade – situar-se fora dele.
Abordaremos, em seguida, Spinoza e sua morte, sem qualquer comprometimento em sermos spinozistas – quer
dizer, sem qualquer exigência de, para tanto, sermos fiéis à sua doutrina, pois esta última não é nada além de
uma compreensão a posteriori de seu significado.
26
Colerus assim anuncia no título e subtítulo de sua obra: “A vida de B. de Spinoza tirada dos escritos deste
famoso filósofo e do testemunho de diversas pessoas dignas de fé, que o conheceram particularmente”, cf.
COLERUS, J. LUCAS, J.M. 2007, P. 7.
27
A expressão é do próprio Colerus, cf. COLERUS, J. 2007, P. 82.
28
Talvez o boato seja fruto da viagem que Spinoza empreendeu em 1673 para Utrecht, cujo objetivo era
intermediar a possibilidade de paz com a França, em guerra com a Holanda desde o ano anterior. Assim nos
informa Diogo Pires Aurélio: “1673. Em maio, Espinosa parte para Utrecht, em missão diplomática, para tentar
negociar a paz com a França, apoiado pelos regentes holandeses e a convite do próprio chefe militar francês, que
acaba não o recebendo. Quando volta para Haia, consideram-no suspeito de ser espião francês.”, cf. ESPINOSA,
B. 2009b, P. LXXII.
332
No domingo pela manhã, antes que fosse a hora de ir à igreja, ele desceu novamente
de seu quarto, e falou com o hospedeiro e sua mulher. Ele havia feito vir de Amsterdã
um certo médico que eu só posso designar por duas letras, L. M., a quem encarregou
às pessoas da casa a comprar um galo velho e de o cozinharem logo, a fim de que ao
meio dia Spinoza pudesse tomar o caldo: assim o fez e comeu com bom apetite
depois que o hospedeiro e sua esposa regressaram da igreja. Depois do meio-dia o
médico L. M. ficou só junto com Spinoza, tendo voltado juntos os da casa às suas
devoções. Porém ao sair do sermão eles se inteiraram com surpresa que perto das três
horas Spinoza havia expirado em presença daquele médico, que, naquela mesma
tarde, retornou a Amsterdã no barco da noite sem preocupar-se o mínimo que fosse
pelo defunto. Se absteve de cumprir com esse dever tanto mais rapidamente quanto
que depois da morte de Spinoza se havia apoderado de um ducado de prata e um
pouco de dinheiro que o defunto havia deixado sobre a mesa, assim como de um
punhal de cabo de prata, e se retirou com seu butim. (Grifos meus. COLERUS, J. P.
27)29
Duas informações saltam aos olhos na versão dos fatos narrada por Colerus. Em
primeiro lugar, a presença das iniciais L.M. para se referir a um indivíduo que era a um só
tempo amigo de Spinoza e médico de profissão. Um conhecimento superficial de sua
biografia e dos personagens que compunham seu círculo de amizade nos faz crer que se trata
de Lodewijk Meyer (1629–1681), médico e filósofo autor de A filosofia intérprete da
Escritura Santa30, livro que chegou a ser publicado, sem indicação de autoria, num mesmo
volume com o Tratado Teológico-Político no ano de 167431. O outro dado relevante é o fato
de Spinoza ter supostamente morrido na presença de Meyer, numa espécie de expiração
assistida. O prosseguimento do texto, retornando ao registro das fábulas e mentiras, transmite
um rumor que sugere, para além do falecimento natural, uma intervenção direta de Spinoza
no aceleramento de sua morte:
29
Cito a partir da seguinte tradução: COLERUS, J. Vida de Spinoza. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha
Fragoso. Disponível em: <http://benedictusdespinoza.pro.br/biografias-de-spinoza-colerus.html>. Acesso em:
30.08.2021 às 16h.
30
Até onde pudemos detectar, não há uma tradução para o português da obra de Meyer, originalmente escrita em
latim.Verificar a tradução francesa, acompanhada de um importante aparato crítico: MEYER, L. 1988.
31
Mais informações sobre as obras de Spinoza publicadas ainda no século XVII podem ser encontradas no link:
https://spinozaweb.org/works. Especificamente sobre o volume de 1674, ver: https://spinozaweb.org/works/12.
Última visualização: 16/06/2021 às 15h09min.
333
extremidade, havia feito chamar ao hospedeiro e lhe havia pedido que impedisse a
presença de qualquer ministro, porque queria, disse ele, morrer pacificamente e sem
disputa, etc. (Grifos meus. COLERUS, J. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, P. 27)
O boato de fato parecia circular na Holanda do século XVII, como confirma uma
descoberta do mesmo Steenbakkers. Ele encontrou, na biblioteca da Universidade de Utrecht,
um pequeno caderno de apenas 28 páginas, escrito em latim, contendo alguns comentários
32
STEENBAKKERS, P. 2010, P. 734.
33
Colerus, reproduzindo o casal Van der Spyck, assim classifica a postura de Spinoza em relação à sua
constituição física debilitada: “Que ele tenha encarregado sua hospedeira de dispensar aos ministros que
pudessem se apresentar, ou que ele tenha invocado o nome de Deus durante sua doença, isto é o que nem ela,
nem os da habitação ouviram, e do qual eles não têm conhecimento algum. Aquilo que lhes persuadiu do
contrário, é que depois que ele debilitou-se mostrou sempre, nos males que sofria uma firmeza verdadeiramente
estóica, a ponto dele mesmo repreender aos outros, quando acontecia deles lamentarem e testemunharem em
suas enfermidades pouca coragem ou excessiva sensibilidade.”, cf. COLERUS, J. Tradução de Emanuel Angelo
da Rocha Fragoso, P. 28.
334
breves sobre religião, política, filosofia, sexualidade e sobre alguns personagens ilustres
daquele contexto histórico-geográfico – dentre eles Spinoza.34 Como algumas notas são
datadas, é possível que o autor as tenha registrado entre os anos de 1678 e 1679, o que, como
novamente o nota Steenbakkers, o situa num momento histórico mais próximo da morte de
Spinoza do que a narrativa de memória do casal que o hospedava. Vejamos o que o autor do
caderno clandestino nos transmite a respeito da morte de Spinoza:
34
A descoberta de Steenbakkers é brevemente relatada no artigo de 2010. Em 2011, ele e mais dois
pesquisadores – Jetze Touber e Jeroen van de Ven – tornam público o conteúdo integral do caderno, cf. “A
Clandestine Notebook (1678-1679) on Spinoza, Beverland, Politics, the Bible and Sex.”, In: Lias-journal of
Early Modern Intellectual Culture and Its Sources. Vol. 38, no. 2. Peeters, Leuven, pp. 225-+, 2011.
35
STEENBAKKERS, P. 2010, P. 735.
36
Pode ser adicionada ao inventário de elementos acerca da morte de Spinoza a descoberta, feita por Michelle
Margolis Chesner no acervo da biblioteca da Universidade de Columbia, daquela que pode ser considerada a sua
máscara mortuária. Ver o artigo de sua autoria “Spinoza’s Death Mask, and Reflections on Working at the
RBML, disponível em
https://blogs.cul.columbia.edu/jewishstudiesatcul/2021/07/29/spinozas-death-mask-and-reflections-on-working-
at-the-rbml/ (Última visualização: 30.08.2021 às 17h02min).
37
Ver, para as tentativas de compabilizar a teoria do conatus e o suicídio na metafísica e ética de Spinoza, os
artigos de DELASSUS, E. « Le suicide de Spinoza : un problème éthique et philosophique. ». In : ¿
Interrogations ?, N°15. Identité fictive et fictionnalisation de l’identité (I), décembre 2012 [en ligne],
http://www.revue-interrogations.org/Le-suicide-de-Spinoza-un-probleme (Última visualização: 30/08/2021 às
17h28min) e KIM, E. « Suicide, conatus et conflictualité chez Spinoza ». In: Astérion [En ligne], 23, 2020. URL
: http://journals.openedition.org/asterion/5222 (Última visualização: 30/08/2021 às 17h30min).
335
Ninguém, portanto, a não ser vencido por causas externas e contrárias à sua natureza,
negligencia apetecer o seu útil, ou seja, conservar o seu ser. Ninguém, insisto, tem
aversão aos alimentos ou se mata pela necessidade de sua natureza, mas apenas
coagido por causas exteriores, o que pode ocorrer de duas maneiras: alguém se mata
coagido por um outro que lhe torce a mão que por acaso empunhava a espada,
obrigando-o a dirigi-la contra o seu próprio coração. Ou então alguém que, como
Sêneca, por ordem de um Tirano é obrigado a cortar os pulsos, isto é, deseja evitar
um mal maior por um menor. Ou enfim porque causas externas latentes de tal
maneira dispõem a imaginação e afetam o Corpo, que este se reveste de uma outra
natureza contrária à anterior e cuja ideia não pode dar-se na Mente (pela Prop. 10 da
parte 3). Ora, que o homem, pela necessidade de sua natureza, se esforce para não
existir ou para mudar de forma, é tão impossível quanto que do nada se faça algo,
como cada um pode ver com um pouco de meditação. (ESPINOSA, B. 2015a, P.
409-411; E IV, P. XX, esc.)
A teoria spinozista, que atrela a essência individual ao conatus, não pode dar conta da
existência de um princípio destrutivo interno. Ao mesmo tempo, aceita que o suicídio – a
autodestruição – existe como fenômeno de fato: é realmente possível retirar a própria vida e
há mesmo exemplos históricos de indivíduos que cometeram o ato. Se for capaz de
explicá-lo, haverá igualmente uma resposta spinozista para um evento conceitualmente
próximo cuja existência ele também parece conceder38, mas que encontra impasses ao ser
figurado no interior de suas premissas metafísicas. Trata-se da servidão voluntária, tema
detalhadamente debatido em toda sua extensão retórica e política por Etienne de La Boétie
em seu Discurso da servidão voluntária. Mais do que a simples obediência a um princípio
exterior, a servidão voluntária consiste num desejo interno de submissão a um outro – um
acontecimento que La Boétie constata com assombro. Pois, segundo ele, é não só
extraordinário que as coletividades humanas – burgos, cidades, nações – se submetam ao
poder de um único – lembremos do subtítulo do discurso: o Contra Um – , mas que o façam
voluntariamente e que experimentem algum grau de satisfação ao fazê-lo. Estão, portanto,
“encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um”39. Embora não encontremos, no corpus
spinozista, qualquer referência direta a La Boétie e à discussão sobre a servidão voluntária, é
bem verdade que, no Prefácio do TTP, Spinoza atribui à monarquia, auxiliada pela religião, a
eficácia em fazer com que os homens “combatam pela servidão como se fosse pela salvação e
acreditem que não é vergonha, mas a maior das honras, dar o sangue e a alma pela vaidade de
um só homem [...]”40. A crítica explícita à monarquia, bem como a menção de uma busca
autônoma pela servidão, quase nos fazem esperar uma alusão qualquer a La Boétie logo em
seguida – mas Spinoza permanece em silêncio.41
38
O exemplo do Estado hebreu o atesta. Ver, para tanto, o Capítulo 4 deste estudo.
39
LA BOÉTIE, E. 1982, P. 12.
40
ESPINOSA, B. 2019, P. 125; G III, 7.
41
Sobre Spinoza e a servidão voluntária, ver os seguintes trabalhos: ALBARELLI, B. “Latência e Servidão
Voluntária: A oposição radical entre Espinosa e La Boétie”. In : Revista Seiscentos, vol. 1, 2021 (no prelo) e
336
ABENSOUR, M. « Spinoza et l’épineuse question de la servitude volontaire ». In : Astérion, 13, 2015. URL :
http://journals.openedition.org/asterion/2594 ; DOI : https://doi.org/10.4000/asterion.2594. Última visualização:
31/08/2021 às 10h03min.
42
Eis a tese de Eric Delassous em seu artigo já citado anteriormente: o suicídio pode ser visto, na filosofia de
Spinoza, como uma expressão legítima da liberdade.
43
Sobre a acrasia e o suicídio no pensamento de Spinoza, ver o artigo de PINHEIRO, U. “Acrasia,
metamorfoses e o suicídio de Sêneca na Ética de Espinosa”. In : Analytica, Rio de Janeiro, vol 12 nº 2, 2008, p.
199-244. Ver também, do mesmo autor, “Servidão e acrasia segundo Espinosa”, In : O que nos faz pensar, [S.l.],
v. 14, n. 18, p. 195-212, sep. 2004. Disponível em:
<http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/195>. Acesso em: 31/08/2021 às
10h20min e “A heresia oculta de Espinosa. Meditações sobre a morte na Ética”, In : Analytica. Rio de Janeiro,
vol 14 nº 1, 2010, p. 217-242.
44
ESPINOSA, B. 2015a, P. 409; EIV, P. XX, esc.
337
Se for assim, o retrato desta movimentação perpétua entre externo e interno será
equivalente à penetração da teologia – tomada como exterioridade – na esfera da imanência.
O suicídio será uma espécie de paradigma precursor útil – embora limitado, pois o conflito
será, em última análise, dissolvido, já que o indivíduo será destruído – para melhor visualizar
a relação construída com a teologia ao longo do TTP. A exterioridade trazida pela religião,
quando interiorizada, ou seja, quando reescrita e necessariamente transformada, não pode
funcionar como uma causa externa que auxilie, por exemplo, na salvação de quase todos os
indivíduos pela via da obediência? E não haverá sempre uma resposta da interioridade para o
exterior como movimento suplementar? Não pode implicar, em suma, uma nova relação com
o objeto religioso, que mantenha para sempre seu aspecto tenso, sua dinâmica insuperável,
não a ponto de eliminar a religião, mas de construir para ela um novo conceito que não a
45
Não teremos tempo de investir nesta analogia aqui. Recomendo como bibliografia suplementar o livro de
Stefan Andriopoulos, Possuídos. Crimes hipnóticos, ficção corporativa e invenção do cinema, publicado em
2014 pela editora Contraponto, que pode ser uma boa fonte de pesquisa sobre o tema.
338
Esta nova postura face ao objeto religioso não nos informa também sobre a
modernidade ou antimodernidade de Spinoza?
Universidade de Heidelberg – o que mais uma vez indica seu esforço por despertencimento
institucional. Para não mencionar seu autobanimento geográfico, pois abandona sua cidade de
nascimento para viver, até o fim de sua vida, exilado no campo: Rijnsburg, Voorburg e Haia
foram seus locais de moradia.46
A contemporaneidade é, assim, uma relação singular com o próprio tempo, que adere
a ele e, ao mesmo tempo, toma distância dele; mais precisamente, essa é a relação
com o tempo que adere a ele através de uma dissociação e de um anacronismo.
Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que se ligam em todos os
pontos perfeitamente com ela, não são contemporâneos porque, exatamente por isso,
não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, G.
2015, P. 22-23)
Não coincide já que defende uma nova maneira de tomar o texto bíblico, separa o discurso da
razão do discurso da fé e, institucionalmente, o direito civil do direito sagrado. Basta verificar
o testemunho de seus críticos – Velthuysen, Blyenbergh, o próprio Oldenburg até certo ponto
– e a recepção mais imediata do TTP para concluí-lo.
Tudo isso já é por nós conhecido. Diz respeito à relação de Spinoza com seu próprio
tempo e o modo como pode dialogar, justamente por este afastamento, com nossas intuições
políticas de hoje, já que o que era, nos seiscentos, anormal, tornou-se, para nós, uma certa
evidência do pensamento político – ao menos para um determinado grupo. Talvez haja,
porém, outra identificação com o tempo de agora – não tanto motivada pelas teses que
reivindica, mas pelos distanciamentos que toma.
48
Joan Dejean assim define a expressão “guerra cultural”: “O termo cultural é tão apropriado e essencial quanto
o termo guerra na designação das controvérsias que podem ser incluídas nesta categoria. O conflito em questão
é mais amargamente divisor e é empreendido em uma escala muito mais ampla do que o são, ao contrário, as
controvérsias sobre questões culturais. Contudo, em tempos de Guerras Culturais – na França do século XVII
tanto quanto nos Estados Unidos de hoje –, os assuntos intelectuais adquirem uma importância jamais vista nos
períodos de menor ansiedade. Nestes períodos, os tradicionalistas e os progressistas enquadram-se como
Antigos ou Modernos e travam batalha sobre questões tais como o assunto mais apropriado a uma literatura
digna de ser considerada grandiosa e o currículo literário mais adequado às necessidades do estudante
contemporâneo. O conflito resultante é arrastado à controvérsias contemporâneas acerca dos problemas sociais:
desde os direitos e o status das mulheres, até a ameaça inerente aos comportamentos induzidos por vícios (tanto
os causados pelas drogas atuais, quanto os, como no século XVII, causados pelo tabaco e pelo chocolate).
Supostamente, e com um certo grau de boa fé – pois o status de tais alegações não pode nunca ser precisamente
definido –, as modificações literárias que serviram de base inicial para a distinção entre Modernos e Antigos são
culpadas pelas ameaças de mudanças sociais: as mulheres tornaram-se indisciplinadas por causa de novos e
importantes livros; ou até mesmo, mais simplesmente, porque os Modernos começaram a desafiar a autoridade
dos Antigos, o comportamento induzido pelos vícios cresceu. Que alegações como estas aparentem ser
desesperadamente disparatadas apenas torna mais significativo o fato de serem amplamente difundidas e
supostamente fidedignas. Nestes momentos, como em nenhum outro, controvérsias sobre assuntos literários
auxiliam na criação impetuosa de uma atmosfera de final de século. Tanto no século XVII, quanto hoje, as
Guerras Culturais marcam um período de intensa divisão em que a sociedade passa a crer primeiramente que a
civilização como a conhecem está prestes a acabar, e, em seguida, que os fatores literários são sintomáticos
deste declínio e também responsáveis por ele.”, cf. DEJEAN, J. 2005, P. 29-30.
341
fenômeno radicalmente mais público, o centro de uma esfera cultural em que uma
variedade de grupos antes silenciosos começaram a engajar-se numa participação
ativa. Em segundo lugar, essa literatura dramaticamente mais pública representou um
papel fundamental no desenvolvimento das novas formas de afetividade e de
interioridade, quem sabe mesmo no desenvolvimento do que poderia ser chamada a
subjetividade moderna. E, em terceiro lugar, o romance – gênero literário
intimamente ligado a ambas as novidades da literatura, a publicidade e a interioridade
– alcançou sua primeira real proeminência. No equivalente seiscentista do meio
acadêmico atual, contudo, os papéis foram inversos. Os Antigos introduziram todos
os planos para a reforma institucional e pedagógica provando-se, no fim das contas,
vencedores, enquanto os Modernos praticamente não obtiveram sucesso em iniciar
mudanças. (DEJEAN, J. 2005, P. 11)
Se, como sustenta Dejean, o fin de siècle europeu experimentava justamente esta
indefinição quanto a temas culturais prementes – como atestam as discussões, na literatura,
sobre a retomada ou não dos clássicos e a reflexão acerca de qual pedagogia adotar nas
instituições de ensino –, e se pudermos associar este momento de disputa também ao lugar
histórico do Tratado Teológico-Político – ele mesmo um trabalho de fim de século, e que,
diga-se de passagem, foi rapidamente traduzido para o francês49 –, talvez possamos partir
para uma última associação entre Spinoza e o nosso tempo, igualmente marcado por uma
crise da modernidade que ainda não se resolveu por completo. Se ainda não superamos nossa
própria guerra cultural, e se Spinoza trava uma guerra também em seu tempo, talvez o que
nos associe a ele seja justamente esta indefinição e este não-pertencimento. Um
despertencimento que faz dele, como nós, nem inteiramente modernos – pois, se estivermos
corretos, a relação com a religião não é de mera recusa – tampouco plenamente antimodernos
– pois, afinal, há uma defesa explícita da liberdade de expressão individual e a manutenção
de um âmbito reservado à interioridade tão cara à modernidade50.
Reescrevendo a relação entre fé e saber, pode ser que Spinoza nos auxilie, na crise
que nos é própria, a repensar também nossas heranças iluministas – sem que isto signifique
um retorno a um passado mítico dominado por uma religião de orientação identitária. O que
interessa a nós é recuperar o Spinoza que vive nesta tensão entre modernidade e
antimodernidade: que é, parece-nos, a tensão própria do contemporâneo.
49
Não pretendo defender historiograficamente o pertencimento do Tratado Teológico-Político ao espírito de fim
de século francês – o que implicaria um outro gênero de análise e um outro conjunto de argumentos. Minha
ideia é associar alguns dados históricos para levantar hipóteses sobre alianças e distanciamentos no campo das
ideias, tendo o período histórico como fundo de sustentação provisório, mas não definitivo. As conexões não
têm a pretensão de serem reais, mas narrativas.
50
Remeto o leitor à Introdução para verificar os sentidos atribuídos, por alguns comentadores, à modernidade ou
antimodernidade de Spinoza.
342
Um bestiário
51
“Tal como o homem é o melhor dos animais quando atinge o seu pleno desenvolvimento, do mesmo modo,
quando afastado da lei e da justiça, será o pior. A injustiça armada é, efetivamente, a mais perigosa; o homem
nasceu com armas que devem servir a sabedoria prática e a virtude mas que também podem ser usadas para fins
absolutamente opostos. É por isso que o homem sem virtude é a critura mais ímpia e selvagem, e a mais
grosseira de todas no que diz respeito aos prazeres do sexo e da alimentação.”, cf. ARISTÓTELES. 1998, P. 57.
343
assim, a estranha condição de estar dentro da natureza e, ao mesmo tempo, projetar-se para
além dela devido a suas capacidades elas mesmas naturalmente instituídas:
A razão pela qual um homem, mais do que uma abelha ou um animal gregário, é um
ser vivo político em sentido pleno, é óbvia. A natureza, conforme dizemos, não faz
nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os seres vivos, possui a palavra.
Assim, enquanto a voz indica prazer ou sofrimento, e nesse sentido é também
atributo de outros animais (cuja natureza também atinge sensações de dor e de prazer
e é capaz de as indicar) o discurso, por outro lado, serve para tornar claro o útil e o
prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto. É que, perante os outros seres
vivos, o homem tem as suas peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o justo e o
injusto; é a comunidade destes sentimentos que produz a família e a cidade.
(ARISTÓTELES. 1998, P. 55)
Pode-se dizer, então, que a tensão entre interioridade e exterioridade faz parte, em
Aristóteles, da própria condição humana, tensão esta que terá seu destino posterior, na
história da filosofia política, ao ser também marca estruturante da figura do soberano. Nosso
exercício arqueológico52 ainda incipiente pode, agora, saltar ao século XVI a fim de
encontrar, na discussão de Maquiavel acerca dos atributos do soberano – mais
especificamente sobre se é aconselhável ao príncipe manter sua palavra dada53 –, a
necessidade de um recurso às características animalescas como forma de conservar o poder.
O príncipe deve ser como que internamente fraturado, possuindo duas naturezas ao mesmo
tempo: a do animal e a do homem. Deve ser, pois, uma espécie de centauro. Em termos
políticos, isso se traduz em travar um combate tanto através das leis – próprias da
humanidade – quanto fazendo uso da força – a qual compete à brutalidade das bestas.54 Há,
porém, animais privilegiados, cujas características serão de mais utilidade na constituição
deste soberano nem totalmente humano, nem integralmente animal; o qual está, ao mesmo
52
Arqueológico pois não se trata de buscar, nas referências da tradição, a essência da animalidade ou, por
contraste, a da humanidade: mas sim verificar, à certa distância, o modo como o cânone construiu para si uma
separação que é, ela mesma, destituída considerando certos aspectos das próprias teorias dos autores elencados.
Retomo o sentido de arqueologia esquematicamente apresentado por Michel Foucault no artigo “O que são as
Luzes?”, no qual desenvolve a arqueologia como uma espécie de método oposto às pretensões universalistas de
um certo exercício transcendental de investigação: “Aquilo que, nós o vemos, traz como consequência que a
crítica vai se exercer não mais na pesquisa das estruturas formais que têm valor universal, mas como pesquisa
histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos que
fazemos, pensamos, dizemos. Nesse sentido, essa crítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar
possível uma metafísica: ela é genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método. Arqueológica – e
não transcendental – no sentido de que ela não procurará depreender as estruturas universais de qualquer
conhecimento ou de qualquer ação moral possível; mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos,
dizemos e fazemos como acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não
deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá da
contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos
e pensamos”, cf. FOUCAULT, M. 2000, P. 347-348.
53
Tema do capítulo XVIII de O Príncipe.
54
Sobre esta relação, ver o seminário de Jacques Derrida intitulado A besta e o soberano, cujo primeiro volume
foi publicado no Brasil pela editora Via Verita em 2016.
344
Estando, pois, um príncipe necessitado de saber usar bem a besta, deve adotar a
raposa e o leão: porque o leão não se defende das armadilhas, a raposa não se
defende dos lobos; precisa, pois, ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para
assustar os lobos: aqueles que se atêm simplesmente ao leão não percebem disto.
(MAQUIAVEL, N. 2017, P. 199)
55
Conforme a discussão sobre o primeiro capítulo de Homo Sacer I, de Giorgio Agamben, que propomos em
nossa Introdução.
56
Sobre as críticas de Hobbes ao pensamento político aristotélico, ver o livro de FRATESCHI, Y. A física da
política. Hobbes contra Aristóteles. Campinas: Editora UNICAMP, 2008.
57
Ver, em Do Cidadão, Capítulo V, §5 e, em Leviatã, o Capítulo XVII.
345
porque é civil, mas porque vivem apenas em vista da “sensação e do apetite”58. A paz que
obtém é fruto da inércia e da desrazão, paz que não compete ao homem, que naturalmente
está inclinado e mesmo destinado, pelo fato de ser racional, a desejar algo além da simplória
sensação. Ao mero consentimento bestial, Hobbes opõe a verdadeira união, fruto da
artificialidade do pacto criador de direito:
Portanto, se a convergência de muitas vontades rumo ao mesmo fim não basta para
conservar a paz e promover uma defesa duradoura, é preciso que, naqueles tópicos
necessários que dizem respeito à paz e autodefesa, haja tão-somente uma vontade de
todos os homens. Mas isso não se pode fazer, a menos que cada um de tal modo
submeta sua vontade a algum outro (seja este um só ou um conselho) que tudo o que
for vontade deste, naquelas coisas que são necessárias para a paz comum, seja havido
como sendo vontade de todos em geral, e de cada um em particular. E a reunião de
muitos homens que deliberam sobre o que deve ser feito, ou omitido, é o que eu
chamo de conselho. (HOBBES, T. 2002, P. 95-96).
58
HOBBES, T. 2002, P. 94.
59
HOBBES, T. 2002, P. 33.
60
“É bem verdade que em tais criaturas, que vivem apenas pela sensação e o apetite, o consentimento das
mentes é tão durável que não precisa haver nada mais para assegurá-lo, e por conseguinte para preservar a paz
entre elas, além de sua mera inclinação natural.”, cf. HOBBES, T. 2002, P. 94.
61
Do Cidadão, Capítulo III, §27.
62
Do Cidadão, Capítulo V, §1-4.
63
Na seção do Capítulo V dedicada a refletir sobre o conceito de lei.
64
Cf. Do Cidadão, Capítulo II, §1.
65
Do Cidadão, Capítulo IV, §1-2.
346
seja obtida. Se a natureza dita a busca pela paz e se, para os homens, só pode haver paz fora
da natureza, a conclusão é a de que a própria natureza ensina que é preciso ultrapassá-la:
66
HOBBES, T. 2002, P. 3.
67
Tradução minha a partir de LA FONTAINE, J. Fables choisies. Tome 1, mise en vers par J. de La Fontaine.
1755-1759, P. 20. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1049428h/f100. Última visualização:
14/09/2021 às 15h51min.
68
Ibid.
69
HOBBES, T. 2002, P. 324.
70
Ibid.
347
o domínio da política e, com ela, a marca animalesca do Estado, ele mesmo descrito como
um grande leviatã:
Assim como em tantas outras coisas, a Natureza (a arte mediante a qual Deus fez e
governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível
fazer um animal artificial. Pois, considerando que a vida não passa de um movimento
dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, por que não
poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem por meio de
molas e rodas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? Pois o que é o
coração, senão uma mola; e os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas, senão
outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado
pelo Artífice? E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais
excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande
LEVIATÃ a que se chama REPÚBLICA, ou ESTADO (em latim CIVITAS), que não
é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem
natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. (HOBBES, T. 2019, P. 11)
Cabe acrescentar uma última referência à nossa enumeração – a qual carrega algo de
inesperado, mas que já é ligeiramente conhecida por nós. A argumentação de Hobbes a
respeito da paz das agregações das bestas nos encaminha a um trecho de Spinoza em que uma
estranha descontinuidade entre o homem e a natureza surge, cujas metáforas não parecem ser
tampouco gratuitas:
Da cidade cujos súditos, transidos de medo, não pegam em armas, deve antes dizer-se
que está sem guerra do que dizer-se que tem paz. Porque a paz não é ausência de
guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de ânimo: a obediência, com efeito (pelo
art. 19, cap. II), é a vontade constante de executar aquilo que, pelo decreto comum da
cidade, deve ser feito. Além disso, aquela cidade cuja paz depende da inércia dos
súditos, os quais são conduzidos como ovelhas, para que aprendam só a servir, mais
corretamente se pode dizer uma solidão do que uma cidade.
Quando, por conseguinte, dizemos que o melhor estado é aquele onde os homens
passam a vida em concórdia, entendo a vida humana, a qual não se define só pela
circulação do sangue e outras coisas que são comuns a todos os animais, mas se
348
define acima de tudo pela razão, verdadeira virtude e vida da mente. (Grifos meus.
ESPINOSA, B. 2009, P. 44-45; G III, 296)
71
Já fizemos referência a este problema, tanto quanto a uma bibliografia sobre, no Capítulo 4.
349
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