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PENSANDO O

POPULISMO
a partir de ensaios e
perspectivas distintas
Clarissa Tassinari
Giancarlo Montagner Copelli

PENSANDO O
POPULISMO
a partir de ensaios e
perspectivas distintas

1ªEdição

Editora Dom Modesto


Blumenau, 2021
Editora Dom Modesto
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“A realidade existe apenas na mente do Partido, que é
coletiva e imortal. Tudo o que o Partido reconhece como
verdade é a verdade. É impossível ver a realidade
se não for pelos olhos do Partido”.

(Fala da personagem O'Brien - 1984, de George Orwell)


AGRADECIMENTOS AOS ÓRGÃOS DE FOMENTO

Este livro é resultado final da execução do projeto de pesquisa “Estado,


políticas públicas e populismo: democracia à margem das instituições?”,
contemplado pelo Edital Auxílio Recém Doutor (ARD nº 4/2019). Por isso,
agradecemos à Fapergs pelo financiamento que tornou possível não apenas as
pesquisas realizadas em razão deste projeto, mas também a publicação desta
obra.

Agradecemos, ainda, ao PPG Direito da Unisinos, que ofereceu o


ambiente propício ao desenvolvimento deste projeto, seja através de sua
estrutura física e de suas plataformas digitais, seja pela efervescência de ideias
que habita aqueles corredores, com qualificados corpos discentes e docentes.

Por fim, agradecemos aos alunos e às alunas que fizeram parte da


equipe do projeto, pelo engajamento e comprometimento com a pesquisa.

Os autores
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 13
Anderson Vichinkeski Teixeira

PREFÁCIO 15
Jose Luis Bolzan de Morais

ABERTURA: Por que é necessário pensar o populismo de hoje? 19


Clarissa Tassinari

CAPÍTULO 1 - O DISCURSO POPULISTA E O DIREITO: Breves


considerações a partir de um conceito para o fenômeno político 25
Giancarlo Montagner Copelli
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 26
2. POPULISMO: O MÍTICO A MARGEM DA INSTITUCIONALIDADE 30
3. O ESTADO DEMOCRÁTICO E A DEFESA DAS REGRAS DO JOGO: UM EXEMPLO À
BRASILEIRA? 34
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 38

CAPÍTULO 2 - POPULISMO E INSTITUIÇÕES: A importância das


Política Públicas para a materialização do Estado Democrático 41
Clarissa Tassinari
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 42
2. ESTADO E DEMOCRACIA: QUAL É A RELAÇÃO ENTRE O POVO E O PODER? 45
3. ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: O QUE SE PROJETA PARA A INTERVENÇÃO
ESTATAL? 49
4. ESTADO E POPULISMO: QUAL O DIÁLOGO ENTRE DEMANDAS POPULARES E
INSTITUIÇÕES? 54
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 57

CAPÍTULO 3 - POPULISMO E PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO:


Especificidades do fenômeno político na história do Brasil 59
Giancarlo Montagner Copelli
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 60
1
12 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

2. ESBOÇANDO CENÁRIOS: O ENCONTRO ENTRE A DEMOCRACIA E A CRISE NO


BRASIL 62
3. O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO E AS DEMANDAS REPRIMIDAS 64
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 69

CAPÍTULO 4 - O DISCURSO POPULISTA E O DIREITO: Breves


considerações a partir de um conceito para o fenômeno político 71
Clarissa Tassinari
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 72
2. A DINÂMICA ENTRE OS PODERES NO BRASIL: AS MAIS RECENTES TENTATIVAS DE
SOBREPOSIÇÕES INSTITUCIONAIS 74
3. SOBREPOSIÇÕES INSTITUCIONAIS: SUPREMACIA JUDICIAL CONSENTIDA,
POPULISMO E SELETIVISMO LEGISLATIVO 78
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 82

DESFECHO: Entre direito e política, o mal-entendido democrático e o


fantasma do populismo 87

REFERÊNCIAS 95
Anderson Vichinkeski Teixeira
APRESENTAÇÃO 13

APRESENTAÇÃO

Muito me honra fazer algumas considerações iniciais acerca da bela


obra Pensando o populismo, produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação
em Direito da UNISINOS, por Clarissa Tassinari e Giancarlo Copelli. Elaborada
em estrutura autoral, sintetizando teses, reflexões e preocupações comuns aos
autores, verifica-se que um dos grandes problemas das democracias ocidentais
contemporâneas foi precisamente abordada na obra em comento: o populismo
como fenômeno corrosivo dos fundamentos do Estado constitucional.

Já no primeiro capítulo percebe-se a impossibilidade de conceber o


populismo como uma alternativa viável, isto é, como um regime político. Trata-se
de um fenômeno baseado em aspectos míticos e ultrapersonalistas de líderes
políticos que promove a intolerância em relação a qualquer crítica, manifestação
ou alternativa política que não seja o populismo em si mesmo. Jan Werner-Müller,
em sua obra muito conhecida, de 2016, What is Populism?, sublinha os aspectos
antiliberais e antidemocráticos que são percebidos nos eventos do século XXI e
diferenciam o populismo de outras manifestações políticas pretéritas. Werner-
Müller é preciso em sua análise ao destacar a onipresença de três características
que são sociológicas e deontológicas, antes de serem pensáveis como de natureza
política: anti-pluralismo, anti-elitismo – que também inclui anti-intelectualismo –
e exclusivismo.

Assim, mostra-se fundamental distinguir entre populismo e governos


populares: estes segundos não são mais do que governos com orientações
políticas voltadas aos interesses coletivos de certos grupos sociais, como
trabalhadores ou empreendedores. Sempre existe um senso de coletividade a
nortear um governo de base popular. Em vez disso, um possível governo
populista terá como guia apenas ideias individualistas que não podem ser
compartilhadas no âmbito geral dos grupos sociais. Ao longo da presente obra é
1
14 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

muito bem salientado o conjunto de fatores sociais, políticos e econômicos que


servem de fomento, de condições de possibilidade, à emergência de populismos
no seio de Estados democráticos. Possuem um pressuposto material: a crença
cega em uma figura pública capaz de promover valores claramente ligados ao eu,
sem a possibilidade de reconhecimento com o outro. Líderes populistas são
figuras políticas cada vez mais caricatas e sem virtudes facilmente reconhecíveis,
uma vez que são as “pessoas comuns” que se reconhecem nessa falta aparente de
virtude do líder, nessa falta de desejo de se reconhecer no outro, no diferente.

Enfrentando tais problemas típicos da nossa época, a obra Pensando o


populismo é muito feliz em articular diversos conceitos centrais para a melhor
compreensão do seu objeto de estudo: democracia, representação, desigualdade
social e sistemas de governo. Divididos em quatro capítulos, tais temas se
organizam entre si de modo a permitir que o leitor acompanhe com linearidade e
coerência os desenvolvimentos que se seguem.

Como pode ser sentido desde já, a obra possui altíssima relevância para
pesquisadores, professores e estudantes de Teoria do Estado, Teoria da
Democracia, Direito Constitucional e Ciência Política, podendo ser aplicada tanto
na graduação como na pós-graduação em Direito e áreas afins.

Por fim, reitero a honra e satisfação em abrir esse livro, desejando que
as reflexões produzidas por Tassinari e Copelli possam ter o merecido alcance no
meio acadêmico e logrem sucesso em promover desdobramentos rumo a
ulteriores pesquisas.

Porto Alegre, agosto de 2021.

Prof. Dr. Anderson Vichinkeski Teixeira


Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Florença
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Jose Luis Bolzan de Morais
PREFÁCIO 15

PREFÁCIO

Ma qui sorge un primo problema: in che misura, e fino a che punto,


il comun denominatore della delegi�imazione segnala un fenomeno davvero nuovo,
e non invece il riproporsi, in altre forme e in un diverso contesto storico,
di un fa�ore costitutivo sin dalle origini della democrazia occidentale?
(Giacomo Marramao, Sulla Sindrome Populista.
La delegi�imazione come strategia politica)

Uma das gratificações da atividade acadêmica – docente – é


experimentar, acompanhar e constatar o nascimento e o crescimento de novos
docentes-pesquisadores, sobretudo tratando-se daqueles que tivemos a grata
satisfação – o prazer do convívio – de vermos, de certo modo, nascer as novas
gerações e podermos compartilhar com estas um pouco de nossas preocupações,
na expectativa de que, sendo melhores que seus professores, possam contribuir
para a construção de melhores compreensões e respostas para os problemas que
a sociedade contemporânea nos apresenta.

E, recebendo o convite para estar neste novo trabalho de Giancarlo e


Clarissa, para além da honra, o sentimento que fica é o de que, aqui, confirmamos
esta hipótese.

Giancarlo e Clarissa enfrentam, neste apanhado de textos, que dialogam


entre si, uma das questões centrais que ocupam os cientistas sociais atualmente, o
populismo e seus impactos, pontualmente, no campo do Direito.

Talvez sem nunca deixar de ter sido um dos temas que, em especial
nesta América Latina, corroem nossa experiência político-jurídica, o populismo,
nestes últimos anos parece ter retomado uma força aparentemente submersa,
muito embora, se atentarmos para a história do próprio constitucionalismo
1
16 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

americano, sua “casa de máquinas” – para usar o termo de R. Gargarella – tenha


permanecido intocada, o que, talvez, e aqui não é – nem há – espaço para
avançarmos nesta discussão, contribua para uma nova fase de experimentação
deste fenômeno, agora marcado por um ‘renovado” discurso autoritário, em
contradição com as fórmulas do Estado de Direito restauradas nos processos de
transição, recuperação, inauguração, da democracia, após as décadas de regimes
autoritários que marcaram a região.

Deveras, o tema do populismo, como retórica salvacionista do povo


dele mesmo, buscando granjear a simpatia dos mais vulneráveis, apontando
como inimigo “o que está aí”, contrapondo “nós a eles”, como explica Jason
Stanley¹, impõe-se a todos nós que labutamos em torno do Direito, como seus
cúmplices afetivos.

Temos observado, na experiência do populismo, a privatização do


público por um líder carismático, mitificado, que governa baseado ou estimulado
pelo conflito entre grupos sociais, pondo em confronto a classe política (corrupta)
e o povo, a “velha” e a “nova” política, a esquerda e a direita, o futuro e a queda
total, tudo como se essa simplificação e o confronto definissem o mundo presente,
constituindo a política mundial como uma onda de proporções gigantescas, com
um discurso globalizado de conteúdo extremista, presente desde os EUA, Itália,
Hungria, passando pela Polônia, Colômbia, França e desaguando no Brasil, em
rota ascendente na América Latina.

Para isso, podemos compartilhar as características apontadas por


Michael Löwy² - nacionalismo, antiglobalismo, xenofobia, racismo explícito,
retórica anti-imigrante, islamofobia, beligerância e intolerância – presente de
forma similar em todos os quadrantes do globo, podendo-se, com Vera Alves
Cepêda³, incluir as disrupturas do capitalismo, o caráter antissistêmico, a aversão
ao comunismo e a seleção prévia do inimigo.

Mas, há algo novo, aqui e agora: o uso dos novos meios tecnológicos –
de comunicação em particular - para exponencializar a busca pela conexão direta
com o povo-eleitor, pulverizando as organizações sociais tradicionais da
democracia liberal e esvaziando as estratégias do Estado Liberal de Direito⁴.

1 STANLEY, Jason. Noi contro loro: come funziona il fascismo. Milano: Media Group Spa, 2018
2 LÖWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Revista Serviço Social e & Sociedade, São
Paulo, nº 124, . out./dez. 2015, p. 652-664
3 CEPÊDA. Vera Alves. A nova direita no Brasil: contexto e matrizes conceituais. Mediações – Revista e Ciência Social,
Londrina, v. 23, n. 2, mai./ago. 2018, p. 75-122.
Jose Luis Bolzan de Morais
PREFÁCIO 17
Tais práticas e estratégias têm dado maior visibilidade ao populismo na
sua vertente de extrema direita, cuja particularidade é o ataque ao Estado como
garantidor de direitos civis e humanos, muito além do neoliberalismo que,
nuclearmente, objetiva desmontar o Estado Liberal em sua versão de Estado
Liberal Social, objetivando um poder absoluto, na perspectiva sugerida por
Enrique Krauze⁵.

Por isso tudo, as reflexões trazidas pelos autores, em seus textos


autorais, que buscam entender o fenômeno em algumas especificidades e se
interconectam, contribuem para que o jurista – aquele que busca fazer do Direito
um instrumento de emancipação – compreenda como tudo isso repercute nas
construções organizacionais do Estado de Direito, fragilizando-o, para além das
suas insuficiências clássicas decorrentes de seus limites como fórmula político-
institucional do liberalismo.

Obrigado Gian e Cla pela oportunidade de lê-los e reconhecê-los neste


livro que, agora, se disponibiliza à leitura e à crítica. Parabéns pelo esforço crítico-
reflexivo que só está disponível àqueles que põem a serviço da construção do
conhecimento comprometido.

Boa leitura aos aventureiros das páginas que seguem.

Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais


Prof. dos PPGDs da FDV e UIT
Pesquisador CNPQ-PQ
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul

4 Sobre isso tivemos a oportunidade de publicar: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis; FESTUGATTO, Adriana. A
Democracia Desinformada. Eleições e fake news. Col. Estado & Constituição. N. 20. Porto Alegre: Livraria do
Advogado. 2020; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis; FESTUGATTO, Adriana; MOZETIC, Vinicius A. Liberdade
de expressão e direito à informação na era digital. O fenômeno das fake news e o “marketplace of ideas”, de Oliver
Holmes Jr. Rev. Direitos Fundamentais & Justiça. N. 14. 2020. Pp. 331-356; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis;
LÔBO, Edilene. A democracia corrompida pela surveillance ou uma fakedemocracy distópica. IN: BOLZAN DE
MORAIS, Jose Luis (Org.). A Democracia Sequestrada. São Paulo: Tirant lo Blanch. 2019. Pp. 27-42; BOLZAN DE
MORAIS, Jose Luis; LÔBO, Edilene. Rule of Law, New Technologies and Cyberpopulism. Revista Justiça do Direito.
Vol. 33, n. 3. 2019. Pp. 89-115; LÔBO, Edilene; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. News Technologies and the
current communications model in the 2018 brazilian elections. Disponível em: h�ps://siaiap32.univali.br/seer/
index.php/nej/article/view/15532/pdf Acesso: 11 fev. 2020. BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis; LÔBO, Edilene.
New technologies, Social Media and Democracy. Rev. Opinion Juridica. V. 20. 2021. Pp. 253-274; BOLZAN DE
MORAIS, Jose Luis; LÔBO, Edilene; NEMER, David. Democracia algoritmica: o futuro da democracia e o
combate às milícias digitais no Brasil. Rev. Culturas Jurídicas. N. 7. 2020. Pp. 255-276.
5 KRAUZE, Enrique. El Pueblo soy yo. Barcelona/Ciudad de México: Penguin Random House Grupo Editorial,
2018.
ABERTURA
Por que é necessário pensar o populismo hoje?

Clarissa Tassinari
2
20 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

ABERTURA:
Por que é necessário pensar o populismo hoje?

Clarissa Tassinari

Quando o projeto de pesquisa que motivou a elaboração desta obra foi


submetido ao Edital Auxílio Recém Doutor nº 4/2019 da Fapergs, sob o título
“Estado, políticas públicas e populismo: democracia à margem das instituições?”,
ainda não imaginávamos a dimensão que o tema “populismo” ganharia no
debate acadêmico, nas mais diversas áreas, em especial no âmbito jurídico.
Apesar disso, em 2019, ano de propositura do projeto, já havia um quê de
incômodo com o cenário político brasileiro, e ele estava relacionado com as
diferentes leituras que surgiam sobre a relação entre Estado, democracia e
concretização de direitos via políticas públicas, isto é, sobre a governabilidade no
Brasil.

Mesmo antes do pleito eleitoral de 2018, de seu resultado e da


consequente efervescência dos debates políticos que dividiriam e ainda dividem
o país, já naquela época havia uma tendência ao surgimento de novos perfis
políticos. Sobre o quanto esses perfis políticos poderiam ser realmente
considerados novos, isso apenas conseguiríamos analisar muito mais tarde, na
prática. Mas o fato é que pairava um certo discurso que os apresentava como
possíveis alternativas ou soluções para os rumos do Brasil, um país cujas
estruturas democráticas se encontravam em constante processo de materialização
desde 1988 e que, naquele momento, estavam ainda mais fragilizadas por
recentes ataques, em especial, os escândalos de corrupção e o questionável
impeachment da Presidente eleita. E, como todos sabemos, discursos, é claro,
aceitam tudo.
Clarissa Tassinari
ABERTURA 21
Assim foram surgindo os perfis políticos ditos não políticos – os
famosos outsiders da política: mais administradores, mais técnicos e mais capazes
de lidar burocraticamente com a burocracia do Estado, em nome da eficiência.
Surgiam, também, os perfis políticos que se conectavam ao anúncio da nova
política – (quem sabe) livre das espúrias negociações políticas, das barganhas que
corrompem o interesse público; uma política mais conservadora, sem
favorecimentos de classes. Nasciam, ainda, aqueles perfis políticos que se
colocavam numa espécie de posição “fora do sistema”, na maioria das vezes sem
deixar muito claro como seria “esse sistema”, tampouco “o próximo” a ser
instaurado, flertando diretamente com uma difusa e multifacetada sensação de
descontentamento que afetava a sociedade brasileira. E talvez houvesse também
aquele político que agregasse todos esses discursos e muitos outros, todos,
evidentemente, muito promissores para o futuro da democracia no Brasil.

À época (que arrisco a delimitar mais ou menos entre os anos de 2017 e


início de 2019), tudo isso – todas essas alvissareiras promessas – poderia não ser
um problema em si. Afinal, quem não gostaria de vivenciar uma revitalização da
política? Como poderia não ser benéfico à democracia brasileira o afastamento de
privilégios? Como poderíamos nos posicionar contra a refutação de todo e
qualquer elemento corruptivo que pudesse ser associado à política? Todos
aqueles novos perfis políticos, aparentemente, tinham pretensões governamentais
que eram convergentes ao que se esperava de um bom governo. E isso era
inegável.
Acontece que o cenário acima descrito despertava, também, alguns
incômodos. Primeiro, porque discursos como aqueles ou outros similares – que
criavam certos (novos) perfis políticos ao Executivo – possuíam um tom de
generalidade excessivo, que, como consequência, beirava o imprevisível.
Contudo, para além disso, a existência desses (novos) perfis políticos pareciam
indicar um problema de fundo comum: a possível confusão entre políticas de
Estado e políticas de governo.

Ou seja, em que pese esses (novos) perfis políticos para o Executivo


tenham surgido em contraposição à forma até então existente de fazer política e
governar o Brasil – homogeneizando a história brasileira de um modo que talvez
seja impossível –, ao mirar nas políticas de governo já existentes, para projetar o
seu novo, eles pareciam acertar, ainda que indiretamente e sem deixar isso tão
evidente, as instituições, as políticas de Estado. Acertavam, no fundo, a
Constituição de 1988, seu caráter normativo e dirigente, e o modelo de Estado por
2
22 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

ela desenhado, com preocupações republicanas muito claras de redução das


desigualdades sociais.

E foi então que o populismo – assunto que não é novidade na literatura


brasileira, especialmente desde a obra de Francisco Weffort – começou a ganhar
destaque como algo que merece ser estudado no atual estágio da democracia
brasileira. E isso se justifica, podendo ser apresentadas abaixo algumas razões.

Primeiro, porque parecia ser necessário problematizar o sentido de


populismo, seja para atualizá-lo ou não. Afinal, no contexto da história do Brasil,
a expressão já havia sido mobilizada teoricamente para tratar de outro momento
constitucional, como já mencionado acima. Assim, tornava-se relevante que a
discussão fosse primeiramente proposta a partir de um viés teórico-conceituaI,
com recortes específicos das mais diversas áreas (ciência política, sociologia,
direito e filosofia política), apontando para a necessidade (ou não) de uma
revitalização em sua concepção, especialmente porque o termo passava a ser
muito utilizado no ambiente jurídico.

Segundo, porque, a partir disso – desse aprofundamento teórico sobre o


significado do termo pelas lentes das mais diversas áreas de pesquisa – talvez
pudessem ser mais bem compreendidas as relações institucionais, com todas as
crises já identificadas, no Brasil, há muito tempo por Jose Luis Bolzan de Morais
– crises da democracia, da representatividade, do Estado como concretizador de
direitos etc. –, que foram se intensificando e também se desdobrando em outras
ao longo do desenvolvimento da pesquisa, que, projetada no início de 2019, ainda
não vislumbrava os impactos deletérios da crise sanitária.

Por fim, porque talvez nunca na história mundial o termo “populismo”


tenha sido objeto de tantas referências (ou tão empregado), especialmente
considerando um fenômeno comum às democracias constitucionais, que consiste
na tendência de concentração da tomada de decisão política na figura do Chefe do
Executivo, o que se verticaliza mais contemporaneamente, diante da imposição
de um desafio mundial, que foi a superação da crise sanitária. Se isso, de fato,
importa em populismo, isto é, em sua caracterização, essa é outra questão, que, de
um modo ou de outro, acaba sendo respondida ao longo dos textos que compõem
esse livro.
Desse modo, seja pelo anúncio de “uma nova política”, pela recorrência
que passa a ter o termo “populismo” no vocabulário da política, pelas tensões
institucionais entre os três Poderes no Brasil (existentes antes mesmo do cenário
Clarissa Tassinari
ABERTURA 23
pandêmico, mas também intensificadas por ele) ou pela conjunção de todos esses
fatores, o fato é que, nessa tentativa de esboçar um pano de fundo para as
reflexões sobre populismo, existe um ponto central: a sensibilidade democrática
de nosso país ao recebimento de ataques. Em outras palavras: na raiz do
populismo – e de diversos outros fenômenos que afetam as nossas instituições,
como é o caso também do ativismo judicial, por exemplo, tão bem denunciado
por Lenio Streck – está o problema democrático, estão as nossas dificuldades
democráticas, que vêm de longa data, mas que se agudizam de forma crescente na
atual conjuntura política.

Para além disso, por mais que possamos visualizar os acontecimentos


no Brasil a partir de suas especificidades, a relação democracia-constituições vem
sendo discutida mundialmente, em face das dificuldades enfrentadas por muitos
países. E isso ocorre por fatores diversos: novas ondas autoritárias, instauração de
regimes autocráticos, aumento das desigualdades, terrorismo, crises econômicas
globais, dentre outras questões. Aliás, é justamente por isso que, no ano de 2018,
Mark A. Graber, Sanford Levinson e Mark Tushnet editaram um livro, composto
por capítulos escritos por diferentes teóricos, cujo título questiona, em tradução
livre: “Democracia Constitucional em Crise?”⁶.

Na introdução que escrevem de forma conjunta ao livro, iniciam com


uma frase impactante: “as democracias constitucionais e a democracia
constitucional aparentam problemas em todo o mundo” (p. 01). E, na sequência,
relacionando os argumentos de diversos autores, justificam o porquê. A intenção,
aqui, não é reproduzir as teses lançadas ao longo da obra, mas demonstrar, ao fim
e ao cabo, aquilo que Graber, Levinson e Tushnet concluem em sua introdução:
talvez não seja uma grande novidade a existência de riscos democráticos,
compreendidos como ameaças, mas o fato é que, no cenário global, “a democracia
constitucional tem mais tarefas difíceis do que em qualquer momento da história
e o custo de erros são altos, potencialmente catastróficos” (p. 2). Uma das facetas
dessa fragilidade das democracias constitucionais é o populismo. Produzir
reflexões críticas sobre o assunto também é uma forma de evitar catástrofes.

6 GRABER, Mark A.; LEVINSON, Sanford; TUSHNET, Mark (Ed.). Constitutional democracy in crisis? New York:
Oxford University Press, 2018.
Capítulo 1

O DISCURSO
POPULISTA E O
DIREITO
Breves considerações a partir de um conceito
para o fenômeno político

Giancarlo Montagner Copelli


2
26 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

CAPÍTULO 1
O DISCURSO POPULISTA E O DIREITO:
breves considerações a partir de um
conceito para o fenômeno político

Giancarlo Montagner Copelli

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Testemunha da Bulgária comunista (1946-1990), o historiador Tzvetan


Todorov⁷, ao ensaiar quais seriam os inimigos à democracia na contemporaneidade,
aponta o dedo não para as tão temidas ameaças externas ao modelo, caso do
próprio comunismo que viu apoderar-se de seu país de origem durante sua
juventude, por exemplo, mas para um fenômeno interno – íntimo, portanto –,
possível, sobretudo, a partir das regras do jogo democrático: o fortalecimento de
partidos de viés populista. Do tipo autoritário dos Anos 1930⁸ ao modelo
observado na Europa a partir do fim da Guerra Fria⁹ – com a queda do Muro de
Berlin e a necessidade, à margem de um rival comunista, ainda de um adversário
–, é esse mesmo fenômeno, talvez em escala global, aquele que abre no debate
político da atualidade um amplo catálogo de interrogações: mais bem acabado
produto de uma crise da democracia representativa em uma escala sem
precedentes? Inevitável reflexo de outra crise – esta cíclica –, relacionada ao
capitalismo que sustenta os modelos de bem-estar nessas mesmas experiências

7 TODOROV. Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
8 Como se pode pensar, no Brasil, o Estado Novo de Vargas, de 1937 a 1946.
9 Período por todos conhecido como aquele marcado por um conflito indireto entre Estados Unidos e União
Soviética, entre 1945 e 1991.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 1 27
democráticas? Ou, a partir desse mesmo enredo econômico, saldo típico da
dependência política dos resultados da economia?

Essas são algumas questões, sem dúvida importantes, mas talvez não as
mais caras a este estudo, entre as muitas possibilidades de abordagem. É que o
populismo, conceituado mínima e introdutoriamente como tentativa de abolir as
distâncias entre o povo e o poder através de um discurso demagógico, fácil de
assimilar e, ao mesmo tempo, difícil ou impossível de ser realizado¹⁰, parece
fragilizar conquistas alinhadas ao Estado de Direito na tentativa de agradar
maiorias. Eis o ponto em que esta possibilidade investigativa se orienta,
buscando, frente a breves apontamentos de base e contexto global, fornecer
horizontes comuns de sentido que permitam enxergar a questão sob o prisma da
atualidade brasileira, remanejando-o, ainda, como um problema jurídico.

Nesse sentido, compreende-se desde já que o populismo é, para além


dessas mesmas conceituações mínimas, mais que um discurso à margem das
instituições atrás da capitalização política. Embora persiga tal objetivo – ou, como
saldo, com ele se encontre –, o populismo toca a superfície mais sensível de
problemas reais típicos do chamado grande número, e seus protagonistas são
hábeis atores em identificá-los em uma espécie de vácuo institucional. De outro
modo: ao lado da solução mítica que lhe encerra – e que em boa medida o
caracteriza –, o discurso populista percebe os pontos de insuficiência institucional
da corrente orientada como racional e, a partir daí, promete a solução, como vem se
colocando, no Brasil, uma espécie de marcha contra a corrupção ou contra a
criminalidade, a qualquer preço, por exemplo. Daí não apenas sua proximidade
com a democracia como, mais que isso, seus riscos. Afinal, justamente nesse
regime, é impossível pensar o poder – seja do ponto de vista de quem o almeja,
seja sob a procura exclusiva de sua manutenção – distanciando-se dos anseios e
necessidades da população¹¹. Aí que, globalmente, é possível ver discursos caros
à Esquerda na agenda da Direita, e vice-versa, com adaptações que justificam
guinadas ideológicas ao redor do globo.

Nesse sentido, ainda introdutoriamente, exemplos não faltam. Na


França, Marine Le Pen, da Rassemblement National (antiga Front National¹²),

10 COPELLI, Giancarlo Montagner. Do sangue ao mérito: os elementos de legitimação da desigualdade no Brasil


e as possibilidades de superação pela via democrática [recurso eletrônico]. Santa Cruz do Sul: Editora Essere nel
Mondo, 2015.
11 WEFFORT, Francisco Corrêa. O populismo na política brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
2
28 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

propôs, há não muito tempo, Estado de Bem-estar Social (apenas) para os


franceses. Ou seja, uma clara política de preferência nacional¹³, em discurso
nacionalista, conservador e protecionista típico da Direita, mas flertando com um
ideário de igualdade, de intervenção estatal comum à Esquerda. Nos EUA,
também há pouco, foi possível verificar outro exemplo, com o ex-presidente
Donald Trump e a emergência de muros para a proteção dos empregos de um
mundo congelado nos Anos de Ouro do Capitalismo – e que, por óbvio, jamais
retornará, como parecem apontar uma série de recentes estudos acadêmicos
voltados a projeções acerca das profundas transformações pelas quais passa o
mundo do trabalho, como, por todos, o de Carl Frey e Michael Osborne¹⁴. São
exemplos, assim como localmente o Brasil de Vargas, Jânio, Collor e Lula¹⁵,
recorrentes personagens apontados pela literatura acadêmica em História,
Ciência Política e Economia, entre outras áreas, como carismáticos líderes
populistas frente a suas cruzadas contra o inimigo externo, o funcionalismo público,
os marajás e as elites brancas, respectivamente, assim como provavelmente será
também Jair Bolsonaro ou o ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson
Wi�el, no futuro, e o embate contra a corrupção, o comunismo ou a criminalidade,
entre outras saídas míticas a problemas complexos no Brasil, como as
insuficiências de um Estado Fiscal.

Evidentemente, esses emblemáticos personagens políticos não são


citados sem desconhecer o risco da crítica – já bem lembrado por Angela de Castro

12 O Front National é considerado o primeiro partido, com significativa relevância, de extrema direita surgido na
Europa, após a 2º Guerra Mundial. Ver, aqui, STOCKEMER, Daniel e LA MONTAGNE, Bernarde�e. Right
wing Extremism in France – Departmental differences in the votefor the national front. Romanian Journal
of Political Science, v7, n. 2, 2007, p. 45-65, 2007. Disponível em: h�ps://www.ceeol.com/search/articledetai
l?id=173484. Acesso em: 16. jun. 2021.
13 CARVALHO, João. Partidos de extrema-direita e a gestão da crise do asilo na Europa: O caso francês. Relações
Internacionais (R: I), n. 50, p. 57-69, 2016. Disponível em: h�p://www.scielo.mec.pt/
scielo.php?script=sci_ar�ext&pid=S1645-91992016000200005. Acesso em: 21. 02.2019.
14 FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael A. The future of employment: how susceptible are jobs to
computerisation?. Technological Forecasting and Social Change, v. 114, p. 254-280, 2017. Disponível em: h�p:/
/www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0040162516302244. Acesso em: 08 set. 2017.
15 Aqui, ver as análises de CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 3. ed. Rio de Janeiro,
2002; WEFFORT, Francisco Corrêa. O populismo na política brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003;
MARQUES, Rosa Maria; MENDES, Áquilas. O social no governo Lula: a construção de um novo populismo em
tempos de aplicação de uma agenda neoliberal. Revista de Economia Política, v. 26, n. 1, p. 58-74, 2006.
Disponível em: h�p://www.scielo.br/pdf/rep/v26n1/a04v26n1. Acesso em: 20. 02. 2019. Para contraponto em
relação a Getúlio Vargas; BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, Luís Fernando. Os direitos sociais e as
constituições democráticas brasileiras: breve ensaio histórico. In: RÚBIO, David Sánchez; FLORES, Joaquín
Herrera; CARVALHO, Salo de. Direitos humanos e globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria
crítica, v. 2, p. 510-528, 2004. p. 515-516. Disponível em: h�ps://adrianonascimento.webnode.com.br/_files/
200000198-3a08e3b02c/Bercovici%20-%20Massone� o.%20Direitos%20Socias%20nas%20Constitui%C
3%A7%C3%B5es%20Democr%C3%A1ticas%20do%20Brasil.pdf. Acesso em: 09. 01. 2019.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 1 29
Gomes – por “incompletude ou por ‘má’ compreensão, por adesão ou por
rejeição”¹⁶ a atores políticos pinçados em todos os espaços político-ideológicos.
Assumindo-o, portanto, fica ao leitor a advertência de que a proposta, entretanto,
é – a partir de (re)conceituações – a análise do impacto do discurso que sustenta
tal fenômeno político no Estado de Direito, e não o enquadramento, por
características de proximidade, de determinadas lideranças políticas a uma
espécie de conjunto dos populistas. Ou seja, interessa o conceito e o contexto – e não
seus eventuais personagens – para o desenvolvimento desta proposta.

Assim, ressalva feita, é a partir desta breve exposição de cenário – pano


de fundo para pensar o fenômeno do populismo como problema jurídico e como
produto da crise do Direito –, que esse texto se projeta. Dividido em dois pontos,
considerados angulares ao ensaio de um desfecho, o primeiro procura assentar o
conceito ao fenômeno que sustenta a discussão. O segundo envolve, a partir de
exemplo recente, brevíssimo escorço voltado ao Estado Democrático e à crise
verificada no Direito enquanto produto do Estado, compreendido como espaço
não apenas de produção normativa, mas, ainda, também de acesso a um conjunto
de demandas, fragilizado por uma série de influxos neoliberais a também tentar
acessá-lo.

O populismo é, assim, mutuamente um produto da crise e um fator a


alimentá-la. Afinal, como poderá ser verificado ao longo deste texto, seu discurso,
ao propor soluções míticas, projeta o fim das instituições democráticas e mina a
burocracia necessária à impessoalidade – que, entre outros fatores, caracteriza o
Estado de Direito. E, ao alimentar toda sorte de ativismos – como rápido caminho
à satisfação popular – procura, também, reescrever a Constituição.

Buscando delimitar a maneira, os instrumentos e outros fatores que


envolvem esta pesquisa, basicamente bibliográfica e qualitativa, esclarece-se que
a metodologia aqui empregada terá como abordagem o método fenomenológico-
hermenêutico. Tal é embasado a partir de Martin Heidegger e Hans-Georg
Gadamer¹⁷, cuja principal contribuição é justamente romper com as tradicionais

16 CASTRO GOMES, Angela. O populismo e as ciências sociais no Brasil*. Tempo, i, n. 2, p. 31-58, 1996. Disponível
em: h�p://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg2-2.pdf. Acesso em: 18. 02. 2019.
17 “Heidegger somente entra na problemática hermenêutica das ciências históricas com a finalidade ontológica de
desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós [Gadamer, falando na primeira pessoa do
plural], pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito
de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão” GADAMER, Hans-
Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo
Meurer. 10.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008, p. 400 – colchetes nossos).
3
30 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

estruturas metodológicas à luz da modernidade inaugurada com Descartes¹⁸.


Não há, a partir desses autores, um caminho metodológico definitivo, uma vez
que não se pode apreender ou dominar os elementos nele envolvidos¹⁹.

2. POPULISMO: O MÍTICO À MARGEM DA INSTITUCIONALIDADE

Em El populismo como concepto, Guy Hermet²⁰ interroga por uma


imaginada substância do fenômeno populista para, em seguida, sentenciar: não
há um consenso sobre a definição deste fenômeno político. Envolto em uma
combinação, ou melhor, em uma possibilidade de combinações bastante extensa,
em níveis tanto temporais quanto espaciais, o populismo ficaria, assim, situado
em uma moldura bastante ampla – ampla demais, talvez – para poder ser
conceituado. De todo modo, Hermet acena a uma espécie de mínimo comum a
todas as experiências consideradas nesse espectro. E, assim, assentando-o na
ausência de coesão nas comunidades nacionais, projeta o populismo como uma
“controversa promessa de satisfação imediata”, que, aos propósitos deste ensaio,
figura como importante ponto de partida. Afinal, como se verá adiante, permite a
vinculação do fenômeno a demandas populares, dirigidas à institucionalidade,
frustradas, como vai propor, em apertada síntese, Ernesto Laclau²¹.

É a partir desse mínimo, portanto, verificável nas mais diversificadas


possibilidades de se apontar o populismo, seja qual for a circunstância, o tempo
e o local da experiência, que se pode compreendê-lo a partir da historicidade que
o molda – e que permite desvelá-lo, por isso, mergulhado sempre em um
contexto. Amolda-se, assim, não apenas àquela sucinta conceituação, projetada
para introduzir a discussão a que este texto se propõe, mas permite, também, a

18 Projetando um “erro fundamental do desenvolvimento do conceito de sujeito desde Descartes”, Heidegger


observa que, com “ele começa propriamente a fatalidade da filosofia moderna, porque nele o ego, o eu é de tal
forma empobrecido que não é mais nenhum sujeito. O ego sum em Descartes é sem o ser junto a..., sem o ser-
um-com-o-outro. Pois Descartes não chega nem mesmo a colocar a pergunta fundamental, digo, ele não chega
nem mesmo a questionar como esse ego é, o que significa esse sum no ego sum em contraposição ao ser, por
exemplo, da res extensa” HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antonio Casanova.
São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 124 – 125.
19 STEIN, Ernildo. A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. 3.ed. Porto Alegre:
Movimento, 1991.
20 HERMET, Guy. El populismo como concepto. Revista de ciencia política (Santiago), v. 23, n. 1, p. 5-18, 2003.
Disponível em: h�ps://scielo.conicyt.cl/scielo.php?pid=S0718-090X2003000100001&script=sci_ar�ext. Acesso
em: 21. 02. 2019.
21 LACLAU, Ernesto. On Populist Reason. Londres: Verso, 2005.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 1 31
associação a novos e distintos fatores, determinados por tempo e circunstância
próprios a uma determinada comunidade política.

É possível admitir, por isso, conceituações mais abrangentes, como a de


Michel Wieviorka²², como um importante complemento. Embora este autor
também enfatize a dificuldade em assentar um conceito ao fenômeno, ele pontua,
igualmente, algo que caracteriza – ou pode caracterizar – a sua unidade. Para ele,
é o sentimento de distância, que pode ou não ser real, entre o poder político e
econômico e o povo de uma determinada localidade. Esse sentimento pode ser
localizado entre os trabalhadores excluídos de um mercado laboral envolto em
transformações de contornos ainda imprevisíveis – contudo, aparentemente
permanentes –, caso dos EUA, por exemplo, mas acalentados, como exposto em
introdutório exemplo, pelo discurso que promete fazer voltar o tempo da
História²³. Na Europa, por seu turno, o mesmo sentimento pode ser aquele a
mover o indivíduo que vê nos fluxos migratórios uma ameaça a sua cultura²⁴ – e,
no discurso que promete fazer voltar uma pretensa homogeneidade étnica, a
ponte entre a sua vontade e o poder que permite realizá-la. Mais: é o sentimento
do sujeito que, no Brasil, diante de indistinta criminalidade, por exemplo, vê em
radicalizados discursos o remédio a nossos mais significantes problemas nesta
seara.

Há, portanto, demandas reais, legítimas ou não, endereçadas à


institucionalidade, mas frustradas ou reprimidas por uma série de razões. O

22 WIEVIORKA, Michel. A democracia à prova – Nacionalismo, Populismo e Etnicidade. Tradução de António


Monteiro Neves. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
23 Durante sua campanha eleitoral, o então candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, prometeu
“implementar a independência energética e criar empregos na exploração de carvão, ao derrubar a maior parte
da regulamentação de seu antecessor, Barack Obama, sobre mudança climática”. Em seu discurso, encarnou
a demanda reprimida, e, magicamente, sentenciou: “Estamos colocando um fim ao roubo da prosperidade
americana e revivendo nossa amada economia”, acrescentou Trump. “Os mineiros me contaram do ataque a
seus empregos e eu fiz essa promessa. Eles voltarão ao trabalho” ESTADO de SÃO PAULO. Trump exalta
carvão ao derrubar plano de Obama contra mudança climática. Disponível em: h�ps://
internacional.estadao.com.br/noticias/geral,trump-exalta-carvao-ao-derrubar-plano-de-obama-contra-
mudanca-climatica,70001717693. Acesso em: 10. Jan. 2019.
24 Em 2018, a imprensa europeia mostrou-se preocupada com a escalada dos discursos populistas, encarnando
uma pretensa reivindicação por homogeneidade étnica. “A imprensa francesa demonstra preocupação [...] com
o aumento da xenofobia na Europa. O retorno do populismo, alimentado pela crise migratória, tem alimentado
manifestações racistas em vários países do bloco, algo que não se via há mais de 70 anos. Em seu editorial, o
jornal progressista "Libération" diz que a Europa enfrenta um verdadeiro incêndio. Os valores que fizeram a
força do continente no pós-guerra - o respeito à democracia, aos direitos humanos, a abertura ao outro, a defesa
da igualdade - estão derretendo, em meio à fúria incendiária dos populistas” G1. Poe defesa de abate de
suspeitos, Wi�el entra na mira da PGR. Disponível em: h�ps://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/
2019/05/10/por-defesa-de-abate-de-suspeitos-wi�el-entra-na-mira-da-pgr.htm?cmpid. Acesso em: 28. jul. 2019.
3
32 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

populismo volta-se a essas mesmas reivindicações, e seu discurso promete,


miticamente, fazer a ligação, em tese perdida, entre vontade – ou necessidade – e
poder, entre o demos e o poder, ou seja, entre os elementos que, conjugados,
permitem desvelar o político – no sentido de fenômeno – nas democracias, como
vai dizer Francis Wolf²⁵, ao propor essa combinação de elementos. Não por acaso,
“um mesmo impulso populista pode muito bem ter a sua vertente progressista e
a sua vertente conservadora ou reacionária, ou, ainda, evoluir no tempo em favor
da predominância de uma ou de outra”. Não há domínio de uma ou outra
ideologia política, e, justamente por isso, é adaptável a todos os espectros
políticos. É ao “mesmo tempo tradicional e hostil à modernidade”²⁶.

Eis o ponto. Para além de seu deslocamento ideológico e sua inclinação


ao alinhamento de um sentimento comum ao grande número – fator relevante
àqueles que pretendem ascender e manter o poder nas democracias –, o
populismo germina – em assertiva sustentada na proposta laclauniana –, sempre a
partir de necessidades, anseios e vontades localizadas para além de saídas
institucionais ainda não verificadas no já referido contexto de crise – como
questões envolvendo saúde pública, com altos custos ao Estado, em hipótese mais
alinhada à Esquerda, por exemplo – ou que esbarram nos limites impostos por
democráticos componentes contramajoritários – e, portanto, não podem ser
realizados a partir das instituições – a menos que deformadas –, em saída mais
alinhada à Direita. Eis o seu solo fértil: a demanda frustrada, seja qual for a
inclinação ideológica, como vai projetar Ernesto Laclau²⁷.

Não por acaso, Ricardo Luiz de Souza²⁸, em texto voltado a estudar o


populismo “tendo como referência sua diversidade”, vai lembrar que sua base
não se forma a partir de uma “visão articulada da sociedade”, mas de um
“conjunto de insatisfações e desejos de mudança dispersos”. E arremata: “O
populismo é, simplesmente, contra ‘isso que está aí’, e as reformas político-sociais
por ele propostas tendem a ser tão vagas quanto o que deve ser mudado”. Nesse
contexto, substituindo vagueza reformista por um forte componente de
transformação social, acenando positivamente ao fenômeno do populismo,

25 WOLFF, Francis. A invenção da política. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
26 WIEVIORKA, Michel. A democracia à prova – Nacionalismo, Populismo e Etnicidade. Tradução de António
Monteiro Neves. Lisboa: Instituto Piaget, 1993, p. 97
27 LACLAU, Ernesto. On Populist Reason. Londres: Verso, 2005.
28 SOUZA, Ricardo Luiz de. Populismo, mobilização e reforma. In: Sociedade e cultura, v. 7, n. 2, 2004. Disponível
em: h�ps://www.revistas.ufg.br/index.php/fchf/article/viewFile/986/1190. Acesso em: 14. jan. 2019.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 1 33
portanto, Laclau claramente o projeta como uma bem-vinda – embora não em sua
forma, digamos, pura – tensão entre institucionalismo versus populismo. O caldo
que se forma a partir daí, claro, é uma desvalorização da política, porque a
mudança, seja ela qual for, vai depender da atuação do líder – o indivíduo capaz
de eliminar a distância entre povo e poder de que fala Wieviorka –, observado,
aqui, como o vínculo possível entre o concreto e o desejo, entre a demanda e sua
realização, ocupando o lugar da institucionalidade. Afinal, é justamente isso: o
populismo se opõe às instituições.

Como dito introdutoriamente, esse estado de coisas não se dá fora de


um contexto, e localiza-se como resposta a problemas reais. Para Laclau, são essas
reivindicações por demandas o que corresponde ao primeiro estágio da lógica
populista, e que, ao menos nesse aspecto, parece relevante a este estudo. Afinal,
endereçada inicialmente às instituições, a demanda frustrada torna-se
reivindicação não mais somente em favor da própria demanda, mas, ainda,
também contra a instituição – como se vê, por exemplo, na narrativa que conjuga
STF e corrupção na mesma frase. Como vai referir Margaret Canovan²⁹ em discurso
semelhante à proposta laclauniana, é – o populismo – contra a estrutura de poder
estabelecida. Há, pois, uma lacuna entre o povo – que reivindica – e o poder –
organizado institucionalmente. A condição de possibilidade para o seu
surgimento, para a sua emergência, portanto, é uma espécie de vazio institucional.
Em apertada síntese, podemos dizer, então, que o discurso populista instala-se
em um ambiente de crise institucional, e coloca-se contra a institucionalidade que
organiza o poder nas sociedades democráticas. Democracia, instituições e
populismo, portanto, caminham lado a lado em um intrincado jogo de tensões.

Assim, assentada dessa maneira, a lógica populista pode significar não


apenas uma deformação do processo democrático – em que um líder encarna a
vontade popular e canaliza-a para acessar e manter o poder através de um
discurso mágico –, mas, sim, essa mesma premissa associada a saídas a demandas
reais e frustradas por uma enferrujada engrenagem institucional. Seria, dessa
maneira, algo positivo, colocando-se acima da lei – ou seja, das instituições e suas
regras de funcionamento – em nome do povo, na ruptural projeção de Laclau.
Mas, eis aí a interrogação que move a segunda etapa deste texto: no Estado

29 CANOVAN, Margaret. Trust the people! Populism and the two faces of democracy. Political studies, v. 47, n. 1, p.
2-16, 1999. Disponível em: h�ps://journals.sagepub.com/doi/abs//0.1111/1467-9248.00184?casa_token=jSamPL3-
IuUAAAAA%3AtSeVhvyoMUlqDyrBxJ-Pbm1vC_HZs6QSx3YIdMcVYJ3b52qBMRXWl6Azz7kxqe_k_JWVj4Sd
Zv4H&. Acesso em: 25.jan.2019.
3
34 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

Democrático de Direito³⁰, não é a lei – entendida como Constituição – a linguagem


pública³¹ voltada à instrumentalização da ação estatal na busca de seu próprio
conteúdo dirigente³²?

3. O ESTADO DEMOCRÁTICO E A DEFESA DAS REGRAS DO JOGO: UM


EXEMPLO À BRASILEIRA

A questão que encerra o tópico anterior – alicerçada, especificamente,


no viés laclauniano no que se refere às demandas não satisfeitas, sejam elas
legítimas ou ilegítimas – dialoga não apenas com o fenômeno do populismo
incrustado nos regimes democráticos – representando respostas insuficientes a
reivindicações dirigidas à institucionalidade –, mas, ainda – ou mesmo antes –,
reflete a crise do Direito, como referido introdutoriamente. Afinal, se é na
reivindicação frustrada que o populismo encontra seu solo fértil, formando a
tríade também composta por democracia e instituições, seu espaço é aquele em que
expressiva parcela dos dispositivos da Constituição não obteve, até hoje,
efetivação.

Ou seja, enquanto reflexivo da crise do Direito, é, pois, também produto


da prevalência do paradigma da filosofia da consciência, refratário à guinada

30 Ao presente estudo, entende-se o Estado Democrático de Direito como aquele em que, na visão de Guillermo
O’Donnell, “qualquer que seja a legislação existente, ela é aplicada de forma justa pelas instituições estatais
pertinentes, incluindo, mas não exclusivamente, o Judiciário”. Forma justa “é o exercício de que a aplicação
administrativa ou a decisão judicial de normas legais sejam coerentes em casos equivalentes,
independentemente de diferenças de classe, condição social ou poder dos participantes nesses processos,
adotando procedimentos que são estabelecidos e conhecíveis por todos”, O’DONNELL, Guillermo. Poliarquias
e a (in)efetividade da lei na América latina. In: Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, n. 5, 1998, p. 41. Disponível
em: h�p://claseabierta.yolasite.com/resources/O%20Donnell,%20Democracia%20Delegativa.pdf. Acesso em: 20
maio. 2017. Além disso, importa também aqui observá-lo como um “novo modelo que remete a um tipo de
Estado em que se pretende precisamente a transformação em profundidade do modelo de produção capitalista
e sua substituição progressiva por uma organização social de características flexivelmente sociais, para dar
passagem, por vias pacíficas e de liberdade formal e real, a uma sociedade no qual se possam implantar
superiores níveis reais de igualdades e liberdades”. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise.
Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11.ed., atual. e ampliada. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2014.
31 No sentido wi�gensteiniano da expressão, à luz com as Investigações Filosóficas de Wi�genstein.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova
Cultural, 1999.
32 Compreendido, aqui, na clássica proposta de José Joaquim Gomes Canotilho, em que as constituições dirigentes
projetam Estados que intervenham ativamente, buscando transformar as sociedades em que esses mesmos
textos constitucionais estão inseridos. As constituições dirigentes, por isso, não são apenas estatais, mas,
também, sociais. Entende-se, ainda, protagonismo é justificado pelo fato de que as “noções de constituição
dirigente, de força normativa da Constituição, de Constituição compromissária, não podem ser relegadas a um
plano secundário, mormente em um país como o Brasil” (STRECK, 2003, p. 259).
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 1 35
linguístico-hermenêutica³³, de cunho objetificante, e da não existência de um
Estado Social no país até hoje³⁴. Embora Laclau perceba o fenômeno como
importante ingrediente transformador das relações sociais contemporaneamente³⁵,
seu surgimento supõe, na verdade, um empobrecimento do papel da teoria
constitucional. Afinal, nesse viés, a Constituição seria, e não mais que isso, apenas
garantidora do acesso aos mecanismos de participação democrática no sistema.
Nesse recorte, a partir dessa confusa combinação de fatores, o Direito e as
instituições não seriam agentes transformadores no Constitucionalismo
Contemporâneo, âmbito em que o Direito assume elevado grau de autonomia³⁶.
E, justamente por isso, não à toa, a demanda, frustrada, vai esperar do líder, e não
do Direito democraticamente produzido e das instituições por ele balizadas, a
solução à reivindicação.

Daí que a ausência de função social do Direito e, portanto, a sua (não)


inserção no horizonte de sentido proporcionado pelo Estado Democrático de
Direito, compreendido a partir das condições de possibilidade de sua existência,
perde-se em meio a uma baixa constitucionalidade³⁷, composta por um discurso
jurídico alienado da condição histórica da sociedade brasileira. É, de modo muito
sucinto, a negação da própria historicidade que nos molda.

Nesse sentido, não é desarrazoado referir, no contexto em que se


verifica o fenômeno do populismo, enfraquecimento do sentido da nossa Carta.

33 Claramente, adota-se, aqui, a crítica de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Uma
exploração hermenêutica da construção do Direito. 11.ed., atual. e ampliada. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2014.
34 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN de MORAIS, Jose Luis. Ciência Política & Teoria do Estado. 8.ed. rev. e ampl.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
35 Na edição brasileira de On Populist Reason, Laclau (LACLAU, Ernesto. A razão populista. Tradução de Carlos
Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Três Estrelas, 2013, p. 20) observa que “quando um projeto de
transformação social profunda começa a ser implementado, ele entrará em choque, em vários pontos, com a
ordem institucional vigente, e esta terá de ser modificada mais cedo ou mais tarde”. O populismo, ao colocar-se contra
as instituições, corresponderia, entre outros fatores, a um fator de transformação social.
36 Como referido no Dicionário de Hermenêutica, o “Constitucionalismo Contemporâneo é um fenômeno que surge
no segundo pós-guerra. Essa expressão foi cunhada no livro Verdade e Consenso para superar as aporias das
teorias neoconstitucionalistas [...] representa(ndo) uma blindagem às discricionariedades e aos ativismos”.
Nesse contexto, não se perde de vista, sobretudo, que o “aspecto material da constitucionalização do
ordenamento consiste na conhecida recepção no sistema jurídico de certas exigências da moral crítica na forma
de direitos fundamentais. Em outras palavras, o Direito adquiriu uma forte carga axiológica, assumindo
fundamental importância a materialidade da Constituição”. É justamente por isso que não se pode afastar o seu
caráter, evidentemente, transformador STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas
fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito,
2017, p. 37-38.
37 STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica e o acontecer (Ereignen) da Constituição: a tarefa de uma nova crítica do
Direito. In: Anuário do Curso de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2000.
3
36 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

Há uma corrupção da atividade interpretativa, a permitir uma espécie de


reorganização de sentidos. E é a partir dessa premissa que se pode projetar,
também o populismo, como produto da prevalência do paradigma da filosofia da
consciência – como parece figurar como bom exemplo a plataforma eleitoral –
convertida em política de combate ao crime organizado no Estado do Rio de
Janeiro, de seu ex-governador, Wilson Wi�el, afastado por corrupção. Ao propor
o abate de indivíduos como política criminal – como cotidianamente fez em suas
manifestações³⁸, ele desvinculou a atividade estatal, afinal, da Constituição.
Longe da intersubjetividade que molda regimes democráticos, a ação do Estado
era, assim, não mais que um ato de vontade, portanto.

Eis o ponto de conexão com a primeira parte deste estudo. Em contexto


em que as instituições figuram distantes das demandas sociais e, pior, no
imaginário popular apresentam-se como lócus privilegiado à prática criminosa,
observa-se que esse mesmo imaginário aceita, em todos os níveis, portanto, uma
indistinta discricionariedade de operadores do Direito, incluindo aí
administradores, fazendo coro a uma espécie de contramedida ao famoso jargão
em que a polícia prende e o juiz solta. É preciso, pois, outro ato discricionário,
fazendo suceder, indistintamente à margem do texto constitucional, vontades de
poder para dar conta do problema socialmente demandado. É nesse espaço que o
discurso populista se insere, buscando atender a uma reivindicação frustrada (no
exemplo utilizado, o institucional e insuficiente combate à criminalidade,
sobretudo, nas metrópoles brasileiras), através de uma solução não apenas mítica,
rápida (a sumária execução de indivíduos, através das polícias militares), mas,
ainda, à margem das instituições (neste caso, a Defensoria Pública do Estado e a
Secretaria de Segurança Pública do Estado). A criminalidade – ao atingir níveis
cada vez maiores, sobretudo nos grandes centros urbanos³⁹ – é um problema real,
portanto, a abrir as portas ao discurso populista e sua mítica solução. Desvelado

38 Conforme a editorial de política de Universo Online (Por defesa de abate de suspeitos, Wi�el entra na mira da
PGR. Disponível em: h�ps://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/10/por-defesa-de-abate-de-
suspeitos-wi�el-entra-na-mira-da-pgr.htm?cmpid. Acesso em: 28. jul. 2019.): “Em diversas oportunidades,
Wi�el defendeu que policiais atirem para matar ao verem criminosos armados, ainda que não haja risco
iminente de confronto - condição necessária para configurar legítima defesa, segundo a legislação atual. Em
novembro, logo após ser eleito, ele afirmou ao jornal "O Estado de S. Paulo" que "a polícia vai fazer o correto: vai
mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro”.
39 Como demonstra farto material disponibilizado. Por todos, a GAZETA. Estatística do caos: violência no Rio é a
que mais aumenta. Levantamento mostra que homicídios tiveram alta de 24%; assaltos, de 40%. Disponível em:
h�ps://www.gazetaonline.com.br/noticias/policia/2018/02/estatistica-do-caos-violencia-no-rio-e-a-que-mais-
aumenta-1014120694.html. Acesso em 10. Jun. 2019.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 1 37
está, pois, não apenas seu espaço e seu contexto, mas, ainda, a tentativa de
reescrever a Constituição para agradar maiorias.

Seguindo, é bem verdade que esse exemplo não é único, mas é angular,
figurando, aqui, como uma espécie de tipo ideal. Diante do interesse do grande
número e frente à reivindicação, em tese, frustrada – uma vez que a um episódio
sucede outro, e parecem sem fim os cotidianos casos de violência retratados,
sobretudo, em megalópoles, como o Rio –, o modo proposto por seu ex-
governador para enfrentar a violência ignora a inexistência de pena capital no
Brasil, como, ainda, o fato de ser vedada a introdução desse tipo de sanção ao
ordenamento pátrio, uma vez que, ao promulgar o Decreto nº. 678, o Brasil passou
a ser signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, pela qual “não se
pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido” (Art. 4º, 3).

Não à toa, não é reservado aos órgãos de segurança pública (Art. 144,
CF/88), ainda que exerçam o policiamento ostensivo (caso das polícias militares),
o direito de matar⁴⁰. Isso é decisivo. A vida é, ademais, inviolável (Art. 5º, caput,
CF), e ignorar esse pressuposto, incentivando o abate de indivíduos, ainda que sob
o pretexto de combater a criminalidade em níveis alarmantes, é não apenas a
desvinculação da política à Constituição como, ainda, uma tentativa de se
reescrever o texto constitucional que, nunca é demais lembrar, foi
democraticamente elaborado. É dizer: projetar política pública de combate à
criminalidade através do extermínio é discricionariedade para além do permitido
em âmbito executivo e legislativo. É, pois – repete-se –, tentativa de reescrever a
Constituição. Justamente por isso, entende-se que o populismo se projeta reflexivo
também a essa crise – do Direito e da democracia –, mas não se coloca, claro, como
resposta legítima a ela. Ao contrário, agrava-a. Afinal, como se viu anteriormente,
ocorre à margem das instituições, e se dá, portanto, fora do jogo de linguagem⁴¹ que
é o Direito.

É desse modo, portanto, que o discurso populista coloca-se como um


íntimo inimigo da democracia – para lembrar mais uma vez a inquietante expressão
de Todorov (2012) –, acenando para significativos impactos no Estado
Democrático de Direito. E isso porque, ao se projetar como uma tentativa de
reescrever o sentido da Constituição – em que as propostas de Wi�el são apenas

40 Por certo não se desconhece as situações envolvendo legítima defesa ou o risco de morte de outrem, sob
ameaça.
41 No sentido wi�gensteiniano da expressão, à luz com as Investigações Filosóficas. WITTGENSTEIN, Ludwig.
Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
3
38 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

um exemplo –, ultrapassa os indispensáveis mecanismos de contenção do poder


das maiorias, típicos do Estado Democrático de Direito.

Ainda que alinhado à demanda institucionalmente não satisfeita, o agir


político não pode atentar contra as garantias constitucionais voltadas a limitar os
excessos do Estado. Como bem sublinhado no segundo capítulo de Verdade e
Consenso, Lenio Streck⁴² destaca que “uma vontade popular majoritária
permanente, sem freios contramajoritários, equivale à volonté générale, a vontade
geral absoluta propugnada por Rousseau, que se revelaria, na verdade, em uma
ditadura permanente”. Ou seja, a indiscriminada filiação à vontade popular como
forma de acessar e manter-se no poder, aproximando o demos da realização de
seus desejos à margem dos necessários mecanismos contramajoritários, ignora a
“essência do Estado de Direito”, que é, enfim, a “submissão do poder ao [próprio]
Direito”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tese que aqui se assenta é a de que o discurso populista, como


aproximação ao interesse do grande número, a partir da hábil identificação das
demandas populares não atendidas institucionalmente, coloca-se como uma
espécie de ativismo, à margem daquele de cariz jurídico⁴³, mas igualmente nocivo
à democracia: procura reescrever Constituições e ignora o traço contramajoritário
que identifica, entre outros fatores, o Estado de Direito, opondo-se às instituições.
É, por isso, também um problema jurídico, ao colocar-se contra a estrutura de
poder estabelecida (instituições) e aos princípios de uma determinada
comunidade política, cristalizados constitucionalmente. Mais: é o inimigo íntimo
da democracia, de que fala Todorov.

No exemplo discutido, o que se verificou foi um discurso mítico de


combate à criminalidade, associado claramente a reivindicações inalcançadas
institucionalmente – e arremessadas àqueles que, encarnando o desejo por

42 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2017, p. 87.
43 No âmbito jurídico, tal fenômeno pode ser verificado por um conjunto de critérios indagativos, voltados a
identificar, na decisão do magistrado, um ato de vontade – já verificado na Teoria Pura do Direito de Kelsen. São eles:
primeiro, está o Judiciário diante de um direito fundamental, subjetivamente exigível? Em situações similares,
esse mesmo direito pode ser concedido a toda e qualquer pessoa que o pedir? No mais, é possível transferir
recursos das outras pessoas para fazer aquela ou um grupo feliz, sem violar a isonomia no seu sentido
substancial, já levando em conta toda a força do Estado Social previsto na Constituição? Ver STRECK, Lenio
Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 1 39
mudança, acenam final e pessoalmente à realização da demanda. Sob um certo tipo
de roupagem institucional – porque, de todo modo, é ainda através delas que tais
mudanças se desvelam –, projeta-se uma espécie de reorganização do sentido
constitucional, sobretudo, no que se refere aos indispensáveis mecanismos de
contenção dos excessos do poder do Estado. É, pois, contexto alinhado ao que se
viu: uma promessa de satisfação (Hermet), aproximando povo e poder
(Wieviorka), contra isso que está aí⁴⁴ (Souza), a partir de uma demanda não
satisfeita (Laclau). O impacto de discursos orientados nesse sentido – conclui-se
– acena à fragilização do Estado Democrático de Direito, projetando-se, ainda,
como um problema (também) jurídico.

44 Esse “contra isso que está aí” pode muito bem ser compreendido como “contra a Constituição”, replicando a tese
corrente no imaginário de muitos cidadãos, em que ‘direitos humanos só favorecem bandidos’ ou “direitos humanos
só para humanos direitos”. Ver, aqui COPELLI, Giancarlo Montagner; LIMA, Danilo Pereira. De esquerda ou de
direita, a cartilha é a mesma: a Constituição. Revista Consultor Jurídico. Coluna Diário de Classe. Disponível
em: h�ps://www.conjur.com.br/2019-mar-02/diario-classe-esquerda-ou-direita-cartilha-mesma-constituicao.
Acesso em: 02. Jul. 2019.
Capítulo 2

POPULISMO E
INSTITUIÇÃO
A importância das políticas públicas para a
materialização do Estado Democrático

Clarissa Tassinari
4
42 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

CAPÍTULO 2
POPULISMO E INSTITUIÇÕES:
A importância das políticas públicas para
a materialização do Estado Democrático

Clarissa Tassinari

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A relação Estado-democracia sempre foi objeto de diferentes pontos de


interrogação. No Brasil, essa discussão em grande medida ganha peso diante da
urgência na materialização da democracia – o que, evidentemente, não se
restringe ao âmbito das ações estatais –, especialmente considerando o recente
passado autoritário vivenciado antes do processo de abertura democrática, que
culminou na promulgação da Constituição de 1988. Em outras palavras, quando
se discute a relação Estado-democracia, é possível que surja a preocupação
permanente sobre o quanto de efetiva transição democrática houve e vem
acontecendo em nosso País.

Isso implica, sob certa perspectiva de análise, refletir sobre a qualidade


(democrática) das práticas estatais. Nesse sentido, portanto, compreender o papel
das instituições nesse processo ganha relevância, justamente porque a concepção
de Estado democrático é atravessada pelo tempo das transformações sociais, pelo
tempo (dinâmico) da política. E é sob esse recorte temático, isto é, enfatizando a
importância das instituições, que se pretende desenvolver as reflexões que
envolvem a insurgência de um fenômeno, chamado de populismo.

Ao longo de minha trajetória acadêmica na Unisinos, uma das


instituições do Estado – o Poder Judiciário – esteve no centro das minhas
teorizações, à luz de uma teoria da democracia, sob o viés da Crítica
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 2 43
Hermenêutica do Direito, fundada por Lenio Streck. Especialmente a partir do
estágio pós-doutoral com bolsa financiada pela CAPES (PNPD), minhas
pesquisas vinculadas ao PPG Direito já passaram a associar a discussão sobre o
papel do Judiciário – ativismo e supremacia⁴⁵ judicial – a outros elementos, como
a dinâmica existente entre a relação Direito e Política em contextos democráticos.
E, assim, o Estado voltava em cena⁴⁶ – relembrando agora um dos principais textos
debatidos por ocasião do pós-doutorado –, não apenas para agregar novos
contornos a meus interesses acadêmicos (a ênfase na relação Direito-Política), mas
também porque, com as manifestações ocorridas em 2013, caracterizadas pela
intensa mobilização social, a democracia brasileira, suas crises, suas perspectivas
de revitalização e o seu diálogo com os limites e com a qualidade da prestação
estatal passaram a pautar boa parte dos debates.

A partir disso, o olhar crítico para o caráter institucional do Estado


ganha mais relevância. E foi, então que, em 2019, como professora no PPG Direito
da Unisinos, com a fundação do grupo de pesquisa GPolis – Direito, Política e
Diálogos Institucionais, com a relação Direito e Política ainda mais tensionada no
Brasil (a partir de um polarizado e peculiar pleito eleitoral em 2018) e com um
novo Presidente eleito, as angústias das discussões abertas desde o pós-
doutoramento passaram a ser institucionalizada por um projeto de pesquisa,
impulsionado pelo seguinte problema: como estabelecer o elo entre Estado,
democracia, políticas públicas e populismo?

Para esboçar respostas a esse questionamento, podemos projetar


algumas premissas, como modo de conduzir a discussão. Primeiro, o que se
espera do Estado em regimes democráticos? E, então, talvez o primeiro passo seja
ensaiar um imediato e provisório posicionamento teórico, para o que se entende
por democracia, já que ela está qualificando – adjetivando – as práticas estatais.
Poderíamos, então, pensar a democracia como o regime da igualdade, isto é, como
o tratamento dos cidadãos com “igual consideração e respeito”, diria Ronald
Dworkin⁴⁷.

45 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2013.
46 Faz-se menção, aqui, ao texto de Theda Skocpol (autora neoinstitucionalista). SCOKPOL, Theda. Introduction.
Bringing the State back in: strategies of analysis in current research. In: EVANS, Peter B. Evans;
RUESCHEMEYER, Dietrich; ______ (Orgs.). Bringing the State Back. In. Cambridge: Cambridge University Press,
2002.
47 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
4
44 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

Especificamente a partir dessa preocupação da democracia, também seria


possível afirmar que as expectativas que se direcionam ao Estado democrático são
as de que a construção de seu planejamento governamental⁴⁸ esteja direcionada a
resolver problemas, déficits sociais, o que se tornaria ainda mais relevante em
contextos onde a(s) de desigualdade(s) estivesse(m) entranhada(s), como é o caso
brasileiro. Tudo isso sem esquecermos do pluralismo – que resguarda a proteção
de minorias –, que é ínsito à democracia.

Mas, então, o que significa esse planejamento governamental? Como ele


se materializa? É, aqui, portanto que o debate sobre a formulação de políticas
públicas ganha espaço. Afinal, as políticas públicas são os resultados finais do
bom uso do espaço institucional que possui a Administração Pública para o
atendimento de demandas sociais. Unindo premissas básicas veiculadas até o
momento: é o que se espera do Estado Democrático, portanto, que cria(ria) uma
comunicação direta com as políticas públicas por ele formuladas. E, é assim –
especialmente pela possibilidade da conjugação do verbo criar no futuro do
pretérito do indicativo na frase anterior, isto é, pelo que deveria ser, mas nem
sempre é –, que também pode aparecer, no seio dessa problemática, o fenômeno
chamado populismo. Assim, o primeiro desafio diz respeito a compreender os
diferentes significados associados a esta expressão (populismo); o segundo,
analisar criticamente como isso impacta a democracia. Nesse viés, emerge, por
fim, a seguinte questão: medidas populistas colaboram ou não para o
amadurecimento do projeto de Estado democrático?

Essa é, claro, uma reflexão bem abrangente. A proposta deste texto


consiste em organizar a discussão, atribuindo-lhe sentido e direcionamento
mínimos, estabelecendo uma perspectiva – dentre outras possíveis – para o
tratamento teórico da formulação de possíveis respostas ao problema acima
colocado. Em outras palavras, mobilizar críticas ao populismo demanda, antes de
tudo, dar conteúdo ao que se entende por democracia e quais as projeções que são
atribuídas ao Estado a partir disso. Depois, reconhecendo a controvérsia que
existe sobre o tema, também delimitar qual o alcance do termo populismo. Por
isso, em resumo, este capítulo busca estabelecer as bases teóricas de diálogo entre
os temas já mencionados, no intuito de oferecer um posicionamento que seja, ao
mesmo tempo, fundante-conceitual e crítico-projecional⁴⁹, na tentativa de algum
modo causar impacto social, aspecto que se relaciona com a responsabilidade que

48 PINHO, Carlos Eduardo Santos. Planejamento estratégico governamental no Brasil: autoritarismo e democracia
(1930-2016). Curitiba: Appris, 2019.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 2 45
possuem os juristas de apresentarem leituras sobre contextos políticos tão
conturbados como é o caso brasileiro.

Desse modo, a estrutura deste capítulo é pensada a partir de três


movimentos, representadas por indagações, todas direcionadas para o contexto
brasileiro: qual a relação entre Estado e democracia? (parte 2); qual a relação entre
Estado e políticas públicas? (parte 3); e, por fim, qual a relação entre Estado e
populismo? (parte 4). Cada um desses momentos, por sua vez, será guiado,
inicialmente, por uma perspectiva mais geral sobre o tema, a fim de que, depois,
seja dado destaque especificamente aos problemas que surgem a partir dessa
primeira perspectiva. Enfim: Estado, políticas públicas e populismo – democracia
à margem das instituições?

2. ESTADO E DEMOCRACIA: QUAL A RELAÇÃO ENTRE POVO E PODER?

O que significa estar em democracia? Há vários modos de compreender


democracia, especialmente considerando que diferentes autores, dos clássicos aos
contemporâneos, vêm tematizando sobre o tema. A primeira observação que
gostaria de fazer diz respeito justamente ao modo como foi colocada a pergunta
logo no começo do parágrafo: visualizo, para fins deste texto⁵⁰, a democracia como
uma forma ainda em construção da relação entre a soberania popular (o povo), os
direitos dela decorrentes e o Estado. No fundo, essa espécie de apontamento para
um projeto ainda inacabado pode ser relevante para entendermos que, mesmo
países que vêm de longa tradição democrática – poderíamos citar aqui, por
exemplo, os Estados Unidos – podem viver sob um regime democrático, mas,
ainda assim, atravessar períodos ou momentos de instabilidade, com escolhas
políticas com baixo nível de densidade democrática. Essa é, a meu ver, a
perspectiva dinâmica da democracia, aquele componente que, quando
relacionada ao Estado – e essa é ênfase deste texto –, pode exprimir uma condição,
um elemento de qualificação da atuação estatal, uma prática gradual.

49 Fixar bases conceituais para possibilitar posicionamentos críticos sobre os fenômenos é movimento próprio do
método hermenêutico-fenomenológico (Martin Heidegger), que guia a construção deste texto. Por isso, em se
tratando de um texto jurídico, sua redação é orientada pela Crítica Hermenêutica do Direito, de Lenio Luiz
Streck.
50 Não desconheço que há outras importantes abordagens que podem ser feitas em relação ao tema, inclusive sem
a necessidade de abandonar a perspectiva que será desenvolvida neste texto. As diferentes ênfases que se
relacionam ao tema “democracia” possuem grande riqueza conceitual e prática.
4
46 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

Ainda assim, esse alerta inicial que agrega um fator contextual à


democracia não dispensa a delimitação de um modo relativamente estático de
compreendê-la. Isso significa que, quando passamos a analisar o aprofundamento
democrático de práticas estatais também estamos fazendo isso a partir de algum
critério conceitual (que, obviamente, não está imune a revisões a todo tempo – daí
a presença do “relativamente” na frase acima). É nesse sentido, então, que gostaria
de tratar de uma concepção de democracia que associa, nos limites deste trabalho,
o posicionamento de três autores: Ronald Dworkin⁵¹, Guillermo O’Donnell⁵² e
Luis Felipe Miguel⁵³. A partir da leitura de seus textos e das reflexões que
desenvolvi como consequência, entendo a democracia como a conjugação inicial
de dois elementos: garantia de igualdade e estabilidade institucional.

A proposta, aqui, não consiste em reconstruir o pensamento destes


autores, mas justificar pontualmente por que eles se tornam atraentes (e, em
minha opinião, necessários) à forma como o debate está sendo colocado. A
percepção de democracia como igualdade é retirada da obra de Ronald Dworkin,
quando afirma a igualdade como “virtude soberana da comunidade política” de
países que vivem sob um regime democrático, implicando o tratamento dos
cidadãos com “igual consideração e respeito”⁵⁴. Por outro lado, a perspectiva de
democracia como estabilidade institucional decorre da crítica de Guillermo O’Donnell,
para quem os processos de transição do autoritarismo para a democracia
caracterizam-se por um duplo movimento: um de cunho mais formal, no qual
mecanismos procedimentais de exercício da democracia são implementados
(como o voto); outro de ordem material, quando se verifica, efetivamente,
estabilidade institucional, isto é, práticas do Estado (e, claro, de suas instituições)
em favor da democracia (por exemplo, a formulação de políticas públicas que
visem a fomentar a igualdade social).

Como é possível perceber, ambos os eixos de abordagem escolhidos


para tratar de democracia – democracia como igualdade e democracia como estabilidade
institucional – são atravessados por uma dimensão substantiva e outra

51 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
52 O’DONNELL, Guillermo. Democracia Delegativa? Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 31, p. 25-40, out.
1991. Disponível em: cleantext_url_ps4o12q205too5080o84os48qptps5q7Texto-2.pdf. Acesso em: 07 jul. 2021.
53 MIGUEL, Luis Felipe. Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil. Sinais Sociais, Rio de
Janeiro, n. 33, v. 11, p. 99-129, jan.-abr. 2017. Disponível em: h�p://www.sesc.com.br/wps/wcm/connect/
3daaa858-e528-4f0b-b12a-e115803bf073SinaisSociais_SS33_WEB_14_09_17.pdf?MOD=AJPERES&CACHEI
D=3daaa858-e528-4 f0b-b12a-e115803bf073. Acesso em: 07 jul. 2021.
54 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.
I-XV.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 2 47
operacional. Ou seja, quando compreendemos a democracia como igualdade,
para além da visão que a entende como um valor das sociedades ocidentais, que
consiste na perspectiva substancial dworkiniana, também podemos tratar de
representatividade, do exercício da soberania popular através da capacidade que
é atribuída universalmente aos cidadãos de escolher quem vai, legislativa e
administrativamente, honrar seus interesses na estrutura do Estado (algo
operacional). Por outro lado, como também foi possível observar nos argumentos
de O’Donnell, a existência de instituições típicas de regimes democráticos que
operacionalizarão a intervenção do Estado (como a sua organização em três
Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, apenas para ilustrar) não seria
suficiente para qualificar como democrática a ideia de estabilidade institucional,
já que seria exigido também um componente de permeabilidade estatal às pautas
e demandas sociais, isto é, um componente material (substantivo) de democracia,
que acaba gerando o retorno à igualdade, demonstrando a circularidade virtuosa
do pressuposto dado à democracia neste texto: democracia como igualdade e
democracia como estabilidade institucional.

Parece, agora, estar ficando ainda mais claro que, de início, o que se está
querendo afirmar é que as condições ótimas da democracia estão relacionadas com a
igualdade no tratamento dado aos cidadãos (sob a perspectiva de assegurar todos
os tipos de igualdade, privilegiando, também, o necessário pluralismo, com
condição do resguardo a minorias), mas também à existência de práticas
institucionais que incorporem valores democráticos. Então, quanto mais o Estado
for permeável – direta e indiretamente – às projeções do povo, compreendido
aqui como “(...) um coletivo de cidadãos-sujeitos de direitos, ligados por esses
direitos e conscientes de compartilhar a mesma experiência de direitos”⁵⁵, mais
democrática será sua intervenção (respeitando-se, é claro, os limites e contornos
institucionais de ação que o próprio constitucionalismo delimita). Não por acaso,
a partir de uma visão mais contemporânea e relacionada ao contexto brasileiro do
tema, Luis Felipe Miguel traça “quatro desafios à edificação da democracia”, que,
numa leitura derivativa, também podemos compreender como alguns
componentes para sua concepção de democracia, com os quais concordamos,
quais sejam: institucionalidade política democrática; inclusão social que gere

55 ROUSSEAU, Dominique. Crise das democracias se deve ao surgimento de uma oligarquia neoliberal. Entrevista
cedida a Vitor Necchi. IHU On-Line: revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 14 nov. 2018.
Disponível em: h�p://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/584622-crise-das-democracias-se-deve-ao-
surgimento-de-uma-oligarquia-neoliberal-entrevista-especial-com-dominique-rousseau#. Acesso em: 07 jul.
2021.
4
48 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

autonomia política; pluralização do debate público; e adesão às regras do jogo


democrático⁵⁶.

Tudo o que foi desenvolvido acima trata-se de um pressuposto


conceitual mínimo para avançarmos no debate que virá na sequência. Contudo,
para além de traços teóricos que dizem respeito à concepção de democracia –
como um acordo semântico mínimo para dar início à discussão (sem desconhecer,
como já foi feito em nota de rodapé, que seria possível dar outro
encaminhamento, é claro) –, é importante trazer, também, um pouco mais de
contexto para o locus do Estado democrático. Neste sentido, analisando a história
política brasileira, é possível perceber as dificuldades democráticas vivenciadas pelo
País. Mais uma vez, aqui, O’Donnell apresenta um modo provocativo de tratar a
democracia na América Latina, como “democracias delegativas”⁵⁷.

O’Donnell afirma que, como resultado da “(...) profunda crise social e


econômica que a maioria desses países herdou de seus antecessores autoritários”,
surge uma nova tipologia das democracias: as “democracias delegativas” –
democracias não consolidadas, que não fizeram a transição de governos
democraticamente eleitos para regimes democráticos e seus equivalentes:
democracias institucionalizadas, com instituições políticas democráticas⁵⁸. Tenho
dúvidas se existe a necessidade de categorizar, de forma definitiva, o Estado
brasileiro como uma “democracia delegativa”. Entretanto, mesmo após o
complexo processo constituinte de 1987-1988, isto é, ainda depois do que se
projetou como transição do autoritarismo para a democracia, apesar do tanto que
a Constituição se pretendeu normativa (no detalhamento que apresenta em
termos de direitos e garantias), é inegável que passamos (no pretérito perfeito e

56 Para Luis Felipe Miguel, são quatro os “desafios” à edificação da democracia – que correspondem a seções de
seu artigo: “(1) a implantação de uma institucionalidade política democrática, capaz de conjugar tanto a
soberania popular quanto o respeito às minorias; (2) a inclusão social, com a universalização dos recursos
mínimos para o exercício da autonomia política; (3) a pluralização do debate público, permitindo o exercício
esclarecido dos direitos de cidadania, o que, evidentemente, passa pela democratização dos meios de
comunicação; e (4) a produção do consenso, entre os diversos atores sociais, quanto à adesão às regras do jogo
político democrático”. MIGUEL, Luis Felipe. Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil.
Sinais Sociais, Rio de Janeiro, n. 33, v. 11, p. 99-129, jan.-abr. 2017. Disponível em: h�p://www.sesc.com.br/wps/
wcm/connect/3daaa858-e528-4f0b-b12a-e115803bf073/SinaisSociais_SS33_WEB_14_09_17.pdf?MOD=A
JPERES&CACHEID=3daaa858-e528-4f0b-b12a-e115803bf073. Acesso em: 07 jul. 2021. p. 103.
57 Ciente que o texto de O’Donnell é do ano de 1991, em um período quando o Estado brasileiro acabava de romper
com a estrutura autoritária de governo, bem como do fato de que se trata de argumento publicado há bastante
tempo, a expressão “democracia delegativa” é utilizada aqui para potencializar e atualizar a discussão.
58 O’DONNELL, Guillermo. Democracia Delegativa? Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 31, p. 25-40, out. 1991.
Disponível em: cleantext_url_ps4o12q205too5080o84os48qptps5q7Texto-2.pdf. Acesso em: 07 jul. 2021. p. 26 e
segs.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 2 49
ainda no presente) por dificuldades democráticas, em grande medida porque a
história democrática brasileira, de forma institucionalmente mais aprofundada,
começa mesmo a partir do constitucionalismo de 1988.

Assim, é possível dizer que foram experimentados apenas pouco mais


de 30 anos de democracia, o que ainda nos colocaria quase em um permanente teste
de resistência democrática. Mas como as dificuldades democráticas aparecem no
cenário brasileiro como dificuldades institucionais? O que seriam essas fragilidades
institucionais que se está tratando aqui como óbices à consolidação do projeto
democrático? Interessa atentar para o que muitos autores chamam de crise de
representatividade: o descrédito (a desconfiança) que se associa ao Congresso
Nacional como a Casa do Povo (lato sensu)⁵⁹. Ou seja, numa redução – que leva
quase ao desaparecimento – do potencial de implementação do conteúdo da
democracia via instituições representativas. Assim, a questão, ao final, fica sendo:
quão permeável se torna uma instituição política aos interesses democráticos?

3. ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: O QUE SE PROJETA PARA A


INTERVENÇÃO ESTATAL?

A partir do momento quando já se tem uma opção constitucional


por um projeto democrático de Estado, organizado através de suas instituições,
fundamentado em princípios que orientam as ordens social e econômica e que
materializa (de um modo mínimo) a cidadania pela via da previsão de direitos
fundamentais e sociais de modo muito detalhado, a discussão, que já foi feita em
uma perspectiva teórico-conceitual, desloca-se para outro plano: a qualidade
democrática. Ou seja, quanto de democracia é possível encontrar nas práticas
institucionais de um Estado que vive sob um regime democrático? Em outras
palavras: quando estamos discutindo sobre esse assunto, também estamos
abrindo conversa sobre os diferentes graus de efetividade da democracia.

É claro que isso não está apenas relacionado à intervenção estatal – seria
um equívoco sugerir que a premissa de um Estado democrático esteja restrita ao
modo de compreender e avaliar suas intervenções; isto é, existe muito mais o que

59 É sabido que, em termos de teoria constitucional brasileira, a expressão “Casa do Povo” é associada à Câmara
de Deputados (e não ao Congresso Nacional), sendo que o Senado Federal é considerado o representante das
ordens jurídicas parciais (dos Estados-membros). Contudo, para fins de demonstrar o elo entre Estado e povo,
não seria equivocado afirmar que as expectativas democráticas da sociedade são direcionadas, como um todo,
ao Congresso Nacional.
5
50 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

discutir sobre democracia para além do Estado, evidentemente –, mas,


considerando que o Brasil é um país com níveis de pobreza e desemprego muito
altos, bem como o fato de que a Constituição de 1988 trouxe como um dos seus
objetivos a redução da desigualdade social (art. 3º), há uma parcela grande de
responsabilidade que é direcionada ao ente estatal. E é para isso que,
especificamente neste momento, gostaria de voltar minhas atenções, para a
relação Estado e democracia e seu atravessamento pelas políticas públicas.

Por que, então, políticas públicas são necessárias? Talvez essa seja a
melhor pergunta para mobilizar a relação Estado e gestão da coisa pública. Nessa
problematização, é possível identificar uma polarização interessante entre o que
se espera da intervenção estatal, como obrigações (responsabilidades) e também
como limites, e, com base nisso, o que para ela se projeta como múltiplas
possibilidades. No fundo, o olhar crítico sobre a relação entre Estado, democracia
e políticas públicas fomenta a reflexão sobre o modo de compreender a dinâmica
entre o Direito e a Política. E, nesse sentido, há um elemento fundamental, que
pode dar o start para uma primeira resposta à pergunta lançada: o sentido de
constituição. Indo um pouco mais além nesse ponto: como entendemos o papel
da Constituição brasileira?

Numa perspectiva ocidental, o constitucionalismo surge no contexto da


primeira onda liberal como forma de organização do poder e proteção das
liberdades, como limites ao Estado⁶⁰. É especialmente a partir do fim da II Guerra
Mundial que se modifica substancialmente o modo de compreender o papel de
uma constituição, quando a previsão de um catálogo abrangente de direitos e a
ideia de responsabilidade do Estado para sua concretização (através dos próprios
mecanismos institucionais previstos) passam a ficar muito evidentes e assumir
caráter normativo. Por influência do desenvolvimento desta nova perspectiva
constitucional, em 1988, o texto constitucional brasileiro também incorporou
estas características.

Todavia, a transição para a democracia possui um “componente


original” no Brasil, nas palavras de Carlos Eduardo Santos Pinho: a “mobilização
social em favor da expansão dos direitos sociais”⁶¹. Isto é, reforçando o que já foi

60 MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Madrid: Editora Tro�a, 1988.
61 PINHO, Carlos Eduardo Santos. Descaminhos do desenvolvimento no Brasil. In: XI ENCONTRO DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA (ABCP), 11., 2018, Curitiba: Universidade Federal do
Paraná, 2018. Democracia e Representação – impasses contemporâneos. Curitiba: UFPR, 2018. Disponível em:
h�ps://www.researchgate.net/publication/327824783_DESCAMINHOS_DO_DESENVOLVIMENTO_NO
_BRASIL Acesso em: 07 jul. 2021. p. 8.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 2 51
argumentado na primeira parte deste texto, o Brasil optou por uma concepção de
democracia para além de um escopo político, trazendo, na (re)fundação do
Estado, a preocupação com os direitos sociais e com a sua efetivação. E é assim
que juristas, como Lenio Streck, Gilberto Bercovici, Marcelo Ca�oni, Marcelo
Neves, Leonel Severo Rocha e Martonio Barreto Lima, e também outros
importantes autores no plano internacional (como Jürgen Habermas), passam a
compreender as constituições como o elo entre o Direito e a Política – o
documento que alberga intenções políticas e objetivos sociais como norma, como
algo a ser cumprido, e não desviado.

Mas o que significa, afinal, afirmar que a Constituição brasileira


constitui o elo entre o Direito e a Política? Com Daniel Wei Liang Wang⁶², é
possível concluir que o sentido de Política se desdobra em três nichos conceituais,
que podem ser assim sintetizados: a) Política como as regras do jogo
(organização, limites e objetivos do exercício do poder do Estado): polity; b)
Política como o movimento de interação entre atores políticos (negociações,
barganhas político-partidárias): politics; e c) Política como políticas públicas (o
modo de concretização das finalidades do Estado): policies. Mais importante do
que compreender conceitualmente a diferença entre o que poderia ser referido
como os três níveis da Política a partir do que foi escrito por Wang, é perceber que
pode existir uma relação de determinação e causalidade entre eles. Ora, governo
é gestão da coisa pública e, assim sendo, demanda vontade e criatividade dos
atores políticos. Só que a movimentação na arena política que isso pode gerar
também é capaz de desconstruir parcela de seu elo com a democracia se nela não
estiver pressuposta com clareza e transparência pautas políticas relevantes para a
sociedade. E, para além disso, se não houver diálogo com aquilo que se espera do
Estado dentro de um projeto constitucional de finalidades.

A relação entre formulação e implementação de políticas públicas tem


na sua base – como uma espécie de condicionante – o que se projeta como papel
para o Estado. Nesse sentido, entendo que a opção por um perfil estatal, que, em
certa medida, irá dar conteúdo e limitar suas capacidades, não deveria fazer parte
do jogo político-partidário que é permeado de intenções meramente ideológicas,
descompromissadas com o interesse público. Em que pese a ideia de governo e de
gestão da coisa pública pressuponha, como já referido, elementos de criatividade
e de escolha política – o que pode resultar na existência de uma multiplicidade de

62 WANG, Daniel Wei Liang. Introdução. In: WANG, Daniel Wei Liang (Org.). Constituição e política na democracia:
aproximações entre direito e ciência política. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 11-18. p. 11.
5
52 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

ações governamentais diferentes e divergentes –, concordo com Gabriele Zini de


Oliveira, quando afirma o necessário elo entre política de Estado e política do
governo no Brasil⁶³. Mas o que isso significa? Que a intervenção estatal (pelo
caminho da realização de políticas públicas e, também, pela ação legislativa do
Estado – que nem sempre implica política pública) possui um componente que é
maleável, próprio da escolha política (e de seu juízo de conveniência e
oportunidade), mas outro que lhe condiciona: o projeto político institucional que
é desenhado para o Estado na Constituição, quando lhe fixa objetivos.

É evidente que a percepção deste elo não é ingênua a ponto de ignorar


que a história política brasileira vem amarrando modelos de intervenção estatal
ao bloco político (partido político; coligação partidária) que assume o poder, até
porque a avaliação sobre se determinada política de governo espelha ou não
democracia (ou a Constituição em seus objetivos) é sempre disputável. É, assim
que chegamos ao que se chama de “fases de intermitência entre projetos de
desenvolvimento”⁶⁴ no Brasil, por exemplo. É assim que chegamos à formulação
teórica do “presidencialismo de coalizão”⁶⁵, um modo de fazer Política que torna
possível governabilidade, a partir de negociações nem sempre republicanas, ou
melhor, que nem sempre se justificam pelo interesse público.

Buscando mais elementos teóricos sobre o tema das políticas públicas⁶⁶,


há dois temas que parecem importantes ao tema e a tudo o que foi afirmado
acima: “planejamento governamental”⁶⁷ e “poder infraestrutural”. Essas duas
63 Este é o argumento central da dissertação de mestrado elaborada por Gabriele Zini de Oliveira sob minha
orientação junto ao PPGD da Unisinos, com financiamento da CAPES (bolsa CAPES/PROEX), com o título “A
construção do projeto republicano brasileiro”. Como elemento central de sua proposta, a pesquisadora busca
demonstrar como o projeto institucionalizado pela Constituição brasileira (política de Estado), por vezes, é
negligenciado por políticas de governo desorientadas às finalidades sociais.
64 PINHO, Carlos Eduardo Santos. Descaminhos do desenvolvimento no Brasil. In: XI ENCONTRO DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA (ABCP), 11., 2018, Curitiba: Universidade Federal do
Paraná, 2018. Democracia e Representação – impasses contemporâneos. Curitiba: UFPR, 2018. Disponível em:
h� ps://www.researchgate.net/publication/327824783_DESCAMINHOS_DO_DESENVOLVIMENTO_
NO_BRASIL Acesso em: 07 jul. 2021.
65 ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro.
Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-33. 1988.
66 Meu objetivo, aqui, não é apresentar um aprofundado estudo sobre a elaboração de políticas públicas, seu ciclo,
a discussão sobre a sindicabilidade judicial. Em que pese tudo isso seja muito relevante, para fins deste texto,
importa sua relação com a institucionalidade do Estado e com a concepção de democracia.
67 “Do ponto de vista teórico e conceitual o planejamento governamental é aqui definido como a capacidade do
Estado de pensar um arquétipo de políticas públicas para a Nação numa perspectiva macroestrutural de longo
prazo”. (...) Ademais, ele contempla a formatação de políticas públicas destinadas à redução da pobreza, da
desigualdade social estrutural e à criação de um dinâmico mercado doméstico de consumo de massas, cuja
ausência, segundo o Cientista Social Celso Furtado, fora apontada como uma das causas do
subdesenvolvimento e da concentração de renda no Brasil”. PINHO, Carlos Eduardo Santos. Planejamento
estratégico governamental no Brasil: autoritarismo e democracia (1930-2016). Curitiba: Appris, 2019. p. 17.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 2 53
concepções são abordadas pelo cientista social Carlos Eduardo Santos Pinho. Para
o autor, “planejamento governamental” diz respeito ao estabelecimento de metas
para o Estado de caráter abrangente e a longo prazo. A partir disso, é possível
dizer que “planejamento governamental” se associa às projeções que são lançadas
ao Estado em um regime democrático. De outro modo, remete ao que foi referido
como expectativas democráticas de atuação do Estado. E é assim que este texto
conversa, também, com o que Pinho, a partir da obra do sociólogo Michael Mann,
trata como “poder infraestrutural”: a “(...) capacidade do Estado mobilizar
recursos necessários para penetrar uniformemente a sociedade e implementar
logisticamente suas decisões políticas em todo o território por meio da provisão
de serviços públicos indispensáveis (tais como saúde, educação, habitação,
transporte/mobilidade, segurança e proteção social)”⁶⁸.

Com isso, é possível visualizar com mais clareza por que as perspectivas
de abordagem sobre a formulação de políticas públicas dialogam com o que se
espera do Estado em regimes democráticos, ainda mais quando se parte da
concepção de que a materialização desse projeto depende da diminuição da(s)
desigualdade(s) no país. Afinal, é da união entre “planejamento governamental”
e “poder infraestrutural” que, conforme Pinho, agrega-se “uma dimensão
estratégica do desenvolvimento”: a incorporação social. Nessa linha, em termos
de avanços institucionais – a partir daquilo que foi previsto como norma –, é
possível afirmar que a Constituição de 1988 representa um elogio à democracia. Pelo
conjunto da obra (extenso rol de direitos, instrumentos de efetivação, relação
equilibrada de poderes, organização dos entes federativos e suas competências
etc.), a Constituição brasileira dá consistência à escolha política por um projeto
democrático garantido institucionalmente, em grande medida através de
políticas públicas. Até porque, para além de tudo isso, a Constituição brasileira
também “(...) abrigou a possibilidade de ampliação da participação social no
Estado”, com a previsão de formação dos conselhos de políticas públicas, arts.
198, 204 e 206⁶⁹. Mas qual o problema, então? É como afirma Luis Felipe Miguel:
“Da regra abstrata à operacionalização, o caminho é conturbado”.⁷⁰

68 PINHO, Carlos Eduardo Santos. Planejamento governamental no Brasil: trajetória institucional, autoritarismo e
democracia em perspectiva comparada (1930-2016). 2016. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
69 MIGUEL, Luis Felipe. Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil. Sinais Sociais, Rio de
Janeiro, n. 33, v. 11, p. 99-129, jan.-abr. 2017. Disponível em: h�p://www.sesc.com.br/wps/wcm/connect/
3daaa858-e528-4f0b-b12a-e115803bf073/SinaisSociais_SS33_WEB_14_09_17.pdf?MOD=AJPERES&CACHEID=
3d aaa858-e528-4f0b-b12a-e115803bf073. Acesso em: 07 jul. 2021. p. 104.
5
54 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

4. ESTADO E POPULISMO: QUAL O DIÁLOGO ENTRE DEMANDAS


POPULARES E INSTITUIÇÕES?

“O populismo é a doença senil da democracia. (...) [Ele] emerge do atual


momento democrático que é de crise generalizada”. Essas são as palavras do
jurista Dominique Rousseau em entrevista concedida em 2018 ao Instituto
Humanitas, que é vinculado à Unisinos⁷¹. Afinal, a que ele estaria se referindo?
Para dar sentido às duras críticas feitas ao populismo por este autor, que, como
primeira evidência, coloca democracia e populismo em certa contradição,
primeiro, parece uma estratégia interessante questionar sobre como compreender
– pelo menos minimamente – a concepção de populismo e, ainda, em que medida
este fenômeno fomenta aquilo que foi elevado à provocação neste último título do
texto: o diálogo entre demandas populares e instituições. Para além disso, talvez
também seja importante começar a pensar por que democracia e populismo se
associam a ponto deste fenômeno produzir degenerações democráticas, como
afirma Rousseau.

Democracia é o governo do povo, e disso não há quem discorde. Ocorre


que o exercício da soberania popular é exercido através da representação, que,
numa premissa básica (e um tanto limitada), consiste da existência de
procedimentos formais (como o voto) através dos quais a maioria escolhe quem,
de dentro do Estado, será responsável por falar em seu nome. É por isso que se diz
que esta relação entre povo e representantes se justifica na ideia de confiança,
porque, através desse modelo de democracia (representativa), os interesses da
comunidade política passam a ser intermediados por um corpo político-
institucional (o Poder Executivo; o Poder Legislativo), que tem a responsabilidade
de atender – sempre que possível e que não for inconstitucional – as demandas
sociais.

É disso – desse compromisso – que decorre a legitimidade do exercício


do poder em nome do povo. Sobre como será construída esta legitimidade

70 MIGUEL, Luis Felipe. Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil. Sinais Sociais, Rio de
Janeiro, n. 33, v. 11, p. 99-129, jan.-abr. 2017. Disponível em: h�p://www.sesc.com.br/wps/wcm/connect/
3daaa858-e528-4f0b-b12a-e115803bf073/SinaisSociais_SS33_WEB_14_09_17.pdf?MOD=AJPERES&CACHEID
=3daa a858-e528-4f0b-b12a-e115803bf073. Acesso em: 07 jul. 2021. p. 119.
71 ROUSSEAU, Dominique. Crise das democracias se deve ao surgimento de uma oligarquia neoliberal. Entrevista
cedida a Vitor Necchi. IHU On-Line: revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 14 nov. 2018.
Disponível em: h�p://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/584622-crise-das-democracias-se-deve-ao-
surgimento-de-uma-oligarquia-neoliberal-entrevista-especial-com-dominique-rousseau#.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 2 55
(democrática) é outra discussão, em certa medida provocada há muito tempo por
Pierre Rosanvallon⁷². Sobre como isto vem gerando uma série de
desdobramentos, é o que nos interessa para este momento. Afinal, é possível dizer
que é do desgaste desse laço entre representados e representantes que emerge o
populismo, como um fenômeno gestado no ambiente político, numa tentativa
radical de aproximar o povo e o poder⁷³.

“Isso ocorre quando as instituições não conseguem atender às


demandas populares”. É o que afirma Ernesto Laclau⁷⁴ em entrevista sobre o
tema, o que constitui, também, o argumento central de seu livro “A razão
populista”. Ou seja, com o populismo, tem-se a ideia de uma “(...)
homogeneidade das massas populares”⁷⁵, uma tentativa de implementação de
demandas sociais através de uma relação pessoal e direta com um líder
carismático. Daí a perspectiva de Laclau que relaciona populismo a progresso
social⁷⁶. Ocorre que a principal característica de atendimento social corresponde,
também, “uma politização à margem dos canais institucionais existentes”⁷⁷.

É possível, portanto, analisar o fenômeno dando ênfase – assim como foi


feito com os temas “democracia” e “políticas públicas” – em sua relação com o
Estado e com aquilo que a Constituição estabelece como perspectivas de suas
intervenções. Nesse sentido, sob a lente do Direito, o populismo “(...) ao propor
soluções míticas, projeta o fim das instituições democráticas, mina a burocracia
necessária à impessoalidade – que, entre outros fatores, caracteriza o Estado de
Direito – e, ao alimentar toda sorte de ativismos – como rápido caminho à
satisfação popular – procura, também, reescrever a Constituição”⁷⁸� É que o

72 ROSANVALLON, Pierre. La legitimidad democrática: imparcialidad, reflexividad, proximidad. 1. ed. Tradução de


Heber Cardoso. Buenos Aires: Manantial, 2009.
73 COPELLI, Giancarlo Montagner. O populismo como problema jurídico: conceito e impactos do discurso
populista no Estado Democrático de Direito. Revista Direito (Mackenzie). 2021. (artigo inédito e aceito).
74 LACLAU, Ernesto. Ernesto Laclau defende o populismo latino-americano para assegurar a participação da
população na política. Entrevista cedida a Leandro Fontoura. Zero Hora, Porto Alegre, 14 abr. 2014. Disponível
em: h�ps://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2014/04/ernesto-laclau-defende-o-populismo-latino-
americano-para-assegurar-a-participacao-da-populacao-na-politica-4473305.html
75 INCISA, Ludovico. Populismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de política. 13. ed. Brasília: Editora UnB, 2010. v.2. p. 981.
76 LACLAU, Ernesto. Ernesto Laclau defende o populismo latino-americano para assegurar a participação da
população na política. Entrevista cedida a Leandro Fontoura. Zero Hora, Porto Alegre, 14 abr. 2014. Disponível
em: h�ps://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2014/04/ernesto-laclau-defende-o-populismo-latino-
americano-para-assegurar-a-participacao-da-populacao-na-politica-4473305.html
77 INCISA, Ludovico. Populismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de política. 13. ed. Brasília: Editora UnB, 2010. v.2. p. 985.
78 COPELLI, Giancarlo Montagner. O populismo como problema jurídico: conceito e impactos do discurso
populista no Estado Democrático de Direito. Revista Direito (Mackenzie). 2021. (artigo inédito e aceito).
5
56 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

populismo, da forma como vem aparecendo no atual contexto, joga a luz para a
premissa democrática (compreendida exclusivamente como o papel do povo no
governo), e aceita como opaca a representação política.

Qual seria, a partir disso, a relação entre Estado, democracia, políticas


públicas e a insurgência do populismo no Brasil? Por que, com todas essas
promessas constitucionais, chegamos a fenômenos como este? Seria importante –
e talvez até necessário – desenvolver uma análise sociológica, capaz de
dimensionar, inclusive empiricamente (estatisticamente), as condições que
tornam possível a caracterização de cenários populistas. Não é esse o caminho
escolhido para o desenvolvimento desse texto. Mais uma vez, a leitura de
O’Donnell se torna interessante, pois, para o autor, nas “democracias
delegativas” (que, como já mencionado, o autor associa ao contexto brasileiro),
não se “(...) vislumbram avanços em direção a uma representatividade
institucionalizada”⁷⁹.

Mas, se a representação não ocorre a partir de um vínculo institucional,


como então é construído o elo entre as pretensões dos cidadãos que exerceram
seu direito de escolha durante os processos eleitorais e os atos de governo dos
depositários de seus interesses? Como eleitores e eleitos criam uma relação de
identidade para além do viés institucional de representatividade? Uma possível
hipótese para responder a essa(s) pergunta(s) consiste em observar os vínculos
emocionais – a radicalização da lógica da afeição e desafeição – que passam a
guiar a política brasileira⁸⁰. E, assim, discursos populistas passam a prosperar
porque representam a tentativa de solução de problemas que a representação
política não conseguiu resolver. À margem dos canais institucionalizados do
Estado; à margem da democracia (como garantia de igualdade e de estabilidade
institucional).

Em meio a tudo isso, meu argumento é o de que discursos populistas


prosperam no Brasil devido às nossas dificuldades democráticas, que nos colocam
diante de desvios institucionais – momentos quando se tornam ausentes aquilo que
O’Donnell afirma como necessário para que aconteça esta segunda transição do

79 O’DONNELL, Guillermo. Democracia Delegativa? Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 31, p. 25-40, out. 1991.
Disponível em: cleantext_url_ps4o12q205too5080o84os48qptps5q7Texto-2.pdf. Acesso em: 07 jul. 2020. p. 26.
80 ABRANCHES, Sérgio. Polarização radicalizada e ruptura eleitoral. In: ______ et. al. Democracia e(m) risco: 22
ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 23.
81 O’DONNELL, Guillermo. Democracia Delegativa? Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 31, p. 25-40, out. 1991.
Disponível em: cleantext_url_ps4o12q205too5080o84os48qptps5q7Texto-2.pdf. Acesso em: 07 jul. 2020. p. 26.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 2 57
autoritarismo em direção a um regime democrático: “políticas públicas e
estratégias políticas (...) que incorporem o reconhecimento de um interesse
superior comum na tarefa de construção institucional democrática”⁸¹. No caso
brasileiro, em grande medida, esse “interesse superior comum” está contornado
na própria Constituição. Mais uma vez aparece, então, o elo entre democracia,
instituições e constitucionalismo. Em outras palavras: a falta de institucionalidade
democrática também pode ser compreendida, sob certa perspectiva, como ausência
de Constituição. Não por acaso, com Copelli, temos a noção de populismo
associada, também, às tentativas de “reescrever a Constituição”⁸².

Para finalizar, dentre as infinitas possibilidades de divergências que um


regime democrático projeta e permite, em democracia, existe uma estabilidade
desejada: a estabilidade institucional. É o que nos oferece condições de projetar
sentidos historico e democraticamente construídos sobre o papel das instituições
(democráticas). É isso que nos permite exigir de nossas instituições, mesmo em
momento de crises, certa resistência constitucional, como há muito tempo vem
defendendo Lenio Streck⁸³. Assim, voltando à já colocada questão: quão
permeável se torna uma instituição política aos interesses democráticos? Se a
resposta a esta pergunta for nenhum – isto é, se a sociedade brasileira não se
visualiza representada por suas instituições –, o caminho acaba sendo um viés
não institucional. Eis o palco para o populismo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto, as práticas do Estado foram problematizadas a partir


de suas relações: com a democracia, com as políticas públicas e com o populismo.
Agora, é chegado o momento de apresentar algumas considerações finais para
este texto. Como já foi possível perceber, a metodologia de perguntas e respostas
me agrada. E isso ficará mais evidente neste espaço, afinal, cada uma das partes
corresponde a uma certa angústia acadêmica, que se passa a traduzir, de forma
mais definitiva e posicionada, agora, com o olhar voltado aos argumentos deste
capítulo.

82 COPELLI, Giancarlo Montagner. O populismo como problema jurídico: conceito e impactos do discurso
populista no Estado Democrático de Direito. Revista Direito (Mackenzie). 2021. (artigo inédito e aceito).
83 STRECK, Lenio L. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
5
58 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

O que se projeta para a democracia brasileira? A garantia de igualdade como


pressuposto para sua materialização e a estabilidade institucional como garantia
de sua operacionalização. Esses dois elementos, compreendidos juntos, podem,
então, ser pensados como ponto de partida, como uma concepção mínima de
democracia. Evidentemente, as projeções de democracia não se esgotam apenas
nisso. Mas a adequada compreensão dessa perspectiva – como alguns dos
componentes da própria democracia – parece ser fundamental para as reflexões
pretendidas.

O que se espera do Estado brasileiro? Práticas democráticas. Isto é, que,


para fins de uma concepção de democracia associada à inclusão social (à
igualdade), é fundamental que o intervencionismo do Estado seja permeável ao
atendimento de demandas sociais via políticas públicas. Em outras palavras: o
que se espera do Estado brasileiro é que ele cumpra com as finalidades
constitucionais projetadas, especialmente no art. 3º, e o faça respeitando o projeto
democrático.

Como isso dialoga com o populismo? As projeções democráticas de


igualdade e de estabilidade institucional, bem como as expectativas de práticas
estatais voltadas à implementação de políticas públicas, tornam o populismo um
fenômeno complexo, na medida em que, ao mesmo tempo em que emerge das
insuficiências democráticas do Estado (de suas instituições), também é capaz de
gerar a própria contradição, a degeneração democrática, porque, além de colocar
em cena um discutível modo de aproximação entre povo e poder, o faz à margem
da Constituição e de suas conquistas históricas.
Capítulo 3

POPULISMO E
PRESIDENCIALISMO
DE COALIZÃO
Especifidades do fenômeno político
na História do Brasil

Giancarlo Montagner Copelli


6
60 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

CAPÍTULO 3
POPULISMO E PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO:
Especificidades do fenômeno político
na História do Brasil

Giancarlo Montagner Copell

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Correndo o risco da simplificação – o que de todo modo não é um


problema aos propósitos desse texto – políticas públicas são, por definição, aquelas
ações estatais voltadas, grosso modo, a apontar os meios para finalidades
constitucionalmente asseguradas. Ou seja, são ações necessariamente vinculadas,
mas que também contam com um importante traço discricionário.

Sem perder de vista esse contexto, que dialoga fortemente com


dimensões tanto políticas quanto jurídicas e faz centrar atenções na ação do
Executivo, intuo que a atualidade reserve a agudização de um fenômeno
verificado, no Brasil, a partir da chamada República de 46, em significativa relação
com essa espécie de mecânica do agir estatal. Trata-se do populismo, já visto no
primeiro capítulo e caracterizado muito sucintamente como uma tentativa de
alcançar ou manter-se no poder, buscando a ligação direta entre o líder e o
eleitorado contrastado com demandas institucional e historicamente reprimidas,
à margem dessas mesmas instituições, através de discursos mágicos,
demagógicos, impossíveis ou de difícil realização, dirigidos ao chamado grande
número.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 3 61
O ponto, aqui, é que o populismo, embora costumeiro alvo de
sistemáticas pesquisas em Ciência Política e Sociologia, também é um objeto de
estudo possível ao Direito (compreendido como fenômeno político), como
procurei já observar introdutoriamente. A questão interroga, a partir de agora,
pelo espaço em que isso se daria. Penso que nas políticas públicas, ou seja, nos
meios estatais (e discricionários) para finalidades constitucionalmente
asseguradas, sobretudo, em um país de evidentes tibiezas institucionais, como o
Brasil, por exemplo. Ou seja, para além do discurso mágico que o pensamento
acadêmico mais clássico lhe impõe, populista seria também a ação que, no limite,
busca deslocar parâmetros constitucionais para satisfazer maiorias eleitorais.

Essa é sem dúvida uma possibilidade de abordagem que, dentro de


meus limites – acadêmicos e de interesse – talvez esteja esgotada naquelas
primeiras páginas. Entretanto, para além dessas condições mais ou menos gerais
da relação entre democracia, políticas públicas e populismo, acredito que um
peculiar potencializador talvez esteja no modelo de organização e exercício do
poder inaugurado junto à emergência da chamada Segunda República,
reinventado com a redemocratização na década de 1980 e mantido até hoje: o
presidencialismo de coalizão.

Esta hipótese desenha-se no fato de que, justamente com esse arranjo


institucional – tão associado a uma espécie de toma-lá-dá-cá entre Poderes –, os
líderes executivos projetaram-se como condições – exclusivas, nesse imaginário –
para as reformas necessárias diante de nossos históricos déficits, sobretudo, de
representação. Nesse mesmo cenário, agudizando esse ideário, ao Legislativo
pesou um defensivo traço dos velhos interesses oligárquicos, forjados ainda na
Primeira República. Desse contexto, entre crises dos mais variados matizes,
sobretudo, financeiros, pesou igualmente a tensão sempre negociada dessa
relação entre Poderes, interferindo não apenas na velocidade, mas, ainda, na
qualidade das políticas públicas. Hoje, o resultado é a ampliação de um crescente
catálogo de demandas populares frustradas – que, no limite, a partir da construção
de um conceito para este fenômeno político – moldam algumas das condições de
possibilidade para o populismo. Em síntese, portanto, é nesse arranjo que ficam
delimitadas as condições de possibilidade não para o seu surgimento – que, em
apertada argumentação, correspondem à democracia e à crise conjugadas –, mas
para o mítico líder que, para além da institucionalidade, rompe com um passado
indigesto em nome do povo.
6
62 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

2. ESBOÇANDO CENÁRIOS: O ENCONTRO ENTRE DEMOCRACIA E


CRISE NO BRASIL

Como não cansam de informar os mais variados estudos sobre a


brasilidade – sobremodo, políticos, históricos e sociológicos –, crises, demandas
reprimidas, reivindicações inalcançadas e desejos sufocados – ou seja, todo esse
caldo que também compõe o fenômeno do populismo – fazem parte de um
contexto de 500 anos no Brasil. Colônia de uma Metrópole com mentalidade
claramente extrativista – como de resto fazia parte de um contexto de época na
Europa –, o Brasil é o retrato dessas permanentes tensões. Forjado em bases
senhoriais e escravocratas, patriarcais, familistas, clientelistas e patrimoniais –
como vão propor os clássicos demiurgos explicadores de nossa condição –, crises,
tensões políticas e disputas de mesmo tipo formam o conjunto do que nunca nos
faltou. Ou seja, uma das fundamentais condições de possibilidade à emergência
do populismo sempre esteve posta⁸⁴.

É, sem dúvida, o que um olhar ao passado desvela. Basta ver, sem


desconsiderar nossa historicidade, portanto, o modo como se deram as mais
significativas rupturas políticas do país, alterando modelos: primeiro, deixamos
de ser Colônia para ser Império (e não República). Ilha monárquica numa
América já republicanizada, a passagem foi o claro retrato de uma crise
tensionada por uma Colônia cada vez mais rica – e explorada – por uma
Metrópole insaciável. O caldo político foi formado por interesses locais (e
patriarcais) em franca tensão com os interesses da Coroa Portuguesa. Daí o
rompimento que não nos fez, de imediato, República. Bastava não ser Colônia.
Nossa independência – é possível, por isso, dizer – foi um politic turn de elite.
Nada de democracia.

De mesmo modo, também como uma espécie de solução de


compromisso – como igualmente é possível pensar o presidencialismo de
coalizão – veio, enfim, a República. A cavalo. E de golpe. Fruto das tensões entre
grupos dominantes, ela deitou o poder. Horizontalizo-o. Em um plano
estritamente teórico, colocou o demos e o poder no mesmo espaço. Mas, na prática,
cada cabeça não correspondia a um voto, que, ademais, não era secreto. Havia o

84 Por todos, refiro-me aqui aos chamados demiurgos do Brasil Moderno, conforme Chico de Oliveira, ao lembrar
palestra de Antônio Cândido no Centro Brasileiro de Estudos e Planejamento, o Cebrap. Entre eles, Sérgio
Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Celso Furtado. Ver, aqui, OLIVEIRA, Francisco
de. Diálogo na grande tradição. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise do Estado-Nação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 3 63
que se chamava de voto de cabresto: o coronel local direcionava o esparso
eleitorado, de acordo com seus interesses, trocando resultados políticos por uma
série de benefícios verticalmente a ele alcançados, aumentando seu poder
econômico e, portanto, também seu poder político, como vai bem lembrar Teresa
Sales⁸⁵ em sua tese de livre-docência. Na sua gênese, a República, como se vê, não
pôs o poder público em público. E não por acaso Aristides Lobo, bem lembrado
por Murilo de Carvalho⁸⁶, sobre essa República que não republicanizou, vai dizer que
a população, por ocasião da proclamação, pensou tratar-se de uma parada militar.

Disso tudo, o que se tem é que havia República, claro, mas o grande
número não importava para alcançar ou manter o poder. Aí que uma das
condições de possibilidade para o populismo projetou-se apenas formalmente.
Havia – como sempre houve – crises, com imensos gaps sociais, e uma série de
tensões em uma sociedade absolutamente desigual, sufocada em desejos e
necessidades, mas ainda não havia a emergência da legitimidade do poder por
vontade popular, obstruindo, então, o surgimento deste fenômeno. Faltava algo.
Faltava povo.

Esse quadro, entretanto, modificou-se a partir da chamada República de


46 – não por acaso, também conhecida como República Populista. O grande número
passou finalmente a importar. Com o crescimento das cidades e do proletariado –
vai lembrar Francisco Weffort⁸⁷ –, finalmente a democracia brasileira passou a
integrar as massas ao processo político. Se em 1930 o eleitorado representava 7%
da população, em 1945 já era 16%. Em 1950, alcançou 22%. Embora excluísse
ainda muitos indivíduos que contribuíam significativamente para a construção da
riqueza nacional, percentualmente o conjunto de eleitores aumentou, em duas
décadas, mais de 300%: o poder já horizontalizava-se nos partidos políticos,
acenando significativamente à representatividade que caracteriza a democracia
moderna. Basta ver que, nos primeiros anos da Segunda República, quando
emerge o presidencialismo de coalizão como forma de organização política do
poder, 31 partidos solicitaram o registro provisório, projetando plataformas
bastante plurais. Enquanto a UDN, por exemplo, de viés liberal, era contra o
intervencionismo do Estado, opunha-se ao Varguismo e espelhava o interesse das
classes médias urbanas, o PSD – outro exemplo – era uma espécie de braço desse

85 SALES, Teresa. Trama das desigualdades, drama da pobreza no Brasil. Tese de Livre Docência. Campinas:
Unicamp, 1992.
86 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo:
Companhia das letras, 1987.
87 WEFFORT, Francisco Corrêa. O populismo na política brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
6
64 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

mesmo Varguismo, ligando-se às bases do interior e às elites regionais. Esse era o


seu público. Do mesmo modo, projetando representação diversa, o PTB era
reformista, regulador, interventor, nacionalista e com bases no movimento
sindical urbano. Era, portanto, o oposto da UDN, como também eram o PC do B,
na legalidade apenas entre 1945 e 1947, que contava com a simpatia de
intelectuais e camponeses, e o PSB, com bases entre intelectuais e nas
universidades.

Nesse esboço, que serve para demonstrar, finalmente, a incorporação


das massas ao processo político, com a formação de quadros por interesse e
agendas representativas, já não era mais possível acessar ao poder,
desvinculando-se dos interesses populares. Bom e emblemático exemplo disso é
a derrota de Eduardo Gomes para Eurico Dutra em 1945. Mesmo sem bases
populares, ainda que com o apoio de Getúlio Vargas, Dutra venceu o pleito, com
seu adversário político dizendo que não precisava do voto dos marmiteiros.
Precisava. Com um país que transitava das velhas bases patriarcais do café para
a indústria, Gomes não percebeu a ruptura que finalmente incluía o interesse dos
representados. Talvez a derrota de Gomes e a ascensão de Dutra marquem a
primeira eleição efetivamente democrática no país. Com significativo atraso: era
a décima quarta eleição presidencial e a décima segunda direta. Quase meio
século após a parada militar vista por Aristides Lobo e o advento da República,
finalmente o povo importava. Já era tempo. Nossas demandas reprimidas, enfim,
encontraram a democracia.

3. O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO E AS DEMANDAS REPRIMIDAS

Na generalidade do fenômeno, as condições de possibilidade ao


surgimento do populismo estavam, portanto, postas. Mas o modo como o poder
foi organizado no Brasil na Segunda República apresentou uma especificidade
capaz de potencializar sua emergência. Em um ambiente multipartidário e
finalmente marcado pela competição eleitoral, nenhuma sigla poderia fazer o
presidente e, ainda, construir tão-somente a partir de si as bases legislativas de
seu governo. Era necessário promover coalizões, entre outros partidos, para
governar. Por outro lado, a representatividade, ou seja, o falar em nome de⁸⁸ – que

88 Chamo a atenção, como um possível aprofundamento a esse ponto, ao último capítulo – Filosofia, linguagem e
política: formas de discurso, representação e exclusão social – de MARCONDES, Danilo. Filosofia, linguagem e
comunicação. São Paulo: Cortez, 2000.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 3 65
sintetizava o interesse nacional das massas tardiamente incluídas no processo
político –, encontrava não apenas reflexo na abrangência de interesses espelhada
no líder executivo, mas, mais que isso, um certo obstáculo no regionalismo que
moldava a representatividade legislativa. Aí o imaginário popular que via – e
talvez ainda veja, nessa historicidade que também nos faz ser o que somos – o
discurso deste mesmo líder como o único capaz de canalizar – inclusive à
margem das instituições, em tese, popularmente vistas como enferrujadas
engrenagens garantidoras do atraso nacional – as angústias, os desejos e as
necessidades populares que, no limite, importaram no processo eleitoral que
passava finalmente a legitimar o poder.

Por outro lado, mesmo diante de uma precária institucionalidade


republicana que permitia a esse imaginário incensar seu líder, esse contexto era
contrastado por uma engrenagem singular: com o multipartidarismo surgido em
fins da primeira metade do século XX no Brasil e as necessárias coalizões
endereçadas à governabilidade, toda política pública era negociada com o
Congresso, impondo uma evidente tensão entre – vai dizer Sérgio Abranches⁸⁹ –
o populismo reformista e o conservadorismo oligárquico ainda presente. É esse o
start ao ponto que considero, para o argumento que aqui pretendo assentar,
central à discussão, a partir de uma espécie de corrosão deste mesmo sistema de
alianças. Ou seja, intuo que uma das características do presidencialismo de
coalizão – para além dessa tensão entre reformismo e conservadorismo –
potencializou a (possibilidade de) emergência do fenômeno populista na
chamada Terceira República.

Mas, afinal, como esta hipótese pode ser esboçada?

Como se sabe, com o advento da Constituição de 1988, após


significativo intervalo em função do regime militar, o mesmo modelo voltou
renovado, em um cenário bastante singular: paralelamente a reabertura política, os
anteriormente referidos e históricos gaps sociais tornaram-se cada vez mais
insustentáveis, cobrando, como vai precisamente comentar Marcos Nobre⁹⁰, uma
nova disposição referente à desigualdade não apenas de renda, mas, sobretudo,
de recursos desta natureza, além da redistribuição de poder etc. Afinal de contas,
a redemocratização acenava, ainda, a um projeto político encarregado da

89 ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: Raízes e evolução do modelo político brasileiro. São
Paulo: Cia. Das Letras, 2018.
90 NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: Da abertura democrática ao governo Dilma. 1 ed. São Paulo: Cia.
das Letras, 2013.
6
66 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

instituição de uma nova forma de vida – no sentido wi�gensteiniano⁹¹ do termo –,


impondo sensíveis mudanças necessariamente políticas para que este novo fosse
efetivamente desvelado.

Esse cenário, claro, foi francamente conflitivo – como é próprio das


democracias –, projetando uma espécie de necessidade de controle – ao menos da
velocidade dessas mudanças demandadas e, agora, endereçadas a um
institucionalidade democrática. Esse controle, vai dizer Nobre mais uma vez,
ocorreu através de um certo tipo de blindagem do sistema político estabelecido
nos Anos 1980⁹², mas que também refletiu – penso eu – a corrosão das coalizões
que sustenta(va)m a governabilidade (desde a República de 46), bem sintetizada no
controle de políticas públicas em favor da obtenção de dividendos políticos. Essa
lógica permaneceu incrustrada através de uma espécie de cultura política que, já
de antes, blindava o sistema político que emprestava condição de governabilidade.
E, justamente através dessa mecânica institucional é que “o sistema conseguiu se
perpetuar [...] sem incorporar novas demandas sociais, tendo que lidar apenas
com interesses individuais no controle do orçamento por políticos aliados”, como
bem observa José Rodrigo Rodriguez⁹³. O saldo disso tudo, claro, em um país
tardiamente arremessado à modernidade, é o que não de hoje – mas ainda hoje –
se vê: um amplo leque de demandas popularmente endereçadas às instituições,
mas frustradas por, entre tantos e distintos fatores⁹⁴, sistemáticas,

91 Remeto o eventual leitor à minha tese de doutoramento, em que proponho – especialmente no primeiro capítulo
– o atravessamento da filosofia da linguagem do Segundo Wi�genstein às discussões em torno de uma teoria
do poder nas democracias. COPELLI, Giancarlo Montagner. Construções entre filosofia da linguagem e Teoria
do Estado: o Estado Social como Estado de Direito e seus desafios no Brasil. Tese de Doutorado. São Leopoldo:
Unisinos, 2018.
92 Vai dizer Marcos Nobre: “Ainda que reprimida por décadas de ditadura e por uma cultura política autoritária,
a população pobre e miserável não deixaria de usar o poder de sua mobilização e de seu voto para combater
desigualdades de todos os tipos. Por outro lado, do ponto de vista da elite do poder, passou a ser essencial pelo
menos o controle da velocidade e da amplitude de diminuição das desigualdades [...] Foi assim que o sistema
se preservou sem mudar, fortalecendo sua lógica de travamento de grandes transformações, reprimindo as
diferenças sob uma nova unidade forçada”, NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: Da abertura
democrática ao governo Dilma. 1 ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2013, p. 10-12.
93 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Sociedade contra o Estado – duas ondas de democratização radical no Brasil (1988
e 2013): uma interpretação à luz de Franz Neumann. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo;
HENGELMANN, Wilson (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – Mestrado e Doutorado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 89.
94 Por todos, as crises apontadas por Pierre Rossanvallon, agudizadas por, agora, inéditos contornos relacionados
ao mundo do trabalho. Ver, nesse sentido, ROSANVALLON, Pierre. A crise do estado-providência. Tradução
de Joel Pimentel de Ulhôa. Goiânia: UFG, 1997, e FREY, Carl Benedikt; OSBORNE, Michael A. The future of
employment: how susceptible are jobs to computerisation?. Technological Forecasting and Social Change, v.
114, p. 254-280, 2017. Disponível em: h�p://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0040162516302244.
Acesso em: 08 set. 2017.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 3 67
patrimonializadas e clientelizadas negociações – em torno de políticas públicas,
sobremaneira – entre Executivo e Congresso.

Há, como aí se vê, uma clara insuficiência institucional a contribuir para


o alargamento de um catálogo popularmente reclamado. Nesse sentido, Pierre
Rosanvallon, observando as singularidades dessa mesma insuficiência justamente
nos canais institucionais de representatividade política, quais sejam, os partidos,
traz à luz do debate uma pontualíssima contribuição: enquanto as siglas
converteram-se em espaços especializados para a concorrência na democracia
eleitoral, deixaram de ser atores ou instituições significativos na democracia de
exercício, afastando, assim, a possibilidade de manter demos e poder no mesmo
espaço. “Os partidos políticos não cumprem mais uma função ascendente, mas
descendente”⁹⁵, diz o pensador francês, apontando para uma espécie de inversão
representacional – que, igualmente, não escapa a Ronald Dworkin: As “autoridades
começam a levantar dinheiro para a próxima eleição no dia seguinte à última, e
quase sempre dedicam mais tempo e esforço a essa tarefa do que às tarefas para
as quais foram eleitos”⁹⁶.

De fato, a generalização de Rosanvallon e Dworkin pode ser verificada


especificamente no Brasil, segundo estudo de José Antonio Cheibub, Argelina
Figueiredo e Fernando Limongi, publicado num já distante 2009, na Revista Dados.
De acordo com esses pesquisadores, “os partidos políticos exercem um papel
importantíssimo no processo legislativo de tomada de decisão no Brasil”⁹⁷, mas
esse protagonismo “não” se alinha – refletindo a assertiva de Rosanvallon – à
representatividade que vincula eleitores e parlamentares. Diferente disso, esse
papel está relacionado à estrutura que empresta governabilidade – o
presidencialismo de coalizão – ou, de outra forma, à “habilidade do presidente de
formar coalizões legislativas estáveis”⁹⁸.

95 ROSANVALLON, Pierre. Temos democracia eleitoral, mas não de exercício [Entrevista] Instituto Humanitas
Unisinos. Disponível em: h�p://www.ihu.unisinos.br/549679-temos-democracia-eleitoral-mas-nao-de-
exercicio-entrevista-com-pierre-rosanvallon. Acesso em: 10 abr. 2016.
96 DWORKIN, Ronald. Virtude Soberana. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 493.
97 CHEIBUB, José Antonio; FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Partidos políticos e governadores
como determinantes do comportamento legislativo na câmara dos deputados, 1988-2006. Dados - Revista de
Ciências Sociais, 52, n. 2, 2009. Disponível em: h�p://www.scielo.br/pdf/dados/v52n2/v52n2a01. Acesso em: 20
mar. 2017.
98 CHEIBUB, José Antonio; FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Partidos políticos e governadores
como determinantes do comportamento legislativo na câmara dos deputados, 1988-2006. Dados - Revista de
Ciências Sociais, 52, n. 2, 2009. Disponível em: h�p://www.scielo.br/pdf/dados/v52n2/v52n2a01. Acesso em: 20
mar. 2017.
6
68 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

Para eles, se o objetivo dos partidos e, claro, de seus integrantes, é a


democracia eleitoral, é preciso considerar o caminho para esse particularíssimo
jogo de linguagem. Nesse intento, não se pode perder de vista que “é por meio de sua
participação no governo que o legislador individual terá acesso aos recursos de que
necessita para a sobrevivência política”. Seja – como observam Cheibub, Figueiredo
e Limongi – buscando a "definição de políticas públicas [seja] para a obtenção e a
distribuição de patronagem, em ambos os casos, seu interesse será atendido por
intermédio de sua participação no governo”⁹⁹.

Essa é a questão. Ao “contribuir” (entre aspas mesmo) para limitar a


eficiência desse necessário agir estatal, através de uma apropriação tão íntima da
agenda pública, agravando não apenas uma crise de representatividade – mas de
“efetividade”, como diz Marramao acerca do que considera o grande problema
da “contemporânea democracia de massas”¹⁰⁰ – fez caminho a uma infeliz
naturalização dessa condição. Ou seja, ao embaralhar o espaço da
institucionalidade, esse mesmo modelo arremessou – e ainda arremessa –
potencialmente a canalização das demandas não atendidas às carismáticas
figuras de determinadas lideranças, consideradas – em um frustrado imaginário
– os únicos caminhos capazes de romper com essas mesmas instituições que,
enfim, não foram capazes de mediar os interesses populares e, portanto, não
representa(ra)m.

Sintetizando o argumento, quero dizer: ao “contribuir” – mais uma vez


com Abranches¹⁰¹ – “para aumentar as desigualdades por meio da alocação
enviesada de recursos públicos e implementação diferenciada das políticas
públicas”, o presidencialismo de coalizão também agudizou – ao transformar o
diálogo institucional em um privado balcão de negócios – não apenas os já
históricos déficits de representatividade, mas da efetividade dessa mesma
representação. Nada mais natural, embora indesejável, portanto, que o arremesso
dessas demandas sufocadas não mais fosse dirigido às instituições (cuja

99 CHEIBUB, José Antonio; FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Partidos políticos e governadores como
determinantes do comportamento legislativo na câmara dos deputados, 1988-2006. Dados - Revista de Ciências
Sociais, 52, n. 2, 2009. Disponível em: h�p://www.scielo.br/pdf/dados/v52n2/v52n2a01. Acesso em: 20 mar. 2017,
p. 292 – grifo nosso.
100 MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. As categorias do tempo. Tradução de Guilherme Gomes de
Andrade. São Paulo: Unesp, 1995, p. 283.
101 ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: Raízes e evolução do modelo político brasileiro. São
Paulo: Cia. Das Letras, 2018, p. 364.
Giancarlo Montagner Copelli
CAPÍTULO 3 69
autonomia tem se mostrado sequestrada pelo patrimonialismo de seus atores),
mas à exclusiva imagem daquelas lideranças capazes de encarnar a promessa –
agora retornando às abordagens e características mais clássicas do populismo –
mítica, demagógica etc.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O populismo encerra um significativo paradoxo. De um lado, centra-se


a partir da democracia. Não existe fora dela. De outro, sufoca-a. Vai contra esse
regime, afastando contraditoriamente o poder público do espaço institucional.
Especificamente no Brasil, o estopim para esse mesmo encadeamento de fatores
ganhou força com a incorporação das massas ao processo de legitimação do
poder, entre a primeira e a segunda metades do século XX. Essa espécie de
iniciação política popular, refletida em um imenso catálogo partidário, projetou
recortes muito específicos para o exercício do poder, bem estampado no
presidencialismo de coalizão.

Parece evidente, entretanto, que tal modelo – que opunha o sentimento


nacional de mudança, encarnado no Executivo, a um certo tipo de retranca
conservadora, bem representado no Congresso –, jamais carregou objetivamente
vícios ou virtudes. Nunca foi – como continua não sendo – mais que uma forma
de arranjo ou equivalência de forças, assinalando possibilidades de diálogo entre
Poderes. Ou seja, coalizões, em si, não são nem boas e nem más. A corrosão do
sistema – ou seja, o verdadeiro problema do presidencialismo de coalizão – esteve
e está no modo como orientou e ainda orienta seus acordos, patrimonializando o
espaço público e transformando as negociações envolvendo a agenda pública em
uma espécie de balcão pessoalizado de negócios. É o famoso toma-lá-dá-cá – e não
existe nada menos republicano do que isso.

Diante dessa conclusão preliminar – que agora já figura como premissa


e foi moldada a partir da perspectiva crítica daqueles que se propuseram a
(re)construir determinados contextos da brasilidade (Weffort, Sales, Murilo de
Carvalho etc.) –, duas leituras sobressaíram-se: a de Nobre, com seu imobilismo
em movimento, e a de Abranches, com o talvez mais significativo estudo sobre o
presidencialismo de coalizão, nominado por ele mesmo. Convergentes, a
primeira leitura mostra como o processo de redemocratização projetou-se
também demarcado por uma série de conflitos, protagonizados, de um lado, por
forças abertamente conservadoras, em torno das condições de possibilidade para
7
70 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

a governabilidade do país. Já a segunda, a seu modo, demonstra como o


presidencialismo de coalizão, ainda que não encarnasse uma espécie de mal em
si, contribuiu para empalidecer o alcance transformador das políticas públicas.

Esse é o ponto. Ao privatizar o espaço público em nome de


pessoalizados interesses, o presidencialismo de coalizão também contribuiu para
uma alargada percepção de populares demandas frustradas. Mais: ao agudizar
condições de possibilidade para a emergência desse fenômeno político e,
paralelamente, ocupar o lugar da institucionalidade, esse mesmo modelo
enfraqueceu significativamente o republicano espaço do poder. O saldo disso
tudo, como até aqui procurei argumentar, é uma ilusória razão que projeta não
apenas romper, mas atravessar as instituições e, assim, promover a ligação direta
entre lideranças e massas, como caracterizam, enfim, suas conceituações mais
clássicas.
Capítulo 4

POPULISMO E
DISTORÇÕES
INSTITUCIONAIS NO
BRASIL
A dinâmica entre Poderes e os riscos de
sobreposições institucionais à democracia

Clarissa Tassinari
7
72 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

CAPÍTULO 4
POPULISMO E DISTORÇÕES INSTITUCIONAIS NO BRASIL:
A dinâmica entre Poderes
e os riscos de sobreposições institucionais à democracia

Clarissa Tassinari

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O que é o Estado? E Estado para quê? Talvez essas sejam as mais


simples e desafiadoras perguntas em contextos democráticos. Ou melhor: em
contextos que buscam atingir qualidade democrática e práticas institucionais que
correspondam a esse estágio ótimo da democracia, que, evidentemente, não está
limitado à análise da prestação estatal. Quais são as condições que um país de
recente experiência democrática – como é o caso do Brasil – tem para atender a
essas expectativas sociais e, até mesmo, normativas? Ensaiar respostas a essa
pergunta possivelmente envolva a (re)construção de uma engenharia histórico-
conceitual. Nessa complexa engrenagem, que, observando o passado, projeta
também futuros, gostaria de dar ênfase, no espaço destinado a este texto, ao papel
das instituições. Especificamente, aos três Poderes da República.

Eis, então, o problema de pesquisa que mobiliza a escrita deste capítulo:


como compreender, no âmbito do constitucionalismo democrático brasileiro
contemporâneo, as tensões entre Executivo, Legislativo e Judiciário? A partir de
2013, inicia-se no Brasil (e em outros países) um período de intensificação das
manifestações, exigindo-se de nossas instituições o comprometimento com
renovadas e diversificadas pautas sociais. Com o pleito eleitoral de 2018,
conjugado a esse cenário de efervescência social, inaugura-se um novo momento na
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 4 73
política, que, dentre outros elementos, caracteriza-se pela existência de uma
“presidência de confrontação”, oportunizando fortes embates institucionais
internos, bem como com setores do Legislativo e da sociedade¹⁰².

Levando em conta esses acontecimentos, e considerando a mais recente


conjuntura política (que sofre os impactos da crise sanitária e vice-versa), parece
adequado afirmar que a dinâmica entre os três Poderes pode ser visualizada a
partir de tentativas de sobreposições institucionais¹⁰³. Essa afirmação – que é lançada
ao patamar de tese da tese – possui, é claro, no mínimo, um custo teórico-
argumentativo. E trato isso como “o mínimo”, porque, nesse primeiro estágio da
pesquisa e de registros acadêmicos de seus resultados, deixo de lado toda a
riqueza – e todo o esforço – da realização do que poderia ser considerado como
uma importante (e talvez futura) pesquisa empírica.

Com base nisso, este texto busca realizar uma análise exploratória
acerca das práticas institucionais eventuais e das leituras teóricas que possam ser delas
decorrentes, com o potencial e o propósito de materializar, isto é, dar um pouco de
forma e conteúdo, à hipótese aqui ensaiada sobre as tensões vivenciadas entre os
Poderes. Desse modo, os argumentos – ainda em fase de teste, diga-se de
passagem – estão organizados em duas partes, com finalidades específicas:
primeiro, compreender como se chega ao cenário de tentativas de sobreposições
institucionais no Brasil e o que está envolvido nesse debate; e, segundo,
caracterizar esse fenômeno a partir da análise de posturas institucionais (ou
práticas institucionais eventuais) e dos fenômenos delas decorrentes (leituras
teóricas possíveis). Ao final, como considerações finais, serão apresentados alguns
pontos de reflexão ao problema, à luz da democracia e de seus desafios.

Por fim, considero fundamental destacar que este capítulo apresenta os


resultados da execução conjunta de dois projetos de pesquisa, sob os seguintes
títulos: a) A relação Direito e Política em tempos de protagonismo judicial
(vinculado ao PPG Direito UNISINOS); e b) Estado, políticas públicas e
populismo: democracia à margem das instituições? (financiado pela FAPERGS,

102 ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p.
155-156.
103 Recentemente, Giancarlo Montagner Copelli publicou um texto na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, na
coluna Diário de Classe (espaço destinado aos integrantes do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos),
problematizando a existência de sobreposições entre Poderes. COPELLI, Giancarlo Montagner. Mal-estar
democrático, (não) representação e sobreposição de poderes. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 2021.
Disponível em: h�ps://www.conjur.com.br/2021-jun-26/diario-classe-mal-estar-democratico-nao-
representacao-sobreposicao-poderes Acesso em: 26 jun. 2021.
7
74 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

Edital Auxílio Recém Doutor 4/2019). Apesar da especificidade dos objetivos da


propositura de cada um desses projetos, eles constituem um ponto de
convergência de meus interesses acadêmicos. E ele corresponde às necessárias
reflexões sobre os desafios e os riscos da democracia no Brasil. Essa é, evidentemente,
apenas uma pequena amostragem de uma das faces do problema.

2. A DINÂMICA ENTRE OS PODERES NO BRASIL: AS MAIS RECENTES


TENTATIVAS DE SOBREPOSIÇÕES INSTITUCIONAIS

As negociações e tensões existentes entre os três Poderes não são


novidade recente para o constitucionalismo brasileiro, tenham sido elas
aparentes, com impactos institucionais, ou não. Se fizermos uma análise mais
abrangente, que, inclusive, também possa se afastar das especificidades nacionais,
a própria compreensão sobre o papel do Estado e, como consequência, as
diferentes ênfases nas possibilidades de intervenção estatal deram origem ao que
poderíamos chamar de momentos constitucionais.

Em outras palavras, pode-se entender que as tentativas de dar sentido e


conteúdo a formas de Estado – que aparecem na literatura sob diversos nomes,
tais como: Estado de Direito, Estado Legislativo, Estado Social, Estado de Bem-
Estar Social, Estado Constitucional, Estado Democrático de Direito – impliquem
a percepção de que a história constitucional brasileira vivenciou algumas fases,
que, por sua vez, dentre outros tantos aspectos, podem ser caracterizadas pela
predominância de um ou de outro braço do Estado na tomada de decisão jurídica,
compreendida lato sensu, isto é, como o processo de construção de respostas
possíveis, provenientes dos mais diferentes setores em disputa, para a pergunta
sobre “o que é o Direito”.

Aliás, isso não é peculiaridade do contexto brasileiro, podendo também


ser visualizado a partir das experiências de outras tradições jurídicas. É o que nos
apresenta, por exemplo, a obra de Raoul C. van Caenegem¹⁰⁴, quando trata, sob a
perspectiva histórica, da existência de diferentes fontes do direito ocidental,
especificamente: nos Estados Unidos e na Inglaterra, o direito dos juízes; na
Alemanha, o direito dos professores; e na França, o direito legislado. É claro que
o fio condutor da abordagem realizada por Caenegen tem outra finalidade, muito

104 CAENEGEM, Raoul Charles van. Juízes, legisladores e professores. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 4 75
mais relacionada a refletir sobre as origens dos sistemas jurídicos (traçando
diferenças entre civil e common law). Entretanto, ainda assim, é possível verificar a
existência de um ponto de contato com a percepção de que a construção de
sentidos no direito tem como palco certas disputas institucionais.
Voltando ao contexto brasileiro, pode-se afirmar que a atuação dos três
Poderes reflete a mobilização de outra relação: as tensões entre Direito e Política.
E esse parece um ponto de partida importante a ser compreendido. A dinâmica
Direito-Política abre um diversificado leque para teorizações. Podemos pensar,
por exemplo, nas contradições (e associações) entre democracia e
constitucionalismo; ou, ainda, nas diferenças existentes na construção da
legitimidade das decisões que constituem cada um desses dois sistemas sociais; e
no contraste entre as competências funcionais das instituições que poderíamos
considerar tipicamente políticas, como é o caso do Executivo e do Legislativo, e
aquelas atinentes às instituições jurídicas, os órgãos do Poder Judiciário. Tudo
isso é possível. E talvez muito mais.

Mas há um ponto sensível ao constitucionalismo brasileiro que está


submerso, enraizado nesse diálogo entre Direito e Política, e que, particularmente,
gostaria de dar destaque. Ainda que o Direito e a Política sejam dois polos
distintos dessa dinâmica – e, por isso mesmo, poderíamos apontar diferenças
sistêmico-estruturais e de legitimidade para a tomada de decisões –, seus pontos
de conexão tornam possível a materialização de algumas concepções chaves para
contextos democráticos: bom funcionamento institucional; efetividade de
direitos; atendimento a (renovadas) demandas sociais, citando aqui apenas o que
poderia ser pensado como o mínimo das projeções da democracia sobre o agir do
Estado. Em outras palavras: a conexão entre o Direito e a Política garante,
simultaneamente, dinamicidade e estabilidade às expectativas democráticas.

Na verdade, isso reflete ainda outra questão. E é exatamente nesse ponto


que gostaria de chegar de forma ainda mais contundente, a fim de construir os
pressupostos para o(s) problema(s) que pretendo abordar na sequência.
Politicamente, na efervescência da contraposição de ideias, em um cenário ótimo
de deliberação pública, na capacidade de exposição pública de gostos e
contragostos, são construídos imaginários sobre o que se espera do Estado e de
suas instituições (ainda que inexista a horizontalidade esperada nesses processos;
ainda que consideremos que essas formulações sejam produto de uma ou de outra
forma de dominação). A isso corresponde uma dimensão hermenêutica-
7
76 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

paradigmática sobre as responsabilidades do Estado. Afinal, fundamos o Estado – e


modelos de Estado – pelo Político¹⁰⁵.

Todavia, ao mesmo tempo em que essa compreensão hermenêutico-


paradigmática¹⁰⁶ pode determinar o papel do Estado, ela também acontece – como
condição de possibilidade – a partir daquilo que foi minimamente desenhado por
vias institucionais, como é o caso dos processos constituintes, que são, justamente,
fundantes, até mesmo sob a perspectiva formal/procedimental. Por isso, é possível
afirmar, com Gilberto Bercovici, que “(...) questões constitucionais essenciais são
políticas”¹⁰⁷. E, assim, nessa perspectiva de imbricação entre elementos
hermenêuticos e institucionais, constituições garantem previsibilidade à relação
Direito-Política e, simultaneamente, proporcionam sua dinâmica, porque criam
possibilidades (institucionais) de incorporar ou canalizar expectativas
democráticas.

E por que isso interessa particularmente às preocupações centrais deste


texto? Acontece que, ao longo da história brasileira, a relação Direito e Política
sempre esteve permeada por fortes tensões – seja pela existência de intenções (e
intervenções) políticas que minavam o bom funcionamento das instituições
jurídicas e, até mesmo, a efetividade de direitos; seja por um direito que legitimava
práticas insensíveis a (novas) demandas políticas, fazendo do próprio arcabouço
jurídico, e da obediência a seus adequados procedimentos, o instrumento para
neutralizar o atendimento de pautas político-sociais. A partir do constitucionalismo
democrático insurgente no pós-88, essa relação parecia ter se libertado da
dinâmica de sobreposição, passando a assumir um tom conciliatório. Não por
outro motivo, nossa Constituição é compreendida como o elo entre o Direito e a
Política, ou seja, não apenas como um documento para explicitação de meras
intenções políticas sem força normativa (sem cumprimento obrigatório),

105 Em que pese venha tratando, ao longo deste texto, da relação Direito-Política, considero relevante,
especificamente para este momento quando trato daquilo que funda o Estado, a adotar a distinção entre a
Política e o Político, proposta por autores como Chantal Mouffe. O seguinte trecho do livro de Mouffe justifica
a minha opção: “Se quiséssemos expressar essa distinção de maneira filosófica, poderíamos dizer, recorrendo ao
repertório heideggeriano, que a política se refere ao nível ‘ôntico’, enquanto o político tem a ver com o nível
‘ontológico’. Isso significa que o ôntico tem a ver com as diferentes práticas da política convencional, enquanto
o ontológico refere-se precisamente à forma em que a sociedade é fundada”. MOUFFE, Chantal. Sobre o político.
Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.
106 Lenio Streck foi quem, de modo inaugural, desvelou a dimensão hermenêutica que atravessa o Direito.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
107 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: para uma crítica do constitucionalismo. 3. ed. São Paulo: Quartier
Latin, 2020. p. 14.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 4 77
tampouco como simples documento técnico-burocrático destinado
exclusivamente à organização do poder.

No contexto brasileiro, portanto, o sentido de Constituição passa a


corresponder à dupla expectativa da democracia, isto é, tanto àquilo que diz
respeito a assegurar os direitos de liberdade contra o arbítrio do Estado (sem os
quais, numa perspectiva contramajoritária, não há democracia possível) quanto
ao direcionamento do agir político, criando responsabilidades ao ente estatal e
determinando a execução de ações positivas (em atendimento às demandas
democráticas, que exsurgem do tecido social). Nesse diálogo entre Direito e
Política, portanto, nossa Constituição impõe o mínimo, como redução do espaço
de governabilidade quando se trata da preservação de direitos intocáveis, e
projeta o máximo, possibilitando (e determinando, de modo programático) ao
Estado vias de interlocução com a sociedade, exigindo-lhe criatividade para
promover a canalização institucional – a implementação – das demandas sociais.

Esse é o lugar do novo que nos constitui como sociedade há mais de 30


anos, desde 1988. E, apesar de ser fácil dissertar sobre isso, porque a arquitetura
constitucional em nosso País é muito autoevidente sobre o que se espera do
Estado, as práticas institucionais ao longo desse período vêm tornando a
dinâmica entre Direito e Política uma relação difícil. Apesar do anúncio da aurora
da Constituição, ao longo da nossa recente trajetória constitucional, talvez nunca
essa relação tenha sido tão afetada por crises como na última década.

É assim que, como já referido a partir da introdução, desde as


manifestações em 2013 – que colocaram o povo na rua em defesa de suas pautas
e, com isso, tornou a sociedade mais alerta com a vida política –, a dinâmica entre
Executivo, Legislativo e Judiciário passou a ser qualificada não mais por
predominâncias ou ênfases, mas por tentativas de sobreposições institucionais, algumas
delas até bem-sucedidas sob determinadas circunstâncias. Mas o que isso
significa? Significa que Legislativo, Executivo e Judiciário, a partir do que pode
ser chamado de “falhas sistêmicas das democracias”¹⁰⁸, têm investido em
tentativas de monopolizar o debate público, sobrepondo-se à atuação um do
outro.

Isso pode ser observado quando o Judiciário toma para si a


responsabilidade de fazer a boa política por meio de decisões judiciais. Ou quando
o Executivo passa a governar com o excessivo manuseio de medidas provisórias.

108 ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 71.
7
78 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

Por fim, quando o Legislativo monopoliza a agenda política apenas para fazer
oposição. Tudo isso podem ser, sim, condutas eventuais. Mas também podem
caracterizar a insurgência de alguns fenômenos, como é o caso, por exemplo, do
populismo, que ganham ares de perenidade quando assentados num discurso de
naturalização. Afinal, tudo isso acaba sendo justificado por sentimentos de
insatisfação, abandono e ressentimento¹⁰⁹, que atingem a sociedade na medida em
que o atendimento de suas demandas é frustrado pela atuação de qualquer um
dos três Poderes. É o que passarei a tratar com mais detalhes na sequência.

3. SOBREPOSIÇÕES INSTITUCIONAIS: SUPREMACIA JUDICIAL CON-


SENTIDA, POPULISMO E SELETIVISMO LEGISLATIVO

A princípio, podemos visualizar a materialização dessas tentativas de


sobreposições institucionais a partir de dois grandes eixos. É possível que
pensemos em ações isoladas, posturas institucionais eventuais, que representam
iniciativas – nem sempre conscientes – de monopolizar o debate público,
centralizá-lo a partir de tomadas de decisões com exclusividade por quaisquer
dos três Poderes, caracterizadas como distorções institucionais. Mas também é
provável que, na medida em que, discursivamente, esse tipo de prática eventual
se justifica (naturalizando-se) e se legitima (na insatisfação popular), ela passe a
consolidar certos fenômenos, atribuindo ainda maior complexidade à questão.

O que se busca explicitar nesse momento é que, em contextos


democráticos frágeis, como é o nosso, cada um dos Poderes é capaz de gerar suas
próprias distorções. Em relação ao Judiciário, podemos perceber que a
inexistência de um satisfatório vínculo de representatividade entre Legislativo e
o povo pode conduzir a tentativas de ocupar essa espécie de vazio democrático por
definições judiciais. É nesse contexto que a intervenção judicial assume perspectiva
majoritária, centralizando nesse espaço institucional pouco deliberativo a tomada
de decisão sobre pautas sensíveis, socialmente controversas.

Como já mencionado acima, isso pode acontecer pontualmente (e de


forma não persistente, sem caracterizar um padrão), limitando-se à (infeliz)
eventualidade de um julgamento. Mas, por outro lado, é possível, também, que se
consolide um perfil institucional que incorpore esse apelo representativo. E é,
então, que a intervenção do Judiciário vai, pouco a pouco, ganhando ares de

109 ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 71
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 4 79
supremacia judicial. Nesse sentido, entendo que a concepção de supremacia
judicial no Brasil possui um triplo desdobramento: a tese de que o Judiciário é
fonte exclusiva de construção de sentidos para o Direito, sendo dotado de uma
autoridade interpretativa exclusiva; a ideia de que o Judiciário possui maiores
condições técnicas de avaliar e garantir o atendimento a demandas sociais,
possuindo autoridade política; e a crença de que as instâncias judicias possuem
maior aptidão para resolver as controvérsias sociais, associada à confiança nelas
depositadas, o que, por sua vez, é garantido por uma autoridade simbólica.
Considero, ainda, que o exercício dessas autoridades muitas vezes é consentido
pelos demais Poderes, com o intuito de evitar desgastes eleitorais. Daí a noção de
que a supremacia judicial no Brasil é consentida¹¹⁰.

No fundo, a supremacia judicial (consentida) diz respeito a uma leitura


sobre a projeção política do papel exercido pelo Judiciário. Por isso mesmo, em se
tratando de uma ideia de monopólio da tomada de decisão por um único poder
constituído, importa referir que tanto a judicialização da política – inerente a
contextos com ausência de concretização de direitos – quanto o ativismo judicial
– decisões judiciais pautadas por critérios não jurídicos – atravessam a noção de
supremacia judicial no Brasil. Ainda, a supremacia judicial produz a existência de
uma solução verticalizada para problemas ínsitos à arena política e, portanto, à
deliberação pública, que se pressupõe constituída de horizontalidade, por
maiores que sejam as dificuldades para garanti-la.

Por outro lado, não apenas o Judiciário é o palco de distorções


democráticas. Isso também acontece em relação ao Poder Executivo.
Recentemente, é possível visualizar a existência de uma postura institucional da
Presidência caracterizada pela excessiva edição de medidas provisórias e
decretos. Por si só, isso já pode ser traduzido em processos formais de
centralizações decisórias no Executivo. Contudo, para além disso, a sociedade
brasileira convive com manifestações (pronunciamentos) que estimulam
soluções controversas a problemas que não podem ser resolvidos com a ação
exclusiva da Presidência. A persistência desse perfil institucional do Executivo
conduz ao populismo como possível manifestação de sobreposição entre os
Poderes.

110 TASSINARI, Clarissa. A supremacia judicial consentida: uma leitura da atuação do Supremo Tribunal Federal a
partir da relação direito-política. Tese de Doutorado. PPG Direito. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 2016.
8
80 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

Sérgio Abranches afirma que o populismo é um fenômeno recorrente,


que “(...) assume formas recondicionadas às circunstâncias de cada época”¹¹¹. Na
atual conjuntura, isso está relacionado, também, a uma nova forma de fazer
política, na qual “(...) as pessoas apegam-se mais fortemente às suas afinidades
afetivas, às identidades que lhes dão mais autoestima e segurança”¹¹². E, assim, o
populismo se constitui a partir de uma “(...) homogeneidade das massas
populares”¹¹³, numa tentativa de implementação de demandas sociais através de
uma relação pessoal e direta com um líder carismático. Ocorre que a principal
característica de atendimento social corresponde, também, a “uma politização à
margem dos canais institucionais existentes”¹¹⁴. Isso porque, a partir de um
discurso mítico, o populismo “(...) mina a burocracia necessária à impessoalidade
– que, entre outros fatores, caracteriza o Estado de Direito – e, ao alimentar toda
sorte de ativismos – como rápido caminho à satisfação popular – procura,
também, reescrever a Constituição”¹¹⁵. Mais uma vez, aqui, visualiza-se a
materialização de tentativas de sobreposições institucionais, agora direcionadas ao
Poder Executivo.

Ao final, talvez o caminho mais difícil seja observar as distorções


institucionais relacionadas ao Poder Legislativo. É possível que essa dificuldade
esteja vinculada ao fato de que esse talvez seja o braço mais desacreditado do
Estado, por sua inércia, por tudo o que ele não nos representa. Dito isso, a verdade
é que o presidencialismo de coalizão, expressão criada por Sérgio Abranches¹¹⁶,
foi a primeira conexão que fiz com a caracterização de um perfil para o
Legislativo. Entretanto, seria o presidencialismo de coalizão um elemento de
distorção institucional que afeta esse braço do Estado?

E é aqui que podem ser constituídos os maiores mal compreendidos em


relação ao tema. O presidencialismo de coalizão – entendido como a necessidade
de acordos entre Parlamento e Presidência para gerar governabilidade – faz parte
do jogo democrático (pelas características de nosso sistema político-partidário).
Aliás, ele pode ser pensado como “solução institucional” que afeta a relação entre

111 ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 79.
112 ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. p. 62.
113 INCISA, Ludovico. Populismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de política. 13. ed. Brasília: Editora UnB, 2010. v.2. p. 981.
114 INCISA, Ludovico. Populismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de política. 13. ed. Brasília: Editora UnB, 2010. v.2. p. 985.
115 COPELLI, Giancarlo Montagner. O populismo como problema jurídico: conceito e impactos do discurso
populista no Estado Democrático de Direito. Revista Direito (Mackenzie). 2021. (artigo inédito e aceito).
116 ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados: Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-33. 1988.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 4 81
a eleição presidencial e a representação proporcional no Congresso quando o
presidente não possui a maioria, tornando possíveis a efetivação de medidas
governamentais¹¹⁷.

Apesar disso, a forma como o Congresso Nacional vem materializando


– por suas práticas – esse complexo fenômeno está longe de ser imune a críticas.
Afinal, embora o presidencialismo de coalização seja importante para produzir
governabilidade, ele também “(...) se tornou um problema para ela, assim como
para a efetivação de uma agenda política progressista”¹¹⁸. Sérgio Abranches,
inclusive, abriu um capítulo específico para tratar do que ele chama de “crise do
presidencialismo de coalizão”. Para o autor, com a desorganização do sistema
político-partidário, “(...) os partidos passaram a orientar o jogo político para a
formação de coalizões majoritárias, independentemente do partido vencedor da
disputa presidencial”¹¹⁹. Isso é reflexo, também, da postura da Presidência da
República nos primeiros movimentos de mandato, que recusou o
“enquadramento institucional do presidencialismo de coalizão”, exercendo
preponderantemente suas possibilidades legislativas, incentivando um
“protagonismo retaliatório do parlamento”¹²⁰.

A expressão utilizada por Sérgio Abranches – “protagonismo


retaliatório do parlamento” – talvez possa ser um caminho para tratar do
problema das tentativas de sobreposições em relação ao Legislativo. E, no fundo,
ela nos remete a outro problema, bem explicitado por Leonardo Avri�er: “(...)
mesmo que o presidencialismo de coalizão tenha sido capaz de produzir uma
forma estável de governabilidade (...), esta foi restrita, no sentido de
frequentemente ter colocado em questão a legitimidade e a estabilidade do
sistema político”¹²¹.

Aqui – em relação ao Poder Legislativo –, talvez a questão da


legitimidade seja o que importa mais. A fragmentação partidária, que se justifica
tanto pela ausência de coerência interna nos partidos políticos quanto pela falta
de construção de um elo de representatividade com os eleitores¹²², tem produzido
um tipo de tensão entre a Presidência e o Poder Legislativo que passa a ser

117 AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 29.
118 AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 29.
119 ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 154.
120 ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 156-157.
121 AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 46.
122 MIGUEL, Luis Felipe. Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil. Sinais Sociais, Rio de
Janeiro, n. 33, v. 11, p. 99-129, jan.-abr. 2017. p. 107.
8
82 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

orientada por confrontos político-partidários, sufocando o interesse público ou


deixando-o em segundo plano. É claro que, no funcionamento do
presidencialismo de coalizão, isso também já poderia existir. Mas, ainda assim,
produzia algum tipo de diálogo institucional, voltado à governabilidade. Ou seja,
o presidencialismo de coalizão tem muito mais relação com equilíbrio
institucional do que com protagonismos; ele tem muito mais de dinâmica
democrática, algo que tentativas de monopolizar o debate via sobreposições
institucionais não têm.

Por isso, começo a pensar que essa recusa ao presidencialismo de


coalizão pela Presidência da República e a forma como o Legislativo reage a isso
produz algo que – na falta de melhor expressão –, por enquanto, arrisco a chamar
de seletivismo legislativo. O Congresso Nacional, tão caracterizado por sua apatia
ou por sua inércia, gerando o que ficou conhecido como crises da democracia,
torna-se ativo e produtivo para garantir a incorporação de agendas reformistas
(como a reforma da previdência ou a trabalhista) ou para reagir às propostas do
Executivo, motivado por uma espécie de disputa política permanente (ainda que
muitas vezes sua intervenção tenha sido para retirar das propostas executivas
conteúdos contrários à cultura democrática). Ou seja, há uma espécie de seleção da
pauta política, que antes vinha sendo construída com a participação da Presidência
de República, que pouco incorpora a representatividade, constituindo-se de
disputas ideológico-partidárias.

Talvez isso não seja nenhuma novidade. E é possível que essa seja ainda
uma construção muito precária. E parece-me que é preciso aprofundar ainda mais
nessa visão sobre o papel do Legislativo nessa dinâmica pautada por disputas e
tensões. Minha intenção, aqui, foi arriscar algum tipo de leitura, e provocar
possíveis compreensões sobre o problema. É, portanto, o argumento que precisa
ser melhor e mais testado, mas, ainda assim, arrisquei expô-lo aqui. Para finalizar:
supremacia judicial, populismo e seletivismo legislativo. A questão, ao final, fica
sendo: quanto de estabilidade institucional e de qualidade democrática esses
fenômenos são capazes de produzir? Talvez esses sejam os maiores desafios da
democracia.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A preocupação central do capítulo consistiu em analisar criticamente as


tensões existentes entre os três Poderes. Por isso, tomou como pressuposto a
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 4 83
compreensão dessas tensões como tentativas de sobreposições institucionais, que se
justificam numa espécie de descompasso entre o Direito e a Política (ou entre
perspectivas hermenêuticas e institucionais sobre as responsabilidades estatais).
Assim, na ausência do atendimento à pluralidade de expectativas sociais e
normativas, surgem posturas eventuais do Legislativo, do Executivo e do
Judiciário, que pretendem monopolizar o debate público, tomando para si
competências que não correspondem ao desenho institucional existente e
projetado para suas intervenções. Tudo isso acaba sendo naturalizado por
discursos de insatisfação social, caracterizando fenômenos complexos e que
podem ser duradouros (não eventuais), como a supremacia judicial, o populismo
e o seletivismo legislativo.

Diante de tudo isso, ao final, gostaria de passar por mais alguns pontos
que me parecem centrais para a discussão proposta, porque revelam importantes
desdobramentos do que foi tematizado ao longo do texto. Parece-me claro que, na
raiz do problema do que venho tratando como tentativas de sobreposições
institucionais está, também, a crise de representatividade. E talvez esse seja o
maior dos desconfortos democráticos pelo qual o Brasil vem atravessando, pelo
descompasso criado entre as expectativas de representação, que se extraem da
voz das ruas, e aquilo que realmente acontece no ambiente institucional.

Problematizando ainda mais esse ponto sobre as dificuldades


representativas, Luis Felipe Miguel¹²⁴ afirma que a sociedade brasileira convive
com “assimetrias de recursos e de poder” no sistema político, e que isso produz
alguns impactos significativos na forma de compreender a representação.
Acontece que a existência dessas assimetrias não significa que os cidadãos não
participem do debate público que antecede a tomada de decisão política, mas,
sim, que isso acontece de modo mais marginal e isolado. Para além disso, como
produtos desses processos, na maioria das vezes, são estabelecidas “(...)
percepções do funcionamento da política que são decerto ingênuas”¹²³.

É nessa dimensão de uma possível ingenuidade social sobre o que se


espera daqueles que foram eleitos para representar que se desenvolve uma
“concepção ‘popular’ da representação política”, nas palavras de Miguel. Por sua
vez, essa concepção compreende o representante como “(...) um intercessor e a
relação significativa é a de proteção. Aquele que exerce a função de representação

123 MIGUEL, Luis Felipe. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2017. p. 64.
124 MIGUEL, Luis Felipe. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2017. p. 65.
8
84 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

é alguém que tem acesso a bens controlados pelo Estado¹²⁵ (...)”. Dito de outro
modo, a sociedade cria imaginários de representatividade, em que o direcionamento
de demandas aos braços do Estado pode ser traduzido no desejo de acolhimento
e proteção, que, na maioria das vezes, não é correspondido ou acaba sendo mal
correspondido pelos Poderes destinatários desse tipo de endereçamento social.
Como consequência, talvez isso permita a existência de exigências sociais com focos
de representatividade itinerantes.

Assim, ao parar para refletir sobre tudo isso para elaborar as


considerações finais, visualizei a construção de um imaginário que concebe a
representatividade – em suas conexões com os três Poderes – a partir de um
movimento pendular, conduzido pela mobilidade das pretensões sociais. Nesse
contexto, metaforicamente, a representatividade sai, de modo não definitivo
(pelo menos é o que se espera), de seu local de origem, o Poder Legislativo, em
direção aos demais braços do Estado (Executivo e Judiciário), constituindo-se
como pontos de repouso. E, assim, oscilando entre loci distintos de tomadas de
decisão, com impactos igualmente diferentes na Política e no Direito, esse modo
de conceber a representatividade pode romper com a estabilidade que é própria
da dinâmica intra e interinstitucional, especialmente quando associada a
tentativas de sobreposições entre Poderes – porque, nesses casos, passa-se a tratar
esses pontos de repouso da concepção de representatividade pendular com
exclusividade, com ares de monopólio institucional. Ao mesmo tempo, também é
possível – mas talvez improvável – que, nesse movimento itinerante de destinação da
representatividade, finalidades constitucionais sejam, de fato, atendidas no que diz
respeito ao desenho projetado para essas instituições, garantindo estabilidade.

Disso podem surgir outras inquietações. Afinal, o que justifica o


Judiciário ser o destinatário da representatividade? Quais os limites que o
Executivo encontra – na Constituição e na legalidade constitucionalmente
produzida – para elaborar sólidas e criativas estratégias governamentais, vertidas
em medidas institucionais eficazes e duradouras, que satisfaçam os interesses da
sociedade? Qual a capacidade que possui o Legislativo de manifestar,
institucionalmente, representatividade? Todos esses questionamentos são
provocações, convites a pensar criticamente os mais recentes acontecimentos no
Brasil, antes e depois da pandemia, triste evento que tornou mais agudos os
problemas que já se enfrentava há algum tempo. No fundo, essas perguntas são

125 MIGUEL, Luis Felipe. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2017. p. 66.
Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 4 85
impulsionadas pela expectativa de equilíbrio institucional que é pressuposta a
Estados democráticos; no fundo, elas dizem respeito a preocupações democráticas.

A associação da ideia de movimento itinerante da representatividade – ou de


representatividade pendular que perpassa os três Poderes – com preocupações
democráticas (ou com possíveis ataques à democracia) merece uma atenção
especial, para evitar mal-entendidos. Não estou afirmando, aqui, que a dinâmica
de endereçamento da representatividade a outras instituições, e não apenas ao
Poder Legislativo, seja, a princípio, um problema. Entendo que, sob diferentes
perspectivas, os distintos braços do Estado (e, até mesmo, instituições para além
dos três Poderes, como é o caso do Ministério Público), devem agir de modo a
atender a algum tipo de expectativa social, numa espécie de representatividade em
sentido amplo. Sob essa perspectiva, minhas maiores preocupações, para efeitos da
redação deste texto, podem ser organizadas em quatro argumentos.

Primeiro, os perfis institucionais desejáveis, aqueles desenhados


constitucionalmente como bom funcionamento das instituições, produzem algum
tipo de expectativa social (aquela segundo a qual o agir estatal está de acordo com o
que foi previsto normativamente, e isso também consiste num pacto social).
Segundo, as constantes renovações de pautas políticas, permeadas por demandas
direcionadas ao Estado, também produzem algum tipo de expectativa social (um
imaginário de representatividade, que, devido a um ambiente de frustração,
direciona o desejo de atendimento estatal a várias e quaisquer instituições). Terceiro,
parece-me que, na conjugação entre esses dois primeiros pontos, é preciso
compreender que, se a estrutura do Estado está fundada material e
operacionalmente também na democracia, grande parte de suas instituições
possuem algum tipo de representatividade em sentido amplo. E, então, a questão
fundamental consiste em compreender as diferenças entre elas: o Legislativo é
representativo quando, de fato, aciona o processo legislativo para tratar de novas
demandas político-sociais; o Executivo é representativo quando formula políticas
públicas – age de modo a atender expectativas sociais de modo duradouro e
institucional; e o Judiciário é representativo por reflexo da democracia¹²⁶ –
representativo em sentido amplo, para dissociar bem esse argumento de teses que
afirmam o poder majoritário dos juízes e tribunais –, quando produz decisões que
não visam a canalizar as vozes da rua, mas que protegem os direitos de minorias

126 A ideia de legitimidade do Judiciário por reflexividade é extraída da obra de Pierre Rosanvallon.
ROSANVALLON, Pierre. La legitmidad democrática. Imparcialidad, reflexividad y proximidad. Traducción de
Heber Cardoso. Barcelona: Paidós, 2010.
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86 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

e que compreendem os limites de sua atuação. Quarto, talvez o maior risco à


democracia seja a aposta em monopólios da representatividade, isto é, o risco de
que esse movimento pendular estacione – em forma de imaginários sociais ou, até
mesmo, de práticas institucionais exorbitantes –, com exclusividade, em algum
polo de representatividade, fazendo com que um extremo anule o outro, gerando
desequilíbrio democrático.

Voltando, então, à metáfora da representatividade como pêndulo, há


algo ainda pior de ser observado em relação a esse quarto ponto. Acontece que
essa espécie de representatividade de passagem, como um pêndulo a se mover de um
lugar a outro – de uma instituição a outra –, com um tempo na maioria das vezes
pouco rítmico, nem sempre tem os três Poderes como destinatários de seu
movimento. Ao contrário, é possível que, de meros destinatários de uma
concepção de representatividade pré-constituída no imaginário social, essas
instituições assumam a condição de manipuladoras do pêndulo. E é nessa
manipulação da representatividade que surgem alguns pesadelos da democracia:
pretensões de legitimidade de atuação fundadas tão-somente em discursos de
autoridade (autoritários); simulacros de representatividade;
representatividade(s) homogeneizada(s), sufocando a pluralidade e a
divergência social, dentre outras questões.

E é pensando nesse movimento pendular das concepções de


representatividade, que perpassam os diferentes braços do Estado, que podem
surgir teses oportunistas – como a defesa da supremacia do Judiciário, como o
populismo do Executivo e o seletivismo (na falta de melhor expressão) do
Legislativo. Essas leituras teóricas das tentativas de sobreposições institucionais são
produtos dessas distorções representativas, que se fixam no imaginário social
justamente pelas insuficiências do Estado e/ou pelo longo período de desgaste
democrático – de carência na materialização da democracia – que o Brasil vem
passando, desde sua ruptura com a ditadura militar. Lancei nesse espaço
algumas ideias precárias sobre como compreender as relações entre os três
Poderes, a partir de tensões institucionais e do que elas possam representar para
democracia. Finalizo, então, com as palavras de Sérgio Abranches, porque são
capazes de melhor explicitar as minhas angústias acadêmicas: “Creio que os
constituintes desenharam um sistema institucional robusto e maleável para evitar
rupturas democráticas. Mas essa resiliência tem medida, não é elástica ao
infinito”¹²⁷. Precisamos refletir cada vez mais sobre isso.

127 ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 155.
DESFECHO
Entre Direito e política, um mal-entendido
democrático e o fantasma do populismo

Giancarlo Montagner Copelli


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88 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

DESFECHO:
Entre Direito e Política, um mal-entendido democrático
e o fantasma do populismo

Giancarlo Montagner Copelli

Para além da pandemia de Covid-19 que varreu o globo recentemente,


vamos mal. A pessimista conclusão que abre este desfecho pode ser depreendida
do relatório produzido pelo Instituto “Variações da Democracia”, ligado à
Universidade de Gotemburgo, na Suécia. Publicado em março de 2021, o
documento aponta para o Brasil como o quarto país, num universo de cerca de
duzentas nações, que mais se afastou da democracia. À nossa frente, além da
Polônia, apenas a Hungria de Viktor Orban e a Turquia de Recep Erdogan que,
“oficialmente”, já são autocracias.

Conjugando mais de quatrocentos indicadores diferentes, como as


liberdades de imprensa e de opinião política, assim como as do Judiciário e do
Legislativo frente ao Executivo, por exemplo, o estudo aponta para duas
conclusões – penso – mais significativas que a desonrosa posição no ranking possa
fazer supor.

A primeira delas é a de que o processo é longo e não reflete


imediatismos. Quero dizer, começamos a “perder pontos” há tempo, mais

128 Varieties of Democracy (V-dem). Disponível em: h�ps://www.v-dem.net/en/. Acesso em: 17 jun. 2021.
Conforme informa o sítio eletrônico em que os dados são informados, o estudo “mede a democracia” a partir de
um conjunto de dados que vai além da simples presença de eleições. O projeto V-Dem distingue cinco princípios
de democracia de alto nível: eleitoral, liberal, participativo, deliberativo e igualitário, e coleta dados para medir
esses princípios.
Giancarlo Montagner Copelli
DESFECHO 89
exatamente – ou mais significativamente – a partir de 2015, como aponta o próprio
relatório. Ou seja, nossa democracia foi (e está) deteriorando-se aos poucos, num
contínuo processo. A outra é que o Brasil – assim como os países que, por
enquanto, formam o “pódio” da (des)democratização no século XXI, não são
realidades isoladas num arquetípico mundo francamente democrático. De acordo
com o estudo, desde 1900, esta seria a terceira onda autocrática no globo, iniciada
em 1994 e que, pelo visto, está ainda longe de seu ápice.

Sobremodo essa segunda conclusão é não apenas surpreendente,


desafiando algumas (boas) imagens feitas da política mundial (principalmente no
pós-II Guerra), como, ainda, instigante ponto de partida para desdobrar o tema a
partir de questionamentos bastante específicos. Talvez o principal deles
interrogue pelas circunstâncias a impor retrocesso não apenas aqui, mas em
tantas nações do globo, mesmo sendo a democracia considerada a forma política
que melhor promova simultaneamente liberdade e igualdade.

O que há de errado, então, com o “produto”?

Quais as razões do desprestígio?

Há algumas possibilidades argumentativas para ensaiar resposta,


afunilando narrativas em certas demandas não satisfeitas, com uma conclusão
mais ou menos geral ao problema proposto. O grande ponto é que, talvez, o nicho
pouco explorado da questão dialogue com uma certa imprecisão conceitual do
que seja, numa intersubjetiva linguagem pública, “democracia”. A idealização
faria esperar do regime justamente aquilo que ele não pode entregar.

Explico meu ponto. Grosso modo, o modelo democrático é


compreendido, possivelmente num nada sutil mal-entendido, como aquele
caracterizado por uma irrestrita vontade geral, bem refletida nas maiorias
(eleitorais) de um povo que, no fim das contas, é “soberano”. Nada de novo. E
nem ingênuo. Carl Schmi� mesmo, na sua crítica a Weimar, já dizia que a ordem
constitucional só poderia ser chamada “democrática” se o povo, como soberano
coletivo, pudesse revogar as normas do Estado Democrático de Direito por ele
mesmo estabelecidas¹²⁹.

De todo modo, ainda que não se conte com a sofisticação schmi�eana, o


cerne é: se esse é “o conceito”, então não há totem a velar o tabu do processo

129 Como bem vai lembrar Heiner Bielefeldt, na sua filosofia dos Direitos Humanos. BIELEFELDT, Heiner. Filosofia
dos Direitos Humanos. Fundamentos de um ethos de liberdade universal. Tradução de Danwart Bernsmüller.
São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000.
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90 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

civilizador. Tudo pode. O Direito desprende-se de sua autonomia, porque os


limites da interpretação confundem-se com os limites da assujeitadora vontade
do intérprete que, nas democracias, é não apenas um caminho, mas o caminho
(eleitoral) ao poder. Eis o risco: não há apenas tentação na vontade desse mesmo
sujeito, mas tentação em atender a vontade do indivíduo que forma maiorias
eleitorais.

Embora paradoxalmente seja justamente a partir desse estado de coisas


que não se vislumbra um ambiente democrático – sintética e principalmente
compreendido como um remédio contra maiorias eventuais –, o fato é que
sociedades complexas – como a que abriga esse mesmo sujeito democrático cioso
dos seus singularíssimos direitos – percebem-se sistematicamente confrontadas
com problemas de mesmo nível. Ou seja, igualmente complexos e, em alguma
medida, também institucionalmente insolúveis, ainda que legítimos, permitindo
com isso não apenas alargados níveis de incerteza e insegurança entre os
participantes dessa mesma comunidade política – inclusive e preocupantemente
– em relação à concretização de direitos. Por todos, pensemos nos direitos sociais
contemporaneamente, por exemplo.

Assim, diante dessa indeterminação que, embora indesejável, é típica


da democracia, o que se tem são as portas abertas para o que até aqui se viu nesta
sintética obra: soluções míticas, demagógicas e – pior ainda – à margem da
Constituição, em nada solenes tentativas de moralizar o Direito – “anarquizando-
o”, portanto, como já na década de 1930 temia – e alertava – Hermann Heller¹³⁰.
Essa é a questão – ou a narrativa que tenta explicar, nos limites desse
texto, o declínio sistemático da democracia não apenas aqui, mas no globo, em
uma espécie de onda, como parece apontar o estudo sueco. De uma imprecisão
conceitual – alimentada, diga-se, a partir de todos os lados (política, jurisdição, o
próprio ambiente doméstico, redes etc.) –, a democracia figura em boa medida
gozando de péssima reputação – e por isso tão frágil à crítica, como agora se vê,
fomentando discursos populistas em tantos espaços da vida pública¹³¹.

Desvela-se, então, a cena contemporânea: forjados da combinação entre


democracia e demandas sufocadas, mas agudizados por esse indivíduo da
130 Como vai dizer o autor alemão na terceira parte de sua Teoria do Estado, no item O direito como condição de
unidade estatal. HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Mo�a. São Paulo:
Editora Mestre Jou, 1968.
131 Curioso – e talvez até mesmo alentador – é o fato de que Bobbio, já há muitas décadas, fazia essa mesma retranca
ao projetar o futuro da democracia. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio
Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
Giancarlo Montagner Copelli
DESFECHO 91
modernidade e sua vontade de poder, esses mesmos discursos parecem cada vez
mais distantes do ideal democrático bem refletido no “poder sem rosto” ou do
“poder como um lugar vazio” de que fala Claude Lefort¹³². Claro. O
esfacelamento institucional – incluindo aí os partidos políticos e suas agendas
representativas cada vez mais opacas – e as tipicamente populistas tentativas de
aniquilação do “inimigo” – sejam as espelhadas nas tais “elites brancas”, como
em um passado não muito distante já se disse, ou sejam aquelas bem
representadas naquilo que tão abstratamente se nomina como “comunistas”,
como a contemporaneidade não nos cansa de lembrar a vagueza desse assombro
– dão forma a esse estado de coisas: o poder, que em alguma medida já
desprende-se da política, privatizando espaços públicos na contramão do
conceito de política de Francis Wolf¹³³, passa a associar-se à imagem do líder.
“Tem rosto”, portanto, e – seja à esquerda ou à direita da arena política – pode
flertar com o indeterminado, aproximando perigosamente suas narrativas
daquelas de traço totalitário, sobretudo verificadas na primeira metade do século
XX, em que a liderança já sequer identificava-se com o Estado (L’État c’est moi),
mas, sim, com a própria sociedade (La Société c’est moi)¹³⁴.

Intuo que – nos limites que fazem destas linhas mais um esboço
político-filosófico que uma pesquisa de traço estritamente acadêmico e seus
rigores – polarizações e radicalismos como os verificados, não de hoje, no Brasil,
são sugestivos deste cenário, que amplia-se em projeção geométrica na
velocidade das redes. O “poder sem rosto” da horizontalidade democrática não
é mais o “poder dos muitos inominados”, mas, sim, o “poder dos
propositalmente anônimos” para os quais, irremediavelmente, a democracia
falhou.

O líder encarna justamente esse “sentimento”, desfazendo-se,


entretanto, da arquitetura partidária e de sua agenda reivindicativa, de suas

132 LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Tradução de Eliane
Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
133 WOLFF, Francis. A invenção da política. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
134 “Nas últimas linhas de sua obra sobre Stalin, que a morte não lhe permitiu acabar, Trotski ousou escrever:
‘L’État c’est moi! é quase uma fórmula liberal em comparação com as realidades do regime totalitário de Stalin.
Luís XIV se identificava apenas com o Estado. Os papas de Roma se identificavam com ao mesmo tempo com o
Estado e a Igreja, mas somente durante as épocas do poder temporal. O Estado totalitário vai muito além do
césaro-papismo, pois abarca a economia inteira do país. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pode dizer a justo
título: ‘La Société c’est moi’ ”. LEFORT, Claude. A invenção democrática. Os limites da dominação totalitária.
3.ed. rev. e atual. Tradução de Isabel Loureiro e Maria Leonor Loureiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011,
p. 89.
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92 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

plataformas e do grupo em torno das ideias que emprestam unidade à sigla, para
encarnar o desejo de eventuais maiorias eleitorais que se pressupõem
representativas de todo tecido social.

Essa “pretensão hegemônica” não é, claro, original. Mas frente a um


“fim da História”¹³⁵ imaginado a partir da corrosão dessas mesmas ambições,
atualíssimos ingredientes parecem reorganizar – no fio do tempo – o debate que
não tem, na verdade, fim: longe das romantizações típicas de um passado recente,
as redes não são as “ágoras hi-tec”, menos ainda o indiscutível canal para colocar
transparentemente o poder público em público, alusivamente a uma das
promessas não cumpridas elencadas por Bobbio¹³⁶. Vai negativamente além.
Longe da idealidade, as tais “ágoras” formaram o abrigo ideal àquele sujeito da
modernidade que, no limite, não mais assujeita o mundo a partir de suas
subjetivas cosmovisões, mas, sim, de suas muito íntimas vontades em ligação
direta com a pretensa liderança, ciosa dos dividendos políticos ofertados pelo
desvelar do “sentimento nacional”.

Como se vê, nessa engrenagem não apenas cada vez mais possível, mas
também mais robusta no avançar do século XXI, a estrutura política sedimentada
nos partidos e seus ideários plurais e representativos vai pouco a pouco
desfazendo-se. Ocorre que, como bem lembra Lefort, afirmar o lugar do poder
como um lugar vazio não significa afirmar a aniquilação do próprio poder. A
democracia horizontaliza – mas não elimina – esse mesmo poder. Isso significa
que o enferrujamento das siglas – os núcleos de poder a projetar alternância nas
democracias – pressupõe sua substituição: saem da arena os partidos como
entidades representativas, e entram rostos como a encarnação desse pretencioso
sentimento nacional formado não apenas pela “voz das ruas”, mas, sobretudo por
uma contemporânea “voz das redes”. O século XXI e suas peculiaridades tecno-
comunicacionais, cada vez mais velozes, tende a ser – muito por isso e no risco
corrido dessas projeções – o século dos populismos¹³⁷.

Em paralelo ao tom pessimista até aqui observado, a boa notícia é que,


diante da tentação populista cada vez mais sólida, não poderão desaparecer suas

135 Em alusão à famosa proposição de Francis Fucuyama, sinteticamente expressa na ideia de que o capitalismo e
a própria democracia constituiriam o último degrau da história da humanidade. FUKUYAMA, Francis. O fim
da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
136 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
137 Embora por razões nem sempre convergentes, o argumento vai no mesmo sentido de ROSANVALLON, Pierre.
El siglo del populismo: Historia, teoría, crítica. Tradução de Irene Agoff. Galaxia Gutenberg, S.L., 2020
Giancarlo Montagner Copelli
DESFECHO 93
condições de possibilidade, como de resto é a própria democracia. Há aí algo de
evidente: discursos demagógicos e, em alguns casos, também fortemente
contrários ao pacto (re)fundante do país, orientados à obtenção de vantagens
eleitorais ao procurar espelhar demandas institucionalmente não atendidas, só
fazem sentido em ambientes democráticos. Por outro lado, diante da emergência
dessa não apenas possível como, no mais, provável coexistência entre fenômeno e
forma políticos, questiona-se a qualidade da democracia no futuro.

Essa é a questão em aberto.

Que o tempo, enfim, nos diga algo sobre isso.


REFERÊNCIAS
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96 PENSANDO O POPULISMO: a partir de ensaios e perspectivas distintas

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ARTE-FINAL E DIAGRAMAÇÃO:

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