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i o fim do f i a ç ã o meramente política-
niii.i novu i | . 0,r|ínio ostensivo e a criação
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,ii . no seu livr^ ah- Pres'dente deposto de
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li.'i'iiilia precisa do qual, fazendo uma
, 1, line essência de.s a alual situação africana,
lo mostrar ,UjSc novo exercício de domi-
■li-' i . leoricamers,e o Estado que a ele está
ml..1nos exte ‘e’ independente e tem to-
.... .. Nu re«lidtirt,ores da soberan'a mter-
• portanto, seu siste, ’ seu s,stema econômico
, leniu ^ía político, é dirigido do
Mus Allien Meinty..
ileiliea explicita m e ,'1' no presente livro, não
................ I sc t,V e a anállse desse último
ui .in,p, t tjiio ^ ^ ma obra publicada já
^ ã o perdeu de forma al-
Retrato do Colonizado
Precedido Pelo
Retrato do Colonizador
Coleção O MUNDO, HOJE
volume 20

Ficha catalográfica

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

Memmi, Albert.
M487r Retrato do colonizado precedido pelo retrato do coloni­
zador; tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto
Coelho. 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
127 p. (O Mundo, hoje, v.20)

Do original em francês: Portrait du colonisé précédé du


portrait du colonisateur

1. Colônias 2. Imperialismo I. Título II. Série

CDD - 325.3
77-0050 CDU - 325.46
ALBERT MEMMI

Retrato do Colonizado
Precedido Pelo
Retrato do Colonizador

Paz e Terra
© Copyright by Editions Bucket/Chastel, Corrêa 1957

Título do original em francês:


Portrait du Colonise précedê du Portrait du Colonisateur

Capa: Mário Roberto Corrêa da Silva

Direitos desta tradução adquiridos pela


EDITORA PAZ E TERRA
Rua André Cavalcanti, 86
Fátima, Rio de Janeiro, RJ

1977

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Índice

I*l 1-fâcio — 1

I R etrato do C olonizador

1 — Existe o Colonial? — 21
2 -- O Colonizador que se recusa — 33
3 — O Colonizador que se Aceita — 51

II R etrato do C olonizado

1 • Retrato Mítico do Colonizado — 77


2 — Situações do Colonizado — 85
3 As Duas Respostas do Colonizado — 105
| um lusão — 121
Prefácio

O P ortrait du Colonisé, Précédé du Portrait du Colo-


nisateur, cuja tradução brasileira ora entregamos ao nosso pú­
blico, não é um livro recente. Editado há alguns anos, não
nos parece, no entanto, ter perdido a atualidade. Tornou-se
ao contrário, um livro clássico sobre o colonialismo, tendo
sido objeto, segundo estamos informados, de seminários e
debates em universidades européias e norte-americanas.
A esse livro de Albert Memmi, Jean-Paul Sartre dedi­
cou um artigo, posteriormente incluído no volume VII de
Situations, no qual se acham reunidos vários trabalhos sobre
colonialismo e neocolonialismo. No comentário intitulado
Une Victoire, escrito a propósito do livro de Henri Alleg,
La Question, Sartre se refere ainda uma vez a Memmi, cujo
pensamento, de certo modo, procura resumir. Acreditamos
que tal patrocínio seja suficiente para nos dar a medida da

1
importância deste livro “sóbrio e claro” que, segundo o au­
tor de L Ê tre et le Néant, se inclui entre as "geometrias
apaixonadas” e "cuja calma objetividade não passa da có­
lera e do sofrimento superados”.1
Ao reler, recentemente, o livro de Memmi, com o pro­
pósito de sugerir sua tradução para a nossa língua, o que
nos surpreendeu foi precisamente sua atualidade, embora
estejamos vivendo a fase histórica de liquidação, de "atroz
agonia" do colonialismo, ao menos em sua forma tradicional,
tal como se configurou após a guerra de 1870, e o partage '
du monde entre as grandes potências européias. Sim, por­
que o fim desse colonialismo, segredo da prosperidade e da
euforia metropolitana, pano de fundo da joie de vivre no
velho continente durante a belle époque, tão bem evocada
por Arnold Toynbee em Civilization on Trial, e cuja essên­
cia, feita de leveza, de graça, de elegância, mas de incons­
ciência também, se acha expressa exemplarmente na pintura
de Toulouse Lautrec e na música de Offenbach, o fim desse
colonialismo, não significa, necessariamente, o fim do colo­
nialismo.
Um lider negro, uma das figuras mais representativas
dessa nova geração de africanos, forjados nas lutas pela
independência das antigas colônias, Kwame N'Krumah, aca­
ba de publicar um livro cujo título, inspirado na obra clás­
sica de Lênin, é precisamente O Neocolonialismo — Último
Estágio do Imperialismo. Há, pois, um novo colonialismo
que, embora seja novo, nem por isso deixa de ser substan­
tivamente o mesmo. Ora, se o colonialismo perdura, embora
"novo”, quer dizer, assumindo novas formas, novas moda­
lidades, como poderia perder a atualidade e, portanto, o in­
teresse, um livro que nos fala do colonialismo, isto é, de
uma realidade, de uma situação humana, de um fenômeno
histórico que, longe ter desaparecido, permanece, sofrendo
apenas superficiais metamorfoses?
Apesar de conquistada a independência política, retira­
das as tropas estrangeiras de ocupação, nacionalizado o apa­
relho político e administrativo, os serviços públicos, os ban­
cos, as empresas agrícolas e as poucas indústrias eventual­
mente existentes, terá a antiga colônia conquistado realmente
1 Jean-Paul Sartre, Situations, vol. V, pág. 50.

2
a independência e expulso realmente a potência dominante?
Não, porque na luta contra o colonizador, ao recuperar-se
e ao afirmar-se a si mesmo, o colonizado, como escreve
Memmi, "continua a definir-se em relação a ele. Em plena
revolta, o colonizado continua a pensar, sentir e viver con­
tra o colonizador e a colonização e, portanto, em relação a
ambos”.- A descolonização é um processo lento, difícil e
doloroso, comparável à convalescença de uma longa e grave
enfermidade.
Não nos devemos iludir, aliás, com a imagem conven­
cional e tradicional do colonialismo. Consistindo essencial­
mente, como veremos, na dominação e na exploração de
grupos .humanos, de classes sociais, ou de povos uns pelos
outros, o colonialismo não só perdura, como acabamos de
salientar, nas antigas colônias, hoje convertidas em nações
politicamente soberanas, mas permanece também, na forma
de segregação racial, em países considerados democráticos,
como os Estados Unidos da América do Norte (para não
falar da África do Sul), ou recrudesce, pela marginalização
do povo do processo eleitoral e pela proscrição das lideran­
ças populares, nos paises da América Latina em que se ins­
tauraram ditaduras militares, por exemplo. A situação dos
negros nos Estados Unidos e a dos líderes de esquerda, ba­
nidos pelas ditaduras latino-americanas, não será, em mui­
tos aspectos, comparável à situação dos colonizados, nas
antigas colônias?
A insurreição, a revolta dos povos submetidos — pro­
tetorados, domínios, colônias, propriamente ditas, e povos
hoje chamados subdesenvolvidos, característica do tempo
em que vivemos — provoca o surgimento de novas formas
de imperialismo, menos ostensivas, menos visíveis, mas nem
por isso, menos eficazes. O controle da economia, dos meios
de comunicação, da publicidade, do dispositivo militar inter­
no, pode fazer-se sem lesão aparente da soberania nacional.
A criação dos mitos, dos esteriótipos, das neuroses e obses­
sões coletivas, como o anticomunismo nas áreas dominadas
pelos Estados Unidos, por exemplo, completa o processo
de ocupação, convertendo o país suposta ou aparentemente
Albert Memmi, Portrait dit Colonisé, Précédé du Portrait dn Colo-
nisateur, pág. 180.'

3
independente em satélite econômico e ideológico do centro
dominante.
Mereceria, aliás, um estudo especial o que poderíamos
chamar de colonialismo tecnológico, quer dizer, a dependên­
cia, do ponto de vista do know how e da formação de espe­
cialistas, em que se encontram os países atrasados em rela­
ção às nações altamente desenvolvidas. Já se assinalou que
o desenvolvimento se processa em progressão geométrica,
tanto mais se desenvolvendo um país quanto mais desenvol­
vido fôr. E também já se chamou a atenção para o fato de
que o desequilíbrio ou o contraste entre a riqueza dos paí­
ses ricos e desenvolvidos e a pobreza dos países atrasados,
longe de reduzir-se com o tempo, tem sido, ao contrário,
agravado, em virtude da rapidez com que se verifica o pro­
gresso tecnológico. Se desenvolvimento é industrialização, o
país que não dispuser de uma tecnologia própria ficará na
completa dependência dos países tecnicamente adiantados.
Não é, porém, dessa nova forma ou modalidade de co­
lonialismo que se ocupa o livro de Albert Memmi. Trata-se
de um ensaio sobre o colonialismo clássico, digamos assim,
em sua forma extrema, quase caricatural. Não é, no entan­
to, o trabalho de um turista curioso, de um economista ou
sociólogo remunerado pelas Nações Unidas, que houvesse
perambulado pela colônia carregando sua '‘objetividade" de
encomenda, e, em seguida, redigido um informe ou relató­
rio, enriquecendo assim seu curriculum vitae.
O livro de Albert Memmi, apesar de sua clareza, de sua
simplicidade, é também um testemunho humano, pois o dra­
ma do colonialismo ele não o viveu de fora, na qualidade
de mero espectador, mas o viveu na própria carne, na con­
tradição e no conflito que dilaceram a consciência do colo­
nizado que recusa a colonização. A experiência biográfica,
interpretada e iluminada por uma ideologia revolucionária,
converte a peripécia individual em instrumento de pesquisa
e de conhecimento sociológico, pois, se “as dilacerações da
alma” são “puras interiorizações dos conflitos sociais” —
como diz Sartre — “ é possível esclarecer os outros falando
de si mesmo”.'1
* Jean-Paul Sartre, Ob. c it., pág. 50.

4
Não há citações de autores, ou de "autoridades”, no
livro de Memmi, nem tampouco números ou estatísticas.
Deixará, por isso, de refletir a realidade, de nos revelar o
que há de essencial nesse mecanismo, nessa engrenagem
inumana, impiedosa, implacável, que, depois de desfigurar
e aviltar o colonizado e corromper p colonizador, desemboca,
inevitavelmente, no terrorismo e na tortura?
Mas, não nos antecipemos; procuremos reconstituir,
-mbora em suas linhas gerais, a estrutura e a lógica, ou me­
lhor, a dialética do processo colonial.
Para apreender e interpretar adequadamente o colonia­
lismo, que categorias, que instrumentos mentais deveremos
utilizar? A nosso ver, a apreensão do que há de essencial
nesse fenômeno, nesse processo histórico, requer o emprego
das categorias de totalidade, contradição, alienação e
dialética.
O primeiro pressuposto, portanto, que devemos admitir,
é o de que a situação colonial é um fenômeno social global.
Que é uma colônia, a Tunísia ou a Argélia, por exemplo,
até a vitória dos movimentos nacionais de libertação? Um
território, com determinada estrutura de recursos naturais,
certa flora e certa fauna, um equilíbrio ecológico, e uma po­
pulação com crenças religiosas, tradições, usos e costumes
peculiares, instituições politicas e sociais, formas próprias de
trabalho, etc. Nesse contexto, que é uma totalidade orgâni­
ca, o conquistador irrompe subitamente, ou ao cabo de uma
luta em que sai vitorioso. Pode ocorrer, como se verificou
nos Estados Unidos da América do Norte, o massacre, o ex­
termínio total das populações autóctones, que se rebelam
contra a captura e a domesticação. Em outros casos, como o
das colônias européias do Norte da África, ou do Continen­
te, de modo geral, a desproporção entre o número de colo­
nizadores e o de colonizados é de tal ordem que impede o
extermínio dos segundos pelos primeiros. E não só o núme­
ro, mas o estágio de desenvolvimento cultural a que chega­
ram esses povos.
Invadido o território, a ocupação se estabelece em ter­
mos militares, com a presença efetiva de forças armadas que
representam o poderio incontrastavel da metrópole. O dispo­
sitivo militar sustenta a máquina de domínio e de exploração,
a estrutura política e administrativa que coloca os recursos

5
naturais e a mão-de-obra colonial a serviço da nação colo-
nizadora. Embora representem insignificante minoria em re­
lação à população do país conquistado, os colonizadores
trazem com eles a superioridade científica e tecnológica, eco­
nômica e cultural, que lhes proporciona as condições de do­
mínio e controle do país submetido.
Montada a máquina, ou o "sistema” colonial, delineiam-
se as figuras que serão os principais protagonistas dessa
peripécia histórica, o colonizador e o colonizado. Em fun­
ção desses dois pólos, passa então a estruturar-se a vida do
país colonizado. Ora, que têm em comum uns e outros? Uns
são católicos, outros muçulmanos; uns são árabes, outros
franceses; uns são portadores de uma cultura mágica, ainda
no estágio feudal, outros de uma civilização científica, indus­
trial tecnológica, no estágio do capitalismo expansionista. No
que se refere ao estilo arquitetónico das casas, monumentos
públicos e templos religiosos, ao mobiliário, à indumentária,
à alimentação, aos usos e costumes, e pormenores da vida
quotidiana, nada há em comum. São dois mundos inteira­
mente diversos, totalmente heterogêneos e irredutíveis
ao outro.
Deverão, no entanto, esses dois mundos, embora hete­
rogêneos e irredutíveis, conviver um com o outro, "coabi­
tar” -— como diz Memmi. Desfeita a imagem convencional
do colonialista «— pioneiro generoso, humanista e filantro­
po, missionário da cultura e do progresso, evangelizador dos
incrédulos, etc. — e desmascarado o sentido econômico e
predatório da empresa colonial, em que fêrmos se poderá
estabelecer essa convivência?
Ao tornar-se colônia, digamos desde logo, o país se
converte em uma nova totalidade que, como vimos, passa a
articular-se em função dos dois pólos que se implicam e, ao
mesmo tempo, se opõem e excluem reciprocamente, o colo­
nizador e o colonizado. Por que se opõem e se excluem?
Apenas porque representam religiões, raças, línguas, cultu­
ras e civilizações diferentes, em distintos estágios de desen­
volvimento? Não, opõem-se e excluem-se reciprocamente
porque representam interesses antagônicos e irredutíveis.
Quais são os interesses do colonizador? Explorar os
recursos naturais do país e a mão-de-obra nativa pelo mais
baixo preço. Manter a colônia na situação de área produ-

6
tora de matérias-primas e generos tropicais e importadora
de manufaturas, isto é, dos produtos fabricados na metró­
pole. Quais são os interesses do colonizado? Converter a
colônia em um país independente, desenvolvê-lo economica­
mente, incorporar a ciência e a tecnologia modernas, elevar
a capacidade aquisitiva e o nível de vida de suas popula­
ções, e preservar, tanto quanto possível, a sua fisionomia
nacional.
Ora, esses interesses são totalmente incompatíveis uns
com os outros. Na primeira fase da colonização, as popu­
lações autóctones, sem condições de revolta, submetem-se
ao colonizador, acumpliciam-se e colaboram com a empresa
de domínio e exploração. Para assegurar o funcionamento
da máquina, porém, não basta ao colonizador a superiorida­
de militar e tecnológica, deve, além disso, legitimar ou ten­
tar legitimar o empreendimento, aos olhos do colonizado e
aos seus próprios olhos. Deve, pois, fabricar a ideologia do
colonialismo, tentativa de justificação, a posteriori, em ter­
mos racionais, do dominio e da espoliação a que submete o
povo conquistado. E, qual poderá ser o conteúdo dessa ideo­
logia? Só poderá ser uma superioridade do colonizador, que
implica obviamente, como contrapartida, a inferioridade do
colonizado. "Admitindo essa ideologia — escreve Memmi
— as classes dominadas (ou os povos) confirmam, de certo
modo, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, tam­
bém, a relativa estabilidade das sociedades, nas quais a
opressão é, bem ou mal, tolerada pelos próprios oprimidos”.4
Completa-se ou arremata-se, assim, com a fabricação
da ideologia, a nova totalidade em que se converte o país
colonial. Nada mais poderá escapar à engrenagem que se
monta, articulando e configurando a vida econômica, social,
política e cultural da colônia. O que não se insere no esque­
ma dessas relações, permanece na qualidade de resíduo, cos­
tume ou objeto exótico, curiosidade local, tolerada por ser
irrelevante ou desprezível. As redes do dispositivo de domi­
nação se estendem por todo o país, englobando em suas ma­
lhas todas as manifestações e formas da vida colonial. Com
isso queremos dizer que tudo é colonial na colônia, que tudo
se estrutura e define em função da empresa colonizadora.
4 Albert Memmi, Ob. cit., pág. 116.

7
Inútil exemplificar. Trabalho, «dministração, burocracia,
serviços públicos, educação, vida cultural, etc., tudo está
afetado pelos interesses da metrópole e disposto de acordo
com esses interesses.
A situação colonial é, pois, como dissemos, um fenôme­
no social global, uma totalidade. Essa totalidade, no entan­
to, é constituída por interesses antagônicos e inconciliáveis,
contraditórios, portanto. Em um primeiro momento, essa
contradição permanece latente, mascarada pela aparente e
provisória acomodação do colonizado. Convencido da supe­
rioridade do colonizador e por ele fascinado, o colonizado,
além de submeter-se, faz do colonizador seu modelo, pro­
cura imitá-lo, coincidir, identificar-se com ele, deixar-se por
ele assimilar. É o momento que poderíamos chamar da alie­
nação. Ocupado, invadido, dominado, sem condições para
reagir, nem ideológicas nem materiais, não pode evitar que
o colonizador o mistifique, impondo-lhe a imagem de si
mesmo que corresponde aos interesses da colonização e a
justifica. O colonizado se perde no “outro”, se aliena. Ten­
tará, pois, de acordo com a lógica desse movimento, levar
a alienação às últimas conseqüências, tornando-se ele pró­
prio um colonialista, casando-se entre os representantes da
metrópole, por exemplo.
Acontece que essa 'tentativa malogra, por ser contradi­
tória com a própria estrutura da situação colonial. Se todos
os colonizados se tornassem colonizadores, quem coloniza­
riam? Se o colonizador implica necessariamente, como termo
correlato, o colonizado, o projeto que acabamos de conside­
rar é contraditório e, portanto, absurdo. Mas, admitamos
que alguns colonizados conseguissem deixar-se assimilar pe­
los colonizadores. Em que o êxito aparente de algumas ten­
tativas de assimilação alteraria a situação como totalidade?
Ora, mesmo essas tentativas individuais nunca são plena­
mente bem sucedidas, pela simples razão de que o coloniza­
dor é francês e o colonizado árabe, e o árabe jamais poderá
deixar de ser o que é, quer dizer árabe, para tornar-se o que
não é, quer dizer, francês. Os "convertidos" ou “assimila­
dos” sofrem um processo que se poderia chamar de pseudo-
morfose, isto é, de aquisição de uma falsa nova forma que
não exprime nem representa adequadamente o antigo con­
teúdo.

8
Além disso, ao fabricar a ideologia do colonialismo, ao
tentar estabelecer a tese da sua superioridade, que é pura­
mente circunstancial e histórica, o colonizador desemboca
inevitavelmente no racismo. Ora, em que consiste o racis­
mo? Em converter em “natureza” o que é apenas "cultu­
ral”, ou, com outras palavras, em converter o fato social em
objeto metafísico, em "essência” intemporal. Para justificar,
para legitimar o domínio e a espoliação, o colonizador pre­
cisa estabelecer que o colonizado é por “natureza”, ou por
“essência”, incapaz, preguiçoso, indolente, ingrato, desleal,
desonesto, em suma, inferior. Incapaz, por exemplo, de edu-
car-se, de assimilar a ciência e a tecnologia modernas, bem
como de exercer a democracia, de governar-se a si mesmo.
“Não é uma coincidência — escreve Memmi —, o racismo
resume e simboliza a relação fundamental que une colonia­
lista e colonizado”.5
Ora, o racismo representa um obstáculo intransponível
à assimilação. Como podem os negros norte-americanos ser
assimilados pelos brancos, ou os judeus pelos alemães
dolicocéfalos e nazistas, se os norte-americanos brancos são
racistas e consideram os negros uma raça inferior, sub-hu-
mana, e os alemães nazistas julgam os judeus uma raça tam­
bém inferior e, portanto, indigna de com êles misturar-se?
Estabelecida essa insanável discriminação, em termos de
“natureza” ou de “essência”, o colonialismo passa a ter um
fundamento metafísico que o situa além do tempo, fora da
história, tornando-o imutável e definitivo.
Apesar do clima e da repugnância que lhe inspiram os
costumes dos colonizados, o colonizador projeta sua exis­
tência na colônia em um tempo sem fim, pois nem por hipó­
tese admite que um dia o colonizado possa sacudir o jugo
a que se acha submetido. O colonizador, enquanto tal, é,
pois, necessariamente conservador, quer dizer, não pode
deixar de querer a conservação do estatuto colonial de que
é único beneficiário. Além de ser conservador, e até mesmo
reacionário, o colonizador, que pode ter sido democrata ou
socialista na metrópole, está sempre exposto à tentação fas­
cista, pois -— como observa Memmi — para que "possa

6 Idem, pág. 94.

9
subsistir como colonizador, é necessário que a metrópole
permaneça eternamente uma metrópole”.6
A conservação ou a indefinida manutenção da colônia,
porém, supõe que suas contradições sejam mantidas em es­
tado latente ou virtual, com a aceitação do colonialismo, e
de tudo o que implica, por parte dos colonizados. Acontece
que essa totalidade parcial, esse “mundo”, que é a colônia,
além de incluir as contradições internas que a caracterizam,
situa-se ou insere-se em uma totalidade maior, que é o mun­
do, por sua vez também contraditório. A observação é im­
portante, embora nada nos revele de novo, porque essas
contradições mundiais, como veremos, afetando a colônia,
poderão criar as condições que permitam a eclosão das suas
contradições internas.
Com isso, queremos dizer que a totalidade, em qUe a
situação colonial consiste, além de contraditória, é um todo
em movimento, cujo processo, por isso mesmo que é contra­
ditório, só pode ser apreendido e compreendido dialetica-
mente.
Se a assimilação é impossível, tanto pela incorporação
dos colonizados ao grupo dos colonizadores, quanto pela
diluição destes na população autóctone, o estatuto colonial,
no que se refere à discriminação de raças, se manterá into­
cado, o mesmo desde que a colonização se estabeléceu.
O colonizador, por sua vez, também não pode assumir
na colônia uma posição de esquerda, mesmo que tenha sido
ou seja de esquerda na metrópole. Ao adotar semelhante
posição, deixa sem dúvida dé coincidir com a de seus com­
patriotas, rompe com o grupo colonialista. Passará, por isso,
a coincidir com a massa dos colonizados? "É impossível —
escreve Memmi .— que faça coincidir seu destino com o do
colonizado. Que é, politicamente? De quem é a expressão,
senão de si mesmo, isto é, de uma força desprezível no con­
fronto?”7 Instalado em insanável ambigüidade, perde a
confiança dos colonizadores e deixa de representá-los, sem
com isso adquirir condições que lhe permitam conquistar a
confiança do colonizado. Será, para os colonizadores, um
trânsfuga, e, para os colonizados, na melhor das hipóteses,

6 Idem, pág. 85.


7 Idem, pág. 58.

10
um suspeito, que, por isso mesmo, jamais poderá ser um dos
seus líderes. Que pretende, afinal? Ser colonizador e negar,
ao mesmo tempo, a colonização? Como se vê, a posição é
contraditória e insustentável.
Perguntamos, em parágrafo anterior, em que termos se
poderia estabelecer a convivência de colonizadores e de
colonizados no complexo colonial. Já temos agora algumas
respostas a essa pergunta. A princípio, o conformismo, a
aceitação passiva, a tentativa de coincidência com o grupo
colonizador, a alienação. Em seguida, a tomada de cons­
ciência da impossibilidade, do malogro da assimilação. Sób
a pressão das contradições externas, a emergência das con­
tradições internas, tanto objetivas quanto subjetivas, e a rup­
tura com a fase anterior, de inconsciência e submissão.
Qual a ideologia da metrópole? Não é o cristianismo
e a democracia, o desenvolvimento econômico, o bem-estar
e o progresso social? Mas, não haverá contradição entre
essa ideologia, que o colonizador professa na metrópole, e o
seu comportamento na colônia, o domínio e a espoliação do
colonizado, a sua segregação em nome do racismo?
Na colônia, porém, há jornais, revistas, aparelhos de
rádio e televisão, cinemas. Mal ou bem a situação do mundo,
a luta das classes oprimidas, dos povos oprimidos, acaba
penetrando a consciência das populações colonizadas. E não
só isso, mas também as razões pelas quais essa luta é tra­
vada, o desequilíbrio, o contraste, entre a riqueza das clas­
ses e dos paises ricos e a pobreza, a miséria dos países pro­
letários .
Por que aceitar eternamenté esse desequilíbrio, essa
contradição, por que admitir como natural e justo que o
bem-estar e a felicidade de alguns tenha como contrapar­
tida o mal-estar e a desgraça da imensa maioria? Não lhes
dizem, em nome do cristianismo e da democracia, que todos
são iguais diante de Deus e diante da Lei e que, por isso,
devem ter as mesmas oportunidades de acesso à saúde, à
educação, à cultura, ao conforto, à humanização, em suma?
Ou essa ideologia é válida apenas nos limites da metrópole,
perdendo significação e eficácia a partir do momento em
que, transpondo o mare nostrum, pepetramos as fronteiras
do continente africano? Ora, como justificar, então, o esta­
tuto colonial, a não ser em nome de outra ideologia, o racis-

11
mo, por exemplo, ideologia que põe o colonizador em con­
tradição com êle mesmo? Sim, porque como conciliar sua
posição de cristão e democrata na metrópole com a posição
de racista na. colônia?
O "efeito de demonstração”, quer dizer, o confronto,
o paralelo entre as condições de vida das populações colo­
nizadas e as do colonizador e das populações metropoli­
tanas (que o colonizado fica conhecendo por meio da im­
prensa, do cinema etc.) interpretado à luz do cristianismo e
da democracia, não pode deixar de fecundar a consciência
do colonizado, abrindo-lhe os olhos para a espoliação de que
tem sido vítima. As contradições objetivas existiam, sem dú­
vida, e há muito tempo, pois são a própria condição de exis­
tência do fato colonial, e, no entanto, permaneciam latentes,
em equilíbrio, sem funcionar, sem operar como fator de
transformação da estrutura social. Que é que as traz à tona
da consciência, que é que as converte em mola propulsora
da revolta e até mesmo da revolução?
Todos os caminhos foram fechados. O colonizador não
permite nem a assimilação, nem a transformação pacífica da
colônia, mediante a participação dos colonizados na gestão
do próprio destino. O colonizador representa a negação do
colonizado e vice-versa, o colonizado representa a negação
do colonizador. Os termos da antítese, ou da contradição,
não podem ser absorvidos e superados em uma síntese su­
perior pela simples razão de que, ao mesmo tempo, se impli­
cam e excluem reciprocamente, quer dizer, a negação de um
acarretando necessariamente a negação do outro.
A rigor — como observa Memmi — "o esmagamento
do colonizado está incluído entre os valores do colonialis­
mo”8 e o colonizador, no segredo de seu coração', sonha
muitas vezes com o extermínio total dos colonizados. Ora,
esse desejo é contraditório, pois o extermínio dos coloniza­
dos acarretaria inevitavelmente o desaparecimento da colô­
nia e, portanto, do próprio colonizador. Destruindo sua antí­
tese, pólo oposto dessa relação dialética em que o processo
colonial consiste, o colonizador destruiria, ao mesmo tempo,
o pólo “tético”, digamos assim, da relação, quer dizer, sua

Idem, pág. 159.

12
posição de domínio e de espoliação, pois teria negado e feito
desaparecer o objeto desse domínio e dessa espoliação.
A partir do momento em que, por força das contradi­
ções internas e externas, tanto no plano objetivo, real, quan­
to no plano subjetivo, da consciência, as populações coloni­
zadas despertam, do longo torpor, do sono em que estavam
há tanto tempo mergulhadas, a partir desse momento, a to­
talidade contraditória, que é o mundo colonial, é arrancada
da estagnação e posta em movimento.
A partir de então, o colonizado, cuja negação implica­
va a afirmação (negação como ser humano) do coloniza­
dor, isto é, sua antítese na relação dialética, vai empreender
a negação da negação, quer dizer a afirmação de si mesmo,
pólo tético na relação. Ora, assim como no momento ante­
rior, aceitava globalmente o colonizador, recusando-se total­
mente a si mesmo, agora passa a recusar globalmente o co­
lonizador e a aceitar e afirmar-se totalmente a si mesmo.
Tudo aquilo de que se envergonhava, tudo aquilo que
era para ele sinal de sua diferença e motivo de humilhação,
as crenças, os valores, os usos e costumes que constituíam
a tradição, a fisionomia nacional, tudo o que, contraposto
ao mundo do colonizador, alimentava seu complexo de infe­
rioridade, e era por ele subitamente assumido, em atitude
polêmica, de desafio, como forma e expressão de sua per­
sonalidade própria, nacional. “A mesma paixão que o fazia
admirar e absorver a Europa — escreve Memmi — o fará
afirmar suas diferenças; uma vez que essas diferenças o
constituem, constituem propriamente sua essência”.9
Será nacionalista e não racista, propriamente, mas xe­
nófobo, pois “o racismo do colonizado <— como diz o autor
— não é a rigor, nem biológico, nem metafísico, mas social
e histórico”.10 Nacionalismo e xenofobia que se inscrevem
necessariamente no movimento de revolta, pois como não
odiar os europeus — e todo europeu é um colonialista em
estado potencial, um cúmplice e um beneficiário do colonia­
lismo — que durante tanto tempo os oprimiram e explora­
ram? Por que deveriam, êles que não são cristãos, retribuir

0 Idem, pág. 172.


10 Idem, pág. 171.

13
o desprêzo e o desamor dos cristãos com a compreensão, a
tolerância e a generosidade?
Declarado o inconformismo, desencadeada a revolta, o
aparente equilíbrio se rompe, as águas superficialmente
imóveis se agitam e as contradições que permaneciam laten­
tes vêm à tona, revelando-se em sua irredutibilidade e pro­
pondo-se em termos de luta. Impossível exigir do colonizado
que, enfim, se revolta, prudência, cautela, senso de medida.
De seu ponto de vista, tudo é vãlido, desde que seja eficaz,
na luta contra o colonizador, pois a negatividade total de
sua conduta implica uma positividade também total, quer
dizer, a plena recuperação e afirmação do colonizado por si
mesmo:
Se todas as formas de convívio se revelaram impossí­
veis, a unica saída é a ruptura, a revolta, a luta contra o
colonizador até sua derrota definitiva, isto é, até a liquida­
ção definitiva do sistema colonial. Pois o colonialismo, que
fabrica simultaneamente o colonizador e o colonizado, reve­
lou-se uma doença incurável, e a situação colonial impossí­
vel de aménagec porque — como escreve Memmi — "tra­
zia em si mesma sua própria contradição que, cedo ou tarde,
a faria morrer”.11
Todas as formas de luta são válidas, dizíamos, inclusive
o terrorismo, energicamente condenado pelo pensamento de
esquerda. O sopro da revolta os arrasta, um desespero, uma
fúria sagrada os invade, e sua vida não tem outro sentido,
outra razão de ser, senão lutar, lutar até a morte, contra os
opressores, e a favor dos seus, da liberdade, da libertação
dos seus, os oprimidos.
Toda a máquina, a poderosa máquina da opressão, é
então mobilizada na repressão implacável, sem quartel, da
revolta dos escravos, maltrapilhos e famintos. As armas
mais modernas, os dispositivos tecnológicos mais aperfeiçoa­
dos, as tropas de elite, recursos astronômicos, são mobiliza­
dos para esmagar a insurreição, o movimento de libertação
nacional.
O empreendimento colonial, desafiado pelos povos em
revolta, se revela em sua verdadeira fisionomia. A violência,
que permanecia latente, implícita na opressão, explode, e o
n Idem, pág. 184.

14
colonialismo, com a assistência e o beneplácito eia metró­
pole, passa a reprimir sistemática e brutalmente todas as
manifestações de inconformismo e rebeidia. Em nome de
quê? Do cristianismo, da democracia, dos direitos humanos?
Não, desta vez, depois que as máscaras caíram, em nome
apenas de seus interesses, interesses materiais, econômicos.
A brutalidade da repressão não conhece limites e acaba
por despertar no colonizador o ódio pelo colonizado. Ódio
que está na raiz do capítulo mais negro da guerra còlonial,
o capítulo da tortura. “Nesse negócio — escreve Sartre —
os indivíduos não contam; uma espécie de ódio errante, anô­
nimo, um ódio radical do homem, se encarniça a um tempo
sobre os carrascos e as vítimas para degradá-los juntos, e
uns pelos outros. A tortura é esse ódio, erigido em sistema
e criando seus próprios instrumentos”.12
E, quem tortura? São povos "bárbaros”, orientais, que
não assimilaram o cristianismo e os valores espirituais da
civilização ocidental, alemães paganizados, enlouquecidos
pelo racismo nazista e pelo sonho delirante de dominação
mundial? Não, quem torturou, para nossa tristeza e humi­
lhação, foram franceses, sim cristãos franceses, descendentes
de Joana d’Arc e de São Luís. Mas, se qualquer homem,
seja qual for, se qualquer povo, sejam quais forem suas tra­
dições e sua formação, pode converter-se subitamente em
carrasco, em torturador, que significa isso se não — como
diz Sartre — que "a tortura não é nem çivil nem militar,
nem especificamente francesa, mas uma lepra que devasta
tõda a nossa época”.13
Há um segredo, há uma confissão, que a minoria ar­
mada e opressora precisa arrancar de todos ou de Qualquer
um, pois todos são cúmplices da mesma conspiração, todos
são aliados na mesma luta, todos representam a mesma
ameaça, difusa, incontrolável, aos interesses, aos privilégios
dos colonizadores. O sdpro da revolta a todos arrasta, pois
a guerra colonial não é apenas a luta de grupos armados con­
tra a opressão metropolitana, mas a luta do povo todo e, sendo
a guerra dos pobres contra os ricos, dos oprimidos contra

12 Jean-Paul Sartre, Une Victoire, in Situations, vol. V, pág. 79.


13 Idem, pág. 80.

15
os opressores, converte a multidão inumerável dos miserá­
veis no "inimigo quotidiano", cujo silêncio, carregado de
ameaças, inquieta e preocupa tanto as forças de ocupação
quanto as incursões noturnas, os ataques às patrulhas avan­
çadas, os atentados, as bombas lançadas nos quartéis ou os
assaltos aos depósitos de munições. Todo árabe é um ini­
migo possível, um eventual detentor desse segredo que é
preciso arrancar de qualquer maneira, mesmo que seja pela
tortura, essa "fúria vã” <— como diz Sartre — "nascida do
medo e pela qual se quer arrancar de uma garganta, entre
gritos e vomitos de sangue, o segredo de todos”.14
Ora, não há segredo, há um incêndio que lavra em todo
o território aa colônia, uma chama que arde em todos os
corações, uma invencível esperança e uma indestrutível de­
cisão de lutar, mesmo que seja ao preço da própria vida,
pela conquista da liberdade. O sistema, porém, funcionará
implacavelmente, no desesperado esforço de manter-se, em­
bora a conservação da colônia, exigindo a presença perma­
nente de um exército de ocupação, seja mais onerosa do que
a renda auferida com a exploração colonial Impossível, pois,
prosseguir no empreendimento, que se tornou absurdo e
perdeu qualquer sentido. A sorte do colonialismo está sela­
da e, mais cedo ou mais tarde, pouco importa, os povos co­
loniais conquistarão a independência. “A recusa do coloni­
zado — escreve Memmi — só pode ser absoluta, quer di­
zer, não apenas revolta, mas superação da revolta, isto é,
revolução”.15
Sem dúvida, na recusa do colonialismo, na negação
total do colonizador e na aceitação total de si mesmo, o co­
lonizado, como já vimos, ainda está, em grande parte, de­
terminado pelo colonizador. No processo dialético da eman­
cipação, no entanto, esse momento é necessário, pois torna
possível o momento seguinte, em que da negação da nega­
ção, se passa à plena positividade da afirmação de si.
Não só poderá mas deverá, doravante, apropriar-se da
ciência e da tecnologia dos colonizadores e talvez de algu­
mas de suas instituições jurídicas e sociais. Essa apropria­
ção, essa utilização, no entanto, se fará livremente, e em

Idem, pág. 83.


15 Albert Memmi, Ob. cit., pág. 190.

16
função dos interesses e das necessidades da nova nação e
do seu projeto próprio de desenvolvimento. O essencial foi,
enfim, conquistado. Pouco importa que haja obstáculos e
resistências a vencer, provações a enfrentar, sacrifícios nu­
merosos a fazer. De que não é capaz o ser humano quando
o entusiasmo o arrebata, quando o amor inflama seu
coração?
Já não mostraram, já não deram provas de que eram
capazes, não só de atos de coragem, mas até mesmo de he­
roísmo? Não lutaram, em total inferioridade de condições,
contra um adversário muito mais poderoso, implacável e ar­
mado até os dentes? Já não mostraram que preferem arris­
car a Vida na luta pela liberdade do que permanecerem vi­
vos, na escravidão?
Se foram capazes de enfrentar essa luta, tão mais ár­
dua, tão mais difícil, tão mais perigosa, por que não seriam
capazes de enfrentar a outra, a luta pacífica pela constru­
ção do país, agora que recuperam a alma e o direito de con­
figurar o próprio destino?
As guerras coloniais de independência parecem ter dei­
xado claro que uma nação não é propriamente um negócio,
que deve assegurar a maior rentabilidade possível, como
pretendem os colonialistas e os tecnocratas, mas uma peri­
pécia em que os homens empenham o próprio sangue, um
destino enfim, quer dizer, uma tradição e uma vocação.

Rio, 11 de abril de 1967.

R oland C orbisier

17
I

RETRATO
DO COLONIZADOR

19
I

Existe o Colonial?

S entido da viagem colonial

Muitos ainda imaginam o colonizador como um homem


de grande estatura, bronzeado pelo sol, calçado com meias-
botas, apoiado em uma pá — pois não deixa de pôr mãos
à obra, fixando seu olhar ao longe, no horizonte de suas
terras; nos intervalos de sua luta contra a natureza, dedica-
se aos homens, cuida dos doentes e difunde a cultura, um
nobre aventureiro, enfim, um pioneiro.
Não sei se essa imagem convencional jamais correspon­
deu a alguma realidade ou se às gravuras do dinheiro colo-
21
nial se limita. Os motivos econômicos do empreendimento
colonial estão, atualmente, esclarecidos por todos os histo­
riadores da colonização; ninguém acredita mais na missão
cultural e moral, mesmo original, do colonizador. Em nossos
dias, ao menos, a partida para a colônia não é a escolha de
uma luta incerta, procurada precisamente por seus perigos,
não é a tentação da aventura, mas a da facilidade.
É suficiente, aliás, interrogar o europeu das colônias:
que razões o levaram a expatriar-se e, principalmente, a per­
sistir em seu exílio? Acontece que ele fala também em aven­
tura, em pitoresco e em expatriação. Mas, por que não os
procurou na Arábia, ou simplesmente na Europa Central,
onde não se fala sua própria língua, onde não encontra um
grupo importante de compatriotas seus, uma administração
que o serve, um exército que o protege? A aventura com­
portaria mais imprevisto; essa expatriação, no entanto, mais
certa e de melhor qualidade, teria sido de duvidoso provei­
to: a expatriação colonial, se é que há expatriação, deve ser,
antes de mais nada, bastante lucrativa. Espontaneamente,
melhor que os técnicos da linguagem, nosso viajante nos
proporá a melhor definição da colônia: nela ganha-se mais,
nela gasta-se menos. Vai-se para a colônia porque nela as
situações são garantidas, altos os ordenados, as carreiras
mais rápidas e os negócios mais rendosos. Ao jovem diplo­
mado oferece-se um posto, ao funcionário uma promoção,
ao comerciante reduções substanciais de impostos, ao indus­
trial matéria-prima e mão-de-obra a preços irrisórios.
Mas, seja: suponhamos que. exista esse ingênuo, que
desembarque por acaso, como viria a Toulouse ou a Cornar.
Precisaria de muito tempo para descobrir as vantagens
de sua nova situação? Pelo fato de ser percebido mais tar­
de, o sentido econômico da viagem colonial nem por isso
deixa de impor-se, e rapidamente. O europeu das colônias
pode também, é claro, amar essa nova região, apreciar o
pitoresco dos seus costumes. Mas, mesmo repelido pelo seu
clima, mal à vontade no meio de suas multidões estranha­
mente vestidas, saudoso do seu país natal, o problema dora­
vante é o seguinte: deve aceitar esses aborrecimentos e esse
mal-estar em troca das vantagens da colônia?
Bem cedo não esconde mais; é freqüente ouvi-lo sonhar
em voz alta: alguns anos ainda e comprará uma casa na

22
metrópole... uma espécie de purgatório em suma, um pur­
gatório remunerado. Doravante, mesmo farto, enjoado de
exotismo, algumas vezes doente, ele se prende: a armadilha
funcionará até a aposentadoria ou mesmo até a morte. Como
retornar à metrópole, onde lhe seria necessário reduzir seu
padrão de vida pela metade? Retornar à lentidão viscosa de
sua carreira metropolitana?
Quando, nestes últimos anos, corn a aceleração da his­
tória, a vida se tornou difícil, freqüentemente perigosa para
os colonizadores, foi esse cálculo tão simples, porém irres­
pondível, que os reteve. Mesmo aqueles que na colônia são
chamados aves de arribação não manifestaram excessiva
pressa em partir. Alguns, considerando a volta, puseram-se
a temer, de forma inesperada, uma nova expatriação: a de
se reencontrarem em seu país de origem. Podemos acreditar
em parte: deixaram seu país há muito tempo, e nele não têm
mais amizades vivas, seus filhos nasceram na colônia e na
colônia enterraram seus mortos. Mas, exageram sua dilace­
ração; se organizaram seus hábitos quotidianos na cidade
colonial e, para ela importaram e a ela impuseram os costumes
da metrópole, onde passam regularmente suas férias, de
onde recolhem suas inspirações administrativas, políticas e
culturais, é para a metrópole que seus olhos permanecem
constantemente voltados.
Sua expatriação, na verdade, é de base econômica: a
do novo-rico que se arrisca a ficar pobre.
Resistirão, pois, o maior tempo possível, porque quanto
mais passa o tempo mais duram as vantagens, que bem me­
recem algumas inquietações e que sempre será cedo demais
para perder. Mas, se um dia o econômico é atingido, se as “si­
tuações”, como se diz, correm perigos reais, o colonizador sen­
te-se então ameaçado e pensa, seriamente, dessa vez, em
regressar à metrópole.
No plano coletivo, a questão é ainda mais clara. Os
empreendimentos coloniais nunca tiveram outro sentido con­
fessado. Quando das negociações franco-tunisinas, alguns
ingênuos se admiraram da relativa boa vontade do governo
francês, particularmente no domínio cultural, depois da
aquiescência, aliás rápida, dos chefes da colônia. É que as
cabeças pensantes da burguesia e da colônia tinham com­
preendido que o essencial da colonização não era nem o

23
prestígio da bandeira, nem a expansão cultural, nem mesmo
o controle administrativo e a salvação de um corpo de fun­
cionários. Admitiram que se pudesse transigir em tudo, des­
de que o principal, quer dizer, as vantagens econômicas,
fosse salvo. E, se o Sr. Mendès-France pôde efetuar sua
famosa viagem-relâmpago, foi com sua benção e sob a pro­
teção de um deles. Foi esse exatamente seu programa e o
conteúdo mais importante das convenções.

O I ndígena e o P rivilegiado

Tendo descoberto o lucro, por acaso ou porque o havia


procurado, o colonizador não tomou ainda consciência, ape­
sar disso, do papel histórico que deverá desempenhar. Pre­
cisa dar mais um passo no conhecimento de sua nova situa­
ção: falta-lhe compreender igualmente a origem e a signi­
ficação desse lucro ^ A bem dizer, isso não tardará muito.
Poderia demorar muito tempo para ver a miséria do colo­
nizado e a relação dessa miséria com seu bem-estar? Percebe
que esse lucro só é tão fácil porque tirado de outros. Em
suma, faz duas aquisições em uma: descobre a existência do
colonizado e ao mesmo tempo seu próprio privilégio.
Sabia, sem dúvida, que a colônia não era povoada uni­
camente por colonos ou colonizadores. Tinha mesmo algu­
ma idéia dos colonizados graças aos livros de leitura de sua
infância; tinha visto no cinema certo documentário sobre
alguns de seus costumes, escolhidos de preferência pela sua
estranheza. Mas, esses homens, pertenciam precisamente
aos domínios da imaginação, dos livros ou do espetáculo.
Não lhe diziam respeito, ou muito pouco, indiretamente, por
intermédio de imagens comuns a toda a sua nação, epopéias
militares, vagas considerações estratégicas. Inquietavam-
no um pouco desde que tinha decidido ir ele mesmo para
a colônia; não mais, porém, do que o clima, talvez desfa­
vorável, ou a água que diziam ser por demais calcária. E
eis que esses homens, subitamente, deixam de ser simples
elementos de cenário geográfico ou histórico, e instalam-se
em sua vida.

24
Nem mesmo pode decidir-se a evitá-los: deve viver em
relação constante com eles, pois é essa relação mesma que
lhe permite esta vida, que decidiu procurar na colônia: é
essa relação rendosa, que cria o privilégio. Encontra-se em
um dos pratos de uma balança que carrega, no outro, o co­
lonizado. Se seu nível de vida é elevado, é porque o do
colonizado é baixo; se pode beneficiar-se de mão-de-obra,
de criadagem numerosa e pouco exigente, é porque o colo­
nizado é explorável impunemente e não se acha protegido
pelas leis da colônia: se obtém tão facilmente postos admi­
nistrativos, é porque esses postos lhe são reservados e por­
que o colonizado deles está excluído; quanto mais respira
à vontade mais o colonizado sufoca.
Tudo isso, não pode deixar de ser por éle descoberto.
Não é ele que correria o risco de ser convencido pelos dis­
cursos oficiais, pois esses discursos são redigidos por èle,
ou por seu primo, ou por seu amigo: as leis que estabelecem
seus direitos exorbitantes e os deveres dos colonizados, é
ele que as concebe, e, porque é incumbido de sua aplicação,
está necessariamente no segredo das instruções discrimina­
tórias, muito pouco discretas, aliás, referentes às classifica­
ções nos concursos e à distribuição dos empregos. Se pre­
tendesse ficar cego e surdo em relação ao funcionamento
de toda a máquina, bastaria que recolhesse os resultados:
ora, é ele o beneficiário de todo o empreendimento.

O U surpador

É impossível, finalmente, que não verifique a ilegitimi­


dade constante de sua situação. Ilegitimidade que, além dis­
so, é de certa maneira dupla. Estrangeiro, chegado a um
país pelos acasos da história, conseguiu não apenas um lu­
gar, mas tomar o do habitante, e outorgar-se privilégios
surpreendentes em detrimetito dos que a eles tinham direi­
to. E isso, não em virtude das leis locais, que legitimam de
certo modo a desigualdade p^la tradição, mas ao subverter
as normas vigentes, substituindo-as pelas suas.

25
Revela-se assim duplamente injusto: é um privilegiado
e um privilegiado não legítimo, quer dizer, um usurpador.
E, finalmente, não apenas aos olhos do colonizado, mas aos
seus próprios olhos. Se objeta algumas vezes que privilegia­
dos também existem no meio dos colonizados, feudais, bur­
gueses, cuja opulência iguala ou ultrapassa a sua, o faz sem
convicção. Não ser o único culpado pode tranqüilizar, mas
não absolver. Reconheceria facilmente que os privilégios
dos privilegiados autóctones são menos escandalosos que os
seus. Sabe também que os colonizados mais favorecidos se­
rão sempre colonizados, isto é, que certos direitos lhes serão
eternamente recusados, que certas vantagens lhes serão es­
tritamente reservadas. Em resumo, a seus olhos como aos
olhos de sua vítima, sabe-se usurpador: é preciso que se
acomode com esses olhares e com tal situação.

O P equeno C olonizador

Antes de ver como essas três descobertas — lucro, pri­


vilégio, usurpação —•, esses três progressos da consciência
do colonizador vão modelar sua figura, por meio de que me­
canismos vão transformar o candidato colonial em coloni­
zador ou em colonialista, é preciso responder a uma objeção
corrente: a colônia, dizem constantemente, não inclui apenas
colonos. Pode-se falar de privilégios em relação a ferroviá­
rios, a funcionários médios ou mesmo a pequenos agriculto­
res, que contam o dinheiro para viver tanto quanto seus ho­
mólogos metropolitanos?. . .
Para usar de uma terminologia cômoda, distinguamos
o colonial, o cqkajizador e o colonialista. O colonial seria o
europeu vivendo na colônia porém sem privilégios, e cujas
condições de vida não seriam superiores às do colonizado de
categoria econômica e social equivalente. Por temperamento
ou convicção ética o colonial seria o europeu benevolente,
que não teria em face do colonizado a atitude do coloniza­
dor. Muito bem! Digamos desde logo, malgrado o aparente
exagero da afirmação: o colonial assim definido não existe,
pois todos os europeus das colônias são privilegiados.
26
Certamente todos os europeus das colônias não são
potentados, não dispõem de milhares de hectares e não con­
trolam administrações. Muitos são, eles mesmos, vítimas dos
senhores da colonização. São por eles economicamente ex­
plorados, politicamente utilizados, a fim de defenderem in­
teresses que, freqüentemente, não coincidem muito com os
seus próprios. Mas, as relações sociais quase nunca são uní­
vocas. Contrariamente a tudo o que a esse respeito se pre­
fere acreditar, aos votos piedosos e aos protestos interessa­
dos: o pequeno colonizador é, de fato, geralmente solidário
dos .colonos e defensor encarniçado dos privilégios coloniais.
Por quê?
Solidariedade do semelhante com o semelhante? Reação
de defesa, expressão ansiosa de uma minoria vivendo no
meio de uma maioria hostil? Em parte. Mas, nos bons tem­
pos da colonização, protegidos pela polícia e pelo exército,
por uma aviação sempre pronta a intervir, os europeus da
colônia não tinham medo, nem tanto, em todo caso, que ex­
plicasse tal unanimidade. Mistificação? Na maior parte, cer­
tamente. É exato que o pequeno colonizador teria, ele mes­
mo, um combate a travar, uma libertação a efetuar; se não
fosse tão gravemente enganado pelos seus e cego pela his­
tória. Mas, não creio que uma mistificação possa apoiar-se
em uma completa ilusão, possa determinar totalmente o com­
portamento humano. Se o pequeno colonizador defende o
sistema com tanto empenho, é porque é mais ou menos seu
beneficiário. A mistificação está no fato de que, para defen­
der seus interesses muito limitados, defende outros infinita­
mente mais importantes, dos quais é, aliás, a vítima. Mas,
enganado e vítima, nisso encontra também suas vantagens.
É que o privilégio é um negócio relativo: mais ou me­
nos, porém, todo colonizador é privilegiado, pois o é com­
parativamente e em detrimento do colonizado. Se os privi­
légios dos poderosos da colonização são ostensivos, os pri­
vilégios miúdos do pequeno colonizador, mesmo o menor de
todos, são muito numerosos. Cada gesto de sua via quoti­
diana o coloca em relação ao colonizado e por meio de cada
gesto se beneficia de uma vantagem reconhecida. Tem pro­
blemas com as leis? A polícia e mesmo a justiça ser-lhe-ão
mais clementes. Tem necessidade de serviços da administra­
ção? Ela ser-lhe-á menos embaraçosa, abreviar-lhe-á as for-

27
malidades, reservar-lhe-á um guichê, onde com os pedintes
menos numerosos, a espera será menos longa. Procura um
emprego? Precisa passar em um concurso? Lugares, postos,
ser-lhe-ão antecipadamente reservados, as provas serão na
sua lingua, ocasionando dificuldades eliminatórias ao colo­
nizado. Será ele, então, tão cego ou tão obnubilado que ja­
mais possa ver que, em condições objetivas iguais, classe
econômica, méritos iguais, é sempre favorecido? Como não
se voltaria, de vez em quando, a fim de perceber todos os
colonizados, algumas vezes antigos condiscípulos ou confra­
des, dos quais tanto se distanciou.
Finalmente, mesmo que nada peça, mesmo que de nada
precise, basta-lhe aparecer para ser recebido com o precon­
ceito favorável de todos aqueles que têm importância na co­
lônia; e mesmo dos que não a têm, pois se beneficia do pre­
conceito favorável, do respeito do próprio colonizado que
lhe concede mais que aos melhores dos seus; que tem, por
exemplo, mais confiança na sua palavra do que na palavra
dos seus. É que ele possui, de nascença, uma qualidade in­
dependente dos seus méritos pessoais, da sua classe obje­
tiva: é membro do grupo dos colonizadores, cujos valores
reinam e dos quais participa. O pais é ritmado pelas suas
festas tradicionais, mesmo religiosas, e não pelas dos habi­
tantes; o feriado semanal é o do seu pais de origem, é a
bandeira de sua nação que flutua sobre os monumentos, é
sua língua materna que permite as comunicações sociais;
mesmo seu traje, sua pronúncia, suas maneiras acabam por
impor-se à imitação do colonizado. O colonizador participa
de um mundo superior, do qual não pode deixar de recolher
automaticamente os privilégios.

O utros M istificadores da C olonização

E é ainda sua situação concreta, econômica, psicológica,


o complexo colonial, em relação aos colonizados de um lado,
aos colonizadores de outro, que explicará a fisionomia dos
outros grupos humanos: — aqueles que não são nem colo­
nizadores nem colonizados. Os nacionais de outras potên-
28
cias (italianos, malteses da Tunísia), os candidatos à assi­
milação (a maioria dos judeus), os assimilados de data re­
cente (corsos na Tunísia, espanhóis na Algéria). Podemos
acrescentar aqui os representantes da autoridade recrutados
entre os próprios colonizados.
A pobreza dos italianos ou dos malteses é tal que pode
parecer ridículo falar de privilégio a seu respeito. Todavia,
se freqüentemente são miseráveis, as migalhas que lhes dis­
pensam sem nelas pensar, contribuem para diferenciá-los,
para separá-los nitidamente dos colonizados. Mais ou menos
favorecidos em relação às massas colonizadas, tendem a es­
tabelecer com elas relações de estilo colonizador-colonizado.
Ao mesmo tempo, não coincidindo com o grupo colonizador,
não tendo o mesmo papel no complexo colonial, dele se dis­
tinguem cada um à sua maneira.
Todos esses matizes são facilmente legíveis na análise
de suas relações com o fato colonial. Se os italianos da T u­
nísia sempre invejaram os privilégios jurídicos e adminis­
trativos dos franceses, estão de qualquer modo em melhor
situação que os colonizados. São protegidos por leis inter­
nacionais e por um consulado muito atuante, sob o cons­
tante olhar de uma metrópole atenta. Freqüentemente, lon­
ge de serem recusados pelo colonizador, são eles que hesi­
tam entre a assimilação e a fidelidade a sua pátria. Enfim,
mesma origem européia, religião comum, maioria de costu­
mes idênticos os aproximam sentimentalmente do coloniza­
dor. De tudo isso resultam algumas vantagens, .que certa­
mente o colonizado não possui: emprego mais fácil, menor
insegurança contra a total miséria e a doença, escolarização
menos precária; alguns cuidados enfim da parte do coloni­
zador, a dignidade mais ou menos respeitada. Compreende­
remos que, por deserdados que sejam no absoluto, terão,
frente ao colonizado, várias condutas semelhantes às do
colonizador.
Não se beneficiando da colonização, senão por tabela,
pelo seu parentesco com o colonizador, os italianos estão
bem menos afastados dos colonizados que os franceses. Não
têm com eles essas relações contrafeitas, formais, esse tom que
revela sempre o senhor, dirigindo-se ao escravo, do qual
não se pode desembaraçar totalmente o francês. Ao contrá­
rio dos franceses, os italianos falam, quase todos, a língua

29
dos colonizados, contraem com eles amizades duráveis e mes­
mo, sinal particularmente revelador, casamentos mistos. Em
suma, não tendo nisso maior interesse, os italianos não mantêm
entre eles e os colonizados» grande distância. A mesma análise
seria válida, com alguns matizes, em relação aos malteses.
A situação dos israelitas — eternos candidatos hesitan­
tes e recusados à assimilação — pode ser encarada de uma
perspectiva semelhante. Sua ambição constante, e quão jus­
tificada, é a de escapar à sua condição de colonizado, carga
suplementar para um balanço já pesado. Procuram, assim,
parecer-se com o colonizador, na esperança confessada de
que deixe de reconhecê-los diferentes dele. Daí seus esforços
para esquecer o passado, para mudar de hábitos coletivos,
sua adoção entusiasta da língua, da cultura e dos costumes
ocidentais. Mas, se o colonizador nem sempre desencoraja
abertamente esses candidatos à sua semelhança, jamais lhes
permitiu também realizá-la. Vivem assim em penosa e cons­
tante ambigüidade; recusados pelo colonizador, participam
em parte da situação concreta do colonizado, têm com ele
solidariedade de fato; por outro lado, recusam os valores do
colonizado enquanto pertencentes a um mundo decadente,
do qual esperam escapar com o tempo.
Os recém-assimilados Situam-se geralmente muito além
do colonizador médio. Praticam uma supercolonização;
ostentam orgulhoso desprêzo pelo colonizado e lembram
com insistência sua nobreza de empréstimo, desmentida fre­
quentemente por uma brutalidade plebéia e pela sofregui­
dão. Deslumbrados ainda com seus privilégios, os saboreiam
e defendem com avidez e inquietação. E, quando a coloniza­
ção corre perigo, fornecem-lhe seus defensores mais dinâ­
micos, suas tropas de choque, e, algumas vezes, seus agen­
tes provocadores.
Os representantes da autoridade, quadros, "caides”,
policiais, etc., recrutados entre os colonizados, formam uma
categoria de colonizados que pretende escapar à sua condi­
ção política e social. Mas, tendo escolhido, devido a isso,
colocar-se a serviço do colonizador e defender exclusiva­
mente seus interesses, acabam por adotar sua ideologia,
mesmo em relação aos seus e a eles próprios.
Todos enfim, mais ou menos mistificados, mais ou me­
nos beneficiários, abusados a ponto de aceitar o injusto sis-

30
tema (defendendo-o ou resignando-se a ele) que mais for­
temente pesa sobre o colonizado. Seu desprezo pode ser ape­
nas uma compensação de sua miséria, como o anti-semitis­
mo europeu é, freqüentemente, um derivativo cômodo. Tal
é a história da pirâmide dos tiranetes: cada um, socialmente
oprimido por outro mais poderoso, encontra sempre um me­
nos poderoso em quem apoiar-se, tornando-se por sua vez,
tirano. Que desforra e que orgulho para um pequeno mar­
ceneiro não colonizado andar em companhia de um mecânico
ãrabe levando na cabeça uma tábua e alguns pregos! Para
todos, há pelo menos essa profunda satisfação de ser nega-
tivamente melhor que o colonizado: jamais são totalmente
confundidos na abjeção em que os lança o fato colonial.

Do C olonial ao C olonizador

O colonial não existe, porque não depende do europeu


das colônias permanecer colonial, mesmo se tivesse tido essa
intenção. Quer o tenha expressamente desejado ou não, é
acolhido privilegiado pelas instituições, pelos costumes, pe­
las pessoas. Tão logo desembarcado ou desde seu nasci­
mento, encontra-se em uma situação de fato, comum a todo
europeu que vive na colônia, situação que o transforma em
colonizador. Mas não é nesse nível, na realidade, que se
situa o problema ético fundamental do colonizador: o do
engajamento da sua liberdade e portanto da sua responsa­
bilidade. Teria podido, certamente, não tentar a aventura
colonial; desde que o empreendimento começou, no entanto,
não depende dele recusar suas condições. É preciso ainda
acrescentar que podia encontrar-se sujeito a essas condi­
ções, independentemente de toda escolha prévia, se nasceu
na colônia de pais já colonizadores, ou se realmente igno­
rou, quando de sua decisão, o sentido real da colonização.
É em outro nível que se vai apresentar o verdadeiro
problema do colonizador: uma vez que descobriu o sentido
da colonização e tomou consciência da sua própria situação,
da situação do colonizado, e de suas necessárias relações,
irá aceitá-las? Irá aceitar-se ou recusar-se como privilegiado,

31
e confirmar a miséria do colonizado, correlativo inevitável
de seus privilégios? aceitar-se-á como usurpador, e confir­
mará a opressão e a injustiça em relação ao verdadeiro ha­
bitante da colônia, correlativas da sua excessiva liberdade
e do seu prestígio? Irá, finalmente, aceitar-se como coloni­
zador, essa imagem de si mesmo que espreita, que já sente
desenhar-se sob o hábito nascente do privilégio e da ilegi­
timidade, sob o constante olhar do usurpado? Irá acomo­
dar-se com essa situação e com esse olhar e com a própria
condenação por si mesmo, cedo inevitável?

32
2

O Colonizador que se Recusa

O C olonizador de B oa V ontade . . .

Se todo colonial está em atitude imediata de coloniza­


dor, não é fatal que todo colonizador se torne um colonia­
lista. E os melhores a isso se recusam. Mas o fato colonial
não é uma pura idéia: conjunto de situações vividas, recusá-
lo é ou subtrair-se fisicamente a essas situações ou perma­
necer e lutar a fim de transformá-las.
Acontece que o recém-chegado, à procura de emprego
ou funcionário de boas intenções — muito raramente ho­
mem de negócios ou representante das autoridades, menos

3d
aturdidos ou menos ingênuos — estupefato desde seus pri­
meiros contatos com os menores aspectos da colonização, a
multidão de mendigos, as crianças que perambulam semi­
nuas, o tracoma, etc., contrafeito diante de tão evidente or­
ganização da injustiça, revoltado com o cinismo de seus
próprios compatriotas ("Não preste atenção à miséria! Ve­
rás: nós nos acostumamos a ela rapidamente!” ), pensa ime­
diatamente em partir. Obrigado a esperar o fim do contrato,
corre, com efeito, o risco de acostumar-se à miséria e ao
resto. Mas acontece que esse, que pretendia ser apenas co­
lonial, não se acostuma: partirá, pois.
Acontece também, que, por diversas razões, não regres­
sa. Mas, tendo descoberto o escandalo econômico, politico
e moral da colonização, e não sendo capaz de esquece-lo,
não pode aceitar tornar-se o que se tornaram seus compa­
triotas; decide ficar, comprometendo-se a recusar a colo­
nização .

. ..E S uas D ificuldades

Oh! não se trata necessariamente de uma recusa vio­


lenta. Essa indignação nem sempre é acompanhada por uma
inclinação pela política militante. É mais uma posição de
principio, com algumas afirmações que não assustariam um
congresso de moderados, ao menos na metrópole. Um pro­
testo, uma assinatura de vez em quando, talvez chegue até
à adesão a um grupo não sistematicamente hostil ao colo­
nizado. Isso basta para que perceba rapidamente que não
fez senão substituir dificuldades e apuros. Não é tao fácil
fugir, pelo espírito, de uma situação concreta, recusar sua
ideologia continuando a viver em suas relações objetivas.
Sua vida se encontra doravante sob o signo de uma contra­
dição que lhe surge a cada passo, e que lhe tirará toda coe­
rência e toda tranqüilidade.
Que recusa, com efeito, senão uma parte de si mesmo,
aquilo que ele se torna lentamente desde que aceitar viver
na colônia? Pois participa e desfruta desses privilégios que
denuncia a meia voz. Recebe ordenado menor que o de seus

34
compatriotas? Não aproveita as mesmas facilidades para
viajar? Como não calcularia, distraidamente, que breve po­
derá comprar um automóvel, uma geladeira, talvez uma
casa? Como poderia desembaraçar-se desse prestígio que o
aureola e com o qual pretende escandalizar-se?
Chegaria a esbater um pouco sua contradição, a orga­
nizar-se nesse desconforto, que seus compatriotas se encar­
regariam de sacudi-lo. A princípio com irônica indulgência;
conheceram, conhecem essa inquietação u.n tanto ingênua
do recém-chegado; passará com a experiência da vida colo­
nial, sob uma multidão de pequenos e agradáveis compro­
missos .
Deve passar, insistem, pois o romantismo humanitarista
é considerado na colônia uma doença grave, o pior dos pe­
rigos: trata-se, nada mais nada menos, que da passagem
para o campo do inimigo.
Se obstinar-se, compreenderá que entra em inconfessá­
vel conflito com os seus, conflito esse que permanecerá sem­
pre aberto, que jamais acabará a não ser pela sua derrota
ou pelo seu retorno ao berço colonizador. Surpreendemo-nos
com a violência dos colonizadores contra aquele que, dentre
êles, põe em perigo a colonização. Está claro que não podem
considerá-lo senão como um traidor. Põe em risco os seus na
sua própria existência, ameaça toda a pátria metropolitana,
que pretendem representar, e que em definitivo representam
na colônia. A incoerência não está de seu lado. Qual seria,
a rigor, o resultado lógico da atitude do colonizador que
recusasse a colonização, senão desejar seu desaparecimento,
quer dizer o desaparecimento dos colonizadores enquanto
tais? Como não se defenderiam com aspereza, contra uma
atitude que resultaria na sua imolação, no altar da justiça,
talvez, mas de qualquer modo em seu sacrifício? E se ao
menos reconhecessem inteiramente a injustiça de suas posi­
ções. Mas, precisamente as aceitaram, acomodaram-se a
elas, graças a meios que veremos. Se não pode superar esse
insuportável moralismo que o impede de viver, se nele crê
tão fortemente, que comece por partir: dará a prova da se­
riedade de seus sentimentos e resolverá seus problemas. . .
e deixará de criar problemas para seus compatriotas. Senão,
é inútil supor que possa continuar a perturbá-los impune­
mente. Passarão ao ataque e lhe devolverão golpe por gol-
35
pe; seus camaradas tornar-se-ão intratáveis, seus superiores
o ameaçarão; até sua mulher interferirá e chorará — as mu­
lheres têm menos preocupação da humanidade abstrata —
e confessa, os colonizados nada significam para ela e só se
sente à vontade entre os europeus.
Não lhe restará, então, outra saída a não ser a submissãc
no seio da coletividade colonial ou a partida? Sim, resta
ainda uma. Já que sua rebelião lhe fechou as portas da co­
lonização e o isolou no meio do deserto colonial, por que
não bateria à porta do colonizado, que ele defende, e que
certamente, lhe abriria os braços, reconhecido? Descobriu
que um dos campos era o da injustiça, o outro é, então, o
do direito. Que dê um passo a mais, que vá até o fim de sua
revolta, a colônia não se limita aos europeus! Recusando os
colonizadores, condenado por eles, que adote os colonizados
e por eles se faça adotar: que se tornçjjrânsfuga.^
Na verdade, tão pouco numerosos são os^cõlÕnizadores,
mesmo com muito boa vontade, dispostos a enfrentar esse
caminho, que o problema é antes teórico; é decisivo, no en­
tanto, para a inteligência do fato colonial. Recusar a colo­
nização é uma coisa, adotar o colonizado e fazer-se por ele
adotar, são coisas diferentes, que de modo algum estão li­
gadas.
Para conseguir esta segunda conversão, teria sido ne­
cessário, segundo parece, que nosso homem fosse um herói
moral; e muito antes disso, a vertigem dele se apodera; a
rigor, já dissemos, seria necessário que rompesse econômica
e administrativamente com o campo dos opressores. Seria a
única maneira de tapar-lhes a boca. Que demonstração deci­
siva, renunciar à quarta parte do ordenado ou desprezar os
favores da administração! Deixemos isso, contudo; admite-
se perfeitamente hoje em dia que se possa ser, esperando a
revolução, revolucionário e explorador. Descobre que, se os
colonizados têm a justiça em seu favor, se pode ir até ao
ponto de levar-lhes sua aprovação e mesmo sua ajuda, sua
solidariedade pára aí: ele não é dos seus e não tem vontade
alguma de sê-lo. Entrevê vagamente o dia de sua libertação,
a reconquista dos seus direitos, não pensa seriamente em
participar de sua existência mesmo liberta.
Traço de racismo? Talvez, sem que disso se dê muita
conta. Quem pode evitá-lo completamente em um país onde
36
todo mundo é por ele atingido, inclusive as vítimas? Será
tão natural assumir, mesmo em pensamento, sem ser obri­
gado a isso, um destino sobre o qual pesa tão grande des-
prêzo? Como procederia, aliás, para atrair sobre si esse des-
prêzo que se cola à pessoa do colonizado? E como lhe ocor­
reria a idéia de participar de uma eventual libertação, se já
é livre? Tudo isso realmente, não passa de um exercício
mental.
E depois, não, não é necessariamente racismo! Apenas
teve tempo de perceber que a colônia não é um prolonga­
mento da metrópole, que nela não está em sua casa! Isso
não é contraditório com suas questões de princípio. Ao con­
trário, porque descobriu o colonizado, sua originalidade
existencial, porque subitamente o colonizado deixou de ser
elemento de um sonho exótico para tornar-se humanidade
viva e sofredora, o colonizador se recusa a participar do seu
esmagamento, decide a vir em seu socorro. Mas, ao mesmo
tempo, compreende que não fez senão mudar de departa­
mento: tem diante de si uma outra civilização, costumes di­
ferentes dos seus, homens cujas reações freqüentemente o
surpreendem, com os quais não possui afinidades profundas.
E, já que chegamos a esse ponto, é necessário que con­
fesse a si mesmo — embora se recuse a fazê-lo com os colo­
nialistas ■
— não pode impedir-se de julgar essa civilização
e esse povo. Como negar que sua técnica é gravemente re­
tardatária, seus costumes estranhamente imobilizados, sua
cultura caduca? Oh! apressa-se em responder: essas carên­
cias não são atribuíveis aos colonizados, mas a decenios de
colonização, que cloroformizaram sua história. Alguns argu­
mentos dos colonialistas às vezes os perturbam, por exem­
plo: antes da colonização, os colonizados já não estavam
atrasados? Se deixaram-se colonizar, foi precisamente por­
que não tinham envergadura para lutar, nem militar nem
tècnicamente. Certamente, sua insuficiência passada nada
significa em relação ao seu futuro, nenhuma dúvida de que
se a liberdade lhes fosse dada, recuperariam esse atraso:
confiam plenamente no genio dos povos, de todos os povos.
Acontece, porém, que admite uma diferença fundamental
entre o colonizado e eie mesmo. O fato colonial é um fato
histórico especifico, a situação e o estado do colonizado,
37
atuais bem entendido, são, no entanto, particulares. Admite
também que essa não é nem sua realidade, nem sua situa­
ção, nem seu estado atual.
Certamente, mais do que os grandes movimentos inte­
lectuais, os pequenos desgastes da vida quotidiana o confir­
marão nessa descoberta decisiva. Comeu cuscus a princípio
por curiosidade, agora o prova de vez em quando por poli­
dez, acha que “isso empanturra, empanzina e não nutre, é,
diz brincando, o "abafa-cristão". Ou, se gosta do cuscus
não pode suportar essa “música de feira” que o assalta e
o abcyrece cada vez que passa diante de um café; "por que
tão alto? como fazem para ouvir-se?”. Sofre com esse cheiro
de velha gordura de carneiro que empesta a casa, desde o
desvão sob a escada, onde mora o guarda colonizado. Mui­
tos dos traços do colonizado o chocam ou irritam; tem re­
pulsas que não chega a esconder e as manifesta em obser­
vações que lembram curiosamente as dos colonialistas. Em
verdade, está longe, o momento em que estava convencido,
a priori, da identidade da natureza humana em todas as la­
titudes. Sem dúvida, ainda acredita nessa identidade, mas,
como em uma universalidade abstrata ou em um ideal situa­
do no futuro da história.
Ides longe demais, dirão, vosso colonizador de boa von­
tade não o é mais tanto assim: evoluiu lentamente, já não
é um colonialista? De modo algum; a acusação seria, a maior
parte das vezes, precipitada e injusta. Simplesmente não se
pode viver, e a vida toda, naquilo que permanece para nós
como pitoresco, quer dizer em um grau mais ou menos in­
tenso de expatriação. É possível interessar-se pelo pitoresco
como turista, apaixonar-se por ele durante algum tempo,
acaba por fartar-se dêle, por defender-se dêle. Para viver
sem angústia, é preciso viver distraído de si mesmo e do
mundo; é preciso reconstituir em torno de si os odores e os
ruídos da infância, que são os únicos econômicos pois não
requerem senão gestos e atitudes mentais espontâneas. Seria
tão absurdo exigir tal sintonia por parte do colonizador de
boa vontade quanto pedir aos intelectuais de esquerda que
imitassem os operários, como foi moda em certo momento.
Após ter-se obstinado por algum tempo em parecer desar­
rumado, em usar indefinidamente as mesmas camisas, em
usar sapatos com pregos, foi preciso reconhecer a estupidez
38
da empresa. Aqui, no entanto, a língua, a maneira de cozi­
nhar são as mesmas, os lazeres incidem nos mesmos temas
e as mulheres seguem o mesmo ritmo da moda. O coloniza­
dor não tem outra coisa a fazer senão renunciar a qualquer
identificação com o colonizado.
— Por que não usar um turbante nos países árabes e
não pintar a cara de preto nos países negros? retorquiu-me
um dia com irritação um instrutor.
Não é indiferente acrescentar que esse instrutor era
comunista.

A P olítica e o C olonizador de B oa V ontade

Dito isto, admito de bom grado seja necessário evitar


um excessivo romantismo da diferença. Pode-se pensar que
as dificuldades de adaptação do colonizador de boa vontade
não têm maior importância, que o essencial é a firmeza da
atitude ideológica, a condenação da colonização. A não ser,
evidentemente, que essas dificuldades acabem por perturbar
a retidão do julgamento ético. Ser da esquerda ou da direi­
ta não é apenas uma maneira de pensar, mas também (prin­
cipalmente, talvez) uma maneira de sentir e de viver. Note­
mos apenas que raros são os colonizadores que não se dei­
xam invadir por essas repulsas e essas dúvidas, e, além
disso, que esses matizes devem ser tomados em considera­
ção para compreender suas relações com o colonizado e o
fato colonial.
Suponhamos pois que nosso colonizador de boa vonta­
de tenha conseguido por entre parêntesis, ao mesmo tempo,
o problema de seus próprios privilégios, e o de suas dificul­
dades afetivas. Não nos resta com efeito senão considerar
sua atitude ideológica e política.
Era comunista ou socialista, de qualquer matiz, ou ape­
nas democrata; e assim continuou na colônia. Decidiu, fos­
sem quais fossem os avatares de sua própria sensibilidade
individual ou nacional, continuar a sê-lo; melhor ainda, a
agir como comunista, socialista ou democrata, quer dizer a
trabalhar pela igualdade econômica e pela liberdade social,
39
o que se deve traduzir na colônia pela luta em favor da
libertação do colonizado e da igualdade entre colonizadores
e colonizados.

O N acionalismo e a E squerda

Abordamos agora um dos capítulos mais curiosos da


história da esquerda contemporânea (se tivessem ousado
escrevê-lo) e que se poderia intitular o nacionalismo e a es­
querda. A atitude política do homem de esquerda a respeito
do problema colonial seria um dos seus parágrafos; as rela­
ções humanas vividas pelo colonizador de esquerda, a ma­
neira pela qual recusa e vive a colonização, formariam
outro.
Existe um incontestável mal-estar da esquerda européia
em face do nacionalismo. O socialismo pretendeu ter voca­
ção internacionalista durante tanto tempo que essa tradição
pareceu ligar-se definitivamente à sua doutrina, e incluir-se
entre as seus princípios fundamentais. Nos homens de es­
querda da minha geração, a palavra nacionalista ainda pro­
voca uma reação de desconfiança senão de hostilidade. Des­
de que a URSS, "pátria internacional” do socialismo, co-
locou-se como nação -— por motivos que seria longo exami-
çar aqui —, suas razões não pareceram de modo algum
convincentes a muitos de seus admiradores mais devotados.
Ultimamente, disso nos lembramos, os governos dos povos
ameaçados pelo nazismo apelaram, após breve hesitação,
para as respostas nacionais, um pouco esquecidas. Desta
vez, os partidos operários, preparados pelo exemplo russo,
na iminência do perigo, tendo descoberto que o sentimento
nacional permanecia poderoso no seio de suas tropas, res­
ponderam a esse apelo e com ele colaboraram. O partido
comunista francês chegou a retomá-lo por conta própria,
reivindicardo-se como “partido nacional”, reabilitando a
bandeira tricolor e a Marselhesa. E foi ainda essa tática —
ou essa renovação — que prevaleceu após a guerra contra
a invasão dessas velhas nações pela jovem América. Em lu­
gar de bater-se em nome da ideologia socialista contra um

40
perigo capitalista, os partidos comunistas e grande parte da
esquerda, preferiram opor uma entidade nacional a outra
entidade nacional, assimilando deploravelmente americanos
e capitalistas. De tudo isso, resultou certa confusão na ati­
tude socialista a respeito do nacionalismo, uma hesitação na
ideologia dos partidos operários. A reserva dos jornalistas
e ensaístas de esquerda diante desse problema é muito sig­
nificativa. Enfrentam-no o menos possível, não ousam nem
condená-lo nem aprová-lo, não sabem nem mesmo se que­
rem integrá-lo, incluí-lo na sua compreensão do futuro his­
tórico. Em uma palavra, a esquerda atual está desorientada
diante do nacionalismo.
Ora, por múltiplas razões, históricas, sociológicas e psi­
cológicas, a luta dos colonizados pela sua libertação assu­
miu acentuado aspecto nacional e nacionalista. Se a esquer­
da européia não pode senão aprovar, encorajar e sustentar
esta luta, como toda e qualquer esperança de liberdade,
sente profunda hesitação, real inquietação diante da forma
nacionalista dessas tentativas de libertação. Há mais: a re­
novação nacionalista dos partidos operários é principalmen­
te uma forma para um mesmo conteúdo socialista. Tudo se
passa como se a libertação social, que permanece a finali­
dade última, constituísse um avatar da forma nacional mais
ou menos durável: apenas as Internacionais tinham enter­
rado cedo demais as nações. Ora, o homem de esquerda
nem sempre percebe, com suficiente evidência, o conteúdo
social imediato da luta dos colonizados nacionalistas. Em
suma, o homem de esquerda não encontra na luta do colo­
nizado, que sustenta a priori, nem os métodos tradicionais
nem as finalidades últimas dessa esquerda da qual faz parte.
E, bem entendido, essa inquietação, essa desambientação
são singularmente agravadas no colonizador de esquerda,
quer dizer no homem de esquerda que vive na colônia e
convive diariamente com o nacionalismo.
Tomemos um exemplo entre os meios utilizados nessa
luta: o terrorismo. Sabemos que a tradição da esquerda con­
dena o terrorismo e o assassinato político. Desde que os
colonizados passaram a empregá-los, a perplexidade do co­
lonizador de esquerda se tornou muito grave. Esforça-se
por separá-los da ação voluntária do colonizado, por fazer
deles um epifenõmeno de sua luta: são, assegura ele, explo-
41
sões espontâneas de massas oprimidas durante muito tem­
po. Ou melhor, ações de elementos instáveis, duvidosos, di­
ficilmente controláveis pela cúpula do movimento. Muito ra­
ros foram os que, mesmo na Europa, perceberam e admiti­
ram, ousaram dizer que o esmagamento do colonizado era
tal, tal era a desproporção de forças, que foi compelido,
moralmente com ou sem razão, a utilizar voluntariamente
esses meios. O colonizador de esquerda em vão se esforça­
va, certos atos lhe pareceram incompreensíveis, escandalosos
e politicamente absurdos; como, por exemplo, a morte de
crianças ou de estrangeiros na luta, ou mesmo de coloniza­
dos que, no fundo de acordo, desaprovavam este ou aquele
pormenor da empresa. A princípio ficou tão perplexo que
não achava outra saída senão negar tais atos; não podiam
encontrar lugar algum, com efeito, na sua perspectiva do
problema. Que a crueldade da opressão explicasse a ceguei­
ra da reação, não lhe pareceu um argumento satisfatório:
não pode aprovar no colonizado o que combate na coloniza­
ção, justamente porque condena a colonização.
Em seguida, desconfiando sempre que as notícias fos­
sem falsas, diz, em desespero de causa, que tais ações são
erros, isto é, não deveriam fazer parte da essência do movi­
mento. O s chefes certamente as desaprovam, afirma cora­
josamente. Um jornalista que sempre defendeu a causa dos
colonizados, cansado de esperar pelas condenações que não
vinham, acabou um dia intimando publicamente certos che­
fes a tomarem posição contra os atentados. N ão recebeu, é
claro, resposta alguma, nem teve também a ingenuidade de
insistir.
D iante desse silêncio, que restava fazer? Interpretar.
Pôs-se a explicar o fenômeno, a explicá-lo aos outros, como
seu m al-estar permitia: mas nunca, observemos, a justificá-
lo. O s chefes, acrescenta agora, não podem falar, não fala­
rão, mas nem por isso deixam de pensar no assunto. Teria
aceito com alívio, com alegria, o menor sinal de entendi­
mento. E, como esses sinais não podem vir, encontra-se di­
ante de terrível alternativa: ou, assimilando a situação colo­
nial a qualquer outra, deve aplicar-lhe os mesmos esquemas,
julgá-la e julgar o colonizado segundo seus valores tradicio­
nais, ou considerar a conjuntura colonial como original e re­
nunciar aos seus hábitos de pensamento politico, aos seus

42
valores, quer dizer, precisamente àquilo que o levou a to­
mar partido. Em suma, ou não reconhece mais o colonizado
ou não se reconhece mais. Todavia, não podendo decidir-se
a escolher um desses caminhos, permanece na encruzilhada
e fica no ar: atribui a uns e outros, de acordo com sua con­
veniência, intenções inconfessáveis, reconstrói um colonizado
segundo seus desejos; em suma, entrega-se à fabulação.
Nem por isso está menos preocupado com o futuro des-.
ta libertação, ao menos com o seu futuro próximo. É fre­
qüente que a futura nação que se adivinha, que já se afirma
além da luta, se queira religiosa, por exemplo, ou não revele
preocupação alguma de liberdade. Ainda aí não há outra
saída senão a de atribuir-lhe um pensamento oculto, mais
ousado e mais generoso: no fundo de seus corações, todos
os combatentes lúcidos e responsáveis não são apena^ teo-
cratas, têm o gosto e a veneração da liberdade. É a conjun­
tura que os obriga a disfarçar seus verdadeiros sentimentos;
sendo a fé ainda muito viva nas massas colonizadas, devem
levá-la em conta. Não manifestam preocupações democrá­
ticas? Obrigados a aceitar todas as colaborações, evitam
assim chocar os proprietários, burgueses e feudais.
Contudo, os fatos, rebeldes, quase nunca chegam a co­
locar-se nos lugares indicados pelas suas hipóteses; e o mal-
estar do colonizador de esquerda permanece vivo, sempre
renascente. Os chefes colonizados não podem condenar os
sentimentos religiosos de suas tropas, ele o reconhece, mas
dar a se servirem desses sentimentos! Essas proclamações
em nome de Deus, o conceito de guerra santa, por exemplo,
o confunde, o apavora. Será, realmente, pura tática? Como
não verificar que a maior parte das nações ex-colonizadas
se apressam, tão logo livres, a inscrever a religião na sua
constituição? Que suas polícias, suas estruturas jurídicas
nascentes em nada correspondem às premissas da liberdade
e da democracia que o colonizador da esquerda esperava?
Então, temendo no fundo de si mesmo enganar-se ain­
da uma vez, recuará um passo, apostará em um futuro um
pouco mais longínquo: Mais tarde, certamente, surgirão do
seio desses povos, guias que exprimirão suas necessidades
não mistificadas, que defenderão seus verdadeiros interes­
ses, de acordo com os imperativos morais (e socialistas) da
história. Era inevitável que só os burgueses e os feudais,
43
que puderam fazer alguns estudos, fornecessem quadros e
imprimissem essa cadência ao movimento. M ais tarde os co­
lonizados livrar-se-ão da xenofobia e das tentações racistas,
que o colonizador de esquerda discerne com inquietação.
Reação inevitável ao racismo e à xenofobia do colonizador;
é preciso esperar que desapareçam o colonialismo e as ch a­
gas que deixou na carne dos colonizados. M ais tarde, p o ­
derão desembaraçar-se do obscurantismo religioso. . .
M as, enquanto espera, o colonizador de esquerda não
pode deixar de permanecer dividido em relação ao sentido
da luta imediata. Ser de esquerda, p ara ele, não significa
apenas aceitar e ajudar a libertação nacional dos povos, mas
também a democracia política e a liberdade, a dem ocracia
econômica e a justiça, a recusa da xenofobia racista e a uni­
versalidade, o progresso material e espiritual. E se to d a
esquerda verdadeira deve querer e aju d ar a prom oção n a ­
cional dos povos, é também, para não dizer principalm ente,
porque essa promoção significa tudo isso. Se o colonizador
de esquerda recusa a colonização e se recusa a si mesmo
como colonizador, é em nome desse ideal. O ra, descobre
que não há ligação entre a libertação dos colonizados e a
aplicação de um program a de esquerda. M elhor ainda, que
:alvez ajude o nascimento de uma ordem social onde não há
lugar para um homem de esquerda enquanto tal, ao menos
em futuro próximo.
Acontece mesmo que, por diversas razões — p ara con­
ciliar a simpatia das forças reacionárias, realizar uma união
nacional ou por convicção — os movimentos de libertação
afastam desde logo a ideologia de esquerda e recusam sis­
tematicamente sua ajuda, colocando-a assim em insuportável
embaraço, condenando-a à esterilidade. Assim, enquanto
militante de esquerda, o colonizador encontra-se p ratica­
mente excluído do movimento de libertação colonial.

O T rânsfuga

Suas próprias dificuldades, aliás, essa hesitação que,


vista de fora, assemelha-se, curiosamente, ao arrependim ento,
ainda mais o excluem, o tornam suspeito, não apenas aos

44
olhos do colonizado mas também junto às pessoas da es­
querda metropolitana; e é isso que mais o faz sofrer. Rom­
peu com os europeus da colônia, mas assim o quis, despreza
suas injúrias, delas até se orgulha. Mas as pessoas de es­
querda são verdadeiramente suas, os juízes que se atribui,
diante dos quais faz questão de justificar sua vida na colô­
nia. Ora, seus pares e seus juízes não o compreendem; a
menor de suas tímidas reservas não desperta senão descon­
fiança e indignação. E então, lhe dizem, um povo espera,
suportando fome, doença e desprezo, uma criança em cada
quatro morre sem completar um ano, e lhe pede garantias
quanto aos meios e o fim! E quantas condições exige para
colaborar! Trata-se realmente, nessa questão, de ética e de
ideologia! A única tarefa no momento é a de libertar esse
povo. Quanto ao futuro, terá sempre tempo de ocupar-se
dele quando se tornar presente. No entanto, insiste ele, já
podemos prever a fisionomia do após-libertação. .. Farão
que se cale com um argumento decisivo — na medida que
se trata de uma recusa pura e simples de encarar esse futu­
ro — mostrando-lhe que o destino do colonizado não lhe
diz respeito, que aquilo que o colonizado fizer de sua liber­
dade não concerne senão ao próprio colonizado.
Então, nada mais compreende. Se quer ajudar o colo­
nizado, é justamente porque seu destino lhe diz respeito,
porque seus destinos se cruzam, referem-se um ao outro,
porque espera continuar a viver na colônia. Não se pode
impedir de pensar com amargura que a atitude das pessoas
de esquerda na metrópole é bastante abstrata. Cer.tamente,
na época da resistência contra os nazistas, a única tarefa
que se impunha e que unia todos os combatentes era a li­
bertação. Mas todos lutavam também por determinado fu­
turo político. Se tivessem assegurado aos grupos de esquer­
da, por exemplo, que o futuro regime seria teocrático e auto­
ritário, ou, aos grupos de direita, que seria comunista, se ti­
vessem compreendido que, por motivos sociológicos imperio­
sos, seriam esmagados após a luta, teriam, uns e outros,
continuado a combater? Talvez; mas, teríamos julgado suas
hesitações, suas inquietações tão chocantes? O colonizador
de esquerda pergunta a si mesmo se não pecou por orgulho,
acreditando que o socialismo fosse exportável e o marxismo
45
universal. Nessa questão, confessa, julgava-se no direito de
defender sua concepção do mundo, de acordo com a qual
esperava orientar sua vida.
Um golpe ainda, porém: já que todo mundo parece es­
tar de acordo, a esquerda metropolitana e o colonizado
(concordando curiosamente a esse respeito com o colonia­
lista, que afirma a heterogeneidade das mentalidades) já
que todo mundo lhe acena “boa-tarde, Basile!”, submeter-
se-á. Defenderá a libertação incondicional dos colonizados,
com os meios dos quais se servem, e o futuro que parecem
ter escolhido. Um jornalista do melhor semanário da esquer­
da francesa acabou por admitir que a condição humana pos­
sa significar o Alcorão e a Liga árabe. O Alcorão, admite-
se; mas a Liga árabe! A justa causa de um povo deverá im­
plicar suas mistificações e seus erros? Para não ser excluído
ou tornar-se suspeito, o colonizador de esquerda aceitará,
no entanto, todos os temas ideológicos dos colonizados em
luta: esquecerá provisoriamente que é de esquerda.
E acabou? Nada é menos certo. Porque, para conseguir
tornar-se um trânsfuga, como tinha resolvido afinal, não é
suficiente aceitar totalmente aqueles pelos quais deseja ser
adotado, é preciso ainda ser adotado por eles.
O primeiro ponto não deixava de envolver dificuldade
e contradição grave, pois precisaria abandonar aquilo pelo
que fazia tantos esforços: seus valores políticos. Nem tam­
pouco uma quase utopia cuja possibilidade admitimos. O in­
telectual ou o burguês progressista pode desejar que se ate­
nue um dia aquilo que o separa dos seus camaradas de luta;
são características de classe às quais renunciaria de bom
grado. Mas, não aspira seriamente a mudar de língua, de
hábitos, de religião, etc. . . , mesmo pela paz de sua cons­
ciência, mesmo pela sua segurança material.
O segundo ponto não é também muito fácil. Para que
se integre realmente no contexto da luta colonial, não é su­
ficiente sua total boa vontade, é preciso ainda que sua ado­
ção pelo colonizado seja possível: ora, ele desconfia que não
terá lugar na futura nação. Será a última descoberta, a mais
perturbadora para o colonizador de esquerda, aquela que faz
frequentemente às vésperas da libertação dos colonizados,
embora na verdade fosse previsível desde o começo.
46
I 1/ W V f» VAAJ ^ w /W I -
' Para compreender esse ponto, é preciso recordar este '■
traço essencial da natureza do fato colonial^a situação co­
lonial^é^rêíaPçSo de povo com 'povõ. Ora, ele faz parte do
povo opressor e será, queira ou não, condenado a participar
do seu destino, como participou de sua fortuna. Se os seus,
os colonizadores, devessem um dia ser expulsos da colônia,
o colonizado não faria provavelmente exceção em seu favor:
se pudesse continuar a viver no meio dos colonizados, como
estrangeiro tolerado, suportaria, com os antigos colonizado­
res, o rancor de um povo outrora por eles maltratado: se o
poderio da metrópole devesse, ao contrário, permanecer na
colônia, continuaria a recolher sua parte de ódio, malgrado
suas manifestações de boa vontade. A bem dizer, o estilo
de uma colonização não depende de um ou de alguns indi­
víduos generosos ou lúcidos. As relações coloniais não de­
pendem da boa vontade ou do gesto individual: existiam
antes de sua chegada ou de seu nascimento, quer as aceite
ou as recuse não as modificará profundamente: são elas, ao
contrário, que, como toda instituição, determinam a priori
seu lugar e o do colonizado e, em definitivo, suas verdadei­
ras relações. Em vão, se tranqüilizará: "Sempre fui isso ou ,
aquilo com os colonizados”, desconfia, embora não seja de
modo algum culpado como indivíduo, que participa de uma
responsabilidade coletiva, enquanto' membro de um grupo
nacional opressor. Oprimidos como grupo, os colonizados
adotam fatalmente uma forma de libertação nacional e étni­
ca, da qual ele não pode deixar de ser excluído. (
Como poderia impedir-se de pensar, uma vez mais, que
essa luta não é a sua? Por que lutaria por uma ordem social
na qual compreende, aceita e decide que não haverá lugar
para ele?

I mpossibiíidade do C olonizador de E squerda

Visto mais de perto, o papel do colonizador de esquer­


da desaparece. Existem, creio eu, situações históricas im­
possíveis, essa é uma delas. Sua vida atual na colônia é fi­
nalmente inaceitável pela ideologia do colonizador de es­
querda, e se essa ideologia triunfasse poria em questão sua
47
própria existência. A conseqüência lógica de semelhante
tomada de consciência seria o abandono desse papel.
Pode tentar, sem dúvida, um compromisso e toda sua
vida será uma longa série de acomodações. Os colonizados
no meio dos quais vive não são e jamais serão sua gente.
Tudo bem pesado, não pode identificar-se com eles e eles
não podem aceitá-lo. “Estou mais à vontade com os euro­
peus colonialistas, confessou-me um colonizador de esquer­
da acima de qualquer suspeita, do que com não importa qual
dos colonizados.” Não considera, se é que algum dia con­
siderou, essa assimilação; falta-lhe, aliás, a imaginação ne­
cessária a semelhante revolução. Quando lhe acontece so­
nhar com um amanhã, com um estado social inteiramente
novo onde o colonizado deixaria de ser um colonizado, não
considera de modo algum, em compensação, uma transfor­
mação profunda de sua própria situação e de sua própria
personalidade. Nesse novo estado, mais harmonioso, conti­
nuará a ser aquilo que é, com sua língua preservada e suas
tradições culturais dominantes. Por uma contradição afetiva
que não vê em si mesmo ou que se recusa a ver, espera con­
tinuar a ser europeu de direito divino em um país que não
mais seria a coisa da Europa; mas desta vez do direito di­
vino do amor e da confiança reencontrada. Não seria mais
protegido e imposto pelo seu exército mas pela fraternidade
dos povos. Juridicamente, apenas algumas pequenas mudan­
ças administrativas, das quais não adivinha o sabor real e
as conseqüências. Sem dela ter uma idéia legislativa clara,
espera, vagamente, fazer parte da futura jovem nação, mas
se reserva firmemente o direito de permanecer um cidadão
do seu país de origem. Enfim, aceita que tudo mude, faz
votos pelo fim da colonização, mas recusa-se a admitir que
essa revolução possa acarretar um transtorno de sua situa­
ção e do seu ser. Pois é demais pedir à imaginação que ima­
gine seu próprio fim, mesmo que seja para renascer dife­
rente; principalmente se, como o colonizador, não se apre­
cia muito esse renascimento.
Compreende-se agora ura dos traços mais decepcionan­
tes do colonizador de esquerda: sua ineficácia política. Está,
antes de mais nada, nele próprio. Decorre do caráter parti­
cular de sua inserção na conjuntura colonial. Sua reivindi­
cação, comparada à do colonizado, ou mesmó à do coloni-
48
zador de direita, é aérea. Onde já se viu, aliás, uma reivin­
dicação política séria — que não seja uma mistificação ou
uma fantasia — que não se apóie em sólidas defesas con­
cretas, seja a massa ou o poder, o dinheiro ou a força? O
colonizador de direita é coerente quando exige o statu quo
colonial, ou mesmo quando cinicamente reclama ainda mais
privilégios, ainda mais direitos; defende seus interesses e seu
modo de vida, pode mobilizar forças imensas para apoiar
suas exigências. A esperança e a vontade do colonizado não
são menos evidentes e fundadas sobre forças latentes, mal
reveladas a elas mesmas, suscetíveis, porém, de surpreen­
dentes desenvolvimentos. O colonizador de esquerda se re­
cusa a fazer parte do grupo de seus compatriotas; ao mesmo
tempo lhe é impossível fazer coincidir seu destino com o do
colonizado. Que é, politicamente? De quem é a expressão a
não ser de si mesmo, quer dizer de uma força desprezível
no cômputo geral?
Sua vontade política ressentir-se-á de uma falha pro-
funda, a de sua própria contradição. Se tenta fundar um .
jrtioo político, nele não interessará senão seus semelhantes,
que já são colonizadores de esquerda, ou outros trânsfugas, (
nem colonizadores nem colonizados, eles mesmos em situa­
ção falsa. Jamais conseguirá atrair a massa de colonizadores,
cujos interesses e sentimentos contraria por demais; nem os
colonizados, pois seu grupo não saiu deles nem é por eles
sustentado, como devem ser os partidos de profunda expres­
são popular. Que não tente tomar alguma iniciativa, desen-. (
cadear uma greve, por exemplo; verificaria imediatamente
sua absoluta impotência, sua exterioridade. Caso se dispu­
sesse a oferecer incondicionalmente sua ajuda, nem por isso
estaria seguro de ter interferido nos acontecimentos; seu au­
xílio é quase sempre recusado e sempre tido como despre­
zível. Finalmente, esse ar de gratuidade não faz senão sub­
linhar ainda mais sua impotência política.
Êsse hiato entre sua ação e a do colonizado terá con­
seqüências imprevisíveis e freqüentemente intransponíveis.
Malgrado seus esforços para alcançar a realidade política da
colônia, estará constantemente deslocado na sua linguagem
e nas suas manifestações. Ora hesitará ou recusará tal rei­
vindicação do colonizado, da qual não compreenderá logo
a significação, o que parecerá confirmar sua tibieza. Ora,

49
querendo rivalizar com os nacionalistas menos realistas, en­
tregar-se-á a uma demagogia verbal, que, pelos próprios
exageros, aumentará a desconfiança do colonizado. Proporá
explicações tenebrosas e maquiavélicas dos atos do coloni­
zador, onde o simples jogo da mecânica colonizadora seria
suficiente. Ou, para surpresa irritada do colonizador, des­
culpará ruidosamente aquilo que este último condena em si
mesmo. Em suma, recusando o mal, o colonizador de boa
vontade jamais pode alcançar o bem, pois a única escolha
que lhe é permitida não é entre o bem e o mal, é entre o mal
e o mal-estar.
Não pode, enfim, deixar de interrogar-se sobre o efeito
de seus esforços e de sua voz. Seus acessos de furor verbal
não suscitam senão o ódio dos seus compatriotas e deixam
o colonizado indiferente. Porque não detém o poder, suas
afirmações e promessas não têm influência alguma na vida
do colonizado. Não pode, além disso, dialogar com o coloni­
zado, apresentar-lhe questões ou pedir garantias. Inclui-se
entre os opressores e tão logo faz um gesto equívoco, per-
mite-se o menor reparo, e crê poder entregar-se à franqueia
que autoriza a benevolência — e ei-lo suspeito iroeúiata-
mente. Admite, além disso, que não deve confundir com
dúvidas, perguntas públicas, o colonizado em luta. Em suma,
tudo lhe fornece a prova de sua expatriação, de sua solidão
e de sua ineficácia. Descobrirá lentamente que nada mais
lhe resta senão calar-se. Já estava obrigado a entremear suas
declarações de silêncios necessários, para não indispor gra­
vemente as autoridades da colônia e ser obrigado a deixar
o país. Será preciso confessar que esse silêncio com o qual
se dá muito bem, não o dilacera tanto assim? Que fazia, ao
contrário, esforço para lutar em nome de uma justiça abs­
trata por interesses que não são os seus, que freqüentemente
excluiam mesmo os seus?
Se não pode suportar esse silêncio e fazer de sua vida
um permanente compromisso, se está entre os melhores, pode
acabar também por deixar a colônia e seus privilégios. E se
sua ética política lhe proíbe o que considera algumas vezes
um abandono, fará tanta coisa, condenará as autoridades,
até que seja “posto à disposição da metrópole”, segundo o
pudico jargão administrativo. Deixando de ser um coloni­
zador, porá fim à sua contradição e ao seu mal-estar.

50
3

O Colonizador que se Aceita

. . . O u O COLONIALISTA

O colonizador que recusa o fato colonial não encontra


na sua revolta o fim do seu mal-estar. Se não se suprime
a si mesmo como colonizador, instala-se na ambigüidade.
Se repele essa medida extrema, concorre para confirmar,
para instituir a relação colonial: a relação concreta de sua
existência com a do colonizado. Podemos compreender .que
lhe seja mais cômodo aceitar a colonização, percorrer até o
fim do caminho que leva do colonial ao colonialista.
O colonialista não é, em suma, senão o colonizador que
se__aceita como colonizador.~Que, éin conseqüência, explicf-

51
tando sua situação, procura legitimar a colonização. Atitude
mais lógica, efetivamente mais coerente que a dança ator­
m entada do colonizador que se recusa, e continua a viver
na colônia. Um tenta, em vão, pautar sua vida pela sua
ideologia; o outro sua ideologia pela sua vida, unificar e
justificar sua conduta. Em resumo, o colonialista é a voca­
ção natural do colonizador.
É freqüente opor-se o imigrante ao colonialista de nas­
cimento. O imigrante adotaria mais facilmente a doutrina
colonialista. M ais fatal, sem dúvida, é a transformação do
colonizador-nativo em colonialista. A influência familiar, os
interesses constituídos, as situações adquiridas de que vive
e dos quais o colonialismo é a ideologia, restringem sua liber­
dade. N ão penso, contudo, que a distinção seja fundamen­
tal. A condição objetiva de privilegiado-usurpador é idên­
tica para os dois, para aquele que a herda ao nascer, e para
aquele que dela desfruta desde o desembarque. M ais ou me­
nos rápida, mais ou menos aguda, sobrevém necessariamen­
te a tomada de consciência do que são, do que se tornarão,
ao aceitar essa condição.
Já não é bom sinal ter decidido tentar a vida na colô­
nia. Ao menos na maioria dos casos; como não é sinal posi­
tivo esposar um dote. Sem falar do imigrante que está dis­
posto, quando parte, a tudo aceitar; vindo expressamente
para gozar das vantagens da colônia. Este será colonialista
por vocação.
------- y
Seu modelo é corrente e seu retrato fácil de fazer. Ge­
ralmente, o homem é jovem, prudente e policiado, sua espi­
nha dorsal é flexível, seus dentes afiados. H aja o que hou­
ver, ele tudo justifica, as pessoas nos cargos e o sistema.
Simulando nada ter visto da miséria e da injustiça que en­
tram pelos olhos; empenhado apenas em conseguir seu lugar,
obter sua parte. O mais freqüente, aliás, é ter sido chamado
e enviado à colônia: um protetor o envia, um outro o rece­
be, e seu lugar o espera. Mesmo que não tenha sido cha­
mado, é rapidamente eleito. O tempo necessário para que
entre em ação a solidariedade colonizadora: pode-se deixar
mal um compatriota? Quantos deles vi, chegados na véspe­
ra, tímidos e modestos, subitamente providos de um título
surpreendente, verem sua obscuridade iluminada por um
prestígio que os espanta a eles mesmos. Depois, sustentados/
pelo corpete de sua função social, levantam a cabeça e, logo,;1
adquirem tão desmesurada confiança em si mesmos que se
tornam estúpidos. Como não se felicitariam por terem ido /
para a colônia? Como não se convenceriam da excelência do
sistema que os faz ser o que são? Doravante, o defenderão
agresàivamente; acabarão por imaginá-lo justificado. Em
suma, transformaram-se em colonialistas.
Se a intenção não era tão nitida, o desfecho não é di­
ferente no colonialista por persuasão. Funcionário lá nomea­
do por acaso, ou primo a quem o primo oferece asilo, pode
mesmo ser de esquerda ao chegar e transformar-se irresis­
tivelmente, pelo mesmo mecanismo fatal, em colonialista in­
tratável ou dissimulado. Como se lhe bastasse atravessar o
mar, como se tivesse apodrecido de calor!
Inversamente, entre os colonizadores-nativos, se a
maioria se agarra à chance histórica e a defende a todo pre­
ço, existem alguns que percorrem o itinerário oposto, re­
cusando a colonização ou acabando mesmo por deixar a co­
lônia. A maior parte das vezes, são os muito jovens, os mais
generosos, os mais abertos, que,, ao sair da adolescência,
decidem não fazer sua vida de homem na colônia. Nos dois
casos, os melhores vão embora. Seja por ética: não supor­
tando serem beneficiários da injustiça quotidiana. Seja sim­
plesmente por orgulho: porque se julgam de melhor quali­
dade que o colonizador médio. Fixam-se em outras ambições
e em outros horizontes que não são os da colônia e que, ao
contrário do que se crê, são muito limitados, por demais
previstos, depressa esgotados por indivíduos com alguma
personalidade. Nos dois casos, a colônia não pode reter os
melhores: os que estão de passagem e se vão, ao esgotar o
contrato, indignados ou irônicos e desabusados: nativos, que
não suportam o jógo trapaceado, onde é fácil demais ser
bem sucedido, onde não se pode dar sua plena medida.
‘‘Os colonizados bem sucedidos são habitualmente su­
periores aos europeus da mesma categoria, confessava-me
com amargura um presidente de júri. Podemos estar conven­
cidos, como eles o estão, de que o mereceram".

53
A M ediocridade
Essa constante filtração do grupo colonizador explica
um dos traços mais freqüentes no colonialista: sua medio­
cridade.
A impressão se agrava por uma decepção talvez ingê­
nua: o desequilíbrio é por demais flagrante entre o presti­
gio, as pretensões e as responsabilidades do colonialista e
suas capacidades reais, os resultados de sua ação. Não po­
demos evitar, quando nos aproximamos da sociedade colo­
nialista, a expectativa de encontrar uma elite, ao menos uma
seleção, os melhores técnicos por exemplo, os mais eficazes
ou os mais seguros. Essas pessoas ocupam, quase todas e
por toda a parte, de direito ou de fato, os primeiros luga­
res. Sabem disso e reivindicam as deferências e as honras.
A sociedade colonizadora quer ser uma sociedade dirigente
e se empenha em ter essa aparência. As recepções aos dele­
gados metropolitanos lembram muito mais as de um chefe
de governo que as de um prefeito. O menor percurso moto­
rizado é precedido por uma série de motociclistas imponen­
tes, estrepitosos e sibilantes. Nada se economiza a fim de
impressionar o colonizado, o estrangeiro e talvez o próprio
colonizador.
Ora, olhando mais de perto, não descobrimos, em ge­
ral, além do fausto ou do simples orgulho do pequeno colo­
nizador, senão homens de pequena estatura. Políticos, en­
carregados de modelar a história, quase sem conhecimentos
históricos, sempre surpresos com os acontecimentos, re­
cusando os fatos ou incapazes de prever. Especialistas, res­
ponsáveis pelo destino de um país e que se revelam técnicos
fora de combate, já que toda competição lhes é poupada.
Quanto aos administradores, um capítulo deveria ser escrito
sobre desleixo e a indigência da gestão colonial. É preciso
dizer, em verdade, que a melhor gestão da colônia não faz
parte, de modo algum, dos propósitos da colonização.
Como não há uma raça de colonizadores nem de colo­
nizados, é preciso realmente descobrir outra explicação para
a surpreendente carência dos senhores da colônia. Já assinala­
mos a hemorragia dos melhores; hemorragia dupla, de nativos
e de pessoas em trânsito. Esse fenômeno é seguido por outro,
complementar e desastroso: os medíocres, esses permane-

54
cem, e o resto da vida. Não esperavam tanto. Uma vez ins­
talados, evitarão por todos os meios perder seu lugar; salvo
se lhe propuserem um melhor, o que só pode acontecer na
colônia. Eis porque, contrariamente ao que se diz, e salvo
em alguns postos móveis por definição, o pessoal colonial
é relativamente estável. A promoção dos medíocres não é
um erro provisório, porém uma catástrofe definitiva, da qual
a colônia nunca se recompõe. As aves de arribação, mesmo
animadas por muita energia, jamais chegam a transformar
a fisionomia, ou simplesmente a rotina administrativa das
prefeituras coloniais.
Essa seleção gradual de medíocres, que se opera neces­
sariamente na colônia, é ainda agravada pela exigüidade do
campo de recrutamento. Somente o colonizador é convoca­
do, pelo nascimento, de pai para filho, de tio a sobrinho, de
primo a primo, por uma legislação exclusivista e racista, à
direção dos negócios da cidade. A classe dirigente, oriunda
exclusivamente do grupo colonizador, de longe o menos
numeroso, não se beneficia, pois, senão de uma ventilação
irrisória. Ocorre uma espécie de estiolamento por consan­
güinidade administrativa, se assim podemos dizer.
É o medíocre, enfim, que impõe o tom geral da colô­
nia. É ele o verdadeiro parceiro do colonizado, pois é quem
tem mais necessidade de compensação e da vida colonial. É
entre ele e o colonizado que se criam as relações coloniais
mais típicas. Apega-se tanto mais firmemente a essas rela­
ções, ao fato colonial, ao seu statu quo, quanto mais sua
existência colonial — ele o pressente — delas depende. Com­
prometeu-se a fundo e definitivamente com a colônia.
De sorte que, se todo colonialista não é um medíocre,
todo colonizador deve aceitar, até certo ponto, a mediocri­
dade da vida colonial, deve transigir com a mediocridade da
maioria dos homens da colonização.

O C omplexo de N ero

Como todo colonizador, deve transigir com sua situa­


ção objetiva, e com as relações humanas que dela decorrem.

55
Por ter decidido confirmar o fato colonial, o colonialista
nem por isso suprimiu as dificuldades objetivas. A situação
colonial impõe a todo colonizador dados econômicos, políti­
cos e afetivos, contra os quais pode insurgir-se, sem conse­
guir jamais desvencilhar-se deles, pois constituem a própria
essência do fato colonial. E, bem cedo, o colonialista desco­
bre sua própria ambigüidade.
Aceitando-se como colonizador, aceita, ao mesmo tem­
po, embora tenha decidido ir além, o que esse papel implica
em condenação, aos olhos dos outros e aos seus próprios.
Essa decisão não lhe traz, de forma alguma, uma bem-aven­
turada e definitiva tranqüilidade de alma. Ao contrário, o
esforço que fará para superar essa ambigüidade será uma
das chaves para a sua compreensão. E as relações humanas
na. colônia talvez tivessem sido melhores, menos ruinosas
para o colonizado, se o colonialista se houvesse convencido
da sua legitimidade. Em suma, o problema apresentado ao
colonizador que se recusa é o mesmo com que se defronta
o colonizador que se aceita. Somente suas soluções diferem:
a do colonizador que se aceita, transforma-o infalivelmente
em colonialista.
Dessa assunção de si mesmo e de sua situação, vão de­
correr, com efeito, vários traços que podemos agrupar em
um conjunto coerente. Essa constelação, propomos chamá-
la: o papel do usurpador (ou ainda o complexo de N e ro ).
Aceitar-se como colonizador, seria essencialmente, dis­
semos, aceitar-se como privilegiado não legítimo, quer dizer,
como usurpador. O usurpador, sem dúvida, reivindica seu
lugar e, se fôr necessário, o defenderá por todos os meios.
Admite, porém, que reivindica um lugar usurpado. Isto é, no
momento mesmo que triunfa, admite que triunfa dele mesmo
uma imagem que condena. Sua vitória de fato, portanto, ja­
mais o satisfará: resta-lhe inscrevê-la nas leis e na moral.
Ser-lhe-ia necessário para isso convencer os outros, senão
ele mesmo. Tem necessidade, em suma, para desfrutá-la
completamente, de lavar-se de sua vitória, e das condições
nas quais foi alcançada. Daí seu encarniçamento, surpreen­
dente por parte de um vencedor, em aparentes futilidades:
esforça-se por falsificar a história, faz reescrever os textos,
apagaria memórias. Não importa o quê, a fim de conseguir
transformar sua usurpação em legitimidade.

56
Como? Como pode a usurpação tentar passar por legi­
timidade? Duas operações parecem possíveis: demonstrar os
méritos eminentes do usurpador, tão eminentes que clamam
por semelhante recompensa; ou insistir nos deméritos do
usurpado, tão graves que não podem senão suscitar tal des­
graça. E esses dois esforços são de fato inseparáveis. Sua in­
quietude, sua sede de justificação exigem do usurpador, ao
mesmo tempo, que se eleve a si mesmo até as nuvens e que
afunde o usurpado mais baixo que a terra.
Além disso, tal complementaridade não esgota a rela-'
ção complexa desses dois movimentos. É preciso acrescentar
que, quanto mais o usurpado é esmagado, mais o usurpador
triunfa na usurpação; e, por conseguinte, confirma-se na sua
culpabilidade e na própria condenação: então, o jogo do
mecanismo se acentua, cada vez mais, aumentando sem ces­
sar, agravado pelo próprio ritmo. No fim, o usurpador ten­
tará fazer desaparecer o usurpado, cuja simples existência
o coloca como usurpador, cuja opressão cada vez mais pe­
sada o torna, a si mesmo, cada vez mais opressor. Nero, fi­
gura exemplar do usurpador, é levado assim a atormentar
raivosamente Britanicus, a persegui-lo. Quanto mais mal lhe
fizer, no entanto, mais coincidirá com o papel atroz que es­
colheu. E, quanto mais afundar-se na injustiça, mais detes­
tará Britanicus e mais procurará atingir sua vítima, que o
transforma em carrasco. Não satisfeito em lhe ter roubado
o trono, tentará arrebatar-lhe o único bem que lhe resta, o
amor de Junia. Não se trata nem de puro ciúme nem de
perversidade, mas dessa fatalidade interior da usurpação,
que o arrasta irresistivelmente a esta suprema tentação: a
supressão moral e física do usurpado.
No caso do colonialista, porém, esse limite encontra em
si mesmo sua própria regulação. Se pode desejar obscura-
mente — acontece-lhe proclamá-lo — riscar o colonizado do
mapa dos vivos, seria impossível fazê-lo sem atingir-se a «I
mesmo. Para alguma coisa serve a infelicidade: a exi.stêiu la
do colonialista está por demais ligada à do colonizado, |n
mais poderá superar essa dialética. Precisa negar, com Imlan
suas forças, o colonizado e, ao mesmo tem po, a « sIiICm
cia de sua vítima lhe é indispensável para continuai a m i o
que é. Desde que escolheu manter o sistema roloulal, deva
procurar defendê-lo com mais vigor do que lhe «eiln u»*.**

V
sário para recusá-lo. Desde que tomou consciência da injus­
ta relação que o une ao colonizado, é preciso que se empe­
nhe sem tréguas em absolver-se. Nunca se esquecerá de
fazer alarde de suas próprias virtudes, defender-se-á com
raivosa obstinação a fim de parecer heróico e grande, me­
recendo plenamente sua fortuna. Ao mesmo tempo, devendo
seus privilégios tanto à sua glória quanto ao aviltamento do
colonizado, obstinar-se-á em aviltá-lo. Utilizará para des­
crevê-lo as cores mais sombrias; agirá, se fôr preciso, para
desvalorizá-lo, para anulá-lo. Mas não sairá jamais deste
círculo: é preciso explicar a distância que a colonização es­
tabelece entre ele e o colonizado; ora, a fim de justificar-se,
é levado a aumentar mais ainda essa distância, a opor irre­
mediavelmente as duas figuras, a sua tão gloriosa, a do co­
lonizado tão desprezível.

Os Dois R etratos

Essa autojustificação desemboca assim em uma verda­


deira reconstrução ideal dos dois protagonistas do drama
colonial. Nada é mais fácil que reunir os traços supostos
desses dois retratos, apresentados pelo colonialista. Basta­
riam uma breve temporada na colônia, algumas conversas,
ou simplesmente a rápida leitura dos jornais ou dos roman­
ces chamados coloniais.
Essas duas imagens não são, como veremos adiante,
inconseqüentes. A do colonizado vista pelo colonialista, im­
posta por suas exigências, difundida na colônia, e freqüen­
temente no mundo, graças aos seus jornais, à sua literatura,
acaba por repercutir, de certa maneira, na conduta e por­
tanto na fisionomia real do colonizado.1 Assim também, a
maneira pela qual quer ver-se o colonizado, desempenha pa­
pel decisivo na emergência de sua fisionomia definitiva.
É que não se trata de simples adesão intelectual, mas
da escolha de todo um estilo de vida. E sse homem, talvez
amigo sensível e pai afetuoso, que, no seu pais de origem,

1 Ver, mais adiante, o retrato do colonizado.

58
por sua situação social, seu meio familiar, suas amizades
naturais, poderia ter sido um democrata, transformar-se-á
certamente em conservador, em reacionário ou mesmo em
fascista colonial. Não pode deixar de aprovar a discrimina­
ção e a codificação da injustiça, alegrar-se-á com as tortu­
ras policiais e, se preciso fôr, convencer-se-á da necessidade
do massacre. Tudo o levará a isso, seus novos interesses,
suas relações profissionais, seus laços familiares e de ami­
zade estabelecidos na colônia. O mecanismo é quase fatal:
a situação colonial fabrica colonialistas, como fabrica colo­
nizados .

O D esprezo de Si

Pois não é em vão que se tem necessidade da polícia


e do exército para ganhar a vida, da força e da iniqüidade
para continuar a existir. Não é impunemente que se aceita
viver sempre com sua própria condenação. O panegírico de
si mesmo e dos seus, a afirmação repetida, mesmo convicta,
da excelência de seus costumes, de suas instituições, de sua
superioridade cultural e técnica, não apagam a condenação
fundamental que todo colonialista carrega no fundo de si
mesmo. Como poderia não levá-la em conta? Tentasse en­
surdecer sua própria voz interior, que tudo, todos os dias,
a lembraria: a simples visão do colonizado, as insinuações
polidas ou as acusações brutais dos estrangeiros, as confis­
sões dos seus na colônia, e até na metrópole, onde se vê,
em cada viagem, cercado por uma desconfiança um tanto
invejosa, um pouco condescendente. É poupado sem dúvida
como todos aqueles que dispõem ou participam de qualquer
poder econômico ou político. Mas sugere-se que é um hábil,
que soube tirar partido de uma situação especial, cujo:i re
cursos seriam, em suma, de moralidade discutível. I’m
pouco, lhe piscariam o ôlho, como a dizer lhe que ii
compreendem.
Contra essa acusação, implícita nu innfe»»«tl« HIM
sempre presente, sempre preparada, nele niemiin * iut» nu
tros, defende-se como pode O r a InMule una dllli IiMmIm *1*
«•
sua existência exótica, nas traições de um clima insidioso,
na freqüência das doenças, na luta contra um solo ingrato,
na desconfiança das populações hostis; não mereceria por
tudo isso compensação alguma? Ora, furioso, agressivo, re­
age como Gribouille; opondo desprezo a desprezo, acusando
o metropolitano de covardia e degenerescência; confessa, ao
contrário, proclama as riquezas do exílio e também, por que
não? os privilégios da vida que escolheu, a vida fácil, os
empregados numerosos, a fruição, impossível na Europa, de
uma autoridade anacrônica e até mesmo o baixo preço da
gasolina. Nada, enfim,, pode salvá-lo, dando-lhe essa alta
idéia compensadora de si mesmo, que tão avidamente pro­
cura. Nem o estrangeiro, quando muito indiferente, mas não
enganado ou cúmplice; nem sua pátria de origem onde é
sempre suspeito e constantemente atacado, nem sua própria
ação quotidiana que gostaria de ignorar a revolta muda do
colonizado. De fato, acusado pelos outros, não acredita no
seu próprio dossiê; no fundo de si mesmo, o colonialista
julga-se culpado.

O P atriota

É lógico, nessas condições, que não espere seriamente


encontrar em si mesmo a fonte dessa indispensável grande­
za, garantia de sua reabilitação. O exagero de sua vaidade,
do retrato por demais magnífico do colonialista por ele mes­
mo, o trai mais do que lhe serve. E, na verdade, sempre
apelou também para além de si mesmo; esse último recurso,
procura-o na metrópole.
Essa caução deve, com efeito, reunir duas condições pre­
liminares. A primeira é pertencer a um universo do qual ele
mesmo participa, se quiser que os méritos do mediador nele
se reflitam. A segunda, é que esse universo seja totalmente
estranho ao colonizado a fim de que jamais possa prevale­
cer-se deie. Ora, essas duas condições, a metrópole as reúne
milagrosaménte. Apelará, então, para as qualidades de sua
pátria de origem, celebrando-as, ampliando-as, insistindo
nas suas tradições particulares, na sua originalidade cultu-

60
ral. Assim, de uma só vez, terá afirmado que pertence a
esse universo afortunado, sua ligação negativa, natural com
a metrópole, e a impossibilidade de o colonizado participar
desses esplendores, sua radical heterogeneidade, ao mesmo
tempo infeliz e desprezível.
Essa eleição, essa graça, o colonialista quer, além do
mais, merecê-la todos os dias. Apresenta-se, lembra-o fre­
qüentemente, como um dos membros mais conscientes da co­
munidade nacional; finalmente um dos melhores. Pois é re­
conhecido e fiel. Sabe, ao contrário do metropolitano, cuja
felicidade jamais é ameaçada, o que deve à sua origem. Sua
fidelidade é, no entanto, desinteressada; seu afastamento
mesmo o atesta — não se macula com todas as mesquinha­
rias da vida quotidiana do metropolitano que deve tudo ar­
rancar pela malícia e a combinação eleitoral. Seu puro fer­
vor pela pátria faz dele, enfim, o verdadeiro patriota, aquele
que melhor a representa, e naquilo que ela tem de mais
nobre.
É verdade que em certo sentido pode levar a que nisso
se acredite. Ama os símbolos mais vistosos, as manifesta­
ções mais eloqüentes do poderio de seu país. Assiste a todos
os desfiles militares, que deseja e obtém constantes e impo­
nentes; contribui com sua parte, pavoneando-se com disci­
plina e ostentação. Admira o exército e a força, respeita os
uniformes e cobiça as condecorações. Encontramos aqui o
que se costuma chamar a politica de prestígio; que não de­
corre apenas de um princípio econômico ( “mostrar a força
a fim de não precisar dela servir-se” ), mas corresponde a
uma profunda necessidade da vida colonial; trata-se tanto
de impressionar o colonizado quanto de tranqüilizar-se a si
mesmo.
Em compensação, tendo-lhe confiado a delegação e o
peso de sua grandeza desfalecente, confia em que a metró­
pole corresponda à sua esperança. Exige que mereça sua
confiança, que lhe devolva essa imagem dela mesma que ele
deseja: ideal inacessível ao colonizado e perfeita justifica­
tiva de seus méritos de empréstimo. Freqüentemente, de
tanto esperar, acaba por acreditar um pouco nessas imagens.
Os recém-chegados, de memória ainda fresca, falam da me­
trópole com muito mais justeza do que os velhos colonialis­
tas. Nas suas comparações, inevitáveis, entre os dois países,

61
as colunas crédito e débito podem ainda rivalizar. O colo­
nialista parece ter esquecido a realidade viva do seu país de
origem. Com o correr dos anos, edificou, em oposição à co­
lônia, tamanho monumento da metrópole, que aquela lhe
- parece necessariamente irrisória e vulgar. É notável que,
mesmo para os colonizadores nascidos na colônia, quer di­
zer, fisicamente harmonizados com ela, adaptados ao sol, ao
calor, à terra seca, a paisagem de referência permanece bru­
mosa, úmida e verde. Como se a metrópole fosse uma com­
ponente essencial do “super-ego” coletivo dos colonizadores,
suas caracteristicas objetivas tornam-se qualidades quase
éticas. Não se discute, a bruma é superior em si mesma ao
pleno sol e o verde ao ocre. A metrópole, pois, só reúne
positividades, a amenidade do clima e a harmonia das pai­
sagens, a disciplina social e uma deliciosa liberdade, a bele­
za, a moral, e a lógica.
Seria ingénuo, no entanto, responder ao colonialista
que deveria retornar o mais depressa possível a esse uni­
verso maravilhoso, reparar o erro de tê-lo deixado. Desde
quando nos instalamos quotidianamente na virtude e na
beleza? O próprio de um “super-egçí!5 é precisamente não
ser vivido, reger de longe, sem ser jamais atingido,"5~cÕS*-
duta prosaica e atormentada dos homens de carne e osso.
A metrópole só é tão grande porque está além do horizonte
e porque permite valorizar a existência e a conduta do co­
lonialista. Se voltasse para lá, ela perderia sua sublimida­
de: e ele, deixaria de ser um homem superior; se é tudo na
çolônia, o colonialista sabe que na metrópoTe~hada seria;_Já
/voltaria a ser um homem qualquer. De fato, a noção da me­
trópole é comparativa: reduzida a si mesma, se desvanece­
ria e arruinaria ao mesmo tempo a super-humanidade do
colonialista. É na colônia, somente, porque possui uma me­
trópole e seus coabitantes não a possuem, que o colonialista
é temido e admirado. Como deixaria o único lugar do mundo
no qual, sem ser um fundador de cidade ou um grande mi­
litar, ainda pode batizar cidades e legar seu nome à geogra­
fia? Sem nem mesmo temer o simples ridículo ou a cólera
dos habitantes, cuja opinião não conta; onde todos os dias
faz a prova eufórica de seu poder e de sua importância?

62
O C onservador

É preciso, pois, não apenas que a metrópole constitua


esse ideal distante e jamais vivido, mas que esse ideal ainda
seja imutável e se encontre ao abrigo do tempo: o colonia-
Jista-exige que a metrópole seja conservadora.
bem entendido, o é resolutamente. Ê mesmo a esse
respeito que é mais severo, que menos transige. A rigor, to­
lera a crítica das instituições ou dos costumes dos mefiro-
politanos; não é responsável pelo pior, e invoca o melhor.
Mas é tomado de inquietação, de perplexidade, sempre que
se lembram de tocar no estatuto político. Só então a pureza
do seu patriotismo se turva, seu apego indefectível â mãe-
pátria se abala. Pode ir até à ameaça — oh estupor! —• de
separação! O que parece contraditório, aberrante do seu tão
proclamado patriotismo e, em certo sentido, real.
Mas, o nacionalismo do colonialista é, na verdade, de
natureza especial. Dirige-se principalmente a esse aspecto-
de sua pátria que tolera e protege sua existência enquanto
colonialista. Se a metrópole se tornasse democrática, por
exemplo, a ponto de promover a igualdade de direitos até
mesmo nas colônias, arriscar-se-ia flambém a abandonar as
empresas coloniais. Semelhante transformação seria, para o
colonialista, uma questão de vida ou morte, que tornaria a
pôr em questão o sentido de sua vida.
Compreende-se que seu nacionalismo vacile e que re­
cuse reconhecer essa perigosa imagem de sua pátria.

A T entação F ascista

Para que possa subsistir como colonialista, é necessário


que a metrópole permaneça eternamente metrópole. E, na
medida em que tal coisa depende dele, compreende-se que
nisso se empenhe com todas as suas forças.
Mas, podemos dar ainda um passo: toda nação colo­
nial traz assim, em seu seio, os germes da tentação fascista.
Que é o fascismo senão um regime de opressão em pro­
veito de alguns? Ora, toda a máquina administrativa e polí-

63
3 t j ^ ' c o l ô n i a não tem ^outros fin . As relações humanas
resultam de uma exploração' tao intensa quanto possível,
fundam-se na desigualdade e no desprezo, garantidas pelo
autoritarismo policial, Não há dúvida alguma, para quem
o viveu, que o colonialTsmo & UH15 Vaneáade do fascismoT
Nao nos devemos surpreender muito que TnstTfmçoés qüe
dependem, afinal de contas, de um poder central liberal,
f possam ser tão diferentes das da metrópole. Essa fisionomia
' totalitária, que assumem nas suas colônias regimes freqüen­
temente democráticos, não é aberrante senão na aparência:
representados junto ao colonizado pelo colonialista, não po­
dem ter outra.
Não é também de espantar que o fascismo colonial difi­
cilmente se limite apenas à colônia. Um câncer não deseja
senão expandir-se. O colonialista não pode deixar de man­
ter as tendências e os governos opressivos e reacionários, ou
ao menos conservadores. Aquelas que manterão o estatuto
atual da metrópole, condição do seu, ou melhor, as que as­
segurarão mais firmemente as bases da opressão. E, sendo
melhor prevenir que remediar, como não seria tentado a
provocar o nascimento de tais governos e de tais regimes?
Se acrescentamos que seus recursos financeiros, e, portanto,
políticos são desmedidos, compreendemos que represente
para as instituições centrais um perigo permanente, uma bol­
sa de veneno ameaçando sempre envenenar todo o organis­
mo metropolitano.
Mesmo, enfim, que nunca se mexesse, sua simples exis­
tência, a do sistema colonial, proporiam seu constante exem­
plo às hesitações da metrópole; sedutora extrapolação de
um estilo político, onde as dificuldades são resolvidas pela
completa servidão dos governados. Não é exagerado dizer-
se que, assim como a situação colonial apodrece o europeu
das colônias, o colonialista é um germe de apodrecimento da
metrópole.

O R essentimento C ontra a M etrópole

O perigo e a ambigüidade do seu excessivo ardor pa­


triótico se encontram, aliás, e se verificam, na ambigüidade

64
mais geral de suas relações com a metrópole. Certamente,
canta sua glória e se agarra a ela, até paralisá-la, afundá-la
se for oreciso. Mas, ao mesmo tempo, nutre contra a me­
trópole e os metropolitanos um profundo ressentimento.
Até aqui, notamos apenas o privilégio do colonizador1
em relação ao colonizado. De fato, o europeu das colônias1
-sabe-se duplamente privilegiado: em" Félaçãõ ãõ colonizado
e ao metropolitano. As regalias coloniais significam, também
que, em niveis equivalentes, o funcionário recebe mais, o
comerciante paga menos impostos, o industrial paya ma
barato matéria-prima e mão-de-obra, que seus homólogos
m'tropolitanos. Assim como é consubstanciai à existência
do colonizado, o privilégio colonial é função da metrópole
e dos metropolitanos, O colonialista não ignora que obriga
a metrópole a manter um exército, que se a colônia para ele
só representa vantagens, custa ao metropolitano mais do que
lhe rende.
E, assim como a natureza das relações entre coloniza­
dor e colonizado deriva de suas relações econômicas e so­
ciais, as relações entre colonizador e metropolitano são tri­
butárias de suas situações recíprocas. O colonizador~nao se
orgulha das dificuldades quotidianas de seu compatriota, dos
impostos que pesam sobre ele e dos seus medíocres proven­
tos. Volta de. .sua.-viagem- —anual—perturbado, descontente
çonsigo mesmo e furioso com o metropolitano. Foi necessá­
rio, como das outras vezes, responder a insinuações ou mes­
mo a francos ataques, utilizar o arsenal, tão pouco convin­
cente, dos perigos do sol africano e das doenças do apare­
lho digestivo, invocar em seu socorro a mitologia dos heróis
de capacete colonial. Não falam mais^tampouco, a mesma
linguagem política: da mesma classe, o colonialismo está
naturalmente mais à direita que o metropolitano. Um cama­
rada chegado há pouco falava-me de seu ingênuo espanto:
não compreendia porque os jogadores de bola, S .F .I.O . ou
radicais na metrópole, são reacionários ou fascistizantes na
colônia.
Existe, enfim, um antagonismo real, com fundamento
político e econômico, entre o colonialista e o metropolitano.
E, a esse respeito, o colonialista tem toda razão em falar
de sua expatriação na metrópole: não tem mais os mésmo

65
interesses de seus compatriotas. Em certa medida, não faz
mais parte dela.
Essa dialética exaltação-ressentimento, que une o colo­
nialista à sua pátria, matiza singularmente a qualidade de
seu amor por ela. Tem, sem dúvida, a preocupação de apre­
sentar dela a imagem mais gloriosa, mas esse movimento é
viciado por tudo aquilo que espera da metrópole. E, se nun­
ca relaxa seu esforço patriótico, se multiplica as lisonjas,
esconde mal sua cólera e seu despeito. Deve velar sem tré­
gua, intervir se necessário, a fim de que a metrópole con­
tinue a manter as tropas que o protegem, guarde os hábitos
políticos que o toleram, conserve, enfim, a imagem que lhe
convém e que possa opor ao colonizado. E os orçamentos
coloniais serão o preço pago pelas metrópoles, persuadidas
da discutível grandeza de serem metrópoles.

A R ecusa do C olonizado

Tal é a enormidade da opressão colonial, no entanto,


que essa superestimação da metrópole jamais é suficiente
para justificar o fato colonial. Na verdade, a distância entre
o senhor e o servo nunca é bastante grande. Quase sempre,
o colonialista se entrega também à desvalorização sistemá­
tica do colonizado.
Ah! quanto a isso não é necessário provocá-lo: está
farto desse assunto, que dilacera sua consciência e sua vida.
Procura tirá-lo do pensamento, imaginar a colônia sem o
colonizado. Um refrão mais sério do que parecia afirma que
“Tudo seria perfeito ... se não houvesse os indígenas”. Mas
o colonialista se dá conta de que, sem o colonizado, a co­
lônia não teria sentido algum. Essa insuportável contradição
o enche de furor, de ódio, sempre prestes a desencadear-se
sobre o colonizado, causa inocente porém fatal de seu dra­
ma. E não apenas porque é um policial ou um especialista
da autoridade, cujos hábitos profissionais encontram na co­
lônia inesperadas possibilidades de expansão. Vi, com estu­
pefação, pacíficos funcionários, professores, corteses e bem
falantes, aliás, transformarem-se subitamente, por pretextos

66
fúteis, em monstros vociferantes. As acusações mais absur­
das são levantadas contra o colonizado. Confiou-me um ve­
lho médico, com uma mistura de mau humor e gravidade,
que o “colonizado não sabe respirar”; um professor expli­
cou-me sabiamente que: “Aqui, não se sabe andar, dão pe­
quenos passos, não permitem avançar”, daí essa impressão
de marcar passo, característica, parece, das ruas da colônia.
A desvalorização do colonizado estende-se, assim, a tudo
aquilo que o toca. Ao seu país, que é feio, quente demais,
absurdamente frio, mal cheiroso, de clima vicioso, de geo­
grafia tão desesperada que o condena ao desprezo e à po­
breza, à dependência até a eternidade.
Esse aviltamento do colonizado, que deve explicar seu
desamparo, serve também de alavanca à positividade do
colonialista. Essas acusações, esses julgamentos irremedia­
velmente negativos, são sempre proferidos com referência à
metrópole, quer dizer, vimos por qual paráfrase, com refe­
rência ao próprio colonialista. Comparações morais ou so­
ciológicas, estéticas ou geográficas, explícitas, insultantes
ou alusivas e discretas, mas sempre a favor da metrópole
do colonialista. Aqui, o povo daqui, os costumes deste país,
são sempre inferiores, e muito, em virtude de uma ordem
fatal e preestabelecida.
Essa recusa da colónia e do colonizado terá graves con­
seqüências na vida e no comportamento do colonizado. Mas
provoca também um efeito desastroso na conduta do colo­
nialista. Tendo assim definido a colônia, não atribuindo mé­
rito algum à cidade colonial, não reconhecendo nem suas
tradições, nem suas leis, nem seus costumes, não pode admi­
tir fazer parte dela. Recusa considerar-se cidadão com di­
reitos e deveres, como não admite que seu filho o possa
tornar-se. Além disso, se pretende estar indissoluvelmente /
ligado à sua pátria de origem, lá não vive, não participa da '
consciência coletiva de seus compatriotas, e não é quotidia­
namente por eles influenciado. O resultado dessa dupla,
porém negativa, referência sociológica é que o colonialista
é civicamente aéreo. Navega entre uma sociedade distante,
que quer sua, mas que se torna até certo ponto mítica; e
uma sociedade presente, que recusa e mantém assim na
abstração.

67
Pois não é, bem entendido, a aridez do pais ou a falta
de graça das cidades coloniais,, que explica a recusa do co­
lonialista. É, ao contrário, porque não o adotou, ou não
podia adotá-lo, que o país permanece árido, construção de
um desesperador utilitarismo. Por que nada faz, por exem­
plo, pelo urbanismo? Quando se queixa da presença de um
lago pestilento às portas da cidade, de esgotos que trans­
bordam, ou de serviços que funcionam mal, finge esquecer-
se de que detém o poder administrativo, que deveria culpar-
se a si mesmo. Por que não concebe, ou não pode conceber,
seu esforço desinteressadamente? Toda municipalidade, nor­
malmente oriunda de seus administrados, preocupa-se não
apenas com seu bem-estar, mas também com seu futuro, sua
, posteridade; seu esforço inscreve-se em uma duração, a da
' cidade. O colonialista não faz coincidir seu futuro com o da
colônia, sô está aqui de passagem, não investe senão o que
rende a curto prazo. A verdadeira razão, a principal razão
da maior parte de suas carências é esta: o colonialista ja­
mais decidiu-se a transformar a colônia à imagem da me­
trópole, e o colonizado à sua imagem. Não pode admitir tal
adequação, que destruiria o princípio de seus privilégios.

O R acismo

Isso não passa, aliás, de um vago sonho do humanista


metropolitano. O colonialista sempre afirmou, e com nitidez,
que essa adequação era inconcebível. Mas, a explicação, que
se crê obrigado a apresentar, muito significativa ela própria,
será inteiramente diferente. Essa impossibilidade não proce­
de dele, porém de outro: prende-se à natureza do coloni­
zado. Em outras palavras, e eis aqui o traço que completa
esse retrato, o colonialista recorre ao racismo. É significa­
tivo que o racismo faça parte de todos os colonialismos,
em todas as latitudes. Não é uma coincidência: o racismo
resume e simboliza a relação fundamental que une colonia­
lista e colonizado.
Não se trata, de modo algum, de um racismo doutrinal.
Seria, aliás, difícil; o colonialista não ama a teoria e os tcó-

68
ricos. Aquele que se sabe em má postura ideológica ou éti­
ca, gaba-se, em geral, de ser um homem de ação, que retira
suas lições da experiência. O colonialista tem muita dificul­
dade em construir seu sistema de compensação para não des­
confiar da discussão. Seu racismo é vivido, quotidiano; mas
nem por isso sai perdendo. Ao lado do racismo colonial o
dos doutrinários europeus parece transparente, congelado
em idéias, à primeira vista quase sem paixão. Conjunto de
condutas, de reflexos adquiridos, exercidos desde a primeira
infância, valorizado pela educação, o racismo colonial está tão
espontaneamente incorporado aos gestos, às palavras, mes­
mo as mais banais, que parece constituir uma das mais sóli­
das estruturas da personalidade colonialista. A freqüência
de sua intervenção, sua intensidade nas relações coloniais
seria, no entanto, estarrecedora, se não soubéssemos até que
ponto ajuda o colonialista a viver e permite sua integração
social. Um esforço constante do colonialista consiste em
explicar, justificar e manter, tanto pela palavra quanto pela
conduta, o lugar e o destino do colonizado, seu parceiro no
drama colonial. Quer dizer, em definitivo, em explicar, jus­
tificar e manter o sistema colonial e, portanto, seu próprio
lugar. Oxa, a análise da atitude racista revela três elementos
imporjtantes:
evidência as diferenças entre

renças, em proveito do coloni­


zador e em detrimento do colonizado.
( 3 0 Levar essas diferenças ao absoluto, afirmando que
são aefinitivas, e agindo a fim de que se tornem tais.
A primeira operação não é a mais reveladora da atitude
mental do colonialista: estar à espreita do traço diferencial
entre duas populações, não é, em si mesma, uma caracterís­
tica racista. Mas ocupa seu lugar e assume sentido especial
em um contexto racista. Longe de procurar o que poderia
atenuar seu exílio, aproximá-lo do colonizado, e contribuir
para a fundação de uma cidade comum, o colonialista sali­
enta, ao contrário, tudo aquilo que os separa. E nessas di­
ferenças, sempre infamantes para o colonizado, gloriosas
para ele, encontra justificação para sua recusa. Mas, eis
aqui, talvez, o mais importante: uma vez isolado o traço dos

69
costumes, fato histórico ou geográfico, que caracteriza o co­
lonizado e o opõe ao colonizador, é preciso impedir que o
fosso possa ser tapado. O colonialista retirará o fato da
história, do tempo, e portanto de uma possível evolução. O
fato sociológico é batizado biológico, ou melhor, metafísico.
Afirma-se que pertence à essência do colonizado. De um
golpe, a relação colonial entre o colonizado e o colonizador,
fundada na maneira de ser, essencial, dos dois protagonis­
tas, torna-se uma categoria definitiva. É o que é porque eles
são o que são e nem um nem outro jamais m udará.
Tornamos a encontrar a intencionalidade de toda polí­
tica colonial. Eis aqui duas ilustrações. Contrariamente ao
que se pensa, o colonialista jamais favoreceu seriamente a
conversão religiosa do colonizado. As relações entre a Igre­
ja (católica ou protestante) e o colonialismo são mais com­
plexas do que se afirma entre as pessoas de esquerda. A
Igreja ajudou muito o colonialista, é verdade; caucionando
seus empreendimentos, dando-lhe boa consciência, contri­
buindo para que se aceitasse a colonização, inclusive pelo
colonizado. Mas, para a Igreja, essa foi apenas uma aliança
acidental e rendosa. Hoje, que o colonialismo se revela pe­
recível, e se torna comprometedor, ela se desliga em toda
parte; não o defende mais, quando já não começa a atacá-lo.
Em suma, serviu-se dele como ele se serviu dela, mas sem­
pre preservou seu objetivo proprio. Inversamente, se o colo­
nialista recompensou a Igreja por sua.ajuda, outorgando-lhe
importantes privilégios, terrenos, subvenções, um lugar ina­
dequado a seu papel na colónia, jamais desejou que fosse
bem sucedida: isto é, que conseguisse a conversão de todos
os colonizados. Se o tivesse realmente querido, teria permi­
tido à Igreja realizar seu sonho. Dispunha, principalmente
no começo da colonização, de total liberdade de ação, de
um poder de pressão ilimitado, e de uma ampla cumplicidade
internacional.
O colonialista, porém, não podia favorecer um empre­
endimento que contribuísse para o enfraquecimento da rela­
ção colonial. A conversão do colonizado à religião do colo­
nizador teria sido uma etapa no caminho da assimilação.
Esta é uma das razões pélas quais as missões coloniais ma­
lograram .

70
Outro exemplo: não há redenção social e tampouco sal­
vação mística para o colonizado. Assim não pode livrar-se
de sua condição pela conversão religiosa, não lhe será per­
mitido deixar seu grupo social para unir-se ao grupo colo­
nizador .
Toda opressão, na verdade, visa globalmente um agru­
pamento humano, e, a priori, todos os indivíduos enquanto
membros desse grupo são por ela atingidos anonimamente.
Ouve-se freqüentemente afirmar que os operários, quer di­
zer todos os operários, são portadores de tais defeitos e de
tais taras. A acusação racista, levantada contra os coloni­
zados, só pode ser coletiva, e todo colonizado sem exceção
deve por ela responder. Admite-se, no entanto, que a opres­
são operária comporte uma saída: teoricamente ao menos,
um operário pode deixar sua classe e mudar de condição
social. Ao passo que, no quadro da colonização, nada pode­
rá salvar o colonizado. Jamais poderá passar para o clã dos
privilegiados; mesmo que ganhasse mais dinheiro que eles,
conseguisse todos os títulos, aumentasse infinitamente seu
poder.
Comparamos a opressão e a luta colonial à luta de
classes. A relação coloni2 ador-colonizado, de povo para
povo, no seio das nações, pode lembrar com efeito a relação
burguesia-proletariado, no seio de uma nação. Mas é preciso
mencionar, além disso, -a impenetrabilidade quase absoluta
dos grupamentos coloniais. Nesse,sentido mobilizam-se todos
os esforços do colonialista; e o racismo é, a esse respeito, a
arma mais segura: a passagem torna-se, com efeito, impos­
sível, e toda revolta absurda.
O racismo aparece, assim, não como pormenor mais ou
menos ocidental, porém, como elemento consubstanciai do
colonialismo. É a melhor expressão do fato colonial, e um
dos traços mais significativos do colonialista. Não apenas
estabelece a discriminação fundamental entre colonizador e
colonizado, condição sine qua non da vida colonial, mas fun­
da sua imutabilidade. Somente o racismo permite colocar na
eternidade, substantivando-a, uma relação histórica que co­
meçou em certa data. Donde o extraordinário desenvolvi­
mento do racismo na colônia; a coloração racista da menor

71
atitude, intelectual ou prática, do colonialista e mesmo de
todo colonizador. E não apenas dos homens da rua: um psi­
quiatra de Rabat ousou afirmar-me, após vinte anos de exer­
cício, que as neuroses norte-africanas explicam-se pela alma
norte-africana.
Esta alma ou esta etnia ou este psiquismo explica as
instituições de outro século, a ausência de desenvolvimento
técnico, a necessária sujeição política, a totalidade do drama
enfim. Demonstra luminosamente que a situação colonial era
irremediável e será definitiva.

A A uto -A bsolvição

E eis aqui o toque final. A servidão do colonizado, ten-


do-lhe parecido escandalosa, obrigava o colonizador a ex­
plicá-la, a fim de não reconhecer o escândalo e a insegurança
de sua própria existência. Graças a uma dupla reconstrução
do cojonizado e de si mesmo, procurará, ao mesmo tempo,
justificar-se e tranqüilizar-se.
Portador dos valores da civilização e da história, cum­
pre uma missão: tem o grande mérito de iluminar as trevas
infamantes do colonizado. Que esse papel lhe traga vanta­
gens e respeito nada mais justo: a. colonização é legítima,
em todos os seus aspectos e conseqüências.
Aliás, achando-se inscrita a servidão na natureza do
colonizado e a dominação na sua, não haverá problema. Às
delícias da virtude recompensada, acrescenta a necessidade
das leis naturais. A colonização é eterna, pode encarar seu
futuro sem nenhuma inquietação.
Após o que, tudo tornar-se-ia possível e assumiria novo
sentido. O colonialista poderia permitir-se viver quase des­
cansado, benevolente e mesmo benfeitor. O colonizado só
lhe poderia ser reconhecido pelo abatimento que recebe na­
quilo que lhe é devido. Inscreve-se aqui a surpreendente
atitude mental chamada paternalista. O paternalista é aque­
le que quer ampliar ainda mais, uma vez admitido, o racis­
mo e a desigualdade. É, se quiserem, um racismo caridoso

72
— que não é nem o menos hábil nem o menos rendoso. Pois
o paternalismo mais generoso se irrita desde que o coloni­
zado reclame, seus direitos sindicais, por exemplo. Se perdoa
sua dívida, se sua mulher cuida do colonizado, trata-se de
dons, jamais de deveres. Se admitisse ter deveres, teria que
reconhecer que o colonizado tem direitos. Ora, está enten­
dido, por tudo aquilo que precede, que não tem deveres, que
o colonizado não tem direitos.
Tendo instaurado esta nova ordem moral, na qual, por
definição, é senhor e inocente, o colonialista ter-se-ia enfim
dado a absolvição. É preciso ainda que essa ordem não seja
posta em questão pelos outros e principalmente pelo colo­
nizado.

73
II

RETRATO
DO COLONIZADO
I

Retrato Mítico do Colonizado

N ascimento do M ito

Assim como a burguesia propõe uma imagem do prole­


tário, a existência do colonizador reclama e impõe uma ima­
gem do colonizado. Alibis sem os quais a conduta do colo­
nizador, e a do burguês, suas próprias existências, parece­
riam escandalosas. Mas, falamos em mistificação precisa­
mente porque as concilia muito bem.
Seja, nesse retrato-acusação o traço da preguiça. Pare­
ce recolher a unanimidade dos colonizadores, da Libéria ao
Laos, passando pelo Maghreb. É fácil verificar o quanto essa
caracterização é cômoda. Desempenha importante papel na

77
dialética enobrecimento do colonizador-aviltamento do colo­
nizado. Além disso, é economicamente proveitosa.
Nada poderia legitimar melhor o privilégio do coloni­
zador que seu trabalho; nada poderia justificar melhor o
desvalimento do colonizado que sua ociosidade. O retrato
mítico do colonizado conterá então uma inacreditável pregui­
ça. O do colonizador o gosto virtuoso da ação. Ao mesmo
tempo, o colonizador sugere que o emprego do colonizado
é pouco rendoso, o que autoriza os salários inverossímeis.
Pode parecer que a colonização teria ganho se dispu­
sesse de pessoal capacitado. Nada é menos certo. O operá­
rio qualificado trazido pelos colonizadores, exigiria salário
três ou quatro vezes superior àquele com o qual se contenta
o colonizado; não produz, porém, três ou quatro vezes mais
que este, nem em quantidade nem em qualidade; é mais eco­
nômico, pois, utilizar três colonizados do que um europeu.
Toda empresa requer especialistas, certamente, porém um
mínimo, que o colonizador importa ou recruta entre os seus.
Sem contar o tratamento especial, a proteção legal, justa­
mente exigidos pelo trabalhador europeu. Ao colonizado não
se pede senão seus braços, e ele não é senão isso: além dis­
so, esses braços são tão mal cotados, que pode-se alugar
três ou quatro pares deles pelo preço de um só.
Ao ouvi-lo, aliás, descobre-se que o colonizador não
está tão aborrecido assim com essa preguiça, suposta ou
real. Fala dela com uma complacência bem-humorada, diver­
te-se com ela; retoma todas as expressões habituais e as
aperfeiçoa, e com elas inventa outras. Nada é suficiente
para caracterizar a extraordinária deficiência do colonizado.
A esse respeito torna-se lírico, de um lirismo negativo: o co­
lonizado não tem um pêlo na mão, porém uma bengala, uma
árvore, e que árvore! um eucaliptus, uma tuia, um carvalho
centenário da América! uma árvore? não, uma floresta, etc.
Mas, insistirão, o colonizado é realmente preguiçoso?
A questão, a bem dizer, está mal proposta. Além de ser ne­
cessário definir um ideal de referência, uma norma, variável
de um povo a outro, será possível acusar de preguiça a um
povo todo? Pode-se suspeitar, a esse respeito, de indivíduos,
mesmo numerosos, em um mesmo grupo; perguntar se seu
rendimento não é medíocre; se a subalimentação, os baixos

78
salários, o futuro bloqueado, uma significação irrisória de
seu papel social, não desinteressa o colonizado de sua tare­
fa. O que é suspeito, é que a acusação não visa apenas o
trabalhador agrícola ou o habitante dos “bidonvilles”, mas
também o professor, o engenheiro ou o médico que dão as
mesmas horas de trabalho que seus colegas colonizadores,
enfim todos os indivíduos do agrupamento colonizado. Sus­
peita é a unanimidade da acusação e a globalidade de seu
objeto; de sorte que colonizado algum dela se salva, e nem
poderia jamais salvar-se. Quer dizer: a independência da
acusação de quaisquer condições sociológicas e históricas.
De fato, não se trata absolutamente de uma anotação
objetiva, diferenciada, pois, sujeita então a prováveis trans­
formações, porém de uma instituição: pela sua acusação, o
colonizador institui o colonizado como ser preguiçoso. De­
cide que a preguiça é constitutiva da essência do colonizado.
Isto posto, torna-se evidente que o colonizado, seja qual fôr
a função que assuma, seja qual fôr o zelo que manifeste,
nunca seria nada mais do que um preguiçoso. Voltamos sem­
pre ao racismo, que é bem uma substantificação, em proveito
do acusador, de um traço real ou imaginário do acusado.
É possível retomar a mesma análise a propósito de cada
um dos traços atribuídos ao colonizado.
Quando o colonizador afirma, em sua linguagem, que
o colonizado é um débil, sugere com isso que tal deficiência
reclama proteção. Daí, sem rir — escutei-o frequentemente
.— a noção do protetorado. É do próprio interesse do colo­
nizado ser excluído das funções de direção; e que essas pe­
sadas responsabilidades sejam reservadas ao colonizador.
Quando o colonizador acrescenta, para não cair na solicitu­
de, que o colonizado é um retardado perverso, de maus ins­
tintos, ladrão, um pouco sádico, legitima sua polícia e sua
justa severidade. É preciso defender-se das perigosas tolices
de um irresponsável; e também, preocupação meritória, de-
fendê-lo contra ele mesmo! Assim também quanto à ausên­
cia de necessidades do colonizado, sua inaptidão para o
conforto, para a técnica, para o progresso, sua espantosa
familiaridade com a miséria; por que se preocuparia o colo­
nizador com aquilo que não inquieta de modo algum o inte­
ressado? Isso seria, acrescenta ele, com uma sombria e auda-

79
ciosa filosofia, prestar-lhe um mau serviço, obrigando-o às
servidões da civilização. Ora! Lembremo-nos de que a sabe­
doria é oriental, aceitemos, como ele a aceita, a miséria do
colonizado. O mesmo se verifica com a famosa ingratidão
do colonizado, na qual insistiram autores considerados sé­
rios: lembra, ao mesmo tempo, tudo aquilo que o colonizado
deve ao colonizador, que todos esses benefícios são perdi­
dos, e que é inútil pretender emendar o colonizado.
É de notar que esse quadro não precise de nada mais.
É difícil, por exemplo, coordenar a maior parte desses tra­
ços, de proceder à sua síntese objetiva. Não se compreende
porque o colonizado seria ao mesmo tempo menor e mau,
preguiçoso e atrasado. Poderia ter sido menor e bom, como
o bom selvagem do século XVIII, ou pueril e duro no tra­
balho, ou preguiçoso e astuto. Melhor ainda, os traços atri­
buídos ao colonizado excluem-se uns aos outros, sem que
isso atrapalhe seu procurador. Descrevem-no, ao mesmo
tempo, frugal e sóbrio, sem maiores necessidades e engolin­
do quantidades incríveis de carne, de banha, de álcool, de
não importa o quê; como um pusilânime que tem medo de
sofrer e como um bruto que não é contido por nenhuma das
inibições da civilização, etc. Prova suplementar que é inútil
procurar essa coerência a não ser no próprio colonizador.
Na base de toda a construção, enfim, encontra-se a mesma
dinâmica: a das exigências econômicas e afetivas do colo­
nizador que nela faz as vezes da lógica, comanda e explica
cada um dos traços que atribui ao colonizado. Em definitivo,
são todos vantajosos para o colonizador mesmo aqueles que
à primeira vista, ser-lhe-iam prejudiciais.

A D esumanização

O que é verdadeiramente o colonizado importa pouco


ao colonizador. Longe de querer apreender o colonizado na
sua realidade, preocupa-se em submetê-lo a essa indispensá­
vel transformação. E o mecanismo dessa remodelagem do
colonizado é, ele próprio, esclarecedor.

80
Consiste, inicialmente, em uma série de negações. O co­
lonizado não é isso, não é aquilo. Jamais é considerado po­
sitivamente; ou se o é, a qualidade concedida procede de
uma lacuna psicológica ou ética. Assim, no que se refere à
hospitalidade árabe que dificilmente pode passar por um
traço negativo. Se observarmos bem, verificaremos que o ,
louvor é feito por turistas, europeus de passagem, e não pe­
los colonizadores, quer dizer europeus instalados na colônia.
Tão logo instalado, o europeu não desfruta mais dessa hos- '
pitalidade. interrompe as trocas, contribui para erguer bar­
reiras. Rapidamente muda de palheta para pintar o coloni­
zado, que se torna ciumento, ensimesmado, exclusivista, fa­
nático. Que é feito da famosa hospitalidade? Já que não pode
negá-la, o colonizador ressalta, então, suas sombras, e suas
desastrosas conseqüências.
Decorre da irresponsabilidade, da prodigalidade do co­
lonizado, que não tem o senso da previsão, da economia. Do
importante ao felá, as festas são belas e generosas, com
efeito, mas vejamos o que se segue. O colonizado se arruina,
pede dinheiro emprestado e finalmente paga com o dinheiro
dos outros! Fala-se, ao contrário, da modéstia da vida do
colonizado? Da tão famosa ausência de necessidades? Isso
é menos uma prova de prudência que de estupidez. Como
se, enfim, todo traço reconhecido ou inventado devesse ser
o índice de uma negatividade.
Assim se destroem, uma após outra, todas as qualida­
des que fazem do colonizado um homem. E a humanidade
do colonizado, recusada pelo colonizador, torna-se para ele,
com efeito, opaca. É inútil, pretende ele, procurar prever as
atitudes do colonizado ( “Eles são imprevisíveis” . . . ) “Com
eles nunca se sabe!’’). Uma estranha e inquietante impulsi­
vidade parece-lhe comandar o colonizado. É preciso que o
colonizado seja bem estranho, em verdade, para que perma­
neça tão misterioso após tantos anos de convivência. . . ou
então, devemos pensar que o colonizador tem boas razões
para agarrar-se a essa impenetrabilidade.
Outro sinal dessa despersonalização do colonizado; o
que se poderia chamar a marca do plural. O colonizado ja­
mais é caracterizado de maneira diferencial: só tem direito
ao afogamento no coletivo anônimo. ( “Eles são is s o ... Eles
81
são todos os mesmos ). Se a doméstica colonizada não vem
certa manhã, o colonizador não dirã que ela está doente, ou
que ela engana, ou que ela está tentada a não respeitar um
contrato abusivo. (Sete dias em sete: as domésticas colo­
nizadas raramente se beneficiam do descanso hebdomadário
concedido às outras.) Afirmará que “não se pode contar
com eles". Isso não é uma cláusula de estilo. Recusa-se a en­
carar os acontecimentos pessoais, particulares, da vida de
sua doméstica: essa vida na sua especificidade não o inte­
ressa, sua doméstica não existe como indivíduo.
Enfim o colonizador nega ao colonizado o direito mais
precioso reconhecido à.maioria dos homens: a liberdade. As
condições de vida, dadas ao colonizado__ pela colonização,
não a levam em conta, nem mesmo a supõem. O colonizado
não dispõe de saída alguma para deixar seu estado de infè^
licidade: nem jurídica (a naturalização) nem mística (a con­
versão religiosa): o colonizado não é livre de escolher-se
colonizado ou não colonizado.
Que pode restar-lhe, ao cabo desse esforço obstinado
de desnaturação? Não é mais, certamente, um alter ego do
colonizador. Ainda é apenas um ser humano. Tende rapi­
damente para o objeto. A rigor, ambição suprema do colo­
nizador, deveria existir somente em f unção das suas necessi­
dades, isto é, ser transformado em puro colonizado.
Nota-se a extraordinária eficácia dessa operação. Que
importante dever temos em relação a um animal ou a uma
coisa, com que se parece cada vez mais o colonizado? Com­
preende-se então que o colonizador possa permitir-se atitu­
des, julgamentos tão escandalosos. Um colonizado dirigindo
um automóvel, é um espetáculo ao qual o colonizador se
nega a habituar-se; nega-lhe toda normalidade, como a uma
pantomima simiesca. Um acidente, mesmo grave, que atinja
o colonizado, quase faz rir. Uma multidão de colonizados
metralhada, o faz dar de ombros. Aliás, a mãe indígena cho­
rando a morte de seu filho, a mulher indígena chorando seu
marido, não lhe recordam senão vagamente a dor da mãe
ou da esposa, tísses gritos desordenados, esses gestos insó­
litos, bastariam para esfriar sua compaixão, se chegasse a
nascer. Recentemente, um autor nos contava com bom humor
como, a exemplo da caça, encurralava-se em grandes jaulas

82
indígenas revoltados. Que se tivesse imaginado e depois ou­
sado construir essas jaulas e talvez mais ainda, que se te­
nha deixado os repórteres fotografarem as prisões, prova
bem que, no espírito de seus organizadores, o espetáculo
nada mais tinha de humano.

A M istificação

Proveniente, esse delírio destruidor do colonizado, das


exigências do colonizador, não é de surpreender que o colo­
nizado a ele corresponda tão bem, a tal ponto que pareça
confirmar e justificar a conduta do colonizador. Mais grave,
mais nocivo talvez, é o eco que suscita no próprio colonizado.
Em confronto constante com essa imagem de si mesmo,
proposta, imposta nas instituições como em todo contato hu­
mano, como não reagiria? Não lhe pode essa imagem perma­
necer indiferente, e sobre ele apenas depositada, com um
insulto que voa com o vento. Acaba por reconhecê-la como
um apelido detestado porém convertido em sinal familiar. A
acusação o perturba, o inquieta, tanto mais porque admira
e teme seu poderoso acusador. Não terá um pouco de razão?
— murmura eie. Não somos, de certo modo, um pouco cul­
pados? Preguiçosos, já que temos tantos ociosos? Medrosos,
já que nos deixamos oprimir? Desejado, divulgado pelo co­
lonizador, esse retrato mítico e degradante acaba, em certa
medida, por ser aceito e vivido pelo colonizado. Ganha as­
sim certa realidade e contribui para o retrato real do colo­
nizado.
Esse mecanismo não é desconhecido: é uma mistifica­
ção. A ideologia de uma classe dirigente, sabemos disso, faz-
se adotar em grande parte pelas classes dirigidas. Ora, toda
ideologia de combate inclui como parte integrante dela mes­
ma, uma concepção do adversário. Ao concordar com essa
ideologia, as classes dominadas confirmam, de certa manei­
ra, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, entre ou­
tras coisas, a relativa estabilidade das sociedades; a opressão
é, por bem ou por mal, tolerada pelos próprios oprimidos.
Na relação colonial, a dominação se exerce de povo para
83
povo, mas o esquema permanece o mesmo. A caracterização
e o papel do colonizado ocupam lugar especial na ideologia
colonizadora; caracterização infiel ao real, incoerente em si
mesma, porém necessária e coerente no interior dessa ideo­
logia. E à qual o colonizado dá seu assentimento, perturba­
do, parcial, porém inegável.
Eis a única parcela de verdade nessas noções da moda:
o complexo de dependência, colonizabilidade, e tc .. . Veri­
fica-se, certamente — em determinado ponto de sua evolu­
ção — certa adesão do colonizado à colonização. Mas essa
adesão é resultado da colonização e não sua causa; nasce
depois e não antes da ocupação colonial. Para aue o colo-
nizador seja inteiramente senhor, não basta que o seja obje­
tivamente, é preciso ainda que acredite na sua legitimidade;
e, para que essa legitimidade seja completa, não basta que
o colonizado seja objetivamente escravo, é necessário que se
aceite como tal. Em suma, o colonizador deve ser reconhe­
cido pelo colonizado. O laço entre o colonizador e o colo­
nizado é, assim, destruidor e criador. Destrói e recria os dois
parceiros da colonização em colonizador e colonizado: um é
desfigurado em opressor, em ser parcial, mau cidadão, tra­
paceiro, preocupado unicamente com seus privilégios, com
sua defesa a todo preço: o outro em oprimido, partido no
seu desenvolvimento, conformando-se com o próprio esma­
gamento .
Assim como o colonizador é tentado a aceitar-se como
colonizador, o colonizado é obrigado, para viver, a aceitar-
se como colonizado.

84
2

Situações do Colonizado

T e RIA sido ótimo se eSse retrato mítico houvesse per­


manecido puro fantasma, olhar lançado sobre o colonizado,
que apenas atenuaria a má consciência do colonizador. Le­
vado pelas mesmas exigências que o suscitaram, não pode
deixar de traduzir-se em condutas efetivas, em comporta­
mentos ativos e constituintes.
Uma vez que o colonizado é presumido ladrão, é preci­
so prevenir-se efetivamente contra ele; suspeito por defini­
ção, por que não seria culpado? Roupa foi roubada (inci­
dente freqüente nessas regiões ensolaradas onde a róupa
seca em pleno vento e zomba daqueles que estão nus). Qual
deve ser o culpado senão o primeiro colonizado encontrado

85
sua
nas proximidades? E, uma vez que pode ser ele, vão a
casa e o levam ao posto policial. , TT em
"A bela injustiça, retorque o colonizador! Uma vez
duas, não nos enganamos. E, de qualquer maneira, o a
é um colonizado; se não o encontramos no primeiro gour .
estã no segundo” .
O que é exato: o ladrão (falo do pequeno) recruta-
cqm efeito entre os pobres e os pobres entre os colonizados.
Mas disso resulta que todo colonizado seja um ladrão pos­
sível e que deva ser tratado como tal?
Essas condutas, comuns ao conjunto dos colonizadores,
dirigindo-se ao conjunto dos colonizados, vão, então, expri­
mir-se em instituições. Dito de outra forma, definem e im­
põem -situações objetivas, que acuam o colonizado, pesam
sobre ele, até influir em sua conduta e enrugar sua fisiono­
mia. De modo geral, essas situações serão situações de ca~
rência. À agressão ideológica, que tende a desumanizá-lo,
depois a mistificá-lo, correspondem em suma situações con­
cretas que visam o mesmo resultado. Ser mistificado já é,
pouco ou muito, avalizar o mito e a ele conformar sua con­
duta, isto é, ser por ele determinado. Ora, esse mito está,
além disso, solidamente apoiado em uma organização bem
real, uma administração e uma jurisdição; alimentado, reno­
vado pelas exigências históricas, econômicas e culturais do
colonizador. Fosse insensível à calúnia e ao desprêzo desse
de ombros diante do insulto ou dos empurrões, como esca­
paria o colonizado aos baixos salários, à agonia -de sua cul
tuia, à lei que o rege desde o nascimento até a morte?
Assim como não pode escapar à mistificação coíoniza
dora, nao poderia subtrair-se a essas situações concretas Z
radoras de carências. Em certa medida o retrato real A
colonizado é função dessa conjunção. Invertendo uma fó7
mula precedente, pode-se dizer que a c o l o n , , , tor'
colonizados como vimos que fabrica colonizadores° fabnCa

O C olonizado e a H istória

A mais grave carência sofrida pelo colon.-, j .


estar colocado fora da história e fora da id Í a° ° ^ a de
cidade. A coloni-
86
zação lhe veda toda participação tanto na guerra quanto na a
paz, toda decisão que contribui para o destino do mundo e
para o seu próprio, toda responsabilidade histórica e social.
Acontece, sem dúvida, que os cidadãos dos países li­
vres, tomados de desalento, dizem que não interferem nos
negócios da nação, que sua ação é irrisória, que sua voz não
tem eco, que as eleições são fraudadas. A imprensa e o rá­
dio estão nas mãos de alguns; não podem impedir a guerra
nem exigir a paz; nem mesmo obter de seus eleitos que res­
peitem, uma vez eleitos, os compromissos pelos quais foram
enviados ao Parlamento. .. Mas reconhecem imediatamente
que possuem esse direito; o poder potencial senão eficaz:
que são enganados e cansados, mas não escravos. São ho­
mens livres, momentaneamente vencidos pela astúcia ou
aturdidos pela demagogia. E algumas vezes se excedem, to-
mam-se de súbitas cóleras, quebram suas cadeias de barban­
te e transtornam os pequenos cálculos dos políticos. A me­
mória popular guarda uma orgulhosa lembrança dessas pe­
riódicas e justas tempestades! A rigor, acusar-se-iam por não
se revoltarem mais freqüentemente; são responsáveis, afinal,
pela própria liberdade e se, por fadiga ou fraqueza, ou ceti­
cismo, deixam de utilizá-la, merecem a punição.
O colonizado, este, não se sente nem responsável ne
culpado, nem cético, está fora do jogo. Não é mais, de moc
algum, sujeito da história; sente, sem dúvida, seu peso, mu
tas vezes mais cruelmente que os outros, porém sempre, con
objeto. Acabou por perder o hábito de qualquer participaçé
ativa na história e nem sequer mais a reclama. Por pouco
que dure a colonização, perde até a lembrança de sua liber­
dade; esquece o que ela custa ou não ousa mais pagar seu
preço. Senão, como explicar que uma guarnição de alguns
homens possa manter-se em um posto de montanha? Que
um punhado de colonizadores freqüentemente arrogantes
possa viver no meio de uma multidão de colonizados? Os
próprios colonizadores se surpreendem com isso, explicando-
se assim que acusem o colonizado de baixeza. A acusação é
por demais desenvolta, na verdade; sabem muito bem que
se fossem ameaçados sua solidão seria rapidamente desfeita:
todos os recursos da técnica, telefone, telegrama, avião, po­
riam à sua disposição, em poucos minutos, terríveis meios de

87
defesa e de destruição. Para um colonizador morto, cente­
nas, milhares de colonizados são, ou serão exterminados. A
experiência foi bastante repetida — talvez provocada — para
ter convencido o colonizado da inevitável e terrível sanção.
Tudo foi empregado a fim de nele destruir a coragem de
morrer e de enfrentar a visão do sangue.
É tanto mais claro que, se é realmente de uma carência
que se trata, nascida de uma situação e da vontade do colo­
nizador, trata-se apenas disso. E não de uma incapacidade
congênita de assumir a história. A própria dificuldade do
condicionamento negativo, a obstinada severidade das leis
já o provam. Enquanto que a indulgência é plena para os
pequenos arsenais do colonizador, a descoberta de uma arma
enferrujada acarreta uma punição imediata. A famosa fan­
tasia não passa de uma representação de animal doméstico,
ao qual se pede para rugir como outrora a fim de arrepiar
os convidados. Mas, o animal ruge muito bem; e a nostalgia
das armas está sempre presente, está em todas as cerimô­
nias, do norte ao sul da África. A carência guerreira parece
proporcional à importante presença colonizadora; as tribos
mais isoladas permanecem as mais dispostas a pegar em ar­
mas. Isso não é uma prova de selvageria mas a de que o con­
dicionamento não é bastante sustentado.
Eis porque, igualmente, a experiência da última guerra
foi tão decisiva. Não apenas, como foi dito, ensinou impru­
dentemente aos colonizados a técnica da guerrilha. Também,
lembrou-lhes, ou sugeriu-lhes, a possibilidade de uma con­
duta agressiva e livre. Os governos europeus que, após essa
guerra, proibiram a projeção, nos cinemas coloniais, de fil­
mes como a Batalha do Trilho, não estavam errados, de seu
ponto de vista. Pois, os westerns americanos, os filmes de
gangsters, as faixas de propaganda de guerra, já mostravam
a maneira de utilizar um revólver ou uma metralhadora. O
argumento não é satisfatório. A significação dos filmes de
resistência é muito diferente: oprimidos, quase desarmados
ou mesmo sem armas, ousavam atacar seus opressores.
Um pouco mais tarde, logo que estouraram os primei­
ros motins nas colônias, os que não compreendiam seu sen­
tido tranqüilizavam-se contando os combatentes ativos e iro­
nizando seu pequeno número. O colonizado hesita, com efei-
88
to, antes de retomar nas mãos seu próprio destino. Mas o
sentido do acontecimento ultrapassava de tal forma seu peso
aritmético! Alguns colonizados não tremiam mais diante do
uniforme do colonizador! Acharam graça na insistência dos
revoltados em se vestirem de cáqui e de maneira homogênea.
Esperam, certamente, ser considerados como soldados e tra­
tados segundo as leis da guerra. Essa obstinação, porém, vai
mais longe: reivindicam, revestem o uniforme da história:
pois — infelizmente <— a história, hoje, está vestida de
militar.

. . . O C olonizado e a C idade

Assim também para os negócios da cidade: "Não são


capazes de se governarem sozinhos”, diz o colonizador. "Por
isso, explica, não os deixo... e nunca os deixarei chegar ao
governo” . >
O fato é que o colonizado não governa. Inteiramente
afastado do poder, acaba, com efeito, dele perdendo o há­
bito e o gosto. Como poderia interessar-se por aquilo de que
é tão decididamçnte excluído? Os colonizados não são ricos
em homens de governo. Como poderiam, tão longas férias
do poder autonomo, suscitar competências? Pode o coloni­
zador prevalecer-se deste presente fraudado para barrar o
futuro?
Por que as organizações colonizadas têm reivindicações
nacionalistas, conclui-se freqüentemente que o colonizado é
xenófobo. Nada é menos certo. Trata-se, ao contrário, de
uma ambição e de uma técnica de concentração que apela
para motivos passionais. Salvo nos militantes desse renasci­
mento nacional, os sinais habituais da xenofobia — amor
agressivo à bandeira, utilização de cantos patrióticos, cons­
ciência aguda de pertencer a um mesmo organismo nacional
— são raros no colonizado. Repete-se que a colonização pre­
cipitou a tomada de consciência nacional do colonizado. Po­
der-se-ia também perfeitamente afirmar que moderou o seu
ritmo, ao manter o colonizado fora das condições objetivas
da nacionalidade contemporânea. Será coincidência o fato de

89
serem os povos colonizados os últimos a chegar a essa cons­
ciência de si mesmos?
O colonizado não desfruta de atributo algum da nacio­
nalidade; nem da sua, que é dependente, contestada, sufo­
cada, nem, bem entendido, da nacionalidade do colonizador.
Não pode apegar-se nem à primeira, nem à segunda. Não
tendo seu justo lugar na cidade, não gozando dos direitos do
cidadão moderno, não estando sujeito a seus deveres comezi­
nhos, não votando, não participando da responsabilidade dos
negócios quotidianos, não pode sentir-se um verdadeiro ci­
dadão. Devido à colonização, o colonizado quase nunca faz
a experiência da nacionalidade e da cidadania, a não ser
privativamente: Nacionalmente, civicamente é apenas aquilo
que o-colonizador não é.

A C riança C olonizada

Essa mutilação social e histórica é provàvelmente a mais


grave e a mais carregada de conseqüências. Contribui para
enfraquecer os outros aspectos da vida do colonizado e, por
ricochête, freqüente nos processos humanos, é ela mesma
alimentada pelas outras fraquezas do colonizado.
Considerando-se excluído da cidadania, o colonizado
perde igualmente a esperança de ver seu filho tornar-se um
cidadão. Cede, renunciando ele mesmo a essa esperança, não
alimenta mais esse projeto, elimina-o de suas ambições pa­
ternas, e não lhe dá lugar algum na sua pedagogia. Nada,
pois, sugerirá ao jovem colonizado a segurança, o orgulho
de sua cidadania. Dela não esperará vantagens, não estará
preparado para assumir seus encargos. (Nada tampouco, é
claro, na sua educação escolar, onde as alusões à cidadania,
à nação, serão sempre relativas à nação colonizadora); esse
vazio pedagógico, resultado da carência social, vem, pois,
perpetuar essa mesma carência, que atinge uma das dimen­
sões essenciais do indivíduo colonizado.
Mais tarde, adolescente, é com dificuldade que entrevê
a única saida para uma situação familiar desastrosa: a revol­
ta. O círculo está bem fechado, A revolta contra o pai e a

90
família é um ato sadio e indispensável para que se complete
a si mesmo; permite começar a vida de homem; nova bata­
lha feliz e infeliz, mas entre os outros homens. O conflito de
gerações pode e deve resolver-se no conflito social; inversa­
mente, é assim fator de movimento e progresso. As novas
gerações encontram no movimento coletivo a solução de suas
dificuldades e, escolhendo o movimento, o aceleram. É pre­
ciso ainda que esse movimento seja possível. Ora, em que
vida, em que dinâmica social aqui se desemboca? A vida da
colônia está coagulada; suas estruturas estão ao mesmo tem­
po fixas e esclerosadas. Nenhum novo papel se oferece ao
moço, nenhuma invenção é possível. O que o colonizador
reconhece ser um eufemismo que se tornou clássico: respei­
ta, proclama ele, os usos e costumes do colonizado. E, cer­
tamente, não pode senão respeitá-los, mesmo que seja pela
força. Toda mudança não se podendo fazer senão contra a
colonização, o colonizador é levado a favorecer os elemen­
tos mais retrógrados. Não é o único responsável por esta
mumificação da sociedade colonizada; está de relativa boa
fé ao sustentar que não depende apenas de sua vontade.
Decorre em grande parte, no entanto, da situação colonial.
Não sendo senhora do seu destino, não sendo mais sua pró­
pria legisladora não pode mais harmonizar suas instituições
com suas necessidades profundas. Ora, são essas necessida­
des que modelam a fisionomia organizacional de toda socie­
dade normal, ao menos relativamente. Foi sob sua constante
pressão que a fisionomia política e administrativa da Fran­
ça se transformou progressivamente ao longo dos séculos.
Mas, se a discordância se tornou por demais fl^grante^ e a
harmonia impossível de realizar nas formas legais existentes,
é a revolução ou a esclerose.
A sociedade colonizada é uma sociedade malsã na qual
a dinâmica interna não consegue mais desembocar em novas
estruturas. Sua fisionomia endurecida há séculos não é mais
do que uma máscara, sob a qual ela sufoca e agoniza lenta­
mente. Tal sociedade não pode reabsorver os conflitos de
gerações, pois não se deixa transformar. A revolta do ado­
lescente colonizado, longe de resolver-se em movimento, em
progresso social, só pode afundar-se nos pântanos da socie­
dade colonizada. (A menos que seja uma revolta absoluta,
mas a isso voltaremos depois).
91
Os V alores R efúgios

Cedo ou tarde, cai então em posições de recuo, quer di­


zer nos valores tradicionais.
Explica-se, assim, a surpreendente sobrevivência da fa­
mília colonizada; apresenta-se como verdadeiro valor~re[úgio.
Salva o colonizado do desespero de uma total derrota, mas
encontra-se em compensação confirmada pela constante con­
tribuição de sangue novo. O rapaz se casará, tornar-se-á pai
de família devotado, irmão solidário, tio responsável, e, até
que tome o lugar do pai, filho respeitoso. Tudo volta à or­
dem: a revolta e o conflito desembocaram na vitória dos
pais e da tradição.
Triste vitória, no entanto. A sociedade colonizada não
terá dado meio passo sequer; para o rapaz é uma catástrofe
interior. Permanecerá aglutinado, definitivamente, a essa fa­
mília, que lhe oferece calor e ternura, mas que o choca, o
absorve, e o castra. Não exige dele, a cidadania, deveres
completos de cidadão? Ser-lhe-iam recusados se pensasse
ainda em reclamá-los? Concede-lhe poucos direitos, impede-
lhe toda vida nacional? Em verdade, não tem mais necessi­
dade imperiosa disso. Seu justo lugar, sempre reservado na
doce sensaboria das reuniões da clã, o satisfaz. Teria medo
de abandoná-lo. De bom grado, submete-se agora, como os
outros, à autoridade do pai e se prepara para substituí-lo. O
modelo é débil, seu universo é o de um vencido! mas, que
outra saída lhe resta? Por um paradoxo curioso o pai é ao
mesmo tempo fraco e invasor, porque completamente adota­
do. O jovem está pronto para assumir seu papel de adulto
colonizado: isto é, a aceitar-se como ser de opressão.
Assim também, no que se refere à indiscutível influên­
cia de uma religião, ao mesmo tempo viva e formal. Com­
placentemente, os missionários apresentam esse formalismo
como um traço essencial das religiões não-cristãs. Sugerindo
assim que o único meio de sair dele seria passar para a reli­
gião mais próxima.
De fato, todas as religiões têm momentos de formalis­
mo coercitivo e momentos de flexibilidade indulgente. Resta
explicar porque tal grupo humano, em tal período de sua
92
história, sujeitou-se a tal estado. Por que essa rigidez ôca
das religiões colonizadas?
Seria inútil construir uma psicologia religiosa particular
ao colonizado; ou apelar para a famosa natureza-que-tudo-
explica. Se dispensam certa atenção ao fato religioso, não
notei nos meus alunos colonizados uma religiosidade exces­
siva. A explicação me parece ser paralela à da influência
familiar. Não é uma psicologia original que explica a impor­
tância da família nem a intensidade da vida familiar o estado
das estruturas sociais. É, ao contrário, a impossibilidade de
uma vida social completa, de um livre jogo da dinâmica so­
cial, que entretém o vigor da família, que concentra o indi­
víduo nesta célula mais restrita, que o salva e o sufoca. As­
sim também, o estado global das instituições colonizadas ex­
plica o peso excessivo do fato religioso.
Com sua rede institucional, suas festas coletivas e pe­
riódicas, a religião constitui outro valor-refúgio; para o indi­
víduo como para o grupo. Para o indivíduo apresenta-se
como uma das raras linhas de recuo; para o grupo, é uma
das raras manifestações capazes de proteger sua existência
original. Não possuindo estruturas nacionais, impedida de
imaginar um futuro histórico, a sociedade colonizada deve
contentar-se com o torpor passivo de seu presente. Esse pro-
prio presente, deve subtraí-lo à invasão conquistadora da
colonização, que a cerca por todos os lados, penetra-a com
sua técnica, com seu prestígio junto às novas gerações. O
formalismo, do qual o formalismo religioso é apenas um as­
pecto, é o quisto no qual ela se fecha, se endurece; reduzin­
do sua vida para salvá-la. Reação espontânea de autodefesa,
meio de salvaguarda da consciência coletiva, sem o qual um
povo, rapidamente, deixa de existir. Nas condições de depen­
dência colonial, a emancipação religiosa, assim como a desa­
gregação da família, teria comportado grave risco de morrer
para si mesmo.
A esclerose da sociedade colonizada é então a conse­
qüência de dois processos de sinais contrários: um enquis-
tamento nascido do interior, um colete imposto de fora. Os
dois fenômenos têm um fator comum: o contato com a colo­
nização. Convergem para um mesmo resultado: a catalepsia
social e histórica do colonizado.

93
A A mnésia C ultural

Uma vez que suporta a colonização, a única alternativa


possível para o colonizado é a assimilação ou a petrificação.
Sendo-lhe recusada a assimilação, nós o veremos, nada mais
lhe resta senão viver fora do tempo. É levado a isso pela
colonização, e em certa medida, acomoda-se. A projeção e
a construção de um futuro sendo-lhe proibidas, limita-se a
um presente; e esse presente, ele mesmo, é amputado,
abstrato.
Acrescentemos agora que dispõe cada vez menos de seu
passado. O colonizador jamais o conheceu; e todo mundo
sabe que o plebeu, do qual ignoramos as origens, não o tem.
Hã algo mais grave. Interroguemos o próprio colonizado:
quais são seus heróis populares? Seus grandes líderes popu­
lares? Seus sábios? Mal pode dar-nos alguns nomes, em
completa desordem, e cada vez menos à medida em que des­
cemos de gerações. O colonizado parece condenado a perder
progressivamente a memória.
A lembrança não é um fenômeno de puro espírito. As­
sim como a memória do indivíduo é o fruto de sua história
e de sua fisiologia, a de um povo apóia-se nas suas institui­
ções. Ora, as instituições do colonizado estão mortas ou es-
clerosadas. Mesmo nas que guardam uma aparência de vida,
ele não mais acredita, pois verifica todos os dias sua inefi­
cácia; acontece-lhe envergonhar-se delas como de um monu­
mento ridículo e antiquado.
Toda a eficácia, ao contrário, todo o dinamismo social,
parecem açambarcados pelas instituições do colonizador. O
colonizado tem necessidade de ajuda? É a elas que se dirige.
Está em falta? É delas que recebe sanção. Invariavelmente,
termina diante de magistrados colonizadores. Quando um
representante da autoridade, usa por acaso o turbante, terá
o olhar esquivo e o gesto mais ríspido, como se quisesse evi­
tar qualquer apelo, como se estivesse sob a constante vigi­
lância do colonizador. A cidade está em festa? São as festas
do colonizador, mesmo religiosas, que são celebradas com
estardalhaço: Natal e Joana D ’Arc, o Carnaval e o Quator­
ze de Ju lh o ..., são os exércitos do colonizador que desfi-

94
lam, os mesmos que esmagaram o colonizado, o mantém no
seu lugar e o esmagarão outra vez se fór preciso.
Sem dúvida, em virtude do seu formalismo, o coloniza­
do conserva todas suas festas religiosas, invariáveis há
séculos. Precisamente, são as únicas festas religiosas que, em
certo sentido, estão fora do tempo. Mais exatamente, encon­
tram-se na origem do tempo da história e não na história.
Desde o momento em que foram instituídas, nada mais se
passou na vida desse povo. Nada de particular na sua pró­
pria existência, que mereça ser guardado pela consciência
coletiva, e festejado. Nada, a não ser um grande vazio.
Os poucos traços materiais, enfim, desse passado, apa-
gam-se lentamente e os vestígios futuros não trarão mais a
marca do grupo colonizado. As poucas estátuas que apare­
cem na cidade simbolizam, com inacreditável desprezo pelo
colonizado que por elas passa todos os dias, os feitos da
colonização. As construções trazem as formas amadas pelo
colonizador; e até os nomes das ruas lembram as províncias
longínquas de onde ele vem. Acontece, sem dúvida, lançar
o colonizador um estilo neo-oriental, como o colonizado imi­
ta o estilo europeu. Trata-se, porém, de exotismo (velhas
armas e cofres antigos) e não de renascimento; o coloniza­
do, este, não faz senão evitar seu passado.

A E scola do C olonizado

Como se transmite ainda a herança de um povo?


Pela educação que dá às suas crianças, e por meio da
lingua, maravilhoso reservatório incessantemente enriquecido
por novas experiências. As tradições e as aquisições, os há­
bitos e as conquistas, os fatos e os gestos das gerações pre­
cedentes são assim legados e inscritos na história.
Ora, a maior parte das crianças colonizadas está na rua.
E aquela que tem a insigne oportunidade de ser acolhida em
uma escola, não será por ela nacionalmente salva: a memó­
ria que lhe formam não é a de seu povo. A história que lhe
ensinam não é a sua. Sabe quem foi Colbert ou Croniwell
mas não quem foi Khaznadar; sabe quem foi Joana D ’Arc

95
mas não Kahena. Tudo parece ter acontecido longe de sua
terra; seu país e ele mesmo estão no ar, ou não existem se­
não com referência aos Gauleses, aos Francos, à batalha do
Marne; em relação ao que ele não é, ao cristianismo, ao
passo que não é cristão, ao Ocidente que se detém diante de
seu nariz, em uma linha tanto mais transponível quanto mais
imaginária. Os livros lhe falam de um mundo que em nada
lembra o seu; o menino chama-se Toto e a menina Marie;
e, nas tardes de inverno, Marie e Toto voltam para casa por
caminhos cobertos de neve, detêm-se diante do mercado de
castanhas. Seus mestres, enfim, não continuam o pai, não
são seus prestigiosos e sábios substitutos como todos os pro­
fessores do mundo, são diferentes. A transferência não se
faz, nem da criança para o mestre, nem (muito freqüente­
mente, é preciso confessá-lo) do mestre para a criança; e isto
a criança o sente perfeitamente. Um dos meus antigos cole­
gas de classe confessou-me que a literatura, as artes, a filo­
sofia, lhe tinham permanecido estranhas, como pertencentes
a um mundo estranho, o da escola. Foi-lhe necessária uma
longa temporada parisiense para começar realmente a
assimilá-las.
Se a transferência acaba por fazer-se, não é sem peri­
go: o mestre e a escola representam um universo por demais
diferente do universo familiar. Nos dois casos, enfim, longe
de preparar o adolescente para assumir-se totalmente, a es­
cola estabelece em seu seio uma definitiva dualidade.

O B ilingüismo C olonial

Essa dilaceração essencial do colonizado encontra-se


particularmente expressa e simbolizada no bilingüismo
colonial.
O colonizado não se salva do analfabetismo senão para
cair no dualismo lingüístico. Quando tem essa oportunidade.
A maioria dos colonizados jamais teve a boa sorte de sofrer
os tormentos do bilingüismo colonial. Nunca dispõe senão
de sua língua materna; quer dizer, uma Tingua nem escrita
nem lida, que só permite a incerta e pobre cultura oral.
96
Pequenos grupos de letrados obstinam-se, certamente,
em cultivar a língua de seu povo, a perpetuá-la nos seus es­
plendores sábios e ultrapassados. Mas essas formas sutis
perderam, há muito tempo, todo contato com a vida quoti­
diana, tornaram-se opacas para o homem da rua. O coloni­
zado as considera como relíquias, e a esses homens venerá­
veis, como sonâmbulos, que vivem um velho sonho.
Ainda se a língua materna ao menos permitisse inter- (
ferir na vida social, atravessasse os guichês das administra­
ções ou funcionasse no tráfico postal. Nem isso. Toda a
burocracia, toda a magistratura, toda a tecnicidade não en­
tende e não utiliza senão a língua do colonizador, assim como
os marcos da quilometragem, os cartazes das estações, as
placas das ruas e os recibos. Munido apenas de sua língua
o colonizado é um estrangeiro dentro de seu próprio país.
No contexto colonial o bilingüismo é necessário. É a
condição de toda comunicação, de toda cultura e de todo
progresso. Mas o bilingüe colonial só se salva do enclausu-
ramento para sofrer uma catástrofe cultural, jamais comple­
tamente superada.
A não-coincidência entre a língua materna e a língua
cultural não é exclusiva do colonizado. Mas o bilingüismo
colonial não pode ser confundido com qualquer dualismo lin­
güístico. A posse de duas línguas não é apenas a de dois
instrumentos, é a participação em dois reinos psíquicos e cul­
turais. Ora aqui, os dois universos simbolizados, carregados
pelas duas línguas, estão em conflito: são os do colonizador
e do colonizado.
Além disso, a língua materna do colonizado, aquela que
é nutrida por suas sensações, suas paixões e seus sonhos,
aquela pela qual se exprimem sua ternura e seus espantos,
aquela enfim que contém a maior carga afetiva, essa é pre­
cisamente a menos valorizada. Não possui dignidade alguma
no país ou no concerto dos povos. Se quer obter uma colo­
cação, conquistar seu lugar, existir na cidade e no mundo,
deve, primeiramente, aplicar-se à língua dos outros, a dos
colonizadores, seus senhores. No conflito lingüístico que ha­
bita o colonizado, sua língua materna é humilhada, esmaga­
da. E esse desprezo, objetivamente fundado, acaba por im-
por-se ao colonizado. De moto próprio, põe-se a afastar essa
língua enferma, a esconde-la dos olhos dos estrangeiros, e

97
não parecer à vontade senão com a língua do colonizador.
Em resumo, o bilingüismo colonial não é nem uma digtossia,
onde coexistem um idioma popular e uma língua de purista,
pertencentes ambos ao mesmo universo afetivo, nem uma
simples riqueza poliglota, que se beneficia de um teclado su­
plementar porém relativamente neutro; é um drama lingüís­
tico.

... E a S itu a ç ã o do E scrito r

Espantamo-nos de que o colonizado não tenha literatu­


ra viva na sua própria língua. Como recorreria a ela, se a
desdenha? Como, se é afastado de sua música, de suas artes
plásticas, de toda sua cultura tradicional? Sua ambigüidade
lingüística é o simbolo, e uma das maiores causas de sua am­
bigüidade cultural. E a situação do escritor colonizado é
disso uma perfeita ilustração.
As condições materiais da existência colonizada basta­
riam, sem dúvida, para explicar sua raridade. A miséria ex­
cessiva do maior número reduz ao extremo as oportunidades
estatísticas de ver nascer e crescer um escritor. Mas a histó­
ria nos mostra que basta uma classe privilegiada para prover
de artistas um povo inteiro. De fato, o papel dq escritor co­
lonizado é por demais difícil de sustentar: encarna todas as
ambigüidades, todas as impossibilidades do colonizado, le­
vadas a um grau extremo.
Suponhamos que tenha aprendido a manejar sua língua,
até mesmo a recriá-la em obras escritas, que tenha vencido
sua profunda recusa a servir-se dela; para quem escreveria,
para que público? Se se obstina em escrever na sua língua,
condena-se a falar para um auditório de surdos. O povo é
inculto e não lê língua alguma. Os burgueses e os letrados
só entendem a do colonizador. Uma única saída lhe resta,
que se apresenta como natural: escrever na língua do colo­
nizador. Como se não fizesse senão mudar de impasse!
É preciso, sem dúvida, que supere seu handicap. Se o
bilingüe colonial tem a vantagem de conhecer duas línguas,
nenhuma domina totalmente. Isso explica igualmente a len-

98
tidão com que nascem as literaturas colonizadas. É preciso
malbaratar muita matéria humana, fazer inúmeras tentativas
para ter a oportunidade de um acaso feliz. Após o que, res­
surge a ambigüidade do escritor colonizado, em forma nova
porém mais grave. , í
Curioso destino o de escrever para um povo que não o ^
seu! Mais curioso ainda o de escrever para os vencedores de
seu povo! Surpreende a aspereza dos primeiros escritores
colonizados. Esquecem-se de que se dirigem ao mesmo pú- .
blico cuja lingua tomam emprestada. Não se trata, porém,
nem de inconsciência, nem de ingratidão, nem de insolência.
A esse público, precisamente, já que ousam falar, que irão
dizer a não ser seu mal-estar e sua revolta? Esperavam pa­
lavras de paz daquele que sofre de uma longa discórdia?
Reconhecimento por empréstimo a juros tão altos?
Por um empréstimo que, aliás, nunca será senão um em.
préstimo. A rigor substituímos aqui a descrição pela previ­
são. Mas é tão legível, tão evidente! A emergência de uma
literatura de colonizados, a tomada de consciência de escri­
tores norte-africanos, por exemplo, não é um fenômeno iso­
lado. Participa da tomada de consciência de si mesmô de r
todo um grupo humano. O fruto não é um acidente ou um
milagre da planta, mas o sinal de sua maturidade. Quando /
muito o surgimento do artista colonizado precede um pouco
a tomada de consciência coletiva da qual participa, que ace- A
lera com sua participação. Ora, a reivindicação mais urgente
de um grupo que se recupera é certamente a libertação e a
restauração de sua língua.
Se me surpreendo, em verdade, é de que possam sur­
preender-se. Somente essa lingua permitiria ao colonizado
retomar seu tempo interrompido, reencontrar sua continui­
dade perdida e a de sua história. A língua francesa é ape­
nas um instrumento, preciso, eficaz? Ou esse cofre maravi­
lhoso, onde se acumulam as descobertas e as conquistas, dos
escritores e dos moralistas, dos filósofos e dos sábios, dos
heróis e dos aventureiros, onde se transformam em uma só
legenda os tesouros do espirito e a alma dos franceses?
O escritor colonizado, que chegou penosamente à utili­
zação das linguas européias — a dos colonizadores, não o
esqueçamos <— não pode deixar de servir-se delas para re­
clamar em favor da sua. Não se trata nem de incoerência
99
nem de reivindicação pura ou cego ressentimento, mas de
uma necessidade. Não o fizesse e todo o seu povo acabaria
por fazê-lo. Trata-se de uma dinâmica objetiva que ele ali­
menta, certamente, mas que o nutre e que continuaria sem
ele. Fazendo-o, se contribui para liquidar seu drama de ho­
mem, confirma, acentua seu drama de escritor. Para conci­
liar seu destino consigo mesmo poderia tentar escrever na
sua língua materna. Mas não se refaz tal aprendizagem em
uma vida humana. O escritor colonizado está condenado a
viver suas rupturas até a morte. O problema só pode resol­
ver-se de duas maneiras: pelo esgotamento natural da lite­
ratura colonizada: as próximas gerações nascidas na liber­
dade, escreverão espontaneamente na sua língua recupera­
da. Sem ir tão longe, outra possibilidade pode tentar o es­
critor: decidir-se a pertencer totalmente a literatura metro­
politana. Deixemos de lado os prolemas éticos suscitados por
tal atitude. É então o suicídio da literatura colonizada. Nas
duas perspectivas, só o prazo diferindo, a literatura coloni­
zada de lingua européia parece condenada a morrer jovem.

O S er de C arência

Tudo se passa, enfim, como se a colonização fosse uma


frustração da história. Por sua fatalidade própria e por ego­
ísmo, tudo terá feito malograr, terá poluído tudo aquilo que
tiver tocado. Terá apodrecido o colonizador e destruído o
colonizado.
Pi ra melhor triunfar, só quis servir a si mesma. Mas,
excluindo o homem colonizado, somente por meio do qual
teria podido marcar a colônia, condenou-se a nela permane­
cer estrangeira, por isso necessariamente efêmera.
De seu suicídio, porém, só ela própria é responsável.
Mais imperdoável é seu crime histórico contra o colonizado:
ela o terá posto à margem do caminho, fora do tempo con­
temporâneo .
A questão de saber se o colonizado, entregue a si mes­
mo, teria andado com o mesmo passo que os outros povos

100
não tem grande significação- A rigor, nada sabemos a esse
respeito. É possível que não. Sem dúvida, não há apenas o
fator colonial para explicar o atraso de um povo. ToHõs“õs
países não seguiram o mesmo ritmo da América dO NóftéTm )
da Inglaterra; tinham, cada um, suas razões particulares de
atraso e seus próprios freios. Todavia, andaram com os pró^ l
prios pés e no seu caminho. Além disso, pode-se legitimar >
a infelicidade histórica de um povo pelas dificuldades dos
outros? Os colonizados não são as únicas vítimas da histó­
ria, certamente, mas a infelicidade histórica própria dos co­
lonizadores foi a colonização.
A esse mesmo falso problema acrescenta-se a questão
tão aflitiva para tantos: o colonizado, apesar de tudo, não
tirou proveito da colonização? Anesar de tudo, o colnniza-
dor não abriu estradas, não construiu hospitais e escolas?
Essa restrição, tão renitente, equivale a dizer que a coloni­
zação foi, apesar de tudo, positiva; pois, sem ela, nãÕThãvé-
ria nem estradas, nem hospitais, nem escolas. Que sabemos
a esse respeito? Por que devemos supor que o colonizado
ter-se-ia fossilizado no estado em que o colonizador o en­
controu? Poder-se-ia também perfeitamente afirmar o con­
trário: se a colonização não tivesse ocorrido, ele teria tido
mais escolas e mais hospitais. Se a história tunisiana fosse
mais conhecida, ter-se-ia visto que o país estava então em
plena gestação. Após haver excluído o colonizado da hisfo^
ria, vedando-lhe qualquer futuro, o colonizador afirma sua
imobilidade fundamental, passada e definitiva.
Essa objeção, aliãs, só perturba aqueles que estão dis­
postos a perturbar-se. Renunciei até aqui à comodidade dos
números e das estatísticas. Seria o momento de fazer-lhes
um discreto apelo: após vários decenios de colonização, a
multidão de crianças na rua ultrapassa de longe aquelas que
estão no colégio! O número de leitos dos hospitais é tão ir­
risório diante do número dos doentes, a intenção no traçado
das estradas tão clara, tão desenvolta ao olhar do coloniza­
do, tão estritamente submetida às necessidades do coloniza­
dor!. Por tão pouco, em verdade, a colonização não era in- f
dispensável. Será uma temeridade pretender que a Tunísia ,
de 1952’teria sido, de qualquer maneira, muito diferente da
cTe 1881? Existem, afinal de contas, outras possibilidades de
Triíluência e de intercâmbio entre os povos além da domina-

101
ção. Outros pequenos países se transformaram profunda-
meríte sem ter fidõTíFcéssIdade Je serem colonizados. Assim
numerosos paises da Europa Central. . .
Mas, depois de um momento, nosso interlocutor sorri,
cético.
— Mas, não se trata exatamente da mesma coisa. . .
— Por quê? Quereis dizer, não é, que esses países são
povoados por europeus?
—• ...Sim !
— Pois bem, nesse caso, sois pura e simplesmente
racista.
Voltamos, com efeito, ao mesmo preconceito fundamen­
tal. Os europeus conquistaram o mundo porque sua nature­
za a isso os predispunha, os não-europeus foram colonizados
porque sua natureza a isso os condenava.
■Vamos, sejamos sérios, deixemos de lado o racismo e
essa mania de refazer a história. Deixemos mesmo de lado
o problema da responsabilidade inicial da colonização. Foi o
resultado da expansão capitalista ou o empreendimento con­
tingente de vorazes homens de negócios? A rigor tudo isso
não é tão importante assim. O que conta, é a realidade atual
da colonização e do colonizado. Nada sabemos do que teria
sido o colonizado sem a colonização, mas vemos perfeita­
mente o que se tornou em conseqüência da colonização. Para
melhor dominá-lo e explorá-lo, o colonizador o expeliu do
circuito histórico e social, cultural e técnico. O que é atual
e verificável é que a cultura do colonizado, sua sociedade,
seu saber-fazer estão gravemente atingidos, e que ele não
adquiriu um novo saber e uma nova cultura. Um resultado
patente da colonização é que não há mais artistas e ainda
não há técnicos colonizados. É verdade que existe, igual­
mente, uma carência técnica do colonizado: "Trabalho ára­
be”, diz o colonizador com desprezo. Mas longe de ver nisso
uma desculpa para sua conduta e um ponto de referência
vantajoso para ele, deve ver sua propria acusação. É verda­
de que os colonizados não sabem trabalhar. Mas onde lhes
explicaram, quem lhes ensinou a técnica moderna? Onde
estão as escolas profissionais e os centros de aprendizagem?
Insistis demais, dizem às vezes, na técnica industrial. E
os artesãos? Vede esta mesa de madeira branca; por que é
de madeira de caixote? E mal acabada, mal aplainada, nem

102
p i n t a d a , n e m encerada? C e r t a m e n t e e s t a d e s c r i ç ã o é e x a t a .
D ecen te, n essa s m e s a s d e ch á , h á a p e n a s a f o r m a , p r e s e n t e
secular f e i t o ao artesão pela tradição. M a s , quanto ao resto,
é a encomenda que provoca a criação. O ra, p ara quem são
f e i t a s e s s a s m e s a s ? O comprador não tem
como p a g a r esses
aplainamentos s u p l e m e n t a r e s , n e m a c e r a , nem a p in tu ra .
Então, continuam em tábuas de caixotes desconjuntadas,
onde os buracos dos pregos permanecem abertos.
O f a t o verificável é que a colonização r e d u z o coloni­
zado à privação e que todas as carências se entretêm e se
alimentam umas às outras. A não-industrialização, a au sên ­
cia de desenvolvimento técnico do país, conduz ao lento es­
magamento econômico do colonizado. E o esm agam ento
econômico, o nível de vida das massas colonizadas, impedem
o técnico de existir, como o artesão de aperfeiçoar-se e de
criar. As causas últimas são a recusa do colonizador, que
ganha muito mais vendendo matéria-prima do que fazendo
concorrência à indústria metropolitana. Além disso, porém ,
o sistema funciona em círculo, adquire uma autonom ia de
desgraça. Se tivessem aberto mais centros de aprendizagem ,
e mesmo de universidades, não teriam salvo o colonizado
que não encontraria ao sair delas a utilização do seu saber.
Em um país que de tudo carece, os poucos engenheiros co­
lonizados que conseguem obter seus diplomas são utilizados
como burocratas ou como professores! A sociedade coloni­
zada não tem necessidade imediata de técnicos e não os sus­
cita. Mas, infeliz daquele que não é indispensável! O tra b a ­
lhador colonizado é substituível, por que pagar-lhe seu j'usto
preço? Além disso, nosso tempo e nossa história são cada
vez mais técnicos; o atraso técnico do colonizado aum enta
e parece justificar o desprezo que inspira. T o rn a concreta,
parece, a distância que o separa do colonizador. E não é
falso que o atraso técnico seja em parte causa da incom ­
preensão dos dois parceiros. O nível geral de vida do colo­
nizado é, freqüentemente, tão baixo que o contato é quase
impossivel. Livram-se disso falando no medievalismo da co­
lônia. Pode-se prosseguir assim durante muito tempo. O uso,
a fruição das técnicas, criam tradições técnicas. O menino
francês, o menino italiano, têm ocasião de lidar com um mo­
tor, um rádio, estão cercados pelos produtos da técnica.
Muitos colonizados esperam deixar a casa paterna p ara se
103
aproximarem de qualquer máquina. Como poderiam ter gos­
to pela civilização mecanica e a intuição da máquina?
Tudo no colonizado, enfim, é privação, tudo contribui
para torná-lo um ser de carência. Mesmo seu corpo, mal
nutrido, enfezado e doente. Muitas palavras seriam econo­
mizadas se, antes de qualquer discussão começássemos por
admitir: primeiramente há a miséria, coletiva e permanente,
imensa. A simples e brutal miséria biológica, a fome crônica
de todo um povo, a subalimentação e a doença. Certamente,
ao longe, isso fica um pouco abstrato, e, para concebê-lo,
seria necessária uma imaginação alucinatória. Lembro-me do
dia em que o carro da "Tunisienne Automobile” que nos le­
vava rumo ao sul, parou no meio de uma multidão cujas bo­
cas sorriam, mas cujos olhos, quase todos os olhos, afunda­
vam nas faces: onde procurei com mal-estar um olhar não
tracomatoso no qual pudesse repousar o meu. E a tuber­
culose, e a sífilis, e esses corpos esqueléticos e nus, que pe­
rambulam entre as mesas dos cafés, como mortos-vivos, pe­
gajosos como moscas, as moscas dos nossos remorsos...
— Ah! não, grita nosso interlocutor, essa miséria já
estava lá! Nós a encontramos ao chegar!
Seja. (É verdade, aliás: o habitante dos subúrbios é
freqüentemente um felá sem posses.) Mas, como poderia tal
sistema social, que perpetua tais angústias — supondo que
não as crie — manter-se por tanto tempo? Como se ousa
comparar as vantagens e os inconvenientes da colonização?
Que vantagens, fossem elas mil vezes mais importantes, po­
deriam tornar admissíveis tais catástrofes, interiores e
exteriores?

104
3

As Duas Respostas do
Colonizado

•Ah! não são bonitos, o corpo e o rosto do colonizado!


Não é impunemente que se suporta o peso de tamanha des­
ventura histórica Se a do colonizador é a face odiosa do
opressor, a de sua vítima não exprime certamente a calma e
a harmonia. O colonizado não existe conforme o mito colo­
nialista, mas é assim mesmo reconhecível. Um ser de opres­
são, é fatalmente um ser de carência.
Como podemos crer, depois disso, que algum dia possa
resignar-se? Aceitar a relação colonial e a máscara de sofri­
mento e de desprezo que lhe empresta? Há, em todo coloni­
zado, uma exigência fundamental de mudança. E o desco­
nhecimento do fato colonial (ou a cegueira interessada)

105
deve ser imenso para ignorá-la. Para afirmar, por exemplo,
que a reivindicação colonizada é apenas de alguns intelec­
tuais ou ambiciosos, e que traduz somente decepção ou in­
teresse pessoal. Bom exemplo de projeção, seja dito de pas­
sagem: explicação de outrem pelo interesse, por parte da­
queles que são motivados apenas pelo interesse. A recusa do
colonizado é, em suma, assimilada a um fenômeno de super­
fície, ao passo que decorre da própria natureza da situação
colonial.
O burguês sofre mais ainda com o bilingüismo, é ver­
dade; o intelectual vive mais ainda o dilaceramento cultural.
O analfabeto, este, está simplesmente murado na sua lingua
e rumina os restos de cultura oral. Aqueles que compreen­
dem a própria sorte, é verdade, tornam-se impacientes e não
suportam mais a colonização. Mas são os melhores, que so­
frem e que recusam: e não fazem senão traduzir a desven­
tura comum. Se não fosse assim, por que seriam tão rapida­
mente entendidos, tão bem compreendidos e obedecidos?
Se nos propomos compreender o fato colonial, devemos
admitir que é instável, que seu equilíbrio está incessante­
mente ameaçado. Podemos transigir com todas as situações
e o colonizado pode ter a esperança de viver muito tempo.
Mais ou menos rapidamente, porém, mais ou menos violen­
tamente, pelo movimento todo de sua personalidade oprimi­
da, um dia se dispõe a recusar sua insuportável existência.
As duas saídas, historicamente possíveis, são então ten­
tadas, sucessiva ou paralelamente. O colonizado tenta ou
tornar-se outro, ou reconquistar todas as suas dimensões,
das quais foi amputado pela colonização.

O A mor do C olonizador
eo Ódio de Si M esmo

A primeira tentativa do colonizado é a de mudar de


condição mudando de pele. Um modelo tentador e muito
próximo a ele se oferece e se impõe: precisamente o do colo­
nizador. Este não sofre de nenhuma de suas carências, tem
todos os direitos, goza de todos os bens e se beneficia de
106
todos os prestígios; dispõe de riquezas e de honrarias, da
técnica e da autoridade. É, enfim, o outro termo da compa­
ração que esmaga o colonizado e o mantém na servidão. A
primeira ambição do colonizado será a de igualar-se a esse
modelo prestigioso, de parecer-se com ele até nele desapa­
recer .
Dessa atitude, que supõe, com efeito, a admiração do
:olonizador, conclui-se a aprovação da colonização. Mas,
por uma dialética evidente, no momento em que o coloniza­
do mais transige com sua sorte, recusa-se a si mesmo com
maior tenacidade. Quer dizer que recusa, de outra maneira,
a situação colonial. A recusa de si mesmo e o amor do outro
são comuns a todo candidato à assimilação. E os dois com­
ponentes dessa tentativa de libertação estão estreitamente
ligados: subjacente ao amor do colonizador há um complexo
de sentimentos que vão da vergonha ao ódio de si mesmo.
O exagero desta submissão ao modelo já é reveladora.
A mulher loura, seja insípida e de traços banais, parece su­
perior a toda morena. Um produto fabricado pelo coloniza­
dor, uma palavra dada por ele, são recebidos com confian­
ça. Seus hábitos, suas roupas, seus alimentos, sua arquite­
tura, são rigorosamente copiados, mesmo sendo inadequados.
O casamento misto é o termo extremo desse impulso nos
mais audaciosos.
Esse arrebatamento pelos valores dos colonizadores não
seria tão suspeito, se não comportasse tal contrapartida. O
colonizado não procura apenas enriquecer-se com as virtudes
do colonizador. Em nome daquilo que deseja vir a ser, em­
penha-se em empobrecer-se, em arrancar-se de si mesmo.
Tornamos a encontrar, em outra forma, um traço já assina­
lado. O esmagamento do colonizado está incluído nos valo­
res dos colonizadores. Quando o colonizado adota esses
valores, adota inclusive sua própria condenação. Para liber-
tar-se, ao menos é o que pensa, aceita destruir-se. O fenô­
meno é comparável à negrofobia do negro, ou aò anti-semi­
tismo do judeu. As negras se desesperam alisando os cabe­
los, que anelam sempre, e torturam a pele a fim de embran­
quece-la um pouco. Muitos judeus, se o pudessem, arranca­
riam a propria alma; essa alma que lhes disseram ser irre­
mediávelmente má. Declarou-se ao colonizado que sua mú­
sica é miado de gato; sua pintura, xarope de açúcar. Repete
107
que sua música é vulgar e sua pintura enjoativa. E, se essa
música assim mesmo o toca, comove-o mais que os sutis
exercícios ocidentais, que acha frios e complicados, se essa
união de cores cantantes e ligeiramente ébrias alegram-lhe a
vista, é contra sua vontade. Fica indignado consigo mesmo,
esconde isso aos olhos dos estrangeiros, ou afirma repug­
nâncias tão fortes que se tornam cômicas. As mulheres da
burguesia preferem a jóia medíocre que vem da Europa à
jóia mais pura de sua tradição. E são os turistas que se ma­
ravilham diante dos produtos do artesanato popular. Enfim,
negro, judeu ou colonizado, é preciso parecer-se o mais pos­
sível com o branco, o não-judeu, o colonizador. Assim como
muita gente evita andar com seus parentes pobres, o colo­
nizado em vias de assimilação esconde seu passado, suas
tradições, todas suas raízes, enfim, tornadas infamantes.

I mpossibilidade da A ssimilação

Essas convulsões interiores e essas contorsões poderiam


ter acabado. Ao termo de um longo processo, doloroso, con-
flitual certamente, o colonizado ter-se-ia talvez integrado no
seio dos colonizadores. Não há problema que a usura da
história não possa resolver. É questão de tempo e de gera­
ções. Com a condição, todavia, de não conter dados contra­
ditórios. Ora, no quadro colonial a assimilação revelou-se
impossível.
O candidato à assimilação, quase sempre, acaba se can­
sando do preço exorbitante que por ela é preciso pagar, e do
qual jamais chega a desobrigar-se. Descobre também com
assombro todo o sentimento da sua tentativa. É dramático o
momento em que descobre que retomou por sua conta as
acusações e as condenações do colonizador; que se habitua
a olhar os seus com os olhos do seu procurador. Não deixam
de ter defeitos, nem são irreprocháveis, certamente. Há fun­
damentos objetivos para a impaciência do colonizador em
relação a eles e a seus valores; quase tudo neles é caduco,
ineficaz e irrisório. Mas, ora! são os seus, é um deles, nunca
deixou de sê-lo, profundamente! Esses ritmos em equilíbrio

108
há séculos, esse alimento que lhe enche tão bem a boca e o
estômago, são ainda os seus, são ele mesmo. Deverá, toda
sua vida, envergonhar-se daquilo que, nele, é o mais real?
Da única coisa que não foi tomada de empréstimo? Deve
empenhar-se em negar-se a si mesmo? e aliás, suporta-lo-ia
sempre? Sua libertação deve, enfim, implicar a agressão sis­
temática de si próprio?
A maior impossibilidade não está aí, porém. Cedo a
descobre: consentisse em tudo e mesmo assim não se sal­
varia. Para assimilar-se, não é suficiente despedir-se de seu
grupo, é preciso penetrar em outro: ora, ele encontra a re­
cusa do colonizador.
Ao esforço obstinado do colonizado em vencer o des­
prezo (que merecem seu atraso, sua fraqueza, sua alterida-
de, acaba por admiti-lo), à sua submissão embasbacada, ao
seu empenho em confundir-se com o colonizador, em vestir-
se como ele, em falar, em comportar-se como ele, até nos
seus tiques.e na sua maneira de fazer a corte, o colonizador
opõe um segundo desprezo: a zombaria. Declara, explica ao
colonizado, que esses esforços são vãos, que com isso ga­
nha apenas um traço suplementar: o ridículo. Pois jamais
chegará a identificar-se com ele, nem mesmo a reproduzir
corretamente seu papel. Quando muito, se não quiser ferir
o colonizado, o colonizador utilizará toda sua metafísica ca-
racteriológica. Os gênios dos povos são incompatíveis: cada
gesto é subentendido pela alma inteira, e tc ... Mais brutal­
mente dirá que o colonizado não passa de um macaco. E,
quanto mais sutil é o macaco, quanto melhor imita, mais o
colonizador se irrita. Com essa atenção e esse faro aguçado
que a malevolência desenvolve, identificará a nuance reve­
ladora, na roupa ou na linguagem, a “falta de gosto” que
acaba sempre por descobrir. Um homem a cavalo sobre duas
culturas raramente está bem sentado, com efeito, e o colo­
nizado nem sempre encontra o tom justo.
Tudo é disposto, enfim, para que o colonizado não pos­
sa dar esse passo: para que compreenda e admita que esse
caminho é um impasse e a assimilação impossível.
O que torna perfeitamente inúteis os lamentos dos hu­
manistas metropolitanos, e injustas suas censuras endereça­
das ao colonizado. Como ousa recusar, espantam-se eles,
esta síntese generosa com a qual, murmuram, só poderia lu-
109
crar? O colonizado é o primeiro a desejar a assimilação e é
o colonizador que a recusa.
Hoje, que a colonização chega ao seu fim, tardias boas
vontades se perguntam se a assimilação não foi a grande
oportunidade perdida pelos colonizadores e pelas metrópo­
les. Ah! se tivéssemos querido! Vejam, sonham eles, uma
França de cem milhões de franceses? Não é proibido, é fre­
qüentemente consolador reimaginar a história. Com a con­
dição de descobrir-lhe outro sentido, outra coerência oculta.
Poderia a assimilação ter tido êxito.
Teria sido bem sucedida, talvez, em outros momentos
da história do mundo. Nas condições da colonização contem­
porânea parece que não. Talvez seja uma infelicidade his­
tórica, talvez devêssemos deplorá-la todos juntos. Mas, não
somente malogrou como também se mostrou impossível a to­
dos os interessados.
Em definitivo seu malogro não se prende apenas aos
preconceitos do colonizador, nem tampouco ao atraso do co­
lonizado. A assimilação, malograda ou realizada, não é ques­
tão de bons sentimentos ou de psicologia apenas. Uma série
bastante longa de felizes conjunturas pode mudar a sorte de
um indivíduo. Alguns colonizados conseguiram praticamen­
te desaparecer no grupo colonizador. É claro, em compensa­
ção, que um drama coletivo jamais será esgotado por meio
— de soluções individuais. O indivíduo desaparece na sua des­
cendência e o drama do grupo continua. Eacs. ,que assimi-
lação na colônia tivesse alcance e sentido, seria preciso que
CÃ-Cff abrangesse um povo inteiro, isto é, que fosse modificada
toda a condição colonial. Ora, já demonstramos suficiente­
mente que a condição colonial não pode ser mudada senão
pela supressão da relação colonial.
y Tornamos a encontrar a relação fundamental que une
nossos dois retratos, dinamicamente engrenados um no ou­
tro. Verificamos, uma vez mais, que é inútil pretender agir
sobre um ou outro, sem agir sobre essa relação, logo sobre
a colonização. Dizer que o colonizador poderia ou deveria
aceitar de bom grado a assimilação, portanto a emancipação
do colonizado, é escamotear a relação colonial. Ou admitir
que possa empreender espontaneamente uma transformação
total do seu estado: condenar os privilégios coloniais, os di­
reitos exorbitantes dos colonos e dos industriais, pagar hu-
no
manamente a mão-de-obra colonizada, promover jurídica,
administrativa e politicamente os colonizados, industrializar
a colônia. . . Em suma, o fim da colônia como colônia, o fim
da metrópole como metrópole. Muito simplesmente, convida-
se o colonizador a acabar consigo mesmo.
Nas condições contemporâneas da colonização, assimi­
lação e colonização são contraditórias.

Que resta, então, ao colonizado fazer? Não podendo


deixar sua condição de acordo e em comunhão com o colo­
nizador, tentará libertar-se contra ele: vai revoltar-se.
Longe de nos espantarmos com as revoltas nas colôniag,
deveríamos nos surpreender, ao contrário, que não sejam
mais freqüentes e mais violentas. Em verdade, o colonizador
está atento: esterilização contínua das elites, destruição pe­
riódica daquelas que, apesar de tudo, conseguem aparecer,
por corrupção e opressão policial; destruição por provocação
de todo movimento popular e seu esmagamento brutal e rá­
pido. Assinalamos também a hesitação do próprio colonizado,
a insuficiência e a ambigüidade de uma agressividade de
vencido que, à sua revelia, admira seu vencedor, a esperan­
ça por longo tempo tenaz de que a onipotência do coloniza­
dor desse à luz a uma bondade sem limites.
A revolta, porém, é, para a situação colonial, a única
saída que não é miragem, e o colonizado descobre isso cedo
ou tarde. Sua condição é absoluta e reclama uma solução-
absoluta, uma ruptura e não um compromisso. Foi arrancado
de seu passado e detido no seu futuro, suas tradições agoni­
zam e ele perde a esperança de adquirir uma nova cultura,
não tem nem língua, nem bandeira, nem técnica, nem exis­
tência nacional nem internacional, nem direitos, nem deve­
res: nada possui, nada mais é e nada espera. Além disso a
solução é cada dia mais urgente, cada dia necessariamente
mais radical. O mecanismo de negação do colonizado, posto
em funcionamento pelo colonizador, não pode senão agravar-
se cada dia que passa. Quanto mais a opressão aumenta,

111
mais o colonizador tem necessidade de justificação, mais
deve aviltar o colonizado, mais se sente culpado, mais deve
justificar-se, etc. Como sair disso a não ser pela ruptura,
pelo estouro, cada dia mais explosivo, desse círculo infernal?
A situação colonial, por sua própria fatalidade interior, con­
voca à revolta. Pois a condição colonial não pode ser supor­
tada: qual uma golilha de ferro, deve ser quebrada.

... E a R ecusa do C olonizador

Assiste-se, então, a uma inversão dos termos. Renun­


ciando à assimilação, a libertação do colonizado deve efe­
tuar-se pela reconquista de si mesmo e de uma dignidade
autônoma. O impulso em direção ao colonizador exigia, no
extremo limite, a recusa de si próprio: a recusa do coloniza­
dor será o prelúdio indispensável à recuperação do coloni­
zado. É preciso desembaraçar-se dessa imagem acusadora e
aniquiladora; é preciso atacar de frente a opressão, já que
é impossível contorná-la. Após ter sido por tanto tempo re­
cusado pelo colonizador, chega o dia em que é o colonizado
que recusa o colonizador.
Essa reviravolta, contudo, não é absoluta. Não há uma
irrestrita vontade de assimilação e depois uma rejeição total
do modelo. No auge da sua revolta, o colonizado conserva
as contribuições e os ensinamentos de tão longa convivên­
cia. Como o sorriso ou os hábitos musculares de uma velha
esposa, mesmo no momento do divórcio, lembram curiosa­
mente os de seu marido. Daí o paradoxo (citado como a
prova decisiva da sua ingratidão): o colonizado reivindica
e se bate em nome dos próprios valores do colonizador, uti­
liza duas técnicas de pensamento e seus métodos de luta.
(É preciso acrescentar que é a única linguagem que o colo­
nizador compreende) .
Mas, doravante, o colonizador torna-se principalmente
negatividade, quando era sobretudo positividade. Principal­
mente, decide~se que é negatividade por toda a atitude ativa
do colonizado. A todo instante é posto em questão, na sua
cultura e na sua vida, e com ele, tudo o que representa, me-

112
trópole compreendida, é claro. Ele é suspeitado, contrariado,
combatido no menor de seus atos. O colonizado põe-se a
preferir com raiva e ostentação os carros alemães, os rádios
italianos e os refrigeradores americanos; priva-se de fumo,
se traz a estampilha colonizadora. Meios de pressão e puni­
ção econômica certamente, mas também ritos sacrificatórios
da colonização. Até os dias atrozes em que a fúria do colo­
nizador ou a exasperação do colonizado, culminando em
ódio, se descarregam em loucuras sanguinárias. Depois re­
começa a existência quotidiana, um pouco mais dramatizada,
um pouco mais irremediavelmente contraditória.
É nesse contexto que deve ser recolocada a xenofobia e
mesmo certo racismo do colonizado.
Considerado em bloco como esses, eles, ou os outros,
de todos os pontos de vista diferente, homogeneizado em ra­
dical heterogeneidade, o colonizado reage recusando em
bloco todos os colonizadores. E mesmo, algumas vezes, todos
aqueles que se lhes assemelham, todo aquele que não é como
ele, oprimido. A distinção entre o fato e a intenção não tem —
mais significado na situação colonial. Para o colonizado, to­
dos os europeus das colônias são colonizadores de [ato. E,
quer queiram ou não, o são de algum modo; pela sua situa-_
ção econômica de privilegiados, por pertencerem ao sistema
político de opressão pela sua participação em um complexo
ativo negador do colonizado. Por outro lado, no limite ex­
tremo, os europeus da Europa são colonizadores em poten­
cial: bastaria que desembarcassem. Talvez tirem mesmo al­
gum proveito da colonização. São solidários, ou pelo menos—
cúmplices inconscientes dessa grande agressão coletiva da
Europa. Com todo o seu peso, intencionalmente ou não, con­
tribuem para perpetuar a opressão colonial. Enfim, se a [
xenofobia e o racismo consistem em responsabilizar global- ■
mente todo um grupo humano, em condenar a priori não im­
porta que indivíduo desse grupo, emprestando-lhe um ser e
um comportamento irremediavelmente constante e nocivo, o
colonizado é, com efeito, xenófobo e racista; tornou-se uma
coisa e outra.
Todo racismo e toda xenofobia são mistificações de si
mesmo e agressões absurdas e injustas aos outros, inclusive
os do colonizado. Com mais forte razão, desde que se es­
tendem além dos colonizadores, a tudo aquilo que não é ri-

113
gorosamente colonizado; quando chegam, por exemplo, a
regozijar-se com as desventuras de um agrupamento huma­
no, simplesmente porque não é escravo. Mas, é preciso assi­
nalar, ao mesmo tempo, que o racismo do colonizado é o
resultado de uma mistificação mais geral: a mistificação
colonialista.
Considerado e tratado separadamente pelo racismo co­
lonialista, o colonizado acaba por aceitar-se segregado; por
aceitar essa divisão maniqueísta da colônia e, por extensão,
do mundo inteiro. Definitivamente excluído de metade do
universo, como não recearia que ela confirmasse sua conde­
nação? Como não julgá-la e não condená-la por sua vez? O
racismo do colonizado não é, em suma, nem biológico nem
metafísico, porém social e histórico. Não está baseado na
crença da inferioridade do grupo detestado, mas na convic­
ção, e, em grande parte, na verificação de que é definitiva­
mente agressor e nocivo. Mais ainda, se o racismo europeu
moderno detesta e despreza mais do que teme, o do coloni­
zado teme e continua a admirar. Em resumo, não é um ra­
cismo de agressão, porém de defesa.
De sorte que deveria ser relativamente fácil desarmá-lo.
As poucas vozes européias que se elevaram nestes últimos
anos para negar essa exclusão, essa radical inumanidade do
colonizado, fizeram mais do que todas as boas obras e toda
a filantropia, onde a segregação permanecia subjacente. Eis
porque, pode-se sustentar esta aparente enormidade: se a
xenofobia e o racismo do colonizado contêm, seguramente,
um imenso ressentimento e uma evidente negatividade, po­
dem ser o prelúdio de um movimento positivo: a recupera­
ção do colonizado por si mesmo.

A AFIRMAÇÃO DE SI

Mas, desde logo, a reivindicação colonizada adota essa


figura diferencial e concentrada sobre si mesma: é estrita­
mente delimitada, condicionada pela situação colonial e pe­
las exigências do colonizador.

114
O colonizado se aceita e se afirma, se reivindica com
paixão. Mas, que é ele? Certamente não o homem em geral,
portador dos valores universais, comuns a todos os homens.
Precisamente ele foi excluído desta universalidade, tanto no
plano do verbo como de fato. Ao contrário, procurou-se,
enrijeceu-se até a substantificação, aquilo que o diferencia
dos outros homens. Demonstraram-lhe com orgulho que ja­
mais poderia assimilar os outros; repeliram-no com desprêzo
para aquilo que, nele, seria inassimilável pelos outros. Está
bem! Seja. Ele é, será, este homem. A mesma paixão que o
fazia admirar e absorver a Europa, o levará a afirmar suas
diferenças; já que essas diferenças, afinal de contas, cons­
tituem propriamente sua essência.
Então, o jovem intelectual que tinha rompido com a
religião, ao menos interiormente, e comia durante o Rama­
dan, põe-se a jejuar com ostentação. Ele, que considerava os
ritos inevitáveis maçadas familiares, os reintroduz na sua
vida social, dá-lhes um lugar na sua concepção do mundo.
Para melhor utilizá-los, volta a explicar as mensagens esque­
cidas, adapta-as às exigências atuais. Descobre, aliás, que o
fato religioso não é apenas uma tentativa de comunicação
com o invisível, mas um extraordinário meio de comunhão
para o grupo inteiro. O colonizado, seus chefes e seus inte­
lectuais, seus tradicionalistas e seus liberais, todas as clas­
ses sociais, podem nele reencontrar-se, soldar-se, verificar
e recriar sua unidade. O risco é considerável, sem dúvida,
de que o meio se torne fim. Dispensando tal atenção aos
velhos mitos, rejuvenescendo-os, revivifica-os perigosamente.
Recuperam uma força inesperada que as faz escapar aos
desígnios limitados dos chefes colonizados. Assiste-se a um
verdadeiro renascimento religioso. Acontece mesmo que o
aprendiz feiticeiro, intelectual ou burguês liberal, a quem o
laicismo parecia a condição de todo progresso intelectual e
social, retome gosto pelas suas tradições desdenhadas...
Tudo isto, aliás, que parece tão importante aos olhos do
observador de fora, que o é talvez para a saúde geral do
povo, é, no fundo, secundário para o colonizado. Doravante,
descobriu o princípio motor de sua ação, que ordena e valo­
riza todo o resto: trata-se de afirmar seu povo e de afirmar-
se solidário com ele. Ora, sua religião é evidentemente um
dos elementos constitutivos dêsse povo. Em Bandoeng, com

115
espanto constrangido das pessoas de esquerda do mundo
inteiro, um dos dois princípios fundamentais da conferência
foi a religião.
Assim também, o colonizado não conhecia mais sua lín­
gua a não ser na forma de um falar indigente. Para sair do
quotidiano e do afetivo mais elementares, era obrigado a
recorrer à língua do colonizador. Retornando a um destino
autônomo e separado, retorna imediatamente à sua própria
lingua. Observam, ironicamente, que seu vocabulário é limi­
tado, sua sintaxe abastardada, que seria ridículo ouvi-la em
um curso de matemáticas superiores ou de filosofia. Mesmo
o colonizador de esquerda se espanta com essa impaciência,
com esse inútil desafio, finalmente mais oneroso para o co­
lonizado que para o colonizador. Por que não continuar a
utilizar as línguas ocidentais para descrever os motores ou
ensinar o abstrato?
Aí ainda, para o colonizado, existem doravante outras
urgências que não as matemáticas e a filosofia e mesmo a
técnica. É preciso restituir, a esse movimento de redescober-
ta de si, de todo um povo, o instrumento mais adequado,
aquele que encontra o caminho mais curto de sua alma, por­
que vem diretamente dela. E esse caminho, sim, é o das
palavras de amor e de ternura, da cólera e da indignação,
das palavras que emprega o oleiro falando aos seus potes
e o sapateiro às suas palmilhas. Mais tarde o ensino, mais
tarde a literatura e as ciências. Esse povo aprendeu suficien­
temente a esp erar... É certo, aliás, que essa língua, hoje
balbuciante, não possa abrir-se e enriquecer-se? Já, graças a
ela, descobre tesouros esquecidos, entrevê uma possível con­
tinuidade com um passado não desprezível. . . Vamos, nada
de hesitação ou de meias medidas! Ao contrário, é preciso
saber romper, é preciso saber abrir caminho diante de si.
Escolherá mesmo a maior dificuldade. Chegará a proibir-se
as comodidades suplementares da língua colonizadora; pro­
curará substitui-la sempre e o mais depressa possível. Entre
o falar popular e a língua erudita preferirá a erudita, arris­
cando-se no seu impulso a tornar mais difícil a comunhão
procurada. O importante agora é reconstruir seu povo, seja
qual fôr sua autêntica natureza, refazer sua unidade, comu­
nicar-se com ele e sentir que lhe pertence.

116
Seja qual fôr o preço pago pelo colonizado, e contra os
outros, se fôr preciso. Por isso mesmo, será nacionalista, e
não, é claro, internacionalista. Certamente, assim agindo,
arrisca-se a cair no exclusivismo e no fanatismo, prendendo-
se com isso ao que há de mais estreito, a opor a solidarie­
dade nacional à solidariedade humana, e mesmo a solidarie­
dade étnica à solidariedade nacional. Mas, esperar do colo­
nizado, que tanto sofreu por não existir por si mesnlo, que
seja aberto ao mundo, humanista e internacionalista, parece
de uma leviandade cômica. Agora que se está ainda recupe­
rando, que se olha com assombro, que reivindica apaixona­
damente sua língua. . . na do colonizador.
É significativo, aliás, que será tão mais ardente na sua
afirmação quanto mais se tiver comprometido com o colo­
nizador. Será uma coincidência que tantos chefes coloniza­
dos tenham contraído casamentos mistos? Que o líder tuni-
siano Bourguiba, os dois líderes argelinos Messali Hadj e
Ferhat Abbas e tantos outros nacionalistas, que consagra­
ram sua vida a guiar os seus, tenham se casado entre os co­
lonizadores? Tendo levado a experiência do colonizador até
seus extremos limites, até julgá-la impossivel de viver, re­
fluíram para suas bases. Aquele que nunca deixou seu país
e os seus não saberá jamais até que ponto está preso a eles.
Sabem, agora, que sua salvação coincide com a de seu povo,
que devem ficar o mais possível perto dele e de suas tradi­
ções. Não é proibido acrescentar a necessidade de justificar-
se, de resgatar-se por uma completa submissão.

As A mbigüidades da A firmação de Si

Vê-se, ao mesmo tempo, tanto a necessidade, quanto as


ambigüidades dessa recuperação. Se a revolta do colonizado
é em si mesma uma atitude clara, seu conteúdo pode ser tur­
vado: isso porque é o resultado imediato de uma situação
pouco límpida: a situação colonial.
I9) Aceitando o desafio da exclusão, o colonizado se
aceita como separado e diferente, mas sua originalidade é
delimitada, definida pelo colonizador.
117
Então, ele é religião e tradição, inaptidão para a técni­
ca, de uma essência particular chamada oriental, etc... Sim,
é bem isso, concorda. Um autor negro esforçou-se em nos
explicar que a natureza dos negros, os seus, não é compa­
tível com a civilização mecânica. Disso tirava um curioso
orgulho. Em suma, provisoriamente sem dúvida, o coloniza­
do admite que sua imagem seja essa mesma, proposta, im­
posta pelo colonizador. Recupera-se sem dúvida, continua
porém a endossar a mistificação colonizadora.
Certamente, não é levado a isso por um processo ideo­
lógico; não é apenas definido pelo colonizador, sua situação
é feita pela colonização. É patente que recupera um povo
cheio de carências, no corpo e no espírito no tonos vital.
Retorna a uma história pouco gloriosa e cortada por horrí­
veis lacunas, a uma cultura moribunda, que tinha pensado
em abandonar, a tradições congeladas, a uma língua enfer­
rujada. A herança, que acaba por aceitar, traz o peso de
um passivo desencorajador para qualquer um. Deve avaliar
o ativo e o passivo; ora, as dívidas são numerosas e impor­
tantes. É um fato, além disso, que as instituições da colônia
não funcionam diretamente para ele. O sistema educativo
não se dirige a ele senão por tabela. As estradas não lhe são
abertas senão porque são puras oferendas.
Parece-lhe necessário, no entanto, para ir até o fim de
sua revolta, aceitar essas interdições e essas amputações.
Proibir-se-á o uso da língua colonizadora, mesmo que todas
as fechaduras do pais funcionem com essa chave; substitui­
rá os cartazes e os marcos quilométricos, mesmo que com
isso seja o primeiro a atrapalhar-se. Preferirá um longo pe­
ríodo de erros pedagógicos do que manter os quadros esco­
lares do colonizador. Escolherá a desordem institucional a
fim de destruir o mais depressa possível as instituições tra­
zidas pelo colonizador. Trata-se, certamente, de um movi­
mento de reação, de profundo protesto. Assim, nada mais
deverá ao colonizador, ter-se-á desligado definitivamente
dele. Mas é também a convicção confusa, e mistificadora, de
que tudo isso pertence ao colonizador, e não é adequado ao
colonizado; é exatamente aquilo que o colonizador sempre
lhe afirmou. Em resumo, o colonizado em revolta começa por
aceitar-se e querer-se como negatividade.

118
2P) Tornando-se, essa negatividade, um elemento es­
sencial da sua recuperação e do seu combate, vai afirmá-la,
glorificá-la até o absoluto. Não apenas aceita suas marcas
e suas feridas, mas as proclamará belas. Seguro de si mesmo,
propondo-se ao mundo tal qual doravante é, dificilmente
pode propor, ao mesmo tempo, sua própria crítica. Se sabe
rejeitar com violência o colonizador e a colonização, não dis­
tingue aquilo que é verdadeiramente do que desastrosamen­
te adquiriu ao longo da colonização. Propõe-se todo inteiro,
confirma-se globalmente, quer dizer, esse colonizado, que
ele, de qualquer forma, se tornou. De um golpe, exatamente
ao contrário da acusação colonialista, o colonizado, sua cul­
tura, seu país, tudo aquilo que lhe pertence, tudo que repre­
senta, torna-se perfeita positividade.
A rigor, vamos deparar com uma contramitologia. Ao
mito negativo, imposto pelo colonizador, sucede um mito po­
sitivo de si mesmo, proposto pelo colonizado. Como existe,
ao que parece, um mito positivo do proletário oposto ao seu
negativo. Ao ouvir o colonizado, e freqüentemente seus ami­
gos, tudo ê bom, tudo vale a pena, nos seus hábitos e suas
tradições, seus atos e seus projetos; mesmo o anacrônico ou
o desordenado, o imoral ou o erro. Tudo se justifica, pois,
tudo se explica.
A afirmação de si do colonizado, nascida de um pro- / ,
testo, continua a definir-se em relação a ele. Em plena re­
volta, o colonizado continua a pensar, sentir e viver contra C/ít <
e portanto em relação ao colonizador e à colonização.
39) Tudo isso, o colonizado o pressente, o revela na
sua conduta, o confessa algumas vezes. Percebendo que suas
atitudes são essencialmente de reação, é atingido pela maior
parte das perturbações da má-fé.
Incerto de si mesmo, entrega-se à embriaguez do furor
e da violência. Incerto da necessidade desse retorno -ao pas­
sado, reafirma-o agressivamente. Incerto de poder conven­
cer os outros, provoca-os. Ao mesmo tempo provocador e
susceptivel, ostenta, doravante suas diferenças, recusa-se a
deixar-se esquecer como tal, e fica indignado quando se faz
alusão a isso. Sistematicamente desconfiado, atribui ao seu
interlocutor intenções hostis, considerando-as ocultas se não
são reveladas e reage em função disso. Exige de seus me­
lhores amigos uma ilimitada aprovação, mesmo em relação
119
àquilo de que ele mesmo duvida e que ele próprio condena.
Frustrado pela história, durante tanto tempo, reclama tanto
mais imperiosamente quanto permanece sempre inquieto. Não
sabendo mais o que deve a si mesmo e o que pode pedir, o
que os outros lhe devem realmente e o que deve pagar por
sua vez; a medida exata, enfim, de todo comércio humano.
Complicando e estragando a priori, suas relações humanas,
já tornadas tão difíceis pela história. "Ah! são doentes! es­
crevia um outro autor negro, são todos doentes!”

A N ã o C oincidência C onsigo M esmo

Tal é o drama do homem-produto e vítima da coloniza­


ção: quase nunca chega a coincidir consigo mesmo.
A pintura colonizada, por exemplo, oscila entre dois
pólos: de uma submissão à Europa, excessiva até a imperso-
nalidade, passa a um retorno a si mesma de tal forma vio­
lento que se torna nocivo e estèticamente ilusório. De fato,
a adequação não é encontrada, e o colonizado continua a
pôr-se a si mesmo em questão. Durante a revolta e antes
dela, o colonizado não deixa de levar em conta o coloniza­
dor, modelo ou antítese. Continua a debater-se contra ele.
Estava dilacerado entre aquilo que era e o que tinha que­
rido ser, ei-lo dilacerado entre o que tinha querido ser e o
que, agora, faz de si. Persiste, no entanto, a dolorosa ina­
dequação consigo mesmo.
A cura completa do colonizado, exige que termine to­
talmente sua alienação: é preciso esperar o desaparecimento
completo da colonização, isto é, o período de revolta inclu­
sive.

120
Conclusão

S ei muito bem que o leitor espera agora soluções; após


o diagnóstico, exige remédios. Em verdade, tal não era meu
propósito inicial e este livro deveria acabar aqui. Não o ha­
via concebido como obra de combate nem mesmo como pro­
cura de soluções: nasceu da reflexão sobre um malogro
aceito.
Para muitos de nós, que recusávamos a fisionomia da
Europa na colôniá, não se tratava de modo algum de recusar
a Europa inteira. Desejávamos apenas que ela reconhecesse
nossos direitos, como estávamos prontos a aceitar nossos de­
veres, pois, a maior parte das vezes, já havíamos pago. De­
sejávamos, em suma, uma simples acomodação da nossa si­
tuação e das nossas relações com a Europa. Para nosso do­
loroso espanto, descobrimos lentamente, verificamos que tal

121
esperança era ilusória. Quis compreender e explicar porque.
Minha intenção primeira não era senão reproduzir, comple­
tamente e em verdade, os retratos dos dois protagonistas do
drama colonial e a relação que os une.
Nunca haviam mostrado, parece-me, a coerência e a
gênese de cada papel, a gênese de um pelo outro e a coerên­
cia da relação colonial, a gênese da relação colonial a partir
da situação colonial.
Depois ao longo do caminho, apareceram-me ao mesmo
tempo, a necessidade dessa relação, a necessidade desses de­
senvolvimentos, as fisionomias que imprimia ao colonizador
\ e ao colonizado. Em suma, a leitura completa e atenta des-
1 ses dois retratos e dessa situação obrigou-me a esta conclu­
são: a acomodação não poderia ocorrer porque era impossí­
vel. A colonização contemporânea trazia em si mesma sua
própria contradição, que cedo ou tarde deveria fazê-la
morrer.
Que me entendam bem: não se trata aqui, de modo al­
gum, de um desejo porém de uma verificação. A confusão
desses dois conceitos parece-me por demais freqüente hoje,
e das mais perniciosas. Separa, no entanto, radicalmente,
todo pensamento sério e objetivo das projeções sentimentais
ou das habilidades demagógicas, às quais se entregam muito
facilmente os políticos, sem se darem muita conta disso, di­
gamo-lo em seu favor. Certamente, não há fatalismo em
política: pode-se não raro retificar uma situação. Mas, pre-
cisamente na medida em que o desejo não ultrapassa as exi­
gências da verificação objetiva. Ora, o que aparece no final
deste itinerário — se esses dois retratos estão de acordo com
a verdade de seus modelos — é que é impossível que a si­
tuação colonial perdure, porque é impossivel ajeitá-la.
Acontece, simplesmente, que todo desvelamento é, em
definitivo, eficaz; que toda verdade é, em definitivo, útil e
positiva; mesmo que fosse apenas porque suprime ilusões. O
que é evidente aqui, quando pensamos nos esforços desespe­
rados da Europa, tão onerosos para ela como para os colo­
nizados,- a fim de salvar a colonização.
Poderei acrescentar, contudo, que efetuado esse desve­
lamento, admitida a crueldade da verdade, as relações da
Europa com suas velhas colônias devem ser reconsideradas?
Que, abandonados os quadros coloniais, é importante para

122
todos nós descobrir uma nova maneira de viver essas rela­
ções? Sou daqueles para os quais, encontrar uma nova ordem
com a Europa, é recolocar a ordem neles mesmos.

Dito isso, continuo a desejar que o leitor distinga esse


balanço humano da colonização das lições que me parece
possível dela retirar. Sei que terei que reclamar muitas ve­
zes que me leiam antes de me refutar. Desejo um esforço
suplementar: que, opondo-se'a priori aos ensinamentos des­
ta investigação, não se recusem a esta precaução metodoló­
gica porém salutar. Ver-se-á, depois, se é possível admitir
a necessidade das seguintes conclusões:
l 9) Verifica-se, em definitivo, que o colonizador é
uma doença do europeu, da qual deve ser completamente
curado e preservado. E certamente há, um drama do coloni­
zador, que seria absurdo e injusto subestimar. Pois sua cura
supõe uma terapêutica difícil e dolorosa, um desenraizamen-
to e uma reforma de suas condições atuais de existência.
Mas não vimos o suficiente que há drama também, mais
grave ainda, se a colonização continua?
A colonização só podia desfigurar o colonizador. Colo­
cava-o diante de uma alternativa com saídas igualmente de­
sastrosas: entre a injustiça quotidiana aceita em seu provei­
to ou o sacrifício de si mesmo, necessário e jamais consuma­
do. A situação do colonizador é tal que, aceitando-a, apo­
drece nela, recusando-a, nega-se a si mesmo.
O papel do colonizador de esquerda é a longo prazo
insustentável, inviável; só com má consciência e dilacerando-
se e finalmente de má-fé é que se perpetua. Sempre no limi­
te da tentação e da vergonha e, definitivamente culposo. A
análise da situação colonial pelo colonialista, sua conduta
que dela resulta, são mais coerentes e talvez mais lúcidas:
ora, ele precisamente, sempre agiu como se uma acomodação
fosse impossível. Tendo compreendido que qualquer conces­
são o ameaçava, confirma e defende irrestritamente o fato
colonial. Mas, que privilégios, que vantagens materiais com­
pensam a perda da própria alma? Em uma palavfa, se a
aventura colonial é gravemente prejudicial ao colonizado,
não pode deixar de ser seriamente deficitária para o coloni­
zador.

123
Sem dúvida, não deixamos de imaginar, no interior do
sistema colonial, transformações que conservassem para o
colonizador as vantagens adquiridas, embora preservando-o
de suas conseqüências desastrosas. Esquece-se apenas que a
natureza da relação colonial decorre imediatamente dessas
vantagens. Dito de outra forma: ou a situação colonial sub­
siste e seus efeitos continuam: ou desaparece e a relação co­
lonial subsiste e seus efeitos continuam: ou desaparece e a
relação colonial e o colonizador desaparecem com ela. As­
sim, para duas proposições, uma radical no mal, outra radi­
cal no bem, ao menos imagina-se: o extermínio do coloniza­
do ou sua assimilação.
Não há tanto tempo assim que a Europa abandonou a
idéia da possibilidade de total extermínio de um grupo colo­
nizado. Um dito espirituoso, meio sério meio brincalhão,
como todos os ditos espirituosos, afirmava a respeito da Ar­
gélia: "Não há senão nove argelinos para um fran cês...
bastaria dar a cada francês um fuzil e nove balas." Evoca-
se também o exemplo norte-americano. E é verdade que a
famosa epopéia nacional do far-west assemelha-se muito a
um massacre sistemático. Mas, em compensação, não há mais
problema de pele-vermelha nos Estados Unidos. O extermí­
nio salva tão pouco a colonização que é mesmo exatamente
o contrário dela. A colonização é, a princípio, uma explora­
ção económico-política. Se suprimimos o colonizado, a colô­
nia tomar-se-á um país qualquer, compreendo bem, mas
quem então será explorado? Com o colonizado desaparece­
ria a colonização, inclusive o colonizador.
Quanto ao malogro da ’assimilação, não me alegra de
modo especial. Tanto mais que essa solução tem um aspecto
universalista e socialista que a torna a priori respeitável.
Nem sequer digo que é impossível em si mesma e por defi­
nição: foi bem sucedida algumas vezes historicamente, assim
como freqüentemente malogrou. Mas está visto que ninguém
a desejou expressamente na colonização contemporânea, nem
mesmo os comunistas. Expliquei-me suficientemente a esse
respeito. Finalmente eis o essencial: a assimilação é além
disso o contrário da colonização; pois tende a confundir co­
lonizadores e colonizados, a suprimir os privilégios, e, por­
tanto, a relação colonial.

124
Abstraio as pseudo-soluções menores. Por exemplo,
permanecer na colônia tornada independente, como estran­
geiros, portanto, mas com direitos especiais. Como não ver,
além da incoerência jurídica de tais construções, que tudo
isso está destinado a ser desgastado pela história? Não se vê
por que a lembrança dos injustos privilégios bastaria para
garantir sua perenidade.
Enfim, no quadro da colonização, não há salvação, ao
que parece, para o colonizador.
Mais uma razão, dir-se-á, para que se agarre, para que
recuse toda mudança: pode, com efeito, aceitar-se como
monstro, aceitar sua alienação em virtude de seus próprios
interesses. Não, nem mesmo isso. Se recusa deixar sua lu­
crativa doença, a isso será forçado mais cedo ou mais tarde
pela história. Porque, não nos esqueçamos, existe uma outra
face do díptico: um dia será forçado a isso pelo colonizado
29) Chega sempre o dia, em que o colonizado levanta
a cabeça e faz oscilar o equilíbrio sempre instável da colo­
nização.
Pois, também para o colonizado, não há outra saida se­
não o fim definitivo da colonização. E a recusa do coloni­
zado não pode ser senão absoluta, quer dizer não apenas
revolta, mas superação da revolta, quer dizer revolução.
Revolta: a simples existência do colonizador cria a
opressão e somente a liquidação completa da colonização
permite a libertação do colonizado. Esperou-se muito das
reformas, nestes últimos tempos, do bourguibismo, por exem­
plo. Parece-me que há um equívoco. O bourguibismo, se sig­
nifica proceder por etapas, jamais significou contentar-se
com uma etapa, fosse qual fosse. Os chefes negros falam
atualmente de União Francesa. Isso não é ainda senão uma
etapa no caminho da independência completa, e aliás inevi­
tável. Acreditasse Bourguiba nesse bourguibismo que lhe
querem atribuir, acreditassem os chefes da África Negra em
uma definitiva União Francesa, e o processo de liquidação
da colonização os deixaria pelo caminho. Já os de menos de
trinta anos não mais compreendem a relativa moderação
dos mais velhos.
Revolução: observamos que a colonização matava ma­
terialmente o colonizado. É preciso acrescentar que o mata i
espiritualmente. A colonização falsifica as relações humanas, !
125
destrói ou esclerosa as instituições, e corrompe os homens,
colonizadores e colonizados. Para viver, o colonizado tem
necessidade de suprimir a colonização. Mas, para tornar-se
um homem, deve suprimir o colonizado que se tornou. Se o
europeu deve destruir em si o colonizador, o colonizado deve
superar também em si o colonizado.
A liquidação da colonização é apenas um prelúdio à sua
libertação completa: à reconquista de si. Para libertar-se da
colonização foi necessário partir da sua própria opressão,
das carências de seu grupo. Para que sua libertação seja
completa, é preciso que se liberte dessas condições de sua
luta, certamente inevitáveis. Nacionalista, porque devia lu­
tar pela emergência e pela dignidade da sua nação, será ne­
cessário que se conquiste livre em face dessa nação. Bem
entendido, poderá confirmar-se nacionalista. Mas é indis­
pensável que fique livre dessa escolha, e que dpixe de existir
apenas por intermédio de sua nação. Será preciso que se
conquiste livre em face da religião do seu grupo, que poderá
conservar ou rejeitar, mas deve deixar de existir somente por
meio dela. Assim também no que se refere ao passado, à
tradição, à etnicidade, e tc ... Em resumo, deve deixar de
definir-se pelas categorias colonizadoras. E também por
aquilo que o caracteriza negativamente. A famosa e absurda
oposição Oriente-Ocidente, por exemplo: essa antítese, en­
rijecida pelo colonizador, que instauraria uma barreira defi­
nitiva entre ele e o colonizado. Que significa, então, o retor­
no ao Oriente? Se a opressão tomou a figura da Inglaterra
ou da França, as conquistas culturais e técnicas pertencem
a todos os povos. A ciência não é nem ocidental nem orien­
tal, assim como não é nem burguesa nem proletária. Há ape­
nas dois modos de fundir o betume, o bom e o mau.
Que se tornará, então? Que é, pois, em verdade, o colo­
nizado?
Não creio nem na essência metafísica, nem na essência
caracterológica. Atualmente pode-se descrever o colonizado;
tentei mostrar que sofre, julga e se comporta de certa ma­
neira. Se deixa de ser esse ente de opressão e de carências,
exteriores e interiores, deixará de ser um colonizado, tornar-
se-á outro. Existem evidentemente constantes geográficas e
tradições. Mas, talvez então, haja menos diferenças entre

126
um argelino e um marselhés, do que entre um argelino e Um
libanês.
Todas suas dimensões reconquistadas, o ex-colonizado
ter-se-á tornado um homem como os outros. Com todas as
venturas e desventuras dos homens, sem dúvida, mas enfim
será um homem livre.
Impressão
Círculo do Livro S.A.
Rua Emílio Goeldi, 747 — Lapa
Caixa postal 7413
Fone: 262-5005 / 62-2139
São Paulo — Brasil
guma sua atualidade (mereceu, inclusive, um
estudo de Jean-Paul Sartre, mais tarde republi­
cado no volume VII de Situations), embora
contendo apenas um levantamento minucioso
do que representam, em sua forma tradicional,
as figuras do colonizador e do colonizado.
Sobre o primeiro, depois de referir-se à ima­
gem mítica que dele se veio fazendo, diz Mem-
mi: "Os motivos econômicos do empreendi­
mento colonial estão, atualmente, esclarecidos
por todos os historiadores da colonização; nin­
guém acredita mais na missão cultural, e mo­
ral, mesmo original, do colonizador. Em nos­
sos dias, ao menos, a partida para a colônia
não é a escolha de uma luta incerta, procurada
precisamente por seus perigos, não é a tenta­
ção da aventura, mas a da facilidade” . N o pólo
oposto desse jogo de interesses implícito no sis­
tema colonial encontra-se a figura do coloniza­
do, cujo trabalho é persistentemente explorado
pela metrópole, que dele estabelece a imagem
de um ser inferior e destituído de capacidade
própria, para assim justificar seu pleno domí­
nio.
Há que ressaltar ainda, nesta edição de Re­
trato do Colonizado Precedido Pelo Retrato do
Colonizador, o extenso prefácio preparado por
Roland Corbisier, no qual o estudioso brasilei­
ro confronta o colonialismo em suas formas
tradicionais com o neocolonialismo e daí infe­
re que "A insurreição, a revolta dos povos sub­
metidos - protetorados, domínios, colônias
propriamente ditas, e povos hoje chamados
subdesenvolvidos, característica do tempo em
que vivemos - provoca o surgimento de novas
formas de imperialismo, menos ostensivas, me­
nos visíveis, mas nem por isso menos eficazes” .

Roherto Pontual
Hm horu liimjiHln |i| IM tilt.......
lismu modurmt mim iimh iii mmIi • ,i
Mumml

Retrato <lo < «1I1111I/«««(«»


Precedido
Pelo Kelralo do t oloHiMdm
continua ii ilii|*iir il# miih hIihIiiI <i i m,.
Jcun-Maul NiiMNam mimtb w h . • >i miim,
Situation*, A ih lfü llin i t|U# M fW W IN M IIIB o t
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