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Ficha catalográfica
Memmi, Albert.
M487r Retrato do colonizado precedido pelo retrato do coloni
zador; tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto
Coelho. 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
127 p. (O Mundo, hoje, v.20)
CDD - 325.3
77-0050 CDU - 325.46
ALBERT MEMMI
Retrato do Colonizado
Precedido Pelo
Retrato do Colonizador
Paz e Terra
© Copyright by Editions Bucket/Chastel, Corrêa 1957
1977
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Índice
I*l 1-fâcio — 1
I R etrato do C olonizador
1 — Existe o Colonial? — 21
2 -- O Colonizador que se recusa — 33
3 — O Colonizador que se Aceita — 51
II R etrato do C olonizado
1
importância deste livro “sóbrio e claro” que, segundo o au
tor de L Ê tre et le Néant, se inclui entre as "geometrias
apaixonadas” e "cuja calma objetividade não passa da có
lera e do sofrimento superados”.1
Ao reler, recentemente, o livro de Memmi, com o pro
pósito de sugerir sua tradução para a nossa língua, o que
nos surpreendeu foi precisamente sua atualidade, embora
estejamos vivendo a fase histórica de liquidação, de "atroz
agonia" do colonialismo, ao menos em sua forma tradicional,
tal como se configurou após a guerra de 1870, e o partage '
du monde entre as grandes potências européias. Sim, por
que o fim desse colonialismo, segredo da prosperidade e da
euforia metropolitana, pano de fundo da joie de vivre no
velho continente durante a belle époque, tão bem evocada
por Arnold Toynbee em Civilization on Trial, e cuja essên
cia, feita de leveza, de graça, de elegância, mas de incons
ciência também, se acha expressa exemplarmente na pintura
de Toulouse Lautrec e na música de Offenbach, o fim desse
colonialismo, não significa, necessariamente, o fim do colo
nialismo.
Um lider negro, uma das figuras mais representativas
dessa nova geração de africanos, forjados nas lutas pela
independência das antigas colônias, Kwame N'Krumah, aca
ba de publicar um livro cujo título, inspirado na obra clás
sica de Lênin, é precisamente O Neocolonialismo — Último
Estágio do Imperialismo. Há, pois, um novo colonialismo
que, embora seja novo, nem por isso deixa de ser substan
tivamente o mesmo. Ora, se o colonialismo perdura, embora
"novo”, quer dizer, assumindo novas formas, novas moda
lidades, como poderia perder a atualidade e, portanto, o in
teresse, um livro que nos fala do colonialismo, isto é, de
uma realidade, de uma situação humana, de um fenômeno
histórico que, longe ter desaparecido, permanece, sofrendo
apenas superficiais metamorfoses?
Apesar de conquistada a independência política, retira
das as tropas estrangeiras de ocupação, nacionalizado o apa
relho político e administrativo, os serviços públicos, os ban
cos, as empresas agrícolas e as poucas indústrias eventual
mente existentes, terá a antiga colônia conquistado realmente
1 Jean-Paul Sartre, Situations, vol. V, pág. 50.
2
a independência e expulso realmente a potência dominante?
Não, porque na luta contra o colonizador, ao recuperar-se
e ao afirmar-se a si mesmo, o colonizado, como escreve
Memmi, "continua a definir-se em relação a ele. Em plena
revolta, o colonizado continua a pensar, sentir e viver con
tra o colonizador e a colonização e, portanto, em relação a
ambos”.- A descolonização é um processo lento, difícil e
doloroso, comparável à convalescença de uma longa e grave
enfermidade.
Não nos devemos iludir, aliás, com a imagem conven
cional e tradicional do colonialismo. Consistindo essencial
mente, como veremos, na dominação e na exploração de
grupos .humanos, de classes sociais, ou de povos uns pelos
outros, o colonialismo não só perdura, como acabamos de
salientar, nas antigas colônias, hoje convertidas em nações
politicamente soberanas, mas permanece também, na forma
de segregação racial, em países considerados democráticos,
como os Estados Unidos da América do Norte (para não
falar da África do Sul), ou recrudesce, pela marginalização
do povo do processo eleitoral e pela proscrição das lideran
ças populares, nos paises da América Latina em que se ins
tauraram ditaduras militares, por exemplo. A situação dos
negros nos Estados Unidos e a dos líderes de esquerda, ba
nidos pelas ditaduras latino-americanas, não será, em mui
tos aspectos, comparável à situação dos colonizados, nas
antigas colônias?
A insurreição, a revolta dos povos submetidos — pro
tetorados, domínios, colônias, propriamente ditas, e povos
hoje chamados subdesenvolvidos, característica do tempo
em que vivemos — provoca o surgimento de novas formas
de imperialismo, menos ostensivas, menos visíveis, mas nem
por isso, menos eficazes. O controle da economia, dos meios
de comunicação, da publicidade, do dispositivo militar inter
no, pode fazer-se sem lesão aparente da soberania nacional.
A criação dos mitos, dos esteriótipos, das neuroses e obses
sões coletivas, como o anticomunismo nas áreas dominadas
pelos Estados Unidos, por exemplo, completa o processo
de ocupação, convertendo o país suposta ou aparentemente
Albert Memmi, Portrait dit Colonisé, Précédé du Portrait dn Colo-
nisateur, pág. 180.'
3
independente em satélite econômico e ideológico do centro
dominante.
Mereceria, aliás, um estudo especial o que poderíamos
chamar de colonialismo tecnológico, quer dizer, a dependên
cia, do ponto de vista do know how e da formação de espe
cialistas, em que se encontram os países atrasados em rela
ção às nações altamente desenvolvidas. Já se assinalou que
o desenvolvimento se processa em progressão geométrica,
tanto mais se desenvolvendo um país quanto mais desenvol
vido fôr. E também já se chamou a atenção para o fato de
que o desequilíbrio ou o contraste entre a riqueza dos paí
ses ricos e desenvolvidos e a pobreza dos países atrasados,
longe de reduzir-se com o tempo, tem sido, ao contrário,
agravado, em virtude da rapidez com que se verifica o pro
gresso tecnológico. Se desenvolvimento é industrialização, o
país que não dispuser de uma tecnologia própria ficará na
completa dependência dos países tecnicamente adiantados.
Não é, porém, dessa nova forma ou modalidade de co
lonialismo que se ocupa o livro de Albert Memmi. Trata-se
de um ensaio sobre o colonialismo clássico, digamos assim,
em sua forma extrema, quase caricatural. Não é, no entan
to, o trabalho de um turista curioso, de um economista ou
sociólogo remunerado pelas Nações Unidas, que houvesse
perambulado pela colônia carregando sua '‘objetividade" de
encomenda, e, em seguida, redigido um informe ou relató
rio, enriquecendo assim seu curriculum vitae.
O livro de Albert Memmi, apesar de sua clareza, de sua
simplicidade, é também um testemunho humano, pois o dra
ma do colonialismo ele não o viveu de fora, na qualidade
de mero espectador, mas o viveu na própria carne, na con
tradição e no conflito que dilaceram a consciência do colo
nizado que recusa a colonização. A experiência biográfica,
interpretada e iluminada por uma ideologia revolucionária,
converte a peripécia individual em instrumento de pesquisa
e de conhecimento sociológico, pois, se “as dilacerações da
alma” são “puras interiorizações dos conflitos sociais” —
como diz Sartre — “ é possível esclarecer os outros falando
de si mesmo”.'1
* Jean-Paul Sartre, Ob. c it., pág. 50.
4
Não há citações de autores, ou de "autoridades”, no
livro de Memmi, nem tampouco números ou estatísticas.
Deixará, por isso, de refletir a realidade, de nos revelar o
que há de essencial nesse mecanismo, nessa engrenagem
inumana, impiedosa, implacável, que, depois de desfigurar
e aviltar o colonizado e corromper p colonizador, desemboca,
inevitavelmente, no terrorismo e na tortura?
Mas, não nos antecipemos; procuremos reconstituir,
-mbora em suas linhas gerais, a estrutura e a lógica, ou me
lhor, a dialética do processo colonial.
Para apreender e interpretar adequadamente o colonia
lismo, que categorias, que instrumentos mentais deveremos
utilizar? A nosso ver, a apreensão do que há de essencial
nesse fenômeno, nesse processo histórico, requer o emprego
das categorias de totalidade, contradição, alienação e
dialética.
O primeiro pressuposto, portanto, que devemos admitir,
é o de que a situação colonial é um fenômeno social global.
Que é uma colônia, a Tunísia ou a Argélia, por exemplo,
até a vitória dos movimentos nacionais de libertação? Um
território, com determinada estrutura de recursos naturais,
certa flora e certa fauna, um equilíbrio ecológico, e uma po
pulação com crenças religiosas, tradições, usos e costumes
peculiares, instituições politicas e sociais, formas próprias de
trabalho, etc. Nesse contexto, que é uma totalidade orgâni
ca, o conquistador irrompe subitamente, ou ao cabo de uma
luta em que sai vitorioso. Pode ocorrer, como se verificou
nos Estados Unidos da América do Norte, o massacre, o ex
termínio total das populações autóctones, que se rebelam
contra a captura e a domesticação. Em outros casos, como o
das colônias européias do Norte da África, ou do Continen
te, de modo geral, a desproporção entre o número de colo
nizadores e o de colonizados é de tal ordem que impede o
extermínio dos segundos pelos primeiros. E não só o núme
ro, mas o estágio de desenvolvimento cultural a que chega
ram esses povos.
Invadido o território, a ocupação se estabelece em ter
mos militares, com a presença efetiva de forças armadas que
representam o poderio incontrastavel da metrópole. O dispo
sitivo militar sustenta a máquina de domínio e de exploração,
a estrutura política e administrativa que coloca os recursos
5
naturais e a mão-de-obra colonial a serviço da nação colo-
nizadora. Embora representem insignificante minoria em re
lação à população do país conquistado, os colonizadores
trazem com eles a superioridade científica e tecnológica, eco
nômica e cultural, que lhes proporciona as condições de do
mínio e controle do país submetido.
Montada a máquina, ou o "sistema” colonial, delineiam-
se as figuras que serão os principais protagonistas dessa
peripécia histórica, o colonizador e o colonizado. Em fun
ção desses dois pólos, passa então a estruturar-se a vida do
país colonizado. Ora, que têm em comum uns e outros? Uns
são católicos, outros muçulmanos; uns são árabes, outros
franceses; uns são portadores de uma cultura mágica, ainda
no estágio feudal, outros de uma civilização científica, indus
trial tecnológica, no estágio do capitalismo expansionista. No
que se refere ao estilo arquitetónico das casas, monumentos
públicos e templos religiosos, ao mobiliário, à indumentária,
à alimentação, aos usos e costumes, e pormenores da vida
quotidiana, nada há em comum. São dois mundos inteira
mente diversos, totalmente heterogêneos e irredutíveis
ao outro.
Deverão, no entanto, esses dois mundos, embora hete
rogêneos e irredutíveis, conviver um com o outro, "coabi
tar” -— como diz Memmi. Desfeita a imagem convencional
do colonialista «— pioneiro generoso, humanista e filantro
po, missionário da cultura e do progresso, evangelizador dos
incrédulos, etc. — e desmascarado o sentido econômico e
predatório da empresa colonial, em que fêrmos se poderá
estabelecer essa convivência?
Ao tornar-se colônia, digamos desde logo, o país se
converte em uma nova totalidade que, como vimos, passa a
articular-se em função dos dois pólos que se implicam e, ao
mesmo tempo, se opõem e excluem reciprocamente, o colo
nizador e o colonizado. Por que se opõem e se excluem?
Apenas porque representam religiões, raças, línguas, cultu
ras e civilizações diferentes, em distintos estágios de desen
volvimento? Não, opõem-se e excluem-se reciprocamente
porque representam interesses antagônicos e irredutíveis.
Quais são os interesses do colonizador? Explorar os
recursos naturais do país e a mão-de-obra nativa pelo mais
baixo preço. Manter a colônia na situação de área produ-
6
tora de matérias-primas e generos tropicais e importadora
de manufaturas, isto é, dos produtos fabricados na metró
pole. Quais são os interesses do colonizado? Converter a
colônia em um país independente, desenvolvê-lo economica
mente, incorporar a ciência e a tecnologia modernas, elevar
a capacidade aquisitiva e o nível de vida de suas popula
ções, e preservar, tanto quanto possível, a sua fisionomia
nacional.
Ora, esses interesses são totalmente incompatíveis uns
com os outros. Na primeira fase da colonização, as popu
lações autóctones, sem condições de revolta, submetem-se
ao colonizador, acumpliciam-se e colaboram com a empresa
de domínio e exploração. Para assegurar o funcionamento
da máquina, porém, não basta ao colonizador a superiorida
de militar e tecnológica, deve, além disso, legitimar ou ten
tar legitimar o empreendimento, aos olhos do colonizado e
aos seus próprios olhos. Deve, pois, fabricar a ideologia do
colonialismo, tentativa de justificação, a posteriori, em ter
mos racionais, do dominio e da espoliação a que submete o
povo conquistado. E, qual poderá ser o conteúdo dessa ideo
logia? Só poderá ser uma superioridade do colonizador, que
implica obviamente, como contrapartida, a inferioridade do
colonizado. "Admitindo essa ideologia — escreve Memmi
— as classes dominadas (ou os povos) confirmam, de certo
modo, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, tam
bém, a relativa estabilidade das sociedades, nas quais a
opressão é, bem ou mal, tolerada pelos próprios oprimidos”.4
Completa-se ou arremata-se, assim, com a fabricação
da ideologia, a nova totalidade em que se converte o país
colonial. Nada mais poderá escapar à engrenagem que se
monta, articulando e configurando a vida econômica, social,
política e cultural da colônia. O que não se insere no esque
ma dessas relações, permanece na qualidade de resíduo, cos
tume ou objeto exótico, curiosidade local, tolerada por ser
irrelevante ou desprezível. As redes do dispositivo de domi
nação se estendem por todo o país, englobando em suas ma
lhas todas as manifestações e formas da vida colonial. Com
isso queremos dizer que tudo é colonial na colônia, que tudo
se estrutura e define em função da empresa colonizadora.
4 Albert Memmi, Ob. cit., pág. 116.
7
Inútil exemplificar. Trabalho, «dministração, burocracia,
serviços públicos, educação, vida cultural, etc., tudo está
afetado pelos interesses da metrópole e disposto de acordo
com esses interesses.
A situação colonial é, pois, como dissemos, um fenôme
no social global, uma totalidade. Essa totalidade, no entan
to, é constituída por interesses antagônicos e inconciliáveis,
contraditórios, portanto. Em um primeiro momento, essa
contradição permanece latente, mascarada pela aparente e
provisória acomodação do colonizado. Convencido da supe
rioridade do colonizador e por ele fascinado, o colonizado,
além de submeter-se, faz do colonizador seu modelo, pro
cura imitá-lo, coincidir, identificar-se com ele, deixar-se por
ele assimilar. É o momento que poderíamos chamar da alie
nação. Ocupado, invadido, dominado, sem condições para
reagir, nem ideológicas nem materiais, não pode evitar que
o colonizador o mistifique, impondo-lhe a imagem de si
mesmo que corresponde aos interesses da colonização e a
justifica. O colonizado se perde no “outro”, se aliena. Ten
tará, pois, de acordo com a lógica desse movimento, levar
a alienação às últimas conseqüências, tornando-se ele pró
prio um colonialista, casando-se entre os representantes da
metrópole, por exemplo.
Acontece que essa 'tentativa malogra, por ser contradi
tória com a própria estrutura da situação colonial. Se todos
os colonizados se tornassem colonizadores, quem coloniza
riam? Se o colonizador implica necessariamente, como termo
correlato, o colonizado, o projeto que acabamos de conside
rar é contraditório e, portanto, absurdo. Mas, admitamos
que alguns colonizados conseguissem deixar-se assimilar pe
los colonizadores. Em que o êxito aparente de algumas ten
tativas de assimilação alteraria a situação como totalidade?
Ora, mesmo essas tentativas individuais nunca são plena
mente bem sucedidas, pela simples razão de que o coloniza
dor é francês e o colonizado árabe, e o árabe jamais poderá
deixar de ser o que é, quer dizer árabe, para tornar-se o que
não é, quer dizer, francês. Os "convertidos" ou “assimila
dos” sofrem um processo que se poderia chamar de pseudo-
morfose, isto é, de aquisição de uma falsa nova forma que
não exprime nem representa adequadamente o antigo con
teúdo.
8
Além disso, ao fabricar a ideologia do colonialismo, ao
tentar estabelecer a tese da sua superioridade, que é pura
mente circunstancial e histórica, o colonizador desemboca
inevitavelmente no racismo. Ora, em que consiste o racis
mo? Em converter em “natureza” o que é apenas "cultu
ral”, ou, com outras palavras, em converter o fato social em
objeto metafísico, em "essência” intemporal. Para justificar,
para legitimar o domínio e a espoliação, o colonizador pre
cisa estabelecer que o colonizado é por “natureza”, ou por
“essência”, incapaz, preguiçoso, indolente, ingrato, desleal,
desonesto, em suma, inferior. Incapaz, por exemplo, de edu-
car-se, de assimilar a ciência e a tecnologia modernas, bem
como de exercer a democracia, de governar-se a si mesmo.
“Não é uma coincidência — escreve Memmi —, o racismo
resume e simboliza a relação fundamental que une colonia
lista e colonizado”.5
Ora, o racismo representa um obstáculo intransponível
à assimilação. Como podem os negros norte-americanos ser
assimilados pelos brancos, ou os judeus pelos alemães
dolicocéfalos e nazistas, se os norte-americanos brancos são
racistas e consideram os negros uma raça inferior, sub-hu-
mana, e os alemães nazistas julgam os judeus uma raça tam
bém inferior e, portanto, indigna de com êles misturar-se?
Estabelecida essa insanável discriminação, em termos de
“natureza” ou de “essência”, o colonialismo passa a ter um
fundamento metafísico que o situa além do tempo, fora da
história, tornando-o imutável e definitivo.
Apesar do clima e da repugnância que lhe inspiram os
costumes dos colonizados, o colonizador projeta sua exis
tência na colônia em um tempo sem fim, pois nem por hipó
tese admite que um dia o colonizado possa sacudir o jugo
a que se acha submetido. O colonizador, enquanto tal, é,
pois, necessariamente conservador, quer dizer, não pode
deixar de querer a conservação do estatuto colonial de que
é único beneficiário. Além de ser conservador, e até mesmo
reacionário, o colonizador, que pode ter sido democrata ou
socialista na metrópole, está sempre exposto à tentação fas
cista, pois -— como observa Memmi — para que "possa
9
subsistir como colonizador, é necessário que a metrópole
permaneça eternamente uma metrópole”.6
A conservação ou a indefinida manutenção da colônia,
porém, supõe que suas contradições sejam mantidas em es
tado latente ou virtual, com a aceitação do colonialismo, e
de tudo o que implica, por parte dos colonizados. Acontece
que essa totalidade parcial, esse “mundo”, que é a colônia,
além de incluir as contradições internas que a caracterizam,
situa-se ou insere-se em uma totalidade maior, que é o mun
do, por sua vez também contraditório. A observação é im
portante, embora nada nos revele de novo, porque essas
contradições mundiais, como veremos, afetando a colônia,
poderão criar as condições que permitam a eclosão das suas
contradições internas.
Com isso, queremos dizer que a totalidade, em qUe a
situação colonial consiste, além de contraditória, é um todo
em movimento, cujo processo, por isso mesmo que é contra
ditório, só pode ser apreendido e compreendido dialetica-
mente.
Se a assimilação é impossível, tanto pela incorporação
dos colonizados ao grupo dos colonizadores, quanto pela
diluição destes na população autóctone, o estatuto colonial,
no que se refere à discriminação de raças, se manterá into
cado, o mesmo desde que a colonização se estabeléceu.
O colonizador, por sua vez, também não pode assumir
na colônia uma posição de esquerda, mesmo que tenha sido
ou seja de esquerda na metrópole. Ao adotar semelhante
posição, deixa sem dúvida dé coincidir com a de seus com
patriotas, rompe com o grupo colonialista. Passará, por isso,
a coincidir com a massa dos colonizados? "É impossível —
escreve Memmi .— que faça coincidir seu destino com o do
colonizado. Que é, politicamente? De quem é a expressão,
senão de si mesmo, isto é, de uma força desprezível no con
fronto?”7 Instalado em insanável ambigüidade, perde a
confiança dos colonizadores e deixa de representá-los, sem
com isso adquirir condições que lhe permitam conquistar a
confiança do colonizado. Será, para os colonizadores, um
trânsfuga, e, para os colonizados, na melhor das hipóteses,
10
um suspeito, que, por isso mesmo, jamais poderá ser um dos
seus líderes. Que pretende, afinal? Ser colonizador e negar,
ao mesmo tempo, a colonização? Como se vê, a posição é
contraditória e insustentável.
Perguntamos, em parágrafo anterior, em que termos se
poderia estabelecer a convivência de colonizadores e de
colonizados no complexo colonial. Já temos agora algumas
respostas a essa pergunta. A princípio, o conformismo, a
aceitação passiva, a tentativa de coincidência com o grupo
colonizador, a alienação. Em seguida, a tomada de cons
ciência da impossibilidade, do malogro da assimilação. Sób
a pressão das contradições externas, a emergência das con
tradições internas, tanto objetivas quanto subjetivas, e a rup
tura com a fase anterior, de inconsciência e submissão.
Qual a ideologia da metrópole? Não é o cristianismo
e a democracia, o desenvolvimento econômico, o bem-estar
e o progresso social? Mas, não haverá contradição entre
essa ideologia, que o colonizador professa na metrópole, e o
seu comportamento na colônia, o domínio e a espoliação do
colonizado, a sua segregação em nome do racismo?
Na colônia, porém, há jornais, revistas, aparelhos de
rádio e televisão, cinemas. Mal ou bem a situação do mundo,
a luta das classes oprimidas, dos povos oprimidos, acaba
penetrando a consciência das populações colonizadas. E não
só isso, mas também as razões pelas quais essa luta é tra
vada, o desequilíbrio, o contraste, entre a riqueza das clas
ses e dos paises ricos e a pobreza, a miséria dos países pro
letários .
Por que aceitar eternamenté esse desequilíbrio, essa
contradição, por que admitir como natural e justo que o
bem-estar e a felicidade de alguns tenha como contrapar
tida o mal-estar e a desgraça da imensa maioria? Não lhes
dizem, em nome do cristianismo e da democracia, que todos
são iguais diante de Deus e diante da Lei e que, por isso,
devem ter as mesmas oportunidades de acesso à saúde, à
educação, à cultura, ao conforto, à humanização, em suma?
Ou essa ideologia é válida apenas nos limites da metrópole,
perdendo significação e eficácia a partir do momento em
que, transpondo o mare nostrum, pepetramos as fronteiras
do continente africano? Ora, como justificar, então, o esta
tuto colonial, a não ser em nome de outra ideologia, o racis-
11
mo, por exemplo, ideologia que põe o colonizador em con
tradição com êle mesmo? Sim, porque como conciliar sua
posição de cristão e democrata na metrópole com a posição
de racista na. colônia?
O "efeito de demonstração”, quer dizer, o confronto,
o paralelo entre as condições de vida das populações colo
nizadas e as do colonizador e das populações metropoli
tanas (que o colonizado fica conhecendo por meio da im
prensa, do cinema etc.) interpretado à luz do cristianismo e
da democracia, não pode deixar de fecundar a consciência
do colonizado, abrindo-lhe os olhos para a espoliação de que
tem sido vítima. As contradições objetivas existiam, sem dú
vida, e há muito tempo, pois são a própria condição de exis
tência do fato colonial, e, no entanto, permaneciam latentes,
em equilíbrio, sem funcionar, sem operar como fator de
transformação da estrutura social. Que é que as traz à tona
da consciência, que é que as converte em mola propulsora
da revolta e até mesmo da revolução?
Todos os caminhos foram fechados. O colonizador não
permite nem a assimilação, nem a transformação pacífica da
colônia, mediante a participação dos colonizados na gestão
do próprio destino. O colonizador representa a negação do
colonizado e vice-versa, o colonizado representa a negação
do colonizador. Os termos da antítese, ou da contradição,
não podem ser absorvidos e superados em uma síntese su
perior pela simples razão de que, ao mesmo tempo, se impli
cam e excluem reciprocamente, quer dizer, a negação de um
acarretando necessariamente a negação do outro.
A rigor — como observa Memmi — "o esmagamento
do colonizado está incluído entre os valores do colonialis
mo”8 e o colonizador, no segredo de seu coração', sonha
muitas vezes com o extermínio total dos colonizados. Ora,
esse desejo é contraditório, pois o extermínio dos coloniza
dos acarretaria inevitavelmente o desaparecimento da colô
nia e, portanto, do próprio colonizador. Destruindo sua antí
tese, pólo oposto dessa relação dialética em que o processo
colonial consiste, o colonizador destruiria, ao mesmo tempo,
o pólo “tético”, digamos assim, da relação, quer dizer, sua
12
posição de domínio e de espoliação, pois teria negado e feito
desaparecer o objeto desse domínio e dessa espoliação.
A partir do momento em que, por força das contradi
ções internas e externas, tanto no plano objetivo, real, quan
to no plano subjetivo, da consciência, as populações coloni
zadas despertam, do longo torpor, do sono em que estavam
há tanto tempo mergulhadas, a partir desse momento, a to
talidade contraditória, que é o mundo colonial, é arrancada
da estagnação e posta em movimento.
A partir de então, o colonizado, cuja negação implica
va a afirmação (negação como ser humano) do coloniza
dor, isto é, sua antítese na relação dialética, vai empreender
a negação da negação, quer dizer a afirmação de si mesmo,
pólo tético na relação. Ora, assim como no momento ante
rior, aceitava globalmente o colonizador, recusando-se total
mente a si mesmo, agora passa a recusar globalmente o co
lonizador e a aceitar e afirmar-se totalmente a si mesmo.
Tudo aquilo de que se envergonhava, tudo aquilo que
era para ele sinal de sua diferença e motivo de humilhação,
as crenças, os valores, os usos e costumes que constituíam
a tradição, a fisionomia nacional, tudo o que, contraposto
ao mundo do colonizador, alimentava seu complexo de infe
rioridade, e era por ele subitamente assumido, em atitude
polêmica, de desafio, como forma e expressão de sua per
sonalidade própria, nacional. “A mesma paixão que o fazia
admirar e absorver a Europa — escreve Memmi — o fará
afirmar suas diferenças; uma vez que essas diferenças o
constituem, constituem propriamente sua essência”.9
Será nacionalista e não racista, propriamente, mas xe
nófobo, pois “o racismo do colonizado <— como diz o autor
— não é a rigor, nem biológico, nem metafísico, mas social
e histórico”.10 Nacionalismo e xenofobia que se inscrevem
necessariamente no movimento de revolta, pois como não
odiar os europeus — e todo europeu é um colonialista em
estado potencial, um cúmplice e um beneficiário do colonia
lismo — que durante tanto tempo os oprimiram e explora
ram? Por que deveriam, êles que não são cristãos, retribuir
13
o desprêzo e o desamor dos cristãos com a compreensão, a
tolerância e a generosidade?
Declarado o inconformismo, desencadeada a revolta, o
aparente equilíbrio se rompe, as águas superficialmente
imóveis se agitam e as contradições que permaneciam laten
tes vêm à tona, revelando-se em sua irredutibilidade e pro
pondo-se em termos de luta. Impossível exigir do colonizado
que, enfim, se revolta, prudência, cautela, senso de medida.
De seu ponto de vista, tudo é vãlido, desde que seja eficaz,
na luta contra o colonizador, pois a negatividade total de
sua conduta implica uma positividade também total, quer
dizer, a plena recuperação e afirmação do colonizado por si
mesmo:
Se todas as formas de convívio se revelaram impossí
veis, a unica saída é a ruptura, a revolta, a luta contra o
colonizador até sua derrota definitiva, isto é, até a liquida
ção definitiva do sistema colonial. Pois o colonialismo, que
fabrica simultaneamente o colonizador e o colonizado, reve
lou-se uma doença incurável, e a situação colonial impossí
vel de aménagec porque — como escreve Memmi — "tra
zia em si mesma sua própria contradição que, cedo ou tarde,
a faria morrer”.11
Todas as formas de luta são válidas, dizíamos, inclusive
o terrorismo, energicamente condenado pelo pensamento de
esquerda. O sopro da revolta os arrasta, um desespero, uma
fúria sagrada os invade, e sua vida não tem outro sentido,
outra razão de ser, senão lutar, lutar até a morte, contra os
opressores, e a favor dos seus, da liberdade, da libertação
dos seus, os oprimidos.
Toda a máquina, a poderosa máquina da opressão, é
então mobilizada na repressão implacável, sem quartel, da
revolta dos escravos, maltrapilhos e famintos. As armas
mais modernas, os dispositivos tecnológicos mais aperfeiçoa
dos, as tropas de elite, recursos astronômicos, são mobiliza
dos para esmagar a insurreição, o movimento de libertação
nacional.
O empreendimento colonial, desafiado pelos povos em
revolta, se revela em sua verdadeira fisionomia. A violência,
que permanecia latente, implícita na opressão, explode, e o
n Idem, pág. 184.
14
colonialismo, com a assistência e o beneplácito eia metró
pole, passa a reprimir sistemática e brutalmente todas as
manifestações de inconformismo e rebeidia. Em nome de
quê? Do cristianismo, da democracia, dos direitos humanos?
Não, desta vez, depois que as máscaras caíram, em nome
apenas de seus interesses, interesses materiais, econômicos.
A brutalidade da repressão não conhece limites e acaba
por despertar no colonizador o ódio pelo colonizado. Ódio
que está na raiz do capítulo mais negro da guerra còlonial,
o capítulo da tortura. “Nesse negócio — escreve Sartre —
os indivíduos não contam; uma espécie de ódio errante, anô
nimo, um ódio radical do homem, se encarniça a um tempo
sobre os carrascos e as vítimas para degradá-los juntos, e
uns pelos outros. A tortura é esse ódio, erigido em sistema
e criando seus próprios instrumentos”.12
E, quem tortura? São povos "bárbaros”, orientais, que
não assimilaram o cristianismo e os valores espirituais da
civilização ocidental, alemães paganizados, enlouquecidos
pelo racismo nazista e pelo sonho delirante de dominação
mundial? Não, quem torturou, para nossa tristeza e humi
lhação, foram franceses, sim cristãos franceses, descendentes
de Joana d’Arc e de São Luís. Mas, se qualquer homem,
seja qual for, se qualquer povo, sejam quais forem suas tra
dições e sua formação, pode converter-se subitamente em
carrasco, em torturador, que significa isso se não — como
diz Sartre — que "a tortura não é nem çivil nem militar,
nem especificamente francesa, mas uma lepra que devasta
tõda a nossa época”.13
Há um segredo, há uma confissão, que a minoria ar
mada e opressora precisa arrancar de todos ou de Qualquer
um, pois todos são cúmplices da mesma conspiração, todos
são aliados na mesma luta, todos representam a mesma
ameaça, difusa, incontrolável, aos interesses, aos privilégios
dos colonizadores. O sdpro da revolta a todos arrasta, pois
a guerra colonial não é apenas a luta de grupos armados con
tra a opressão metropolitana, mas a luta do povo todo e, sendo
a guerra dos pobres contra os ricos, dos oprimidos contra
15
os opressores, converte a multidão inumerável dos miserá
veis no "inimigo quotidiano", cujo silêncio, carregado de
ameaças, inquieta e preocupa tanto as forças de ocupação
quanto as incursões noturnas, os ataques às patrulhas avan
çadas, os atentados, as bombas lançadas nos quartéis ou os
assaltos aos depósitos de munições. Todo árabe é um ini
migo possível, um eventual detentor desse segredo que é
preciso arrancar de qualquer maneira, mesmo que seja pela
tortura, essa "fúria vã” <— como diz Sartre — "nascida do
medo e pela qual se quer arrancar de uma garganta, entre
gritos e vomitos de sangue, o segredo de todos”.14
Ora, não há segredo, há um incêndio que lavra em todo
o território aa colônia, uma chama que arde em todos os
corações, uma invencível esperança e uma indestrutível de
cisão de lutar, mesmo que seja ao preço da própria vida,
pela conquista da liberdade. O sistema, porém, funcionará
implacavelmente, no desesperado esforço de manter-se, em
bora a conservação da colônia, exigindo a presença perma
nente de um exército de ocupação, seja mais onerosa do que
a renda auferida com a exploração colonial Impossível, pois,
prosseguir no empreendimento, que se tornou absurdo e
perdeu qualquer sentido. A sorte do colonialismo está sela
da e, mais cedo ou mais tarde, pouco importa, os povos co
loniais conquistarão a independência. “A recusa do coloni
zado — escreve Memmi — só pode ser absoluta, quer di
zer, não apenas revolta, mas superação da revolta, isto é,
revolução”.15
Sem dúvida, na recusa do colonialismo, na negação
total do colonizador e na aceitação total de si mesmo, o co
lonizado, como já vimos, ainda está, em grande parte, de
terminado pelo colonizador. No processo dialético da eman
cipação, no entanto, esse momento é necessário, pois torna
possível o momento seguinte, em que da negação da nega
ção, se passa à plena positividade da afirmação de si.
Não só poderá mas deverá, doravante, apropriar-se da
ciência e da tecnologia dos colonizadores e talvez de algu
mas de suas instituições jurídicas e sociais. Essa apropria
ção, essa utilização, no entanto, se fará livremente, e em
16
função dos interesses e das necessidades da nova nação e
do seu projeto próprio de desenvolvimento. O essencial foi,
enfim, conquistado. Pouco importa que haja obstáculos e
resistências a vencer, provações a enfrentar, sacrifícios nu
merosos a fazer. De que não é capaz o ser humano quando
o entusiasmo o arrebata, quando o amor inflama seu
coração?
Já não mostraram, já não deram provas de que eram
capazes, não só de atos de coragem, mas até mesmo de he
roísmo? Não lutaram, em total inferioridade de condições,
contra um adversário muito mais poderoso, implacável e ar
mado até os dentes? Já não mostraram que preferem arris
car a Vida na luta pela liberdade do que permanecerem vi
vos, na escravidão?
Se foram capazes de enfrentar essa luta, tão mais ár
dua, tão mais difícil, tão mais perigosa, por que não seriam
capazes de enfrentar a outra, a luta pacífica pela constru
ção do país, agora que recuperam a alma e o direito de con
figurar o próprio destino?
As guerras coloniais de independência parecem ter dei
xado claro que uma nação não é propriamente um negócio,
que deve assegurar a maior rentabilidade possível, como
pretendem os colonialistas e os tecnocratas, mas uma peri
pécia em que os homens empenham o próprio sangue, um
destino enfim, quer dizer, uma tradição e uma vocação.
R oland C orbisier
17
I
RETRATO
DO COLONIZADOR
19
I
Existe o Colonial?
22
metrópole... uma espécie de purgatório em suma, um pur
gatório remunerado. Doravante, mesmo farto, enjoado de
exotismo, algumas vezes doente, ele se prende: a armadilha
funcionará até a aposentadoria ou mesmo até a morte. Como
retornar à metrópole, onde lhe seria necessário reduzir seu
padrão de vida pela metade? Retornar à lentidão viscosa de
sua carreira metropolitana?
Quando, nestes últimos anos, corn a aceleração da his
tória, a vida se tornou difícil, freqüentemente perigosa para
os colonizadores, foi esse cálculo tão simples, porém irres
pondível, que os reteve. Mesmo aqueles que na colônia são
chamados aves de arribação não manifestaram excessiva
pressa em partir. Alguns, considerando a volta, puseram-se
a temer, de forma inesperada, uma nova expatriação: a de
se reencontrarem em seu país de origem. Podemos acreditar
em parte: deixaram seu país há muito tempo, e nele não têm
mais amizades vivas, seus filhos nasceram na colônia e na
colônia enterraram seus mortos. Mas, exageram sua dilace
ração; se organizaram seus hábitos quotidianos na cidade
colonial e, para ela importaram e a ela impuseram os costumes
da metrópole, onde passam regularmente suas férias, de
onde recolhem suas inspirações administrativas, políticas e
culturais, é para a metrópole que seus olhos permanecem
constantemente voltados.
Sua expatriação, na verdade, é de base econômica: a
do novo-rico que se arrisca a ficar pobre.
Resistirão, pois, o maior tempo possível, porque quanto
mais passa o tempo mais duram as vantagens, que bem me
recem algumas inquietações e que sempre será cedo demais
para perder. Mas, se um dia o econômico é atingido, se as “si
tuações”, como se diz, correm perigos reais, o colonizador sen
te-se então ameaçado e pensa, seriamente, dessa vez, em
regressar à metrópole.
No plano coletivo, a questão é ainda mais clara. Os
empreendimentos coloniais nunca tiveram outro sentido con
fessado. Quando das negociações franco-tunisinas, alguns
ingênuos se admiraram da relativa boa vontade do governo
francês, particularmente no domínio cultural, depois da
aquiescência, aliás rápida, dos chefes da colônia. É que as
cabeças pensantes da burguesia e da colônia tinham com
preendido que o essencial da colonização não era nem o
23
prestígio da bandeira, nem a expansão cultural, nem mesmo
o controle administrativo e a salvação de um corpo de fun
cionários. Admitiram que se pudesse transigir em tudo, des
de que o principal, quer dizer, as vantagens econômicas,
fosse salvo. E, se o Sr. Mendès-France pôde efetuar sua
famosa viagem-relâmpago, foi com sua benção e sob a pro
teção de um deles. Foi esse exatamente seu programa e o
conteúdo mais importante das convenções.
O I ndígena e o P rivilegiado
24
Nem mesmo pode decidir-se a evitá-los: deve viver em
relação constante com eles, pois é essa relação mesma que
lhe permite esta vida, que decidiu procurar na colônia: é
essa relação rendosa, que cria o privilégio. Encontra-se em
um dos pratos de uma balança que carrega, no outro, o co
lonizado. Se seu nível de vida é elevado, é porque o do
colonizado é baixo; se pode beneficiar-se de mão-de-obra,
de criadagem numerosa e pouco exigente, é porque o colo
nizado é explorável impunemente e não se acha protegido
pelas leis da colônia: se obtém tão facilmente postos admi
nistrativos, é porque esses postos lhe são reservados e por
que o colonizado deles está excluído; quanto mais respira
à vontade mais o colonizado sufoca.
Tudo isso, não pode deixar de ser por éle descoberto.
Não é ele que correria o risco de ser convencido pelos dis
cursos oficiais, pois esses discursos são redigidos por èle,
ou por seu primo, ou por seu amigo: as leis que estabelecem
seus direitos exorbitantes e os deveres dos colonizados, é
ele que as concebe, e, porque é incumbido de sua aplicação,
está necessariamente no segredo das instruções discrimina
tórias, muito pouco discretas, aliás, referentes às classifica
ções nos concursos e à distribuição dos empregos. Se pre
tendesse ficar cego e surdo em relação ao funcionamento
de toda a máquina, bastaria que recolhesse os resultados:
ora, é ele o beneficiário de todo o empreendimento.
O U surpador
25
Revela-se assim duplamente injusto: é um privilegiado
e um privilegiado não legítimo, quer dizer, um usurpador.
E, finalmente, não apenas aos olhos do colonizado, mas aos
seus próprios olhos. Se objeta algumas vezes que privilegia
dos também existem no meio dos colonizados, feudais, bur
gueses, cuja opulência iguala ou ultrapassa a sua, o faz sem
convicção. Não ser o único culpado pode tranqüilizar, mas
não absolver. Reconheceria facilmente que os privilégios
dos privilegiados autóctones são menos escandalosos que os
seus. Sabe também que os colonizados mais favorecidos se
rão sempre colonizados, isto é, que certos direitos lhes serão
eternamente recusados, que certas vantagens lhes serão es
tritamente reservadas. Em resumo, a seus olhos como aos
olhos de sua vítima, sabe-se usurpador: é preciso que se
acomode com esses olhares e com tal situação.
O P equeno C olonizador
27
malidades, reservar-lhe-á um guichê, onde com os pedintes
menos numerosos, a espera será menos longa. Procura um
emprego? Precisa passar em um concurso? Lugares, postos,
ser-lhe-ão antecipadamente reservados, as provas serão na
sua lingua, ocasionando dificuldades eliminatórias ao colo
nizado. Será ele, então, tão cego ou tão obnubilado que ja
mais possa ver que, em condições objetivas iguais, classe
econômica, méritos iguais, é sempre favorecido? Como não
se voltaria, de vez em quando, a fim de perceber todos os
colonizados, algumas vezes antigos condiscípulos ou confra
des, dos quais tanto se distanciou.
Finalmente, mesmo que nada peça, mesmo que de nada
precise, basta-lhe aparecer para ser recebido com o precon
ceito favorável de todos aqueles que têm importância na co
lônia; e mesmo dos que não a têm, pois se beneficia do pre
conceito favorável, do respeito do próprio colonizado que
lhe concede mais que aos melhores dos seus; que tem, por
exemplo, mais confiança na sua palavra do que na palavra
dos seus. É que ele possui, de nascença, uma qualidade in
dependente dos seus méritos pessoais, da sua classe obje
tiva: é membro do grupo dos colonizadores, cujos valores
reinam e dos quais participa. O pais é ritmado pelas suas
festas tradicionais, mesmo religiosas, e não pelas dos habi
tantes; o feriado semanal é o do seu pais de origem, é a
bandeira de sua nação que flutua sobre os monumentos, é
sua língua materna que permite as comunicações sociais;
mesmo seu traje, sua pronúncia, suas maneiras acabam por
impor-se à imitação do colonizado. O colonizador participa
de um mundo superior, do qual não pode deixar de recolher
automaticamente os privilégios.
29
dos colonizados, contraem com eles amizades duráveis e mes
mo, sinal particularmente revelador, casamentos mistos. Em
suma, não tendo nisso maior interesse, os italianos não mantêm
entre eles e os colonizados» grande distância. A mesma análise
seria válida, com alguns matizes, em relação aos malteses.
A situação dos israelitas — eternos candidatos hesitan
tes e recusados à assimilação — pode ser encarada de uma
perspectiva semelhante. Sua ambição constante, e quão jus
tificada, é a de escapar à sua condição de colonizado, carga
suplementar para um balanço já pesado. Procuram, assim,
parecer-se com o colonizador, na esperança confessada de
que deixe de reconhecê-los diferentes dele. Daí seus esforços
para esquecer o passado, para mudar de hábitos coletivos,
sua adoção entusiasta da língua, da cultura e dos costumes
ocidentais. Mas, se o colonizador nem sempre desencoraja
abertamente esses candidatos à sua semelhança, jamais lhes
permitiu também realizá-la. Vivem assim em penosa e cons
tante ambigüidade; recusados pelo colonizador, participam
em parte da situação concreta do colonizado, têm com ele
solidariedade de fato; por outro lado, recusam os valores do
colonizado enquanto pertencentes a um mundo decadente,
do qual esperam escapar com o tempo.
Os recém-assimilados Situam-se geralmente muito além
do colonizador médio. Praticam uma supercolonização;
ostentam orgulhoso desprêzo pelo colonizado e lembram
com insistência sua nobreza de empréstimo, desmentida fre
quentemente por uma brutalidade plebéia e pela sofregui
dão. Deslumbrados ainda com seus privilégios, os saboreiam
e defendem com avidez e inquietação. E, quando a coloniza
ção corre perigo, fornecem-lhe seus defensores mais dinâ
micos, suas tropas de choque, e, algumas vezes, seus agen
tes provocadores.
Os representantes da autoridade, quadros, "caides”,
policiais, etc., recrutados entre os colonizados, formam uma
categoria de colonizados que pretende escapar à sua condi
ção política e social. Mas, tendo escolhido, devido a isso,
colocar-se a serviço do colonizador e defender exclusiva
mente seus interesses, acabam por adotar sua ideologia,
mesmo em relação aos seus e a eles próprios.
Todos enfim, mais ou menos mistificados, mais ou me
nos beneficiários, abusados a ponto de aceitar o injusto sis-
30
tema (defendendo-o ou resignando-se a ele) que mais for
temente pesa sobre o colonizado. Seu desprezo pode ser ape
nas uma compensação de sua miséria, como o anti-semitis
mo europeu é, freqüentemente, um derivativo cômodo. Tal
é a história da pirâmide dos tiranetes: cada um, socialmente
oprimido por outro mais poderoso, encontra sempre um me
nos poderoso em quem apoiar-se, tornando-se por sua vez,
tirano. Que desforra e que orgulho para um pequeno mar
ceneiro não colonizado andar em companhia de um mecânico
ãrabe levando na cabeça uma tábua e alguns pregos! Para
todos, há pelo menos essa profunda satisfação de ser nega-
tivamente melhor que o colonizado: jamais são totalmente
confundidos na abjeção em que os lança o fato colonial.
Do C olonial ao C olonizador
31
e confirmar a miséria do colonizado, correlativo inevitável
de seus privilégios? aceitar-se-á como usurpador, e confir
mará a opressão e a injustiça em relação ao verdadeiro ha
bitante da colônia, correlativas da sua excessiva liberdade
e do seu prestígio? Irá, finalmente, aceitar-se como coloni
zador, essa imagem de si mesmo que espreita, que já sente
desenhar-se sob o hábito nascente do privilégio e da ilegi
timidade, sob o constante olhar do usurpado? Irá acomo
dar-se com essa situação e com esse olhar e com a própria
condenação por si mesmo, cedo inevitável?
32
2
O C olonizador de B oa V ontade . . .
3d
aturdidos ou menos ingênuos — estupefato desde seus pri
meiros contatos com os menores aspectos da colonização, a
multidão de mendigos, as crianças que perambulam semi
nuas, o tracoma, etc., contrafeito diante de tão evidente or
ganização da injustiça, revoltado com o cinismo de seus
próprios compatriotas ("Não preste atenção à miséria! Ve
rás: nós nos acostumamos a ela rapidamente!” ), pensa ime
diatamente em partir. Obrigado a esperar o fim do contrato,
corre, com efeito, o risco de acostumar-se à miséria e ao
resto. Mas acontece que esse, que pretendia ser apenas co
lonial, não se acostuma: partirá, pois.
Acontece também, que, por diversas razões, não regres
sa. Mas, tendo descoberto o escandalo econômico, politico
e moral da colonização, e não sendo capaz de esquece-lo,
não pode aceitar tornar-se o que se tornaram seus compa
triotas; decide ficar, comprometendo-se a recusar a colo
nização .
34
compatriotas? Não aproveita as mesmas facilidades para
viajar? Como não calcularia, distraidamente, que breve po
derá comprar um automóvel, uma geladeira, talvez uma
casa? Como poderia desembaraçar-se desse prestígio que o
aureola e com o qual pretende escandalizar-se?
Chegaria a esbater um pouco sua contradição, a orga
nizar-se nesse desconforto, que seus compatriotas se encar
regariam de sacudi-lo. A princípio com irônica indulgência;
conheceram, conhecem essa inquietação u.n tanto ingênua
do recém-chegado; passará com a experiência da vida colo
nial, sob uma multidão de pequenos e agradáveis compro
missos .
Deve passar, insistem, pois o romantismo humanitarista
é considerado na colônia uma doença grave, o pior dos pe
rigos: trata-se, nada mais nada menos, que da passagem
para o campo do inimigo.
Se obstinar-se, compreenderá que entra em inconfessá
vel conflito com os seus, conflito esse que permanecerá sem
pre aberto, que jamais acabará a não ser pela sua derrota
ou pelo seu retorno ao berço colonizador. Surpreendemo-nos
com a violência dos colonizadores contra aquele que, dentre
êles, põe em perigo a colonização. Está claro que não podem
considerá-lo senão como um traidor. Põe em risco os seus na
sua própria existência, ameaça toda a pátria metropolitana,
que pretendem representar, e que em definitivo representam
na colônia. A incoerência não está de seu lado. Qual seria,
a rigor, o resultado lógico da atitude do colonizador que
recusasse a colonização, senão desejar seu desaparecimento,
quer dizer o desaparecimento dos colonizadores enquanto
tais? Como não se defenderiam com aspereza, contra uma
atitude que resultaria na sua imolação, no altar da justiça,
talvez, mas de qualquer modo em seu sacrifício? E se ao
menos reconhecessem inteiramente a injustiça de suas posi
ções. Mas, precisamente as aceitaram, acomodaram-se a
elas, graças a meios que veremos. Se não pode superar esse
insuportável moralismo que o impede de viver, se nele crê
tão fortemente, que comece por partir: dará a prova da se
riedade de seus sentimentos e resolverá seus problemas. . .
e deixará de criar problemas para seus compatriotas. Senão,
é inútil supor que possa continuar a perturbá-los impune
mente. Passarão ao ataque e lhe devolverão golpe por gol-
35
pe; seus camaradas tornar-se-ão intratáveis, seus superiores
o ameaçarão; até sua mulher interferirá e chorará — as mu
lheres têm menos preocupação da humanidade abstrata —
e confessa, os colonizados nada significam para ela e só se
sente à vontade entre os europeus.
Não lhe restará, então, outra saída a não ser a submissãc
no seio da coletividade colonial ou a partida? Sim, resta
ainda uma. Já que sua rebelião lhe fechou as portas da co
lonização e o isolou no meio do deserto colonial, por que
não bateria à porta do colonizado, que ele defende, e que
certamente, lhe abriria os braços, reconhecido? Descobriu
que um dos campos era o da injustiça, o outro é, então, o
do direito. Que dê um passo a mais, que vá até o fim de sua
revolta, a colônia não se limita aos europeus! Recusando os
colonizadores, condenado por eles, que adote os colonizados
e por eles se faça adotar: que se tornçjjrânsfuga.^
Na verdade, tão pouco numerosos são os^cõlÕnizadores,
mesmo com muito boa vontade, dispostos a enfrentar esse
caminho, que o problema é antes teórico; é decisivo, no en
tanto, para a inteligência do fato colonial. Recusar a colo
nização é uma coisa, adotar o colonizado e fazer-se por ele
adotar, são coisas diferentes, que de modo algum estão li
gadas.
Para conseguir esta segunda conversão, teria sido ne
cessário, segundo parece, que nosso homem fosse um herói
moral; e muito antes disso, a vertigem dele se apodera; a
rigor, já dissemos, seria necessário que rompesse econômica
e administrativamente com o campo dos opressores. Seria a
única maneira de tapar-lhes a boca. Que demonstração deci
siva, renunciar à quarta parte do ordenado ou desprezar os
favores da administração! Deixemos isso, contudo; admite-
se perfeitamente hoje em dia que se possa ser, esperando a
revolução, revolucionário e explorador. Descobre que, se os
colonizados têm a justiça em seu favor, se pode ir até ao
ponto de levar-lhes sua aprovação e mesmo sua ajuda, sua
solidariedade pára aí: ele não é dos seus e não tem vontade
alguma de sê-lo. Entrevê vagamente o dia de sua libertação,
a reconquista dos seus direitos, não pensa seriamente em
participar de sua existência mesmo liberta.
Traço de racismo? Talvez, sem que disso se dê muita
conta. Quem pode evitá-lo completamente em um país onde
36
todo mundo é por ele atingido, inclusive as vítimas? Será
tão natural assumir, mesmo em pensamento, sem ser obri
gado a isso, um destino sobre o qual pesa tão grande des-
prêzo? Como procederia, aliás, para atrair sobre si esse des-
prêzo que se cola à pessoa do colonizado? E como lhe ocor
reria a idéia de participar de uma eventual libertação, se já
é livre? Tudo isso realmente, não passa de um exercício
mental.
E depois, não, não é necessariamente racismo! Apenas
teve tempo de perceber que a colônia não é um prolonga
mento da metrópole, que nela não está em sua casa! Isso
não é contraditório com suas questões de princípio. Ao con
trário, porque descobriu o colonizado, sua originalidade
existencial, porque subitamente o colonizado deixou de ser
elemento de um sonho exótico para tornar-se humanidade
viva e sofredora, o colonizador se recusa a participar do seu
esmagamento, decide a vir em seu socorro. Mas, ao mesmo
tempo, compreende que não fez senão mudar de departa
mento: tem diante de si uma outra civilização, costumes di
ferentes dos seus, homens cujas reações freqüentemente o
surpreendem, com os quais não possui afinidades profundas.
E, já que chegamos a esse ponto, é necessário que con
fesse a si mesmo — embora se recuse a fazê-lo com os colo
nialistas ■
— não pode impedir-se de julgar essa civilização
e esse povo. Como negar que sua técnica é gravemente re
tardatária, seus costumes estranhamente imobilizados, sua
cultura caduca? Oh! apressa-se em responder: essas carên
cias não são atribuíveis aos colonizados, mas a decenios de
colonização, que cloroformizaram sua história. Alguns argu
mentos dos colonialistas às vezes os perturbam, por exem
plo: antes da colonização, os colonizados já não estavam
atrasados? Se deixaram-se colonizar, foi precisamente por
que não tinham envergadura para lutar, nem militar nem
tècnicamente. Certamente, sua insuficiência passada nada
significa em relação ao seu futuro, nenhuma dúvida de que
se a liberdade lhes fosse dada, recuperariam esse atraso:
confiam plenamente no genio dos povos, de todos os povos.
Acontece, porém, que admite uma diferença fundamental
entre o colonizado e eie mesmo. O fato colonial é um fato
histórico especifico, a situação e o estado do colonizado,
37
atuais bem entendido, são, no entanto, particulares. Admite
também que essa não é nem sua realidade, nem sua situa
ção, nem seu estado atual.
Certamente, mais do que os grandes movimentos inte
lectuais, os pequenos desgastes da vida quotidiana o confir
marão nessa descoberta decisiva. Comeu cuscus a princípio
por curiosidade, agora o prova de vez em quando por poli
dez, acha que “isso empanturra, empanzina e não nutre, é,
diz brincando, o "abafa-cristão". Ou, se gosta do cuscus
não pode suportar essa “música de feira” que o assalta e
o abcyrece cada vez que passa diante de um café; "por que
tão alto? como fazem para ouvir-se?”. Sofre com esse cheiro
de velha gordura de carneiro que empesta a casa, desde o
desvão sob a escada, onde mora o guarda colonizado. Mui
tos dos traços do colonizado o chocam ou irritam; tem re
pulsas que não chega a esconder e as manifesta em obser
vações que lembram curiosamente as dos colonialistas. Em
verdade, está longe, o momento em que estava convencido,
a priori, da identidade da natureza humana em todas as la
titudes. Sem dúvida, ainda acredita nessa identidade, mas,
como em uma universalidade abstrata ou em um ideal situa
do no futuro da história.
Ides longe demais, dirão, vosso colonizador de boa von
tade não o é mais tanto assim: evoluiu lentamente, já não
é um colonialista? De modo algum; a acusação seria, a maior
parte das vezes, precipitada e injusta. Simplesmente não se
pode viver, e a vida toda, naquilo que permanece para nós
como pitoresco, quer dizer em um grau mais ou menos in
tenso de expatriação. É possível interessar-se pelo pitoresco
como turista, apaixonar-se por ele durante algum tempo,
acaba por fartar-se dêle, por defender-se dêle. Para viver
sem angústia, é preciso viver distraído de si mesmo e do
mundo; é preciso reconstituir em torno de si os odores e os
ruídos da infância, que são os únicos econômicos pois não
requerem senão gestos e atitudes mentais espontâneas. Seria
tão absurdo exigir tal sintonia por parte do colonizador de
boa vontade quanto pedir aos intelectuais de esquerda que
imitassem os operários, como foi moda em certo momento.
Após ter-se obstinado por algum tempo em parecer desar
rumado, em usar indefinidamente as mesmas camisas, em
usar sapatos com pregos, foi preciso reconhecer a estupidez
38
da empresa. Aqui, no entanto, a língua, a maneira de cozi
nhar são as mesmas, os lazeres incidem nos mesmos temas
e as mulheres seguem o mesmo ritmo da moda. O coloniza
dor não tem outra coisa a fazer senão renunciar a qualquer
identificação com o colonizado.
— Por que não usar um turbante nos países árabes e
não pintar a cara de preto nos países negros? retorquiu-me
um dia com irritação um instrutor.
Não é indiferente acrescentar que esse instrutor era
comunista.
O N acionalismo e a E squerda
40
perigo capitalista, os partidos comunistas e grande parte da
esquerda, preferiram opor uma entidade nacional a outra
entidade nacional, assimilando deploravelmente americanos
e capitalistas. De tudo isso, resultou certa confusão na ati
tude socialista a respeito do nacionalismo, uma hesitação na
ideologia dos partidos operários. A reserva dos jornalistas
e ensaístas de esquerda diante desse problema é muito sig
nificativa. Enfrentam-no o menos possível, não ousam nem
condená-lo nem aprová-lo, não sabem nem mesmo se que
rem integrá-lo, incluí-lo na sua compreensão do futuro his
tórico. Em uma palavra, a esquerda atual está desorientada
diante do nacionalismo.
Ora, por múltiplas razões, históricas, sociológicas e psi
cológicas, a luta dos colonizados pela sua libertação assu
miu acentuado aspecto nacional e nacionalista. Se a esquer
da européia não pode senão aprovar, encorajar e sustentar
esta luta, como toda e qualquer esperança de liberdade,
sente profunda hesitação, real inquietação diante da forma
nacionalista dessas tentativas de libertação. Há mais: a re
novação nacionalista dos partidos operários é principalmen
te uma forma para um mesmo conteúdo socialista. Tudo se
passa como se a libertação social, que permanece a finali
dade última, constituísse um avatar da forma nacional mais
ou menos durável: apenas as Internacionais tinham enter
rado cedo demais as nações. Ora, o homem de esquerda
nem sempre percebe, com suficiente evidência, o conteúdo
social imediato da luta dos colonizados nacionalistas. Em
suma, o homem de esquerda não encontra na luta do colo
nizado, que sustenta a priori, nem os métodos tradicionais
nem as finalidades últimas dessa esquerda da qual faz parte.
E, bem entendido, essa inquietação, essa desambientação
são singularmente agravadas no colonizador de esquerda,
quer dizer no homem de esquerda que vive na colônia e
convive diariamente com o nacionalismo.
Tomemos um exemplo entre os meios utilizados nessa
luta: o terrorismo. Sabemos que a tradição da esquerda con
dena o terrorismo e o assassinato político. Desde que os
colonizados passaram a empregá-los, a perplexidade do co
lonizador de esquerda se tornou muito grave. Esforça-se
por separá-los da ação voluntária do colonizado, por fazer
deles um epifenõmeno de sua luta: são, assegura ele, explo-
41
sões espontâneas de massas oprimidas durante muito tem
po. Ou melhor, ações de elementos instáveis, duvidosos, di
ficilmente controláveis pela cúpula do movimento. Muito ra
ros foram os que, mesmo na Europa, perceberam e admiti
ram, ousaram dizer que o esmagamento do colonizado era
tal, tal era a desproporção de forças, que foi compelido,
moralmente com ou sem razão, a utilizar voluntariamente
esses meios. O colonizador de esquerda em vão se esforça
va, certos atos lhe pareceram incompreensíveis, escandalosos
e politicamente absurdos; como, por exemplo, a morte de
crianças ou de estrangeiros na luta, ou mesmo de coloniza
dos que, no fundo de acordo, desaprovavam este ou aquele
pormenor da empresa. A princípio ficou tão perplexo que
não achava outra saída senão negar tais atos; não podiam
encontrar lugar algum, com efeito, na sua perspectiva do
problema. Que a crueldade da opressão explicasse a ceguei
ra da reação, não lhe pareceu um argumento satisfatório:
não pode aprovar no colonizado o que combate na coloniza
ção, justamente porque condena a colonização.
Em seguida, desconfiando sempre que as notícias fos
sem falsas, diz, em desespero de causa, que tais ações são
erros, isto é, não deveriam fazer parte da essência do movi
mento. O s chefes certamente as desaprovam, afirma cora
josamente. Um jornalista que sempre defendeu a causa dos
colonizados, cansado de esperar pelas condenações que não
vinham, acabou um dia intimando publicamente certos che
fes a tomarem posição contra os atentados. N ão recebeu, é
claro, resposta alguma, nem teve também a ingenuidade de
insistir.
D iante desse silêncio, que restava fazer? Interpretar.
Pôs-se a explicar o fenômeno, a explicá-lo aos outros, como
seu m al-estar permitia: mas nunca, observemos, a justificá-
lo. O s chefes, acrescenta agora, não podem falar, não fala
rão, mas nem por isso deixam de pensar no assunto. Teria
aceito com alívio, com alegria, o menor sinal de entendi
mento. E, como esses sinais não podem vir, encontra-se di
ante de terrível alternativa: ou, assimilando a situação colo
nial a qualquer outra, deve aplicar-lhe os mesmos esquemas,
julgá-la e julgar o colonizado segundo seus valores tradicio
nais, ou considerar a conjuntura colonial como original e re
nunciar aos seus hábitos de pensamento politico, aos seus
42
valores, quer dizer, precisamente àquilo que o levou a to
mar partido. Em suma, ou não reconhece mais o colonizado
ou não se reconhece mais. Todavia, não podendo decidir-se
a escolher um desses caminhos, permanece na encruzilhada
e fica no ar: atribui a uns e outros, de acordo com sua con
veniência, intenções inconfessáveis, reconstrói um colonizado
segundo seus desejos; em suma, entrega-se à fabulação.
Nem por isso está menos preocupado com o futuro des-.
ta libertação, ao menos com o seu futuro próximo. É fre
qüente que a futura nação que se adivinha, que já se afirma
além da luta, se queira religiosa, por exemplo, ou não revele
preocupação alguma de liberdade. Ainda aí não há outra
saída senão a de atribuir-lhe um pensamento oculto, mais
ousado e mais generoso: no fundo de seus corações, todos
os combatentes lúcidos e responsáveis não são apena^ teo-
cratas, têm o gosto e a veneração da liberdade. É a conjun
tura que os obriga a disfarçar seus verdadeiros sentimentos;
sendo a fé ainda muito viva nas massas colonizadas, devem
levá-la em conta. Não manifestam preocupações democrá
ticas? Obrigados a aceitar todas as colaborações, evitam
assim chocar os proprietários, burgueses e feudais.
Contudo, os fatos, rebeldes, quase nunca chegam a co
locar-se nos lugares indicados pelas suas hipóteses; e o mal-
estar do colonizador de esquerda permanece vivo, sempre
renascente. Os chefes colonizados não podem condenar os
sentimentos religiosos de suas tropas, ele o reconhece, mas
dar a se servirem desses sentimentos! Essas proclamações
em nome de Deus, o conceito de guerra santa, por exemplo,
o confunde, o apavora. Será, realmente, pura tática? Como
não verificar que a maior parte das nações ex-colonizadas
se apressam, tão logo livres, a inscrever a religião na sua
constituição? Que suas polícias, suas estruturas jurídicas
nascentes em nada correspondem às premissas da liberdade
e da democracia que o colonizador da esquerda esperava?
Então, temendo no fundo de si mesmo enganar-se ain
da uma vez, recuará um passo, apostará em um futuro um
pouco mais longínquo: Mais tarde, certamente, surgirão do
seio desses povos, guias que exprimirão suas necessidades
não mistificadas, que defenderão seus verdadeiros interes
ses, de acordo com os imperativos morais (e socialistas) da
história. Era inevitável que só os burgueses e os feudais,
43
que puderam fazer alguns estudos, fornecessem quadros e
imprimissem essa cadência ao movimento. M ais tarde os co
lonizados livrar-se-ão da xenofobia e das tentações racistas,
que o colonizador de esquerda discerne com inquietação.
Reação inevitável ao racismo e à xenofobia do colonizador;
é preciso esperar que desapareçam o colonialismo e as ch a
gas que deixou na carne dos colonizados. M ais tarde, p o
derão desembaraçar-se do obscurantismo religioso. . .
M as, enquanto espera, o colonizador de esquerda não
pode deixar de permanecer dividido em relação ao sentido
da luta imediata. Ser de esquerda, p ara ele, não significa
apenas aceitar e ajudar a libertação nacional dos povos, mas
também a democracia política e a liberdade, a dem ocracia
econômica e a justiça, a recusa da xenofobia racista e a uni
versalidade, o progresso material e espiritual. E se to d a
esquerda verdadeira deve querer e aju d ar a prom oção n a
cional dos povos, é também, para não dizer principalm ente,
porque essa promoção significa tudo isso. Se o colonizador
de esquerda recusa a colonização e se recusa a si mesmo
como colonizador, é em nome desse ideal. O ra, descobre
que não há ligação entre a libertação dos colonizados e a
aplicação de um program a de esquerda. M elhor ainda, que
:alvez ajude o nascimento de uma ordem social onde não há
lugar para um homem de esquerda enquanto tal, ao menos
em futuro próximo.
Acontece mesmo que, por diversas razões — p ara con
ciliar a simpatia das forças reacionárias, realizar uma união
nacional ou por convicção — os movimentos de libertação
afastam desde logo a ideologia de esquerda e recusam sis
tematicamente sua ajuda, colocando-a assim em insuportável
embaraço, condenando-a à esterilidade. Assim, enquanto
militante de esquerda, o colonizador encontra-se p ratica
mente excluído do movimento de libertação colonial.
O T rânsfuga
44
olhos do colonizado mas também junto às pessoas da es
querda metropolitana; e é isso que mais o faz sofrer. Rom
peu com os europeus da colônia, mas assim o quis, despreza
suas injúrias, delas até se orgulha. Mas as pessoas de es
querda são verdadeiramente suas, os juízes que se atribui,
diante dos quais faz questão de justificar sua vida na colô
nia. Ora, seus pares e seus juízes não o compreendem; a
menor de suas tímidas reservas não desperta senão descon
fiança e indignação. E então, lhe dizem, um povo espera,
suportando fome, doença e desprezo, uma criança em cada
quatro morre sem completar um ano, e lhe pede garantias
quanto aos meios e o fim! E quantas condições exige para
colaborar! Trata-se realmente, nessa questão, de ética e de
ideologia! A única tarefa no momento é a de libertar esse
povo. Quanto ao futuro, terá sempre tempo de ocupar-se
dele quando se tornar presente. No entanto, insiste ele, já
podemos prever a fisionomia do após-libertação. .. Farão
que se cale com um argumento decisivo — na medida que
se trata de uma recusa pura e simples de encarar esse futu
ro — mostrando-lhe que o destino do colonizado não lhe
diz respeito, que aquilo que o colonizado fizer de sua liber
dade não concerne senão ao próprio colonizado.
Então, nada mais compreende. Se quer ajudar o colo
nizado, é justamente porque seu destino lhe diz respeito,
porque seus destinos se cruzam, referem-se um ao outro,
porque espera continuar a viver na colônia. Não se pode
impedir de pensar com amargura que a atitude das pessoas
de esquerda na metrópole é bastante abstrata. Cer.tamente,
na época da resistência contra os nazistas, a única tarefa
que se impunha e que unia todos os combatentes era a li
bertação. Mas todos lutavam também por determinado fu
turo político. Se tivessem assegurado aos grupos de esquer
da, por exemplo, que o futuro regime seria teocrático e auto
ritário, ou, aos grupos de direita, que seria comunista, se ti
vessem compreendido que, por motivos sociológicos imperio
sos, seriam esmagados após a luta, teriam, uns e outros,
continuado a combater? Talvez; mas, teríamos julgado suas
hesitações, suas inquietações tão chocantes? O colonizador
de esquerda pergunta a si mesmo se não pecou por orgulho,
acreditando que o socialismo fosse exportável e o marxismo
45
universal. Nessa questão, confessa, julgava-se no direito de
defender sua concepção do mundo, de acordo com a qual
esperava orientar sua vida.
Um golpe ainda, porém: já que todo mundo parece es
tar de acordo, a esquerda metropolitana e o colonizado
(concordando curiosamente a esse respeito com o colonia
lista, que afirma a heterogeneidade das mentalidades) já
que todo mundo lhe acena “boa-tarde, Basile!”, submeter-
se-á. Defenderá a libertação incondicional dos colonizados,
com os meios dos quais se servem, e o futuro que parecem
ter escolhido. Um jornalista do melhor semanário da esquer
da francesa acabou por admitir que a condição humana pos
sa significar o Alcorão e a Liga árabe. O Alcorão, admite-
se; mas a Liga árabe! A justa causa de um povo deverá im
plicar suas mistificações e seus erros? Para não ser excluído
ou tornar-se suspeito, o colonizador de esquerda aceitará,
no entanto, todos os temas ideológicos dos colonizados em
luta: esquecerá provisoriamente que é de esquerda.
E acabou? Nada é menos certo. Porque, para conseguir
tornar-se um trânsfuga, como tinha resolvido afinal, não é
suficiente aceitar totalmente aqueles pelos quais deseja ser
adotado, é preciso ainda ser adotado por eles.
O primeiro ponto não deixava de envolver dificuldade
e contradição grave, pois precisaria abandonar aquilo pelo
que fazia tantos esforços: seus valores políticos. Nem tam
pouco uma quase utopia cuja possibilidade admitimos. O in
telectual ou o burguês progressista pode desejar que se ate
nue um dia aquilo que o separa dos seus camaradas de luta;
são características de classe às quais renunciaria de bom
grado. Mas, não aspira seriamente a mudar de língua, de
hábitos, de religião, etc. . . , mesmo pela paz de sua cons
ciência, mesmo pela sua segurança material.
O segundo ponto não é também muito fácil. Para que
se integre realmente no contexto da luta colonial, não é su
ficiente sua total boa vontade, é preciso ainda que sua ado
ção pelo colonizado seja possível: ora, ele desconfia que não
terá lugar na futura nação. Será a última descoberta, a mais
perturbadora para o colonizador de esquerda, aquela que faz
frequentemente às vésperas da libertação dos colonizados,
embora na verdade fosse previsível desde o começo.
46
I 1/ W V f» VAAJ ^ w /W I -
' Para compreender esse ponto, é preciso recordar este '■
traço essencial da natureza do fato colonial^a situação co
lonial^é^rêíaPçSo de povo com 'povõ. Ora, ele faz parte do
povo opressor e será, queira ou não, condenado a participar
do seu destino, como participou de sua fortuna. Se os seus,
os colonizadores, devessem um dia ser expulsos da colônia,
o colonizado não faria provavelmente exceção em seu favor:
se pudesse continuar a viver no meio dos colonizados, como
estrangeiro tolerado, suportaria, com os antigos colonizado
res, o rancor de um povo outrora por eles maltratado: se o
poderio da metrópole devesse, ao contrário, permanecer na
colônia, continuaria a recolher sua parte de ódio, malgrado
suas manifestações de boa vontade. A bem dizer, o estilo
de uma colonização não depende de um ou de alguns indi
víduos generosos ou lúcidos. As relações coloniais não de
pendem da boa vontade ou do gesto individual: existiam
antes de sua chegada ou de seu nascimento, quer as aceite
ou as recuse não as modificará profundamente: são elas, ao
contrário, que, como toda instituição, determinam a priori
seu lugar e o do colonizado e, em definitivo, suas verdadei
ras relações. Em vão, se tranqüilizará: "Sempre fui isso ou ,
aquilo com os colonizados”, desconfia, embora não seja de
modo algum culpado como indivíduo, que participa de uma
responsabilidade coletiva, enquanto' membro de um grupo
nacional opressor. Oprimidos como grupo, os colonizados
adotam fatalmente uma forma de libertação nacional e étni
ca, da qual ele não pode deixar de ser excluído. (
Como poderia impedir-se de pensar, uma vez mais, que
essa luta não é a sua? Por que lutaria por uma ordem social
na qual compreende, aceita e decide que não haverá lugar
para ele?
49
querendo rivalizar com os nacionalistas menos realistas, en
tregar-se-á a uma demagogia verbal, que, pelos próprios
exageros, aumentará a desconfiança do colonizado. Proporá
explicações tenebrosas e maquiavélicas dos atos do coloni
zador, onde o simples jogo da mecânica colonizadora seria
suficiente. Ou, para surpresa irritada do colonizador, des
culpará ruidosamente aquilo que este último condena em si
mesmo. Em suma, recusando o mal, o colonizador de boa
vontade jamais pode alcançar o bem, pois a única escolha
que lhe é permitida não é entre o bem e o mal, é entre o mal
e o mal-estar.
Não pode, enfim, deixar de interrogar-se sobre o efeito
de seus esforços e de sua voz. Seus acessos de furor verbal
não suscitam senão o ódio dos seus compatriotas e deixam
o colonizado indiferente. Porque não detém o poder, suas
afirmações e promessas não têm influência alguma na vida
do colonizado. Não pode, além disso, dialogar com o coloni
zado, apresentar-lhe questões ou pedir garantias. Inclui-se
entre os opressores e tão logo faz um gesto equívoco, per-
mite-se o menor reparo, e crê poder entregar-se à franqueia
que autoriza a benevolência — e ei-lo suspeito iroeúiata-
mente. Admite, além disso, que não deve confundir com
dúvidas, perguntas públicas, o colonizado em luta. Em suma,
tudo lhe fornece a prova de sua expatriação, de sua solidão
e de sua ineficácia. Descobrirá lentamente que nada mais
lhe resta senão calar-se. Já estava obrigado a entremear suas
declarações de silêncios necessários, para não indispor gra
vemente as autoridades da colônia e ser obrigado a deixar
o país. Será preciso confessar que esse silêncio com o qual
se dá muito bem, não o dilacera tanto assim? Que fazia, ao
contrário, esforço para lutar em nome de uma justiça abs
trata por interesses que não são os seus, que freqüentemente
excluiam mesmo os seus?
Se não pode suportar esse silêncio e fazer de sua vida
um permanente compromisso, se está entre os melhores, pode
acabar também por deixar a colônia e seus privilégios. E se
sua ética política lhe proíbe o que considera algumas vezes
um abandono, fará tanta coisa, condenará as autoridades,
até que seja “posto à disposição da metrópole”, segundo o
pudico jargão administrativo. Deixando de ser um coloni
zador, porá fim à sua contradição e ao seu mal-estar.
50
3
. . . O u O COLONIALISTA
51
tando sua situação, procura legitimar a colonização. Atitude
mais lógica, efetivamente mais coerente que a dança ator
m entada do colonizador que se recusa, e continua a viver
na colônia. Um tenta, em vão, pautar sua vida pela sua
ideologia; o outro sua ideologia pela sua vida, unificar e
justificar sua conduta. Em resumo, o colonialista é a voca
ção natural do colonizador.
É freqüente opor-se o imigrante ao colonialista de nas
cimento. O imigrante adotaria mais facilmente a doutrina
colonialista. M ais fatal, sem dúvida, é a transformação do
colonizador-nativo em colonialista. A influência familiar, os
interesses constituídos, as situações adquiridas de que vive
e dos quais o colonialismo é a ideologia, restringem sua liber
dade. N ão penso, contudo, que a distinção seja fundamen
tal. A condição objetiva de privilegiado-usurpador é idên
tica para os dois, para aquele que a herda ao nascer, e para
aquele que dela desfruta desde o desembarque. M ais ou me
nos rápida, mais ou menos aguda, sobrevém necessariamen
te a tomada de consciência do que são, do que se tornarão,
ao aceitar essa condição.
Já não é bom sinal ter decidido tentar a vida na colô
nia. Ao menos na maioria dos casos; como não é sinal posi
tivo esposar um dote. Sem falar do imigrante que está dis
posto, quando parte, a tudo aceitar; vindo expressamente
para gozar das vantagens da colônia. Este será colonialista
por vocação.
------- y
Seu modelo é corrente e seu retrato fácil de fazer. Ge
ralmente, o homem é jovem, prudente e policiado, sua espi
nha dorsal é flexível, seus dentes afiados. H aja o que hou
ver, ele tudo justifica, as pessoas nos cargos e o sistema.
Simulando nada ter visto da miséria e da injustiça que en
tram pelos olhos; empenhado apenas em conseguir seu lugar,
obter sua parte. O mais freqüente, aliás, é ter sido chamado
e enviado à colônia: um protetor o envia, um outro o rece
be, e seu lugar o espera. Mesmo que não tenha sido cha
mado, é rapidamente eleito. O tempo necessário para que
entre em ação a solidariedade colonizadora: pode-se deixar
mal um compatriota? Quantos deles vi, chegados na véspe
ra, tímidos e modestos, subitamente providos de um título
surpreendente, verem sua obscuridade iluminada por um
prestígio que os espanta a eles mesmos. Depois, sustentados/
pelo corpete de sua função social, levantam a cabeça e, logo,;1
adquirem tão desmesurada confiança em si mesmos que se
tornam estúpidos. Como não se felicitariam por terem ido /
para a colônia? Como não se convenceriam da excelência do
sistema que os faz ser o que são? Doravante, o defenderão
agresàivamente; acabarão por imaginá-lo justificado. Em
suma, transformaram-se em colonialistas.
Se a intenção não era tão nitida, o desfecho não é di
ferente no colonialista por persuasão. Funcionário lá nomea
do por acaso, ou primo a quem o primo oferece asilo, pode
mesmo ser de esquerda ao chegar e transformar-se irresis
tivelmente, pelo mesmo mecanismo fatal, em colonialista in
tratável ou dissimulado. Como se lhe bastasse atravessar o
mar, como se tivesse apodrecido de calor!
Inversamente, entre os colonizadores-nativos, se a
maioria se agarra à chance histórica e a defende a todo pre
ço, existem alguns que percorrem o itinerário oposto, re
cusando a colonização ou acabando mesmo por deixar a co
lônia. A maior parte das vezes, são os muito jovens, os mais
generosos, os mais abertos, que,, ao sair da adolescência,
decidem não fazer sua vida de homem na colônia. Nos dois
casos, os melhores vão embora. Seja por ética: não supor
tando serem beneficiários da injustiça quotidiana. Seja sim
plesmente por orgulho: porque se julgam de melhor quali
dade que o colonizador médio. Fixam-se em outras ambições
e em outros horizontes que não são os da colônia e que, ao
contrário do que se crê, são muito limitados, por demais
previstos, depressa esgotados por indivíduos com alguma
personalidade. Nos dois casos, a colônia não pode reter os
melhores: os que estão de passagem e se vão, ao esgotar o
contrato, indignados ou irônicos e desabusados: nativos, que
não suportam o jógo trapaceado, onde é fácil demais ser
bem sucedido, onde não se pode dar sua plena medida.
‘‘Os colonizados bem sucedidos são habitualmente su
periores aos europeus da mesma categoria, confessava-me
com amargura um presidente de júri. Podemos estar conven
cidos, como eles o estão, de que o mereceram".
53
A M ediocridade
Essa constante filtração do grupo colonizador explica
um dos traços mais freqüentes no colonialista: sua medio
cridade.
A impressão se agrava por uma decepção talvez ingê
nua: o desequilíbrio é por demais flagrante entre o presti
gio, as pretensões e as responsabilidades do colonialista e
suas capacidades reais, os resultados de sua ação. Não po
demos evitar, quando nos aproximamos da sociedade colo
nialista, a expectativa de encontrar uma elite, ao menos uma
seleção, os melhores técnicos por exemplo, os mais eficazes
ou os mais seguros. Essas pessoas ocupam, quase todas e
por toda a parte, de direito ou de fato, os primeiros luga
res. Sabem disso e reivindicam as deferências e as honras.
A sociedade colonizadora quer ser uma sociedade dirigente
e se empenha em ter essa aparência. As recepções aos dele
gados metropolitanos lembram muito mais as de um chefe
de governo que as de um prefeito. O menor percurso moto
rizado é precedido por uma série de motociclistas imponen
tes, estrepitosos e sibilantes. Nada se economiza a fim de
impressionar o colonizado, o estrangeiro e talvez o próprio
colonizador.
Ora, olhando mais de perto, não descobrimos, em ge
ral, além do fausto ou do simples orgulho do pequeno colo
nizador, senão homens de pequena estatura. Políticos, en
carregados de modelar a história, quase sem conhecimentos
históricos, sempre surpresos com os acontecimentos, re
cusando os fatos ou incapazes de prever. Especialistas, res
ponsáveis pelo destino de um país e que se revelam técnicos
fora de combate, já que toda competição lhes é poupada.
Quanto aos administradores, um capítulo deveria ser escrito
sobre desleixo e a indigência da gestão colonial. É preciso
dizer, em verdade, que a melhor gestão da colônia não faz
parte, de modo algum, dos propósitos da colonização.
Como não há uma raça de colonizadores nem de colo
nizados, é preciso realmente descobrir outra explicação para
a surpreendente carência dos senhores da colônia. Já assinala
mos a hemorragia dos melhores; hemorragia dupla, de nativos
e de pessoas em trânsito. Esse fenômeno é seguido por outro,
complementar e desastroso: os medíocres, esses permane-
54
cem, e o resto da vida. Não esperavam tanto. Uma vez ins
talados, evitarão por todos os meios perder seu lugar; salvo
se lhe propuserem um melhor, o que só pode acontecer na
colônia. Eis porque, contrariamente ao que se diz, e salvo
em alguns postos móveis por definição, o pessoal colonial
é relativamente estável. A promoção dos medíocres não é
um erro provisório, porém uma catástrofe definitiva, da qual
a colônia nunca se recompõe. As aves de arribação, mesmo
animadas por muita energia, jamais chegam a transformar
a fisionomia, ou simplesmente a rotina administrativa das
prefeituras coloniais.
Essa seleção gradual de medíocres, que se opera neces
sariamente na colônia, é ainda agravada pela exigüidade do
campo de recrutamento. Somente o colonizador é convoca
do, pelo nascimento, de pai para filho, de tio a sobrinho, de
primo a primo, por uma legislação exclusivista e racista, à
direção dos negócios da cidade. A classe dirigente, oriunda
exclusivamente do grupo colonizador, de longe o menos
numeroso, não se beneficia, pois, senão de uma ventilação
irrisória. Ocorre uma espécie de estiolamento por consan
güinidade administrativa, se assim podemos dizer.
É o medíocre, enfim, que impõe o tom geral da colô
nia. É ele o verdadeiro parceiro do colonizado, pois é quem
tem mais necessidade de compensação e da vida colonial. É
entre ele e o colonizado que se criam as relações coloniais
mais típicas. Apega-se tanto mais firmemente a essas rela
ções, ao fato colonial, ao seu statu quo, quanto mais sua
existência colonial — ele o pressente — delas depende. Com
prometeu-se a fundo e definitivamente com a colônia.
De sorte que, se todo colonialista não é um medíocre,
todo colonizador deve aceitar, até certo ponto, a mediocri
dade da vida colonial, deve transigir com a mediocridade da
maioria dos homens da colonização.
O C omplexo de N ero
55
Por ter decidido confirmar o fato colonial, o colonialista
nem por isso suprimiu as dificuldades objetivas. A situação
colonial impõe a todo colonizador dados econômicos, políti
cos e afetivos, contra os quais pode insurgir-se, sem conse
guir jamais desvencilhar-se deles, pois constituem a própria
essência do fato colonial. E, bem cedo, o colonialista desco
bre sua própria ambigüidade.
Aceitando-se como colonizador, aceita, ao mesmo tem
po, embora tenha decidido ir além, o que esse papel implica
em condenação, aos olhos dos outros e aos seus próprios.
Essa decisão não lhe traz, de forma alguma, uma bem-aven
turada e definitiva tranqüilidade de alma. Ao contrário, o
esforço que fará para superar essa ambigüidade será uma
das chaves para a sua compreensão. E as relações humanas
na. colônia talvez tivessem sido melhores, menos ruinosas
para o colonizado, se o colonialista se houvesse convencido
da sua legitimidade. Em suma, o problema apresentado ao
colonizador que se recusa é o mesmo com que se defronta
o colonizador que se aceita. Somente suas soluções diferem:
a do colonizador que se aceita, transforma-o infalivelmente
em colonialista.
Dessa assunção de si mesmo e de sua situação, vão de
correr, com efeito, vários traços que podemos agrupar em
um conjunto coerente. Essa constelação, propomos chamá-
la: o papel do usurpador (ou ainda o complexo de N e ro ).
Aceitar-se como colonizador, seria essencialmente, dis
semos, aceitar-se como privilegiado não legítimo, quer dizer,
como usurpador. O usurpador, sem dúvida, reivindica seu
lugar e, se fôr necessário, o defenderá por todos os meios.
Admite, porém, que reivindica um lugar usurpado. Isto é, no
momento mesmo que triunfa, admite que triunfa dele mesmo
uma imagem que condena. Sua vitória de fato, portanto, ja
mais o satisfará: resta-lhe inscrevê-la nas leis e na moral.
Ser-lhe-ia necessário para isso convencer os outros, senão
ele mesmo. Tem necessidade, em suma, para desfrutá-la
completamente, de lavar-se de sua vitória, e das condições
nas quais foi alcançada. Daí seu encarniçamento, surpreen
dente por parte de um vencedor, em aparentes futilidades:
esforça-se por falsificar a história, faz reescrever os textos,
apagaria memórias. Não importa o quê, a fim de conseguir
transformar sua usurpação em legitimidade.
56
Como? Como pode a usurpação tentar passar por legi
timidade? Duas operações parecem possíveis: demonstrar os
méritos eminentes do usurpador, tão eminentes que clamam
por semelhante recompensa; ou insistir nos deméritos do
usurpado, tão graves que não podem senão suscitar tal des
graça. E esses dois esforços são de fato inseparáveis. Sua in
quietude, sua sede de justificação exigem do usurpador, ao
mesmo tempo, que se eleve a si mesmo até as nuvens e que
afunde o usurpado mais baixo que a terra.
Além disso, tal complementaridade não esgota a rela-'
ção complexa desses dois movimentos. É preciso acrescentar
que, quanto mais o usurpado é esmagado, mais o usurpador
triunfa na usurpação; e, por conseguinte, confirma-se na sua
culpabilidade e na própria condenação: então, o jogo do
mecanismo se acentua, cada vez mais, aumentando sem ces
sar, agravado pelo próprio ritmo. No fim, o usurpador ten
tará fazer desaparecer o usurpado, cuja simples existência
o coloca como usurpador, cuja opressão cada vez mais pe
sada o torna, a si mesmo, cada vez mais opressor. Nero, fi
gura exemplar do usurpador, é levado assim a atormentar
raivosamente Britanicus, a persegui-lo. Quanto mais mal lhe
fizer, no entanto, mais coincidirá com o papel atroz que es
colheu. E, quanto mais afundar-se na injustiça, mais detes
tará Britanicus e mais procurará atingir sua vítima, que o
transforma em carrasco. Não satisfeito em lhe ter roubado
o trono, tentará arrebatar-lhe o único bem que lhe resta, o
amor de Junia. Não se trata nem de puro ciúme nem de
perversidade, mas dessa fatalidade interior da usurpação,
que o arrasta irresistivelmente a esta suprema tentação: a
supressão moral e física do usurpado.
No caso do colonialista, porém, esse limite encontra em
si mesmo sua própria regulação. Se pode desejar obscura-
mente — acontece-lhe proclamá-lo — riscar o colonizado do
mapa dos vivos, seria impossível fazê-lo sem atingir-se a «I
mesmo. Para alguma coisa serve a infelicidade: a exi.stêiu la
do colonialista está por demais ligada à do colonizado, |n
mais poderá superar essa dialética. Precisa negar, com Imlan
suas forças, o colonizado e, ao mesmo tem po, a « sIiICm
cia de sua vítima lhe é indispensável para continuai a m i o
que é. Desde que escolheu manter o sistema roloulal, deva
procurar defendê-lo com mais vigor do que lhe «eiln u»*.**
V
sário para recusá-lo. Desde que tomou consciência da injus
ta relação que o une ao colonizado, é preciso que se empe
nhe sem tréguas em absolver-se. Nunca se esquecerá de
fazer alarde de suas próprias virtudes, defender-se-á com
raivosa obstinação a fim de parecer heróico e grande, me
recendo plenamente sua fortuna. Ao mesmo tempo, devendo
seus privilégios tanto à sua glória quanto ao aviltamento do
colonizado, obstinar-se-á em aviltá-lo. Utilizará para des
crevê-lo as cores mais sombrias; agirá, se fôr preciso, para
desvalorizá-lo, para anulá-lo. Mas não sairá jamais deste
círculo: é preciso explicar a distância que a colonização es
tabelece entre ele e o colonizado; ora, a fim de justificar-se,
é levado a aumentar mais ainda essa distância, a opor irre
mediavelmente as duas figuras, a sua tão gloriosa, a do co
lonizado tão desprezível.
Os Dois R etratos
58
por sua situação social, seu meio familiar, suas amizades
naturais, poderia ter sido um democrata, transformar-se-á
certamente em conservador, em reacionário ou mesmo em
fascista colonial. Não pode deixar de aprovar a discrimina
ção e a codificação da injustiça, alegrar-se-á com as tortu
ras policiais e, se preciso fôr, convencer-se-á da necessidade
do massacre. Tudo o levará a isso, seus novos interesses,
suas relações profissionais, seus laços familiares e de ami
zade estabelecidos na colônia. O mecanismo é quase fatal:
a situação colonial fabrica colonialistas, como fabrica colo
nizados .
O D esprezo de Si
O P atriota
60
ral. Assim, de uma só vez, terá afirmado que pertence a
esse universo afortunado, sua ligação negativa, natural com
a metrópole, e a impossibilidade de o colonizado participar
desses esplendores, sua radical heterogeneidade, ao mesmo
tempo infeliz e desprezível.
Essa eleição, essa graça, o colonialista quer, além do
mais, merecê-la todos os dias. Apresenta-se, lembra-o fre
qüentemente, como um dos membros mais conscientes da co
munidade nacional; finalmente um dos melhores. Pois é re
conhecido e fiel. Sabe, ao contrário do metropolitano, cuja
felicidade jamais é ameaçada, o que deve à sua origem. Sua
fidelidade é, no entanto, desinteressada; seu afastamento
mesmo o atesta — não se macula com todas as mesquinha
rias da vida quotidiana do metropolitano que deve tudo ar
rancar pela malícia e a combinação eleitoral. Seu puro fer
vor pela pátria faz dele, enfim, o verdadeiro patriota, aquele
que melhor a representa, e naquilo que ela tem de mais
nobre.
É verdade que em certo sentido pode levar a que nisso
se acredite. Ama os símbolos mais vistosos, as manifesta
ções mais eloqüentes do poderio de seu país. Assiste a todos
os desfiles militares, que deseja e obtém constantes e impo
nentes; contribui com sua parte, pavoneando-se com disci
plina e ostentação. Admira o exército e a força, respeita os
uniformes e cobiça as condecorações. Encontramos aqui o
que se costuma chamar a politica de prestígio; que não de
corre apenas de um princípio econômico ( “mostrar a força
a fim de não precisar dela servir-se” ), mas corresponde a
uma profunda necessidade da vida colonial; trata-se tanto
de impressionar o colonizado quanto de tranqüilizar-se a si
mesmo.
Em compensação, tendo-lhe confiado a delegação e o
peso de sua grandeza desfalecente, confia em que a metró
pole corresponda à sua esperança. Exige que mereça sua
confiança, que lhe devolva essa imagem dela mesma que ele
deseja: ideal inacessível ao colonizado e perfeita justifica
tiva de seus méritos de empréstimo. Freqüentemente, de
tanto esperar, acaba por acreditar um pouco nessas imagens.
Os recém-chegados, de memória ainda fresca, falam da me
trópole com muito mais justeza do que os velhos colonialis
tas. Nas suas comparações, inevitáveis, entre os dois países,
61
as colunas crédito e débito podem ainda rivalizar. O colo
nialista parece ter esquecido a realidade viva do seu país de
origem. Com o correr dos anos, edificou, em oposição à co
lônia, tamanho monumento da metrópole, que aquela lhe
- parece necessariamente irrisória e vulgar. É notável que,
mesmo para os colonizadores nascidos na colônia, quer di
zer, fisicamente harmonizados com ela, adaptados ao sol, ao
calor, à terra seca, a paisagem de referência permanece bru
mosa, úmida e verde. Como se a metrópole fosse uma com
ponente essencial do “super-ego” coletivo dos colonizadores,
suas caracteristicas objetivas tornam-se qualidades quase
éticas. Não se discute, a bruma é superior em si mesma ao
pleno sol e o verde ao ocre. A metrópole, pois, só reúne
positividades, a amenidade do clima e a harmonia das pai
sagens, a disciplina social e uma deliciosa liberdade, a bele
za, a moral, e a lógica.
Seria ingénuo, no entanto, responder ao colonialista
que deveria retornar o mais depressa possível a esse uni
verso maravilhoso, reparar o erro de tê-lo deixado. Desde
quando nos instalamos quotidianamente na virtude e na
beleza? O próprio de um “super-egçí!5 é precisamente não
ser vivido, reger de longe, sem ser jamais atingido,"5~cÕS*-
duta prosaica e atormentada dos homens de carne e osso.
A metrópole só é tão grande porque está além do horizonte
e porque permite valorizar a existência e a conduta do co
lonialista. Se voltasse para lá, ela perderia sua sublimida
de: e ele, deixaria de ser um homem superior; se é tudo na
çolônia, o colonialista sabe que na metrópoTe~hada seria;_Já
/voltaria a ser um homem qualquer. De fato, a noção da me
trópole é comparativa: reduzida a si mesma, se desvanece
ria e arruinaria ao mesmo tempo a super-humanidade do
colonialista. É na colônia, somente, porque possui uma me
trópole e seus coabitantes não a possuem, que o colonialista
é temido e admirado. Como deixaria o único lugar do mundo
no qual, sem ser um fundador de cidade ou um grande mi
litar, ainda pode batizar cidades e legar seu nome à geogra
fia? Sem nem mesmo temer o simples ridículo ou a cólera
dos habitantes, cuja opinião não conta; onde todos os dias
faz a prova eufórica de seu poder e de sua importância?
62
O C onservador
A T entação F ascista
63
3 t j ^ ' c o l ô n i a não tem ^outros fin . As relações humanas
resultam de uma exploração' tao intensa quanto possível,
fundam-se na desigualdade e no desprezo, garantidas pelo
autoritarismo policial, Não há dúvida alguma, para quem
o viveu, que o colonialTsmo & UH15 Vaneáade do fascismoT
Nao nos devemos surpreender muito que TnstTfmçoés qüe
dependem, afinal de contas, de um poder central liberal,
f possam ser tão diferentes das da metrópole. Essa fisionomia
' totalitária, que assumem nas suas colônias regimes freqüen
temente democráticos, não é aberrante senão na aparência:
representados junto ao colonizado pelo colonialista, não po
dem ter outra.
Não é também de espantar que o fascismo colonial difi
cilmente se limite apenas à colônia. Um câncer não deseja
senão expandir-se. O colonialista não pode deixar de man
ter as tendências e os governos opressivos e reacionários, ou
ao menos conservadores. Aquelas que manterão o estatuto
atual da metrópole, condição do seu, ou melhor, as que as
segurarão mais firmemente as bases da opressão. E, sendo
melhor prevenir que remediar, como não seria tentado a
provocar o nascimento de tais governos e de tais regimes?
Se acrescentamos que seus recursos financeiros, e, portanto,
políticos são desmedidos, compreendemos que represente
para as instituições centrais um perigo permanente, uma bol
sa de veneno ameaçando sempre envenenar todo o organis
mo metropolitano.
Mesmo, enfim, que nunca se mexesse, sua simples exis
tência, a do sistema colonial, proporiam seu constante exem
plo às hesitações da metrópole; sedutora extrapolação de
um estilo político, onde as dificuldades são resolvidas pela
completa servidão dos governados. Não é exagerado dizer-
se que, assim como a situação colonial apodrece o europeu
das colônias, o colonialista é um germe de apodrecimento da
metrópole.
64
mais geral de suas relações com a metrópole. Certamente,
canta sua glória e se agarra a ela, até paralisá-la, afundá-la
se for oreciso. Mas, ao mesmo tempo, nutre contra a me
trópole e os metropolitanos um profundo ressentimento.
Até aqui, notamos apenas o privilégio do colonizador1
em relação ao colonizado. De fato, o europeu das colônias1
-sabe-se duplamente privilegiado: em" Félaçãõ ãõ colonizado
e ao metropolitano. As regalias coloniais significam, também
que, em niveis equivalentes, o funcionário recebe mais, o
comerciante paga menos impostos, o industrial paya ma
barato matéria-prima e mão-de-obra, que seus homólogos
m'tropolitanos. Assim como é consubstanciai à existência
do colonizado, o privilégio colonial é função da metrópole
e dos metropolitanos, O colonialista não ignora que obriga
a metrópole a manter um exército, que se a colônia para ele
só representa vantagens, custa ao metropolitano mais do que
lhe rende.
E, assim como a natureza das relações entre coloniza
dor e colonizado deriva de suas relações econômicas e so
ciais, as relações entre colonizador e metropolitano são tri
butárias de suas situações recíprocas. O colonizador~nao se
orgulha das dificuldades quotidianas de seu compatriota, dos
impostos que pesam sobre ele e dos seus medíocres proven
tos. Volta de. .sua.-viagem- —anual—perturbado, descontente
çonsigo mesmo e furioso com o metropolitano. Foi necessá
rio, como das outras vezes, responder a insinuações ou mes
mo a francos ataques, utilizar o arsenal, tão pouco convin
cente, dos perigos do sol africano e das doenças do apare
lho digestivo, invocar em seu socorro a mitologia dos heróis
de capacete colonial. Não falam mais^tampouco, a mesma
linguagem política: da mesma classe, o colonialismo está
naturalmente mais à direita que o metropolitano. Um cama
rada chegado há pouco falava-me de seu ingênuo espanto:
não compreendia porque os jogadores de bola, S .F .I.O . ou
radicais na metrópole, são reacionários ou fascistizantes na
colônia.
Existe, enfim, um antagonismo real, com fundamento
político e econômico, entre o colonialista e o metropolitano.
E, a esse respeito, o colonialista tem toda razão em falar
de sua expatriação na metrópole: não tem mais os mésmo
65
interesses de seus compatriotas. Em certa medida, não faz
mais parte dela.
Essa dialética exaltação-ressentimento, que une o colo
nialista à sua pátria, matiza singularmente a qualidade de
seu amor por ela. Tem, sem dúvida, a preocupação de apre
sentar dela a imagem mais gloriosa, mas esse movimento é
viciado por tudo aquilo que espera da metrópole. E, se nun
ca relaxa seu esforço patriótico, se multiplica as lisonjas,
esconde mal sua cólera e seu despeito. Deve velar sem tré
gua, intervir se necessário, a fim de que a metrópole con
tinue a manter as tropas que o protegem, guarde os hábitos
políticos que o toleram, conserve, enfim, a imagem que lhe
convém e que possa opor ao colonizado. E os orçamentos
coloniais serão o preço pago pelas metrópoles, persuadidas
da discutível grandeza de serem metrópoles.
A R ecusa do C olonizado
66
fúteis, em monstros vociferantes. As acusações mais absur
das são levantadas contra o colonizado. Confiou-me um ve
lho médico, com uma mistura de mau humor e gravidade,
que o “colonizado não sabe respirar”; um professor expli
cou-me sabiamente que: “Aqui, não se sabe andar, dão pe
quenos passos, não permitem avançar”, daí essa impressão
de marcar passo, característica, parece, das ruas da colônia.
A desvalorização do colonizado estende-se, assim, a tudo
aquilo que o toca. Ao seu país, que é feio, quente demais,
absurdamente frio, mal cheiroso, de clima vicioso, de geo
grafia tão desesperada que o condena ao desprezo e à po
breza, à dependência até a eternidade.
Esse aviltamento do colonizado, que deve explicar seu
desamparo, serve também de alavanca à positividade do
colonialista. Essas acusações, esses julgamentos irremedia
velmente negativos, são sempre proferidos com referência à
metrópole, quer dizer, vimos por qual paráfrase, com refe
rência ao próprio colonialista. Comparações morais ou so
ciológicas, estéticas ou geográficas, explícitas, insultantes
ou alusivas e discretas, mas sempre a favor da metrópole
do colonialista. Aqui, o povo daqui, os costumes deste país,
são sempre inferiores, e muito, em virtude de uma ordem
fatal e preestabelecida.
Essa recusa da colónia e do colonizado terá graves con
seqüências na vida e no comportamento do colonizado. Mas
provoca também um efeito desastroso na conduta do colo
nialista. Tendo assim definido a colônia, não atribuindo mé
rito algum à cidade colonial, não reconhecendo nem suas
tradições, nem suas leis, nem seus costumes, não pode admi
tir fazer parte dela. Recusa considerar-se cidadão com di
reitos e deveres, como não admite que seu filho o possa
tornar-se. Além disso, se pretende estar indissoluvelmente /
ligado à sua pátria de origem, lá não vive, não participa da '
consciência coletiva de seus compatriotas, e não é quotidia
namente por eles influenciado. O resultado dessa dupla,
porém negativa, referência sociológica é que o colonialista
é civicamente aéreo. Navega entre uma sociedade distante,
que quer sua, mas que se torna até certo ponto mítica; e
uma sociedade presente, que recusa e mantém assim na
abstração.
67
Pois não é, bem entendido, a aridez do pais ou a falta
de graça das cidades coloniais,, que explica a recusa do co
lonialista. É, ao contrário, porque não o adotou, ou não
podia adotá-lo, que o país permanece árido, construção de
um desesperador utilitarismo. Por que nada faz, por exem
plo, pelo urbanismo? Quando se queixa da presença de um
lago pestilento às portas da cidade, de esgotos que trans
bordam, ou de serviços que funcionam mal, finge esquecer-
se de que detém o poder administrativo, que deveria culpar-
se a si mesmo. Por que não concebe, ou não pode conceber,
seu esforço desinteressadamente? Toda municipalidade, nor
malmente oriunda de seus administrados, preocupa-se não
apenas com seu bem-estar, mas também com seu futuro, sua
, posteridade; seu esforço inscreve-se em uma duração, a da
' cidade. O colonialista não faz coincidir seu futuro com o da
colônia, sô está aqui de passagem, não investe senão o que
rende a curto prazo. A verdadeira razão, a principal razão
da maior parte de suas carências é esta: o colonialista ja
mais decidiu-se a transformar a colônia à imagem da me
trópole, e o colonizado à sua imagem. Não pode admitir tal
adequação, que destruiria o princípio de seus privilégios.
O R acismo
68
ricos. Aquele que se sabe em má postura ideológica ou éti
ca, gaba-se, em geral, de ser um homem de ação, que retira
suas lições da experiência. O colonialista tem muita dificul
dade em construir seu sistema de compensação para não des
confiar da discussão. Seu racismo é vivido, quotidiano; mas
nem por isso sai perdendo. Ao lado do racismo colonial o
dos doutrinários europeus parece transparente, congelado
em idéias, à primeira vista quase sem paixão. Conjunto de
condutas, de reflexos adquiridos, exercidos desde a primeira
infância, valorizado pela educação, o racismo colonial está tão
espontaneamente incorporado aos gestos, às palavras, mes
mo as mais banais, que parece constituir uma das mais sóli
das estruturas da personalidade colonialista. A freqüência
de sua intervenção, sua intensidade nas relações coloniais
seria, no entanto, estarrecedora, se não soubéssemos até que
ponto ajuda o colonialista a viver e permite sua integração
social. Um esforço constante do colonialista consiste em
explicar, justificar e manter, tanto pela palavra quanto pela
conduta, o lugar e o destino do colonizado, seu parceiro no
drama colonial. Quer dizer, em definitivo, em explicar, jus
tificar e manter o sistema colonial e, portanto, seu próprio
lugar. Oxa, a análise da atitude racista revela três elementos
imporjtantes:
evidência as diferenças entre
69
costumes, fato histórico ou geográfico, que caracteriza o co
lonizado e o opõe ao colonizador, é preciso impedir que o
fosso possa ser tapado. O colonialista retirará o fato da
história, do tempo, e portanto de uma possível evolução. O
fato sociológico é batizado biológico, ou melhor, metafísico.
Afirma-se que pertence à essência do colonizado. De um
golpe, a relação colonial entre o colonizado e o colonizador,
fundada na maneira de ser, essencial, dos dois protagonis
tas, torna-se uma categoria definitiva. É o que é porque eles
são o que são e nem um nem outro jamais m udará.
Tornamos a encontrar a intencionalidade de toda polí
tica colonial. Eis aqui duas ilustrações. Contrariamente ao
que se pensa, o colonialista jamais favoreceu seriamente a
conversão religiosa do colonizado. As relações entre a Igre
ja (católica ou protestante) e o colonialismo são mais com
plexas do que se afirma entre as pessoas de esquerda. A
Igreja ajudou muito o colonialista, é verdade; caucionando
seus empreendimentos, dando-lhe boa consciência, contri
buindo para que se aceitasse a colonização, inclusive pelo
colonizado. Mas, para a Igreja, essa foi apenas uma aliança
acidental e rendosa. Hoje, que o colonialismo se revela pe
recível, e se torna comprometedor, ela se desliga em toda
parte; não o defende mais, quando já não começa a atacá-lo.
Em suma, serviu-se dele como ele se serviu dela, mas sem
pre preservou seu objetivo proprio. Inversamente, se o colo
nialista recompensou a Igreja por sua.ajuda, outorgando-lhe
importantes privilégios, terrenos, subvenções, um lugar ina
dequado a seu papel na colónia, jamais desejou que fosse
bem sucedida: isto é, que conseguisse a conversão de todos
os colonizados. Se o tivesse realmente querido, teria permi
tido à Igreja realizar seu sonho. Dispunha, principalmente
no começo da colonização, de total liberdade de ação, de
um poder de pressão ilimitado, e de uma ampla cumplicidade
internacional.
O colonialista, porém, não podia favorecer um empre
endimento que contribuísse para o enfraquecimento da rela
ção colonial. A conversão do colonizado à religião do colo
nizador teria sido uma etapa no caminho da assimilação.
Esta é uma das razões pélas quais as missões coloniais ma
lograram .
70
Outro exemplo: não há redenção social e tampouco sal
vação mística para o colonizado. Assim não pode livrar-se
de sua condição pela conversão religiosa, não lhe será per
mitido deixar seu grupo social para unir-se ao grupo colo
nizador .
Toda opressão, na verdade, visa globalmente um agru
pamento humano, e, a priori, todos os indivíduos enquanto
membros desse grupo são por ela atingidos anonimamente.
Ouve-se freqüentemente afirmar que os operários, quer di
zer todos os operários, são portadores de tais defeitos e de
tais taras. A acusação racista, levantada contra os coloni
zados, só pode ser coletiva, e todo colonizado sem exceção
deve por ela responder. Admite-se, no entanto, que a opres
são operária comporte uma saída: teoricamente ao menos,
um operário pode deixar sua classe e mudar de condição
social. Ao passo que, no quadro da colonização, nada pode
rá salvar o colonizado. Jamais poderá passar para o clã dos
privilegiados; mesmo que ganhasse mais dinheiro que eles,
conseguisse todos os títulos, aumentasse infinitamente seu
poder.
Comparamos a opressão e a luta colonial à luta de
classes. A relação coloni2 ador-colonizado, de povo para
povo, no seio das nações, pode lembrar com efeito a relação
burguesia-proletariado, no seio de uma nação. Mas é preciso
mencionar, além disso, -a impenetrabilidade quase absoluta
dos grupamentos coloniais. Nesse,sentido mobilizam-se todos
os esforços do colonialista; e o racismo é, a esse respeito, a
arma mais segura: a passagem torna-se, com efeito, impos
sível, e toda revolta absurda.
O racismo aparece, assim, não como pormenor mais ou
menos ocidental, porém, como elemento consubstanciai do
colonialismo. É a melhor expressão do fato colonial, e um
dos traços mais significativos do colonialista. Não apenas
estabelece a discriminação fundamental entre colonizador e
colonizado, condição sine qua non da vida colonial, mas fun
da sua imutabilidade. Somente o racismo permite colocar na
eternidade, substantivando-a, uma relação histórica que co
meçou em certa data. Donde o extraordinário desenvolvi
mento do racismo na colônia; a coloração racista da menor
71
atitude, intelectual ou prática, do colonialista e mesmo de
todo colonizador. E não apenas dos homens da rua: um psi
quiatra de Rabat ousou afirmar-me, após vinte anos de exer
cício, que as neuroses norte-africanas explicam-se pela alma
norte-africana.
Esta alma ou esta etnia ou este psiquismo explica as
instituições de outro século, a ausência de desenvolvimento
técnico, a necessária sujeição política, a totalidade do drama
enfim. Demonstra luminosamente que a situação colonial era
irremediável e será definitiva.
A A uto -A bsolvição
72
— que não é nem o menos hábil nem o menos rendoso. Pois
o paternalismo mais generoso se irrita desde que o coloni
zado reclame, seus direitos sindicais, por exemplo. Se perdoa
sua dívida, se sua mulher cuida do colonizado, trata-se de
dons, jamais de deveres. Se admitisse ter deveres, teria que
reconhecer que o colonizado tem direitos. Ora, está enten
dido, por tudo aquilo que precede, que não tem deveres, que
o colonizado não tem direitos.
Tendo instaurado esta nova ordem moral, na qual, por
definição, é senhor e inocente, o colonialista ter-se-ia enfim
dado a absolvição. É preciso ainda que essa ordem não seja
posta em questão pelos outros e principalmente pelo colo
nizado.
73
II
RETRATO
DO COLONIZADO
I
N ascimento do M ito
77
dialética enobrecimento do colonizador-aviltamento do colo
nizado. Além disso, é economicamente proveitosa.
Nada poderia legitimar melhor o privilégio do coloni
zador que seu trabalho; nada poderia justificar melhor o
desvalimento do colonizado que sua ociosidade. O retrato
mítico do colonizado conterá então uma inacreditável pregui
ça. O do colonizador o gosto virtuoso da ação. Ao mesmo
tempo, o colonizador sugere que o emprego do colonizado
é pouco rendoso, o que autoriza os salários inverossímeis.
Pode parecer que a colonização teria ganho se dispu
sesse de pessoal capacitado. Nada é menos certo. O operá
rio qualificado trazido pelos colonizadores, exigiria salário
três ou quatro vezes superior àquele com o qual se contenta
o colonizado; não produz, porém, três ou quatro vezes mais
que este, nem em quantidade nem em qualidade; é mais eco
nômico, pois, utilizar três colonizados do que um europeu.
Toda empresa requer especialistas, certamente, porém um
mínimo, que o colonizador importa ou recruta entre os seus.
Sem contar o tratamento especial, a proteção legal, justa
mente exigidos pelo trabalhador europeu. Ao colonizado não
se pede senão seus braços, e ele não é senão isso: além dis
so, esses braços são tão mal cotados, que pode-se alugar
três ou quatro pares deles pelo preço de um só.
Ao ouvi-lo, aliás, descobre-se que o colonizador não
está tão aborrecido assim com essa preguiça, suposta ou
real. Fala dela com uma complacência bem-humorada, diver
te-se com ela; retoma todas as expressões habituais e as
aperfeiçoa, e com elas inventa outras. Nada é suficiente
para caracterizar a extraordinária deficiência do colonizado.
A esse respeito torna-se lírico, de um lirismo negativo: o co
lonizado não tem um pêlo na mão, porém uma bengala, uma
árvore, e que árvore! um eucaliptus, uma tuia, um carvalho
centenário da América! uma árvore? não, uma floresta, etc.
Mas, insistirão, o colonizado é realmente preguiçoso?
A questão, a bem dizer, está mal proposta. Além de ser ne
cessário definir um ideal de referência, uma norma, variável
de um povo a outro, será possível acusar de preguiça a um
povo todo? Pode-se suspeitar, a esse respeito, de indivíduos,
mesmo numerosos, em um mesmo grupo; perguntar se seu
rendimento não é medíocre; se a subalimentação, os baixos
78
salários, o futuro bloqueado, uma significação irrisória de
seu papel social, não desinteressa o colonizado de sua tare
fa. O que é suspeito, é que a acusação não visa apenas o
trabalhador agrícola ou o habitante dos “bidonvilles”, mas
também o professor, o engenheiro ou o médico que dão as
mesmas horas de trabalho que seus colegas colonizadores,
enfim todos os indivíduos do agrupamento colonizado. Sus
peita é a unanimidade da acusação e a globalidade de seu
objeto; de sorte que colonizado algum dela se salva, e nem
poderia jamais salvar-se. Quer dizer: a independência da
acusação de quaisquer condições sociológicas e históricas.
De fato, não se trata absolutamente de uma anotação
objetiva, diferenciada, pois, sujeita então a prováveis trans
formações, porém de uma instituição: pela sua acusação, o
colonizador institui o colonizado como ser preguiçoso. De
cide que a preguiça é constitutiva da essência do colonizado.
Isto posto, torna-se evidente que o colonizado, seja qual fôr
a função que assuma, seja qual fôr o zelo que manifeste,
nunca seria nada mais do que um preguiçoso. Voltamos sem
pre ao racismo, que é bem uma substantificação, em proveito
do acusador, de um traço real ou imaginário do acusado.
É possível retomar a mesma análise a propósito de cada
um dos traços atribuídos ao colonizado.
Quando o colonizador afirma, em sua linguagem, que
o colonizado é um débil, sugere com isso que tal deficiência
reclama proteção. Daí, sem rir — escutei-o frequentemente
.— a noção do protetorado. É do próprio interesse do colo
nizado ser excluído das funções de direção; e que essas pe
sadas responsabilidades sejam reservadas ao colonizador.
Quando o colonizador acrescenta, para não cair na solicitu
de, que o colonizado é um retardado perverso, de maus ins
tintos, ladrão, um pouco sádico, legitima sua polícia e sua
justa severidade. É preciso defender-se das perigosas tolices
de um irresponsável; e também, preocupação meritória, de-
fendê-lo contra ele mesmo! Assim também quanto à ausên
cia de necessidades do colonizado, sua inaptidão para o
conforto, para a técnica, para o progresso, sua espantosa
familiaridade com a miséria; por que se preocuparia o colo
nizador com aquilo que não inquieta de modo algum o inte
ressado? Isso seria, acrescenta ele, com uma sombria e auda-
79
ciosa filosofia, prestar-lhe um mau serviço, obrigando-o às
servidões da civilização. Ora! Lembremo-nos de que a sabe
doria é oriental, aceitemos, como ele a aceita, a miséria do
colonizado. O mesmo se verifica com a famosa ingratidão
do colonizado, na qual insistiram autores considerados sé
rios: lembra, ao mesmo tempo, tudo aquilo que o colonizado
deve ao colonizador, que todos esses benefícios são perdi
dos, e que é inútil pretender emendar o colonizado.
É de notar que esse quadro não precise de nada mais.
É difícil, por exemplo, coordenar a maior parte desses tra
ços, de proceder à sua síntese objetiva. Não se compreende
porque o colonizado seria ao mesmo tempo menor e mau,
preguiçoso e atrasado. Poderia ter sido menor e bom, como
o bom selvagem do século XVIII, ou pueril e duro no tra
balho, ou preguiçoso e astuto. Melhor ainda, os traços atri
buídos ao colonizado excluem-se uns aos outros, sem que
isso atrapalhe seu procurador. Descrevem-no, ao mesmo
tempo, frugal e sóbrio, sem maiores necessidades e engolin
do quantidades incríveis de carne, de banha, de álcool, de
não importa o quê; como um pusilânime que tem medo de
sofrer e como um bruto que não é contido por nenhuma das
inibições da civilização, etc. Prova suplementar que é inútil
procurar essa coerência a não ser no próprio colonizador.
Na base de toda a construção, enfim, encontra-se a mesma
dinâmica: a das exigências econômicas e afetivas do colo
nizador que nela faz as vezes da lógica, comanda e explica
cada um dos traços que atribui ao colonizado. Em definitivo,
são todos vantajosos para o colonizador mesmo aqueles que
à primeira vista, ser-lhe-iam prejudiciais.
A D esumanização
80
Consiste, inicialmente, em uma série de negações. O co
lonizado não é isso, não é aquilo. Jamais é considerado po
sitivamente; ou se o é, a qualidade concedida procede de
uma lacuna psicológica ou ética. Assim, no que se refere à
hospitalidade árabe que dificilmente pode passar por um
traço negativo. Se observarmos bem, verificaremos que o ,
louvor é feito por turistas, europeus de passagem, e não pe
los colonizadores, quer dizer europeus instalados na colônia.
Tão logo instalado, o europeu não desfruta mais dessa hos- '
pitalidade. interrompe as trocas, contribui para erguer bar
reiras. Rapidamente muda de palheta para pintar o coloni
zado, que se torna ciumento, ensimesmado, exclusivista, fa
nático. Que é feito da famosa hospitalidade? Já que não pode
negá-la, o colonizador ressalta, então, suas sombras, e suas
desastrosas conseqüências.
Decorre da irresponsabilidade, da prodigalidade do co
lonizado, que não tem o senso da previsão, da economia. Do
importante ao felá, as festas são belas e generosas, com
efeito, mas vejamos o que se segue. O colonizado se arruina,
pede dinheiro emprestado e finalmente paga com o dinheiro
dos outros! Fala-se, ao contrário, da modéstia da vida do
colonizado? Da tão famosa ausência de necessidades? Isso
é menos uma prova de prudência que de estupidez. Como
se, enfim, todo traço reconhecido ou inventado devesse ser
o índice de uma negatividade.
Assim se destroem, uma após outra, todas as qualida
des que fazem do colonizado um homem. E a humanidade
do colonizado, recusada pelo colonizador, torna-se para ele,
com efeito, opaca. É inútil, pretende ele, procurar prever as
atitudes do colonizado ( “Eles são imprevisíveis” . . . ) “Com
eles nunca se sabe!’’). Uma estranha e inquietante impulsi
vidade parece-lhe comandar o colonizado. É preciso que o
colonizado seja bem estranho, em verdade, para que perma
neça tão misterioso após tantos anos de convivência. . . ou
então, devemos pensar que o colonizador tem boas razões
para agarrar-se a essa impenetrabilidade.
Outro sinal dessa despersonalização do colonizado; o
que se poderia chamar a marca do plural. O colonizado ja
mais é caracterizado de maneira diferencial: só tem direito
ao afogamento no coletivo anônimo. ( “Eles são is s o ... Eles
81
são todos os mesmos ). Se a doméstica colonizada não vem
certa manhã, o colonizador não dirã que ela está doente, ou
que ela engana, ou que ela está tentada a não respeitar um
contrato abusivo. (Sete dias em sete: as domésticas colo
nizadas raramente se beneficiam do descanso hebdomadário
concedido às outras.) Afirmará que “não se pode contar
com eles". Isso não é uma cláusula de estilo. Recusa-se a en
carar os acontecimentos pessoais, particulares, da vida de
sua doméstica: essa vida na sua especificidade não o inte
ressa, sua doméstica não existe como indivíduo.
Enfim o colonizador nega ao colonizado o direito mais
precioso reconhecido à.maioria dos homens: a liberdade. As
condições de vida, dadas ao colonizado__ pela colonização,
não a levam em conta, nem mesmo a supõem. O colonizado
não dispõe de saída alguma para deixar seu estado de infè^
licidade: nem jurídica (a naturalização) nem mística (a con
versão religiosa): o colonizado não é livre de escolher-se
colonizado ou não colonizado.
Que pode restar-lhe, ao cabo desse esforço obstinado
de desnaturação? Não é mais, certamente, um alter ego do
colonizador. Ainda é apenas um ser humano. Tende rapi
damente para o objeto. A rigor, ambição suprema do colo
nizador, deveria existir somente em f unção das suas necessi
dades, isto é, ser transformado em puro colonizado.
Nota-se a extraordinária eficácia dessa operação. Que
importante dever temos em relação a um animal ou a uma
coisa, com que se parece cada vez mais o colonizado? Com
preende-se então que o colonizador possa permitir-se atitu
des, julgamentos tão escandalosos. Um colonizado dirigindo
um automóvel, é um espetáculo ao qual o colonizador se
nega a habituar-se; nega-lhe toda normalidade, como a uma
pantomima simiesca. Um acidente, mesmo grave, que atinja
o colonizado, quase faz rir. Uma multidão de colonizados
metralhada, o faz dar de ombros. Aliás, a mãe indígena cho
rando a morte de seu filho, a mulher indígena chorando seu
marido, não lhe recordam senão vagamente a dor da mãe
ou da esposa, tísses gritos desordenados, esses gestos insó
litos, bastariam para esfriar sua compaixão, se chegasse a
nascer. Recentemente, um autor nos contava com bom humor
como, a exemplo da caça, encurralava-se em grandes jaulas
82
indígenas revoltados. Que se tivesse imaginado e depois ou
sado construir essas jaulas e talvez mais ainda, que se te
nha deixado os repórteres fotografarem as prisões, prova
bem que, no espírito de seus organizadores, o espetáculo
nada mais tinha de humano.
A M istificação
84
2
Situações do Colonizado
85
sua
nas proximidades? E, uma vez que pode ser ele, vão a
casa e o levam ao posto policial. , TT em
"A bela injustiça, retorque o colonizador! Uma vez
duas, não nos enganamos. E, de qualquer maneira, o a
é um colonizado; se não o encontramos no primeiro gour .
estã no segundo” .
O que é exato: o ladrão (falo do pequeno) recruta-
cqm efeito entre os pobres e os pobres entre os colonizados.
Mas disso resulta que todo colonizado seja um ladrão pos
sível e que deva ser tratado como tal?
Essas condutas, comuns ao conjunto dos colonizadores,
dirigindo-se ao conjunto dos colonizados, vão, então, expri
mir-se em instituições. Dito de outra forma, definem e im
põem -situações objetivas, que acuam o colonizado, pesam
sobre ele, até influir em sua conduta e enrugar sua fisiono
mia. De modo geral, essas situações serão situações de ca~
rência. À agressão ideológica, que tende a desumanizá-lo,
depois a mistificá-lo, correspondem em suma situações con
cretas que visam o mesmo resultado. Ser mistificado já é,
pouco ou muito, avalizar o mito e a ele conformar sua con
duta, isto é, ser por ele determinado. Ora, esse mito está,
além disso, solidamente apoiado em uma organização bem
real, uma administração e uma jurisdição; alimentado, reno
vado pelas exigências históricas, econômicas e culturais do
colonizador. Fosse insensível à calúnia e ao desprêzo desse
de ombros diante do insulto ou dos empurrões, como esca
paria o colonizado aos baixos salários, à agonia -de sua cul
tuia, à lei que o rege desde o nascimento até a morte?
Assim como não pode escapar à mistificação coíoniza
dora, nao poderia subtrair-se a essas situações concretas Z
radoras de carências. Em certa medida o retrato real A
colonizado é função dessa conjunção. Invertendo uma fó7
mula precedente, pode-se dizer que a c o l o n , , , tor'
colonizados como vimos que fabrica colonizadores° fabnCa
O C olonizado e a H istória
87
defesa e de destruição. Para um colonizador morto, cente
nas, milhares de colonizados são, ou serão exterminados. A
experiência foi bastante repetida — talvez provocada — para
ter convencido o colonizado da inevitável e terrível sanção.
Tudo foi empregado a fim de nele destruir a coragem de
morrer e de enfrentar a visão do sangue.
É tanto mais claro que, se é realmente de uma carência
que se trata, nascida de uma situação e da vontade do colo
nizador, trata-se apenas disso. E não de uma incapacidade
congênita de assumir a história. A própria dificuldade do
condicionamento negativo, a obstinada severidade das leis
já o provam. Enquanto que a indulgência é plena para os
pequenos arsenais do colonizador, a descoberta de uma arma
enferrujada acarreta uma punição imediata. A famosa fan
tasia não passa de uma representação de animal doméstico,
ao qual se pede para rugir como outrora a fim de arrepiar
os convidados. Mas, o animal ruge muito bem; e a nostalgia
das armas está sempre presente, está em todas as cerimô
nias, do norte ao sul da África. A carência guerreira parece
proporcional à importante presença colonizadora; as tribos
mais isoladas permanecem as mais dispostas a pegar em ar
mas. Isso não é uma prova de selvageria mas a de que o con
dicionamento não é bastante sustentado.
Eis porque, igualmente, a experiência da última guerra
foi tão decisiva. Não apenas, como foi dito, ensinou impru
dentemente aos colonizados a técnica da guerrilha. Também,
lembrou-lhes, ou sugeriu-lhes, a possibilidade de uma con
duta agressiva e livre. Os governos europeus que, após essa
guerra, proibiram a projeção, nos cinemas coloniais, de fil
mes como a Batalha do Trilho, não estavam errados, de seu
ponto de vista. Pois, os westerns americanos, os filmes de
gangsters, as faixas de propaganda de guerra, já mostravam
a maneira de utilizar um revólver ou uma metralhadora. O
argumento não é satisfatório. A significação dos filmes de
resistência é muito diferente: oprimidos, quase desarmados
ou mesmo sem armas, ousavam atacar seus opressores.
Um pouco mais tarde, logo que estouraram os primei
ros motins nas colônias, os que não compreendiam seu sen
tido tranqüilizavam-se contando os combatentes ativos e iro
nizando seu pequeno número. O colonizado hesita, com efei-
88
to, antes de retomar nas mãos seu próprio destino. Mas o
sentido do acontecimento ultrapassava de tal forma seu peso
aritmético! Alguns colonizados não tremiam mais diante do
uniforme do colonizador! Acharam graça na insistência dos
revoltados em se vestirem de cáqui e de maneira homogênea.
Esperam, certamente, ser considerados como soldados e tra
tados segundo as leis da guerra. Essa obstinação, porém, vai
mais longe: reivindicam, revestem o uniforme da história:
pois — infelizmente <— a história, hoje, está vestida de
militar.
. . . O C olonizado e a C idade
89
serem os povos colonizados os últimos a chegar a essa cons
ciência de si mesmos?
O colonizado não desfruta de atributo algum da nacio
nalidade; nem da sua, que é dependente, contestada, sufo
cada, nem, bem entendido, da nacionalidade do colonizador.
Não pode apegar-se nem à primeira, nem à segunda. Não
tendo seu justo lugar na cidade, não gozando dos direitos do
cidadão moderno, não estando sujeito a seus deveres comezi
nhos, não votando, não participando da responsabilidade dos
negócios quotidianos, não pode sentir-se um verdadeiro ci
dadão. Devido à colonização, o colonizado quase nunca faz
a experiência da nacionalidade e da cidadania, a não ser
privativamente: Nacionalmente, civicamente é apenas aquilo
que o-colonizador não é.
A C riança C olonizada
90
família é um ato sadio e indispensável para que se complete
a si mesmo; permite começar a vida de homem; nova bata
lha feliz e infeliz, mas entre os outros homens. O conflito de
gerações pode e deve resolver-se no conflito social; inversa
mente, é assim fator de movimento e progresso. As novas
gerações encontram no movimento coletivo a solução de suas
dificuldades e, escolhendo o movimento, o aceleram. É pre
ciso ainda que esse movimento seja possível. Ora, em que
vida, em que dinâmica social aqui se desemboca? A vida da
colônia está coagulada; suas estruturas estão ao mesmo tem
po fixas e esclerosadas. Nenhum novo papel se oferece ao
moço, nenhuma invenção é possível. O que o colonizador
reconhece ser um eufemismo que se tornou clássico: respei
ta, proclama ele, os usos e costumes do colonizado. E, cer
tamente, não pode senão respeitá-los, mesmo que seja pela
força. Toda mudança não se podendo fazer senão contra a
colonização, o colonizador é levado a favorecer os elemen
tos mais retrógrados. Não é o único responsável por esta
mumificação da sociedade colonizada; está de relativa boa
fé ao sustentar que não depende apenas de sua vontade.
Decorre em grande parte, no entanto, da situação colonial.
Não sendo senhora do seu destino, não sendo mais sua pró
pria legisladora não pode mais harmonizar suas instituições
com suas necessidades profundas. Ora, são essas necessida
des que modelam a fisionomia organizacional de toda socie
dade normal, ao menos relativamente. Foi sob sua constante
pressão que a fisionomia política e administrativa da Fran
ça se transformou progressivamente ao longo dos séculos.
Mas, se a discordância se tornou por demais fl^grante^ e a
harmonia impossível de realizar nas formas legais existentes,
é a revolução ou a esclerose.
A sociedade colonizada é uma sociedade malsã na qual
a dinâmica interna não consegue mais desembocar em novas
estruturas. Sua fisionomia endurecida há séculos não é mais
do que uma máscara, sob a qual ela sufoca e agoniza lenta
mente. Tal sociedade não pode reabsorver os conflitos de
gerações, pois não se deixa transformar. A revolta do ado
lescente colonizado, longe de resolver-se em movimento, em
progresso social, só pode afundar-se nos pântanos da socie
dade colonizada. (A menos que seja uma revolta absoluta,
mas a isso voltaremos depois).
91
Os V alores R efúgios
93
A A mnésia C ultural
94
lam, os mesmos que esmagaram o colonizado, o mantém no
seu lugar e o esmagarão outra vez se fór preciso.
Sem dúvida, em virtude do seu formalismo, o coloniza
do conserva todas suas festas religiosas, invariáveis há
séculos. Precisamente, são as únicas festas religiosas que, em
certo sentido, estão fora do tempo. Mais exatamente, encon
tram-se na origem do tempo da história e não na história.
Desde o momento em que foram instituídas, nada mais se
passou na vida desse povo. Nada de particular na sua pró
pria existência, que mereça ser guardado pela consciência
coletiva, e festejado. Nada, a não ser um grande vazio.
Os poucos traços materiais, enfim, desse passado, apa-
gam-se lentamente e os vestígios futuros não trarão mais a
marca do grupo colonizado. As poucas estátuas que apare
cem na cidade simbolizam, com inacreditável desprezo pelo
colonizado que por elas passa todos os dias, os feitos da
colonização. As construções trazem as formas amadas pelo
colonizador; e até os nomes das ruas lembram as províncias
longínquas de onde ele vem. Acontece, sem dúvida, lançar
o colonizador um estilo neo-oriental, como o colonizado imi
ta o estilo europeu. Trata-se, porém, de exotismo (velhas
armas e cofres antigos) e não de renascimento; o coloniza
do, este, não faz senão evitar seu passado.
A E scola do C olonizado
95
mas não Kahena. Tudo parece ter acontecido longe de sua
terra; seu país e ele mesmo estão no ar, ou não existem se
não com referência aos Gauleses, aos Francos, à batalha do
Marne; em relação ao que ele não é, ao cristianismo, ao
passo que não é cristão, ao Ocidente que se detém diante de
seu nariz, em uma linha tanto mais transponível quanto mais
imaginária. Os livros lhe falam de um mundo que em nada
lembra o seu; o menino chama-se Toto e a menina Marie;
e, nas tardes de inverno, Marie e Toto voltam para casa por
caminhos cobertos de neve, detêm-se diante do mercado de
castanhas. Seus mestres, enfim, não continuam o pai, não
são seus prestigiosos e sábios substitutos como todos os pro
fessores do mundo, são diferentes. A transferência não se
faz, nem da criança para o mestre, nem (muito freqüente
mente, é preciso confessá-lo) do mestre para a criança; e isto
a criança o sente perfeitamente. Um dos meus antigos cole
gas de classe confessou-me que a literatura, as artes, a filo
sofia, lhe tinham permanecido estranhas, como pertencentes
a um mundo estranho, o da escola. Foi-lhe necessária uma
longa temporada parisiense para começar realmente a
assimilá-las.
Se a transferência acaba por fazer-se, não é sem peri
go: o mestre e a escola representam um universo por demais
diferente do universo familiar. Nos dois casos, enfim, longe
de preparar o adolescente para assumir-se totalmente, a es
cola estabelece em seu seio uma definitiva dualidade.
O B ilingüismo C olonial
97
não parecer à vontade senão com a língua do colonizador.
Em resumo, o bilingüismo colonial não é nem uma digtossia,
onde coexistem um idioma popular e uma língua de purista,
pertencentes ambos ao mesmo universo afetivo, nem uma
simples riqueza poliglota, que se beneficia de um teclado su
plementar porém relativamente neutro; é um drama lingüís
tico.
98
tidão com que nascem as literaturas colonizadas. É preciso
malbaratar muita matéria humana, fazer inúmeras tentativas
para ter a oportunidade de um acaso feliz. Após o que, res
surge a ambigüidade do escritor colonizado, em forma nova
porém mais grave. , í
Curioso destino o de escrever para um povo que não o ^
seu! Mais curioso ainda o de escrever para os vencedores de
seu povo! Surpreende a aspereza dos primeiros escritores
colonizados. Esquecem-se de que se dirigem ao mesmo pú- .
blico cuja lingua tomam emprestada. Não se trata, porém,
nem de inconsciência, nem de ingratidão, nem de insolência.
A esse público, precisamente, já que ousam falar, que irão
dizer a não ser seu mal-estar e sua revolta? Esperavam pa
lavras de paz daquele que sofre de uma longa discórdia?
Reconhecimento por empréstimo a juros tão altos?
Por um empréstimo que, aliás, nunca será senão um em.
préstimo. A rigor substituímos aqui a descrição pela previ
são. Mas é tão legível, tão evidente! A emergência de uma
literatura de colonizados, a tomada de consciência de escri
tores norte-africanos, por exemplo, não é um fenômeno iso
lado. Participa da tomada de consciência de si mesmô de r
todo um grupo humano. O fruto não é um acidente ou um
milagre da planta, mas o sinal de sua maturidade. Quando /
muito o surgimento do artista colonizado precede um pouco
a tomada de consciência coletiva da qual participa, que ace- A
lera com sua participação. Ora, a reivindicação mais urgente
de um grupo que se recupera é certamente a libertação e a
restauração de sua língua.
Se me surpreendo, em verdade, é de que possam sur
preender-se. Somente essa lingua permitiria ao colonizado
retomar seu tempo interrompido, reencontrar sua continui
dade perdida e a de sua história. A língua francesa é ape
nas um instrumento, preciso, eficaz? Ou esse cofre maravi
lhoso, onde se acumulam as descobertas e as conquistas, dos
escritores e dos moralistas, dos filósofos e dos sábios, dos
heróis e dos aventureiros, onde se transformam em uma só
legenda os tesouros do espirito e a alma dos franceses?
O escritor colonizado, que chegou penosamente à utili
zação das linguas européias — a dos colonizadores, não o
esqueçamos <— não pode deixar de servir-se delas para re
clamar em favor da sua. Não se trata nem de incoerência
99
nem de reivindicação pura ou cego ressentimento, mas de
uma necessidade. Não o fizesse e todo o seu povo acabaria
por fazê-lo. Trata-se de uma dinâmica objetiva que ele ali
menta, certamente, mas que o nutre e que continuaria sem
ele. Fazendo-o, se contribui para liquidar seu drama de ho
mem, confirma, acentua seu drama de escritor. Para conci
liar seu destino consigo mesmo poderia tentar escrever na
sua língua materna. Mas não se refaz tal aprendizagem em
uma vida humana. O escritor colonizado está condenado a
viver suas rupturas até a morte. O problema só pode resol
ver-se de duas maneiras: pelo esgotamento natural da lite
ratura colonizada: as próximas gerações nascidas na liber
dade, escreverão espontaneamente na sua língua recupera
da. Sem ir tão longe, outra possibilidade pode tentar o es
critor: decidir-se a pertencer totalmente a literatura metro
politana. Deixemos de lado os prolemas éticos suscitados por
tal atitude. É então o suicídio da literatura colonizada. Nas
duas perspectivas, só o prazo diferindo, a literatura coloni
zada de lingua européia parece condenada a morrer jovem.
O S er de C arência
100
não tem grande significação- A rigor, nada sabemos a esse
respeito. É possível que não. Sem dúvida, não há apenas o
fator colonial para explicar o atraso de um povo. ToHõs“õs
países não seguiram o mesmo ritmo da América dO NóftéTm )
da Inglaterra; tinham, cada um, suas razões particulares de
atraso e seus próprios freios. Todavia, andaram com os pró^ l
prios pés e no seu caminho. Além disso, pode-se legitimar >
a infelicidade histórica de um povo pelas dificuldades dos
outros? Os colonizados não são as únicas vítimas da histó
ria, certamente, mas a infelicidade histórica própria dos co
lonizadores foi a colonização.
A esse mesmo falso problema acrescenta-se a questão
tão aflitiva para tantos: o colonizado, apesar de tudo, não
tirou proveito da colonização? Anesar de tudo, o colnniza-
dor não abriu estradas, não construiu hospitais e escolas?
Essa restrição, tão renitente, equivale a dizer que a coloni
zação foi, apesar de tudo, positiva; pois, sem ela, nãÕThãvé-
ria nem estradas, nem hospitais, nem escolas. Que sabemos
a esse respeito? Por que devemos supor que o colonizado
ter-se-ia fossilizado no estado em que o colonizador o en
controu? Poder-se-ia também perfeitamente afirmar o con
trário: se a colonização não tivesse ocorrido, ele teria tido
mais escolas e mais hospitais. Se a história tunisiana fosse
mais conhecida, ter-se-ia visto que o país estava então em
plena gestação. Após haver excluído o colonizado da hisfo^
ria, vedando-lhe qualquer futuro, o colonizador afirma sua
imobilidade fundamental, passada e definitiva.
Essa objeção, aliãs, só perturba aqueles que estão dis
postos a perturbar-se. Renunciei até aqui à comodidade dos
números e das estatísticas. Seria o momento de fazer-lhes
um discreto apelo: após vários decenios de colonização, a
multidão de crianças na rua ultrapassa de longe aquelas que
estão no colégio! O número de leitos dos hospitais é tão ir
risório diante do número dos doentes, a intenção no traçado
das estradas tão clara, tão desenvolta ao olhar do coloniza
do, tão estritamente submetida às necessidades do coloniza
dor!. Por tão pouco, em verdade, a colonização não era in- f
dispensável. Será uma temeridade pretender que a Tunísia ,
de 1952’teria sido, de qualquer maneira, muito diferente da
cTe 1881? Existem, afinal de contas, outras possibilidades de
Triíluência e de intercâmbio entre os povos além da domina-
101
ção. Outros pequenos países se transformaram profunda-
meríte sem ter fidõTíFcéssIdade Je serem colonizados. Assim
numerosos paises da Europa Central. . .
Mas, depois de um momento, nosso interlocutor sorri,
cético.
— Mas, não se trata exatamente da mesma coisa. . .
— Por quê? Quereis dizer, não é, que esses países são
povoados por europeus?
—• ...Sim !
— Pois bem, nesse caso, sois pura e simplesmente
racista.
Voltamos, com efeito, ao mesmo preconceito fundamen
tal. Os europeus conquistaram o mundo porque sua nature
za a isso os predispunha, os não-europeus foram colonizados
porque sua natureza a isso os condenava.
■Vamos, sejamos sérios, deixemos de lado o racismo e
essa mania de refazer a história. Deixemos mesmo de lado
o problema da responsabilidade inicial da colonização. Foi o
resultado da expansão capitalista ou o empreendimento con
tingente de vorazes homens de negócios? A rigor tudo isso
não é tão importante assim. O que conta, é a realidade atual
da colonização e do colonizado. Nada sabemos do que teria
sido o colonizado sem a colonização, mas vemos perfeita
mente o que se tornou em conseqüência da colonização. Para
melhor dominá-lo e explorá-lo, o colonizador o expeliu do
circuito histórico e social, cultural e técnico. O que é atual
e verificável é que a cultura do colonizado, sua sociedade,
seu saber-fazer estão gravemente atingidos, e que ele não
adquiriu um novo saber e uma nova cultura. Um resultado
patente da colonização é que não há mais artistas e ainda
não há técnicos colonizados. É verdade que existe, igual
mente, uma carência técnica do colonizado: "Trabalho ára
be”, diz o colonizador com desprezo. Mas longe de ver nisso
uma desculpa para sua conduta e um ponto de referência
vantajoso para ele, deve ver sua propria acusação. É verda
de que os colonizados não sabem trabalhar. Mas onde lhes
explicaram, quem lhes ensinou a técnica moderna? Onde
estão as escolas profissionais e os centros de aprendizagem?
Insistis demais, dizem às vezes, na técnica industrial. E
os artesãos? Vede esta mesa de madeira branca; por que é
de madeira de caixote? E mal acabada, mal aplainada, nem
102
p i n t a d a , n e m encerada? C e r t a m e n t e e s t a d e s c r i ç ã o é e x a t a .
D ecen te, n essa s m e s a s d e ch á , h á a p e n a s a f o r m a , p r e s e n t e
secular f e i t o ao artesão pela tradição. M a s , quanto ao resto,
é a encomenda que provoca a criação. O ra, p ara quem são
f e i t a s e s s a s m e s a s ? O comprador não tem
como p a g a r esses
aplainamentos s u p l e m e n t a r e s , n e m a c e r a , nem a p in tu ra .
Então, continuam em tábuas de caixotes desconjuntadas,
onde os buracos dos pregos permanecem abertos.
O f a t o verificável é que a colonização r e d u z o coloni
zado à privação e que todas as carências se entretêm e se
alimentam umas às outras. A não-industrialização, a au sên
cia de desenvolvimento técnico do país, conduz ao lento es
magamento econômico do colonizado. E o esm agam ento
econômico, o nível de vida das massas colonizadas, impedem
o técnico de existir, como o artesão de aperfeiçoar-se e de
criar. As causas últimas são a recusa do colonizador, que
ganha muito mais vendendo matéria-prima do que fazendo
concorrência à indústria metropolitana. Além disso, porém ,
o sistema funciona em círculo, adquire uma autonom ia de
desgraça. Se tivessem aberto mais centros de aprendizagem ,
e mesmo de universidades, não teriam salvo o colonizado
que não encontraria ao sair delas a utilização do seu saber.
Em um país que de tudo carece, os poucos engenheiros co
lonizados que conseguem obter seus diplomas são utilizados
como burocratas ou como professores! A sociedade coloni
zada não tem necessidade imediata de técnicos e não os sus
cita. Mas, infeliz daquele que não é indispensável! O tra b a
lhador colonizado é substituível, por que pagar-lhe seu j'usto
preço? Além disso, nosso tempo e nossa história são cada
vez mais técnicos; o atraso técnico do colonizado aum enta
e parece justificar o desprezo que inspira. T o rn a concreta,
parece, a distância que o separa do colonizador. E não é
falso que o atraso técnico seja em parte causa da incom
preensão dos dois parceiros. O nível geral de vida do colo
nizado é, freqüentemente, tão baixo que o contato é quase
impossivel. Livram-se disso falando no medievalismo da co
lônia. Pode-se prosseguir assim durante muito tempo. O uso,
a fruição das técnicas, criam tradições técnicas. O menino
francês, o menino italiano, têm ocasião de lidar com um mo
tor, um rádio, estão cercados pelos produtos da técnica.
Muitos colonizados esperam deixar a casa paterna p ara se
103
aproximarem de qualquer máquina. Como poderiam ter gos
to pela civilização mecanica e a intuição da máquina?
Tudo no colonizado, enfim, é privação, tudo contribui
para torná-lo um ser de carência. Mesmo seu corpo, mal
nutrido, enfezado e doente. Muitas palavras seriam econo
mizadas se, antes de qualquer discussão começássemos por
admitir: primeiramente há a miséria, coletiva e permanente,
imensa. A simples e brutal miséria biológica, a fome crônica
de todo um povo, a subalimentação e a doença. Certamente,
ao longe, isso fica um pouco abstrato, e, para concebê-lo,
seria necessária uma imaginação alucinatória. Lembro-me do
dia em que o carro da "Tunisienne Automobile” que nos le
vava rumo ao sul, parou no meio de uma multidão cujas bo
cas sorriam, mas cujos olhos, quase todos os olhos, afunda
vam nas faces: onde procurei com mal-estar um olhar não
tracomatoso no qual pudesse repousar o meu. E a tuber
culose, e a sífilis, e esses corpos esqueléticos e nus, que pe
rambulam entre as mesas dos cafés, como mortos-vivos, pe
gajosos como moscas, as moscas dos nossos remorsos...
— Ah! não, grita nosso interlocutor, essa miséria já
estava lá! Nós a encontramos ao chegar!
Seja. (É verdade, aliás: o habitante dos subúrbios é
freqüentemente um felá sem posses.) Mas, como poderia tal
sistema social, que perpetua tais angústias — supondo que
não as crie — manter-se por tanto tempo? Como se ousa
comparar as vantagens e os inconvenientes da colonização?
Que vantagens, fossem elas mil vezes mais importantes, po
deriam tornar admissíveis tais catástrofes, interiores e
exteriores?
104
3
As Duas Respostas do
Colonizado
105
deve ser imenso para ignorá-la. Para afirmar, por exemplo,
que a reivindicação colonizada é apenas de alguns intelec
tuais ou ambiciosos, e que traduz somente decepção ou in
teresse pessoal. Bom exemplo de projeção, seja dito de pas
sagem: explicação de outrem pelo interesse, por parte da
queles que são motivados apenas pelo interesse. A recusa do
colonizado é, em suma, assimilada a um fenômeno de super
fície, ao passo que decorre da própria natureza da situação
colonial.
O burguês sofre mais ainda com o bilingüismo, é ver
dade; o intelectual vive mais ainda o dilaceramento cultural.
O analfabeto, este, está simplesmente murado na sua lingua
e rumina os restos de cultura oral. Aqueles que compreen
dem a própria sorte, é verdade, tornam-se impacientes e não
suportam mais a colonização. Mas são os melhores, que so
frem e que recusam: e não fazem senão traduzir a desven
tura comum. Se não fosse assim, por que seriam tão rapida
mente entendidos, tão bem compreendidos e obedecidos?
Se nos propomos compreender o fato colonial, devemos
admitir que é instável, que seu equilíbrio está incessante
mente ameaçado. Podemos transigir com todas as situações
e o colonizado pode ter a esperança de viver muito tempo.
Mais ou menos rapidamente, porém, mais ou menos violen
tamente, pelo movimento todo de sua personalidade oprimi
da, um dia se dispõe a recusar sua insuportável existência.
As duas saídas, historicamente possíveis, são então ten
tadas, sucessiva ou paralelamente. O colonizado tenta ou
tornar-se outro, ou reconquistar todas as suas dimensões,
das quais foi amputado pela colonização.
O A mor do C olonizador
eo Ódio de Si M esmo
I mpossibilidade da A ssimilação
108
há séculos, esse alimento que lhe enche tão bem a boca e o
estômago, são ainda os seus, são ele mesmo. Deverá, toda
sua vida, envergonhar-se daquilo que, nele, é o mais real?
Da única coisa que não foi tomada de empréstimo? Deve
empenhar-se em negar-se a si mesmo? e aliás, suporta-lo-ia
sempre? Sua libertação deve, enfim, implicar a agressão sis
temática de si próprio?
A maior impossibilidade não está aí, porém. Cedo a
descobre: consentisse em tudo e mesmo assim não se sal
varia. Para assimilar-se, não é suficiente despedir-se de seu
grupo, é preciso penetrar em outro: ora, ele encontra a re
cusa do colonizador.
Ao esforço obstinado do colonizado em vencer o des
prezo (que merecem seu atraso, sua fraqueza, sua alterida-
de, acaba por admiti-lo), à sua submissão embasbacada, ao
seu empenho em confundir-se com o colonizador, em vestir-
se como ele, em falar, em comportar-se como ele, até nos
seus tiques.e na sua maneira de fazer a corte, o colonizador
opõe um segundo desprezo: a zombaria. Declara, explica ao
colonizado, que esses esforços são vãos, que com isso ga
nha apenas um traço suplementar: o ridículo. Pois jamais
chegará a identificar-se com ele, nem mesmo a reproduzir
corretamente seu papel. Quando muito, se não quiser ferir
o colonizado, o colonizador utilizará toda sua metafísica ca-
racteriológica. Os gênios dos povos são incompatíveis: cada
gesto é subentendido pela alma inteira, e tc ... Mais brutal
mente dirá que o colonizado não passa de um macaco. E,
quanto mais sutil é o macaco, quanto melhor imita, mais o
colonizador se irrita. Com essa atenção e esse faro aguçado
que a malevolência desenvolve, identificará a nuance reve
ladora, na roupa ou na linguagem, a “falta de gosto” que
acaba sempre por descobrir. Um homem a cavalo sobre duas
culturas raramente está bem sentado, com efeito, e o colo
nizado nem sempre encontra o tom justo.
Tudo é disposto, enfim, para que o colonizado não pos
sa dar esse passo: para que compreenda e admita que esse
caminho é um impasse e a assimilação impossível.
O que torna perfeitamente inúteis os lamentos dos hu
manistas metropolitanos, e injustas suas censuras endereça
das ao colonizado. Como ousa recusar, espantam-se eles,
esta síntese generosa com a qual, murmuram, só poderia lu-
109
crar? O colonizado é o primeiro a desejar a assimilação e é
o colonizador que a recusa.
Hoje, que a colonização chega ao seu fim, tardias boas
vontades se perguntam se a assimilação não foi a grande
oportunidade perdida pelos colonizadores e pelas metrópo
les. Ah! se tivéssemos querido! Vejam, sonham eles, uma
França de cem milhões de franceses? Não é proibido, é fre
qüentemente consolador reimaginar a história. Com a con
dição de descobrir-lhe outro sentido, outra coerência oculta.
Poderia a assimilação ter tido êxito.
Teria sido bem sucedida, talvez, em outros momentos
da história do mundo. Nas condições da colonização contem
porânea parece que não. Talvez seja uma infelicidade his
tórica, talvez devêssemos deplorá-la todos juntos. Mas, não
somente malogrou como também se mostrou impossível a to
dos os interessados.
Em definitivo seu malogro não se prende apenas aos
preconceitos do colonizador, nem tampouco ao atraso do co
lonizado. A assimilação, malograda ou realizada, não é ques
tão de bons sentimentos ou de psicologia apenas. Uma série
bastante longa de felizes conjunturas pode mudar a sorte de
um indivíduo. Alguns colonizados conseguiram praticamen
te desaparecer no grupo colonizador. É claro, em compensa
ção, que um drama coletivo jamais será esgotado por meio
— de soluções individuais. O indivíduo desaparece na sua des
cendência e o drama do grupo continua. Eacs. ,que assimi-
lação na colônia tivesse alcance e sentido, seria preciso que
CÃ-Cff abrangesse um povo inteiro, isto é, que fosse modificada
toda a condição colonial. Ora, já demonstramos suficiente
mente que a condição colonial não pode ser mudada senão
pela supressão da relação colonial.
y Tornamos a encontrar a relação fundamental que une
nossos dois retratos, dinamicamente engrenados um no ou
tro. Verificamos, uma vez mais, que é inútil pretender agir
sobre um ou outro, sem agir sobre essa relação, logo sobre
a colonização. Dizer que o colonizador poderia ou deveria
aceitar de bom grado a assimilação, portanto a emancipação
do colonizado, é escamotear a relação colonial. Ou admitir
que possa empreender espontaneamente uma transformação
total do seu estado: condenar os privilégios coloniais, os di
reitos exorbitantes dos colonos e dos industriais, pagar hu-
no
manamente a mão-de-obra colonizada, promover jurídica,
administrativa e politicamente os colonizados, industrializar
a colônia. . . Em suma, o fim da colônia como colônia, o fim
da metrópole como metrópole. Muito simplesmente, convida-
se o colonizador a acabar consigo mesmo.
Nas condições contemporâneas da colonização, assimi
lação e colonização são contraditórias.
111
mais o colonizador tem necessidade de justificação, mais
deve aviltar o colonizado, mais se sente culpado, mais deve
justificar-se, etc. Como sair disso a não ser pela ruptura,
pelo estouro, cada dia mais explosivo, desse círculo infernal?
A situação colonial, por sua própria fatalidade interior, con
voca à revolta. Pois a condição colonial não pode ser supor
tada: qual uma golilha de ferro, deve ser quebrada.
112
trópole compreendida, é claro. Ele é suspeitado, contrariado,
combatido no menor de seus atos. O colonizado põe-se a
preferir com raiva e ostentação os carros alemães, os rádios
italianos e os refrigeradores americanos; priva-se de fumo,
se traz a estampilha colonizadora. Meios de pressão e puni
ção econômica certamente, mas também ritos sacrificatórios
da colonização. Até os dias atrozes em que a fúria do colo
nizador ou a exasperação do colonizado, culminando em
ódio, se descarregam em loucuras sanguinárias. Depois re
começa a existência quotidiana, um pouco mais dramatizada,
um pouco mais irremediavelmente contraditória.
É nesse contexto que deve ser recolocada a xenofobia e
mesmo certo racismo do colonizado.
Considerado em bloco como esses, eles, ou os outros,
de todos os pontos de vista diferente, homogeneizado em ra
dical heterogeneidade, o colonizado reage recusando em
bloco todos os colonizadores. E mesmo, algumas vezes, todos
aqueles que se lhes assemelham, todo aquele que não é como
ele, oprimido. A distinção entre o fato e a intenção não tem —
mais significado na situação colonial. Para o colonizado, to
dos os europeus das colônias são colonizadores de [ato. E,
quer queiram ou não, o são de algum modo; pela sua situa-_
ção econômica de privilegiados, por pertencerem ao sistema
político de opressão pela sua participação em um complexo
ativo negador do colonizado. Por outro lado, no limite ex
tremo, os europeus da Europa são colonizadores em poten
cial: bastaria que desembarcassem. Talvez tirem mesmo al
gum proveito da colonização. São solidários, ou pelo menos—
cúmplices inconscientes dessa grande agressão coletiva da
Europa. Com todo o seu peso, intencionalmente ou não, con
tribuem para perpetuar a opressão colonial. Enfim, se a [
xenofobia e o racismo consistem em responsabilizar global- ■
mente todo um grupo humano, em condenar a priori não im
porta que indivíduo desse grupo, emprestando-lhe um ser e
um comportamento irremediavelmente constante e nocivo, o
colonizado é, com efeito, xenófobo e racista; tornou-se uma
coisa e outra.
Todo racismo e toda xenofobia são mistificações de si
mesmo e agressões absurdas e injustas aos outros, inclusive
os do colonizado. Com mais forte razão, desde que se es
tendem além dos colonizadores, a tudo aquilo que não é ri-
113
gorosamente colonizado; quando chegam, por exemplo, a
regozijar-se com as desventuras de um agrupamento huma
no, simplesmente porque não é escravo. Mas, é preciso assi
nalar, ao mesmo tempo, que o racismo do colonizado é o
resultado de uma mistificação mais geral: a mistificação
colonialista.
Considerado e tratado separadamente pelo racismo co
lonialista, o colonizado acaba por aceitar-se segregado; por
aceitar essa divisão maniqueísta da colônia e, por extensão,
do mundo inteiro. Definitivamente excluído de metade do
universo, como não recearia que ela confirmasse sua conde
nação? Como não julgá-la e não condená-la por sua vez? O
racismo do colonizado não é, em suma, nem biológico nem
metafísico, porém social e histórico. Não está baseado na
crença da inferioridade do grupo detestado, mas na convic
ção, e, em grande parte, na verificação de que é definitiva
mente agressor e nocivo. Mais ainda, se o racismo europeu
moderno detesta e despreza mais do que teme, o do coloni
zado teme e continua a admirar. Em resumo, não é um ra
cismo de agressão, porém de defesa.
De sorte que deveria ser relativamente fácil desarmá-lo.
As poucas vozes européias que se elevaram nestes últimos
anos para negar essa exclusão, essa radical inumanidade do
colonizado, fizeram mais do que todas as boas obras e toda
a filantropia, onde a segregação permanecia subjacente. Eis
porque, pode-se sustentar esta aparente enormidade: se a
xenofobia e o racismo do colonizado contêm, seguramente,
um imenso ressentimento e uma evidente negatividade, po
dem ser o prelúdio de um movimento positivo: a recupera
ção do colonizado por si mesmo.
A AFIRMAÇÃO DE SI
114
O colonizado se aceita e se afirma, se reivindica com
paixão. Mas, que é ele? Certamente não o homem em geral,
portador dos valores universais, comuns a todos os homens.
Precisamente ele foi excluído desta universalidade, tanto no
plano do verbo como de fato. Ao contrário, procurou-se,
enrijeceu-se até a substantificação, aquilo que o diferencia
dos outros homens. Demonstraram-lhe com orgulho que ja
mais poderia assimilar os outros; repeliram-no com desprêzo
para aquilo que, nele, seria inassimilável pelos outros. Está
bem! Seja. Ele é, será, este homem. A mesma paixão que o
fazia admirar e absorver a Europa, o levará a afirmar suas
diferenças; já que essas diferenças, afinal de contas, cons
tituem propriamente sua essência.
Então, o jovem intelectual que tinha rompido com a
religião, ao menos interiormente, e comia durante o Rama
dan, põe-se a jejuar com ostentação. Ele, que considerava os
ritos inevitáveis maçadas familiares, os reintroduz na sua
vida social, dá-lhes um lugar na sua concepção do mundo.
Para melhor utilizá-los, volta a explicar as mensagens esque
cidas, adapta-as às exigências atuais. Descobre, aliás, que o
fato religioso não é apenas uma tentativa de comunicação
com o invisível, mas um extraordinário meio de comunhão
para o grupo inteiro. O colonizado, seus chefes e seus inte
lectuais, seus tradicionalistas e seus liberais, todas as clas
ses sociais, podem nele reencontrar-se, soldar-se, verificar
e recriar sua unidade. O risco é considerável, sem dúvida,
de que o meio se torne fim. Dispensando tal atenção aos
velhos mitos, rejuvenescendo-os, revivifica-os perigosamente.
Recuperam uma força inesperada que as faz escapar aos
desígnios limitados dos chefes colonizados. Assiste-se a um
verdadeiro renascimento religioso. Acontece mesmo que o
aprendiz feiticeiro, intelectual ou burguês liberal, a quem o
laicismo parecia a condição de todo progresso intelectual e
social, retome gosto pelas suas tradições desdenhadas...
Tudo isto, aliás, que parece tão importante aos olhos do
observador de fora, que o é talvez para a saúde geral do
povo, é, no fundo, secundário para o colonizado. Doravante,
descobriu o princípio motor de sua ação, que ordena e valo
riza todo o resto: trata-se de afirmar seu povo e de afirmar-
se solidário com ele. Ora, sua religião é evidentemente um
dos elementos constitutivos dêsse povo. Em Bandoeng, com
115
espanto constrangido das pessoas de esquerda do mundo
inteiro, um dos dois princípios fundamentais da conferência
foi a religião.
Assim também, o colonizado não conhecia mais sua lín
gua a não ser na forma de um falar indigente. Para sair do
quotidiano e do afetivo mais elementares, era obrigado a
recorrer à língua do colonizador. Retornando a um destino
autônomo e separado, retorna imediatamente à sua própria
lingua. Observam, ironicamente, que seu vocabulário é limi
tado, sua sintaxe abastardada, que seria ridículo ouvi-la em
um curso de matemáticas superiores ou de filosofia. Mesmo
o colonizador de esquerda se espanta com essa impaciência,
com esse inútil desafio, finalmente mais oneroso para o co
lonizado que para o colonizador. Por que não continuar a
utilizar as línguas ocidentais para descrever os motores ou
ensinar o abstrato?
Aí ainda, para o colonizado, existem doravante outras
urgências que não as matemáticas e a filosofia e mesmo a
técnica. É preciso restituir, a esse movimento de redescober-
ta de si, de todo um povo, o instrumento mais adequado,
aquele que encontra o caminho mais curto de sua alma, por
que vem diretamente dela. E esse caminho, sim, é o das
palavras de amor e de ternura, da cólera e da indignação,
das palavras que emprega o oleiro falando aos seus potes
e o sapateiro às suas palmilhas. Mais tarde o ensino, mais
tarde a literatura e as ciências. Esse povo aprendeu suficien
temente a esp erar... É certo, aliás, que essa língua, hoje
balbuciante, não possa abrir-se e enriquecer-se? Já, graças a
ela, descobre tesouros esquecidos, entrevê uma possível con
tinuidade com um passado não desprezível. . . Vamos, nada
de hesitação ou de meias medidas! Ao contrário, é preciso
saber romper, é preciso saber abrir caminho diante de si.
Escolherá mesmo a maior dificuldade. Chegará a proibir-se
as comodidades suplementares da língua colonizadora; pro
curará substitui-la sempre e o mais depressa possível. Entre
o falar popular e a língua erudita preferirá a erudita, arris
cando-se no seu impulso a tornar mais difícil a comunhão
procurada. O importante agora é reconstruir seu povo, seja
qual fôr sua autêntica natureza, refazer sua unidade, comu
nicar-se com ele e sentir que lhe pertence.
116
Seja qual fôr o preço pago pelo colonizado, e contra os
outros, se fôr preciso. Por isso mesmo, será nacionalista, e
não, é claro, internacionalista. Certamente, assim agindo,
arrisca-se a cair no exclusivismo e no fanatismo, prendendo-
se com isso ao que há de mais estreito, a opor a solidarie
dade nacional à solidariedade humana, e mesmo a solidarie
dade étnica à solidariedade nacional. Mas, esperar do colo
nizado, que tanto sofreu por não existir por si mesnlo, que
seja aberto ao mundo, humanista e internacionalista, parece
de uma leviandade cômica. Agora que se está ainda recupe
rando, que se olha com assombro, que reivindica apaixona
damente sua língua. . . na do colonizador.
É significativo, aliás, que será tão mais ardente na sua
afirmação quanto mais se tiver comprometido com o colo
nizador. Será uma coincidência que tantos chefes coloniza
dos tenham contraído casamentos mistos? Que o líder tuni-
siano Bourguiba, os dois líderes argelinos Messali Hadj e
Ferhat Abbas e tantos outros nacionalistas, que consagra
ram sua vida a guiar os seus, tenham se casado entre os co
lonizadores? Tendo levado a experiência do colonizador até
seus extremos limites, até julgá-la impossivel de viver, re
fluíram para suas bases. Aquele que nunca deixou seu país
e os seus não saberá jamais até que ponto está preso a eles.
Sabem, agora, que sua salvação coincide com a de seu povo,
que devem ficar o mais possível perto dele e de suas tradi
ções. Não é proibido acrescentar a necessidade de justificar-
se, de resgatar-se por uma completa submissão.
As A mbigüidades da A firmação de Si
118
2P) Tornando-se, essa negatividade, um elemento es
sencial da sua recuperação e do seu combate, vai afirmá-la,
glorificá-la até o absoluto. Não apenas aceita suas marcas
e suas feridas, mas as proclamará belas. Seguro de si mesmo,
propondo-se ao mundo tal qual doravante é, dificilmente
pode propor, ao mesmo tempo, sua própria crítica. Se sabe
rejeitar com violência o colonizador e a colonização, não dis
tingue aquilo que é verdadeiramente do que desastrosamen
te adquiriu ao longo da colonização. Propõe-se todo inteiro,
confirma-se globalmente, quer dizer, esse colonizado, que
ele, de qualquer forma, se tornou. De um golpe, exatamente
ao contrário da acusação colonialista, o colonizado, sua cul
tura, seu país, tudo aquilo que lhe pertence, tudo que repre
senta, torna-se perfeita positividade.
A rigor, vamos deparar com uma contramitologia. Ao
mito negativo, imposto pelo colonizador, sucede um mito po
sitivo de si mesmo, proposto pelo colonizado. Como existe,
ao que parece, um mito positivo do proletário oposto ao seu
negativo. Ao ouvir o colonizado, e freqüentemente seus ami
gos, tudo ê bom, tudo vale a pena, nos seus hábitos e suas
tradições, seus atos e seus projetos; mesmo o anacrônico ou
o desordenado, o imoral ou o erro. Tudo se justifica, pois,
tudo se explica.
A afirmação de si do colonizado, nascida de um pro- / ,
testo, continua a definir-se em relação a ele. Em plena re
volta, o colonizado continua a pensar, sentir e viver contra C/ít <
e portanto em relação ao colonizador e à colonização.
39) Tudo isso, o colonizado o pressente, o revela na
sua conduta, o confessa algumas vezes. Percebendo que suas
atitudes são essencialmente de reação, é atingido pela maior
parte das perturbações da má-fé.
Incerto de si mesmo, entrega-se à embriaguez do furor
e da violência. Incerto da necessidade desse retorno -ao pas
sado, reafirma-o agressivamente. Incerto de poder conven
cer os outros, provoca-os. Ao mesmo tempo provocador e
susceptivel, ostenta, doravante suas diferenças, recusa-se a
deixar-se esquecer como tal, e fica indignado quando se faz
alusão a isso. Sistematicamente desconfiado, atribui ao seu
interlocutor intenções hostis, considerando-as ocultas se não
são reveladas e reage em função disso. Exige de seus me
lhores amigos uma ilimitada aprovação, mesmo em relação
119
àquilo de que ele mesmo duvida e que ele próprio condena.
Frustrado pela história, durante tanto tempo, reclama tanto
mais imperiosamente quanto permanece sempre inquieto. Não
sabendo mais o que deve a si mesmo e o que pode pedir, o
que os outros lhe devem realmente e o que deve pagar por
sua vez; a medida exata, enfim, de todo comércio humano.
Complicando e estragando a priori, suas relações humanas,
já tornadas tão difíceis pela história. "Ah! são doentes! es
crevia um outro autor negro, são todos doentes!”
120
Conclusão
121
esperança era ilusória. Quis compreender e explicar porque.
Minha intenção primeira não era senão reproduzir, comple
tamente e em verdade, os retratos dos dois protagonistas do
drama colonial e a relação que os une.
Nunca haviam mostrado, parece-me, a coerência e a
gênese de cada papel, a gênese de um pelo outro e a coerên
cia da relação colonial, a gênese da relação colonial a partir
da situação colonial.
Depois ao longo do caminho, apareceram-me ao mesmo
tempo, a necessidade dessa relação, a necessidade desses de
senvolvimentos, as fisionomias que imprimia ao colonizador
\ e ao colonizado. Em suma, a leitura completa e atenta des-
1 ses dois retratos e dessa situação obrigou-me a esta conclu
são: a acomodação não poderia ocorrer porque era impossí
vel. A colonização contemporânea trazia em si mesma sua
própria contradição, que cedo ou tarde deveria fazê-la
morrer.
Que me entendam bem: não se trata aqui, de modo al
gum, de um desejo porém de uma verificação. A confusão
desses dois conceitos parece-me por demais freqüente hoje,
e das mais perniciosas. Separa, no entanto, radicalmente,
todo pensamento sério e objetivo das projeções sentimentais
ou das habilidades demagógicas, às quais se entregam muito
facilmente os políticos, sem se darem muita conta disso, di
gamo-lo em seu favor. Certamente, não há fatalismo em
política: pode-se não raro retificar uma situação. Mas, pre-
cisamente na medida em que o desejo não ultrapassa as exi
gências da verificação objetiva. Ora, o que aparece no final
deste itinerário — se esses dois retratos estão de acordo com
a verdade de seus modelos — é que é impossível que a si
tuação colonial perdure, porque é impossivel ajeitá-la.
Acontece, simplesmente, que todo desvelamento é, em
definitivo, eficaz; que toda verdade é, em definitivo, útil e
positiva; mesmo que fosse apenas porque suprime ilusões. O
que é evidente aqui, quando pensamos nos esforços desespe
rados da Europa, tão onerosos para ela como para os colo
nizados,- a fim de salvar a colonização.
Poderei acrescentar, contudo, que efetuado esse desve
lamento, admitida a crueldade da verdade, as relações da
Europa com suas velhas colônias devem ser reconsideradas?
Que, abandonados os quadros coloniais, é importante para
122
todos nós descobrir uma nova maneira de viver essas rela
ções? Sou daqueles para os quais, encontrar uma nova ordem
com a Europa, é recolocar a ordem neles mesmos.
123
Sem dúvida, não deixamos de imaginar, no interior do
sistema colonial, transformações que conservassem para o
colonizador as vantagens adquiridas, embora preservando-o
de suas conseqüências desastrosas. Esquece-se apenas que a
natureza da relação colonial decorre imediatamente dessas
vantagens. Dito de outra forma: ou a situação colonial sub
siste e seus efeitos continuam: ou desaparece e a relação co
lonial subsiste e seus efeitos continuam: ou desaparece e a
relação colonial e o colonizador desaparecem com ela. As
sim, para duas proposições, uma radical no mal, outra radi
cal no bem, ao menos imagina-se: o extermínio do coloniza
do ou sua assimilação.
Não há tanto tempo assim que a Europa abandonou a
idéia da possibilidade de total extermínio de um grupo colo
nizado. Um dito espirituoso, meio sério meio brincalhão,
como todos os ditos espirituosos, afirmava a respeito da Ar
gélia: "Não há senão nove argelinos para um fran cês...
bastaria dar a cada francês um fuzil e nove balas." Evoca-
se também o exemplo norte-americano. E é verdade que a
famosa epopéia nacional do far-west assemelha-se muito a
um massacre sistemático. Mas, em compensação, não há mais
problema de pele-vermelha nos Estados Unidos. O extermí
nio salva tão pouco a colonização que é mesmo exatamente
o contrário dela. A colonização é, a princípio, uma explora
ção económico-política. Se suprimimos o colonizado, a colô
nia tomar-se-á um país qualquer, compreendo bem, mas
quem então será explorado? Com o colonizado desaparece
ria a colonização, inclusive o colonizador.
Quanto ao malogro da ’assimilação, não me alegra de
modo especial. Tanto mais que essa solução tem um aspecto
universalista e socialista que a torna a priori respeitável.
Nem sequer digo que é impossível em si mesma e por defi
nição: foi bem sucedida algumas vezes historicamente, assim
como freqüentemente malogrou. Mas está visto que ninguém
a desejou expressamente na colonização contemporânea, nem
mesmo os comunistas. Expliquei-me suficientemente a esse
respeito. Finalmente eis o essencial: a assimilação é além
disso o contrário da colonização; pois tende a confundir co
lonizadores e colonizados, a suprimir os privilégios, e, por
tanto, a relação colonial.
124
Abstraio as pseudo-soluções menores. Por exemplo,
permanecer na colônia tornada independente, como estran
geiros, portanto, mas com direitos especiais. Como não ver,
além da incoerência jurídica de tais construções, que tudo
isso está destinado a ser desgastado pela história? Não se vê
por que a lembrança dos injustos privilégios bastaria para
garantir sua perenidade.
Enfim, no quadro da colonização, não há salvação, ao
que parece, para o colonizador.
Mais uma razão, dir-se-á, para que se agarre, para que
recuse toda mudança: pode, com efeito, aceitar-se como
monstro, aceitar sua alienação em virtude de seus próprios
interesses. Não, nem mesmo isso. Se recusa deixar sua lu
crativa doença, a isso será forçado mais cedo ou mais tarde
pela história. Porque, não nos esqueçamos, existe uma outra
face do díptico: um dia será forçado a isso pelo colonizado
29) Chega sempre o dia, em que o colonizado levanta
a cabeça e faz oscilar o equilíbrio sempre instável da colo
nização.
Pois, também para o colonizado, não há outra saida se
não o fim definitivo da colonização. E a recusa do coloni
zado não pode ser senão absoluta, quer dizer não apenas
revolta, mas superação da revolta, quer dizer revolução.
Revolta: a simples existência do colonizador cria a
opressão e somente a liquidação completa da colonização
permite a libertação do colonizado. Esperou-se muito das
reformas, nestes últimos tempos, do bourguibismo, por exem
plo. Parece-me que há um equívoco. O bourguibismo, se sig
nifica proceder por etapas, jamais significou contentar-se
com uma etapa, fosse qual fosse. Os chefes negros falam
atualmente de União Francesa. Isso não é ainda senão uma
etapa no caminho da independência completa, e aliás inevi
tável. Acreditasse Bourguiba nesse bourguibismo que lhe
querem atribuir, acreditassem os chefes da África Negra em
uma definitiva União Francesa, e o processo de liquidação
da colonização os deixaria pelo caminho. Já os de menos de
trinta anos não mais compreendem a relativa moderação
dos mais velhos.
Revolução: observamos que a colonização matava ma
terialmente o colonizado. É preciso acrescentar que o mata i
espiritualmente. A colonização falsifica as relações humanas, !
125
destrói ou esclerosa as instituições, e corrompe os homens,
colonizadores e colonizados. Para viver, o colonizado tem
necessidade de suprimir a colonização. Mas, para tornar-se
um homem, deve suprimir o colonizado que se tornou. Se o
europeu deve destruir em si o colonizador, o colonizado deve
superar também em si o colonizado.
A liquidação da colonização é apenas um prelúdio à sua
libertação completa: à reconquista de si. Para libertar-se da
colonização foi necessário partir da sua própria opressão,
das carências de seu grupo. Para que sua libertação seja
completa, é preciso que se liberte dessas condições de sua
luta, certamente inevitáveis. Nacionalista, porque devia lu
tar pela emergência e pela dignidade da sua nação, será ne
cessário que se conquiste livre em face dessa nação. Bem
entendido, poderá confirmar-se nacionalista. Mas é indis
pensável que fique livre dessa escolha, e que dpixe de existir
apenas por intermédio de sua nação. Será preciso que se
conquiste livre em face da religião do seu grupo, que poderá
conservar ou rejeitar, mas deve deixar de existir somente por
meio dela. Assim também no que se refere ao passado, à
tradição, à etnicidade, e tc ... Em resumo, deve deixar de
definir-se pelas categorias colonizadoras. E também por
aquilo que o caracteriza negativamente. A famosa e absurda
oposição Oriente-Ocidente, por exemplo: essa antítese, en
rijecida pelo colonizador, que instauraria uma barreira defi
nitiva entre ele e o colonizado. Que significa, então, o retor
no ao Oriente? Se a opressão tomou a figura da Inglaterra
ou da França, as conquistas culturais e técnicas pertencem
a todos os povos. A ciência não é nem ocidental nem orien
tal, assim como não é nem burguesa nem proletária. Há ape
nas dois modos de fundir o betume, o bom e o mau.
Que se tornará, então? Que é, pois, em verdade, o colo
nizado?
Não creio nem na essência metafísica, nem na essência
caracterológica. Atualmente pode-se descrever o colonizado;
tentei mostrar que sofre, julga e se comporta de certa ma
neira. Se deixa de ser esse ente de opressão e de carências,
exteriores e interiores, deixará de ser um colonizado, tornar-
se-á outro. Existem evidentemente constantes geográficas e
tradições. Mas, talvez então, haja menos diferenças entre
126
um argelino e um marselhés, do que entre um argelino e Um
libanês.
Todas suas dimensões reconquistadas, o ex-colonizado
ter-se-á tornado um homem como os outros. Com todas as
venturas e desventuras dos homens, sem dúvida, mas enfim
será um homem livre.
Impressão
Círculo do Livro S.A.
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Fone: 262-5005 / 62-2139
São Paulo — Brasil
guma sua atualidade (mereceu, inclusive, um
estudo de Jean-Paul Sartre, mais tarde republi
cado no volume VII de Situations), embora
contendo apenas um levantamento minucioso
do que representam, em sua forma tradicional,
as figuras do colonizador e do colonizado.
Sobre o primeiro, depois de referir-se à ima
gem mítica que dele se veio fazendo, diz Mem-
mi: "Os motivos econômicos do empreendi
mento colonial estão, atualmente, esclarecidos
por todos os historiadores da colonização; nin
guém acredita mais na missão cultural, e mo
ral, mesmo original, do colonizador. Em nos
sos dias, ao menos, a partida para a colônia
não é a escolha de uma luta incerta, procurada
precisamente por seus perigos, não é a tenta
ção da aventura, mas a da facilidade” . N o pólo
oposto desse jogo de interesses implícito no sis
tema colonial encontra-se a figura do coloniza
do, cujo trabalho é persistentemente explorado
pela metrópole, que dele estabelece a imagem
de um ser inferior e destituído de capacidade
própria, para assim justificar seu pleno domí
nio.
Há que ressaltar ainda, nesta edição de Re
trato do Colonizado Precedido Pelo Retrato do
Colonizador, o extenso prefácio preparado por
Roland Corbisier, no qual o estudioso brasilei
ro confronta o colonialismo em suas formas
tradicionais com o neocolonialismo e daí infe
re que "A insurreição, a revolta dos povos sub
metidos - protetorados, domínios, colônias
propriamente ditas, e povos hoje chamados
subdesenvolvidos, característica do tempo em
que vivemos - provoca o surgimento de novas
formas de imperialismo, menos ostensivas, me
nos visíveis, mas nem por isso menos eficazes” .
Roherto Pontual
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