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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Daniel Rubens Cenci


Doglas Cesar Lucas
Gilmar Antonio Bedin
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth
(Organizadores)

DIREITOS HUMANOS
E DEMOCRACIA
DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

VOLUME II

1
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Daniel Rubens Cenci


Doglas Cesar Lucas
Gilmar Antonio Bedin
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth
(Organizadores)

DIREITOS
HUMANOS E
DEMOCRACIA:
DESAFIOS JURÍDICOS
EM TEMPOS DE PANDEMIA

VOLUME II

1ª edição

Santa Cruz do Sul

2020

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil


Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Prof. Dr. Argemiro Luís Brum –Economia – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Profª. Drª. Caroline Müller Bitencourt – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof. Dr. Ismael Francisco de Souza - Direito - UNESC/Brasil
Prof. Dr. Janriê Rodrigues Reck – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – FDV/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Prof. Dr. Maiquel Angelo Dezordi Wermuth – Direito – UNIJUI/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª Verônica Teixeira Marques de Souza – Ciências Sociais – UNIT/Brasil
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia

COMITÊ EDITORIAL

Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC/Brasil


Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Essere nel Mondo


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Cep: 96810-034 - Santa Cruz do Sul
Fones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269
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criação e elaboração exclusiva do(s) autor(es), não cabendo nenhuma
responsabilidade à Editora.

D598 Direitos humanos e democracia: desafios jurídicos em tempos de pandemia:


volume II [recurso eletrônico] / Daniel Rubens Cenci ... [et al.] (organizadores) -
Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2020.
662 p. : il.

Texto eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web.

1. Direitos humanos. 2. Democracia. 3. Pandemias. 4. Política pública. 5.


Sustentabilidade e meio ambiente. 6. Estado. I. Cenci, Daniel Rubens. II. Lucas,
Doglas Cesar. III. Bedin, Gilmar Antonio. IV. Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi

CDD-Doris: 341.12191

ISBN: 978-65-5790-028-4
Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Correção ortográfica: pelos autores
Diagramação: Daiana Stockey Carpes
Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates
Revisões: revisão metodológica e gramatical pelos autores
Diagramação: Daiana Stockey Carpes

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Apresentação

Este livro reúne os trabalhos que foram apresentados durante a realização do VIII Seminário
Internacional de Direitos Humanos e Democracia, promovido pelo Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito da UNIJUÍ. Nesta edição, o evento aconteceu integralmente em ambiente virtual e
teve por tema os desafios jurídicos impostos pela pandemia da Covid-19.
O tema deste Seminário não poderia ser mais oportuno. Já integra o “senso comum” a expressão
segundo a qual a pandemia da Covid-19 representa um verdadeiro “divisor de águas” na história
da humanidade. Cogita-se o surgimento de novas formas de relacionamento intersubjetivo, novas
dinâmicas econômicas, novas formas de trabalho, etc. Por outro lado, alterações legislativas têm sido
produzidas com bastante intensidade em todo o mundo, o que indica um fenômeno de transformação/
adaptação do direito à nova realidade posta pela pandemia. Do mesmo modo, categorias tradicionais
como “soberania”, “fronteiras”, “estado-nação”, parecem perder força diante de uma doença que
avança sem reconhecê-las, exigindo esforços coletivos para o seu enfrentamento que parecem exigir
uma refundação da ideia de solidariedade no cenário internacional.
De fato, a pandemia tem suscitado diversas questões que são responsáveis por tensionar, a todo
momento, conceitos jurídicos que até então pensávamos inquestionáveis, o que inclui, obviamente, os
Direitos Humanos – particularmente em cenários como o brasileiro, nos quais a pandemia torna ainda
mais evidentes as constantes violações pelas quais esses direitos passam na contemporaneidade.
O leitor tem em mãos, portanto, um material privilegiado para a discussão desse cenário, a
partir de um conjunto de textos que, acima de tudo, estão profundamente comprometidos com a
temática da efetivação dos direitos humanos.
Esta obra reúne pesquisadores de vários Estados brasileiros e de alguns países europeus e latino-
americanos, os quais realizaram a submissão de seus trabalhos por meio do edital do evento, disponibilizado
no sítio virtual da UNIJUÍ e que previa a publicação dos textos selecionados na presente coletânea.
Muito obrigado a todos esses pesquisadores por terem escolhido o nosso evento para o
compartilhamento de suas pesquisas! Ao leitor, o desejo de uma agradável leitura!

Ijuí-RS, novembro de 2020.

Maiquel A. Dezordi Wermuth

Doutor em Direito Público (UNISINOS)


Professor do Curso de Direito da UNIJUÍ
Coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado e Doutorado em Direitos
Humanos - da UNIJUÍ
Líder do Grupo de Pesquisa Biopolítica & Direitos Humanos (CNPq)
Pesquisador Gaúcho – Edital FAPERGS nº 05/2019
http://lattes.cnpq.br/0354947255136468

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

SUMÁRIO

GRUPO DE TRABALHO 3 – CIDADE, AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE

A pandemia da Covid-19 e seu impacto frente à vulnerabilidade da saúde indígena 13


Fabiane da Silva Prestes e Ceres Daiane Gavioli Ramos

Associações de Catadores do Município de Ijuí: desafio ao poder público para 20


promoção da sustentabilidade
Marlanda Patrícia Caure da Cunha e Cleusa Adriane Menegassi Bianchi

Consumidores hipervulnerables: a propósito del Proyecto de Código de Defensa 26


del Consumidor Argentino
Liliana Aída Beatriz Urrutia

A pandemia versus o relacionamento interpessoal no processo ensino-aprendizagem 37


Larissa Rodrigues Flores e Adriane Medianeira Toaldo

A participação indígena na elaboração de políticas públicas de saúde na pandemia: 44


práticas em direitos humanos
Wellen Pereira Augusto e Maria Aparecida Lucca Caovillai

A pós-verdade nas mídias sociais e os seus efeitos no estado democrático de 52


direito
Matheus Antes Schwede e Mateus de Oliveira Fornasier

A proteção dos direitos individuais no ambiente digital e os reflexos da ascensão 60


do populismo diante da crise da democracia liberal
Eliane Andréia Andreski da Silva e Rafael Zimmermann

A sociedade da informação e a desmitificação das denúncias de violência 69


intrafamiliar contra a criaça e o adolescente em suas plataformas
Jolair de Ávila Hass e Rosane Teresinha Carvalho Porto

A violência tem cara, cor e classe social: o racisimo ambiental como limitador ao 78
acesso da população negra a uma efetiva cidadania
Isabela Luisa Preichardt e Alini Bueno dos Santos Taborda

As cláusulas de superconstitucionalidade como mecanismo de proteção dos 89


direitos fundamentais sociais frente ao retrocesso social
Laerte Radtke Karnopp

As políticas públicas para adolescentes e jovens no estado brasileiro: uma análise 97


sob a ótica dos direitos humanos
Gilberto Natal Maas e Anna Paula Bagetti Zeifert

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Atuação do poder judiciário no enfretamento à violência contra mulheres no Brasil: 104


a justiça restaurativa enquanto política pública de acesso à justiça
Jaqueline Beatriz Griebler e Rosane Teresinha Carvalho Porto

Colonialidade e resistência nas favelas do Brasil: considerações a partir da (não) 114


atuação do Estado e do protagonismo das comunidades no combate à pandemia do
novo coronavírus
Rômulo José Barboza dos Santos e Denise Tatiane Girardon dos Santos

Covid-19, cientificidade e impessoalidade na administração pública: reflexões à luz 122


da obra Antígona
Gabriel Cemin Petry e Dailor dos Santos

Crise ambiental e refugiados climáticos: uma análise a partir da agenda 2030 da ONU 129
Bruno Rafael Rodrigues e Anna Paula Bagetti Zeifert

Da crise ambiental ao ambiente comum: bem vivier 136


Claudiomar Bonfá e Daniel Rubens Cenci

Economia colaborativa: uma alternativa sustentável para o consumo na égide da 146


sociedade líquida
Renata Vicente Duarte e Janaína Soares Schorr

Ecossocialismo e bem vivier como crítica à concepção do direito de 154


desenvolvimento sustentável
Daniel Rubens Cenci e Norberto Milton Paiva Knebel

Indústria cultural e a mesmidade: considerações acerca do consumo e da ética 161


Walter Lucas Ikeda e Rodrigo Valente Giublin Teixeira

La educación ambiental con una mirada al decrecimiento 167


Fernández María Angélica e Daniel Rubens Cenci

Novos olhares para tutela jurídica do meio amnbiente no sistema interamericano 178
de direitos humanos: o caso Nuestra Tierra vs. Argentina
Diogo Vieira da Cunha do Amaral Reis e Wellen Pereira Augusto

O direito à moradia e sua utopia: uma promoção desigual 186


Andressa Silva Souza e Jerônimo Siqueira Tybusch

O direito à saúde como ODS; foco nas políticas públicas para efetividade da agenda 192
2030 e seus desafios em tempos de pandemia no Brasil
Fernanda Cristina Savela Vieira e Adrieli Laís Antunes Aquino

Pós-verdade e o cenário de relativização da crise ambiental e sanitária no Brasil 201


Flávio Fagundes, Bruna Medeiros Bolzani e Elenise Felzke Schonardie

Refugiados do clima: paradoxos entre a justiça legal e a justiça social 208


Adrieli Laís Antunes Aquino e Fernanda Cristina Savela Vieira

Relaciones entre el Covid-19, los derechos de la natureza, los derechos humanos y 215
la ciudadanía
Mariela P. A. Báez e Daniel Rubens Cenci

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Um olhar para os reflexos da desigualdade étnico e socioeconômico no Brasil 223


Daiane Dias Rodrigues

GRUPO DE TRABALHO 4 - ESTADO, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

A antropologia em diálogo com a educação: uma etnografia sobre o atravessamento 231


de subjetividades no espaço escolar, diante da tolerância religiosa
Sthella Laryssa Barros Loureiro Lima

A atuação da administração pública dissociada de evidências científicas como 237


ato de improbidade administrativa: análise crítica a partir do entendimento do
Supremo Tribunal Federal
Amábily Mattner Mello e Dailor dos Santos

A atuação da defensoria pública na preservação do direito à saúde: a (des) 244


judicialização como instrumento de acesso a tratamentos médicos
Henrique Balduvino Saft Dutra e Dari Nass

A conscientização política como ferramenta de consolidação democrática Vanessa 252


Thomas Becker e Aline Antunes Gomes

A democracia e o pensamento juspositivista de Hans Kelsen 263


Bibiana Knorr de Moura, Aline Michele Pedron Leves e Gilmar Antonio Bedin

A depressão como doença do trabalho: um abismo em meio laboral da dignidade 270


humana
Nelci Lurdes Gayeski Meneguzzi e Carina Deolinda da Silva Lopes

A distopia da proibição do retrocesso social na garantia da implementação de 281


políticas públicas
Alexandre Nogueira Pereira Neto

A importância do reconhecimento dos novos danos: a teoria do desvio produtivo 289


do consumidor e as ações do Balcão do Consumidos da UNIJUÍ - campus Santa Rosa
Maria Aparecida Kowalski e Fernanda Serrer

A influência dos saberes locais da sociedade em rede na governança eletrônica 298


promovida pelo Estado Brasileiro
Norma Sueli Alves dos Santos Vidal

A justiça restaurativa como política pública de pacificação na escola: como romper 305
o paradigma da punição e prevenir a violência pela palavra
Damiane Silvana Dzielinski e Fabiana Marion Spengler

A mediação de Luis Alberto Warat e sua aplicabilidade na alienação parental: um 316


caminho (im)possível na (re)construção dos laços familiares
Francisco Ribeiro Lopes e Andressa Laste

A mediação no Processo Civil Brasileiro 324


Helena Schwantes e Fabiana Marion Spengler

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A urgência de políticas públicas de inclusão digital frente ao acesso à edução em 335


tempos de pandemia
Danielli Regina Scarantti

Dados e privacidade: reflexos entre o público infanto-juvenil no meio digital 344


Daniela Welter, Gabriely Ostwald Haas e Thami Covatti Piaia

Democracia, cultura de violência e direitos humanos 351


Enio Waldir da Silva

Democracia e vigilância digital em tempos de Covid-19: uma análise do direito à 360


autodeterminação informativa
Raíssa Arantes Tobbin e Valéria Silva Galdino Cardin

Democracias liberais: a fantasia jurídica da igualdade em tempos de pandemia 370


Daniela Andreatta e Leticia Sangaletti

Desigualdade e má nutrição: obstáculos ao desenvolvimento infanto-juvenil 376


Schirley Kamile Paplowski e Anna Paula Bagetti Zeifert

Direitos humanos em tempos de pandemia: como “assegurar uma vida saudável e 385
promover o bem-estar para todos”?
Evandro Luis Sippert e Janaína Machado Sturza

Educar para a vida republicana: a escola como parte da afirmação dos direitos 394
humanos e da república na sociedade contemporânea
Maria Carolina Magalhães Santos e Paulo Evaldo Fensterseifer

Entropia da política, do estado e da cidadania: a indiscernibilidade entre 402


democracia e estado de exceção
Késia Mábia Campana

Estado de Direito e liberdade de expressão: uma leitura da obra “Sobre a liberdade” 415
de John Stuart Mill
Kethlyn Mayara Mohnschmidt, Aline Michele Pedron Leves e Gilmar Antonio Bedin

Função moderadora das Forças Armadas? Os antecedentes do Golpe de 1964 e a 422


crítica a Alfred Stepan
Heloíse Montagner Coelho e Thieser da Silva Farias

Globalização, pandemia e trabalho no Brasil contemporâneo: disrupção e 431


retrocessos ou viabilidade e conformação
Régis Natan Winkelamann e Elenise Felzke Schonardie

Humanização dos direitos no olhar do cumprimento das medidas socioeducativas 441


dos atos infracionais
Dieniffer Portela Perotto Lopes e Fernanda Parussolo

Intersecções entre o princípio da solidariedade e os direitos sociais 448


Gabriel Marques Luzzardi e Luís Eduardo Abraham Silveira

Justiça social: da concepção à concretização e os desafios contemporâneos para 458


garantir a plena efetividade
Simone Paula Vesoloski e Josieli Fátima Vesoloski
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Loot boxes: os jogos eletrônicos estão se transformando em jogos de azar? 466


Rafael Sangoi e Stéfani Reimann Patz

Mediação digital: um avanço no acesso à justiça? 475


Fabiana Marion Spengler e Rafaela Matos Peixoto Schaefer

Medida de segurança: uma análise do Instituto Psiquiátrico Forense de Porto 485


Alegre, sob o olhar dos direitos humanos
Vera Lucia Martins dos Santos Veiga Rios

Moradores de rua à margem da pandemia da Covid-19: o retrato do descaso do ser 492


humano e os seus desafios
Ana Maria Foguesatto e Estela Parussolo de Andrade

O direito à saúde em tempos de pandemia: como a judicialização pode ser um 499


entrave para a efetivação da saúde pública
Caroline da Rosa Cavalheiro e Adriane Medianeira Toaldo

O impacto do Covid-19 (novo coronavírus) nas relações de consumo: percepções no 507


âmbito do Balcão do Consumidor da Unijuí Campus Três Passos
Alana Maísa Machado e Eliete Vanessa Schneider

O (não) lugar da identidade cigana e a necessidade de reconhecimento 517


Heleonora Flores Fontana e Doglas Cesar Lucas

O Projeto de Lei 3515/2015 e a tutela do consumidor superendividado: 524


mecanismos de efetivação do princípio da dignidade humana nas relações
consumeristas
Maikeu Alexandre Mallmann e Fernanda Serrer

O sistema penitenciário diante da pandemia: os neo-miseráveis sitiados ao sul do 534


sul da quarentena durante a excepcionalidade da exceção
Luan Fernando Dias e Maria Aparecida Lucca Caovilla

O uso da tecnologia como meio de mitigação dos efeitos da pandemia na Justiça do 546
Trabalho
Tânia Regina Silva Reckziegel

Os efeitos da lógica da divisão do trabalho social no direito 551


Luciano Augusto de Oliveira Paz e Gabriel Maçalai

Pandemic of disinformation: the figure of the charismatic leader and the impact of 561
fake news upon the public
Maurício Fontana Filho e Rodrigo Tonel

Políticas públicas, comunidade e danos colaterais 570


Fernanda Lavinia Birck Schubert e Patrick Meneghetti

Promoção de direitos humanos através de políticas públicas de memória: o caso 580


brasileiro em constante disputa
Fernanda R. Abreu Silva

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Reflexões sobre educação em direitos humanos na legislação brasileira 589


Ana Carolina Corrêa Salvio

Teoria da decisão que decreta a prisão preventiva: uma leitura crítica do Habeas 599
Corpus nº 126.292 do Supremo Tribunal Federal
Marcelo Gonçalves

Tipologia da violência e proteção social: os parâmetros éticos do estado entre a 609


subjugação e o absenteísmo
Humberto Acacio Trez Seadi

Transtorno do déficit da atenção e hiperatividade: uma análise da judicialização 616


envolvendo a política pública de educação inclusiva
Silvio Gama Farias e Reginaldo de Souza Vieira

Uma análise jurisprudencial e doutrinária acerca da imunidade tributária prevista 626


no art. 150, VI, alínea “d” da Constituição Federal
Daiane Caroline Tanski

Uma análise sobre a compatibilidade do instituto da colaboração premiada com o 634


Estado Democrático de Direito
Raquel Souza e Daiane Caroline Tanski

Violações de direitos humanos a pacientes suicidas: a necessidade de políticas 642


públicas de prevenção ao suicídio
Rodrigo Tonel e Janaína Machado Sturza

Vulnerabilidade nas sociedades latino-americanas 653


Vitória Agnoletto e Anna Júlia Bandeira Ceccato

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

GRUPO DE TRABALHO 3

CIDADE, AMBIENTE E
SUSTENTABILIDADE

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A PANDEMIA DA COVID-19 E SEU IMPACTO FRENTE À


VULNERABILIDADE DA SAÚDE INDÍGENA

Fabiane da Silva Prestes1


Ceres Daiane Gavioli Ramos2

RESUMO: O presente trabalho discorre sobre a saúde indígena, avanços e desafios no enfrentamento
da pandemia causada pelo vírus SARS-COV-19. Assim, os objetivos constituem em identificar
as principais referências que norteiam a saúde indígena no Brasil; analisar as principais medidas
de enfrentamento à doença e as relações com o reconhecimento e respeito aos conhecimentos
tradicionais e à atenção diferenciada. Em termos metodológicos, adota-se a pesquisa qualitativa,
com perfil exploratório, ancorada em técnicas de pesquisa bibliográfica e análise documental. Por
fim, entende-se que é urgente a implementação de medidas capazes de salvaguardar a vida do maior
número possível de indígenas.

Palavras-chave: Atenção diferenciada. Coronavírus. Indígenas.

INTRODUÇÃO

A saúde indígena e suas interlocuções com os direitos humanos, reconhecimento e diferença são
temáticas que merecem ser analisadas como instrumento para a transformação social. Os coletivos
indígenas enfrentam as questões relacionadas à saúde do corpo e do espírito por meio dos saberes
que norteiam a medicina tradicional, os quais foram desprezados no processo de colonização. Assim,
diante do contexto emergente, em razão do novo coronavírus, requer-se o seu fortalecimento e
atenção diferenciada.
Dessa forma, questiona-se: Em que medida as atuações dos órgãos públicos impactam nas
comunidades indígenas e reforçam a colonização da saúde indígena? Nesse passo, o objetivo geral
é identificar o impacto das ações desenvolvidas pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI, Secretaria
Especial de Saúde Indígena - SESAI, Governo Federal e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB
para o enfrentamento à pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2 nas comunidades indígenas.
Em termos metodológicos, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, de natureza exploratória-descritiva
através do método qualitativo. Foram analisados documentos emitidos pelos órgãos públicos, bem
como o Projeto de Lei 1.142/202, proposta inicial do plano emergencial de enfrentamento à Covid-19,
Lei 14.021/2020 e o Plano de Enfrentamento à COVID-19 “emergência indígena”, emitido pela APIB.
Partindo-se do pressuposto de que, para os coletivos indígenas, a saúde equivale à coexistência harmoniosa
dos seres humanos com a natureza, entre eles e com outros seres na busca do bem-estar, inicialmente são
descritos alguns avanços e retrocessos em termos da Saúde indígena no Brasil e, posteriormente, se discute a
pandemia do novo coronavírus e seu enfrentamento para e pelos coletivos indígenas.

1 SAÚDE INDÍGENA NO BRASIL: AVANÇOS E RETROCESSOS

No Brasil, a saúde indígena foi tratada de forma impositiva por mais de quatro séculos, portanto
ao longo deste período as peculiaridades dos indígenas foram desconsideradas, bem como seus
conhecimentos tradicionais foram desprezados e, sobretudo invisibilizados. A preocupação em

1 Doutora em Ciências pela UNIVATES. Bolsista PNPD/CAPES em estágio Pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em
Educação nas Ciências da UNIJUÍ. E-mail: fabianeprestes@gmail.com.
2 Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Santiago, Es-
pecialista em Educação para os Direitos Humanos pela FURG, Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Damásio.
Advogada. E-mail: ceres.dramos@gmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

conceder ao indígena uma atenção diferenciada é recente, datando do final dos anos de 1980, quando
foi realizada a I Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio.
O princípio de atenção diferenciada no qual se refere a situação multicultural de ações e serviços de
saúde indígena foi expresso inicialmente na I Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, realizada
em 1986. Baseada numa proposta de reforma sanitária, a Conferência objetivava avaliar a situação de
saúde dos índios e criar uma política efetiva para os povos indígenas (LANGDON; DIEHL, 2007).
O período em que a Conferência foi realizada coincidia com a reforma Constituinte, que
posteriormente, promulga a Constituição brasileira de 1988, a qual integra o ciclo do Constitucionalismo
da América Latina, e rompe com o paradigma tutelar de tratamento dos povos indígenas, reconhecendo
estes em sua diversidade e os elevando a sujeitos de direitos. Pode-se dizer que as disposições
constitucionais atinentes à saúde representam o primeiro passo para a descolonização da saúde
indígena, ainda que haja um significativo percurso entre as propostas e efetividades.
Em 1992 o Brasil vivencia a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
e o Desenvolvimento, também conhecida como ECO-92. Esta relevante Conferência proporcionou
grandes avanços sobre a questão ambiental, ademais, proporcionou a elaboração da Carta da Terra
dos Povos Indígenas que estatui que “o direito dos povos indígenas à saúde deve incluir a sabedoria
tradicional dos anciões e curandeiros indígenas. O reconhecimento à medicina tradicional e seu poder
preventivo e espiritual devem ser reconhecidos e protegidos contra formas de exploração” (ONU,
1992, texto digital). Sendo um documento de caráter internacional, a referida carta aborda sobre a
medicina tradicional, evidenciando as doenças do corpo e do espírito, representando um instrumento
descolonial que deveria ser observado na efetivação da saúde indígena.
A II Conferência Nacional de Proteção da Saúde do Índio que ocorre em 1993 estabelece
princípios norteadores para o modelo de gestão diferenciado, de modo que, os debates conjecturaram
pontos que resultariam, posteriormente, na aprovação da Lei Arouca (BRASIL, 2009). Esta lei institui o
Subsistema de Saúde Indígena (SasiSUS), como a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas
(DSEIs) responsáveis por organizar o atendimento à saúde indígena em sua área de abrangência.
Em 1999 entra em vigor a Lei 9.836, que acrescenta dispositivos à Lei 8.080, de 19 de setembro
de 1990, dispondo sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, instituindo o Subsistema de Atenção
à Saúde Indígena. Convém salientar que a Lei 8080, que estabeleceu o Sistema Único de Saúde (SUS),
na sua redação inicial, assegurava sobre as ações e serviços de saúde, não trazendo referências aos
indígenas. Assim, a lei sancionada em 1999, denominada como “Lei Arouca”, é considerada como
marco regulatório da atenção à saúde da saúde indígena (BRASIL, 2009). No mesmo ano, por meio
do decreto 3156 de 1999, o governo outorga a Fundação Nacional de Saúde, a responsabilidade de
gerenciar a saúde dos povos indígenas.
A III Conferência Nacional sobre povos indígenas, realizada em 2001, teve como finalidade
analisar os obstáculos e avanços do Sistema Único de Saúde (SUS) na implantação dos Distritos
Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) e propor diretrizes para a sua efetivação (SILVEIRA; OLIVEIRA,
2005). Esta Conferência se torna essencial para a ruptura colonial, pois evidencia em seu relatório
que cada povo indígena possui suas próprias concepções, valores e formas de encarar o processo
adoecer/curar. Assim, mostra-se promissora ao reconhecer a diversidade entre cada etnia indígena,
rompendo com a ideia de universalidade destes povos.
Em 2006 foi realizada a IV Conferência Nacional de Saúde Indígena, a qual tece como tema
central orientar as discussões sobre os Distritos Sanitário Especial Indígena, relativas ao território de
produção de saúde, proteção da vida e valorização das tradições. Uma das observações da Conferência
diz respeito às ações para a promoção da saúde dos povos indígenas, que considerem a integração
da medicina tradicional e efetividade das propostas de saúde. Entre as resoluções aprovadas destaca-
se o incentivo da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA para a valorização dos saberes tradicionais,
sobretudo, das mulheres indígenas: parteiras, benzedeiras, dos pajés e detentores de conhecimento
no preparo de alimentos (BRASIL, 2007).
Em nível internacional, o ano de 2007 é um marco para os direitos dos povos indígenas, já que, em
Nova Iorque - a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) - aprovou a Declaração das
Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas. No que tange a descolonização da saúde indígena,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

o artigo 241 é significativo ao determinar que os povos indígenas de todo o mundo “têm direito a seus
medicamentos tradicionais e a manter suas práticas de saúde, incluindo a conservação de suas plantas,
animais e minerais de interesse vital do ponto de vista médico” (ONU, 2008, texto digital).
Em 2010, houve uma modificação das estruturas atinentes à saúde indígena, sendo criada a
Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), por meio do decreto 7.336. Cumpre ressaltar que a
criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena, na área do Ministério da Saúde, constituía uma
constante reivindicação dos povos indígenas. Assim, a SESAI foi criada para coordenar e executar o
processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena em todo Território Nacional. Cabendo
a esta secretaria coordenar e avaliar as ações de atenção à saúde no âmbito do Subsistema de Saúde
Indígena: promoção, articulação e a integração com os setores governamentais e não governamentais
que possuam interface com a atenção à saúde indígena. 
Com a criação da SESAI são estabelecidos os Distritos Especiais de Saúde Indígena, os quais
totalizam 34 DSEIs e estão divididos estrategicamente por critérios territoriais tendo como base
a ocupação geográfica das comunidades indígenas. Ademais, a estrutura de atendimento à saúde
indígena conta com postos de saúde, Polos base e as Casas de Apoio da Saúde Indígena (CASAIs). O Rio
Grande do Sul é atendido pelos Distritos Especiais de Saúde Indígena de nº 13 e nº 17, denominados
interior sul e litoral sul, respectivamente. O DSEI nº 13 abrange quatro estados: São Paulo, Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, atendendo 169 aldeias, referentes a oito etnias diferentes, já o
DSEI nº 17 abrange cinco estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, atendendo 181 aldeias, referentes a seis etnias diversas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014). Cumpre
destacar que, mesmo o Rio Grande do Sul sendo o estado com maior população indígena da região
Sul, não foi implementada uma Casa de Saúde do Índio, sendo que na região há apenas um destes
centros de referência especializado para o atendimento dos indígenas em situação de enfermidade, a
qual está sediada em Curitiba, Paraná (SILVEIRA; OLIVEIRA, 2005).
Em 2014, é realizada no Brasil, a V Conferência Nacional de Saúde Indígena, onde são aprovadas
propostas voltadas para a valorização da cultura indígena, prevendo associar conhecimentos indígenas e
não indígenas na indicação de medicamentos; reconhecer e respeitando o conhecimento milenar, implan-
tar farmácias vivas e laboratórios de manipulação, promover condições de trabalho aos conhecedores da
medicina tradicional; garantir a valorização dos terapeutas da saúde indígena, tais como: parteiras, pajés,
benzedores e benzedoras, rezadores e rezadores, raizeiros, conhecedores de ervas, pegadores de ossos,
cantadores e curadores; assegurar o respeito a práticas tradicionais de cura e autocuidado.

2 A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS SEU ENFRENTAMENTO

Em março de 2020 a Organização Mundial da Saúde- OMS decretou estado de pandemia devido
à incidência de infecção pelo SARS-CoV-2. A partir da segunda quinzena de março, o Brasil passou a
adotar orientações de distanciamento social como medida para desacelerar a transmissão do novo
vírus e, consequentemente, evitar o colapso do sistema de saúde. Contudo, as medidas de contenção
do novo vírus não alcançaram, efetivamente, as populações indígenas, tanto pela dificuldade de
compreensão das orientações em língua portuguesa quanto pelas organizações sociais e familiares
específicas, como por exemplo, as casas compartilhadas. Destaca-se que, “a epidemia de COVID-19
traz o risco de um novo genocídio, em um cenário já caracterizado por violações sistemáticas de
direitos e intensa violência contra os indígenas” (PONTES, et. al, 2020, p.02).
De acordo com o Instituto Socioambiental o governo foi omisso na proteção dos indígenas
durante a pandemia. Muitos órgãos públicos que deveriam ter adotado medidas profícuas para o
enfrentamento, não só descumpriram suas obrigações, mas também estabeleceram medidas de
enfrentamento sem dar direito de voz aos coletivos indígenas, ou desprezando a medicina tradicional.
Em março, logo após as primeiras notificações sobre a pandemia, a FUNAI suspendeu ações
assistenciais, cortando cestas básicas em Terras Indígenas e consequentemente, contribuindo para
a violência, desnutrição e vulnerabilidade a COVID-19 (SIQUEIRA; RIBEIRO, 2020). Em 15 de março
de 2020, a SESAI emite o primeiro informe técnico, recomendando o isolamento domiciliar de
indígenas sintomáticos e que não necessitem hospitalização, contudo, cumpre enfatizar que em casas

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

compartilhadas, o vírus pode se espalhar com maior rapidez. Posteriormente, a SESAI, sem consultar
lideranças indígenas, elabora um plano de contingência para a COVID-19 reproduzindo medidas da
ANVISA e sem detalhar ações específicas para as populações indígenas.
Ainda no mês de marco, a FUNAI emite um boletim de serviço: PORTARIA Nº 419/PRES,
estabelecendo medidas temporárias de prevenção à infecção e propagação do novo Coronavírus,
a Portaria restringe o ingresso em Terras Indígenas, mas não garante proteção contra invasões de
garimpeiros e madeireiros (FUNAI, 2020).
No final de março, indígenas de diversos coletivos começaram a reclamar da falta de ação dos
agentes públicos, anunciando a adoção de suas próprias medidas. Nesse contexto, a SESAI emitiu
um novo informe técnico, orientando os profissionais de saúde a tratar indígenas sintomáticos sem
fazer testes para comprovação do novo vírus. O informe também ignora que comunidades indígenas
estejam em contextos de transmissão comunitária do novo coronavírus.
O primeiro caso confirmado de contaminação por Covid-19 entre indígenas brasileiros foi de
uma jovem de 20 anos do povo Kokama, no dia 25 de março, no município amazonense Santo
Antônio do Içá. A indígena infectada é agente de saúde e contraiu a doença após ter contato com um
médico diagnosticado após retornar de férias. Cumpre destacar que até o momento do contágio, a
quarentena dos profissionais de saúde não estava presente nos informes da SESAI. Diante do fato, a
secretaria orientou os indígenas para evitarem deslocamentos entre aldeias e centros urbanos.
Apesar disso, o Presidente da República sanciona a lei do auxílio emergencial, legislação que contem-
pla os indígenas por serem populações de baixa renda, mas que não prevê políticas para evitar o contágio.
Ou seja, muitos indígenas não têm acesso à internet e precisaram deslocar-se de suas terras indígenas até
as cidades para solicitar o benefício e posteriormente, enfrentaram filas e aglomerações para sacá-lo.
Em abril, foram registrados os primeiros óbitos de indígenas por COVID-19, na maioria dos
casos, a transmissão se deu por contato com garimpeiros ilegais (VIANEY, 2020). Apesar do crescente
número de contaminados, a FUNAI permite que não indígenas permaneçam dentro de Terras Indígenas
(FUNAI, 2020). Diante do quadro de vulnerabilidade da ineficácia das medidas protetivas, logo as
CASAIs do Amazonas e de Roraima tornam-se fonte de contaminação entre indígenas.
Em 28 de abril de 2020 foi realizado o seminário “Vulnerabilidades, impactos e o enfrentamento ao
Covid-19 no contexto dos povos indígenas: reflexões para a ação”, organizado pela Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB) e pelo Observatório Covid-19 da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). O evento
contou com apoio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), do Instituto Socioambiental (ISA), da As-
sociação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO).
Do evento resultou um documento com objetivo compartilhar contribuições que possam subsidiar as ações
de enfrentamento da pandemia junto a essa população, com atenção a suas especificidades. O relatório
destaca a presença de indígenas em todas as regiões brasileiras; que na população indígena da Amazônia
Legal houve aumento na proporção de hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave; que há
elevada vulnerabilidade demográfica e infraestrutural entre os povos indígenas face o COVID-19; a vulnera-
bilidade dos indígenas em situação urbana; a vulnerabilidade dos povos isolados e de recente contato; que
a circulação entre cidade e aldeia facilita o contágio; que modelos indicam conexão entre ataque a direitos,
invasão e contaminação de territórios indígenas, e aumento da vulnerabilidade à pandemia; enfrentamento
ao COVID-19 demanda atuação urgente, articulando diferentes setores; que é necessário operacionalizar as
recomendações de saúde para contextos como as aldeias, serviços de saúde e as Casas de Apoio à Saúde
Indígena (CASAI); que é fundamental adotar medidas para garantir a proteção, a segurança alimentar e o
bem estar dos povos indígenas; garantir materiais de comunicação diferenciados (PONTES, et. al., 2020).
A partir de junho, o coronavírus se alastrou por diversas Terras Indígenas, chegando ao vale do
Javari e no Território Indígena do Xingu. Até o final daquele mês, já haviam sido registrados 13.801
contaminados e 493 mortos, sem levar em conta as subnotificações. Apesar das articulações e
do protagonismo indígena na elaboração de um plano ideal de enfrentamento a COVID-19, em 07
de julho é sancionada a Lei 14. 021, que “institui medidas de vigilância sanitária e epidemiológica
para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas, cria o Plano
Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas” (BRASIL, 2020). A Lei estipula,
ainda, medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos
e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Ao comparar-se a Lei 14.021 com o Projeto de Lei 1.142/202, proposta inicial do plano emergencial
de enfrentamento à Covid-19 constatou-se 22 vetos, entre eles o acesso à agua potável; elaboração e
distribuição de materiais informativos respeitando a diversidade linguística; distribuição de materiais
de higiene, limpeza e desinfecção; garantia de leitos hospitalares, distribuição de cestas básicas
e a facilitação do acesso ao recebimento do auxílio emergencial em áreas remotas, entre outras
previsões capazes de garantir que os serviços de saúde estejam relacionados com a comunidade,
sendo planejados, administrados e cooperados em parceria com os povos interessados.
Dessa forma, constatou-se que o referido plano emergencial, ainda que trouxesse avanços necessá-
rios, negou direitos fundamentais, comprometendo a garantia dos coletivos indígenas enfrentarem com
segurança e autodeterminação este período tão desafiador para as suas sobrevivências. Diante disso,
diversos seguimentos reuniram-se no pedido de que o Congresso Federal derrubasse os vetos presiden-
ciais. Nesse alinhamento, a Câmara dos Deputados aprovou em 19 de agosto de 2020, por 454 votos a
14, em sessão virtual do Congresso Nacional, a derrubada de 16 vetos presidenciais às medidas de prote-
ção social e combate à Covid-19 nos territórios indígenas e quilombolas. O Congresso Nacional terá nova
sessão deliberativa em setembro, para a votação dos vetos presidenciais (AGÊNCIA DO SENADO, 2020).
Frente à disseminação do vírus nas comunidades indígenas, a APIB lançou a proposta: “Emergência
indígena: Plano de enfrentamento da Covid-19 no Brasil”. Este plano elaborado pelo movimento indígena
é dividido em três eixos, Eixo 1 - Ações Emergenciais de Cuidado Integral e Diferenciado no Controle
da Covid-19 9 Eixo 2 - Ações Judiciais e de Incidência Política 14 Eixo 3 - Ações de Comunicação e
Informação em Saúde. Cumpre enfatizar que, tais propostas resultam de processos participativos:
Acampamento Terra Livre e a Assembleia Nacional de Resistência Indígena (ambos realizados de
modo virtual em 2020 em função da pandemia), que contaram com um significativo número de
lideranças indígenas do país, além de especialistas em saúde indígena de diversas organizações da
sociedade civil. Destaca-se, ainda, que a APOINME – Articulação dos Povos e Organizações Indígenas
do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, ARPINSUDESTE – Articulação dos Povos Indígenas do
Sudeste, ARPINSUL – Articulação dos Povos Indígenas do Sul, ATY GUASSU – Grande Assembleia do
Povo Guarani, COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, Conselho
Terena e a Comissão Guarani Yvyrupá, assim o referido plano (APIB, 2020).
O Eixo 1 fundamenta-se na Recomendação 11-2020/MPF do Ministério Público Federal que destaca
“a situação de especial vulnerabilização social e econômica a que estão submetidos os povos indígenas
no país, bem como que as dificuldades logísticas de comunicação e de acesso aos territórios agravam
o risco de genocídio indígena” (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2020). Nesse contexto, a APIB defende
a articulação de ações entre a Frente Parlamentar Mista de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas,
o Fórum Permanente de Defesa da Amazônia, Frente Ambientalista, Frente de Direitos Humanos,
Frente Quilombola, associações científicas, nacionais e internacionais, Ministério Público Federal (MPF),
Defensoria Pública da União (DPU), movimentos sociais e a sociedade civil organizada (APIB, 2020).
Desse modo, é reivindicada a testagem dos profissionais de saúde que atuam diretamente na
saúde indígena; a vigilância à COVID-19 por meio de articulação entre Secretarias de Saúde, LACENs,
Fiocruz e universidades; aquisição de equipamentos, medicamentos e demais insumos para ao
tratamento da doença; que a SESAI estruture hospitais de campanha e enfermarias; que seja garantido
o contingente necessário de trabalhadores nas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena; adequar
serviços de telemedicina; adequar as CASAIS para o acolhimento e isolamento dos infectados; a
garantia de vagas em hospitais e unidades de terapia intensiva; a necessidade de protocolos de
óbitos levando em conta as características culturais de cada coletivo; o apoio de recursos de logística,
disseminação de informações, entre outros (APIB, 2020).
No Eixo 2 é reivindicada a imediata demarcação, regularização, fiscalização e proteção de todas
as terras indígenas e a anulação do Parecer 001/17, da Advocacia Geral da União, que viola direitos
reconhecidos em instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos. Requerendo que
sejam arquivadas as iniciativas da bancada ruralista; que o Judiciário suspenda todas as ações de
reintegração de posse ou anulatória de terra indígena impetrada por invasores; que Supremo Tribunal
Federal julgue, com a maior brevidade, o Recurso Extraordinário – RE nº 1.017.365, o qual dispõe
sobre o indigenato; que seja revogada a Instrução Normativa 09, de 16 de abril de 2020, publicada
pelo presidente da FUNAI, na edição de 22 de abril do Diário Oficial da União (DOU), que permite, de

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

forma ilegal e inconstitucional, o repasse de títulos de terra a particulares dentro de áreas indígenas
protegidas pela legislação brasileira; que seja arquivado o Projeto de Lei n.º 2.633/20 que tenta
legalizar a grilagem nos territórios indígenas; que seja arquivado o Projeto de Lei n.º 191/2020 que
regulamenta a pesquisa e a lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e o aproveitamento de
recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas; entre outros (APIB, 2020).
O Eixo 3 requer que todos os casos de indígenas infectados sejam notificados, independente
de ocorrer em Terras Indígenas não regularizadas ou em áreas urbanas, e que a classificação se dê,
preferencialmente, pelo critério da autoidentificação. A APIB entende que o Brasil ainda carece de
uma informação realística sobre o perfil da população indígena, e deve ser investido no acesso a
informação entre Funai, IBGE, SESAI, DATASUS (APIB, 2020).
Dessa forma, percebe-se que o plano emergencial proposto pelo movimento indígena leva em
consideração a autodeterminação dos povos indígenas, a observância das peculiaridades de cada grupo
étnico, desde o tratamento até a forma como são administrados os óbitos. Trata-se de um plano pensado
e escrito por lideranças indígenas que estão cientes das reais necessidades de cada grupo.
De acordo com os dados oficiais, até o dia 23 de setembro de 2020, o número de casos em terras
indígenas é 27098 (vinte sete mil e noventa e oito), e o número de óbitos é de 431 (quatrocentos e trinta
e um) indígenas. Contudo, a APIB juntamente com o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena vem
realizando um levantamento independente dos casos, cujos dados de infectados aproximam-se dos
33000 (trinta e três mil). Por fim, destaca-se que essas “mortes indígenas não são apenas números,
são pessoas, memórias e histórias dos povos que encontram-se sob forte ameaça” (APIB, 2020, p. 05).
É inquestionável que todas as vidas humanas importem e que cada óbito não represente apenas um
número, mas sim, um cidadão brasileiro. Entretanto, quando esses óbitos são de indígenas, parte do
patrimônio imaterial se perde juntamente com eles.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, se percebe a necessidade da descolonização da saúde indígena, por meio do


reconhecimento dos saberes tradicionais ancestrais, da valorização das práticas da medicina tradicional
e do respeito aos detentores deste conhecimento. Foram feitas considerações atinentes à saúde
indígena em nível nacional, destacando-se os principais sistemas e documentos que reconhecem a
importância da atenção diferenciada no atendimento ao indígena, bem como, sobre o entrelaçamento
entre a medicina tradicional e a medicina não indígena.
No que tange ao enfrentamento do coronavírus, se percebe as medidas que estão sendo tomadas
tratam de forma igualitária a saúde indígena e a dos demais cidadãos brasileiros não indígenas.
Percebe-se que as propostas estão longe de serem efetivadas, pois para tanto, requer que haja uma
melhor estrutura nesse sentido. Contudo, enquanto medidas eficazes e com a observância da atenção
diferenciada deixam de serem executadas, muitas vidas estão sendo perdidas. Por derradeiro, entende-
se que é urgente a implementação de um plano de enfrentamento ao coronavírus para e pelos coletivos
indígenas, não se trata apenas de enfrentar uma doença, mas de evitar um genocídio indígena.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/08/28/congresso-define-
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APIB. Emergência indígena: Plano de enfrentamento da Covid-19 no Brasil. Disponível


em: http://apib.info/files/2020/06/Plano-Indi%CC%81gena-de-Enfrentamento-ao-Covid-19-
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BRASIL, Fundação Nacional de Saúde. 4º Conferência Nacional de Saúde Indígena. 4º Conferência


Nacional de Saúde Indígena, Rio Quente-GO, 27 a 31 de março de 2006: relatório final. Brasília:

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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Fundação Nacional de Saúde. - Brasília : Funasa, 2009.

BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde, 2002. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf> Acesso em 20 set. 2020.

BRASIL. Lei 14021 de 07 de julho de 2020. Dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção
do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para
Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula medidas de apoio às comunidades
quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o
enfrentamento à Covid-19; e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte
de recursos adicionais nas situações emergenciais e de calamidade pública. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14021.htm#:~:text=1%C2%BA%20Esta%20Lei%20
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LANGDON, Esther Jean; DIEHL, Eliana E. Participação e autonomia nos espaços interculturais de
saúde indígena: reflexões a partir do sul do Brasil. Saúde e sociedade, v. 16, n. 2, p. 19-36, 2007.

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PONTES, Ana Lucia; ALARCON, Daniela Fernandes; KAINGANG, Joziléia Daniza; SANTOS, Ricardo
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SILVEIRA, Elaine da. OLIVEIRA, Lizete Dias de. Etnoconhecimento e saúde dos povos indígenas
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SIQUEIRA, Rosana. RIBEIRO, Liniker. Índios vão à Assembleia lembrar que fim de cestas básicas gera
desnutrição. Campo Grande News. Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/cidades/capi-
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VIANEY, João. Morre em Roraima o primeiro indígena Yanomami contaminado com CO-
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digena-yanomami-contaminado-com-coronavirus-em-roraima. Acesso em 19 set 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ASSOCIAÇÕES DE CATADORES DO MUNICÍPIO DE IJUÍ:


DESAFIO AO PODER PÚBLICO PARA PROMOÇÃO
DA SUSTENTABILIDADE

Marlanda Patrícia Caure da Cunha3


Cleusa Adriane Menegassi Bianchi4

RESUMO: As associações de catadores e seus respectivos associados representam importância


social, econômica e ambiental para a sociedade. Apesar da falta de incentivo através de políticas
públicas, esta classe de trabalhadores luta incansavelmente pelos seus direitos, contribuindo
significativamente, para a construção de um planeta mais justo e ambientalmente equilibrado.
Desse modo, o presente trabalho tem por objetivo geral elencar os aspectos relativos às atividades
desenvolvidas pelos catadores de materiais recicláveis, bem como sobre as dificuldades enfrentadas
pelas suas associações, destacando a importância da construção de estratégias a fim de promover à
sustentabilidade e preservar os serviços ecossistêmicos essenciais à sobrevivência da humanidade.

Palavras-chave: associações de catadores; políticas públicas; serviços ecossistêmicos;


sustentabilidade

INTRODUÇÃO

Atualmente inúmeras famílias encontram em meio a materiais descartáveis, a oportunidade


de terem uma fonte de renda, é o caso dos catadores. Segundo dados disponibilizados pelo MNCR-
Movimento Nacional de catadores de materiais recicláveis, estima-se que existam no Brasil cerca de
800 mil catadores em atividade, sendo que 70 % desta estimativa são mulheres, demonstrando o
empoderamento e o reconhecimento de direitos da classe feminina na sociedade.
Apesar de os catadores agregarem muitos benefícios socioeconômicos e atuarem na preservação
de serviços ecossistêmicos, ainda assim não são valorizados por todo o esforço e trabalho desenvolvido.
Da mesma maneira, as associações de catadores que dependem de recursos externos, sentem-se
desamparadas, principalmente pelo descaso por parte dos gestores públicos.
Certamente o grande problema que enseja no meio ambiente, esteja baseado na falta de uma
clara política urbana nacional. Desse modo, existe uma grande dificuldade em realizar investimentos
necessários na infraestrutura das associações de catadores, sendo deixados de lado vários recursos
que seriam decisivos para diminuição dos impactos a biodiversidade.
A busca de estratégias através de políticas de inclusão social visando melhorar a qualidade de
vida dos catadores de materiais recicláveis é algo desafiador, que demanda muito trabalho. Para que
essas ações se concretizem, faz-se necessário o envolvimento de todos em prol do mesmo objetivo,
a promoção da sustentabilidade.
Ao se projetar a construção de um planeta mais sustentável, é preciso repensar certos costumes
e culturas diferentes. Especialmente quando se almeja atingir alguns objetivos com, por exemplo, o
consumo consciente.
Diante da evolução dos meios de produção, facilitou-se o acesso à aquisição de muitos produtos
e serviços, criando “certa” necessidade ao ser humano em consumir cada vez mais. Ocorre que esse
consumo desenfreado trouxe diversas consequências para a sociedade, entre elas, uma altíssima
demanda incorreta de descarte de resíduos.

3 Estudante. Mestranda em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade- PPGSAS/Unijuí/RS. E-mail: patycunha.cunha23@gmail.com.


4 Doutora em Agronomia. Professora do PPGSAS- Programa de Pós Graduação em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade
da Unijuí/RS. E-mail: cleusa.bianchi@unijui.edu.br

20
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Além disso percebe-se um crescimento das desigualdades sociais, frente a um consumo


descontrolado, uma vez que nem todas as pessoas apresentam as mesmas condições sociais e
econômicas de acesso a evolução tecnológica do mundo.
A partir desta problemáticas é preciso repensar em estratégias capazes de regular essas ações,
prevalecendo o reconhecimento de direitos e valorizando principalmente atividades atuantes em prol do
desenvolvimento econômico, social e ambiental da sociedade, como é o caso da atividade do catador.
É extrema a relevância do papel dos catadores e das suas respectivas associações, pois são eles
os grandes protagonistas do atual cenário de degradação dos serviços ecossistêmicos, sendo ainda
os principais executores da coleta seletiva nos municípios do Brasil, conforme a figura a seguir:

Figura 1: Uma visão da importância da atividade de catador nos municípios brasileiros

FONTE: CEMPRE (2018)

No entanto, a grande implicação que surge em torno desta atividade, é a falta de incentivos e
valorização dela. A grande maioria dos catadores recebe muito pouco pelo material coletado, sem
falar nos riscos que correm ao adentrar em muitos lixões a céu aberto, grande parte, senão todos em
situações precárias.
Sendo assim, é preciso cada vez mais incluir a classe dos catadores na sociedade, compreendendo
que o seu trabalho é condição primordial para a mudança dos atuais paradigmas, possibilitando o
desenvolvimento sustentável que tanto se almeja. Para isso ocorra, se faz necessário substabelecer
como eles se organizam em seu ambiente de trabalho, destacando as principais dificuldades
enfrentadas no seu dia a dia, conforme será descrito a seguir.

1 METODOLOGIA

Primeiramente é preciso relatar brevemente as associações envolvidas neste trabalho. A ARL 6-


Associação de recicladores da linha 6, situada no bairro Novo Leste de Ijuí, contempla uma área de
150 m², tendo iniciado suas atividades desde o ano de 2012.
A Galera da Reciclagem, desenvolve suas atividades desde 2013, estando localizada aos fundos
do Parque de Exposição Wanderley Burmann, na linha 4 leste de Ijuí, recebe materiais nas terças,
quintas e sábados.
Já a ACATA- Associação de catadores de matérias recicláveis de Ijuí desenvolve suas atividades
desde o ano de 2005. Localizada no bairro Luiz Fogliatto de Ijuí, conta com cerca de 12 associados.
Todavia, o estudo será feito através de fontes bibliográficas, referentes à importância e
desafios das associações de catadores de modo geral, especialmente das que abrangem o município
de Ijuí, destacando a importância desta atividade para a sociedade, bem como a necessidade de
comprometimento dos gestores públicos, ao incentivo destes trabalhadores, visando à promoção da
sustentabilidade.

21
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2 RESULTADO E DISCUSSÃO

Inicialmente é preciso reconhecer o papel das associações de catadores do município de Ijuí,


como se organizam e a sua significância. Desse modo é essencial mencionar as perspectivas das
associações de modo geral, sendo elas: juntar forças em prol de um objetivo comum, melhoria de
trabalho e de melhores condições na qualidade de vida; comercialização de um maior número de
materiais recicláveis; mobilização e sensibilização da sociedade sobre a realidade dos catadores e
preservação dos serviços ecossistêmicos (BAGGIO, 2020).
A nível nacional, segundo a CBO- Classificação Brasileira de Ocupações, a atividade de catador
foi reconhecida no ano de 2002. Ocorre que o problema persiste no não reconhecimento do catador
de material reciclável como um profissional, digna de um salário-mínimo, décimo terceiro, férias,
entre outros direitos (MAIA, 2015).
Vale destacar que no município de Ijuí, o movimento das associações ganhou forças a partir
da Lei municipal 5.096 de 7 de outubro de 2009, onde se evidenciaram suas atividades, passando a
surgir diversas associações a partir deste marco legal, representando uma conquista alcançada aos
catadores de materiais recicláveis.
Atualmente, em decorrência da crise econômica e o aumento da taxa de desemprego, inúmeras
famílias passaram a desenvolver a atividade de catador. No município de Ijuí, não é diferente, percebe-
se cada vez mais a inserção desses trabalhadores na sociedade.
Existem diversas associações de catadores no município de Ijuí, destacando-se entre elas: ARL
6, GALERA DA RECICLAGEM E ACATA. Cada uma delas apresenta algum diferencial que as destacam
neste mercado de trabalho.
A associação ARL 6, apresenta uma proposta diferente de organização, incluindo nesta, apenas
familiares, desenvolvendo suas atividades numa carga horária mais estendida de 10 hs/ dia.
A associação GALERA DA RECICLAGEM se destaca por possuir um caminhão próprio de porte
médio na qual faz o recolhimento de materiais nas empresas e nas ruas do município de Ijuí.
Já a associação ACATA, é associação mais antiga de Ijuí, são 15 anos de atividade, contando
com a assessoria da Incubadora de Economia Solidária da Unijuí, na qual desenvolve um projeto de
extensão voltado para o desenvolvimento dos trabalhadores, possibilitando a organização e geração
de uma fonte de renda aos mesmos.
A implementação das associações aos catadores no município de Ijuí, permitiu o avanço de
muitos trabalhadores, agregando muitos benefícios aos mesmos, sendo eles: geração de fonte de
renda, inclusão social destes trabalhadores e promoção da sustentabilidade.
A geração de renda possibilita que os catadores promovam a subsistência de suas famílias. No
entanto, tal perspectiva desencadeia um grande desafio, uma vez que eles dependem exclusivamente
dos materiais recicláveis, sendo que grande parte destes produtos sofrem desvalorização a cada ano,
representando dificuldades na segregação da renda.
Quanto à inclusão social dos catadores é condição primordial para a sua motivação e persistência
na luta e conquista de direitos. Desse modo o incentivo através dos gestores públicos por meio de
ações de aproximação destes trabalhadores, trazem benefícios sociais, econômicos e ambientais.
Apesar de grandes avanços conquistados pelos catadores e associações de materiais recicláveis,
ainda existem grandes lacunas a serem preenchidas, como por exemplo: a falta de incentivo por parte
dos gestores públicos no município de Ijuí.
Outra questão que implica nas atividades das associações é a qualidade dos materiais recicláveis
oriundos da coleta seletiva. Sendo que a principal queixa das associações do município de Ijuí é de
que chegam até elas muitos materiais misturados, sendo um desafio enorme para quem depende
apenas de materiais recicláveis para a comercialização.
Certamente, a construção de ações voltadas a um consumo mais consciente e sustentável,
contribuiria para uma demanda de produtos descartados corretamente, melhorando por consequência
o trabalho dos catadores, facilitando o acesso destes trabalhadores a materiais de qualidade e possíveis
de serem reaproveitados através da reciclagem.
Nesse sentido, colabora o entendimento de Laura Prada e André Giancini de Freitas apud Camargo
(2004, págs. 448 e 449):

22
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O primeiro passo para incentivar cidadãos e cidadãos brasileiras o consumo de forma sustentável
é oferecer-lhes informação sobre todos os aspectos que envolvem a fabricação de determinado
produto e conscientizá-los da importância de se optar por produtos harmônicos com as questões
sociais e ambientais. É importante considerar também que um consumidor consciente procura a
informação e um consumidor bem informado se torna consciente.

A nível mundial, um dos países que lidera ações voltadas para um consumo consciente, é a
Alemanha. Graças a uma forte cultura de reuso dos resíduos sólidos, tal país consegue reaproveitar
96% de alumínio, 90,2% de papel, 86,1% de vidro e 49,4 % de plástico (SENADO FEDERAL, 2020).
No Brasil, segundo dados da Abralatas- Associação Brasileira de Fabricantes de Latas de Alta
Reciclabilidade, em parceria com a Abal- Associação Brasileira do alumínio, só no ano de 2016 foram
recicladas 280 mil toneladas de latinhas, demonstrando liderança desse material quanto a reciclagem.
No entanto, percebe-se que muito ainda pode ser feito em temos de melhorar o ranking, a fim de
tornar o Brasil um país mais sustentável.
Quanto aos municípios, especialmente no município de Ijuí, percebe-se um envolvimento maior da
população em busca de ações mais sustentáveis com relação aos materiais residuais descartáveis. Um dos
motivos que justifica essa melhora são iniciativas próprias de alguns cidadãos que priorizam a preservação
de serviços ecossistêmicos, como é o caso do serviço prestado pelas associações de catadores.
Todavia, apesar desse incentivo, nota-se um desestímulo por parte destes trabalhadores que
dependem exclusivamente da coleta de materiais residuais. Isso decorre, do valor que é pago por
cada tipo de material, aonde muitos ao invés de sofrerem acréscimo, são desvalorizados. A tabela a
seguir demonstra a realidade dos materiais comercializados no município de Ijuí:

Tabela 1- Valores de materiais comercializados por tipologia


MATERIAL 2019/ R$ 2020/R$

Litro branco 1,60 1,40

Litro verde 1,40 1,20

Papelão 0,38 0,35

Papel jornal 0,15 0,15

Plástico misto 0,30 0,30

Plástico cristal 0,95 0,90

Lata 0,10 0,10

Resina 0,60 0,60

Fonte: Arquivos Itecsol Unijuí 2019-2020

Além desta desvalorização dos materiais, os catadores enfrentam dificuldades de acesso a


materiais de proteção, os EPI´s. Frente à Pandemia atual de Covid-19, os cuidados devem ser redobrados,
sendo necessário, além de luvas, o uso de máscara e álcool em gel. Frente à indisponibilidade destes
materiais, muitos catadores trabalham expostos a um risco altíssimo de contaminação. Além disso,
grande parte destes trabalhadores apresentam problemas de saúde, tendo que se ausentar das
atividades, devido se enquadrar ao grupo de risco.
Segundo dados disponibilizados pela ITECSOL-UNIJUÍ (2018), existem cerca de 400 catadores
informais de materiais recicláveis no município de Ijuí, sendo que apenas 150 destes trabalhadores
estão cadastrados, demostrando uma grandiosa meta a ser atingida no que diz respeito à inclusão

23
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

destes catadores em associações ou cooperativas.


Em alguns municípios da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, já existem algumas
formas de incentivo a atividade de catador. É o caso do município de Cruz- Alta que recentemente
está participando do Projeto Profissão Catador, o qual é patrocinado pelo Programa Petrobras
Socioambiental, colaborando o texto a seguir:

Tal Projeto está em pleno funcionamento desde março de 2011, quando se iniciaram os trabalhos,
a equipe formada por monitores, assistentes sociais, assessor de comunicação, um administrador,
um motorista e com a Coordenação das Professoras da Unicruz vem mantendo atividades junto às
associações de catadores de Cruz Alta, oportunizando assim a geração de trabalho e renda para estas
famílias que tem a catação como atividade profissional (BIAGINI; VIRGOLIN; ARAUJO, 2018, pág.6).

No município de Ijuí ainda não existe um Projeto visando à inclusão e qualificação dos catadores
no mercado de trabalho. Certamente esse plano de ação possibilitaria o desenvolvimento do município
de modo geral, visto que diversas famílias dependem desta atividade.
Desse modo, o acesso a ações socioeducativas, voltadas para a orientação destes profissionais,
seria capaz de fortalecer alianças, através de políticas públicas com a finalidade da promoção de
justiça social, e sustentabilidade.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A promoção de políticas públicas, visando o desenvolvimento das associações de catadores em


prol da sustentabilidade, representa um desafio global a ser conquistado. Ações voltadas para tais
pretensões são essenciais para que as associações atinjam os seus objetivos.
Desse modo, incentivar um consumo mais consciente, através da educação ambiental com o
auxílio dos gestores públicos, facilitaria o trabalho dos catadores, uma vez que diminui a demanda
de resíduos que não podem ser reaproveitados durante o processo da reciclagem.
A preservação dos serviços ecossistêmicos é uma tarefa que demanda esforço conjunto de todos
os seres vivos. Nesse sentido, os catadores contribuem de forma significativa, sem ser visto pela
sociedade como um cidadão proativo, atuante nas três dimensões fundamentais para a existência da
humanidade, sendo elas: social, econômica e ambiental.
Para que os catadores de materiais recicláveis e suas associações possam compreender melhor
a sua relevância, é preciso orientá-los e valorizá-los. Cabe a cada cidadão fazer a sua parte, uma vez
que os incluir na sociedade, supõe-se compreender este tipo de trabalho como um serviço essencial,
prestado para o meio ambiente, capaz de promover sustentabilidade e a melhora da qualidade de
vida de todo o planeta.

REFERÊNCIAS

BAGGIO, Alexandre. Associação de Catadores de recicláveis agora é cooperativa. Disponível


em: jornaldebeltrao.com.br/noticia/296872/associacao-de-catadores-de-reciclaveis-agora-e-
cooperativa. Acesso em: 25 ago. 2020.

BIAGINI; VIRGOLIN; ARAUJO. XX Seminário Interinstitucional de ensino pesquisa e extensão.


Disponível em: https://home.unicruz.edu.br/wp-content/uploads/2018/11/PROFISSaO-CATADOR-
A-EDUCACAO-AMBIENTAL-E-A-INTERDISCIPLINARIDADE-COMO-BASE-DE-PROJETOS-DE-EXTENSAO-
UNIVERSITARIA_2015.pdf. Acesso em 20 set. 2020.

CAMARGO; CAPOBIANO; OLIVEIRA. O meio ambiente Brasil, Avanços e obstáculos pós-Rio 92,
2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

CEMPRE. Radiografando a coleta seletiva. Disponível em: http://cempre.org.br/ciclosoft/id/2


Acesso em: 20 set. 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

MAIA, Hérika Juliana Linhares. Política nacional de resíduos sólidos e inclusão social de
catadores de materiais recicláveis. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/
direito-ambiental/politica-nacional-de-residuos-solidos-e-inclusao-social-de-catadores-de-materiais-
recláveis/. Acesso em: 25 ago. 2020.

MNCR-Movimento Nacional dos catadores de materiais recicláveis. Disponível em: http://


www.mncr.org.br/noticias/noticias-regionais/mulheres-sao-maioria-entre-catadores-organizados-em-
cooperativas. Acesso em: 25 ago. 2020.

MUNICÍPIO DE IJUÍ. Lei Nº 5513, de 29 de setembro de 2011. Disponível em: https://


leismunicipais.com.br/a/rs/i/ijui/lei-ordinaria/2011/552/5513/lei-ordinaria-n-5513-2011-institui-o-
servico-publico-de-coleta-seletiva-solidaria-dos-residuos-reciclaveis-secos-domiciliares-e-da-outras-
providencias. Acesso em: 25 ago. 2020.

PLAMSAB- Plano Municipal de Saneamento de Ijuí/ RS. Disponível em:


file:///D:/Usuario/Downloads/20180716%20Progn%C3%B3stico%20PMGIRS%20IJUI%20MINUTA%20
Revisado.pdf%20(1).pdf. Acesso em: 18 set. 2020.

SENADO FEDERAL. Como alguns países tratam seus resíduos. Disponível em: https://www12.
senado.leg.br/emdiscussao/edicoes/residuos-solidos/mundo-rumo-a-4-bilhoes-de-toneladas-por-
ano/como-alguns-paises-tratam-seus-residuos. Acesso em 18 set. 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

CONSUMIDORES HIPERVULNERABLES:
A PROPÓSITO DEL PROYECTO DE CÓDIGO
DE DEFENSA DEL CONSUMIDOR ARGENTINO

Liliana Aída Beatriz Urrutia5

RESUMEN: El presente trabajo aborda el tema de los consumidores hipervulnerables desde un


enfoque constitucional y del derecho privado argentino; para lo cual, en primer lugar, determinamos
el régimen tuitivo de consumidores y usuarios, en particular, en lo relativo al trato digno, equitativo
y no discriminatorio. Asimismo, precisamos qué entendemos por vulnerabilidad, sujetos vulnerables
e hipervulnerables con el objeto de delimitar la categoría de consumidores hipervulnerables. Como
medio de comprobación describimos diferentes casos judiciales donde se dio una tutela reforzada a los
derechos de estos consumidores especialmente vulnerables. Además, planteamos que las mujeres en
las relaciones de consumo constituyen un grupo o colectivo que integra la categoría de consumidores
hipervulnerables y observamos distintos casos de publicidades sexistas. Por último, analizamos la
incorporación expresa de la categoría de consumidores hipervulnerables en el Proyecto de Código de
Defensa del Consumidor Argentino.

Palabras clave: Consumidores hipervulnerables. Las mujeres como sujeto y objeto de consumo.
Proyecto de Código de Defensa del Consumidor Argentino.

1 LA PROTECCIÓN CONSTITUCIONAL DE LOS CONSUMIDORES. SU RECEPCIÓN EN EL NUEVO


CÓDIGO CIVIL Y COMERCIAL ARGENTINO

En el año 1.994, la Constitución argentina ha sido reformada, incluyendo no sólo la tutela


constitucional de consumidores y usuarios (conf. arts. 42 y 43) sino, además, la protección de la
persona humana en clave de Derechos Humanos (art. 75, inc. 22 y 23).
Se consagra expresamente el principio de trato equitativo y digno a los consumidores y usuarios
en las relaciones de consumo. Así: “Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho,
en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses económicos; a una
información adecuada y veraz; a la libertad de elección, y a condiciones de trato equitativo y digno”
(art. 42). Además, como se advierte, se tutela la integridad psicofísica y el patrimonio de consumidores
y usuarios, debiendo las autoridades proveer a la protección de esos derechos.
Asimismo, se consolida la acción de amparo como una vía expedita y rápida, cuando no existiera
otro medio judicial más idóneo, para tutelar los derechos y garantías reconocidos (art. 43).
En cuanto a la legitimación para accionar, podrán interponer la acción de amparo contra cualquier
forma de discriminación y en lo relativo a los derechos que protegen al ambiente, a la competencia,
al usuario y al consumidor, así como a los derechos de incidencia colectiva en general, no sólo el
defensor del pueblo y las asociaciones que propendan a esos fines, sino, también, el propio afectado
(art. 43). De esta manera se consagra una legitimación amplia para proteger los derechos conculcados.
En lo referente a la legislación infraconstitucional, el régimen tuitivo que regula las relaciones
de consumo es la ley 24.240 (año 1.993) con sus posteriores modificaciones. Este régimen hoy se
ve complementado con el núcleo duro de normas principistas y específicas que contiene el nuevo
Código Civil y Comercial argentino (año 2.015).

5 Abogada, especializada en Derechos de Daños, Carrera de Posgrado, UCA; Profesora Adjunta de Obligaciones y Derecho de
Daños, Facultad de Derecho, UNR, Argentina; Docente seleccionada programa AUGM, destino UFRGS (2014), integrante del
proyecto de investigación “Influencia de la constitucionalización del derecho privado en el funcionamiento y conformación
de las instituciones del derecho del consumidor”, Facultad de Derecho, UNR (2016-2018), Coordinadora y co-autora del libro
“Protección jurídica de los subconsumidores”, Ed. JURIS, Rosario, 2017. Correo: urrutiaabogada@gmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

En materia de protección de la dignidad y el trato igualitario y no discriminatorio de los/as


consumidores/as, mencionaremos algunas normas cuya especificidad requieren un mayor análisis, sin
perjuicio de otras, que conforman el sistema jurídico, y que de conformidad al “diálogo de fuentes”6
deben ser interpretadas y aplicadas según el caso concreto a resolver.
Así, la mencionada Ley de Defensa del Consumidor (ley 24.240), en su art. 8 bis, se refiere al
trato digno de los consumidores, disponiendo que los proveedores deberán garantizar condiciones
de atención y trato digno y equitativo, como asimismo, deberán abstenerse de desplegar conductas
que coloquen a los consumidores en situaciones vergonzantes, vejatorias o intimidatorias. Ello
comprende también la tutela contra las prácticas discriminatorias. Lo propio hace el nuevo Código Civil
y Comercial, que recepta los principios constitucionales de trato digno (art. 1.097) y trato equitativo
y no discriminatorio (art. 1.098).
La dignidad de la persona debe ser respetada conforme a los criterios generales que surgen
de los tratados de Derechos Humanos. Como ya lo expresáramos, el corpus normativiza principios
constitucionales protectorios de la dignidad de la persona humana. (arts. 42 C.N.; 5 C.A.D.H.; 13
PIDESC.; 1 y 23 DADDH; 1 y 22 DUDH)
Asimismo, el codex establece que los proveedores deben dar a los consumidores un trato equitativo
y no discriminatorio, y que no pueden establecer diferencias basadas en pautas contrarias a la garantía
constitucional de igualdad (art. 75, inc. 22 y 23 C.N. – arts. 1.1, 24 y 25 CADH – art. 2.2. PIDESC).
A la luz del derecho de igualdad ciertos criterios de distinción están prohibidos y se encuentran
afectados por una “presunción de inconstitucionalidad “ (llamados “categorías sospechosas”). El trato
distintivo basado en dichas categorías deberá ser sometido a un “escrutinio estricto” en virtud del cual se
evaluará si la norma o práctica: (i) persigue fines sustanciales — existen “ razones públicas imperativas “—
para justificar esa distinción (no basta a tal fin que la clasificación legal parezca “razonable”, “oportuna”
o “conveniente”), y (ii) no existen otras alternativas menos restrictivas para los derechos en juego que
las impuestas por la regulación o práctica cuestionada (“Hooft”, consid. 6°). En caso de no superarse
dicho “escrutinio estricto” la norma o práctica resultará contraria al derecho al trato igualitario exigido
por la Constitución Nacional. Los criterios de distinción sospechados están basados principalmente en
la raza, color, sexo, idioma, religión, opinión política o de otra índole, origen nacional o social, posición
económica, nacimiento, o cualquier otra condición social. (RIVERA, 2015)
A guisa de ejemplo, podemos mencionar los casos de publicidad discriminatoria (art. 1.101, inc.
c), donde claramente se vulnera la dignidad humana. Este tipo de publicidad, especie de publicidad
abusiva, encuentra sus fundamentos en los derechos y principios constitucionales ya analizados (arts.
42 y 75, inc. 22 y 23 C.N.); como asimismo, se halla comprendida en las disposiciones de los arts. 4,
5, 6, 8 bis y 52 bis de la Ley 24.240 y de la Ley antidiscriminatoria 23.592.
El Código identifica dos tipos de publicidad abusiva: a) la discriminatoria; y b) la que induzca al
consumidor a comportarse en forma perjudicial o peligrosa para su salud o seguridad (art. 1.101, inc. c).
La publicidad discriminatoria es la que vulnera el derecho de igualdad constitucional. Debe
considerarse que mediante este tipo de publicidad se crean y perpetúan estereotipos de grupos
históricamente desaventajados, agravándose su estigmatización y silenciamiento, y contribuyendo a
una situación de discriminación estructural violatoria de dichos derechos constitucionales (ejemplos
típicos son las publicidades que estereotipan al género femenino, que estigmatizan por condición
social, etc.) (RIVERA, 2015).
Además, el nuevo código dispone en la parte de los contratos de consumo (Secc. 2º, Cap. 2, Tít.
III) cuando trata el tema de la publicidad ilícita, que los consumidores afectados o quienes resulten
legalmente legitimados pueden solicitar al juez: la cesación de la publicidad ilícita7; la publicación, a cargo

6 Es fundamental realizar el abordaje de la temática en diálogo con las distintas fuentes del derecho como círculos concén-
tricos abiertos (es un diálogo de aplicación simultánea), que permiten la intercomunicación (el diálogo) desde el centro de
la constitucionalidad y convencionalidad hasta las diferentes leyes especiales vinculadas con la tutela de los consumidores
y consumidoras en clave de derechos humanos. Puede verse: SOZZO, Gonzalo, La resistematización de la regulación del
consumo en el Proyecto de Código Civil de 2012; LIMA MARQUES, Claudia, Diálogo das Fontes en Manual de Direito do Con-
sumidor (BENJAMIN, LIMA MARQUES y ROSCOE BESSA, 2014).
7 El Juzgado Civil y Comercial Federal Nº 4, in re Arregger Matías c. Fast Food Sudamericana s. amparo (2018, octubre)
resolvió mediante una medida cautelar, que la demandada, en forma inmediata, proceda a suspender la campaña “Colora-
dos”, realizada por Burger King, fundando su decisorio en la protección de derechos humanos básicos, particularmente, la
dignidad, el honor y la igualdad (sin discriminación).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

del demandado, de anuncios rectificatorios y, en su caso, de la sentencia condenatoria (art. 1.102).


La norma habilita la posibilidad de accionar contra la publicidad prohibida (art. 1101), y por
tratarse de derechos de incidencia colectiva, la acción puede ser planteada por el afectado o por
asociaciones que defiendan los derechos involucrados, de conformidad a lo dispuesto por el artículo
43 de la Constitución argentina.
En síntesis, nos hemos referido sucintamente a las normas de orden constitucional y de derecho
privado, que regulan las relaciones de consumo, con especial énfasis en aquellas que tutelan a los
consumidores en su calidad de sujetos vulnerables.
Ahora bien, existe una categoría de consumidores que requieren una mayor protección jurídica,
y a la cual nos abocaremos en el próximo acápite.

2 CONSUMIDORES HIPERVULNERABLES. LA NECESIDAD DE UNA PROTECCIÓN JURÍDICA


REFORZADA

Preliminarmente, vamos a determinar qué entendemos por “vulnerabilidad”, “sujetos vulnerables


e hipervulnerables”.
La expresión vulnerabilidad tiene su origen etimológico en las palabras “herir” y “herida”. Es
relevante referirla a los alcances de las nociones de salud y persona. En definitiva, podemos ser
heridos en los despliegues de nuestra salud, como completo bienestar físico, mental y social, en la
plenitud de nuestra “personalidad”. (CIURO CALDANI, 2017)
En lo más o menos biológico, la vulnerabilidad puede aparecer por “enfermedades” en sentido
tradicional, “discapacidades”, minoridad, ancianidad, género, raza, etc. (CIURO CALDANI, 2017)
Un sujeto vulnerable sería aquella persona que se encuentra en una situación de vulnerabilidad,
que puede ser permanente o transitoria.
Se consideran en condición de vulnerabilidad aquellas personas que, por razón de su edad, género,
estado físico o mental, o por circunstancias sociales, económicas, étnicas y/o culturales, encuentran
especiales dificultades para ejercitar sus derechos. Podrán constituir causas de vulnerabilidad, entre
otras, la edad, la discapacidad, la pertenencia a minorías, la pobreza, el género, la victimización, etc.
(Reglas de Brasilia).
El Derecho del Consumidor no sólo tutela los derechos patrimoniales de consumidores y
usuarios sino, también, los derechos personales que hacen a la dignidad humana. En las relaciones
de consumo, los consumidores son la parte débil de la ecuación, y, por tanto, merecedores de una
mayor tutela jurídica. Sin embargo, existen personas que se encuentran en una situación especial o
particular de vulnerabilidad, que es un “plus” de aquella en la que se encuentra por ser consumidor/a.
A estos últimos le llamaremos consumidores hipervulnerables.

2.1 ¿En qué se diferencia un consumidor medio de un consumidor hipervulnerable?

Las normas de protección al consumidor encuentran fundamento en la debilidad estructural que


revela el mismo frente al profesional y al mercado de consumo (FRUSTAGLI, 2017). El sistema tuitivo
del consumidor reconoce esta vulnerabilidad y, por tanto, se basa en el principio protectorio favor
debilis – pro consumidor.
Ahora bien, existen ciertos grupos de consumidores que se encuentran en una situación de mayor
vulnerabilidad, ya sea por sus condiciones físicas, de salud, de madurez, entre otras, que generan una
doble o –incluso- múltiple vulnerabilidad. Desde una mirada transversal, una mujer negra, anciana,
pobre, analfabeta, migrante, se encontrará atravesada por vulnerabilidades endógenas y exógenas.
La vulnerabilidad endógena es aquella que se vincula con la estructura psico-física de la persona,
v.gr. ancianidad, enfermedad, etc.; y la vulnerabilidad exógena es aquella originada en factores
externos como la discriminación por ser negra, pobre, mujer.
El Parlamento europeo reconoce como consumidores vulnerables –entiéndase para nosotros,
hipervulnerables- a aquellas personas que en forma permanente o transitoria se encuentran en una

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

situación de vulnerabilidad. (Res. 22/05/2012)


La Profesora Frustagli refiere que, mientras la protección al consumidor se fundamenta en una
vulnerabilidad de índole estructural, la tutela a los hipervulnerables busca traspasar la nota de debilidad
estándar, para ahondar en circunstancias particulares que resultan coyunturales, transitorias o permanentes,
inherentes a la persona o externas a ella, y que acentúan la fragilidad del consumidor. En la figura del
subconsumidor la vulnerabilidad estándar (estructural), confluye con otra, coyuntural, que lo torna más
frágil en las relaciones de consumo, y obliga a potenciar los mecanismos protectorios. (FRUSTAGLI, 2017)
El profesor brasilero Benjamin se refiere a la vulnerabilidad como un trazo universal de todos
los consumidores, ricos o pobres, educados o ignorantes, crédulos o expertos. En cambio, la
hipervulnerabilidad es una marca personal, limitada a algunos –e incluso a una colectividad- pero
nunca a todos los consumidores. Esta hipo-suficiencia legitima algunos tratamientos diferenciados
por parte del propio Código; v.gr. la inversión de la carga probatoria (art. 6º, VIII). (BENJAMIN, 2014)
Por su parte, Barocelli entiende que la categoría de hipervulnerabilidad se edifica y resignifica
a través de determinados aspectos dinámicos, relacionales y contextuales. Un primer criterio de
demarcación se encuentra en los sujetos y colectivos que la Constitución Nacional comprende
dentro de grupos vulnerables (niños, niñas y adolescentes, mujeres, adultos mayores, personas con
discapacidad, pueblos indígenas). Sin embargo, y compartimos con el autor, que no se trata de un
numerus clausus; por lo que pueden existir otros supuestos de consumidores hipervulnerables, vgr.
personas con padecimientos mentales o adicciones, miembros del colectivo LGBT+, o las personas
con trastornos alimentarios, necesidades alimentarias especiales, y otros grupos pertenecientes a
minorías como los habitantes de zonas rurales o desfavorables, turistas, migrantes, usuarios de
comercio electrónico, entre otras. (BAROCELLI, 2020)

2.2 ¿Cómo se protegen a estos consumidores especialmente vulnerables?

El Parlamento europeo en el texto aprobado sobre una estrategia de refuerzo de los derechos de
los consumidores vulnerables expone en sus considerandos que el concepto ampliamente utilizado de
consumidores vulnerables (entiéndase como especialmente vulnerables o hipervulnerables) se basa en
la noción de vulnerabilidad endógena y hace referencia a un grupo heterogéneo compuesto por aquellas
personas consideradas de forma permanente como tales por razón de su discapacidad mental, física o
psicológica, su edad, su credulidad o su género, y que el concepto de consumidores vulnerables debe
incluir asimismo a los consumidores en una situación de vulnerabilidad, es decir, los consumidores
que se encuentren en un estado de impotencia temporal derivada de una brecha entre su estado y sus
características individuales, por una parte, y su entorno externo, por otra parte, teniendo en cuenta
criterios tales como la educación, la situación social y financiera (por ejemplo, el endeudamiento
excesivo), el acceso a Internet, etc.; considerando asimismo que todos los consumidores, en algún
momento de su vida, pueden pasar a ser vulnerables debido a factores externos y a sus interacciones
con el mercado, o porque experimenten dificultades para acceder a información adecuada dirigida a los
consumidores y entenderla, y, por tanto, precisen de una protección especial. (Res. 22/05/2012)
Nosotros entendemos que en los casos de discriminación de mujeres y personas trans,
precisamente, por tener su causa en el contexto socio-cultural que la origina, se trata de una
vulnerabilidad exógena que podría desaparecer si se modifican los estereotipos culturales que la
perpetúan; lo contrario, sería aceptar que estas condiciones son inherentes a las personas, de origen
biológico, y en rigor de verdad, son culturales. Por el contrario, si aceptamos la posición del Parlamento
europeo la distinción estaría en la permanencia o transitoriedad de la vulnerabilidad; en ese caso el
carácter permanente está dado por su permanencia en el tiempo por tratarse de vulnerabilidades de
índole histórico-sociológico, desde épocas remotas y de difícil remoción.
En lo particular, el Parlamento en su resolución destaca que, en el caso de las relaciones
contractuales, frecuentemente es el consumidor la parte más débil; y pide a las empresas que
promuevan y elaboren iniciativas de autorregulación para reforzar la protección de los derechos de
los consumidores vulnerables, garantizar que tengan acceso a una información mejor y más clara y
desarrollar prácticas que potencien el que todos los consumidores puedan comprender y evaluar un

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

acuerdo; y, además, pide a las autoridades nacionales competentes que provean incentivos a este
respecto, así como la protección jurídica necesaria de los consumidores. (Res. 22/05/2012)
Como vimos con anterioridad, el consumidor medio goza del principio protectorio favor debilis,
del cual también se valen los consumidores hipervulnerables. Sin embargo, en estas relaciones de
consumo deberá agudizarse la tutela de los derechos de estos consumidores y usuarios en clave
de Derechos Humanos. Esto no significa la negación del amparo constitucional de los derechos del
consumidor, sino una mirada transversal de tutela de los más vulnerables entre los vulnerables.
Si bien el derecho argentino no se refiere a los consumidores especialmente vulnerables o
hipervulnerables –como los nombra la Profesora Lima Marqués en el derecho brasilero-, se infiere
tangencialmente de una mención que hace el artículo 60 de la ley 24.240, cuando manda al Estado
a garantizar la implementación de programas destinados a aquellos consumidores y usuarios que
se encuentren en situación desventajosa, tanto en zonas rurales como urbanas. Y, recientemente, la
Secretaría de Comercio Interior dictó una resolución de orden interno donde se consideran consumidores
hipervulnerables, a aquellos consumidores que sean personas humanas y que se encuentren en otras
situaciones de vulnerabilidad en razón de su edad, género, estado físico o mental, o por circunstancias
sociales, económicas, étnicas y/o culturales; como, asimismo, las personas jurídicas sin fines de lucro
que orienten sus objetos sociales a los colectivos comprendidos en el presente artículo. (Res. 139/2020)
No obstante ello, como ya lo expresáramos, los tratados de Derechos Humanos incorporados en
el art. 75, inc. 22 de la Constitución nacional y el nuevo Código Civil y Comercial argentino de espíritu
humanista, garantizan la tutela reforzada de los derechos de los consumidores hipervulnerables.

2.3 Casuística sobre consumidores hipervulnerables

En el presente título mencionaremos como referente un caso por cada grupo o colectivo de
especial tutela expresado en el inciso 23 del artículo 75 de la Constitución argentina, sin que esto
implique desconocer otros grupos vulnerables, que, desde una mirada transversal, puedan ser
consumidores hipervulnerables.
En el leading case Machinandiarena c. Telefónica Argentina (Cám.Civ.Com., Mar del Plata, Sala 2º,
27/05/2009), donde el consumidor es una persona discapacitada, se resolvió en base al principio de
trato digno y no discriminatorio y los tratados de derechos humanos, que la empresa debía indemnizar
al actor, por incumplimiento de la normativa vigente y por incurrir en un acto discriminatorio al no
tener una rampa para el acceso al local de telefonía.
En el caso Bloise de Tucci c. Supermercados Makro (SCJMendoza, 26-07-2002), la actora, una
persona de edad avanzada, ingresa por la puerta automática de salida del supermercado demandado,
que se encontraba abierta, y es aprisionada y arrojada al suelo, ocasionándole daños físicos. El
tribunal resolvió que el deber de información a la consumidora era insuficiente (falta de información
adecuada), y, entre sus consideraciones, afirma que la información era absolutamente ineficaz para
personas que no saben o no pueden leer (niños, personas con discapacidades visuales, etc.).
Asimismo, en un fallo local Persichitti c. Telecom s. daños y perjuicios (CCCRos., Sala 3, 29-
11-2.017), donde la persona afectada por el trato no digno por la empresa de telefonía era una
usuaria del servicio de edad avanzada, el tribunal destacó que “… no hace falta ser un especialista en
gerontología para poder comprender la trascendencia que tiene para una persona de 80 años el no
poder utilizar su teléfono”.
En otro caso R., F. y otro c. Parque de la Costa S.A. y otro s. daños y perjuicios (CNCiv., Sala A,
21-11-2012), un niño sufrió lesiones en un juego del Parque de la Costa, y la demandada invocó culpa
exclusiva del damnificado. El tribunal argumentó su decisión, sosteniendo que “… cuando se está
ante víctimas en situación de vulnerabilidad, se verifica una tendencia a exigir, para que proceda la
exoneración, una culpa calificada del dañado, como una forma de aumentar su protección…” Además,
agregó “… con lo que a la natural vulnerabilidad que corresponde a la primera categoría se suma la
derivada de la escasa edad y poca experiencia del menor R.”
En otro predecente L., N. s. amparo (ST Río Negro, Sala Asuntos Originarios y Constitucional, 10-
04-2014), donde se debatía si la patología de un niño de 5 años de edad, al que se le detectó Trastorno

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Generalizado del Desarrollo, era preexistente a la contratación del servicio de salud, la Defensora
General sostuvo que “… su representado posee una doble vulnerabilidad por su condición de persona
con capacidades diferentes y por su condición de niño. En consecuencia, señala que debe asegurársele
un plus protectivo inmediato y operativo en función de los arts. 5, 7 y 10 de la Convención sobre los
Derechos de las Personas con Discapacidad; art. 23 y 24 de la Convención sobre los derechos del niño”.
Otro caso ilustrativo que podemos mencionar es Martínez Marisol c. Carrefour (CNC, Sala F,
Bs.As., 30/08/2007), en el cual se hace responsable al supermercado, organizador de un concurso
para viajar a Disney, por la no entrega del premio comprometido. El Tribunal sostuvo que la publicidad
fue confusa respecto de quienes podrían participar en el sorteo (mayores de 21 años), máxime cuando
por las características de la promoción el premio era un viaje a Disney y los productos a comprar y las
gráficas de la promoción estaban identificados con personajes infantiles en virtud del público al que
estaba dirigida la publicidad.
Como se puede advertir, en los casos reseñados, a la hora de resolver, se tomó en consideración
las particulares vulnerabilidades de los consumidores, es decir, la discapacidad física, la edad avanzada
o la inmadurez por su condición de niño.
Ahora bien, nosotros consideramos que, además de estas condiciones de mayor vulnerabilidad,
existen otras, como ser el género femenino, condición socialmente disvaliosa frente al masculino. Es
por ello, que planteamos que las mujeres son sujetos particulamente vulnerables en las relaciones
consumeriles, amén de ser usadas como objeto de consumo.

3 LAS MUJERES COMO SUJETO Y OBJETO DE CONSUMO. ¿UNA NUEVA CATEGORÍA DE


CONSUMIDORES HIPERVULNERABLES?

La Constitución argentina, en el artículo 75, inciso 23, manda al Estado nacional a legislar
y promover medidas de acción positiva que garanticen la igualdad real de oportunidades y trato,
y el pleno goce y ejercicio de los derechos reconocidos por esta Constitución y por los tratados
internacionales vigentes sobre derechos humanos, en particular respecto de los niños, las mujeres,
los ancianos y las personas con discapacidad.
Entendemos que las mujeres pueden hallarse especialmente vulneradas en las relaciones de
consumo; lo que trataremos de demostrar con las observaciones realizadas.
Así pues, las mujeres pueden ser proveedoras o consumidoras en sentido amplio. Sin embargo,
donde generalmente la mujer se encontrará en una posición de mayor vulnerabilidad será cuando es
sujeto expuesto a una práctica abusiva, discriminatoria o atentatoria de la dignidad humana. En esta
situación es donde debe darse el diálogo de fuentes entre las normas constitucionales de Derechos
Humanos y la legislación infraconstitucional.
Una práctica abusiva, donde la mujer es cosificada, es la publicidad sexista o discriminatoria (art.
1.101, inc. c, del Código Civil y Comercial). Así pues, la mujer, además de ser “objeto consumible”, es
“sujeto expuesto” de la relación de consumo.
Asimismo, existen ciertos productos y publicidades dirigidos exclusivamente a mujeres como
potenciales consumidoras, que reproducen estereotipos patriarcales, naturalizando la subordinación
de la mujer en la sociedad.
Ahora, volviendo a la pregunta que nos formulamos, si las mujeres representan una categoría de
consumidores hipervulnerables que requieren de una especial protección, adelantamos la respuesta
por la afirmativa.
La tesis que sostenemos es que la vulnerabilidad de las mujeres no es biológica ni física ni por
madurez o enfermedad sino producto de los estereotipos culturales patriarcales, que naturalizan
la subordinación de la mujer en la sociedad. La observación de un sinnúmero de casuística sobre
publicidad sexista corrobora nuestra hipótesis. (URRUTIA, 2017)
La subordinación de las mujeres y lo femenino es producto de un sistema complejo que podría
decirse se origina en la familia dominada por el padre, estructura reproducida en todo el orden
social y mantenida por el conjunto de instituciones de la sociedad política y civil, orientadas hacia
la promoción del consenso en torno a un orden social, económico, cultural, religioso y político que

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

determinan que las mujeres como categoría social, siempre estarán subordinadas a los hombres
como categoría social, aunque pueda ser que una o varias mujeres tengan poder, hasta mucho poder.8
Barocelli determina la categoría de consumidores hipervulnerables a partir de un primer criterio
de demarcación, indagando en los sujetos y colectivos que la Constitución Nacional comprende
dentro de grupos vulnerables (niños, niñas y adolescentes, mujeres, adultos mayores, personas con
discapacidad, pueblos indígenas). Estos sujetos serían consumidores hipervulnerables en todos los
casos y habría una presunción iure et de iure sobre tal calidad (BAROCELLI, 2020).
Por su parte, Puccinelli sostiene que no debe incorporarse automáticamente a toda mujer y bajo
cualquier circunstancia en la categoría de sujeto hipervulnerable, pues adoptar esa solución implicaría
mantener una visión androcentrista y caer en el mismo error en el que incurrió el constituyente
federal al incluirla, en el primer párrafo del artículo 75, inc. 23, en la misma categoría de los niños, los
ancianos y las personas con discapacidad. La protección especial y permanente, en estos tres casos,
se justifica a partir de la existencia de especiales condiciones naturales de estos sujetos que los hacen
merecedores de esa tutela, mientras que en el caso de la mujer, la discriminación que sufre no tiene
base natural sino que es de origen cultural y por lo tanto sólo debe mantenerse mientras la igualdad
real de oportunidades y de trato entre varones y mujeres no se equilibre (PUCCINELLI, 2019).
En el mismo sentido, Frustagli entiende que las mujeres pueden conformar –en determinados
contextos del mercado de consumo– un grupo vulnerable históricamente sometido; sin embargo, no
considera que la mujer ingrese directa y necesariamente en la categoría de consumidor vulnerable o
hipervulnerable (FRUSTAGLI, 2020).
Cuando el constituyente manda al Estado a legislar y promover medidas de acción positiva que
garanticen la igualdad de oportunidades y trato, precisamente lo hace por las desigualdades estructurales
con carácter de permanencia, que colocan a la mujer en una situación de inferioridad, socialmente
naturalizada, y merecedora de una tutela reforzada en todos los ámbitos, incluso en las relaciones de
consumo. Y, si bien compartimos con el constitucionalista Puccinelli que estas acciones son de carácter
transitorio hasta tanto se logre la igualdad aspirada, lo cierto es que el patriarcado y sus prácticas
vienen de tiempos remotos, pudiendo reconocerse la primera forma de patriarcado en el estado arcaico
(LERNER, 1990). Esto prueba el carácter de permanencia al cual nos referimos, y, por tanto, desconocer
a la categoría como sujetos vulnerables en todas sus relaciones es consecuencia de la dominación
masculina y el orden simbólico del que nos habla el sociólogo francés en su obra. (BOURDIEU, 2000)
En suma, las mujeres representan una categoría de sujeto “hipervulnerable” de la relación de
consumo, como consecuencia de una vulnerabilidad estructural de carácter sociológico e incluso
político, que las coloca en una posición de inferioridad o subordinación, necesitando, por tanto, de
una mayor protección jurídica.

3.1 Casuística sobre prácticas sexistas

Los casos observados pueden agruparse en dos: a) el primero, estaría conformado por los casos
de publicidades sexistas, que, a su vez, podemos distinguir en dos subgrupos: 1) donde las mujeres
se encuentran cosificadas, cual objeto sexual de un otro u otra, u objeto de dominación; y 2) donde la
publicidad se halla dirigida exclusivamente a las mujeres como destinatarias de las tareas de cuidado;
y b) el segundo grupo, por los casos de modelos, actrices o famosas, cuyas imágenes fueron linkeadas
a páginas pornográficas sin su autorización, consideradas sujeto expuesto de la relación de consumo.
Se entiende por publicidad sexista a aquella que representa a las mujeres de forma indigna, bien
utilizando particular y directamente su cuerpo o partes del mismo como un objeto, sin relación directa
con el producto que se pretende promocionar, o bien utilizando su imagen asociada a comportamientos
tradicionalmente asignados a la mujer de forma discriminatoria y que pueda generar violencia contra
ellas. (NÚÑEZ SACALUGA, 2013)
Podemos mencionar, a modo ejemplificativo, la publicidad de DOLCE & GABBANA y la de

8 Debate parlamentario de la Convención Nacional Constituyente de 1.994 sobre la incorporación de las mujeres en el inciso
23 al artículo 75 de la Constitución argentina.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

SUITSUPPLY. En ambas publicidades se muestra a la mujer en posición de sumisión, hipersexualizadas


y cosificadas, como objeto de deseo del consumidor (objeto consumible).
En el primer caso, el anuncio mostraba a una mujer postrada en el suelo y sujetada de las
muñecas por un hombre con el torso desnudo sobre ella mientras otros cuatro varones la observaban,
en una clara actitud de sometimiento como asimismo de incitación a la violencia contra la mujer.
En el caso de la publicidad de la marca de ropa masculina SUITSUPPLY, consistía en una campaña
gráfica, donde las mujeres aparecían con partes de su cuerpo desnudo y en posiciones de sumisión
sexual frente al hombre que las seducía con la ropa de la marca publicitada. Imágenes explícitas de
la cosificación de la mujer.
Un caso que llegó al Tribunal de Alzada de Málaga fue el de la publicidad de la empresa aérea Ryan Air
por la campaña “Tarifas al rojo vivo ¡Y la Tripulación!”, en la cual las azafatas integrantes de la tripulación de
los vuelos operados por la demandada estaban también “al rojo vivo”, con la evidente connotación sexual
inherente a las gráficas imágenes de dichas azafatas con distintos bikinis de vivos y llamativos colores. La
Audiencia Provincial confirmó la sentencia de baja instancia, que declaró que la publicidad desarrollada por
la demandada era ilícita y desleal, y ordenó el cese de la campaña publicitaria y de su reiteración futura,
como asimismo la publicación del fallo en los dos periódicos de mayor difusión nacional (El País y el Mundo)
con caracteres tipográficos que garanticen la legibilidad y notoriedad del anuncio.
Asimismo, las publicidades de cerveza suelen ser objeto de críticas por vincular el cuerpo de la mujer
con el producto o relacionarlo sexualmente. A guisa de ejemplo, aludiremos a la campaña publicitaria de
la cerveza Schneider “#Perdón por buscar el roce arriba del bondi” o “No importa lo que ves. Importa
lo que es”, donde no sólo se reproducen estereotipos sexistas sino que, además, son generadoras o
reproductoras de violencia de género. En el primer caso, claramente se banalizaba el tema del acoso
callejero de las mujeres, lo cual generó un repudio social y la intervención del Instituto Nacional contra
la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI). La agencia publicitaria pidió disculpas y levantó la
campaña de todos los medios. (Campaña de Schneider, levantada por sexista, Revista MBP).
Además de las publicidades mencionadas que reproducen estereotipos sexistas y naturalizan la
violencia sexual, existen otras que directamente reproducen estereotipos de dominación generadores
de violencia física, como ser la publicidad del desodorante Axe “garrotazo de amor” o el aviso
publicitario de la obra de teatro “Criatura emocional”.
En el primer caso, la campaña publicitaria consistía en un videojuego “garrotazo de amor”, cuyo
único fin era sumar puntos por golpear con un garrote a las mujeres, mientras que por golpear a
un hombre, el participante era multado con la pérdida de puntos. Y, el segundo, se trataba de una
gráfica que se exhibió en la ciudad de Buenos Aires, la cual consistía en un cartel gigante en la calle
Corrientes, donde se podía leer: “¿Qué preferís un novio que te pegue o que nadie te invite a salir?” La
pregunta tiene una fuerte carga de violencia simbólica y es reproductora de violencia física.
Por último, existen publicidades dirigidas exclusivamente a las mujeres como destinatarias de
las tareas de cuidado, vgr. la reciente campaña de cocinas USMAN, Lady Pink (Señora rosa), donde una
joven sensual, mostrando sus piernas, se encuentra parada al lado de una cocina rosa.
A modo de síntesis, podemos afirmar que los estereotipos machistas se manifiestan en la
sociedad, y, por tanto, las agencias publicitarias con frecuencia los reproducen en sus campañas.
Es hora de modificar estos patrones culturales donde la cosificación de la mujer se ha naturalizado,
y, para ello, las políticas públicas y las acciones de los organismos intermedios de la sociedad civil,
son una herramienta fundamental de transformación.
Otro supuesto de vulneración de los derechos de las mujeres se da cuando el nombre y la
foto de modelos o actrices famosas son indexadas a páginas pornográficas sin su consentimiento.
En estos casos, las damnificadas han demandado a los buscadores de internet, Google y Yahoo,
habiendo obtenido diferente resoluciones. No obstante, y lo que nos interesa destacar en este trabajo
es la posición que sostenemos en cuanto a que las mismas son sujeto expuesto de una relación de
consumo entre el usuario del servicio y el buscador.
Así, en el caso “Carrozo, Evangelina c. Yahoo” la camarista preopinante advierte una cuestión de
género, al indexar y mantener la foto y el nombre de la actora, contra su voluntad, a sitios sexuales
o que facilitan la pornografía o prostitución. La actual mirada y normativa constitucional, de la cual
es expresión la ley 26.485, impone al Estado evitar toda discriminación de género, y la sanción de

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

todo tipo de violencia contra las mujeres (art. 2, 3 y 4 de dicha ley) y en el caso, el accionar de los
buscadores demandados importan violencia contra la mujer en los términos del art. 4 y 5 apartado 2,
4 y 5 de la ley 26.485, expresada a través de una modalidad mediática, en los términos previstos por
el inc. f del art. 6 de la ley (consid. 5º).
Además, el Tribunal sostiene que la relación existente entre los buscadores y los internautas es
de carácter contractual (la empresa fija las condiciones sobre las cuales se regirá la prestación de sus
servicios). De tales bases y condiciones surge claramente que la relación que une a los buscadores con
los usuarios es un contrato y que un internauta es considerado por los propios buscadores de internet
como un usuario o consumidor, comprendido en la definición del art. 1º de la ley 24.240 (texto según
ley 26.361); los buscadores de internet se encuentran incluidos dentro de la definición de proveedores
del art. 2º de dicha ley, y la relación que une a ambos está comprendida en la definición del art. 3º
del mismo cuerpo legal (conf. Bilvao Aranda, Facundo Martín, “Apuntes sobre la responsabilidad civil
de los buscadores de contenidos en Internet”, publicado en La Ley Online y RCyS 2013-I, 25). En
definitiva, la aquí actora ocupa el lugar de la tercera afectada por dicha relación de consumo y tiene
derecho también desde esta perspectiva, a reclamar por el daño sufrido.

4 EL PROYECTO DE CÓDIGO DE DEFENSA DEL CONSUMIDOR ARGENTINO

El Proyecto de Código de Defensa del Consumidor (PCDC) argentino, elaborado por la Comisión
integrada por los juristas Gabriel Stiglitz, Fernando Blanco Muiño, María Eugenia D’Archivio, María Belén
Japaze, Leonardo Lepíscopo, Sebastián Picasso, Gonzalo Sozzo, Carlos Tambussi, Roberto Vázquez Ferreyra
y Javier Wajntraub bajo la coordinación de Carlos Hernández, se encuentra actualmente en tratamiento
parlamentario y es una obra jurídica de innegable consulta en el derecho local como comparado.
Es un código de principios que ilumina todo el sistema tuitivo del consumidor y cuyo objetivo
principal consiste en dotar al derecho del consumidor de una mayor sistematicidad.
Para ello es fundamental establecer cuáles son los principios del subsistema de protección
al consumidor, y consagrar un método para que los operadores del campo legal puedan trabajar
garantizando la coherencia sistémica de las soluciones a las que arriban en los casos concretos. En
otras palabras, es necesaria una sistematicidad estructural y una sistematicidad dinámica. Por eso, el
proyecto regula de manera robusta una serie de principios que hacen a la sistematicidad estructural
y el método del diálogo de las fuentes que garantiza el funcionamiento sistémico. (STIGLITZ, 2019)
Los principios cumplen una serie de funciones en la dinámica cotidiana de un sistema: cumplen
una función informadora y una función jurigenética; sirven para la integración supletoria; satisfacen
una función correctora; posibilitan la integración, pero, fundamentalmente, son una poderosa
herramienta argumental. (STIGLITZ, 2019; SOZZO, 2012)
De un modo superador a la situación legislativa actual, el Proyecto establece una regulación
transversal de la hipervulnerabilidad. Esto significa que no hay una sola norma que regule la
materia sino que, en aquellas cuestiones sensibles, se dispone una tutela especial de los llamados
hipervulnerables. (ARIAS, 2019)
Así, el principio de protección del consumidor se acentúa tratándose de colectivos sociales
hipervulnerables (art. 5, ap. 6). En tales supuestos, en el marco de la relación de consumo, la
educación, la salud, la información, el trato equitativo y digno y la seguridad deben ser especialmente
garantizados (art. 3).
El mencionado artículo 5º dispone que el sistema de protección del consumidor protege
especialmente a colectivos sociales afectados por una vulnerabilidad agravada, derivada de
circunstancias especiales, en particular, niñas, niños y adolescentes, personas mayores, enfermas o
con discapacidad, entre otras.
Una de las bondades de este corpus es que no limitó la categoría de consumidores hipervulnerables
a un numerus clausus; lo que permite incluir otros colectivos o personas en situación de vulnerabilidad,
además de las mencionadas en la referida norma y en el art. 75, inc. 23 de la Constitución Nacional;
vgr. las personas del colectivo LGBT+.
Cuando se regulan las “Prácticas Abusivas” (Sección 5º) se pone especial énfasis en la tutela de los

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

hipervulnerables (art. 19). Se garantiza el trato digno (art. 20) y el trato equitativo y no discriminatorio
como principio general, estipulando que los proveedores no pueden incurrir en conductas u omisiones
que menoscaben de manera arbitraria a los consumidores por razones de raza, etnia, género,
orientación sexual, edad, religión, condición física, psicofísica o socio-económica, nacionalidad, o
cualquiera otra que violente el principio de respeto de la dignidad de la persona humana (art. 21).
Asimismo, el PCDC incluye normas específicas sobre el trato digno en la atención al consumidor o
usuario, disponiendo que deberá ser adecuada a las condiciones de vulnerabilidad o hipervulnerabilidad
(art. 23); y sobre la atención prioritaria en casos de mujeres embarazadas, personas con discapacidad,
mayores, acompañadas con niños o niñas de escasa edad, o con dificultad de desplazamiento o
movilidad (art. 24).
Además, se mencionan, a título enunciativo, otras prácticas consideradas abusivas, como
ser, las conductas que de modo directo o indirecto estereotipen, promuevan o estimulen patrones
socioculturales sustentados sobre la desigualdad de género y las relaciones de poder sobre las
mujeres (art. 26, apartado 2).
Como puede advertirse, el corpus recepta la categoría de consumidores hipervulnerables,
establece normas protectorias desde una mirada transversal de la problemática e incluso refiere,
expresamente, entre las prácticas abusivas, a aquéllas que importan una violencia simbólica contra
las mujeres.
Sin lugar a dudas es una obra de avanzada, que ya forma parte del bagaje jurídico nacional y
comparado9, con independencia de su aprobación parlamentaria.

5 EPÍLOGO

A modo de colofón, podemos afirmar que en los casos de consumidores hipervulnerables o


especialmente vulnerables, el principio protectorio se acentúa, garantizando una tutela reforzada a la
luz de los Derechos Humanos.
Así, este principio a favor del consumidor (favor debilis), de trato equitativo y digno, consagrado
en el art. 42 de la Constitución argentina, alcanza con mayor razón desde el punto de vista axiológico
a los subconsumidores o consumidores especialmente vulnerables. Del mismo modo, el principio
de indemnidad exige una tutela judicial reforzada con la mirada en las personas en situación o
condiciones especiales de vulnerabilidad.
Por último, el Proyecto de Código de Defensa del Consumidor argentino dispone expresamente
que el principio de protección del consumidor se acentúa en los casos de colectivos sociales
hipervulnerables, y considera abusivas aquellas prácticas que de modo directo o indirecto estereotipen,
promuevan o estimulen patrones socioculturales sustentados sobre la desigualdad de género y las
relaciones de poder sobre las mujeres.

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9 El PLDC ha sido tomado como antecedente directo para la elaboración de las Resoluciones del Grupo Mercado Común del MER-
COSUR Nº 36/2019 sobre “Principios fundamentales” y Nº 37/2019 sobre Protección al consumidor en el Comercio Electrónico.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A PANDEMIA VERSUS O RELACIONAMENTO INTERPESSOAL NO


PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM

Larissa Rodrigues Flores10


Adriane Medianeira Toaldo11

RESUMO: O presente artigo visa discutir acerca da problemática consistente nas relações interpessoais
no ambiente escolar e nas universidades, com o propósito de elencar os reflexos da pandemia
entre aluno – professor, tendo em vista que o bom relacionamento entre ambos é fundamental para
desenvolver o sucesso na aprendizagem. Aborda-se ao longo do trabalho, como ocorre o relacionamento
interpessoal no âmbito educacional para verificar, se, está havendo o enfraquecimento dessa relação
interpessoal e o novo paradigma da pandemia, elencando a seguir os principais desafios da educação
em tempos de pandemia. Foram utilizados, como método de abordagem, o hipotético-dedutivo, e
de procedimento o histórico-comparativo. Realizou-se uma análise da aprendizagem em tempos de
pandemia com os novos métodos que estão sendo utilizados no ensino, como as aulas virtuais.

Palavras-Chave: Conflito. Ensino. Interpessoal. Pandemia. Relações.

INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda a relação interpessoal no ambiente educacional, abrangendo tanto o


escolar como universitário, assim como seus reflexos no cotidiano, tanto do aluno/acadêmico como
do professor em tempos de pandemia, englobando todas as consequências causadas por essa má
relação. Tendo em vista que este ambiente é como uma segunda família no desenvolvimento pessoal
e social do ser humano, faz-se necessária uma análise mais profunda sobre a temática.
Com a pandemia, a suspensão das aulas presenciais para os alunos se tornou uma rotina e
houve a necessidade de adotar novos métodos de ensino e novos meios de aprendizagem. Alunos e
professores foram obrigados a se reinventar com o novo cenário e precisaram se adaptar à rotina de
aprendizado virtual e ao isolamento social. Com o intuito de analisar e melhor entender qual o reflexo
da pandemia na relação professor/educador com o aluno/acadêmico, é necessário o estudo do tema
no viés da pesquisa, ensino e extensão.
Elenca-se como hipótese o reflexo de maneira negativa, pois o modelo a distância enfraquece
a relação, causando maior distanciamento e maiores conflitos entre professor/educador e aluno/
acadêmico, pois o relacionamento virtual não se compara ao presencial. Por outro ângulo, considera-
se o reflexo de maneira positiva pois, apesar da distância física, houve a possibilidade de manter o
vínculo por meio virtual, não afetando a relação e gerando novos meios de fortalecer o relacionamento
entre ambos.
Para este trabalho foi utilizado o método de abordagem hipotético–dedutivo e de procedimento o
histórico–comparativo, que consiste em uma análise de como ocorre o relacionamento interpessoal no
âmbito educacional antes e com a pandemia. O objetivo principal do estudo consiste no esclarecimento
desta relação em tempos de pandemia e os objetivos específicos em elencar as possíveis consequências do
enfraquecimento desta relação e dos reflexos da pandemia sobre o ensino, tanto escolar como universitário.
Neste sentido o estudo justifica-se pela grande relevância social, pois a educação sofreu grandes
modificações, sendo que o ensino a distância é muito importante para manter, pelo menos, parte da

10 Graduanda do oitavo semestre do curso de Direito pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, Campus Santa Maria,
RS. E-mail: larissaflores@rede.ulbra.br.
11 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, RS – UNISC. Professora da Universidade Luterana do
Brasil – ULBRA, Campus Santa Maria, RS. Advogada. E-mail: adrianetoaldo@gmail.com.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

rotina, assim como ativar e estimular as funções cerebrais que ajudam no aprendizado, buscando,
com isso, se readaptar ao novo cenário. E, dentro dessa nova rotina, é necessário definir momentos
para as atividades que estão na vida da criança e do adolescente, como os estudos e desenvolver
novos métodos que facilitem essa nova realidade.
Para tanto, será abordado primeiramente como ocorre o relacionamento interpessoal no ambiente
educacional, elencando brevemente a desenvoltura deste tema no decorrer dos tempos, fazendo a
seguir o relato dos reflexos do enfraquecimento desta relação, tanto antes como com a pandemia. E,
em sequência, listar os principais desafios da educação em tempos de pandemia, evidenciando seus
problemas e possíveis soluções.
Atualmente, vivencia-se o isolamento social, no qual as pessoas não estão podendo frequentar
escolas, escritórios e shoppings, estando submetidas a ficar em casa para, assim, tentar combater
um inimigo invisível, a Covid-19. Essa é a realidade frente à pandemia do novo coronavírus, o qual
modificou o funcionamento da vida como se conhece, havendo a necessidade de pontuar ações
desenvolvidas para apoiar os professores, os gestores, as famílias e os maiores interessados no
assunto, os próprios estudantes, na reforma da educação que o cenário atual impõe.

1 COMO OCORRE O RELACIONAMENTO INTERPESSOAL NO AMBIENTE EDUCACIONAL

A capacidade de se relacionar e socializar é o que diferencia o ser humano dos demais seres
vivos, pois esta característica se faz presente desde os primórdios das civilizações, assim como a
necessidade de se agrupar para manter a segurança do grupo. Nesta perspectiva, observa-se que
muitas teorias surgiram no que tange ao desenvolvimento humano e suas capacidades, tanto no
campo da psicologia como na sociologia, mas que atinge a todo o entorno social, refletindo-se em
todos os ambientes ao qual o ser humano está inserido.
Neste sentido, podemos citar o estudioso Howard Gardner, que aborda a Teoria das Inteligências
Múltiplas. Com o objetivo de investigar o potencial humano. Este autor elenca oito inteligências,
sendo que duas delas são a Inteligência Interpessoal e a Intrapessoal, conforme aduz Antunes (2011),
demonstrando-se a importância do relacionamento interpessoal, principalmente quando se fala do
ambiente educacional, pois a educação é uma maneira de estimular a inteligência dos educandos,
realizada durante toda a vida.
Neste viés, o desenvolvimento da aprendizagem está ligado às relações interpessoais, tendo em
vista que o professor passa a retratar um vínculo vantajoso ou não para os tipos de conhecimento. Na
maioria das vezes, alguns alunos não compreendem a disciplina porque passam a especificá-la devido
ao relacionamento que tem com o professor. O relacionamento entre professores e alunos ultrapassa
a relação entre profissional e educando e vice-versa, pois é comum do ser humano, após um longo
percurso juntos, adquirir afinidade e desenvolver sentimentos bons ou ruins sobre determinada
pessoa, ficando evidente no mundo educacional que essa relação se torna fortalecida com o passar
dos anos (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2011).
Quando a relação entre professor e aluno é bem sucedida, a educação ganha em qualidade, pois
é possível, dentro da relação, o educando passar suas dificuldades com mais clareza e tranquilidade
para o professor. Desta maneira, o professor também consegue identificar qual é a maior dificuldade
do aluno, sendo possível, com pesquisas, alterar seu método para aquela situação ou até mesmo para
sua disciplina (LOPES, 2020).

Sabe-se que existe uma preocupação por parte de muitos estudiosos e pesquisadores em
contribuir para um trabalho mais rico e significativo nas escolas. Mas, ao se fazer uma análise
do atual contexto escolar, nota-se que ainda são muito perceptíveis no cotidiano da escola, as
reclamações e insatisfações por parte dos professores em relação aos alunos e vice-versa. Ou seja,
a relação professor-aluno parece ser permeada por animosidades ou conflitos. Diante de tantos
desconfortos pedagógicos, houve alguns impasses: Entender ou repreender? Orientar ou ignorar?
A partir daí, tomou-se a decisão de olhar de frente o problema e o aproveitar para um tema de
pesquisa a ser investigado: Como a relação professor-aluno pode contribuir no processo ensino-
aprendizagem? (LOPES, 2020, p. 2).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A comunicação é a chave para o relacionamento educacional, pois somente é possível ter sucesso
na educação quando se tem uma ampla difusão de resumos e pesquisas, no qual todo e qualquer
método precisa ser bem elaborado e de fácil compreensão a um grande grupo de pessoas. Para que
essa situação ocorra, os alunos devem ter interesse sobre o assunto e serem motivados a trabalhar
em grupo. O empenho dos professores nessa área deve ser o de prestar um ótimo auxilio para os
educandos e serem flexíveis quanto a dificuldade do acadêmico ao realizar as atividades (LOPES, 2020).
A relação interpessoal no ambiente educacional é uma cadeia de grandes proporções que gera
consequências na vida do aluno/acadêmico e do professor/profissional. As repercussões dessa
relação para o aluno são impactantes para sua vida pessoal, pois o aluno depende dessa relação
para absorver o conteúdo e ser um ótimo profissional no futuro. E, na vida do professor, ele terá em
seu consciente a perspectiva de ter um retorno daquele aluno, com a certeza da excelência de seu
conteúdo ou ter uma má repercussão. Infelizmente, quando se ganha uma má fama é difícil de mudar,
pois na mesma velocidade em que se passa informações boas se recebe as ruins (SILVA, 2008).

Entretanto, ao aproximar-se da figura de alguns professores, percebe-se que muitos, baseados


no senso comum, acreditam que ser professor é apropriar-se de um conteúdo e apresentá-lo aos
alunos em sala de aula.
Mudar essa realidade é necessário para que uma nova relação entre professores e alunos comece
a existir dentro das escolas. Para tanto, é preciso compreender que a tarefa docente tem um papel
social e político insubstituível, e que no momento atual, embora muitos fatores não contribuam
para essa compreensão, o professor necessita assumir uma postura crítica em relação a sua
atuação recuperando a essência do ser “educador” (LOPES, 2020, p. 3).

Identificou-se que a relação no ambiente educacional é de mister importância para a saúde da


educação dentro das instituições, sendo possível o desenvolvimento de métodos e de percepção dos
problemas com os acadêmicos e o quanto é produtiva a relação neste ambiente. A comunicação e a
transparência da relação garantem o sucesso nessa relação, pois o mau relacionamento também está
inserido nesse contexto que impacta na vida do aluno e na experiência ruim do professor. A educação
é primordial na relação e a comunicação e expressão são ferramentas que transmitir ao aluno todo o
tipo de informação sobre adequada matéria e contexto a serem aplicadas (LOPES, 2020).

2 REFLEXOS DO ENFRAQUECIMENTO DESTA RELAÇÃO E O NOVO PARADIGMA DA PANDEMIA

Quando um ser humano se sente desprezado, ele se desestrutura e, na maioria das vezes,
se submete a um estado depressivo. isto também se percebe no meio educacional, visto que a
escola é um espaço de relações que podem ser ferramentas positivas ou negativas, dependendo
da intencionalidade de cada ser. É de grande relevância que o educador incentive o educando, de
maneira positiva, buscando assentar uma permanente interação entre aluno-aluno e aluno-professor.
Atualmente, notam-se crescentes ondas de violências no ambiente escolar, como mencionam os
autores abaixo:

A violência na escola tem provocado uma série de questões reflexivas sobre o papel da gestão,
pois o ambiente escolar tem sido local de manifestações agressivas – depredações do patrimônio
físico; agressões verbais e até violência física contra alunos, entre eles; aluno contra professor;
fora da escola, brigas por motivos frívolos. (MELO; SANTOS; SILVA, 2019, P. 185).

A pandemia do coronavírus impactou muito o ensino, com escolas fechadas, alunos em casa
e conteúdo curricular deixado para trás. Além de afetar a saúde pública e a economia, o Covid-19
gerou muitas consequências para a educação, afetando principalmente o calendário e a qualidade
de ensino. Nesse novo cenário, a educação a distância surgiu como uma alternativa para manter as
atividades de ensino dos alunos, mesmo com o distanciamento social.
As escolas, os escritórios, os shoppings, entre outros estabelecimentos, estão fechados para
prevenção ao vírus, necessitando que as pessoas fiquem em suas casas, tomando medidas de cautela,
higiene e proteção que são muito pertinentes e bem-vindas para o momento. Ficar mais em casa,
trabalhar menos e cancelar as atividades não essenciais acaba sendo primordial, considerando-se

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

como muito importante que todos façam a sua parte. E depois que toda essa pandemia passar, as
pessoas deverão se reinventar.
Está sendo vivenciada uma era de mudanças radicais em todos os sentidos, principalmente
tecnológicos. E educação vem se aprimorando durante anos e, diante da pandemia, teve que fazer
um salto de dois ou três anos para frente no contexto de ensino, no qual a tecnologia deixa de ser
algo meramente alternativa e se torna uma necessidade para que todo o processo de ensino continue
a gerar bons frutos na educação (SILVA; PETRY, UGGIONI, 2020).

Com a popularização da tecnologia digital, experimentamos uma relação sem precedentes entre
quantidade, velocidade e métodos de criação e disseminação de informações, alcançando inúmeras
trocas, mudanças sociais e culturais, promovendo o surgimento de novas formas de pensar, sentir,
agir e viver juntos. A existência dessas tecnologias no cotidiano das pessoas sempre foi um fator
de mudança e formação de novos hábitos (SILVA; PETRY; UGGIONI, 2020, p. 19).

O Coronavírus caiu como uma bomba e afetou todo o sistema de ensino de imediato. Em
duas semanas, os professores tiveram que modificar todo seu sistema de ensino que havia sido
programado e aprender a utilizar novos métodos, como as plataformas de ensino. Dentro dessas
mudanças, também surge uma grande preocupação: como tornar as aulas atraentes para os alunos?
Como saber que se os alunos estão aprendendo realmente o que estou ensinando? (KIRCHNER, 2020).

Estamos a vivenciando neste momento com as escolas em isolamento social, e ao mesmo


tempo precisamos pensar em como fazer a sala de aula acontecer em outros espaços e tempos,
tornando-se o grande desafio do momento. O que conhecíamos por sala de aula se alterou,
precisamos pensar e fazer escola a partir de outros formatos que para os quais temos inúmeros
questionamentos (KIRCHNER, 2020, p. 46).

São perguntas estas que não podem ser respondidas pelos próprios professores de imediato,
pois todo o processo de ensino se tornou diferente e novo. Porém, tudo que é novo assusta e gera
dúvidas. Ao mesmo tempo, a tecnologia oferece ferramentas incríveis e justamente com o auxílio
dessas plataformas foi possível dar sequência no semestre das faculdades, como o uso da plataforma
AULA que a Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) implementou para a rede de professores e alunos
é um excelente exemplo que a tecnologia veio por bem a servir (ULBRA, 2020).
Dentro desta plataforma é possível lançar às aulas e as atividades de ensino, além de possibilitar,
através de um chat, que o aluno tenha interação com o professor e o professor com o aluno. Desta
maneira, pode-se verificar que o uso bem aplicado da tecnologia gera benefícios para ambos os lados,
pois a interação acadêmica foi facilitada pela tecnologia, não existindo apenas matéria lançada e sem
retorno do acadêmico (ULBRA, 2020).
Outra ferramenta tecnológica utilizada pela Universidade Luterana do Brasil foi a plataforma
Meet, desenvolvida pela Google; dentro dela, foi possível aos professores e alunos interagirem como
se estivessem dentro de uma sala de aula, assim como desenvolver seminários e participar de reuniões
e palestras pela plataforma, pois, apesar de não possuir contato físico, a relação professor e aluno
sempre foi o foco desta instituição. Neste sentido, para responder a questão de “como saber que os
alunos estão aprendendo realmente o que estou ensinando”, pode-se entender que, com o bom uso
das ferramentas disponíveis, é possível ter um retorno do aluno e aprimorar as técnicas com o uso
das tecnologias (GOOGLE, 2020).
A tecnologia permite que as plataformas virtuais possam ser utilizadas como sala de aula,
promovendo seminários, palestras; inclusive, pode se aprender com jogos online, que permitem a
criação de perguntas e respostas, sendo possível criar salas de interação, assim como identificar e
ter o retorno dos alunos. Quanto a outra questão, de como tornar as aulas atraentes para os alunos,
esta pode ser resolvida através de dinâmicas com vídeo aulas e jogos que podem tornar a aula mais
atraente, pois apenas a inserção de conteúdo torna desgastante o aprendizado, tanto para o professor
quanto para os alunos. Assim, o uso de outras ferramentas de fácil manejo pode tornar interessante
as aulas, fazendo que o aluno se prenda mais ao conteúdo (WANDSCHEER, 2020).
O ambiente educacional mudou, existindo a partir do ano de 2020 um novo normal, no qual
a interação entre professor e aluno tem que ser aproximada pela tecnologia e ferramentas de

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

comunicação. O espaço físico deixou de ser o ambiente presencial para virar o escritório do professor
e o quarto do aluno. Dessa maneira, a relação física se tornou muito problemática, pois o contato
olho a olho entre ambas as partes, o toque, o abraço de um colega não pode ser mais sentido; tudo
isso deu lugar às palavras e frases digitadas, que não podem ser medidas de maneira igual em
comparação com a relação pessoal dentro de uma sala de aula (LIMA, 2020).

3 PRINCIPAIS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA

Sem sombra de dúvidas, a educação está passando por muitos desafios nessa época de
mudanças. O fechamento unilateral das instituições de ensino no Brasil inteiro foi um choque, pois
quando estas pararam as famílias tiveram que se reinventar dentro de casa e, ainda, com o desafio de
gerir o home office, os cuidados diários com as crianças e o equilíbrio da vida com uma nova forma.
Antes, a sociedade toda vivia uma rotina; agora, com a pandemia tudo mudou e, da mesma forma,
aconteceu com o fechamento das escolas e das universidades, mudando repentinamente os planos,
o planejamento pedagógico; enfim, tudo.
Atualmente, tudo está sendo repensado. As escolas estão constatando a presença dos pais no
processo de apoio ao ensino de maneira mais significativa. As famílias estão reavaliando a educação,
que é o ensinar a andar, a falar, a respeitar e a ter princípios éticos, mas este é um trabalho que lhes
cabe, enquanto a escola deve apoiar, sim, a educação, mas deve dedicar suas forças nos processos
humanos naturais, como ler, escrever e fazer contas (VALLE, MARCON, 2020).
Com certeza, com tantos desafios que estão surgindo, será exigido muito mais da sociedade
em geral, do governo, das escolas, das famílias e dos trabalhadores. As séries iniciais, por exemplo,
constituem um grande desafio para as escolas. O que pode ser feito para manter as regras sanitárias
entre crianças que querem se abraçar e compartilhar coisas? Todos estes desafios estão sendo
pensados, buscando respostas e adequações para essa nova realidade (KIRCHNER, 2020).
Infelizmente, não se sabe quando as instituições de ensino irão voltar a receber seus alunos
ou quando a vida voltará ao seu normal, pois o vírus não tem data para ir embora e o plano para
retomada ainda traz grandes desafios. Como solução, atualmente, se convive com aulas virtuais e
mantém-se a suspensão das aulas, como medida crucial para colaborar com o isolamento social, visto
que o ambiente educacional presencial é um espaço onde o contato é inevitável (LIMA, 2020).
O ensino a distância, utilizando plataformas online, é a alternativa mais plausível no atual contexto.
Os sistemas de ensino estão produzindo vídeo aulas, transmissões ao vivo, atividades online e webinar.
Esse esforço todo é para manter os alunos e acadêmicos em ritmo de estudo, mesmo que estejam distantes
do ambiente escolar, mas não romperam com o vínculo de aprendizagem (SILVA: UGGIONI, 2020).
Ainda há muitos desafios para serem enfrentados, ainda que de maneira temporária. Apesar
disso, a realidade traz à tona a dificuldade enfrentada por muitos alunos e famílias que não conseguem
utilizar as plataformas de ensino, assim como alguns professores que carecem de formação técnica
para dar andamento aos processos de aprendizagem nos ambientes virtuais. Nem todas as pessoas
têm acesso a computadores ou sabem manuseá-los; neste sentido, levar adiante as soluções de
educação a distância se tornou uma tarefa complicada, principalmente para os grupos sociais que são
mais vulneráveis (KIRCHNER, 2020).
Diante de todas essas dificuldades, surge a esperança quando se observam gestos de apoio,
iniciativas voluntárias de pessoas que ajudam as crianças, de pessoas que se oferecem e dispõem do seu
tempo para fazer o bem ao próximo. Esse tempo de isolamento social também é uma oportunidade para
as famílias resgatarem o seu papel educativo, disponibilizando o seu tempo e oferecendo às crianças e
aos jovens um estudo em conjunto, aproveitando mais e cultivando a fraternidade (RAMBO, 2020).
A educação também carece de cuidado, atenção e apoio para que se consiga superar o
distanciamento social e criar novos caminhos para o processo do ensino-aprendizagem, sempre
contando com o apoio da família em conjunto com as instituições de ensino. Deve-se tirar proveito
das experiências vivenciadas neste novo paradigma imposto pela pandemia e aperfeiçoá-las em prol
do bem comum de toda a sociedade educacional.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do estudo realizado, evidencia-se que a pandemia reflete diretamente no relacionamento


interpessoal do ensino, uma vez que alterou a relação do educador e educando. Neste sentido, se fez
necessária a análise dos reflexos da pandemia na relação professor/educador com o aluno/acadêmico.
Elencou-se, em um breve contexto, como ocorre o relacionamento interpessoal no ambiente
educacional, assim como os reflexos do enfraquecimento desta relação e o novo paradigma da
pandemia e, ainda, passou-se a analisar os principais desafios da educação neste contexto. Como a
pandemia trouxe grande impacto à toda sociedade educacional, o reflexo observado é o de maneira
positiva, pois apesar da distância física, houve a possibilidade de manter o vínculo por meio virtual,
não afetando a relação, e sim, dando novos meios de fortalecer o relacionamento entre ambos.
Observa, de igual forma, que, além de refletir no ambiente educacional o contexto repercute
diretamente no ambiente familiar, no qual se tem mais contato, que antes era dificultado pelas diversas
atividades do dia a dia. Para os professores, o modelo de ensino não presencial adotado durante a
pandemia também é novo, mas eles também estão participando dessa experiência desafiadora e que
modificou completamente seu cotidiano, trocando as movimentadas salas de aula pelas aulas ao vivo
pela internet; ou seja, tanto os alunos como os professores estão vivendo um processo de adaptação
para a nova realidade e desenvolvendo novos métodos.
A pandemia do coronavírus impactou muito o ensino, com as instituições de ensino fechadas,
alunos em casa e conteúdo curricular deixado para trás; mas apesar disso, o sistema colocou em
prática algo que já ocorria, mas que existia alguma resistência em se adaptar, sendo que agora virou
necessidade a implementação da tecnologia em prol da sociedade e do processo educacional. Diante
do novo cenário, a educação a distância surgiu como uma alternativa para manter as atividades de
ensino dos educandos, mesmo com o distanciamento social.
Outrossim, espera-se a pandemia passar e, até lá, usufruir das tecnologias disponíveis para
facilitar a reeducação e readaptação ao novo paradigma imposto pela pandemia, algo inesperado
que alterou a vida de toda a sociedade e seus ambientes, afetando diretamente o relacionamento
interpessoal. Todas as iniciativas tomadas são para a prevenção do vírus. As pessoas devem ficar em
suas casas e se conscientizar do grande alcance e extensão dos efeitos pós-pandemia.
Por fim, buscando filtrar todos os pontos positivos desse momento como aprendizagem em prol
da evolução pessoal e profissional, observa-se que o processo tecnológico e informatizado evoluiu
obrigatoriamente, antecipando ainda mais o futuro previsto. Neste sentido, educadores e educandos
foram forçados a ser inseridos a este sistema evolutivo, mesmo com todas suas resistências. Ficar mais
em casa, trabalhar menos e cancelar as atividades não essenciais já é necessário. É muito importante
que todos façam a sua parte, ficando em casa. Depois que toda essa pandemia passar, as pessoas
deverão se reinventar. Mas, agora, essas novas medidas de isolamento se fazem necessárias.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, C. Jogos para a estimulação das múltiplas inteligências. Rio de Janeiro: Vozes
Limitada, 2011.

DEL PRETTE, A.; DEL PRETTE, Z. A. P. Psicologia das relações interpessoais: Vivência para o
trabalho em grupo. Petrópolis: Vozes, 2001.

KIRCHNER, E. A. Vivenciando os desafios da educação em tempos de pandemia Elenice Ana Kirchner.


In: PALÚ, J.; SCHÜTZ, J. A.; MAYER, L. (Orgs.). Desafios da educação em tempos de pandemia.
Cruz Alta: Ilustração, 2020. p. 45-56.

LIMA, F. S. Quando as coisas acontecem antes de acontecer: educação em um cenário complicado.


In: PALÚ, J.; SCHÜTZ, J. A.; MAYER, L. (Orgs.). Desafios da educação em tempos de pandemia.
Cruz Alta: Ilustração, 2020. p. 261-276.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

LOPES, R. C. S. A relação professor-aluno e o processo ensino aprendizagem. Disponível em:


http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1534-8.pdf. Acesso em: 15 set.2020.

MELO, G. A. N.; SANTOS, A. Q.; SILVA, C. J. S. Gestão escolar e parceiros: elementos imprescindíveis
na promoção da paz no ambiente escolar, com vistas à aprendizagem. Sustinere, Rio de Janeiro, v.
7, n. 1, p. 185-202, jan./jun. 2019.

RAMBO, N. F. A educação em rede em época de pandemia: por uma vida mais solidária e de
acolhimento, para as epidemias e crises se repetirem menos. In: PALÚ, J.; SCHÜTZ, J. A.; MAYER, L.
(Orgs.). Desafios da educação em tempos de pandemia. Cruz Alta: Ilustração, 2020. p. 107-
122.

SILVA, E. A. Relações interpessoais no ambiente escolar. Em extensão, Uberlândia, v. 7 n. 2, p. 10-


18, 2008.

SILVA, L. A.; PETRY, Z. J. R.; UGGIONI, N. Desafios da educação em tempos de pandemia: como
conectar professores desconectados, relato da prática do Estado de Santa Catarina. In: PALÚ, J.;
SCHÜTZ, J. A.; MAYER, L. (Orgs.). Desafios da educação em tempos de pandemia. Cruz Alta:
Ilustração, 2020. p. 19-36.

VALLE, P. D.; MARCOM, J. L. R. Desafios da prática pedagógica e as competências para ensinar em


tempos de pandemia. In PALÚ, J.; SCHÜTZ, J. A.; MAYER, L. (Orgs.). Desafios da educação em
tempos de pandemia. Cruz Alta: Ilustração, 2020. p. 155-168.

WANDSCHEER, K. T. Ensino remoto: um caminhar de possibilidades educativas. In: PALÚ, J.; SCHÜTZ,
J. A.; MAYER, L. (Orgs.). Desafios da educação em tempos de pandemia. Cruz Alta: Ilustração,
2020. p. 235-246.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NA ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS


PÚBLICAS DE SAÚDE NA PANDEMIA:
PRÁTICAS EM DIREITOS HUMANOS

Wellen Pereira Augusto12


Maria Aparecida Lucca Caovilla13

RESUMO: O movimento indígena vem reivindicar a participação política na vida social, em especial
no que toca aos seus direitos. Isso é melhor visto a partir da Constituição de 1988, também como
projeto de emancipação indígena. Com a ruptura social e jurídica da pandemia, as políticas públicas
em relação a povos originários mostraram-se carentes de legitimidade, pois não abarcaram as vozes
subalternas desses povos. No marco da consulta prévia, livre e informada sobre seus direitos, os
povos indígenas vão à Suprema Corte para participar do processo de elaboração de políticas públicas
de saúde. Nesse aspecto, pelas lentes da interculturalidade, vê-se que a admissão de diferentes povos,
organizados de distintas formas, na vida política e também pela via judicial, consagra uma práxis de
direitos humanos efetivamente pluralista e democrática.

Palavras-chave: Políticas públicas; Povos indígenas; Interculturalidade; Pandemia.

INTRODUÇÃO

A política indigenista brasileira é marcada por tensões entre o Estado e os povos originários.
A partir do regime democrático formal instaurado com a Constituição Federal de 1988, alguns
paradigmas são levantados. Dentre eles, a emergência indígena no exercício cidadão e na elaboração
de políticas voltadas a cada comunidade indígena.
Com a observação do marco da diferença na Constituição e também por um prisma intercultural, a
participação indígena se mostra como um direito humano coletivo. É nesse aspecto que a pesquisa insere crí-
ticas, a fim de pensar o papel dos povos ameríndios nas políticas públicas de saúde em tempos de pandemia.
Defende-se que sua participação é essencial ao modelo de Estado Democrático de Direito
intercultural, pluralista e efetivamente democrático. Assim, objetiva alicerçar os argumentos a partir
da visualização das políticas lançadas pelo Estado até o momento e que se mostraram insuficientes,
a ponto de exigir a judicialização das políticas públicas no Supremo Tribunal Federal.

1 OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS E A POLÍTICA INDIGENISTA NA PANDEMIA

A Constituinte de 1987-1988 foi um campo de disputa, de clivagens e de protagonismo do


movimento indígena, organizado em associações, aliados indigenistas etc., para garantir o direito
originário à terra e o fim da política de assimilação e tutelar (SANTANA; CARDOSO, 2020).

Um fato que parece ser muito significativo, e que deve ter sido observado durante essas nossas
conversas, é que o Movimento Indígena brasileiro foi sendo “gestado” ao longo de muito tempo
para chegar à década de 1980 e apresentar uma proposta efetiva de participação nos rumos da
política indigenista brasileira e, ainda, oferecer a esta mesma sociedade um novo olhar sobre o
que os povos indígenas podem oferecer para o futuro do país (MUNDURUKU, 2012, p. 220)
Os direitos ali consagrados decorrem de lutas requeridas desde a década de 1970, com forte apoio

12 Pós-graduanda em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Fronteira Sul e Direito Constitucional pela
Academia Brasileira de Direito Constitucional. Bacharela em Direito. Membra do Observatório de Políticas Constitucionais
Descolonizadoras para a América Latina (OPCDAL). Contato: wellen._@hotmail.com
13 Doutora em Direito (UFSC). Docente do PPGD da Unochapecó. Coordenadora do Observatório de Políticas Constitucionais
Descolonizadoras para a América Latina (OPCDAL). Contato: caovilla@unochapeco.edu.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

da sociedade civil pelo fim da ditadura militar e emancipação dos povos, por meio da formação anterior de
entidades indígenas e de uma consciência indígena nacional. O aspecto de afirmação de direitos humanos
e de um Direito dos Povos Indígenas é alicerçado pela aprovação da Convenção nº 169 da OIT, em 1989.
Nessa perspectiva, toma-se como indigenismo o conceito restrito de política do Estado, de
natureza comissiva ou omissiva, na mediação entre as relações públicas e comunitárias dos povos.14
A partir disso, é fundamental resgatar o indigenismo como diretriz constitucional, encartado no art.
231 da Constituição Federal de 1988, no qual compete à União a demarcação das terras indígenas e, no
art. 232, delegando ao Ministério Público a defesa e promoção de direitos das comunidades indígenas.
Ainda que a Constituição Federal de 1988 tenha avançado a conjuntura de reconhecimento de
direitos originários, a prática evidencia que a lógica colonial persiste.
A ruptura da tutela, ao querer transformar o Estado etnicamente preocupado com o diálogo entre
povos e o governo federal, na verdade ficou muito aquém do esperado, o que gerou uma sensação de suca-
teamento dos órgãos aos quais se atribuía a política indigenista (BARROSO-HOFFMANN et al., 2004, p. 297).
O Estado, como ente político, tem desempenhado o protagonismo na violação de direitos
humanos e fundamentais de ameríndios. A política indigenista foi reduzida, as terras indígenas não são
demarcadas, o orçamento é reduzido, o discurso político presidencial é anti-indígena (AMADO, 2019).
Para além de uma política indigenista questionável, a ação anti-indígena segue em curso no bojo
da Constituição, seja pelas propostas legislativas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
nº 215/2000 e suas ramificações, que de tempos em tempos circulam no Congresso Nacional como
ofensiva aos direitos territoriais (ASSIRATI; MOREIRA, 2019).
Além disso, citam-se o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PLC) nº 191/2020, cujo objetivo
é regulamentar a exploração de recursos minerais; Medida Provisória nº 910/2019, a qual regulariza
terras públicas; Instrução Normativa nº 09, de 22 de abril de 2020, no âmbito da Fundação Nacional
do Índio (FUNAI), a qual permite a declaração de propriedade de terras que estejam em áreas indígenas
ainda não homologadas (ROCHA; PORTO, 2020).
Em relação aos povos isolados ou em recente contato, a Portaria nº 419, de 17 de março de
2020, considerada como uma política de contato com aqueles povos que pretendem a separação,
permitindo às Coordenações Regionais da Funai, mediante ato justificado, desde que necessário à
sobrevivência do grupo (BRASIL, 2020b).
Do prisma social, o Estado atua em deliberada omissão em paralisar o andamento de demarcações
em TIs em continuidade ao modus operandi do governo Temer, se agravando com a gestão Bolsonaro
no governo federal (POLÍTICA, 4 fev. 2020).
No âmbito da atuação na pandemia, a política indigenista do presente constitui-se em estratégias
de sabotagem à legislação que pretende criar um plano emergencial, o qual tem objetivo de prevenir o
contágio da Covid-19 em comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, como o PL nº 1142/2020,
projeto que sofre pressão da própria Secretaria de Saúde Indígena no âmbito do Ministério da Saúde
(NOTA, 14 jun. 2020). O projeto foi aprovado no Congresso Nacional pela Lei nº 14.021/2020, e teve
quatorze vetos, na oportunidade de sanção pelo Presidente da República (BRASIL, 2020a).
Não somente, a ausência de participação dos povos indígenas nas políticas de enfrentamento
à covid-19 demonstra a violação às normas internacionais e nacionais de consulta prévia, a fim de
promover o diálogo entre o Estado e cada comunidade.

Percebe-se que a morosidade na garantia de políticas públicas indispensáveis e essenciais no


enfrentamento do Covid-19, por parte do governo federal, além das barreiras no acesso aos direitos,
como a renda básica emergencial, e a insuficiência na destinação de recursos públicos, compõem
parte das tecnologias governamentais que violam direitos, o que impacta, de modo perverso, na
população mais vulnerável, que vivencia as condições mais desiguais. (SILVEIRA, 2020, p. 142).

Representantes dos diversos povos indígenas do país têm denunciado a malversação do


orçamento da Funai, por ausência de destinação concreta dos recursos do órgão subordinado ao

14 Em outro sentido, Ramos (2012, p. 28), ao compreender o indigenismo como um fenômeno político, irrestrito, de modo a
abarcar o universo daquilo que toma por indígena a categoria principal de análise, tem-se que integram o conceito, também, além
das políticas públicas e privadas, “os meios de comunicação, a literatura ficcional, a atuação da Igreja, de ativistas dos direitos
humanos, as análises antropológicas e as posições dos próprios índios, que podem negar ou corroborar a imagética do índio”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Ministério da Justiça e Segurança Pública.15


A modificação na política indigenista perpassa, em especial, na cobrança pela não intervenção
estatal na auto-organização indígena e, ao mesmo tempo, a promoção de políticas que visam a não
interferência de terceiros ou sua desintrusão em territórios indígenas, de modo a garantir “a incolumidade
do povo que vive segundo seus usos, seus costumes e suas tradições”. No mesmo sentido, também
deve-se prestigiar aquilo que Carlos Frederico Marés chamou de “legitimidades internas e externas”,
isto é, aquelas definidas por cada comunidade em si considerada (SOUZA FILHO, 2002, p. 60).
É visto que o campo da política indigenista é um campo de disputa constante, importando em
avanços e retrocessos, lutas e exigências para o cumprimento da Constituição.
No momento atual, a necessidade de ocupar o espaço público para garantir a efetividade de
direitos fundamentais de todos os povos é uma das lutas do movimento indígena.
A política indigenista atinge os diversos povos indígenas, aldeados, citadinos, isolados ou em
recente contato. A negativa à autodeterminação, assim compreendida como determinação livre de
sua condição política e seu desenvolvimento econômico, social e cultural, bem como autonomia e
autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, nos termos dos artigos 3
e 4 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais (ONU, 2007),
representa, senão, a face da violência do Estado brasileiro.
Além da Declaração das Nações Unidas, a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), já ratificada e incorporada no ordenamento jurídico, também atribui tal responsabilidade
aos Estados, veja-se o artigo 6 em sua completude:

Artigo 6. 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a)


consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente,
através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas
ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) estabelecer os meios através
dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma
medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões
em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas
políticas e programas que lhes sejam concernentes; c) estabelecer os meios para o pleno
desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os
recursos necessários para esse fim. 2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção
deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de
se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas (BRASIL, 2019).

A respeito do direito à saúde, artigo 25 do Convênio dispõe em seu parágrafo 1 o dever de “zelar
para que sejam colocados à disposição dos povos interessados serviços de saúde adequados”. Em
continuidade, diz o parágrafo 2 que os serviços de saúde “deverão ser planejados e administrados em
cooperação com os povos interessados” (BRASIL, 2019).
Essa perspectiva vai ao encontro do direito à consulta prévia, livre e informada, também advinda
com a Convenção, em todas as medidas que importem no interesse das comunidades indígenas.
Nesse cenário, as medidas sanitárias, de maneira geral, são de interesse de todos os povos.
Para Peruzzo, há dificuldade em exercer o direito à participação, de maneira geral, no modelo da
democracia representativa, pois é marcado por traços coloniais. Por isso, focado no agir comunicativo
de Habermas, o autor defende a necessidade de uma participação ativa e dialógica, a qual leva em
consideração as relações assimétricas entre o Estado e os povos originários (PERUZZO, 2017).
Assim, Peruzzo reivindica o modelo deliberativo de Habermas, calcado na pluralidade de formas
de comunicação e equilíbrio de interesses, o que não pressupõe concordância, mas entendimento e
compreensão para assegurar a pacificação das relações conflitantes (PERUZZO, 2017).

Em outros termos, o que estamos entendendo aqui por democracia participativa não significa a anulação
das funções do Congresso Nacional ou dos gestores públicos, mas o fortalecimento de processos em
que grupos minoritários tenham a oportunidade de apresentar os seus pontos de vista e, se for
o caso, de dizerem “não” às propostas de leis e às políticas públicas de cima pra baixo e que, por
isso mesmo, repetem a lógica colonial e violam direitos humanos reconhecidos na Constituição, nos
tratados e convenções internacionais e na legislação infraconstitucional (PERUZZO, 2017).

15 Sobre o orçamento da Funai de janeiro a maio de 2020, ver Santana e Miotto (2020).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O dever de admitir a participação indígena é decorrente do instrumento ratificado no Brasil,


no entanto, no contexto da pandemia, a norma foi mitigada e o governo federal tomou medidas
inadequadas para a contenção do vírus.
Diante disso, a atuação estatal gerou a judicialização da questão no Supremo Tribunal Federal
(STF) com fim de obrigar e responsabilizar o Estado brasileiro pela falha no compromisso de conter a
disseminação do vírus em comunidades indígenas.
Trata-se de um resgate do movimento indígena e de aliados contra a política indigenista estatal
anti-indígena, tendo como o Estado o principal responsável pela perpetuação de violações de direitos
fundamentais.
A ausência de políticas públicas, plano emergencial e o próprio diálogo com as lideranças indígenas,
levou o movimento indígena organizado, representado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(APIB), junto dos partidos políticos Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Rede Sustentabilidade, Partido dos Trabalhadores (PT),
Partido Democrático Trabalhista (PDT), a ingressarem com a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2020c).
A ação alega as vulnerabilidades diversas enfrentadas por povos indígenas, em especial a
imunológica, diante da “memória imunitária distinta”; social, pelo modo de vida particular, caracterizado
pela intensidade da vida comunitária e pelo compartilhamento da vida; e política, ante a quase nula
representação nas instâncias de poder no Estado, inclusive tendo como consequência o baixo acesso
a infraestrutura e serviços públicos. Ainda, segundo a APIB, a mortandade por covid-19 entre povos
indígenas é de 9,6% (nove vírgula seis por cento), enquanto a população brasileira em geral sofre de
5,6% (cinco vírgula seis por cento) (BRASIL, 2020c).
Os partidos e o movimento indígena denunciam o descumprimento na não contenção ou não
desintrusão de invasores nas terras indígenas; ações deficientes em matéria sanitária, por equipes que
não tomam cuidados de prevenção antes do contato com os povos; bem como, a decisão da Funai e da
Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) de prestar serviços de saúde exclusivamente a indígenas
aldeados e, inclusive, somente àqueles em terras indígenas efetivamente homologadas pelo Estado,
deixando os indígenas citadinos e em terras não juridicamente reconhecidas desassistidos (BRASIL, 2020c).
A omissão também opera na falta de equipamentos, leitos, medicamentos e diretrizes necessárias
para atuação dos profissionais de saúde (RIBEIRO, 25 mai. 2020) e, como consequência, a corrente
violação de recomendações dos órgãos internacionais como a Organização Pan-Americana da Saúde
(OPAS/OMS) (2020) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) (2020).
Com isso, a política promovida pelo governo federal contra os povos originários se acentuou
com a Covid-19. Dessa forma, para afirmar a Constituição de 1988 e a Convenção nº 169 da OIT,
novamente o movimento indígena exige o diálogo e renega a tutela estatal.
A ADPF, prevista no art. 102, § 1º da Constituição e regulamentada pela Lei nº 9.882/1999, é
uma ação do controle concentrado de constitucionalidade, que tem fulcro de proteger as normas do
ordenamento jurídico, em especial princípios, mas eventualmente regras, que norteiam o cabedal
jurídico brasileiro.
Na análise de Volpatti Polezze (2015), há um grau de subjetividade quanto o alcance da ADPF, se
comparada a outras ações do controle de constitucionalidade, pois estas tratam de “ato geral e abstrato”,
enquanto naquela não há consenso, de modo que pode abarcar atos de governo não-normativos.
Nessa organização de ideias, Barroso, assim, coloca como parte da semântica de “preceito
fundamental” os objetivos e fundamentos da República, princípios fundamentais, direitos fundamentais
e princípios constitucionais sensíveis (BARROSO, 2012).
No caso, o descumprimento do Poder Público, de forma comissiva e omissiva, ao não implementar
medidas protetivas e culturalmente adequadas aos povos indígenas, além do constante ataque aos
direitos territoriais, é capaz de violar a dignidade humana, direitos à vida, à saúde, ao direito ao
território e autodeterminação dos povos. Assim, o instrumento constitucional foi adequado para
obrigar a União a tomar as medidas necessárias de enfrentamento à Covid-19.
Em manifestação, a Advocacia Geral da União, em defesa, afirmou que haviam sido tomadas
diversas medidas para conter a chegada do vírus em terras indígenas, como a “multiplicidade de
normas e planos de contingência nacional e distrital (...) bem como a criação de Equipes de Resposta

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Rápida (ERR) e de Comitês de Gestão de Crise (CGC)”, além de ter suspendido o ingresso de terceiros
nas terras de povos indígenas em isolamento, o que não ficou demonstrado de modo satisfatório, de
modo que Barroso afastou tais argumentos. Além disso, não tendo contestado o pedido de barreiras
sanitárias, o fato tornou-se incontroverso (BRASIL, 2020c)
Em relação aos povos isolados, a decisão de isolamento voluntário, calcada na necessidade de
preservação da própria comunidade, é reflexo desta autodeterminação, de modo que a política do
contato pode ocasionar a mortandade dos povos mais suscetíveis às doenças infecciosas. Nesta linha,
as ações que burlam o isolamento por atecnia ou má-fé do governo federal, “ou já são propriamente
genocidas (na medida em que são etnocidas), ou têm ‘potencial genocida’” (MOLINA, 2018, p. 407).
A medida cautelar apreciada pelo Ministro Barroso teve procedência parcial, portanto, a presente
análise restringe-se aos argumentos lançados para os pedidos já deferidos.
Aos povos indígenas isolados, o Ministro determinou a criação de barreiras sanitárias, o que deve
ser realizado por plano da União e anteriormente discutidas na Sala de Situação, também determinada
na liminar.
A Sala de Situação já estava prevista na Portaria Conjunta nº 4.094/2018 do Ministério da Saúde
e da Funai, para tratar de tomada de decisões justamente em caso de surtos ou epidemias envolvendo
os povos indígenas isolados ou de recente contato. Nisso, Barroso acentuou a necessidade de
planejamento e execução com a participação das comunidades e reconheceu que o Executivo não
estava cumprindo a norma imperativa da Convenção nº 169.
Em relação aos povos indígenas em geral, ficou determinado a criação de um Plano Emergencial
de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para os Povos Indígenas, o que inclui a contenção de
invasores e intrusos em terras indígenas, com fim de evitar a propagação (BRASIL, 2020c).
Não obstante, o Ministro determinou o imediato atendimento de indígenas aldeados em terras
não homologadas pelo Sistema de Saúde Indígena, vez que o governo recusava-se a atendê-los,
novamente violando o direito à autodeterminação. Barroso asseverou que não é uma questão
discricionária da autoridade, mas direito garantido pela Convenção e pela Lei nº 8.080/1990, que
dispõe sobre a atenção à saúde dos povos indígenas. Além disso, estendeu o acesso dos subsistemas
aos indígenas urbanos, de modo subsidiário, desde que não tenham acesso ao Sistema Único de
Saúde (2020c). Conforme a decisão, o plano deve conter:

[...] (i) a avaliação da viabilidade de retirada de invasores de terras indígenas ou medidas


alternativas à remoção; bem como (ii) o exame da viabilidade e eventual planejamento da expansão
do atendimento do Subsistema de Saúde Indígena para indígenas não aldeados, a ser realizado no
prazo de 30 dias (BRASIL, 2020c).

A despeito de outros pedidos terem sido indeferidos em caráter cautelar, a decisão demonstra a
necessidade de um diálogo intercultural e de participação dos povos indígenas nas políticas públicas
de enfrentamento à Covid-19.

2 PRÁTICAS EM DIREITOS HUMANOS: VOZES SUBALTERNAS “DESDE ABAIXO”

A participação indígena na Suprema Corte, bem como na denúncia de violações de direitos


humanos, demonstra a intensidade de vozes subalternas no caminho da efetivação de direitos
humanos na América Latina.
Reconhecer a legitimidade para reivindicar os direitos à vida, à saúde, à proteção eficiente perante
o Estado é um marco da interculturalidade para o Direito brasileiro, antes incurso na Constituição e
afirmado na via judicial.
A interculturalidade, como projeto político, tem sido compreendida, desde os anos 90 pelo
movimento indígena, como questionamento à realidade sociopolítica do neocolonialismo, isto é, seus
reflexos nos modelos de Estado, democracia e nação (WALSH, 2007, p. 49). Além disso, não é surpresa
ser uma reivindicação dos povos indígenas de respeito à sua cultura e organização social – incluindo
seus modelos políticos, jurídicos e econômicos.
Deve-se observar que a conquista desses direitos, da mutação do Estado nacional e da

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

hermenêutica não se deram senão pela via democrática, é dizer, através de intensos movimentos
sociais que buscaram tais transformações.

Não há uma verdadeira mudança do paradigma jurídico a partir tão somente da dimensão
institucional e da legislação escrita positiva (de cima para baixo). As mudanças paradigmáticas se
dão a partir da sociedade civil e dos movimentos sociais, do poder comunitário comprometido,
engajado e participativo, que vai interferir através de processos de resistência no campo jurídico
e político. (WOLKMER, 2015b, p. 99).

Os novos sujeitos ou novos movimentos sociais são, numa definição histórica e sociológica,
aqueles que emergem no contexto atual para forjar o projeto pluralista em virtude de sua emancipação
política (WOLKMER, 2015a, p. 276-277). 16
Com a participação na formação de políticas públicas, ainda que no âmbito judicial, os indígenas
são, assim, reconhecidos como seres de juridicidade, isto é, capazes de emanar fontes do Direito, bem
como exercê-lo, algo reservado apenas o Estado na concepção liberal do constitucionalismo moderno.
Suas formas de organização são reconhecidas e levadas a sério, bem como seus conhecimentos
tradicionais que, nesse contexto, visam mitigar os efeitos do vírus em seus povos. Assim:

Mais do que um simples conceito de inter-relação, a interculturalidade assinala e significa


processos de construção de conhecimentos “outros”, de uma prática política “outra” de um poder
social “outro”, e de uma sociedade “outra”, formas diferentes de pensar e atuar em relação à
modernidade/colonialidade, um paradigma que é pensado através da prática política. (CAOVILLA;
WENGENOVICZ, 2018).

Percebe-se, como reflexo atual, a partir do paradigma do direito à fraternidade/solidariedade,


a assunção de uma concepção comunitária de exercer direitos humanos. Bem como, a política de
reconhecimento e a participação cidadã dos povos subalternos ajudaram a criar paradigmas para o
Direito, os quais giram ao redor também de repensar categorias como direitos humanos, democracia,
participação política e desenvolvimento.
Não somente no processo político de participação, mas também judicial, exigindo do Estado
e dos governantes a responsabilidade pelos direitos humanos dos povos originários. Desse modo,
pensar os direitos humanos de uma categoria contra-hegemônica e também contramajoritária, para
que as vozes subalternas sejam ouvidas no processo político-judicial em assuntos de si mesmos.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa buscou verificar as políticas públicas de saúde em tempos de pandemia para povos
indígenas, tendo como objeto o estudo das políticas indigenistas realizadas pelo Estado.
Ao observar a insuficiência e ilegitimidade, tem-se que estes contornos só serão resolvidos
com a efetiva participação comunitária dos povos originários nesse processo. Diferente disso, é
relegar os povos às maiores vítimas de violações de direitos humanos, por negar seus direitos de
autodeterminação, consulta e identidade.
Com as lentes da interculturalidade, para promover um projeto político e jurídico a fim de englobar
diferentes modos de ser/estar na sociedade e no Direito, visualizou-se que é este o caminho a ser
percorrido na prática de direitos humanos, de modo que as categorias subalternas e marginalizadas
tenham acesso pleno ao Estado social, plural e democrático. O exercício é, para além de dar a voz,
ouvir o que os povos têm a dizer.

16 Aqui, emprega-se a definição do antropólogo Marcio Goldman, “[...] por “novos movimentos sociais” se costuma designar
um conjunto algo heteróclito de lutas que, nas décadas de 1960 e 1970, pareciam estar substituindo o “velho” movimento
operário (com seus sindicatos e associações) como processo característico da “sociedade civil” – ou seja, de tudo aquilo que
não era o Estado.” (GOLDMAN, 2007).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A PÓS-VERDADE NAS MÍDIAS SOCIAIS E OS SEUS EFEITOS


NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Matheus Antes Schwede17


Mateus de Oliveira Fornasier18

RESUMO: Com a chegada da Web 2.0, a internet possibilitou uma forma de fácil comunicação
através das redes sociais. Nestas mídias, os usuários não só puderam compartilhar, como também
criar conteúdo com proporções gigantescas de alcance. Tendo em vista o potencial da facilidade de
disseminação de informações, as Fake News, por exemplo, começaram a ser utilizadas para moldar a
opinião pública, trazendo enormes riscos ao Estado democrático de direito diante o fenômeno da pós-
verdade. Diante disso, o presente estudo procura estudar a pós-verdade nos meios digitais e quais
sãos os seus efeitos e os riscos à democracia. Para realização da presente pesquisa, foi utilizado o
método hipotético-dedutivo através da técnica de pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Mídias Sociais. Pós-verdade. Democracia.

INTRODUÇÃO

É possível perceber que dado ao grande avanço tecnológico e com a chegada da Web 2.0, também
conhecido como a internet das redes sociais, as relações humanas foram se tornando cada vez mais
intensas. Pois, de fato, com a possibilidade de compartilhar e produzir conteúdo em plataformas
de mídias com grande quantidade de usuários, ficou muito mais fácil a interação do que qualquer
período já existente. De fato, as redes sociais tem grande possibilidade de democratização do debate,
podendo dar voz a todos os seus usuários. Porém, ao mesmo tempo, há a possibilidade de discursos
excludentes que visam minar as democracias e as suas instituições, fazendo com que o espaço se
torne extremamente inóspitos à opiniões diversas.
Isso se dá devido a grande quantidade de notícias fraudulentas que visam lidar com as emoções
daqueles que estão consumindo esse tipo de informação. Líderes populistas, robôs – bots –, ou qualquer
outro que tenha o interesse de utilizar as Fake News com finalidade de promover determinado partido,
difamar outro, ou promover a imagem de alguém, utilizam os medos e os anseios das pessoas, bem
como os seus preconceitos para criar a ideia de uma falsa realidade, trazendo a tona a era da pós-
verdade, onde nada é facilmente distinguível, ainda mais com a evolução tecnológica que oferece
uma ampla de quantidade de ferramentas para criar conteúdos pelas mais diversas formas de mídias,
como por exemplo, vídeos, imagens e textos.
Aliás, é verdade que as mídias sociais potencializaram o fenômeno da pós-verdade, pois,
conforme os seus usuários vão consumindo conteúdos, os algoritmos presentes nessas plataformas
aprendem com os dados gerados através de likes e retweets de cada usuário que traçam o seu
comportamento, suas preferências e quais o tipo de informação que tende a consumir. Dessa forma,
esse determinado tipo de conteúdo aparecerá com cada vez mais frequência no feed de alguém e
consequentemente poderá criar uma bolha de informação, onde o mesmo só terá acesso a conteúdos
relacionados à sua personalidade, suas crenças e emoções, apenas uma forma de pensamento, uma
única visão política e social, bem como pode potencializar comportamentos preconceituosos.

17 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ; Mestrando e Bolsista
UNIJUÍ do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito - Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ. E-mail:
matheusschwede@gmail.com.
18 Pós-doutor em Direito e Teoria pela Universidade de Westminster, Inglaterra. Doutor em Direito pela UNISINOS e Mestre
em Desenvolvimento pela UNIJUÍ. Professor dos Programas do Mestrado em Direitos Humanos e de Graduação da UNIJUÍ.
E-mail: mateus.fornasier@gmail.com.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Diante disso, a presente pesquisa procura estudar a pós-verdade perante o avanço tecnológico
proporcionado no século XXI, como é o caso da sua potencialização pelas redes sociais, bem como
todos os seus efeitos. Em um primeiro momento, será estudado como se propaga a pós-verdade nas
redes sociais. Já na segunda parte, serão analisados os possíveis riscos que o mesmo fenômeno pode
proporcionar nas democracias e na sociedade. Para a realização do presente estudo foi utilizado o
método hipotético-dedutivo e a técnica de pesquisa foi a bibliográfica. Os procedimentos específicos
seguidos foram: a) separação de artigos internacionais e nacionais recentes e pertinentes ao estudo; b)
leitura, reflexão e fichamento dos estudos selecionados e, por fim; c) a elaboração da presente pesquisa.

1 A PÓS-VERDADE NAS MÍDIAS SOCIAIS

Esse novo momento conhecido como a era da pós-verdade, acaba se confundindo e se


entrelaçando com o surgimento das plataformas das mídias sociais, as quais acabam desempenhando
um papel de fonte de notícias recebendo uma quantidade de informações cada vez maior. As crenças
dos usuários das redes sociais demonstram alta sensibilidade aos conteúdos que são expostos e,
combinado com as tentativas de que essas plataformas têm de maximizar o aumento do seu uso
pelos usuários, isso pode ocasionar no surgimento de pensamentos conspiratórios nas redes sociais
(DAVE; CHREMOS; MALIKOPOULOS, 2020). Ainda, a ótica nacional da pós-verdade, dissemina-se,
principalmente, através dos meios eletrônicos, com uma ideologia que nega qualquer princípio de
verdade dissidente, discordando de qualquer visão distinta sobre determinado tema, e na grande
maioria das vezes sem qualquer fundamentação crítica. Dessa forma, determinado ponto de vista de
um indivíduo ou um grupo, passa a ser como uma verdade absoluta (QUADROS, p. 203, 2018). Neste
ambiente oferecidos pelas plataformas, as pessoas já não conseguem mais distinguir o que é verdade
ou não, o que tem credibilidade ou não, o fato é que muitas acabam acreditando na maioria das coisas
que consome nas redes sociais.
Paulo Quadros (p. 211, 2018) ainda vem a versar sobre a grande preocupação acerca da
proliferação dos conteúdos nas redes sociais, as quais não possuem qualquer apuramento crítico,
sobre a legitimidade e a veracidade de determinado conteúdo. Pois, mesmo que a internet propôs a
democratização do acesso à informação e à liberdade de veiculação de informações, muitas vezes
se percebe a falta de discernimento e reflexão acerca das informações que se consome nas redes
sociais. Aditya Dave, Ioannis Chremos e Andreas Malikopoulos (2020), também demonstram que,
devido a essa abertura proporcionada pelas mídias sociais que vem a permitir o surgimento de ideias
conspiratórias, percebe-se que o ambiente dessas redes se torna um terreno extremamente propício
para a criação campanhas de desinformação política. Além disso, as instituições democráticas podem
se tornar mais vulneráveis e de fácil dissolução diante a manipulação de opinião geradas por essas
campanhas de desinformação. Uma democracia caracterizada forte depende muito do conhecimento
da população acerca dos atores políticos e seus meios para obterem o apoio público, por isso,
esse recente fenômeno de criação e introdução de fatos alternativos à realidade podem reduzir o
conhecimento popular democrático, tanto quantitativamente, quanto qualitativamente.
Manuel Arias-Maldonado (p. 71, 2020) discorre acerca de que a expressão que melhor explica
a facilitação tecnológica de propagação da pós-verdade, é a conhecida Fake News, as notícias falsas,
as quais são criadas e distribuídas em larga escala para minar o debate público. Aliás, essas notícias
muitas vezes parecem certas, pois apelam às crenças e as emoções daqueles que as consomem.
Arias-Maldonado (p. 65, 2020) ainda confirma que a pós-verdade, na sua essencialidade, significa
uma rejeição daquelas notícias que não fazem parte daquilo que alguém acredita.
Ainda sobre o consumo de informações emotivas, essas ressaltam determinada visão subjetiva,
enquanto ignora qualquer outro ponto de vista contrário, em um espaço midiático onde isso se
realiza, fazendo com que surjam as câmaras de eco e, em decorrência disso, percebe-se que os
espaços cibernéticos alteram o alcance e a quantidade de notícias falsas e informações tendenciosas.
Pelo fato de que as Fake News, por exemplo, atualmente elas podem viajar mais longe do que jamais
se viajou anteriormente (ARIAS-MALDONADO, p. 71, 2020). Isso se realiza com a chegada da Web 2.0,
a qual fez com que as informações não surgissem apenas de determinados sites, mas as próprias

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

pessoas pudessem produzir e compartilhar informações. A comunicação na internet deixou de ser


“de um para muitos”, mas agora, com as redes sociais, elas se tornaram “de muitos para muitos”,
possibilitando a capacidade viral de qualquer assunto entre os cidadãos. Valéria Cristina Lopes Wilke
(p. 15, 2020), confirma que a comunicação de todos para todos, possibilitada pela Web 2.0, de
maneira revolucionária, ampliou a possibilidade e o alcance de disseminar informações, de modo
que cada um que tenha o devido acesso às redes pode disseminar a sua opinião sobre qualquer
assunto. Aliás, percebe-se que a internet acabou por proporcionar certa forma de controle dos sujeitos
individuais e coletivos por grandes empresas possuidoras de plataformas sociais como Facebook,
Twitter, Instagram e Whatsapp. Essas empresas não são Estados, não podem estabelecer leis, porém,
cada dia mais as mesas interferem na liberdade de expressão e na opinião pública, muito mais que os
próprios Estados, o que acaba sendo extremamente perigoso.
Arias-Maldonado (p. 76, 2020) explica que a pós-verdade, como uma fenômeno recente,
demonstra uma alteração na estrutura da comunicação social, e não necessariamente benéfica, mas
sim de modo que piore a descoberta e a transmissão da verdade. E isso, consequentemente, pode
afetar profundamente a democracia em um todos, bem como as instituições democráticas, havendo
a necessidade de que nossos esforços sejam concentrados para a restauração dos fatos que foram
alterados como fundamento da liberdade da expressão, para trocas de opiniões com veracidade, bem
como devemos redobrar a atenção às mentiras disseminadas quando formos capazes de identificar.
As Fake News que mexem com as emoções, podem ser facilmente criadas nos dias de hoje,
qualquer um que tenha acesso aos softwares de criação, bem como acesso à internet, poderá publicar
suas notícias forjadas com o interesse de moldar a opinião política, por exemplo, e nisso se vê outro
aspecto da pós- verdade que deve ser identificado e combatido. Valéria Cristina Lopes Wilke (p. 13,
2020) acredita que as fake news, termo em inglês, que se traduzido para o português, seria melhor
utilizar notícias fraudulentas, pois aqui ela não é simplesmente falsa, ela tem dolo, ou seja, uma
intenção em disseminar a desinformação. tem o único objetivo de enganar os seus consumidores,
com o intuito de prejudicar indivíduos, coletivos e organizações com a finalidade de se obter certa
vantagem política. No seu âmbito geral, as notícias que são fraudadas para moldar a opinião pública
utilizam manchetes sensacionalistas para aumentar o seu próprio engajamento através da internet.
No entendimento de Valéria Cristina Lopes Wilke (p. 14, 2020) as fake news representam o
rompimento da verdade de fato, mantendo ligação direta com a pós-verdade. Essa última, está relacionada
ao saber de que os fatos em si causariam menos efeitos subjetivos do que os apelos emocionais ou as
crenças pessoais, quando para moldar a opinião pública, sendo muito mais fácil utilizar os dados de
acordo com a vontade de alguém para criar notícias sem credibilidade. As fake news acabam por minar
as discussões e debates, as confianças nas fontes, tanto científicas quanto jornalísticas.
Aliás, de acordo com entendimento de Maria João Silverinha (p. 40-41, 2018), quando falamos
em pós-verdade é alinhado o pensamento que questiona como as TIC’s, tecnologias da informação e
comunicação alteram todo o conhecimento construído, bem como a forma em que nos conectamos
entre si e a relação do cidadão com as estruturas sociais. Pois, recentemente, como se percebe,
muitas pessoas têm vivido apenas em sua própria bolha de conteúdo que é personalizada a partir do
uso de algoritmos das mídias sociais, nos colocando de frente apenas com aqueles conteúdos que os
usuários tendem a concordar.
Complementando isso, de fato, as grandes empresas por trás das plataformas de redes sociais
não se preocupam muito com o que é postado nos seus espaços, haja vista que seu lucro se dá pelo
engajamento. As mídias sociais são projetadas para manter o usuário ativo, com o uso de algoritmos
que aprenderão, conforme os usuários utilizem a plataforma, o que determinada pessoa costuma
a gostar, compartilhar, isso é, consumir. Através dessa captação de dados, entende-se que o foco
das redes sociais, é o engajamento. Porém, isso demonstra extremo risco para a sociedade, pois ao
momento que alguém passa cada vez mais conectado sendo exposto a só um tipo e visão política,
apenas confirmando suas crenças, fora de um espaço democrático de debate, esse cidadão começa a
fazer parte de uma bolha social promovida pela tecnologia.
Valéria Cristina Lopes Wilke (p. 17, 2020) ressalta que essas bolhas sociais compartilham apenas
as mesmas informações para indivíduos que concordam com determinada ideia. Participar dessas
bolhas, faz com que não se tenha acesso à outras visões de mundo, política ou qualquer outra senão

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

aquela. O facebook, por exemplo, organiza uma série de notícias para determinados usuários a partir
da coleta de dados por algoritmos os quais analisam os conteúdos que o seu usuário tende a concordar,
e essas bolhas não somente se tratam de determinada visão de algum tema, elas também podem ser
geradas com conteúdos tóxicos, como preconceitos ideológicos, sociais e dos mais variados tipos.
Wilke (p. 24-25, 2020) explica que essas informações tóxicas se referem aos conteúdos de violência
e de ódio, sendo passados por notícias fraudulentas movidas pelos medos, preconceitos, crenças
e intolerâncias, as quais vão se disseminando pelas plataformas digitais, intoxicando e criando um
campo de guerra nas redes sociais.
Vittorio Bufacchi (p. 10-11 , 2020) acredita que a pós-verdade nunca mais desaparecerá, pensar
o contrário pode ser uma ilusão. Por isso, é preciso que a sociedade esteja pronta para combatê-la,
através de alguns mecanismos eficazes. Para esse combate, existem três formas distintas, sendo
elas: a) institucional; b) moral e; c) filosófica. Primeiramente, o que tange ao nível institucional, a pós-
verdade pode ser avaliada em duas maneiras distintas, as quais são: I - através de uma constituição
mista entre o executivo, legislativo e judiciário que consolide um sistema de freios e contrapesos,
para que maiores ataques não venham a separar os diferentes ramos do governo; II - Independência
da mídia, pois é indispensável que os veículos de mídias sejam independentes do poder executiva,
tendo sua imparcialidade protegida. Por segundo, no nível moral, é necessário que cada um aceite
e entenda a própria responsabilidade acerca da proliferação da pós-verdade. Pois, de fato, as redes
sociais não são as únicas culpadas na grande explosão da pós-verdade, mas os consumidores das
informações também tem certa responsabilidade moral quando for absorver, analisar e repassar.
E, por fim, mas não menos importante, a filosofia, onde acredita-se que a pós-verdade pode ser
contestada em bases filosóficas, ou seja, refletindo sobre o que se acredita acerca da verdade.

2 OS IMPACTOS DA PÓS-VERDADE NA DEMOCRACIA

Principalmente após o ano de 2016, o fenômeno das chamadas Fake News, faz parte de um gigantesco
problema, de um complexo de desinformação e radicalização da política, onde as ameaças ao sistema
democrático se dão através dos novos mecanismos proporcionados pelos sistemas tecnológicos. De fato,
atualmente é de grande valia pensar nos desafios que as democracias podem enfrentar, considerando o
avanço tecnológico das sociedades, que hoje estão hiperconectadas, de modo que as interações sociais e
a construção de debates políticos sofreram profundas alterações (OLIVEIRA; GOMES, p. 94, 2020). A pós-
verdade adquiriu uma maior visibilidade a partir do ano de 2016, sendo comentada em vários espaços
políticos e jornalísticos internacionais. Aliás, a pós-verdade se esconde em um sistema de delírio, cujo
único objetivo tem sido criar bolhas de ódio, distribuídas por espaços virtuais de convívio social, como é
o caso das redes sociais (QUADROS, p. 204, 2018). De fato, os questionamentos sobre a post truth age,
ou era da pós-verdade, vem, consequentemente, se alinhando ao pensamento que questiona como as
TIC’s alteraram todo o conhecimento construído, bem como a forma em que nos conectamos entre si e a
relação do cidadão com as estruturas sociais. Pois, recentemente, como se percebe, muitas pessoas tem
vivido apenas em sua própria bolha de informação ou conteúdo, a qual é personalizada a partir do uso de
algoritmos das mídias sociais, nos colocando de frente apenas com aqueles conteúdos que os usuários
tendem a concordar (SILVEIRINHA, p. 40-41, 2018).
Robert Piciotto (p. 89, 2019) esclarece que através da percepção seletiva, o ser humano dá
prioridade às informações cujas solidificam as próprias crenças existentes do indivíduo, enquanto
induz a ignorar todos os dados que demonstram um ponto de vista contrário. De fato, a tolerância de
algumas inverdades e também as suas respectivas fabricações levam para o caminho de um raciocínio
motivado em apoio aos preconceitos. Acredita-se que o indivíduo tende a acreditar que uma afirmação
seja verdade se for fácil de processar, até por estar de acordo com a crença própria. Significa que
as pessoas se apegam fielmente às crenças pré-existentes, o chamado viés de confirmação, vindo a
rejeitar tudo aquilo, até mesmo evidências que contradizem determinada visão já estabelecida.
Tendo essas questões pautadas, André Soares Oliveira e Patrícia Oliveira Gomes (p. 110, 2020)
relatam que a desinformação da sociedade envolve riscos concretos à democracia. Pois, de fato,
essa quantidade de informação fraudulenta também viola os pressupostos da noção de liberdade

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de expressão e comunicação, bem como ao direito à informação, tanto em proporções a nível


internacional, como nacional. Paulo Quadros (p. 203, 2018), destaca que a pós-verdade até pode
parecer estar longe de um poder controlador, como também está muito distante de se evitar as
consequências com efeitos negativos em relação às decisões que afetam os interesses públicos dos
cidadãos. Na verdade, ela tem sido aplicada de forma extremamente nefasta, visando desmoralizar os
atores sociais que desenvolvem ou já desenvolveram papéis na história da sociedade humana.
Ocorre que o significado de pós-verdade, enquanto adjetivo, tem sido de forma muito frequente
associado à palavra política, pelo fato da percepção de que para muitos formuladores de políticas,
a verdade não é mais relevante. A popularidade do termo se dá pelas ruins implicações de políticas
para o bem-estar público (PICCIOTTO, p. 88, 2019). E, consequentemente, quando versamos no que
se refere ao bem-estar público, a pós-verdade deve ser analisada em todos os seus efeitos de forma
criteriosa, dado ao grande alcance que essa pode obter no século XXI, através das plataformas de
todos para todos, podendo alterar a opinião das massas em um curto espaço de tempo, como é o
caso das notícias tendenciosas acerca do campo político público.
A pós-verdade oferece alguns riscos que estão relacionados, principalmente, ao início ou a
perpetuação de políticas maléficas para a sociedade. Pois, de fato, o objetivo dos praticantes da
pós-verdade é exercer o poder arbitrário enquanto fingem mudar as coisas para melhor buscando
a desvalorização da imprensa e rejeitando os conselhos de especialistas. Assim, utilizam de uma
série de artifícios, como notícias falsas para mexer com os anseios dos cidadãos, atendendo seus
preconceitos e validando a identidade de seu grupo específico (PICCIOTTO, p. 92, 2019).
Há políticos que podem ler o seu possível público de eleitores, pois conseguem explorar vieses
que foram já explorados por psicólogos comportamentais. Estudos já demonstram pessoas se apegam
às inverdades em face de evidências que não são as que querem acreditar, pois os mesmos buscam
opiniões e informações que concordem com sua visão (PICCIOTTO, p. 89, 2019). Realmente, lidar com
o fenômeno da pós-verdade na política não é novo, mas a potencialização e as gigantescas proporções
que essas tomaram nos últimos anos devido à possibilidade do gigantesco alcance global que a internet
e as redes sociais propiciaram é algo extremamente diferente do que já se foi visto antes. 
Ainda é possível afirmar que as manifestações da pós-verdade são extremamente tóxicas, os sintomas
que surgem no corpo político possui uma enorme gravidade e demonstra uma grande abertura aos discursos
populistas com o estado de como as coisas se encontram. Os efeitos resultantes da pós-verdade minam
a democracia liberal, de modo que os discursos e os apelos de líderes autoritários vem aumentando cada
vez mais. Ao espalhar a desconfiança generalizada, eles distorcem todas as tomadas de decisões na esfera
pública do Estado, bem como aumentando os conflitos sociais por desconexão do poder da realidade,
agravando os problemas que originaram a era da pós-verdade (PICCIOTTO, p. 94-95, 2020).
Desta forma, percebemos que as notícias fraudulentas, forjadas com a intenção de mexer com
as emoções dos cidadãos, aproveitando de seus anseios, potencializadas pelos algoritmos de redes
sociais que são utilizados para oferecer mais do mesmo conteúdo já consumido anteriormente por
determinado usuário e o expondo cada vez mais à mesma visão política e aos discursos tóxicos,
faz com que os cidadãos fiquem presos nas suas próprias bolhas de informação, acreditando que
sua única visão é a correta e consequentemente criando efeito na hora dos votos, quando líderes
populistas que muito usam dessas artimanhas para se eleger, fica demonstrado o enorme risco que
a era da pós-verdade oferece ao Estado democrático de direito. Piccioto (p. 89, 2019) confirma isso,
quando expõe que os eleitores tendem a recorrer aos líderes populistas, pelo motivo de que esses
fazem e promovem suas campanhas através do despertar dos medos, das ansiedades, explorando
profundamente os preconceitos dos cidadãos, juntamente com a promessa de uma grande mudança
revolucionária no cenário político.
De fato, tem-se a ilusão de que redes sociais, como por exemplo o twitter, podem proporcionar um
melhor alcance na comunicação entre os cidadãos e os políticos, pela facilidade de utilização da rede e
fácil comunicação entre ambos. Porém, não é isso o que acontece, líderes populistas acabam usando
essas redes para disseminar seus discursos em larga escala, podendo fazer seus comentários com poucos
caracteres alcançarem todas as partes do mundo em questão de minutos, ou talvez até segundos.
É verdade que os líderes populistas utilizam de comícios em massa, com discursos espalhafatosos
e cheios de declarações bombásticas, e essa onda de populismo que vem ascendendo nos últimos anos

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é sustentada por uma política de pós-verdade que usa as redes sociais como porta voz para espalhar
notícias falsas ou fatos alternativos, visando única e exclusivamente moldar a opinião pública, mexendo
com as emoções dos eleitores bem como incitando o ódio ao outro (SPEED; MANNION, p. 251 2017).
Os impactos da pós-verdade refletem em todos os aspectos da vida em sociedade, pois, por
exemplo, se um determinado número de pessoas não acreditar que os seres humanos causaram a
mudança climática, também acreditarão que não será necessário corrigir esse problema, e dessa
forma as consequências ambientais serão imedíveis e extremamentes prejudiciais (HASEN, 2019).
Por isso, vale destaca outro ponto que pode afetar toda a população, que é a descrença e a
negação da ciência quando se tratar, por exemplo de situações pandêmicas. Recentemente, neste
ano de 2020, a população global está vivendo uma enorme crise sanitária, porém, as crenças da
população no que tange ao coronavírus estão sendo impactadas diretamentes pelos efeitos da pós-
verdade. Eduardo de Sousa Martins (p. 9, 2020) demonstra que há uma disseminação de informações
sobre a origem e sobre a veracidade da doença. É possível perceber uma grande quantidade de
opiniões divergentes sobre a real situação da pandemia, as formas de transmissão, as eficácias dos
métodos de prevenção e sobre o tratamento da doença. E isso acaba sendo exposto e refletido nas
redes sociais. Acaba que há muitas informações falsas sendo compartilhadas como verdadeiras e até
em alguns casos, informações verdadeiras sendo compartilhadas como falsa. Isso faz com que muitas
pessoas não consigam distinguir o verdadeiro do falso quando acessam determinada informação. Kris
Hartley e Minh Khuong Vu (p. 1-2, 2020) ainda destacam acerca da pandemia provinda do COVID-19
que, além de tudo, está expondo divisões políticas potencializadas pela contestação das evidências
científicas e por um denominado tribalismo ideológico com forte disseminação nas comunidades
online. De fato, as redes sociais abrem espaços para uma democratização ao acesso à informação,
porém, é necessário refletir acerca da qualidade dessa informação. Pois, como dito anteriormente,
há a preocupação da dificuldade em que alguns usuários demonstram ter para distinguir o que é
verdadeiro e o que é falso nas plataformas das mídias sociais e, consequentemente, um dos perigos
que isso acarreta é que as Fake News, são extremamente presentes e perigosas em crise de saúde
pública, bem como para todo o sistema democrático.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que, qualquer um com acesso às ferramentas e aos softwares necessários pode criar
notícias tendenciosas e espalhar nas redes sociais. Aliás, as redes sociais que deveriam ser um espaço
democratizado, na verdade, elas até apresentam grande potencial para isso, porém, ocorre que as
discussões excludente e preconceituosas, baseadas no ódio pelo outro, na intolerância e em discursos
anti-democráticos. Tudo isso foi potencializado pelas bolhas informacionais geradas pelas crenças pré-
definidas e à exposição de publicações emotivas que muitas vezes são organizadas por algoritmos
das redes sociais, os quais por uma análise de dados de cada usuário, fornecem repetidamente uma
única visão, reforçando as crenças pessoas através de uma alta posição ao mesmo tipo de conteúdo
e não abrindo espaço para análises contrárias e, consequentemente, prejudicando em grande escala
o espaço democrático, tanto digital como o físico.
As Fake News com finalidade político partidária acabam alcançando grandes proporções estando
em redes como Facebook, Twitter, Instagram, WhatsApp e outras que permitem o acesso de uma
grande quantidade de cidadãos. Ocorre que essas redes que tem o controle de dados dos cidadãos,
não se importam muito com a qualidade das informações que ali são postadas, pois, obviamente,
elas projetam os algoritmos para manter seus usuários engajados e movimentando a plataforma, pelo
simples fato de que o engajamento aumentarão seus respectivos lucros. A verdade é que as grandes
corporações responsáveis pelas mídias sociais deveriam ser responsabilizadas pelos conteúdos
prejudiciais publicados, bem como os perfis anônimos que tendem a espalhar as notícias fraudulentas.
Esses mecanismos utilizados para criar fatos alternativos interferem diretamente na opinião
pública, de modo que essa é moldada com algum fim determinado. Isso reflete muito nas eleições,
como se pode perceber em 2016 nos Estados Unidos da América e em 2018 no Brasil, por exemplo.
Os eleitores, por consumirem uma exorbitante quantidade de informações que mexam com seus

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anseios, preconceitos, medos e crenças, tendem a votar naqueles líderes populistas que usam a
psiquê humana para controlar as massas, de modo que isso se torna um eminente risco para as
democracias e as suas instituições.
Os cidadãos detêm um importante papel para controlar o fenômeno da pós-verdade nos dias
atuais, pois, não somente deve receber e compartilhar determinadas notícias por simplesmente
reforçar suas crenças, mas sim, analisar, refletir criticamente e assumir a responsabilidade daquilo que
compartilha e dos efeitos que isso pode gerar. Aliás, as notícias tendenciosas podem gerar profundos
impactos nas sociedades, como na questão da saúde pública. A pandemia do COVID-19 demonstrou
que a população não vive somente uma pandemia viral biológica, mas também, uma pandemia viral
de desinformação. De fato, a internet possui grande capacidade para democratizar o debate, tendo
em vista a fácil conexão entre as pessoas, mas para isso se efetivar, deve-se lutar contra o fenômeno
da pós-verdade, devendo os cidadãos reconhecer o seu papel crítico, bem como a necessidade de
grandes empresas de redes sociais acerca das Fake News que ali se propagam.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A PROTEÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS NO


AMBIENTE DIGITAL E OS REFLEXOS DA ASCENSÃO
DO POPULISMO DIANTE DA CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL

Eliane Andréia Andreski da Silva19


Rafael Zimmermann20

RESUMO: O avanço tecnológico tem possibilitado uma regulamentação jurídica de questões éticas
e de privacidade, em sua grande maioria, como reflexos das relações do mercado. A decadência da
democracia liberal e a ascensão do populismo são ameaças aos direitos individuais. Como objetivo
de pesquisa, pretende-se analisar como o sistema normativo jurídico democrático interage com a
tecnologia digital, no âmbito dos direitos humanos da personalidade. Metodologicamente, utilizamos
o método hipotético-dedutivo, uma vez que se parte de uma abordagem qualitativa acerca do Estado
de direito e democracia, visando a proteção dos direitos da personalidade, como a privacidade. Nos
resultados, a incapacidade jurídica de concretizar os direitos humanos resta evidente, diante da
relativização dos direitos individuais, muito antes do transhumanismo.
Palavras-chave: Tecnologia; Populismo; Democracia; Privacidade; Ética.

INTRODUÇÃO

O avanço tecnológico tem demonstrado que o direito possui um caminhar muito mais lento e,
de fato, ainda é ineficaz em regulamentar a relação entre o ser humano e a tecnologia. Nesse sentido,
o direito não é capaz de concretizar os direitos humanos, enquanto a economia já está regulando as
relações tecnológicas.
Surgem, portanto, para os juristas, questões éticas e de privacidade, a partir do que se denomina
transhumanismo, isto é, com a inversão do paradigma, em que o ser humano é deslocado para uma
condição de objeto e não mais de sujeito. Em outras palavras, emergem relações não humanas, que
devem ser reguladas ou não, mas que interferem na ação humana e na vida humana.
A existência de questões éticas a serem respondidas, tendo em vista um cenário de aumento de
tomada de decisões digitais, pelos próprios algoritmos, os quais são softwares, substituem as ações
humanas no ambiente virtual. Quanto mais coisas e objetos se unem à rede, mais hiperconectada está
a sociedade e, em consequência, mais facilitada e rápida está a comunicação entre as pessoas.
Dentre as questões éticas e de privacidade podemos elencar o conceito de always on, ou seja, a
ideia de que os seres humanos passam 24h, ou a maior parte do dia, conectados a algum dispositivo,
sofrendo influência direta dos aplicativos, redes sociais e de algoritmos automatizados. Também, se
destaca o termo de readily accessible, isto é, a ideia de que ficamos sempre à disposição e disponível,
para responder e interagir com algum pessoa ou robô, que envie uma mensagem, faça alguma
propaganda ou envie algum dado de seu interesse na rede.
Não obstante, é imprescindível pensarmos no armazenamento ininterrupto de dados e informações
pessoais, o que se relaciona estritamente com a privacidade, com os direitos da personalidade e os
direitos individuais, integrante do importante núcleo duro dos direitos constitucionais.
Assim sendo, as implicações éticas relacionadas a robôs, e o tratamento adequado ao estatuto jurídico
de entes não humanos ainda são assuntos embrionários. A inteligência artificial substituirá as tarefas huma-
nas? Haverá desemprego em massa? Criaremos classes distintas de seres humanos, no ambiente virtual, com
os preconceitos e discriminações de raça, cor, credo, opinião, crença? Qual o papel do Direito e sua capaci-
dade de regular este mundo cada vez mais tecnicista, e que foge ao controle dos hipossuficientes digitais?

19 Mestranda em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Pós-graduanda em Direito
Penal pela Uniasselvi. Advogada OAB/RS nº 117.172. E-mail: elyandreski@hotmail.com.
20 Mestrando em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Pós-graduando em Direito
de Família e Sucessões pela LFG. Advogado OAB/RS nº 116.267. E-mail: rafaelz.pbi@hotmail.com.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 DESENVOLVIMENTO

O transhumanismo se refere à passagem entre o paradigma moderno e o paradigma pós-


moderno, ou, ao menos, relativo à uma nova forma de pensar na contemporaneidade. O ser humano,
homem eurocentrista, patriarcalista, branco e de meia idade, que seria o estereótipo dominante na
modernidade, assim como o tipo ideal, entrou em rota de colisão com uma nova forma de ver os
direitos humanos e o mundo.

1.1 Estado de direito, democracia e populismo

Essa evolução do paradigma e da evolução dos direitos perpassou a relação entre o Estado e
a democracia no ocidente, durante a modernidade, sendo os direitos oriundos de reivindicações
sociais, advindas de lutas por direitos. (IHERING, 2012)
A modernidade também edificou, sob uma perspectiva eurocêntrica, um arcabouço de normas
jurídicas, as quais institucionalizadas, visavam resguardar os direitos humanos, especialmente, os
direitos advindos das revoluções e movimentos contestatórios. Assim sendo, vamos adentrar na ideia
de Estado de direito e a proteção da esfera privada, ainda que de modo crítico, para, posteriormente,
adentrarmos na ideia de privacidade e de transhumanismo, sobremaneira, porque a proteção da
privacidade não é uma construção esporádica, senão advinda de movimentos democráticos ao longo
do período moderno.
Neste diapasão, a Estado de direito surge como um contraponto à ideia de abuso de poder político
e de ausência de proteção da esfera privada dos indivíduos, consoante John Locke (2002). Nesse
sentido, a tradição democrática moderna ocidental é caracterizada pelas contribuições essenciais de
três amplos movimentos, sendo eles o movimento inglês, americano e francês. Ambos influenciaram
toda a construção normativa dos países ocidentais, como o Brasil.
Por conseguinte, os direitos surgem, inicialmente, como uma ideia contra o Estado e conquistados
por reivindicações, envolvendo a ideia de participação política de grupos e movimentos em prol da
liberdade, igualdade e fraternidade, os quais buscavam a proteção da esfera privada em detrimento do
poder e interferência política do Estado. Essas reivindicações pela liberdade individual possibilitaram a
consolidação de cláusulas pétreas e de um sistema constitucional de freios e contrapesos, que buscava
proteger os direitos individuais face a ação arbitrária do Estado. Destarte, a democracia moderna se
esculpe na concepção de que somente aqueles Estados que nasceram “das revoluções liberais são
democráticos e apenas os Estado Democráticos protegem os direitos do homem: todos os Estados
autoritários do mundo são ao mesmo tempo antiliberais e antidemocráticos”. (BOBBIO, 1993, p. 43)
Por seu turno, o jurista italiano Norberto Bobbio (1993) dispõe que a democracia, enquanto
forma de governo, é antiga, diferenciando-se na modernidade, muito pelo ideia de distanciamento
entre esfera pública e esfera privada. Ainda assim, a democracia reside na forma de governo da
maioria, sendo, em última análise, um governo do povo, contrariamente ao governo de uns poucos,
como na oligarquia, aristocracia ou monarquia. De todo modo, ainda que a liberdade prometida
nas revoluções liberais não tenham sido estendida a todas as pessoas, esses ideais de liberdade e
igualdade, na forma de um governo democrático, objetivam a proteção dos direitos fundamentais do
maior número possível de indivíduos.
Portanto, os direitos humanos originam-se por reivindicações e exercício do poder político
pelo povo, sobremaneira, a partir do aparecimento dos Estados nacionais, caracterizado pelo povo,
soberania e território. (BOBBIO, 1987)
Igualmente, é preciso ressaltar que o exercício do poder político democrático pode ocorrer de
modo direito ou de forma representativa. Ambas podem ser vistas na modernidade pela tradição
inglesa e pela tradição francesa. Para o filósofo e teórico político francês Jean Jacques Rousseau
(2016) a democracia direta é muito mais efetiva do que a democracia representativa, porque nesta
não há vontade geral.
Mais adiante, no século XIX, o economista e filósofo John Stuart Mill (1981) sustentou a ideia
de uma democracia representativa, e não direta, como possível e útil dentro da configuração do

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Estado Moderno, ou seja, deste ente dotado de personalidade jurídica e soberania. Para o autor seria
impossível à população participar de forma massiva das decisões tomadas pelo corpo político, dado
o tamanho dos Estados nacionais e do novo ente geopoliticamente organizado.
Não obstante, a falta de participação ativa dos cidadãos nos espaços públicos contribui para
a construção depreciativa do ser político, afinal, quem se ausenta, nada pode reclamar. (CORTELLA;
JANINE RIBEIRO, 2012). Essa concepção determinante, a qual preponderou até a contemporaneidade, foi
responsável por criar uma lacuna entre representantes e representados, de forma a conceder espaços
para a corrupção, conchavos, ocupações de espaços públicos, interesses particulares se sobrepondo
aos interesses públicos e impunibilidade de crimes de responsabilidade ou contra a ordem financeira.
A proteção da esfera privada consiste, então, na construção conceitual do núcleo liberal
dos direitos humanos, alcançando, em seguida, uma segunda fase, a dos direitos políticos, isto
é, de participação dos indivíduos no Estado, como representantes de classes e grupos, os quais
permaneceram à margem da participação política, mesmo depois das revoluções liberais.
Ante o exposto, aos poucos, vão sendo estabelecidos movimentos reivindicatórios mais
abrangentes, em termos de direitos sociais, os quais passam a exigir uma prestação do Estado, isto
é, uma ação positiva, justamente, pelas lacunas deixadas pelos movimentos liberais. No entanto, as
revoluções liberais oitocentristas eram tidas como contrárias às revoluções sociais do século XX, as
quais almejavam a criação de institutos jurídicos de previdências, sistemas de saúde, educação e
segurança públicos, muito além da abstenção de interferência do Estado na vida privada de cada um.
Embora os documentos jurídicos oriundos das revoluções liberais e sociais tenham conteúdos, até
certo ponto, distintos, em nenhum deles, o núcleo duro dos direitos humanos foi relativizado. Não até a
ascensão do populismo, após a crise econômica de 2008 e o aprofundamento de antigos problemas sociais,
políticos, culturais, que se referem à desigualdade socioeconômica, subdesenvolvimento, incapacidade
tecnológica e falta de instrumentos de garantia dos direitos humanos, em suas mais diversas dimensões.
Esse núcleo duro das cartas constitucionais voltado à proteção da liberdade individual foi
duramente criticado pela sua incapacidade de abranger os direitos sociais e as estruturas políticas,
ensejando a crise de legitimidade política, assim como a ruptura institucional das estruturas do
liberalismo, causaram um colapso sistêmico nas sociedades ocidentais.
Além disso, existem outros motivos para a crise de legitimidade representativa e que se relacionam
com a proteção dos direitos individuais, como: crise econômica prolongada; crise de legitimidade; o
terrorismo fanático; uma investida humana, em face do planeta terra, com a devastação de espécies,
a exploração de recursos minerais e naturais, sem responsabilidade ambiental; uma enormidade de
canais comunicativos, dominados pela mentira e pela desinformação; uma sociedade sem privacidade,
portanto, sem liberdade, inclusive, de expressão; a cultura dominada pela comercialização de todas as
formas de sociabilidade; o crescente uso da violência contra a mulher; e a solução dos conflitos oriundos
das crise do capitalismo, a partir de guerras, as quais fomentam a insegurança e a instabilidade grandes
regiões do planeta. Sendo todas essas causas relevantes para o nosso estudo. (CASTELLS, 2018)
O enfraquecimento da proteção dos direitos individuais, como a privacidade, advém da ruptura
das instituições liberais e de uma crise profunda da democracia liberal, enfraquecendo a democracia
contemporânea, algo impensável até décadas atrás. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018) dispoem
que as crises globais ou nacionais apontam como culpados o sistema político e a democracia, pela
incapacidade de superação dos problemas socioeconômicos. O extremismo, assim, se coloca como
alternativa democrática, a partir de líderes anti sistêmicos, e a eleição de líderes autoritários ocorre
por meio do voto popular.
O ultraconservadorismo pode ser observado nos discursos populistas de Donald Trump nos
Estados Unidos, Macron na França, Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria e no plebiscito
para o Brexit no Reino Unido, sendo, também, exemplos de potenciais autoritarismos, eivados de
sentimentos populistas e nacionalistas, os quais criminalizam a diferença, afirmando ser o racismo e
a violência formas legítimas para promoção de políticas iliberais e antidemocráticas.
Diante do exposto, a eleição de líderes populistas proporciona o colapso das instituições liberais,
questionando a eficácia do sistema de freios e contrapesos das cartas constitucionais. Além dos
movimentos contestatórios, a tripartição clássica dos poderes estatais elaborada por Montesquieu
(2010) em legislativo, executivo e judiciário foi capaz de manter uma estabilidade entre as forças

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

políticas, até a ascensão do populismo e da democracia iliberal, com a crise política nos países de
principal tradição democrática do ocidente.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018), ainda, apontam a rejeição das regras democráticas e a
negação da diferença, como propulsores de uma política que foge às margens dos limites democráticos
e das regras jurídicas. Com isso, os direitos individuais e a democracia liberal morre pelas mãos de
líderes escolhidos pelo próprio povo, em uma invertida histórica, em que o povo luta contra os seus
próprios direitos, acreditando em uma mudança sistêmica e global.
Yascha Mounk (2019), por sua vez, sustenta que há uma transição de uma democracia liberal
para uma democracia iliberal ou mais próxima ao autoritarismo, havendo a separação da vontade
popular e da liberdade, constringindo racionalmente a autodeterminação individual e separando o
liberalismo político da democracia moderna, ocasionando o rompimento da estrutura fundamental da
democracia moderna.
Essa análise realizada é de suma relevância, uma vez que a proteção dos direitos individuais, como
privacidade, a liberdade de expressão e os direitos de personalidade se relacionam demasiadamente
com a estrutura jurídica existente e os instrumentos de proteção dos direitos humanos.

1.2 Os direitos humanos e os direitos de personalidade no ordenamento jurídico brasileiro:


uma analogia normativa para o ambiente virtual

Neste ínterim, os direitos humanos são direitos ligados a todos os seres humanos, sem discriminação,
incluindo o direito à vida, à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho, à
educação, e muitos outros. (UNIDAS, 2019). Em linha conceitual semelhante, Guerra (2015), declara que
há um elenco de direitos humanos reconhecidos internacionalmente, relativos aos direitos civis, políticos,
sociais, econômicos, culturais, de meio ambiente, da paz, entre outros. Em vista disso, os direitos civis
são os direitos de liberdade e igualdade; os direitos políticos são os direitos à nacionalidade, liberdade
de expressão, liberdade religiosa e direito à participação política; já os direitos econômicos, sociais e
culturais, são o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à alimentação adequada e ao meio ambiente.
Assim, para Lima (1960), esses direitos do ser humano são assegurados desde o seu nascimento
com vida, por um conjunto de normas que regulam a vida em sociedade. Essas normas, conhecidas como
o direito lato sensu, têm como objetivo produzir o bem comum, a paz pública, a convivência harmoniosa
e pacífica entre os indivíduos, como também proteger os direitos e as garantias individuais de cada um.
Dentre esses direitos e garantias, tem-se o direito à personalidade, também chamados de originários ou
mesmo fundamentais, são aqueles direitos essenciais à própria pessoa humana, e assim, destacam-se os
direito à privacidade e intimidade, onde em inúmeras vezes geram conflitos diante de violações.
Nos termos do art. 11, do atual Código Civil Brasileiro, “Com exceção dos casos previstos em lei,
os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer
limitação voluntária”, desta maneira, pode-se ainda frisar que tais direitos são também, imprescritíveis,
impenhoráveis, invioláveis, vitalícios, melhor dizendo, são direitos absolutos, inerentes à pessoa, não
havendo possibilidade sequer de se renunciar permanentemente à sua honra, imagem ou transmiti-
los a outrem. Significa dizer, em outras palavras, que sem uma lei vinculante a todos, não poderá
ninguém forçar ou ser forçado a abdicar dos direitos da personalidade, entendidos, igualmente,
aqueles oriundos das liberdades pessoais e correlacionados com a vida privada. (BRASIL, 2002).
Nessa relação temática, a Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu art. 5º, inciso X, tratou
de proteger a privacidade, assim assegurando que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação”. Assim sendo, demonstra-se a consagração do direito à privacidade é
tomada no sentido amplo, podendo abranger todas as manifestações tanto da esfera íntima, como
também da privada e da personalidade das pessoas. (BRASIL, 1988).
Cabe mencionar que, conforme Doneda (2006), o direito à privacidade nasceu em berço burguês, e de
modo geral, permaneceu restrito às suas origens até o final da primeira metade do século XX. No entanto, tais
fatos começam a modificar a partir da década de 60, devido ao crescimento da circulação de informações,
sendo considerado consequência do desenvolvimento desmedido da tecnologia de coleta e sensoriamento,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

que resulta em uma capacidade técnica soberana tanto de recolher e processar informações, bem como de
utilizá-las. Logo, diante das inovações tecnológicas, como a inteligência artificial, verifica-se, portanto, que a
intimidade e a privacidade da população têm por vezes sido violadas, lançando uma problemática acerca do
direito à privacidade e à intimidade face os direitos fundamentais. Sobretudo, a proteção da personalidade
passa pela noção da dignidade da pessoa humana, sendo esta o núcleo da personalidade.
Essa noção de dignidade como algo intrínseco à personalidade, destarte, aos direitos humanos,
evoluiu através dos tempos, sendo na contemporaneidade considerado um fundamento internacional,
como também uma meta para a humanidade. Assim, já em um conceito evoluído, André de Carvalho
Ramos (2017), assevera que, os direitos da pessoa humana como direitos essenciais à dignidade, são
indispensáveis à concretização de uma vida digna, livre e igualitária, fazendo uma abordagem às três
gerações dos direitos humanos contemporâneos, baseadas nos componentes do dístico da Revolução
Francesa: liberté, egalité et fraternité, quer dizer, liberdade, igualdade e fraternidade, onde cada uma
delas possui características peculiares, lançadas pelo jurista francês, Karel Vasak, no ano de 1979,
em Conferência expressa no Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo, na França.
Diante de tais fatos, consoante a Cancelier (2017), fica notório que o direito à privacidade já
explorou consideráveis inovações no decorrer de sua recente história. No transcorrer do tempo,
percebeu-se que mais institutos poderiam ser abarcados em sua tutela. Neste feito, a intimidade, a
vida privada e sigilosa, independente do âmbito estudado da expressão humana, entende-se que todos
fazem parte da privacidade, sendo assim, mesmo com suas peculiaridades, essenciais à construção
da personalidade individual de cada humano dentro da sociedade.
Além disso, a proteção dos direitos individuais, relativos também à privacidade e garantia de
direitos no ambiente virtual, começou a ser tratado com o Marco Civil da Internet, Lei 12.965, de
2014, (BRASIL, 2014), e a Lei Geral de Proteção de Dados, Lei 13.709, de 2018 (BRASIL, 2018). Não
obstante, o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 1990 (BRASIL, 1990), também estabelece
a proteção do consumidor face ao fornecedor, em se tratando de relações de consumo, pela situação
de vulnerabilidade das pessoas frente às grandes empresas. ,
O Marco Civil da Internet (BRASIL, 2014) foi a primeira legislação que tratou da proteção dos
direitos individuais no ambiente virtual, sendo de fato um marco legal nesse sentido. O art.2º da
referida lei reconheceu a prevalência dos direitos humanos na rede mundial de computadores e o
art.3º estabeleceu a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento,
nos termos contidos na Constituição Federal, além de prever a proteção da privacidade e dos dados
pessoais, consoante a lei, o que foi feito apenas com a implementação da Lei Geral de Proteção de
Dados, mais adiante. (BRASIL, 2018).
Nesse sentido, esta lei, a qual visa a proteção de dados dos consumidores, clientes, trabalhadores e de
todos os usuários de serviços nos ambientes digitais, possuem os seguintes princípios a serem observados.

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:


I - o respeito à privacidade;
II - a autodeterminação informativa;
III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;
IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;
V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;
VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e
VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da
cidadania pelas pessoas naturais. (BRASIL, 2014).

Há, desse modo, a concepção de que os direitos de personalidade devem ser observados nos
espaços digitais, bem como a lei não deixa de atender ao crescente desenvolvimento tecnológico. Então,
o legislador não buscou frear a expansão tecnológica, senão estabelecer um limite na apropriação de
dados por parte dos algoritmos e softwares, assim como da utilização desenfreada de perfis e dados, a
fim de atender às demandas políticas ou mercadológicas, como no escândalo da Cambridge Analytics.
Mais de 50 milhões de perfis do Facebook foram utilizados, de modo clandestino, para promover
a propagação de propagandas ou fake news em massa. O denunciante Chirstopher Wylie descreveu
como a empresa, conectada ao ex-assessor do presidente Americano Donald Trump em 2016, gastou
cerca de U$1 milhão de dólares na coleta de dados, em uma clara manipulação política, direcionada

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a um público especificamente contrário ao atual presidente dos Estados Unidos, traçando perfis
individuais e determinando traços de personalidade de cada usuário. (MAGRANI, 2019).
Além disso, muitos bots têm propagado hashtags com mensagens diversas. Isso, sem falar em
má-fé e algoritmos que seguem automaticamente o perfil de algumas personalidades públicas. De
toda forma, não precisamos ir até os Estados Unidos para visualizar eventos como o da Cambridge
Analytics, em que ocorreu o vazamento de dados.
A Oxford Internet Institute (OII) ressalta que os robôs estiveram por trás das campanhas de
Aécio Neves, Dilma Rousseff e Eduardo Campos em 2014, influenciando as decisões públicas nos
espaços digitais. (ARNAUDO, 2017). Além disso, há investigações em curso no Tribunal Superior
Eleitoral brasileiro, em virtude das eleições presidenciais de 2018, em que houve a contratação e o
impulsionamento massivo de fake news. (FORNASIER, 2020).
De modo mais claro, o ambiente digital pode ser dividido em três. Internet das Coisas, Big Data
e Inteligência artificial. Seriam os três principais componentes dessa relação do ser humano com a
tecnologia e relativas ao ambiente virtual.
A Internet das Coisas representa inovação tecnológica, a qual permite a criação de ambiente
interligado através de sensores que conectam objetos ou bens por meio da internet, possibilitando não
só a comunicação e realização de funções específicas entre as coisas, como gerando, cada vez mais, uma
constante coleta, transmissão, guarda e compartilhamento de dados entre os objetos. Consequentemente,
entre as empresas que disponibilizam este tipo de tecnologia às pessoas, como exemplos os smartphones,
televisores, relógios, pulseiras identificadoras de funções físicas e de saúde, tablets, sensores de tempo,
clima, umidade, dentre outros. O que se questiona do ponto de vista do Direito, é se existe uma política
eficiente de proteção dos dados e da privacidade das pessoas que utilizam tais dispositivos. Em síntese,
a internet das Coisas pode ser vista como a infraestrutura global da era digital. (MAGRANI, 2019)
Big Data consiste em um termo em evolução que descreve qualquer quantidade volumosa
de dados estruturados, semiestruturados ou não estruturados, que podem ser explorados para se
obterem informações. Já a Inteligência Artificial é determinada por algoritmos que armazenam dados e
acabam estabelecendo padrões, obedecendo e criando parâmetros para correlação de dados. Ocorre,
que a Inteligência Artificial está sendo tão aprimorada, que está criando conexões entre robôs, se
desprendendo da necessidade de interferência humana para sua operação.
Desse modo, a ideia de tecnologia como mero objeto, a serviço do ser humano, vai sendo
relativizada, surgindo questões ainda não respondidas, como se os algoritmos seriam capazes de
agir, independentemente das ações humanas. Portanto, a inteligência artificial é capaz de substituir as
ações mecânicas dos seres humanos, porém, pode acabar agindo de acordo com uma racionalidade
distinta à racionalidade humana, por meio de outros padrões.
Talvez, os preconceitos humanos sejam, de fato, transportados para o ambiente virtual, contudo,
englobando classes distintas, concepções de vida dos programadores, bem como questões de raça, cor,
credo, opinião, crença dos usuários. Além disso, a Inteligência Artificial está se tornando autônoma em
relação aos seres humanos, o que levanta questões a respeito da sua própria perspectiva de se relacionar
com a máquina e com os próprios robôs, criando linguagens próprias e que desafiarão a todos nós.
Apesar disso, existe uma monetização de todo o conteúdo disposto nas redes. Os dados e a
informação viraram mercadorias prontas a serem consumidas pelos usuários de aplicativos, redes sociais
e dispositivos digitais. Converte-se informação, dados e interação em consumo e produto para a massa de
pessoas que utilizam os ambientes digitais e a internet. Assim, diante disso, compromete-se a privacidade
e os direitos individuais, considerando a natureza extrapatrimonial dos direitos da personalidade.

1.3 O transhumanismo e a inversão de paradigma

Conceituando de forma breve por Maia (2017), na visão europeísta, o humanismo, sempre
foi correlacionado a ideia e a pretensão da transcendência das capacidades humanas traduzidas na
procura da perfectibilidade, tanto individual como coletiva. Já, o Pós-humanismo, colocado como o
período posterior ao humanismo, tem-se o intuito de ultrapassar aquele sujeito que é universalista,
assim como segregador do humanismo europeísta, trazendo a ideia de um ser humano ampliado pelas

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

tecnologias, como um sistema de troca de informações e armazenamento de memórias. Seria também,


considerado como uma “mutação dos corpos como fruto das simbioses do ser humano com as próteses
tecnológicas”. (SANTAELLA, 2007, p. 130). Em outros termos, um corpo tecnologizado, uma vez que
“ao mesmo tempo em que os humanos se aproximam da tecnologia e do artificial para alterarem seus
corpos, robôs humanóides estão sendo desenvolvidos”. (MARQUES; KRÜGER, 2019, p. 33).
Cabe ressaltar ainda, a concepção de transhumanismo, visto que traz como ideia o melhoramento
do ser humano, a partir do desenvolvimento das tecnologias e eliminando o envelhecimento. Em
consequência, propicia o melhoramento de todas as capacidades intelectuais, psicológicas e físicas do ser
humano. (MAIA, 2017). Todas, são categorias de movimentos sociais e ideológicos atuantes e emergentes
na sociedade atual. Portanto, o pós-humanismo, assim como o transhumanismo, que é o melhoramento
humano, está inserido em uma complexa relação ética, política e jurídica. (PEPPERELL, 2003).
Essa visão pós-humana, representa novos modos de vida, de relacionamento e de exploração do
meio ambiente, de relação com os animais e com outros seres humanos, e o

transhumanismo é um movimento vagamente definido que se desenvolveu gradualmente nas


últimas duas décadas, e pode ser visto como uma consequência do humanismo secular e do
Iluminismo. Ele afirma que a natureza humana atual é melhorável por meio do uso de ciência
aplicada e outros métodos racionais, os quais tornam possível aumentar a extensão da saúde
humana, ampliar nossas capacidades intelectuais e físicas, e nos dar controle aumentado sobre
nossos próprios estados mentais e disposições. Tecnologias de interesse incluem não apenas as
atuais, como engenharia genética e tecnologia da informação, mas também desenvolvimentos
antecipados para o futuro, como uma realidade virtual completamente imersiva, nanotecnologia
em fase de máquinas, e inteligência artificial. (PEPPERELL, 2003, p. 171-172).

De acordo com Bittar (2019), até o momento, a sociedade já pode observar as modificações
e as novas condições de socialização ocasionadas pela era digital. No entanto, resta a dúvida de
como o Direito irá lidar com estas novas condições tecnológicas. Neste sentido, o primeiro passo é o
reconhecimento de que a noção de sujeito acabou por forjar a então concepção moderna de sujeito
de direito, uma noção que é capaz de abrigar os inúmeros conceitos que estão em constante mutação,
em seu interior, daí sua ampla versatilidade histórica. Perante à era digital, é possível que a categoria
de sujeito de direito volte a se reconfigurar, abrangendo, também, o dito homem-máquina do direito
contemporâneo, confirmando um novo estatuto, o estatuto dos sujeitos pós-humanos, que abriga a
nova qualidade de ser humano por processos tecnocientíficos.
Entretanto, para Bittar (2019), a preocupação aqui não está em apenas regular esses novos
fatos, mas sim em reconstruir a teoria do direito acerca do sujeito de direito diante da revolução
digital e tecno-científica sobre o corpo humano. Visto que, enquanto a aceleração presente pelas
máquinas torna totalmente incerta a vida da sociedade contemporânea e suas relações sociais, o
direito constitui-se da tarefa de regulamentar todos esses efeitos negativos deste processo, atuando
na perspectiva da preservação dos direitos e deveres dos seres humanos nos espaços cibernéticos.
Por fim, precisamos destacar a mudança de perspectiva da modernidade para a pós-modernidade,
sendo a revolução digital um fragmento desse novo modo de pensar a sociedade. Destarte, a evolução
do digital denuncia pela incerteza, a fluidez das relações humanas e uma mudança entre sujeito e
objeto, em que o ser humano era o sujeito e tudo o mais objeto. Atualmente, no entanto, conforme
aponta Bauman, (1991), que a modernidade era determinística, enquanto a pós-modernidade é fluida
e incerta, portanto, indeterminada. Cabe a nós compreendermos este processo e nos propomos à
uma construção jurídica, normativa e humana, que atenda às mudanças, mas que também proteja os
direitos humanos, a privacidade e os direitos da personalidade.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há, portanto, a inversão do paradigma moderno, para o pós-moderno, em que o ser humano é
deslocado para uma condição de objeto e não mais de sujeito. Podemos dizer que a maioria de nós
nasceu na modernidade, mas já transita na pós-modernidade, surgindo a necessidade de responder às
demandas éticas e de privacidade, que surgem no espaço virtual e de acordo com o avanço tecnológico.

66
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Acredita-se, por conseguinte, que a dissociação entre liberalismo e democracia pode contribuir
para um novo momento de maior maturidade política, no entanto, é preciso haver uma volta à proteção
da liberdade individual, dentro de um novo contexto. De outro modo, o colapso total da democracia
liberal pode ocasionar uma regressão histórica e temporal em termos de direitos humanos.
Isto posto, defendeu-se, neste trabalho, que o Estado de Direito deve ser protegido, ainda que as
instituições se adaptem a uma nova sociedade comunicativa, muito mais fluída, tecnológica e digital, não
sendo o fim da democracia liberal o fim também dos direitos humanos. É, sem sombra de dúvidas, o início
de um novo período histórico, sendo que o direito deverá se adequar, progressivamente, aos novos anseios,
sem que caia especificamente na mesma armadilha da modernidade, no sentido de ficar refém do mercado.
Além disso, cabe ao sistema jurídico e à democracia o papel de manutenção da liberdade, dos
direitos individuais e dos direitos de personalidade, para que a ruptura da democracia liberal não
signifique um novo totalitarismo de Estado. Não obstante, pensar a proteção jurídica neste novo
espaço que surge, isto é, o espaço digital, vai possibilitar o equilíbrio entre o desenvolvimento
tecnológico e a concretização dos direitos humanos.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E A DESMISTIFICAÇÃO DAS


DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA A CRIANÇA
E O ADOLESCENTE EM SUAS PLATAFORMAS

Jolair de Ávila Hass 21

Rosane Teresinha Carvalho Porto 22

RESUMO: Este artigo tem por objetivo discorrer sobre os paradigmas da evolução social e
tecnológica deste século, onde uma sociedade da informação foi formada com todos os seus avanços
tecnológicos das mídias digitais, onde a população usa estes meios rotineiramente como meios de
trabalho, educação e lazer. Sob esta exposição indaga-se: o que esta sociedade da informação poderá
contribuir para disseminar pelos seus meios o combate da violência intrafamiliar contra a criança e o
adolescente? Sendo uma das formas em que o indivíduo usando de suas mídias poderá exercer a sua
cidadania, contribuindo para uma sociedade melhor, extirpando este mau que insiste em permanecer
nas famílias na atual sociedade. A metodologia a ser utilizada é a hipotético-dedutivo e a forma
técnica de pesquisa será a documental e a bibliográfica.

Palavras-chave: Sociedade. Informação. Violência. Criança. Adolescente.

INTRODUÇÃO

Devido a evolução social e tecnológica deste século foi formada uma sociedade da informação,
com todos os aparatos de seus avanços tecnológicos e mídias digitais. Poderá estes meios contribuir
para combater a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente, fazendo uso destas plataformas
em suas redes socais para fazer denúncias?
As pessoas fazem o uso das suas mídias digitais todos os dias, “a toda hora e a todo o momento”,
neste lapso de tempo poderiam exercer a sua cidadania, contribuindo para uma sociedade melhor,
fazendo orientações dentro de seus círculos midiáticos sociais de forma preventiva e educativa, como
também fazer as denúncias de violências que presenciem ou visualizem, aos órgãos competentes,
através de suas mídias digitais que estão em suas mãos.
Nesta pesquisa, em um primeiro momento, será desenvolvido sobre a sociedade da informação
e os seus paradigmas em uma nova forma de vida no convívio entre as pessoas, a vida subjetiva, ao
mesmo tempo em que a ciência avança ocorrem mudanças extremas nas famílias, nas comunidades
e na sociedade global, que resultam em pessoas consumistas e individualistas. Mas, no entanto, não
dá para negar que a sociedade da informação tem uma ferramenta de poder nos níveis de convivência
humana na economia, nas profissões e no lazer.
Em um segundo momento será examinada a violência intrafamiliar contra a criança e o
adolescente na história, as formas de violência que eram praticadas na antiguidade, os castigos

21 Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste d o Estado do Rio Grande do Sul (2008). Possui Pós-gra-
duação em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e previdenciário do pela Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul (2019). Atualmente está cursando Mestrado no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito,
Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
22 Pós-doutoranda em Direito pela Universidade La Salle (RS). Doutora em Direito pela UNISC(RS). Mestre em Direito na
área de concentração: Políticas Públicas de Inclusão Social com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES. Especialização pela PUC/RS em Docência no Ensino Superior. Especialização pela PUC/RS em Nova
Educação, Metodologias e foco no aluno. Professora na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul -
UNIJUÍ, lecionando na graduação em Direito e no Programa de Pós Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado. Professora
na graduação em direito e na Pós Lato Sensu na UNISC (Universidade de Santa Cruz do Sul). Estuda temáticas voltadas a
criança e adolescente, violência, criminologia, gênero, direitos sociais, Acesso à Justiça e Direitos Humanos. Integrante do
Grupo de Pesquisa Biopolítica & Direitos Humanos (CNPq). rosane.cp@unijui.edu.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

físicos como forma de educar em uma sociedade patriarcal. O Estado não se manifestava, pois a
violência era aceita pela sociedade.
Uma violência que se perpetrou no tempo, hoje temos legislações uma das mais modernas, mas
ainda há violência nos lares das mais diversas famílias, não importando a classe social, será pela cultura
patriarcal que impregnou na atual sociedade e, neste sentido, a sociedade da informação se engaja ao
processo de banimento da violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente pelos seus meios
tecnológicos para orientar as famílias preventivamente e pelas denúncias aos órgãos competentes.
A sociedade desde os primórdios apresenta uma estrutura dinâmica nos aspectos: sociais,
demográficas, geográficas, econômicas, etc. Sempre em busca das suas necessidades vitais tomadas
pela cultura, pela economia e pela forma de poder e a cada tempo há novas necessidades, devido à
evolução do homem e pelos avanços das ciências e das tecnologias.
Nos últimos anos do século XX e início do século XXI a sociedade no mundo sofreu várias
rupturas causadas pela hegemonia do poder econômico, alicerçado por um capitalismo avassalador,
que foi alavancado por um consumismo desmedido, causado pela globalização impulsionada pela
tecnologia da informação.
Um dos impactos deste modelo econômico adotado foi o enfraquecimento da família, houve
a desvalorização do “fator humano” pelo lucro a qualquer preço, que tornou a sociedade apática.
Devido às novas exigências do mercado ao trabalhador, surgiram doenças como a depressão e a
ansiedade, o comunitário saiu de moda para dar lugar ao individualismo cego acaba por prejudicar
a sociedade como um todo.
Os indivíduos ainda não absorveram os novos avanços da sociedade da informação, é um tipo
de tecnologia muito volátil, que muda muito rápido, surgem novas, mesmo que as anteriores não
haviam sido superadas pelo cidadão, ocorrendo um contrassenso na resposta dada pela sociedade,
por esta não estar “preparada ou instruída” para fazer um uso comunitário de todos os avanços
tecnológicos proporcionados pela tecnologia da informação.
A tecnologia da informação estabeleceu mudanças de comportamento e de rotinas na vida das
pessoas, tendo pontos positivos e negativos para a sociedade atual, dentre os pontos positivos está a
facilidade de comunicação entre pessoas que estão distantes, a praticidade de ter informação a toda
hora e a todo o momento, dentre outros e os fatores negativos é o afastamento das pessoas que estão
próximas e a enxurrada de informações que as pessoas recebem, cai no descrédito pela dificuldade
de processar todas elas.
A adequação da sociedade, para que faça o uso correto das tecnologias da informação, tendo
como prioridade o viés humano, para daí ter um convívio harmônico com os demais cidadãos na
família, na comunidade e na sociedade é um fator preponderante da existência da sociedade da
informação, mas é algo a ser construído.
A sociedade da informação surgiu no mundo no final do século XX, onde têm seus aspectos e suas
características formadas pelas “tecnologias informáticas” que se espalhou pelo mundo através de uma
globalização que tem por características variáveis às quais a sociedade se adequa a todo o momento.
Esta sociedade da informação não está vinculada somente aos meios das tecnologias, mas ela
também envolve todos os processos de divulgação de informação, como: o rádio, a televisão, o
telefone, todo e qualquer meio que veicula informação que afetam consideravelmente a vida social,
econômica e política na sociedade.
Na atual conjuntura de estagnação política, econômica e social da sociedade no mundo, a
sociedade da informação tem capacidade não apenas de informar os acontecimentos, mas também
oferece recursos para difundir, por exemplo, ideias que estimulem o senso de cidadania, de forma a
tratar o comunitário como algo preponderante capaz de influenciar os cidadãos e a supremacia do
poder dominante na construção de um mundo melhor de se viver.
O poder dominante que chamamos de Governo tem a função de incentivar a vida comunitária,
utilizando este grande potencial midiático disponível hoje e através de políticas públicas nas áreas
sociais e da educação fazer um trabalho abrangente com todos os indivíduos da comunidade a fim
de se evitar as desigualdades sociais absurdas que temos hoje e, por fim, integrar todos os cidadãos
neste mundo digitalizado através dos meios que a sociedade da informação tem à disposição.
A sociedade da informação tem um grande aporte de convencimento em seus meios, tanto que

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

acelerou o capitalismo globalizado no mundo, mas na forma social não é usado de forma coerente,
principalmente as mídias sociais tem um potencial educativo e comunitário muito forte, mas que
não são usados de forma adequada. A tecnologia da informação influência nos relacionamentos, nas
decisões pessoais e profissionais, na forma de consumo, na política, na economia, na educação, etc.
Ajustar formas educativas nas mídias sociais para que estas trabalhem a favor de uma sociedade
melhor é um desafio colocado para a sociedade da informação. Neste sentido, coloca-se o problema
da violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente, uma barbárie que acontece todos os dias
nos lares das famílias, mas que ninguém quer discutir, ver ou ouvir.
A violência contra a criança e o adolescente na família sempre existiu, pois na antiguidade estes
indivíduos não eram vistos pela sociedade como seres de direito, eram totalmente dependentes do
pai, que poderia fazer o que bem entendesse com eles, não havendo limites no tratamento e nem
uma legislação de proteção.
A sociedade evoluiu em vários sentidos nas ciências, nas tecnologias, entretanto, nas concepções
intrínsecas do ser humano não evoluiu, visto que ficou arraigado pelo peso da cultura no âmbito
familiar. Estagnando qualquer forma evolutiva, no sentido de termos uma sociedade melhor.
Foi através dos costumes que é passado de geração em geração que a violência dentro da família
contra a criança e o adolescente permaneceu quase que inalterada, devido a uma cultura patriarcal
que é relembrada a cada vitimização da criança e do adolescente em seus lares.
Hoje temos o problema da violência intrafamiliar como evento presente nas famílias, em formas
obscuras, devido os lares serem cada vez mais fechados, afetando todos os tipos de classes sociais,
raça e credo.

1 A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E OS PARADIGMAS DESTE SÉCULO

Estamos vivenciando um mundo cada vez mais perverso, a vida humana agora é subjetiva,
graças à tecnologia e aos avanços das ciências. Ao mesmo tempo em que podemos estar conectados
com o mundo todo há uma fragmentação do convívio das pessoas nas famílias e nas comunidades,
resultando em uma sociedade consumista, individualista e cega que está em busca de preceitos de
vida equivocados, devido ao seu isolamento social.

É como se a tecnologia tivesse se tornado cultura ou mesmo política. A tecnologia opera na


desorientação vigente como se soubesse aonde está indo; em todo caso, ela sabe como chegar lá e
mais essencialmente, como nos levar até lá e, mais essencialmente, como nos valida e a si mesma:
era possível chegar aqui – nos diz ela –, portanto, era certo fazê-lo (BAUMAN; MAURO, 2016, p. 89).

O mundo globalizado trouxe as tecnologias cada vez mais aprimoradas, o que deu um suporte
imenso para o surgimento de uma “sociedade da informação”.
Os novos desafios técnicos e econômicos disponibilizados pelos avanços tecnológicos na
microeletrônica e telecomunicações deram uma contribuição fundamental para que houvesse estas
mudanças radicais no âmbito político-econômico e social que ocorreram no mundo através do
fenômeno da globalização. É como sinaliza Takahashi (2000, p. 5):

[...] um fenômeno global, com elevado potencial transformador das atividades sociais e
econômicas, uma vez que a estrutura e a dinâmica dessas atividades inevitavelmente serão, em
alguma medida, afetadas pela infraestrutura de informações disponíveis.

A sociedade da informação na atualidade proporcionou várias e expressivas transformações


em todas as áreas de convivência humana em nível mundial, tanto que as ferramentas tecnológicas
se tornaram essenciais para a vida em termos educacionais, profissionais, econômicos, de lazer, de
entretenimento e de poder.
Mas, por outro lado, devido estas formas de comunicação estar na mão, faz com que o indivíduo
se torne apático, ocorrendo perda da sensibilidade pelas pessoas próximas. E devido a este mundo
conectado originou-se um indivíduo doente com a compulsividade, a inquietude, a ansiedade e a
depressão, ocasionado por uma hiperconectividade que deixou o indivíduo sozinho em um vazio

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

social. Neste sentido, Han (2017, p. 9) enfatiza que:

Determinadas doenças neuronais, tais como a depressão, transtorno por déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH) ou certas perturbações da personalidade – transtorno de personalidade
borderline (TPD) ou síndrome de Burnout (SB) – descrevem panorama patológico do início do
século XXI. Não estamos já perante infecções, mas sim, enfartes, originados não pela negatividade
do outro imunológico, mas, sim, por excesso de positividade.

Quando houve o surgimento das mídias digitais a população não estava suficientemente qualificada
para fazer o melhor uso das redes sociais. Na verdade, a mudança de paradigma foi muito rápida, ocasionando
formas inadequadas de uso destes aprimoramentos tecnológicos da informação e da comunicação.
Mas apesar de todas as dificuldades, os indivíduos tiveram que se familiarizar com novas
tecnologias da comunicação, considerando as mudanças de paradigmas na economia e na política que
transformou a sociedade, nos modos de pensar, agir, enxergar, compartilhar, alterando sensivelmente
o cotidiano das pessoas.
Esta sociedade da informação que as tecnologias formataram é formada de várias características
que vão se delineando de acordo com as atitudes e o convívio social, de acordo com o fluxo de
informações recebidas, que altera a visão de mundo das pessoas. Desta forma, passamos a conviver
em uma sociedade instável, inconstante e complexa. Conforme Araújo (2007, p. 51):

Um programa para a sociedade da informação deve propor a consolidação de uma sociedade


mais justa, em que os direitos do cidadão e os aspectos culturais da nação sejam respeitados.
Sobretudo, deve promover o desenvolvimento econômico, buscando o equilíbrio regional e,
principalmente, a efetiva participação da sociedade durante a sua consolidação.

Estamos vivendo uma mudança cultural, em que a sociedade da informação através de seus
meios tecnológicos é a grande protagonista na atual dinâmica social. Mas o problema é que os efeitos
desta mudança cultural não são benéficos para as pessoas, pois acabam por privilegiar apenas alguns
grupos econômicos e políticos.
É necessária a participação de toda a sociedade nesta inflexão proporcionada pela tecnologia,
para a elaboração em conjunto de uma sociedade da informação, em que os reais benefícios dos
avanços das ciências e das tecnologias evidenciem uma melhor qualidade de vida para todos os seres
humanos. É o que declara Araújo (2007, p. 56):

Nota-se a complexidade das responsabilidades de cada ator envolvido na empreitada de construção


da sociedade da informação. Se ao setor privado cabe a responsabilidade pelos investimentos e
inovação, e à sociedade civil cabe o desenvolvimento da sua capacidade de influenciar e monitorar
os poderes públicos e as organizações privadas, ao Governo cabe a complexa tarefa de prover
políticas públicas que visem regular e assegurar à sociedade civil e também às organizações
privadas a participação e o acesso aos benefícios proporcionados pela sociedade da informação.

As formas de um bom uso das ferramentas disponíveis nesta sociedade da informação são
diversas dependendo do ambiente em que o indivíduo se encontra, mas, contudo, a maneira de
fazer uso deste importante mecanismo de interação social irá fazer a diferença para a sociedade, não
importando a forma seja por um bom uso ou pelo mau uso, as consequências virão a seguir.
O problema não está na perversidade do indivíduo, quando ele usa inadequadamente as redes
sociais, mas sim na falta de conhecimento do poder da ferramenta, ou seja, o desconhecimento do
que o alcance das informações postadas por ele (referindo-se ao número de pessoas que visualizam)
poderá gerar, pois é possível que entrem em choque de opiniões, às quais o indivíduo não estava
preparado para enfrentar. Pode haver mal-entendidos na forma de comunicação e de exposição das
informações, o que ocasionaria um mal-estar para a pessoa que postou ou para terceiros.
Não tendo como se ausentar desta forma de comunicação, esta sociedade da informação deve
estar disposta a qualificar as pessoas, para que estas exerçam sua cidadania por estes meios de
comunicação, pois o uso destas tecnologias já faz parte do quotidiano nas casas, no trabalho, na
educação, em estabelecimentos de saúde, etc. É nessa perspectiva que Luhmann (2005, p. 30-31)
se manifesta: “O sucesso dos meios de comunicação em toda a sociedade deve-se à imposição dos
temas, independente se as posições tomadas são positivas ou negativas”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A sociedade da informação, que emerge destes novos paradigmas da tecnologia traz um novo
estilo de vida para o indivíduo no núcleo familiar e na sociedade, onde as relações afetivas estão
delineadas pelo afastamento e apatia. Estas novas configurações da família fazem com que seja
agravado ainda mais o problema da violência contra a criança e o adolescente dentro da família,
dilema que a sociedade ainda não extirpou da convivência familiar.
O indivíduo ainda não tem a compreensão de que a tecnologia da informação veio para viabilizar
uma vida melhor para ele, para sua família e sua comunidade, pois é neste sentido que a tecnologia
da informação serve, ou seja, para que ele se sobressaia de todas as adversidades e problemáticas
da vida na atual sociedade.
Ao fazer o uso das tecnologias nas redes sociais de uma forma adequada e qualificada, pelo
viés humanitário irá aflorar um sentimento de empatia pelo outro, contribuindo para uma sociedade
melhor e a consequência seria a estagnação da violência e a valorização do ser humano.

2 A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NA HISTÓRIA E A


INTERVENÇÃO DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO PARA A DESMISTIFICAÇÃO DAS DENÚNCIAS

Em toda a história da humanidade sempre houve conflitos dentro da família e a violência contra
as crianças e os adolescentes ocorria de formas absurdas, que daria para dizer que o ser humano
ainda não era civilizado. As práticas de infanticídios determinadas pela limitação de recursos eram
práticas usuais tanto quanto os castigos corporais nos quais as crianças e os adolescentes eram
submetidos nos primórdios tempos. Neste sentido, Barros (2005, p. 70-71) se expressa:

No Oriente Antigo, o Código de Hamurábi (1728/1686 a.C.) previa o corte da língua do filho que
ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram seus pais, assim como a extração dos olhos
do filho adotivo que aspirasse voltar à casa dos pais biológicos (art. 193). Caso um filho batesse
no pai, sua mão era decepada (art. 195). Em contrapartida, se um homem livre tivesse relações
sexuais com a filha, a pena aplicada ao pai limitava-se a sua expulsão da cidade (art. 154).

A violência contra as crianças e os adolescentes que acontecia nas famílias nos tempos arcaicos,
fomentou a arquitetura de uma cultura patriarcal, na qual o autoritarismo da figura paterna na
família transcendia um poder absoluto da vida ou da morte de seus filhos, podendo fazer o que
bem entendessem com eles, sem que o Estado, a igreja, a comunidade ou qualquer cidadão pudesse
intervir. Portanto, não havia um limite da autoridade paterna e nem sentimentos de amor paternal,
nem tão pouco maternal, as crianças estavam simplesmente abandonadas à própria sorte. Conforme
Azambuja (2016, p. 56):

Em Roma (449 a.C.) a Lei das XII Tábuas – 1º permitia ao pai matar o filho que nascesse disforme,
mediante o julgamento de cinco vizinhos; 2º o pai tinha legítimo o direito de vida e de morte sobre
os filhos, inclusive para vendê-los. Em Roma e também na Grécia antiga, o pai como chefe da
família, podia castigar, condenar e expulsar a mulher e os filhos, visto que não possuíam nenhum
tipo de direito. Em Esparta, as crianças doentes ou portadoras de malformações congênitas eram
sacrificadas, pois, desde cedo serviam para atender interesses políticos, sendo selecionadas, pelo
porte físico, para ser guerreiros, ou seja, eram objeto de direito estatal.

A sociedade e o Estado não se preocupavam com o problema da violência intrafamiliar contra as


crianças e os adolescentes, pois apesar de bárbaras e cruéis as práticas eram aceitas pela sociedade.
Porém, houve uma evolução e o homem ficou mais civilizado no tratamento com os seus filhos,
entretanto, devido a uma cultura patriarcal que ficou impregnada na sociedade, a violência contra a
criança e o adolescente na família perpetrou durante os séculos, não somente pela cultura patriarcal
que ainda temos resquícios na atualidade, como pelo problema da desigualdade social e de políticas
públicas equivocadas na educação, dentre outros problemas no cotidiano das pessoas.
Outro fator muito importante quando se fala de violência intrafamiliar contra a criança e o
adolescente é que a família se encontra fechada em seu íntimo “núcleo familiar em quatro paredes”
de uma residência, onde as pessoas simplesmente não interferem por mais que visualizem violências
extremas contra estas inocentes vítimas.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2.1 Tipos de violência contra a criança e o adolescente nas famílias

As formas de violência que acontecem hoje dentro das casas são influenciadas pela lógica da cultura
patriarcal que herdamos, mas que também tem influências socioambientais nas quais as famílias estão ex-
postas, mas que é independente de fatores econômicos, devido ao fato de que estas violências ocorrerem
em todas as classes sociais, se concretizando desde os castigos físicos como forma de educação a punições
físicas e psicológicas humilhantes tratadas como práticas normais, quando não provocam lesões visíveis.
A violência contra a criança e o adolescente dentro da família é praticada de acordo com a estrutura
familiar em termos psicológicos, econômicos e de educação, ou seja, conforme o tipo de violência que
ocorre contra estas vítimas inocentes vamos encontrar os fatores que a ocasionaram e, neste contexto,
está a negligência, a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, dentre outras.
A negligência pode ser física, educacional ou emocional, mas todos estes tipos de negligência oca-
sionam danos psicológicos, que se não tratados poderão trazer consequências para toda a vida da vítima.
A violência por omissão de forma reiterada na educação, na saúde, na nutrição e na higiene
traz enormes prejuízos ao desenvolvimento emocional da criança e do adolescente, pois prejudica
a autoestima da vítima ficando está vulnerável à propensão de violências sexuais. Neste sentido,
Azevedo e Guerra (1989, p. 28) afirmam que:

(...) a negligência se configura quando os pais (ou responsáveis) falham em termos de atendimento
às necessidades dos filhos sem relação à alimentação, vestuário, saúde, educação, etc., e quando
tal falta não é resultado das condições de vida além do seu controle.

Pelo fator negligência ainda há de considerar a responsabilidade do ente público, pela falta de
políticas assistenciais e investimentos públicos em áreas estratégicas na saúde, na educação e na
assistência social.
A violência física praticada no interior da família contra a criança ou adolescente é manifestada
geralmente pelas marcas físicas de lesões, na forma de ferimentos, ocasionadas o por surras, justificas
pelos fins disciplinares e pedagógicos dos pais ou responsáveis.

(...) quando a criança saí da linha é agredida fisicamente, com maior ou menor intensidade
dependendo da falta cometida e das circunstâncias em que o castigo é aplicado. Estes pais
justificam seus atos dizendo que batem para educar e acha uma palmada bem dada na hora certa
e no lugar certo (ALBERTON, 2005, p. 111).

Na violência psicológica além de ter conexão com todas as outras formas de violências, ela pode
se manifestar sozinha através de agressões verbais, chantagens, ameaças, rejeição, isolamento, etc.
De todos os tipos de violências a violência psicológica é de difícil identificação, pois é necessário estar
muito próximo da família para constatar.
No que se refere à violência sexual muitas vezes denotada pela exploração efetuada por pessoas
de confiança da vítima (criança ou adolescente), através de subterfúgios perspicazes enganam a vítima
visando a estimular sexualmente para obter prazeres pessoais. É o que argumenta Saffioti (2000, p. 61):

Este tipo de relacionamento pode começar com carícias, como parece ser o mais frequente, mas
pode também ter início com a exibição de fotos pornográficas à menor com a finalidade de
familiarizá-la com as práticas libidinosas que com elas deseja desenvolver. Atualmente, há formas
mais sofisticadas de exposição através de métodos visuais. O videoteipe oferece uma série de
vantagens em relação à fotografia, já que o movimento é importante, não apenas para ensinar,
como para revelar as sensações de prazer.

A violência sexual é perpetrada pelo abuso através do uso de pornografia ou outros meios para
estimular sexualmente a vítima. Na maioria dos casos conhecidos não há violência física, pois estes
crimes são praticados por pessoas próximas de confiança da criança ou do adolescente.
O crime acontece de forma progressiva, dependendo da confiança da vítima e dos componentes
da família. Para ser perpetrada a violência sexual não é necessário o contato com a genitália, contudo
as simples carícias nas genitais, o beijo já configura o abuso, devido estas ações serem traumáticas
para a criança ou adolescente.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2.2 A sociedade da informação x violência contra a criança e o adolescente na família

A sociedade da informação pode amenizar a problemática da violência intrafamiliar contra a


criança e o adolescente de várias formas, devido estar munida de ferramentas tecnológicas muito
avançadas das quais a população também está servida. O papel da sociedade da informação é fazer o
uso das mídias digitais como cidadania, através das redes sociais e combater a violência intrafamiliar
contra as crianças e os adolescentes, mal que assola a sociedade desde a antiguidade.
As pessoas ainda não perceberam o poder que tem nas mãos através das redes que estão em
sua volta, pois as informações de denúncias que estejam visualizando ou até mesmo escutando
poderão não somente salvar vidas, mas também famílias.
Na atualidade deste século temos uma legislação farta referente às tipificações inerentes ao
crime de violência contra a criança e o adolescente, temos também políticas públicas que asseguram
uma assistência para as famílias das vítimas desta violência, mas o que está faltando é a efetividade
da legislação, pois nestes crimes que acontecem em “quatro paredes” de uma residência a vítima é
totalmente dependente do agressor.
O que está faltando para fechar o cerco ao crime de violência contra a criança e o adolescente na
família e as atribuições desta sociedade da informação que está aí pronta para colaborar, não somente
com as autoridades, mas para a sociedade, disseminando denúncias deste crime para salvar vidas e
famílias e contribuir para a paz na comunidade.
O trabalho da sociedade da informação está também na contribuição para dizimar dos lares
das famílias este tipo de violência que abala a sociedade, por intermédio das mídias sociais fazer a
propagação dos aspectos positivos de fazer a denúncia de abusos, violências, maus-tratos, negligências
contra a criança e o adolescente na família e de como o cidadão poderá contribuir nesta campanha,
instruindo no uso desta importante ferramenta.
Outra forma em que a sociedade da informação poderá contribuir é pleitear ou solicitar para o
Estado políticas públicas através de campanhas publicitárias, difundir o conhecimento de como fazer
o uso das redes sociais para fins de denúncias de violência doméstica contra a criança e o adolescente.

3 CONCLUSÃO

A sociedade está sempre em evolução, quando se evolui é dado um passo à frente, assim
foi desde as antigas civilizações no mundo, mas ocorre que neste século a evolução está presente
nas atuais tecnologias, onde se visualiza importantes avanços na tecnologia digital que interfere na
cultura e no modo de viver das pessoas, fazendo com que haja uma nova configuração social que é
explorada pela economia no mundo.
Em relação ao tratamento que era dado para as crianças e os adolescentes no mundo na
antiguidade, evoluímos muito, no entanto, a cultura patriarcal ficou impregnada na sociedade, pois
hoje ainda a educação está condicionada à violência e obediência dentro do lar, lugar onde são
praticados abusos sexuais, negligências, maus-tratos, violências físicas e violências psicológicas
pelas pessoas que têm o dever de cuidar e proteger.
No que se refere às tecnologias e a evolução da atual sociedade, verifica-se que não estão
andando juntos, no entanto, os avanços tecnológicos não nos proporcionaram um mundo melhor,
pois é neste importante paradigma paradoxal que vislumbramos meta para a atual sociedade da
informação, que é desmitificar as denúncias de violência contra a criança e o adolescente na família,
instigar o cidadão para participar das mídias sociais com o intuito de sensibilizar o Governo, fazer
políticas públicas que incentivem as denúncias deste tipo de violência pelas redes sociais.
No atual cenário político, econômico e social a sociedade da informação tem o papel não somente
de informar acontecimentos e difundir informações, mas também de conscientizar as pessoas a participar
da sociedade com o ímpeto de construir um mundo melhor de se viver sem violência em suas famílias.
Desta forma esta sociedade da informação poderá contribuir e muito através de todas as
plataformas que a tecnologia lhe proporciona, para se não extinguir ao menos amenizar o sofrimento
de crianças e de adolescentes vítimas de violência dentro do lar. Este aporte poderá ser através das

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

mídias sociais, orientar as famílias de forma educativa e preventiva para que estas não façam o uso
da violência em filhos como forma disciplinar e educativa.
Também poderá fazer dos círculos de amizades nas redes sociais um centro de esclarecimento
para as pessoas e como estas podem fazer denúncias para os órgãos competentes dos abusos ou
qualquer tipo de violência infanto-juvenil dentro do lar, sem se comprometer com possíveis represarias
dos agressores, agindo assim, estará fazendo o seu papel de cidadania e contribuindo para uma
sociedade melhor.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A VIOLÊNCIA TEM CARA, COR E CLASSE SOCIAL:


O RACISMO AMBIENTAL COMO LIMITADOR AO ACESSO DA
POPULAÇÃO NEGRA A UMA EFETIVA CIDADANIA23

Isabela Luisa Preichardt24


Alini Bueno dos Santos Taborda25

RESUMO: O presente trabalho, após evidenciar o histórico do racismo negro brasileiro de forma breve,
explanará sobre o prisma do racismo ambiental, também conhecido como racismo ecológico, o qual
será estudado e problematizado como um limitador à cidadania dos negros na sociedade atual. Parte-
se do pressuposto de que o racismo ecológico se concretiza em detrimento de grupos vulneráveis,
que não possuem voz e visibilidade no meio social. Assim, nesse sentido, serão mencionados alguns
meios de combate a essas transgressões, os quais são baseados, em muito, na visibilidade desses
grupos vulneráveis. Destaca-se, por oportuno, que o método utilizado para a elaboração do presente
trabalho científico é a pesquisa qualitativa, baseada em revisão bibliográfica e documental.

Palavras-chave: Escravidão. Cidadania negra. Racismo ambiental. Racismo ecológico.

INTRODUÇÃO

De primeira mão, ao analisar o escorço histórico do Brasil, constata-se que o racismo negro
originou-se do período colonial, onde indígenas e, principalmente, africanos foram submetidos a
uma vida desumana e cruel, qual seja, a vida escrava. A partir disso, afirma-se que foi criada a cultura
racista, que tem como fundamento a imagem inferior dos negros diante dos brancos.
Na pesquisa, usa-se da abordagem qualitativa, já que não há uma preocupação com dados
estatísticos e generalizações sistematizadas (MALHOTRA, 2012). A ideia é discutir um assunto
específico, e para tal, utiliza-se de técnicas baseadas em revisão bibliográfica e documental (GIL,
2010) em obras e artigos científicos.
A importância deste trabalho se dá pelo fato de que, apesar de estarmos em pleno século XXI e
após tanta evolução, esse contexto de preconceito racial não mais poderia existir, mas infelizmente
persiste, e a discussão sobre a temática merece cada vez mais visibilidade, ainda mais por se tratar do
racismo ambiental, modalidade que causa, direta e indiretamente, consequências e/ou modificações
a sociedade como um todo.

1 HISTÓRICO DO RACISMO NEGRO BRASILEIRO:

O racismo não está inscrito na natureza, existam ou não raças: é uma decisão humana, que
escapa à esfera da biologia e se mantém no âmbito dos valores (sendo um valor negativo). (PATY,
1998, p.164)

23 Artigo recentemente submetido à VIII Mostra Científica da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Mis-
sões, campus Erechim/RS.
24 Graduanda em Direito, na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus Cerro Largo/RS.
E-mail: isabela.preichardt@yahoo.com.br
25 Doutoranda e mestra em Direito pela URI - Campus de Santo Ângelo/RS, Especialista em Direito Tributário e Exercício do
Magistério Superior pela UNISUL/SC, Especialista em Formação Pedagógica pela Celer Faculdades/SC, Professora de Direito
da URI - Campus Cerro Largo/RS, Advogada. Integrante do Grupo de Pesquisa CNPq Conflito, Cidadania e Direitos Humanos;
Novos Direitos na Sociedade Complexa; Gestão e Direito para o Desenvolvimento - EGEDDE, ambos vinculados ao CNPq.
E-mail: alinitaborda@gmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O racismo negro dos dias atuais nada mais é que uma herança do pensamento e da cultura
escravagista, que infelizmente não desapareceu com o passar dos anos. Essa ideologia alega que
a raça branca é superior em relação aos negros e, para realizar essa diferenciação, utiliza como
parâmetro a raça, origem e a cor dos indivíduos.
De primeira mão, conforme já elucidado anteriormente, afirma-se que o racismo brasileiro é
resultado do período escravagista, que durou em média 350 (trezentos e cinquenta) anos, onde
indígenas e africanos foram submetidos a uma vida miserável e desumana, a vida escrava.
Nesse sentido, Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes afirmam:

Ele é resultado de crença de que existem raças ou tipos humanos superiores e inferiores, a qual
se tenta impor como única e verdadeira. Exemplo disso são as teorias raciais que serviam para
justificar a escravidão no século XIX, a exclusão dos negros e a discriminação racial. (2006, p. 179).

Em suma, tem-se que os escravos tinham seus direitos e interesses totalmente suprimidos e
ignorados, e, por consequência, sua dignidade e cidadania acabavam plenamente afetadas pela rotina
árdua e pesada de trabalho e submissão. Nesse ponto, vislumbra-se que os escravos só possuíam
o direito de poder trabalhar arduamente em jornadas de trabalho exageradas para seus senhores,
sem remuneração, a custo de castigos e torturas em caso de desobediência. Ademais, os escravos
eram arrumados para serem valorosamente vendidos, como se fossem animais ou objetos para uso
– comercialização de negros/ escravos.
Desta forma, as desigualdades surgem e com muita força, pois havia o extremo que não possuía
nada e o outro que possuía tudo, sendo o aspecto usado para realizar essa diferenciação, a raça e cor.
Importante mencionar que essas situações discriminatórias são a mais nítida expressão que existe
uma classificação que desqualifica e estigmatiza o negro, ou seja, condenando grande parte dessa
população ao confinamento inicialmente nos cortiços, e depois nas periferias e favelas, à margem de
qualquer possibilidade de cidadania.
Em outras palavras, afirma-se que os homens brancos (os senhores) tinham tudo, inclusive o
poder, e os homens negros (escravos) não possuíam nada, nem mesmo dignidade, conforme Maria
Luiza Tucci Carneiro ressalta, “o negro e o mestiço dificilmente conseguiam igualar-se ao homem
branco. O mundo da senzala sempre esteve muito distante do mundo da casa- grande” (2007, p. 14).
Com o início das rebeliões ofertadas pelos próprios negros- se não fossem eles lutar por seus
direitos, quem lutaria? -, percebeu-se a necessidade de algumas mudanças, principalmente legislativas,
que de alguma forma garantissem mínimos direitos aos escravos. Nesse sentido, podemos afirmar
que a primeira medida que realmente impactou o sistema escravagista foi a Lei Eusébio de Queiroz,
que estabelecia medidas proibitivas ao tráfico negreiro, seguida da Lei do Ventre Livre, que regia a
situação dos filhos das escravas.
Ato contínuo, após 14 (quatorze) anos, foi criada a Lei dos Sexagenários, que garantia a liberdade para
os escravos de pelo menos 65 (sessenta e cinco) anos, e, por fim, a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão,
questão que se relativiza em sua extremidade. Isso porque, a referida legislatura mostrou-se apenas um
pedaço de papel: a escravidão foi extinta, porém, os escravos não receberam nenhuma assistência ou
indenização do estado para conseguir exercer essa liberdade. Com isso, muitos optaram por continuar nas
fazendas em troca de subsistência, e outros se aventuraram nas cidades em busca de emprego.
A escravidão foi formalmente abolida, mas a cultura continuou, o povo de pele branca continuou
a tratar o povo de pele escura com inferioridade, submissão e insignificância. A falta de solidariedade e
oportunidade dos brancos para com os negros colaborou significativamente para a formação social atual.

A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela massa negra
que construíra. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em
que pudesse educar seus filhos, e de qualquer ordem de assistência. Só lhes deu, sobejamente,
discriminação e repressão. (RIBEIRO, Darcy, 2016, p.167).

Assim, formou-se a atual favela brasileira, pois os negros sempre viveram à margem da sociedade
branca e excluídos pelo preconceito. No mesmo sentido, Ribeiro (2016, p. 157) relata que agora “fica
a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos
moradores das favelas e periferias da cidade”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Esta discriminação é como uma espécie de cláusula de diferenciação ideológica entre, em grande
maioria, brancos e negros, ricos e pobres, bons e ruins. Todavia, a divergência mais notória é a
econômica, sendo esta um fragmento da escravidão onde, os brancos possuíam tudo e os negros não
possuíam nada, e quando libertos, ainda continuavam sem posse alguma.
Finalizando essa parte inicial, concorda-se com Darcy Ribeiro, que refere que a “a luta mais
árdua do negro e de seus descendentes brasileiros foi, e ainda é, a conquista de um lugar e de um
papel de participante legítimo na sociedade nacional” (2016, p. 166).

2 RACISMO AMBIENTAL COMO LIMITADOR À CIDADANIA:

Ultrapassada a fase introdutória, estuda-se nesse ponto, a problemática do racismo ambiental/


ecológico como um limitador à efetiva cidadania da população negra. E, nesse momento, essencial
esclarecer o que significa o racismo ambiental, uma vez que se trata de conceito não muito conhecido
e/ou debatido na atualidade.
Assim, conforme ensina Souza e Oliveira, o racismo ambiental é tido como:

“uma forma de discriminação causada por agentes públicos e/ou privados, mediante ação ou
omissão que voluntária ou involuntariamente causam danos e afetam o meio ambiente e a
qualidade de vida das comunidades baseando-se para tanto em raça, classe, gênero, etnia, casta
ou origem nacional [...]”.

Ou seja, existe uma forma de racismo que, além disso, abarca questões territoriais: é o denominado
racismo ambiental. Conforme Milton Santos, “o território é onde vivem, trabalham, sofrem e sonham
todos os brasileiros. Ele é, também, o repositório final de todas as ações e de todas as relações, o lugar
geográfico comum dos poucos que sempre lucram e dos muitos perdedores renitentes, para quem o
dinheiro globalizado – aqui denominado ‘real’ – já não é um sonho, mas um pesadelo”. (1999, p. 05.)
Em outras palavras, entende-se que se trata de violações ocorridas por intermédio de injustiças
no meio ambiental num contexto de racialização. Esse tipo de racismo é gerador de iniquidades
praticadas contra grupos vulneráveis, comumente, durante a efetivação de obras do setor privado
e também de políticas públicas. Vale lembrar, que já na viagem, nos navios negreiros, os ambientes
eram inóspitos e degradantes, assim, tal agir parece ter se perpetuado na sociedade.
Conforme Tania Pacheco:

Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável
sobre etnias e populações mais vulneráveis. O Racismo Ambiental não se configura apenas através
de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto
“racial”, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. (…) O conceito de Racismo Ambiental
nos desafia a ampliar nossas visões de mundo e a lutar por um novo paradigma civilizatório, por
uma sociedade igualitária e justa, na qual democracia plena e cidadania ativa não sejam direitos de
poucos privilegiados, independentemente de cor, origem e etnia” (Pacheco: 2007).

Ora, desde o princípio os negros esbarravam em dificuldades para obter algum lugar na
sociedade, e, quando conseguem irrisório espaço, ainda acabam por ter seus direitos e interesses
sonegados. Cabe destacar que essas transgressões ocorrem, inclusive, quando inseridos em seus
próprios territórios, visto que a comunidade negra, indígenas e outros grupos étnicos são vítimas
constantes de desterritorialização. Nesse ponto, concretiza-se o racismo ambiental.26

26 Conforme levantamento inicial do Mapa de conflitos causados pelo Racismo Ambiental no Brasil (http://www.justicaam-
biental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=1555) são inúmeras as consequências desse tipo de injustiça. A contami-
nação do solo por resíduos tóxicos está presente em diversos exemplos: no Amapá, o Conselho das Comunidades Afrodes-
cendentes conseguiu vencer a luta contra os resíduos de manganês deixados pela ICOMI na Serra do Navio, após quase 30
anos de exploração do minério; na Bahia, habitantes de bairros negros ainda se vêem às voltas com crianças que nascem
mortas ou inteiramente deformadas, em consequência da contaminação provocada pela Companhia Brasileira de Chumbo
ao longo de décadas; no Ceará, os Jenipapo-Kanindé continuam sua luta contra a empresa Ypióca, que explora a água da
sua sagrada Lagoa Encantada para alimentar seus 4.000 hectares de monocultura de cana e produzir cachaça e polui com
vinhoto o lençol freático da reserva. Litoral abaixo, a carcinicultura expulsa povos indígenas, caiçaras, pescadores tradicio-
nais e marisqueiras, destruindo manguezais e contaminando solo e trabalhadores com produtos tóxicos. (PACHECO: 2007)

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Aqui, vale frisar que conforme anteriormente dito, as principais vítimas do racismo ambiental são
indivíduos excluídos dos processos de participação social e política, e em desvantagem econômica,
ou seja, as populações negras, pobres, indígenas e quilombolas. Em outras palavras, é muito mais
fácil retirar direitos daqueles que não possuem voz e visibilidade na sociedade, de modo a conseguir
evitar que seus direitos e interesses sejam afetados.
Evidente, com isso, que tais grupos possuem sua cidadania plenamente afetada, sendo humilhadas
e marginalizadas, tendo que alterar seu modo de vida dentro do seu próprio território, muitas vezes por
ações e/ou omissões que possuem como objetivo final, tão somente vantagens econômicas.
Quanto à cidadania, é possível dizer que, todo cidadão, que integra a sociedade pluralista do Estado
democrático, é senhor do exercício da cidadania, a qual, em síntese, é um vocábulo que expressa um exten-
so conjunto de direitos e de deveres. (MARSHALL, 1967). Mas, aqui consideramos essa em sua visão atual
e ampla, enquanto política de direitos humanos, e assim, importante o exposto por João Maritns Bertaso:

[...] a cidadania enquanto política dos direitos humanos tende a legitimar os cidadãos no direito
de agir em defesa da vida e apostando numa sociedade que pode se sustentar em cuidados
mútuos; há que se reconhecer o direito à diferença, considerando as culturas particulares – suas
diversas dimensões espaciais e temporais, local e global – com suas respectivas articulações e
inter-relações. (2008, p. 15).

Percebe-se que a escravidão e o racismo fizeram com que os negros tivessem que viver sempre
à margem da sociedade, formando as atuais favelas, cortiços, subúrbios, vilas e periferias. Com isso,
os mesmos sempre estiveram acomodados nos piores lugares das cidades e quando, eventualmente,
se encontram em áreas um pouco mais valorizadas, são expulsos, ocorrendo, assim, um verdadeiro
processo de expropriação de terras, o qual faz com que as pessoas afetadas saiam do seu local de
origem, sendo submetidas a uma vida incompatível com os conceitos de igualdade e cidadania.
No centro dessa questão, como uma das formas de perceber o racismo devemos relacioná‐lo direta-
mente com a divisão de classes sociais, pois historicamente no Brasil, configurou‐se uma estreita relação
entre ser negro e ser pobre. Como afirma Bento (2002, p. 27): A pobreza tem cor. Em complemento, para de-
monstrar de forma mais clara o acima exposto, traz-se de modo exemplificativo as seguintes situações: po-
pulações marginais que vivem perto dos lixões e aterros sanitários, comunidades quilombolas afetadas pela
poluição proveniente dos garimpos, pequenos povoados que não auferem saneamento básico, entre outras.
Para clarificar ainda mais a ideia, pergunta-se: quando determinado município possui o intuito de
construir um lixão próprio, ao escolher o terreno, irá optar por local próximo a um bairro nobre da
cidade ou ao lado da periferia? Obviamente, a segunda opção será a escolhida, por ser a mais passível.
Ainda, e não menos importante, percebe-se que o racismo ambiental ultrapassa as questões
geográficas. Para comprovar tal alegação, basta observar que, na atualidade, um grande preconceito
que se tem é com as periferias, as quais são vistas, de modo geral, como locais de violência. Dessa
forma, tem-se a automática reprodução de que a comunidade negra, por ser a predominante em tais
localidades, é a responsável pela violência e a criminalidade.
Em cidades menores existem as conhecidas vilas, pequenos subúrbios que se separam, geográfica
e socialmente, do restante do município. Assim, por exemplo, quando algum crime ocorre, não raro se
escuta: “deve ser alguém que mora na vila”. Nesse contexto, um estigma é criado com aquele determinado
povoado, de forma que o considera inferior pelo simples motivo de sua localização geográfica de habitação.
Acredita-se que essas situações são resquícios da escravidão e de todo histórico de marginalização,
fazendo existir o racismo baseado na cor e raça e que se torna mais severo e acentuado quando
direcionado a um negro que reside na periferia. Desse modo, a raça foi e continua sendo utilizada
para hierarquizar a sociedade, apesar de abandonada cientificamente, permanece ativa como símbolo
de dominação. Nesse aspecto, primordial o que assevera Munanga:

Se na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de um biólogo molecular a raça não existe, no


imaginário e na representação coletivos de diversas populações contemporâneas existem ainda
raças fictícias e outras construídas a partir das diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros
critérios morfológicos. É a partir dessas raças fictícias ou “raças sociais” que se reproduzem e se
mantêm os racismos populares. ( 2004, p.22)

O racismo se apresenta em contextos e formas diversas, mas nas diferentes manifestações racistas, é

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

possível perceber um ponto comum. Conforme Wieviorka (1991), é a “demonização” de um grupo racial em
face da supervalorização de outro grupo com base em suas características raciais, isto é, atributos físicos,
genéticos que são relacionados com atributos intelectuais e morais. Ainda, conforme tal autor as diferen-
ças culturais por si só não explicam o racismo, mas deixam claro que ele surge e se desenvolve em espaços
de desigualdade social e dominação, como justificativa para a inferiorização de determinados grupos.

3 MECANISMOS DE COMBATE

Avançando no tema em estudo, parte-se do pressuposto que o racismo ambiental se propagada


em detrimento de grupos que não possuem visibilidade na sociedade, explora o meio ambiente, mas,
acima de tudo, afeta drasticamente indivíduos vulneráveis, que, por serem integrantes dos grupos
minoritários, sem a devida atenção, acabam por ter suas vidas rodeadas por miséria, falta de acesso
à água potável, saneamento básico, entre outros quesitos básicos que deveriam compor o rol básico
de direitos fundamentais desses cidadãos, para lhe oportunizar uma vida digna.
Nesse sentido, importante as considerações de Munanga, o qual ressalta que por mais que atualmente
tenhamos um discurso diferente, o racismo prossegue, e igual, ou seja, realizado pelos mesmos grupos
em direção a outros grupos, que continuam sofrendo as mesmas consequências. E acrescenta que

“o racismo hoje praticado nas sociedades contemporâneas não precisa mais do conceito de raça
ou da variante biológica, ele se reformula com base nos conceitos de etnia, diferença cultural ou
identidade cultural, mas as vítimas de hoje são as mesma de ontem e as raças de ontem são as
etnias de hoje. O que mudou na realidade são os termos ou conceitos, mas o esquema ideológico
que subentende a dominação e a exclusão ficou intato.” (2003.p.12-13)

Dessa forma, resta clara a necessidade de um agir social responsável, buscando construir realidades mais
e a necessidade de se ter como base o princípio norteador da justiça ambiental, o qual Bullard conceitua como:

A busca do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as pessoas, independentemente


de sua raça, cor, origem ou renda no que diz respeito à laboração, desenvolvimento, implementação e
reforço de políticas, leis e regulações ambientais. Por tratamento justo entenda-se que nenhum grupo
de pessoas, incluindo-se aí grupos étnicos, raciais ou de classe, deva suportar uma parcela despro-
porcional das consequências ambientais negativas resultantes de operações industriais, comerciais e
municipais, da execução de políticas e programas federais, estaduais, locais ou tribais, bem como das
consequências resultantes da ausência ou omissão destas políticas. (apud Acselrad, 2009)

Assim, com o intuito de reverter essa situação, criaram-se alguns projetos, que merecem destaque
na presente análise. Primeiramente, tem-se o blog “Combate ao Racismo Ambiental”, mantido por Tania
Pacheco, que tem como objetivo dar visibilidade ao assunto, com a elaboração de matérias sobre a temática.
Ainda, muito interessante é o projeto: Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde
no Brasil, idealizado pelo Núcleo Ecologias, Espistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde
(NEEPES), Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) e Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ).
Nesse sentido, o referido programa possui como objetivo principal: “tornar públicas vozes que
lutam por justiça ambiental de populações frequentemente discriminadas e invisibilizadas pelas
instituições e pela mídia” (Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil).
Além disso, o mesmo coaduna com o explicitado anteriormente, uma vez que refere que o propósito
da atualidade deveria ser a busca por uma sociedade fraterna e igualitária. Entretanto, tal ideia acaba
rechaçada quando “investimentos econômicos, políticas e decisões governamentais acabam por prejudicar
os direitos fundamentais de comunidades indígenas e quilombolas, agricultores familiares, pescadores
artesanais, comunidades tradicionais diversas, mas também trabalhadores e moradores das cidades que
vivem nas zonas de sacrifício” (Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil).
Sobre a didática do projeto, cita-se que o levantamento teve como recorte denúncias a partir de
janeiro/2006 e, para o fichamento dos casos, foram considerados, entre outros, os seguintes itens:

a) tipo de população atingida e o local do conflito, como: povos indígenas, operários/as,


quilombolas, agricultores/as familiares, moradores/as em encostas, ribeirinhos/as, pescadores/
as e outros/as tantos/as, urbanos ou rurais;

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a) tipo de dano à saúde (contaminação por chumbo, desnutrição, violência física, dentre
outros) e de agravo ambiental (desmatamento, queimada, contaminação do solo e das águas por
agrotóxicos, por exemplo);

b) a síntese do conflito e o contexto ampliado do mesmo, apresentando os principais


responsáveis pelo conflito, as entidades e populações envolvidas na luta por justiça ambiental, os
apoios recebidos ou não (como participação de órgãos governamentais, do Ministério Público e de
parceiros da sociedade civil), as soluções buscadas e/ou encontradas; e

c) os principais documentos e fontes de pesquisa usadas na pesquisa sobre o caso (Mapa de


Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil).

O mapa possui registro total de 605 (cento e cinco) conflitos, entretanto, há um filtro de pesquisa,
que viabiliza a análise específica. Assim, objetivando trazer um exemplo de acordo com o tema ora
problematizado, efetuou-se a seguinte pesquisa:

POPULAÇÕES: moradores em periferias, ocupações e favelas.


ATIVIDADES GERADORAS DE CONFLITOS: aterros sanitários, incineradoras e usinas de reciclagem.
DANOS À SAÚDE: geral
IMPACTOS SOCIAMBIENTAIS: geral

Como resultado, logrou-se o seguinte:


ATERRO DO ITAOCA, localizado no Município de São Gonçalo (RJ), possui 07 (sete) km² de extensão,
onde se despeja diariamente cerca de 800 (oitocentas) toneladas de resíduos domésticos, hospitalares e
industriais. Durante décadas, o lixão abrigou uma população de cerca de 400 (quatrocentos) catadores
de materiais recicláveis, com proteção precária. Para mais, o aterro também abriga em torno de 50
(cinquenta) crianças e adolescentes, as quais partilham com os adultos o trabalho pesado e o ambiente
insalubre. Assim, a infância dessas crianças se passa em meio à miséria, fome, ao risco de acidentes e
à exposição a gentes nocivos, o que pode comprometer irremediavelmente seu desenvolvimento. Por
fim, entre os agravos à saúde identificados pelas pesquisadoras no local, estão incluídos: acidentes,
intoxicações alimentares e químicas por metal pesado, infecções respiratórias, cutâneas e digestivas,
desidratações, anemias por má nutrição, fadigas por esforço intenso e exposição a altas temperaturas
do ambiente (Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil).
Conclui-se, dessa maneira, que o referido projeto constitui uma ferramenta de visibilidade muito
interessante, proporcionando o conhecimento e o estudo acerca de conflitos ambientais e sociais que
ocorrem em nosso país.
Além disso, percebe-se que o mesmo atua compreendendo a cidadania como respeitadora das diferen-
ças, afastando a hegemonia, seletividades e segregações, ou seja, qualquer critério considerado excludente.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em sede de análise conclusiva, percebe-se que a escravidão gerou o racismo, o qual persiste até
os dias atuais. Porém, em que pese toda questão ideológica sobre a cor da pele dos indivíduos, surge
à modalidade do racismo ambiental/ecológico, o qual retira direitos mínimos adquiridos pelos grupos
vulneráveis, como negros e indígenas.
Isto resulta em uma guerra diária do negro contra esse processo preconceituoso, que se aproveita
da vulnerabilidade social dos indivíduos para lhes privar as coisas mais comuns e essenciais para uma
vida digna, inclusive a sua propriedade, saúde, identidade cultural, educação, entre outros.
Embora se perceba uma tentativa de fortalecer o ideário de que no Brasil não há racismo, o
resquício deixado pelo conceito de raça biológica por vezes organiza o olhar da sociedade, ou seja, a
sociedade brasileira é racista em suas mais variadas formas de manifestação.
Para mais, o racismo, seja qual for sua modalidade, desrespeita os direitos fundamentais da
respectiva comunidade afetada, bem como fere a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, é necessário trazer essas questões para o debate, uma vez que a facilidade
dessas transgressões se dá pela falta de visibilidade e voz desses grupos em nossa sociedade atual.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Trabalhar em sentido contrário se faz medida essencial, devendo-se dar atenção e publicidade aos
movimentos e projetos que lutam por essa pauta.
Por fim, a busca por protagonismo e representatividade desses grupos vulneráveis em lugares de
poder se faz imprescindível para a reversão dessa situação degradante, pois, tendo quem fala, obrigato-
riamente haverá quem escuta, e partir disso, a mudança poderá ser mais palpável, ressaltando-se, aqui,
que o racismo não é um problema apenas dos negros, mas da sociedade brasileira como um todo.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

AS CLÁUSULAS DE SUPERCONSTITUCIONALIDADE COMO


MECANISMO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
SOCIAIS FRENTE AO RETROCESSO SOCIAL

Laerte Radtke Karnopp27

RESUMO: O artigo trata da extensão da expressão direitos e garantias individuais, como uma das
cláusulas pétreas estabelecidas pela Constituição Federal, e do princípio da proibição de retrocesso.
Tem como objetivo discutir a relação entre os dois institutos, considerando, como hipótese, que
as cláusulas pétreas são um instrumento para levar a cabo a proibição de retrocesso. Apresenta
considerações sobre a tensão entre constitucionalismo e democracia em razão do estabelecimento
de cláusulas pétreas, discute a possibilidade de estender a superconstitucionalidade para os direitos
fundamentais sociais e, por fim, traz reflexões sobre a proibição de retrocesso, para concluir que ambos
institutos se destinam à proteção do núcleo essencial dos direitos sociais, podendo-se considerar as
cláusulas pétreas como instrumento da referida proibição. Utilizou-se o método dedutivo e a pesquisa
bibliográfica.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais Sociais. Cláusulas Pétreas. Proibição de Retrocesso.

INTRODUÇÃO28

No direito constitucional, o instituto das cláusulas pétreas representa os limites materiais ao poder
de reforma da Constituição. Esses limites, gestados pelo poder constituinte originário, ao impedirem que a
Constituição seja modificada em certos pontos, dão azo ao paradoxo entre um governo limitado pelo direito,
no sentido de submeter a vontade política atual do povo às determinações pretéritas do constituinte originário
(constitucionalismo em sentido estrito), e um governo do povo (democracia) (BRANDÃO, 2007, p. 6).
Reformar a Constituição de maneira ilimitada e ostensiva poderia, portanto, deturpar o ideal
constitucional originário e transgredir o modelo de Estado proposto por quem o fundou. As cláusulas
pétreas, se compreendidas como pré-compromissos constitucionais (BRANDÃO, 2007, p. 6), limitam a
vontade do povo para afastar a possibilidade de decisões equivocadas que poderiam prejudicar seus
reais interesses, ao menos nos pontos mais sensíveis do ordenamento constitucional.
A Constituição Federal de 1988 estabelece os limites materiais do poder reformador no art. 60,
par. 4º. O inciso IV, que será objeto do presente trabalho, aponta, como um desses limites, os direitos e
garantias individuais, expressão que tem recebido várias interpretações por parte da doutrina no tocante
a sua extensão. Numa perspectiva ampliativa, que é a mais largamente aceita pela doutrina29, referido
inciso abrangeria não só os direitos individuais, mas também os políticos, os de nacionalidade e os sociais.
Partindo da premissa de que os direitos fundamentais sociais são protegidos pelo princípio da
proibição de retrocesso, seria igualmente aceitável afirmar que as cláusulas pétreas (art. 60, par. 4º,
IV, CF) seriam um consectário desse princípio, ao se aplicarem a essa categoria de direitos? Essa é a
indagação que mobiliza a reflexão aqui proposta.
Na busca de uma resposta, o método dedutivo é o que se afigura o mais apropriado. Para essa
abordagem, considera-se, como premissa maior, que os direitos fundamentais sociais recebem a
proteção do princípio de proibição do retrocesso; como premissa menor, tem-se que as cláusulas

27 Doutorando em Direito (UNISINOS). Mestre e Bacharel em Direito (UFPel). Licenciado em Letras (UFPel). Auditor Geral (IFSul).
28 Este artigo foi originalmente publicado em Bertoldi, Gonçalves e Nardello (2019, p. 37-59) e adaptado para as normas do
VIII Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia.
29 Parece, conforme será exposto no decorrer deste texto, que a interpretação mais ampliativa é capitaneada por Sarlet. De
acordo com o autor, para além dos direitos e garantias individuais expressos na Constituição, são assegurados, como cláusulas
pétreas, todos aqueles abrangidos pelo art. 5º, par. 2º, da CF, além dos direitos políticos e de nacionalidade (SARLET, 2018).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

pétreas visam, igualmente, proteger a efetividade dessa categoria de direitos. Logo, a conclusão seria
a de que as cláusulas pétreas são expressão da proteção conferida pela proibição do retrocesso em
matéria social, o que constitui a hipótese aventada no presente trabalho.
Para responder à questão suscitada, o texto será dividido em três seções. A primeira trará
considerações gerais sobre as cláusulas pétreas em matéria constitucional, expondo a discussão
existente na doutrina, especialmente nos textos de Rodrigo Brandão (2007; 2008), acerca do paradoxo
entre constitucionalismo e democracia. A segunda ocupar-se-á do problema da extensão das cláusulas
pétreas; nessa seção serão apresentados os diversos posicionamentos doutrinários sobre a extensão
da expressão direitos e garantias individuais, constante do art. 60, par. 4º, IV, da Constituição Federal
de 1988, como cláusula pétrea. Essa parte do estudo será subsidiada pelas reflexões de Rodrigo
Brandão (2007; 2008) e de Ingo Sarlet (2018), que possuem relevante produção sobre o assunto. Na
terceira seção, por seu turno, será abordado, em breves linhas, o princípio da proibição de retrocesso
e sua relação com os direitos fundamentais sociais. Serão utilizados, como principais referenciais, os
textos de Ingo Sarlet (2018) e de Victor Abramovich e Christian Courtis (2005; 2011), além das lições
do constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho (2003).
Em conclusão, demonstrar-se-á a relação entre a proteção conferida aos direitos fundamentais
sociais pelo princípio da proibição de retrocesso e pelas cláusulas pétreas, avaliando se estas são um
consectário daquele princípio, confirmando ou refutando, assim, a hipótese de trabalho.

1 CLÁUSULAS PÉTREAS ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: AS DUAS FACES DA


MESMA MOEDA

Os direitos fundamentais assumiram lugar de relevo na Constituição Federal de 1988, passando


a integrar, juntamente com os princípios fundamentais, o núcleo essencial formal e material da Carta.
Todo esse movimento se deve, em parte, ao período de autoritarismo que precedeu a construção
da vigente ordem constitucional (SARLET, 2015), o que explica a opção do constituinte de 1988 em
eleger, pela primeira vez no direito brasileiro, os direitos fundamentais como cláusulas pétreas30, de
modo a colocá-los a salvo das maiorias de ocasião.
Antes de adentrar na discussão doutrinária sobre a extensão do caráter superconstitucional aos
direitos fundamentais sociais, é oportuno recordar o paradoxo que as democracias constitucionais
encerram, segundo o qual há dois compromissos colidentes: “o ideal de um governo limitado pelo
direito para a proteção do indivíduo (constitucionalismo em sentido estrito) e o de um governo do
povo (democracia)” (BRANDÃO, 2008, p. 452).
Vincular as gerações atuais às decisões de gerações pretéritas poderia, prima facie, sugerir um
governo dos mortos sobre os vivos31, impedindo que prevalecesse a vontade política atual em favor
de escolhas que já não mais estariam de acordo com as necessidades iminentes. Isto caracterizaria
um déficit democrático, retirando da população a capacidade de autogoverno, em nome de um
constitucionalismo que estaria a limitar juridicamente o poder político.
Canotilho (2003, p. 1065) aponta como a verdadeira aporia do Estado Constitucional o seguinte
problema suscitado pelos limites materiais do poder de revisão: “será defensável vincular gerações
futuras a ideias de legitimação e a projectos políticos que, provavelmente, já não serão os mesmos
que pautaram o legislador constituinte?”. E oferece resposta no sentido de que, apesar de a geração
constitucional fundadora não poder vincular totalmente as gerações futuras às suas determinações,
há que se permitir que as constituições cumpram sua tarefa, razão pela qual não é possível que
elas sejam integralmente postas à disposição do poder de revisão, especialmente quanto este é do
legislador ordinário.

30 A Constituição de 1967 previu, como cláusulas pétreas, apenas a Federação e a República (art. 49, par. 1º, renumerado para
art. 47, par. 1º, pela Emenda Constitucional n. 1/1969); a Constituição de 1946 fixou a mesma previsão no art. 217, par. 6º; a
Constituição de 1937 não previu cláusulas pétreas; a Constituição de 1934 estabeleceu, como cláusula pétrea, apenas a forma
republicana federativa (art. 178, par. 5º); a Constituição de 1891 estabeleceu como cláusulas pétreas “a forma republicana
federativa, ou a igualdade da representação dos Estados no Senado” (art. 90, par. 4º); e a Constituição de 1824 não previu
cláusulas pétreas (ANDRADE, 2009).
31 Essa expressão é utilizada por Brandão (2008) e remete ao questionamento feito por Thomas Jefferson, que “se preguntaba
si una generación de hombres tiene el derecho de vincular a outra” (CASTRO, 2015, p. 265).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Assevera o constitucionalista português que, diante de um processo histórico em permanente


fluxo, para garantir a continuidade da Constituição, não se admitem nem uma revisão total nem
alterações que possam aniquilar a identidade de uma ordem constitucional histórico-concreta
(CANOTILHO, 2003), de modo que sua substância deve ser conservada pela reforma.
As cláusulas pétreas têm a preservação da identidade da Constituição como sua razão de ser,
caracterizando-se, de acordo com o pensamento de Karl Loewenstein (citado por CASTRO, 2015),
como um conjunto de medidas para proteger determinadas instituições e, ainda, princípios e valores
inerentes ou imanentes ao texto constitucional, não expressamente contidos em disposições ou
instituições constitucionais concretas. Nesse sentido, as garantias de eternidade têm o papel de
guardar a obra do constituinte originário, de modo a preservar a identidade ideológica da Constituição.
Alexandre de Moraes (2008), ao tratar especificamente das emendas à Constituição brasileira,
destaca o valor integrativo das manifestações do poder constituinte derivado e endossa a possibilidade
de alteração constitucional. A revisão constitucional, posto que não admite a ruptura total com a
Constituição vigente, permite a integração do texto escrito em tempos pretéritos com os valores
sociais, políticos, morais, filosóficos, etc. do presente e do futuro, tendo como balizadoras as cláusulas
pétreas, que ancoram as necessárias transformações a sua essência.
David Almagro Castro lembra que a constituição é norma essencialmente aberta, que pretende
normatizar os princípios e valores que permitem uma convivência social estável e duradoura. Não
é por outra razão que ela (a Constituição), “como reflejo normativo de una sociedad y un tiempo
histórico determinados, debe garantizar su adaptabilidad a aquellas mutaciones sociales ampliamente
respaldadas por el titular de la soberanía popular” (CASTRO, 2015, p. 271-272).
Apesar de denotar uma interpretação de cunho mais restritivo das cláusulas pétreas ao defender
maior amplitude de escolhas constitucionais ao titular da soberania popular e, em outras palavras,
alcançar possibilidades mais abertas de reformas ao poder constituinte derivado, o discurso do
autor defende o diálogo do texto constitucional com o momento presente e futuro, atendendo as
necessidades identificadas pela sociedade no momento atual. Esse processo – reafirmamos – há de se
balizar pelas cláusulas pétreas, que estabelecerão os limites materiais desse poder.
Retirar os direitos e garantias individuais do alcance de maiorias políticas de ocasião, positivando-
os como cláusulas pétreas (art. 60, par. 4º, IV, da Constituição Federal), foi uma estratégia adotada
pelo poder constituinte originário para a proteção do indivíduo, alçando prerrogativas inerentes à
dignidade humana acima do poder deliberativo dos órgãos estatais, em especial, do poder legislativo,
como poder de reforma constitucional.
No entanto, esse dispositivo foi (e ainda é) objeto de grandes controvérsias no que diz respeito
a sua interpretação e à determinação de sua extensão. Esse tema será objeto da próxima sessão.

2 SUPERCONSTITUCIONALIDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS: SÃO OS DIREITOS SOCIAIS


CLÁUSULAS PÉTREAS?32

Há correntes de diversas matizes que propõem a delimitação do alcance da expressão “direitos


e garantias individuais” como cláusula superconstitucional: duas delas com um entendimento mais
restritivo do que sejam esses direitos e uma terceira, que apresenta uma proposta mais ampliativa,
contemplando maior número de direitos e garantias. Neste trabalho, nos serviremos da proposta de
Rodrigo Brandão (2007; 2008) e de Ingo Sarlet (2018), que apresentam três caminhos extraídos da
doutrina para delimitar a extensão dos direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas.
A primeira corrente doutrinária defende que assumem a condição de cláusulas pétreas somente aqueles
direitos de cunho individual relacionados no art. 5º da Constituição Federal, numa interpretação literal da expres-
são “direitos e garantias individuais” (BRANDÃO, 2008, p. 462). Esse entendimento autoriza a admitir que há uma
hierarquização entre as diferentes dimensões de direitos fundamentais, privilegiando os de natureza individual.

32 O título desta seção remete ao texto de Brandão (2008), no qual o autor discute a inserção dos direitos sociais, políticos,
de nacionalidade e outros, de natureza diversa, no rol das cláusulas pétreas. Por discutir sobre quais tipos de direitos seriam
abrigados pelo art. 60, par. 4º, IV, da Constituição Federal de 1988, este trabalho utilizará amplamente a abordagem apresen-
tada pelo autor, no intuito de buscar uma resposta à pergunta lançada no título, de modo a introduzir a reflexão aqui proposta.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Nessa perspectiva, estariam excluídos do rol de cláusulas pétreas os direitos sociais (arts. 6º a
11), os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13) e os direitos políticos (arts. 14 a 17), assim como os
direitos de expressão coletiva do rol do art. 5º (SARLET, 2018).
Além de retirar direitos fundamentais com relevante conteúdo em dignidade humana da proteção
da superconstitucionalidade, a interpretação literal abrigaria, por outro lado, com a intangibilidade,
normas de baixa densidade axiológica inseridas no art. 5º, as quais se assemelham a normas
infraconstitucionais. Brandão cita os seguintes exemplos: a instituição do júri (inciso XXVIII); a forma
de cumprimento de penas privativas de liberdade, que dispõem sobre a existência de estabelecimentos
distintos de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (inciso XLVIII); e as espécies
de penas criminais, quais sejam a privação ou restrição de liberdade, perda de bens, multa, prestação
social alternativa e suspensão ou interdição de direitos (inciso XLVI) (BRANDÃO, 2008).
A interpretação gramatical do dispositivo em questão é inconveniente, segundo a moderna
hermenêutica jurídica, devido a três razões, apontadas por Brandão (2008): (1) a fluidez semântica e a
densidade moral dos direitos e garantias individuais, os quais possuem, por tal razão, um conteúdo muito
amplo, de difícil delimitação, da qual regras herméticas como as de interpretação literal não dariam conta;
(2) em razão da abertura material do catálogo de direitos fundamentais, operada por meio do par. 2º do art.
5º da Constituição Federal (1988); (3) a imprecisão terminológica do constituinte referente à positivação dos
direitos fundamentais do indivíduo, para o que utiliza diversas expressões ao longo do texto constitucional:
direitos e garantias fundamentais (Título II), direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I do Título II),
direitos sociais (Capítulo II do Título II), direitos políticos (Capítulo IV do Título II), entre outros.
Uma segunda corrente doutrinária, ainda favorável a uma interpretação restritiva do art. 60, par. 4º,
IV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), advoga que esse dispositivo deve ser interpretado de modo a
abranger somente os direitos fundamentais que podem ser equiparados aos direitos individuais do art. 5º.
É o ponto de vista defendido por Gilmar Ferreira Mendes (1997), que sustenta que a condição de cláusula
pétrea deve ser restrita somente ao que chama de “direitos e garantias individuais propriamente ditos”.
A dificuldade seria distinguir entre direitos individuais e não individuais. Se fossem considerados
como individuais somente aqueles direitos que impusessem ao Estado a função de defesa, especialmente
as ditas liberdades fundamentais33, teriam de ser incluídos na proteção das cláusulas pétreas os
direitos e garantias passíveis de serem equiparados aos direitos de defesa. Logo, direitos sociais
não prestacionais (liberdades sociais) também seriam cláusulas pétreas: é o caso do direito de greve,
de livre associação sindical, direitos políticos e à nacionalidade (SARLET, 2018). Nessa perspectiva,
restariam excluídos os direitos sociais, além dos difusos e coletivos. A Constituição Federal do Brasil
(1988) não apresenta dispositivo que possa sustentar essa interpretação, ao contrário da Constituição
Portuguesa (1976)34 e da Lei Fundamental de Bonn (BRANDÃO, 2008).
A terceira corrente doutrinária, por fim, reconhece a superconstitucionalidade ao conjunto dos
direitos fundamentais, independentemente de se caracterizarem como direitos de primeira, segunda
ou terceira gerações. Essa perspectiva hermenêutica, ao posicionar-se pela indivisibilidade e pela
interdependência entre as diversas categorias de direitos, adota como pressuposto a unicidade do
sistema de proteção dos direitos fundamentais, uma vez que a dignidade da pessoa humana também
é única, isto é, trata-se da existência de um único valor35.

33 Na ótica de Gilmar Ferreira Mendes (1997), apenas as liberdades fundamentais são caracterizáveis como cláusulas pétreas,
porque, ao impor ao Estado obrigações negativas (de abstenção), são, ao lado do princípio da separação dos poderes, instru-
mento por excelência de limitação do poder estatal.
34 De acordo com Ingo Sarlet, “Solução semelhante foi adotada no constitucionalismo português, no qual há disposição ex-
pressa estabelecendo que os direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias se encontram sujeitos ao mesmo regime ju-
rídico (art. 17 da CRP), destacando-se, nesse particular, a sua condição de limites materiais ao poder de revisão da Constituição
(art. 288 da CRP), o que se aplica, inclusive, às assim denominadas liberdades sociais (na condição de direitos análogos), ainda
que constantes no capítulo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Entre nós, à míngua de um regime jurídico diferencia-
do expressamente previsto na Constituição, tal entendimento não poderá prevalecer, já que não encontramos – conforma [sic]
assinalado alhures – qualquer sustentáculo no direito constitucional positivo para justificar uma distinção no que diz com a
fundamentalidade dos direitos sociais” (2018, p. 442).
35 Para Cunha e Scarpi, apesar da existência de dois grandes pactos de direitos humanos, a saber o Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (PICDP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), a divisão desses
direitos em dois grupos não resiste a nenhum critério de razoabilidade, posto que ambos tutelam o valor da dignidade da pes-
soa humana. Segundo os autores, “quando o indivíduo sofre uma injusta lesão a um direito decorrente de sua dignidade, po-
de-se afirmar que toda sua dignidade foi afetada. Sendo então verdade que a dignidade é um único valor, sua tutela não pode
ser fracionada, existindo, assim, uma unidade e uma indivisibilidade dos direitos humanos” (CUNHA; SCARPI, 2007, p. 72-73).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

De fato, na Constituição Federal (BRASIL, 1988), de forma sistêmica, não existe hierarquia entre
direitos de defesa e prestacionais; na verdade, o que há é um forte diálogo entre as diferentes gerações
de direitos fundamentais, que é marca da indivisibilidade e da interdependência.
Essa característica de interdependência entre as diversas gerações de direitos está de acordo com o atual
momento do direito internacional dos direitos humanos e com a posição da Organização das Nações Unidas
(ONU), expressa na Declaração de Viena (1993): “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de
maneira justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase” (citado por BRANDÃO, 2008, p. 464).
Ingo Sarlet apresenta uma série de argumentos que se contrapõem à interpretação que retira
os direitos fundamentais sociais do leque de cláusulas pétreas e que sustenta que, se o constituinte
originário realmente quisesse abarcá-los, o teria feito de modo expresso. Aduz o constitucionalista:
Tal concepção [a que exclui os direitos fundamentais sociais do rol de cláusulas pétreas] e todas aquelas
que lhe podem ser equiparadas esbarram, contudo, nos seguintes argumentos: a) a Constituição
brasileira não traça qualquer diferença entre os direitos de liberdade (defesa) e os direitos sociais,
inclusive no que diz com eventual primazia dos primeiros sobre os segundos; b) os partidários de
uma exegese conservadora e restritiva em regra partem da premissa de que todos os direitos sociais
podem ser conceituados como direitos a prestações materiais estatais, quando, em verdade, já se
demonstrou que boa parte dos direitos sociais são equiparáveis, no que diz com sua função precípua
e estrutura jurídica, aos direitos de defesa; c) para além disso, relembramos que uma interpretação
que limita o alcance das “cláusulas pétreas” aos direitos fundamentais elencados no art. 5º da CF acaba
por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos políticos, que igualmente não foram
expressamente previstos no art. 60, §4º, inc. IV, de nossa lei fundamental (SARLET, 2018, 442-443).

O primeiro argumento, referente à inexistência de hierarquia dos direitos individuais sobre os


sociais, e o último, que toca à interpretação restritiva das cláusulas pétreas, entende-se, já foram
suficientemente repisados neste texto. Não obstante, considera-se pertinente ampliar o segundo, o
qual dialoga profundamente com a característica da unicidade dos direitos fundamentais.
A própria Constituição Federal deixa clara a orientação social do Estado brasileiro desde o seu preâmbu-
lo: “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvol-
vimento, a igualdade e a justiça” (BRASIL, 1988). Há vários outros dispositivos na Carta de 1988 que conjugam
os valores da liberdade e da igualdade, os quais não podem ser delimitados de forma tão rígida e estanque.
Nesse sentido, Sarlet (2018) aponta para o fato de que o texto constitucional deixa transparecer que o Brasil é
um Estado democrático e social de direito, inclusive em boa parte dos princípios fundamentais, como é o caso
dos os arts. 1º, I a III (fundamentos da República) e 3º, I, III e IV (objetivos fundamentais da República).
Afora isso, Vera Lúcia Pereira Resende (2006) argumenta que o inciso IV, par. 4º, art. 60, da
Constituição Federal (BRASIL, 1988) menciona como cláusulas pétreas os direitos e garantias
individuais, sendo que não há, no decorrer do texto constitucional, nenhum título ou capítulo assim
denominado. Isto remete ao Título II, cuja designação é a mais semelhante (Dos Direitos e Garantias
Fundamentais), e que abrange não só os direitos individuais como também direitos sociais e outros.
Em 2004, foi apresentada ao Congresso Nacional, pela Deputada Federal Laura Carneiro, a Propos-
ta de Emenda à Constituição n. 313, de 2004 (BRASIL, 2004), que buscava a alteração do inciso IV aqui
discutido, para considerar cláusulas pétreas os direitos e garantias fundamentais. O objetivo, segundo
a justificativa apresentada na propositura à Câmara dos Deputados, era desfazer a controvérsia dou-
trinária à qual a imprecisão terminológica do dispositivo original deu ensejo. Entretanto, a Proposta foi
arquivada e tocou à doutrina a missão de delimitar o alcance do dispositivo constitucional.
Assim, entende-se que, se fossem incluídos somente os direitos de liberdade no rol das cláusulas
pétreas, pelo fato de representarem direitos a prestações estatais negativas, haveria uma associação
absoluta entre direitos de liberdade e direitos de defesa, por um lado, e direitos sociais e direitos de
prestação, por outro. Abramovich e Courtis (2005; 2011)36 combatem essa ideia, esclarecendo que,

36 Segundo os autores, todo direito acarreta ao ente estatal um feixe de obrigações positivas e negativas. Daí ser possível falar
em “níveis” de obrigações estatais, a exemplo da proposta de Fried van Hoof, para quem “podrían dicernirse cuatro ‘niveles’
de obligaciones: obligaciones de respetar, obligaciones de proteger, obligaciones de asegurar y obligaciones de promover
el derecho en cuestión. Las obligaciones de respetar se definen por el deber del Estado de no injerir, obstaculizar o impedir
el acceso el goce de los bienes que constituyen el objeto del derecho. Las obligaciones de proteger consisten en impedir que
terceros interfieran, obstaculicen o impidan el acceso a esos bienes. Las obligaciones de asegurar suponen asegurar que el
titular del derecho acceda al bien cuando no puede hacerlo por sí mismo. Las obligaciones de promover se caracterizan por
el deber de desarrollar condiciones para que los titulares del derecho accedan al bien” (ABRAMOVICH; COURTIS, 2005, online).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

muito mais do que a natureza da prestação estatal que se origina de cada uma dessas categorias de
direitos, trata-se de uma diferença de grau, visto que direitos de defesa podem originar obrigações
positivas do Estado e direitos prestacionais, obrigações negativas.
Toda essa construção teórica reforça o caráter de unicidade dos direitos fundamentais e combate o
entendimento das correntes doutrinárias que defendem que apenas os direitos e garantias de cunho individual
mereçam a proteção das cláusulas pétreas. Assim, os direitos fundamentais sociais integram os elementos
essenciais, isto é, a identidade da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Por isso, mesmo não expressamente
abrangidos pelas cláusulas pétreas, podem ser considerados limites materiais implícitos à reforma constitucional.
Outro argumento trazido por Ingo Sarlet (2018) e que reforça o caráter de cláusula pétrea dos
direitos que não são originariamente individuais é que grande parte deles, mesmo sendo de expressão
coletiva, têm titularidade individual. Ensina o autor:

É o indivíduo que tem assegurado o direito de voto, assim como é o indivíduo que tem direito à
saúde, assistência social, aposentadoria etc. Até mesmo o direito a um meio ambiente saudável e
equilibrado (art. 225 da CF), em que pese seu habitual enquadramento entre os direitos da terceira
dimensão, pode ser reconduzido a uma dimensão individual, pois mesmo um dano ambiental que
venha a atingir um grupo dificilmente quantificável e delimitável de pessoas (indivíduos) gera um
direito à reparação para cada prejudicado (SARLET, 2018, p. 443-444).

Apesar da respeitável opinião do autor, que vislumbra aspectos próprios de direitos de primeira
geração em direitos de segunda e terceira gerações (com o que se concorda, na esteira do que já foi
exposto), entende-se que não seja esse o melhor argumento. Isso porque esse raciocínio parece reforçar
a linha hermenêutica traçada pelas correntes que restringem o alcance da superconstitucionalidade
aos direitos individuais.
Desse modo, admitir-se-ia que os direitos à saúde, à assistência social, à aposentadoria e ao meio
ambiente saudável e equilibrado – para utilizar os exemplos do autor – somente detêm a condição de
cláusulas pétreas em razão de sua dimensão individual e não devido a sua fundamentalidade material
e/ou da sua dimensão coletiva e do aspecto da dignidade da pessoa humana que protegem.
Por esse motivo, é preferível argumentar em favor da unicidade dos direitos humanos,
consubstanciada na Declaração de Viena (1993), que coloca em situação de equivalência os direitos
de quaisquer gerações, prestacionais ou de defesa. Afinal, é inútil a tutela das liberdades civis a quem
não tem condições materiais de acessá-las (BRANDÃO, 2008).
Brandão (2007) se filia a uma concepção material dos direitos fundamentais para a delimitação da
abrangência das cláusulas pétreas; isto é, somente os direitos materialmente formais é que seriam intangíveis.
A função dos limites materiais do poder de reforma constitucional é a de proteger a identidade constitucional
e, portanto, do sistema dos direitos fundamentais e do seu núcleo essencial como um todo. Para atender a essa
finalidade, em geral, de acordo com Brandão (2007), os direitos sociais ostentam essa proteção; mas direitos
sociais que não possuem relação direta com a dignidade da pessoa humana e outros valores materialmente
fundamentais, como a igualdade, a liberdade, a democracia, etc. podem sofrer restrições ou até mesmo ser
suprimidos da Constituição Federal, sem que isso represente ofensa às cláusulas pétreas (SARLET, 2018).
Expõe o autor que conferir proteção superconstitucional a todos os direitos formalmente
fundamentais, sejam os expressamente constantes do texto constitucional, ou os decorrentes do regime
e dos princípios constitucionais, ou, ainda, os consignados em tratados internacionais, constituiria um
elevado nível de rigidez constitucional e reduziria o poder político das gerações pós-1988 em relação
ao constituinte originário. Seria a concretização do governo dos mortos sobre os vivos, vinculando-se a
vontade política atual às deliberações de uma maioria constituída no passado (BRANDÃO, 2007).
Distinta é a posição de Sarlet (2018), ainda que compartilhe da corrente que defenda a
abrangência dos direitos fundamentais de segunda e terceira gerações pelas cláusulas pétreas. Ao
passo que Brandão (2007) considera como cláusulas pétreas somente os direitos sociais materialmente
fundamentais, Sarlet (2018) entende que direitos sociais material e formalmente fundamentais são
protegidos pela superconstitucionalidade (SARLET, 2018).
É preciso levar em conta que Sarlet (2018) considera a existência de duas espécies de direitos
fundamentais, quais sejam: (1) os direitos formal e materialmente fundamentais, consignados na
constituição formal; e (2) os direitos apenas materialmente fundamentais, sem assento no texto
constitucional. Logo, o autor entende que
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

os direitos formalmente fundamentais necessariamente também o são em sentido material, pois


a admissão da existência de direitos apenas formalmente fundamentais, despidos de proteção
superconstitucional, significaria tolerar que os poderes constituídos (inclusive a jurisdição
constitucional) se substituíssem ao constituinte na determinação das posições jurídicas
merecedoras de proteção jusfundamental, a par de correr-se “sério risco de eliminar ‘autênticos’
direitos fundamentais” (BRANDÃO, 2007, p. 26).

Em síntese, ao tratar da superconstitucionalidade dos direitos sociais (ou de segunda geração) tem-se, na
terceira vertente hermenêutica, duas orientações: uma, que, com Brandão (2007), entende que nem todos os di-
reitos sociais devem ser abrangidos pela proteção das cláusulas pétreas, devendo ser eleitos apenas aqueles de
maior densidade axiológica; e outra, liderada por Sarlet (2018), que se posiciona no sentido da fundamentalidade
de todos os direitos dessa categoria, devendo, portanto, ser abrigados pelas cláusulas pétreas, sem exceção.
Apesar da cisão existente no interior dessa corrente, entende-se que ela representa a perspectiva
hermenêutica mais adequada, de acordo com uma leitura sistêmica da Constituição de 1988. Ampliar
o campo de proteção das cláusulas pétreas, ao invés de limitar o autogoverno e levar a uma crise
democrática, conduz à adaptação da Constituição à realidade subjacente, sem que tenha sua identidade
desrespeitada por excessos das maiorias de ocasião e pelos poderes constituídos.

3 A PROIBIÇÃO DE RETROCESSO NA EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS E AS CLÁUSULAS


PÉTREAS

Embora a acepção de proibição de retrocesso possa se aplicar a um amplo leque de direitos fundamen-
tais (senão a todos), é na seara dos direitos fundamentais sociais que o tema alcança maior repercussão.
Sarlet (2018) associa a proibição de retrocesso à noção de segurança jurídica, a qual, para o
autor, além de ser direito fundamental da pessoa humana, é princípio fundamental da ordem jurídica
estatal e internacional. Celso Bandeira de Mello (citado por SARLET, 2018) vincula a segurança jurídica,
necessária para o planejamento e a execução de projetos de vida, à dignidade da pessoa humana,
uma vez que esta não estará respeitada onde houver instabilidade jurídica.
A dignidade exige, no contexto da segurança jurídica, uma proteção não só contra atos de cunho
retroativo, isto é, aqueles que atingem diretamente os direitos adquiridos, o ato jurídico perfeito e
a coisa julgada, mas também um resguardo contra medidas retrocessivas. Para Sarlet, tais medidas
retrocessivas podem ocorrer da seguinte maneira:

[...] seja por meio de uma emenda constitucional [...], seja por uma reforma no plano legislativo,
suprimir determinados conteúdos da Constituição ou revogar normas legais destinadas à
regulamentação de dispositivos constitucionais, notadamente em matéria de direitos sociais,
ainda que com efeitos meramente prospectivos (2018, p. 454).

Desse modo, para que um ato do poder público caracterize retrocesso, não é necessário que seja
explicitamente retroativo, bastando que apresente efeitos meramente prospectivos. Tudo que levar a dispor
do núcleo essencial de um direito fundamental social, já concretizado pela lei, afetará, potencialmente, a
dignidade da pessoa humana, encontrando-se vedado pelo princípio da proibição do retrocesso.
Ao tratar do tema da proibição de retrocesso em matéria de direitos fundamentais sociais, é relevante
recordar do que dispõe o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) (1992),
em seu art. 2º, 137. Essa norma insere no direito internacional (e no direito brasileiro, em razão da sua
incorporação no ordenamento doméstico) a obrigação dos Estados de adotar medidas econômicas e técnicas,
até o máximo dos recursos disponíveis, para o pleno exercício dos direitos reconhecidos nesse Pacto.
Inserir uma norma no sentido de tornar obrigatório o progresso na oferta de direitos em um
instrumento que versa sobre direitos tradicionalmente classificados como prestacionais38 reforça o
caráter de fundamentalidade desses direitos e a convicção no sentido de que a terceira corrente

37 O PIDESC foi incorporado no direito brasileiro por meio do Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992.
38 A obrigação de progressividade em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais também pode ser encontrada na
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), art. 26 e no Protocolo de San Salvador, art.
1 (ABRAMOVICH; COURTIS, 2011).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

hermenêutica apresentada na seção precedente – a qual defende a inclusão dos direitos sociais sob o
manto das cláusulas pétreas – é a mais acertada no contexto constitucional brasileiro.
O reverso desse dever de progressividade veiculado pelo PIDESC (1992) é a obrigação de não
regressividade – ou proibição de retrocesso, para utilizar a terminologia de Sarlet (2018). Essa obrigação
impede o Estado de adotar medidas, políticas e normas jurídicas que piorem a situação dos direitos
econômicos, sociais e culturais. Significa dizer que o Estado tem uma obrigação ampliativa, sendo que
a redução desses direitos fere a obrigação internacional que assumiu (ABRAMOVICH; COURTIS, 2011).
Cunha e Scarpi muito bem esclarecem o princípio da progressividade e sua relação com a
proibição de retrocesso:

A melhor forma de se interpretar a progressividade é por meio do princípio do não-retrocesso, isto é,


a realização progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais significa que todos os direitos
assegurados no ordenamento jurídico vão se incorporando a um núcleo mínimo assegurador da
dignidade humana e por isso não podem ser violados ou suprimidos. [...] Da mesma forma, o
princípio do não-retrocesso implica, também, que as políticas públicas que tornem efetivos os
direitos humanos econômicos, sociais e culturais não podem sofrer solução de continuidade, apenas
aperfeiçoamentos, sob pena de ferir a princípio maior da razoabilidade, gerando, com a interrupção,
mais prejuízos do que benefícios aos seus destinatários (2007, p. 81-82).

Significa dizer que, à medida que os governos agregam aprimoramentos às políticas públicas ou
medidas legislativas ampliadoras de cada direito fundamental social, estes passam a integrar o que os
autores chamam de núcleo mínimo da dignidade humana, que não pode mais ser reduzido ou retirado39.
A violação desse núcleo essencial da dignidade humana leva a norma que incidir em retrocesso
a ser sancionada com o vício da inconstitucionalidade, por aniquilar a chamada justiça social. De
acordo com Canotilho,

O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos
direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (“lei da segurança social”,
“lei do subsídio de desemprego”, “lei do serviço de saúde”) deve considerar-se constitucionalmente
garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros
esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa “anulação”, “revogação”
ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial (2003, p. 339-340).

Portanto, há uma estreita relação entre a proibição de retrocesso e o princípio da maximização da


eficácia das normas constitucionais, constante do art. 5º, par. 1º, da Constituição Federal (SARLET, 2018).
Ao mesmo tempo em que a Carta impõe, por meio do art. 60, par. 4º, IV, limites materiais ao poder
reformador, para que não haja recuos na proteção dos direitos fundamentais já positivados, também
incumbe ao legislador o desenvolvimento e a concretização progressivos desses mesmos direitos.
Nesse sentido, a proibição de retrocesso se encontra presente no ordenamento jurídico em vá-
rias manifestações. Uma delas é a proteção contra a ação do poder constituinte reformador, ao esta-
belecer limites materiais para sua ação, especialmente para proteger certos conteúdos que compõem
o cerne material da constituição (SARLET, 2018).
Para concluir a presente seção, reforça-se que há, portanto, normas constantes de tratados
internacionais a vedarem o retrocesso em matéria de direitos sociais às quais o Estado brasileiro deve
obediência. Para além dessas normas, há dispositivos no direito doméstico, notadamente as cláusulas
pétreas, que estão a determinar limites ao poder constituinte derivado, para que não incorra nesses
mesmos retrocessos em caso de reforma constitucional.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As constituições, ao serem promulgadas, pretendem-se duradouras, de modo que possam, se


não esgotar, ao menos maximizar os objetivos a que se propõem. É certo que, por perdurarem no

39 Naturalmente, nada o Estado pode fazer contra situações de absoluta imprevisibilidade, como as crises econômicas, que
poderão forçá-lo a diminuir a oferta de algumas políticas públicas ou mesmo de extingui-las. Trata-se do princípio da reserva
do possível, que não será objeto de estudo do presente trabalho. A propósito, vide Canotilho (2003).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

tempo, é adequado que possuam mecanismos que permitam sua adaptação à realidade social, sem,
no entanto, perder sua essência.
Em breve síntese, é esse o papel das cláusulas pétreas: assegurar que a constituição preserve
sua identidade, apesar das modificações que sofrerá ao longo da sua vigência. Conforme exposto, a
Constituição de 1988 consignou, no art. 60, par. 4º, os temas intangíveis durante o processo de reforma
constitucional, sendo o inciso IV, que trata dos direitos e garantias individuais, o mais polêmico.
A hipótese de trabalho suscitada na introdução do presente artigo sugeriu que as normas
superconstitucionais seriam expressão da proteção conferida pela proibição do retrocesso em matéria
social. Em outras palavras, as cláusulas pétreas seriam espécie do gênero proibição de retrocesso.
Inicialmente, é necessário considerar que a corrente interpretativa mais amplamente aceita pela
doutrina acerca da extensão do art. 60, par. 4º, IV, é a de que a expressão “direitos e garantias
individuais” acaba por abranger direitos que vão além dos puramente individuais. Assim, estariam
incluídos no rol de cláusulas pétreas, além dos direitos políticos e de nacionalidade, também os direitos
fundamentais sociais. É bem verdade que essa corrente se subdivide em duas, como já foi apontado:
uma a defender que todos os direitos fundamentais, independentemente da fundamentalidade apenas
formal ou material e formal, sejam reconhecidos como cláusulas pétreas; outra, mais restritiva, a
afirmar que somente os direitos materialmente fundamentais devam ser intangíveis.
Para além desses limites materiais de reforma constitucional, que vedam – mais ou menos – o
retrocesso em matéria social, há o princípio da proibição de regressividade, estabelecido em tratados
internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. É o que sucede no PIDESC (1992),
que obriga os Estados a avançar, tanto quanto possível, no limite dos recursos, na efetivação dos di-
reitos econômicos, sociais e culturais.
Desse modo, pode-se identificar uma relevante distinção: a proibição de retrocesso tem seu
fundamento normativo em tratados internacionais de direitos humanos, ao passo que as cláusulas
pétreas são estabelecidas em cada Constituição, nos limites fixados no direito doméstico. Logo, estas são
uma das expressões da proibição de retrocesso e acabam funcionando como um instrumento normativo
estatal para dar cumprimento a esse princípio, uma vez que estabelecem que direitos fundamentais em
geral e direitos sociais em particular não podem sofrer piora em caso de reforma constitucional.
Assim, se todos os direitos fundamentais sociais forem considerados cláusulas pétreas, como defende
Sarlet (2018), esse instituto – o das cláusulas pétreas – à medida que protege o núcleo essencial de cada
direito, é que garantirá, no âmbito da Constituição Federal (BRASIL, 1988) a proibição de retrocesso. Se,
por outro lado, na esteira de Brandão (2007; 2008), for reconhecida a fundamentalidade de apenas alguns
direitos sociais, a proibição de retrocesso determinada pelo PIDESC (1992) poderá assegurar a proteção dos
demais direitos sociais não assegurados pelas cláusulas pétreas da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Apuntes sobre la exigibilidad judicial de los derechos sociales.
Jura gentium: Rivista di filosofia del diritto internazionale e dela politica globale, Firenze, 2005.
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA ADOLESCENTES


E JOVENS NO ESTADO BRASILEIRO:
UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS

Gilberto Natal Maas40


Anna Paula Bagetti Zeifert41

RESUMO: Este artigo é parte do trabalho de conclusão do curso de Direito defendido em julho de
2020 na UNIJUI-RS, intitulado “As políticas públicas para adolescentes e juventude no Estado brasileiro:
uma análise sob a ótica dos direitos humanos”. Neste artigo darei destaque ao tema judicialização
e efetivação de políticas públicas para adolescentes e jovens. O Estado brasileiro não atende esses
segmentos a contento, discrimina, trata-se desigual e não dá voz e vez. Para tanto, o Estado gasta
pouco é mal, gerando desperdício, busca efetivar projetos de grandes impactos midiático, presa a
quantidade e não a qualidade, falta agentes capacitados, compreensão da sociedade e precisa romper
com o velho paradigma das ações violentas do Estado aos adolescentes e jovens vulneráveis, Investir
na educação pública gratuita, de qualidade e inclusiva, sendo pré-requisito para o desenvolvimento
da sociedade.

Palavras-chaves: Políticas públicas; Adolescentes; Juventude; Estado; judicialização.

INTRODUÇÃO

A escolha do tema se justifica pela minha trajetória histórica de cidadão e profissional


comprometido com a causa e com a observação da incapacidade do próprio Estado em resolver
problemas relacionados aos adolescentes e jovens na sociedade. Nesse contexto, são “podados”
direitos de igualdade e de oportunidades de vida digna, o que infringe os direitos humanos, uma vez
que é dever do Estado garantir e assegurar esses direitos por meio de políticas públicas afirmativas
e inclusivas. Esses fatos geraram angústia profissional e, ao mesmo tempo, impotência para resolver
situações de risco e de vulnerabilidade social de adolescentes e jovens.
Vive-se numa sociedade em processo evolutivo contínuo e complexo, em que os fatos se alteram
continuamente e os contrastes são visivelmente postos em ação. Percebe-se, assim, que enquanto
alguns sujeitos usufruem altas tecnologias, outros vivem num passado muito distante; os conceitos
se multiplicam; a cultura prevalece nos grupos dominantes e o poder se alterna; descartar pessoas
torna-se cada dia mais evidente, prevalecendo o “ter” em detrimento do “ser”. Neste cenário, os
adolescentes e a juventude brasileira são vítimas de um Estado que não respeita o seu direito de
terem direitos. As políticas públicas são processos nos quais a sociedade brasileira deveria investir,
tornando, assim, a vida mais digna, respeitando a universalidade dos Direitos Humanos (MAAS, 2015).
O tema relativo a judicialização e efetivação das políticas públicas que permeiam os segmentos
citados, fundamenta as condições sociais e determinam a dignidade humana. Observa-se, nesse
sentido, que há carência de profissionais habilitados para trabalhar com adolescentes e jovens nos seus
municípios, bem como estruturas deficitárias e projetos carentes de informações precisas, gerando

40 Mestre em Direito pela UNIJUI-RS. Especialista em Educação pela FACEL-SC. Graduado em História, Estudos Sociais pela
UNIJUI-RS. Acadêmico bacharelado de Direito pela UNIJUI-RS. Professor de educação básica da rede Pública de IJUI-RS. e-mail:
gilbertomaas@hotmail.com.
41 Pós-Doutora pela Escola de Altos Estudos - Desigualdades Globais e Justiça Social: Diálogos sul e norte, do Colégio La-
tino-Americano de Estudos Mundiais, programa da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO Brasil) e UNB
(Capes PrInt). Doutora em Filosofia (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado
em Direitos Humanos - e do Curso de Graduação em Direito da UNIJUI. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos,
Justiça Social e Sustentabilidade (CNPq).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

gastos públicos com poucos resultados. Paradigmas são interrompidos e novos são implementados,
gerando dúvidas à sociedade.
Esse estudo busca-se analisar os espaços que promovam desenvolvimento sustentáveis dos
adolescentes por meio de ações inclusivas amparados em valores culturais e ambientais. Dentro
desses espaços busca assegurar e garantir aos adolescentes sujeitos de direitos, na qual os mesmos
possam ser agentes ativos para o desenvolvimento de uma sociedade local e por dimensão global.
Garantir política públicas a partir de mecanismos legais, onde o discernimento de direitos e deverem
são assimilados por segmentos da sociedade e que não necessitem de ações violentas e jurídicas para
exigir do Estados direitos que são dignos de quaisquer cidadãos.
Por fim, este estudo pretende ser um referencial para novas políticas públicas que observem a
conjuntura socioeconômica, histórica e política da sociedade, capaz de articular debates e possibilidades de
alternativas viáveis à efetivação de ações, principalmente aos grupos de adolescentes e jovens em condições
de risco e vulnerabilidade social. Somente assim será possível o acesso à justiça social, o desenvolvimento
da cidadania e da consciência, bem como a mobilidade social dentro de um Estado democrático de Direito.

1 A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

O Estado é a grande instituição política de poder, cujo papel é redefinido em cada período da
História e a cada crise econômica, política, cultural e social. A ele cabe assegurar valores e princípios
determinados pela própria sociedade. O modelo de Estado instruído e o Direito são opções políticas
determinantes das relações sociais e agentes transformadores da realidade. O Direito não é um
sistema completo e fechado em si mesmo, capaz de resolver todos os conflitos que se originam das
relações sociais, mas é interdisciplinar e precisa dialogar com outras ciências como forma de conciliar
situações conflituosas. O Estado, então, determina o que deve ou não fazer, ao mesmo tempo em que
possui um conjunto de normas jurídicas que orientam e penalizam os cidadãos sujeitos de direitos e
de deveres para viver em uma sociedade em harmonia.
Responsável pela institucionalização de políticas públicas, ao Estado cabe democratizar o acesso
aos direitos, promovendo a inclusão de segmentos que se encontram em dificuldades, permitindo
vida digna a todos os sujeitos de direitos, independente de cor, religião, gênero, grupo étnico e nível
econômico, conforme determina a CF/88.
A judicialização das políticas públicas no Brasil ocorre na medida em que os cidadãos passam
a ter discernimento de seus direitos em um processo de democratização gradual da sociedade,
ocasionada pelo fato de estar contemplado na Constituição Federal de 1988. Uma sociedade com maior
nível de informação e consciência passa a buscar com maior frequência seus direitos, sendo que a
judicialização não é escolha do Judiciário e, sim, do próprio sistema constitucional que possibilita esse
direito aos cidadãos. A Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã, possibilitou
uma avalanche de direitos que estavam reprimidos até então devido à vigência de um sistema não
democrático, enquanto os legisladores procuraram contemplar o máximo de direitos assegurados
pela Carta Magna que, por fim, o próprio Estado teve dificuldades de efetivar.
Diante deste contexto, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, buscou-se
assegurar direitos e garantias às crianças, aos adolescentes e aos jovens. O Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) e, mais tarde, o Estatuto da Juventude, decorrem desse processo de assegurar
direitos e garantias, e visam ampliá-los mediante uma estrutura político-administrativa do próprio
Estado. Neste sentido, as Fundações de Atendimento Socioeducativo (Fase), em cada unidade da
Federação, distribuídas em unidades de Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), têm como
objetivo privar de liberdade os adolescentes em conflito com a lei. Em nível federal, o Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (Sinase) regulamenta a execução das medidas socioeducativas
destinadas a adolescentes que praticam atos infracionais (MAAS, 2015).
O Sinase foi aprovado pela Lei n. 12.594/12 e se constitui numa política pública que se destina
à inclusão de adolescentes em conflito com a lei. Articula suas demandas a diferentes campos de
políticas públicas e sociais a fim de estendê-las aos Estados federativos e municípios. O Sistema vem
contemplar a efetivação de medidas de punibilidade aos atos infracionais previstos no Estatuto da

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Criança e do Adolescente em comparação ao sistema de punibilidade de adultos. Esse sistema tem


atuação semelhante à Lei de Execução Penal (LEP).
A estruturação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) permitiu a implementação das
medidas de média complexidade por meio da Liberdade Assistida (LA) e da Prestação de Serviço para
a Comunidade (PSC). Vem, assim, ganhando nova estruturação, com possibilidade de investir na
socialização dos adolescentes em conflito com a lei. A operacionalização das Medidas Socioeducativas
(MSE) por meio do SUAS representa, na atualidade, o principal recurso do poder público para assegurar
o acompanhamento dos adolescentes em liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade,
que ocorre a partir da aplicação da medida por parte do Poder Judiciário.
Em nível municipal foi implementado o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) que
tem papel de proteção básica e visa à prevenção da ocorrência de vulnerabilidade social e risco. Já
o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) visa à proteção social especial de
média complexidade, ou seja, o trabalho social que ocorre com as famílias e indivíduos em situação
de risco pessoal e social por violação de direitos. Assim, o CRAS previne situações de vulnerabilidade
social e o risco, enquanto o CREAS tem o papel de executar, coordenar e fortalecer a articulação dos
serviços socioassistenciais com as demais políticas públicas e com o sistema judiciário, cuidando das
consequências ocasionadas pela vulnerabilidade e risco social.
Diante do apanhado de leis, resoluções, estatutos e centros de referências que objetivam
implementar ações efetivas de políticas públicas afirmativas aos adolescentes em conflito com a
lei, principalmente àqueles que estão em condições de vulnerabilidade social, econômica, cultural e
familiar e que persistem em cometer atos infracionais, Maas (2015, p. 127) observa que,

Nesta retrospectiva da evolução das leis protetivas das crianças e adolescentes em conflito com a
lei, depara-se com um universo composto por interfaces e todas elas se apresentam como urgentes
para a discussão na sociedade. Diante das dificuldades denunciadas pelos indicadores sociais, a
internação tem um duplo sentido: garantir a sociedade “bem-nascida” o bem-estar e a segurança
e, por outro lado, punir os que ameaçam o sistema, em buscas alternativas para sobreviver. Esta
dicotomia precisa ser superada na atual sociedade, pois existe um conflito ideológico bastante
acirrado sobre a forma de tratar as crianças e os adolescentes em conflito com a lei.

A complexa estrutura das políticas públicas para atendimento aos adolescentes em atos
infracionais, bem como a organização administrativa ora implementada, cujo objetivo e abrangência
de ações não estão muito claros aos olhos da sociedade, são tentativas de resolução de problemas
sociais, principalmente entre as camadas sociais de vulnerabilidade. Muitas vezes, o poder midiático
sensacionalista induz a própria sociedade a aumentar a gravidade de um ato infracional como forma
de induzir o cidadão a determinadas medidas, por exemplo, a redução da maioridade para 16 anos,
o que dá a ideia de que a violência está ligada à forma como se pune os adolescentes.
Roseana Mara Aredes Priuli e Maria Silva de Moraes (2007, p. 1191) corroboram com essa ideia,
e afirmam que,

Sendo o Estatuto recente, a jurisprudência de que trata essa lei também tem que fazer jus à sua
inovação: daí a necessidade do jurista adequar seu pensamento e sua prática ao ECA. Sob esta
perspectiva, a gravidade do ato infracional não basta para legitimar a aplicação da internação; trata-se
de uma condição necessária, mas não suficiente para tal. Tampouco bastam agregar-se à gravidade de
um ato infracional menções genéricas a passagens anteriores, maus antecedentes, vida ociosa, falta
de respaldo familiar, como se tais circunstâncias reclamassem de forma natural a segregação como
estratégia ressocializadora. A caracterização da excepcionalidade motivadora da internação requer ao
magistrado um juízo mais profundo e considerações mais amplas sobre múltiplos aspectos do caso,
que vá além dos automatismos lógico-dedutivos utilizados nas sentenças.

Na afirmação supracitada, as autoras reafirmam o que se evidencia no atual contexto em relação


ao novo paradigma instituído a partir da institucionalização do ECA: a falta de jurisprudência e de
prática do magistrado, que necessita de aptidão especial, sensibilidade e profundo conhecimento
em múltiplos aspectos para determinar a sentença de um ato infracional cometido por menores de
18 anos. Todas as experiências de magistrados na determinação de sentenças em relação aos atos
infracionais de adolescentes em conflito com a lei tiveram como marcas a criatividade do magistrado e
o envolvimento da família, das autoridades e da sociedade como um todo e do próprio reconhecimento

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de que o adolescente em conflito com a lei é um cidadão em pleno desenvolvimento, que poderá
superar a prática de infrações se lhe forem assegurados os seus direitos e garantias.
Os desafios e as reflexões sobre a efetivação de políticas públicas para adolescentes e jovens
permeiam uma realidade ampla e complexa que, diante de dificuldades e diversidades de ideias na
sociedade, necessitam superar preconceitos e estigmas que estão presentes no cotidiano popular.

2 EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS AOS ADOLESCENTES E JOVENS

Falar em políticas públicas para adolescentes e jovens é complexo e incipiente na história político-
social brasileira. No imaginário sociocultural popular esses segmentos carregam estigmas que precisam ser
superados, superando as ideias de benevolência, subserviência, caridade e violência. As políticas públicas
apresentam diretrizes nacionais para o encaminhamento e enfrentamento das problemáticas sociais, e
criam mecanismos para a sua operacionalização em consonância com diversas áreas. Obedecem, assim,
a determinações constitucionais e buscam o desenvolvimento da cidadania e o processo de inclusão dos
adolescentes e jovens, a fim de proporcionar oportunidades iguais a ricos e pobres.
As políticas públicas, portanto, devem atender a grupos de adolescentes e jovens que estão em
processo de exclusão e vulnerabilidade política, social e econômica, e que historicamente tiveram
seus direitos negados pelo Estado. Este, por sua vez, tem a função de promover políticas públicas
afirmativas que visam emancipar adolescentes e jovens em vulnerabilidade social, tais como: a
universalização da educação em todos os níveis e de qualidade, o acesso a atividades culturais e de
lazer, atendimento à saúde, moradia, infraestrutura pública nas periferias e trabalho, respeitando as
suas fases de desenvolvimento psicológico, intelectual e físico.
Marília Pontes Sposito e Paulo Cesar Rorigues Carrano (2003, p. 35) complementam, afirmando que,

Embora existam iniciativas, estudos e algum delineamento para a constituição de uma política
pública para a área são ainda predominantes ‘experiências fragmentadas, com fraco poder de
impacto e disseminação não favorável à criação de elementos consistentes de uma nova cultura
política na formulação de ações para a juventude’.

Observa-se, assim, que as políticas públicas propostas pelo Estado para atender principalmente
grupos vulneráveis de adolescentes e juventude são constituídas para não atender a real necessidade,
pois são fragmentadas, têm fraco poder de impacto e são inconsistentes, incapazes de romper e
constituir uma nova cultura política. O que faz o Estado está muito aquém do que precisa ser feito, pois
apenas remedia problemas sem atacar a sua origem, como políticas comumente presenciadas, que
discutem prisões, rigidez de leis, redução da maioridade penal, falta de estabelecimentos prisionais,
de profissionais da segurança pública e de recursos. Pouco se fala, porém, em qualificar o ensino e
facilitar o acesso e a permanência de adolescentes e jovens, de ampliar espaços de lazer, dignificar o
trabalho dos adolescentes e jovens, priorizando a sua formação.
Comumente se ouve falar que os adolescentes e jovens provenientes de grupos de periferia
são desocupados, perigosos, vagabundos e violentos, o que se reflete no precário estabelecimento
de ações de políticas públicas para a mudança de concepção sociocultural que, historicamente,
estigmatiza esse grupo. A inexistência e desarticulação de uma política em torno desse grupo refletem
no desinteresse e na falta de priorização do poder público, embora legalmente reconhecidos enquanto
prioridade nacional e sujeitos portadores de direitos.
Em 2009, a Unicef apontou que “44% dos brasileiros menores de 18 anos têm seus direitos
descumpridos”. Não são necessários, porém, muitos estudos para perceber que a maior parte desse
índice é composta por crianças e adolescentes de periferia, pobres, negros, de pouca escolaridade
que, na melhor das hipóteses, abandonaram a escola para trabalhar em empregos precários, perigosos
e informais como forma de ampliar a renda familiar. Muitos, porém, foram instrumentalizados para
o tráfico de drogas e crimes de roubos, furtos e homicídios, e respondem por atos infracionais,
conforme prevê o art. 112 do ECA. Estão, assim, sentenciados por Liberdade Assistida (LA), Prestação
de Serviço Comunitário (PSC) e Medidas de Intervenção em estabelecimentos, pois são reincidentes,
o que amplia a possibilidade de uma vida pregressa ao crime.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O sistema educacional brasileiro tem papel primordial na emancipação dos adolescentes


e da juventude, pois é neles que estão as ferramentas que determinam o sucesso do cidadão. É
pela Educação que se deve sensibilizar, tocar, atrair, fomentar, descortinar horizontes, estimular o
pensamento, a criatividade que nutre a autoestima. Neste sentido, os educadores são desafiados em
suas práticas pedagógicas a aprimorar o desenvolvimento humano, pois ninguém nasce portador
da virtude, ela é construída a partir da vivência, das teorias e práticas cotidianas da instituição que
garante o processo ensino-aprendizagem.
É visível o momento em que as políticas públicas de acesso à Educação se tornam eficazes,
como se pode observar no exemplo a seguir:

Declaro extinta a medida socioeducativa. E tu não sabes com que prazer o faço. Vai com Deus.
Proferida com emoção maternal, a decisão da juíza Vera Deboni da Vara de Infância e Juventude
de Porto Alegre, autorizou Luiza42, 18 anos, a deixar o Centro de Atendimento Socioeducativo
Feminino (CASEF) e ensaiar os primeiros passos para um dia, quem sabe, estar na cadeira mais
alta de uma sala de audiências. Aprovada para cursar Direito em uma universidade particular do
interior, a jovem saiu do Fórum na última 5ª feira, apanhou seus pertences na sede do CASEF, na
vila Cruzeiro, despediu-se das amigas e embarcou com seus pais em um ônibus que a levaria de
volta à sua cidade de origem. Luiza recuperou na fundação socioeducativo o gosto pelos estudos
durante os nove meses de internação. Voltou à escola, terminou o Ensino Médio e participou com
dedicação do cursinho pré-Vestibular oferecido pelo Programa de Oportunidades e Direitos (POD)
do governo do Estado (Zero Hora, 2012, p.10, apud MAAS, 2015, pp. 145-146).

Este é um dos poucos exemplos de políticas públicas bem sucedidas, por isso teve repercussão
midiática. O diferencial para que o sucesso ocorra está determinado pelas oportunidades concedidas
por instituições preparadas a elaborar projetos de políticas públicas que possibilitam um trabalho
interdisciplinar. Contam, para tanto, com o envolvimento de vários segmentos que contribuem para
o sucesso e a recuperação de adolescentes que constam na contabilização positiva de socialização.
Nesse sentido, é relevante observar a entrevista com um ex-conselheiro tutelar (A43), que descreve a
sua prática e concepção sobre os adolescentes em conflito com a lei em relação às políticas públicas
atualmente em vigor:

Entrevistador: Existem políticas públicas que amparam os adolescentes em conflito com a lei?
Entrevistado: Eu acho que alguns programas, projetos até que se tem, o que falta mesmo é maior
qualidade, nós não temos que trabalhar com quantidades de projetos, mas com resultados que
cada projeto vai ter em relação a cada adolescente e a cada família, nós temos que trabalhar em
cima de resultados, qual é o resultado que nós temos com os projetos e programas sociais? Essa
avaliação precisa ser feita ao implantar determinadas políticas públicas voltadas à ressocialização,
tem que fazer uma pesquisa de campo, ver quais os tipos de adolescentes que estão em conflito
com a lei, o quê o levou a atual situação? Um estudo das famílias que se encontram nessa situação,
pra daí criar um programa de políticas públicas para esses adolescentes. Eu acredito que fazendo
um estudo, um levantamento, oferecer cursos de qualificação, trabalhando a autoestima dos
adolescentes e das famílias, mostrando uma nova perspectiva de vida, aí eu acho que podemos
ter maior resultados (Ex-conselheiro apud MAAS, 2015, p.140).

A partir do fato relatado fica claro que se deve conhecer a realidade dos adolescentes em conflito
com a lei, bem como da sua família. Os programas de políticas públicas devem considerar a qualidade
e não a quantidade de ações, e devem fazer um estudo de viabilidade de determinados programas a
fim de verificar a sua eficácia, qualificando os agentes envolvidos e lhes dando condições estruturais
para que determinados projetos sejam efetivados. É comum observar o desperdício de dinheiro
público sem um estudo profundo, tornando seus resultados insignificantes.
Observa-se, também, a precariedade dos espaços públicos destinados à recreação e lazer
dos adolescentes e jovens das periferias, o que mostra que o poder público pouco se preocupa
com os segmentos vulneráveis da sociedade. Faltam quadras de esportes e de skate, o que faz

42 Nome fictício. A identidade da jovem foi preservada de acordo com determinação do Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (ECA).
43 Designação fictícia do ex-conselheiro tutelar que trabalhou na função eletiva no período 2003 a 2009 no município de
Ijuí-RS. Trata-se de uma forma de preservar o sigilo ético instituído pela pesquisa de campo realizada durante a elaboração
da dissertação de Mestrado em Direitos Humanos, cujo título é: “Direitos Humanos e Inclusão social de adolescentes em
conflito com a lei: estudo de caso na Região Noroeste do RS”, defendida em 31 mar. 2014.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

com que muitos esportes sejam realizados nas ruas, dividindo espaço com veículos. Da mesma
forma, os estabelecimentos escolares estão sucateados e murados para impedir o acesso de poucas
infraestruturas que serviriam para espaço de lazer. Nas proximidades do centro, todavia, encontra-
se uma infraestrutura um pouco mais adequada para os adolescentes e jovens poderem praticar
atividades de recreação, esportes e lazer.
As políticas públicas, portanto, são determinantes para a construção de uma sociedade íntegra,
com princípios, valores, caráter e saúde psicológica e desenvolvimento físico adequado, condições
para que o sujeito possa desenvolver todas as fases de seu desenvolvimento humano de forma
adequada. Os agentes públicos necessitam de maior discernimento sobre o que é ser criança, o que
é ser adolescente, o que é ser jovem, o que é ser adulto e, por fim, o que é ser idoso. Esse olhar é
imprescindível para a sociedade viver de forma harmônica, sem conflitos e sem sequelas.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A elaboração deste estudo visa ampliar o debate sobre o tema na dimensão e complexidade. “As
políticas públicas para adolescentes e jovens no Estado brasileiro: uma análise sob a ótica dos Direitos
Humanos” relaciona-se a inserção de políticas públicas aos adolescentes e jovens que historicamente
estão excluídos da sociedade, principalmente, grupos vulneráveis que historicamente envolvem-se
em atos infracionais. Da mesma forma, visa compreender a judicialização e efetivação das políticas
públicas para os adolescentes e jovens brasileiros, sendo que os mesmos são sujeitos de direitos e
devem ter proteção especial do Estado por meio de normas jurídicas.
Neste sentido, o estudo enfatiza as políticas públicas afirmativas determinantes para o sucesso
do processo de inclusão de adolescentes e jovens na sociedade. Pequenos projetos bem sucedidos
revelam êxito, não sendo necessários elevados investimentos, basta assegurar qualidade ao invés
de quantidade, aliado à melhor qualificação e empenho dos agentes responsáveis, trabalhando com
uma realidade possível de efetivação do projeto. Mas observa-se o desejo do Estado em implantar as
políticas públicas de impacto com altos investimentos e poucos resultados, com um viés propagandista
e midiático, não importando com o resultado e assim, ocorrendo desperdícios de recursos público
com má aplicação e mal administrado, não chegando a atender os verdadeiros demandados.
Quanto a institucionalização de órgãos oficiais responsáveis pela implementação e efetivação
das políticas públicas criados recentemente estão desarticuladas e imaturas nos 3 entes federados,
pois partiram de projetos teóricos sem projetos pilotos, constatando-se como problemas a pouca
comunicabilidade entre os entes federados, desqualificação de seus agentes e mudança abruptas dos
objetivos propostos pela união que é a responsável para implantar e viabilizar as ações. Observa-se um
organograma administrativos para efetivar as políticas públicas, criados a partir do Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativa(SINASE), Sistema Único de Assistência Social(SUAS), Centro de Referência
de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social(CREAS) que não
se efetivaram na prática em suas bases de ação, na qual são desconhecidos na sociedade de massa.
Para finalizar, observa-se que “adultocentrismo” da sociedade é uma forma de não reconhecer
os adolescente e jovens na sociedade como sujeitos de direitos que consideração uma agressão
aos direitos humanos, onde há discriminação, estigma e preconceito por ser adolescentes e jovens,
muitas as vezes sendo vistos como incapazes que não tem voz e vez para ditar seus próprios desejos,
anseios e sonhos. Mudança desse paradigma cultural é tão necessário para a sociedade evoluir e se
desenvolver de forma harmônica e sadia.
Conclui-se, então, que as políticas públicas devem assegurar direitos e garantias a todos os
segmentos para sua efetivação, e que o Estado deve dar atenção maior aos grupos vulneráveis da
sociedade e, assim, promover a igualdade. Neste sentido, a judicialização das políticas públicas é um
mal necessário que visam atender grupos (adolescentes e jovens) esquecidos pelo Estado, que se
efetiva com o acesso à educação gratuita e de qualidade é um pré-requisito para a sociedade emergir
e sanar tais dificuldades, viabilizar políticas públicas que dignificam os cidadãos na efetivação dos
Direitos Humanos. Isso não condiz somente para alguns, mas para todos aqueles que buscam vida
digna em uma sociedade democrática, inclusiva e plural.

102
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFERÊNCIAS

MAAS, Gilberto Natal. Direitos humanos e inclusão social de adolescentes em conflito com a
lei: estudo de caso na Região Noroeste do Estado do RS. Ijuí, RS: Editora GD, 2015.

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Ciências & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 12, n. 5, set./out. 2007. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232007000500015. acesso em 30.ago 2019.

SINASE. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, 2016.Disponível: https://www.mdh.gov.


br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/sistema-nacional-de-atendimento-socioeducativo-
sinase. Acesso em: 19.01.2020.

BRASIL (Constituição, 1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 42. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do


Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/
l8069.htm. Acesso em: 10 set. 2019.

BRASIL. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre
os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema
Nacional de Juventude – Sinajuve. Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12852. htm. Acesso em: 31 ago. 2019.

SPOSITO, Marília Pontes; CARRANO, Paulo Cesar Rodrigues. Juventude e políticas públicas no Brasil.
Revista Brasileira de Educação, set./dez. 2003, n. 24.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO ENFRENTAMENTO À


VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO BRASIL:
A JUSTIÇA RESTAURATIVA ENQUANTO POLÍTICA
PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA

Jaqueline Beatriz Griebler44


Rosane Teresinha Carvalho Porto45

RESUMO: O presente artigo possui como intuito central, verificar questões referentes à violência
contra a mulher, principalmente no momento atual de pandemia, bem como analisar políticas públicas
de acesso à Justiça que auxiliem para enfrentamento desses casos, verificando a possibilidade de
aplicação da Justiça Restaurativa, tanto para as vítimas como para os agressores. Ainda, a pesquisa
propõem se, a responder os seguintes questionamentos centrais: quais são os limites e as possibilidades
das práticas restaurativas como política pública judiciária, buscando ser uma garantia de acesso
à justiça às mulheres vítimas de violência doméstica intrafamiliar no Brasil? E qual a importância
de potencializar com a Justiça restaurativa políticas para trabalhar com os homens (agressores) ou
ofensores de violência? Na pesquisa utilizou-se o dedutivo como método de abordagem, utilizou-se o
histórico, com base em pesquisa bibliográfica e documental.

Palavras-chave: Violência; Mulher; Justiça Restaurativa; Pandemia; Acesso à Justiça.

INTRODUÇÃO

Muitas mulheres brasileiras são vítimas de violência doméstica e intrafamiliar cometida das mais
diversas formas cruéis e desumanas pelos homens. Embora o Brasil tenha legislações protetivas e de en-
frentamento a essa chaga social, não tem sido efetiva nos seus objetivos. Nessa senda, pensa-se ainda nas
políticas públicas para prevenção e enfrentamento como via de efetividade. Com relação a isso o Poder
Judiciário por meio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem atuado significativamente na edição e elabo-
ração de políticas públicas judiciárias para construir caminhos que resultem de maneira efetiva na proteção
as mulheres. O CNJ tem grupos de trabalho constituído por seus conselheiros que debruçam -se sobre o
tema para propor além de Resoluções possibilidades das mulheres garantirem seus direitos sem medo.
No entanto, o próprio Poder Judiciário precisa se reinventar e não ser uma espaço munido de
princípios patriarcais advindos de um machismo estrutural. Significa também dizer que o acesso à
justiça e o acesso à jurisdição além de não serem sinônimos, precisam ser analisados e oferecidos
as mulheres vítimas de violência doméstica a partir da perspectiva humanitária e fraternal. Não
resta dúvidas que a mulher é um ser humano, que nas últimas décadas com o avanço da legislação
conhece os seus direitos e sabe qual é o seu lugar. Contudo, o desafio também está em romper com
o ciclo adoescedor da violência. Por conta disso, tem-se como problema de pesquisa, os seguintes
questionamentos: quais são os limites e as possibilidades das práticas restaurativas como política
pública judiciária, para ser uma garantia de acesso à justiça as mulheres vítimas de violência doméstica
intrafamiliar no Brasil? E qual a importância de potencializar com a Justiça restaurativa políticas para
trabalhar com os homens (agressores) ou ofensores de violência?

44 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do


Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ e bacharel em Direito pela UNIJUÍ. Integrante do Grupo de pesquisa Biopo-
lítica e Direitos Humanos (CNPq).
45 Pós-doutora em Direito pela Universidade La Salle (RS). Doutora em Direito pela UNISC(RS). Mestre em com bolsa da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Professora na UNIJUÍ e na UNISC. Integrante do
Grupo de Pesquisa Biopolítica & Direitos Humanos (CNPq).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Como ponto principal, o texto expõe, a Justiça Restaurativa enquanto política Nacional de no
âmbito do Poder Judiciário, bem como no tratamento e adequação de conflitos. Os resultados obtidos
demonstraram que a partir da Resolução 225 do CNJ/2016, a Justiça Restaurativa foi institucionalizada
tornando-se uma política pública no âmbito do Poder Judiciário, como uma via de Acesso à Justiça o
enfrentamento a violência doméstica e intrafamiliar.
Para a correta construção do trabalho utiliza-se o método dedutivo como método de abordagem,
que se desenvolve sobre proposições gerais a análise específica do acesso à justiça e da Justiça
Restaurativa. No que se refere aos métodos de procedimento utiliza-se o histórico, realizando o
aprofundamento do estudo com base em pesquisa bibliográfica e documental, fundamentada em
dados primários e secundários, como por exemplo, livro, artigos científicos, revistas e períodos
qualificados dentro da temática proposta. Por fim, o trabalho é dividido em três capítulos, no qual no
primeiro capítulo, é trabalhado a questão do acesso à Justiça e de seus entornos e obstáculos, já no
segundo capítulo, é abordado sobre os direitos das mulheres e seus avanços recentes. O terceiro, por
sua vez, trata-se de um capítulo destinado ao estudo da atuação do Poder Judiciário no enfrentamento
à violência contra as mulheres, fazendo uma análise também, em algumas medidas e políticas públicas
utilizadas e que podem vir a ser usadas durante a pandemia da COVID-19, momento este, que se
tornou dupla pandemia para as mulheres vítimas de violência doméstica.

1 ACESSO À JUSTIÇA: ENTORNOS E OBSTÁCULOS

O Acesso à Justiça é um direito fundamental de todo o cidadão que busca dentro do seu Estado e
da sua sociedade respaldo jurídico para assegurar a proteção e as garantias dos seus direitos. Abordar
sobre este direito não é tarefa simples, no atual cenário político, econômico e jurídico brasileiro.
Porém, é relevante tratar e relembrar, o quanto ter reconhecido como um direito fundamental à pessoa
representou uma conquista, pois algumas barreiras foram ultrapassadas. No entanto, ainda não se
atingiu o ideal de justiça, devido a várias circunstâncias, que se justificam pelo sistema jurídico e
jurisdicional da sociedade brasileira, que está ainda reproduzindo uma gestão judiciária conservadora,
tradicional, baseada em uma cultura jurídica dominante e controladora. As atuais práticas sociais,
ainda não deram um grande espaço para o exercício da cultura democrática e não reprodutora do
pensamento da elite colonizadora do Brasil. O direito em tal contexto é aplicado para atender ao
interesse de poucos, em razão do poder e da necessidade de manter os privilégios de alguns cidadãos
de primeira classe, como denomina Velho (1996, p. 235). O que pode resultar, nas palavras de Santos
(2007, p. 8) a “[...] frustação sistemática das expectativas democráticas pode levar à desistência da
democracia e, com isso, à desistência da crença no papel do direito na construção da democracia”.
Em outras palavras, a justiça é considerada um direito humano e um caminho para a redução
da pobreza, por meio da promoção da equidade econômica e social. Onde não há amplo acesso a
uma Justiça efetiva e transparente, a democracia está em risco e o desenvolvimento sustentável não
é possível. Assim, a ampliação do acesso à Justiça no Brasil é uma contribuição positiva no sentido da
ampliação do espaço público, do exercício da cidadania e do fortalecimento da democracia. Por outro
lado, não dá para deixar de levar em consideração a importância de contextualizar acerca do tema, e de
algumas conquistas empreendidas para que o cidadão esteja a caminho da construção de um espaço
democrático, com base na justiça social. Além disso, a forma de jurisdição e de Acesso à Justiça prestada
pelo Estado, mesmo que arraigado em uma cultura jurídica conservadora, sofreu e está incorrendo em
mudanças que podem ainda, assegurar o exercício da cidadania, não pela classe que ocupam, ou pelo
acesso a privilégios, mas pelo status de cidadão que ocupam em um Estado de Democracia.
A incidência de conflitos está aumentando visivelmente na sociedade. De um lado, por falta
de tempo as pessoas estão se tornando individualistas, deixando de dialogar com os outros, além
da perda dos laços de solidariedade, o que gera uma incompreensão entre os indivíduos. De outro
lado, a sociedade vivencia novos conflitos, em decorrência das transformações sociais, econômicas e
políticas, do crescimento excessivo da população urbana, da industrialização, do grande contingente
de desempregados, do surgimento de novas tecnologias, do elevado índice de violência, fazendo com
que os conflitos tenham alto grau de complexidade (AMARAL, 2009, p. 39).

105
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O sistema judicial de muitos países latino-americanos, como europeus, africanos e asiáticos


passaram por reformas, se tornando protagonistas do contexto sócio jurídico. No entanto, mesmo
com a criação de outras políticas de gestão, como no caso do Brasil que criou o Conselho Nacional
de Justiça – CNJ, para modernizar o Judiciário e se tornar uma justiça de proximidade, dialogando
com a comunidade e qualificando a sua prestação de serviço, ainda carece de modernidade, eficácia
e eficiência nas suas políticas públicas de tratamento de conflitos. Entre outras circunstâncias,
mister um judiciário eficaz, rápido e independente. Nesse contexto de necessárias mudanças, está a
precarização dos direitos econômicos e sociais passando a ser um motivo de procura do judiciário. “O
que significa que a litigação tem a ver com culturas jurídicas e políticas, mas tem a ver, também, com
um nível de efetividade da aplicação dos direitos e com a existência de estruturas administrativas que
sustentam essa aplicação” (SANTOS, 2007, p. 17).
Sabe-se que o conflito é bastante comum entre os seres humanos, tendo em vista a disputa pelos bens
da vida, sendo poucos os bens e muitos os interesses. Há três diferentes formas de se obter a solução de
um conflito de interesses: autotutela (ou autodefesa), autocomposição e heterocomposição. A autotutela
é a solução violenta do conflito, na qual os litigantes tentam impor sua pretensão através da força. A
autocomposição é a solução pacífica do conflito de interesses por meio dos próprios interessados e muitas
vezes mediante a contribuição de um terceiro. Por fim, a heterocomposição ocorre quando a solução do
litígio é atribuída exclusivamente a terceiros, estranhos ao objeto da controvérsia (AMARAL, 2009).
Não se pode perder de vista, também, que o aparato judicial, para tratar os conflitos atuais,
serve-se de instrumentos e códigos muitas vezes ultrapassados, ainda que formalmente em vigor, com
acanhado alcance e eficácia reduzida. Tal eficácia e alcance muitas vezes atingem somente os conflitos
interindividuais, não extrapolando o domínio privado das partes, encontrando dificuldades quando
instado a tratar de direitos coletivos ou difusos (SPENGLER, 2016). A democratização do acesso à Justiça
não pode ser confundida com a mera busca pela inclusão dos segmentos sociais ao processo judicial.
Antes disso, cabe conferir condições para que a população tenha conhecimento e apropriação dos seus
direitos fundamentais (individuais e coletivos) e sociais para sua inclusão nos serviços públicos de
educação, saúde, assistência social, etc., bem como para melhor harmonização da convivência social.
A expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar
duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelas quais as pessoas podem reivindicar
seus direitos e ou resolver seus litígios sob as promessas do Estado. O conceito de acesso à justiça
tem sofrido uma transformação importante, correspondente a uma mudança equivalente no estudo
e ensino do processo civil. A teoria era de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um “direito
natural”, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para sua proteção. Esses
direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não
permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado, portanto, permanecia passivo, com
relação a problemas tais como a aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-
los adequadamente, na prática. De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente
reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez
que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva
reivindicação (CAPPELLETTI; GARTH, 2002).
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º traz consagrado este direito, afirmando que
toda e qualquer pessoa possa ter garantia de solução quando um direito seu for violado ou ameaçado.
Sendo assim, “o acesso à justiça pode ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico
dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não
apenas proclamar os direitos de todos.” (CAPPELLETTI, 2017, p. 14). Contudo, só haverá justiça
participativa, de proximidade e social se, em primeiro lugar, houver consciência de cidadania, através
do conhecimento, por parte da sociedade, de seus direitos mais fundamentais, bem como a postura
combativa dos agentes do direito, ao menos tentando se livrar da conduta formalista. A ineficiência
na reivindicação de novos direitos ocorre pela deficiência de técnica em áreas não jurídicas, pois tais
direitos exigem solução governamental para este problema, muitos grupos formaram sociedades que
variam muito em tamanho e especialidades temáticas a que atendem o tipo mais comum da população
em uma organização sem fins lucrativos, mantida pelo governo proporcionando aconselhamento
jurídico especializado e constante supervisão em relação a interesses não representados e não

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

organizados, crescente concepção de Justiça, basta de reducionismo na visão do servo e aplicador


inerte da lei. Essa concepção está em conflito com um enfoque moderno do Direito e da interpretação
jurídica, aliás, em geral com a teoria moderna da hermenêutica: a interpretação sempre deixa algum
espaço para opções, e, portanto, para a responsabilidade (CAPPELLETTI; GARTH, 2002, p. 11).
De acordo com Santos (2007, p. 46), mister uma “revolução democrática da justiça”, que exige
uma outra cultura jurídica, a partir de um olhar reflexivo, que perpasse na mudança no ensino jurídico
das faculdades de direito, e por efeito na formação dos magistrados e dos demais operadores jurídicos.
Mauro Cappelletti e Bryant Garth (2002), por sua vez, estabeleceram uma subdivisão cronológica dos
movimentos de acesso à justiça, ou seja, de tentativas de soluções para se garantir a efetividade do
acesso à justiça, e cada movimento foi chamado pelos autores de “onda”. A primeira “onda” teria
sido a assistência judiciária; a segunda referia-se à representação jurídica para os interesses difusos,
especialmente nas áreas de proteção ambiental e do consumidor e, finalmente, a terceira “onda” que
seria o “enfoque de acesso à justiça”, a qual compreendia os posicionamentos anteriores e tinha como
objetivo enfrentar contundente e articuladamente, as barreiras ao acesso efetivo à justiça.

2 DIREITOS SEM MEDOS: AVANÇOS RECENTES NOS DIREITOS DAS MULHERES NO BRASIL E
UMA ANÁLISE SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Entende-se por cuidado como um direito assumido pela coletividade e prestado mediante serviços
que maximizem a autonomia e o bem-estar das famílias e dos indivíduos. Com o Estado surge o desafio
de avançar seu reconhecimento e a inclusão nas políticas públicas. Isto implica ações em três sentidos
ao menos: redistribuir, revalorizar e reformular os cuidados voltados ao gênero. Vive-se um momento
de aguda rejeição à política, inclusive nos meios universitários, mas, paradoxalmente, há um vivo e
crescente interesse pelas políticas públicas. Esse descompasso indica que, para muitos, a província
das políticas está descolada do continente da política em termos gerais. Nada mais enganoso. As
políticas nada mais são, como se mostrou exaustivamente, do que os resultados da política, das suas
instituições e dos seus processos. Quem estabelece uma decisão entre estas e aquela desconhece a
natureza de ambas (SCHMIDT, 2008).
Em razão da nova conjuntura, a compreensão de alguns conceitos que perfazem o universo das
políticas públicas revela-se a chave-mestra para a promoção e efetivação de direitos e garantias sociais,
especialmente no que se refere à efetivação da cidadania. Ademais, o estudo sobre as políticas públicas
deve ser feito de forma integrada com a compreensão do papel do Estado e da própria sociedade nos
dias atuais. Assim, de forma geral, conceituar política pública é analisar o sistema jurídico, uma vez que,
é o direito sua forma de instrumentalização. Conceitua-se políticas públicas, como sendo “o conjunto
de ações coletivas que garantem direitos sociais, por meio das quais são distribuídos ou redistribuídos
bens e recursos públicos, em resposta às diversas demandas da sociedade”. (BUCCI, 2013, p. 37) As
políticas públicas são de caráter fundamental pelo direito coletivo, são de competência do Estado e
abrangem relações de reciprocidade e antagonismo entre o Estado e a sociedade civil. Não podem ser
encaradas somente sob o viés jurídico, elas dispõem dos mais diversos elementos que concatenados
podem dar uma ideia do seu sentido prático no meio comunitário ou voltado ao interesse coletivo.
Dessa forma, as políticas públicas de modo geral são compreendidas como um programa ou
quadro de ação governamental, “porque consiste num conjunto de medidas articuladas (coordenadas),
cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar a máquina do governo, no sentido de realizar
algum objetivo de ordem pública ou, na ótica dos juristas, concretizar um direito” (BUCCI, 2013,
p. 37-38). Na dimensão das políticas públicas, a abordagem teórica é aplicada à noção de arranjos
institucionais. Coaduna-se ainda, o termo institucionalizar, que significa estruturar e organizar, de
maneira despersonalizada, pelo Poder Público, não apenas os seus próprios órgãos e serviços, mas
também a atividade privada, quando ligada com programas de ação governamental.
Sendo assim, a política pública não se trata apenas de uma conjuntura de atos, estes se conectam
de acordo com o patamar que ocupam. No plano micro institucional, o elemento processo, admite
visualizar as diversas etapas de produção e a implementação da ação governamental e no plano
meso institucional, localizam-se os arranjos institucionais, eis a noção de instituição (BUCCI, 2013,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

p. 37-38). É importante destacar que as instituições são o resultado e a institucionalização alude


ao processo pelo qual se alcança esse resultado dentro da política pública (ZAREMBERG, 2013, p.
50-51). Em sentido geral, as Políticas Públicas são a totalidade de ações, metas e planos que os
governos estabelecem para atingir o bem-estar da sociedade e o interesse público. Na esteira de
Saraiva (2006, p.28-29) pode-se afirmar que a política pública é um fluxo que comporta um sistema
de decisões públicas, constituída por objetivos, estratégias e alocação de recursos desejados pelo
grupo que participa do processo decisório, que compõem determinada política, com o mote de manter
o equilíbrio social e sobremaneira consolidar a democracia e a justiça nas relações sociais. O termo
política pública então, é utilizado com significados distintos, com uma abrangência maior ou menor:
ora indica um campo de atividade, ora um propósito político bem concreto, ou um programa de ação
ou os resultados obtidos por um programa (SCHMIDT, 2008, p. 2311).
Outrossim, as políticas públicas estão longe de atingir um único consenso em termos conceituais,
do que signifiquem para os seus protagonistas. Não dá para refutar, que elas não se originam de
um movimento, de um programa, de uma lei ou das mais diversas formas de manifestação de uma
comunidade que pleiteia sua elaboração e implantação a partir de espaços interlocutórios para que
façam parte da agenda do governo, no que tange as prioridades sociais (SUBORATS, 2012, p. 73).
A incapacidade do Estado, por meio da jurisdição, de atender aos interesses e desejos das partes
envolvidas no conflito permitiu o desenvolvimento de práticas alternativas de tratamento de conflito,
fundamentadas na cultura, na confiança, na informalidade, na autenticidade, na flexibilidade, na rapidez,
e na descentralização. Portanto, é fundamental se reconhecer as práticas da Justiça Restaurativa entre
as políticas públicas de gênero no acesso à Justiça e no combate à violência doméstica contra mulher.
Entre as políticas públicas definidas ao gênero está a inclusão das práticas da Justiça Restaurativa
no combate à violência doméstica contra a mulher, sugerida pela Ministra Carmen Lúcia, a presidente
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Defendeu a utilização das
técnicas da Justiça Restaurativa na recomposição das famílias que vivenciam o drama da violência
doméstica em seu cotidiano. Ela reforçou a importância do foco familiar no combate à violência ao
lembrar que, nessas situações, todos são atingidos e, mais profundamente, as crianças.

3 A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA CONTRA AS


MULHERES

Antes de contextualizar a respeito da inclusão das práticas da Justiça Restaurativa no combate à


violência doméstica contra a mulher, sugerida em 2017 pela anterior Presidente do STF, mister ressaltar
que na sociedade patriarcal, o seu controle de dominação “tem como consequência a prática de violências
contra as mulheres, de todas as formas e por todos os meios” (BARATTA, 1999), porém com o ingresso das
mulheres no mercado de trabalho e bem como acesso a educação, coube ao meio social e principalmente
no âmbito jurídico a transformação e o abandono dessas práticas (SANTOS, 2018, p. 332).
Embora o legislador tenha se preocupado em encontrar mecanismos de proteção, prevenir e erradicar
a violência doméstica como por meio da criação da Lei Maria da Penha em 2006, a sociedade brasileira
continua a perpetuar práticas reiteradas de violência contra as suas mulheres. A título de exemplificação,
segundo a Pesquisa Data-Senado de 2017, 74% das mulheres que sofreram algum tipo de violência
doméstica foram agredidas por homens com quem tem ou tiveram um relacionamento. (BRASIL, 2020)
No atual cenário de isolamento social, o COVID-19 e a violência doméstica tornam-se dupla
pandemia às mulheres, pois podem aumentar as dificuldades de se manter distantes do seu agressor.
Outros países tem adotados inúmeras políticas de proteção e acesso a justiça, como o caso da
França, a qual disponibilizou serviço de atendimento para denúncias de violências pela internet,
com atendimento 24 horas; e apesar dos tribunais estarem fechados pela pandemia, nos casos de
violência doméstica serão tratados como prioridade pelos juízes em teletrabalho, para que possam
conceder medidas protetivas neste período.
Já, no Brasil foi lançado recentemente novos canais de atendimento a violência doméstica,
bem como outras violações de direitos humanos no novo aplicativo intitulado Direitos Humanos BR,
disponível desde abril de 2020 no site do Ministério para os sistemas Android e IOS. Isso se deu por

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

conta do aumento de 9% no número de ligações no Disque 180 na primeira quinzena de março, o que
pode não estar representando os casos reais, pois o agressor em casa, pode constranger a mulher a
realizar uma ligação telefônica para realizar a denúncia ao 180.
Importante destacar que, uma das novas estratégias adotadas para o enfrentamento e combate da
violência doméstica, partiu do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 31 de maio de 2016, este aprovou a
Resolução 225, que versa sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário,
a partir de interlocuções locais e intersetoriais advindas de experiências do estado do Rio Grande do Sul.
O conteúdo abarca conceitos, princípios, métodos e diferenças sobre a justiça restaurativa.
A Justiça Restaurativa, assim, “constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios,
métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais,
institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que
geram dano”. (CNJ, 2020).”
Em outras palavras, há a necessidade de repensar o sentido de justiça nas relações interpessoais,
bem como o enfrentamento das subjetividades humanas. Por conta disso, o Conselho Nacional de
Justiça por meio da Resolução 225/2016 propôs a Justiça restaurativa para trabalhar em conflitos
judiciais e extrajudiciais. O objetivo do Conselho Nacional de Justiça com a referida Resolução foi trazer
um conceito de justiça restaurativa, além de dispor no seu corpo (§ 1º do art. 1º) distinções entre a
Prática Restaurativa, o Procedimento Restaurativo, Caso, Sessão Restaurativa e Enfoque Restaurativo.
De qualquer sorte, as delimitações conceituais com cunho de padronização e norte àqueles que
irão aplicar nas relações sociais são procedimentos metodológicos integralizados à Política Nacional
de Justiça Restaurativa. Como a ideia é propor um fluxo de comunicação com a comunidade para
trabalhar com a violência doméstica e intrafamiliar cometida contra a mulher, e também olhar para
o homem autor de violência de gênero, reconhece-se a necessidade de práticas restaurativas nos
espaços comunitários e não somente no âmbito Judicial.
O relatório da pesquisa “Pilotando a Justiça Restaurativa: o Papel do Poder Judiciário”, o qual
é promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2020), “apontou que as técnicas mais usadas
são os Círculos de Paz, Círculos Restaurativos, Mediação Vítima-Ofensor, Conferências e, nos últimos
anos, as Constelações Familiares.” (REBOUÇAS; NETO; FONTES, 2019, p. 11) Assim, no que tange
aos Círculos de Paz, tem-se que é um processo realizado por meio do contar histórias. Cada pessoa
tem uma história, e cada história oferece uma lição. No Círculo as pessoas se aproximam umas das
outras através da partilha de histórias significativas para elas.” (PRANIS, 2010, p.18). Ainda, nos
círculos de construção de paz, uma das práticas mais recorrentes no Brasil na Justiça restaurativa, há
oportunidade da fala, ou seja, os sujeitos podem descrever o mundo como o percebem
Cumpre salientar que não há um consenso acerca da definição da Justiça Restaurativa, sendo um
conceito aberto e complexo, sujeito a avaliações científicas, que continua a se desenvolver na prática.
No entanto, há um relativo consenso a partir do conceito de Tony Marshall: “justiça restaurativa é um
processo pelo qual as partes envolvidas em uma especifica ofensa resolvem, coletivamente, como
lidar com as consequências da ofensa e as suas implicações para o futuro” (MARSHALL, 1996 apud
ACHUTTI, 2014, p. 63) (SANTOS, 2018, p.335). Corroborando a respeito do entendimento sobre a
Justiça Restaurativa (BARACHO, 2019, p. 197) aduz três elementos importantes:

(1) assume que não só a vítima, mas também o ofensor e a comunidade são afetados pelo
comportamento conflitivo; (2) é essencial envolver tanto o/a ofensor/a como a vítima na solução
dos efeitos causados pelo conflito e (3) os indivíduos têm a capacidade e os recursos para enfrentar
e resolver diretamente o conflito. Possível identificar a JR como um mecanismo de justiça que
ajuda a construir um espaço de microdemocracia dentro do sistema penal: se, por um lado, esse
tipo de serviço depende da qualidade das instituições democráticas, por outro, pode ajudar a
aperfeiçoar os valores democráticos das instituições.

O interessante para implementação de uma das práticas restaurativas (um dos elementos da
justiça restaurativa), é que ela nasça dentro das comunidades, por isso a importância de fomentar nos
núcleos comunitários o sentimento de comprometimento, participação e pertencimento dos sujeitos.
Nesses espaços comunitários é de suma relevância a atuação conjunta com o Poder Judiciário local
e com a rede de atendimento as vítimas de violência doméstica, assim constituindo e uma equipe
interdisciplinar capacitada e qualificada com as técnicas da Justiça restaurativa.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Assim sendo, passar como desafio para a equipe também focar esforços nos grupos reflexivos
para os homens. Ao refletir e reconhecer que políticas dessa natureza também precisam ser aplicadas
e vivenciadas com eles, as mulheres também serão protegidas aliadas aos demais serviços da rede.
A própria legislação, a Lei Maria da Penha (a lei 11.340/2006) prevê no seu artigo inciso V do artigo
35 centros de educação e reabilitação para os agressores (ofensores). O que significa um olhar
interdisciplinar para as mulheres e os homens. Não dá para enfrentar a violência doméstica sem
trabalhar com o agressor, que na maioria das vezes, é o próprio homem.
Nas últimas décadas houve um crescimento relevante sobre a importância de se trabalhar com
políticas públicas redirecionadas aos homens autores de violência de gênero com a finalidade de
prevenir a violência doméstica, bem como romper com o ciclo intergeracional da violência. O “Relatório
de Mapeamento de Serviços de atenção grupal a homens autores de violência contra mulheres no
contexto brasileiro”, publicado em 2014 pelo Instituto Noos, encontrou na época, 25 programas em
diferentes estados brasileiros, obtendo informações mais detalhadas sobre 19 deles (BEIRAS, 2014).
Mister destacar alguns programas brasileiros de suma importância: o Programa “E AGORA, JOSÉ?”
é um grupo sócio educativo de responsabilização de homens e é desenvolvido na cidade de Santo
André, SP. Surgiu por meio de uma parceria estabelecida entre a Associação Entre Nós, com o Tribunal
de Justiça - TJ - Comarca de Santo André e a Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania
da Secretaria Estadual da Administração Penitenciária, Central de Penas e Medidas Alternativas e a
Defensoria Pública do Estado. (ENTRE NÓS, 2020).
Também vale destacar a experiência que está sendo desenvolvida, desde abril de 2016, com
“Grupos Reflexivos” constituído por Homens autores de violência doméstica na Vara Especializada de
Violência Doméstica da Comarca de São Leopoldo, sendo realizado nas dependências do Foro de São
Leopoldo. Segundo a proposta, o trabalho com os homens ofensores é uma parte fundamental para
as ações de enfrentamento à violência contra as mulheres. Os objetivos do trabalho são, de forma
genérica, a proporção de um espaço de reflexão, construção de estratégias de resolução de conflitos
que não seja a utilização da violência, complementando iniciativas voltadas à atenção e prevenção
da violência à mulheres e possibilitando aos participantes, identificar suas habilidades e valores,
refletindo no que diz respeito à questão da violência intrafamiliar e de gênero. O público atendido
inicialmente são os homens encaminhados pela Vara Doméstica sem condenação. (BRASIL, 2011).
O conceito de violência contra as mulheres adotado pela Política Nacional, fundamenta-se na
definição da Convenção de Belém do Pará (1994), segundo a qual a violência contra a mulher constitui
“qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual
ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (art. 1°). A definição é, portanto,
ampla e abarca diferentes formas de violência, como: a violência doméstica ou em qualquer outra
relação interpessoal, em que o homem autor de violência de gênero conviva ou haja convivido no
mesmo domicílio que a mulher, compreendendo, entre outras, as violências física, psicológica, sexual,
moral e patrimonial (Lei 11.340/06) (BRASIL, 2011).
Nesse aspecto, outras políticas agregadoras e também preventivas precisam ser trabalhadas
(eis alguns mecanismos oferecidos na própria Lei Maria da Penha: as medidas protetivas e o
encaminhamento do homem autor de violência de gênero a um centro de habilitação e reeducação,
como preceituam os artigos 35 e 45 da 11.340/06) e articuladas pelas políticas socioassistenciais no
município ou âmbito local, valendo-se de espaços como o CREAS (Centros de Referência Especializado
de Assistência Social) (BRASIL, 2013).
A iniciativa de se trabalhar com os homens autores de violência de gênero também existe em
outros países. No Brasil somente foi adotada em dez estados. É uma proposta cheia de controvérsias no
próprio movimento de mulheres. Muitos defendem que os recursos, que são poucos, devem priorizar
a vítima e não o autor de violência de gênero. Apesar da polêmica, alguns juízes encaminham os
homens para grupos de ressocialização. Eles são obrigados a participar de reuniões num modelo
similar ao existente para usuários de álcool. Nos casos hediondos, como homicídios, estupro e tortura,
o caminho continua sendo o encarceramento (GLOBO, 2020).
De igual modo, reconhece-se que a Lei Maria da Penha não reduziu a violência doméstica e
familiar, mas não se pode desconsiderar o seu importante papel no que se refere à visibilidade do
problema, que se tornou uma questão de saúde pública em nosso país. Pode-se dizer que a referida

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

lei promoveu um marco, impulsionando novos projetos de proteção às vítimas e também a homens
autores de violência. (GALVÃO, 2020).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o presente artigo pretendeu-se responder aos seguintes problemas: quais são os limites
e as possibilidades das práticas restaurativas como política pública judiciária, para ser uma garantia
de acesso à justiça as mulheres vítimas de violência doméstica intrafamiliar no Brasil? E qual a
importância de potencializar com a Justiça restaurativa políticas para trabalhar com os homens
(agressores) ou ofensores de violência? Para tanto, inicialmente analisou-se a jurisdição e o acesso à
Justiça. Este tema está intimamente ligado a crise do poder Judiciário que pode ser identificada, ainda,
como de identidade e de eficiência. Enquanto crise de identidade, pode-se vislumbrá-la por um certo
embasamento do papel judicial como mediador central de conflitos, perdendo espaço para outros
centros de poder talvez mais aptos a lidar com a complexidade conflitiva atual, mais adequados
em termos de tempo e espaço. Essa crise influencia no tratamento de conflitos, inclusive nos que
envolvem os casos de violência doméstica contra a mulher.
Com efeito, analisaram-se as políticas públicas de proteção social e de cuidados sob a perspectiva de
gênero. Desse modo, procurou-se compreender o conceito de políticas públicas que sinteticamente são
respostas governamentais à demandas sociais, incluídas na agenda pública. Entre as políticas públicas
definidas ao gênero está a inclusão das práticas da Justiça Restaurativa no combate à violência doméstica
contra a mulher. Neste sentido, por meio de uma determinação da Comissão Internacional dos Direitos
Humanos, recomendando ao Brasil a criação de uma lei específica de combate à violência de gênero, fez
surgir a Lei Maria da Penha, tornando visível para a sociedade a gravidade e as proporções devastadoras
do referido problema não só para as vítimas e sua família, mas também para a imagem do País. A partir da
promulgação da referida lei, passou-se a discutir e a propor ações estratégicas para o seu enfrentamento.
Mas, passados quatorze anos da criação e promulgação da Lei 11.340/06, cabe ressaltar que o problema
da violência contra a mulher está se avolumando cada vez mais, ao invés de diminuir.
Um aspecto que precisa ser revisto está no equívoco de se confundir as práticas alternativas de
solução de conflitos com o sistema judiciário, ente esse institucionalizado, que, a partir do contrato
social, hipoteticamente, abarcou para si a administração pública dos conflitos, quase inviabilizando
a participação da comunidade no processo político e ativo de autocomposição de conflitos antes
da judicialização, um processo de transformação dentro das comunidades que também requer a
dimensão pedagógica e comunitária das práticas restaurativas.
Assim, a Política Nacional de Justiça Restaurativa mostra-se um importante mecanismo de pacificação
dos conflitos, especialmente no que se refere à violência doméstica contra a mulher. Isso porque, além
da atenção à vítima oferecendo uma rede de apoio comunitária, empoderamento, dentre outras. Esse
método de pacificação de conflitos também atua com os homens agressores de modo a conscientizar os
agressores de suas ações, evitando a reincidência, que é comum nesses casos de violência.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

COLONIALIDADE E RESISTÊNCIA NAS FAVELAS DO BRASIL:


CONSIDERAÇÕES A PARTIR DA (NÃO)ATUAÇÃO DO ESTADO
E DO PROTAGONISMO DAS COMUNIDADES
NO COMBATE À PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS

Rômulo José Barboza dos Santos46


Denise Tatiane Girardon dos Santos47

RESUMO: A presente pesquisa versa sobre os resultados parciais obtidos a partir de estudos
desenvolvidos no Projeto de Pesquisa da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ), intitulado Estado
de Direito e Democracia: espaço de afirmação dos Direitos Humanos e Fundamentais. Objetiva-se
tecer considerações a respeito do enfrentamento da COVID-19, especialmente nas favelas do Brasil,
tendo em vista o fenômeno da Colonialidade, que contribuiu para alocar o negro como raça inferior
segundo os critérios estabelecidos pelo homem Europeu. Por conseguinte, como hipótese, tem-se
que a desigualdade social, principalmente durante o período de pandemia, se mostra ainda mais
acentuada nas comunidades. Ademais, necessário mencionar a dificuldade de angariar dados sobre a
pandemia no País, destacadamente nas favelas.

Palavras-chave: COVID-19; Favelas; Brasil; Colonialidade; Desigualdade Social.

INTRODUÇÃO

A pandemia do Novo Coronavírus, causador da COVID-19, potencializou problemas já enfrentados


no País, especialmente nas favelas, considerando a desigualdade social vislumbrada, principalmente,
no cotidiano da população negra, que compõe a comunidade. Esse fator decorre, pela perspectiva da
historicidade da América Latina, também, da colonialidade, entendida como o resultado dos processos
colonizatórios do/no Continente, que tornaram vítimas os negros, uma vez que foram escravizados,
usados como mão de obra e tiveram direitos negados, mesmo após a abolição oficial da escravatura.
No Brasil, o período escravagista resultou em um tráfico intenso de pessoas do Continente
Africano, que foram trazidas de modo forçado para serem escravizadas. Consequentemente, passaram
a fazer parte da composição populacional do País. Atualmente, os negros representam cerca de a
metade da sociedade brasileira em número de pessoas. Esse dado difere da proporção dos direitos
que exercem, citando, a título exemplificativo, a ocupação de cargos públicos nos espaços onde
se encontram, assim como a ocupação de espaços nas cidades48, o que aponta para algumas das
consequências da desigualdade social.
Nesse viés, como probabilidade do presente estudo, tem-se a ideia de que, atualmente, em
decorrência da pandemia, a desigualdade social se mostra ainda mais acentuada nas comunidades, o
que facilita, ainda mais, a vulnerabilização da população negra.

46 Acadêmico do 10º semestre do Curso de Direito da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Bolsista do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Integrante do Projeto de Pesquisa Estado de Direito e Democracia:
espaço de afirmação dos Direitos Humanos e Fundamentais. E-mail: romullobarboza@hotmail.com.
47 Doutora em Direito - UNISINOS. Mestra em Direito - UNIJUÍ. Especialista em Educação Ambiental - UFSM. Bacharel em
Direito - UNICRUZ. Graduanda em Filosofia-Licenciatura – UFPel. Coordenadora do PIBEX Empoderamento dos Povos Indíge-
nas do Rio Grande do Sul: proteção aos conhecimentos tradicionais pela Educação Ambiental e do PIBIC Estado de Direito e
Democracia: espaço de afirmação dos direitos humanos e fundamentais - UNICRUZ. Integrante do Grupo de Pesquisa Clínica
de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná UFPR. Integrante do Grupo de Pesquisa Jurídica em Cidadania, De-
mocracia e Direitos Humanos – GPJUR. Docente no Curso de Direito e do Núcleo Comum da UNICRUZ e do Curso de Direito
das Faculdades Integradas Machados de Assis - FEMA. Advogada. Conciliadora Judicial - TJ/RS. E-mail: dtgsjno@hotmail.com.
48 A expressão cidade se relaciona ao centro. Por consequência, os negros estão na periferia.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O objetivo desta pesquisa é produzir um levantamento qualitativo e bibliográfico a respeito do


enfrentamento da COVID-19, especialmente, nas favelas do Brasil, tendo, como perspectiva teórica,
o fenômeno da colonialidade, que contribuiu para alocar o negro como raça inferior, segundo os
critérios, estabelecidos pelo homem europeu. O método será o dedutivo, com abordagem qualitativa,
sendo a pesquisa bibliográfica e documental e a estratégia explicativa.

1 DESENVOLVIMENTO

Em decorrência dos processos de escravização na/da América Latina, que foram promovidos pe-
los colonizadores espanhóis e portugueses, a população negra, historicamente, sofreu com a ausên-
cia de efetivação de direitos, considerando que foram explorados como mão de obra, mas excluídos
da partilha de recursos, o que corrobora para a construção do Mito da Modernidade. Nesse sentido,
Enrique Dussel (1993, p. 7) destaca que:

Trata-se de ir à origem do ‘Mito da Modernidade’. A Modernidade tem um ‘conceito’ emancipador


racional, que afirmaremos, que subsumimos. Mas, ao mesmo tempo, desenvolve um ‘mito’ irra-
cional, de justificação da violência, que devemos negar, superar.

Necessário mencionar, também, que a escravização das populações negras, nos países da
América Latina, possui contextos históricos e socioculturais semelhantes, destacando-se o colonial
e o de escravidão em que foram inseridas. Os negros africanos foram trazidos para o Continente de
modo forçado, que segundo Ribeiro e Silva (2017, p. 291),

[...] possibilitou a exploração intensiva da mão de obra de milhões de indivíduos, influenciando


profundamente o desenvolvimento das sociedades americanas, das nações europeias diretamente
envolvidas na colonização e das sociedades africanas escravizadoras e escravizadas. O tráfico de
escravos e as lutas por sua extinção no século XIX foram fundamentais para definir as identidades
de negros e brancos, legando importantes consequências socioculturais no mundo atlântico.

No que concerne ao Brasil, não se sabe, exatamente, o período em que se iniciou o tráfico de
negros, porém, acredita-se que se deu nos primeiros anos de colonização. Os escravos africanos, de
acordo com os objetivos da Coroa Portuguesa, desempenhavam funções secundárias, restritas aos
afazeres domésticos; todavia, em razão da falta de indígenas para a mão de obra na exploração de
recursos naturais, pois sucumbiam ou eram protegidos por padres jesuítas, criou-se um comércio
direto de escravos entre a Colônia de Portugal e o Continente Africano, cujo grande tráfico, como
destaca Rodrigues (2010, p. 20-21), se iniciou

[...] com alguns navios, por particulares, enviados à África. Ainda assim, o problema étnico devia
surgir aos poucos e muito depois, que nos primeiros tempos não havia povo brasileiro, mas
Europeus que estendiam ao Brasil uma parte da nação portuguesa, para a qual os Negros, sem
laços de sangue, nem de outras comunhões sociais, ainda estrangeiros na América, mais não eram
do que simples máquinas ou instrumentos de trabalho.

A escravização no Brasil é exemplo do que decorreu no Continente da América Latina, e compõe


o que Dussel aponta como a outra face da modernidade, qual seja, a colonialidade. Alguns filósofos,
como Charles Taylor, Stephen Toulmin e Jurgen Habermas, defendem que a origem da modernidade é,
exclusivamente, um fenômeno europeu; contudo, Dussel (1993, p. 7) propõe que “[...] a Modernidade
é realmente um fato europeu, mas em relação dialética com o não-europeu como conteúdo último
de tal fenômeno”, de modo que a modernidade surgiu com a afirmação da Europa enquanto centro,
que alocou o restante do mundo enquanto periferia. A periferia é parte da própria definição de
modernidade, mas desprestigiada, pois, para Dussel (1993, p. 7):

O esquecimento desta “periferia” (e do fim do século XV, do século XVI e começo do século XVII
hispano-lusitano) leva dois grandes pensadores contemporâneos do “centro” a cair na falácia
eurocêntrica no tocante à compreensão da Modernidade. Se o diagnóstico é parcial, provinciano,
a tentativa de crítica ou plena realização é igualmente unilateral e parcialmente falsa.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A teoria do mito da modernidade originou-se e mundializou-se a partir da América, uma vez


que não é possível falar de modernidade sem considerar a colonialidade, que se caracteriza como
um elemento constitutivo e específico do padrão mundial capitalista, e se funda “[...] na imposição de
uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder
e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social
cotidiana e da escala social” (BALLESTRIN, 2013, p. 10 apud QUIJANO, 2000, p. 342).
Para Mignolo (2017), a modernidade é uma narrativa complexa, que construiu a civilização
ocidental quando celebrou suas conquistas, tendo, como ponto de origem, a Europa; porém, escondeu
o seu lado mais escuro, que é a colonialidade, esta que se caracteriza como o resultado dos processos
de colonização, uma vez que, ainda que tenha havido a independência das colônias ibéricas latino-
americanas, elas prosseguiram subjugadas pelos nortistas. Nesse sentido, os negros desempenharam
um papel essencial para o desenvolvimento do mito da modernidade, pois foram explorados como mão
de obra escrava, mas não participaram da partilha dos recursos obtidos com o trabalho desempenhado.
O tráfico negreiro, caracterizado como a ação de roubar e sequestrar, inicialmente, homens,
e, posteriormente, mulheres, foi iniciado no litoral da África pelos portugueses, que vislumbraram
a possibilidade de se beneficiarem com essa prática, dando início a uma prática, até, então, inédita:
a escravidão mercantil. Os espanhóis também adotaram essa prática, dada a ampla vantagem eco-
nômica, decorrente da exploração dos negros, sujeitos à escravidão. Para Mignolo (2017, p. 5 apud
CUGOANO, 1787), além dos portugueses e espanhóis,

[...] os franceses e ingleses, e algumas outras nacoes da Europa, enquanto fundavam assentamentos
e colonias nas Indias Ocidentais ou na America, prosseguiram da mesma maneira, e se juntaram
“mano a mano” com os portugueses e espanhois para roubar e pilhar a Africa, assim como para
destruir e desolar os habitantes do continente ocidental.

Uma consequência da colonialidade na América Latina foi a classificação de pessoas e sociedades


pela ideia de raça, que se caracteriza como um conceito moderno, pois, antes do processo colonizatório,
as definições eram decorrentes da posição geográfica. O conceito de raça, para além das diferenças
fenotípicas, significa a diferenciação estabelecida, pelos europeus, entre colonizadores e colonizados,
entre sociedades centrais (europeias) e periféricas (demais Continentes), em que, aqueles, para se
autoafirmarem como sujeitos superiores, alocaram os demais na periferia, enquanto inferiores,
selvagens/bárbaros, justificando sua submissão. Para Quijano (2005, p. 117), uma consequência da
formação dessas relações sociais, que foram fundadas nessa ideia de raça, produziu, na América,
[...] identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras.
Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas
procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas
identidades, uma conotação racial.

As relações sociais foram baseadas em relações de dominação, uma vez que a classificação
dessas identidades foi atrelada à ideia de hierarquia, lugares e papeis sociais correspondentes. Além
disso, com a criação dessas identidades, o padrão de dominação seguiu a raça e a identidade racial,
estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. Dessa forma, da ideia
de raça decorreu o racismo (como parte da colonialidade), que prosseguiu a prejudicar os negros na
América Latina (QUIJANO, 2005).
Imprescindível aduzir, também, que, para Fanon (2008), o negro possui duas dimensões, cintando
a primeira com seu semelhante e a segunda com o branco. Consequentemente, um negro tende a se
comportar, diferentemente, ao tratar com o branco e ao tratar com outro negro. Nesse viés, o racismo
se mostra como um fenômeno mais complexo, estruturado a partir de um contexto histórico e político,
que, por consequência, criou a ideia classificatória de raça como inerente à espécie Homo Sapiens, no
intuito de manter a hierarquia social e o status das elites e promover o apagamento do outro49 e sua

49 O outro está relacionado a tudo aquilo que não é europeu. Com o surgimento da ideia de Modernidade no ano de 1492,
nas cidades europeias medievais livres, a Europa assumiu a posição de conquistadora, colonizadora e desbravadora, ocasião
em que passou a enfrentar o outro, utilizando-se de violência para controlá-lo e vencê-lo. Apesar de toda a história contada,
o outro não foi descoberto, mas, sim, encoberto, surgindo daí o Mito da Modernidade (DUSSEL, 1993).

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história, cultura e organização social (FERNANDES, 2017). Por oportuno, cita-se Almeida (2019, p. 32)
que assim explica:

O racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se
manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou
privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam.

Adesky (2001, p. 46-47) salienta que, no Brasil, a palavra raça é utilizada pelos líderes do
Movimento Negro, podendo ser entendida como um índice de diferenças fenotípicas classificatórias.
Nesse ponto, destaca-se o seguinte trecho:

A utilização, cada vez mais freqüente entre os intelectuais do Movimento Negro, de termos como
etnia ou comunidade não faz prever o declínio da palavra raça. Um dos defensores de seu uso é a
antropóloga Nilma Bentes. Para ela, a palavra raça serve como alavanca para a conscientização da
população negra do Brasil. Ela considera que não seria correto abandonar o uso da palavra raça
porque isso implicaria a substituição da palavra racismo pela palavra etnocismo, por ela conside-
rável muito difícil de entender e de explicar a uma população que, em geral, compreende com faci-
lidade a noção de raça. Do ponto de vista lexical, é necessário observar também que o termo raça
reforça, por associação gramatical, o emprego corrente da tradicional classificação da população
em brancos, negros, amarelos etc. De fato, o uso da palavra raça associada, por exemplo, às cate-
gorias louro, ruivo, mulato moreno etc., não foi consagrado nem pelos antropólogos nem pelo uso
corrente. Melhor dizendo: a raça, de um ponto de vista simbólico, associa-se, de preferência, com
a classificação tradicional de branco, negro e amarelo. Mas é também necessário observar que
essa associação lexical não é absoluta. Com efeito, as palavras branco, negro, amarelo, enquanto
categorias raciais classificatórias, têm vida própria. Pode-se falar dos negros, dos brancos, como
dos mulatos ou dos morenos etc., sem o obrigatório recurso explícito à noção de raça. Portanto,
essas classificações apresentam certa autonomia, certa independência em relação ao termo raça.

Compreendidos os processos colonizatórios da população negra na América Latina, destacada-


mente no Brasil, o que corroborou, também, para a criação do conceito de raça, bem como, para alocar
o negro como inferior, sendo esse processo definido como Colonialidade, mostra-se necessário apre-
sentar a formação das favelas no País, que representam a periferia, epicentro da desigualdade social.
Dentre as regiões brasileiras que possuem os complexos denominados como favelas, merece
destaque a região Sudeste, especialmente a cidade do Rio de Janeiro, considerando o elevado número
de comunidades que lá se formaram, principalmente, em decorrência dos processos de segregação
espacial, ocorridos em razão do contexto histórico escravocrata e excludente. Nesse sentido, o CEN-
SO do IBGE, no ano de 201050, apresentou um levantamento de que, na cidade carioca, existem 763
favelas que abrigam 22% da população (OBSERVATÓRIO LEGISLATIVO DA INTERVENÇÃO FEDERAL NA
SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO, 2018).
O surgimento das favelas, no Brasil, dialoga com o objetivo da elite brasileira de reconstruir a
capital federal, na tentativa de criar a imagem de um espaço calcado nas pretensas percepções de
civilização e modernidade. Por conseguinte, como método para efetivar a segregação da população
negra, foram elaboradas campanhas pelo governo brasileiro, no intuito de extinguir os cortiços51,
uma vez que eram considerados o berço do crime e do vício, bem como, o núcleo das nominadas
classes perigosas (SANTOS, 2019). Esse movimento reflete a influência da colonialidade na vida do
negro, haja vista que, mesmo com a abolição da escravatura, sofria estigmas decorrentes da imagem
construída de que era um ser inferior.
Ao que tudo indica, a primeira favela do Brasil surgiu no ano de 1897, no centro do Rio de
Janeiro, sendo representada pelo morro da Província. Os registros dão conta de que a ocupação se
deu por soldados, que participaram da Guerra de Canudos na Bahia, e acabaram desembarcando na
cidade, reivindicando, ao governo, moradia aos combatentes. Os pedidos foram atendidos, porém, se
construíram diversos barracos na região denominada como favela da Província, que se tratavam de
casas precárias (DIAFERIA; NAVARRO, 2018).
Com efeito, o fenômeno da desigualdade vai de encontro ao princípio da isonomia, se constituindo de

50 Foram usados os dados do ano de 2010 pela ausência de censos atualizados, relacionados às favelas.
51 Os cortiços representaram moradias populares e precárias, caracterizadas por um elevado número de pessoas em sua
composição (KOWARICK, 2013).

117
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

arbitrariedades, implicando, para Comparato (2003, p. 287), na “[...] negação da igualdade fundamental
de valor ético entre todos os membros da comunhão humana”. Nesse diapasão, Sawaia (2001)
compreende que a desigualdade dialoga com uma consequência negativa do défice de participação de
todos os indivíduos no Estado, bem como, com o cuidado que este deveria ter com todos os cidadãos.
A desigualdade social, no Rio de Janeiro, é resultado de décadas de negligência pelo Poder
Público, que não adotou medidas eficazes para amenizar os problemas desencadeados por aquela.
Como demonstração, tem-se que, no período de 1996 a 2008, no referido Município, houve um
aumento do nível de pobreza, elevando o índice de 9,61% para 10,18. Entre 2005 a 2008, aumentou
o índice de renda auferida pela população das favelas, representando 14%; todavia, desproporcional
se comparado às condições da população dos bairros (VEJA, 2010).
Segundo Carvalho e Lima (2016), o senso comum52 define as favelas como um espaço de pobreza,
violência e marginalidade. No mesmo sentido, os Autores destacam que uma pesquisa, do ano de 2015,
realizada pelo do Instituto Popular, demonstrou a visão, da sociedade brasileira, em relação às favelas: a
pesquisa foi realizada com consulta a 3.050 pessoas, em 150 cidades do País, e apontou que 69% dos
entrevistados disseram que sentem medo quando estão próximos a uma favela. Além disso, 51% afirmaram
que as primeiras palavras que lhes vêm à mente quando ouvem falar de favela são droga e violência.
A desigualdade social, no Brasil, é tão acentuada que garante ao País a décima colocação do ranking
mundial, bem como, a quarta posição da América Latina. Nesse ponto, o índice de desenvolvimento
humano, que é medido pela Organização das Nações Unidas, atribui, como média brasileira, a nota
de 0,561, sendo as medidas de zero a um, e o índice padrão 0,754. Quanto ao nível mundial, empata
com Panamá e Coreia do Sul (POLITIZE, 2017).
Os dados de renda, do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
contribuem para demonstrar a visão de que o Brasil não investe em políticas públicas eficazes contra a
desigualdade social. As favelas são descritas como bolsões da pobreza, levando-se em conta o aspecto
do espaço geográfico. Ainda, ao analisar os dados relacionados à desigualdade em comparação a toda
a cidade, as favelas representam índice muito menor de aferimento de renda (CARVALHO; LIMA, 2016).
Demonstrados os aspectos basilares da desigualdade social no Brasil, notadamente, nas favelas
no Rio de Janeiro, é importante refletir sobre o enfrentamento da pandemia do Novo Coronavírus,
causada pelo SARS-CoV-2, no que concerne à população que constitui as favelas, em sua maioria,
negra. As principais fontes de pesquisa são notícias, uma vez que não há dados oficiais do Governo
Federal, tanto que foi necessária a adoção, pelos veículos de imprensa, de um consórcio, no intuito
de publicizar, com a maior exatidão possível, os reflexos da COVID-19 (G1, 2020).
Apesar do atual contexto de desatendimento, pelo Poder Público, enfrentado pela população das
favelas no Rio de Janeiro, destaca-se a mobilização das comunidades em buscar recursos individuais
e coletivos para amenizar as consequências da pandemia. Não obstante às precárias condições de
vida, pobreza e segregação, bem como, a inércia do Estado em promover ações eficazes de combate,
se constata determinada movimentação pelas próprias pessoas da comunidade, que demonstra, por
consequência, o enfrentamento da colonialidade. Dentre as organizações atuantes dentro das favelas,
destacam-se a Central única das Favelas (CUFA) e a AfroReggae (JOVCHELOVITCH, 2013).
Como demonstração da organização da própria comunidade para o enfrentamento das
consequências do vírus, tem-se o site COVID-19 nas FAVELAS, que iniciou no início da pandemia, cujo o
objetivo é unir os Coletivos para angariar doações, que são revertidas para famílias da comunidade do
Rio de Janeiro e Região. Atualmente, os Coletivos envolvidos são: Coletivo Fala Akari, Conexão Favela e
Arte: cuidando dos nossos, SAAF, B.A.S.E, Complexo da Maré contra o Coronavírus, União Coletiva pela
Zona Oeste, Coletivo Papo Reto e Movimenta Caxias. Até junho do corrente ano, já se angariou mais R$
250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) em arrecadações (COVID-19 NAS FAVELAS, 2020).
No mês de maio de 2020, em razão da discrepância dos dados oficiais com relação aos dados emitidos
pelo Governo Federal sobre os casos de COVID-19 nas favelas do Rio de Janeiro, as organizações atuantes
nas comunidades tiveram a iniciativa de fazer os levantamentos dentro da periferia. Nesse viés, o Jornal
Comunitário Voz das Comunidades, do Complexo do Alemão, elaborou um painel de dados de contágio do
vírus, que são verificados, também, em comparação aos dados oficiais (AGÊNCIA BRASIL, 2020).

52 Da população, em geral.

118
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A organização Viva Rio, no mês de maio de 2020, realizou pesquisa, em que se observou que
75% das pessoas, residentes nas favelas e com sintomas de COVID-19, decidem por não procurar
atendimento médico, sendo que a metade conhece alguém que morreu pela doença. Quanto aos
óbitos, 10% ocorreram dentro de casa, sem assistência médica. No mais, é referido que 8,8% das
residências das favelas têm, no mínimo, uma pessoa infectada (AGÊNCIA BRASIL, 2020).
Conforme matéria publicada pelo site do Estadão no mês de junho de 2020, apesar dos Estados
Unidos estarem à frente do Brasil no número de casos de pessoas com COVID-19, deve ser considerado
o fator primordial e alarmante, que aloca os brasileiros a um possível epicentro da doença: a acentuada
disparidade social. Na publicação, é destacado que, em 2010, a cidade do Rio de Janeiro encomendou
pesquisa sobre o CENSO das favelas, em que se constatou, por exemplo, a existência de mais de
cem mil pessoas habitando os noventa e três hectares da favela da Rocinha, que é considera a maior
do País. Esse dado é preocupante à medida que, nas vielas dos morros, há uma maior circulação de
pessoas, o que corrobora para potencializar o contágio do vírus (ESTADÃO, 2020).
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no mês de julho de 2020, publicizou pesquisa referente
ao contágio de COVID-19 nas favelas cariocas, em se que constatou maior letalidade da doença
nos homens do que nas mulheres, sendo maior o percentual de óbitos na população negra dos
territórios periféricos. No Informativo emitido, foi revelado, ainda, que nos bairros classificados como
“concentração altíssima”, “concentração alta” ou “concentração mediana” de áreas cobertas por favela,
a ocorrência da doença é maior na população negra. Por sua vez, nos bairros classificados como
“concentração baixa), os índices de contágio da população negra são de 25,6%, sendo próximo da
população branca, que é de 27,6% (PORTAL FIOCRUZ, 2020).
Como se constata, o processo colonizatório sofrido pelo Brasil reflete, diretamente, na
desigualdade social impregnada na sociedade, que afeta, principalmente, a população negra periférica,
sendo a criação de raça uma construção social, da qual advém o racismo.
No mais, a mobilização da população das favelas em unir-se contra a COVID-19, bem como, emitir
dados efetivos e reais sobre o cenário pandêmico, demonstra um meio de combate à colonialidade.
Ainda que precária a atuação do Estado, seja nos níveis federal ou estadual, e, dentro de sua
competência, o municipal, verifica-se, por um lado, que as favelas são espaços em que os números
de contágio e óbitos pela COVID-19 são os mais altos; por outro, a autonomia da população em adotar
medias próprias de enfrentamento da pandemia, seja com organizações para fins de mapeamento, de
monitoramento e de distribuição de auxílio e atendimento, o que, em si, é um ato de resistência ao
sistema centro-periferia e aos aspectos colonialistas, ainda presentes no Brasil.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que a desigualdade social, enfrentada pela população negra nas favelas do Brasil,
especialmente, na cidade do Rio de Janeiro, é um dos reflexos dos processos colonizatórios ocorridos
na América Latina, que tornaram vítimas os negros, haja vista que foram utilizados como mão de obra
escrava, bem como, tiveram seus direitos negados.
Ademais, o atual cenário corrobora para potencializar os reflexos da COVI-19, uma vez que a po-
pulação negra periférica é a principal atingida. Apesar disso, necessário desatacar que a mobilização,
pelas próprias comunidades das favelas, representa uma busca e tentativa de combate à colonialida-
de, entendida como o resultado dos processos colonizatórios da/na América Latina.
Por fim, restou demonstrada a insuficiência do Estado em efetivar políticas públicas de caráter
emergencial para amenizar os efeitos do vírus no cotidiano da população negra periférica, bem como,
a ausência de apresentação de dados oficiais efetivos sobre a pandemia, tanto que foi criado, pelos
veículos de comunicação, um consórcio informativo, no intuito de publicizar, com a maior exatidão,
os reflexos da COVID-19.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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121
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

COVID-19, CIENTIFICIDADE E IMPESSOALIDADE NA


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA:
REFLEXÕES À LUZ DA OBRA ANTÍGONA

Gabriel Cemin Petry53


Dailor dos Santos54

RESUMO: O artigo analisa criticamente as perspectivas de atuação administrativa, alicerçadas em


parâmetros científicos, como derivativo do princípio da impessoalidade da Administração Pública,
avaliando, a partir do entendimento do STF, o emprego, pelo Estado, de standards científicos e
técnicos para o enfrentamento da pandemia da Covid-19. As reflexões críticas suscitadas retomam a
narrativa literária de Sófocles, em sua obra Antígona, para demonstrar a importância de uma atuação
administrativa pautada pelo interesse público. A investigação é conduzida pelo método hipotético-
dedutivo, através de revisão bibliográfica e documental. A partir do entendimento do STF, verifica-se
uma ampliação do significado da impessoalidade administrativa, indicando que os atos administrativos
exigem uma motivação alicerçada em bases científicas.

Palavras-chave: Antígona. Direito Administrativo. Literatura. Pandemia. Princípio da Impessoalidade.

INTRODUÇÃO

Diante da pandemia do vírus Covid-19 o Brasil tem mergulhado em um cenário de crise


delineado em diferentes dinâmicas, como sanitária, social, econômica e fiscal. Esse panorama leva a
um questionamento contínuo de políticas públicas adotadas pelo Estado, seja em relação a medidas
sanitárias seja em face de novos dilemas econômicos que a pandemia apresenta.
O papel do Estado, em face dessa sensível crise, consiste na atuação da gestão pública
sincronizada com o texto constitucional e balizada pelos princípios norteadores da Administração
Pública, entre eles o princípio da imparcialidade. A Medida Provisória (MP) n° 966/20, neste sentido,
ampliou os debates acerca de responsabilidade de agentes públicos no cenário de crise, suscitando
questionamentos decisivos: a cientificidade, como base de decisão administrativa, possibilita um agir
responsável e mais prudente da Administração Pública? Poderia a ciência servir de reduto ao princípio
da impessoalidade, guarnecendo o interesse público e o direito à vida?
Desta forma, o presente artigo ocupa-se da análise do emprego do princípio constitucional
da impessoalidade e de sua atual correlação com o primado da cientificidade para o enfretamento
da pandemia da Covid-19. Para tanto, recorre-se à literatura: a obra Antígona, de Sófocles, que é
conhecida por sua riqueza interpretativa, levando a inúmeras interpretações, possibilita um diálogo
interdisciplinar entre a literatura e o Direito. Essa aproximação, em tempos de enfraquecimento de
valores democráticos, faz-se premente, pois a literatura é capaz de realizar tensionamentos hipotéticos
no campo do Direito, levando a profundas e apuradas análises da ciência jurídica a partir de uma
narrativa literária (KARAM; TRINTADE, 2013, p. 197-203).
Especificadamente, analisar-se-á a impessoalidade em Antígona, através das ações e decisões
de Creonte, que assume o poder de Tebas em um momento marcado pela crise. Feito isso, parte-se
ao exame da cientificidade como nova significação do princípio constitucional da impessoalidade na
Administração Pública, o que conduzirá à análise da decisão do Min. Luís Roberto Barroso na Ação

53 Bacharelando em Direito na Universidade Feevale. Participante do Programa de Iniciação Científica da Universidade Feevale.
54 Mestre em Direito Público (UNISINOS). Especialista em Direito do Estado (UFRGS). Doutorando em Direito Público (UNISI-
NOS). Chefe de Gabinete da Justiça Federal (TRF 4ª Região). Professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo
(FEEVALE).

122
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Direta de Inconstitucionalidade n°. 6421 em paralelo à situação de pandemia e à responsabilidade da


gestão pública, apoiada em Hans Jonas, pela tomada de decisões responsáveis e precavidas.
Com o fim de promover o enfrentamento destas perspectivas, adota-se, para o estudo, o método
de investigação hipotético-dedutivo, através de revisão bibliográfica e documental, analisando-se,
a partir do pano de fundo de Antígona, a decisão relatada pelo Min. Barroso na Ação Direta de
Inconstitucionalidade n°. 6421.
A impessoalidade na figura de Creonte sugere um ponto de inflexão: a tragédia ocorre em
razão do Rei negar-se a ouvir o conhecimento dos sábios, bem como limitar a sua interpretação da
necessidade do povo Tebano. A analogia conflui na percepção de que o atendimento ao interesse
público depende de uma decisão fundada no princípio da impessoalidade, especialmente em tempos
de crise, onde a proteção da vida humana é prioritária. Neste sentido, a cientificidade possibilita uma
nova perspectiva sobre a impessoalidade, impondo que atos administrativos de enfrentamento da
pandemia, sob pena de sua nulidade, sejam motivados a partir de standards técnicos e científicos,
por se tratar do único modo de gestão pública atenta ao interesse público e à sua preservação com
responsabilidade e prudência.

1 A IMPESSOALIDADE EM ANTÍGONA: DEBATES EM TORNO DE UM PRINCÍPIO ADMINISTRATIVO

Antígona, de Sófocles (441 a.c.), trata-se da terceira e parte final da Trilogia Tebana, que consiste
em Édipo Rei, Édipo em Colono e, por fim, a obra Antígona. Na obra, a personagem Antígona, ao
retornar para cidade de Tebas, depara-se com um cenário de crise decorrente de uma guerra causada
por seus dois irmãos, Etéocles e Polinices desencadeada pelo seguinte motivo: após a morte de Édipo,
pai de Antígona, Ismene, Etéocles e Polinices, foi acordado entre os dois irmãos o revezamento do
trono da cidade de Tebas; o que não sucedeu, visto que Etéocles negou o cumprimento do acordo
a Polinices. Tomado pelo sentimento de vingança, Polinices alia-se a cidade de Argos e reúne um
exército para invadir Tebas e, assim, destronar seu irmão Etéocles. Entretanto, o resultado da guerra é
a fatalidade: embora Tebas tenha derrotado Argos, ambos os irmãos, um pela mão do outro, acabam
falecendo, dentro da cidade de Tebas (WIVIURKA, 2018, p. 81).
Neste contexto inicia-se a peça: Creonte, irmão de Édipo, assume o trono de Tebas em um
momento de crise, marcado pela sucessão de eventos desastrosos, como a peste, ocorrida durante o
governo de Édipo, e a guerra, durante o governo de Etéocles, que culminou em fratricídio (ROSENFIELD.
2002, p. 35). Prontamente, ao se incumbir do governo de Tebas, Creonte impõe um édito que concede
as honrarias fúnebres ao sobrinho que lutou e defendeu a cidade de Tebas e, por outro lado, proíbe o
sepultamento do outro, Polinices, que promoveu ataque à cidade. (WIVIURKA, 2018, p. 82). Assunta
que com semelhantes normas, manterá intacta “a glória de Tebas”, determinado que caberá a Etéocles
as honrarias marciais ao túmulo, e, por outro lado, ao irmão Polinices, aquele que “que regressou
do exílio para incendiar a terra de seus pais e até os santuários dos deuses venerados por seus
ascendentes e quis provar o sangue de parentes seus e escravizá-los” (SOFOCLES, 2012, p. 209),
permanecerá, por força de seu édito, insepulto.
Creonte, ao assumir o trono de Tebas, apresenta um discurso que, a priori, dada situação de grande
tensão, mostra-se interessado no que é melhor para a cidade, de forma a reerguê-la dos danos sofridos
pela praga e pela guerra (OLIVEIRA, 2014, p. 86). Conforme aponta Oliveira (2014), a fala introdutória
de Creonte sugere um governante que se mostra preocupado com a paz na cidade de Tebas, indicando
que as decisões melhores devem ser tomadas em observância ao bem de Tebas, de forma a evitar que a
ruína venha a assolar o povo tebano (OLIVEIRA, 2014, p. 87).Ainda que Etéocles e Polinices sejam seus
sobrinhos, possuindo com ele laços sanguíneos, Creonte parece afastar-se da pessoalidade, isso, de forma
a adotar um critério de decisão moral para distinguir um do outro, visto que um atacou a cidade e outro
a defendeu (ROSENFIELD, 2002, p. 24). Segundo Wiviurka (2018), Creonte apresenta um esforço sincero
com o fim de salvar Tebas, representando, portanto, as máximas do Estado (WIVIURKA, 2018, p. 87).
Nesta esteira, Oliveira (2014) aponta que, com a sua decisão, Creonte estaria mais próximo da
justiça do que da injustiça, visto que Polinices, de fato, promoveu ataque à cidade de Tebas (OLIVEIRA,
2014, p. 89). Embora assista razão a Creonte acerca das recusas das honrarias fúnebres ao agressor

123
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

da cidade, a medida é extremada (ROSENFIELD, 2002, p. 28), o que leva Antígona a desobedecer ao
decreto e tentar enterrar seu irmão, o que acarreta o embate onde os acontecimentos trágicos levaram
ao choque: Creonte defenderá as máximas públicas do Estado, enquanto Antígona representa seu
interesse privado, fundado na lei dos deuses (OLIVEIRA, 2014, p. 88).
Assim, no decurso da obra de Sófocles, Antígona é apanhada por um guarda da cidade ao
tentar descumprir o decreto, razão pela qual é levada até Creonte, assumindo que conscientemente
transgrediu o decreto para não faltar com o dever com o sagrado (ROSENFIELD, 2002, p. 28). Ainda,
indagada por Creonte acerca do seu atrevimento em desobedecer às leis de Tebas, responde Antígona
que: “[...] não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a
obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis [...]”(SOFOCLES, 2012, p. 219).
Cabe ao Rei de Tebas, então, o julgamento de Antígona: como poderia julgar a sua sobrinha de forma
impessoal, sem que sua imparcialidade fosse comprometida? Segundo Oliveira (2014), Creonte sabe estar
julgando “membros do seu genos e sabe que há implicações éticas nisso quando afirma que mesmo Antígona
e Ismene, sendo filhas de sua irmã, não se livrarão do destino atroz a que ele as condenará”(OLIVEIRA, 2014,
p. 90).Entretanto, ao julgar Antígona, sua fala indica que o ato de rebeldia de Antígona teria considerado
como um desafio pessoal a sua autoridade, de forma que “um deslize no seu discurso e uma questão de
interesse público acaba se tornando, também, uma questão pessoal” (OLIVEIRA, 2014, p. 91).
Na sequência, dada a profecia de tragédia a Creonte, Creonte, temendo por seu futuro, cede e
volta atrás em seu édito, liberando Antígona de sua pena e, ainda, sepultando Polinices. Entretanto,
antes que a decisão se concretizasse, Antígona tira sua própria vida, circunstância que leva Hémon,
filho de Creonte, e sua mãe, Eurídice, ao suicídio (WIVIURKA, 2018, p. 83-84).Assim, o desesperado
desejo de acalmar os anseios da população e salvar a cidade dos infortúnios vividos por conta da
peste e da guerra, Creonte realiza uma estrita interpretação das necessidades da polis, de forma a
ignorar “uma série de fatores necessários ao bem público em nome de um maniqueísmo entre amigos
e inimigos” (WIVIURKA, 2018, p. 92), o que descamba na tragédia.
Haveria, então, um valor anterior e superior ao próprio Direito, como sugere Antígona ao desafiar
Creonte? Essa perspectiva – que a pós-modernidade parece encarar sob o cenário da ampliação das fontes
jurídicas (FRYDMAN, 2016) – confronta o próprio papel ocupado pelo Estado, as suas possibilidades de
regulação das atividades realizadas pelos particulares e aguça conflitos aparentemente insuspeitos,
como o que, não sem antes enfrentar robustas críticas (SARMENTO, 2005), anuncia a supremacia do
interesse público sobre os interesses privados. Disso deriva o questionamento que Antígona transpõe
para o tempo presente e, em particular, para o Direito Administrativo em tempos de pandemia: há
algum campo para ação administrativa dissociada de evidências científicas? A impessoalidade não se
transmutaria, hoje, para a motivação administrativa pautada em critérios científicos?

2 A CIENTIFICIDADE COMO REDUTO DA IMPESSOALIDADE ADMINISTRATIVA

No dia 11 de agosto de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS), declarou a pandemia do


novo coronavírus (Sars-Cov-2), levando o Brasil a um processo de desmonte nos mais diversos setores
do país, entre eles o da saúde pública: sendo o SUS, nesse aspecto, brutalmente lesado, visto que é
dependente de produtos importados, de acesso dificultoso ao país, e do setor privado, com projeções
que levam a crer que até 2036 o prejuízo do SUS atingirá a monstruosa quantia de 168 bilhões de
reais (MONTEIRO. 2020.) Em contrapartida, os casos de contágio e óbito continuam a aumentar, tendo
o Brasil, em setembro, mais de quatro milhões de casos confirmados e mais de cento e trinta mil
óbitos confirmados (MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2020).
A situação de crise é viva no Brasil, carregando consigo embates que põem em xeque a
economia, o trabalho, a saúde e, dentre outros, a própria noção de dignidade da pessoa humana
(FÜRST. 2020). Sob este aspecto, observe-se que, poucos meses após a pandemia, isto é, sob um
contexto de marcada crise política e institucional, os debates acerca da responsabilização do Estado
na luta contra a pandemia começam a se aquecer, uma vez que o Poder Executivo brasileiro editou a
MP n°. 966/20, pleiteando a regulação da responsabilização de agentes públicos por ação ou omissão
de atos relacionados a pandemia (REIS JUNIOR. 2020, p. 306).

124
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Em síntese, a referida MP foi alvo de diversas Ações Diretas de Constitucionalidade em razão


de (i) limitar a responsabilidade de agentes públicos às hipóteses de ação ou omissão dolosa e
erro grosseiro, pela pratica de atos relacionados ao combate da pandemia, bem como pela opinião
técnica, não estendendo, de forma automática, a responsabilidade ao decisor que a adotar; (ii)
responsabilização subjetiva do agente público e (iii) conceituação e construção de critérios de aferição
de erro grosseiro (REIS JUNIOR. 2020, p. 307). Com base em Hupffer, Naime, Adolfo e Corrêa (2012),
pertinente a provocação: em tempos de crise, deixaria de ser responsável o Estado pela sua inércia
em realizar ações que poderiam evitar catástrofes? A resposta, fundada no princípio responsabilidade
de Hans Jonas, é negativa: o Estado não tem poder para realização de “apostas totais”, não possuindo,
portanto, o direito de arriscar a vida humana, devendo, assim, responder por ações ou omissões
danosas à continuidade humana no futuro (HUPFFER, et al. 2012, p. 113).
A decisão administrativa que não observa o bem comum, ou seja, o interesse geral e público,
como a vida, é, por essência, dissonante dos princípios constitucionais que norteiam a Administração
Pública, especialmente no que toca à impessoalidade, na medida em que está intimamente atrelada
ao princípio de isonomia, finalidade e, igualmente, à preponderância do interesse público (COUTO,
2019, p. 122). Por outro lado, segundo Fürst (2020), a vedação de retrocesso social põe travas a
uma ação administrativa que abale princípios constitucionais voltados à proteção da dignidade da
pessoa humana, revelando-se inconstitucional qualquer medida tomada com o fim de agredir direitos
fundamentais constitucionalmente guarnecidos, ou seja: assegurado meios de conceder eficácia
a direitos sociais, por exemplo, passa o Estado a ter “a obrigação de não fazer qualquer ato que
contrarie, diminua ou cesse a realização feita anteriormente” (FÜRST. 2020).
Nesta esteira, salta, pois, a importância dos princípios constitucionais, visto que, à luz de Streck
(2020), têm o importante papel de institucionalização do mundo prático, de modo pragmático, elidindo
dualidades decorrentes de tradições anteriores (STRECK, 2020, p. 370). Estes princípios extraem a sua
força normativa do paradigma jusfilosófico do pós-positivismo, que (re)aproxima o Direito da moral
(OLIVEIRA, 2018, p. 79). Essa aproximação do Direito com o seu entorno, como a moral e a política,
segundo Streck (2020) é um traço característico do não positivismo, assim como “um reconhecimento
da normatividade dos princípios jurídicos, entendidos como padrões vinculantes e substanciais que
exigem do intérprete um exercício distinto na aplicação do Direito” (STRECK, 2020, p. 337).
Para Oliveira (2018), “os princípios são considerados normas jurídicas, ao lado das regras, e
podem ser invocados para controlar a juridicidade da atuação do Estado” (OLIVEIRA, 2018, p. 79).
Na visão de Streck (2020), princípios constitucionais oferecem, ainda, espaços de argumentação de
natureza deontológica, possibilitando o controle de sentidos articulados em uma decisão, reforçando,
assim, a ideia de que o conteúdo dos princípios não é prescrito em lei ou mesmo determinado por
tribunais, afinal: “princípios não são escolhas, tampouco construções arbitrárias” (STRECK. 2020,
p. 372). Desta forma, faz-se inadmissível a existência de decisão administrativa que se choque aos
princípios constitucionais invólucros pela Constituição Federal de 1988.Entretanto, o plano dos fatos
revela certa despreocupação estatal com os princípios constitucionais, dado que as consequências de
anos de omissão, bem como o uso excessivo da discricionariedade do Estado, descambam na frequente
convocação do Estado para “se posicionar sobre o descumprimento de preceitos constitucionais e a
responder civilmente por seus atos de ação ou omissão” (HUPFFER, et al. 2012, p. 111), tal como
denunciado no julgamento da ADI n° 6421, que apontava a inconstitucionalidade da MP n°. 966/20.
A impessoalidade da Administração Pública é elemento indissociável do dever de agir conforme
o interesse público (NOHARA, 2019, p. 45), de forma que a Administração Pública, especialmente em
tempos de crise, deve fundar suas decisões no interesse público e na real necessidade dos cidadãos, no
momento, qual seja: a preservação da vida humana. Não cabe à Administração Pública tomar decisões que
coloquem em risco a vida, visto que, no imperativo ético de Jonas, atinente à política pública, a coerência
não é mais a “do cidadão consigo mesmo, mas dos efeitos finais da ação ou omissão na perspectiva da
política pública para a continuidade da atividade humana no futuro” (HUPFFER, et al. 2012, p. 113). A
impessoalidade, em síntese, não pode ser delineada no campo de eventuais e incertas apostas. Não é
esse, desde 1988, o espaço que o Estado pode ocupar. Já não se trata apenas da ingênua compreensão
da impessoalidade como privilégio ou prejuízo ilegal a algum cidadão, mas de uma atuação que deve
necessariamente – e apenas – atuar em prol do interesse público. A decisão administrativa, portanto, deve

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ser concebida a partir de critérios mensuráveis e verificáveis, sob pena de abrir-se ao gestor público um
campo infinito de escolhas próprias e fundadas em suas exclusivas justificativas.
Recorre-se, então, à analogia: Creonte buscava tomar as melhores decisões para Tebas, no intento
de salvar a cidade da situação de crise experienciada pela peste e pela guerra; no entanto, ao realizar
uma interpretação limitada – e talvez irresponsável – das necessidades do povo, acaba experienciar
a tragédia (WIVIURKA, 2018, p. 92), indo de encontro ao interesse público e, consequentemente,
flagelando a sua impessoalidade na decisão. Segundo Jonas, o norte para atuação governamental é a
responsabilidade, de forma que “a responsabilidade do Estado por omissão se apresenta alicerçada no
ato ilícito e na aceitação do risco” (HUPFFER, et al. 2012, p. 127). No aspecto, cabe o questionamento:
sendo que a mera argumentação de interesse na preservação do interesse público, como em Creonte,
não é suficiente, orientações embasadas em dados concretos possibilitariam um fortalecimento
da aplicação prática da impessoalidade nas decisões administrativas em situações de crise? Como
poderíamos evitar a tragédia no direito administrativo?
O julgamento da ADI n°. 6421, nesse passo, apresenta uma possível resposta para o questionamento:
o emprego de standards técnicos e científicos como base para ação da Administração Pública. Segundo
Antônio dos Reis Júnior (2020), a atenção do Ministro Relator Luís Roberto Barroso é atraída pelo
argumento de que a MP n°.966/20 é medida grave, imunizando de responsabilidade autoridades
públicas que relutam fortemente em seguir orientações científicas, de forma “a produzir os piores
incentivos quanto à não proteção da saúde da população e ao desvio de verbas imprescindíveis
para o combate aos efeitos da pandemia” (REIS JUNIOR. 2020, p. 308). A decisão atenta, ainda, a uma
multiplicidade de dimensões da crise decorrente da pandemia da covid-19, quais sejam: (i) sanitária,
relativa à saúde pública; (ii) econômica, atinente ao abalo econômico inevitável em razão da pandemia;
(iii) social, tratando da grave situação de desemprego, quebra sequencial de empresas e da imensa
quantidade de pessoas dependentes do auxílio emergencial para sobreviver, e, por fim; (iv) fiscal,
decorrente da grande pressão posta sobre os cofres públicos (BARROSO. 2020, p. 306).
Com efeito, fundado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, acerca da tutela do direito
à vida, delineia o Ministro Relator a importância decisiva de consensos médicos e científicos, bem
como do respeito aos princípios de precaução e da prevenção para atuação da Administração Pública,
concluindo que atos administrativos, neste contexto de crise, devem ser orientados por standards
técnicos, normas e critérios científicos (BARROSO. 2020, p. 317). A decisão, por fim, interpreta
conforme a constituição o conceito de erro grosseiro, constante na MP, alterando-o para que se adeque
aos princípios de precaução e prevenção, assim como as disposições técnicas e científicas emanadas
por entidades reconhecidas nacional e internacionalmente (REIS JUNIOR. 2020, p. 308).
Neste sentido, ao mencionar que as questões relacionadas à proteção do direito à vida “devem
observar standards técnicos e evidências científicas sobre a matéria, tal como estabelecidos por
organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas” (BARROSO. 2020, p. 309),
tem-se a valorização de critérios científicos para uma tomada de decisões conscientes e responsáveis,
pautadas no bem estar da sociedade e, por decorrência, no interesse público.
Assim, em tempos de crise, como da pandemia de covid-19, a atenção afundamentos científicos
indica uma nova possibilidade de compreensão do princípio da impessoalidade nas decisões da
Administração Pública, especialmente em se tratando da guarida do direito à vida. O princípio
constitucional de impessoalidade culmina no dever de tomar decisões e prestar serviços que não
beneficiem um grupo exclusivo ou uma decisão solipsista do administrador, mas que sejam de
interesse geral, dissonantes de interesses privados e beneficiando um maior número possível de
indivíduos (COUTO, 2019, p. 681).
Mais: a decisão do Supremo Tribunal Federal, ao definir objetivamente o modelo comportamental do
qual o agente público não pode distanciar-se, adota uma previsão que fortifica a atuação da Administração
Pública no sentido do princípio da precaução, “atuando em conformidade com as normas e critérios
científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações reconhecidas
nacional e internacionalmente” (REIS JUNIOR. 2020, p. 326). Essa condução elenca diretrizes que dificultam
a possibilidade de inobservância da realidade e da necessidade pública, como ocorrido na tragédia de
Sófocles: Creonte (o governante), hoje, tem em mãos meios que não limitam a averiguação da necessidade
do povo, devendo agir sob o norte do interesse público e da responsabilidade.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tragédia grega de Sófocles está envolvida por uma complexa ambiguidade interpretativa, o
que acaba por enriquecer as concepções literárias da obra e, com isso, contribuir com a reflexão e
compreensão das relações sociais e do próprio Direito. No caso, o governante Creonte busca tomar “as
melhores decisões” para Tebas, buscando salvar a cidade da situação de crise, marcada pela doença
e pela guerra; no entanto, ao não ouvir os sábios anciões, bem como interpretar de forma restrita
a necessidade dos cidadãos, prova Creonte da tragédia. A interpretação limitada das necessidades
do povo culmina, então, na infração ao agir impessoal da Administração Pública, minando, por
consequência, o próprio interesse público.
Em tempos de crise sanitária, econômica, social e fiscal, como experienciado pela situação de
calamidade pública decorrente da pandemia da covid-19, a observância aos princípios constitucionais
é imprescindível, tanto por seu caráter deontológico como institucionalizador do mundo prático,
apresentando um norte para as decisões da Administração Pública, e a impessoalidade, nesse
contexto, é elemento indissociável de uma ação administrativa voltada ao atendimento do interesse
público pautado na responsabilidade e na tutela do direito à vida.
Neste aspecto, não assiste ao Estado o direito de realizar apostas irresponsáveis de vida ou morte
para a sociedade, colocando em risco, por ação ou omissão, a vida humana; mas o contrário: a ação
do Estado deve ser movida de forma responsável e prudente, como um verdadeiro imperativo ético.
O princípio da impessoalidade reflete tal diretiva, visto que implica no dever do administrador público
de não tomar decisões pautadas na vantagem de um grupo específico, promovendo o irresponsável
retrocesso de direitos e garantias individuais e sociais. A impessoalidade tem efeito final contrário:
busca o benefício do maior número de indivíduos possível, atuando o Estado, assim, em prol do
interesse público.
A tragédia de Sófocles denota o erro de Creonte, ao deixar de dar ouvidos às recomendações
dos sábios e realizar interpretações limitadas da necessidade do povo. No mesmo sentido vai a
Administração Pública que ignora parâmetros científicos, conforme a decisão nos autos da ADI n°. 6421,
em que o Ministro Relator Luís Roberto Barroso aponta o dever do administrador público em observar
por Standards técnicos, normas e critérios científicos, referendados por entidades científicas nacionais
e internacionais, para o combate da pandemia da covid-19. A cientificidade oferece, portanto, uma nova
perspectiva para o princípio constitucional de impessoalidade, permitindo uma nova abertura para a
sua aplicação, de forma a garantir que sejam observados critérios científicos para a tomada de decisões
responsáveis e precavidas, que efetivamente respeitem o interesse público em tempos de crise.

REFERÊNCIAS

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

CRISE AMBIENTAL E REFUGIADOS CLIMÁTICOS:


UMA ANÁLISE A PARTIR DA AGENDA 2030 DA ONU

Bruno Rafael Rodrigues55


Anna Paula Bagetti Zeifert56

RESUMO: O presente artigo analisa a crise ambiental como uma resposta da natureza à imprudência
do ser humano no sentido de não preocupar-se com os processos naturais de organização numa
perspectiva ecológica equilibrada, conforme orienta a Agenda 2030 da ONU. Nesse contexto, propõe-
se a refletir sobre um dos problemas gerados por referida crise, qual seja, os chamados refugiados
climáticos (ou ambientais). A questão pode ser vista tanto local quanto globalmente, uma realidade
que afeta regiões vulneráveis as alterações climáticas, consistindo em um desafio a ser enfrentado pela
humanidade na contemporaneidade. Para seu delineamento o estudo utiliza o método de abordagem
hipotético-dedutivo, centrado na pesquisa bibliográfica. Conclui destacando que os refugiados
climáticos são um exemplo real da crise ambiental que gera, também, situações de flagrante violação
dos direitos humanos.

Palavras-chave: Agenda 2030. Crise Ambiental. Direitos Humanos. Refugiados Climáticos.


Vulnerabilidades.

INTRODUÇÃO

O meio ambiente é essencial à vida e à saúde de todos, com reflexos na sobrevivência das
presentes e futuras gerações, todavia, a humanidade convive com uma crise ambiental, a qual decorre
da utilização desmedida dos recursos naturais para propiciar o desenvolvimento socioeconômico,
provocando diversas situações até então não presentes em nosso meio, como o caso dos refugiados
climáticos (ou ambientais).
Nesse sentido, é crescente em todo Planeta Terra o número de pessoas que são forçadas a
emigrar das zonas que habitam em razão de alterações do ambiente, quer dentro do seu país ou
mesmo para outro, denominados acima de refugiados climáticos ou ambientais.
As secas, a escassez de alimentos, a desertificação, a elevação do nível de mares e rios, a
alteração de ventos climáticos e o desmatamento são apenas alguns fatores ambientais que vêm
gerando a migração territorial de povos em todo o mundo em busca de melhores condições de vida
ou mesmo para sobreviver.
A algum tempo a crise ambiental passou a ser um assunto de interesse de todos pelo fato de que
os indivíduos têm sentido de forma mais presente os efeitos das mudanças climáticas decorrentes
da ação humana sobre o meio ambiente. Tais efeitos são sentidos por várias regiões do mundo.
Nesse contexto, pode-se afirmar que “os problemas dos recursos ecológicos e sociais da terra
são intimamente interdependentes. Pobreza, crescimento acelerado da população, destruição dos
recursos e degradação do meio ambiente estão profundamente relacionados.” Para os estudiosos
do assunto, as principais causas dos problemas ambientais atuais são: crescimento da população
de forma insustentável, o que acentua o aumento da pobreza e da desigualdade social, produção de
alimentos sem planejamento e de forma exploratória dos recursos naturais, uso de energia de forma

55 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da UNIJUI, MINTER
UNESC-Rondônia/RO. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade (CNPq). Advoga-
do. Email: bruno.tradicao@hotmail.com
56 Pós-Doutora pela Escola de Altos Estudos - Desigualdades Globais e Justiça Social do Colégio Latino-Americano de Estudos
Mundiais, programa da FLACSO Brasil e UNB (Capes PrInt). Doutora em Filosofia (PUCRS). Professora do Programa de Pós-
Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos - e do Curso de Graduação em Direito da UNIJUI. Integrante
do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade (CNPq). E-mail: anna.paula@unijui.edu.br

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

insustentável e produção industrial em larga escala. (A CRISE..., 2020).


Dados estatísticos demonstram que “a população do planeta beira os 7,8 bilhões de pessoas e,
é nos países mais pobres que o índice de crescimento populacional fica maior a cada ano que passa.”
Tal realidade torna-se evidente quando olha-se para as pesquisas que relatam que nos países em
que a qualidade de vida e o bem-estar é reduzido, a violação de direitos humanos é mais evidente.
“Por sua vez, o crescimento populacional constante vem sempre acompanhando pela degradação
ao meio ambiente, já que a pressão sobre os recursos naturais destinados a suprir as necessidades
alimentares e produtivas da população torna-se além do apropriado.” (A CRISE..., 2020).
Qualquer ecossistema tem certa capacidade de carga de uma espécie. Isto é, ele pode manter
e reproduzir determinado número de indivíduos. Quando a população cresce demais, rompendo o
equilíbrio dinâmico do sistema, se produz uma crise ambiental. É comum extrapolar estes raciocínios
para a sociedade humana e a crise ambiental contemporânea. Alguns autores falam da “marca d’água”
que os barcos possuem, para assinalar que se a sociedade humana produz além de um certo nível,
corre o risco de sobrecarregar o ecossistema e ir-se a pique. Ou falam da produção ilimitada da
sociedade industrial em direta oposição aos recursos materiais finitos do planeta terra, fazendo
menção explícita à depredação e poluição da natureza. Não obstante, estas extrapolações resultarem
atrativas, são equivocadas, perdem de vista a especificidade humana.57
Com efeito, o mundo passou a almejar o desenvolvimento socioeconômico, o qual se expandiu na era
industrial, quando iniciou o aumento acelerado dos processos produtivos com a utilização desmedida dos
recursos naturais. Na intenção de acumular e circular capital, os seres humanos divorciaram-se da relação
de sua existência com o meio ambiente. Esse comportamento degradador do homem sobre a natureza
gerou e gera impactos catastróficos no âmbito planetário, instalando-se a crise ambiental globalizada.
Assim sendo, o presente trabalho visa demonstrar que a crise ambiental que se manifesta
diante da devastadora ação humana junto ao meio ambiente é uma realidade que afeta regiões
vulneráveis as alterações climáticas, consistindo em um desafio a ser enfrentado pela humanidade
na contemporaneidade. Como caminho para o momento de crise ambiental, o estudo aponta para a
proposta de uma sociedade sustentável, presente na Agenda 2030 da ONU.

1 REFUGIADOS CLIMÁTICOS (OU AMBIENTAIS) E OS DESAFIOS HUMANITÁRIOS

Na medida em que cresce a crise ambiental no meio ambiente, em especial o natural, afetando
negativamente a qualidade de vida das pessoas e colocando em risco as futuras gerações, torna-se
crucial a maior e eficaz tutela dos recursos ambientais pelo Poder Público e por toda coletividade.
A Declaração de Estocolmo (IPHAN, 2020) foi o marco mundial no alerta sobre os riscos à existência
humana trazida pela degradação excessiva, proclama que “O homem é ao mesmo tempo obra e
construtor do meio ambiente que o cerca, o qual lhe dá sustento material e lhe oferece oportunidade
para desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente.” Ou seja, “em larga e tortuosa evolução
da raça humana neste planeta chegou-se a uma etapa que, graças à rápida aceleração da ciência e da
tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, de inúmeras maneiras e em uma escala sem
precedentes, tudo o que o cerca.” Conforme revela a declaração, os dois aspectos do meio ambiente
humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos
humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma”.
Continua com a seguinte redação a referida declaração: “A proteção e o melhoramento do meio am-
biente humano é uma questão fundamental que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômi-
co do mundo inteiro, um desejo urgente dos povos e de todo o mundo e um dever de todos os governos”.
(IPHAN, 2020)

57 Nesse sentido, “essa defasagem entre o número de pessoas e recursos é ainda mais premente porque grande parte do au-
mento populacional se concentra em países de baixa renda, em regiões desfavorecidas do ponto de vista ecológico e em áreas
de pobreza. Nos países em desenvolvimento, o crescimento populacional tem enfraquecido sua capacidade de satisfazer as
necessidades socioeconômicas básicas e proteger os recursos naturais, causando problemas de ordem ambiental, econômica,
política e social, tais como: escassez de água, esgotamento de fontes energéticas, desmatamento, poluição, desemprego, des-
nutrição e doenças por falta de saneamento básico, entre outros. É mais fácil buscar o desenvolvimento sustentável quando o
tamanho da população se estabiliza num nível coerente com a capacidade produtiva do ecossistema. (A CRISE..., 2020)

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Percebe-se diante do narrado acima que, equilibrar a preservação do meio ambiente, com um
desenvolvimento econômico e satisfação da sociedade é um dos grandes desafios postos no cenário
global nos últimos tempos. O desenvolvimento pleno do ser humano depende de vários fatores, afim
de que possa encontrar a condição adequada para uma vida com dignidade.
O assunto não é tão simples, quando se tem a questão ambiental em comento. A dinâmica
econômica, ligada a utilização de recursos naturais, tem que ser levada em conta, já que as ações de
impacto econômico trazem também, por consequência, um impacto social imediato. Assim, tem-se
que a economia, sociedade e meio ambiente encontram-se em uma relação direta.
Nessa preferência por um desenvolvimento econômico a qualquer custo ambiental – “riqueza
suja” do que uma “pobreza limpa” – o mundo está sendo transformado de maneira fatal: elevação da
temperatura global da Terra, o aquecimento dos oceanos, o derretimento glacial, o aumento do nível
global das águas, catástrofes naturais, extinção de seres vivos, entre tantas outras consequências,
onde os mais desfavorecidos do planeta terra sofrem as primeiras e mais severas consequências,
tendo como mais afetados África e Ásia, onde as populações sofrem cada vez mais em virtude da
aridez do solo, da falta de recursos naturais, da subida do nível das águas, desmatamento, etc.
Conforme proposto no tópico anterior, com a crise ambiental surgem diversos problemas, entre
eles a temática dos refugiados climáticos (ou ambientais), todavia surge a questão: o que são refugiados
climáticos? Há controvérsia a respeito da denominação a ser dada a essas pessoas como verdadeiros
“refugiados”. Isso porque, conforme a Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados, o
termo “refugiado” significa a pessoa que teme ser perseguida em razão da sua raça, da sua religião,
da sua nacionalidade, do fato de pertencer a um determinado grupo social ou em função de suas
opiniões políticas; situações que, à evidência, não abrangem os refugiados climáticos. (MIRRA, 2020)
Atualmente, segundo dados da IBERDROLA (2020):

Diante desse contexto, apesar de não existir uma definição jurídica uniforme, entende-se que são
pessoas forçadas a moverem-se devido as condições climáticas adversas. Tendo por conhecimento
estudos realizado pela Climate Central (2020), aproximadamente 20 milhões de pessoas no Vietnã
vivem em zonas que estarão inundadas até 2050, já na Tailândia, mais de 10 milhões estarão na
mesma situação. A realidade está tão próxima que, em termos de abandono forçado pelo clima e
alterações climáticas, a Organização Internacional para as Migrações projeta entre 200 milhões a mil

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

milhões de pessoas até 2050. Apesar de não ser pacífico o entendimento quanto ao nome a ser dado
a essa categoria, no presente trabalho será tratado como refugiados climáticos.

2 A AGENDA 2030 DA ONU COMO ALTERNATIVA PARA A CRISE AMBIENTAL E A PAUTA DOS
REFUGIADOS AMBIENTAIS

A ocorrência cada vez mais frequente de desastres ambientais e a progressiva degradação de


recursos ambientais essenciais, comprometendo gravemente a vida e a segurança de indivíduos,
grupos e comunidades inteiras em todo mundo, a ponto de inviabilizar a sobrevivência em seus locais
de origem, ensejam novas situações jurídicas que precisam ser reguladas pelo Direito Internacional.
Existem duas vertentes a serem estudadas pelo Direito Internacional diante da temática refugiados
climáticos. A primeira, seria a modificação dos instrumentos convencionais internacionais já existentes,
para a inclusão em seus textos a proteção dos refugiados climáticos e ambientais. A segunda situação, seria
a elaboração de uma nova convenção internacional específica sobre o assunto. Importante mencionar que,
quanto ao segundo ponto já existe um texto original elaborado pela União Africana, que adotou uma con-
venção sobre a proteção e a assistência às pessoas deslocadas, embora apenas no plano interno dos países.
Diante de projetos, estudos sobre os refugiados climáticos, indagasse qual seria a intenção
quando se discute a proteção a nível internacional, tanto pela modificação de documentos já existentes
ou pela criação de um apanhando de direito e deveres num estabelecimento de estatuto jurídico.
Quanto aos direitos humanos, é visível que deve existir uma proteção aos refugiados climáticos,
considerados como tais não apenas as pessoas individualmente, mas famílias e populações inteiras, ten-
do como objetivo assegurar tratamento digno a todos os que se encontram nessa condição, inclusive nos
deslocamentos transfronteiriços externos. Entre esses direitos básicos, pode-se considerar: direito à vida,
a dignidade, saúde, moradia, direito simplesmente de ser sujeito pelo país escolhido para o acolhimento.
De outro norte, existe a possibilidade de uma cooperação internacional, com a instituição de um fundo
de ajuda e de compensação aos países de acolhimento, observado, em qualquer circunstância, o princípio
das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, entre os Estados. Ou seja, na repartição dos encargos,
não só com o fundo, mas com o próprio acolhimento, os países do Norte, mais desenvolvidos, que têm
responsabilidade histórica maior nas mudanças climáticas, deveriam assumir uma carga igualmente maior.
Como ensina o Fernando Estenssoro (2019): “a história é escrita entre 20 e 60 graus de latitude norte”.
Todavia, a elaboração de uma possível convenção a nível mundial sobre a matéria e a consagração
de normas jurídicas para os refugiados climáticos, sofre resistências forte por aqueles que temem o
aumento dos movimentos de migração em massa dos países periféricos mais fortemente atingidos
pelas mudanças climáticas para países centrais bem como por especialistas da matéria que fazem
parte do Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados.
O ideal é a concepção voluntária dos países soberanos. De fato, seria importante um documento
com força de estatuto jurídico para os refugiados climáticos de âmbito universal e natureza mandatória,
voltado a amparar aqueles transfronteiriços internos e externos, com o reconhecimento específico de
direitos fundamentais às pessoas, famílias e grupos forçados a migrar.
A título de exemplificação do narrado acima, a crise ambiental e especificamente quanto
aos refugiados climáticos, constata-se uma realidade alcançada em nosso país. O que antes era
praticamente creditado a questões estritamente socioeconômicas, hoje já tem uma análise mais
aprofundada. Um estudo apresentado pela Atmopsheric Science Letters (2018), revelou que a seca
entre 2012 e 2017, foi a pior em 30 anos e prejudicou aproximadamente 24 milhões de pessoas da
região Nordeste do país, promovendo deslocamentos, em especial para a região Sudeste, algo que já
ocorria em determinados períodos, desde a década de 90.
Um dos fatores que contribuíram para a seca severa foi a interferência do El Niño, que de certa
maneira aqueceu as águas do oceano Pacífico Equatorial e fez com as nuvens de chuva se dirigissem
para longe da região Nordeste e do continente. Considera-se também como causa associada ao
aquecimento do Oceano Atlântico no Hemisfério Norte do planeta, o mesmo fenômeno que tem
motivado o aumento de registro de furacões, entre outras.
Dados levantados pelos cientistas alertam que a combinação de alta variabilidade espacial e

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

temporal das chuvas, falta de irrigação, degradação da terra devido ao manejo inadequado do solo e
a pobreza em larga escala nas áreas rurais tornam a região uma das áreas mais vulneráveis do mundo
aos impactos das mudanças climáticas.
Em questão de números, segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR, 2020), desde
o ano de 2009, estima-se que a cada segundo uma pessoa é deslocada em razão de um desastre
ambiental. No ano de 2018, foram 17 milhões de novos deslocamentos relativos a desastres naturais e
às mudanças climáticas no planeta. Se continuarmos na situação narrada, estima-se que nas próximas
três décadas, a mudança climática deverá expulsar 140 milhões de pessoas de suas casas.
Há um movimento global conhecido como 350.org (DEFENSORES..., 2020), que sistematicamente
pode ser definida como um grupo de pessoas que trabalham para acabar com a era dos combustíveis
fósseis e construir um mundo de energias renováveis e livres, lideradas pela comunidade e acessíveis
a todos. As ações vão ao encontro de medidas que visem inibir a aceleração das mudanças climáticas
pela ação humana, que incluem a manutenção das florestas. No Brasil, o trabalho é realizado junto
às comunidades indígenas e outras comunidades tradicionais por meio do programa 350 indígenas
e vem reforçando a defesa das comunidades afetadas por meio da campanha Defensores do Clima,
umas das vertentes do projeto 350.org, acima descrito.
Pensar saídas para os problemas decorrentes das mudanças climáticas é, também, uma das
propostas da Agenda 2030 da ONU e seus dezessete objetivos. Ratificada por chefes de Estado e de
Governo e representantes de 193 Estados-membros da ONU, a Agenda 2030 apresenta 17 Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas a serem implementadas até 2030. Esta Agenda articula
as diferentes áreas, sobre as quais os países se propõem a trabalhar para a construção de sociedades
mais justas e sustentáveis. Os 17 objetivos servem como ferramentas para a estruturação e
implementação das ações, pela efetivação de sociedades mais equânimes, objetivando atingir formas
mais dignas de vida para todos, redefinindo compromissos entre os países signatários, com os temas
prioritários, articulando atores e possíveis meios da cooperação para a implementação de políticas
sociais e globais de enfrentamento dos problemas.
Referida Agenda é proposta a partir de outros documentos e eventos que foram fundamentais
para sua construção: Agenda 21 (1992), ODM (2001), Rio+10 (2002) e Rio +20 (2012), e a Cúpula
das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2016, em Nova York. Bem
como, a Agenda 2030 substitui os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) pelos Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável (ODS), implementando um novo conjunto de demandas por justiça
social, por direitos humanos e sustentabilidade.
Para que a Agenda 2030 se efetive é necessário comprometimento, responsabilidade e ações
por parte dos países signatários, ou seja, congregar “[...]crescimento econômico sustentado, inclusivo
e sustentável e de trabalho decente para todos [...] incluindo crescimento econômico inclusivo,
desenvolvimento social, proteção ambiental e erradicação da pobreza e da fome.” (ONU, 2020)

Neste sentido, a Agenda 2030 da ONU, seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e as 196
metas a serem buscadas, estão mais que desafiados no momento em que priorizam o desenvolvimento
humano como sustentáculo de sua carta de intenções. As ações em prol da humanidade são visíveis des-
de seu preâmbulo, percorrendo a visão e compromissos, até a abordagem detalhada de cada um de seus
objetivos e metas. Desenvolver medidas que atentem as necessidades reais dos seres humanos, propor-

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

cionando justiça social e sociedades sustentáveis, acesso a bens e recursos por meio de políticas sociais
É prioridade para a Agenda 2030, que nenhum indivíduo seja deixado para trás, ou seja, todos
importam à medida que se quer promover bem-estar e dignidade, e isso está expresso tanto nos seus
17 objetivos como ao longo das 169 metas, fazendo como que cada Estado signatário adote medidas
suficientes para amenizar os impactos em cada ser humano. Uma atuação transdisciplinar, integrando
dimensões éticas, sociais, econômicas, políticas e ambientais, caminhando rumo ao desenvolvimento
sustentável proposto pela Agenda 2030.
Essa forma de organização é percebida na interação e interligação que há entre os ODS, ou
seja, todos possuem como ideário a construção de condições justas, equitativas e sustentáveis de
organização social.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No cenário atual, os recursos ambientais em diminuição e a poluição causada pelo modo de vida
humano alargam a degradação ambiental, com consequências ao meio ambiente mundial, afetando
os processos naturais e o equilíbrio dos ecossistemas. Não se pode mais fingir que a crise ambiental
não existe, ou que as causas não foram realizadas pelos excessos e desregramentos do ser humano,
elevando a problemas irreversíveis.
A presença dos refugiados climáticos é um exemplo real dessa crise ambiental e tem gerado
situações de flagrante violação dos direitos humanos – especialmente o direito de todos os homens,
indistintamente, a uma ordem social e internacional que permita a plena realização desses direitos -,
reflexo direto da indefinição jurídica em que se encontram.
De fato, a complexidade e provocações globais tem surpreendido a comunidade internacional,
desafiando a capacidade dos Estados e das instituições em atender às crescentes demandas surgidas
com a nova dinâmica social.
Lacunas ou até mesmo limitações do sistema internacional em face da temática dos refugiados
climáticos, trazem a repensar o funcionamento do sistema como um todo, abrindo-se, então, um
espaço apropriado para transformações.
Os estudos comprovam que o número de refugiados climáticos só tendem a aumentar de forma
expressiva diante do cenário de “riqueza suja do que uma pobreza limpa”, de grandes países que sem
encaixam no eixo de 20 e 60 graus de latitude norte.
A temática do trabalho apresentado é demonstrar quem são esses refugiados diante da crise
ambiental, os desafios que devem ser enfrentados pelas autoridades internacionais, bem como os
países em si, já que, esses refugiados climáticos em grande parte não atravessam fronteiras.
Não se pretendeu aqui exaurir assunto tão amplo e com tantas peculiaridades, mas sim permitir a
visualização da grande complexidade que o tema envolve. Apesar da pouca doutrina ainda existente,
artigos e estudos, levam a repensar soluções a partir de um debate internacional sobre o assunto,
considerando a Agenda 2030, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e as 169 metas para a
construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.

REFERÊNCIAS

ACNUR. Agência da ONU para Refugiados. Disponível em: Acesso em: 22 Set. 2020.

CEPAL. Comissão Econômica para a América Latina. La Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible
en el nuevo contexto mundial y regional: escenarios y proyecciones en la presente crisis. Disponível
em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/45336-la-agenda-2030-desarrollo-sostenible-nuevo-
contexto-mundial-regional-escenarios. Acesso em: 3 abr. 2020.

CLIMATE CENTRAL. Researching and reporting the science and impacts of climate change. Disponível
em: https://www.climatecentral.org/. Acesso em: 22 Set. 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

DEFENSORES DO CLIMA. Disponível em: https://350.org/pt/serie-defensores-climaticos-rumo-a-cop-


25-rosane-de-souza/ Acesso em: 15 Set. 2020.

3.3 ESTENSSORO, Fernando S. A Geopolítica Ambiental Global do Século 21: os Desafios para a
América Latina. Ijuí: Editora UNIJUI, 2019.

IBERDROLA. Refugiados pelas mudanças climáticas: uma realidade em ascensão. Disponíveis em:
https://www.iberdrola.com/meio-ambiente/migracoes-climaticas. Acesso em: 22 Set. 2020.

IPHAN. Declaração de Estocolmo. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/


arquivos/Declaracao%20de%20Estocolmo%201972.pdf. Acesso em: 22 Set. 2020.

MIRRA, Álvaro Luiz Valery. A questão dos refugiados climáticos e ambientais no direito ambiental.
Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-abr-22/ambiente-juridico-questao-
refugiados-climaticos-ambientais-direito-ambiental. Acesso em: 21 Set. 2020.

ONUBR. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://nacoesunidas.org/


pos2015/. Acesso em: 2 abr. 2020.

PNUD. Plataforma Agenda 2030. Disponível em: http://www.agenda2030.org.br/. Acesso em: 22 Set.
2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

DA CRISE AMBIENTAL AO AMBIENTE COMUM: BEM VIVER

Claudiomar Bonfá58
Daniel Rubens Cenci59

RESUMO: Pretende-se com o presente trabalho aprofundar o conhecimento sobre a crise ambiental, a
ideia do desenvolvimento sustentável e o Bem Viver. Parte-se da hipótese que a ideia de desenvolvimento
sustentável não é capaz, nos moldes atual, de garantir a preservação do planeta para as futuras gerações,
ao contrário da ideia do Bem Viver. A partir de revisão bibliográfica e método hipotético dedutivo será
aferido o conceito de crise ambiental, bem como, se a ideia do desenvolvimento sustentável concebido
no Relatório Brundtland, consistente no uso racional e sustentado dos recursos naturais é capar de
preservar, eficazmente, o meio ambiente para presente e futuras gerações. é realmente eficaz para a
preservação. Igualmente, aferir se essa capacidade é encontrada na ideia do Bem Viver. A conclusão é
que este, por sua convivência harmônica com o meio ambiente – à mãe Terra –, é a alternativa.

Palavras-chave: Bem Viver. Crise ambiental. Desenvolvimento sustentável. Pachamama.

INTRODUÇÃO

Após o início da Idade Moderna a humanidade passou por significativas experiências políticas,
sociais, econômicas, a forma que passou a se enxergar no mundo e às suas relações para com a
natureza, sempre à busca do desenvolvimento da humanidade fundada no conhecimento científico
surgente e na razão humana.
O presente trabalho adota do método hipotético dedutivo, com emprego da abordagem
qualitativa, a partir de pesquisas bibliográficas para aprofundar os conhecimentos sobre as causas e
consequências dessa relação do homem com a natureza, pois acredita-se que esse processo alterou
significativamente a forma com que o homem passou a enxergar e relacionar-se com a natureza como
sendo mera fonte inesgotável de recursos à disposição da satisfação dos interesses econômicos e que
esse foi o fator gerador do que conhecemos como crise ambiental, problema que será enfrentar no
primeiro capítulo.
A opção alternativa à crise ambiental foi a ideia do desenvolvimento sustentável para assegurar a
exploração dos recursos naturais de forma controlada de sorte a salvaguardar o planeta e ecossistema.
Na prática, a ideia não foi capaz de ecologizar a economia, ao contrário, possibilitou ao interesse
econômico capitalista neoliberal precificar e capitalizar os recursos naturais e prosseguir no processo
de apropriação e degradação.
A partir dessa premissa, é possível que a conciliação do homem com a natureza capaz de garantir
a coexistência harmoniosa que a exploração dos recursos naturais em nome do desenvolvimento
econômico seja afastada para dar lugar a um processo de não exploração, de uma relação de
colaboração recíproca, de respeito recíproco, capaz de preservar o ecossistema do planeta para a
atual e futuras gerações, seja a prática do Bem Viver, que será abordado no último capítulo.

58 Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. Espe-
cialista em Didática do Ensino Superior pela Faculdade de Ciências Biomédicas de Cacoal – FACIMED. Especialista em Direito
Eleitoral pela Escola Superior de Advocacia – ESA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR, Campus
de Cacoal. Advogado. E-mail: adv.bonfa@hotmail.com.
59 Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Mestre em Direito pela Univer-
sidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Professor dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e Mestrado
em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e Susten-
tabilidade. E-mail: danielr@unijui.edu.br 

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 A CRISE AMBIENTAL

A partir da teoria de Locke (1994) de que o homem se torna proprietário60 de tudo aquilo que
alterar do estado comum da natureza com a sua força de trabalho, o homem passa a ser proprietário
da caça, da pesca, dos frutos colhidos e da terra cultivada61. A burguesia capitalista, segundo Marés
(2003), tratou de se apropriar desta fundamentação teórica para justificar o direito de acumulação de
propriedade, inclusive daquela produzida pela força de trabalho alheia, mediante a contratação. Assim,
a relação homem eurocentrista x natureza sofre um processo de transformação. As necessidades de
exploração dos bens naturais necessários à subsistência da humanidade começam a dar lugar à
exploração por interesses econômicos, de acumulação de bens e de capital, especialmente metais
nobres e pedras preciosas, florestas, etc. A natureza passa a ser vista somente como a “fonte
provedora” e inesgotável de recursos e riquezas.
Segundo Cenci (In: CENCI e SCHONARDIE, orgs. 2014, p. 21), a dimensão do sagrado se volta
exclusivamente ao ser humano ao passo que a natureza passa a ser relegada a “objeto a ser dominado
pelo homem”. Dessa ruptura teocêntrica de elementos entre homem e natureza aquele é posto pela
ciência como “superior à dimensão ecológica e natural”, logo, podendo intervir “sobre os bens naturais
para o seu próprio desfrute e felicidade”. Eis a base da crise ambiental.
A Revolução Industrial (1750) alargou a necessidade de matérias primas para alimentar a indústria
e, consequentemente, aumentou também a busca de recursos naturais acelerando o processo de
exploração econômica do meio ambiente e a sua degradação, mas foi a partir da detonação da primeira
bomba nuclear no deserto do México (16/07/1945) que se constatou a “capacidade apocalíptica
atingida pelo homem de autodestruição”, conforme relata Estenssoro (2014, p. 61). A publicação,
na década de 1960, da obra Primavera Silenciosa, da biológica Raquel Carson62, alertando para as
possíveis consequência do uso excessivo de agrotóxicos (elixires da morte, segundo a autora) nos
Estados Unidos nas décadas de 1940-50, que poderia destruir o meio ambiente e sua diversidade: o
fim da primavera, começaram a revelar os problemas na forma de exploração.
Contribuíram para alavancar as discussões, os “avanços na disseminação da ecologia como
disciplina científica” e a publicação de escritos da comunidade científica, “que assumem uma atitude
militante diante de problemas relacionados com a crise ambiental”, “o impacto da mídia sobre os
primeiros acidentes que geram grandes desastres ecológicos63, o surgimento de um movimento
social ecologista e/ou ambientalista contemporâneo” (ESTENSSORO, 2014, p. 61). Estenssoro ainda
destaca outros dois fatores históricos: “Dia da Terra”, realizado em 1970, nos Estados Unidos, quando
os “cidadãos foram chamados para lutar contra a poluição que os afetava” e a publicação do relatório
do Clube de Roma, “Os limites do Crescimento”, em 1972. (idem, p. 60).
O conceito de crise surge, portanto, quando a ideia de progresso é substituída pela incerteza. A
crença histórica de que o progresso contínuo, ininterrupto e crescente do bem-estar e da felicidade que
a modernidade depositou na racionalidade humana e na capacidade científica para desvendar o mundo
e dominá-lo em benefício da sua felicidade” (ESTENSSORO, 2014, p. 53-54) começa a ser confrontada
no século XX quando se tornou “impossível ter a certeza de que a civilização está se movendo na
direção adequada” (Ob. Cit. p. 54). O grande avanço técnico que produziu o desenvolvimento de uma
civilização industrializada também trouxe consequências inesperadas: “a ameaça nuclear, os desastres
ambientais, a destruição da camada de ozônio, a possibilidade de esgotamento dos recursos naturais,
a poluição industrial, o desmatamento, dentre outros” (Ob. Cit. p. 56).

60 “... sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito
de pertencer de tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém mais possa ter o direito sobre eles, antes que ele possa
usufruí-los para o sustento de sua vida” (Locke, 1994, p. 42).
61 Antes, norteado pela fé cristã, cultivava a ideia de um Deus que criou a Terra e tudo o que nela existe e os entregou ao ser
humano, a quem incumbiu o direito de usufruir de todos os recursos naturais disponíveis. Praticar a caça, a pesca, colher os
frutos da natureza e desmatar florestas para o cultivo eram, assim, um “direito natural” segundo a concepção de São Tomás
de Aquino e outros teóricos ligados ao cristianismo.
62 Obra citada por Estenssoro (2014, p. 72) e cuja resenha encontra-se disponível em https://portal.unisepe.com.br/unifia/
wp-content/uploads/sites/10001/2018/09/085_PRIMAVERA-SILENCIOSA-uma-resenha.pdf, acesso em 10 ago. 2020.
63 Vale do Meuse, Bélgica (1930), provocando a morte de 60 pessoas; Londres, Inglaterra (1952), “A Névoa Matadora”, que
ocasionou mais de quatro mil mortes; Baía de Minamata, Japão (1954), lançamento industrial de várias toneladas de mercú-
rio no oceano.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Estenssoro (2014, p. 59) considera como o grande marco que colocou o problema ambiental
como pauta na agenda pública mundial foi a realização da 1.ª Conferência sobre o Meio Ambiente
Humano realizada em Estocolmo em 1972, organizado pela Organização das Nações Unidas, pois

Naquela ocasião afirmou-se formalmente que o mundo estava enfrentando uma crise ambiental
global e que a partir desse momento ações conjuntas seriam iniciadas para superar este problema,
criando, entre outras medidas, o Programa das nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

Cenci (Ob. Cit., p. 23) faz coro com Estenssoro quanto ao marco do reconhecimento mundial do
problema ser a Conferência de Estocolmo, eis que foi nessa que os Estados participantes afirmaram que

... o mundo poderia enfrentar uma crise ambiental global, decorrente da forma predominante de
vida alcançado pelos seres humanos. Apontou-se que por ignorância ou omissão a humanidade
vinha causando danos potencialmente irreparáveis ao meio ambiente terrestre, bem natural do
qual dependia a vida e o bem-estar humano, assim como todo o processo de vida na Terra.

Foi a partir deste momento histórico que os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU),
mesmo aqueles não atingidos diretamente por algum desastre, reconhecem que a ação humana estava ge-
rando alterações no meio ambiente (inclusive atmosfera e oceanos) que ultrapassavam às suas próprias
fronteiras e com impacto negativo sobre toda a biosfera, à fauna, à flora e à espécie humana. Nesta condição,
reconhecem o dever de buscar soluções em articulação internacional entre todos os Estados. Cenci (Ob. Cit.,
p. 29-30) fundamentando-se em Soares (2003) aponta-na como “marco referência da tomada de consciência
da importância de os Estados estruturarem uma legislação ambiental na qual as questões econômicas não
causem danos irreparáveis o meio ambiente”. Daí nasce o Direito Ambiental Internacional64, com o “reconhe-
cimento de que o meio ambiente é único e para todos os povos, independentemente dos limites de um país
ou continente” (Ob. Cit., p. 30-31), não podendo ser discutido e tratado isoladamente por cada país ou nação.
Entre Estocolmo e Rio ocorreu um encontro das Nações Unidas em Nairóbi (1982), quando foi
criada a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente, a qual veio a apresentar, após 4 anos de trabalho,
o Relatório Brundtland, onde apareceu a primeira vez o termo “desenvolvimento sustentável”, (Ob.
Cit., p. 34). Nestas duas décadas, segundo Cenci (Ob. Cit., 2014, p. 35) as catástrofes ocorridas65
“comprovaram que as medidas que estavam sendo tomadas para a preservação do meio ambiente
foram insuficientes para evita-los”, demonstrando que as soluções globais capazes de evitar
catástrofes de tamanha magnitude dependiam de ações de todos os países, o que levou à convocação
da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92).
Se há mais de 6 (seis) décadas a discussão científica acolhida nos debates e Conferências da
Organização das Nações Unidas demonstra a crise ambiental e a necessidade de preservar o sistema
ambiental no qual estamos inseridos, por que ainda estamos poluindo e degradando o Meio Ambiente?
Estenssoro (2014, p. 29) considera que a questão ambiental é, antes de tudo, uma questão
política. A nossa distinção entre as demais espécies e entre nós mesmo é que agimos de acordo com a
nossa consciência, nossa “permanente criatividade e invenção” o que nos leva a entender e enfrentar
os problemas de maneiras diferentes e é exatamente aí que começam os problemas políticos. “Nenhum
progresso técnico ocorre sozinho e nenhum diagnóstico de ecologia ou ciências da terra, isolado irá
resolver a crise ambiental” (Ob. Cit., p. 31) enquanto diferentes grupos humanos têm realidades
ambientais locais distintas, têm rendas discrepantes, têm desigualdade social acentuada entre os
grupos – e dentro do próprio grupo –, com necessidades próprias. Daí não ser possível negar que a
tecnologia, as Ciências Naturais e outras dão uma importante contribuição para o conhecimento do
fenômeno da crise mundial, mas é possível afirmar que “a crise ambiental é fundamentalmente um
fenômeno político e sua solução só será possível no campo da política” (Ob. Cit., 2014, p. 31).
A discussão sobre a crise surgiu nos Estados Unidos, como vimos, quando o governo norte

64 Contudo, somente na Conferência do Rio de Janeiro, em 1992, foi empregada pela primeira vez a expressão “Direito
Ambiental Internacional” (Ob. Cit. p. 32).
65 Seveso, Itália (1976), considerado o maior acidente industrial da Europa; Canadá (1978), com a queda do satélite artifi-
cial Cosmos 924, espalhando radiação; petroleiro Amoco Cadiz, no Mar do Norte (1978); Bhopal, Índia (1984), vazamento
em uma fábrica de pesticidas, o que causou o lançamento de substâncias tóxicas e letais na atmosfera; Chernobyl, Ucrânia
(1986), explosão de um reator nuclear. matou cerca de 80 mil pessoas por radiação, dentre outros.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

americano manifestou interesse sobretudo visando encontrar soluções para garantir a “segurança dos
Estados Unidos”. Estudos e relatórios oficiais chegaram à grande conclusão de que o “perigo” para o
meio ambiente era o acelerado crescimento populacional nos países de terceiro mundo. Estenssoro
(2014, p. 107) indica o relatório elaborado pela Comissão presidida por John D. Rockefeller, em 27
de março de 1972, que destacava: “Buscamos e não encontramos nenhum argumento econômico
convincente para a contínuo crescimento da população. A saúde de nosso país não depende dela,
nem a vitalidade dos negócios nem o bem-estar das pessoas em média”.
Outro documento secreto (que veio a público em 1980), elaborado pelo Conselheiro de
Segurança Nacional e Secretário de Estado, Henry Kissinger, citado por Estenssoro, indica os números
e a origem das preocupações: o Terceiro Mundo e o seu crescimento demográfico, conforme se afere
do fragmento do relatório colecionado pelo autor:

(...) O efeito é que a população mundial se duplica a cada 35 anos, em vez de a cada 100 anos [...]
O segundo aspecto novo da tendência populacional é o contraste entre os países ricos e pobres.
Desde 1950, a população dos países ricos tem crescido a uma taxa de 0,5% a 1% ao ano, enquanto
que nos países pobres a taxa seja de 2% a 3,5% por ano (duplicando-se em 20 a 35 anos). [...] são
danosas para a estabilidade interna e as relações internacionais de países em cujo progresso os
EUA estão interessados, criando assim problemas políticos e inclusive de segurança nacional para
os EUA [...]66 (ESTENSSORO, 2014, p. 108).

Em outro relatório, também citado e parcialmente transcrito por Estenssoro (2014, p. 110-111),
“O mundo no ano 2000. Relatório ao Presidente”, confeccionado a partir de estudos desenvolvidos
por Gerald O. Barney, constou:

[...] As tensões demográficas, ambientais e impactos sobre os recursos naturais se intensificam


cada vez mais e determinarão a qualidade de vida humana em nosso planeta. Essas tensões já são
fortes o suficiente para negar a muitos milhões de pessoas a satisfação das necessidades básicas,
tais como alimentação, moradia, saúde e emprego, bem como a esperança de qualquer melhora.
Ao mesmo tempo, a capacidade de carga do planeta, a capacidade dos sistemas biológicos para
fornecer recursos para satisfazer as necessidades humanas se deteriora. [...]

Observa-se, nos documentos mencionados, a preocupação em conter o crescimento populacional nos


países do Terceiro Mundo para combater a escassez dos recursos naturais e não a preocupação de abster-
se de práticas poluidoras nos países de Primeiro Mundo. Estenssoro observa que o crescimento e a indus-
trialização dos países do Terceiro Mundo é o que representa a crise ambiental na percepção do governo
americano (e seus aliados ricos). Essa percepção pode ser demonstrada na seguinte equação de Estenssoro:

O crescimento da população do Terceiro Mundo + industrialização do Terceiro Mundo + planeta


finito + possível expansão comunista = esgotamento = desequilíbrio do ecossistema = ameaça à
qualidade de vida e segurança americana e do Primeiro Mundo. (ESTENSSORO, 2014, p. 111).

Essa ideia difundida trouxe o controle de natalidade como medida para combate-la. Alguns países
subdesenvolvidos, inclusive da América Latina, chegaram a aderir à ideia de controle de natalidade
por acreditarem que a origem do subdesenvolvimento era o largo crescimento populacional e não
perceberam que se tratava de uma estratégia de sua espoliação pelos países ricos. Mas alguns países
pobres resistiram à ideia e reivindicaram que os maiores poluidores – os ricos – deveriam arcar
com os custos da recuperação e de reduzir e eliminar práticas poluidoras e, ao mesmo tempo, não
aceitaram renunciar ao seu próprio desenvolvimento. O impasse prevalece com a predominância do
interesse econômico – e de desenvolvimento –, ou seja, eminentemente político, sobre o interesse
ambiental. Exemplo desse impasse foi a Conferência RIO+20, realizada em junho de 2013, na busca
do desenvolvimento sustentável que, para Cenci (in: CENCI e SCHONARDIE, orgs. 2014, p. 42)

[...] tal evento não atingiu os reais objetivos, uma vez que as divergências de interesse entre os
países desenvolvidos e os países denominados emergentes acabaram por gerar um documento
final limitado a inúmeras intenções e o adiamento das definições e decisões práticas de proteção
ambiental em âmbito internacional que seriam efetivamente assumidas por todos os países.

66 Transcrita por Estenssoro.

139
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Segundo Guimarães e Fontoura (2012, p. 19) a Conferência Rio+20 poderia ser melhor classificada
como Rio-20, “uma vez que não produziu avanço significativo algum em relação à Rio-92, exceto o de
manter o desafio do desenvolvimento sustentável na agenda de preocupações da sociedade” em um
verdadeiro “divórcio entre discursos e compromissos concretos por parte dos governos”. Ou seja, marcou
a capacidade dos atores de “antecipar, perceber e comunicar” os problemas enfrentados pelas mudanças
ambientais ao mesmo tempo que evidenciou a “incapacidade para ‘atuar’ em sintonia com o discurso, cujo
problema está, segundo os autores, “na vontade [na falta de vontade] política para ‘agir’” (Ob. Cit., p. 30).
Destacam ainda Guimarães e Fontoura (2012, p. 30) a interferência de interesses de setores,
“como revelam as situações do setor privado versus movimentos sociais ou países desenvolvidos e
países em desenvolvimento”. E nesse sentido afirma Araújo (2016) que

a problemática da crise está relacionada à dependência dos países subdesenvolvidos diante dos
países desenvolvidos e porque as trocas comerciais são muito desiguais, o que perpetua a pobreza
e a miséria dos países subdesenvolvidos e pobres, sendo também responsáveis pela degradação
ambiental dos ecossistemas mundiais de importância fundamental para a sociedade global.

Portanto, a questão não é só política, como também é o reflexo dela na própria sociedade incapaz
de solucionar os problemas de desigualdade entre as nações e as desigualdades existentes dentro
da própria nação, especialmente pelo fato de o poder da sociedade, sobretudo das classes menos
favorecidas, “não tem conseguido se estabelecer frente aos interesses do poder econômico, sempre
representado e aliado ao Estado”. Se o “Estado representasse a sociedade e executasse de fato as
ações de interesse coletivo social, alguns problemas sociais seriam ao menos amenizados.” (ARAÚJO,
p. 62), assim como também seriam amenizados os problemas ambientais, eis que o agir dos Estados
neste aspecto também é influenciado pelo poder econômico e não pelo interesse da população.

2 IDEIA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: NÃO ENFRENTAMENTO DA CRISE AMBIENTAL

A partir da consciência da crise ambiental, conforme retro, surgiu a percepção de que a apropriação da
natureza em nome do desenvolvimento econômico estava em oposição à necessidade de preservação dessa
natureza, mas que a preservação era necessária. Esse antagonismo representou um óbice ao discurso – e
aos objetivos – econômico liberal, pois a ideia de preservar o meio ambiente como garantia de sobrevivência
da própria humanidade ganhava mais força do que a do desenvolvimento econômico em si.
A partir dessa percepção os fundamentos teóricos e ideológicos que impulsionavam e legitimavam
o crescimento econômico perdem força em face da questão ambiental. Surge, como novo paradigma, o
discurso do desenvolvimento sustentável como equilíbrio entre a economia e o ambiente sustentando
ser possível assegurar a manutenção da espécie humana e do sistema planetário em condições
ambientais adequadas sem abster do crescimento econômico e do desenvolvimento. A ideia ganhou
predomínio na medida em que a economia internacional se globalizava. “A noção de sustentabilidade
emerge, assim, do reconhecimento da função de que a natureza cumpre como suporte, condição e
potencial do processo de produção”67 (LEFF, 2006, p. 134).
O informe Brundtland68, também intitulado de “Nosso futuro comum”, formulou o conceito de
desenvolvimento sustentável “como ‘processo que permite satisfazer as necessidades da população
atual sem comprometer a capacidade de atender às gerações futuras’”. A partir desse momento, “a
noção de desenvolvimento sustentável converteu-se no referente discursivo e no ‘saber de fundo’ que
organiza os sentidos divergentes em torno da construção de sociedades sustentáveis”. (LEFF, 2006).
A economia ecológica, assim, traz um olhar crítico sobre a degradação ecológica e energética resultante
do processo de produção e consumo tentando equilibrar a equação. “No entanto, a produção continua guiada
e dominada pela lógica de mercado” e a proteção ambiental é “considerada um custo e condição do processo

67 Ainda nesse sentido (LEFF, 2006, p. 114) salienta que “As políticas de desenvolvimento sustentado se inscrevem nas vias
de ajuste que a economia neoliberal aportaria à solução dos processos de degradação ambiental e ao uso racional dos recur-
sos ambientais; ao mesmo tempo, responde à necessidade de legitimação da economia de mercado, que em seu movimento
inercial resiste ao estampido que lhe foi determinado pela sua inércia mecanicista.”.
68 Relatório elaborado em 1987 pela ex-primeira-ministra norueguesa Gro Harlen Brundtland, pela Comissão Mundial sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD).

140
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

econômico, cuja ‘sustentabilidade’ depende das possibilidades de valorização da natureza” (LEFF, 2006).
A construção do discurso do desenvolvimento sustentável cumpriu, assim, o papel de afastar da
dialética e do imaginário o conceito de crise ambiental e a ideia de um planeta finito, para o predomínio
do discurso neoliberal que “afirma que já não existe contradição entre ambiente e crescimento” (LEFF,
2007, p. 22). Porém, a preservação e proteção ao meio ambiente restou imperceptível. Nesse sentido,
critica Leff (2006, p. 137)

No entanto, o discurso do desenvolvimento sustentado chegou afirmar o propósito de tornar sustentável


o crescimento econômico através dos mecanismos do mercado, atribuindo valores econômicos e
direitos de propriedade aos recursos e serviços ambientais, mas não oferece uma justificação
rigorosa sobre a capacidade do sistema econômico para incorporar as condições ecológicas e sociais
(sustentabilidade, equidade, justiça, democracia) deste processo através da capitalização da natureza.

Não se verificou a ecologização da economia e sim uma nova estratégia capitalista de privatização/
apropriação do meio ambiente transformando-o em mercadoria ao mesmo tempo em que afastou a
contradição entre necessidade de preservação ambiental e crescimento econômico. Segundo Leff
(2006, p. 139), “O discurso do desenvolvimento sustentável promove o crescimento econômico
negando as condições ecológicas” e os “limites e possibilidades de uma economia sustentável.”.
Para o citado autor, a natureza foi incorporada em duas operações: internalizando os custos
ambientais do progresso atribuindo valores econômicos à natureza, de um lado, e, ao mesmo tempo,
instrumentalizando uma operação simbólica – um cálculo de significado – que recodificou o homem,
a cultura e a natureza como formas aparentes de uma mesma essência: o capital (LEFF, 2007, p.
23). Agregada à essa incorporação, também acompanha o discurso de que o mercado, através da
precificação, é capaz de contornar os problemas e, pelo progresso, reduzir as desigualdades de
desenvolvimento e garantir a felicidade de todos. Contudo,

Esse discurso promete alcançar seu propósito sem uma fundamentação sobre a capacidade do
mercado de dar o justo valor à natureza e à cultura; de internalizar as externalidades ambientais
e dissolver as desigualdades sociais; de reverter as leis da entropia e atualizar as preferências das
futuras gerações” (LEFF, 2007, p. 24).

A partir dessa perspectiva de valoração econômica, converte-se a necessidade de preservação


em compensação econômica da natureza degradada, como o sequestro de crédito de carbono, o
pagamento em pecúnia à comunidade indígena, quilombola ou ribeirinha atingida pelos impactos
ambientais decorrentes da construção de uma hidrelétrica, rodovia ou ferrovia. Mas não se abstém da
apropriação da natureza e seus recursos naturais; de causar o dano e o impacto ambiental; de reduzir
ou eliminar a redução de dióxido de carbono e dos gases que causam o efeito estufa para assegurar
a incessante busca do progresso e do crescimento econômico.
Enquanto se promove a apropriação, aplica-se o discurso de causas naturais para justificar os gran-
des desastres ambientais decorrentes do superaquecimento global provocado pela emissão de gases
poluentes e pela extinção de vegetação (secas, incêndios, desertificação, furacões, inundações) ou do
desparecimento de espécies – pela completa destruição do seu habitar ou por uso indiscriminado de agro-
tóxicos – que por sua vez, permite a proliferação de outras espécies maléficas ao ambiente e ao próprio
homem (nuvens de gafanhotos, por exemplo). Com a classificação desses eventos como “desastres natu-
rais”, camufla-se a verdadeira causa que são as alterações climáticas e no ecossistema e no planeta terra.
Outro problema decorrente da valoração e precificação da natureza é exatamente a de converter
um valor ambiental em um valor econômico – e depois fazer esse valor econômico corresponder ao
valor de preservação ambiental – ante a impossibilidade de se converter em pecúnia o valor ambiental
e social do ar que respiramos, do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida proporcionada pelo
sistema ecológico planetário equilibrado.
Quando se indeniza – se é que podemos chamar de indenização – os povos próximos ao
empreendimento o sistema de valoração/precificação não leva em consideração – e nem precifica
– os impactos causados às espécies locais e nem ao restante da humanidade que também serão
impactadas em sua qualidade de vida pelas alterações climáticas. Nesta perspectiva, o poder
econômico espolia toda a humanidade na medida que se apropria de recursos que antes beneficiava a

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

todos para a obtenção de lucro do conglomerado econômico/investidores. Segundo Leff (2006) essa
é “uma estratégia discursiva que legitima a apropriação dos recursos naturais e ambientais que não
são diretamente internalizados pelo sistema econômico”.
Ao incluir a natureza e a biodiversidade como patrimônio comum da humanidade, “as comunidades
do Terceiro Mundo como um capital humano e seus saberes como recursos patenteáveis por um regime
de propriedade intelectual” (LEFF, 2006) permitiu não só a apropriação da natureza e seus recursos e
propriedades medicinais, mas da própria atividade intelectual ou tradicional dos povos regionais, cujos
conhecimentos não são valorados e precificados. A apropriação é, assim, uma espoliação pelo mercado
econômico69 que, após patentear o conhecimento, aufere lucros na qualidade de autor intelectual quando
os verdadeiros e legítimos autores são ignorados por esta lógica do capital e, portanto, nada recebem.
A perspectiva do mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), “baseado em enganosas certezas
científicas sobre a capacidade de absorção (captura, sequestro) de carbono por parte das atividades
agrícolas e das reservas de biodiversidade” necessárias para atender à demanda e às funcionalidades
do mercado poderá “converter as terras em novos ‘latifúndios genéticos’”. (LEFF, 2006, p. 149), o que
acentua a desigualdade e, consequentemente, o impacto ambiental por ela causado.
A ideia do desenvolvimento sustentável, nesta perspectiva, revela a sua face de mero discurso retórico
dialético para afastar a percepção global sobre o planeta e seus recursos serem finitos: crise ambiental, e
permitir que o crescimento econômico continue avançando sobre o meio ambiente e sobre os recursos
naturais e deles se apropriando, sobretudo nos países subdesenvolvidos, como conclui Leff (2006, p. 143)

Dessa maneira, o discurso do desenvolvimento sustentado não significa apenas mais uma volta na
porca da racionalidade econômica, mas um salto mortal, um vôo e um aperto na razão: seu móvel
não é internalizar as condições ecológicas da produção, e sim postular o crescimento econômico
como um processo “sustentável”, sustentado nos mecanismos do livre mercado e na tecnologia,
que seriam meios eficazes para garantir o equilíbrio ecológico e a justiça ambiental.

O desafio é inscrever o tema da sustentabilidade, no cenário político e nas lutas sociais, especial-
mente no primeiro, de que a apropriação da natureza deverá ser orientada por uma reflexão teórica e por
uma ação política voltada a desconstruir a lógica econômica – que desnaturaliza e mercantiliza o meio am-
biente – e construir uma racionalidade ambiental voltada à ressignificação política e cultural da natureza.

3 BEM VIVER: ALTERNATIVA POSSÍVEL?

Ao constatar a crise ambiental como causa de desequilíbrio e impacto no planeta ao ponto de


colocá-lo em risco e ao observar que solução encontrada de desenvolvimento sustentável consistente
em manter o crescimento com a preservação e conservação para as futuras gerações revelou-se
inválido, qual a solução, então, para assegurar a preservação da natureza e da espécie humana?
Várias são as possibilidades conhecidas, como a teoria do crescimento zero, defendida pelo
Clube de Roma. Outras estão surgindo, como o ecocentrísmo como rearranjo constitucional na américa
latina, sobretudo no Equador e Bolívia, sob a perspectiva do “bem viver” ou “viver bem”.
A América Latina foi colonizada pelos europeus (Portugal e Espanha) não só as terras, mas
também a cultura, as tradições, as crenças, a economia e a relação com o meio ambiente neutralizando
ou eliminando as manifestações neste sentido dos povos tradicionais nativos: ameríndios. A formação
dos estados nacionais como sinônimo de Estado Moderno, dependeu da elaboração de uma identidade
nacional, ou seja, segundo Magalhães e Santos (In: SPAREMBERGER e SOUZA, 2014, p. 240)

da imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos,
pelos vários grupos sociais para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano,
bem como a criação da nacionalidade vinculada à imposição e aceitação de valores comuns, como um
inimigo comum, uma luta comum, um projeto comum, ou até mesmo uma religião comum, gerou a
intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões limites.

69 “A economia do desenvolvimento sustentado funciona dentro de um jogo de poder que outorga legitimidade à ficção do
mercado, conservando os pilares da racionalidade do lucro e o poder de apropriação da natureza fundado na propriedade
privada do conhecimento científico tecnológico” (LEFF, 2006, p. 145).

142
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O que deveria ser o comum no novo Estado era o imposto pelo colonizador, inclusive na
relação com a terra e a natureza, condição essa que permaneceu com as velhas estruturas agrárias
e elitistas70 que sempre tiveram o poder de definir os rumos políticos, econômicos e sociais dos
Estados, mas mantendo a dependência ao modelo hegemônico eurocêntrico (colonial), ou seja,
segundo Sparemberger e Souza (In: CENCI e SCHONARDIE, orgs. 2014, p. 242) “A influência continuou
no ideário econômico capitalista, da doutrina do liberalismo individualista e da Filosofia positivista de
colonialidade das práticas, saberes e do próprio conhecimento”.
Nesse processo de colonialismo71 a forma com que os povos se relacionavam com a natureza foi
suplantado pelos interesses econômicos. A natureza, segundo Mignolo (2017, p. 7) “se transformou
em ‘recursos naturais’, enquanto a ‘natureza’ – como substantivo concreto que nomeia o mundo
físico e não humano – se tornou no Novo Mundo a base para o cultivo de açúcar, tabaco, algodão
etc.”, transformando-se em verdadeiro repositório para a “materialidade objetivada, neutralizada e
basicamente inerte que existia para a realização das metas econômicas dos ‘mestres’ dos materiais.”.
A partir do surgimento do pensamento da descolonialidade, sobretudo com Aníbal Quijano, e com
a sua defesa por movimentos sociais, novos rumos começaram a se indicar como possíveis – porém não
o único72, como nos adverte Mignolo (2017, p. 13) -, especialmente por resgatar as culturas dos povos
indígenas da américa latina que nunca tiveram representação e aceitação no processo colonizador.
Avanços consideráveis neste sentido são verificados no Equador e na Bolívia, os quais editaram
novas constituições em 2008 e 2009, respectivamente, avançando na tentativa descolonial e
intercultural de reconhecimento do subalterno e do resgate de práticas do bem-viver (SPAREMBERGER
e SOUZA, in: CENCI e SCHONARDIE, orgs. 2014) que foi elevado a status constitucional dos respectivos
Estados. Isso só ocorreu, segundo os autores, “devido ao apoio popular, em que os povos originários
tiveram participação e autonomia, ao contrário do passado de exclusão e de subalternidade colonial,
e puderam resgatar os seus valores ambientais, sociais, econômicos e culturais”.
Em virtude dessa transformação vir da população, dois importantes fatores estão implícitos: a) restou
afastado o interesse econômico capitalista liberal defendido pela minoria que em regra domina o poder
nas democracias excludentes73; b) a preocupação – e consciência – de preservação, proteção e harmonia
com a natureza está explícita na própria sociedade, o que dispensa, em grande parte, de fixação de regras
de proteção ambiental pelo Estado e a posterior fiscalização para garantir a sua observância, pois as
políticas públicas adotadas partem de “baixo para cima” e não meramente impostas de “cima para baixo”.
O que é pertinente destacar para o presente estudo é o fato de minimizar a influência do poder
econômico neoliberal sobre a natureza na medida em que o pensamento descolonial avança para o
bem viver fundado no resgate da cultura tradicional dos indígenas, sobretudo no Equador e Bolívia,
onde representam a maioria da população, com a natureza – a pachamama era o modo como os
amauta quíchuas e os yatiris aimarás74 “entendiam a relação humana com a vida, com a energia que
engendra e mantém a vida, hoje traduzida como a mãe terra” (MIGNOLO, 2014, p. 7).
Por essa nova perspectiva, a alteração de centro de poder político retomado das “mãos do
mercado” e assumido pela maioria da sociedade revela-se como uma genuína democracia com o povo
no centro do poder e este exercido em prol do povo; deslocando o direcionamento da economia da
busca incessante de lucros pelos investidores capitalistas para os limites e interesses da coletividade,
o que representa a possibilidade de um equilíbrio social nas relações e formas de consumo e, tudo
isso, impactando positivamente no meio ambiente. E nessa mudança de relação homem para com o

70 Patrón colonial de poder que, na “formulação original por Quijano, o ‘patrón colonial de poder’ (matriz colonial de poder)
foi descrito como quatro domínios inter-relacionados: controle da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, e
do conhecimento e da subjetividade. Os eventos se desdobraram em duas direções paralelas. Uma foi a luta entre Estados
imperiais europeus, e a outra foi entre esses Estados e os seus sujeitos coloniais africanos e indígenas, que foram escravi-
zados e explorados. (Mignolo, 2017, p. 5).
71 A América-Latina, com seus países colonizados por europeus, herdou o modelo universalista, que deixou à margem ín-
dios, negros, pobres, entre outros tantos que se tornaram vítimas silenciadas de um Estado desigual em oportunidades de
distribuição de renda. (SPAREMBERGER e SOUZA, in: CENCI e SCHONARDIE, orgs. 2014, p. 256).
72 A opção descolonial não visa ser a única opção. É apenas uma opção que, além de se afirmar como tal, esclarece que
todas as outras também são opções, e não simplesmente a verdade irrevogável da história que precisa ser imposta pela
forca. (MIGNOLO, 2017, p. 13).
73 Nessas democracias, “há uma flexibilização dos direitos constitucionais que protegem a população mais pobre, assim
como ao meio ambiente e as comunidades étnicas” (SPAREMBERGER e SOUZA, in: CENCI e SCHONARDIE, orgs. 2014, p. 256).
74 “Os amauta e os yatiris eram os equivalentes intelectuais silenciados do teólogo.” (MIGNOLO, 2017, p. 6).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

meio ambiente e com a natureza, segundo Sparemberger e Souza (Ob. Cit., p. 261-262) os propósitos
de conservação não ficarão mais a “mercê da exploração de multinacionais interessadas na riqueza da
biodiversidade nacional e dos conhecimentos que essas comunidades possuem”. E sobre as alterações
constitucionais arrematam citando Moraes e Freitas (2013) que ponderam ser

um constitucionalismo de feição ecocêntrica, o qual ostenta como bandeiras o reconhecimento


dos direitos da natureza (Pacha-mama) e a cultura do Bem Viver [...] a partir da inclusão dos
povos indígenas e de outras minorias étnico-raciais, como atores sociais [...] incorporam vetustos
valores resgatados das raízes pré-colombianas comuns, entre os quais se sobressaí o respeito à
natureza e ao meio ambiente, vale dizer, o respeito prioritário à vida.

Esses aspectos que as novas constituições procuram resgatar vai além dos avanços democráticos,
da ampliação e da participação do poder popular, pois a institucionalização do bem viver, na vanguarda
do giro ecocêntrico, supera o modelo antropocêntrico dos sistemas jurídicos atuais, entendendo a
proposta de bem viver como “uma nova forma de conceber a relação com a natureza de maneira
a assegurar simultaneamente o bem-estar das pessoas e a sobrevivência das espécies, de plantas,
animais e de ecossistemas (Ob. Cit., p. 262-263).
A opção decolonial não visa ser a única opção e não há lugar para qualquer opção pretender ser
única, segundo nos adverte Mignolo (2017, p. 13), mas inegavelmente apresenta como alternativa
aceitável e viável para frear e/ou reverter o avanço descontrolado do poder econômico capitalista
com sua sede insaciável de se apropriar dos recursos naturais e convertê-los em lucros para alguns
enquanto distribui os prejuízos ambientais e sociais para o restante da humanidade. Os exemplos
vindos do Equador e da Bolívia demonstram ser possível assegurar um meio ambiente justo e
equilibrado suficiente para garantir o Bem Viver da presente e das futuras gerações, embora a adoção
do modelo de Bem Viver requeira uma profunda mudança de consciência da sociedade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se claramente que à medida em que o homem passou a se considerar o centro o universo,
por ser detentor da razão e ser capaz de produzir conhecimento e realizar novas descobertas, também
foi abandonando a ideia e a relação que tinha com a natureza que outrora considerava dádiva divina
entregue por Deus, o criador, como fonte de vida e de subsistência da humanidade – bem comum. Foi
a partir dessa nova percepção de valores que a natureza e seus recursos naturais foram objetificados
e vistos como apropriáveis, quer seja como acumulação de capital – propriedade da terra -, quer seja
para serem transformados em bens de consumo e riquezas para os industriais.
Embora se identifique como movido pela razão e pelo conhecimento científico, o homem não
se preocupou em buscar conhecimentos o suficiente para prever as consequências da sua ação sobre
o meio ambiente, as quais tomou conhecimento quando se deparou com acidentes, catástrofes,
desastres e destruição causadas por empregos de fertilizantes e agrotóxicos que não poderiam ser
revertidos com a consciência da crise ambiental.
Enquanto se clamava por soluções ambientais essa nova demanda – de preservar – se
apresentou contrária ao desenvolvimento econômico fundado na exploração da natureza. A ideia
do desenvolvimento sustentável surgiu preconizando a possibilidade de se manter o crescimento
econômico com matriz na exploração dos recursos naturais e da natureza sem destrui-los, ou seja,
preservando-os para as atuais e futuras gerações.
O impacto que tal ideia produziu, contudo, foi de apenas dissipar o medo coletivo que surgiu
com a consciência da crise ambiental ao argumento de que exploração e preservação podem coexistir
harmoniosamente. Não é desacertado concluir que esse discurso serviu apenas para permitir que o
interesse econômico atribuísse valor econômico aos recursos naturais e mediante um custo ambiental
irrisório ante a impossibilidade de precificar o prejuízo de toda a coletividade pelos danos causados, pois
mesmo nos casos em que os prejuízos são indenizados, converte-se em pecúnia a natureza destruída
mas não obsta o processo de degradação ambiental que continua em ritmo acelerado agravando a
ameaça ao planeta, aos mares, às florestas, à atmosfera e, enfim, à própria existência da humanidade.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A harmonia entre homem e natureza poderá ser viável na reflexão coletiva e na adoção da ideia
do Bem Viver ou Viver Bem, fenômeno que vem ganhando espaço na América Latina, inclusive com a
aquisição de status constitucional no Equador e Bolívia, como proposta descolonial para romper com
o histórico colonialismo imposto pelo eurocentrismo que nos impõe a condição de subalternos. Essa
nova perspectiva não só tem potencial para romper com a dominação econômica e a exploração do
nosso continente pelos denominados países desenvolvidos, mas, em especial, resgatar as identidades
multiculturais e a forma de relacionamento, especialmente dos povos indígenas, para com a natureza.
O relacionamento entre homem e natureza sobre a ótica cultural de que a mãe Terra (pachamama) reas-
suma seu status como centro de vida, e consequentemente, sendo respeitada e preservada é uma forma viável
de reestabelecer o equilíbrio entre uso e conservação. A ideia do Bem Viver se apresenta como via capaz de ga-
rantir a coexistência harmoniosa de sorte que a exploração dos recursos naturais em nome do desenvolvimen-
to econômico seja afastada para dar lugar a um processo de não exploração, de uma relação de colaboração
recíproca, de respeito recíproco, capaz de preservar o ecossistema do planeta para a atual e futuras gerações.

REFERÊNCIAS

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ECONOMIA COLABORATIVA:
UMA ALTERNATIVA SUSTENTÁVEL
PARA O CONSUMO NA ÉGIDE DA SOCIEDADE LÍQUIDA

Renata Vicente Duarte75


Janaína Soares Schorr76

RESUMO: O consumo na sociedade líquida assume um papel de relevância quando se analisa a


busca de alternativas sustentáveis por se estar diante de indivíduos com características e relações
egocêntricas e individualistas, com comportamentos e preferências velozmente mutáveis, de modo que
a acelerada obsolescência leva rapidamente ao descarte. Aplica-se o método de abordagem dedutivo, o
método de procedimento monográfico e a técnica de pesquisa de documentação indireta, com análise
de documentos e pesquisa bibliográfica. O crescimento da economia colaborativa pode estabelecer um
maior e melhor aproveitamento de recursos, menos produtos ociosos ou relegados ao descarte. Nisto
reside a importância desses novos meios de negociação voltados ao uso colaborativo dos bens e a
necessária responsabilidade de se estabelecer alternativas viáveis para o consumo sustentável.

Palavras-chave: Consumo. Economia colaborativa. Sociedade líquida. Sustentabilidade.

INTRODUÇÃO

A internet alterou profundamente as relações subsidiando o surgimento de uma nova economia,


a colaborativa. São várias as formas de construção conjunta e de plataformas que irromperam o
compartilhamento de serviços e bens, como bolsas, roupas, malas, ferramentas, carros, bicicletas e
até mesmo imóveis. Esse novo modelo de economia surge para suprir a crescente necessidade de se
dar a máxima utilidade aos recursos cada vez mais escassos, combinada com os espaços cada vez
menores e a preocupação em se comprar e descartar menos.
Nesse contexto, questiona-se: tendo por base a busca por alternativas de consumo sustentável na
sociedade líquida, qual o estado da arte da legislação brasileira para acolher a economia colaborativa?
Este questionamento, inclusive, se deve ao fato de que cabe à investigação científica o dever de
contribuir para o estudo sobre os novos movimentos sociais e a construção de subsídios teóricos
capazes de preencher possíveis lacunas legais. Além disso, a questão da economia colaborativa tem
um papel fundamental diante da crise ambiental em que o planeta está imerso.
Para tanto, como método de abordagem, o trabalho se utilizará do método dedutivo, vez que
se partirá de um estudo amplo sobre os comportamentos sociais pelo viés do consumo na sociedade
líquida, para analisar as mudanças legais brasileiras para acolher a economia colaborativa como uma
alternativa de consumo sustentável (LAKATOS; MARCONI, 2019, p. 109).
Como método de procedimento o estudo se utilizará do método monográfico, tendo em vista
que, neste método, parte-se do exame de um grupo para obter generalizações. Neste estudo, a análise
será da sociedade como um todo. Quanto à técnica de pesquisa, aplica-se a técnica de pesquisa
documental indireta por meio da análise documental e pesquisa bibliográfica para levantamento de
dados. Utilizar-se-á, para isso, de livros, artigos de periódicos, teses e demais estudos sobre o tema,
além de análise da legislação brasileira.

75 Bacharel em Administração de empresas pela UFSM e acadêmica do 10º semestre do curso de Direito da Faculdade de
Direito de Santa Maria - FADISMA. E-mail: renatav.duarte@gmail.com.
76 Doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Mestra em Direitos Humanos pela
Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Professora da graduação e pós-graduação na Faculdade
de Direito de Santa Maria – FADISMA. Advogada OAB/RS. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direito Constitucional Com-
parado da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. E-mail: janinhaschorr@gmail.com.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Para uma melhor compreensão do tema em análise, o estudo está dividido em três partes: a
primeira, direcionada a estudar a respeito da sociedade líquida, do consumo e de comportamentos
de consumo; na sua segunda parte, o trabalho se debruça sobre a economia colaborativa, com o
intuito de mostrá-la como alternativa de consumo sustentável, e, na terceira e última parte, analisa-
se as mudanças na legislação brasileira voltadas ao suporte legal para o compartilhamento como
alternativa de consumo sustentável.

1 CONSUMO NA ÉGIDE SOCIEDADE LÍQUIDA

A sociedade atual é pautada pela indústria do descartável. Diferencia-se quanto ao consumo


das gerações anteriores pelo fato de que a valoração das pessoas passou a ser determinada pela
aquisição de produtos e serviços, ou seja, pelo ato de consumir. Quanto mais se consome, mais digno
de respeito se é, maior a sua inserção social e maior o seu sucesso (MORENO E REI, 2018).
Para Leff (2001), fica evidenciado, a partir dos anos 1960, que a crise ambiental surge da irracionali-
dade ecológica dos padrões dominantes de produção e consumo, marcando os limites do crescimento eco-
nômico. O autor faz um diagnóstico das bases da evolução da sociedade, associando-a à crise civilizatória,
cuja expressão é visível através da atual racionalidade econômica e tecnológica dominantes:

A degradação ambiental emerge do crescimento e da globalização econômica. [Ela] se manifesta


não só na degradação das bases da sustentabilidade ecológica do processo econômico, mas como
uma crise de civilização que questiona a racionalidade do sistema social, os valores, os modos de
produção e os conhecimentos que os sustentam (LEFF, 2001, p. 56).

Percebe-se que o foco no consumo é uma das características centrais dessa sociedade líquida,
individualista e competitiva. Essa liquidez, para Bauman (2009), é uma configuração de sociedade na
qual seus membros – comportamentos e preferências – mudam num tempo extremamente curto, com
o objetivo de não construir laços sólidos, sob o pretexto de que uma sobrecarga pode significar não
acompanhar a rapidez dos eventos e rapidamente impor-lhes a obsolescência.
Nas palavras de Bauman:

A “vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma
de vida que tende a ser levada adiante numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é
uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais
curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir.
Numa sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses
permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos. (2009, s.p.)

E ele mesmo resume:

[...] a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações
mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser pego tirando
uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as
datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que
pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta.(2009, s.p.)

As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida é de perder o
momento que pede mudança e atualização. Esse é o momento em que se perde a utilidade, o viço, a
atração, o poder de sedução e, consequentemente, o valor. As propriedades, que traduzem o valor de
cada indivíduo, têm uma expectativa de vida útil limitada e, uma vez que tal limite é ultrapassado, se
tornam impróprios para o consumo e inúteis. Há pressa para que sejam removidos do espaço da vida
de consumo para abrir caminho para objetos de consumo novos e na moda (BAUMAN, 2009).
A moda, nesse sentido, acaba, muitas vezes, assumindo o papel de ser um dos principais provedo-
res de mudança, vez que diminui e desvaloriza tudo aquilo que deixa atrás de si e estabelece a neces-
sidade insuportável de substituir o, agora impróprio e inútil, por algo novo e valioso. Esse fenômeno é
materializado pelo comportamento de consumo na sociedade líquida, em que, além do foco na posse,
atribui-se ainda mais importância para o descarte rápido e a alienação de coisas (BAUMAN, 2013).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Claramente, diante da limitação dos recursos e da imperativa necessidade de diminuir o descarte,


que impacta diretamente nos atuais problemas ecológicos e ambientais, precisa-se mudar a direção
para uma forma diferente de consumo. Isto porque,

Numa sociedade líquido-moderna, a indústria de remoção do lixo assume posições de destaque


na economia da vida líquida. A sobrevivência dessa sociedade e o bem-estar de seus membros
dependem da rapidez com que os produtos são enviados aos depósitos de lixo e da velocidade
e eficiência da remoção dos detritos. Nessa sociedade, nada pode reivindicar isenção à regra
universal do descarte, e nada pode ter permissão de se tornar indesejável. Vivem para sobreviver
(tanto quanto possível) e para obter satisfação (o máximo possível).

Nesse cenário, o consumo colaborativo (alugar, emprestar e até compartilhar bens em vez de
comprá-los) surge como uma alternativa de consumo sustentável. Compartilhar e alugar mais coisas
significa produzir e desperdiçar menos, pode ser o encaixe perfeito para um estilo de vida urbano, no
qual se tem muitos vizinhos e pouco armazenamento (WALSH, 2011).

2 ECONOMIA COLABORATIVA COMO ALTERNATIVA SUSTENTÁVEL

O consumo colaborativo e a economia de compartilhamento (também conhecida como economia


colaborativa e economia em rede) são fenômenos que nasceram e prosperaram na era da informação,
embora o ato de compartilhar esteja entre os comportamentos humanos desde os agrupamentos
originários. O compartilhamento faz um grande sentido prático e econômico para o consumidor, o
meio ambiente e a comunidade no sentido de se traduzir em um consumo mais sustentável. Consumo
colaborativo pode ser descrito como “o ato e o processo de distribuir o que é seu para que outros
usem”. (BELK, 2007, s.p., em tradução livre)
Consumo Sustentável, segundo o Ministério do Meio Ambiente (2020), significa comprar o que é
realmente necessário, estendendo a vida útil dos produtos tanto quanto possível. Envolve também a
escolha de produtos que utilizam menos recursos naturais em sua produção, que garantem boas condições
de emprego aos que os produziram, e que são facilmente reaproveitados ou reciclados. Anuncia, ainda,
o Ministério, que é a partir do consumo consciente que a sociedade envia ao setor produtivo um sinal
de que quer produtos e serviços que tragam impactos ambientais e sociais positivos ou que reduzam
significativamente os impactos negativos no acumulado do consumo de todos os cidadãos.
Os bens móveis e imóveis são recursos que devem ser usufruídos pelo maior número de
pessoas e, por consequência, ficarem ociosos pelo menor tempo possível. Isto posto, uma das formas
emergentes na economia colaborativa para melhor aproveitar bens é a multipropriedade ou time-
sharing (“tempo compartilhado” em tradução livre) (OLIVEIRA, 2019).
Além disso, a crise ambiental na qual está imerso o planeta, traz consigo a necessidade de se
construir uma consciência ambiental e, por consequência, a apropriação do conceito de ambiente.
Assim, a noção de sustentabilidade, tão importante para que se possa construir uma casa planetária
que tenha recursos suficientes para prover as necessidades de todos, foi sendo divulgada e vulgarizada
até fazer parte do discurso oficial e da linguagem comum, chamada por Enrique Leff de “discurso
dominante da sustentabilidade”:

O discurso e as políticas da sustentabilidade estão abrindo um campo heterogêneo de perspectivas


alternativas, marcados pelo conflito de interesses em torno da apropriação da natureza. Nos
países do Norte, suas preocupações se concentram nos problemas ambientais globais (...) que
rompem os equilíbrios ecológicos do planeta, colocam em perigo a sustentabilidade do sistema
econômico; enquanto que no Sul, o ambientalismo não surge da abundância, mas da luta pela
sobrevivência em condições de uma crescente degradação socioambiental (2001, p. 45-47)

A questão ambiental, em resposta ao pensamento neoliberal ambiental, que busca delimitar as


resistências da cultura e da natureza submissas dentro da lógica do capital, passa necessariamente
pela valorização da diversidade étnica e cultural da espécie humana, pela fomentação da valorização
de diferentes formas de manejo produtivo da biodiversidade. Ou seja, a problemática ambiental
não deve situar-se apenas no domínio do social nem do natural, nem numa formulação de uma

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

teoria geral formal, vazia de conteúdos reais; ao contrário, deverá observar que estes sistemas estão
dialeticamente imbricados e possuem autonomias e interdependências simultâneas. (LEFF, 2001)
A partir deste contexto, Leff aponta para a desconstrução do paradigma econômico/instrumental
da modernidade e para a reconstrução de outros futuros possíveis, baseada nas estratégias do
ecodesenvolvimento. Nesta perspectiva, o desenvolvimento sustentável não se limitaria a tornar
compatíveis a conservação e o desenvolvimento, internalizando custos ecológicos para um crescimento
da economia, enxergando o meio ambiente somente enquanto um custo. Mas também o ambiente seria
tido como um potencial para um desenvolvimento alternativo, para a construção de um paradigma
alternativo de sustentabilidade, que integre a natureza e a cultura como forças produtivas. (LEFF, 2001)
Os espaços estão cada vez mais escassos diante do crescimento populacional nas cidades, os
depósitos e a construção de bens móveis e imóveis envolvem um grande envolvimento de materiais,
refugos e sobras. Diante desse cenário a multipropriedade vem se popularizando, vez que permite
a várias pessoas utilizarem a mesma coisa ao longo do ano, cada uma em um determinado período
(OLIVEIRA, 2019).
É urgente, assim, a fundação de novos modos de produção e estilos de vida, alicerçados nas
condições e potencialidades ecológicas de cada região, assim como na diversidade étnica e na autonomia
das populações para a gestão democrática dos seus recursos, ou seja, dentro de uma perspectiva de
desenvolvimento descentralizado e autóctone. Nesta perspectiva, Leff (2001) defende que os povos
e nações é que deveriam ter a prerrogativa de construir seus próprios estilos de desenvolvimento e
não como algo definido “de cima para baixo”, dentro de uma visão unidimensional.
O consumo colaborativo tem a vantagem de fazer parte do interesse pessoal dos consumidores,
conduzindo a uma mudança de hábitos mais fácil e conveniente, de modo que em se construindo um
comportamento que gere recompensa, terá maior probabilidade de se perpetuar. E para tanto as redes
sociais possuem um papel importante nessa equação, vez que facilitam a redistribuição de objetos,
de modo a deixarem o local em que não são mais necessários (obsoletos) para outro lugar ou outra
pessoa em que ainda sejam úteis (BOTSMANN E ROGERS, 2011).
Alves (2017, s.p.) define consumo como “um ato de escolha de bens e serviços que irá tornar a vida
das pessoas mais agradável e menos dispendiosa, além de promover a satisfação pessoal”. Portanto,
ao exercer esse poder de escolha, o consumidor assume também o poder de influenciar a indústria
a ofertar-lhes produtos com os quais consigam identificar-se. As mudanças nos comportamentos
de consumo pressionam as empresas a modificarem seus métodos de produção para, além das
satisfações individuais, comprometerem-se com o bem-estar das pessoas e da sociedade.
Já é possível perceber que o cenário produtivo modificou-se. A disseminação da ideia de
cooperação entre as organizações culminou com o nascimento de um capitalismo de alianças. As
empresas viram-se estimuladas a formar sistemas de colaboração integrados e flexíveis de produção,
distribuição e desenvolvimento tecnológico devido às dificuldades em atender às exigências
competitivas isoladamente. A possibilidade de obter benefícios coletivamente pode ser o principal
motor da cooperação entre agentes racionais egoístas (BALESTRIN; VERSCHOORE, 2016).
A mudança de comportamento é algo que leva tempo e amadurecimento do ser humano, mas é
acelerada quando toda a sociedade adota novos valores, ao consumir de maneira sustentável, fazendo
escolhas conscientes e responsáveis, com a compreensão de que terão consequências ambientais e
sociais – positivas ou negativas. Para que uma sociedade seja sustentável, é inarredável incumbir aos
cidadãos a responsabilidade de mudar os padrões de consumo, instigando o interesse pela esfera
pública para a construção de novas formas de ação (PORTILHO, 2005).
Ainda que a motivação inicial das pessoas que optam por uma propriedade compartilhada seja
o fator financeiro, em razão de serem transações de custos menores, a ação acaba por culminar em
grandes vantagens coletivas e ecológicas. Percebe-se, portanto, que por já ter adotado mudanças
legislativas para acolher as possibilidades que a economia colaborativa inaugura nos comportamentos
de consumo, há um movimento latente instigado pelas pressões sociais de que se aprecie o tema e
sejam criadas normas no sistema jurídico brasileiro de modo que seja garantida a segurança jurídica,
uma vez que existem muitas lacunas a serem preenchidas.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

3 ECONOMIA COLABORATIVA: ASPECTOS LEGAIS

A economia colaborativa traz consigo uma nova percepção de mundo, aquela na qual as pessoas,
compartilhando bens, produtos e serviços, economizam em termos econômicos e, ao mesmo tempo,
utilizam algo até o máximo do seu potencial e da sua durabilidade. Há vários exemplos que podem
ser encontrados em nosso dia a dia como espaços de trabalho compartilhado, a multipropriedade,
plataformas de crowdfunding, que permite o financiamento coletivo de projetos em troca de
recompensas, plataformas para compartilhamento de lares, que trouxe um modelo de negócios
disruptivo para o mercado de hospitalidade e aplicativos para o compartilhamento de transporte que
conectam diretamente motoristas e usuários (SARFAT, 2016).
A sociedade em rede é terreno fértil para que se proliferem plataformas e aplicativos para o
compartilhamento do acesso a bens e serviços, eliminando intermediários e sem envolver a aquisição de
um produto novo. Essas plataformas agregam credibilidade para as transações e ofertam um ambiente
amistoso como ponto de encontro aos interessados. É clarividente que o Brasil está participando desse
fenômeno de multiplicação de empreendimentos oriundos da economia colaborativa. No entanto,
como se verá a seguir, com uma cultura conservadora e resistente a mudanças, ainda falta uma visão
plural, atualizada, abrangente e consistente para motivar mudanças efetivas nas políticas públicas,
ações governamentais e a edição de novas leis (AFONSO, 2020).
A multipropriedade sobre bens móveis, um automóvel compartilhado, por exemplo, ainda está
sem legislação específica expressa. Assim é regulada por meio de contratos atípicos que envolvem
elementos de locação ou por meio de um condomínio tradicional com um acordo entre os condôminos
acerca do uso do bem. Mas tais alternativas não solucionam satisfatoriamente as demandas desse
negócio. No contrato de locação há o risco de que o titular do direito real de propriedade venda a
coisa a terceiros. Estes não serão obrigados a respeitar o contrato. Já no contrato de condomínio
tradicional, a insegurança aos contratantes nasce do fato de que a maioria censitária pode modificar
as regras de uso da coisa a qualquer tempo (OLIVEIRA, 2019).
Para atender às crescentes demandas de regulação da multipropriedade, foi editada a Lei nº
13.777, de 20 de dezembro de 2018, para incluir o Capítulo VII-A, a respeito do condomínio em
multipropriedade, no Código Civil (Lei nº 10.406 de 2002), e alterou a Lei nº 6.015/73 - Lei dos
Registros Públicos, para dispor sobre o regime jurídico da multipropriedade e seu registro. Antes
da regulação, não havia previsão legal estrita da multipropriedade imobiliária como direito real, de
modo que os registradores de imóveis evitavam registrá-la. Isso porque os direitos reais devem estar
tipificados em lei em sentido formal, editada pelo Congresso Nacional (KOENIG, 2018).
Ainda mais envolto a um vazio regulatório do que a multipropriedade, está o crowdfunding. Trata-se
de uma alternativa para angariação de recursos para projetos a partir de pequenas contribuições realizadas
por um grande número de pessoas. Essa forma de financiamento não é novidade no Brasil, a Rede Globo,
por exemplo, desde 1986 abre espaço em sua grade para a transmissão do Criança Esperança, cujo objetivo
é captar recursos de seus telespectadores para o financiamento de projetos sociais (COELHO, 2018).
O crowdfunding, portanto, pode ser descrito como “um fenômeno que, diante de sua necessidade
de alcançar um vasto número de pessoas, utiliza‐se de ferramentas que permitem a publicidade
massificada” (COELHO, 2018, s.p.) como a televisão aberta e a internet, por exemplo. Essa ferramenta
popularizou-se entre os desenvolvedores de projetos que não encontrariam no mercado tradicional
de financiamento uma maneira viável de bancar suas ideias. As startups, por exemplo, cujas ideias
criativas e inovadoras, muitas vezes alinhadas aos valores basilares de coletividade, sustentabilidade
e reaproveitamento, não conseguiriam um financiamento tradicional em uma instituição bancária em
razão de seu foco não estar no lucro a qualquer preço (COELHO, 2018).
Já houve, inclusive, tentativas de regulação dessa forma de financiamento pelo legislativo
brasileiro por meio da edição de Projetos de Lei (PL). O PL nº 2.862/2015 foi proposto pelo Deputado
Federal Otavio Leite, no qual além de estabelecer diretrizes para a atuação de empresas em
investimento coletivo na internet, propunha-se incentivos fiscais para os investidores (COELHO, 2018).
Outra proposta, mais recente, o PL nº 3.883/2020, sob a justificativa de que os órgãos reguladores
deveriam incentivar e dar prioridade ao financiamento colaborativo em relação ao financiamento
bancário tradicional, para diminuir custos de financiamento aos tomadores de crédito em razão do

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

incremento na concorrência, a senadora Zenaide Maia (Pros-RN) propôs acrescentar uma nova seção
à Lei nº 4.595/1964 (Lei da Reforma Bancária) (AGÊNCIA SENADO, 2020).
Outra questão emergente, que ainda não encontra solução no ordenamento jurídico e já
causa insegurança jurídica nos tribunais brasileiros, é o compartilhamento de imóveis por meio de
plataformas online. O Airbnb, por exemplo, define seu negócio como uma oportunidade de empoderar
economicamente as pessoas que podem monetizar seus espaços disponíveis, ofertando desde um sofá
na sala, um quarto vazio ou o imóvel inteiro enquanto estiver viajando, por exemplo (AIRBNB, 2019).
O Projeto de Lei n° 2.474 de 2019, de iniciativa do Senador Angelo Coronel, propõe uma alteração
da Lei do Inquilinato de nº. 8.245 de 1991, “para disciplinar a locação de imóveis residenciais por
temporada por meio de plataformas de intermediação ou no âmbito da economia compartilhada” (BRASIL,
2019). Tal iniciativa foi instigada, especialmente, pelo conflito entre os condôminos que querem ofertar
seus imóveis para compartilhamento e os condomínios residenciais que estão criando resistência e até
buscando o judiciário para impedir o que alegam ser prestação de serviço de hospedagem, que eleva a
rotatividade de pessoas e aumenta a sensação de insegurança. (BRASIL, 2019).
Para tanto, a proposta é de que a regra seja de vedação ao compartilhamento de imóveis em
condomínio exclusivamente residenciais. Se a lei for aprovada no estado em que está, apenas seria
possível disponibilizar um imóvel ou cômodo para hospedagem por meio de plataformas online se a
convenção do condomínio expressamente permitir. Justifica-se tal barreira sob o argumento de que o
principal fator a ser sopesado deve ser a vontade dos condôminos.
Como já referido, tal impasse já alcançou o Superior Tribunal de Justiça através do Recurso Especial
nº 1.819.075, no qual ainda não há decisão transitada em julgado quanto ao mérito. O relator já proferiu
seu voto no sentido de reconhece a proibição do compartilhamento de imóveis pela convecção de
condomínio configuraria afronta ao direito de propriedade constitucionalmente protegido.
Percebe-se que ainda são vários os aspectos legais pendentes de legislação que atenda as
especificidades de cada negócio. O Brasil está caminhando a passos lentos no que tange os aspectos
legais para garantir segurança jurídica aos negócios de economia colaborativa. A cultura do consumo
está entremeada na cultura brasileira, relegando, portanto, as alternativas para um consumo mais
consciente, enquanto alternativa sustentável, ao segundo plano.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inegável que o comportamento de consumo precisa mudar. A crise ambiental, uma realidade
que precisa de soluções emergenciais, está diretamente relacionada à irracionalidade dos padrões
dominantes de produção e consumo. Os negócios que surgem a partir da proposta da economia
colaborativa apresentam-se como uma solução, pois, ainda que resulte em redução e melhor
aproveitamento de matéria-prima, bens, imóveis e até de financiamento, tem foco no atendimento
das necessidades e desejos daquele consumidor. Trata-se de uma alternativa atraente para os
consumidores que ainda não mudaram seus padrões de comportamento.
Tocar, emprestar e compartilhar bens entre a comunidade em que se está inserido, são atividades
que sempre existiram, mas que foram se perdendo com o tempo. Os dias cada vez mais sobrecarregados
de tarefas fazem com que as pessoas conheçam cada vez menos a comunidade que as rodeia, ou seja,
não conhecem nem os vizinhos. A falta de confiança entre os pares, somado ao cenário de insegurança
jurídica, são as principais barreiras para que nasça um novo negócio colaborativo.
Especialmente no que tange aos novos negócios que surgiram a partir das possibilidades que
a popularização da internet fomentou, na ausência de bases legais no ordenamento jurídico que
supra as necessidades de implemento na confiança e garantia para as transações, percebe-se que as
plataformas digitais assumem esse papel. Proporcionam uma avaliação entre as partes que diminui as
chances de golpes ou de aproveitadores. Além de agregar segurança aos dados pessoais e transações
financeiras, os aplicativos permitem a localização de oportunidades para o compartilhamento tanto
na vizinhança quanto entre pessoas de todos os lugares do mundo.
Cada vez mais os negócios que envolvem um propósito, que apontam em causas sociais para
empoderar economicamente os indivíduos, buscam explorar o financiamento e o seu crescimento

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

por meio de pessoas que se identifiquem com esses mesmos valores. Dessa forma, essencial que o
ordenamento jurídico brasileiro forneça as bases legais para que esses negócios possam prosperar
enquanto alternativas de consumo consciente capazes de, concretamente, causarem impacto como
uma alternativa sustentável.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ECOSSOCIALISMO E BEM VIVER COMO CRÍTICA À CONCEPÇÃO DO


DIREITO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Daniel Rubens Cenci77


Norberto Milton Paiva Knebel78

RESUMO: O objetivo deste é apontar como o ecossocialismo e o Bem Viver podem se associar como
uma crítica ao conceito jurídico de Desenvolvimento Sustentável, tendo em vista a associação desse
Direito Humano aos fundamentos do desenvolvimento econômico - sendo a ele estruturalmente
atrelado. Para isso, utiliza o método dedutivo e a técnica da revisão bibliográfica para descobrir como
expor uma crítica ao fundamento da sustentabilidade juridicamente constituída.

Palavras-chave: Ecossocialismo. Sustentabilidade. Crítica ao direito. Marxismo.

INTRODUÇÃO

O tema de pesquisa é a teoria marxista ecossocialista e as críticas à forma jurídica num contexto
de expansão das normas ambientais – considerando assim, um alargamento do Direito Ambiental.
Dessa maneira, a crítica ao Direito fundamentalmente ligada à crítica da economia política marxista
possui um dilema, entre apoiar normas protetivas ambientais promovidas pelo sistema jurídico ou
propor alternativas. Na atualidade da crise ambiental e da ineficácia das normas jurídicas ambientais,
a política ecológica encontra-se entre a expansão de um Direito Ambiental e a necessidade de uma
crítica da economia política capitalista, entretanto, há um dilema entre buscar mais direitos ou pensar
para além dele. Assim, é preciso estabelecer posições coerentes em relação ao Direito, afastadas da
ideologia jurídica que sustenta uma ideia de neutralidade.
Por isso, como questão de investigação, resta: Do ponto de vista da teoria ecossocialista e do Bem
Viver como é possível conceber uma crítica ao Direito? A hipótese importante que orienta a resposta
ao problema de pesquisa está na concepção jurídica de desenvolvimento sustentável - conceito
contraditório trazido por certa visão de direito humano que tenta alinhar interesses inconciliáveis do
desenvolvimento econômico capitalismo, essencialmente predatório, com o da sustentabilidade da
vida humana e não-humana. Por isso, neste artigo o objetivo geral é de expor na teoria ecossocialista
uma crítica à forma jurídica e, especificamente, revelar no pensamento ecossocialista e do Bem Viver
uma crítica ao Estado e ao Direito e explorar a contradição ambiental do capitalismo na perspectiva
jurídica – de que forma é possível proteger o ambiente sem promover a manutenção do sistema
jurídico, descrevendo as posições do núcleo do pensamento ecossocialista acerca do Direito.
Para responder o problema de pesquisa será adotada uma abordagem dedutiva, ao ponto de reunir
em movimento as duas teorias e trazer em síntese a resposta. Tendo como objetivo expor contradições
e semelhanças entre as duas teorias citadas no marco teórico. Como técnica, será utilizada a pesquisa
bibliográfica descritiva. Trazendo a leitura atual sobre o tema dentro do marco teórico estabelecido, trazendo
assim uma reflexão teórica. O marco teórico dessa pesquisa é formado por duas grandes teorias, ou dois
movimentos ou lastros de pesquisa: (I) o ecossocialismo e o bem viver (II) a crítica da forma jurídica.

1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO DIREITO HUMANO

O tema da degradação ambiental tem sido repetidamente citado pela política no Brasil, desde a
promoção de ideias que julguem necessário um desenvolvimento sustentável até aquelas cuja posição se

77 Docente do PPGDH da Unijuí.


78 Doutorando do PPGDH da Unijuí.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

insere num eixo político que considera o processo de produção capitalista eivado de uma grande contradição
ambiental – tornando-o obrigatoriamente insustentável do ponto de vista ambiental, de que a lógica baseada
no lucro e na produção em massa é incompatível com a sobrevivência ecológica do planeta terra.
Atualmente, no ordenamento jurídico, está consolidado que a qualidade de vida ambiental é
fundamentalmente atrelada à dignidade da pessoa humana – e dos animais não-humanos. Também,
que não há forma de desenvolvimento econômico aceitável que não seja de forma ambientalmente
sustentável. Por mais que as formas de colocar isso em prática sejam amplas e as legislações diversas,
o princípio é elementar e explícito na Constituição Federal da República do Brasil de 1988, no Art.
225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-
lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Assim, não há motivos para elencar ou criar
novas normas jurídicas que sustentem um interesse do Estado Democrático de Direito em proteger o
meio ambiente, esse já é um princípio jurídico consolidado e conhecido: No Brasil, o meio ambiente é
considerado sob o ponto de vista da coletividade, da qualidade de vida e da preservação ambiental.
Entretanto, do ponto de vista político, talvez essa garantia jurídica não seja suficiente, podendo, até
mesmo, ser considerada contraditória – tendo em vista as práticas jurídicas.
Esse estado da arte da proteção ambiental, baseada no desenvolvimento sustentável, é resultado
direto dos Direitos Humanos relativos à preocupação ambiental - evidentemente transnacional
e ubíqua. As Nações Unidas, em sua Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, assume
dezessete objetivos para tal, também constituinte uma série de metas de cooperação global para
sua efetivação - reconhecendo uma dimensão tríplice desse desenvolvimento, sendo ele econômico,
social e ambiental, no qual o desenvolvimento ambiental não pode ser dissociado do desenvolvimento
humano, todavia, também do desenvolvimento econômico. 
A ideia de desenvolvimento pessoal está consagrada na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, no seu art. 22, contemplando os direitos econômicos, sociais e culturais como indispensáveis
à realização do desenvolvimento da personalidade. No artigo 1 do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos a autodeterminação das nações está diretamente vinculada ao seu desenvolvimento
econômico, civil e cultural.  Essa integração entre homem, economia e sociedade promovida pelo
desenvolvimento é também a noção de desenvolvimento integral anotada na Carta de Bogotá de
1948, no seu art. 29, “o desenvolvimento integral abrange os campos econômico, social, educacional,
cultural, científico e tecnológico”. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos promove a ideia de
“desenvolvimento progressivo” que alinham interesses econômicos, sociais, educação, ciência e cultura.
Portanto, o desenvolvimento é parte essencial da ideologia dos Direitos Humanos, sendo a mais
recente a ideia de proteção ambiental no desenvolvimento sustentável, como mais uma esfera do
ideário desenvolvimentista. A agenda 21, resultante da Rio 92, das Nações Unidas faz essa afirmação
ao declarar, no seu quarto princípio, que o desenvolvimento sustentável “a proteção ambiental
deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento, e não pode ser considerada
isoladamente deste.”. Portanto, pela própria definição dos Direitos Humanos ao desenvolvimento e
do desenvolvimento, não há como pensar o desenvolvimento ambiental sem pensá-lo dentro de um
complexo de desenvolvimento econômico e social.
No âmbito brasileiro, na Constituição Federal de 1988, o art. 225 aponta o Desenvolvimento
Sustentável como o direito ao meio ambiente equilibrado, ligado ao uso comum e impondo o Estado
a preservá-lo. Caracteriza o reconhecimento ao Direito Humano ao desenvolvimento no ordenamento
jurídico nacional, aliado aos princípios de ordem econômica. 
Essa forma de desenvolvimento pressupõe uma lógica econômica-ecológica pautada no bem-
estar humano no limite dos níveis aceitáveis de exploração dos recursos naturais (ROMEIRO, 2012, p.
84), todavia, a realidade brasileira, em particular, revela uma eterna tensão ao conciliar esses interesses
aos da necessidade de crescimento, tendo em vista as crises econômicas recorrentes ligadas aos
Estados estacionários. Essa correlação de forças pauta a formação de estratégias da política nacional
do Meio Ambiente (ABRAMOVAY, 2010), colocando em xeque a natureza obrigatória e indisponível da
proteção ambiental.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2 ECOSSOCIALISMO E BEM VIVER COMO CRÍTICA AO DESENVOLVIMENTO 

É preciso refletir se os movimentos políticos em prol do meio ambiente e que apontem


contradições sociais que o degradem tem, realmente, interesse na produção de normas jurídicas,
pois ao mesmo tempo que parecem criar ferramentas para proteção ambiental, consolidam práticas
e estabilizam críticas em nome de uma pretensa resolução de conflitos ambientais. Dessa maneira, a
teoria marxista do ecossocialismo é capaz de trazer uma reflexão sobre o papel do Direito Ambiental
na proteção ambiental, que talvez não seja unânime – na ideia da concepção absoluta do princípio
jurídico de meio ambiental ecologicamente equilibrado -, revelando as contradições da forma jurídica.
Michael LOWY (2013) compreende o ecossocialismo como a visão política que aponta a crise
ecológica como uma crise da civilização capitalista – justamente porque a dinâmica interna do sistema
capitalista transforma seres humanos e recursos naturais em mercadorias “necessárias à expansão dos
negócios e acumulação de lucros”. Portanto, a política ecossocialista seria a alternativa utópica, mas
não abstrata, de alterar o paradigma civilizatório da predação capitalista. Não ao acaso, coerente com
essa visão, SATIE (2005) assina “ecossocialismo ou barbárie”, ao afirmar que a relação entre o Capital
e a natureza no Brasil sempre foi de agravada exploração dos recursos – que vão da colonização à
dependência econômica, tanto na questão agrária como na questão urbana.
O ecossocialismo teria por objetivo trazer uma nova concepção de sociabilidade, justamente por
constatar como esgotada a sociedade capitalista – sob o ponto de vista ambiental. É inspirado justamente
nas respostas da sociedade civil e seu potencial transformador quanto a crise ambiental que é planetária
(MELO, 2010). O ecossocialismo é, portanto, uma proposta anticapitalista de sociedade, tendo como
foco a contradição ambiental desse sistema – por isso é, também, uma crítica aos movimentos políticos
ambientalistas não radicais, que não reconhecem tal questão estrutural (KOVEL, 1997). O paradigma
civilizatório capitalista é o ponto central da crítica ecossocialista de Michael Lowy (QUERIDO, 2013),
portanto, é uma grande crítica das ideologias do progresso (como fala W. Benjamin), sendo indispensável
para essa teoria uma crítica ampla do capitalismo – tanto como economia política como civilização –
formando um complexo que atualiza e renova o socialismo ecológico marxista.
Nessa ideia, existe a certeza que o socialismo e a ecologia partilham valores qualitativos
fundamentais, diretamente opostos àqueles da forma mercadoria (do mercado), por isso é uma teoria
que sugere uma ética ecossocialista (LOWY, 2014, p. 65). Por isso que se afeiçoa naturalmente a ideia de
um planejamento democrático, ou seja, contempla formas coletivas de gestão e de apropriação comum,
radicais e rompedoras aos limites impostos pelas políticas sócio liberais adaptadas à globalização
capitalista (LOWY, 2009). Dessa forma, o ecossocialismo concebe práticas alheias aos do Direito e do
Estado, não requer e nem almeja direitos sociais, justamente porque parte de uma descrença geral
sobre a forma jurídica como transformador da sociedade, suas concepções não jurídicas de sociedade
indicam a necessidade de uma utopia de fim do capitalismo e, possivelmente, de fim do direito.
É possível identificar um caráter tríplice na utilização do conceito de Bem Viver pelo autor: (I)
crítico, (II) analítico e (III) político/propositivo: O autor utiliza desse conceito tanto para apontar os
problemas da ideologia do desenvolvimento sob o capitalismo, inerentemente insustentável devido
a evidência predatória que sustenta o modo de produção - ou seja, é o caráter crítico do Bem Viver;
também, utiliza para analisar formas de vida existentes, tanto as que deram origem ao conceito
como as que constroem utopias em movimento - é o caráter analítico do Bem Viver; e também como
proposta de sociedade, não uma alternativa a ser escolhida entre tantas outras, é uma alternativa às
alternativas, ou falsas alternativas - é o caráter político propositivo do Bem Viver.
A (I) crítica trazida pelo Bem Viver reside na crítica ao desenvolvimento capitalista - uma ideologia
que sustenta o eterno crescimento econômico como fundamental a satisfação das necessidades
humanas. O alinhamento da noção de desenvolvimento econômico com metáforas de desenvolvimento
social e pessoal cria as bases do imperialismo predatório, como uma meta a ser alcançada pela
humanidade. Isso alcança a geopolítica mundial, tendo em vista que até mesmo os países pobres
aceitam tal pauta em busca do resgate de seu “atraso”, pautando o desenvolvimento como objetivo -
implicando na aplicação de diversos instrumentos e indicadores desenvolvimentistas. Essa ideologia
sustenta uma estratificação exploratória do mundo, pautando uma noção neocolonial de civilizado-
selvagem, permitindo a submissão daquelas menos “desenvolvidos” em prol do alinhamento do

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

progresso civilizatório que está por sustentar o desenvolvimento uno - das esferas econômica, social
e humana. Conforme Acosta (2018, p. 50): 

O desenvolvimento, enquanto proposta global e unificadora, desconhece violentamente os


sonhos e as lutas dos povos subdesenvolvidos. A negação agressiva do que é próprio desses
povos foi muitas vezes produto da ação direta ou indireta das nações consideradas desenvolvidas:
recordemos, por exemplo, a atuação destrutiva da colonização ou das próprias políticas do fmi.

O caráter (II) analítico do Bem Viver permite dar atenção ás práticas reais que são apagadas
ou desconsideradas pela história. A utopia e a construção da diferença que já permeia o mundo
em formas afugentadas - elas são tanto a origem do conceito de Bem Viver como significam sua
eterna transformação, ou seja, um conceito em movimento. No livro, em específico, o autor analisa
a experiência trazida pela iniciativa Yasuní-Itt - projeto Equatoriano pautado na resistência indígena
ao extrativos e exploração de petróleo nos campos Tambococha e Tiputini, na qual a não exploração
teria como equivalência uma ajuda financeira internacional. Essa iniciativa de não exploração é
uma utopia importante, tendo em vista que em um mundo viciado em petróleo, explorá-lo parece
obrigação - e o fracasso do projeto indica que é sim a realidade dura -, entretanto, fundamentou-
se pelo reconhecimento de interesse diverso daquele do desenvolvimento, baseado no sentimento
daqueles atingidos pela atividade petrolífera, ou seja, é uma proposta baseada na materialidade das
resistências e das formas alternativas de viver. Todavia, uma análise a partir do Bem Viver permite
identificar uma contradição fundamental na proposta: a compensação financeira, principalmente por
expor a realidade daqueles territórios ao critério quantitativo fungível. (ACOSTA, 2018, p. 213-230).
Também, a análise de processos pelo Bem Viver apresenta uma tese sobre a construção de um Estado
Plurinacional, como no Equador, traçando a importância da superação do conceito de nação trazido pela
colonialidade - pautado no racismo e na estratificação da população do planeta. A plurinacionalidade
possui, assim, um caráter emancipador por pressupor um reconhecimento ativo dos povos e das
nacionalidades, permitindo aos territórios desenvolvimento de suas práticas ao mesmo tempo que
incorpora melhores práticas pautadas nas culturas locais - superando o apagamento das histórias locais e
do implante alienígena de teorias que pautas o Estado e o Direito nas nações latino americanas:

A falta de compreensão e aceitação das verdadeiras raízes de muitos países latino-americanos


talvez explique a existência de Estados (quase) fracassados ou nações que simplesmente não
conseguem amadurecer. O problema surge por jamais terem assumido e incorporado seus povos e
nacionalidades. A plurinacionalidade não dissolve os Estados, mas exige espaços de autogoverno
e autodeterminação. Isso, obviamente, traz implícito um difícil choque com quem defende a tese
do Estado-nação tradicional. (ACOSTA, 2018, p. 151)

A aplicabilidade (III) política/ propositiva do Bem Viver sugere a radicalidade de oposição franca
a todas as “alternativas” ligadas ao desenvolvimento sustentável, é a alternativa das alternativas -
uma alternativa radical ao desenvolvimento (GUDYNAS, 2011). A oposição ao desenvolvimento e a
fundamentação da economia do dia-a-dia em formas já existentes de vida, que se baseiam em práticas
não predatórias e de valorização de elementos qualitativos do viver, por isso é a “outra economia
para outra civilização”. É uma economia pós-desenvolvimentista que destaca-se pela solidariedade e a
sustentabilidade, além da reciprocidade, complementaridade, a responsabilidade, a integralidade dos
seres vivos, a suficiência (a eficiência verdadeira, baseada no melhor uso das coisas necessárias), a
diversidade cultural, identidade, equidade e a democracia. É uma economia ambientalmente sustentável
na qual os processos econômicos sejam pautados pelo respeito aos ciclos ecológicos, uma inversão de
valores, portanto. E isso é impossível sem que ela seja sustentável do ponto de vista social, implicando
na autodeterminação democrática - que sustenta os dois objetivos sociais principais de sustentabilidade 
e solidariedade. È uma “nova contratualidade política, jurídica e natural” (DÁVALOS, 2008).
A forma econômica proposta é de autocentramento, ou seja, do desenvolvimento de forças
produtivas locais, endógenas, capacitando formas humanas e recursos produtivos locais - opondo-se
a noções centralizadoras da produção e dos padrões de consumo. Isso tudo sendo acompanhado por
um processo político de participação plena e de contrapoderes locais, portanto, uma coletivização da
economia. Nesse sentido, a produção de bens seria um meio, nunca um fim, assumindo posição oposta

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

à fetichização da mercadoria, tendo em vista a humanização da economia e da fundamentação de


necessidades verdadeiras, ligadas aos bens comuns da humanidade (HOUTART, 2011) - principalmente
porque lógicas como essas já existem, mesmo que escondidas pela ideologia do desenvolvimento.

3 CRÍTICA AO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Essas duas teorias apontam a “sustentabilidade impossível” (VIZEU; MENEGHETTI; SEIFERT, 2012) do
conceito de desenvolvimento sustentável, que acaba por sustentar uma racionalidade instrumental em
nome do desenvolvimento ideologicamente consolidado - essencialmente econômico. E o processo que
media essas relações e estabelece o respeito à “sustentabilidade” é o DIreito, sustenta-se aqui que não é um
caso, tendo em vista que a forma jurídica é a mediadora universal das relações capitalistas. A tese em que
forma jurídica e forma mercadoria são formações capitalistas é uma leitura que começa no pensamento de
PACHUKANIS (2017) ao compreender o Direito sob o ponto de vista do materialismo histórico, identificando
a ideologia jurídica. Tal qual a forma mercadoria só se realiza dialeticamente na relação entre sujeitos, o
mesmo se dá na forma jurídica – que como conjunto de normas lógico-formal nada é de significativo.
O Estado e o Direito possuem esse papel de mediador dos conflitos de classe da sociedade
capitalista, o primeiro como instância e o segundo como norma, que separam e alienam as relações
sociais – inerentemente de exploração. Nessa corrente teórica, não há que se afirmar que existe
uma apropriação burguesa do Estado, pois essa forma deriva das relações mercantis, possuindo
autonomia em relação às classes, mas não da reprodução capitalista (MASCARO, 2013. p. 61). Por isso
a perspectiva utópica em relação a superação do Estado e do Direito são fundamentais, pois a crítica
a forma jurídica revela esse estreitamento da reprodução capitalista com as formas estatais.
A superação do capitalismo compreende, necessariamente, a superação do Estado e do Direito, o marco
deixado pelo pensamento de Pachukanis, sob o ponto de vista político, é de uma afirmação irredutível de
que é impossível existir um Direito Socialista, de que a transformação das relações de produção indica o fim
do direito (NAVES, 2000, p. 87). A crítica a forma jurídica afirma que é impossível “salvar” a forma jurídica
dando a ela tarefas que socialmente ela jamais poderá concretizar (FEITOSA, 2015). A sustentabilidade é
uma delas - ou há uma sociedade ecologicamente equilibrada ou há capitalismo e Direito.
Portanto, a relação da crítica ao Direito e o ecossocialismo é, no ponto ambiental, no que aponta os
limites do Direito Ambiental em preservar os recursos naturais e de promover um ambiente equilibrado,
justamente porque é necessário superá-lo, trazendo novos paradigmas transdisciplinares de sociedade.
Atualmente, tal questão já tem sido vista sob o ponto de vista do pluralismo jurídico (RUSCHEL, 2018),
por exemplo, demonstrando que a relação entre a ecologia e a crítica ao direito são atuais e necessárias.
Um paradigma verdadeiramente ecocêntrico precisa superar as marcas estruturas do Direito e conceber
tendências de autonomia e autodeterminação territorial (MALISKA; MOREIRA, 2017).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resta concluído, sob o marco teórico elencado e o método estabelecido, que o ecossocialismo
como teoria é, também, uma crítica ao Direito em sua forma jurídica inerentemente capitalista, e o Bem
Viver é uma proposta de alternativa ao desenvolvimento - não de desenvolvimento alternativo. Tal qual
crítica ao ambientalismo difuso que não enxerga uma contradição entre a preservação ambiental e o
modo de produção capitalista, o Direito para o ecossocialismo também é visto sob suas contradições,
tendo em vista ser o mediador universal das trocas capitalistas. A manutenção do Direito pressupõe
a preservação da forma estatal e política do capitalismo, inerentemente e estruturalmente contrárias
ao interesse de preservação ambiental. Por isso, é visível na literatura do ecossocialismo uma crítica
ontológica ao Direito, exigindo em seus meios o fim da forma jurídica.
O acréscimo do adjetivo sustentável ao desenvolvimento, de direta obrigação ambiental, não
implica no ponto de mutação tal Capra (1999, 1982) menciona como valor de evolução da sociedade,
como significante da mudança dos padrões culturais - pelo contrário, a sua transformação em
forma jurídica pauta o contrário, é o condicionamento da proteção ambiental à universalização da

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

forma mercadoria que mantém o modo de produção capitalista, a afirmação de um contraditório


desenvolvimento sustentável dá substrato para a exploração econômica das pessoas e da natureza,
pautados em princípios que supostamente estariam ligados à proteção do meio ambiente que vivemos.
Enquanto o Bem Viver promove formas de vida que contemplam a superação da crise ambiental
capitalista, o Ecossocialismo denuncia a ineficácia das pautas progressistas que ainda se mantém
atreladas ao Estado e ao Direito - visto o fracasso em promover proteção ambiental na América Latina
(GAUDICHARD, 2016) - por isso é necessário reconstruir utopias tanto de novas formas de vida como
oposição radical à estrutura social capitalista, superando a promoção singular de contra-hegemonia e
efetivamente construindo uma alternativa de longo prazo (FERNANDES, 2019, p. 29).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

INDÚSTRIA CULTURAL E A MESMIDADE:


CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONSUMO E DA ÉTICA

Walter Lucas Ikeda79


Rodrigo Valente Giublin Teixeira80

RESUMO: O trabalho se propõe a analisar o conceito de indústria cultural como elemento que pode
enriquecer, com as reservas necessárias, a proposta ética de Emmanuel Levinas. Ao final, busca-
se uma breve interlocução com o Direito. O trabalho se justifica pelas aporias contemporâneas de
ruptura com a insensibilidade humana. A metodologia é a bibliográfica cujas principais fontes serão
as obras Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos e Totalidade e Infinito. A pesquisa analisa
positivamente a possibilidade de utilização do conceito de indústria cultural com interlocução à
proposta ética e fenomenológica de Emannuel Levinas, este que propõe o rosto como elemento que
não pode ser capturado e totalizado, assim, nem mesmo pela indústria cultural.

Palavras-chave: Cláusula geral de proteção da personalidade. Dialética do esclarecimento. Outro.


Subjetividade. Totalidade e infinito.

INTRODUÇÃO

Essa pesquisa se propõe a revisitar o conceito de indústria cultural cunhado por Adorno e
Horkheimer, na obra Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos, com a finalidade de analisar
a questão da subjetividade, a constituição do Eu, questão indispensável para os debates atuais sobre
ética e política na sociedade de consumo.
A questão da subjetivação tem sido cada vez mais debatida no meio acadêmico, principalmente
com as influências de Michel Foucault, Giorgio Agamben, Carl Schmitt, entre outros, que propõem
uma ideia criação de identidades entre o Nós e o Eles, a partir da noção de raça política, e que permi-
tem a reflexão sobre conceitos como o Estado de Exceção, o poder soberano de fazer viver e deixar
morrer, entre outras discussões de cunho político e jurídico.
Nesse sentido, o presente trabalho busca fazer uma abordagem diversa da acima exposta, mas
cujas conexões são inegáveis, assim, busca-se realizar uma análise da indústria cultural e do processo
de subjetivação como uma criação de identidade vazia e exclusiva que propiciou o fomento da insensi-
bilidade perante o Outro de hoje e a vocação do humano hodierno ao consumo como fim em si mesmo.
Dessa forma, o objetivo do presente trabalho é analisar a ética, ou a sua possibilidade, no contexto
da sociedade do consumo, especificamente quanto à sua interlocução com o conceito de indústria cultural.
A metodologia utilizada é zetética, com análise de revisão bibliográfica a partir do eico teórico
central das obras Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos e Totalidade e Infinito, com o
fito de buscar uma interlocução entre as obras e alinhar alguns elementos da indústria cultural com a
proposta do filósofo Emmanuel Levinas e sua ideia ética, na qual identificaremos ou não, uma aproxi-
mação das ideias e uma proposta ética e política.

79 Doutorando em Ciências Jurídicas pela UniCesumar. Mestre em Direito pela Unicesumar. Pós-Graduado pela PUC-PR. Gra-
duado em Direito pela Faculdade de Direito Professor e advogado. E-mail: walterlucasikeda@gmail.com.
80 Doutor em Direito pela PUC/SP. MBA em Business Law pela FGV. Mestre em Direito pela UEL/PR. Bolsista Produtividade
em Pesquisa do ICETI – Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação. Professor Titular do Doutorado, Mestrado e da
Graduação na UniCesumar. Advogado. E-mail: rodrigo@rodrigovalente.com.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 A INDÚSTRIA CULTURAL E O OUTRO

A concepção de indústria cultural advém das reflexões cunhadas por Adorno e Horkheimer
(2009), na obra intitulada Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos, que contou com a
observação dos seus autores para um momento de transição do capitalismo liberal do século XIX
para o capitalismo monopolista do século XX. Em paralelo ao movimento do capital, dentre outras
circunstâncias externas que influenciaram a emergência da terminologia, a cultura passou a ser objeto
da industrialização, tornando-se mercadoria, e, assim, acessível à massa trabalhadora da sociedade.
Com efeito, a transformação da cultura como objeto da industrialização contou com diversos
fatores externos que não podem ser menosprezados, mas cujo foco deste trabalho não é o de esgotar
este tema, apenas ilustrar brevemente alguns pontos, que entendemos pertinentes ao nosso objetivo,
assim, menciona-se que houve o fomento de melhores condições da saúde pública, e o maior tempo
de descanso e lazer dos trabalhadores.
Pode-se depreender, com as reservas necessárias, que os eventos acima destacados,
permitiram a criação de uma massa de trabalhadores com tempo para se entreterem. As opções
de entretenimento, à época, limitavam-se a bares e pequenos festivais locais, posteriormente, com
o desenvolvimento tecnológico de emissão de imagens e áudios, permitiu-se o fomento do acesso
coletivo ao entretenimento.
O termo cultura de massas emergiu desse novo contexto social, em que o povo produzia
entretenimento espontaneamente, do povo para o povo, e, justamente por essa concepção de cultura
de massas que, Adorno e Horkheimer cunharam um termo diferente, o termo indústria cultural busca
designar um fenômeno diverso do de cultura de massas.
No texto Industria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, pode-se destacar alguns
pontos centrais da tese dos pensadores, que nos ajudam a pensar este conceito, como a manipulação
promovida pela indústria cultural, que teria um viés de anteder aos desejos presentes, mas concomitan-
temente, criar desejos e necessidade, eleger padrões à massa de trabalhadores, incluindo o destaque ao
controle do conteúdo por meio de pesquisas sobre o gosto da massa de trabalhadores, que é concretizada
por meio da promessa do divertimento à massa, e que alcançam uma dimensão moral e até mesmo, em
última análise, política na medida em que impõe valores e necessidades para a coletividade.
Na verdade, pode-se observar que a cultura perde sua capacidade formativa, para propiciar um eter-
no consumidor, este satisfaz suas “necessidades” num sistema que estimula ou cria uma novas necessida-
des, cria-se uma espécie de eterno retorno do mesmo, em que a pessoa busca suprir sua necessidade em
uma grande lista de itens que tem um mesmo objetivo final de reiniciar o ciclo de seu consumo.

[...] mas a necessidade intrínseca ao sistema de não largar o consumidor, de não lhe dar
a sensação de que é possível opor resistência. O princípio básico consiste em lhe apresentar
tanto as necessidades como tais, que podem ser satisfeitas pela indústria cultural, quanto por
outro lado organizar antecipadamente essas necessidades de modo que o consumidor a elas se
prenda, sempre e apenas como eterno consumidor, como objeto da indústria cultural (ADORNO;
HORKHEIMER, 2009, p. 23).

Dessa forma, promove-se a subjetivação, ou mesmo dessubjetivação, da pessoa humana,


emergindo uma pessoa padronizada, moldada de acordo com as diretrizes impostas, e apenas na
medida em que sua individualidade seja aceita numa margem do padrão imposto.

Na indústria cultural o indivíduo é ilusório não só pela estandardização das técnicas de produção.
Ele só é tolerado à medida que sua identidade sem reservas com o universal permanece fora de con-
testação. Da improvisação regulada do jazz até a personalidade cinematográfica original, que deve
ter um topete caído sobre os olhos para ser reconhecida como tal, domina a pseudoindividualidade.
O individual se reduz à capacidade que tem o universal de assinalar o acidental com uma marca tão
indelével a ponto de torná-lo de imediato identificável (ADORNO; HORKHEIMER, 2009, p. 33).

Dessa forma, por meio da subjetivação dos seres humanos com uma pseudoindividualidade é que
se permite captura-los integralmente numa universalidade, na verdade, não apenas “A particularidade
do Eu é um produto patenteado, que depende da situação social que é apresentado como natural”
(ADORNO; HORKHEIMER, 2009, p. 33), mas para os pensadores, “o princípio da individualidade sempre

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

foi contraditório. Antes de tudo, nunca se chegou a uma verdadeira individualização” (ADORNO;
HORKHEIMER, 2009, p. 34).
A questão que se busca colocar é que todos os elementos da vida urbana são colocados à
disposição da indústria cultural, desde objetos de vestimenta até identidades, e aqui, em última
análise, podemos analisar que o próprio processo de subjetivação passa pelo consumo, totalizando
toda a realidade social.
A indústria cultural se apropria de todos os elementos da vida social, não se trata de uma
legislação ou um decreto que pode ser revogado, mas um modo de viver e fazer viver – que possibilita
aqui sua interpretação de poder em sentido contrário –, assim, totaliza tudo, cria um universal que
abrange apenas aquilo que lhe interessa, pois propõe uma epistemologia a partir do consumo e da
diversão, do que pode Ser e o que não pode, o que pode ser o Eu e o que é o Outro.
É importante destacarmos que a diversão só consegue prover a concordância da massa com uma
alienação do pensamento crítico, da dor e com a criação da impotência humana, pois a diversão que estamos
a discutir é infantil e “consiste em se dirigir às pessoas fingindo tratá-las como sujeitos pensantes, quando seu
fito, na verdade, é o de desabituá-las ao contato com a subjetividade” (ADORNO; HORKHEIMER, 2009, p. 25).
Neste contexto apresentado, poderíamos pensar em resistência? Para os pensadores, a indústria
cultural cria uma condição de impotência humana e uma fuga da realidade, “de fato, fuga, mas não,
como pretende, fuga da realidade perversa, mas sim do último grão de resistência que a realidade
ainda pode haver deixado” (ADORNO; HORKHEIMER, 2009, p. 25).
Podemos questionar: e aquilo que não é absorvido pela indústria cultural? O que não é totalizado
pela mesmidade deste sistema? Onde fica aquela pessoa que não se encontra na pseudoidentidade
paradigma, isso é, como fica o Outro? Aquilo que não se encaixa neste sistema é descartado.
A mesmice promovida pela indústria cultural instrumentaliza uma novidade do estágio anterior da
cultura de massa, pois exclui o diferente, o que não se encaixa no seu ciclo ou que não o promove, a
máquina do consumo gira em torno do seu próprio eixo, chegando ao ponto de determinar o consumo e
daquilo que não deve ser consumido, e, logo, descartado do sistema (ADORNO; HORKHEIMER, 2009, p. 16).
O pensamento totalizante não é exclusividade da indústria cultural, as críticas a uma concepção
de mundo administrado por tecnologias e discursos já foi muito exposta pela Escola de Frankfurt e
faz parte da nossa própria história ocidental. De toda forma, para o filósofo Emmanuel Levinas há um
elemento que não pode ser capturado, há um elemento que fica longe do alcance da indústria cultura
e da razão totalizante, um elemento que nos permite pensar em uma chave ética capaz de romper
com o fetiche que nós temos com nossa potência ética e humanística, o que nos permitiria pensar em
uma nova estrutura política e social que iria de encontro com os dispositivos de captura denunciados,
esse elemento é o rosto do Outro.

2 O QUE ESTÁ FORA DO MESMO E O QUE ME É EXIGIDO

O filósofo Emmanuel Levinas, lituano-francês, direcionou suas reflexões e preocupações, em grande


medida, ao tema da instrumentalização da razão, e realiza um pensamento crítico e de resistência. O
filósofo cuidou de reflexões a partir de conceitos como o do rosto (visage) e o Outro, figuras essenciais
em suas reflexões, pois é o rosto do Outro que me interpela, que exige de mim uma responsabilidade,
o fomento de uma fraternidade, de um amor que não pode ser capturado e de um desejo de infinito que
rompe com o ciclo de mesmice da razão totalizadora e da subjetivação cíclico-vazia.
É fundamental destacar preliminarmente que Adorno e Horkheimer se aproximam de Levinas,
no que concerne às suas teses, na ideia de subjetivação do ser humano por meio de uma totalização,
é nesse sentido que Levinas expõe ser a ideia de pessoa um reflexo daquele posto por quem se diz
humano (LEVINAS, 1988b, p. 24).
O que se pode observar nas reflexões acerca da indústria cultural é uma espécie de luta pelo
reconhecimento, por uma espécie fugaz de existência que é alcançada ao atingir um padrão e uma
promessa de consumo imposto pela indústria cultural, assim, temos que o Eu se encontra num padrão
de consumo, e aquele que não galga ao padrão estabelecido imposto se torna um Outro, alguém para
quem os olhos não são direcionados.

163
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Este Eu que emerge do projeto moderno, e alcança um novo patamar com a indústria cultural, expõe
uma subjetivação vazio-cíclica e solipsista de um indivíduo egocêntrico e narcisista, que passa a acreditar
apenas na sua própria existência que é ratificada pela sua própria razão totalizante de mesmidade.
Apesar da consideração dos pensadores que cunharam o termo da indústria cultural, acerca
da impossibilidade de resistência, a leitura das ideias de Emmanuel Levinas nos permite pensar na
criação de um novo pensar crítico e de resistência, pois como já foi enunciado, o rosto não pode ser
capturado pela razão totalizante.
Uma vez que sejamos levados a admitir a existência de um indivíduo que se fecha em si mesmo,
numa totalização do mesmo, apenas daquilo que lhe é imposto e do que pode dizer que é, quando
pode dizer que é, emerge um lastro social que devemos voltar nossos olhares, que é o Outro.
Levinas chama atenção aos Judeus mortos em Auschwitz, e do mesmo modo que trata do órfão
e da viúva, identificados como Outros, buscando uma interlocução com Adorno e Horkheimer, o
Outro é aquele que não está no padrão imposto, e foi condenado como algo a ser descartado, mas é
justamente no Outro, declarado como descartável, que podemos encontrar uma chave de ruptura à
insensibilidade promovida pela subjetivação da mesmidade.
Nesse sentido, o Outro de Auschwitz, o Outro que morreu na pandemia como mais um número
na estatística, o Outro da favela que é atacado pelas forças de segurança, o Outro que opta por uma
orientação sexual diversa e é discriminado, o Outro de outra religião que é perseguido, o Outro
que tem um posicionamento político diverso que é estereotipado, o Outro que me pede dinheiro no
semáforo e a quem desviamos os olhos ou ignoramos sua existência, o Outro que é deixado para
morrer num sistema carcerário declarado como estado de coisa inconstitucional, o Outro que não sou
Eu e que ignoro a sua existência; todos estes Outros e todos os Outros, são ligadas com o Eu por meio
de uma experiência ética indelével.

A outra pessoa viva diante de mim hoje e a outra pessoa morta em Auschwitz estão interfoliadas
na experiência ética: por um lado, esquecer ou abandonar aqueles que foram assassinados
seria ignorar o rastro de seu sofrimento que está nas responsabilidades para com e por outras
pessoas hoje, e, por outro, a face da outra pessoa é uma lembrança da vulnerabilidade humana
especialmente do sofrimento das vítimas (LEVINAS, 1988a, p. 67).

O reconhecimento do Outro é imprescindível para podermos falar em ética, pois a ética apenas
é possível com plurais, e por plurais, devemos entender diferentes (SOUZA, 2016, p. 43), pois o
reconhecimento do Outro não deve integrar um “nós” em que somos todos iguais, mas um “nós” que
exige o reconhecimento de diferentes, ou seja, “A colectividade em eu digo tu ou nós não é um plural
do eu, Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum” (LEVINAS, 1988a, p. 26).
É a partir do rosto (Visage) que se encontra o elemento que não foi capturado, não foi totalizado e
nunca poderá ser totalizado por absoluta impossibilidade, pois o rosto é o elemento de resistência por exce-
lência à razão totalizadora, tendo em vista que propõe um convite à metafísica do infinito (LEVINAS, 1988a).
O rosto, que não se reduz em si mesmo, isso é, o rosto não se limita ao nariz, testa e outros
elementos, nem se reduz ao rosto de uma pessoa particular, mas constitui um elemento concreto que
vincula o infinito, diverso do ciclo infinito que se reduz ao mesmo da indústria cultural, o rosto abre
ao infinito metafísico e da subjetivação humanística, na medida em que apenas ao reconhecer o Outro
poderei ter acesso ao que não sei e alcanço, e esta possibilidade permite um desejo de reconhecer ao
Outro de forma a alcançar o infinito.
É no rosto que encontro a recapitulação de toda a dor e insensibilidade humana, e que sou
instado, a me responsabilizar por aquele que me é colocado no face a face, a responsabilidade pelo
Outro é metafísica, tendo em vista que antecede a ontologia, isso é, a responsabilidade ética pelo
Outro precede a questão sobre o Eu.
Quanto à subjetivação, é importante ser destacado que ao olharmos para o rosto (visage) do Outro, somos
instados a sermos responsáveis, existe a emergência do cuidado com aquele que nos coloca numa situação
de face a face, e a responsabilidade pelo Outro é a filosofia primeira. A ética como filosofia primeira significa:

[..] todo o contato com a realidade, toda interpretação destes fatos se dão eticamente, onde
o contato e a ação éticos substituem o conhecimento classificador tradicional e podem vir a
fundamentar um conhecimento sobre bases absolutamente novas, com outro sentido. Todo o

164
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

conhecimento é então necessariamente secundário – derivados – a uma ética primeira frente às


mais diversas dimensões da realidade perceptível, a um nascimento compartilhado eticamente,
talvez um retorno à origem da co-naissance (SOUZA, 2016, p. 139).

Não temos necessariamente uma posição de epistemologia do conhecimento com a posição de


Levinas, mas muito mais de maiêutica, com contornos próprios, trata-se de uma maiêutica que vem
do exterior a mim, vem do Outro, e abre um campo que o Eu não contem, e essa abertura ao Outro,
leva ao infinito, rompendo com a mesmidade contemporânea.
Emmanuel Levinas propõe algo inovador no pensamento ocidental, propondo uma subjetividade
diferenciada, a partir do Outro, e não do Eu, e que reverbera no mundo jurídico inevitavelmente,
a proposta a ser realizada é muito mais do que um procedimento processual ou organização do
ordenamento jurídico, considerando que:

E isto a história comprova, pois nenhuma doutrina jurídica conseguiu até agora fazer com
que os fracos e oprimidos deixassem de sê-lo; e o mundo está aí, com suas guerras, com o
subdesenvolvimento e a fome, com a exploração dos pobres, indivíduos e povos, a coisificação
da pessoa, com a dominação de uma parte do mundo por alguns Estados, isso tudo em nome da
liberdade, da dignidade e do respeito pela pessoa humana, e ultimamente em nome dos direitos
humanos (ZENNI, 2018, p. 159).

Na verdade, em primeiro momento, não se trata de uma mudança em algum artigo, decreto ou
legislação, trata-se muito mais de uma mudança na dimensão metajurídica, no sentido ético e político,
e com maiores análises, uma mudança no fundamento e sentido da figura do sujeito de direito.
De toda forma, a fim de expor uma possibilidade de entrada normativa da questão em nosso
ordenamento, pode-se mencionar que os direitos de personalidade ostentam uma cláusula geral de
proteção da personalidade, e que neste contexto, poderíamos pensar em uma proteção levinasiana a
partir desta cláusula geral de proteção.
Com efeito, deve ser invocado os direitos da personalidade que ostentam um direito geral da perso-
nalidade e que é dotado de um quadro jurídico preciso, provido de operacionalidade prática, com inventa-
riação e projeção de seu objeto, a determinação de seus sujeitos passivos e ativos nas relações sociais-ju-
rídicas, seguido de determinado contorno e encaixe dos poderes e deveres jurídicos desses sujeitos, “com
garantias eficazes, com delimitação criteriosa e articulação eficaz do direito geral da personalidade, com os
direitos especiais da personalidade e com os direitos próximos ou afins” (CAPELO DE SOUZA, 1995, p. 624).
Há um dimensionamento crescente dos direitos da personalidade, de acordo com a evolução do
corpo social, da tecnologia e do conhecimento das demais ciências que provocam um fracionamento
dos direitos da personalidade que se desenvolvem ao infinito e que não passa incólume aos críticos
que se assemelham aos críticos dos direitos de personalidade no século XIX.
A enumeração dos direitos da personalidade está fadada ao incompleto e a insatisfação social cuja
única solução satisfatória se agasalha na categoria geral de direitos da personalidade, pois os direitos da
personalidade, ainda que típicos, crescem sem limites, jamais encontram a exaustão. No direito europeu,
pode-se constatar quase que em toda sua extensão, a adoção da categoria geral de direito de personalida-
de, expressa por cláusula geral e destinada a tutelar a personalidade humana (SZANIAWSKI, 1993, p. 127).
Diante do exposto, considerando que a evolução social nos traz uma grande insensibilidade
humana, apesar de todo o discurso de dignidade e direitos positivados, os direitos da personalidade
são capazes de denotar um encontro entre o rosto concreto e o rosto metafísico, um encontro
entre o direito geral de personalidade e o julgamento de um caso concreto, ou seja, uma abertura
fenomenológica entre ética e direito, entre ética e política, entre ética e o judiciário, e, em última
análise, entre Eu e o Outro.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ética levinasiana propicia a construção de uma nova posição crítica frente aos atos de totalização,
como o da indústria cultural, mas para além desta, a ética proposta é elemento de resistência à razão
instrumental e totalizadora que encontram grande fomento no projeto moderno.

165
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Pode-se constatar que a indústria cultural que se desenvolve com o capitalismo do século XX,
com o auxílio de diversos fatores externos, como o desenvolvimento da tecnologia de imagem e som,
a possibilidade de maior tempo disponível e a de acesso à cultura que se abre na passagem do século
XIX ao XX, tem em sua estrutura, em última análise, a razão totalizadora.
A razão totalizadora captura toda a vida social e forma um padrão do que é desejável, excluindo
tudo aquilo que não se encontra nesta dimensão, incluindo o processo de subjetivação das possíveis
identidades passíveis de consumo, excluindo-se o Outro que não se encaixa no padrão imposto. Para
os filósofos que cunharam o termo indústria cultural, a resistência teria sido colocada numa escala
de impotência.
Por outro turno, foi possível analisar que o pensamento de Emmanuel Levinas levanta um
pensamento crítico e de resistência a partir daquele que é deixado de fora do eixo de reconhecimento
imposto pela indústria cultural, o Outro, este que nos interpela a um caminho de desejo infinito e ético,
tendo em vista que nos subjetiva a partir do Outro e da nossa responsabilidade ética com o Outro.
Dessa forma, é possível perceber uma aproximação das ideias contidas nas obras Dialética do
esclarecimento: fragmentos filosóficos e Totalidade e Infinito, especialmente quanto à problemática
da razão totalizante e da subjetividade da mesmidade, com as reservas terminológicas elegidas por
cada um dos pensadores, em que podemos complementar as críticas de Levinas num viés sociológico
rico trazido pela obra que cunha a ideia de indústria cultural, enquanto a aporia de resistência ou
da negação de potencia denunciadas por Adorno e Horkheimer colhem um elemento que permite
reflexões para um novo pensar em face da totalização.
Por derradeiro, podemos apontar que as críticas de Adorno e Horkheimer, assim como outras
teses propostas pela Escola de Frankfurt, colocam em xeque a razão instrumental e totalizadora, o que
também é criticado por Emmanuel Levinas e onde se observa um campo de aproximação da qual são
cabíveis outras pesquisas que possam destacar a aproximação ou distanciamento dos pensamentos.

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166
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

LA EDUCACIÓN AMBIENTAL CON UNA MIRADA AL DECRECIMIENTO

Fernández María Angélica81


Daniel Rubens Cenci82

RESUMEN: El propósito del siguiente artículo es realizar una revisión bibliográfica en textos
académicos y documentos oficiales de diversas conferencias internacionales de mayor relevancia
referida a la temática planteada sobre Educación Ambiental y Decrecimiento. Así, el presente trabajo
de investigación adopta como diseño descriptivo. Se abordan los siguientes objetivos, en primer
lugar, describir y conceptuar las palabras Educación, Educación Ambiental, Ambiente y Decrecimiento,
teniendo en cuenta sus etimologías y referencias de autores importantes que tratan sobre las mismas.
En segundo lugar Analizar a la Educación Ambiental en relación a la teoría del Decrecimiento. Y por
último se arribará a conclusiones y se propondrá líneas de acciones educativas pertinentes.

Palabras-claves: Educación. Ambiente. Educación Ambiental. Decrecimiento.

INTRODUCCIÓN

La Educación Ambiental (EA en adelante) tiene especial importancia como un espacio para formar
sujetos preparados, propositivos y participativos; que actúen conscientemente en la resolución de
problemas ambientales y en la construcción de una relación sociedad-naturaleza diferente.
La EA tiene un papel fundamental, no obstante limitado cuando en diversos escenarios sociales
se orienta a las personas hacia la búsqueda del placer, la acumulación de bienes y al individualismo.
En esta orientación, el ser humano es visto como un consumidor. Revertir este estilo de vida consu-
mista, requiere que la EA comprenda el origen de las percepciones ambientales y la esencia de las
personas, rescatando su dignidad, ofreciendo diversos estilos de vida, que implica vivir dignamente,
a tener una vida plena y ser respetado.
El siglo XXI se caracteriza por la simplicidad ante la complejidad, la racionalidad ante la
incertidumbre, el consumismo ante la era del conocimiento, la globalización ante la globalización y
la indiferencia social ante la solidaridad. Conjunto de situaciones contradictorias que demandan una
relación diferente con el medio ambiente, se ha privilegiado por muchos la relación género humano-
naturaleza, fundamentada en una racionalidad productiva, en el que se considera únicamente a la
naturaleza como fuente de materia prima, dejando fuera la relación del género humano con la sociedad
y olvidando la relación del género humano consigo mismo.
Las sociedades humanas, no están fuera de la naturaleza, ni son su complemento, están
integradas al ambiente. El ser humano se ha olvidado, que forma parte del ambiente y la EA puede
contribuir a que las personas recuperen la conciencia de especie, recuperando una visión integral de
lo humano con la naturaleza. En este sentido el papel de la EA es fundamental, para crear la conciencia
ambiental en las nuevas generaciones.
Taibo, C. (2009), partidario de los movimientos antiglobalización y uno de los más destacados
defensores de la corriente de pensamiento político, económico y social del decrecimiento, quien explica
que el del decrecimiento no es un proyecto que sustituya a todo lo que el conjunto de luchas contra

81 Doctoranda en Desarrollo Sustentable e Integración, Universidad Gastón Dachary, Misiones, Argentina Lic. Educación Pri-
maria; Lic. Gestión Educativa; Prof. Universitaria Título Base L.E.P; Docente C.G.E.P.M: Escuela Primaria Rural N° 104 y 1.478.
E-mail: mangelapp76@gmail.com
82 Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Mestre em Direito pela Univer-
sidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Professor dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e Mestrado
em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade. Colaborador do Doctorando en Desarrollo Sustentable e Integración. Universi-
dad Gastón Dachary. Posadas- Misiones- Argentina. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e
Sustentabilidade. E-mail: danielr@unijui.edu.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

el capitalismo, ha supuesto desde mucho tiempo atrás, que es una perspectiva que permite abrir un
nuevo frente de contestación del capitalismo imperante. En ese sentido parece razonable afirmar que
en el Norte desarrollado de principios del siglo XXI no es imaginable ningún proyecto anticapitalista
consecuente que no sea al mismo tiempo decrecimentalista, autogestionario y antipatriarcal.
La Educación Ambiental se revela en la actualidad como una compleja combinación de teorías y
prácticas que abordan desde diferentes puntos de vista la concepción de educación, de medio ambiente o
desarrollo social y económico, se propone analizar sobre el papel de la Educación Ambiental en el actual
escenario, para avanzar en una nueva mirada que apueste por una Educación Ambiental decrecentista.
Por todo lo expuesto me pregunto ¿Es posible una Educación Ambiental con una mirada al Decrecimiento?
El presente trabajo de investigación adopta la metodología con diseño descriptivo. Es una
investigación de tipo documental y su metodología abarcó las fases de búsqueda y recopilación de
información hasta su análisis y síntesis. Las fuentes consultadas son fundamentalmente documentos
oficiales emanados de conferencias internacionales así como fuentes bibliográficas y trabajos originales
reportados en revistas acreditadas de mayor relevancia. El criterio utilizado para la selección fue el uso
de los documentos emanados de los eventos internacionales. En cuanto al procedimiento se puede
señalar que primero se realizó una selección de documentos y luego un análisis crítico para destacar
la información relevante de los mismos, lo cual constituyó la base del presente trabajo.

1 EDUCACIÓN

Según la Real Academia Española, la palabra  “educación” (enseñanza, acción y efecto de


desarrollar las facultades intelectuales y morales) viene del sustantivo latín educatio, onis (crianza,
entrenamiento, educación) derivado del verbo educare (nutrir, criar, educar), el cual deriva de educere
(guiar, exportar, extraer, conducir).
El proceso de sociabilización por el cual una persona asimila y aprende conocimientos recibe el
nombre de educación. Los métodos educativos suponen una concienciación cultural y conductual que
se materializa en una serie de habilidades, competencias y valores.

1.1 Educación Ambiental

La Educación Ambiental, EA (en adelante) emerge en la segunda mitad del siglo XX como una
propuesta necesaria para enfrentar a la problemática ambiental.
Sostiene la UNESCO (1970) en la Reunión Internacional de Educación Ambiental que la EA es el:
“Proceso que consiste en reconocer valores y aclarar conceptos, con objeto de fomentar las aptitudes
y actitudes necesarias para comprender y apreciar las interrelaciones entre el hombre, su cultura y su
medio biofísico”. La EA es un proceso dinámico y participativo, que busca despertar en la población una
conciencia que le permita identificarse con la problemática ambiental tanto a nivel general (mundial),
como a nivel específico (medio donde vive); busca identificar las relaciones de interacción e independencia
que se dan entre el entorno (medio ambiental) y el hombre, así como también se preocupa por promover
una relación armónica entre el medio natural y las actividades antropogénicas a través del desarrollo
sostenible, todo esto con el fin de garantizar el sostenimiento y calidad de las generaciones actuales y
futuras como lo sostiene el artículo cuarenta y uno de nuestra Constitución Nacional.
Según Gutiérrez, J. (2000), la EA además de generar una conciencia y soluciones pertinentes a los
problemas ambientales actuales causados por la actividad antropogénica y los efectos de la relación
entre el hombre y medio ambiente, este mecanismo pedagógico además infunde la interacción que
existe dentro de los ecosistemas. Los procesos y factores físicos, químicos así mismo biológicos,
cómo estos reaccionan, se relacionan e intervienen entre sí dentro del medio ambiente, es otro de
los tópicos que difunde la EA, todo esto con el fin de entender nuestro entorno y formar una cultura
conservacionista donde el hombre aplique en todos procesos productivos técnicas limpias dándole
solución a los problemas ambientales, permitiendo de esta forma el desarrollo sostenible. 
Es necesario planificar responsablemente el desarrollo de las diversas actividades económicas,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

sociales y educativas con el objetivo de cuidar los ambientes para preservar la salud de las personas,
proteger la biodiversidad y asegurar los recursos para las generaciones futuras.
El derecho a un ambiente sano es responsabilidad de las autoridades de los países, quienes
deben preservar la calidad del ambiente para todos los habitantes.
En la Argentina, el artículo cuarenta y uno de la Constitución Nacional, establece que:

Todos los habitantes gozan del derecho a un ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo
humano y para que las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin
comprometer las de las generaciones futuras; y tienen el deber de preservarlo. El daño ambiental
generará prioritariamente la obligación de recomponer, según lo establezca la ley. Las autoridades
proveerán a la protección de este derecho, a la utilización racional de los recursos naturales, a la
preservación del patrimonio natural y cultural y de la diversidad biológica, y a la información y
educación ambientales(...).

La Constitución de la Provincia de Misiones, en su artículo cincuenta y siete menciona que: “se


dictarán leyes especiales con el fin de la conservación y mejoramiento de los suelos, de la flora y de
la fauna…”
En diciembre del año 1999 se sanciona la Ley Nº 3631, merced a la cual se crea el Área Integral
de Conservación y Desarrollo Sustentable denominada “Corredor Verde de la Provincia de Misiones”,
con la finalidad de garantizar a perpetuidad la conectividad de los tres principales bloques de Áreas
Naturales Protegida de la Selva Paranaense en la Provincia de Misiones. En enero del año 2001 el
Decreto Reglamentario Nº 25 Normatiza dicha Ley, haciéndola operativa.
El perfil de persona que se desea formar está ligado al tiempo histórico y debe renovarse con las
transformaciones que acontecen en la sociedad. Expresa la Ley Federal de Educación en su Capítulo
II, artículo 6º lo siguiente:

El sistema educativo posibilitará la formación integral y permanente del hombre y la mujer,


con vocación nacional, proyección regional y continental y visión universal y su realización
como personas en las dimensiones cultural, social, estética, ética y religiosa, acorde con sus
capacidades, guiados por los valores de vida, libertad, bien, verdad, paz, solidaridad, tolerancia,
igualdad y justicia. Hombres y mujeres capaces de elaborar, por decisión existencial, su propio
proyecto de vida, ciudadanos responsables, protagonistas críticos, creadores y transformadores
de la sociedad, a través del amor, el conocimiento y el trabajo, defensores de las instituciones
democráticas y del medio ambiente.

A través de la EA se aspira a la formación de la persona plena, autónoma, libre y solidaria, con


sentido crítico, esencialmente democrática, total, abierta al mundo y con posibilidad de enriquecerse
con su poder creador, partícipe en la realidad social en el marco de una ética de compromiso
participativo, capaz de ser persona respetada y reconocida como tal, capaz de aceptar y comprender
al otro, de respetar la diversidad de culturas, ideales y los valores y a quienes los asumen.
Sostiene la Ley de Educación Nacional Nº 26206 en el Capítulo II: Fines y Objetivos de la Política
Educativa Nacional, que en su Artículo 11, inciso c) suscribe:

Brindar una formación ciudadana comprometida con los valores éticos y democráticos de
participación, libertad, solidaridad, resolución pacífica de conflictos, respeto a los derechos
humanos, responsabilidad, honestidad, valoración y preservación del patrimonio natural y cultural.

Educar, en la actualidad, significa dar a las personas el ejercicio práctico de ciudadanía en una
sociedad civil. En este ámbito, el principal actor es la persona y el desarrollo de la capacidad de
autonomía le brindará la posibilidad de decidir en un marco de igualdad, equidad y libertad.
La EA atraviesa todas las áreas del conocimiento y se debe trabajar transversalmente siempre,
lo mismo que se aprende en el hogar, escuela, provincia o nación debe adquirir una dimensión ética,
cognoscitiva y de aptitud crítica frente a problemas ambientales planteados.
Según Lander, E. (1984) sostiene que “La crisis ambiental y sus implicaciones han pasado a
formar parte de la conciencia colectiva de amplios sectores de la humanidad, y ha incidido en términos
prácticos en cambio de conducta significativos y de actitud en relación al ambiente”. La problemática
ambiental deja al descubierto numerosos hechos que hacen evidentes las disparidades en que viven los

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

países industrializados en relación al resto de las naciones. Y en éstos últimos, las grandes carencias
que arrastran sus pueblos generación tras generación, que se traducen en grandes desigualdades
sociales y la destrucción del medio ambiente. Por otra parte, también resultan evidentes las enormes
posibilidades que le son inherentes a la EA para enfrentar la crisis ambiental.

2 AMBIENTE

La etimología de la palabra “ambiente” proviene del latín “ambiens, ambientis,” que significa
“que rodea o cerca”. Esta idea básica se encuentra hoy enriquecida con las nociones de sistemas
dinámicos y contextos. Decir sistemas dinámicos es hacer referencia a las interrelaciones entre
todos los componentes que conforman una unidad sistémica, considerándose al planeta como tal,
caracterizado por su diversidad y complejidad.
Según Caride, A. y otro (2000) en cuanto a contexto nos remitimos a “contextere” que significa
“tejido, entremezclado, entrelazado.” El contexto ambiental no es sólo biorregional (biológico - físico -
geográfico) sino que tiene dimensiones históricas, culturales y políticas. Estas dimensiones entrelazadas
determinan el reconocimiento y la significación de las relaciones socioambientales y educativas. En la
actualidad, son numerosas las concepciones que conviven en relación a este conocimiento.
Según Tréllez, E. (2002) el término ambiente implica: “…una concepción dinámica, cuyos elementos
básicos son una población humana con elementos sociales, un entorno geográfico con elementos
naturales y una infinita gama de interacciones entre ambos elementos. Para completar el concepto hay
que considerar, además, un espacio y tiempo determinados, en los cuales se manifiestan los efectos de
estas interacciones“. Es importante recordar que la especie humana es, a la vez, componente natural, de
existencia finita, sujetos a las leyes naturales; y es social, en tanto es creadora de cultura en su más amplia
acepción. Por esta razón, el ser humano no puede sustraerse al concepto holístico y dinámico de ambiente
y, en consecuencia, es parte esencial de él. El ambiente como concepto ha evolucionado y continúa en
proceso de construcción, tanto desde el punto de vista de su comprensión como de su contenido.
La percepción sobre el ambiente se construye en el seno de una sociedad, se concreta y modifica
en una interrelación permanente entre procesos simbólicos y prácticas cotidianas. En este sentido,
la visión de mundo juega un rol fundamental en los significados que las comunidades otorgan a
la naturaleza, ya que está vinculada con las formas de concebirla, clasificarla, jerarquizarla y de
relacionarse con ella de modo tal que

“…Los elementos de la clasificación social que integran el rubro naturaleza varían no sólo de
sociedad en sociedad, sino también en relación con las diferentes coyunturas propias del devenir
histórico de una determinada sociedad. En tanto asumimos que las sociedades no son homogéneas,
debemos pensar en la posibilidad de encontrar en el seno de cada una de ellas, concepciones
diferentes de lo natural, con significados también diferentes”, como lo expresa Tamagno L. (1993).

A modo de ejemplo se citan dos concepciones diferentes:


• una visión predominante en nuestro tiempo concibe al ambiente como una canasta de recursos
externa a la sociedad humana y se conjuga con un conjunto de valores y criterios económicos para
su explotación.
• una concepción alternativa proyecta sobre el ambiente un valor patrimonial en el sentido de bien
común de un grupo o comunidad. Desde esta concepción el ambiente presenta un valor en sí mismo ya
que otorga identidad al tiempo que constituye el sustrato que posibilita la vida de la comunidad. Desde
esta perspectiva, en la interpretación de la relación sociedad- naturaleza, los ecosistemas naturales dejan
de interpretarse como determinantes en los problemas ambientales y cobran relevancia las particulares
visiones de mundo del sistema sociocultural que interactúa en ese ecosistema.
Por ello, al decir Leff, E. (1998)

“… en la percepción de esta crisis ecológica, se fue configurando un concepto de ambiente como una nueva
visión del desarrollo humano, que reintegra los valores y potenciales de la naturaleza, las externalidades
sociales, los saberes subyugados y la complejidad del mundo negados por la racionalidad mecanicista,
simplificadora, unidimensional, fraccionadora que ha conducido el proceso de modernización.”

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

De esta manera el ambiente emerge como un saber reintegrador de la diversidad, de nuevos


valores éticos y estéticos, de los potenciales sinergéticos que genera la articulación de procesos
ecológicos, tecnológicos y culturales.
Uno de los rasgos propios de la EA es el de la heterogeneidad, ya que en ella se desarrollan
diversidad de prácticas que se denominan igual. Sauvé, L. (1999), junto a otros autores, proponen que
dicha heterogeneidad radica en la falta de acuerdos sobre qué entendemos por ambiente y qué por
sustentabilidad. Estos dos conceptos fundamentales son los que condicionan y orientan el enfoque
de la EA. Algunas de las concepciones identificadas por Sauvé, L. (1999) son:
El ambiente como naturaleza, corriente naturalista: constituye una actitud de apreciación, respeto
y conservación del medio físico natural, el ambiente remite al entorno original del que el hombre se
ha distanciado, hecho que queda de manifiesto a raíz de las actividades antrópicas que han provocado
su deterioro. Se trata de una corriente centrada en la relación del hombre con la naturaleza. El enfoque
educativo puede ser cognitivo, experiencial, afectivo, espiritual o artístico asociando la creatividad
humana a la de la naturaleza. En el curso del siglo XX, la corriente naturalista se asocia más específicamente
con el movimiento de educación al medio natural y a ciertas proposiciones de educación al aire libre.
El ambiente como recurso: esta corriente agrupa las proposiciones centradas en la conservación
de los recursos, tanto en lo que concierne a su calidad como a su cantidad: el agua, el suelo, la
energía, las plantas, los animales, el patrimonio genético, el patrimonio construido, etc. Cuando se
habla de conservación de la naturaleza o de la biodiversidad, se trata sobre todo de una naturaleza-
recurso. Se encuentra aquí una preocupación por la gestión del medio ambiente o gestión ambiental
y el ecocivismo. La educación para la conservación ha sido siempre parte integrante de la educación
familiar o comunitaria en los medios donde los recursos son escasos. Los programas de EA centrados
en las tres “R” (Reducción, Reutilización y Reciclado) y un imperativo de acción: comportamientos
individuales, proyectos colectivos y la educación para el consumo, más allá de una perspectiva
económica se ha integrado más claramente una preocupación ambiental de la conservación de
recursos, asociada a una preocupación de equidad social.
El ambiente como problema: se conoce como corriente resolutiva, surge a comienzos de los
años ‘70, cuando se revelaron la amplitud, la gravedad y la aceleración creciente de los problemas
ambientales. Agrupa proposiciones en las que el medio ambiente está considerado como un conjunto
de problemas. Esta corriente adopta la visión central de EA propuesta por la UNESCO en el marco
del PIEA (1975-1995) en la que trata de informar o conducir a las personas a informarse sobre
problemáticas ambientales, así como a desarrollar habilidades que apunten a resolverlas. Como en el
caso de la corriente conservacionista - recursista, a la que está frecuentemente asociada, se encuentra
aquí un imperativo de acción: modificación de comportamientos o proyectos colectivos.
El ambiente como medio de vida: el ambiente en nuestra vida cotidiana, escuela o trabajo
incorpora elementos socioculturales, históricos y otros, para trabajar el sentido de pertenencia. El
ambiente nos pertenece y al mismo tiempo pertenecemos a él. Algunas estrategias educativas pueden
estar basadas en la vida cotidiana de la escuela, del barrio, de la comunidad. Así nos convertimos en
transformadores del ambiente, bajo la premisa “conocer el ambiente para construirlo”.
El ambiente como biósfera: esta concepción remite al concepto de la Tierra como nave espacial
“Hipótesis Gaia”. El ecosistema es finito y es nuestro origen, por lo que allí encuentran comienzo y
final los seres y las cosas, es una concepción que da cabida a intervenciones de orden esencialista,
filosófico y humanista.
Las cosmovisiones indígenas se inscriben dentro de esta corriente; en América Latina “La
Pachamama” es la protagonista.
El ambiente como proyecto comunitario: se considera al ambiente como entorno de una
comunidad humana. Un medio que se comparte, en el que la solidaridad constituye un valor. Se trata
de una concepción más sociológica y política. El ambiente es el medio para desarrollar la democracia,
a través del intercambio, del diálogo y de la comunicación. Desde lo educativo se asocia a proyectos
de investigación-acción tendientes a resolver problemas comunitarios.
El ambiente es un sistema complejo, que tiene en cuenta el equilibrio entre lo biológico, el
desarrollo humano y las instituciones sociales. Dicho equilibrio lo lleva a buscar constantemente
una mejor calidad de vida y a desarrollar las potencialidades productivas desde una perspectiva

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

sustentable y desde la cultura que cada población sostiene como fundamento de vida.
Todo sistema suele definirse como un conjunto de elementos dinámicamente relacionados que
desarrollan una actividad para alcanzar un objetivo; un sistema complejo, como es el ambiente, está
compuesto por varias partes interconectadas o entrelazadas, cuyos vínculos contienen información
adicional. Como resultado de las interacciones entre elementos, surgen nuevas propiedades que no
pueden explicarse a partir de las propiedades de los elementos aislados.
La concepción actual de ambiente nace con la denominada “revolución del conocimiento”, que
a mediados del siglo XX generó el surgimiento de nuevas disciplinas científicas como la ecología,
que ha tenido origen en los enfoques de la ciencia instrumental que sostuvieron el concepto de
desarrollo humano de la modernidad, pero luego ha ido evolucionando a medida que este concepto
fue dejando paso al de una crisis civilizatoria, que ha llevado a pensar en crisis de cultura, de valores,
de principios éticos y políticas.

3 DECRECIMIENTO

La palabra decrecimiento proviene del latín “decresco” y la Real Academia Española de la Lengua
la define como diminución, entendida como merma. En inglés “deworth”, en alemán utilizan la palabra
“wachastumsrücknahme”, en catalán “decreixement”, en francés “decroissance”, en gallego “decrescimento”,
en italiano “decrescita”, en portugués “decrescimiento”, en México utilizan la palabra “descrecimiento”.
Según Research & Degrowth (2015) “el decrecimiento es la reducción del consumo y de la
producción con el fin de aumentar el bienestar humano, las condiciones ecológicas y la equidad
en el planeta.” El equivalente alemán se denomina Postwachstum que significa postcrecimiento. La
traducción exacta sería Wachstumsrücknahme, término que también se utiliza.
En Francia, el movimiento de la décroissance se define como origen de los demás movimientos
decrecentistas. El fundador e iniciador de la décroissance, Serge Latouche, economista y filósofo francés,
en su libro “Le pari de la décroissance” (2006), enseña nuevos caminos y posibles aproximaciones a un
mundo en contra del crecimiento. En la misma trata sobre las ocho “R” como pilares del decrecimiento:
Revaluar, Reconceptualizar, Reestructurar, Relocalizar, Redistribuir, Reducir, Reutilizar y Reciclar. Algunas
de las claves de este autor son “el crecimiento ha dejado de ser una manera de satisfacer necesidades
reales para devenir como finalidad en sí mismo”, desde esta idea Latouche desarrolla la idea de que
actualmente vivimos en una dictadura de los mercados en que los gobiernos ya no deciden. Sostiene
además que el decrecimiento, al igual que promueve el reciclaje de desechos materiales, también debe
interesarse por la rehabilitación de los excluidos y si el mejor reciclaje consiste en desechar menos, la
mejor forma de rehabilitación social consiste en evitar la exclusión.
El economista Jackson, T. (2009), uno de los principales defensores del degrowth en el Reino
Unido, en su libro “Prosperity Without Growth”, analiza las relaciones del crecimiento económico
y el bienestar social de una manera muy crítica, se pregunta si la economía es un concepto que
funciona. Cuando se habla de la economía del post-crecimiento, Postwachstumsökonomie, se
relaciona esta idea con Paech, N. (2014) pionero y fundador de este concepto. Aparte de Paech, el
Instituto Wuppertal para Clima, Medioambiente y Energía trata muchos de los temas relacionados con
la suficiencia de la economía. Bajo el liderazgo de Uwe Schneidewind, el Instituto ha ganado mucha
importancia internacional por investigar sobre la temática del decrecimiento durante los últimos
años. En correspondencia a esto, en italiano existe el movimiento del decrecimiento feliz, liderado
por Maurizio Pallante mientras que en Suiza existe la Initiative Neustart.
Fournier, V. (2008) define al decrecimiento de la siguiente manera: “El decrecimiento no es sólo
una cuestión cuantitativa de hacer menos de lo mismo, es también y, más fundamentalmente, una
paradigmática reordenación de valores, en particular la reafirmación de valores sociales y ecológicos
y una repolitización de la economía”.
Taibo, C. (2009) defiende el decrecimiento como una forma para mejorar la calidad de vida de
una mayoría; una reducción de la jornada laboral, un aumento del tiempo de ocio y una apuesta por
emplear éste en lo que Taibo denomina “la vida social” y el “ocio creativo”, se trata de buscar la felicidad.
El autor se pregunta si “la vida que llevamos en sociedades marcadas por el trabajo y por el consumo

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

es realmente la vida que nos gusta”; porque plantea que la felicidad es un indicador individual del
grado de bienestar personal. Si los datos demuestran que ésta no evoluciona al compás del aparente
progreso, significa que desde el sistema económico oficial se confunden bienestar y crecimiento de
forma intencionada. El bienestar y la calidad de vida aseguran la longevidad de las personas.
De entre todas las delimitaciones y principios que sustentan al movimiento por el decrecimiento
se podría obtener una definición como la siguiente: disminución consciente y programada del volumen
de producción y de consumo, especialmente de los combustibles fósiles e intensificación de la
socialización y de los intercambios relacionales, fundamentando este cambio en una democratización
de las decisiones de base tecnológica, económica y moral.
Siguiendo a Taibo, C. (2009) quien expresa que la propuesta del decrecimiento parte de la certeza
de que tendemos a ver todos los problemas en exclusiva desde el prisma de la economía, lo que viene
a señalarnos es que en los países ricos se tiene que reducir la producción y el consumo porque se vive
por encima de nuestras posibilidades, es urgente cortar emisiones que dañan peligrosamente el medio
y porque empiezan a faltar materias primas vitales. “El único programa que necesitamos se resume en
una palabra: menos. Menos trabajo, menos energía, menos materias primas». Conviene dejar claro que
el decrecimiento no es un crecimiento negativo, expresión contradictoria que revela la supremacía del
imaginario desarrollista; se debe actuar con urgencia para poner freno a las muchas actividades económicas
que están en el origen de la expansión de la huella ecológica, y que ello se debe traducir en términos de
las mediciones convencionales vinculadas con el producto interior bruto (PBI), en una reducción de éste.
Nos interesa la Educación Ambiental con una mirada al Decrecimiento y su contribución a la
Educación Ambiental en cuestiones prácticas.
Como lo sostiene la UNESCO (1970) la EA emerge en la segunda mitad del siglo XX como una
propuesta necesaria para enfrentar a la problemática ambiental, es un proceso dinámico y participativo
que busca identificar las relaciones de interacción e independencia que se dan entre el entorno y el
hombre, así como también se preocupa por promover una relación armónica entre el medio natural y
las actividades antropogénicas a través del desarrollo sostenible, todo esto con el fin de garantizar el
sostenimiento y calidad de vida de las generaciones actuales y futuras, hecho muy cuestionado por
varios autores por su implementación.
¿Por qué hay que decrecer?, según Taibo, C. (2009) en los países ricos hay que reducir la
producción y el consumo porque se vive por encima de las posibilidades, es urgente cortar emisiones
que dañan peligrosamente el medio y porque empiezan a faltar materias primas vitales. “El único
programa que necesitamos se resume en una palabra: menos. Menos trabajo, menos energía, menos
materias primas”. En los países del sur, según la percepción de Latouche, S. (2006) quien expone una
lista diferente de “R”: romper con la dependencia económica y cultural con respecto al Norte, reanudar
el hilo de una historia interrumpida por la colonización, el desarrollo y la globalización, reencontrar
la identidad propia, reapropiar ésta, recuperar las técnicas y saberes tradicionales, conseguir el
reembolso de la deuda ecológica y restituir el honor perdido.
Según Díez, J. y otro (2010) expresan que una EA centrada en el decrecimiento, el criterio
básico debe ser fomentar el ajuste a la nueva situación del mundo. Dicho ajuste supone desarrollar
respuestas educativas a tres retos. El primer reto es la disminución de los recursos, asociada además
a una posible crisis institucional que exija respuestas locales. Este reto implica educar en la
autonomía y en la autosuficiencia, y más concretamente en un “saber hacer” basado en el manejo de
tecnologías más resilientes. Un segundo reto tiene que ver con el incremento de la incertidumbre
y la vulnerabilidad. Ante problemas complejos y novedosos y situaciones de mayor riesgo se
necesita potenciar una comprensión sistémica del mundo, la capacidad investigadora, y por ende la
creatividad, el trabajo colaborativo y los cuidados.
Sostienen Rodríguez, F. y otro (2009) que es notable en EA la dispersión de propuestas
metodológicas que impide definir con claridad con qué modelo didáctico se está trabajando, lo que no
deja de ser una manifestación de activismo. Como expresan García, J. y otro (2006) que se proponen
una metodología didáctica basada en la investigación, de corte constructivista, que capacite a las
personas para resolver los problemas asociados a la situación de decrecimiento, metodología que
integraría propuestas metodológicas más concretas, evitando una dispersión metodológica que
dificulta que nuestra intervención educativa sea coherente.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

El tercer reto es la rapidez del cambio, no habrá mucho tiempo para el ensayo-error, para
experimentar las posibles respuestas al decrecimiento/colapso, por lo que es prioritario educar en el
espíritu crítico, en el incremento de nuestra capacidad evaluadora, y en una ecoalfebetización basada
en el conocimiento científico más que en el pensamiento mítico.
Se plantea un cambio radical en los contenidos, revisando el significado de los contenidos curriculares
tradicionales en clave decrecentista, reformularlos de manera que su tratamiento sea útil para comprender el
choque con nuestros límites biofísicos y para capacitar a la gente para afrontarlo y priorizando el desarrollo
de determinados contenidos. No significa por tanto crear nuevos contenidos, pero sí reformular la finalidad
con la que se trabajan esos contenidos, ya que la visión tradicional no responde a los retos del decrecimiento.
En cuanto a los contenidos prioritarios, parece claro que lo serían todos aquellos que ayuden a
capacitar a la población para adaptarse al decrecimiento.
En la literatura de la EA existe un claro consenso en que hay que trabajar con sistemas, el problema es
que este enfoque choca con la compartimentación del saber presente tanto en la formación del profesional
de la EA como en las propuestas curriculares institucionales; es prioritario romper con esa atomización,
superando la disociación entre lo natural y lo social, y trabajando con una visión más global e integrada
en el sentido del paradigma de la complejidad que plantea Morín, E. (2001). Siguiendo a Morín, E. (1987),
quien expresa: tendríamos que trabajar con eco-socio-sistemas en los que resulta básico comprender
el funcionamiento de la circulación de materiales y del flujo de energía planetarios, y como la actividad
humana está integrada en esos ciclos y flujos, dependiendo de ellos denominada ecodependencia.
Como expresa Díez, J, y otro (2010) para trabajar los contenidos desde una perspectiva
decrecentista resulta imprescindible asociar la comprensión con los valores, la emoción y la
acción, vinculando el aprendizaje con el saber hacer, el compromiso político y la intervención social,
educando en el desarrollo práctico de proyectos concretos como huertos ecológicos sociales y
escolares, reforestación de enclaves, defensa de una zona verde o del arbolado de un lugar, mercadillos
ecológicos, reciclaje de residuos, participación en campañas de comunicación o contra la
instalación y mantenimiento de determinadas industrias.

4 CONSIDERACIONES FINALES

Luego de haber realizado la revisión bibliográfica en textos académicos y documentos oficiales de


diversas conferencias internacionales de mayor relevancia referida a la temática planteada sobre Educación
Ambiental y Decrecimiento y en el que se abordaron y concretaron los objetivos propuestos, en primer
lugar Describir las palabras Educación, Educación Ambiental, Ambiente y Decrecimiento, teniendo en
cuenta sus etimologías y referencias de autores importantes que tratan sobre las mismas; en segundo lugar
con el objetivo de Analizar a la Educación Ambiental en relación a la teoría del Decrecimiento y teniendo
en cuenta el problema planteado ¿Es posible una Educación Ambiental con una mirada al Decrecimiento?,
se puede decir que es posible un cambio de mirada con respecto al medio ambiente, nuestra gran casa
la Tierra, en el que todos conformamos y participamos como un mismo sistema, del cual las relaciones
interespecíficas como intraespecíficas conforman un todo con miradas al decrecimiento. Todos los seres
vivos y elementos de la naturaleza, la Gaia, Pachamama o como se la denomine en distintos lugares
del planeta son igualmente importantes, todo esto requerirá un cambio de concepción holística con el
fin de formar generaciones que trabajen con compromiso, prudencia y sentido común por sociedades
conscientes, inclusivas, equitativas y protectoras del Planeta Tierra del cual somos parte.
El tema del decrecimiento es nuevo y polémico, sin embargo ha comenzado a ganar espacios en
todo el mundo, principalmente en Europa. Por ello, he considerado conveniente y apropiado establecer
líneas de acción entre la enseñanza y el aprendizaje, con una nueva visión de la convivencia humana
y de las relaciones de producción y consumo, teniendo en cuenta el lugar en el que me desempeño.
Se puede decir que es posible una EA con una nueva mirada al decrecimiento, pero es necesario el
compromiso y responsabilidad de todos.
Con las siguientes Líneas de acción se pretende que toda la comunidad educativa sean agentes
multiplicadores de la propuesta a través de la participación, cooperación, responsabilidad, solidaridad
y compromiso, valores cada vez más necesarios en este mundo tan globalizado, ya que el cuidado

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

del medio ambiente nos compete a todos los seres humanos por ser pensante y racional; y por ello
su responsabilidad inherente, y por ser la Tierra nuestro gran hogar, nuestra gran casa, debemos
cuidarla y protegerla desde el desempeño y lugar que nos toca vivir.
Presentamos algunas líneas de acción:
• Reconceptualizar e incorporar como materia curricular transversal a la Educación Ambiental en
las instituciones escolares con una visión al decrecimiento.
• Promover el consumo de productos estacionales de la zona para favorecer la calidad de vida
de las personas y el cuidado del medio ambiente.
• Fomentar talleres de capacitación de consumo ético, ecológico, social y responsable con el
medio ambiente.
• Reducir, Reutilizar y Reciclar la basura a través de talleres de capacitación gratuitos destinada
a la comunidad educativa.
• Trabajar con otras instituciones como el INTA, INTI para fortalecer y enriquecer el cuidado de
la tierra y los beneficios que en esta parte de la Patria ella nos da.
• Coordinar con las universidades locales en capacitaciones e investigaciones que ayuden a
mejorar el cuidado y respeto por el medio ambiente.
• Reestructurar el trabajo con otras instituciones del Estado para la clasificación y recolección de
la basura, implementación de huertas, viveros familiares y comunitarios. Se recomienda trabajar en
forma articulada con proyectos en redes con otras instituciones formales, no formales e informales:
es necesario la articulación del proyecto con otros organismos relacionados al trabajo, el medio
ambiente y la salud (Ministerio de Salud, Ministerio del Agro, Ministerio de Trabajo y Seguridad Social,
por ejemplo) y agentes de la sociedad; para tratar las distintas problemáticas sociales y culturales
para mejorar la calidad de vida de los habitantes y el cuidado del medio ambiente.
• Proponer un plan de mejora al municipio para que se realicen controles de posibles problemas
medioambientales, el cual consistirá en monitoreo y seguimiento de casos.
• Revaluar y proporcionar un feeddback interactivo que vaya desde el control hasta la mejora del
proceso de manera sistemática.

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177
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

NOVOS OLHARES PARA TUTELA JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE NO


SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS:
O CASO NUESTRA TIERRA VS. ARGENTINA

Diogo Vieira da Cunha do Amaral Reis83


Wellen Pereira Augusto84

RESUMO: A proteção do meio ambiente no Direito Internacional se mostra recente e em vias de


consolidação. O reconhecimento do ambiente como direito humano é o tema desta pesquisa, na qual toma
como marco a construção de um greening, isto é, de adoção de política de proteção do meio ambiente
por via reflexa de outros direitos humanos, até que se dê uma efetiva proteção internacional no âmbito
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por meio do caso “Comunidades Indígenas Membros da
Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina”. O trabalho utiliza desse caminho paradigmático
para constatar uma nova tutela jurídica do meio ambiente como direito autônomo, com a interpretação
suficiente do art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Desse modo, o trabalho auxilia na
compreensão e efetivação do meio ambiente como inerente à proteção de outros direitos.

Palavras-chave: Meio ambiente. Direitos Humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos.


Nuestra Tierra. Lhaka Honhat.

INTRODUÇÃO

A crise ambiental que atravessa o mundo é iminente. Falar isso, não é, como parece, ser alarmista,
é observar os fatos que ocorrem no planeta e a relação com o desequilíbrio ambiental causado pelo
ser humano. Por isso que, desde meados do século XX, as instituições nacionais e internacionais
debatem o tema, na busca de soluções para a crise. O mesmo ocorreu às instituições jurídicas, e por
isso o tema tornou-se de extrema relevância para o Direito.
A questão é ainda mais grave quanto à proteção ambiental no sistema internacional de proteção
de direitos humanos. Seja no sistema mundial ou onusiano, seja nos sistemas regionais, é notável a
necessidade de efetivação de normativas ambientais em seus tratados, ainda que tenha sido relegado
a soft law ou a protocolos facultativos aos textos principais desses sistemas. Por isso, a evolução do
greening, isto é, é a proteção do meio ambiente de forma reflexa/indireta a partir de outros direitos
humanos, é importante marco desta abertura.
Utilizando como recorte o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), será analisada
essa forma particular de proteger o meio ambiente a partir da Comissão e da Corte Interamericanas.
Logo após, será analisada a proteção do meio ambiente como direito humano autônomo na Convenção
Americana de Direitos Humanos, a partir da novel interpretação no caso “Comunidades Indígenas
Membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina”. Defende-se que é um marco
histórico-jurídico importante para a caminhada na efetivação de um meio ambiente sadio.

1 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE COMO DIREITO HUMANO

O caráter difuso dos problemas ambientais levou os sujeitos do Direito Internacional Público a

83 Especialista em Direito Constitucional e Administrativo pela UNIT. Bacharel em Direito pelo CESMAC. Advogado. Membro
do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e Cidadania” (Unochapecó). Email: dvieirar@hotmail.com
84 Pós-graduanda em Direitos Humanos pela UFFS e Direito Constitucional pela ABDConst. Membra do Grupo de Pesquisa
“Direitos Humanos e Cidadania” (Unochapecó). Email: wellen._@hotmail.com

178
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

avançar na discussão sobre cooperação cosmopolita em relação à proteção ecológica e ambiental. Em


razão disso, ainda que incipiente, os Estados passaram a pactuar compromissos que consideram o
meio ambiente o núcleo de exercício de direitos humanos civis, políticos e sociais.
O marco inicial da preocupação ambiental do multilateralismo é a Conferência de Estocolmo, na Suécia,
em 1972. Trata-se da primeira conferência mundial, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU),
com a temática do meio ambiente, bem como sobre sua importância e a necessidade de proteção e uso dos
recursos naturais, seu elo com o desenvolvimento econômico e a característica intergeracional de sua tutela
global, o que culminou na Declaração sobre o Meio Ambiente Humano (MAZZUOLI, 2019, p. 1368-1369).
Para Tiago Fensterseifer, é com a Conferência que há reflexo na ordem jurídica e especialmente no
Direito Internacional, da ideia de um direito fundamental ao meio ambiente, à qualidade e equilíbrio,
enquanto essencial à promoção da dignidade humana e do bem-estar (FENSTERSEIFER, 2008).
A partir disso, a integração da proteção ambiental, tanto em âmbito nacional quanto internacional,
deu seus primeiros passos. No plano internacional, tem-se a Convenção sobre a Diversidade Biológica, de
5 junho de 1992, adotada no Rio de Janeiro, a qual tem o intuito de preservação e conversação da biosfera,
contemplando diversidade biológica e recursos naturais, de modo que tem caráter intergeracional e, por
isso, opta pela “harmonia ambiental” entre as presentes e futuras gerações (MAZZUOLI, 2019, p. 1381).
Da Convenção, surge o Protocolo de Nagoia, adotado no Japão em 23 de outubro de 2010, já
assinado pelo Brasil à época da 10ª Conferência das Partes (COP) ou COP 10, e recentemente aprovado
na Câmara dos Deputados pelo Decreto Legislativo nº 324/20, aguardando a aprovação pelo Senado
e a promulgação no ordenamento interno. O tratado adicional garante a repartição equitativa de
recursos genéticos, o que beneficia comunidades tradicionais e protege a propriedade intelectual,
patrimônio cultural e aproveitamento dos recursos nessa esfera (CLIMAINFO, 10 jul. 2020).
No mesmo espaço de tempo, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 4 de junho de 1992 (Rio 92), foi produzida a
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e em 1995 teve início as
negociações de seu Protocolo Adicional, o Protocolo de Quioto, o qual teve compromissos a partir de
2008 (NAÇÕES UNIDAS, [s. d.]).
Percebeu-se, desde logo, a necessidade de mitigação e adaptação às emissões de gases
que causam o efeito estufa (GEE), criando um mercado de carbono, de compensação entre países
desenvolvidos.
Na mesma esteira, em 2015 iniciam-se as negociações do Acordo de Paris, durante a 21ª Sessão
da ONU, também voltado às mudanças climáticas, o qual teve tamanha adesão por partes dos Estados,
com metas a serem cumpridas até 2030 (NAÇÕES UNIDAS, 2015).
Quanto aos temas interligados ao meio ambiente saudável, tem-se a Convenção de Minamata,
a qual trata dos riscos de uso de mercúrio e consequente exposição, a qual teve seu texto final
aprovado em 19 de janeiro de 2013, em Genebra (MERCURY CONVENTION, 2019).
No âmbito regional, o Acordo de Escazú, adotado na cidade homônima, na Costa Rica, em 04 de
março de 2018, vai tratar sobre o acesso à informação, à participação, à decisões envolvendo o meio
ambiente, bem como o fortalecimento da cooperação a fim de proteger o direito de cada um a um
ambiente sadio e um desenvolvimento sustentável (NAÇÕES UNIDAS, 2018).
Por sua vez, no âmbito nacional, o direito ao meio ambiente equilibrado e ao desenvolvimento
sustentável teve início com a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), promulgada pela Lei nº
6.938/1981, além da Constituição Federal de 1988 em seu art. 225, o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação da Natureza (SNUC), promulgado pela Lei nº 9.985/2000 e a Política Nacional de
Resíduos Sólidos (PNRS), promulgada pela Lei nº 12.305/2010.
No entanto, a proteção do direito ao meio ambiental como direito humano interligado aos demais
sufragou uma discussão lenta e obstruída pelos interesses econômicos e financeiros dos Estados, não
obstante, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), formado por representantes advindos
dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), também se inseriam na celeuma
política e enviesada. Basta rememorar que os países latino-americanos são, em sua expressiva maioria,
países considerados em desenvolvimento, e essa catalogação impediu o reconhecimento de aplicação
imediata de direitos sociais.

179
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2 A CONSOLIDAÇÃO DE UM SISTEMA DE PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA E


A QUESTÃO DO MEIO AMBIENTE

A criação de um Direito Internacional dos Direito Humanos permitiu a ascendência de sistemas


regionais de proteção, tal como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, composto pela OEA,
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
os quais admitem dispor de instrumentos para a efetivação de direitos humanos no continente.
Ainda que de natureza subsidiária, os sistemas internacionais de proteção formam princípios
e diretrizes de adoção pelos Estados, em âmbito interno, como promoção de um desejo comum do
direito internacional e da comunidade internacional, que é precisamente a efetivação de direitos
fundamentais (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).
Corrobora com esse entendimento sobre o sistema, a professora Flávia Piovesan, ao compreender
o sistema internacional como uma garantia de proteção adicional dos direitos humanos em caso da
ineficiência da proteção nacional, além de consagrar padrões protetivos mínimos como paradigma
para ordenamentos jurídicos internos (PIOVESAN, 2013, p. 67).
No entanto, as normas relativas ao meio ambiente sadio não eram consideradas exigíveis, o
que tornava frágil a proteção de direitos humanos relativos. Isso é agravado pela ausência de força
jurídica dos documentos internacionais relativos ao meio ambiente, tendo em vista ter natureza de
soft law, isto é, funcionam como orientações morais aos Estados, contudo, não os vinculam e impedem
sanções em caso de descumprimento de tais normas. Não havia, assim, qualquer sistema de proteção
do meio ambiente (ou de outros direitos de solidariedade) ou organização intergovernamental criada
para promovê-la (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).
O maior desafio do direito internacional ambiental é, pois, implementar e dar cumprimento
ao arcabouço de normas ambientais internacionais. Pelo reconhecimento desta dificuldade, surge o
mecanismo do greening, utilizado como forma de compensar a ausência de um sistema internacional
focado na proteção do meio ambiente e, também, com a intenção de buscar a almejada efetividade
do direito ao meio ambiente equilibrado.
Entende-se por greening o mecanismo empregado pelos tribunais internacionais com fim de
combater a falta de vinculação dos tratados relativos ao meio ambiente, por meio de uma interpretação
“ecologizada” de outros tratados, especialmente os relativos a direitos civis e políticos, é dizer,
“escrever verdes por linhas tortas” (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).
Greening ou “esverdeamento” é, portanto, a proteção, pelos órgãos jurídicos internacionais, de
preceitos ambientais, como forma de proteger o ser humano, que se dá sobre direitos como a vida,
a propriedade e até a liberdade religiosa. Trata-se de compensar os defeitos do sistema internacional
em relação a direitos ambientais, uma vez que, internacionalmente, estes, por si só, não são capazes
de gerar lides e/ou punições aos Estados, mesmo quando tais sujeitos assinam compromissos e
posteriormente os descumprem. Em outros casos, como no sistema interamericano de direitos
humanos, questões ambientais não são citadas nos documentos principais85, cabendo ao próprio
greening suprir essa ausência.
Uma outra corrente compreende problemas em se reconhecer a proteção do meio ambiente por
via reflexa, isto é, apenas se demonstrada a tutela concernente aos demais direitos – civis, políticos,
sociais ou culturais (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).
A ausência de uma conexão, ou seja, o resguardo do meio ambiente como um bem em si
mesmo, gera a rejeição de uma queixa ou petição proposta no Sistema Interamericano de Direitos
Humanos. Trata-se de instrumentalização da natureza, eis que haverá tutela e se alcançará proteção
somente quando a natureza estiver atrelada à violação de direitos do homem. Esse entendimento,
portanto, é questionável, e atualmente ganha força a corrente contrária, de que deve haver proteção
da dignidade de outras formas de vida além da humana (SARLET; FENSTERSEIFER, 2013).
Porém, diante da falta de uma forma mais eficaz de tutela, essa é, por enquanto, a melhor
maneira de resguardar violações ao meio ambiente. Mazzuoli e Teixeira demonstram que o greening

85 Em se tratando da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) somente há previsão de tema ambiental em seu
Protocolo Adicional, também chamado de Protocolo de San Salvador, especificamente em seu artigo 11, concluído em 1988
(COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1988) e promulgado pelo Brasil em 1999 (BRASIL, 1999).

180
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

é o meio mais apropriado, atualmente, para defender direitos que per si não têm proteção (MAZZUOLI;
TEIXEIRA, 2013).
Percebe-se, desta maneira, a importância do greening no movimento internacional, uma vez
que, apesar de suas vicissitudes, contribui de forma a diminuir a lacuna jurídica existente no sistema
internacional em termos de salvaguarda dos direitos relativos ao ambiente.
Para além do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o greening é aplicado também no
Sistema Europeu e até no sistema global, representado pela Corte Internacional de Justiça. O sistema
europeu é visto como mais expansivo, já que envolve o meio ambiente numa seara pluritemática
(MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013). Ressalta-se, por isso, que os órgãos interamericanos não estão isolados
na aplicação desse mecanismo, uma vez que há uma tentativa global de alcançar um meio ambiente
equilibrado em matéria de direitos humanos.
Tanto a Corte quanto a CIDH utilizam-se do greening para “esverdear” a Convenção, sendo que a maioria
dos casos diz respeito a direitos de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Essa “timidez” é
motivo de críticas, já que limita bastante os casos que serão avaliados (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).
Na Comissão, cita-se o caso “Yanomami v. Brasil”, decidido no ano de 1985, e que foi o primeiro
caso de “esverdeamento” da Convenção, no qual, reconhecendo a omissão do governo brasileiro,
decidiu-se que a construção de uma rodovia em seu território violava diversos direitos da comunidade
indígena, dentre eles, a vida, a liberdade, a segurança, a saúde e o bem-estar. O órgão interamericano
recomendou ao Estado a delimitação e demarcação da Reserva Indígena Yanomami, bem como adoção
de medidas sanitárias preventivas e curativas para garantir a vida e a saúde dos indígenas expostos,
dentre outras (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1985).
Outros casos tratados pela Comissão que merecem destaque são: “Comunidades indígenas Maia
de Toledo v. Belize”, “Povo Indígena Kichwa de Sarayacu e seus membros v. Equador” e “Comunidades
indígenas Ngöbe e seus membros do Vale do Rio Changuinolá v. Panamá”. Na decisão de Maia de
Toledo v. Belize, a Comissão recomenda que o Estado em questão repare dano ambiental causado
nas terras dessa comunidade por madeireiras. Dessa forma, os instrumentos da CIDH devem ser
interpretados e aplicados de acordo com a evolução do direito internacional em matéria de direitos
humanos. Embora não haja menção expressa, diante de tudo que já foi exposto, pode-se colocar o
greening como exemplo – dos mais notáveis – dessa construção.
Em todos esses casos percebe-se como a Comissão protege a própria noção de meio ambiente
equilibrado, a partir dos direitos “não-ambientais” dos povos indígenas e outros, ressaltando, ainda,
a forte interrelação existente entre as diversas espécies de direitos, sobretudo com a natureza, base
da vida e da própria subsistência do homem.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), por sua vez, cuida de situações
parecidas com as da Comissão, relativas a povos indígenas e comunidades tradicionais, como os
casos “Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni v. Nicarágua”, “Moiwana v. Suriname” e “Comunidade
Indígena Sawhoyamaxa v. Paraguai), os quais tiveram direitos violados pela força do interesse
econômico e pela atuação arbitrária ou inércia do Estado (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).
Os direitos protegidos são os mais variados, como propriedade coletiva86, vida, saúde, integridade
pessoal. A Corte inovou, de mesmo modo, ao reconhecer o dano espiritual, diante da chacina cometida
pelo exército de um Estado contra uma comunidade indígena e por macular suas terras. Nota-se que
“[…] a Corte Interamericana tem demonstrado um notável esforço de vincular temas ambientais a
questões de proteção de direitos humanos” (MAZZUOLI; TEIXEIRA, 2013).
No mesmo sentido observa-se pela atuação da Comissão, um esforço que deve ser apreciado, visto
que busca a garantia de direitos com inúmeros textos, mas pouca aplicação em âmbito internacional,
como se dá com os direitos ambientais.
Em meados do ano de 2017 foi criada a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais,
Culturais e Ambientais (REDESCA), a qual atua no âmbito da CIDH. A partir disso, entendeu-se a
ampliação da proteção de direitos humanos pela via da Comissão, de modo que é possível aprofundar
esses direitos de maneira transversal, permitindo, ainda, o desenvolvimento de uma dogmática
específica em matéria de DESCA (PIOVESAN; ANTONIAZZI; CRUZ, 2020, p. 208-209).

86 Também se trata de uma interpretação expansiva da Corte quanto ao direito de propriedade previsto no artigo 21 da CADH.

181
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Um reflexo dessa atuação foi a emissão da Opinião Consultiva nº 23/17 (OC-23/17), de 15 de


novembro de 2017, a qual versa sobre meio ambiente e direitos humanos, meio ambiente equilibrado
e desenvolvimento. Nessa oportunidade, “a Corte IDH frisou que existe uma interdependência, relação
intrínseca e necessária, portanto, indissociável, entre a ideia de direitos humanos, meio ambiente e
o desenvolvimento sustentável”. Aliado a isso, reconhece-se que a proteção dada pelo artigo 11 do
Protocolo de San Salvador87 estava inclusa no rol de proteção de direitos sociais prevista no artigo 26
da CADH88 (ALMEIDA, 16 mai. 2019).
O fato é que essa interpretação em forma de greening remete à elevação do meio ambiente a
direito humano e o esverdeamento das normas protetivas, o que resulta em novos padrões mínimos
de atuação judicial dos Estados-membros na interpretação da legislação interna, utilizando como
paradigma a própria jurisprudência e opiniões consultivas da Corte IDH e as recomendações da CIDH.

3 O MEIO AMBIENTE NO CENTRO DA PROBLEMÁTICA DE DIREITOS HUMANOS: O CASO


NUESTRA TIERRA VS. ARGENTINA

Dando um passo a mais nas decisões da própria Corte, que apenas protegiam reflexamente o meio
ambiente a partir de outros direitos a partir do greening, a Corte IDH dá uma sentença paradigmática
no caso “Nuestra Tierra”, entendendo o meio ambiente, além de outros direitos, sociais, econômicos
e sociais, como exigíveis pela Corte, indo além da sua interpretação habitual do artigo 26 da CADH.
Trata-se do caso “Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (“Nuestra Tierra”)
vs. Argentina”, onde uma associação de povos indígenas (Lhaka Honhat), vai à Corte Interamericana
em razão da omissão do Estado argentino em garantir e respeitar o direito das comunidades de
desfrutarem de suas terras ancestrais, cuja propriedade já tinha sido declarada anteriormente como
pertencente a esses povos, mas vinha sendo utilizada por não-indígenas, por criollos.
O caso chegou à Comissão em 1998, a qual emitiu medidas cautelares para assegurar o livre
exercício da propriedade comunal e do meio ambiente no ano 2000. Apesar das propostas de
soluções amistosas, estas restaram infrutíferas, eis que a Província de Salta desistiu de acordar com
a Associação. Diante disso, o caso foi enviado à Corte em 2018.
São 132 comunidades, dividas entre as etnias Wichí (Mataco), Iyojwaja (Chorote), Nivacklé
(Chulupí), Qom (Toba) y Tapy’y (Tapiete) que passam a reivindicar a titulação das terras após a
redemocratização na Argentina. A Constituição de Salta reconhecia o direito originário desde 1986 e
compromete-se a titulá-las em 1991, em nome de todas as comunidades, de modo que assim forma-
se a Associação (CARRASCO; ZIMMERMAN, 2006).
O conflito se dá na província de Salta, próximo às fronteiras do Paraguai e da Bolívia, nos
chamados lotes 14 e 55 (que totalizavam 643.000 hectares). Desde 1991, a associação reivindica
a propriedade, mas o Estado argentino, de acordo com dados extraídos pela Corte, atua de formas
diferentes ao longo do tempo, sem garantir o usufruto dessas terras. Como consequência da omissão
estatal, diversas atividades dos criollos estavam gerando degradação de recursos naturais e da
biodiversidade, como o corte ilegal de madeira, o sobrepastoreio e a criação de gado, contaminando
a água em razão das fezes dos animais e violando inúmeros direitos daqueles povos indígenas.
Analisado o caso, a Corte decidiu de forma paradigmática que o Estado argentino, por omissão,
violou diversos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais (DESCA), condenando-o a restituir
o pleno uso da terra àqueles povos, devendo também garantir os direitos ao meio ambiente equilibrado,
à alimentação e a água potável, devendo o Estado, inclusive, realizar estudos que identifiquem

87 Diz o referido artigo: “Artigo 11. Direito a um meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente
sadio e a contar com os serviços públicos básicos. 2. Os Estados Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramen-
to do meio ambiente.” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1988).
88 Diz o referido artigo: “Artigo 26. Desenvolvimento progressivo. Os Estados Partes comprometem-se a adotar providên-
cias, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de con-
seguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação,
ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires,
na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS, 1969).

182
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

situações críticas de falta de acesso à água potável ou alimentação, para, assim, criar um plano de
ação para garantir tais direitos, com estudos que também fundamentem ações que garantam a não
contaminação da água e a não diminuição dos recursos florestais ali localizados.
De certo modo, o direito à identidade cultural foi prejudicado diante da incessante violação de
direitos ambientais, à alimentação e à água, eis que o território sagrado para os povos originários
foi degradado, malversado e tornado moeda de troca sem a consulta às comunidades locais, nem
estudos de impacto ambiental.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se ao longo do texto o quanto ainda precisa-se percorrer para proteger o direito ao
meio ambiente equilibrado e, ao mesmo tempo, o quanto é importante dar essa proteção a um direito
essencial à própria existência humana e à vida como um todo.
Desde que o tema começou a entrar em voga, é notável a dificuldade de se efetivar as normas
ambientais, que surgem a partir de 1972, com a Declaração de Estocolmo, resultado da Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Este marco temporal modificou a forma como
o Direito passou a ver o meio ambiente nos ordenamentos interno e internacional, porém a questão
da efetividade é uma das, ou, talvez, a grande dificuldade no que diz respeito a proteger a natureza.
É por isso que a técnica utilizada por órgãos internacionais, chamada greening, é tão importante
na criação de um sistema de proteção internacional ao meio ambiente, uma vez que consegue protegê-
lo, ainda que de forma indireta. Greening é, então, a proteção reflexa do meio ambiente a partir de
outros direitos dispostos nos tratados internacionais, como vida e propriedade. Esverdeiam-se esses
documentos internacionais e efetiva-se, ao mesmo tempo, o direito ao meio ambiente equilibrado, o que
no caso do sistema interamericano, já foi feito tanto pela Comissão quanto pela Corte Interamericana.
A Corte Interamericana, porém, deu um grande passo no esverdeamento de suas decisões, uma vez
que foi além da proteção ambiental indireta ou reflexa, protegendo o meio ambiente de forma direta,
no caso paradigmático “Lhaka Honhat (“Nuestra Tierra”) vs Argentina”, no qual diversos direitos sociais,
econômicos, culturais e ambientais (DESCA) dos povos indígenas foram resguardados pela Corte. Esta, em
sua decisão, exigiu diretamente ao Estado argentino que atuasse para parar a violação a esses direitos, a
partir de uma interpretação mais ativa do artigo 26 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
De forma gradual, a proteção ambiental ganha forças nos ordenamentos jurídicos ao redor do
mundo, e, como visto, sobretudo no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Espera-se que
a decisão no caso “Nuestra Tierra” seja um “turning point” nessa proteção, sendo o meio ambiente
cada vez mais foco de atenção e de políticas públicas protetivas pelos Estados, sobretudo no que diz
respeito aos povos originários, tão conectados com a Natureza quanto com as próprias comunidades.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O DIREITO À MORADIA E SUA UTOPIA:


UMA PROMOÇÃO DESIGUAL

Andressa Silva Souza89


Jerônimo Siqueira Tybusch90

Resumo: Este trabalho tem por escopo versar sobre o processo da promoção e organização
socioespacial do território urbano. Dessa forma, a partir do retrospecto histórico de segregação ao
acesso paritário à moradia e o cenário de segregação configurado. A partir da promoção do processo
de regularização fundiária, vista da perspectiva da promoção cidades sustentáveis se traçará, o real
cenário instaurado, de modo excludente e promotor de aporofobia social que se inserem nestas
condições, gerando impactos diretos na sociedade pela falta da efetivação de politicas públicas.

Palavras-chave: Moradia. Cidades sustentáveis. Segregação. Aporofobia.

INTRODUÇÃO

A temática pertinente questionada quando falamos do espaço urbano é o uso do solo e a sua real
promoção do direito à moradia. Ocorre que o processo de urbanização do Brasil não se deu de forma
planejada, muito menos paritária, quando analisada a tríade cidadãos, organização estatal e poder
econômico. De tal perspectiva que todos os indivíduos que detinham o poder aquisitivo lotaram suas
residências em regiões locais com melhores condições de acesso as infraestruturas necessárias.
Com este cenário instaurado, surge a promoção de mais desigualdades, preconceitos e
retrocessos, que vêm sendo estudados por outras áreas do saber mapeando assim, uma percepção
social do cuidado, entre indivíduos e sua percepção entre seus iguais aqui sob a perspectiva econômica
que lhes aproxima e seus diferentes registrando um cenário de fobias sociais que acaba registrando
a ocorrência de aporofobia e assim, afrontam as garantias constitucionais, mudando-se o paradigma
do limite e do vínculo indivíduo-Estado.
Verifica-se ainda que a introdução de programas habitacionais populares a partir do processo de
regularização fundiária urbana, não basta para gerar um pleno e satisfatório exercício do direito a moradia,
posto que com o enfraquecimento de políticas públicas sobre a temática eficazes e includentes se registra a
aporofobia, diariamente, acabou ou seja, foram implantadas políticas públicas locais falhas que registram
mais diferenças sociais quanto ao uso e exploração do solo urbano, que também vêm perpetuando-se
com a uniformização do capitalismo e seus ideais que se sobrepõe aos poderes legislativo e judiciário.
Ao que da temática emergiu o problema desta pesquisa, qual seja: Em que medida a utopia que
circunda o direito à moradia no Brasil contribuí na promoção de outros cenários de desigualdades.
Qual será o papel do Estado para a mudança?

89 Mestranda em Direitos Emergentes na Sociedade Global– Sociobiodiversidade e sustentabilidade da Universidade Federal


de Santa Maria (UFSM), Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), Bolsista da Coordenação e
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Integrante do Grupo de Pesquisa de Direito à Sociobiodiversidade-GPDS
(UFSM) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Democracia e Constituição (GPDECON); E-mail: souza_andressa@hotmail.com.br.
90 Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (2011); Mestre em Direito Público pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) (2007); Graduado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC) (2004). Professor Adjunto no Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professor do
Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/UFSM) - Mestrado em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Tecnologias Educacionais em Rede (PPGTER/UFSM) - Mestrado Profissional em Tecnologias Educacionais em Rede. Pesquisa-
dor e Líder do Grupo de Pesquisa em Direito da Sociobiodiversidade – GPDS – Registrado no Diretório de Grupos do CNPq.
Atualmente é Pró-Reitor Adjunto e Coordenador de Planejamento Acadêmico da Pró-Reitoria de Graduação da UFSM. Mem-
bro da Diretoria do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) - Gestão 2017-2020. Desenvolve
pesquisas nas áreas de: Direito Ambiental; Ecologia Política; Direito e Sustentabilidade; Direito Urbanístico; Teoria do Direito
e da Decisão Jurídica; Direito e Novas Tecnologias; Tecnologias Educacionais em Rede. E-mail: jeronimotybusch@ufsm.br

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Dessa forma, primeiramente, por meio do capítulo intitulado “O eterno segregar do espaço
urbano”, se retratara um pouco sobre a desconstrução do ideal de cidades igualitárias em condições
para se viver, uma vez que a segregação dita a regra do sistema politico.
Já no segundo capítulo do estudo intitulado, “Aporofobia e o direito à moradia: um cenário de
segregação do direito a cidades sustentáveis o Brasil” encontra-se delimitado o problema da presente
pesquisa, tecendo apontamentos sobre o cenário de aporofobia e a promoção de políticas que dizem
ser efetivas quanto ao direito à moradia e necessidade de se questionar esse cenário, a partir do
surgimento do politicas públicas que façam ter efetividade as garantias constitucionais e legais.
A realização desta pesquisa contará com embasamento jurídico e doutrinário. Para tanto será
utilizado à teoria de base complexo-sistêmica, visto que o objeto da pesquisa será abordado a partir
de suas concepções econômicas, sociais, políticas e jurídicas. Os métodos de procedimento utilizados
na elaboração da pesquisa serão o histórico e o bibliográfico.
Por fim, destinou-se um espaço para a elaboração de considerações finais sobre o debate
realizado, buscando-se compilar as principais ideias elucidadas.

1 O ETERNO SEGREGAR DO ESPAÇO URBANO

A temática segregação humana é um fenômeno de atuação direta no que compete os meios de


ocupação do espaço urbano, já que estes possuem em sua estrutura base a influência direta do perfil
socioeconômico dos habitantes de determinada localidade. O reflexo disso é a maneira de como se
dá a divisão no que diz respeito aos lugares onde os menos abastados residem são regiões locais
distantes de serviços essenciais e básicos, que resultam de um cenário complexo e que tem influencia
direta do setor econômico e politico. (VILLAÇA, 2012).
Ao passo que é importante termos em mente que a divisão por classes sociais funciona como um
espelho que acaba por refletir como se dá ocupação da cidades em específico do uso e parcelamento
do solo urbano nas cidades. O cenário socioespacial das cidades brasileiras exemplifica bem como
reconhecer com facilidades regiões de acordo com a renda.
Uma fragmentação tácita que se caracterizam pela ausência de sistema sanitário, pavimentação,
prestação de limpeza urbana, centros de recreação e convivência como parques e praças, unidades básicas
de saúde, acesso a serviços privados ou de concessões públicas, já para os cidadãos que se localizam em
regiões com uma infraestrutura que possibilita usufruírem e lhes se ofertada todos os serviços necessários.
E diante deste cenário está evidenciada a falha na promoção de políticas públicas de qualidade
e igualitárias e includentes sobre o espaço territorial. Ao que o Estado ao longo do processo de
expansão e territorialização, principalmente no diz respeito à moradia que basicamente entregou a
responsabilidade nas mãos da iniciativa privada e seus trabalhadores (BONDUKI, 2011).
Esse cenário abissal instaurado entre as classes sociais brasileiras instaurado no espaço urbanos
deixa tácito que o acesso ao direito à cidade aqueles que possuíam recursos limitados, não lhes resta
outra alternativa que não ocupar. (MARICATO, 2003).

A origem das causas que levam à ocupação irregular por população de baixa renda é econômica:
em um país que concentra renda, com corrente migratória rural para o território urbano (baseada
na miragem de emprego, melhores condições de vida, acesso à educação e serviços de saúde,
dentre outros privilégios da vida nas cidades), a forma de garantir moradia acaba sendo a ocupação
irregular, individualmente ou em grupos organizados. As áreas são ocupadas de forma precária,
e nelas pululam autoconstruções ocupando morros, córregos, áreas de mananciais; palafitas são
erguidas por sobre fétidos cursos d’água, e em áreas de risco; outras maneiras de ocupação
irregular estão difundidas e disfarçadas no tecido urbano, como os cortiços. A população a ocupar
essas áreas tem contingentes com alguma renda, ou mesmo assalariados, mas ainda à margem do
mercado urbano formal”. (PIOLI; ROSSIN, 2006, p.4)

Ou seja, o papel da processo de industrialização é um fator direito para o cenário que temos
consolidado de modo degradado e carentes de infraestrutura de ocupações precárias e irregulares.
Através de um processo não projeto no setor industrial do país que se deu em um pequeno espaço de
tempo e que não resultou em um processo de planejamento de políticas de promoção de habitação

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

para estes trabalhadores e suas famílias contemplando suas necessidades básicas, ou seja, um
processo de expansão desorganizado.
Ao modo que só se perpetuou a promoção de mais pautas de desigualdades as necessidades
sociais, uma vez que o setor econômicos serviu como variável para atender aos interesses e por obvio
aqueles que detinham o maior poder aquisitivo continuaram a serem privilegiados, ou como bem
denominou Milton Santos (2013),” uma urbanização corporativa” das cidades e seus espaços.
Tal denominação foi atribuída em decorrência do papel que as empresas e corporações exercem
em face do Poder Público, trabalhando para seus interesses particulares dizendo local e lugar que
querem se instalar em contrapartida o cenário local sofrerá os impactos diretos do ceder do poder
público e que atingem os menos favorecidos de modo direto.
Esse processo privativo e executivo nada mais é que uma urbanização corporativa que irá gerar
lucro direto aqueles que tem o maior poder aquisitivo obtendo recursos como infraestrutura básica
que deveria ser comum a todos os indivíduos independente de sua localização de forma paritária.
Notabiliza-se que a desigualdade nesta situação é produto da modo desproporcional no que tange
as representações politicas. De sentindo em que as áreas mais pobres são deixadas em um segundo
plano, pois, são vistas como um problema para a cidade interessante o tecer do sociólogo Zygmunt
Bauman (1998) sobre os meios de pureza e ordem acerca dos parâmetros de ordem e pureza, e o que
estas áreas representam para aqueles que residem em localidades com melhores condições e serviços:

[...] observaremos imediatamente que, entre as numerosas corporificações de “sujeira” capaz


de minar padrões, um caso - sociologicamente falando - é de importância muito especial e, na
verdade, única: a saber, aquele em que são outros seres humanos que são concebidos como
um obstáculo para a apropriada “organização do ambiente”; em que, em outras palavras, é uma
outra pessoa ou, mais especificamente, uma certa categoria de pessoas, que se torna “sujeira” e é
tratada como tal. (BAUMAN, 1998, p. 17).

O mundo paralelo como é observada a periferia como sendo uma região marginalizada e sem
o mínimo de infraestrutura faz com que seus moradores sejam visto como ameaçadores da ordem,
do lindo, belo e das regras de manutenção da limpeza. Ou seja, estes indivíduos são segregados
daqueles que são privilegiados e residem em regiões que são e tem disponíveis para si as melhores
condições de infraestrutura e acesso e vêm naqueles que residem nestas regiões menos favorecidas,
como sendo um problema social e estatal que resulta em um processo de prejuízo aos cofres públicos.
O caráter identitário desta população é fator crucial a ser observado e apreciado quando se esta s
promovendo políticas públicas que lhes atendam suas necessidades, pois estes transcendem o caráter de
pertencimento e identidade, destes indivíduos, já que tem ligação direta no desenvolvimento desta região.
Por isso há que se refletir acerca de como modificar este cenário e ao mesmo tempo fomentar uma
maior participação popular, isso porque a exclusão se dá por aqueles que deveriam evitar os agentes
públicos e como estes ofertam os serviços públicos aos seus cidadãos que vivem em localidades
mais pobres? E de mesmo sentido que promovem uma políticas alicerçada em interesses indenitários
falhos revertam tal cenário e consolidem politicas publicas de cunho efetivo.

2 APOROFOBIA E O DIREITO À MORADIA: UM CENÁRIO DE SEGREGAÇÃO DO DIREITO A


CIDADES SUSTENTÁVEIS O BRASIL

O espaço urbano sofre diversas transformações, estas são resultantes da ação de diversos agentes
modeladores e suas intervenções oriundas da própria sociedade. Portanto, o cenário fragmentado
que se instaura é interligado pelas ações dos agentes envolvidos, de tal forma que todas modificações
resultam em alterações no espaço urbano.
De modo que, por óbvio estes agentes agregam para si determinadas características que lhes são
conhecidas sendo estes “os proprietários dos meios de produção (sobretudo os grandes industriais),
os proprietários fundiários, os promotores - imobiliários, o Estado e os grupos sociais excluídos”
(CORREA, 2000, p.12).
À medida que o processo habitacional é um fator de impacto direto no processo de organização

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

e expansão das cidades, necessário é observamos os meios de habitação imobiliários locais e como
se dão as políticas habitacionais que resultam em empreendimentos habitacionais que tenham
por finalidade promover o direito à moradia aos cidadãos que ou moram em loteamentos urbanos
clandestinos que passam por processo de regularização fundiária, ou são contemplados com moradias
a preços populares em conjuntos habitacionais criados por ação de políticas habitacionais, as quais
resultam na construção de vários empreendimentos habitacionais populares distribuídos nas cidades.
Entretanto, importa observar onde estão sendo instauradas as moradias populares, promovidas
por políticas públicas estatais a partir da localização geográfica local. Isso se dá ao fato, de que em
severa maioria estes lotes urbanos de conjuntos habitacionais são lotados em regiões distantes dos
serviços públicos básicos, no que poderíamos dizer localizados em uma “localidade paralela”, ou seja,
resultam em processo de acesso à moradia segregador socioespacial.
Isso se registra quando falham seus agentes políticos locais ao não promover de modo equitativo
a oferta dos direitos sociais coletivos. Já que é função personalíssima do Estado, implantar serviços
públicos, entretanto, na maioria dos casos a política pública implantada se torna carente pela sua falha
no critério de promoção e distribuição dos serviços coletivos, em virtude de seu cenário desigual.
Há que se destacar o fato de que de que categoricamente, este processo é classificado por meios
econômicos de renda, assim sendo são fatores diretos de inserção urbana, no que configura um
quadro tácito de segregação sócioespacial instaurando um quadro de privação de um efetivo exercício
ao direito à cidade da sua população carente que segue afastada na periferia carente dos serviços
coletivos básico, ou seja, numa realidade paralela de um eterno muro segregador e excludente.
Todavia, quando observamos a promoção do direito de políticas públicas à moradia a cidadãos
brasileiros que se encontram em situação de pobreza temos instaurado um cenário de promoção de
segregação que pode aqui ser interpretado, a partir da ideia de “aporofobia” apresentada filósofa
Adela Cortina (2017), que insurge a partir dos fenômenos sociais que envolvem a pobreza.

A aporofobia é o desprezo pelo pobre, a rejeição aos que não são capazes de devolver nada em troca
para a sociedade ou que aparentam incapazes disso. De acordo com a referida autora, é por isso que
o pobre é excluído “de un mundo construido sobre el contrato político, económico o social, de ese
mundo del dar y el recibir, en el que sólo pueden entrar los que parecen tener algo interesante que
devolver como retorno”. (2019, ZEIFERT, STURZA, AGNOLETTO, p.644, apud CORTINA, 2017, p. 6).

Segundo Lefebvre (2001), não há possibilidade de se promover um direito à cidade concentrada


em um cenário de visitar as áreas urbanas de uma cidade, pois, somente quando existe a promoção de
modo igualitário e com equidade em todas as regiões de uma mesma cidade, a sua população terá
disponível um pleno direito a vida urbana, ao que arriscamos afirmar com isso, um pleno e efetivo
direito de promoção as cidades sustentáveis que concebam todas as dimensões da sustentabilidade
e não preconizem tão somente, o desenvolvimento sustentável.
Ocorre que dado o cenário instaurado após pesquisar e avaliar nas mais diversas regiões do
Brasil, várias cidades não compreenderam o cerne da efetiva promoção ao direito à moradia. Já que
o cenário instaurado é de uma efetiva constante promoção de mais segregação social, ou seja, as
famílias carentes permanecem no local ou são alocadas em novas moradias em regiões distantes e
periféricas, ao que permanecem em regiões socioespaciais longínquas dos serviços essenciais básicos.
Ao que tal cenário promove ainda desigualdade nos fatores imobiliários, já que a falta de
estrutura de acesso aa serviços tem influência direta nos valores dos imóveis, enquanto a população
que carece dos serviços que acabam não ofertados pelo Estado. (MARICATO, 1987).
Importa verificarmos está ligado ao fato de uma boa oferta à moradia e que se torna um fator de
classificação de sua qualidade a oferta de serviços como energia elétrica, agua, escolas, e hospitais
dentre outros serviços urbanos, além é claro do acesso à infraestrutura segundo Rolniket al.(2015)
tal avalição, se dará a partir destes critérios atrelados se estão próximos ou distantes das residências.

Adela Cortina analisa que perante qualquer oferta, explícita ou implícita, o indivíduo se questiona
o que ganhará com ela. O ser humano é um ser de necessidades, mas também é capaz de dar,
e disso que nasce, em essência, o Estado de Direito, da necessidade da proteção de acordo com
os deveres e responsabilidades de cada indivíduos. (2019, ZEIFERT, STURZA, AGNOLETTO, p.637)

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Ademais, junta a isso está à especulação do solo pelo mercado imobiliário. Tendo em vista que
se liga de modo direto ao mercado habitacional. Uma vez que o cenário que vem se consolidando
é a concentração de lotes populares em zonas periféricas afastadas das cidades em paralelo ao
crescimento de loteamentos fechados de médio a alto valor imobiliário em espaços que apresentem
estruturas que ou se equiparam ou aproximam da estrutura central deixando latente o efeito de
segregação e desigualdade, quando da apropriação do solo. (CAMPOS e MENDONÇA, 2013).
Ao que é fato que o mercado tem influência direta, visto que o poderio econômico tem importante
papel no movimentar da economia local das cidades. Com as classes populares tiveram de buscar seu
espaço, que acabam por se localizarem em locais distantes e segregados. Para Villaça (1998, p. 141),
“Uma das características mais marcantes da metrópole brasileira é a segregação espacial dos bairros
residenciais das distintas classes sociais, criando-se sítios sociais muito particulares”
Em vista disso, o que vem se assentando é um cenário de segregação socioespacial resulta na
promoção diferenciada ao acesso a equipamentos e todos os demais serviços urbanos, de tal acerte
em que a população que reside próximo as regiões centrais tem ofertado para si melhores condições
enquanto aqueles que residem em regiões mais periféricas sofrem com a ausência.
Oportuno, o tecer de Harvey (1980), ao retratar que este cenário de diferenças em áreas
residenciais resulta em uma segregação instaurando localidades dividas por grupos distintos que tem
como fundamento a renda que irá determinar onde estarão localizados estes grupos e ao que terão
acesso. Como bem afirma Cortina, quando trata das atuações politicas e econômicas (2017, p.42) “y
es universalista, mientras que los juicios y las actuaciones personales son egoístas o comunitaristas
y pretenden favorecer a los individuos o a los grupos”.
Ao que temos instaurado um fortalecimento da aporofobia, quando da promoção de conjuntos
habitacionais e regularização de lotes clandestinos para cidadãos que se encontram classificados,
como pertences a linha da pobreza fortalecerem este cenário segregador. Ao que melhor dizendo,
a pobreza adentra em um cenário de discriminação entre os indivíduos perante suas capacidades
básicas ao exemplo da capacidade de ordenar suas vidas perseguindo um caminho feliz, pois, não
possuem condições e meios. (2019, ZEIFERT,STURZA, AGNOLETTO, p.644)
Ao fim, diante do cenário instaurado se observa que compete aos responsáveis pelas promoções
de políticas públicas as proporcionem um melhor gerenciamento e organização espacial das cidades
brasileiras, não resultando na promoção de um sistema enraizado em um eterno sentimento prático
de aporofobia. Somente através da promoção de estratégias, com o fim de perfectibilizar o pleno
e eficaz acesso a moradia, ou seja, moradia e serviços básicos e essenciais de modo igualitário e
equânimes, resultando na perfeita promoção de cidades sustentáveis.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao que se constata que a o acesso à moradia transcende ao fato de se construir ou regularizar


lotes clandestinos está além no que diz respeito ao alcance deste aos serviços essenciais e coletivos.
Visto que sua oferta para as populações mais carentes não lhes é oportunizado acesso de qualidade
mínima de infraestrutura essencial, ou seja, permanecem essas moradias no mundo paralelo e
excludente da cidade, promovendo mais privação ao direito a cidade e uma não produção de cidades
sustentáveis com qualidade de vida.
É fato que existe muito ainda que se discutir quanto a democratização do acesso e uso do solo
urbano. E assim promova uma integração com acesso paritário dos serviços públicos básicos e privados
considerados essenciais. Desenvolvimento está para além de estrutura está ligado diretamente a sua
preocupação em desenvolver o cidadão.
Esse desenvolvimento subjetivo se dá pela afluência de elementos geradores de liberdades e
de direitos, capazes de fomentar um ambiente propício à formação das identidades participativas
e ativas na construção de suas trajetórias de vidas cidadãs. Demonstra-se nociva a forma como a
imagem da periferia tem sido retratada, imagem esta que altera a concepção que as pessoas do
próprio lugar têm de si mesmos.
Uma vez que este cidadão que é visto e classificação como “favelado”, “invasor”, não tem

190
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

proporcionado para si, a promoção de uma cidade sustentável e excludente, ele é deixado o mais
longe e segregador o possível, visto que já é classificado como marginalização, logo realizar a
promoção de um conjunto habitacional próximo ou em regiões centrais e estruturadas seria uma
afronta e uma violência aos moradores e os detentores de poderio econômico, a medida que então
estás políticas são falaciosas quanto a promoção e inclusão do seu fim. No entanto, estes cidadãos só
são lembrados pelos agentes políticos em tempos de eleições, são vistos visitados utilizados como
meio de promoção política momentânea, um real cenário de utopia e também esquizofrenia por parte
daqueles que tem total ciência de suas funções para resultar em melhoras locais.
São necessárias melhoras urgentes no espaço urbano além de atenção e investimento em seu
capital humano, visto que este cenário de desigualdades e produção de aporofobia se consolida no
modo como o indivíduo enxerga o outro.
Ao fim, é tácito é de suma importância a promoção de politicas públicas efetivas no setor
habitacional local de cada município e se pensar num” real planejamento urbanos, que tenha como
centro das atenções a integração de todo o setor urbanístico, para assim resultar na real oferta de
cidades justas, democráticas e sustentáveis.

REFERÊNCIAS

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Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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191
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O DIREITO À SAÚDE COMO ODS: FOCO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS


PARA EFETIVIDADE DA AGENDA 2030 E SEUS DESAFIOS EM
TEMPOS DE PANDEMIA NO BRASIL

Fernanda Cristina Savela Vieira91


Adrieli Laís Antunes Aquino92

RESUMO: O presente artigo trata-se de uma explanação acerca do direito à saúde na Agenda 2030 do
Desenvolvimento Sustentável idealizada pela ONU, com a análise de um relatório produzido pela CEPAL
e OPAS. Inicialmente com conceitos iniciais do direito à saúde no Brasil, após trata especificamente do
“Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3: Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar
para todas e todos, em todas as idades” e análise das políticas públicas no Brasil e a pandemia do
Covid-19. As principais conclusões que as políticas públicas nos âmbitos: fiscais, sociais e produtivos
são tão importantes para enfrentar a pandemia e iniciar um processo de renascimento econômico e
fortalecimento das populações. As ações de implementação no Brasil devem ser mais efetivas por
parte do poder público, notadamente, neste momento de crise.

Palavras – chave: Meio ambiente; Resiliência; Direitos Humanos; Estado; Dignidade.

INTRODUÇÃO

Vida, saúde e bem-estar são fundamentais e constituem pontos cruciais para a vida de todos os
seres humanos. Partindo desse entendimento, o direito à saúde é fundamental, e um imperativo ético.
O mundo está atualmente inserido numa pandemia e crise sanitária muito preocupante e nesse
momento o direito à saúde deve ser a principal pauta entre as cátedras universitárias e os governos,
de modo a garantir a vida digna dos seres humanos.
O presente artigo trata-se de uma explanação acerca do direito à saúde na Agenda 2030 do
Desenvolvimento Sustentável idealizada pela ONU, com a análise de um relatório produzido pela
CEPAL e OPAS que traz a relação das ações dos países da América Latina para promover a saúde em
temos de pandemia.
Inicialmente com conceitos iniciais do direito à saúde no Brasil, após trata especìficamente do
“Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3: Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar
para todas e todos, em todas as idades”, finalizando com uma análise das políticas públicas no Brasil
e a pandemia do Covid-19.

1 DIREITO À SAÚDE

Inicialmente, o direito à saúde correspondia ao cuidado privado intrafamiliar, de modo que, falar
em saúde pública e democratização de medicamentos, por exemplo, seria uma utopia. O direito,
como um conjunto de normas que regem a sociedade, e, de leis e normas que, positivadas devem ser
cumpridas em âmbito estatal e pela sociedade em geral, manifesta a saúde, inicialmente como um
direito individual:

91 Mestranda em Direito, UNIJUÍ, Integrante do Grupo de Pesquisas Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade
(CNPQ), e-mail: fernandacristina.vieira@hotmail.com.
92 Mestranda em Direito, UNIJÍ, Integrante do Grupo de Pesquisas Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade
(CNPQ), e-mail: adri-l-@hotmail.com.

192
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Observado como direito individual, o direito à saúde privilegia a liberdade em sua mais ampla
acepção. As pessoas devem ser livres para escolher o tipo de relação que terão com o meio
ambiente, em que cidade e que tipo de vida pretendem viver, suas condições de trabalho e, quando
doentes, o recurso médico-sanitário que procurarão, o tipo de tratamento a que se submeterão
entre outros. (DALLARI, 1998, p. 59)

Entendido como um direito individual, a saúde tal como uma liberdade pessoal, uma escolha,
de alimentação, condições de trabalho, e, do médico quando necessário tratamento. Tal acepção é
um pouco fantasiosa, levando-se em conta a realidade da população carente de recursos econômicos
ou técnicos, para compreender como cuidar da sua saúde, ou ter o valor necessário para tratamentos
médicos necessários. Faz- se imperioso tratar do direito à saúde como uma garantia fundamental.

Não basta apenas declarar que todos têm direito à saúde; é indispensável que a Constituição
organize os poderes do Estado e a vida social de forma a assegurar a cada pessoa o seu direito.
É função de todo profissional ligado à área da saúde contribuir para o debate sobre as formas
possíveis de organização social e estatal que possibilitem a garantia do direito à saúde. (DALLARI,
1998, p. 60)

No Brasil, após a constituição de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, uma vasta gama
de direitos foram reconhecidos como fundamentais. Direitos sociais e fundamentais positivados,
acarretaram em maior promoção da qualidade de vida dos cidadãos, a partir da compreensão social
em escopo, na lei. Tal como denotam Sarlet e Figueiredo:

(...) o Poder Constituinte de 1988 acabou por reconhecer um conjunto heterogêneo e abrangente
de direitos (fundamentais) sociais, o que, sem que se deixe de admitir a existência de diversos
problemas ligados a uma precária técnica legislativa e sofrível sistematização (que, de resto,
não constituem uma particularidade do texto constitucional) acaba por gerar consequências
relevantes para a compreensão do que são, afinal de contas, os direitos sociais como direitos
fundamentais. (SARLET; FIGUEIREDO, 2007, p. 174)

Após o marco legal da Constituição de 1988 na mudança da percepção do direito à saúde no


Brasil, a saúde passa a ser entendida como um direito a todos e, garantido pelo Estado. A ideia de
direito de todos geram paradoxos, entre os quais, o principal do que seria justo, garantir de modo
homogêneo e, o que seria entendido como a saúde, o que seriam pessoas saudáveis, se haveria
algum conceito minimamente sólido.

(...) há que enfatizar que o mínimo existencial – compreendido como todo o conjunto de prestações
materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, no sentido de uma vida
saudável (e a vinculação com o direito à saúde, tomado aqui em seu sentido mais amplo é proposital
e será retomada no último segmento!) tem sido identificado – por alguns – como constituindo o
núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, núcleo este blindado contra toda e qualquer
intervenção por parte do Estado e da sociedade. (SARLET; FIGUEIREDO, 2007, P. 184)

O principal direito fundamental do ser humano, para muitos teóricos e legisladores é o direito à
saúde e sendo assim, o Estado como principal garantidor dos menos favorecidos, na área da saúde, deve
atuar no papel welfare state, de bem estar social, garantidor de direitos, não apenas exigindo deveres.
Ainda, o direito à saúde assume diferentes apresentações, primeiramente como um direito à
proteção da saúde, na prevenção de doenças e comorbidades das populações. Um exemplo de pacto
social importante, advindo das lutas pelo direito à saúde da população em geral, é o caso das vacinas,
que diminuem e, em alguns casos até extinguem a aparição de doenças e epidemias.
Já em relação a sua segunda principal apresentação, como direito a prestações, o direito à saúde
pressupõe a realização de atividades por parte do destinatário (o Estado ou mesmo particulares, como
planos de saúde e seus agentes) que asseguram a fruição plena do direito.
Nas palavras de Sarlet e Figueiredo, tal direito compreende a aquisição de medidas para garantir
o direito e a saúde, propriamente dita, dos indivíduos. Sendo um direito de proteção, garantindo
o correto funcionamento das instituições, serviços, ações, procedimentos, sem os quais não seria
possível o exercício desse direito fundamental. (SARLET; FIGUEIREDO, 2007, p. 199)
No Brasil, o direito à saúde é mundialmente reconhecido através do Sistema Único de Saúde

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

(SUS), que atua para todos os cidadãos, sem distinções, objetivando o cumprimento das duas funções
do direito à saúde, prevenir e fornecer o necessário básico.

Nesse aspecto, o SUS trabalha com a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename),
que norteia a oferta de medicamentos para o tratamento dos principais problemas de saúde da
população. Os medicamentos para tratamento das doenças mais raras constam na relação do
Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional. (VIEIRA, 2008, p. 368)

Tal como supracitado, um dos exemplos da inclusão na área da saúde, as populações carentes
de recursos econômicos, que se socorrem do poder público, é a lista do Rename. A lista que define
medicamentos básicos para os principais problemas de saúde que acometem os brasileiros, uma
demonstração da busca e efetivação dos direitos humanos no Brasil, pela Constituição Cidadã de 1988.

A Organização Mundial de Saúde (1946) define saúde como sendo “o estado do mais completo
bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade.” Apesar de esse
conceito ser alvo de muitas críticas (a saúde seria tida como algo utópico e inalcançável, por
exemplo), ele é de fundamental importância para as políticas de saúde pública, na medida em
que considera não apenas os determinantes biológicos da saúde, mas também leva em conta o
processo saúde-doença como resultado do binômio corpo-mente e de sua interação com o meio
ambiente. (BADZIAK; MOURA, 2010, p. 71)

Além da necessidade da positivação do direito à saúde no Brasil, deve ser indiferente como o
Estado se organiza para promover o direito à saúde, para os cidadãos. Sendo imprescindível que
efetivamente o assegure, o direito das pessoas de exigir que o Estado esteja atuando de modo correto
e ativo é necessário, não passível de omissão.

2 OBJETIVO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 3: ASSEGURAR UMA VIDA SAUDÁVEL E


PROMOVER O BEM-ESTAR PARA TODAS E TODOS, EM TODAS AS IDADES

Em meados de 2015 foi o ano da definição dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da


ONU, apresentados formalmente em Nova Iorque (EUA), que reuniu os líderes mundiais para adotar a
denominada Agenda 2030, que objetiva à erradicação da pobreza e ao desenvolvimento econômico,
social e ambiental à escala global.
Quanto ao tema da saúde, trata-se o objetivo de número três, com o título e objetivo geral:
“Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades”.

3.1 Até 2030, reduzir a taxa de mortalidade materna global para menos de 70 mortes por 100.000
nascidos vivos; 3.2 Até 2030, acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos e crianças
menores de 5 anos, com todos os países objetivando reduzir a mortalidade neonatal para pelo
menos 12 por 1.000 nascidos vivos e a mortalidade de crianças menores de 5 anos para pelo
menos 25 por 1.000 nascidos vivos. (ONU)

Nos itens iniciais do objetivo, traz a preocupação com a saúde na primeira infância, tencionando
diminuir as mortes de recém-nascidos e crianças na tenra infância. A indicação de que o zelo do Estado
com a maternidade é imprescindível para a manutenção da saúde de uma população. Em seguida, a
preocupação é em relação as doenças venéreas como AIDS, hepatites e doenças transmissíveis em
geral, até 2030 para além de prevenir e tratar, promover a saúde mental e o bem – estar dos cidadãos.

3.3 Até 2030, acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças tropicais
negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças
transmissíveis 3.4 Até 2030, reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não
transmissíveis via prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar. (ONU)

É de ampla abrangência a articulação do objetivo três da Agenda 2030, pois, identifica a saúde
em todas as áreas da necessidade humana, prevenção, promoção e bem estar mental. Tal como
denota-se nos itens 3.5 a 3.7 do objetivo:

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

3.5 Reforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso de drogas


entorpecentes e uso nocivo do álcool 3.6 Até 2020, reduzir pela metade as mortes e os ferimentos
globais por acidentes em estradas. 3.7 Até 2030, assegurar o acesso universal aos serviços de
saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, informação e educação, bem como
a integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais. (ONU)

Incluindo a preocupação no abuso de entorpecentes, também propõe reduzir as mortes e


ferimentos globais por acidentes automobilísticos, que exterminam e adoecem um expressivo número
de pessoas por dia no Brasil, por exemplo. Da saúde sexual a reprodutiva, objetiva garantir o acesso
a informação e assistência para todas as pessoas, como um direito fundamental.
Bem como, da necessidade da universalização ao acesso à saúde, fora dos meios públicos –
estatais, os planos de saúde também devem dispor dos serviços essenciais e, com medicamentos de
qualidade comprovada e eficazes.

3.8 Atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso
a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais
seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos. (ONU)

A redução de óbitos e doenças advindos de químicos perigosos, utilizados de modo irresponsável,


na maior parte dos casos em que ocorrem comorbidades, por exemplo no caso da Anvisa no Brasil,
a agência faz o cadastro e publica os produtos que podem ser utilizados com segurança, em cada
atividade profissional ou pessoal. Bem como, a necessária preocupação do uso indiscriminado do
tabaco, consta no objetivo número 3.

3.9 Até 2030, reduzir substancialmente o número de mortes e doenças por produtos químicos
perigosos, contaminação e poluição do ar e água do solo 3.a Fortalecer a implementação da
Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco em todos os países, conforme apropriado. (ONU)

Do mesmo modo, quanto à ciência da saúde, também há o fomento na agenda, sendo o apoio
a pesquisa muito incentivado, tal como expressa o item “3.b” do Objetivo para o Desenvolvimento
Sustentável nº 3:

3.b Apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas e medicamentos para as doenças


transmissíveis e não transmissíveis, que afetam principalmente os países em desenvolvimento,
proporcionar o acesso a medicamentos e vacinas essenciais a preços acessíveis, de acordo com a
Declaração de Doha, que afirma o direito dos países em desenvolvimento de utilizarem plenamente
as disposições do acordo TRIPS sobre flexibilidades para proteger a saúde pública e, em particular,
proporcionar o acesso a medicamentos para todos. (ONU)

Finalizando todos os itens do objetivo, contempla-se o apoio aos financiamentos na área da


saúde, principalmente nos pequenos países e os em desenvolvimento. Para que a capacidade dos
países captem a necessidade e de um plano de gerenciamento dos riscos de saúde.

3.c Aumentar substancialmente o financiamento da saúde e o recrutamento, desenvolvimento e


formação, e retenção do pessoal de saúde nos países em desenvolvimento, especialmente nos
países menos desenvolvidos e nos pequenos Estados insulares em desenvolvimento 3.d Reforçar
a capacidade de todos os países, particularmente os países em desenvolvimento, para o alerta
precoce, redução de riscos e gerenciamento de riscos nacionais e globais de saúde. (ONU)

Importante ressaltar a necessidade atual da implementação e promoção da Agenda 2030 em âmbito


global, tendo em vista a presente situação da pandemia da Covid-19 e, seus impactos nos sistemas de
saúde e capacidade de resiliência econômica dos investimentos estatais na garantia do direito à saúde.

3 A PANDEMIA COVID-19 NO BRASIL

Um vírus até então desconhecido pela ciência, de habitar seres humanos, inicialmente causando uma
doença pulmonar grave em pessoas na China, acredita-se que é uma zoonose e, o vírus Covid- 19, ou, coro-

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

navírus, causa graves dificuldades no sistema respiratório, sendo necessário em muitos casos, a intubação
do acometido e, a necessidade de permanecer na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo Hospitalar).
Logo se espalhou pela Europa, e, nos dias atuais está praticamente em todo o globo terrestre,
configurando uma pandemia, no início de 2020, com rápida difusão internacional, os milhares de mortos
e mais de 20 países afetados fez com que a OMS declarasse situação de emergência. Com o intuito de
conter a difusão do novo coronavírus em seu território nacional ou no exterior, a China, epicentro inicial
da doença, declarou quarentena a mais de 26 milhões de pessoas, isolando dez cidades da província de
Hubei, o surto epidêmico começou em meados de dezembro (SENHORAS, 2020, p.32)
Após o vírus ter se espalhado na Europa, depois na América Latina se espalhou rapidamente,
sendo um vírus pouco estudado até então, não há uma definição concreta dos sintomas e estes
variam muito dependendo o paciente, o que dificulta o diagnóstico. Esta é a sexta vez que a OMS
declarou estado de emergência internacional.

Com o coronavírus, a OMS declara pela 6ª vez estado de emergência internacional, sendo esta
decisão um sistema rápido de resposta a epidemias internacionais desenvolvido em 2009 para
a uma macrocoordenação internacional que busque conter eventual emergência pandêmica,
resultado de uma trajetória de aprendizado institucional com os problemas derivados de epidemias
que surgiram no início do século XXI como gripe aviária, síndrome respiratória do Oriente Médio
(MERS) e síndrome respiratória aguda grave (SARS). (SENHORAS, 2020, p.33)

A América Latina ultimamente, se tornou o epicentro da pandemia por coronavírus, mais em


específico, o Brasil, que devido as suas proporções continentais e dificuldades de infraestrutura,
desigualdade social, bem como conscientização popular, acabou por multiplicar os casos.

Vários países latino-americanos se tornaram o epicentro da pandemia da doença por coronavírus


(COVID-19) e no topo das estatísticas globais de casos. A pandemia tem tornou-se uma crise
econômica e social sem precedentes e, se medidas urgentes não forem tomadas, poderá
transformar em uma crise alimentar, humanitária e política. (CEPAL; OPAS, 2020, p. 03)

Muitas mortes ocorreram no Brasil devido a pandemia, o SUS não possui infraestrutura o suficiente
para abarcar toda a população infectada que vir a necessitar de internação hospitalar. Devido a esse
cenário, as políticas públicas denotam-se indispensáveis.

3.1 Políticas Públicas no Brasil e a Pandemia

No Brasil, as de obras de infraestrutura em áreas como saneamento e habitação estão sendo


muito discutidas no governo, pois, a necessidade de um aporte para as populações carentes é
imprescindível. No atual momento, várias são as cidades que encontram-se em lockdown e, todas em
quarentena com distanciamento social.

Com efeito, quanto mais diminuta a disponibilidade de recursos, mais se impõe uma deliberação
responsável a respeito de sua destinação, o que nos remete diretamente à necessidade de
buscarmos o aprimoramento dos mecanismos de gestão democrática do orçamento público,
assim como do próprio processo de administração das políticas públicas em geral, seja no plano
da atuação do legislador, seja na esfera administrativa, como bem destaca Rogério Gesta Leal,
o que também diz respeito à ampliação do acesso à justiça como direito a ter direitos capazes
de serem efetivados e, além disso, envolve a discussão em torno da necessidade de evitar
interpretações excessivamente restritivas no que diz com a legitimação do Ministério Público para
atuar na esfera da efetivação também dos direitos sociais. (SARLET; FIGUEIREDO, 2007, p. 190)

Objetiva-se unir investimentos com políticas públicas contribuindo também com ações de manutenção
de emprego e apoio ao trabalhador, que é a classe mais atingida economicamente. A efetivação dos direitos
sociais depende muito da disponibilidade de recursos e orçamento público, portanto, importante a ação estatal.

Nesse ponto, cabe lembrar que como está expresso no Art. 196 da Constituição Federal, o direito à saúde
será garantido mediante políticas sociais e econômicas. Ou seja, a própria Constituição reconhece que
para garantir a saúde é preciso muito mais que acesso a serviços. Faz-se necessário dispor de políticas

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

que possibilitem aos indivíduos a moradia adequada, saneamento básico, emprego, renda, lazer e
educação. Considerando que a escassez de recursos é fato, verifica-se que não é possível prescindir
das políticas quando o objetivo é garantir a observância aos princípios de universalidade, integralidade,
igualdade e equidade no acesso aos serviços de saúde. (VIEIRA, 2008, p. 367)

Tal como aduz o autor supracitado, para efetivar o Art. 196 da Constituição Federal são necessários
os serviços como saneamento básico, acesso a renda, moradia adequada, lazer e educação. As políticas
públicas devem abarcar as necessidades básicas.

A saúde deve ser entendida como um direito social. As políticas públicas de saúde, portanto, não devem
estar restritas a um conceito limitado de saúde ou à forma organizacional dos serviços, dicotomizada
entre as ações de cunho coletivo e individual, e entre a prevenção e a cura. Partindo-se de uma definição
mais abrangente de saúde, não reduzida à esfera biológica do indivíduo, se fazem indispensáveis
medidas integrais, que compreendam aspectos sociais e políticos. (BADZIAK; MOURA, 2010, p. 76)

O Brasil e a América Latina em geral são uma região vulnerável devido aos altos níveis de
informalidade do trabalho, urbanização, pobreza e desigualdade. No atual momento ainda, se tornou
o maior epicentro da pandemia viral Covid – 19.

Assim, é necessário para avaliar em que limites está ocorrendo o provimento judicial a respeito das
políticas públicas, em um país como o Brasil, com especificidades próprias, principalmente no que
diz respeito às grandes desigualdades econômicas e culturais. É perigoso importar diretamente
conceitos cunhados em outros países com contexto cultural e socioeconômico diferentes. O Brasil,
que é um país em desenvolvimento não pode transportar diretamente teorias de países ricos. O
debate europeu sobre a redução dos direitos conquistados durante o Estado Social não pode ser
transferido, porque o Estado Providência nunca foi efetivado plenamente. (LIMBERGER, 157)

As principais medidas aplicadas no Brasil em relação a saúde, foram a detecção de casos que
apresentaram os sintomas virais, a criação de hospitais e ambulatórios específicos que isolem os
casos detectados. Bem como a promoção inicial da quarentena, tal como alega o relatório da CEPAL E
OPAS sobre os impactos da saúde e o Covid-19 na América Latina:

Recomendações medidas específicas de controle de saúde pública, como detecção, isolamento e


tratamento rápido de casos, para suprimir a transmissão da comunidade e reduzir a mortalidade,
garantindo a continuidade dos serviços sociais e de saúde essenciais e protegendo trabalhadores
da linha de frente e populações vulneráveis. (CEPAL; OPS, 2020, p. 10)

A suspensão de atividades não essenciais fora largamente contestada no Brasil, devido ao


colapso da economia que fora suscitado pela crise da saúde, com a pandemia. Portanto, as políticas
públicas de prevenção restaram um pouco falhas, chegando ao número de quase cem mil mortos já
no país devido ao contágio em larga escala, e, pouca capacidade do sistema público de saúde.

Figura 1: Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), com base nos dados diários sobre a
doença por coronavírus (COVID-19) fornecidos. (CEPAL; OPAS, 2020, p. 11)

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Nota-se no gráfico acima a curva de contágio nos países da América Latina demonstra que o
Brasil fora o segundo país com a curva mais alta ficando atrás apenas dos Estados Unidos. O que é
extremamente preocupante para os cidadãos brasileiros e o governo, que deve agir com a máxima
urgência para tentar achatar a curva, antes que colapse o sistema de saúde.

200 anos de histórica política brasileira e mais de 25 anos da CF/88, a luta não é mais pela
codificação de direitos, mas sim pela sua efetividade, por uma leitura madura que otimize os
recursos orçamentários existentes, dos direitos sociais, em geral e do direito à saúde, em particular.
O que torna o direito à saúde de maior complexidade para sua efetividade é a sua dependência
com outras políticas públicas. (LIMBERGER, p. 185)

Historicamente o país é marcado pela falta de efetividade das leis positivadas, um exemplo é a
Constituição em vigor, que assegura uma imensa gama de direitos fundamentais, que ainda é falha
no plano fático. Um exemplo é o gráfico abaixo, que demonstra o pouco valor investido em saúde no
ano na pandemia:

Figura 2: Região das Américas (13 países): gastos públicos no primeiro nível de assistência
como porcentagem do gasto público total em saúde. (CEPAL; OPAS, 2020, p. 15)

Já, no segundo gráfico há um comparativo dos gastos públicos em saúde na América Latina, El
Salvador é o país que mais investiu em infraestrutura e suporte à saúde na pandemia, o Brasil está no
ranking do 4º país que menos gastou com a saúde populacional na pandemia.

198
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Figura 3: Região das Américas (13 países): gastos públicos no primeiro nível de assistência
como porcentagem do gasto público total em saúde. (CEPAL; OPAS, 2020, p. 11)

O tempo de duplicação e contágio do vírus é extremamente rápido, o Brasil foi destaque, ficando
atrás apenas dos Estados Unidos em relação a celeridade. Percebe-se no gráfico acima colacionado,
da pesquisa realizada em um conjunto de esforços entre a OPAS e a CEPAL.
Conforme a rapidez do contágio, necessária uma resposta rápida, já que o país demonstrou que
não gastou o orçamento em saúde como seria importante, comparado aos outros países da América
Latina, também nem importou os produtos necessários para proteger a população contra a epidemia.
Conforma nota-se no gráfico abaixo, o Brasil nem aparece, de tão irrisório o gasto com as importações:

Figura 4: CEPAL; OPAS, 2020, p. 18

Tais dados são alarmantes, carecem de atenção pelas repartições públicas estatais e, população em
geral, para que o direito à saúde tão bem positivado na magna carta brasileira aconteça também na prática.

Os países da região compartilham desafios estruturais preexistentes que agravam o impacto COVID-19
e dificultam o enfrentamento desta crise no curto, médio e longo prazo, uma vez que os altos níveis
de pobreza e desigualdade, informalidade do trabalho, deficiências institucionais e baixos níveis de
coesão social. Essas características, por sua vez, as diferenciam dos países desenvolvidos e devem ser
levados em consideração ao avaliar as estratégias implementadas países no contexto da pandemia.
A resposta à pandemia deve ser interpretada como processo dinâmico e os parâmetros para decidir
se deve ou não avançar para a próxima fase – ou remonta ao anterior - eles devem ser estabelecidos
através de monitoramento e avaliação contínuos dos a situação de saúde. (CEPAL; OPAS, 2020, p. 20).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A estratégias a serem implementadas para achatar a curva do contágio da pandemia são, de aplicar as
políticas públicas que internacionalmente estão acontecendo, com êxito. Muitos países estão gradativamente
saindo do isolamento social e quarentenas, para tanto deve-se ter uma atenção governamental eficaz.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe ressaltar que, devido a pandemia que o mundo vive, não há que se falar inicialmente em
prejuízos econômicos, pois se a curva de contágio não for controlada, não será possível reativar as
economias dos países.
É por tal motivo que políticas públicas nos âmbitos: fiscal, social e produtivo são tão importantes para
enfrentar a pandemia e iniciar um processo de renascimento econômico e, fortalecimento das populações.
Um exemplo forte de cuidado com o direito à saúde populacional, é o modelo de distanciamento
social aplicado no Rio Grande do Sul, que estabelece fases e bandeiras nas cidades. De tal modo que
o contágio e infraestrutura pública, estejam de certo modo equilibrados.
A Agenda 2030, uma ousada proposta repleta de metas importantes para a sustentabilidade
ambiental e efetivação dos direitos humanos, trata o direito à saúde como imprescindível e fundamental
para a dignidade dos seres humanos. As ações de implementação no Brasil precisam ter mais eficiência
e, enfoque pelo pode público, principalmente neste momento de crise.

REFERÊNCIAS

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Saúde: um conceito para efetivação do direito à saúde. R. Saúde Públ. Santa Cat., ISSN: 2175-
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instaurada entre os poderes para efetivação das políticas públicas de saúde no brasil.

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d=S0034-89102008005000010&script=sci_arttext&tlng=pt >. Acesso em Julho, 2020.

200
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

PÓS-VERDADE E O CENÁRIO DE RELATIVIZAÇÃO DA CRISE


AMBIENTAL E SANITÁRIA NO BRASIL

Flávio Fagundes93
Bruna Medeiros Bolzani94
Elenise Felzke Schonardie95

RESUMO: O tema do artigo é uma busca pela relação entre a Pós-Verdade e a relativização da crise
ambiental e sanitária no Brasil. Para tanto o problema de pesquisa é o seguinte: Qual a implicação da Pós-
Verdade e a relativização dos fatos em meio a uma crise ambiental e sanitária no Brasil? O método utilizado
para a pesquisa é hipotético-dedutivo com abordagem interdisciplinar. Utilizamos da categoria do “mito
fundador” para tratar das questões problemáticas e históricas e demonstrar adiante que as representações
da realidade no Brasil contemporâneo, perpassam necessariamente a presença de um discurso que ainda
exalta o passado glorioso e conduz o presente, negando as consequências da exploração infinita da
natureza, e da violência que os povos indígenas foram e estão sendo submetidos neste momento.

Palavras-chave: Crise Ambiental. Crise Sanitária. Mito. Pós-Verdade. Povos Indígenas.

INTRODUÇÃO

O contexto brasileiro é de desafios históricos que a depender do caminho a ser escolhido e percorrido,
as consequências também serão históricas e afrontosas aos direitos humanos. A complexidade destes
desafios pode facilmente levar a certo pessimismo, sobretudo considerando as problemáticas paralelas
que atravessam o cenário brasileiro. A crise ambiental não é uma problemática nova. Por outro lado, a
crise sanitária é recente, e faz parte de uma discussão já presente na academia e diz respeito à aceleração
das diversas crises diante da conjuntura brasileira e mundial. Assim como tem sido objeto de estudo de
diversos campos do conhecimento com amplas abordagens, análises e dados. Sem dúvida, este artigo
está situado nesse âmbito de leituras da realidade, no entanto, o que toca à temática é o potencial que
a pós-verdade possui para retroalimentar a crise ambiental e sanitária.
O objetivo deste breve artigo é levantar o seguinte problema: Qual a implicação da Pós-Verdade
e a relativização dos fatos em meio a uma crise ambiental e sanitária no Brasil? Para a realização
desta pesquisa utilizou-se o método hipotético-dedutivo com abordagem interdisciplinar e técnica
de pesquisa bibliográfica. Justifica-se o trabalho em relação ao Grupo de Trabalho “Cidade, Ambiente
e Sustentabilidade” por neste situar a problemática de pesquisa, trazendo categorias (como a pós-
verdade) que aparentemente não estão associadas à crise ambiental e sanitária, mas que surgem no

93 Mestrando em Direito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Curso de Doutorado e Mestrado em
Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, bolsista CAPES, dedi-
cação exclusiva, vinculado a linha de pesquisa “Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento”, membro do grupo de
pesquisa “Direitos Humanos, Governança e Democracia”, orientando da Prof. Dra. Elenise Felzke Schonardie. E-mail: flaviofa-
gundes1995@outlook.com ORCID> https://orcid.org/0000-0002-2223-6562
94 Doutoranda e Mestra em Direito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Curso de Doutorado e Mes-
trado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, bolsista CAPES,
dedicação exclusiva, vinculada a linha de pesquisa “Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento”, membro do grupo
de pesquisa “Direitos Humanos, Governança e Democracia”, orientanda da Prof. Dra. Elenise Felzke Schonardie. E-mail:
b.medeirosbolzani@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2642-7593
95 Doutora em Ciências Sociais (UNISINOS), Mestre em Direito (UNISC), Bacharel em Direito (UNIJUI); docente permanente do
Programa de Pós-Graduação Doutorado e Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUI, vinculada à Linha de Pesquisa: Demo-
cracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento, membro do Grupo do Grupo de Pesquisa: Direitos Humanos, Justiça Social e
Sustentabilidade e do Grupo de Pesquisa: Direitos Humanos, Governança e Democracia. Advogada. E-mail: elenise.schonar-
die@unijui.edu.br; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9240-5886; ID Lattes: 0918929438055294

201
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

decorrer dessas crises e que podem enriquecer o debate.


De maneira sistemática são apresentados os seguintes temas: o mito fundador, (CHAUÍ, 2013;
SCHWARCZ 2019) caracterizado pela história colonial do Brasil e o emprego estratégico das representações
falaciosas de um povo cordial, unificado que respeita a natureza e os povos indígenas. Adiante, o debate
se volta ao tema central: a Pós-Verdade (DUNKER, 2018; D’ANCONA, 2018) e suas implicações para a crise
ambiental e sanitária, sendo imprescindível para a pesquisa o levantamento de relatórios, notas técnicas
e notícias que retratam a condição dos povos indígenas neste momento de crise.

1 O MITO FUNDADOR

“História não é bula de remédio”. É com essa afirmação que Lilia Schwarcz abre seu último
livro em que trata Sobre o Autoritarismo Brasileiro. Nesse sentido, a obra trata de versar sobre
como a história “[...] anda repleta de seleções e lacunas, realces e invisibilidades, persistências e
esquecimentos” (SCHWARCZ, 2019, p. 223). A hegemonia cultural e política que se manifesta pela
redução e unificação da identidade é estratégia para constituir um sistema que controla a centralidade
regimental e estipula a dominação de grupos sociais.
É importante frisar que toda nação constrói para si algumas mitologias, que em conjunto possuem
a capacidade de denominar o sentimento de pertença, em uma lógica do senso comum ou retórica
nacional. O problema é que esses mitos situados no campo da simbologia perdem sua capacidade
crítica para serem lidos apenas de maneira a exaltar um passado uno e uma história enaltecedora.
De uma forma ou de outra, a construção de uma narrativa histórica oficial que engrandece certos
eventos e relativiza certos problemas que a nação vivenciou fazem parte do imaginário social. Por
aqui, leia-se com ironia, criou-se o mito da cordialidade, harmonia e respeito pela natureza, pelos
povos originários e pelo paraíso, afinal, Deus (também) é brasileiro (SCHWARCZ, 2019).
A suposta cordialidade e respeito pela natureza faz parte do mito fundador brasileiro. A tese do
“homem cordial” abordado por Sérgio Buarque de Holanda foi escrita para tratar das especificidades
do cenário brasileiro de transição do rural para o urbano, bem como das alterações desses grupos de
poder local e regional, principalmente depois da Revolta de 1930. O historiador, por sua vez, se refere
ao “homem cordial” como a familiarização do brasileiro às esferas da vida privada. O que se pode
chamar de “inflacionamento da esfera íntima, do familiar, do privado em detrimento de modelos mais
modernos de Estado e de cidadania.” (SCHWARCZ, 2008 p. 86).
A despeito da importância da obra de Buarque de Holanda e, sobretudo, de sua discussão acerca
da fragilidade dos ideais democráticos na formação do Brasil, esta não será analisada em profundidade
considerando o foco no objeto de pesquisa deste trabalho. Contudo, é preciso destacar que o ponto
de conversa entre o mito fundador e suposta cordialidade brasileira ocorre quando direcionamos
essas ideias para uma análise da forma como o brasileiro trata os povos originários e a natureza, que
aqui foram colonizados e violentamente explorados. Nesse sentido,

Na escola todos aprendemos o significado da bandeira brasileira: o retângulo verde simboliza


nossas matas e riquezas florestais; o losango amarelo, nosso ouro e nossas riquezas minerais;
o círculo azul estrelado, nosso céu, onde brilha o Cruzeiro do Sul, indicando que nascemos
abençoados por Deus; e a faixa branca, na qual lemos “Ordem e Progresso” simboliza o que
somos: um povo ordeiro e progressista. Sabemos por isso que o Brasil, como entoa nosso hino
nacional, é um “gigante pela própria natureza”, que nosso céu tem mais estrelas, nossos bosques
têm mais flores e nossos mares são mais verdes (CHAUÍ, 2013, p. 147).

É possível observar a partir das simbologias que se encontram na bandeira brasileira e que, em certa
medida, conduziram o sentimento de pertença nacional, que a natureza é quem vai delinear quem é o Brasil.
Ocorre que quando se fala em fundação em específico deve-se diferenciar de formação. A formação se refere
aos momentos de transformação e, após, de continuidade. Fundação e, portanto, fundador se referem ao
momento originário que se mantém no curso do tempo transcendente (CHAUÍ, 2013). A história do mito
fundador é a história colonial brasileira - que ignora tanto a violência massiva e a retaliação a que os povos
indígenas e seus conhecimentos foram submetidos quanto a sociedade escravocrata que se estruturou,
bem como a ininterrupta e intensa exploração da natureza e da biodiversidade brasileira. Veja-se que

202
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Ao proclamar sua independência de Portugal em 1822, o Brasil herdou uma tradição cívica pouco
encorajadora. Em três séculos de colonização (1500-1822), os portugueses tinham construído um
enorme país dotado de unidade territorial, linguística, cultural e religiosa. Mas tinham também
deixado uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e
latifundiária, um Estado absolutista. À época da independência, não havia cidadãos brasileiros, nem
pátria brasileira. A história da colonização é conhecida. [...] O efeito imediato da conquista foi a
dominação e o extermínio, pela guerra, pela escravização e pela doença, de milhões de indígenas.
O segundo tem a ver com o fato de que a conquista teve conotação comercial. A colonização foi um
empreendimento do governo colonial aliado a particulares (CARVALHO, 2002, p. 17-18).

Assim, o mito fundador traz uma série de significados destoados da realidade. Por exemplo,
aprendemos que a história da nossa nação (com exceção do mártir da independência) foi escrita sem
derramamento de sangue, que nosso território se constituiu pela bravura e grandeza do Bandeirante,
e que em se tratando da nossa terra é um dom de Deus e da natureza, e que aqui “plantando, tudo
dá”. Sabemos também que somos um povo único e formado pela mistura de três raças: os índios, os
negros e os lusitanos (CHAUÍ, 2013, p. 148).
Dessa forma, o mito fundador cujas raízes foram fincadas lá em 1500 oferece uma história de
representações da realidade que em cada momento da formação histórica são reorganizados em seus
aspectos hierárquicos e de ampliação dos seus sentidos que se somam ao significado primitivo. É
assim, que o mito fundador e, portanto, a colonização do real tem substância para se repetir e revestir
indefinidamente (CHAUÍ, 2013, p. 151-152). Ademais, necessário mencionar que a narrativa de um
passado mítico, conquistador e glorioso, com o silenciamento das violências também cometidas
neste mesmo passado, constituem uma das estratégias da política fascista (STANLEY, 2019).

2 PÓS-VERDADE E A RELATIVIZAÇÃO DA CRISE AMBIENTAL E SANITÁRIA NO BRASIL

O meio ambiente, ou, se preferir, a natureza, sempre possuiu grande importância para a história
da humanidade, é condição ontológica da existência de nossa espécie. A forma de convivência e de
utilização da natureza no decorrer dos séculos é diferente nas diversas sociedades e comunidades.
A natureza é (ou deveria ser) considerada como dotada de valor ético na relação entre humano e
sociedade. Entretanto, caminhamos há séculos em contradição entre a tentativa de manutenção ou não
interferência no equilíbrio da natureza e o desenvolvimento das sociedades modernas e ocidentais.
Mas, afinal, o que caracteriza e quais são os precedentes de uma crise ambiental? Considerando o atual
estágio do capitalismo, a concepção ainda predominante e intencional é da natureza como algo exterior ao
humano, algo que lhe foi cedido como matéria para ser dominado e explorado. Tal é a visão antropocêntrica
que os humanos desenvolveram, onde estes não se percebem mais enquanto elemento da natureza, visto
que essa também passou a ser denominada como “ambiente”, o que está ao entorno, às sobras, enquanto
o homem se cristaliza no centro de todo o domínio das esferas da sociedade (SCHONARDIE, 2020, p. 135).
Infortúnio é contar com a constante regeneração do sistema capitalista e da economia de mercado
voltada para a obtenção do lucro, através da extração e exploração sem precedentes da natureza, o
que de fato transformou o período em que vivemos característico e gerido por diversas crises. A crise
política e humanitária nos atravessa, a crise sanitária causada pelo COVID-19 chegou e modificou
severamente todas as condições da vida e a crise ambiental que já não é de hoje, se manifesta como
permanente. A própria crise sanitária gerada pela pandemia do COVID-19 é resultado do desequilíbrio
da natureza provocado pela espécie humana, inclusive, conforme a Plataforma Intergovernamental sobre
Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), “existe apenas uma espécie responsável pela pandemia
do COVID-19 – os seres humanos”96. Metaforicamente, a crise ambiental parece cobrir e cegar o horizonte
pela fuligem que sobe das queimadas e dos incêndios de nossas florestas e animais. Veja-se que:

Na contemporaneidade, tem-se observado a ocorrência de inúmeros desastres ambientais


provocados pela ação antrópica, que parece preocupar-se mais com os aspectos econômicos
relacionados à lucratividade proporcionada pela apropriação e exploração dos bens e recursos

96 Disponível em: https://www.unenvironment.org/pt-br/noticias-e-reportagens/reportagem/causas-do-covid-19-incluem


-acoes-humanas-e-degradacao-ambiental. Acessado em set. 2020.

203
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

naturais; em detrimento do bem-estar e da segurança da população e das condições ambientais


necessárias à manutenção da vida em todas as suas formas (SCHONARDIE, 2020, p. 117).

Uma das características do modo de produção capitalista é a capacidade de adaptar-se durante


os séculos e, dessa forma, intensifica-se a prospecção nos ecossistemas que possuam novas fontes
de exploração para fins econômicos. No que se refere ao contexto colonial e à prática histórica
do colonialismo, Leff (2000, p. 109) adverte que “Hoje em dia avança um projeto de colonização
tecnológica mobilizada pelo processo de globalização econômica que induz formas ecologicamente
irracionais de exploração e aproveitamento dos recursos naturais”.
O cenário político brasileiro no decorrer do ano de 2020 tem se caracterizado pelo posicionamento
ativo de alguns (des) governantes que relativizam e negligenciam os dados que protagonizam a tentativa
de quantificação da crise ambiental e sanitária. A propagação de informações falsas, imprecisas ou
distorcidas tem sido constante na conjuntura política e, com efeito, gera uma situação generalizada
de “insegurança informativa”. É nesse ponto que há uma manipulação dos fatos e situações, enquanto
as mentiras fazem parte de uma bem sucedida estratégia de apelar e propagar uma visão errônea
esvaziando seu conteúdo real. A pós-verdade97 colocou em pauta um novo tipo de irracionalismo atrelado
com a negação da ciência, deturpando questões como criacionismo contra darwinismo, relatividade do
aquecimento global e tantas outras teorias conspiratórias que negam a ciência e séculos de pesquisa
científica. É a ‘verdade’ inflada pela subjetividade, mas sem sujeito algum (DUNKER, 2018, p. 11). Pois
bem. O problema da pós-verdade pode ser sintetizado da seguinte forma:

A pós-verdade não é a mesma coisa que mentira. Os políticos, afinal, mentem desde o início dos
tempos. O que a pós-verdade traz de novo não é a desonestidade dos políticos, mas a resposta
do público a isso. A indignação dá lugar à indiferença e, por fim, à convivência. Massacrado por
informações inverossímeis e contraditórias, o cidadão desiste de tentar discernir a agulha da
verdade no palheiro da mentira e passa a aceitar, ainda que sem consciência plena disso, que
tudo que resta é escolher, entre as versões e narrativas, aquela que traz segurança emocional
(D`ANCONA 2018, p. 10).

Diante da nocividade de certas postagens, o Twitter, em meio à pandemia do COVID-19, anunciou


em todo o mundo a expansão de suas regras para filtrar conteúdos que forem eventualmente contra
informações de saúde pública e possam colocar as pessoas em maior risco de transmitir COVID-19.
Nesse sentido, duas publicações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), uma que conversava com
um vendedor ambulante e outro em que visitou um supermercado foi removido pelo Twitter. Nestas
postagens Bolsonaro defendia que as pessoas voltassem ao trabalho (ignorando as autoridades
sanitárias mundiais acerca do isolamento social) e voltou a citar o medicamento hidroxicloroquina
como um tratamento para o COVID-19, embora os estudos sobre sua eficácia ainda estejam em
estágios iniciais. No dia 23 de março, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também teve
um post apagado por colocar a população em risco de contaminação e Flávio Bolsonaro, que tinha
compartilhado a postagem, também teve seu post apagado (REVISTA EXAME, 2020).
A pandemia do COVID-19 e a crise ambiental tem salientado a situação extremamente vulnerável
dos povos indígenas. São eles que apesar de viverem em comunidades que possivelmente estariam
distantes da pandemia, localizadas em pontos remotos e dispersos pelo território nacional, sofrem
com o vírus que chegou até eles através de madeireiros e garimpeiros e os atacou com força total.
Até este momento, 158 povos originários foram infectados, há mais de 33 mil casos e cerca de
830 óbitos indígenas, de acordo com os levantamentos constantemente atualizados pela Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Desde o início da pandemia, em março, quatro indígenas têm
morrido no Brasil, em média, todos os dias, sendo a maioria idosos que guardam as sabedorias de
suas respectivas etnias (AGÊNCIA SENADO, 2020).
Não obstante, com as queimadas já presentes no ano de 2019 na Amazônia, o Informe Queimadas
Trinacional (IQT) (que é uma iniciativa do Grupo de Trabalho Internacional de Proteção aos Povos Indígenas
em Situação de Isolamento e Contato Inicial GTI PIACI) surge da necessidade de quantificar e qualificar os

97 Segundo o dicionário Oxford, a “pós-verdade”: é um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais
fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

efeitos das queimadas sobre os PIA98 na Bolívia, no Brasil e no Paraguai. Estes são os países que apresen-
taram altos índices de queimadas em 2019, quando comparados com o histórico dos anos anteriores.
A partir dos três Informes Queimadas Locais (IQLs), elaborados por organizações indígenas e aliadas da
Bolívia, Brasil e Paraguai, foram sistematizadas informações, tendo como base uma metodologia pactuada
a priori. A leitura indispensável e complementar de cada um desses informes apresenta dados criteriosos
sobre desmatamentos e focos de calor que incidiram sobre os territórios com registros de PIA (IQT, 2020).
A disseminação de notícias falsas e a relativização da crise ambiental feita através dos discursos
dos atuais (des) governantes não se limitaram às redes sociais como Twitter, Facebook ou Instagram,
eles foram além. Em relação à crise ambiental, Jair Bolsonaro discursou pela primeira vez na Assembleia
Geral da ONU em setembro 2019, onde respondeu às críticas internacionais face os incêndios e o
dever brasileiro de conservação ambiental, dizendo que se tratava de “mentiras” da mídia, já que
a Amazônia não estaria sendo devastada e nem sendo consumida pelo fogo (EL PAÍS, 2019). Neste
ponto, convém lembrar que “a política fascista substitui o debate fundamentado por medo e raiva”
(STANLEY, 2019, p. 66), abusando da liberdade de expressão para repetir constante e deliberadamente
diversas mentiras que fazem com que seus alvos percam sua credibilidade institucional e com que as
pessoas se voltem contra si mesmos, vez que a realidade é despedaçada.
Este ano, também em setembro, na Assembleia Geral da ONU, novamente Jair Bolsonaro voltara
a mentir deliberadamente e a distorcer os fatos quando disse que a floresta é úmida e por isso não
propagaria o fogo e que “Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno
leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência,
em áreas já desmatadas” (BBC, 2020). A narrativa de Bolsonaro está em harmonia com o que Stanley
(2019) denominara de quarta estratégia da política fascista, que consiste em disseminar e fazer com
que as pessoas acreditem em perspectivas irreais. Sobremaneira importante, atribuir aos indígenas e
caboclos a origem dos incêndios que assolam o território nacional, em especial nos biomas Pantanal
e Amazônia, é negar toda a história de luta desses povos pelo seu território e pela sua mãe-terra, é
negar a história da articulação da Aliança dos Povos da Floresta que se uniram para proteger as matas
(SANTILLI, 2005). Além disso, tal narrativa também foi desmentida pelo relatório do IPAM (Instituto
de Pesquisa Ambiental da Amazônia), onde os dados técnicos indicam que 34% dos focos de calor
registrados de 2019 a 2020 vieram de focos e áreas recém-desmatadas, 36% com o objetivo de
manejo agropecuário e 30% são relativos a incêndios nessas áreas florestais (IPAM, 2020)99.
O último discurso de Bolsonaro salienta a visão do mito fundador e distorce a realidade quando
diz que o caboclo e o índio queimam as florestas em busca de sobrevivência, quando é a própria
floresta sua casa e seu templo. Esse sentido de narrativa se repete desde a fundação, onde o indígena
e os povos originários são deslocados para o espectro de inimigos ou preguiçosos, com a consequente
e histórica negação de seus direitos. Assim, o discurso e a representação agravam a indiferença e
neutralizam os direitos dos povos indígenas e a soberania destes em seus territórios.
Nesse sentido, a Pós-verdade (D`ANCONA 2018), onde fatos objetivos têm menos influência em
moldar a opinião pública do que apelos à emoção e às crenças pessoais, afeta gravemente a crise am-
biental e sanitária que colocou o Brasil sob os holofotes das principais mídias internacionais e da política
internacional. Sobretudo quando se tem em perspectiva os tratados internacionais100 dos quais o Brasil é

98 Sigla para Povos Indígenas em situação de Isolamento


99 A nota técnica do IPAM traz os seguintes dados acerca da intencionalidade das queimadas. O fogo de desmatamento representa o
último estágio do processo de desmatamento propriamente dito, ele começa com a derrubada da floresta e passa pelo tempo de es-
pera para que essa biomassa seque o suficiente para queimar. Uma vez queimada, folhas, galhões e troncos das árvores derrubados
viram cinzas, permitindo a implantação de uma área de pasto ou de cultivos agrícolas. Já o fogo de manejo de pastagem ou áreas
agrícolas é uma prática utilizada pelos produtores da Amazônia e de outros biomas para tratamento de suas áreas agropecuárias já
estabelecidas. Nas pastagens, a queima atua como uma ferramenta de “manutenção” e renovação do pasto e eliminação do excesso
de pragas em gramíneas exóticas, devido a maior resistência dessas gramíneas ao fogo comprovando a intencionalidade da ação, e
são diretamente associados à abertura de novas áreas e à derrubada da floresta, o que reforça a necessidade de combater o desma-
tamento e investir em novas técnicas para melhor aproveitamento das áreas já abertas para controlar o fogo. Os incêndios florestais,
que representam o fogo que escapa das queimadas em áreas recém-desmatadas e das áreas agropecuárias já estabelecidas, ou
que criminosamente é colocado para degradar as florestas, normalmente é menos frequente na região por conta da resistência da
floresta em pé ao fogo. Entretanto, essa resistência tem sido quebrada pelo efeito de borda, decorrentes da fragmentação gerada
pelo desmatamento, pela exploração madeireira e pelos eventos de seca severa (IPAM, 2020).
100 Veja-se à título de exemplo a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, na qual foi decretado o Proto-
colo de Kyoto, no Japão, e estabeleceu metas de redução de gases poluentes, bem como a Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio + 20).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

signatário e assume o compromisso global tanto de proteger o equilíbrio da natureza quanto de reduzir
as emissões de CO2 para evitar o aquecimento global. Nesse contexto, diante do descaso do atual go-
verno brasileiro aos compromissos ambientais, a política e a economia internacional sinalizam mudanças
econômicas que poderão comprometer a qualidade de vida de grande parcela da população brasileira.
Portanto, no atual contexto de crise ambiental e sanitária que ocorre simultaneamente com outros de-
safios da sociedade contemporânea, a Pós-verdade (D`ANCONA 2018) torna-se um problema a mais para o
enfrentamento dessas crises, assim como apresenta elementos que são correspondentes à política fascista,
como as estratégias de construir a ideia e o sentimento de um passado mítico e a de disseminar e fazer com
que as pessoas acreditem em perspectivas irreais baseadas em teorias conspiratórias (STANLEY, 2019).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da reflexão crítica objetivou-se analisar a pós-verdade e sua implicação para a crise
ambiental e sanitária, que ocorre dentro de outra crise, a política. O Brasil se encontra em um contexto
extremamente desafiador e complexo, mas cuja solução é do interesse de todas cidadãs e cidadãos. A
despeito de a crise ambiental ter-se iniciado primeiramente, e que, como visto, gerou um desequilíbrio
que ocasionou a pandemia do COVID-19, levando à uma crise sanitária, o governo brasileiro não
melhorou em construir e propor planejamento e soluções. Pelo contrário, a Pós-verdade pode ser
considerada como uma marca do atual cenário político.
Inicialmente, foi apresentado na discussão a ideia do mito fundador, uma categoria elaborada
para designar as amarras coloniais que seguem presentes no Brasil através de discursos, simbologias,
narrativas e representações da realidade. Viu-se que o homem brasileiro não é aquele cordial, mas sim
aquele que submete e explora tanto a natureza quanto os povos originários, estando presentes na
cultura e nas relações assimétricas da sociabilidade brasileira. A simbologia que contém a bandeira
brasileira reflete um mito que destoa da realidade de desmatamento, queimadas e vulnerabilidade
extrema dos povos indígenas em meio à crise sanitária e política.
Alertamos para a continuidade dessas representações distorcidas a partir do fator que toma
preponderância no momento atual: a Pós-Verdade que através das redes sociais e além delas toma
corpo e denomina representações que são fiéis ao mito fundador. Foi visto que a retórica do atual
governo executivo brasileiro distorce a realidade ao colocar a culpa nos “caboclos” e “índios” pelos
incêndios que assolam o Pantanal e a Amazônia, mostrando desconhecimento e desprezo por esses
povos. A falácia desse discurso é visível quando há uma manipulação dos fatos e situações e quando
as mentiras fazem parte de uma bem sucedida estratégia de apelar para uma visão baseada em fatos
irreais, excedendo os significados e esvaziando seu conteúdo real.
Em resposta ao problema de pesquisa apresentado, sobre qual é a implicação da Pós-Verdade e a
relativização dos fatos em meio à crise ambiental e sanitária no Brasil, concluiu-se que a Pós-Verdade tem
prejudicado as relações entre a sociedade civil e sua representatividade governamental, bem como tem
agravado sobremaneira a crise sanitária e ambiental, mostrando-se, portanto, nociva. A Pós-verdade tam-
bém é utilizada para distorcer as próprias (des) medidas que o Estado tomou lá no começo da pandemia
quando trataram de relativizar e menosprezar a gravidade da pandemia, com campanhas como “O Brasil
não pode parar”, e a constante indicação de medicamento não comprovado cientificamente como eficaz.
E sobre a crise ambiental, próprio Estado (mais uma vez) luta contra a regularização de entidades que
possam de alguma forma responsabilizar os crimes ambientais, surgindo o ato e consequência de ignorar
que os povos indígenas sofrem os efeitos imediatos e mais necessários de urgência (visto que a natureza
é sua maior razão de ser, o que lhe dá sentido e que condiciona seus conhecimentos, valores e crenças).

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207
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFUGIADOS DO CLIMA:
PARADOXOS ENTRE A JUSTIÇA LEGAL E A JUSTIÇA SOCIAL

Adrieli Laís Antunes Aquino101


Fernanda Cristina Savela Vieira102

RESUMO: Este trabalho analisa a justiça social perante as relações de acolhimento para com os
refugiados ambientais, tendo como objetivos executar uma análise teórica sobre alguns paradoxos
que os refugiados ambientais vivem, especificamente a pobreza, falta de proteção específica legal e o
preconceito advindo da sua condição, pelos residentes dos países acolhedores. Tais objetivos do texto
em óbice foram alcançados a partir da pesquisa de caráter exploratório, por meio de análise documental,
revisão bibliográfica, utilizando a busca na rede mundial de computadores e livros, a fim de apresentar
argumentos que contemplem uma base teórica condizente com a realidade contemporânea. Tendo como
principais conclusões que, a proteção legal precisa ser expressa e, a justiça social será consequência da
conscientização cidadã, para que as ações saiam dos planos teóricos.

Palavras- chave: Direito; Meio Ambiente; Justiça Social.

INTRODUÇÃO

O propósito contido nesse texto é executar uma análise teórica sobre alguns paradoxos que
os refugiados ambientais vivem, especificamente a pobreza, falta de proteção específica legal e o
preconceito advindo da sua condição, pelos residentes dos países acolhedores.
É necessária a compreensão de que os refugiados ambientais são um crescente contingente
de seres humanos que precisam dos seus direitos humanos garantidos e, merecem de igual forma
aos cidadão que não possuem a necessidade de fugir de seu país natal. A dignidade tão aclamada
e expressada nos diversos tratados de direitos humanos e sociais carece de aplicação e empirismo.
Como brilhantemente Aristóteles compreende a ética, no princípio do alcance à felicidade, na
delimitação de como se alcança a felicidade e como se vive nela, que a ética é a disciplina da filosofia
que orienta a conduta humana para que a partir dela, o seu humano saiba ser feliz. (SOARES, 2010, p.88)
O modelo capitalista neoliberal da economia atual não permite essa permeabilidade entre
desenvolvimento econômico e desenvolvimento sustentável, a medida em que a lógica de mercado
e as privatizações. Tendo em vista a lógica neoliberal de produção e consumo, a obtenção do lucro e
produção intensa fomenta desigualdades e preconceitos.
Retiram poder-dever do Estado para com o meio ambiente, a economia, o trabalho, entre outros
temas e, assim, abalam a qualidade de vida dos seres humanos, na medida em que seus direitos
fundamentais são afetados gravemente, muitas vezes, sem a possibilidade refazerem-se, como os
refugiados ambientais.
Os casos como os da Síria, do Haiti, da Palestina e outros Estados, que foram afetados advindos
das mudanças climáticas, explicitam a necessidade de um debate sério no âmbito internacional, de
modo que os países passem a assumir uma responsabilidade compartilhada na busca de uma solução
para aos refugiados ambientais.
Tais objetivos foram alcançados a partir da pesquisa de caráter exploratório, por meio de análise
documental, revisão bibliográfica, utilizando a busca na rede mundial de computadores e livros, a fim de

101 Mestranda em Direitos Humanos na UNIJUI, Bacharela em Direito pela UNIJUI, integrante do Grupo de Pesquisas: “Direitos
Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade (UNIJUI – CNPQ), e-mail: adri-l-@hotmail.com;
102 Mestranda em Direitos Humanos na UNIJUI, Bacharela em Direito pela UNIJUI, integrante do Grupo de Pesquisas: “Direitos
Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade (UNIJUI – CNPQ), e-mail: fernandacristina.savela@hotmail.com.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

apresentar argumentos que contemplem uma base teórica condizente com a realidade contemporânea.
Inicialmente, uma abordagem da conceitual dos refugiados com ênfase no surgimento dos
refugiados ambientais, em seguida análise sobre a carência de proteção legal dos mesmos, após, uma
exposição sobre os paradoxos da ética na justiça legal e social para com os refugiados ambientais, e,
o preconceito nos países de acolhida.

1 REFUGIADOS CLIMÁTICOS

O afastamento entre relações dos seres humanos e a natureza (meio ambiente natural) e,
consequente degradação ambiental remonta a um período antigo, de acordo com Bastos, o ser
humano tem transformado a natureza desde a sua origem, apenas por existir, a atuação do homem já
acarreta efeitos sobre qualquer ecossistema que o abrigue. (BASTOS, 2006, p.08)
Isso é, a ação dos seres humanos influencia o ambiente ao ponto de causar mudanças que
prejudicam intensamente a qualidade de vida de todos os sistemas vivos. Bem como, geram situações
de perigo, diminuição da qualidade de vida e, ambientes insalubres aos seres humanos.
Pode-se afirmar o sistema capitalista impõe condutas não ecológicas na produção e comercialização
de seus serviços, as catástrofes ambientais estão ocorrendo majoritariamente pelas ações antrópicas.
Os seres humanos influenciam diretamente nas mudanças climáticas e, consequentes degelos
nos polos árticos, aumento do nível do mar, aumento da temperatura média do planeta e demais
consequências na qualidade de vida de todos os sistemas vivos.
A vida no Planeta Terra está prejudicada, as alterações ambientais impactam diretamente na
capacidade resiliente dos biomas. Resultante da poluição desenfreada e falta de ética ambiental, surgem
conflitos pelos recursos, tolhendo ainda mais os direitos daqueles em situação de vulnerabilidade social.
Perante a atual situação ambiental, surge um grupo de pessoas que necessita sair de onde
vivem, em função de impossibilidade de manterem-se no ambiente onde mantém sua vida. Exemplos
são os casos de catástrofes naturais, como furacões e terremotos, onde cidades se tornam inóspitas
e, sem condições de manter a sociedade.
São os denominados refugiado ambientais ou climáticos, um grupo de refugiados que, antes
sem denominação específica, acabam por discriminados e em um limbo de significados, pois,
historicamente o termo refugiado identifica indivíduos que fogem de situações de guerra.

Nesse sentido, parece evidente que, dentre as inúmeras dimensões a serem consideradas em um
contexto de drásticas mudanças do ambiente natural, encontra-se a dimensão humana, uma vez
que os deslocamentos populacionais forçados motivados por causas ambientais demandam uma
atenção não menos cuidadosa que o aspecto econômico, político e sociocultural da degradação
ambiental global. (RAMOS, 2011, p. 19)

Tais deslocamentos demandam análises globais para compreender a necessidade dos refugiados
em uma perspectiva justa e, ainda, de modo a não fomentar xenofobia e discriminações por parte dos
indivíduos nos países que recebem os refugiados.

Mesmo diante da relevância e da urgência da problemática do refugiado ambiental, muito pouco


tem sido feito pelos Estados e pela Organização das Nações Unidas para solucionar tal questão.
O tema tem ficado restrito às discussões acadêmicas, não tendo sido editada nenhuma norma de
caráter internacional com o fito de ampliar o conceito tradicional de refugiados. (MONT’ALVERNE,
PEREIRA, 2012, p. 48)

Denota-se que, a premência do tema em questão é forte, pois os refugiados ambientais estão em
crescente número devido à instabilidade do clima, bem como das injustiças sociais sofridas que por
aqueles que já possuem asilo. Além de que, sofrem duplamente, devido a vulnerabilidade econômica
e preconceitos sociais xenófobos por parte da população dos países acolhedores.

209
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2 CARÊNCIA PROTETIVA EM CASOS DE CATÁSTROFES

O direito ambiental é um tema que surge, inicialmente, pela necessidade de amparar a proteção
ambiental e, instituir o meio ambiente como um direito a todos. A proteção ecológica pode ser conceituada
como a ciência que investiga as relações entre os organismos vivos e o ambiente que se inserem.
O principal objetivo da ecologia é manter o meio ambiente ecologicamente equilibrado, de
modo a atenuar as intempéries das ações humanas sobre a natureza, numa tentativa de manutenção
pacífica entre os habitats naturais e modificados.
No Brasil, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é tido como um direito
fundamental, elencado na Constituição Federal de 1988. Tal direito é expressado de modo muito claro,
sendo direito de todos e, ao mesmo tempo, dever de todos, contribuir para a preservação ambiental.
In verbis:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988)

Portanto, o zelo com a natureza é expressado na legislação brasileira, em relação aos crimes
ambientais, na Lei nº 9.605, de 12 de Fevereiro de 1998 se encontram as sanções penais e
administrativas referente às condutas lesivas ao meio ambiente. O crime mais recorrente em âmbito
global e local é a poluição.
A responsabilidade civil ambiental significa que quem lesar o meio ambiente tem o dever jurídico
de repará-lo, contudo a jurisprudência denota que os caminhos da responsabilidade ambiental estão
indo para a esfera da compensação apenas, e deixando de lado a prevenção do dano.
O bem jurídico afetado transcende a esfera dos atingidos momentaneamente pelo ilícito, pois as
futuras gerações podem ser prejudicadas também pelos danos cometidos à natureza, em longo prazo
não se pode determinar com certeza quem seriam os ofendidos, por tal motivo, a responsabilidade civil
ambiental possui o escopo de proteção e reparação dos danos ambientais, que são considerados coletivos.
Os crimes de poluição podem ser contra a fauna, contra a flora, contra o patrimônio cultural,
crimes de poluição sonora, e também contra o patrimônio natural.
Conforme o artigo 54 da lei: “Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que
resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais
ou a destruição significativa da flora.” (BRASIL, 1988)
Também, o exemplo de proteção extraordinária do Art. 1º do Decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010:
“O Poder Executivo federal apoiará, de forma complementar, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
em situação de emergência ou estado de calamidade pública, provocados por desastres.” (BRASIL, 2010)
Dito isto, é imperioso que haja em aspecto jurídico e governamental o resguardo aos cidadãos
para o caso de catástrofes ambientais, sejam elas causadas pelas ações humanas ou próprias da
natureza. Até porque, atualmente o mundo é sujeito a existência de desastres ambientais em maior
intensidade e quantidade.

Em 2005, a Universidade das Nações Unidas divulgou um relatório com números alarmantes acerca
da quantidade de pessoas desalojadas de seu local de origem em razão de desastres ambientais; a
previsão era de que até 2010 o mundo tivesse mais de 50 milhões de refugiados ambientais. Ocorre
que, apesar de crescente o número de migrantes ecológicos, não há, até o momento, regulamentação
internacional apta a tratar desta situação. (MONT’ALVERNE, PEREIRA, 2012, p.46)

Tal como aduzem os autores Mont’Alverne e Pereira, é crescente o número de catástrofes


ambientais e, por consequência, de refugiados do clima e, pessoas que necessitam de proteção social
para arcarem com o danos sofridos em razão de tais atos de força maior.
A regulamentação da proteção social normalmente se dá em meio jurídico, por força inicial dos
organismos internacionais de proteção aos direitos humanos, geralmente.

(...) relatório elaborado pelo Conselho Consultivo Alemão sobre Mudança Global (German
Advisory Council on Global Change) identifica as seguintes ameaças à estabilidade e à segurança
internacional resultante das mudanças climáticas: possível aumento de Estados fracos e frágeis;

210
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

os riscos para o desenvolvimento econômico global; os riscos de crescimento de conflitos


internacionais entre os principais impulsionadores da mudança climática e os mais afetados; o
risco para os direitos humanos e para a legitimidade dos países industrializados como atores de
governança global; o desencadeamento e intensificação da migração e o alargamento forçado da
política de segurança clássica. (RAMOS, 2011, p.41)

Cabe ressaltar que, os conflitos sociais e globais que os países enfrentam são densos e
numerosos, acabam mitigando os direitos humanos e a justiça social em tais locais. Necessário aporte
mais específico legal para garantir os mínimos direitos humanos ao contingente humanos vulnerável.
Nas zonas ambientalmente fragilizadas, as políticas públicas enfatizando a importância dos direitos
humanos para todos os seres humanos, validam o direito e a realidade dos refugiados ambientais.

3 ACOLHIMENTO X APOROFOBIA

Não é mais admissível que diante da atual realidade social e ambiental, os refugiados ambientais
sejam ainda considerados como sem pátria, direitos e, relegados a classificação geral de refugiados.
Essencial o entendimento que tais refugiados compreendem uma nova classe e precisam ser
inserido no ordenamento jurídico internacional e tratados com respeito às suas peculiaridades.

Apesar dos dados alarmantes, essa categoria de refugiados permanece sem o devido reconhecimento
pelo Direito Internacional, já que não está compreendida no conceito tradicional de refugiado da
Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, celebrada em Genebra de 1951,
nem no respectivo Protocolo de 1967, relativo ao Estatuto dos Refugiados. (RAMOS, 2011, p.22)

O Direito Internacional, detém o papel de promover e inserir nos contextos estatais as normas
gerais que exemplificam em âmbito interno dos países, o direito dos refugiados ambientais.
Ainda há que se estudar e qualificar mais o direito para esse nicho de cidadãos, tendo em vista
a não normatização expressa nos tratados e estatutos internacionais.

Essencial, para tanto, que os Estados de origem, bem como os que recebem fluxos de refugiados,
conscientizem-se da necessidade humanitária de proteção e acolhida, reconhecendo a
universalidade e o grave problema dos refugiados no mundo. Somente assim, talvez, o DIR possa
cumprir, um dia, sua máxima finalidade que é a de buscar soluções permanentes para o problema
dos refugiados, mediante repatriação ou reassentamento destas pessoas em novos locais de
residência. (PEREIRA, 2009, p.41)

A ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) tem documentos e orientações para a acolhida e
manutenção dos refugiados no países em que se instalam (que os acolhem). Em meados de setembro
de 2016, a Assembleia Geral das Nações Unidas firmou importantes compromissos para promover a
proteção jurídica-social dos refugiados.

Os Estados reafirmam a importância de aderir ao regime internacional de proteção (a Convenção de


1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo de 1967, bem como a lei internacional dos
direitos humanos e a lei humanitária internacional). Os Estados reconhecem especificamente que a
proteção de refugiados e a assistência às comunidades de acolhimento são uma responsabilidade
internacional compartilhada. Os Estados se comprometem a fortalecer e facilitar respostas de
emergência bem financiadas, além de abordagens sustentáveis para uma transição suave que
invistam na resiliência de refugiados e comunidades locais. Os Estados se comprometem a fornecer
financiamento humanitário adicional e previsível, além de apoio para o desenvolvimento. Os
Estados se comprometem com mais mecanismos para que os refugiados sejam admitidos em países
terceiros, inclusive por meio de uma ampliação de programar de reassentamento. Os Estados se
comprometem a apoiar respostas abrangentes para fluxos em grande escala de refugiados, incluindo
situações prolongadas, engajando todas as partes interessadas. Os Estados se comprometem a
trabalhar para a adoção de um pacto global sobre os refugiados em 2018. (ACNUR, Brasil)

Cabe ressaltar que, tais metas englobam sim, todos os segmentos de refugiados, tanto de guerra,
quanto ambientais, ocorre que, com a falta de tal previsão expressa, muitos países se negam a receber essas
pessoas. E, os mecanismos de ação humanitária e acolhedora restam falhos na perspectiva da justiça.

211
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Normalmente, tal qual o caráter de fuga dos refugiados, a situação econômica dos mesmos
é hipossuficiente, para não referir como miserável, pois viajam às suas expensas para outro país
quando não há mais formas de subsistência no seu território natal.
Além das dificuldades normais encontradas pelos refugiados, de adaptação à nova cultura do
país que chegam, procura por emprego e moradia, além da busca em estarem legalizados, buscando
a cidadania no local de acolhida, há a discriminação denominada “aporofobia”.

Sem dúvida, há xenofobia e racismo, desconfiança contra o estrangeiro, contra pessoas de outra
raça, etnia e cultura, prevenção contra os diferentes. Infelizmente a realidade é mais do que
comprovada com dados. Já que a misoginia existe, Cristianofobia, islamofobia ou homofobia.
Embora algumas pessoas se queixem de na vida comum falamos excessivamente sobre fobias,
a verdade é que, infelizmente, eles existem, são patologias sociais e requerem diagnóstico e
terapia. Por que acabar com isso fobias é uma exigência de respeito, não de “dignidade humana”,
que é uma abstração sem rosto visível, mas para pessoas específicas, que são aquelas que têm
dignidade, e não uma preço simples. (CORTINA, 2017, p.06)

A aporofobia consiste na discriminação e preconceito para com as pessoas pobres, e, no caso


em tela, é fortemente vislumbrada perante os refugiados ambientais.
Sobre tal situação, tem a questão da recepção dos residentes dos países acolhedores, pois, não
bastam boas políticas públicas, é necessária a noção humanitária de justiça e solidariedade nos indivíduos.
Verifica-se que a maior parte da população dos países que recebem os refugiados ambientais,
tem um duplo preconceito, inicialmente por não serem contextualizados expressamente nos tratados,
como os de guerra estão, e, principalmente pelo fato da pobreza dos mesmos.

Esta situación de indefensión y vulnerabilidad es ya en sí misma un resultado de la aporofobia,


de la actitud de desprecio al pobre, de desatención generalizada. Pero, además, como todas las
actitudes, en determinadas condiciones puede llevar a cometer delitos por acción, y no sólo por
omisión; en este caso, contra las personas en situación de exclusión, o en riesgo de exclusión.
Estos delitos reciben hoy en día un nombre muy significativo, y es el de delitos de odio (hate
crimes). (CORTINA, 2017, p.19)

A autora supracitada, Adela Cortina, tem um entendimento sobre o preconceito aos pobres,
criou o termo “aporofobia” para identificá-lo e dar materialidade para o que ocorre. A vulnerabilidade
dos refugiados contrasta com a gama de direitos a eles teoricamente diligenciados.
Para que a justiça legal, o alcance das leis se aproxime da realidade do plano teórico, é
necessário uma espécie de conscientização populacional, a criação de uma ética geral que possibilite
a visão positiva do refugiado ambiental no país que o acolhe.
Pois, tais discursos de ódio não podem permanecer férteis na sociedade, a xenofobia, aversão
extremo no exterior, a homofobia, ódio de pessoas homossexuais, bem como a aversão a pessoas de
qualquer religião.
Mas, principalmente, aos mais vulneráveis, os discursos de ódio aporófobos devem acabar, e
os direitos humanos vigorarem efetivamente, para todos os seres humanos. (CORTINA, 2017, p. 20)
Tal como o entendimento de Aristóteles, que não basta saber o caminho para a felicidade, pois
no aspecto moral, além das virtudes, há os hábitos, sendo necessário estabelecer um critério de
conduta. Nas palavras de Soares, a virtude será o meio-termo em cada ação, entre o excesso e a falta,
sendo esta uma forma de excelência a ser valorizada. (SOARES, 2010, p. 89)
É outro paradoxo a ser refletido para a evolução da sociedade com justiça para as pessoas, ainda
mais para os que foram tolhidos de seus anseios e local de vida, por motivos de força maior.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando a questão inicial do texto, sobre os paradoxos que estão inerentes aos refugiados
ambientais atualmente, a pobreza é um fato geral entre os referidos, pois ao chegarem no país
acolhedor necessitam de suporte, econômico e social, em sua grande maioria.
Os danos causados ao meio ambiente em geral encontram grande dificuldade de serem

212
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

reparados, podem ser plantadas árvores no intuito de reanimar o ecossistema que sofreu a conduta
lesiva, atualmente a crise ambiental está intensa e, os resultados se demonstram no aumento das
catástrofes e, as pessoas que necessitam de asilo, os denominados refugiados ambientais.
Tendo em vista que ninguém está a salvo dos efeitos da poluição e degradação ambiental, a
proteção legal é imprescindível para manter a dignidade na vida dessas pessoas.
A falta de proteção específica legal é uma mazela intrínseca na recepção aos refugiados ambientais,
de certo modo, pode ser vista como um desleixo dos organismos internacionais e nacionais, que
deixam de legislar e promover a inserção desta nova categoria de refugiados.
Cabe ressaltar que, nos dias de hoje o número de refugiados do clima são extremamente
maiores que os refugiados de guerra, pois as catástrofes ambientais estão ocorrendo com muito mais
frequência que os conflitos armados.
Tendo muito preconceito advindo da sua condição, pelos residentes dos países acolhedores, é
necessário frisar que ocorrem por dois grandes motivos, a xenofobia de praxe, que gera os entendimentos
errôneos que o estrangeiro vem para usurpar os empregos e abusar dos direitos dos cidadãos.
A aporofobia, termo cunhado pela pesquisadora da área, Adela Cortina, que refere-se ao
preconceito e fobias das pessoas pobres. É importante que o refugiado ambiental deixe de carregar
as duas marcas, de estrangeiro e pobre, para viver dignamente.
O refugiado ambiental necessita que os seus direitos sejam além de esclarecidos e expressos,
cumpridos.
Pois, a partir do momento que a proteção legal seja expressa, os cidadãos tenham tal ética de
empatia, a justiça social fica mais próxima da legal, e a teoria não se afasta tanto dos planos dos
fatos, que é a maior intempérie atual.
Portanto, para atingir os resultados esperados das políticas de acolhida aos refugiados, de forma
que a crise ambiental não os prejudique ainda mais, em sua situação vulnerável, é imprescindível uma
ampla consciência de justiça social nos cidadãos.

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213
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

conceito de “refugiado ambiental”. Belo Horizonte, 2009. 171f. Dissertação apresentada ao


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Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito
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Acesso em Fevereiro, 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

RELACIONES ENTRE EL COVID-19, LOS DERECHOS DE LA


NATURALEZA, LOS DERECHOS HUMANOS Y LA CIUDADANÍA

Mariela P. A. Báez103
Daniel Rubens Cenci104

RESUMEN: Hay varias vertientes que buscan explicar el surgimiento de la Covid 19 y su conversión
em Pandemia. La reproducción del capital cambia las condiciones medioambientales causando
consecuencias involuntarias, sumadas a las fuerzas evolutivas autónomas que en forma permanente
modifican las condiciones del ambiente, por lo que se concluye que, desde esta visión, ningún
desastre es puramente natural. A través de un estudio teórico, la investigación busca comprender los
orígenes del covid 19 como un problema socioambiental, y sus impactos en la salud. Los resultados
siguen adversos y el debate con expresiva contaminación política de las miradas. Esperase contribuir
para aclarar resultados parciales de las políticas locales e globales, y la contribución de la dimensión
naturaleza y ambiente, frente a los intereses de la economía y de la ciudadanía.

Palabras-Clave: Ciudadanía. Decrecimiento. Latinoamérica. Naturaleza. Sustentabilidad.

INTRODUCIÓN

Según David Harvey, Profesor de Antropología y geografía de la Universidad de Nueva York, la


reproducción del capital, cambia las condiciones medioambientales causando consecuencias involuntarias,
sumadas a las fuerzas evolutivas autónomas que en forma permanente modifican las condiciones del
ambiente, por lo que concluye que, desde esta visión, ningún desastre es puramente natural.
Si bien los virus mutan continuamente, sostiene que cuando se vuelven una amenaza para la
vida, se relacionan a acciones humanas.
En el mismo sentido, Edgar Espinoza-Cisneros, profesor de la Universidad de Costa Rica, afirma
que las alteraciones ambientales exacerbadas y manifestadas como la “Gran Aceleración”, que comienza
en el siglo XX, han sido agravadas por las presiones antropogénicas al punto de comprometer la
capacidad funcional de los sistemas de soporte de vida planetarios, lo que facilitó el surgimiento y
alcance de enfermedades sin precedentes.
Estas presiones como el cambio climático antropogénico y en el uso de la tierra, la intensificación
de los sistemas agrícolas, la producción industrial animal, la destrucción de la biodiversidad, etc.,
están ligadas a la aparición de virus como el Ebola y el Sars.
En cifras comenta Espinoza-Cisneros, los cambios ambientales aumentan en un 83% el riesgo
de brote de las enfermedades más importantes, registradas por la Organización Mundial de la Salud.
Harvey, sostiene que los cambios medioambientales favorecen las probabilidades de mutación de los
virus, y que no es extraño que los sistemas de alimentación intensivos en zonas subtropicales húmedas,
contribuyan a aumentar el riesgo, éstos sistemas existen en China, Sur de Asia y otros lugares del mundo.
Este autor, en segundo término, menciona también, que parecería que las poblaciones con alta
densidad demográfica, son blancos favorables para estos virus.
Así como China, parece ser el lugar donde apareció el Sars, la gripe aviar y la porcina, África pudo
ser la cuna del VIH, del virus del Nilo Occidental y del Ebola, etc. como ejemplos de lo antes dicho.

103 Lic. Mariela P. A. Báez- Doctorando en Desarrollo Sustentable e Integración. Universidad Gastón Dachary. Posadas- Misiones- Argentina.
abyaari@yahoo.com
104 Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Mestre em Direito pela
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Professor dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e
Mestrado em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade. Colaborador do Doctorando en Desarrollo Sustentable e Integración.
Universidad Gastón Dachary. Posadas – Misiones - Argentina. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça
Social e Sustentabilidade. E-mail: danielr@unijui.edu.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Sin lugar a dudas, las consecuencias económicas serían importantes, a nivel regional y a nivel
global. Teniendo en cuenta dice Harvey, que la globalización abrió la puerta a un mundo interconectado
en el que todos viajan y en el que es casi imposible, detener la propagación de enfermedades.

1 ALGUNAS REPERCUCIONES ECONOMICAS: EL PANORAMA EN AMERICA LATINA.

Cuando se conoce a nivel mundial sobre el COVID-19, expone Harvey, hubo una caída de los
mercados bursátiles que no duro más de un mes, ya que todo parecía ser una repetición del SARS, que
no tuvo repercusiones globales, por lo que se minimizó el pánico.
Pronto empezaron a circular rumores de interrupción de las cadenas de producción en Wuhan,
las devaluaciones fueron locales y no causó preocupación la caída en las demandas de consumo.
Las noticias de propagación del virus eran esporádicas, hasta que el brote se desató en Italia y
comenzó a expandirse. La caída de los mercados bursátiles, a mediados de febrero llegaba a un 30%
en todo el mundo.
En marzo de 2019, Alicia Bárcena, Secretaria Ejecutiva de la Comisión Económica para América
Latina y el Caribe (CEPAL), advertía que la pandemia por Coronavirus (COVID-19), tendría consecuencias
devastadoras sobre la economía mundial y sobre América Latina y el Caribe.
Bárcena, explicó, que la enfermedad pone en riesgo un bien público global y esencial como la
salud humana, que impactará sobre la economía mundial, afectando la oferta y la demanda, afectando
el cumplimiento de la deuda.
Comentó la funcionaria, que la región apenas creció a una tasa estimada de apenas el 0, 1%
en el 2019 y que los últimos pronósticos de diciembre de ese mismo año, preveían para el 2020 un
crecimiento del 1,3%, escenario que cambia bajo las actuales circunstancias.
Implica, según las estimaciones de la CEPAL, una contracción del -1,8% del producto bruto interno
regional y una suba del desempleo en diez puntos porcentuales.
La región, según Bárcena, será afectada a través de cinco canales:
1-Disminución de la actividad económica en carios países, socios comerciales de China (Chile,
Brasil y Perú), con lo que las exportaciones caerían hasta el 10,7% en valor.
2-Caída en la demanda de servicios de turismo, con mayor impacto en los países caribeños, en
caso de prolongación de la prohibición de viajes, la actividad sufriría una contracción del 8%,17% y
25% depende del tempo de duración de dicha prohibición.
3- Interrupción de las cadenas globales de valor, afectando principalmente a México y Brasil,
países que importan parte y bienes intermedios de China para sus sectores manufactureros.
4-Caída de los precios de los productos básicos (commodities), que afectaría a América Latina y
el Caribe, especialmente a los países del sur, exportadores de materias primas.
5-Mayor aversión al riesgo de los inversionistas y empeoramiento de las condiciones financieras
globales.
Respecto a las medidas tomadas por los gobiernos de la región, Bárcena, sostuvo que van
desde las acciones sanitarias para reducir y prevenir los contagios hasta las de contención social para
proteger a los grupos más vulnerables. Además de las medidas económicas fiscales y monetarias,
que significan aumentar el gasto social, bajar las tasas de interés, intervenir los mercados de tipo de
cambio, suspensión de cobro de créditos bancarios, líneas de crédito para el pago de salarios de las
compañías, congelamientos del recargo por no pago de servicios de agua y acciones para evitar el
desabastecimiento de bienes básicos.
Remarcó la funcionaria, el grado de importancia que tiene la “desigualdad” en un país, ya que
el impacto económico en los grupos vulnerables será mayor, cuanto más desigual sea su sociedad.
Finalizó, indicando que ningún país podrá combatir la pandemia sin la cooperación global y
regional, será necesario pensar en el multilaterismo, la integración y una mayor coordinación, siendo
prioridad de las políticas abordar la actual crisis social y de salud. La pandemia, remarcó tiene el
potencial de rearmar la globalización geopolítica, pero también, de recordar los beneficios de la
acción multilateral.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2 EFECTOS EN LA NATURALEZA, EN EL MUNDO Y EN LATINOAMERICA

Cuando hablamos de Naturaleza, debe quedar claro, que nos referimos a un todo, al Planeta Tierra,
como la gran Madre o Gaia, que contiene a todo y a todos. Los seres humanos no estamos fuera de la
Naturaleza, somos parte de ella, una especie más, en su complejo proceso evolutivo. Para abordar este
punto, en primer lugar, sentaremos nuestra base conceptual, a través de la mirada de algunos autores.
Al respecto el Dr. Javier Collado Ruano, sostiene que, en las últimas décadas, la globalización
neoliberal, viene acelerando los problemas de explotación y uso de recursos naturales al concebir
la naturaleza, como una fuente de materias primas inagotables y al servicio de los modelos de
producción y consumo capitalistas.
También, argumenta este autor, ha transformado la geografía de los ecosistemas en todo
el planeta, donde la ciudadanía de los países más pobres, se ve afectada en mayor medida por
la contaminación, la inseguridad alimentaria, la insalubridad del agua dulce, la proliferación de
enfermedades (cáncer, malaria, VIH/SIDA, etcétera), el cambio climático, el agujero en la capa de
ozono, el aumento de las temperaturas, la desertificación, el agotamiento de recursos renovables y
no renovables, la acumulación de residuos radioactivos y más.
El despilfarro del llamado Norte global, sostiene Collado-Ruano, repercute en todo el mundo,
especialmente en el Sur global, deteriorando la salud y el medio ambiente. La gran asimetría económica
que la globalización produce se traduce en una insostenibilidad planetaria que pone en riesgo la
existencia de las futuras generaciones.
Harvey, sobre este aspecto, apunta a lo que Marx denomina “sobreconsumo y consumo
demencial, lo que significa a su vez, bordear lo monstruoso y los estrambótico, la ruina”, de todo el
sistema de consumismo contemporáneo, que se revela como excesivo en todos sus aspectos y que
tiene un papel primordial en la degradación del ambiente.
Sin embargo, dice el autor, la cancelación de vuelos, las restricciones al transporte y el movimiento
de personas, han tenido un impacto positivo en la disminución de gases de efecto invernadero.
En Wuhan, igual que en muchas ciudades de Norteamérica, la calidad del aire ha mejorado,
sostiene Harvey, los lugares de ecoturismo tendrán tiempo de recuperarse de las pisadas, han vuelto
los cisnes a los canales de Venecia, habrá menos muertes en el Monte Everest.
Frenar el gusto por el exceso de consumo, dice el autor, podría ser beneficioso, relentizar la vida
diaria y las reglas de distanciamiento social, podría llevar a cambios culturales importantes.
En Latinoamérica, en forma semejante al resto del mundo, los impactos en la naturaleza
ocasionados por la pandemia, han podido percibirse de varias maneras.
En un interesante artículo, Tarazona Morales en la Revista Facultad Nacional de Agronomía de
Medellín, comenta el caso de Colombia, en el que se consumen tortugas, armadillos, lagartos, variedades
de roedores, aves, peces e insectos, que ponen en riesgo la salud humana y de los ecosistemas, ya que
la tasa de reproducción es menor a la de consumo, sumado la caza de animales silvestres.
Este autor plantea, la relación del ser humano con el entorno, especialmente, las directas e
indirecta que tenemos con los animales.
Desde que nos levantamos, comenta, para el aseo personal se usan productos testeados en
animales, probablemente, nos vestimos con atuendos y accesorios hechos con cuero o pieles animales.
Al desayunar consumimos productos de origen animal como la leche, manteca, huevos, miel, etc.
Si tenemos alguna mascota, compartimos tiempo con ella y la responsabilidad de cuidarla,
en los paseos escuchamos aves hasta en los parques urbanos y en algunos casos vemos pequeños
mamíferos, roedores, reptiles e insectos.
Si continuamos revisando nuestro día, seguramente en algún momento trabajamos con la
computadora o usamos el celular, continua el autor, muchos de los materiales usados en la fabricación
de aparatos eléctricos y electrónicos provienen de la minería, que tiene efectos directos sobre los
ecosistemas ya que afecta el agua, el aire, el suelo, deforestación, migración de especies, etc.
Las horas siguen pasando, dice el autor, y debemos tomar una pastilla. Los medicamentos en su
etapa pre clínica son probados en cobayos, conejos, ratones, perros, cerdos y monos.
En el almuerzo, encontramos más relaciones, sin duda, mucho de lo que ingerimos es de origen
animal, pero también vegetal y dependen a su vez de los animales, ya que muchas plantas necesitan

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de ellos para su polinización y producción de frutos, como las abejas, sin embargo, son más de
200.000 las especies entre vertebrados e invertebrados que se ocupan de esta tarea.
Pensemos, propone Tarazona Morales, que vamos de viaje, en el recorrido por distintos lugares
podemos encontrar ofertas de loros guacamayos, monos titíes, tortugas, iguanas, etc. a precios muy
bajos, que no representan el costo ambiental de sacar una especie de su hábitat. La mayoría de estos
animales provienen del tráfico ilegal.
El 90 % de los animales con este origen, mueren durante su captura, trasporte y venta ya que son
arrebatados siendo crías de sus madres que mueren defendiéndolos, por lo que solo el 10% llegan a ser
vendidos. Todo esto sin sumar el daño colateral causado por la desestructuración de las poblaciones
en los ecosistemas y que este animal comprado en otros hábitats se enferma y muere, o es rescatado y
termina en un zoológico o reserva, pues ya ha perdido la capacidad de retornar a la naturaleza.
Llegamos a nuestro destino turístico, dice el autor, además de los paseos, nos ofrecen cabalgatas,
fotografía y observación de aves, exhibiciones, etc. La mayor parte de estas actividades no tienen en
cuenta el bienestar de los animales, que sufren y viven para el entretenimiento humano.
Es innegable las relaciones directas e indirectas del ser humano con los animales, por lo que
las consecuencias afectan a animales humanos y ecosistemas, afirma este autor, alterando la salud
global, los órdenes y desordenes naturales y la integridad de la vida sobre el planeta.
El bienestar de los animales, tiene relación directa con el de los humanos, incluyendo la salud
argumenta, en Colombia, hace diez años se incluyó el Bienestar Animal en la formación de la Zootecnia
y en Medicina Veterinaria, siendo pionera en América Latina en abordar el tema y elaborar legislación.
Justamente, en diciembre de 2020, se había programado en Medellín, la realización del Segundo
Congreso Latinoamericano de comportamiento y Bienestar Animal ISAE 2020, que por razones del
COVID-19, se ha aplazado a 2021, donde se abriría ese espacio para discutir las relaciones éticas e
integrales entre el ser humano y los animales en todos los aspectos: animales de granja, animales
silvestres y animales de compañía, apunta el autor.
Las mascotas, generan vínculos emocionales fuertes con las personas con las cuales conviven;
después de esta cuarentena, esos compañeros quedarán nuevamente solos en las casas, tras un largo
periodo de apego al humano.
Se cuestiona Tarazona Morales ¿qué pasará por sus mentes animales? ¿qué consecuencias
negativas traerá esto para ellos?
La pandemia y la cuarentena sostiene, se presentan como terreno óptimo para la interiorización,
el análisis y la propuesta de nuevos paradigmas sobre la relación con todos los seres de la naturaleza
que incluya el bienestar global de animales, humanos y ecosistemas.
Repensar propone, en forma colectiva e individual las relaciones que a diario tenemos con los
animales, sus consecuencias negativas para ellos y el planeta, qué podemos hacer al respecto, cómo
cambiar las formas de consumo a productos con bienestar animal, que aseguren la sostenibilidad del
planeta, exigiendo como consumidores el cambio en las lógicas de producción a formas éticas e integras.
Es necesario, argumenta el autor, aumentar la conciencia de productores, estudiantes,
profesionales y sociedad en general, para generar la masa crítica que genere cambios significativos
que mejoren la relación entre humanos y animales.
Tras la pandemia, finaliza, podría estar gestándose una nueva humanidad, mucho más consciente,
de su papel en la naturaleza.

3 ALGUNAS PROPUESTAS PARA LA REFLEXION

Edgar Espinoza-Cisneros, Doctor en Geografía Ambiental de la Universidad de Costa Rica,


propone dos escenarios posibles. El primero, implicaría adoptar paradigmas de desarrollo de
crecimiento económico cero, de decrecimiento o de crecimiento “verde”, que opina, traerían muchas
controversias, a pesar de que hacen varias décadas un creciente número de académicos impulsan
enfoques cualitativos de desarrollo sustentado en el decrecimiento económico.
A pesar de los esfuerzos, los pocos logros se plasman en la inclusión de indicadores sociales
y ambientales, en los sistemas económicos y en el diseño de regulaciones normativas sobre las

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

concepciones de bienestar humano. Se pueden adicionar a ello, los movimientos ciudadanos que se
expresan a favor de modelos de decrecimiento económico.
Este autor argumenta, que la transición conllevaría la institucionalización de paradigmas que
relacionen estrechamente al bienestar humano y a la naturaleza.
Un paradigma, dice Espinosa-Cisneros, que considere los límites de soporte de vida y que
reconozca y valore la amplia gama de servicios que nos da la naturaleza, con visiones de bienestar
más multidimensionales, contemplando los distintos componentes.
En relación a la nueva “normalidad” impuesta por las medidas tomadas para prevenir el contagio
del COVID-19, como el confinamiento y el distanciamiento social, pueden servir para valorar la
recreación en la naturaleza o fortalecer el sentido de comunidad en contextos naturales, que deriven
en acciones para resguardar ecosistemas.
La pandemia, continúa Espinoza-Cisneros, puede realzar la íntima conexión entre el bienestar
humano y la naturaleza y dejar claro cómo nos afecta cuando la dañamos.
Aprovechar la agudización de la sensibilidad social y ambiental por esta pandemia, dice este
autor, será clave para canalizarla al campo político y la movilización ciudadana en acciones concretas
sobre el cambio climático.
La relación que se haga entre la crisis climática y los efectos de la pandemia, como percibir la
crisis climática donde se saturen los servicios de salud, donde hay desabastecimiento de productos
esenciales, se trastornen los servicios de transporte internacional, el flujo comercial, el turismo, etc.
podrían ayudar a dimensionar esa relación, dice el autor.
Espinoza-Cisneros, considera que los impactos sociales, económicos y ambientales de la
pandemia podrían ser vistos, como una muestra de lo que puede suceder si no se toman medidas
urgentes y contundentes para atender el cambio climático.
La sensibilización agudizada que fortalezca las voluntades políticas e individuales, debe estar
complementada con un protagonismo de las generaciones jóvenes, a favor de un mundo mejor, con
normativas y regulaciones ambientales que garanticen la protección de los ecosistemas y controle
la intrusión humana en área ecológicas claves. Además, medidas para regular la interacción entre
humanos y animales, sean domésticos o salvajes, con normativas más estrictas para la compra y
venta de animales de consumo y con rigurosas sanciones al tráfico de vida silvestre, cuestiones que
beneficiarían a la biodiversidad y a la naturaleza, apunta el autor.
El sitio de internet, Radio Mundo Real, medio de comunicación alternativo de los Amigos de la Tierra,
al servicio de movimientos sociales alrededor del mundo, también ha producido información al respeto.
Consideran que la pandemia por COVID-19, es un síntoma de los desequilibrios ambientales
producto de la visión de la naturaleza como mercancía.
La enfermedad, sostienen, no se habría propagado con esa magnitud, si no fuera por décadas de
neoliberalismo que privilegió los negocios sobre la vida, fomentando el agro-negocio y el extractivismo,
deforestando y destruyendo especialmente ecosistemas hídricos.
Sostienen, que existe numerosa evidencia, que ubica la causa estructural de la pandemia en
relación con la destrucción ambiental de los ecosistemas y la biodiversidad, vinculando explícitamente
las enfermedades zoonóticas (trasmitidas de entre animales y seres humanos a través de virus,
insectos, bacterias, hongos, etc.) y la alteración de los flujos y funciones biológicas de la Naturaleza.
Coinciden con lo que la ecologista latinoamericana Silvia Ribero, estima como las tres causas
concomitantes y complementarias que produjeron los virus infecciones y que se relacionan a la
deforestación y la destrucción y la alteración de los hábitats: 1- la cría intensiva y extensiva de
animales y el abuso de antibióticos para su crianza (aves, cerdos y vacas); 2- Monocultivos productos
de una agricultura industrial y química; 3-El crecimiento descontrolado de los centros urbanos y las
industrias que mantienen su subsistencia, informó el sitio.
Asimismo, un informe del PNUMA (Programa de Naciones Unidas para el Medio Ambiente) llamado
“Fronteras. Nuevos temas de interés ambiental”, los hábitats degradados pueden desencadenar
procesos evolutivos acelerados y diversificar enfermedades, ya que los patógenos encuentran
condiciones ideales de propagación en ambientes hacinados, tráfico ilegal de especies, incremento
de población de insectos, territorios degradados por asentamientos urbanos, etc.
En este sentido, aseguran que, a menor biodiversidad, mayor diversidad de enfermedades

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

zoonóticas. Como ejemplo, mencionan a las represas como detonantes de brotes de leishmaniasis, ya
que la deforestación extensiva e incrementación de espejos de agua estancada, genera la proliferación
de los vectores. En África, el Ebola, es otro ejemplo, con la fragmentación del bosque tropical que
produjo el hacinamiento de animales salvajes, ambiente apto para la reproducción del virus.
Concluyendo, que no es casual, que varias enfermedades zoonóticas como el Ebola, la gripe
aviar y porcina, la fiebre del Nilo Occidental y el Zika, hayan aparecido en las últimas décadas.
Por otro lado, comentan en el sitio, que sin desconocer la gravedad de la crisis producto de la
pandemia, se convierte en una situación ideal para repensar las necesarias transformaciones de la
humanidad sobre sus formas de estar en el mundo y sus relaciones con la naturaleza.
Las medidas a nivel global, tomadas para frenar el contagio, como la reducción de la movilidad
de las personas y vehículos, han mostrado un paisaje conmovedor, en diferentes lugares del planeta,
animales paseando por las calles vacías, los puertos o playas.
Existe una gran disminución de la contaminación del aire y el agua, por lo que, sin dudas, este
freno al crecimiento económico, se convirtió en una oportunidad para que los animales retomen
espacios urbanos, cuestión que demuestra que, con voluntad política, sería posible hacer frente a la
crisis planetaria, concluyen.
Asimismo, sostienen que el modo de producción-distribución-consumo impuestos a ritmos
acelerados, desembocan en una ineludible debacle ambiental.
El sistema capitalista, que privilegia el crecimiento económico, ha demostrado su fracaso histórico
para enfrentar la degradación ambiental y la pandemia. Por lo que consideran que este tiempo de
cuarentena permitiría reflexionar sobre la necesidad de reestructurar los sistemas de producción y
financieros, cambiar los patrones de consumo, simplificando los estilos de vida.
La emergencia provocada por la pandemia, demuestra que estamos ligados a la naturaleza, en
una interconexión a diferentes niveles.
Entonces, sostienen, la transformación del planeta, puede comenzar con liberarse de una visión
soberbia del mundo, con nuevos estilos de vida, reconociendo otras sensibilidades, cambiando
cotidianidades y abriendo nuevos caminos como sociedad.

4 LOS DERECHOS DE LA NATURALEZA, LOS DERECHOS HUMANOS Y LA CIUDADANIA

Acosta, en su libro “El Buen Vivir”, menciona al escritor uruguayo Eduardo Gudynas, quien sostiene
que es necesario aclarar que los derechos a un ambiente saludable, son parte de los derechos humanos,
aunque no necesariamente implican Derechos de la Naturaleza. Esta distinción dice Gudynas, es a
los fines de entender que las formulaciones clásicas de los Derechos Humanos, como el derecho a un
ambiente saludable y a calidad de vida, son esencialmente antropocéntricos y deben ser entendidos
separadamente de los Derechos de la Naturaleza.
En los Derechos Humanos, apunta Acosta, el centro está puesto en la persona. Los derechos de
primera y segunda generación, son reconocidos por los Estados como derechos del ciudadano, con
una visión individualista e individualizadora de ciudadanía.
A estos derechos, se le suman los derechos de cuarta generación, difusos y colectivos, entre
los que aparecen el derecho de las personas a gozar de condiciones sociales equitativas y un medio
ambiente saludable. Estos derechos, apuntan a evitar la pobreza y la devastación ambiental.
Acosta sostiene, que esto se asienta en una visión clásica de justicia que incorpora conceptos
como imparcialidad ante la ley y garantías ciudadanas. Cuando se habla de derechos ambientales,
dice Acosta, éstos configuran la justicia ambiental, como al hablar de derechos económicos y sociales
estos pertenecen a la justicia social.
En los Derechos de la Naturaleza, el centro está en la Naturaleza, afirma Acosta, que incluye
al ser humano, pero la Naturaleza vale por sí misma, sin importar los usos que se le atribuyan. Esta
es la visión biocéntrica. Estos derechos defienden el mantenimiento de los sistemas de vida, en su
conjunto, atendiendo a los ecosistemas, las colectividades y los individuos.
Gudynas, sostiene que los derechos de la Naturaleza, originan otra definición de ciudadanía,
construida en el ámbito social pero también en el ambiental. Son “ciudadanías”, en plural, afirma,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ya que dependen de las historias y de los ambientes, incluyendo criterios de justicia ecológica que
superan la visión tradicional. En las palabras de Gudynas se denominan “meta-ciudadanías ecológicas”.
Siguiendo al autor, en América Latina, el concepto de ciudadanía se asocia al reconocimiento de
derechos civiles, políticos y sociales y la pertenencia a una comunidad.
Sostiene, que existen tres componentes claves para analizar este tema: primeramente, la
asignación de derechos, el Estado-nación como proveedor de esos derechos y finalmente la pertenencia
a esa comunidad.
A partir de la postura clásica, de entender al ciudadano como “miembro de una comunidad
política que tiene derechos y obligaciones en virtud de su condición” referenciando al concepto
propuesto por Giddens (1989), dice el autor, surge la perspectiva ambiental como un nuevo derecho.
Desde mediados de los años 80, las reformas constitucionales, normativas e institucionales
ambientales, dieron origen en varios países de América Latina, a la aparición en sus constituciones de
los derechos de tercera generación como el derecho a un ambiente sano o a la calidad de vida.
Gudynas fundamenta, que estos cambios en las normas, legitiman una concepción de ciudadanía,
sustentada en derechos, en los que precisamente se incorporan los aspectos ambientales. Más recientemente,
se incorporarán, las iniciativas que vinculan ciudadanía y ambiente, dando nacimiento a términos como
“ciudadanía ambiental”, “ciudadanía verde”, “ciudadanía ecológica”, “ecociudadanos” o “civismo verde”.
En algunos casos, dice el autor, se usa la ciudadanía ambiental desde el ámbito gubernamental para
legitimar y presentar distintas acciones, pero también se vincula con las oportunidades y demandas
para aumentar la participación en gestión ambiental. Esto, dice Gudynas, permitió la visibilización de
muchos conflictos ambientales, en los que aparece la cuestión ciudadana y que van desde reclamos
de los afectados en el ejercicio de sus derechos ciudadanos hasta la ausencia del Estado en atender
las demandas de la sociedad civil.
En los años 80 comienza, con el proceso de redemocratización de varios países latinoamericanos,
el “retorno del ciudadano”, con un interés puesto en los derechos civiles y la necesidad de potenciar las
democracias, por un lado, y la idea de los derechos sociales que generó discusiones políticas, por el otro.
El neoliberalismo, afirma Gudynas sostenía la idea de un individualismo ciudadano frente a la
intervención estatal, en cambio las corrientes de izquierda, defendían una ciudadanía en nombre
de los derechos humanos, condiciones básicas de la calidad de vida en educación, salud, vivienda,
alimentación y demás.
Este ejercicio de la ciudadanía, explica el autor, con numerosas faltas y deficiencias, dio lugar a
los conceptos de “baja intensidad”, “subordinadas” o “incompletas”.
La dimensión ambiental ingresa en esas circunstancias en América Latina.
Gudynas, comenta que las reformas del mercado y los sucesivos gobiernos de corte neoliberal,
debilitaron la cobertura ciudadana, desembocando en “ciudadanías de baja intensidad” con debilitamiento
de los derechos humanos de tercera generación) especialmente, como también su cobertura jurídica, el
mantenimiento de sus espacios colectivos, independientes y basados en la solidaridad.
La respuesta, dice Gudynas, puede surgir del planteamiento de O’Donnell (1997), concibiendo a
la ciudadanía en forma más amplia, incluyendo el andamiaje institucional, la cobertura de derechos y
expresiones como espacios colectivos locales orientados a la solidaridad y el voluntariado.
En la ciudadanía de baja intensidad, sostiene el autor, muchos grupos no logran un trato justo e
igualitario, que permiten abusos que quedan impunes y sin castigo. Los basureros a cielo abierto en
zonas urbanas marginales, emprendimiento de alto impacto ambiental negativo, desplazamiento de
comunidades, etc., son ejemplos de este trato.

5 CONSIDERACIONES FINALES

Finalmente, como observado por Gudynas, también se observó una recuperación cultural de
la tradición indígena y campesina, particularmente en zonas andinas, donde se puede apreciar una
multiculturalidad con conceptos diferentes de la visión clásica de ciudadanía, con distintos grados de
visibilización en los juegos de poder y política.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Queda claro que ningún país podrá combatir la pandemia sin la cooperación global y regional,
será necesario pensar en nuevos modelos de multilaterismo, prioridades de la integración y una
mayor coordinación global y regional, siendo prioridad de las políticas abordar la actual crisis social
y de salud, buscando todavía, repensar los temas de ambiente y naturaleza, con otros modelos para
economía y sociedad. No se trata de hacer mas del mismo modelo que nos llevo hasta el actual
contexto. Soluciones para problemas globales nos demandan como sociedad global salidas colectivas,
conjuntas, solidarias, solamente así, podrá la comunidad internacional lograr éxito con calidad de
vida y costos compartidos.
En muchos países latinoamericanos, situaciones como esta son vistas hoy, como un denominador
común de la lucha de grupos sociales que reclaman justicia ante leyes que se quedaron plasmadas
en solo buenas intenciones.
Generar otros momentos en la región que se resiente de liderazgo, de articulación económica,
política, cultural, comunitaria, entre otras, requiere nuevas construcciones, fortaleciendo lazos
de frontera e transfronterizos, articularse desde iniciativas estudiantiles, académicas, políticas,
económicas, capaces de rediseñar las corresponsabilidades sobre los temas comunes, y bien, de
impactos colectivos que demandan respuestas conjuntas.

REFERENCIAS

COLLADO RUANO, Javier. La huella socioecológica de la globalización disponible en https://revistas.


ecosur.mx/sociedadyambiente/index.php/sya/article/download/1678/1628/.

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222
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

UM OLHAR PARA OS REFLEXOS DA DESIGUALDADE


ÉTNICO E SOCIOECONÔMICA NO BRASIL

Daiane Dias Rodrigues105

RESUMO: Objetivamos abordar a dimensão da desigualdade social a partir da letalidade da COVID


19 junto a população afrodescendente, bem como o aumento da mortalidade pelo vírus nos casos de
negros sem acesso à educação. Fundamentou-se o estudo com índices do Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística e na pesquisa feita pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – que ela-
borou a nota técnica de 11 de maio de 2020. Questões históricas e sociais permeiam essa realidade,
por isso trazemos alguns apontamentos históricos e atuais. Consideramos que as ações afirmativas
que buscam minimizar as desigualdades e ampliar as portas de oportunidades de trabalho e ensino,
quando criadas, como o processo trainee da rede varejista Magazine Luiza – que oferece vagas aos
negros – ou criadas pelo Poder Público, como a lei de acesso as quotas raciais, se tornam alvo de
grandes polêmicas chegando aos tribunais. A cor da pele, durante a pandemia, coloca uma lupa na
desigualdade racial que já era bem acentuada no Brasil – esse que ainda não tem uma política forte
evitando a desinformação e principalmente o preconceito.

Palavras-chave:  Pandemia. Brasil. Preconceito. Racismo. Educação

INTRODUÇÃO

Um acontecimento atual nos leva a refletir sobre o segregacionismo racial, trata-se da oferta de
vagas destinadas somente a afrodescendentes feita por uma das maiores redes de varejo do Brasil,
o Magazine Luiza (a proprietária está incluída na revista forbes como uma das bilionárias no topo do
ranking). Ou seja, uma das lojas mais ascendentes do país promoveu um processo seletivo para va-
gas trainees somente para não brancos. A repercussão nas redes sociais foi imediata, opiniões diver-
sas sobre o assunto dividiram a questão. Alguns leitores argumentaram que quando somente negros
são escolhidos estamos vivendo um racismo às avessas, outros dissertam que estamos incluindo uma
capitulo novo na história deste grupo - que dentro da história do país foi segregado, usado, e deter-
minado enquanto utilidade pela cor da pele.
O tema da escravidão e do negro, aspectos sociais e históricos do Brasil, sempre foi cercado de
muitas controvérsias; afinal, por que precisamos repercutir temas tão antigos e problemáticos? O des-
conhecimento da história do Brasil, da legislação brasileira, ou mesmo a desinformação massiva, em
conjunto com notícias falsas, são realidades bem conhecidas e praticadas, muitas vezes intencional-
mente, por alguns grupos. Por isso, quando uma loja renomada resolve por um grupo de pessoas não
brancas a frente de seu quadro de oportunidades de emprego, a sociedade questiona e problematiza.
A dissipação de informações na era digital é um problema que envolve temas polêmicos como o
proposto. Eventualmente optar por escolher um lado dessa discussão de forma racional e com fontes
de informações seguras, tornou-se difícil. Além da desinformação, em 2020 enfrentamos um vírus
mortal que, a nível mundial, demonstrou para todos quão acentuada ainda é a desigualdade social.
Alguns retrocessos, assim como avanços na inclusão social do negro observados a partir da aná-
lise histórica, de dados estatísticos, da análise judicial e legislativa, nos apoiam a buscar um conheci-
mento dinâmico. Observamos que não somente crescem o número de negros mortos, como também
constatamos que negros sem estudo têm mais chances de morrer em nosso país em plena pandemia
decorrente da COVID 19.

105 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional (IMED). E-mail: dai290387@hotmail.com

223
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 ASPECTOS HISTÓRICOS DE UM RACISMO ESTRUTURAL

O Brasil foi um dos últimos países da América a abolir a escravatura em 1888. A escravidão fun-
damentava a economia da colônia que, mesmo já independente, ainda era muito conservadora nesse
ponto. Segundo o historiador Boris Fausto (1999), os fatores da abolição da escravatura envolviam
basicamente os interesses dos nobres e a necessidade de mão de obra forte e acessível para fortale-
cimento da hierarquia e manutenção da superioridade dos senhores.
Assim, os movimentos negros que buscavam a libertação e que se mobilizavam neste sentido,
juntamente com a burguesia mestiça e brancos influentes da época, contribuíram para abolição da
escravatura – exemplo de influência foi Luiz Gama – filho de negra e branco. Negros eram buscados
e chegavam de navios em um país estranho, não lhe cabiam outra alternativa senão o trabalho no
campo ou na casa do senhoril. A cor da pessoa negra sempre era relacionada e associada ao sujeito
como coisa, objeto de compra e venda, objeto e instrumento de trabalho, podendo ser comprado ou
trocado, não vivia muito pelas próprias condições de vida (naquela época) e nem mesmo tinha a pos-
sibilidade de criar seus próprios filhos (custo alto para o senhoril).
A maioria dos negros que vinham para o Brasil para trabalho escravo eram homens106 jovens, logo
não havia muitas mulheres negras em terra brasilis, ocasionando o nascimento de mestiços que po-
voavam o país à medida que, dentro das condições existentes, viviam em torno de 30 anos de idade107.
A cor da pele era associada a inferioridade, ao sujeito objeto de trabalho, a exploração e ao
sentimento de desigualdade perante o branco. A história conta que mestiços e negros, não deviam
misturar-se com brancos, sendo diferenciados, inclusive, pela intensidade da cor da pele.
Com a proibição da escravidão negra, todos os negros eram livres a sua própria sorte, na práti-
ca, a maioria dos escravos recorreram ao trabalho junto aos seus senhores como única opção de vida.
Sem uma política pública naquele momento criaram-se favelas, marginalizaram-se.
Florestan Fernandes108, sociólogo, pesquisador dos grupos afro descentes no Brasil, afirma que, o pro-
blema não são os negros, mas a própria sociedade de brancos. Logo, o Brasil carrega uma história de explo-
ração negra, libertação tardia à vista de outros países, liberação de negros pouco querida – visto que foram
largados a própria sorte, sem qualquer tipo de assistência social para iniciar uma vida como homem livre.

2 CONDICIONAMENTO RACIAL E SOCIAL

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD, comprova o que ocorre no Brasil em
relação aos parâmetros étnicos socioeconômicos: brancos percebem aproximadamente R$ 2814 por
mês, pardos recebem R$ 1606, negros vivem com aproximadamente R$ 1570109. Em 2018, o estudo
desse órgão afirmou que a taxa de desemprego entre negros, 14%, era maior que a taxa geral de 11%.
Em 2015, revela a pesquisa que negros e pardos são 54% da população no Brasil, mas 75% desse gru-
po são mais carentes, 10%; pretos e pardos são 10% na taxa de analfabetismo, enquanto brancos são

106 Os africanos foram trazidos do chamado “continente negro” para o Brasil em um fluxo de intensidade variável. Os cál-
culos sobre o número de pessoas transportadas como escravos variam muito. Estima-se que entre 1550 e 1855 entraram
pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos, na sua grande maioria jovens do sexo masculino. (BORIS, 1996).
107 Sob o aspecto demográfico, embora os números apurados variem, há dados sobre a alta taxa de mortalidade dos escra-
vos negros, especialmente das crianças e dos recém-chegados, quando comparada, por exemplo, à população escrava nos
Estados Unidos. Observadores de princípios do século XIX calculavam que a população escrava declinava a uma taxa entre
5% a 8% ao ano. Dados recentes revelam que a expectativa de vida de um escravo do sexo masculino ao nascer, em 1872,
girava em torno dos 20 anos, enquanto a da população como um todo era de 27,4 anos. Por sua vez, um cativo homem
nascido nos Estados Unidos em torno de 1850 tinha uma expectativa de vida de 35,5 anos. (BORIS, 1996).
108 A integração do negro na sociedade de classes, obra de Florestan – catedrático da USP22, promove a desconstrução
do mito da democracia racial brasileira e combatendo as explicações culturalistas sobre a formação do “caráter” nacional,
demonstrando que a dita “não-integração” do negro na sociedade de classes devia-se a pauperização decorrente de sua ex-
clusão do mercado de trabalho. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4699.pdf
109 As desigualdades étnico-raciais, reveladas na breve série temporal considerada neste informativo, têm origens históricas
e são persistentes. A população de cor ou raça preta ou parda possui severas desvantagens em relação à branca, no que tange
às dimensões contempladas pelos indicadores apresentados – mercado de trabalho, distribuição de rendimento e condições de
moradia, educação, violência e representação política. No mundo do trabalho, por exemplo, a desocupação, a subutilização da
força de trabalho e a proporção de trabalhadores sem vínculos formais atingem mais fortemente a população preta ou parda.
Indicadores de rendimento confirmaram que a desigualdade se mantém independentemente do nível de instrução das pessoas
ocupadas. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf

224
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

5%. Apenas 9% de pretos e pardos têm ensino superior110.


No governo de Dilma Roussef, no ano de 2013, foi publicado um Estudo que busca dimensionar
e aprofundar os estudos relativos a pesquisas cientificas das características étnico raciais da popu-
lação. Segundo o estudo, na década de 90, a partir da Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em 2001, na África, o Brasil passou
a adotar pesquisas aprofundadas; o Instituto Nacional de Pesquisas do Brasil, tem papel primordial
para conhecimento da sistemática de exclusão de afro descentes.111
O IBGE afirma que: no âmbito do Instituto, a presente publicação significa mais um passo no
sentido de saldar a dívida histórica que ainda se tem em relação ao estudo desta temática no País. O
estudo publicado pelo IBGE, que busca informações socioeconômicas e étnico raciais explica112:

As cores, socioculturalmente politizadas, representam uma linha divisória simbólica entre os grupos
negros e brancos, uma divisão que é fundamental para a noção de território e de limite fronteiriço
no Brasil. Embora produzida e reproduzida socialmente, tal linha é reconhecida como algo natural
por parte da população brasileira que concebe a existência de um lugar de negro e de um lugar de
branco no País. Semelhante divisão pode ser observada no cotidiano, ao verificarmos que os maio-
res índices sobre pobreza, mortalidade, moradia precária ou ausência de moradia, analfabetismo,
desemprego, entre outros, pertencem aos segmentos negros (pardos e pretos) dessa população.

Em verdade, somos todos brasileiros113; mestiços, brancos, pardos, negros. A igualdade, difícil
de ser vista pelos olhos, deve ser pensada e refletida a partir da história, da vida, da humanidade,
somos todos uma raça apenas114.

3 COR E EDUCAÇÃO

3.1 Acesso às Universidades Federais e cargos público efetivos

Há aproximadamente 20 anos, os movimentos sociais negros iniciaram uma luta pela inclusão
da política afirmativa no tocante as universidades no País. As primeiras ideias iniciaram em algumas
faculdades: em Brasília e Rio De Janeiro115. Muito se discutiu na época sobre essa política, consideran-
do que as oportunidades em nada são iguais, os movimentos sociais estavam decididos a conquistar
ações concretas; instrumentos legais ainda não amparavam esse desejo e havia necessidade de uma
lei para incentivar e aumentar o número de estudantes universitários negros.
Quando determinamos que haverá números mínimos de vagas destinadas a uma população e a
uma classe de raça explorada por mais de 100 anos tentamos, em parte, diminuir está desestrutura-
ção que a história demonstra.
Os negros foram explorados como força de trabalho por longos períodos, “precisamos mudar

110 https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca
111 (Quintslr. Marcia Maria Melo. Estudos e Análises, informação demográfica e socioeconômica 2, Rio de Janeiro, 2012,
página 08. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv63405.pdf)
112 Nascimento Alessandra Santos. Fonseca Dagoberto José. Estudos e Análises, informação demográfica e socioeconômica
2, Rio de Janeiro, 2012, página 57. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv63405.pdf
113 [...] todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente
de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do
Maranhão ou do Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do
africano (FREYRE, 1987, p. 283).
114 Olhando a distribuição geográfica do Brasil e sua realidade etnográfica, percebe-se que não existe uma única cultura
branca e uma única cultura negra e que regionalmente podemos distinguir diversas culturas no Brasil. Neste sentido, os
afro-baianos produzem no campo da religiosidade, da música, da culinária, da dança, das artes plásticas, etc. uma cultura
diferente dos afromineiros, dos afro-maranhenses e dos negros cariocas. Disponível em: Munanga.Kabengele https://www.
ufmg.br/inclusaosocial/?p=59. Link. Acesso em 12 de outubro de 2020.
115 O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo – e não é de hoje. Historicamente, nosso país é marcado por grandes
desigualdades socioeconômicas e raciais, o que se deve, em partes, à falta de acesso à educação e, consequentemente, à
inserção no mercado do trabalho. (...)
Para combater essas lacunas, no início dos anos 2000 algumas universidades brasileiras implementaram políticas de ação
afirmativa. Mas o país só implementou a Lei Nacional de Cotas em 2012, exigindo que metade das vagas de graduação
seja reservada para estudantes de grupos de minorias. Disponível em https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noti-
cia/2020/01/sistema-de-cotas-de-universidades-brasileiras-e-eficiente-conclui-estudo-dos-eua.html

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

isto”, diz o Estado, o trabalho intelectual deve ser destinado também aos pretos e pobres. Com a
constatação de um problema social grave, adotamos como política pública de inclusão social dos
negros, a Lei de quotas raciais.
A Lei 12.711/12, foi sancionada pela então presidenta Dilma Roussef, a qual prevê a reserva de
50% de vagas para população de baixa renda e negra, resumidamente, entre outros incluídos como
pessoas com deficiência, após alterações feitas em 2016.
A Lei 12.990/2014 que reserva vagas para cargos efetivos no serviço público, também foi colo-
cada à prova de constitucionalidade, O Supremo Tribunal Federal no julgamento na Ação Declaratória
de Constitucionalidade 41, valida a Lei 12.990/2014, que reserva 20% das vagas oferecidas em con-
cursos públicos para provimento de cargos efetivos em setores públicos da Administração.

3.2 A constitucionalidade da lei de cotas discutida no Supremo Tribunal Federal

A Constitucionalidade da Lei 12.990/2014 foi discutida na Suprema Corte Brasileira também ao


julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 186.
Ricardo Lewandowski revelou em seu voto que 1,4% dos juízes no Brasil se declararam negros,
dados que discordavam do censo demográfico brasileiro de 2010, do IBGE, segundo o qual a popula-
ção brasileira declarou-se negra foi de 7,6%.
Para o ministro do Supremo, Marco Aurélio, uma sociedade justa e solidária repousa no trata-
mento igualitário, mas é notória a falta de oportunidade para os negros, mencionou que as estatísti-
cas são uma vergonha para o País. Celso de Mello, por sua vez, cita Luiz Gama causídico de escravos
“como tem sido longa a trajetória de luta das pessoas negras em nosso país na busca não só de sua
emancipação jurídica, como ocorreu no século XIX, mas de sua emancipação social e de sua justa,
legítima e necessária inclusão”.
Segundo o ministro, “sem se reconhecer a realidade de que a Constituição impõe ao Estado o
dever de atribuir a todos os que se situam à margem do sistema de conquistas em nosso país a con-
dição essencial de titulares do direito de serem reconhecidos como pessoas investidas de dignidade e
merecedoras do respeito social, não se tornará possível construir a igualdade nem realizar a edifica-
ção de uma sociedade justa, fraterna e solidária, frustrando assim um dos objetivos fundamentais da
República, a que alude o inciso I do artigo 3º da Carta Política”.
Carmen Lúcia, sobre ações afirmativas, como a Lei 12.990/2014, afirma “andamos bem ao tor-
nar visível o que se passa na sociedade”. Os Ministros consideraram, de acordo com a Constituição,
pois prevista no caput do artigo 5º, a igualdade.
A Corte foi unânime em declarar a constitucionalidade da norma, expressou ainda que se trata
de dever de reparação histórica decorrente da escravidão e de um racismo estrutural existente na
sociedade brasileira.

3.3 A Portaria revoga a portaria que revoga: dicotomia governamental

Em desencontro com os elementos constitucionais que reafirmam a necessidade de ações afir-


mativas para os afro descendentes, bem declaradas pela Corte Suprema, a Portaria 13 de maio, de
2016, que previa uma ação afirmativa, nesta mesma linha, nos programas de pós-graduação para
negros, foi revogado pelo então Ministro da Educação Abraham Weintraub através da portaria 545 de
junho, o mesmo mês que o ministro deixou o cargo neste ano116.
A portaria voltou a vigorar com a revogação da revogação, ou seja, a Portaria n.13/2016 foi revo-

116 PORTARIA Nº 545, DE 16 DE JUNHO DE 2020. Revoga a Portaria Normativa MEC nº 13, de 11 de maio de 2016. O MINIS-
TRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO, no uso das atribuições que lhe confere o art. 87, parágrafo único, inciso II, da Constituição,
resolve: Art. 1º Fica revogada a Portaria Normativa nº 13, de 11 de maio de 2016, do Ministério da Educação - MEC. Art. 2º
Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. ABRAHAM WEINTRAUB

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

gada a partir da portaria n. 545 deste ano e a Portaria n. 559/2020117 revoga a portaria n. 545/2020.
As discussões pela legitimidade das ações afirmativas não terminam ao passo que a sociedade
brasileira ainda não entende o sentido da Constituição quando fala em igualdade.
A portaria revogada vem sendo objeto de amplas discussões, pois nos remete a um pensamento
de retrocessão e alienação histórica nos mais altos postos do Governo atual, e nos perguntamos até
quando as políticas de governo serão políticas de Estado, sem interrupções.

3.4 O reflexo da cor na pandemia

A pandemia provocada pela COVID 19 colocou um microscópio numa condição triste no País: a
população pobre é a que mais morre no Brasil, de forma violenta, o que já sabíamos118. A população
pobre e preta do Brasil é a que mais morre no Brasil, e a que menos acesso à educação e cultura pos-
sui, conforme índices estatísticos mencionados.
No entanto, a pandemia tornou essa realidade mais cruel ainda, a pobreza, a falta de assistên-
cia médica, culmina nos seguintes dados do IBGE: 75 % dos mais pobres são pretos, são os que mais
trabalham e menos recebem e os que mais adoecem por COVID 19.
Transformações são necessárias, mudanças sérias são necessárias, pois o debate sobre a igual-
dade e suas premissas iniciais para os afros descendentes não são as mesmas premissas para os
brancos. O problema do racismo existe e é latente, está todos os dias escancarado em nossa cara,
mesmo quando não vimos. Ou não queremos ver.
Um estudo feito pela PUC-Rio torna mais lamentável a estatística e confirma com dados: quan-
to maior a escolaridade, menor a letalidade, caso o Índice de Desenvolvimento Humano seja baixo,
maior a letalidade ds Covid 19119.

117 PORTARIA Nº 559, DE 22 DE JUNHO DE 2020. Torna sem efeito a Portaria nº 545, de 16 de junho de 2020. O MINISTRO DE
ESTADO DA EDUCAÇÃO Substituto, no uso das atribuições que lhe confere o art. 87, parágrafo único, inciso II, da Constituição,
resolve: Art. 1º Tornar sem efeito a Portaria nº 545, de 16 de junho de 2020, publicada no Diário Oficial da União de 18 de junho
de 2020, Seção 1, página 33.Art. 2º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. ANTONIO PAULO VOGEL DE MEDEIROS
118 Pesquisa apresenta dados sobre violência contra negros
Alagoas, Espírito Santo e Paraíba concentram maior número de negros vítimas de homicídio. Em Alagoas, os homicídios reduziram
em quatro anos a expectativa de vida de homens negros. Entre não negros, a perda é de apenas três meses e meio. O estado nor-
destino apresentou o pior resultado entre todas as Unidades da Federação, de acordo com um estudo divulgado pelo Ipea nesta
terça-feira, 19, véspera do Dia Nacional da Consciência Negra. A Nota Técnica Vidas Perdidas e Racismo no Brasil calculou, para cada
estado do país, os impactos de mortes violentas (acidentes de trânsito, homicídio, suicídio, entre outros) na expectativa de vida de
negro e não negros, com base no Sistema de informações sobre Mortalidade (SIM/MS) e no Censo Demográfico do IBGE de 2010.
“Enquanto a simples contagem da taxa de mortos por ações violentas não leva em conta o momento em que se deu a vitimização, a
perda de expectativa de vida é tanto maior quanto mais jovem for a vítima. Em segundo lugar, a expectativa de vida ao nascer é um
dos principais indicadores associados ao desenvolvimento socioeconômico dos países”, explica o texto da pesquisa. O estudo, de
autoria do diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e Democracia (Ipea), Daniel Cerqueira, e de Rodrigo Leandro de
Moura, da Fundação Getulio Vargas (IBRE/FGV), analisou ainda em que medida as diferenças nos índices de mortes violentas podem
estar relacionadas a disparidades econômicas, demográficas, e ao racismo. De acordo com os autores, “o componente de racismo
não pode ser rejeitado para explicar o diferencial de vitimização por homicídios entre homens negros e não negros no país”. Taxa
de homicídio. Considerando apenas o universo dos indivíduos que sofreram morte violenta no país entre 1996 e 2010, consta-
tou-se que, para além das características socioeconômicas – como escolaridade, gênero, idade e estado civil –, a cor da pele da
vítima, quando preta ou parda, faz aumentar a probabilidade do mesmo ter sofrido homicídio em cerca de oito pontos percentuais.
Novamente Alagoas é o local onde a diferença entre negros e não negros é mais acentuada – a taxa de homicídio para população
negra atingiu, em 2010, 80 a cada 100 mil indivíduos. No estado, morrem assassinados 17,4 negros para cada vítima de outra cor.
Espírito Santo e Paraíba também são destaques negativos no ranking elaborado pelo Ipea, com, respectivamente, 65 e 60 homicí-
dios de negros a cada 100 mil habitantes (no Espírito Santo os assassinatos diminuem a expectativa de vida dos homens negros em
2,97 anos; na Paraíba, em 2,81 anos). “O negro é duplamente discriminado no Brasil, por sua situação socioeconômica e por sua
cor de pele. Tais discriminações combinadas podem explicar a maior prevalência de homicídios de negros vis-à-vis o resto da po-
pulação”, afirma o documento. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/index.php?option=com_content&view=ar-
ticle&id=730>. Link. Acesso em 12 de outubro de 2020.
119 Verificou-se que a proporção de óbitos em pacientes pretos e pardos foi maior do que a de brancos, mesmo por faixa
etária, por nível de escolaridade, e em município de IDHM elevado. As chances de mortes de um paciente preto ou pardo
analfabeto (76%) são 3,8 vezes maiores que um paciente branco com nível superior (19,6%), confirmando as enormes dispa-
ridades no acesso e qualidade do tratamento no Brasil. Estes resultados levantam uma série de indagações que podem vir a
explicar essas diferenças, tais como diferenças de pirâmide etária, distribuição geográfica e desigualdades sociais, que afetam
diretamente o acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, os desfechos das internações. Destaca-se que é de suma
importância responder esses questionamentos e tal fato já se encontra em notória discussão, podendo-se citar a ação aberta
pela Defensoria Pública da União (DPU) do Rio de Janeiro, que obriga as unidades de saúde a reportarem dados de raça, gênero
e região nas notificações de casos da COVID-194. Nota técnica resultados. Disponível em: <https://ponte.org/wp-content/
uploads/2020/05/NT11-An%C3%A1lise-descritiva-dos-casos-de-COVID-19.pdf>. Link. Acesso em 12 de outubro de 2020.

227
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Com as informações demonstradas durante a pandemia, neste primeiro período inicial, os afro-
descendentes fazem parte da estatística elevada em número de mortos, não em número de formados
nas universidades ou pós-graduados - ao contrário, morrem ainda mais os sem escolaridade. Enfim, a
estatística não parece fazer menos sentido do que toda a história dessa população, de todas as lutas
que ainda precisam ser travadas e vão ao encontro de uma igualdade real mas se desencontram no
caminho com políticas de momento, de fases.
As armadilhas do mundo moderno nos dão sensação de semelhança e desenvolvimento social, a
meritocracia é um grande exemplo disso e um ponto a se debater nesse sentido, mas deixamos este
debate para um outro momento.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abolição da escravatura foi tardia, no momento da libertação não houve política de inclusão
social na época, subcategorizou-se o indivíduo negro no Brasil. Os dados demonstram que desde
então existem desigualdades reais, enormes, a mortalidade aumentada na esfera social do homem
negro, pior aquele sem escolaridade, em um momento de pandemia, a minoria se torna maioria num
dado estatístico cruel. Estamos em barcos diferentes.
A discussão ainda é a necessidade da inclusão de negros com ações afirmativas. A escolha da
grande bilionária da forbes: selecionar somente negros para vagas atraentes é um grande exemplo
a ser seguido. A legislação afirmativa de quotas raciais, política pública estatal questionada no ju-
diciário, perante o Supremo Tribunal Federal, demonstra que a questão da raça ainda é objeto de
indagações na sociedade, precisamos de quotas? Ela é justa? Segundos Supremo Tribunal Federal não
somente são necessárias tais políticas públicas inclusivas para afrodescendentes como imprescindí-
veis para nossa sociedade, sendo uma dívida histórica impaga até então.
No tocante as regras da administração pública, como uma portaria, por exemplo, são passíveis
de tornarem-se objetos obsoletos, fato ordinário e decorrente de projetos distintos da isonomia que-
rida pela Constituição de 1988, amplamente sabedora e aclamada nos votos ministeriais da Corte
Judiciária. Mas o que há de mal em uma portaria, revogamos a revogação e está tudo certo. “Salvamos
o Estado de Direito”.
As desigualdades raciais estão cristalinas, discutimos ainda a necessidade de políticas públicas
para reduzir este quadro. A discussão no sistema democrático é legítima e querida por todos, mas as
discussões devem ser conscientes: os objetos de discussões devem ser no sentido de que: necessita-
mos ainda alavancar um grupo de cor diferente porque não está devidamente encaixado no modelo
atual, a partir disso discutimos então as formas e não a necessidade, porque aí poderemos iniciar um
debate proporcional e maduro.
O caminho é longo, a democracia só será consolidada com a redução das desigualdades sociais,
em todo os níveis, para todos os indivíduos. Enquanto as diferenças sociais no tocante aos negros
forem gritantes, não haverá consolidação da democracia; as ações para mudar o quadro de desi-
gualdade e diminuí-la ainda são pequenas e frágeis considerando as políticas de governo em face de
políticas de Estado.

REFERÊNCIAS

BATISTA, Amanda; ANTUNES, Bianca; PERES, Igor; MARCHESI, Janaina; CUNHA, João Pedro; DANTAS,
Leila; BASTOS, Leonardo; CARRILHO, Luana; AGUILAR, Soraida; BAIÃO, Fernanda; MAÇAIRA, Paula;
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<https://ponte.org/wp-content/uploads/2020/05/NT11-An%C3%A1lise-descritiva-dos-casos-de-CO-
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BORIS, Fausto. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. Disponível em:
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Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-so-
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<https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/> Link. Acesso em 12 de outubro de 2020.

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MARINGONI, Gilberto. IPEA, 458, dezembro de 2019. O destino dos negros após a abolição.
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Acesso em 12 out 2020.

Qual foi o último país a abolir a escravidão. Super interessante. Mundo estranho. Disponível
em: <https://super.abril.com.br/mundo-estranho/qual-foi-o-ultimo-pais-a-abolir-a-escravidao/>
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADC 41. Relator Min. Roberto Barroso. Disponível em: <http://portal.
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REVISTA GALILEU, 2020. Sociedade. Sistema de cotas de universidades brasileiras e eficien-


te conclui estudo dos EUA. Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noti-
cia/2020/01/sistema-de-cotas-de-universidades-brasileiras-e-eficiente-conclui-estudo-dos-eua.html>
Link. Acesso em 12 de outubro de 2020.

229
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

GRUPO DE TRABALHO 4

ESTADO, DEMOCRACIA
E POLÍTICAS PÚBLICAS

230
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A ANTROPOLOGIA EM DIÁLOGO COM A EDUCAÇÃO:


UMA ETNOGRAFIA SOBRE O ATRAVESSAMENTO
DE SUBJETIVIDADES NO ESPAÇO ESCOLAR,
DIANTE DA TOLERÂNCIA RELIGIOSA

Sthella Laryssa Barros Loureiro Lima120

RESUMO: Este artigo fundamentou-se em referenciais teóricos como Munanga (2005), Freire (1987),
Whyte (2005), Candau (2005), entre outros que se fizeram pertinentes para analisar os discursos no
espaço escolar. O presente estudo de cunho qualitativo, tem como objeto, investigar os discursos
no espaço escolar, com a finalidade de compreender o atravessamento de subjetividades, diante da
prática da tolerância religiosa. A pesquisa empírica, desenvolve-se numa escola pública na cidade
de Salvador e tem a duração de 12 semanas. A pesquisa é de grande relevância, tendo em vista à
compreensão de que a abordagem sobre tolerância, principalmente religiosa, na escola, é importante
para à constituição da própria identidade, diante da alteridade.

Palavras-chave: Escola. Debates. Tolerância religiosa.

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento de um trabalho de pesquisa, inspira a avaliação de nossos propósitos. E nesse


sentido, é sabido que algumas pessoas, não tiveram dentro da necessária formação como cidadãos, o
preparo adequado para lidar com pessoas de naturezas e culturas diferentes (Munanga, 2005). A formação
de crianças e adolescentes no Brasil, se caracteriza pela mistura no espaço escolar, de culturas. Sobre
este ponto, muitas barreiras ainda precisam ser superadas, tendo em vista à ausência de informação e,
a presença de preconceitos enraizados. Ocorre que à transposição de pensamentos e comportamentos
ainda submersos em vestígios coloniais, é um desafio, visto que uma parte considerável da população
brasileira, sequer teve a oportunidade de conhecer a história da Àfrica a partir de uma narrativa decolonial.
Contudo, os espaços públicos têm sido em diversas ocasiões, palco de manifestações de
diversos movimentos sociais, em busca de tornar cada vez mais público o preconceito racial, cultural,
de classe, e de gênero, oriundo da distorção de valores e da desinformação social. Em busca de fazer
uma investigação sobre a convivência entre os jovens diante das diferenças culturais no espaço
escolar, resolvi fazer uma pesquisa através de debates informais.
A finalidade da pesquisa é promover debates sobre pluralidade cultural, considerando que
a discussão dos temas, tende a trazer elucidações sobre silenciamentos históricos, a exemplo da
intolerância religiosa. O surgimento da ideia de construir um trabalho com esse tema, surgiu a partir
da realização de rodas de conversas, com alunos de uma escola estadual de ensino médio.
Durante as reuniões e debates, bem como a partir de uma análise de respostas oriundas de
questionários aplicados aos alunos, foi possível perceber alguns conflitos existentes em torno das
questões que envolvem à diversidade religiosa. A primeira pesquisa que me levou a colocar em prática as
rodas de conversas no espaço escolar, foi motivada pela observação da frequência de conflitos em sala
de aula, durante a graduação em direito, e que ocorriam, em razão de intolerâncias de natureza cultural.
A partir desta perspectiva, passei a fazer anotações e, leituras, a respeito das questões referentes
à tolerância/intolerância e seus efeitos na construção da identidade. De acordo com Cardoso (2013),
a origem do termo tolerância, tem sua gênese no século XVII e XVIII. Representa o ponto de força

120 Sthella Laryssa Barros Loureiro Lima. Bacharela em Direito. Pós-graduação em Direito (UFBA). Pós-graduação em Educação e
Direitos Humanos (UNB). Mestrado em andamento em Antropologia Social. Subárea: Antropologia jurídica. larabarroz@hotmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

polarizadora, oriunda da cultura europeia, que legitimou os conhecidos valores universais, como os
direitos fundamentais do homem. Ocorre que na pratica, a diversidade cultural, racial e étnica dos
seres humanos, praticamente não foram levadas em consideração (Idem, 2013).
Partindo deste ponto, passei a refletir a respeito da existência de conflitos similares em outros
espaços de convivência e, logo, surgiu a ideia de ter à escola como campo de pesquisa. A partir desta
experiência, vivenciada pelo período de 5 anos como graduanda e, em busca de investigar outros espaços,
percebi que precisava ampliar a minha visão. A soma de experiências, trouxe como efeito, a percepção a
respeito da importância do aprofundamento teórico para um alargamento do horizonte epistemológico.
Nesse sentido, partindo desse consenso procedimental, busco através do conhecimento teórico
da educação e da antropologia, expor o resultado dos debates para chegar no ponto chave deste
artigo, analisar a prática da tolerância religiosa entre os alunos, através dos vieses dos seus discursos.
Os temas tratados se resumem em questões em torno da tolerância religiosa, racismo, sexismo e
xenofobia. O propósito é fazer uma constelação social a partir das interações dos (as) alunos (as).

1 METODOLOGIA

A investigação teve como base, à Metodologia Comunicativa Crítica (MCC), que classifica
à pesquisa como um instrumento para entender a realidade, mas que não se restringe a isso. A
compreensão sistemática da realidade, utilizada por pesquisadores e curiosos, através de uma
orientação comunicativa que se dirige, tanto à construção de diagnósticos sobre o cotidiano, como à
mudança dessa realidade por meio da produção de alternativas.
A Metodologia Comunicativa Crítica, funciona através da participação ativa dos sujeitos, dando
ênfase as questões que envolvem o cotidiano dos participantes. O trabalho foi realizado por meio da
associação da Metodologia comunicativa com a observação–participante, através da realização de debates.
Para o alcance dos objetivos propostos, utilizei a aplicação de questionários para a criação de
dados a respeito da estrutura da instituição, para saber como funcionam as interações entre os alunos
e também com o propósito de analisar a presença de práticas colaborativas institucionais.

2 ETNOGRAFANDO O CAMINHO PARA À ARTICULAÇÃO DOS DIÁLOGOS

Para darmos início a descrição do caminho percorrido para a construção de dados, é relevante
apresentar uma síntese sobre a perspectiva antropológica. A antropologia é uma ciência, que tem
à reflexão como um dos seus mais importantes recursos. A sua finalidade, reside na ampliação do
conjunto de instrumentos que compõe o discurso humano (Geertz, 1990). Cumpre dizer, que não é
a sua única função, visto que também propõe-se à aprendizagem, à interação, à orientação prática
e a desvelar o percurso genuíno da natureza humana. Aqui, exploramos cada detalhe, através da
definição do seu sentido semiótico de cultura (Idem, 1990).
Para dar início a pesquisa, fui até à escola, em busca de conseguir a autorização para as rodas de
conversas. A primeira vez que fui até à instituição, fui orientada pelo porteiro a procurar informações
na Secretaria. Ao chegar na referida sala, uma funcionária informou que eu deveria conversar com
à diretora, porém informou, que ela não estava na escola naquele dia e que eu deveria ligar para
agendar um horário. No dia seguinte, entrei em contato com a própria diretora por telefone, momento
em que agendamos para conversar no final daquela semana.
No dia marcado fui até à escola, ao chegar na portaria, o funcionário me orientou sobre a
localização da sala da diretora, à qual se encontrava na entrada da escola, do lado esquerdo. Para
chegar até a sala, passei por um corredor anexo, um pouco isolado das demais salas, onde existe
algumas mesas e cadeiras destinadas a atividades administrativas. Mais a frente, cheguei até a sua
sala, um espaço pequeno com uma mesa grande que possui algumas pastas tanto à direita, como
à esquerda. A porta estava entreaberta, na parede da sala tem um espécie de janela de vidro, que
possibilita visualizar quem está no recinto e vice-versa.
Ao visualizar que à diretora estava na sala, acenei sutilmente com uma das mãos e, ela gesticulou,

232
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

pedindo para que eu entrasse. A diretora é uma senhora, cabelos pretos na altura dos ombros, de pele
clara e olhos castanhos. Eu entrei na sala e a cumprimentei, em resposta recebi às boas-vindas. Suas
expressões demonstraram que ela estava um pouco desconfiada, me apresentei e, expliquei sobre
o conteúdo da minha proposta para atuação como pesquisadora. Ela não conversou de forma breve,
perguntou incisivamente sobre a minha origem acadêmica, sobre a finalidade da minha proposta e
como seria desenvolvida. Expliquei minuciosamente.
Em resposta, disse que a condição seria que algum professor, tivesse a disponibilidade para conceder
uma parte da sua aula para os debates. Explicou que seria recomendável, encaixar às atividades no horário
convencional das aulas, tendo em vista o risco de agendar em outros horários ou, aos finais de semana, e,
os alunos não comparecerem. Em resposta, concordei com a sua sugestão e perguntei se poderia procurar
os (as) professores (as) para tentar encaixar os debates numa parte das suas aulas. Ela respondeu que sim
e, indicou a localização da sala dos (as) professores (as). Assim, finalizamos à conversa.
Agradeci à receptividade com um aperto de mão e, saí em busca de encontrar à sala dos (as)
professores (as). Ao sair da sala da diretora, caminhei em linha reta por um minuto e, virei à esquerda,
indo ao encontro do corredor principal, momento em que encontrei à sala dos professores, do lado
direito do corredor, após passar por três salas de aula. Bati na porta, mas ninguém atendeu. Então, bati
novamente, e, quando estava esperando alguém abrir, uma aluna que estava no corredor, informou
que eu deveria entrar, porque provavelmente ninguém iria abrir à porta. Agradeci à gentileza e, abri
à porta devagarinho, para observar se existia alguém na sala.
Para a minha surpresa, os (as) professores (as) ainda não tinham começado o expediente, e estavam
reunidos, conversando. Pedi licença e, entrei. Uma professora perguntou se eu era professora nova e,
então, foi à minha chance de explicar à proposta das atividades. Alguns professores elogiaram à proposta
dos debates, enquanto outros, foram saindo, porque já estava próximo ao horário do início das aulas.
Uma das professoras, disse que poderia conceder parte das suas aulas e me chamou para conversar.
A professa explicou que ministra à disciplina de História e pediu para que eu explicasse, como
seria a dinâmica dos debates. Expliquei a dinâmica e ela se prontificou a conceder metade do horário
das suas turmas. Fui embora satisfeita com a conclusão dessa primeira etapa.

3 A LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E A ESTRUTURA DA INSTITUIÇÃO

Para a compreensão substancial do ambiente escolhido para campo de pesquisa, apresento


a noção de espaço. A localização em um mundo em que os atravessamentos e atividades culturais
ocorrem em espaços específicos, torna-se um assunto relevante para refletir os fatos da vida cotidiana.
A escola estadual tem seu endereço, em um bairro localizado no litoral, há 30 quilômetros do centro
da cidade de Salvador, na Bahia.
A escola tem à estrutura de um edifício, à fachada está pintada em tons de cinza e possui janelas
de vidro no 1º andar. Está situada numa esquina, ao lado de um clube. Na frente, existe algumas
amendoeiras que depositam muitas folhas e amêndoas pelo chão. A rua é sem saída, fato que permite
que os alunos fiquem sentados ou em pé, interagindo com os colegas, antes do início das aulas. Para
ter acesso à escola é necessário passar por um portão grande de ferro. Um funcionário fica ao lado do
portão, identificando às pessoas que entram na escola.
Ao chegar à frente da instituição, apresentei a minha identificação ao funcionário e, expliquei
que iria ao encontro de uma professora que estava me aguardando. Recebi a orientação do funcionário
sobre o trajeto que me levaria à sala dos professores. Depois de passar pelo portão principal, passei
por uma espécie de jardim ou espaço de lazer, em seguida, cruzei um portão de ferro e entrei em um
corredor extenso. Depois de passar por três salas de aulas, cheguei até à sala dos professores, onde
fui recebida pela professora. Ela me conduziu até a sua sala.
Da sala dos professores para à sala de aula, percorremos um enorme corredor e em torno
de 2 minutos chegamos a sua sala. Os alunos já estavam sentados, entramos e, a professora me
apresentou. Em seguida, ela explicou brevemente, qual seria o trabalho que seria desenvolvido. Ficou
combinado que à professora iria ministrar suas aulas e os debates ocorreriam no segundo período
das aulas. Voltei para a sala dos professores para aguardar o horário de início da nossa atividade.

233
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O trecho descrito traz uma explanação prática sobre as características da metodologia da


observação-participante, visto que apresenta uma trajetória lenta para dar início às atividades no
campo de pesquisa. Essa cronologia pode ser considerada como um benefício, no que tange à
possibilidade de ampliação da visão em torno do objeto. (Whyte, 2005).

4 SUJEITOS DA PESQUISA

O campo de pesquisa compõe-se dos seus interlocutores. Para esta investigação, os sujeitos foram
os alunos da 8º série, pertencentes ao turno vespertino. As discussões tiveram à duração de 12 semanas.
A turma é composta por 13 alunos. Os (as) alunos (as) inicialmente se mostraram um tanto tímidos, mas
após algumas semanas, começaram a se engajar nas discussões e a impor seus pontos de vista

5 OS DEBATES

As atividades desenvolvidas no âmbito escolar, contribuem substancialmente para a formação


do (da) educando, o que nos faz pensar, na importância de práticas pedagógicas que reforcem o
direito à educação pública subjetiva. Não apenas isso, mas que esta educação, seja guiada pelos
direitos que asseguram o desenvolvimento do cidadão, através de uma consciência política e social,
de acordo com as normas previstas na Constituição Federal de 1988.
Os debates fazem parte do conjunto de atividades colaborativas que podem vir a contribuir,
consideravelmente, para à ampliação de ideias, através da dialogicidade no contexto escolar. Isto quer
dizer, vivenciar o diálogo, sem invadir, através do empenho na transformação contínua da realidade
(Freire, 1983).

6 OS CONFLITOS DIANTE DA DIVERSIDADE RELIGIOSA

Os debates tiverem como temas assuntos como intolerância religiosa, sexismo e xenofobia.
Iremos abordar sobre o tema que fundamenta esta pesquisa, qual seja, às questões que giram em
torno da diversidade religiosa. O debate que tratou sobre xenofobia, foi um dos mais dinâmicos,
devido ao cruzamento que sucedeu, entre suas temáticas e o tema sobre intolerância religiosa.
Algumas exposições dos alunos, apresentaram discussões devido à discordâncias.
Para preservar às identidades dos participantes, optamos por utilizar números em substituição
aos nomes, visto que em pesquisas científicas, recomenda-se a adoção de um procedimento ético,
baseado na premissa de preservação da identidade dos participantes.
O primeiro aluno a se manifestar, será chamado de “aluno 1”, e o segundo será chamado de
“aluno 2”, e assim sucessivamente. As discussões tiveram início, quando o aluno 1, em razão da
discussão sobre diferenças de culturas de acordo com as regiões, fez uma exposição sobre à cultura
exótica da Bahia, O aluno 1, disse que “às datas comemorativas da Bahia são as mais tops do Brasil,
tipo o dia de São Cosme e Damião, em que as pessoas dão caruru pra os sete meninos. Em outros
cantos, não tem isso não, meu tio mora em Aracaju e o povo nem sabe o que é isso”.
Neste momento, um dos alunos, que aqui será representado pelo número “2”, se pronunciou
e, disse: “Deus é mais, eu que não como comida de santo, isso é coisa do capeta, de gente do
candomblé, coisa de macumba”. O aluno 1, disse em resposta: “Você não sabe de nada, tem macumba
nenhuma, fique aí falando da religião dos outros”. Então, o aluno 2, respondeu: “eu já vi essas comidas
emboladas com cachaça na rua, em encruzilhada, é coisa de macumba sim”.
A menção do aluno 1, representa uma festa típica que ocorre anualmente na Bahia. As pessoas
promovem um almoço para amigos e familiares em comemoração à data festiva. São preparadas
comidas típicas (abará, acarajé, carurú, vatapá, xinxin de galinha, farofa de mel e banana frita). De
acordo com o costume, às pessoas preparam a comida, oferecem a São Cosme e Damião e distribuem
7 marmitas para 7 crianças.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A tensão entre os alunos a respeito de um assunto tão caro, revela a ligação que existe entre
educação e cultura (s), fato que nos inspira a evidenciarmos à necessidade de reunir temas semelhantes
em torno de debates frequentes nos espaços escolares. Decerto, os dispositivos que giram em torno
desta problemática são diversos, de acordo com o contexto em que nos situemos. Atualmente,
dão origem a amplas discussões e atritos, embora, defensores e críticos estejam a confrontar seus
posicionamentos com fervor (Candau, 2008).
Em outro encontro, cujo tema tratado foi sexismo, tivemos um caso interessante. Uma aluna
durante o debate se pronunciou sobre o preconceito existente sobre as pessoas que são homossexuais.
A aluna 3, disse: “Esse assunto é complicado porque o povo não aceita, na minha rua, uma mulher
se casou com outra. Minha mãe disse que o que importa é o amor. Eu não tenho preconceito, tenho
amigo gay e, hoje em dia, acho normal”.
Um aluno sinalizou com a mão estendida, que queria falar. O aluno 4, disse: “eu não acho isso
certo, Deus criou o homem para à mulher e, à mulher, para o homem, está escrito na bíblia”. Foi
quando à aluna 5, emendou à fala e disse: “eu não entendo muito disso, mas a irmã do meu pai,
minha tia, fica dizendo pra gente não assistir essas coisas na televisão, porque homem com homem
e mulher com mulher, não é coisa de Deus, porque Deus só criou Adão e Eva”
È sabido que às discordâncias fazem parte do processo da diversidade cultural e, nos enriquece,
através dos tensionamentos que nos ajudam a ir além dos conceitos e preconceitos. A intolerância
religiosa é um tema polêmico, que divide opiniões e fomenta conflitos, diante de imposições
hegemônicas, do que pode ou não, ser devotado. Nas experiências descritas, vê-se á rejeição de alguns
alunos, especialmente sobre as religiões de matriz africana, a exemplo da umbanda e do candomblé.

7 APLICAÇÃO DE QUESTIONÁRIOS

Os questionários constituem uma das técnicas mais utilizadas no levantamento de dados,


oferecendo uma abordagem analítica ao explorar as relações entre as variáveis (Gray, 2012). A
aplicação dos questionários nesta pesquisa, foi dirigida aos alunos e aplicados no último dia dos
debates As perguntas foram organizadas em tópicos da seguinte forma: 1) Qual é o significado de
pluralidade cultural para você?; 2) O que você entendeu sobre o tema intolerância religiosa?; 3)Você
acha que esses debates trouxeram alguma contribuição para a sua vida?
Entre as respostas obtidas, tivemos as seguintes: “Pra mim quer dizer que tem várias culturas
no mundo/ entendo que é quando a pessoa não respeita a religião dos outros/ sim, eu aprendi muitas
coisas; “significa que existe vários tipos de culturas/ que não devemos falar mal da religião da religião de
ninguém, porque isso é feio/ acho, aprendi que um lugar não é melhor que o outro e que a mulher não
tem que ficar fazendo serviço sozinha dentro de casa, o homem também tem que ajudar”; “Um monte de
culturas/ entendi que cada um tem a sua religião/ sim, eu vou ler mais coisas agora sobre esses assuntos”;
“tem a ver com todos esses assuntos sobre culturas/ entendi que intolerância religiosa é quando a pessoa
acha que a sua religião é melhor que a dos outros/ com certeza, porque agora, vou saber me comportar
em cada situação, não vou desrespeitar os outros e vou ajudar minha amigas também”.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme o exposto, chega-se à conclusão de que o tema não se encerra, mas propõe
movimentos de desconstrução que venham a encerrar intolerâncias culturais de toda e qualquer
espécie. Se estamos à provocar debates que substanciam práticas integrativas, não há espalho para
exclusões. O debate pluricultural, evidencia a nossa própria formação histórica, ao revelarmos nossos
pontos de vista.
Os debates trouxeram para a superfície, o atravessamento de subjetividades marcadas por
contextos de intolerância religiosa. As falas dos participantes dos debates, revelam suas concordâncias
e discordâncias, suas preferências que englobam a cultura que prevalece (CANDAU, 2010). A
experiência revelou, à necessidade de manutenção de práticas colaborativas no espaço escolar, que
despertem o senso crítico do aluno.

235
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

As discussões semearam em mim, a certeza de que à sala de aula deve ser um lugar de diálogo,
de forma que aqueles que ocupem o lugar de autoridade, não venham a utilizá-lo para oprimir,
mas sim transcender. Que as interpretações se construam através da soma das diferenças e, desta
forma, multipliquem a capacidade de cada um, se colocar no lugar do outro. A intolerância religiosa,
infelizmente, ainda ocupa muitos espaços, e sobretudo, foi incorporada pela cultura da opressão,
conforme preleciona Silva (2004):

À intolerância religiosa soma-se a intolerância política, cultural, étnica e sexual. A inquisição está
presente no cotidiano dos indivíduos: no âmbito do espaço doméstico, nos locais do trabalho,
nos espaços públicos e privados. Ela assume formas sutis de violência simbólica e manifestações
extremadas de ódio, envolvendo todas as esferas das relações humanas. A intolerância é, portanto,
uma das formas de opressão de indivíduos em geral fragilizados por sua condição econômica,
cultural, étnica, sexual e até mesmo por fatores etários. Muitas vezes nos surpreendemos ao
descobrir a nossa própria intolerância. A construção de uma sociedade fundada em valores que
fortaleçam a tolerância mútua exige o estudo das formas de intolerância e das suas manifestações
concretas, aliado à denúncia e combate a todos os tipos de intolerância. Por outro lado, a tolerância
pressupõe a intransigência diante das formas de intolerância e fundamenta-se numa concepção
que não restringe o problema da tolerância! intolerância ao âmbito do indivíduo; esta é também
uma questão social, econômica, política e de classe. (Silva, 2004, p. 8)”.

É sabido, que às discordâncias fazem parte do processo da diversidade cultural e, nos enriquece,
através dos tensionamentos que nos ajudam a ir além dos conceitos e preconceitos. A tensão entre
os alunos a respeito de um assunto tão caro, revela a ligação que existe entre educação e cultura (s),
fato que nos inspira a evidenciarmos à necessidade de reunir temas semelhantes em torno de debates
frequentes nos espaços escolares. Como um peso para duas medidas, não podemos afirmar que a
tolerância seja preponderante, visto que os tensionamentos representam a sua presença. Resta-nos à
tolerância através do desenvolvimento de práticas descolonizadoras

REFERÊNCIAS

BRASIL. Secretaria Geral da Presidência da República. Resolução nº 510, de 7 de abril de


2016. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/
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Munanga, organizador. – [Brasília]: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
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WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e
degradada. Tradução de Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

236
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DISSOCIADA E EVIDÊNCIAS


CIENTÍFICAS COMO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA:
ANÁLISE CRÍTICA A PARTIR DO ENTENDIMENTO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL

Amábily Mattner Mello121


Dailor dos Santos122

RESUMO: Em virtude da COVID-19 foi editada a Medida Provisória nº 966/2020 dispondo sobre a
responsabilização dos agentes públicos por atos de ação ou omissão relacionados à pandemia. O texto da
medida refere que os agentes somente poderão ser responsabilizados se agirem ou se omitirem com dolo
ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados à pandemia e no combate de seus efeitos econômicos
e sociais. A expressão “erro grosseiro” foi considerada ambígua, carecendo de melhor definição para que
pudesse ser juridicamente compreendida. Assim, observando a tese firmada pelo STF, a presente pesquisa
analisa, a partir do método hipotético-dedutivo, se a atuação do gestor público dissociada de evidências
científicas configura ato de improbidade administrativa, e não apenas a sua responsabilização civil.

Palavras-chave: Agentes públicos. Erro grosseiro. Evidências científicas. Improbidade administrativa.

INTRODUÇÃO

A pandemia do novo corona vírus (COVID-19) foi decretada em março de 2020 pela Organização
Mundial de Saúde (OMS). Os dados alarmantes de mortes, a falta de estrutura hospitalar para prestar
assistência aos infectados pelo vírus e o aconselhamento a adotar o isolamento social para impedir
o aumento da contaminação estiveram presentes desde o início do surto da doença. Contudo, ainda
existem efeitos que não podem ser mensurados.
O desespero por soluções rápidas e efetivas para combater o novo vírus e conflitos pela
disponibilização de insumos hospitalares (como máscaras descartáveis, respiradores e escudos de
face) tornaram-se, em pouco tempo, uma realidade mundial. Nessa senda, o poder público possui, a
partir do princípio da eficiência consagrado no art. 37 da Constituição Federal, o dever de atuar de
modo imediato, com respostas específicas para a situação pandêmica.
Em um momento como este, o gestor público lida com a falta de informações, além de ter
que providenciar a aquisição dos insumos necessários. Não sendo suficiente apenas enfrentar os
efeitos causados de maneira direta pelo vírus, também é preciso minimizar os impactos econômicos
causados pela pandemia. A atuação do gestor público é fundamental, de modo que uma decisão
tomada de maneira errônea pode impactar negativamente o combate contra a COVID-19.
Nesse sentido, a Medida Provisória – MP 966/2020 dispõe sobre a responsabilização dos agentes
públicos por ação ou omissão em atos relacionados à pandemia. Em virtude de a Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro já dispor sobre responsabilização de agente público, surgiu a interpretação
de que a referida MP seria como uma carta branca para o gestor, de modo que poderia facilitar a
impunidade para aqueles que cometessem crimes de improbidade administrativa durante o surto do
novo corona vírus. Outrossim, a expressão erro grosseiro, utilizada no texto da medida provisória,
foi considerada ambígua, de modo que foram ajuizadas sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade,
apontando que o termo carecia de melhor definição para que pudesse ser juridicamente compreendido.
Diante disso, o presente artigo analisa o texto da Medida Provisória 966/2020 e a compreensão

121 Bacharelanda de Direito na Universidade Feevale. Endereço eletrônico: amabilymmello@gmail.com.


122 Mestre em Direito Público (UNISINOS); Especialista em Direito do Estado (UFRGS); doutorando em Direito Público (UNISI-
NOS); Chefe de Gabinete da Justiça Federal (TRF 4ª Região); Professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo
(FEEVALE). Endereço eletrônico: dailor@feevale.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

jurídica do termo erro grosseiro para, com o uso do método hipotético-dedutivo, verificar se as decisões
tomadas pelo gestor público sem levar em consideração standards técnicos e científicos poderia atrair
sua responsabilização jurídica pessoal por ato de improbidade administrativa. Para tanto, será analisado,
em um primeiro momento, o texto da medida provisória em paralelo com a Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro e, após, as possíveis correlações com atos de improbidade administrativa.

1 DELINEAMENTOS ACERCA DA MEDIDA PROVISÓRIA 966/2020

O sentido da Medida Provisória, diferente da concepção de carta branca ao gestor público, vem
no sentido de delimitar a responsabilização desses gestores nos atos praticados com a finalidade de
enfrentar a pandemia. No entanto, é comum que a má interpretação do texto da medida, em conjunto com
a carência de definição jurídica para a expressão erro grosseiro, gere tal alarde. Afinal, a Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro já dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos frente às decisões
por eles tomadas. Qual seria, então, o sentido da Medida Provisória 966/2020 frente à LINDB?
O primeiro artigo da medida provisória delimita a responsabilização do agente público nas esferas
civil e administrativa, caso os atos praticados em relação à pandemia sejam dotados de dolo ou erro
grosseiro. Destaca-se que o parágrafo §1º do artigo desvincula a responsabilização automática do
agente em virtude do embasamento do ato em opinião técnica, sendo ela configurada apenas quando
presentes os elementos dos incisos I e II, enquanto o §2º expõe que a existência de causalidade entre
a conduta e resultado danoso não implica, necessariamente, na responsabilização do agente.
Para a caracterização de erro grosseiro no tocante ao disposto da medida provisória, o
artigo 2º trouxe a definição de que seria aquele “evidente e inescusável praticado com culpa grave,
caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.
Cabe ressaltar que a expressão erro grosseiro foi considerada ambígua e ensejou sete ajuizamentos
de Ações Diretas de Inconstitucionalidade indicando a necessidade de melhor definição para que o
termo fosse compreendido de modo jurídico. Apesar disso, o próprio artigo 3º da medida provisória
ocupou-se em esclarecer e delimitar o contexto das decisões tomadas pelos agentes públicos.
Diante de breve análise do texto da medida provisória, verifica-se que o disposto vai ao encontro
do já estabelecido pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. O artigo 22 da LINDB, por
exemplo, ao dispor que serão levados em consideração os obstáculos e as dificuldades reais do
gestor para interpretação de normas sobre gestão pública, fornece segurança ao gestor quanto às
decisões tomadas, garantindo que o contexto da decisão (obstáculos e dificuldades enfrentadas) não
serão olvidados quando na aplicação de eventual sanção pelo ato praticado.
Nessa senda, inevitável associar o disposto com o artigo 3º da medida provisória, que expôs uma
série de considerandos para a aferição do erro grosseiro nas decisões do gestor público. O primeiro item a
ser considerado de acordo com o texto da medida, seriam os obstáculos e as dificuldades reais do agente
público. Este é apenas o primeiro indício de que a medida provisória teria reprisado o que já estava disposto
na LINDB, mas com alterações específicas para a responsabilização do agente frente ao cenário da pandemia.
O referido artigo, ainda, indica que se deverá atentar para a complexidade da matéria, bem como
das atribuições exercidas pelo agente, as circunstâncias de informações inconclusas, visto a situação
de urgência causada pela pandemia e práticas que acabarem por impor, limitar ou condicionar a
ação ou omissão do agente público. Por fim, também inclui na lista de considerandos o contexto de
incerteza sobre quais seriam as medidas mais adequadas para adotar durante o enfrentamento da
pandemia de COVID-19, abrangendo suas consequências, inclusive, no campo da economia.
Portanto, com o art. 22 da LINDB, vislumbra-se um campo de atuação em que o agente fica resguardado
quanto às possíveis consequências negativas de seus atos. Já o art. 28 traz a figura do dolo e do erro
grosseiro nas decisões tomadas pelo agente. O dispositivo prevê que o agente responderá pessoalmente
pelas decisões e opiniões técnicas quando estiver configurado dolo ou erro grosseiro. Ao observar o caput
do artigo, percebe-se, mais uma vez, que o texto da medida provisória apenas reiterou, com alterações no
tocante à esfera de responsabilização do agente, aquilo que já estava previsto no art. 28 da LINDB.
Diante o exposto sobre a medida provisória e a LINDB, não se pode perder de vista a atuação
do gestor público e os compromissos deste em combater a pandemia já que, por intermédio desses

238
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

dispositivos legislativos, criou-se um campo de atuação com possibilidade de erro aceitável, sem
ensejar na responsabilização pessoal do agente. Uma vez em que o termo erro grosseiro, conforme
o decreto, seria aquele facilmente evidenciável, praticado com alto grau de negligência, erguem-se
balizas para entender o que seria um erro admissível praticado pelo agente e o que seria inescusável.
Junto com o enfrentamento da pandemia, o gestor público também possui o compromisso do
gestor público de minimizar os possíveis danos que o surto de COVID-19 causa nas demais esferas,
como na economia, já que existe a possibilidade de responsabilização do Estado por danos causados em
razão da COVID-19 (BURINI, 2020). Observa-se que ainda que já houvessem recomendações proferidas
pela OMS no sentido de prevenção, desde o início da doença no Brasil houve desencontro no tocante
às determinações que deveriam ser adotadas no país (MAZZUOLI, 2020). Essa situação, inclusive,
não se limita ao território brasileiro: a busca por insumos é problemática mundial, evidenciando a
ausência de solidariedade global causada pela pandemia (MONTEIRO, 2020).
Frente a essa análise, verifica-se que a MP 966/2020 acabou por reprisar boa parte do que já
é previsto pela LINDB, trazendo alterações voltadas para o contexto da pandemia no que tange à
responsabilização pessoal dos gestores públicos. Tendo em vista que se trata de uma emergência
de saúde pública, a medida provisória busca firmar um contexto com aplicação jurídica, para que
estejam registradas as inseguranças, as incertezas – mesmo com amparo em estudos científicos – e
a urgência necessária na tomada de decisões, para que eventual responsabilização do gestor público
quando o momento da pandemia pertencer exclusivamente ao passado.
A ineficácia de uma decisão tomada pelo gestor pode acarretar em prejuízos imensuráveis. Não
é possível permitir a inércia do gestor frente à pandemia: o agente deve realizar uma gestão eficaz,
que atue diretamente no combate ao vírus, adotando medidas de prevenção e buscando minimizar os
impactos negativos nas demais esferas (NASCIMENTO, 2020). Com fundamento, a medida provisória
prevê a punição para a omissão do agente nessas situações. Dessa forma, não pode o gestor eximir-
se de atuar em conformidade ao determinado pela Medida Provisória, resguardando-se de correr
eventual risco na busca pelo combate à emergência de saúde pública (BRINKER, 2020).
Portanto, a atuação do agente público no que tange à pandemia deve ser eficaz, rápida e certa. Ao
correr riscos, imperativo criar um campo de atuação do gestor público em que exista a possibilidade
de “erro aceitável”. Isto é, o erro em que o gestor pode vir a cometer em virtude de seu ativismo para
enfrentar o surto de COVID-19. A partir disso, levando em consideração os parâmetros utilizados pelo
STF para definir juridicamente o termo “erro grosseiro”, criam-se pontos de referência para estabelecer
quais erros de gestão seriam admissíveis na atual situação de emergência.

2 A ATUAÇÃO EM ERRO GROSSEIRO PODE ENSEJAR A RESPONSABILIZAÇÃO POR ATO DE


IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA?

A Lei nº 8.429/1992 não traz uma definição expressa de improbidade, mas delineia algumas
classificações para os atos, indicando sanções penais aplicáveis. A partir disso faz-se possível apontar
os elementos constitutivos do ato de improbidade administrativa. O primeiro componente é o sujeito
ativo, entidade que pode ser atingida por atos de improbidade administrativa. Essas entidades estão
elencadas no art. 1º da lei de improbidade. Os atos ímprobos podem atingir a administração direta,
indireta ou fundacional de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos
Municípios e, inclusive, empresa incorporada ao patrimônio público.
Para caracterizar ato ímprobo, é necessário que também esteja presente a figura do sujeito
ativo, qualquer agente público, servidor ou não. Ressalta-se que, ainda que não seja agente público,
as sanções dispostas na lei de improbidade também serão aplicadas, no que for cabível, a quem
induza ou concorra para a prática de ato ímprobo ou, ainda, se beneficie do ato de forma direta ou
indireta, conforme art. 3º da Lei 8.429/92 (DI PIETRO, 2019).
O ato ímprobo também necessita da ocorrência de ato danoso, conforme hipóteses elencadas
nos artigos 9º, 10º, 10-A e 11º da lei de improbidade (DI PIETRO, 2019). Esses artigos tratam,
respectivamente, dos atos de improbidade que importam em enriquecimento ilícito, que causam
prejuízo ao erário, os decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou

239
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

tributário e, por fim, aqueles que atentam contra os princípios da Administração Pública.
O último elemento constitutivo do ato de improbidade seria subjetivo, no tocante a existência de
dolo ou culpa na conduta do agente. É necessário verificar se houve um ínfimo indício de má-fé que
possa revelar a desonestidade do agente (DI PIETRO, 2019).
Percebe-se que, de todos os artigos que descrevem atos de improbidade, apenas o art. 10-A dispõe
expressamente sobre a ação ou omissão nas modalidades culposa e dolosa. Isso porque, conforme
observa Di Pietro (2019, p.1039), “a aplicação da lei de improbidade exige bom senso, pesquisa da
intenção do agente, sob pena de sobrecarregar-se inutilmente o Judiciário com questões irrelevantes, que
podem ser adequadamente resolvidas na própria esfera administrativa”. Como a jurisprudência tende a
admitir a conduta culposa apenas no que se refere ao disposto no art. 10º, exige-se a comprovação de
dolo nas hipóteses elencadas nos artigos 9º e 11º da Lei 8.429/92 (DI PIETRO, 2019).
Havia entendimento jurisprudencial pacificado pela Corte Especial do STJ sobre a conduta do
agente para configurar ato ímprobo ser dotada de dolo no tocante ao disposto nos artigos 9º e
11º da Lei de Improbidade e, pelo menos, de culpa grave no que se refere ao art. 10º (STJ, 2011).
Agora, a jurisprudência se distanciou do entendimento inicial, estabelecendo que, para configurar
a improbidade, bastaria a comprovação de culpa simples. Assim, interpreta-se que seria necessário
um comportamento de imoralidade por parte do agente, utilizando-se da função ocupada para fim
diverso daquele pretendido pela lei, ou seja, uma imoralidade tipificada como improbidade, não
restando suficientes os elementos elencados (NASCIMENTO, 2020).
Por mais que o texto legislativo não defina um conceito para ato ímprobo, a interpretação se
dá conforme os elementos constitutivos acima elencados, permitindo maior compreensão acerca
do ilícito. Nesse sentido, constitui ato de improbidade qualquer conduta, seja de ação ou omissão,
praticado no exercício de função pública, que contenha os pressupostos elencados no caput dos
referidos artigos. Ainda que praticado por terceiro que não se enquadre como agente público, o ato
deve estar vinculado com uma função exercida por agente público (DI PIETRO, 2019).
Ressalta-se que, com exceção do art. 10-A, que lista a conduta de modo detalhado, o rol dos
atos elencados nos incisos dos demais artigos é meramente exemplificativo, já que outras condutas
podem ser igualmente enquadradas nos tipos de improbidade referidos. Isso porque, caso estejam
presentes os quatro elementos constitutivos do ato ímprobo, o agente deverá estar sujeito às sanções
dispostas na lei de improbidade, independentemente de sua conduta estar expressamente listada no
texto legislativo. É o caso da tipificação de improbidade administrativa direcionada exclusivamente
aos Prefeitos, disposta no art. 52 da Lei 10.257/2001 (OLIVEIRA, 2019).
Até a inclusão do princípio da moralidade administrativa no artigo 37, caput, da Constituição
Federal de 1988, a improbidade administrativa constituía infração apenas para os agentes políticos,
sendo punido apenas o enriquecimento ilícito de demais agentes no exercício do cargo. Com a Lei
8.429/1992, Di Pietro (2019, p.1022) expõe que “a lesão à moralidade administrativa é apenas uma das
inúmeras hipóteses de atos de improbidade”, o que reforça o rol de condutas meramente exemplificativo.
Nessa senda, ao imputar sanções pelos atos de improbidade administrativa, não se pode perder
de vista a singularidade do contexto atual enfrentado pelos gestores públicos com a COVID-19. Isso
porque a pandemia alterou a atuação dos agentes públicos, de modo que, com a relativização de
algumas práticas em relação ao que era feito antes do vírus, surge uma problemática em enquadrar
os atos como improbidade administrativa.
Com a situação de calamidade pública causada pela COVID-19, o poder público necessita adotar
medidas excepcionais para substituir as ferramentas já existentes no campo jurídico, mas que, em
virtude da realidade atípica, mostram-se ineficientes. O controle administrativo anterior a doença
do corona vírus tornou-se insuficiente para fiscalizar os atos dos agentes públicos. Utilizar-se de
métodos anteriores à situação de pandemia implica em descartar o contexto enfrentado, os obstáculos
e dificuldades do gestor (LACERDA, 2020).
Diante deste cenário e da necessidade em combater a pandemia e seus efeitos econômicos e
sociais, observando os princípios da precaução e prevenção, os gestores públicos não podem se eximir
de tomar decisões, de adquirir insumos hospitalares, de buscar alternativas para minimizar o impacto
na economia. Ressalta-se que o texto da Medida Provisória 966/2020 prevê a responsabilização do
agente no caso de omissão também, não apenas de ação. Ela condiciona ao agente o dever de, ao agir

240
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ou deixar de agir em função da pandemia, visar sempre os critérios científicos, standards técnicos. Deste
modo, tanto a ação quanto a omissão do gestor devem estar vinculadas a uma justificativa técnica.
O pagamento adiantado de um valor superfaturado para aquisição de insumos sem realizar
qualquer processo licitatório era algo completamente impensável antes da pandemia. Sem esse
contexto, bastaria um olhar superficial para enquadrar o gestor público em ato de improbidade (LUFT,
2020). Todavia, em função do corona vírus, uma vez que comprovada a necessidade de aquisição de
novos respiradores, por exemplo, e considerando que muitos países buscam os mesmos insumos,
a omissão do gestor em não adquirir esses suprimentos (ainda que superfaturados e realizando
pagamento antes de receber o produto) poderá acarretar na responsabilização do agente, que preferiu
resguardar-se em um momento que demandava sua atuação.
Ao incorrer em erro devidamente fundamentado, cometido com base em standards técnicos e
critérios científicos, não é possível caracterizar ato ímprobo por parte do agente público. Isso porque não
se verificam os elementos necessários para constituir ato de improbidade. Ainda que estejam presentes
os sujeitos passivo e ativo, e que reste comprovada a existência de ato danoso, não existe a figura do
dolo do gestor em causar tal prejuízo. Ao tomar suas decisões (sejam elas no sentido de agir ou omitir-
se) com fundamento em critérios técnicos, não é possível que o gestor seja sequer responsabilizado
civil ou administrativamente, pois não existe o erro grosseiro previsto no texto da medida.
Após a adoção da Medida Provisória 966/2020, foram ajuizadas sete Ações Diretas de
Inconstitucionalidade em virtude da ambiguidade do termo erro grosseiro. As ações foram ajuizadas
pelos requerentes: Rede Sustentabilidade (ADI 6421); Partido Popular Socialista (ADI 6422); Partido
Socialismo e Liberdade – P-SOL (ADI 6424); Partido Comunista do Brasil (ADI 6425); Associação
Brasileira de Imprensa (ADI 6427); Partido Democrático Trabalhista (ADI 6428) e Partido Verde (ADI
6431). A principal alegação dos autores levantava a hipótese de que os critérios estabelecidos no
texto da MP para responsabilização dos agentes públicos possibilitariam a anistia ou o salvo-conduto
de qualquer atuação estatal desprovida de dolo ou erro grosseiro.
No julgamento das ADIs, o relator Ministro Luís Roberto Barroso fundamentou sua decisão levando
em consideração a observância de padrões técnicos e evidências científicas sobre a matéria a qual se
refere à ação ou omissão do gestor público. O relator propôs que a interpretação do 2º artigo da Medida
Provisória fosse dada conforme o disposto na Constituição Federal. Desse modo, o ato que ensejasse
violação do direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado caracterizaria o erro grosseiro que é
mencionado na medida provisória, já que não estaria fundamentado em critérios e standards científicos.
Ainda, o ministro expôs em seu voto que a referida medida provisória não eleva a segurança
dos agentes públicos, pois as condutas ilegítimas (como propinas e superfaturamento) são ilegítimas
em qualquer contexto – inclusive o de pandemia. Portanto, em caso de improbidade administrativa,
o gestor não encontrará amparo no texto da medida. A legislação para os casos de improbidade é
específica, visto que continua sendo um ilícito civil.
Deste modo, entende-se que a improbidade administrativa diverge da responsabilidade civil
idealizada pela medida provisória. Os atos do agente público ao não observar standards técnicos
para fundamentar suas decisões não se confundem com ato ímprobo. Isso porque a Medida Provisória
966/2020 insere a figura do erro grosseiro. Trata-se de conceito novo que, inclusive, carecia de
melhor definição quando da publicação da MP para que fosse compreendido juridicamente.
A não observância de critérios científicos e standards técnicos por parte do agente público deve
ensejar sua responsabilização civil pessoal, conforme disposto pelo texto da medida provisória. Criou-se, a
partir do texto da medida, um campo seguro de atuação para o gestor, condicionando sua ação e omissão
a justificativa com fundamentação técnica. Ressalta-se que é de suma importância a existência do erro
aceitável na atuação do agente, pois ainda existem poucas comprovações científicas sobre prevenção e até
mesmo sobre a cura para o corona vírus, em que pese existam muitos estudos e pesquisas em andamento.
Como a medida provisória, a partir da interpretação do STF, determinou que tanto a ação como
a omissão do agente devem estar vinculadas a justificativa técnica, cabe ao gestor público exigir que,
nos pareceres técnicos que pretenda utilizar para fundamentar suas decisões, conste expressamente
aquilo que será considerado para fins de verificar sobre sua eventual responsabilização em momento
posterior. Ao indicar os entendimentos das autoridades de saúde, tanto no âmbito nacional como
no internacional, e sugerir medidas de prevenção e precaução, o gestor exime-se da possibilidade

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de incorrer na prática de erro grosseiro. Ao ignorar um parecer técnico e manter-se inerte diante das
evidências, o agente atrai a responsabilidade pessoal para si (NASCIMENTO, 2020).
Para o atual momento de pandemia, que ainda é de muitas incertezas no campo cientifico, a
responsabilidade pessoal do agente basta como sanção a ser aplicada no caso de inobservância dos
padrões indicados pela medida. Por enquanto, não é possível acusar o gestor de negar a ciência, dado
que ainda não existem comprovações o suficiente para indicar uma solução certa e eficaz. Assim, a
medida provisória é precisa ao condicionar a atuação do gestor a justificativa observando critérios
técnicos já que, caso resolva ignorar evidências científicas, este deverá justificar sua conduta com
outras evidências que apontem em sentido contrário.
Nada impede, no entanto, que o gestor venha a ser responsabilizado por ato de improbidade por
negar a ciência quando houver maior conhecimento técnico acerca da doença do corona vírus, já que
a culpa grave pode constituir ato ímprobo ou, ainda, após o encerramento da vigência da medida. Isso
porque, com informações científicas concretas, pesquisas cujos resultados restaram devidamente
comprovados, altera-se o contexto da pandemia e, portanto, altera-se também a atuação do gestor.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia do COVID-19 trouxe dados alarmantes e um novo inimigo mundial. Ainda que tenha
sido decretada em março de 2020, o desespero por soluções rápidas e efetivas no combate ao vírus
permanece. Em que pese a grande quantidade de pesquisas científicas em andamento, as evidências
existentes até o momento divergem entre si quanto ao tratamento, uso de possíveis medicações
e, até mesmo, possibilidade de imunidade ao corona vírus. A compra de insumos hospitalares e os
investimentos na área da saúde para atender a alta demanda de infectados, somados a problemática
de combater a doença ao mesmo tempo em que se busca minimizar possíveis impactos negativos nas
demais esferas da sociedade criou um cenário de insegurança para o gestor público.
Não existem evidências científicas para determinar uma atuação certeira e eficaz por parte do agen-
te sem que este incorra em qualquer equívoco. No entanto, as evidências existentes até o momento são
suficientes para guiar a atuação do gestor conforme os princípios da precaução e prevenção, cumprindo,
também seu dever de atuar de modo imediato, consagrado pelo art. 37 da Constituição Federal de 1988.
A Medida Provisória 966/2020, ao condicionar a atuação do agente público a justificação amparada
em critérios técnicos e científicos, garante a atuação do gestor em seu modo mais eficiente, já que este
não mais poderá eximir-se de agir visando resguardar-se de possível responsabilização futura. Ressalta-
se que a pandemia exige decisões rápidas por parte do gestor público que, por sua vez, enfrenta uma
série de incertezas sobre quais as medidas mais adequadas para combater a pandemia.
A responsabilidade do agente prevista pela Medida Provisória leva em consideração a possibilidade
de erro do gestor. Este, por sua vez, ao guiar-se pelos entendimentos das autoridades de saúde, não
penas se exime de incorrer na prática de erro grosseiro, como também garante sua atuação de modo
mais efetivo. Com a Medida Provisória, o agente encontra-se obrigado a tomar as decisões necessárias
frente ao cenário de pandemia, não podendo abster-se de atuar ou, ainda, atuar de modo altamente
negligente sem observância de quaisquer dados científicos.
A improbidade administrativa, por ora, não pode ser objeto da responsabilização do agente visto que
as incertezas científicas superam as evidências. A sanção imposta pela Medida Provisória 966/2020 consi-
dera o contexto pandêmico em que atua o gestor. No caso de uma mudança no cenário da pandemia, como
a produção de uma vacina eficaz ou resultados comprovados no tratamento de infectados com determinada
medicação, a atuação do gestor não mais estará dotada de tanta insegurança, podendo a prática de decisão
errônea praticada com culpa grave condicionar a responsabilização do agente por ato ímprobo.

REFERÊNCIAS

A RESPONSABILIDADE DOS GESTORES PÚBLICOS NO ENFRENTAMENTO DA COVID-19.


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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA


NA PRESERVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE:
A (DES) JUDICIALIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO
DE ACESSO A TRATAMENTOS MÉDICOS

Henrique Balduvino Saft Dutra123


Dari Nass124

RESUMO: A negação do direito à saúde junto às entidades estatais fez germinar um fenômeno chamado
de judicialização da saúde, do qual passaram a recorrer indivíduos em situação de vulnerabilidade.
Com isso, a Defensoria Pública passou a representar a ponte de acesso à promoção do mencionado
direito, mediante a obtenção de insumos sanitários e conciliação entre os personagens envolvidos no
êxito do sistema de saúde. Este trabalho possui como finalidade, assim, discorrer acerca da atuação da
Defensoria Pública no atendimento aos necessitados que procuram assegurar o direito constitucional à
saúde. Considerando-se que é inafastável o compromisso estatal no sentido de viabilizar o bem-estar de
todos, garantindo-se o direito à saúde na condição de corolário da dignidade humana, as ações judiciais
afloram como possibilidade de compelir a figura estatal ao fornecimento de tratamentos clínicos.

Palavras-chave: Defensoria Pública. Direito. Judicialização. Saúde.

INTRODUÇÃO

Ao debater o direito à saúde, muitas vezes este se vincula ao crescimento de demandas judiciais, uma
vez que é florescente o fenômeno que se ousou chamar de judicialização da saúde. Isso visto que o ente
estatal, ao preterir os direitos sociais, segue deixando os indivíduos “à mercê” dos mecanismos judiciais,
que, amiúde, acabam também não se mostrando eficientes. A doutrina jurídica contemporânea reflete que:

No contexto democrático contemporâneo, o fenômeno da judicialização da saúde expressa


reivindicações e modos de atuação legítimos de cidadãos e instituições, para a garantia e promoção
dos direitos de cidadania amplamente afirmados nas leis internacionais e nacionais. O fenômeno
envolve aspectos políticos, sociais, éticos e sanitários, que vão muito além de seu componente
jurídico e de gestão de serviços públicos. (PEPE; SCHRAMM; SIMAS, 2010)

Observa-se que muitos obstáculos subsistem na organização de um sistema efetivo de saúde


pública no Brasil e que supere a dicotomia existente entre a lei positivada e a lei corporificada, como a
escassez de recursos financeiros e as amplas filas de espera para a obtenção e realização de tratamentos
clínicos. Por esse motivo, muitos indivíduos passaram a valer-se dos institutos processuais para ver
materializada a sua garantia constitucional à saúde. Aqui, mostra-se importante a atuação institucional
da Defensoria Pública, enquanto provocadora do Poder Judiciário, em favor do acesso à saúde dos
indivíduos das classes populares. O acesso gratuito à justiça é particularmente necessário às parcelas
menos favorecidas da população, as quais vivenciam, diariamente, problemas na tentativa de obter os
mais elementares serviços de saúde. Em vista disso, a assistência jurídica às mencionadas parcelas da
população otimizam, paralelamente, o exercício da cidadania e a devida estruturação da saúde pública.
No entanto, para mais de assistir os necessitados em eventual judicialização da saúde, a atuação
da Defensoria Pública passa pela necessidade de criação de alternativas tendentes a impossibilitar
o atual “congestionamento” do Poder Judiciário. Para isso, indispensável é rearticular o processo

123 Acadêmico do 6º semestre do Curso de Bacharelado em Direito (SETREM). E-mail: henriquedutra2012@gmail.com


124 Acadêmico do 6º semestre do Curso de Bacharelado em Direito (SETREM). E-mail: darinass@hotmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

administrativo prévio e o tratamento coletivo que se dá às demandas.


Ora, o presente texto refere-se a uma pesquisa bibliográfica que sistematiza os estudos produzidos
até o presente momento relacionados ao tema em questão. O problema em análise, de natureza teórica
e especulativa, persiste apesar de passadas mais de três décadas desde a promulgação da Constituição
Federal de 1988, a qual consolidou em seu texto a saúde como direito de todos e dever do Estado.
Dessarte, o objetivo deste debate não se resume em analisar a insuficiência do ente estatal e
a função constitucional da Defensoria Pública na preservação do direito à saúde, mas também de
que maneira esta se encontra inibindo novas demandas judiciais nesse sentido. Os objetivos, à vista
disso, fazem-se totalmente cabidos, estando eles alinhados com o problema da pesquisa.

1 DESENVOLVIMENTO

A saúde, condição da própria existência e subsistência humana, é apresentada pela Constituição


Federal como sendo um direito de todos, por meio da garantia de acesso universal e igualitário. A
despeito da novidade apresentada pela Constituição Federal, que, pela primeira vez, desenvolveu a
noção de direito à saúde, muitas vezes ainda existe um “abismo” entre a existência do direito à saúde
e a sua materialização.
Ora, o chamado movimento sanitarista acontecido na década de 1980 fez brotar um discurso
utopista direcionado ao reconhecimento do direito universal à saúde e do dever do ente estatal em ga-
ranti-lo. As reivindicações do mencionado movimento foram abraçadas pelo projeto, também utópico,
da Constituição Federal. As premissas apresentadas pelo texto constitucional representaram, pois, um
avanço ímpar para a saúde pública no Brasil, que, em inúmeros momentos, atingiu níveis exemplares
no atendimento à comunidade. Exemplo disso é o programa desenvolvido pelo Poder Executivo Federal
para o tratamento do vírus HIV/Aids, que, presentemente, é referência em âmbito global.
Deve aqui ser destacado que a Constituição Federal, em seu artigo 196, ao fazer menção à saú-
de, abriga uma norma de natureza programática, o que sugere a necessidade de complementação da
dita norma por lei ordinária, tornando mais distante a consubstancialização de um direito universal à
saúde. O referido artigo, esculpido no texto constitucional, merece transcrição no presente trabalho.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988)

Enxerga-se na passagem acima a preocupação do legislador constituinte em desenvolver a noção


de direito à saúde como direito público subjetivo e prerrogativa jurídica indisponível que se estende
à generalidade das pessoas, impondo ao organismo estatal a tomada dos cuidados indispensáveis às
funções orgânicas e à prevenção das doenças, devendo o mesmo partir da consciência de que a saú-
de consiste em um dos bens intangíveis mais valiosos do ser humano. Efetivamente, o ente estatal,
com a promulgação da Constituição Federal, tomou para si a responsabilidade na criação dos serviços
necessários à saúde, mas o faz por meio de normas infraconstitucionais. À vista disso, a publicação
da Lei Nº 8080/1990 regulamentou o direito à saúde no Brasil ao definir os seus princípios e diretri-
zes. A criação do Sistema Único de Saúde – SUS –, por meio da mencionada lei, aliado à instituição de
planos de saúde suplementar, independentes do financiamento estatal, ocasionaram a denominada
universalização excludente do direito à saúde. Pois bem, o crescimento do setor privado no âmbito da
saúde ocorreu à custa da perda de qualidade do setor público, o que fez com que este passasse a ser
considerado o sistema das parcelas mais carentes da população, enquanto que os planos supletivos
dirigiam-se exclusivamente às parcelas mais favorecidas economicamente, ao chamado “grupo de
cima”. Com essa perspectiva, as classes abastadas, que, historicamente, constituem grandes forma-
doras de opinião, preteriram a luta pela materialização do direito à saúde. (CASTRO, 2020).
Nesse contexto, onde o fornecimento gratuito de medicamentos, resultante da visível precarie-
dade apresentada pelo Sistema Único de Saúde – SUS –, mostra-se insuficiente, desponta o fenômeno
chamado de judicialização da saúde, da qual passaram a socorrer-se as classes de menor poder aqui-
sitivo. Por falar nisso, de acordo com estimativas veiculadas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

–, existiam no Brasil, até o ano de 2016, mais de duzentos e quarenta mil pleitos judiciais envolvendo
o setor de saúde, o que engloba não apenas questões como a obtenção de medicamentos e vagas em
hospitais especializados, como também planos de saúde e seguros. (MAGALHÃES, 2013)
Ao discorrer acerca da judicialização da saúde, não se pode esquecer que a jurisdição é inerte,
isto é, não “bate de porta em porta”, existindo a necessidade de ser provocada. Esta provocação deve
ocorrer por meio de um processo, que se inicia por opção da parte. É aqui que surge o importante
papel de natureza constitucional conferido à Defensoria Pública, qual seja, o de facilitar a prestação
de serviços jurisdicionais pelo Estado, por meio da prestação de orientação jurídica e da promoção
dos direitos humanos individuais e coletivos de maneira integral e gratuita aos necessitados. Nesse
panorama, as parcelas da população anteriormente denegadas, em virtude da fragilidade dos serviços
de saúde estatais, encontraram na Defensoria Pública a chave de acesso não somente à justiça, como
também à saúde na qualidade de direito social.
Em virtude de sua “juvenilidade”, a Defensoria Pública era, até pouco tempo atrás, um persona-
gem constitucional desconhecido para diversos brasileiros, o que levava estudiosos a afirmar que havia
uma “timidez” envolta em suas atividades. Entretanto, presentemente, observa-se que a mencionada
instituição passou a desempenhar papel central significativo nos processos de solução de conflitos
administrativos abrangendo questões como o alcance ao direito à saúde, objeto do presente trabalho.
A Defensoria Pública, estando qualificada como garantia fundamental constitucional, por estar
associada ao acesso à justiça, é apontada pela massa doutrinária como componente do núcleo ele-
mentar de um Estado Democrático de Direito. Isso uma vez que seu papel encontra-se relacionado à
necessidade de uma tutela jurídica com vistas ao respeito às liberdades civis e aos direitos humanos,
estando predestinada “à plena busca da felicidade aos menos abastados, com o compromisso
fundamental de tentar a máxima erradicação da miséria e a criação de oportunidade para todos os
indivíduos, tornando-os cidadãos.” (TERROSO, 2016).
Nesse sentido, é necessário trazer à baila o artigo 134 da Constituição Federal, o qual concei-
tuou a Defensoria Pública como sendo:

Art. 134. […] instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe,
como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica,
a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direi-
tos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. (BRASIL, 1988)

Do mesmo modo, convém apresentar a redação do artigo 3º da Lei Complementar 80, de 1994,
a qual identifica terminantemente os objetivos da Defensoria Pública, senão se observa.

Art. 3º-A.   São objetivos da Defensoria Pública: 


I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; 
II – a afirmação do Estado Democrático de Direito; 
III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e 
IV – a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. (BRASIL, 1994)

Emerge, por meio da criação da Defensoria Pública, a pretensão de oferecer a todos os indivíduos a
mesma qualidade no acesso à justiça, inobstante a existência de parcos recursos financeiros, bens e pos-
ses, o que fica nítido no teor do inciso I do artigo acima citado, ao estabelecer a redução das desigualdades
sociais como um de seus fins precípuos. Afinal de contas, a democracia e a cidadania transformar-se-iam
em duas promessas fracassadas, se indivíduos não pudessem granjear seus direitos em juízo sem uma pa-
ridade de armas para o bom “combate” processual. Por intermédio da Defensoria Pública, é, sim, possível
que pessoas de diferentes classes socioeconômicas possuam à sua disposição as mesmas oportunidades e
“chaves” nas disputas por seus interesses, afastando daqueles litigantes com menor poderio financeiro a ne-
cessidade de pagamento de custas processuais e honorários advocatícios. Destaca-se que os interesses aqui
aludidos não se limitam àqueles ligados à saúde, mas, em consequência da função promocional dos direitos
humanos atribuída à Defensoria Pública, podem compreender áreas como a educação, habitação, segurança
e meio ambiente, enquanto meios de crescimento social do ser humano e da sociedade que o cerca.
Tem-se que a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional consistem em princípios
institucionais que regem as atividades da Defensoria Pública e pelos quais a referida instituição deve

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ser analisada como um todo. Contudo, existem dois âmbitos de atribuições do órgão, quais sejam,
Defensoria Pública da União e Defensoria Pública Estadual, denominações estas que já sugerem as
suas diferenças. A primeira atua junto aos graus e instâncias administrativas federais, ou seja, junto
à Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Tribunais Superiores. À vista disso, encarrega-
se, especialmente, de ações previdenciárias, trabalhistas, direitos do estrangeiro, questões tributárias
e casos relacionados ao sistema financeiro. Por outro lado, a Defensoria Pública Estadual encontra-se
associada aos graus e instâncias estaduais, recepcionando casos que envolvem, tendo como exemplo,
a área criminal, a defesa dos direitos de crianças e adolescentes e a área de família (ANADEP, 2017).
Contempla-se no dispositivo da Constituição Federal que cuida da Defensoria Pública, o qual já
fora apontado acima, que a mesma é instituição estabelecida no Brasil com o propósito de atender
exclusivamente os necessitados. Com essa postura, o referido trecho constitucional promove uma
“brecha”, que torna embaraçoso o trabalho de juristas e doutrinadores do âmbito jurídico, já que, em
sentido amplo, necessitado equivale a qualquer indivíduo que carece de algum elemento vital. Por
decorrência lógica, considera-se a necessidade de que trata a redação constitucional uma necessida-
de de natureza financeira, conceito este adotado pela Resolução Número 07, de 2018, do Conselho
Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, o qual declara que a prestação de
orientação jurídica pela mesma é reservada às pessoas físicas e jurídicas que atestarem a sua hipossu-
ficiência financeira. Bem assim, acrescenta que é tida como hipossuficiente financeiramente a pessoa
que comprovar que a renda familiar, bruta e mensal não extrapola três salários-mínimos nacionais e
cujo patrimônio, móvel e imóvel, não exceda trezentos salários-mínimos nacionais. Dessa maneira, os
mecanismos normativos internos da Defensoria Pública balizam a sua acessibilidade, mas não a sua
disposição para engrandecer o ser humano (ASENSI; PINHEIRO, 2015).
No tocante às demandas sanitárias, tem-se que o atendimento da Defensoria Pública apresenta
duas fases. Antes de iniciadas as referidas fases que devem aqui ser pormenorizadas, destaca-se que,
ao procurar um dos postos de atendimento da Defensoria Pública, o indivíduo é submetido à uma tria-
gem, com o intuito de aferir a sua renda e se pode valer-se de seus serviços. Em seguida, o indivíduo é
questionado com relação à procura do Sistema Único de Saúde – SUS. Na hipótese de o assistido ainda
não ter assim procedido, a Defensoria Pública orienta o mesmo a buscar o sistema de saúde públi-
ca, com a finalidade de resolver administrativamente a sua reivindicação e tentar, justamente, a sua
desjudicialização, o que representa a primeira das ditas fases, a qual é de natureza administrativa.
Em um segundo momento, no caso de não prosperar a reivindicação administrativa e de não existir
outro caminho, necessário é recorrer às vias judiciais, as quais devem ser provocadas pela Defensoria
Pública. Nesse aspecto, importa apontar que a movimentação da “máquina” jurisdicional pela Defen-
soria Pública pode se dar por meio de tutelas individuais ou tutelas coletivas. Na primeira hipótese,
apresenta-se a possibilidade de mover uma ação ordinária objetivando o fornecimento de tratamen-
tos clínicos, que não se resumem em pedidos de fornecimento de medicamentos, mas incluem, bem
assim, o fornecimento de fraldas, tratamentos ambulatoriais, internações, próteses e outros insumos
específicos para realização de tratamentos médicos. Fala-se em ação ordinária por consistir em uma
ação por exclusão, uma vez que é utilizada sempre que não couber outro procedimento específico
ou espécie de processo de conhecimento, a ser dirigido em face da União, dos Estados ou dos Muni-
cípios. Aqui, destaca-se que é entendimento já consolidado junto ao Supremo Tribunal Federal – STF
– e fixado em tese de repercussão geral o reconhecimento da responsabilidade solidária de todos os
entes federados na assistência à saúde, o que provém de sua competência constitucional comum no
mencionado setor. É o que restou definido quando do julgamento do Recurso Extraordinário 855178,
de relatoria do ministro Luiz Fux, que pode ser contemplado abaixo.

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁ-


RIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBS-
CURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PROCEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLI-
DÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS
DE DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico
adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade
solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isolada-
mente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete
à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e de-


terminar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem forne-
cimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em
face da União. Precedente específico: RE 657.718, Rel. Min. Alexandre de Moraes. 4. Embargos de
declaração desprovidos. (STF, 2015, on-line)

Por essa razão, havendo a necessidade de acionar o sistema judicial com vistas ao fornecimento de
tratamentos clínicos, a ação pode ser processada em face da União, dos Estados ou dos Municípios, indis-
tintamente, ou, até mesmo, em face de todos, devendo, nessa situação, as despesas que compreendem o
tratamento pleiteado ser divididas entre os entes. Não se pode deixar de debater, da mesma maneira, no
presente artigo o trabalho da Defensoria Pública por intermédio das ações coletivas, as quais, ainda que
não componham a tradição jurídica brasileira, permitem a apreciação em juízo de questões estruturais,
como aquelas relativas à saúde pública, atingido os interesses de um grupo de pessoas que se encontram
em um mesmo contexto de vulnerabilidade. Isso significa que as ações coletivas possuem efeitos erga
omnes e ultra partes, isto é, válidos para todos e não apenas para as partes litigantes. Sendo assim, as de-
cisões articuladas em ações coletivas estendem-se, inclusive, às pessoas que não participam do processo
judicial. A Defensoria Pública, geralmente, vale-se da ação civil pública para defender interesses difusos
como o ora posto em testilha. A finalidade da ação civil pública, um dos mecanismos constituintes do
“microssistema” das tutelas coletivas mencionados pela Constituição Federal, é, exatamente, postular a
proteção de interesses metaindividuais. Não é raro deparar-se com ações dessa natureza destinadas, a
título de exemplo, à obtenção de medicamentos e meios terapêuticos indispensáveis ao tratamento de
patologias como o câncer, que, na atualidade, alcança mais de seiscentas mil pessoas no Brasil. Estando
a obtenção dos tratamentos referenciados vinculada ao restabelecimento da saúde e do bem-estar físico,
na qualidade de direito líquido e certo extensivo a todas as pessoas, a omissão das autoridades estatais
pode ser rechaçada por um mandamus, definido como um remédio judicial que visa obrigar um órgão
ou governo a fazer o que constitui seu dever natural. A ação civil pública é o exemplo mais usual de
mandamus e que pode ser utilizado no cenário anteriormente exposto, em que existe em determinado
local alta incidência de câncer, estando as autoridades públicas alheias às necessidades de tratamentos e
ao sofrimento apresentados pela população. Nesse momento, entra em cena o trabalho dos legitimados
ativos, especificados em lei, para promover a ação civil pública, que, além da Defensoria Pública, dizem
respeito ao Ministério Público, a União, os Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações,
sociedades de economia mista e associações interessadas.
Todavia, não se deve tratar a judicialização como único atalho em face do insucesso na fase admi-
nistrativa, já que, tão importante quanto o conhecimento que inclui as finalidades de uma ação judicial,
é o de meios alternativos na consumação de direitos e que podem reinventar os modos de atuação das
instituições jurídicas. Sendo assim, os conflitos sociais podem sujeitar-se tanto a uma judicialização,
onde há o emprego de instrumentos processuais, como a ação ordinária e a ação civil pública, quanto a
uma “juridicização”, onde não se leva os mesmos ao conhecimento do Poder Judiciário, porém se discor-
re a seu respeito sob uma perspectiva jurídica por meio de recursos extraprocessuais. (ASENSI, 2010)
A Defensoria Pública apresentou uma amostragem do sistema de “juridicização”, no momento em
que passou a interagir nos programas de gestão da saúde pública e de interlocução entre poderes e ao
implantar espaços institucionais para a mediação extrajudicial de conflitos, contribuindo na rearticula-
ção do processo administrativo. A “aposta” desenvolvida pela instituição jurídica citada promoveu um
ambiente auspicioso à desjudicialização, assim como à desburocratização, à celeridade das decisões, à
informalidade e ao diálogo institucional, advindo, com tal característica, uma mudança drástica de sua
“mentalidade” e um trabalho de sensibilização dos gestores públicos, os quais passaram a vislumbrar
o provimento de tratamentos clínicos não mais como meras ordens que provêm a todo o tempo do
Poder Judiciário. Pode-se, dessa forma, obstar o congestionamento processual que existe neste, que é
o poder marcado pela morosidade e no qual se reforça o descrédito e a insegurança, não à toa, visto
que fatos esdrúxulos e, até mesmo, hilários transitam diariamente pelas vias judiciais. Exemplo disso
é a apreciação pelo Supremo Tribunal Federal – STF – de recurso extraordinário que tratava do direito
de receber um medicamento de alto custo, onde a postulante já havia falecido há mais de cinco anos.
Ora essa. É preciso que os órgãos governamentais conscientizem-se de que há vidas em “jogo” quan-
do indivíduos postulam medicações e outros recursos clínicos. Evidentemente, o desenvolvimento de

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

políticas direcionadas ao melhoramento da gestão da saúde e à contenção dos números alarmantes de


reivindicações judiciais, mediante a coparticipação da Defensoria Pública e do Poder Público, deve ser
iniciada junto aos Municípios, especialmente em função de critérios geográficos.
Pois bem, geralmente, as Prefeituras Municipais, por meio de seus procuradores, que respondem
pelos seus interesses, resistem às pretensões judiciais, arguindo a falta de orçamento, a não inserção
de medicamentos nas listas lançadas pelo Sistema Único de Saúde – SUS – e pela Agência Nacional
de Vigilância Sanitária – ANVISA – ou a falta de competência para acolhê-las. Nesse tópico, convém
colocar em relevo que os entes municipais devem, obrigatoriamente, destinar, no mínimo, 15% de
suas receitas à saúde pública, valor superior àquele estabelecido aos Estados e Distrito Federal, que
é de 12% e prescrito pela Emenda Constitucional 29/2000. Contudo, seguidamente, vê-se as receitas
atribuídas à saúde sendo domadas pela ineficiência da administração e aplicação do erário público,
carecendo uma melhor gestão do fluxo de caixa.
Cabe aqui deixar registrado que o Município de Horizontina/RS, a título de exemplo, alocou no
ano de 2020, pela Lei 3.928/2019, um montante equivalente a R$ 16.200.000,00 para o âmbito da
saúde, sendo que apresenta uma população estimada de quase dezenove mil habitantes. É, por isso,
causa de surpresa e espanto para muitos de seus munícipes, uma vez que se trata de um valor bastan-
te expressivo, se levada em consideração a pequena população presente no município e que, mesmo
assim, não é capaz de atender à integralidade das demandas (MUNICÍPIO DE HORIZONTINA, 2020).
Do mesmo modo, o maior número de municípios reserva somente o percentual mínimo neces-
sário de suas receitas à área sanitária, isto é, apenas está preocupado com o cumprimento da lei que
assim estabelece, sem ponderar as reais necessidades do setor, que, normalmente, contém maiores
demandas. É de bom alvitre, por isso, frisar que nada impede que o valor orçamentário taxado pela
legislação seja majorado, por meio de acordos realizados entre a Defensoria Pública e as Prefeituras
Municipais, de maneira que se possa executar políticas de extensão assistencial no âmbito da saúde.
Isso quer dizer que problemas de dita natureza podem ser solucionados recorrendo ao diálogo e ao
estudo, pelos quais podem ser observadas minuciosamente as dificuldades da população local, sendo
o resultado profícuo a todas as partes (ARRUDA, 2012).
Nessa perspectiva, tem-se que, na última década, as Defensorias Públicas Estaduais, entre as quais
a do Rio Grande do Sul, no ano de 2010, como maneira de suprir a incúria estatal, criaram núcleos
especializados em assistência à saúde, que não somente fortalecem o acesso judicial à saúde, porém,
fizeram-se de enorme importância, acima de tudo, na fiscalização do Poder Público e na articulação de
políticas públicas em favor das classes menos abastadas que necessitam dos serviços elementares de
saúde. Ou melhor dizendo, a sua atuação, por não se limitar a peticionamentos judiciais, mas por trans-
passar também pela tentativa de obter saídas fora da órbita do Poder Judiciário, tornou-se um posto de
desjudicialização. Testemunha isso o fato de que o núcleo especializado em assistência à saúde, situado
no município de Porto Alegre, realizou, no ano de 2019, 8.746 atendimentos, sendo que foram judicia-
lizados apenas 1.172 ações envolvendo o fornecimento de medicamentos, o que representa um índice
de judicialização de somente 13% (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2020).
Mesmo em período “delicado” marcado pela pandemia do COVID-19 no ano de 2020, no qual os
atendimentos realizam-se remotamente, a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, em parti-
cular, elaborou, entre 18 de março e 30 de junho do presente ano, 152.429 peticionamentos, sendo que
33.919 dos referidos peticionamentos envolvem o fornecimento de medicamentos. Isso significa que o
fornecimento de medicamentos representa o assunto de maior procura entre os assistidos da Defensoria
Pública, correspondendo a aproximadamente 22% dos peticionamentos realizados no período aludido,
crescendo paulatinamente o número de decisões judiciais ordenando o seu fornecimento, a despeito de
estes não figurarem nas listas do Sistema Único de Saúde – SUS – e da invocação pelo Estado do denomi-
nado princípio da reserva do possível (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2020).
Tudo isso testemunha que a Defensoria Pública é instituição de credibilidade no âmbito comuni-
tário, ao buscar reproduzir a redação, possivelmente fantasiosa, do caput do artigo 5º da Constituição
Federal, ou seja, a de que os direitos humanos alcançam todos os seres humanos, não subsistindo
qualquer distinção envolvendo raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra cir-
cunstância. Tal representa um “gesto solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente
daquelas que nada tem, exceto a própria vida e dignidade” (PRETEL, 2010).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Convém também registrar que, entre os meses de abril e julho do ano de 2019, ocorreu a Primei-
ra Pesquisa de Satisfação dos Usuários da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, a qual
avaliou os níveis de satisfação dos usuários da instituição no que diz respeito aos serviços prestados.
Mencionada pesquisa indicou que 82,6% das pessoas atendidas revelaram-se satisfeitas ou muito
satisfeitas com o atendimento, sendo que o mesmo se reproduz no nível de confiança dos usuários
com relação à instituição, a qual é de 94,2%, sendo uma das causas a demanda por medicamentos não
providenciados no meio administrativo. Semelhantemente, pesquisa realizada pela GMR Inteligência
& Pesquisa no ano de 2017 apontou que a Defensoria Pública é tida como a instituição mais impor-
tante para os brasileiros, sendo que 92,4% das pessoas entrevistadas classificaram-na como “muito
importante” ou “importante”, o que a coloca em primeiro lugar entre todos as instituições citadas.
Além do mais, a mesma pesquisa demonstrou que a confiança entregue à Defensoria Pública cresceu
notadamente entre os anos de 2014 e 2017, passando de 54,7% para 74,1%. (ADPEP, 2019)

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face das asserções e resultados proporcionados pelo presente trabalho, verifica-se que a
Defensoria Pública passou a representar, no decurso dos anos, instituição de credibilidade junto
à população no que se refere ao acesso a tratamentos de saúde custosos. Desse modo, revelou-
se determinante e fundamental no desenvolvimento de uma inclusão democrática, ao falar pelos
necessitados, representando, pois, a voz da dignidade ultrajada.
Observa-se que a atuação da Defensoria Pública também transita pela necessidade de criação de
alternativas à judicialização do direito à saúde e, até mesmo, à banalização dos institutos processuais que o
amparam, como maneira de descarregar o Poder Judiciário e prevenir novos litígios, ao possibilitar a articulação
entre as demandas individuais assumidas e contribuir no desenvolvimento progressivo do Sistema Único de
Saúde – SUS. Por derradeiro, deve-se salientar que, a despeito do elevado número de pleitos envolvendo o
fornecimento de medicamento que perpassam pela Defensoria Pública, esta não pode ser encarada como
“posto de saúde” ou “farmácia”, porém como um centro de mediação entre os anseios individuais e estatais,
aproximando-se das bases da coletividade e concedendo aos direitos um autêntico caráter universal.

REFERÊNCIAS

ADPEP. Pesquisa divulgada pela FGV afirma que a Defensoria Pública é a instituição
mais conhecida e melhor avaliada pela sociedade. Disponível em < https://www.adpep.org.
br/2019/12/02/pesquisa-divulgada-pela-fgv-afirma-que-a-defensoria-publica-e-a-instituicao-mais-
conhecida-e-melhor-avaliada-pela-sociedade/> Acesso em: 22/09/2020.

ANADEP. DPE ou DPU? Siglas parecidas, atribuições diferentes! Disponível em <https://www.


anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=34427> Acesso em: 21/09/2020.

ARRUDA, Igor Araújo. Defensoria pública na concretização de políticas públicas:


um controle da aparente discricionariedade administrativa governamental.
Disponível em < https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/defensoria-
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251
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A CONSCIENTIZAÇÃO POLÍTICA COMO FERRAMENTA


DE CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA

Vanessa Thomas Becker125


Aline Antunes Gomes126

RESUMO: Diante do atual cenário de crise na política brasileira, busca-se investigar quais são as causas
que dificultam a concretização da democracia no país. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo
bibliográfico, cujo método de abordagem é o hipotético-dedutivo e o método de procedimento é o
comparativo. O objetivo da presente pesquisa é analisar o sistema político brasileiro e a consolidação
do Estado Democrático de Direito, à luz da consciência política dos eleitores. No que concerne aos
resultados, ressalta-se que a ausência da educação cidadã dos eleitores brasileiros, entendida como
pobreza política, impacta diretamente na consolidação do Estado Democrático de Direitos, pois
pertence ao povo o poder de influenciar o desenvolvimento do poder político na sociedade.

Palavras-chave: Cidadania. Democracia. Participação. Pobreza. Política.

INTRODUÇÃO

A democracia brasileira está em crise, uma vez que o país está imerso em escândalos de corrupção
e em atuações políticas que confrontam o texto constitucional, o que culmina na desaprovação popular
quanto à gestão dos governantes. A população passa a tecer críticas quanto à forma e o regime de
governo do país, bem como quanto ao modelo de representação política do cidadão brasileiro.
Frente a esse cenário, faz-se necessário proceder à investigação de quais são as causas da crise
política no Estado Brasileiro, que dificultam a concretização da democracia no país. Na presente
pesquisa, busca-se demonstrar que o cenário de violações e instabilidade reflete a qualidade da
atuação dos atores políticos do país. Compreende-se como atores políticos, em primeiro plano, os
cidadãos. Nesse ínterim, sugere-se como hipótese que a tribulação do cenário político do país está
interligada com a educação cívica do eleitorado.
Para compreender essa hipótese, é realizada uma abordagem das características da República
Federativa do Brasil, especificamente, quanto à forma de governo e o regime político adotado no
país para, então, ser introduzido o princípio da soberania popular e a importância da conscientização
política e da educação cívica para a manutenção da democracia no Brasil.
O presente trabalho caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa bibliográfica, baseada em
livros, artigos científicos e doutrinas, a fim de obter uma possível resposta para a problemática
apresentada. A abordagem do tema é feita pelo método hipotético-dedutivo. A pesquisa, por sua
vez, se efetua pelo método de procedimento comparativo, em razão do estudo comparativo entre os
fatores que ensejam no Brasil, a dificuldade de consolidação da democracia.

1 O ESTADO BRASILEIRO À LUZ DOS PRINCÍPIOS REPUBLICANOS E DEMOCRÁTICOS

Diante da crise no sistema político brasileiro e da desvalorização do Estado Democrático de

125 Acadêmica do 10º semestre do Curso de Direito da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos – GPJUR. Bolsista do Projeto de Pesquisa “Por uma epistemo-
logia feminista no Ensino do Direito: o reconhecimento das relações desiguais de gênero para a promoção da justiça social”
(PAPCT/UNICRUZ). Estagiária do Ministério Público Federal (PRM/Cruz Alta). E-mail: vanessa.tbecker@hotmail.com.
126 Professora do Curso de Graduação em Direito da Universidade de Cruz Alta. Advogada. Doutoranda em Direito pela
UFSC. Mestre em Direito pela Unijuí. Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduada em
Direito pela UFN. E-mail: algomes@unicruz.edu.br

252
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Direito, busca-se compreender qual a influência do cidadão para o desenvolvimento desse cenário.
Para isso, efetua-se o estudo quanto à forma de governo e o regime político adotado no país, bem
como os princípios que culminam na participação popular como ferramenta de atuação política para
a manutenção da democracia no Brasil.
A Constituição Federal127, em seu artigo primeiro, determinou a forma de governo, o regime
político e os fundamentos da República Federativa do Brasil. Adotou-se no país a forma de governo
Republicana e o regime político de Estado Democrático de Direito. No que diz respeito à forma de
governo republicana, diz-se que é “[...] designativo de uma coletividade política com características
da res pública, no seu sentido originário de coisa pública, ou seja: coisa do povo para o povo, que se
opõe a toda forma de tirania [...]” (SILVA, 2005, p. 102).
Extrai-se da colocação do autor (2005) que a forma de governo está atrelada à composição
basilar das relações de poder em uma sociedade. Dizer, então, que o Brasil é uma República, implica
em admitir que pertence ao povo todo e qualquer desenrolar da atividade estatal, que se dará em
conformidade com a legislação, uma vez que o Estado não se desenvolve pela vontade de um monarca.
Para Alexandrino e Paulo (2019, p. 90), o “intuito do conceito é, portanto, estabelecer quem deve
exercer o poder e como este se exerce”. Assim, quem exerce o poder são os representantes do povo,
que irão administrar a coisa pública, que ao povo pertence e ao povo deve ser direcionada.
A forma de governo Republicano está intrinsecamente ligada ao regime político adotado, que
no caso brasileiro, se trata de um Estado Democrático de Direito. Definir o significado de Estado
Democrático de Direito trata-se de uma árdua tarefa, ao ponto que implica em compreender que a
democracia não é algo estático, mas sim “meio e instrumento de valores essenciais de convivência
humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem” (SILVA, 2005, p. 126).
Segundo Alexandrino e Paulo (2019, p. 91):

Atualmente, a concepção de “Estado de Direito” é indissociável do conceito de “Estado Democrático”,


o que faz com que a expressão “Estado Democrático de Direito” traduza a ideia de um Estado em
que todas as pessoas e todos os poderes estão sujeitos ao império da lei e do Direito e no qual os
poderes públicos sejam exercidos por representantes do povo visando a assegurar a todos uma
igualdade material (condições materiais mínimas necessárias a uma existência digna).

O regime de governo traduz, portanto, a forma como ocorre o desenvolvimento do poder


político adotado em um país. É possível extrair da junção do Estado Democrático de Direito e do ideal
Republicano, que o poder emana do povo e ao povo deve ser direcionado, dentro da legalidade das
normas preceituadas e visando assegurar condições dignas de existência pautadas na garantia dos
direitos fundamentais inerentes ao homem e a toda a população.
O ideal democrático tem por base dois princípios que se demonstram essenciais para a compreensão
do real significado da relação entre o povo e o poder político do Estado. São eles: a soberania popular
e a participação popular. Segundo Silva (2005), o princípio da soberania popular consiste em dizer que
deriva do povo todo o poder do Estado, logo, é o povo a fonte unitária do poder estatal. Já no que diz
respeito ao princípio da participação popular, o autor (2005, p. 131) sugere que deve haver participação
direta ou indireta do povo no poder, “para que este seja efetiva expressão da vontade popular”.
A democracia exige, assim, como condições essenciais para sua existência, o reconhecimento da
soberania popular, permeando o sentido de que só é genuíno o poder que sobrevém do povo, o poder
que corresponde aos interesses da população, em que há participação popular e envolvimento com o
político, seja por meio da escolha de candidatos, seja por meio de institutos de participação direta.
Há três categorias para definir como o povo participa do poder na democracia: a direta, em que
diretamente os cidadãos governam o Estado; a indireta ou representativa, em que o povo escolhe
representantes para gerir a coisa pública em nome de seu interesse; e, a democracia semidireta ou
participativa, que combina institutos da democracia direta e indireta, porquanto mantém a eleição
de representantes para governar, mas também, disponibiliza institutos de atuação direta do povo na
política estatal (BONAVIDES, 2001a).

127 Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito [...].

253
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A Constituição Federal128 instituiu, no Brasil, que a soberania popular129 será exercida de forma
indireta pelo sufrágio universal, por meio do voto para escolha dos representantes que ocuparão os
cargos do Poder Legislativo e do Poder Executivo e, também, de forma direta, mediante os institutos
do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular.
Na democracia indireta ou representativa, o povo atua por meio da escolha de representantes
que deverão agir em seu nome. A participação popular indireta deriva do princípio da representação,
a partir da escolha de governantes, que, atualmente, ocorre por meio das “técnicas eleitorais com suas
instituições e o sistema de partidos políticos” (SILVA, 2005, p. 131). No entanto, não há como resumir
a participação popular à escolha de governantes, pois o regime democrático brasileiro pressupõe,
também, a participação do povo de forma direta na vontade estatal.
O princípio da soberania popular só é esgotado quando o povo assume posição ativa perante a vontade
política do Estado. Bonavides (2001b, p. 50-51), pontua que a participação “ocupa, aí, um lugar decisivo de
formulação do conceito de Democracia, em que avulta, por conseguinte, o povo – povo participante [...],
povo elemento ativo e passivo de todo o processo político”. A essência democrática concentra-se, portanto,
nos princípios da soberania e da participação popular. O povo, por meio dos denominados direitos políticos,
garante “o direito democrático de participação [...] no governo” (SILVA, 2005, p. 344).
Para efetivamente exercer o poder político, cada indivíduo que o compõe, precisa preencher
algumas condições, que estão dispostas na Constituição Federal130, como a necessidade do alistamento
eleitoral. Ao indivíduo que preenchê-las, atribui-se uma nova nomenclatura, ele passa a ser, então:
cidadão, eleitor. Nas palavras de Silva (2005, p. 345-346):

Cidadania [...] qualifica os participantes da vida do Estado, é atributo das pessoas integradas na
sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser
ouvido pela representação política. Cidadão, no direito brasileiro, é o indivíduo que seja titular
de direitos políticos de votar e ser votado e suas consequências. [...] Os direitos de cidadania
adquirem-se mediante alistamento eleitoral na forma da lei. O alistamento se faz mediante a
qualificação e inscrição da pessoa como eleitor perante a Justiça Eleitoral.

Assim, uma vez cumpridos os requisitos, o povo passa a ser qualificado como eleitor, cidadão.
Aquele que efetivamente pode participar do gerenciamento do poder político, aquele que pode eleger
representantes, votar em plebiscitos e referendos, apresentar um projeto de lei, e, inclusive, tornar-
se governante. No entanto, a cidadania ultrapassa a concepção dos direitos políticos. “A cidadania é
fundamentalmente um método de inclusão social” (SOUKI, 2006, p. 41).
A democracia participativa implica na compreensão, por parte dos próprios agentes políticos,
de que a condição de cidadão atribui capacidade de influenciar o desenvolvimento político do Estado.
Contudo, os cidadãos precisam, muito mais que exercer os direitos políticos, internalizar a cidadania
como fundamento de sua vivência cotidiana, tal como preceitua a Constituição Federal, ao estabelecer
a cidadania como fundamento do Estado131. Assim, no próximo tópico, será abordada a conceituação
de cidadania e a necessidade de internalização dessa prática na vivência dos cidadãos brasileiros para
a consolidação democrática no país.

2 A CIDADANIA E SUA INFLUÊNCIA NO DESENVOLVIMENTO POLÍTICO DO ESTADO

Na presente seção, promove-se uma descrição quanto ao conceito de cidadania, a fim de


demonstrar que a atuação dos eleitores brasileiros precisa estar relacionada com a promoção
da atividade política de modo consciente e responsável, ao ponto que o exercício da cidadania
ultrapassa a mera utilização dos direitos políticos de forma periódica. Caso contrário, o Estado deixa

128 Art. 1º [...]. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou direta-
mente, nos termos desta Constituição.
129 Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para
todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. [...]
130 Art. 14 [...] § 1º. O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos
para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. [...]
131 Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] II – a cidadania [...].

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de representar a vontade popular, culminando em um ambiente de crise de representatividade.


Nesse sentido, discorre-se sobre o exercício da cidadania atrelado a internalização dos princípios
republicanos e democráticos pelos cidadãos, para que haja efetivo desenvolvimento do princípio da
soberania popular, como ferramenta de construção e consolidação democrática.
O conceito de cidadania remete sua atenção para o indivíduo e não para o Estado de forma
geral, assim, atenta-se para a composição da vida de um indivíduo em particular, o cidadão, e sua
atuação como participante da vida Estatal. Para Carvalho (2018, p. 16), a cidadania desdobra-se em
ser detentor de direitos civis, políticos e sociais.
Os direitos132 civis, conforme Bobbio (2004), são aqueles relacionados com as liberdades
individuais, ou negativas, liberdade religiosa, liberdade de locomoção, de opinião, de reunião, entre
tantos outros. Estão previstos, em sua maioria, no artigo 5º da Constituição Federal133. Os direitos
políticos, relacionados com a participação do homem em sociedade, no poder político, estão dispostos,
por sua vez, a partir do artigo 14134; e os direitos sociais, relacionados às prestações positivas do
Estado para a coletividade estão consolidados no artigo 6º do texto constitucional135.
Em interpretação ao entendimento de Marshall (1967), Carvalho (2018) descreve as dimensões
de cidadania com base no processo ocorrido na Inglaterra, sugere que a sequência lógica de aquisição
de direitos seria a conquista dos direitos civis, relacionados às liberdades particulares; com isso, os
cidadãos passariam a desenvolver o interesse por envolvimento nas questões estatais, representando
a aquisição de direitos políticos; para então, reivindicar direitos de interesse coletivo, os chamados
direitos sociais. Assim, originar-se-ia um cidadão pleno.
No entanto, o autor (2018, p. 17) aponta que, apesar de a organicidade da aquisição de direitos
conforme narrou Marshall (1967) seja lógica, nem todos os países a desenvolveram igualmente, o que
garante, à cidadania uma característica de “fenômeno histórico”, em que não há uma organização fixa
de fenômenos para o seu desenvolvimento, pois se dará de forma individualizada em cada nação.
Assim, o que se pode extrair do entendimento de Marshall (1967, p. 84) sobre a cidadania é que
ela “exige um elo de natureza diferente, um sentimento direto de participação numa comunidade
baseado numa lealdade a uma civilização que é um patrimônio comum”.
A aquisição de direitos do cidadão brasileiro não seguiu a lógica indicada por Marshall (1967),
pois o povo brasileiro teve acesso primeiro aos direitos sociais, que foram concedidos pelo Estado,
antes mesmo de se introduzir direitos civis ou políticos, o que, nas palavras de Carvalho (2018, p.
221), “gera uma excessiva valorização do Poder Executivo”, pois foi esse poder que concedeu ao povo
brasileiro os direitos sociais, os direitos de participação na riqueza estatal. Nesse sentido, afasta-se a
lógica de obtenção de direitos por meio da luta, da conquista (BONAVIDES, 2001b).
Dessa forma, no Brasil, há uma distorção sobre de onde se origina o poder estatal. Não há
uma percepção clara de que o poder estatal emana do povo. A melhoria de condições sociais está
relacionada com a concessão de benefícios concedidos pelo poder Executivo (CARVALHO, 2018). Essa
ausência de internalização da cidadania, segundo Linz e Stepan (1999), promove uma tendência em
atribuir o envolvimento político como coisa de político e não de povo.
No Brasil o povo não é estimulado para a prática democrática e cidadã em seu cotidiano,
tampouco relaciona à melhoria de suas condições sociais a existência do regime político democrático
(ABRANCHES, 2001). Grande parte da população preocupa-se com a renda percebida, que na maioria
das famílias, segundo dados do IBGE (2019) é insuficiente para suprir as necessidades básicas, como
alimentação e saúde; teme o desemprego, realidade de quase 13 (treze) milhões de brasileiros136;
convive com o ensino de baixa qualidade e com a violência urbana, entre outras situações que os

132 Cabe destacar que existem, na doutrina, outras dimensões/gerações de direitos que tratam do processo de conquista
dos direitos de cidadania.
133 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos es-
trangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes [...]
134 Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para
todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular [...].
135 Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança,
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  
136 O dado se manteve na mesma proporção no primeiro trimestre de 2020, conforme dados do PNAD Contínua. Após o início da
pandemia pela COVID-19, no entanto, não há dados oficiais acerca do aumento do número de pessoas em situação de desemprego.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

obriga a deixar o interesse e o envolvimento político em segundo plano.


Nicolau (2017) buscou identificar os motivos que levariam o eleitor a escolher os seus
representantes para a Câmara dos Deputados. Segundo o autor (2017, p. 72), as possíveis motivações
seriam as seguintes: atributos pessoais do candidato; motivação associada ao território; voto
de identidade, quando o eleitor escolhe um candidato que pertence ao mesmo segmento que o
seu; proximidade ideológica do candidato; defesa de interesses de grupos específicos; motivação
clientelística, que ocorre quando o eleitor “vota no candidato que prestou (ou prestará) algum benefício
a ele, à sua família ou ao grupo ao qual ele pertence”.
Com isso, é possível perceber que o eleitor brasileiro não age pautado em interesses republicanos e
democráticos no momento da escolha de representantes. Nas palavras de Silva e Saldanha (2015, p. 72):

Nossas instituições representativas são marcadas pela completa irresponsabilidade política, em


que os poderes executivo e legislativo representam um total descrédito institucional devido aos
elevados casos de corrupção e do desrespeito da legalidade pelo próprio Estado. Esses poderes
fogem das formas de controle e prestação de suas contas, sustentando um sistema baseado
em troca de favores, cujos partidos são verdadeiros oportunistas que pensam apenas em seus
interesses particulares. Em tal perspectiva, é possível conjeturar que o tipo de cultura política
que tem se estabelecido no Brasil, ao longo de sua história, caracteriza-se pela incorporação,
por parte dos cidadãos, da ineficiência e da pouca importância atribuída às instituições da
democracia representativa, revelando uma dimensão estrutural de negação da política na sua
forma convencional. Desta forma, as instituições convencionais políticas não conseguem
desempenhar seu papel, tornando-se alvos da hostilidade dos cidadãos. Há desse modo uma
relação causal recíproca permanente entre instituições deficientes que não produzem cidadãos
com predisposições democráticas e esses, por sua vez, distanciam-se e mostram desapego por
essas instituições por não acreditarem nos seus objetivos e desconfiarem de suas intenções.

Essa “esquizofrenia política” (CARVALHO, 2018, p. 223) evidencia que o cidadão, ainda, não transcendeu
sua pobreza política, pois em razão da descredibilidade do sistema, mantém a sua escolha pautada em
interesses individuais, auxiliando na mantença do padrão insatisfatório de representação, que acarreta
na prejudicialidade do desenvolvimento democrático. Para Demo (1996, p. 22), a sociedade é carente
politicamente quando é incapaz de “construir representatividade legítima satisfatória em seus processos
eleitorais, [...], com serviço público marcado pela burocratização, pelo privilégio e pela corrupção”.
A ausência de consciência coletiva no momento da eleição é prejudicial para a relação entre
governantes e eleitores, sistema político e sociedade. Para Carvalho (2018, p. 223):

A ausência de ampla organização autônoma da sociedade faz com que os interesses corporativos
consigam prevalecer. A representação política não funciona para resolver os grandes problemas
da maior parte da população. O papel dos legisladores reduz-se, para a maioria dos votantes, ao
de intermediário de favores pessoais perante o Executivo. O eleitor vota no deputado em troca
de promessas e favores pessoais; o deputado apoia o governo em troca de cargos e verbas para
distribuir entre seus eleitores. Cria-se uma esquizofrenia política: os eleitores desprezam seus
políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais.

O eleitor não consegue, muitas vezes, pensar em toda a extensão que o exercício do sufrágio
significa; tende a ver na escolha de candidatos uma oportunidade de exigir benesses; deixa de pensar
e de exercer sua participação na vida política, seja por meio da fiscalização ou por meio do voto de
forma consciente, é aí que se encontra a pobreza política. Nas palavras de Demo (1996, p. 23), “é
politicamente pobre o cidadão que somente reclama, mas não se organiza para reagir, não se associa
para reivindicar, não se congrega para fluir”.
Nesse sentido, evidencia-se que quando o sistema político abre a possibilidade de participação
popular, conquistada pelo ideal democrático, o brasileiro não possui, muitas vezes, educação para
efetivar-se como sujeito de direitos (BENEVIDES, 1994). Entretanto, a lógica da democracia reside
justamente nesse ponto: o cidadão brasileiro precisa criar o hábito de lutar por melhorias de suas
condições. Essa atuação ativa se consolida por meio da democracia participativa (BONAVIDES, 2001b),
que conforme Silva (2005, p. 128), “pressupõe luta incessante pela justiça social. Não pressupõe que
todos sejam instruídos, cultos, educados, perfeitos, mas há de buscar distribuir a todos instrução,
cultura, educação, aperfeiçoamento, nível de vida digno”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Assim, o brasileiro precisa compreender seu lugar no sistema político e social, atribuindo a si a
condição de cidadão, definida, por Demo (1995, p. 1) “como competência humana de fazer-se sujeito, para
fazer história própria e coletivamente organizada”. Isso significar dizer que o brasileiro precisa assumir o
compromisso com o seu dever político e social, entender, conforme afirma Tocqueville (2001, p. 68) que:

[...] a sociedade age por si e sobre si mesma. Só há força em seu seio; quase não se encontra
ninguém que ouse conceber e, sobretudo, exprimir a ideia de buscá-la em outra parte. O povo
participa da composição das leis pela escolha dos legisladores, da sua aplicação pela eleição dos
agentes do poder executivo; podemos dizer que governa por si mesmo, a tal ponto a importância
deixada à administração é fraca e restrita, a tal ponto ela é marcada por sua origem popular e
obedece ao poder de que emana.

É do povo, soberano em seu íntimo, de quem direta e indiretamente emana o poder do Estado e
a quem se atribui as desventuras do sistema de poder. Nesse viés, Benevides (1994, p. 9) dispõe que
“a possiblidade de participação direta no exercício do poder político confirma a soberania popular
como elemento social da democracia”. Para Bobbio (2001, p. 156):

Uma vez conquistado o direito à participação política, o cidadão das democracias mais avançadas
percebeu que a esfera política está por sua vez incluída numa esfera muito mais ampla, a esfera da
sociedade em seu conjunto, e que não existe decisão política que não esteja condicionada ou inclusive
determinada por aquilo que acontece na sociedade civil. Portanto, uma coisa é a democratização da
direção política, o que ocorreu com a instituição dos parlamentos, outra coisa é a democratização da
sociedade. Em consequência, pode muito bem existir um Estado democrático numa sociedade em
que a maior parte das instituições, da família à escola, da empresa aos serviços públicos, não são
governadas democraticamente. Daí a pergunta que melhor do que qualquer outra caracteriza a atual
fase de desenvolvimento da democracia nos países politicamente mais democráticos: “É possível a
sobrevivência de um Estado democrático numa sociedade não democrática?” Pergunta que também
pode ser formulada deste modo: “A democracia política foi e é até agora necessária para que um
povo não seja governado despoticamente. Mas é também suficiente?”

A situação da política brasileira está relacionada, assim, ao despreparo de parte da população


em exercer a cidadania e na não compreensão das implicações disso na consolidação da democracia
do país (BENEVIDES, 1994). Interpretar que a cidadania é muito mais do que um conceito, é o
interesse de agir conscientemente dentro da comunidade política, é democratizar todas as instâncias
de participação popular, é o agir pautado no interesse social, no envolvimento nas instituições, na
conquista de direito, é essencial para superar a pobreza política.
Segundo Demo (1996, p. 9), “não estamos habituados a considerar como pobre a pessoa privada da
sua cidadania, ou seja, que vive em estado de manipulação ou destituída da consciência de sua opressão,
ou coibida de se organizar em defesa de seus direitos”. E isso se deve ao fato de que, boa parte da
população, reconhece apenas o “eco material” da pobreza. “Pobre é o faminto. É quem habita mal ou não
tem onde habitar. É quem não tem emprego ou recebe remuneração abaixo dos limites da sobrevivência”.
Logo, pode-se dizer que a pobreza política consiste em não reconhecer em si próprio a condição
de cidadão, capaz de lutar pela implementação e pela manutenção de direitos civis, políticos e sociais
(DEMO, 1995). O cidadão precisa compreender seu lugar no sistema político e social, transcendendo
a pobreza política, a fim de reconhecer e superar a condição de massa de manobra, normalmente
atrelada ao eleitorado brasileiro. Para que, assim, possa tomar consciência da luta necessária para a
conquista e afirmação de todos os direitos que possui (DEMO, 1996).
Bonavides (2001b, p. 34) aponta que a “chave do futuro” se encontra na democracia participativa,
“que faz soberano o cidadão-povo, o cidadão-governante, o cidadão-nação, o cidadão titular efetivo
de um poder invariavelmente superior e, não raro, supremo e decisivo”. Assim, para que o povo se
torne efetivamente soberano perante o Estado, ele precisa, segundo Bobbio (2018), voltar-se para o
desenvolvimento de sua educação cívica, que também é sinônimo de educação para a cidadania ou
educação para a democracia.
As pontes que existem entre a real situação do eleitor brasileiro e o desenvolvimento da política
devem ser ultrapassadas com base no esforço do povo para educar-se para a vivência democrática.
Para Abranches (2001, p. 5):

257
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Nossa democracia emergente não tem legitimidade histórica. Esse requisito nos falta e só o
alcançaremos ao longo do processo de aprofundamento da democracia, que também é de legitimação
dela. Por isso, entre nós, as falhas do regime democrático sempre criam o risco de uma crise de
legitimidade. Para não produzir uma crescente “fadiga cívica” nos cidadãos, a democracia precisa
de fato estar correlacionada à elevação do bem-estar. O cotidiano brasileiro é muito autoritário.
As agências de socialização, entre as quais a escola é a mais importante, desprezam a tarefa de
promover e propagar os valores democráticos. [...] Padrões autoritários de governança e hierárquicos
de convivência estão presentes nas organizações, no trabalho, nas relações comunitárias e de
vizinhança, na vida associativa, nas relações entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre
professores e alunos, entre patrões e empregados. E não é mais possível separar o espaço público
de nossa prática privada ou das instituições em que estudamos ou trabalhamos.

Com isso, se quer dizer que a política precisa ser democratizada, abrangendo a participação
popular como manifestação legítima de poder político. E esse objetivo só pode ser alcançando com
o esforço promovido pelo cidadão, pois se é dele que advém o poder político, só ele pode alterar o
seu caminho. Assim, por meio do esforço em educar-se civicamente, compreendendo que as decisões
tomadas no ambiente civil refletem diretamente nas características da política do país, o cidadão
brasileiro poderá alterar os rumos da democracia no país (BONAVIDES, 2001b).
É preciso compreender que a educação para a cidadania ou para a democracia pressupõe “a
formação para os valores republicanos e democráticos e a formação para tomada de decisões políticas
em todos os níveis” (BENEVIDES, 1996, p. 226). Assim, os princípios abordados na seção anterior,
devem ser aplicados ao cotidiano do brasileiro, pois só quando se é republicano e democrático nas
instituições sociais, aprende-se a desenvolver a cidadania, também, no âmbito político. Para Carvalho
(2018, p. 244-245):

Democracia sempre teve mais a ver com o povo, com as massas, com o governo de muitos [...] o
republicanismo cívico, teve mais a ver com governo da lei, com boa governança, com virtude cívica
[...], chamo de democracia a inclusão tanto política como social, e chamo de república o governo
da lei voltado para o bem comum, eficaz e transparente [...] precisamos continuar a democratizar
a República pela inclusão social, sem abandonar o esforço de republicanizar a democracia pelo
governo da lei, eficaz e transparente, requisito indispensável para o fortalecimento das instituições.

Os cidadãos necessitam internalizar os valores democráticos relacionados ao bem-estar popular,


ao poder em prol de todos, bem como os valores republicanos relacionados com o comprometimento
legal e com um governo justo. Para isso, o fortalecimento da soberania popular e da participação
institucional, no íntimo dos cidadãos brasileiros, se faz essencial. Como já dito, precisa-se superar a
condição de pobreza política, concentrada “na dificuldade de formação de um povo capaz de gerir seu
próprio destino e na dificuldade de institucionalização da democracia” (DEMO, 1996, p. 10).
A democracia semidireta ou participativa ultrapassa a soberania popular por meio do voto e,
também, a participação direta por meio do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular para propor
projeto de lei. O texto constitucional garante a participação popular em outras disposições além do
capítulo dos direitos políticos. Tem-se como exemplo, a possibilidade do cidadão denunciar perante
o Tribunal de Contas137 qualquer irregularidade ou ilegalidade observada no controle interno do
governo. Há, ainda, a previsão de propositura de ação popular138 por qualquer cidadão, regulamentada
pela Lei n. 4.717/1965, que tem por objetivo anular ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente, entre outros.
No Brasil, outra maneira de os cidadãos participarem da política nacional se dá a partir do acesso
ao “Portal e-Cidadania”. Segundo informações retiradas do Relatório do Senado Federal (Resolução nº
19/2012), a ferramenta foi criada, no ano de 2012 e promove um espaço de participação popular em
relação à atuação política dos Congressistas. A “Ideia Legislativa”, por exemplo, é uma ferramenta que
permite sugerir ideias de legislação. Além disso, é possível participar de eventos, como audiências

137  Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno [...] §
2º Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularida-
des ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.
138 Art. 5º [...] LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio
público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico
e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. [...]

258
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

públicas e sabatinas, de forma interativa, enviando perguntas ou comentários que serão entregues
às autoridades presentes. O portal, ainda, disponibiliza um espaço para promover consultas públicas
sobre as propostas legislativas do Senado Federal.
Contudo, apesar das alternativas disponibilizadas institucionalmente para participação dos
eleitores, não se verifica na prática do país essa atuação. Segundo dados do Comitê Gestor da Internet
no Brasil, a utilização do ciberespaço para fins cívicos, dentre pessoas com acesso à internet139 é
de 55%; porém, são direcionados para consulta de serviços públicos, como direitos trabalhistas,
educação, impostos e taxas, saúde e transporte, dentre outras situações. Os serviços mais acessados
continuam sendo de mensagens instantâneas e redes sociais (CGI.br, 2019).
A ausência de participação popular na vida política foi descrita por Bobbio (2018, p. 58) como
“apatia política”. O autor (2018) se nega a acreditar que há algo benéfico na renúncia ao direito de
participação. O contexto atual do país, recheado de escândalos de corrupção envolvendo representantes
políticos, reforça essa ideia. Segundo Benevides (1994, p. 10):

Não resta dúvida de que a educação política - entendida como educação para cidadania ativa - é
o ponto nevrálgico da participação popular. Mas esta educação se processa na prática. Aprende-
se a votar, votando. É claro que esta questão, pela sua própria natureza especulativa, não tem
resposta pronta e acabada. Mas, entender a participação popular como uma “escola da cidadania”
implica rejeitar aquela argumentação contrária que exagera as condições de apatia e despreparo
absoluto do eleitorado, assim considerado incapaz, submisso e “ineducável”. O que importa,
essencialmente, é que se possa garantir ao povo a informação e a consolidação institucional de
canais abertos para a participação - com pluralismo e com liberdade.

Demonstra-se, assim, a necessidade de promover a educação da população para que os indivíduos


tomem consciência do seu poder de atuação e das consequências que decorrem de suas escolhas eleitorais
e da ausência de participação ativa no meio político, pois a mera existência de instrumentos para sua
atuação não garante a prática cidadã. O povo instruído passa a utilizar-se dos recursos institucionais para
fazer-se cidadão atuante, consciente e comprometido com a consolidação da democracia no país. Nas
palavras de Silva e Saldanha (2015, p. 66) “Essa referência é a concepção inovadora de cidadania, que põe
como requisito essencial a participação do cidadão na gestão pública em todos os seus níveis de atuação”.
A partir de uma atuação responsável, o cidadão poderá eleger representantes políticos pautados em
uma avaliação consciente e não utilizar-se do instituto do voto como uma moeda de troca para solucionar,
mesmo que de forma temporária, seus problemas mais urgentes, ficando a mercê de candidatos que se
aproveitam da vulnerabilidade de parte do eleitorado para promover a conhecida prática de compra de
votos. Assim, consequentemente, deixa de ser alvo de manipulação eleitoral, quebrando a condição de
clientelismo que há na política entre os eleitores e os candidatos, visto que vota com consciência cidadã
e fiscaliza a atuação dos governantes com base na soberania popular que detém (DEMO, 1996).
Carvalho (1997) descreve que a prática do clientelismo “indica um tipo de relação entre atores
políticos que envolve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais,
isenções, em troca de apoio político, sobretudo na forma de voto”. Demonstra-se, assim, uma prática
que se distancia, em muito, dos princípios democráticos e republicanos e da finalidade da representação.
No que diz respeito à importância da fiscalização dos candidatos eleitos, Demo (1996, p. 47)
afirma que:

[...] o povo que gera seus representantes, mal ou bem, não consegue gerar a sistemática de
controle e vigilância. Ora, poder sem controle, por mais que seja formalmente representativo, na
prática se desregra. Para que haja democracia representativa autêntica, o representante precisa
literalmente ser perseguido pelo representado, de tal sorte que o compromisso de sua delegação
se torne o sentido primeiro e último de sua atuação política.

Percebe-se, com isso, a importância e a necessidade da fiscalização dos candidatos eleitos


pelos cidadãos para a consolidação da atuação do representante como político atuante em prol dos
interesses populares e não de interesses particulares. A ausência de fiscalização pode caracterizar o

139 A pesquisa TIC Domicílios estima que, em 2018, 126,9 milhões de brasileiros eram usuários de Internet, o que equivale
a 70% dos indivíduos com dez anos ou mais (CGI.br, 2019).

259
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

desvirtuamento da finalidade do mandato representativo, o que, evidentemente, vem ocorrendo no


cenário político do país.
A educação política, em um contexto democrático, de acordo com Benevides (1994, p. 14),
“supõe que os próprios interessados se transformem em novos sujeitos políticos. E, assim, recuperem
o sentido verdadeiro de cidadania ativa e de participação popular”. A promoção da cidadania deve
ser habitual, ao ponto dos cidadãos serem contaminados pelos ideais democráticos, de uma forma
que será impossível, segundo Bobbio (2001), desvincular-se de sua promoção e efetivação nas mais
diversas instâncias da vida cotidiana, inclusive, na esfera política, por meio da escolha consciente e
da fiscalização de seus representantes.
A partir do demonstrado, entende-se que a consolidação da democracia brasileira, relaciona-
se, especialmente, com a educação dos cidadãos para o ideal democrático e republicano. Abranches
(2001, p. 5) pontuou que “o aprofundamento e enraizamento da democracia dependem também
da democratização de nosso cotidiano”. A ausência dessa consciência cidadã é prejudicial para o
desenvolvimento de todas as instituições. O povo brasileiro precisa efetivar-se como cidadão, lutando
por seus direitos e assumindo o compromisso com a democratização de suas instituições para que,
possa, enfim, compreender que “a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático,
mas é um processo de afirmação do povo e de garantia de diretos fundamentais que o povo vai
conquistando” (SILVA, 2005, p. 126).
Assim, pressupõe-se que a consolidação de um Estado Democrático de Direitos exige cidadãos
conscientes de suas responsabilidades políticas, com participação ativa, por meio da utilização das
ferramentas disponíveis para promover a escolha e a fiscalização da atuação dos governantes, o
que não tem se observado no contexto brasileiro, situação que enfatiza a falta de desenvolvimento
cívico dos eleitores, que ainda não superaram sua condição de pobreza política, o que dificulta a
concretização da democracia brasileira.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho discorreu-se sobre os ideais republicanos, pautados em um governo de lei e


gestão do Estado como coisa pública e, também, sobre os ideais democráticos, que determinam o povo
brasileiro como o centro do poder político, pois todo poder do Estado emana do povo e ao povo deve ser
direcionado. Abordou-se o princípio da soberania popular, que culmina na cidadania como fundamento
da República Federativa do Brasil, bem como o conceito de pobreza política e consciência cívica do eleitor
brasileiro, a fim de discutir o papel do cidadão diante da instabilidade democrática vivenciada no país.
Demonstrou-se que no Estado atual, a cidadania deve ultrapassar a mera conceituação de cidadão
detentor de direitos civis, políticos e sociais, pois exige um eleitor atuante e consciente para exercer
com responsabilidade o poder estatal que detém. Nesse sentido, por meio do exercício da cidadania,
poder-se-ia o eleitorado brasileiro superar a sua condição de pobreza política, compreendida como
ausência de interesse, ausência de consciência crítica e atuante perante a situação política e social.
Com a busca pela educação cívica, que só se encontra na vivência democrática em todas as instâncias
do cotidiano, o cidadão brasileiro tornar-se-ia efetivamente ator soberano do poder estatal, podendo,
então, influenciar os rumos da política de seu país.
Nesse sentido, observa-se que a ausência da internalização dos princípios republicanos e
democráticos pelos cidadãos no cotidiano dificulta a consolidação de um cenário político eficaz e
representativo. Isso ocorre ao ponto que os eleitores estão ao desarrimo da pobreza política, visto
que desconhecem ou desconsideram a complexidade do sistema político do país e o poder popular
soberano de influenciar os rumos da democracia brasileira.
Assim, os eleitores se limitam a uma atuação apática e descompromissada com o bem comum
no que diz respeito formação do cenário político, reproduzindo constantemente um ambiente
ineficaz, de desconfiança e de reprodução de interesses privados, o que dificulta à concretização
da democracia brasileira, que não tem atingido seu objetivo fim de assegurar condições dignas de
existência pautadas na garantia dos direitos fundamentais inerentes ao homem e a toda a população.

260
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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262
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A DEMOCRACIA E O PENSAMENTO JUSPOSITIVISTA


DE HANS KELSEN

Bibiana Knorr de Moura140


Aline Michele Pedron Leves141
Gilmar Antonio Bedin142

RESUMO: O presente artigo preocupa-se com a relação existente entre o positivismo jurídico e a Teoria
Pura do Direito de Hans Kelsen, como também, com a influência do sistema democrático neste contexto.
Aborda-se a origem da sociedade democrática, problematizando seus desafios permanentes e sua
materialização na atualidade como um ideal a ser alcançado. Nesse contexto, destaca-se a importância de
a Ciência do Direito ter como única preocupação a análise exclusiva do direito positivo. Portanto, o objetivo
é contribuir, mediante a utilização do método hipotético-dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica,
para a compreensão da democracia como uma forma de descentralização da produção do direito. A
conclusão reside no fato de que a obra de Kelsen é fruto da contribuição da teoria jurídica positivista e,
em uma sociedade democrática, é permitido que a expansão de seu conhecimento se concretize.

Palavras-chave: Democracia. Direito Positivo. Igualdade. Juspositivismo. Liberdade.

INTRODUÇÃO

Os juristas extraordinários do Século XX são muitos. Entre estes, tem um destaque diferenciado o
austríaco Hans Kelsen. Em razão deste fato, o presente trabalho preocupa-se em abordar sua teoria acerca
da democracia, haja vista que integra muitos sistemas de ordenamentos jurídicos em âmbito mundial.
Além disso, situa-se o pensamento e o lugar de destaque ocupado por sua principal obra: Teoria Pura do
Direito. O referido livro é, de fato, um marco de referência diferenciado do amadurecimento do denominado
positivismo normativista, a forma de pensar por excelência do mundo jurídico das últimas décadas.
Para que se entenda a relevância da obra Teoria Pura do Direito, é necessário discorrer sobre a
matéria do positivismo jurídico, ou aquilo que redunda no mesmo: o juspositivismo. Esta corrente de
pensamento se afasta da ideia de direito natural e passa a sustentar que o direito é produzido pelo Poder
Legislativo dos Estados. Nesse contexto, a presente pesquisa se faz necessária dada a relevância de Kelsen
para o pensamento jurídico nas últimas décadas e sua presença ainda tão significativa na atualidade.
À vista disso, problematiza-se a maneira pela qual os Estados considerados descentralizados se
constituem como premissas fundamentais para a consolidação da democracia e como isso contribui
efetivamente para que sejam propiciadas uma maior igualdade e liberdade, características primordiais
desta forma de governo e sociedade. Nesse liame, a hipótese da investigação aqui proposta aponta para
o juspositivismo como uma característica kelseniana, ao passo em que apenas o direito positivo é capaz
de sustenta-la. Justifica-se, então, que as preocupações centrais dos cientistas do direito devem ser os
aspectos formais da produção jurídica e seus vínculos com o conceito de validade. Daí, portanto, a ideia
de separação radical no pensamento de Hans Kelsen entre a ordem do dever ser e a ordem do ser. Este
é o recorte epistemológico fundamente do positivismo normativista e da obra Teoria Pura do Direito.

140 Acadêmica do 6º semestre do Curso de Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq: Direitos Humanos, Governança e Democracia. E-mail:
bibiana.moura1999@gmail.com;
141 Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Hu-
manos – da UNIJUÍ. Bolsista CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq: Direitos Humanos, Governança e Democracia.
Advogada (OAB/RS). E-mail: alineleves@hotmail.com;
142 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor dos Cursos de Graduação em Direito
e dos Programas de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da UNIJUÍ e da URI. Líder do Grupo de Pesquisa do
CNPq: Direitos Humanos, Governança e Democracia. E-mail: gilmarb@unijui.edu.br.

263
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Desse modo, o objetivo da presente pesquisa reside em analisar, em um primeiro momento,


o núcleo central do pensamento do autor, que é a Ciência do Direito ter como única preocupação a
análise exclusiva do direito positivo. Em decorrência deste fato, o papel do cientista do direito deve
se distanciar de toda e qualquer preocupação política ou social, afastando-se dos debates sobre as
demandas sociais e culturais da realidade em que está inserido. Em um segundo momento, pondera-
se sobre a perspectiva do sistema democrático no mundo contemporâneo, pela ótica kelseniana
e seus pressupostos para que seja válida. Durante o desenvolvimento desta exploração teórica, o
método utilizado foi o hipotético-dedutivo e a técnica a da pesquisa bibliográfica.

1 O POSITIVISMO JURÍDICO E A TEORIA PURA DO DIREITO DE KELSEN

No início do século XIX, mais especificamente na Alemanha, surgiu a expressão “positivismo


jurídico”. Apesar de ter uma certa conexão com o conhecido positivismo filosófico, nada tem a ver
com este. Por isso, ao estudar essa corrente de pensamento, faz-se imprescindível estabelecer uma
distinção entre direito natural e direito positivo para, então, o positivismo jurídico ser abordado, uma
vez que este deriva, justamente, do direito positivo.
Como Bobbio (1995) descreve em sua obra “O Positivismo Jurídico”, o direito natural é imutável
no tempo e possui validade em toda parte, ou seja, os indivíduos conhecem através da razão, pois
esta é inerente ao ser humano. É chamado de direito natural porque advém da natureza, não sendo
estabelecido por normas, e prescreve o direito positivo. Por sua vez, o direito positivo é posto pelo
Estado, constituindo-se como um conjunto de regras obrigatórias em uma determinada época e
sociedade que, se não cumpridas, dão espaço para a intervenção de um terceiro, o qual elimina o
conflito através da imposição de uma sanção àquele que violou a norma (BOBBIO, 1995).
O objeto de estudo do positivismo jurídico é o direito positivo em rigor, no qual os valores são
desenvolvidos pelo homem, sendo o Direito uma ciência exata e estrita. Os juspositivistas apenas
apreciam aquilo que precisa ser observado e experimentado sem atribuir percepções alheias ao
Direito. Nesse sentido, Doglas Cesar Lucas e Gilmar Antonio Bedin (2015, p. 218) apontam que

O cientista deve afastar tudo o que não é estritamente jurídico e considerar relevante (seu objeto)
apenas o Direito válido (sem qualquer consideração valorativa). Assim posicionado, o cientista
do Direito conseguirá fazer (segundo os defensores do positivismo jurídico) uma ciência que seja
isenta de considerações políticas e das projeções morais dos grupos sociais existentes e, em
consequência, garantirá sua exatidão e seu rigor.

Dessa forma, o positivismo jurídico é concebido como o estudo da estrutura formal do Direito e
da sua validade, afastando tudo aquilo que não seja estritamente jurídico. Essa teoria é característica
do pensamento de Hans Kelsen, estando evidente em sua obra “Teoria Pura do Direito”, onde o
jurista defende a “neutralidade científica aplicada à ciência jurídica” (COELHO, 1995, p. 17). Assim,
Kelsen (1998) afirma que o Direito deve ser encarado como norma e não com manifestações morais,
direcionando-se ao cerne de seu livro.
Diante disso, é possível analisar que a Teoria Pura do Direito do jurista está diretamente
relacionada ao juspositivismo quando afirma que, o estudo do Direito deve ser apenas direcionado a
ele mesmo e a sua validade, sem juízos de valor. Conforme o entendimento de Kelsen (1998, p. 1),

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe
garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto
não pertence ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito.
Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são
estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.

Nessa lógica de Kelsen (1998), quando uma norma prescreve uma conduta devida, a “conduta
real” pode correspondê-la ou contrariá-la tendo, portanto, juízos de valor que irão determinar a
conduta real como boa ou má. E, assim, a conduta válida opera como medida de valor em relação à
conduta real, pois se trata da realidade da ordem do ser. Assim, difere-se da ordem do dever ser, a

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

qual prevê uma norma válida independentemente de seu conteúdo, ou seja, sem atribuir juízos de
valor para considerá-la.
Por outro aspecto, a validade da norma não pode ser confundida com a eficácia da norma, pois
enquanto a primeira observa o dever ser correspondente à determinação da norma, a segunda atende às
condutas que a sociedade terá em decorrência desta norma, tornando-a eficaz ou não. Em outras palavras,
apesar de haver esta separação, não é arbitrária, uma vez que em certa medida se a norma não for eficaz,
não será considerada vigente. Em face disso que a eficácia é a condição da vigência da norma jurídica.
Ocorre que, o dever ser da norma jurídica e o ser da realidade natural estão entrelaçados, isso
porque, para que a norma jurídica seja válida, esta deve obrigatoriamente ser posta através de um
ato da ordem do ser. Ou seja, apesar de serem conteúdos distintos, não há como abordar um sem a
devida associação ao outro. Isto posto, pode-se afirmar que uma norma jurídica só existe após a sua
promulgação, quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente (KELSEN, 1998).
Nessa perspectiva, entre a vigência e a eficácia há uma conexão enquanto que “uma norma jurídica
deixará de ser considerada válida quando permanece duradouramente ineficaz” (KELSEN, 1998, p. 12).
O jurista austríaco afirma que determinar corretamente a relação entre validade e eficácia é
de extrema importância para uma Teoria Pura do Direito, apesar de se mostrar um dos temas mais
difíceis de ser resolvido. Por isso que ao elaborar uma teoria jurídica positivista deve-se se atentar em
encontrar o equilíbrio adequado entre a relação destes dois institutos, haja vista que os extremos são
insustentáveis (KELSEN, 1998).
Ainda é pertinente mencionar que uma norma jurídica ser válida não a torna justa ou moral,
até porque, uma norma pode ser imoral mesmo que ela possua validade. Por esse motivo deve-se
considerar que apesar do positivismo jurídico se preocupar apenas com a validade do Direito, isto
é, com sua estrutura formal, não deixa de ser relevante o conteúdo do Direito, mas esse não é seu
objeto de estudo (LUCAS; BEDIN, 2015).
Destarte, para Kelsen (1998) uma norma só será válida se tiver sido criada em conformidade com
outra norma hierarquicamente superior, até atingir a norma fundamental do ordenamento jurídico, a
Constituição Federal. Por isso que uma norma que representa a base de validade de outra norma, “é
figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação
a ela, a norma inferior” (KELSEN, 1998, p. 215). Logo, uma norma nunca vai existir separadamente,
pois integra um sistema de normas que forma uma determinada ordem jurídica (LUCAS; BEDIN, 2015).
Com efeito, a validade de uma norma deve estar em congruência com a norma fundamental,
como afirma Kelsen (1998, p. 237, grifo do autor) em Teoria Pura do Direito:

As normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas) porque a norma fundamental que
forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes; mas elas
somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem jurídica for eficaz.
Logo que a Constituição e, portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apoia, como um todo, perde a
sua eficácia, a ordem jurídica, e com ela cada uma das suas normas, perdem a sua validade (vigência).

Nesse sentido, a norma fundamental determinada pela doutrina de Kelsen como condição de
vigência, efetivamente apoia a validade de qualquer “ordem jurídica positiva, quer dizer, de toda ordem
coerciva globalmente eficaz estabelecida por atos humanos” (KELSEN, 1998, p. 242). Daí é possível
afirmar que, de acordo com a teoria jurídica positivista, o conteúdo de uma ordem jurídica positiva é
desobrigado da sua norma fundamental e, portanto, apenas a validade deriva desta. Assim sendo, um
elemento fundamental do positivismo jurídico consiste em nenhuma ordem jurídica positiva recusar
a vigência das demais em razão de seu conteúdo (KELSEN, 1998).
Em síntese, ao definir o Direito como norma de uma determinada ordem jurídica positivada,
eliminamos a ciência jurídica da ciência natural, todavia, é preciso frisar que ao lado das normas
jurídicas existem, ainda, as normas sociais. Desse modo, essas normas sociais apenas surgem porque
os indivíduos vivem em sociedade, haja vista que o que tange sobre a conduta de um indivíduo acaba
acarretando no comportamento dos demais.
Além disso, o autor em estudo afirma que a Moral e o Direito são ordens sociais, pois “uma ordem
normativa que regula a conduta humana na medida em que ela está em relação com outras pessoas
é uma ordem social” (KELSEN, 1998, p. 25). Por isso, uma ordem social que prescreve juridicamente

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

uma conduta, somente será considerada na medida em que sua conduta oposta se constitui como
pressuposto de uma sanção. Isto é, a “conduta condicionante da sanção é proibida e a conduta oposta
é prescrita” (KELSEN, 1998, p. 27), o que corrobora sua teoria da ordem do dever ser e do ser.
Por isso que a despeito do positivismo jurídico observar apenas o objeto do Direito, não é
possível afirmar que o indivíduo que vive em comunidade não é influenciado pelas concepções alheias
ao Direito. Entretanto, é necessário distinguir o que cada ciência propõe, pois apesar da importância
da teoria específica para o estudo jurídico, em que o sujeito é diretamente envolvido, outras ciências
também importam a sua existência.

2 O PENSAMENTO KELSENIANO ACERCA DA DEMOCRACIA

A democracia configura-se como uma forma de governo explorada há muitos séculos. Nesse
contexto, faz-se necessário compreender sua origem no mundo, pois não se trata de um mecanismo
recém descoberto. Sua primeira aparição aconteceu na Grécia Antiga, há aproximadamente 2.500 anos, no
século V a.C. Daí surgiu a origem etimológica da palavra demokratia: demos, povo, e kratos, governar. Foi
em Atenas que a democracia tomou forma, de tal maneira que, ainda hoje, é de incomparável importância.
Durante todo seu trajeto, o sistema democrático foi traçado por diversos momentos de
declínios, de tal forma que possivelmente existiu antes de seu primeiro registro histórico, uma vez
que as condições adequadas permitem esse desdobramento. Entretanto, em linhas gerais, a forma
de sociedade democrática expandiu-se através da difusão de suas práticas e ideais, até adquirir a
configuração conhecida hodiernamente (DAHL, 2001).
Nesse ínterim, a democracia demonstra tamanha magnitude que, na sociedade atual, consiste
em um regime defendido por inúmeras correntes de pensamento. Justifica-se pela razão de conceber
a participação do povo no governo como sua característica essencial. Para fins de esclarecimento,
em contrapartida temos a autocracia, tal qual Kelsen (1993) acredita ser uma concepção metafísico-
absolutista, constituída por uma crença na verdade e valores absolutos associados à mesma. Enquanto
que a negação desse princípio consiste na crença da opinião de que o conhecimento humano só
tem acesso às verdades relativas. Portanto, qualquer verdade ou valor se caracterizam como uma
concepção crítico-relativista, isto é, associam-se a uma atitude democrática.
À vista disso, Kelsen (1993) valoriza o sistema democrático ao passo que,

A democracia julga da mesma maneira a vontade política de cada um, assim como respeita
igualmente cada credo político, cada opinião política cuja expressão, aliás, é a vontade política.
Por isso a democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de
buscar conquistar o ânimo dos homens através da livre concorrência. [...] O domínio da maioria,
característico da democracia, distingue-se de qualquer outro tipo de domínio não só porque,
segundo a sua essência mais íntima, pressupõe por definição uma oposição – a minoria – mas
também porque reconhece politicamente tal oposição e a protege com os direitos e liberdades
fundamentais. (KELSEN, 1993, p. 105-106).

Permite-se afirmar, então, que a democracia protege os direitos políticos do povo, de maneira
que somente pode ser caracterizada como tal se esses direitos inerentes realmente forem cumpridos.
Caso contrário, trata-se de um governo não democrático. Diante disso, evidencia-se que é dever do
Estado garantir as premissas de uma democracia, ainda que esta não se manifeste de forma plena.
Logo, de acordo com Robert Dahl (2001, p. 61) “quando um país democrático inflige uma injustiça,
mesmo seguindo procedimentos democráticos, o resultado continuará sendo... uma injustiça”.
Nessa perspectiva democrática, ao longo de toda a história das civilizações, o Estado constituiu-
se como um ente que possibilitou que estas prosperassem continuamente. Para tanto, sua pertinência
se dá na medida em que não seria mais possível a existência de uma sociedade sem a organização de
ordenamentos que viabilizassem sua harmonia. Assim sendo, o Estado possui tamanha importância,
de tal modo que seja necessário um maior entendimento acerca do que o governo representa para um
povo e, consequentemente, como este deve ser administrado. Para elucidar a conceituação de Estado,
o sociólogo Anthony Giddens (2008, p. 425) afirma que:

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Um Estado existe quando há um aparelho político de governo (instituições como um parlamento


ou congresso, mais funcionários públicos), que governa um dado território, cuja autoridade é
apoiada por um sistema legal e pela capacidade de usar a força militar para implementar as suas
políticas. Todas as sociedades modernas são Estados-nação. Isto é, são Estados onde os cidadãos,
constituindo o grosso da população, se reconhecem como fazendo parte de uma só nação.

Desta definição, percebe-se como a figura do Estado perpassa por todas as instâncias de um
território, se fazendo imprescindível para que as demais instituições subsistam. Logo, o Estado
figura como um ente que aspira, verdadeiramente, tanto o desenvolvimento humano de uma nação
quanto o controle social. Em seu livro “Teoria geral do Direito e do Estado”, Kelsen (1992) aborda a
centralização e a descentralização como formas de organização e, consequentemente, preocupa-se em
esclarecer se há uma relação entre estas e os sistemas de governo ou formas de sociedade autocrática
e democrática. Nesse sentido, é possível analisar a democracia como uma forma de descentralização
de criação de normas, uma vez que são elaboradas por indivíduos regidos por essas mesmas normas,
as quais se encontram dispostas por todo o território do Estado nacional.
Com efeito, se torna evidente o peso da democracia em um contexto em que o poder do Estado
deve ser descentralizado para que seja possível atingir todas as esferas nacionais. Por conseguinte,
se faz imprescindível uma análise das realidades políticas de cada Estado para que os padrões
democráticos sejam aplicados conforme as insitiuições políticas necessárias. Assim, existe, de fato, a
possibilidade de alguns critérios se sobressaírem diante de outros e, portanto, criarem conflitos. Os
critérios que regulam uma democracia ideal nos apresentam apenas padrões de comparação entre os
sistemas políticos existentes, tendo em vista que, até então, não há registro de sistemas democráticos
efetivamente plenos. Desta forma, é possível se apoiar nestes exemplos para que haja uma aproximação
do sistema ideal e que, segundo Robert Dahl (2001, p. 54), esses critérios “proporcionam padrões
para [medir] o desempenho de associações reais que afirmam ser democráticas”.
Do ponto de vista filosófico, não é possível afirmar que a democracia se justifica, por ela mesma,
como a melhor forma de governo e sociedade, dado que se trata de uma análise científica de um
fenômeno social (KELSEN, 1993). Frente a isso, para o jurista em estudo, ao tratar da teoria política
democrática, nota-se que se os pressupostos para que esta seja válida são os princípios da liberdade e
da igualdade, então, a democracia deve prevalecer. Ademais, necessário se faz a análise da democracia
representativa como uma possibilidade ao processo de descentralização e participação política do
povo nos espaços de poder, isso porque, a descentralização é um poder disperso e local.
Ainda que a democracia seja, em sua essência, um sistema apurado e íntegro no que concerne
ao respeito de todos os indivíduos de uma sociedade e, principalmente, à inclusão destes, não
é possível afirmar que, de fato, esta trará resultados completamente positivos ao Estado. Desse
modo, “definitivamente, está em jogo a possível ineficiência ou a escassa eficiência dos sistemas
democráticos” (KELSEN, 1993, p. 15), uma vez que a democracia poderá ser realmente efetiva à
nível de legislação, mas, no tocante à jurisdição e à administração, é organizada autocraticamente.
Consequentemente, Hans Kelsen (1993, p. 14) assegura, com nitidez, que “um sistema nunca pode
ser considerado integral e totalmente democrático (ou totalmente autocrático), mas, antes, uma
combinação (evidentemente em doses bastante variáveis) de elementos democráticos e autocráticos”.
Isto posto, dado a importância mundial da democracia como forma de governo e sociedade,
pode-se constatar que mesmo diante da “possível ineficiência” do sistema democrático, a qual é
abordada por Kelsen (1993), esta se mostra como o melhor caminho a ser trilhado para garantir uma
verdadeira liberdade a todos os indivíduos. Além do mais, nota-se que até o presente momento não
existem outras formas de governo que viabilizam expressivamente a liberdade ou que proporcionam
uma ampla igualdade e proteção dos direitos humanos como ocorre no seio dos diversos Estados
Democráticos de Direito.
Diante do exposto, é verificável que a democracia e a descentralização, frente a um Estado maior, se
apresentam com um grande vínculo a fim de propiciar equidade por todo o território nacional, isso porque,
a permanência da democracia depende, justamente, da descentralização do poder estatal. Portanto,
evidencia-se que o Estado regente de todo o sistema político de governo de um determinado território é
considerado o pilar sustentador para a manutenção do controle social democrático de sua nação.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desta pesquisa optou-se por construir uma investigação teórica acerca das contribuições
do jurista austríaco Hans Kelsen sobre a forma de sociedade democrática aliada à sua obra “Teoria
Pura do Direito”, bem como ao seu papel na consolidação do Positivismo Jurídico. Dessa forma, foi
possível observar sua relevância no meio jurídico, posto que o célebre autor estabeleceu sua teoria
de uma maneira bastante elucidativa e exemplificada.
Nessa lógica, o ensaio de Kelsen rompe com os ideais adotados, até o momento de sua publicação,
em 1934, sendo um deles o jusnaturalismo (direito natural), apontando, assim, para uma nova e única
perspectiva de interpretar o Direito. Dito isso, por identificar o Direito como positivo, Kelsen o trata
como sendo o único objeto de estudo da teoria positivista e sem interferência de outros institutos
como a sociologia, a filosofia e a política. Assim, o dever ser da norma jurídica e o ser da realidade
natural, por versarem sobre as normas jurídicas, são um dos principais pontos a serem abordados
sobre a obra do autor, pois, indiretamente, também atingem o conteúdo do positivismo jurídico.
Ademais, não é possível tratar sobre a obra de Kelsen sem citar a corrente do juspositivismo,
uma vez que ambas estão percebidas lado a lado. Por essa lente, é essencial que a norma fundamental
de um ordenamento jurídico seja pressuposta como válida, porém, esta somente será vigente se for
eficaz e permitir que as demais normas sejam válidas em razão desta. Então, se a Constituição Federal
perder a sua eficácia, logo, perderá sua vigência, pois entre estes dois institutos há uma imensurável
conexão. Daí, portanto, nota-se que Kelsen atende as mais diversas particularidades teóricas acerca
desta temática em seu livro, bem como os possíveis dilemas que possam vir a ser gerados.
Nesse contexto, foi destacada a origem da democracia até o mundo contemporâneo, considerando
seus elementos essenciais, sendo estes a liberdade e a igualdade, em uma perspectiva de que,
se prevalecerem, a democracia irá prosperar. Com efeito, pode-se notar que, ao longo da história
civilizacional, a escolha pela democracia como regime de governo sempre se deu em virtude dos valores
e objetivos presentes nas respectivas sociedades que a adotaram. Considerados os juízos prioritários,
em determinados contextos, a forma de sociedade democrática se concretizou de acordo com os
preceitos de liberdade individual e envolvimento dos cidadãos no âmbito das questões políticas. Ora,
pois, sabe-se que em momentos de autoritarismo esta participação é plenamente reprimida, haja vista
que os interesses do Estado têm prioridade sobre as demandas individuais ou coletivas dos cidadãos.
Portanto, pautar o estudo do presente artigo nas reflexões teórico-políticas de Hans Kelsen
possibilitou um maior entendimento acerca da temática proposta e analisada, isso porque, o
posicionamento deste notório jurista há de ser considerado frente aos desafios difusos da sociedade
contemporânea. Diante da pesquisa aqui realizada, os objetivos requeridos foram atingidos, visto
que a obra Teoria Pura do Direito é fruto da contribuição da teoria jurídica positivista e traz à tona,
nos dias atuais, debates e contestações não só para o ensaio em si mesmo, como também para o
meio jurídico. Além disso, a sociedade democrática permite que essa expansão se realize, ao incluir
os cidadãos nas decisões políticas de um Estado. Por fim, é possível afirmar que Kelsen não passa
despercebido para o pensamento jurídico em razão da profundidade e atemporalidade de sua obra
em diversos aspectos, mesmo já tendo partido deste plano há muito tempo.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução e notas de


Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1995.

DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade de
Brasília (UnB), 2001.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Tradução de Alexandra Figueiredo et al. Coordenação de José


Manuel Sobral. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. Disponível em:

268
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3114970/mod_resource/content/1/Anthony_Giddens_
Sociologia.pdf. Acesso em: 24 set. 2020.

KELSEN, Hans. A democracia. Tradução de Ivone C. Benedetti et al. São Paulo: Martins Fontes,
1993.

KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.

LUCAS, Doglas Cesar; BEDIN, Gilmar Antonio. O positivismo jurídico maduro e o projeto de
construção de uma teoria pura do direito: uma aproximação do núcleo central.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A DEPRESSÃO COMO DOENÇA DO TRABALHO:


UM ABISMO EM MEIO LABORAL DA DIGNIDADE HUMANA

Nelci Lurdes Gayeski Meneguzzi 143


Carina Deolinda da Silva Lopes 144

RESUMO: O mundo do trabalho passa por inúmeras modificações, muitas delas envolvem diretamente
a saúde do trabalhador, não só a física, mas também a saúde psíquica e mental. Objetiva-se estudar a
depressão como um mal que atinge grande parcela da população mundial, é um fenômeno complexo
e instigador que vem motivando a investigação em diversos ramos das ciências. Assim também
ocorre com o Direito, como ciência que é não pode deixar de fazer sua análise, sob a luz do Direito
do Trabalho. O estudo será pautado na metodologia indutiva e no estudo bibliográfico, a fim de
verificar se o exercício da atividade laboral vem sendo envolta de situações cada vez mais tensas
que acabam por expor os trabalhadores em frequentes situações de conflitos. Estas situações de
trabalho, escassos benefícios sociais e proteção da legislação trabalhista limitada podem ser fatores
importantes no desencadeamento de patologias como a depressão.

Palavras-chave: Trabalho. Saúde psíquica. Saúde mental. Sofrimento. Depressão.

INTRODUÇÃO

Durante o presente estudo serão abordados fenômenos complexos e instigadores, presentes na


atualidade: a depressão e o mundo do trabalho. A depressão está presente em discussões nos mais
variados contextos sociais, que vão desde os meios acadêmicos até o cotidiano das pessoas, e o tema
vem ganhando cada vez mais espaço nas diversas áreas, e o direito não poderia furtar-se a esta análise.
Isso se dá tendo em vista que esta doença está entre as principais causas de incapacitação das
pessoas, que causa muito sofrimento e compromete as atividades diárias do indivíduo.
Ao mesmo tempo em que o diagnóstico desta doença é muito difícil, porque não há um consen-
so no meio da ciência médica que diga claramente, a definição precisa quanto à sua conceituação,
causas e origens. Ao lado desta dificuldade de diagnóstico está o quadro sombrio causado pelo sofri-
mento decorrente da depressão que traz inúmeros efeitos refletidos no ambiente do trabalho.
A importância do tema é incontroversa e há a necessidade de a ciência jurídica fazer uma análise
sob o seu prisma. É o que este estudo visa, onde tem-se a intenção de aprofundar o estudo acerca
da depressão suas consequências no meio jurídico. Far-se-á a análise frete ao Direito do Trabalho,
pela sua íntima relação com a doença e o aumento significativo das incidências da patologia nos dias
atuais, também, abordar-se-á o assunto à luz branda do Direito Previdenciário, no que se refere à co-
bertura que pode ser proporcionado pelo seguro social.
É necessário destaca que, apesar do tema ganhar cada vez mais amplitude, ainda a questão
bibliografia é escassa. O país passa por muitas dificuldades de toda a ordem, tanto social, econômica
e educacional, o momento é de um contexto competitivo e conflituoso, atingindo os trabalhadores
independentemente da área profissional que atuam.
As influências decorrentes do trabalho atuam diretamente na vida do trabalhador, pois primeira-
mente o tempo que passa em contato com o seu labor é muito maior do que com os seus familiares,

143 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UNIJUI, vinculada à linha de pesquisa do PPGDH/
UNIJUÍ “Democracia, Direitos Humanos e desenvolvimento”; orientanda do Prof. Dr. Gilmar Antônio Bedin e coorientanda da
Profª. Dra. Denise Pires Fincato. Advogada. Orcid 0000-0001-9770-8395. E-mail: nelcimeneguzzi@hotmail.com.
144 Doutoranda em Direitos Humanos (UNIJUI); Mestre em Direito (URI); Bolsista Capes. E-mail: lopesdeo@hotmail.com.
Advogada. Vinculada ao grupo de pesquisa Direitos Humanos, Governança e Democracia com orientação da profª. Elenise
Felzke Schonardie.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

dessa forma o trabalho pode ser fator gerador de saúde, mas também de doença.
Assim, esta breve análise, busca compreender de que forma a depressão está inserida no local
de trabalho e quais as influências deste para o desencadeamento da doença, devido às pressões ine-
rentes ao cotidiano laboral.
Primeiramente, faz-se a análise da depressão como doença que é, de forma a conceituá-la, clas-
sificá-la, esclarecer sobre seus sintomas, causas e tratamentos. Evidentemente que essa abordagem
é feita de forma sutil, pois sua análise mais profunda deve-se à área da ciência médica/psicológica.
Em seguida, se busca tratar da relação que o trabalho tem com a doença depressiva, trazendo
para o estudo, fatores intrinsecamente ligados à doença como o estresse, o assédio moral. Aborda-se o
sofrimento do trabalhador em seu ambiente profissional como fator gerador de adoecimento psíquico.
Traz-se, a depressão como uma doença do trabalho e suas caracterizações para os efeitos legais,
previdenciários. E, finalmente abordam-se as garantias e proteções que a legislação traz para o doen-
te depressivo, que embora escassa, pode assegurar um mínimo de justiça ao trabalhador depressivo.

1 A DEPRESSÃO EM CONTORNOS GERAIS

O mundo do trabalho tem passado por profundas transformações nas últimas décadas. Pode-se
perceber uma melhora do ambiente ocupacional, já que os equipamentos automatizados podem operar
em áreas de maior risco e em serviços mais pesados, mas isso não quer dizer que estejam superados os
danos à saúde. Certos distúrbios físicos diminuem, mas não desaparecem totalmente, e outros surgem.
O que tem causado grande preocupação entre os estudiosos do assunto são os chamados distúr-
bios psicossomáticos. Eles ainda são pouco conhecidos, mas afetam grande número de trabalhadores.
Essa anormalidade pode ser atribuída à mudança abrupta do conteúdo do trabalho, os ritmos mais
intensos impostos por máquinas e o aumento das dificuldades de relações interpessoais no trabalho.
Até pouco tempo atrás a depressão não era considerada uma doença, mas uma alteração do ca-
ráter e da força de vontade, ou seja, uma reação psicológica de pessoas fracas e incapazes de resolver
seus próprios problemas, conforme explica Sandra Gasparini (2020).
A depressão é uma doença que sempre existiu, mas que atualmente apresenta uma maior inci-
dência e merece mais atenção, principalmente no ambiente laboral.
Este cenário deixa evidente a necessidade de uma abordagem jurídica, uma vez que a depres-
são está presente no ambiente de trabalho e em número cada vez mais elevado, e o direito não pode
furtar-se a esta análise.
A depressão é uma doença tão antiga quanto o homem. Isso fica evidente quando se percorre
as páginas da história, oportunidade em que se pode observar comportamentos depressivos típicos.
Até mesmo na Bíblia Sagrada pode-se observar situações de comportamento, no Livro de Jó, capítulo
três, versículos 11 a 13 e 20 a 22.

[...] Por que não morri no seio materno, porque não pereci saindo de suas entranhas? Por que dois
joelhos para me acolherem, por que dois seios para me amamentarem? Estaria agora deitado em
paz dormiria e teria o repouso[...] Por que conceder luz aos infelizes, e a vida àqueles cuja alma
está desconsolada, que esperam a morte, sem que ela venha, e a procuram mais ardentemente do
que a um tesouro [...]. (2001).

Em poucas palavras, pode-se dizer que a depressão é uma tristeza profunda e prolongada, mas
que compromete o organismo como um todo, desde o psíquico até o físico. Há ainda, a alteração na
alimentação, no sono, na autoestima, no prazer com a vida, na manifestação das emoções, e outros
tantos. A palavra depressão é frequentemente usada para descrever sentimentos, como por exemplo,
quando a pessoa se sente “para baixo”. A depressão, enquanto acontecimento psiquiátrico é algo di-
ferente: é uma doença como outra qualquer que exige tratamento.
A depressão é um dos problemas psicológicos mais comuns nos dias de hoje. Vem sendo vivida
por uma parcela bastante significativa da população com implicações muito sérias no cotidiano, aba-
lando suas relações pessoais, trabalho, relacionamentos amorosos, levando-as à solidão.
Para Fernanda Moreira de Abreu:

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Os episódios depressivos caracterizam-se por uma tristeza profunda e duradoura, perda do interes-
se e prazer nas atividades cotidianas, sendo comum uma sensação de fadiga aumentada. O paciente
encontra dificuldade de concentração, apresentando baixa autoestima e reduzida autoconfiança, deses-
perança, ideias de culpa e inutilidade, visões isoladas e pessimistas do futuro, ideias ou atos suicidas. A
frequência destes sintomas e suas combinações são infinitamente variáveis. (ABREU, 2005, p.28).

Para Hugo Bleichmar (2005, p.28) “a denominação depressão designa-se habitualmente tanto
o quadro clínico caracterizado pela presença de elementos diversos: tristeza, inibição psicomotora,
auto-acusação, visão pessimista da vida[...]”. Ainda, encontra-se a definição no CID-10 (Classificação
de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10):

Em episódios depressivos típicos, de todas as três variedades descritas abaixo (leve, moderado e
grave) o indivíduo usualmente sofre de humor deprimido, perda de interesse e prazer e energia
reduzida levando a uma fatigabilidade aumentada e atividade diminuída. Cansaço marcante após
esforços apenas leves é comum.

Importante destacar que a doença depressiva não é sinal de fraqueza, de falta de pensamentos
positivos ou uma condição que possa ser superada apenas pela força de vontade ou com esforço:

Apesar do grande estigma que ainda acompanha a depressão, sabe-se hoje que é uma doença
séria e incapacitante, que tem tratamento e cura na grande maioria dos casos. Na verdade, não é
o indivíduo incapaz que tem depressão, mas a depressão que incapacita o indivíduo para o viver
saudável e pleno.(CALIL, s.a., s.p.).

Para Sandra Gasparini (2020, s.p) “a depressão pode ser definida como um distúrbio do humor,
com duração maior do que duas semanas, causado pela deficiência de determinadas substâncias (se-
rotonina, noradrenalina e dopamina) no cérebro. Pode afetar homens e mulheres em qualquer fase da
vida, e sem um fator desencadeante grave”.
Fernanda Moreira de Abreu (2005) esclarece dizendo que mesmo que cientificamente compro-
vado como uma patologia, o transtorno mental da depressão, ainda hoje, é considerado por muitos
como “frescura” ou “fraqueza de caráter”, preconceito que gera nas pessoas vergonha em pedir ajuda
para que possam receber o tratamento adequado, com grandes chances de sucesso, agravando-se
desta forma ainda mais a incidência dos prejuízos que essa doença pode acarretar.
O deprimido tem sentimento de incapacidade, torna-se desinteressado pelas coisas e sua ener-
gia vital é subtraída. Os sentimentos são inúmeros e extremamente confusos, a pessoa tem a impres-
são de estar anestesiado, sem sentidos. É comum haver tristeza intensa, choro fácil, irritabilidade
elevada com pequenas questões, sensação de desvalorização, vontade de abandonar tudo e todos.
Atividades feitas com naturalidade tornam-se maçantes, exigindo um esforço enorme.
As causas que podem contribuir para que uma pessoa desenvolva a depressão são inúmeras,
não é causada por um único fator isolado. O mais provável é que seja uma consequência da com-
binação de fatores biológicos, psicológicos, genéticos entre outros. Ainda, algumas condições de
vida como o estresse, o luto, o uso de drogas e o grande consumo de álcool, podem desencadear a
depressão e ainda há indivíduos que desenvolvem a doença mesmo quando tudo parece estar bem.
É muito importante que se conheça a doença, sintomas e causas para que a família, os amigos,
os colegas de trabalho, entendam o quanto esta patologia é dolorosa e o porquê é tão difícil “sair”
dela. Muitas vezes, ao tentar alegrar o deprimido, levando-o para locais de lazer ou insistir que ele
se ajude, faz com que aumente sua irritação, seu mal-estar, não melhorando da depressão. Assim
também entende Ballone quando diz:

As pessoas com Depressão clínica podem ter alterações na quantidade de algumas substâncias no
cérebro, os chamados “neurotransmissores”, bem como no número e sensibilidade de estruturas
funcionais situadas nas paredes de neurônios, os neuroreceptores. Em nosso cérebro há mensa-
geiros químicos chamados neurotransmissores, os quais ajudam a controlar as emoções. Os dois
mensageiros principais são a serotonina e a norepinefrina. (2005, s.p).

O que ainda não está claro é o porquê em algumas pessoas a patologia se desenvolve em outras
não, sendo este tema estudo de diversos pesquisadores da área médica e da psicologia. A dificuldade

272
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

em se encontrar uma compreensão, se dá ao fato de ser um fenômeno complexo, e sua base causal
definitiva ainda ser desconhecida, embora sejam feitas inúmeras tentativas, por parte dos pesquisa-
dores, uma causa biológica ou psicossocial não tem sido encontrada, principalmente pela heteroge-
neidade da população.
Quando se fala em tratamento para a doença depressiva, não se pode restringir ao medicamentoso,
embora em casos mais graves esta é a prioridade. O tratamento da depressão poderá se dar através de
antidepressivos, que são remédios que corrigem o metabolismo dos neurotransmissores, não são calman-
tes e nem estimulantes, não criam dependência física e nem psíquica, e também através da psicoterapia.
Sair da depressão não é tão fácil, pois o doente precisa lutar consigo próprio em aspectos de perso-
nalidade arraigados, muitas vezes, desde a infância. Superar tal problema é reorganizar toda a sua vida de
relações. Para isso, implica uma compreensão e uma localização da maneira como vive, passando pelo co-
nhecimento do seu processo de formação da personalidade e culminando na organização do seu futuro.
Descobertos na década de 50, os antidepressivos e, consequentemente sua introdução na prá-
tica médica tornaram a depressão numa doença com possibilidades de tratamento cientificamente
demonstrado, sendo um marco na área farmacologia e médica.
O tratamento farmacológico é o mais comum e muito eficaz e, quando seguidas as prescrições
médicas, os resultados aparecem em duas semanas, embora sejam necessários, aproximadamente,
seis semanas para que sejam mantidos os benefícios.
É importante destacar, que para evitar a reincidência são necessários mais seis meses de uso da
medicação, para após, gradualmente, ser retirada do paciente. Os primeiros antidepressivos usados de
forma ampla foram os tricíclicos, eles têm uma grande eficácia, mas causam muitos efeitos colaterais por
afetarem substancias químicas do cérebro que não tem relação com a depressão. Os efeitos colaterais mais
comuns são: boca seca, constipação, visão embaçada, pressão arterial baixa, sonolência diurna e ganho
de peso. Estes medicamentos são muito perigosos quando administrados em doses muito elevadas.
A ciência tem trabalhado muito para melhorar estas condições, desenvolvendo drogas que são
mais bem toleradas pelo organismo, Fernanda Moreira Abreu (2005) enfatiza que os modernos anti-
depressivos representam um tremendo avanço da indústria farmacêutica. Quem os toma com pres-
crição médica e reponde bem ao tratamento consegue superar boa parte das limitações impostas
pela doença. A melhoria do estado de saúde e da qualidade de vida permite ao paciente vislumbrar
possíveis soluções para seus impasses concretos e é nesse ponto que entrará o trabalho psicológico
e a importância disto para o bem-estar deste no ambiente de trabalho, como veremos a seguir.

2 A DEPRESSÃO E O AMBIENTE DE TRABALHO

Os aspectos relacionados à saúde e doença estão presentes claramente no contexto do trabalho,


e envolvendo a vida do trabalhador que, muitas vezes, adoecem orgânica e psiquicamente no exercí-
cio diário de suas atividades laborais.
O trabalho é um fator importante na vida do indivíduo e não é só pelo fato de prover seu sustento e
da família, mas também por dar significado a sua existência ao reconhecimento social como ser produtivo.
Ocorre que para manter seu lugar no mundo laborativo o trabalhador cria estratégias defensivas, visto
que se depara com um ambiente sentido como hostil e, muitas vezes, gerador de doença. (CENSI, 2004).
Pode ser dito ainda, que quando o trabalhador não corresponde à produção desejada pelo mer-
cado de trabalho, não encontra seu lugar. Assim também ocorre com aquele que adoece, que normal-
mente é excluído do convívio social e dificilmente volta a exercer a atividade laboral anterior, gerando
desconfiança sobre as verdadeiras condições do doente.
A atividade laboral sempre teve uma relação muito sutil com a depressão. Entretanto, o trabalho
tem sido reconhecido como fator importante para a patologia, assim como na evolução da mesma.
Isso se deve às mudanças ocorridas nas características do trabalho e das relações trabalhistas em
um espaço de tempo bastante curto. Essas mudanças todas refletem diretamente na saúde mental dos
trabalhadores, trazendo ansiedade, irritação, angústia, frustração, depressão e diversas outras tantas
anomalias que podem dar início à uma infinidade de doenças psicossomáticas (OLIVEIRA, 2002, p.188).
Nesta mesma linha de raciocínio, Fernanda Moreira de Abreu (2005, p.44) diz que, “as decep-

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ções sucessivas em situações de trabalho frustrantes, as exigências excessivas de desempenho cada


vez maior geradas pelo excesso de competição, a ameaça permanente de perda do trabalho pode vir
a determinar depressões mais ou menos graves ou protraídas”.
As condições de trabalho a que o indivíduo está submetido e a sua organização podem ser de-
terminantes no desencadeamento das síndromes depressivas. Destaque especial para a questão do
estresse profissional em relação ao tipo de gestão e qualidade das relações humanas, se for um am-
biente de competição, pressão e de cobrança onde o trabalhador não atinge os resultados esperados
pela empresa poderá aumentar a depressão.
Para Cláudia Mara Bosetto Censi (2004) as reflexões sobre trabalhado, saúde e doença são com-
plexas e tornam-se ainda mais densas quando se trata de saúde e /ou doença psíquica. Porém, antes
de adentrar nesta esteira, deve-se verificar as condições físicas, biológicas e químicas que se vincu-
lam ao trabalho, vez que interferem na saúde mental do trabalhador. Enfoca-se a doença depressiva
que se relaciona com a exposição do trabalhador à algumas substancias químicas.
Já a organização do trabalho tem o efeito mais preponderante nos agravos psíquicos relaciona-
dos ao trabalho, o ponto que merece destaque é que “quanto menor é a participação do trabalhador
na organização de sua própria atividade e no controle da mesma, maiores as probabilidades de que
esta atividade seja desfavorável à sua saúde mental”.(ABREU, 2005, p.45)
Importante ressaltar que o Ministério do Trabalho tem Normas Regulamentadoras, aprovadas
pela Portaria 3.214, de 08 de junho de 1978, tendo por objetivo averiguar as condições e a organiza-
ção do trabalho a que o empregado se encontra submetido, destaque para a NR-7, NR-9 e NR-17145.
As más condições de trabalho ou na organização do ambiente laborativo podem gerar o estresse
profissional ou ocupacional. E “a ênfase do conceito de estresse parece que está no impacto, no fato
de se constituir como um fator potencial para consequências futuras, que podem variar em termos
do poder do estressor e da vulnerabilidade do sujeito”.(CUNHA, 2000, p.20)
Diante disso pode-se dizer que, o estresse profissional ou ocupacional é a reação do trabalhador
às sobrecargas e as más condições oferecidas para o desenvolvimento do trabalho e se deve ao fato
de as exigências de eficiência e rapidez na realização das tarefas.
Os sintomas do estresse, normalmente começam com a forma de nervosismo, ansiedade, irrita-
bilidade, fadiga sentimento de raiva, angústia, períodos de depressão, dor de estômago, palpitações,
dores musculares com maior incidência no pescoço e ombros. O estresse tem quatro fases bem defi-
nidas com sintomas físicos e no trabalho:

Na primeira fase há dificuldades para dormir, libido alta, músculos retesados, taquicardia, sudorese, falta
de apetite, há também alta produtividade e criatividade (o profissional pode varar a noite sem a menor
dificuldade). Na segunda há libido mais baixa, cansaço, falhas de memória, sensação de tédio, a produ-
tividade e criatividade voltar ao normal. Na fase seguinte tem-se insônia, libido quase nula, sensação de
desgaste, piora da memória, ansiedade constante, falta de prazer e no trabalho há uma queda drástica
na produtividade e na criatividade (só se dá conta da rotina, sem oferecer ideias novas). Na quarta fase
ocorre a exaustão do empregado em que a libido desaparece, há o surgimento de doenças graves como
a depressão; algumas pessoas têm vontade de morrer. Nesta última fase é quase impossível trabalhar
normalmente, ocorre falta de concentração e interesse pelo trabalho. (ABREU, 2005, p.47)

Nesse mesmo sentido, a autora entende que o estresse profissional feito de pressões e exagero
de tarefas múltiplas e repetitivas pode esgotar uma pessoa e mesmo levá-la a um burnout, isto é, a
depressão por esgotamento. A Síndrome de Burnout é uma forma de estresse no trabalho, é uma crise
do indivíduo com o seu trabalho, não deve ser encarado como um problema do ser humano, mas do
ambiente social no qual ele trabalha.

145 a) NR 7 - Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional, estabelece a obrigatoriedade de elaboração e implementação,
por parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa de Controle Mé-
dico de Saúde Ocupacional - PCMSO, com o objetivo de promoção e preservação da saúde do conjunto dos seus trabalhadores.
b) NR 9 - Programa de Prevenção de Riscos Ambientais, estabelece a obrigatoriedade da elaboração e implementação, por
parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa de Prevenção
de Riscos Ambientais - PPRA, visando à preservação da saúde e da integridade dos trabalhadores, através da antecipação,
reconhecimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir
no ambiente de trabalho, tendo em consideração a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais.
c) NR 17 – Ergonomia, visa a estabelecer parâmetros que permitam a adaptação das condições de trabalho às características
psicofisiológicas dos trabalhadores, de modo a proporcionar um máximo de conforto, segurança e desempenho eficiente.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O mercado de trabalho hoje exige soluções mágicas, aquelas que resolvem tudo muito rapida-
mente e sem muito esforço. Esta facilidade está estampada em manuais, livros e disseminada em
eventos direcionados aos trabalhadores, sufocando a criatividade e ignorando os trabalhadores como
seres portadores de sentimentos humanos.
O adoecimento, segundo Cláudia Mara Bosetto Censi (2004) é um fato concreto causado pelas condi-
ções de trabalho adversas e arriscadas, cujas consequências se expressam no cotidiano dos trabalhadores.
Cada ambiente de trabalho possui suas peculiaridades organizacionais que regem o seu funcio-
namento diário, na mesma medida em que cada pessoa que presta determinado trabalho este sofre
transformações devido à subjetividade de cada indivíduo.
Um ambiente de trabalho aparentemente agradável e harmônico pode ocultar um outro lado,
onde implicitamente estão presentes os prejuízos que o trabalhador sofre, podendo ser causadores
de doenças como a depressão.
As dificuldades vivenciadas no transcorrer da atividade laborativa como o estresse, a pressão per-
manente, as metas inatingíveis e a instabilidade são constantes, da mesma forma que em alguns locais
de trabalho são impostos valores ao trabalhador que são contrastantes com a subjetividade do indivíduo.
O custo psíquico e moral de se exercer atividade profissional de forma inautêntica é altamente des-
gastante e até mesmo, degenerativa, onde o sofrimento diário vai sendo acumulado e o trabalhador sofre
por ter de deixar o seu lado humano do lado de fora da relação, sente que é tratado como máquina.
Todos os dias o trabalhador sai de casa para enfrentar uma guerra, onde o caráter instável de
ausência de perspectivas invade a vida como um todo, pois as consequências do ambiente laborativo,
positivas ou negativas, são carregadas pelo trabalhador para o seu cotidiano.
O sofrimento que o trabalhador adquire no ambiente de trabalho acaba levando para as suas
relações sociais, familiares e para seu círculo de amizades. A tendência desse indivíduo é se afastar de
todas as pessoas de seu vínculo pessoal, preferindo a solidão. As atitudes comportamentais voltam-
se para a violência, fazendo com que seu trato pessoal seja quase insuportável.
Verifica-se então que o trabalhador perde duas vezes, uma porque adoece profissionalmente e
é afastado devido a sua incapacidade e a outra é que aos poucos vai fazendo com que as pessoas se
afastem dela porque acaba descarregando seu sofrimento em quem está mais próximo, enclausuran-
do o depressivo em sua solidão.
Nesse momento, resta ao trabalhador, se tiver alguma força dentro de si, trilhar um a busca so-
litária e muito dolorida para um tratamento que possa trazer-lhe de volta à vida.

3 A DEPRESSÃO COMO DOENÇA DO TRABALHO

O conceito de acidente de trabalho que será considerado, primeiramente, é aquele que a Lei
8.213, de 24 de julho de 1991 traz em seu artigo 19. Assim, acidente do trabalho é o que ocorre pelo
exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no
inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte
ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. (BRASIL, 1993).
Em seu artigo seguinte a lei sobredita traz uma abrangência mais ampla, equiparando o acidente
de trabalho às doenças ocupacionais subdividindo-as em doenças profissionais e do trabalho:

Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entida-
des mórbidas:
I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho
peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do
Trabalho e da Previdência Social;
II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais
em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no
inciso I. [...]
§ 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos
I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se
relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho. (BRASIL, 1993).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

As situações tidas como acidente de trabalho atípicos, acima descritas, são enquadradas por
Sebastião Geraldo de Oliveira da seguinte maneira:

As doenças ocupacionais reconhecidas pela Previdência Social subdividem-se em doenças profis-


sionais (tecnopatias) e doenças do trabalho (mesopatias). Nas primeiras, a doença está ligada à
profissão do trabalhador, tanto que a presunção imediata é de que a sua origem esteja vinculada
ao trabalho, como, por exemplo, a silicose daqueles que trabalham em contato com a sílica. As
doenças do trabalho, entretanto, aparecem em razão das condições especiais e que o trabalho é
realizado, havendo necessidade, como já mencionado, da prova do nexo causal para sua caracte-
rização. (OLIVEIRA, 2002, p.317).

Assim sendo, no entendimento de Fernanda Moreira de Abreu (2005) a depressão pode perfei-
tamente vir a ser considerada doença do trabalho uma vez adquirida ou desencadeada em função de
condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente.
Em maio de 1999, surgiu o Decreto Federal 3.048, que regulamenta a Previdência Social do Bra-
sil, admitindo como doenças do trabalho patologias como depressão, alcoolismo, burnout, envelheci-
mento precoce e outras. Neste anexo está mencionada a relação que o artigo 20, I, da lei nº. 8.213/91
refere, trazendo um rol de 200 novas doenças do trabalho.
Referindo-se a este novo diploma legal, Sebastião Geraldo de Oliveira:

A nova lista das doenças ocupacionais do INSS, relacionada no Anexo II do Decreto n.3.048/99, já
indica o grupo dos Transtornos mentais e do comportamento relacionados como trabalho (Grupo
V do CID-10), apontando, dentre outros fatores etiológicos dessas doenças: problemas relacio-
nados como emprego e com o desemprego, condições difíceis de trabalho, ritmo de trabalho
penoso, reação após acidente grave, reação após assalto no trabalho, desacordo com o patrão e
colega de trabalho, circunstâncias relativas às condições e trabalho, má adaptação à organização
do horário de trabalho etc. (2002, p. 206).

O Anexo do Decreto, somente reconheceu a depressão como doença do trabalho por levar em
conta a relação entre a exposição do trabalhador às substâncias químicas tóxicas como o brometo
de metila, chumbo ou seus compostos tóxicos, manganês e seus compostos tóxicos, mercúrio e seus
compostos tóxicos, sulfeto de carbono, tolueno e outros solventes aromáticos neuróxicos, tricloroeti-
leno, tetracloroetileno, tricloretano e outros solventes orgânicos halogenados neurotóxicos e outros
solventes orgânicos neurotóxicos,

O que deve ficar claro é que apesar da depressão não possuir previsão expressa enquanto doen-
ça do trabalho quando adquirida ou desencadeada em função de problemas relacionados com o
emprego e com o desemprego, condições difíceis de trabalho, ritmo de trabalho penoso, reação
após acidente grave, reação após assalto no trabalho, desacordo com o patrão e colega de traba-
lho, circunstâncias relativas às condições do trabalho, má adaptação à organização do horário de
trabalho etc., ela pode ser assim considerada pela sai ligação intima com os outros dispositivos
existentes no mesmo grupo do Anexo II. (BRASIL, 1999)

Fica evidente que a depressão será considerada como doença do trabalho quando estiver en-
quadrada na previsão do Art. 20, II, da Lei 8.213/91 e toda a vez que o trabalhador estiver sob a
exposição das substâncias elencadas no Anexo II, Grupo V da CID 10, embora outras situações tam-
bém devam ser averiguadas. Quando não se puder enquadrar em nenhumas das hipóteses arroladas,
poderá ser considerada como doença do trabalho a partir do reconhecimento do nexo causal entre a
patologia e o trabalho, levando-se em conta o que diz a Lei nº 8.13/91.
É muito fácil confundir as doenças comuns com as doenças do trabalho, para diferenciá-las é estabelecido
o nexo causal entre o dano e o trabalho. Para Sebastião Geraldo de Oliveira, a exigência de se estabelecer o
nexo causal funda-se no fato de que ninguém pode responder por dano a que não tenha dado causa:

No acidente de trabalho típico a presença do nexo causal fica bem evidente. No entanto, a cons-
tatação do liame de causalidade no caso das doenças do trabalho exige cuidado maior, pois nem
sempre é possível estabelecer com segurança se a enfermidade ocorreu por causa do trabalho, o
que requer exames complementares para diagnósticos diferenciais mais apurados de modo a es-
tabelecer a distinção. A própria lei acidentária exclui do conceito de doenças do trabalho a doença
degenerativa e aquelas inerentes ao grupo etário, porque, em tese, os trabalhadores com propen-

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

são seriam acometidos dessas patologias trabalhando ou não. Nessas hipóteses as doenças não
ocorreram “pelo” trabalho, mas “no” trabalho. (OLIVEIRA, 2002, p.241)

Há a necessidade que o nexo causal seja profundamente investigado e para isso a Medicina do Traba-
lho foi criada para a verificação das questões envolvendo acidentes e doenças do trabalho e profissionais.
Ainda cabe salientar que o reconhecimento da relação etiológica entre o dano/doença e o tra-
balho tem, frequentemente, implicações previdenciárias, trabalhistas, de responsabilidade civil e às
vezes criminal, além de desencadear ações preventivas. Uma investigação incompleta ou displicente
pode acarretar sérios prejuízos para o paciente.
Apesar da grande importância dada à configuração do nexo etiológico, é salutar ressaltar que,
quase sempre, este reconhecimento com base na probabilidade. Na maioria das vezes o nexo causal
não fica provado, cabe ao perito aferir pela descrição da doença.
Assim, para considerar a depressão uma doença laboral, é necessário verificar de que forma as con-
dições e a organização do trabalho atuam no desencadeamento ou agravamento do episódio depressivo.
Havendo dúvidas quanto à caracterização do nexo causal deve-se primar pelo mais fraco na
relação dando-o amparo necessário. Os ensinamentos que Sebastião Geraldo de Oliveira (2002, p.
241) traz são no sentido de que a proteção previdenciária não é plena, porque deve ser observada a
tarifação da Lei de Benefícios, não sendo abrangidos os lucros cessantes e danos emergentes.
Para que haja a proteção previdenciária não há a necessidade de se provar o dolo ou a culpa do empre-
gador, sendo devido ainda nos casos em que a culpa ou o dolo sejam exclusivas da vítima, o que se impõe
é a existência do nexo causal e se caracteriza quando subtraindo-se o fato, a incapacidade não se verificar.
Dessa forma, verifica-se que a legislação brasileira exige que a doença decorra necessariamente
do trabalho para considerá-la como tal, quando aparece a depressão a tendência é que seja conside-
rada como uma patologia inerente à própria pessoa, não tendo relação como o trabalho, conforme
explanado acima, e até que se prove o nexo causal é um longo caminho a ser trilhado.
Dessa forma, a depressão, decorrente do trabalho, encontra suporte para o doente e para seus
familiares junto à Previdência Social, a dificuldade maior, ainda, é a aceitação do enquadramento da
doença como laborativa junto àquele órgão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A depressão está presente desde os mais remotos tempos, e podem ser encontrados registros
da literatura desde os mais idos tempos, onde se verifica que a doença é tão antiga quanto os primór-
dios da humanidade, não sendo novidade ou invenção do atual século.
O que se pode verificar, hoje, é um aumento na incidência da depressão, ocasionando muito
sofrimento ao doente e também aos familiares, amigos e pessoas da relação do indivíduo doente. A
doença é uma realidade, com consequências devastadoras no cotidiano das pessoas, mas que com o
tratamento correto, na maior parte dos casos, evolui para uma melhora, evitando as o estágio mais
grave da patologia, que pode levar até o suicídio.
Falar sobre esta doença é uma árdua tarefa, primeiramente por esta não ser palpável como seria
um ferimento, e também por haver falta de credibilidade no ser humano, onde as organizações acre-
ditam que possa se tratar de simulação ou corpo mole do trabalhador.
Falar sobre o alcance legal das normas existentes para os casos de adoecimento profissional é um
tanto audacioso, por ser necessário fazer uma busca bibliográfica de áreas diversas para se alcançar fun-
damentos teóricos consistentes para as reflexões referentes à saúde/doença mental dos trabalhadores.
A depressão tem vários níveis de manifestação, assim com diferentes formas de entendimento
acerca da mesma, o que deixa evidente a necessidade contínua de estudos nos mais diversos seg-
mentos da ciência, contemplando a subjetividade dos indivíduos e as responsabilidades do social nas
manifestações humanas.
Vários autores, quando discutem as doenças de ordem psíquica/mental, reconhecem o trabalho
como um dos fatores causadores e agravantes da depressão.
Ante ao exposto, lamenta-se que na prática não se possa verificar a proteção do trabalhador
depressivo. De acordo com este estudo, isso se dá ao fato de que os exames admissionais, periódicos
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

e demissionais, que devem, em tese, ser a cargo do empregador, ficam longe de atingir o fim a que
se destinam, pelo modo superficial a que são feitos, e ainda assim, normalmente ficam restritos ao
exame físico do trabalhador.
Eis a grande falha, ocorre normalmente a negligência da investigação da aptidão mental do tra-
balhador, fator que se deve a brevidade que comumente se atribui aos exames acima citados.
O diagnóstico, ou investigação da doença depressiva e outras doenças de ordem psíquica e
mental, requerem uma investigação mais profunda, pôr na maioria das vezes, encontrarem-se camu-
flados ou escondidos atrás de outros sintomas, quase sempre físicos.
Assim para o diagnóstico correto da depressão é necessário um lapso temporal maior, ao qual
o empregador não quer dispor, e quando a patologia é decorrente da atividade laboral o caminho é
mais árduo ainda, pois ainda haverá a necessidade de se investigar o ambiente organizacional para
que se reconheça o nexo de causalidade, demonstrando o desencadeamento da doença em função
das condições em que o trabalho foi realizado.
A legislação pátria ao expandir o rol de doenças ocupacionais já incluiu a depressão como pa-
tologia do trabalho, mas restringiu-a aos casos em que o trabalhador exercer suas atividades exposto
a algumas substâncias químicas tóxicas, deixando de reconhecê-la também para os casos em que o
meio ambiente do trabalho é falho, sendo causador de sofrimento e de doença.
Entende-se lamentável que uma doença tão séria quanto a depressão seja tão negligenciada e
os trabalhadores acometidos desta patologia por causas inseparáveis ao seu labor não possam usu-
fruir dos poucos benefícios que lhes são devidos para tratarem-se de forma digna.
Obviamente sempre haverá quem busque beneficiar-se da lei elaborada para dar proteção a
quem precisa, burlando-a, mas nem por isso a proteção deva deixar de existir, afinal deve-se visar
primeiramente o bem coletivo em detrimento do privado, conforme assegurado constitucionalmente.
O trabalhador depressivo perde seus objetivos, sonhos, saúde, autoestima, força, perspectiva,
não vê nenhuma possibilidade positiva à sua frente, somente vive um dia após o outro, esquecendo
das suas aspirações e desejos que outrora o motivavam para a vida.
O entendimento que se tem é que o trabalho tem por finalidade dignificar a vida humana e não
a degradar. Assim, pode-se dizer que deixar de dar a devida assistência ao trabalhador depressivo é
tirar-lhe a própria vida.

REFERÊNCIAS

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280
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A DISTOPIA DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL NA


GARANTIA DA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Alexandre Nogueira Pereira Neto146

RESUMO: O presente trabalho apresenta as dificuldades da aplicação dos programas do Estado brasileiro,
em razão da política econômica neoliberal desempenhada no Brasil. Registra que o ordenamento jurídico
brasileiro proíbe o retrocesso social – princípio implícito que decorre do sistema jurídico-constitucional.
Porém, ao final, demonstra que, por meio do Novo Regime Fiscal, instituído pela Emenda Constitucional
95/2016, o Estado brasileiro vem atuando conforme os ditames da ideologia neoliberal, o que revela,
na verdade, o desmanche da proposta do Estado Social e Democrático de Direito.

Palavras-chave: Proibição do Retrocesso Social. Neoliberalismo. Estado Social e Democrático de


Direito.

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, detém uma série de premissas que
registram o programa de Estado pretendido pelo Constituinte e buscam o desenvolvimento de um
ambiente sadio, por meio da implementação de políticas públicas destinadas ao aprimoramento dos
direitos sociais para, por fim, assegurar o princípio norteador de toda a estrutura do ordenamento
jurídico brasileiro, a dignidade da pessoa humana.
Entretanto, promove-se, desenfreadamente, uma política econômica que, em vez de proporcionar
estabilidade nas relações coletivas, postula graves entraves na qualidade e na satisfação dos direitos
sociais. Tal medida é impulsionada pelo neoliberalismo. Os países periféricos, como o Brasil, sofrem
diante dessa matriz econômica difundida no mundo contemporâneo. Isto é, essa proposta econômica
torna a eficiência por parte do Estado, no que diz respeito à concretização dos direitos sociais,
diminuta, eis que esse modelo econômico retira do Estado as exigências constitucionais (e.g. saúde
e educação).
O que se pretende, nesse modelo econômico, não é construir um ambiente de Estado Social e
Democrático de Direito adequado, assegurando, portanto, meios suficientes à subsistência humana,
e sim priorizar intocáveis privilégios das elites financeiras e, ainda, precarizar os direitos sociais,
enfraquecendo-os ou até retirando-os da legislação, com o pretexto de que não são direitos de selo
fundamental.
O Novo Regime Fiscal, instituído pela Emenda Constitucional 95/2016, é a assertiva de que o
tratamento que se dá aos direitos sociais é, evidentemente, um desmando para que sejam mantidos
os intocáveis privilégios das elites econômicas, promovendo, assim, a ineficiência da implementação
de políticas públicas e, consequentemente, aumentando o corte dos investimentos sociais.
Nesse sentido, as políticas econômicas neoliberais, por serem uma ideologia que visa a direções
contrárias à Constituição, acabam desvirtuando os valores, as diretrizes e os princípios previstos no
topo normativo. Os direitos sociais, nesse sentido, previstos, também, na Constituição, não devem
ser negociados ou relativizados para atender aos interesses do mercado. Direitos sociais não são
privilégios, são direitos legítimos previstos na Constituição, pois são direitos fundamentais. E não se
admite retrocesso em direitos já conquistados.

146 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pós-graduando em Direito Constitucional pela Academia
Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Membro do Grupo de Pesquisa Estado, Constituição e Direitos Fundamentais
da Faculdade de Direito da UFPEL.

281
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL E O NEOLIBERALISMO

O neoliberalismo é uma proposta que tem como objetivo principal o desmantelamento dos
direitos sociais que, por consequência, atinge, frontalmente, a dignidade da pessoa humana –
fundamento da República Federativa do Brasil. Trata-se de uma medida que suprime ou restringe
– dependendo da situação – direitos reconhecidos e assegurados pela Constituição e pela legislação
infraconstitucional. Aplicando-se a lógica neoliberal ao sistema jurídico brasileiro, transformam-se
em quimera os preceitos constitucionais, uma vez que as leis do mercado galgam patamar acima da
Constituição. O modelo econômico neoliberal, nesse caso, sobrepõe-se às regras do Estado Social e
Democrático de Direito, impondo restrições às diretivas da Nação.
Característica da vertente ideológica neoliberal, a redução do Estado em demandas essenciais à
subsistência humana revela um desvirtuamento da perseguição de princípios, de valores e de direitos
consignados pela Constituinte, em 1988. Os poderes da Federação – Legislativo, Executivo e Judiciário
– têm o dever de estabelecer uma voz uníssona que retumbe em todos os cantos da República para,
paulatinamente, avançar, e não retroceder em medidas que tenham como pauta os direitos sociais, na
medida em que o Estado Social e Democrático de Direito busca, por meio, sobretudo, das diretrizes
constitucionais, promover a proteção social e a promoção da cidadania.
Derbli (2008, p. 343) destaca que “a Constituição ora vigente inaugurou um Estado Social e
Democrático de Direito, vocacionando para a progressiva consecução de um projeto de igualdade
material ao menos relativa”. A Constituição, assim, é uma importante ferramenta no sentido do respeito
ao programa de Estado fixado em seus primeiros artigos, pois, com base neles, busca-se, em última
instância, a promoção da justiça social. Nesse contexto, complementa Derbli (2008, p. 343) que:

A Carta Magna de 1988 posicionou o Estado como figura central na realização da justiça social,
incumbido da promoção dos direitos sociais e na formulação de políticas públicas voltadas para a
paulatina eliminação das desigualdades. Pode-se dizer até que a Constituição estabelece para o poder
político um destino de justiça social a ser alcançado. Assim, não basta que a Constituição seja pródiga
na previsão de direitos fundamentais de cunho econômico, social e cultural; é igualmente importante
que, em estrito cumprimento das disposições constitucionais, tais direitos sejam concretizados. A
tarefa do legislador, nesse ponto, é de máxima relevância, na medida em que, através da atividade
legiferante, os direitos sociais constitucionalmente previstos poderão atingir o nível de densidade
normativa necessário para que possam, de fato, gerar direitos subjetivos para os cidadãos.

Uma vez estabelecidos os direitos fundamentais sociais, revestidos pelo fundamento da dignidade
da pessoa humana, espera-se do legislador, principalmente, avanços e aprimoramentos em demandas
que permitam uma melhor adequação, regulamentação, projeção ou implementação de medidas que
ampliem a atuação do Estado no trajeto da proteção social da sociedade. O legislador, além de estar
vinculado, sobretudo, aos preceitos normativos constitucionais, porta consigo a insígnia da ética de
exercer o republicanismo, que tem como escopo a democratização dos espaços sociais. Porque, de
acordo com Derbli (2008, p. 344):

A Constituição cria para o legislador a obrigação de editar leis que concretizem os direitos
fundamentais sociais (direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão), estabelece, por
questão de lógica, que não se possam simplesmente revogar as leis que cuidam dessa concretização,
sem que seja criada nenhuma regulamentação substitutiva. Da mesma forma, não se poderá
admitir que o legislador venha a reduzir, ao menos de forma arbitrária ou desproporcional, o
patamar de desenvolvimento infraconstitucional de um direito fundamental social. Do contrário,
o projeto de modernidade da Constituição brasileira será ignorado.

A supressão ou redução dos direitos sociais, está, também, atrelada à ideologia econômica
neoliberal. A constante supressão dos direitos sociais, com o afastamento do Estado dessas
prestações, formatando, portanto, o Estado mínimo, harmônico à doutrina neoliberal, vem rasgando
a ideia do Estado Social e Democrático de Direito, que deve garantir e promover os direitos sociais,
corrompendo, assim, a ordem constitucional, privilegiando a autonomia do mercado e fomentando,
ainda mais, exclusão social e miséria.
Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro não admite retrocessos. A proibição do retrocesso
social é um princípio implícito, na medida em que não está descrito literalmente no ordenamento

282
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

jurídico brasileiro. É um princípio que, com base em uma leitura do sistema constitucional como um
todo, pode-se, em função da influência doutrinária e jurisprudencial, reconhecer o seu valor jurídico.
Barroso (2001, p. 158) consigna que:

[...] por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-
se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito,
ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido.

O princípio da proibição do retrocesso social é fundamentado em uma série de elementos,


que merecem destaque, tais como: princípio do Estado Democrático e Social de Direito, que impõe
a manutenção de um patamar mínimo em relação à proteção social e à segurança jurídica, pois
estão ligados à continuidade da ordem jurídica contra medidas retroativas; princípio da dignidade da
pessoa humana, na medida em que, por meio de prestações positivas, exige a satisfação de um vida
digna; princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais
(art. 5º, § 1º, CRFB/1988), e a maximização da proteção dos direitos fundamentais; manifestações
expressas e específicas na Constituição contra mediadas retroativas (direito adquirido, coisa julgada e
ato jurídico perfeito); princípio da confiança, tendo em vista que impõe aos agentes estatais atuarem
em consonância com a boa-fé nas relações com os particulares no sentido da estabilidade da ordem
jurídico-objetiva; vinculação inquestionável dos órgãos legislativos aos direitos fundamentais sociais e
às normas constitucionais em geral; respeito aos tratados internacionais, tendo em vista que impõem
a progressiva concretização da proteção social, vedado o retrocesso (SARLET, 2010, p. 88-92).
Percebe-se que o princípio da proibição do retrocesso social está intimamente ligado ao programa
do Estado brasileiro, pois como “bloco de normas constitucionais em que se definem fins e tarefas do
Estado, se estabelecem directivas e estatuem imposições” (CANOTILHO, 2003, p. 224). Com efeito,
os programas diretivos do Estado impõem ao legislador a construção de mecanismos efetivos no
sentido da prestação dos fins que eles preconizam – redução das desigualdades sociais, por exemplo.
Retroceder, enfim, não é o caminho constitucionalmente permitido, pois a criação de impedimentos
legislativos reduz as possibilidades de inclusão social. Sobre o princípio proibição do retrocesso
social, Sarlet (2010, p. 78) sustenta que:

Como princípio implícito, a proibição do retrocesso se encontra referido ao sistema constitucional


como um todo, incluindo o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, como bem atesta
o dever da progressividade na promoção dos direitos sociais. Assim, perceptível que a proibição de
retrocesso atua, sim, como baliza para a impugnação de medidas que impliquem a supressão ou
restrição de direitos sociais e que possam ser compreendidas como efetiva violação de tais direitos,
os quais, por sua vez, também não dispõem de autonomia absoluta no sistema constitucional, sendo,
em boa parte em níveis diferenciados, concretizações da própria dignidade da pessoa humana. Assim,
na sua aplicação concreta, isto é, na aferição da existência, ou não, de uma violação da proibição do
retrocesso, não se poderiam – como, de resto, tem evidenciado toda a produção jurisprudencial sobre o
tema – dispensar critérios adicionais, como é o caso da proteção da confiança (a depender da situação,
é claro), da dignidade da pessoa humana e do correlato mínimo existencial, do núcleo essencial dos
direitos fundamentais sociais, da proporcionalidade, apenas para citar os mais relevantes.

O princípio da proibição do retrocesso social determina que toda a evolução legislativa, sobretudo
no que diz respeito aos direitos sociais fundamentais, não deve recuar. O legislador, nesse sentido,
não pode extrair ou restringir direitos já consagrados e reconhecidos pela ordem jurídica estabelecida.
As lutas travadas, durante toda a História, estão ligadas às conquistas de direitos que, em nome do
princípio da proibição do retrocesso social, não podem ser esquecidos. Quando o legislador suprime
direitos historicamente alcançados, extingue a possibilidade dos cidadãos de exercerem a pretensão
jurídica desses direitos. O direito subjetivo, portanto, passa a não mais existir.
Em relação à restrição, a não aplicação desse princípio revela um alto grau de insegurança nas
relações jurídicas, entre Estado e Sociedade, e nas relações sociais. Nesse sentido, Sarlet (2019, p. 7)
revela que “a segurança jurídica, na sua dimensão objetiva, exige um patamar mínimo de continuidade
do (e, no nosso sentir, também no) Direito, ao passo que, na perspectiva subjetiva, significa a proteção
da confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma segurança individual
das suas próprias posições jurídicas”. O legislador, em função desse princípio, não pode instituir novas

283
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

regras normativas que vão de encontro às demandas já regulamentadas no plano constitucional ou


infraconstitucional, na medida em que tal descompasso com as diretrizes constitucionais revelam um
retrocesso no apoio jurídico a demandas sociais. Barroso (2001, p. 158-159) afirma:

Nessa ordem de ideias, uma lei posterior não pode extinguir um direito ou garantia, especialmente
os de cunho social, sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundado na
Constituição. O que se veda é o ataque à efetividade da norma, que foi alcançado a partir de
sua regulamentação. Assim, por exemplo, se o legislador infraconstitucional deu concretude
a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito que dependia de sua
intermediação, não poderá simplesmente revogar o ato legislativo, fazendo a situação voltar ao
estado de omissão legislativa anterior.

Pode-se afirmar que o respeito à proibição do retrocesso social afasta a possibilidade de um


verdadeiro encadeamento de transgressões de direitos. A supressão ou a restrição de direitos, na área
social, traduz-se em um efeito dominó. As manobras jurídicas neoliberais criam uma evidente ruptura
constitucional, uma vez que a proibição do retrocesso social é uma interpretação de toda estrutura
jurídica em seus fundamentos, conforme se verificou acima.
Porém, abaixo será demonstrado a violação da proibição do retrocesso social pelo neoliberalismo.
A título de exemplo da neoliberalização atual no Brasil, serão colacionados alguns aspectos que
envolvem o Novo Regime Fiscal, instituído pela Emenda Constitucional 95/2016, que congela o
investimento em demandas sociais por 20 anos.

2 A EMENDA CONSTITUCIONAL 95/2016 E A EXCLUSÃO SOCIAL

Em busca do fortalecimento da dignidade da pessoa humana e dos direitos sociais, o Constituinte


fixou uma série de diretivas (fundamentos, objetivos e princípios). Essas diretivas impõem aos agentes do
Estado o dever de alcançá-las, pois estão submetidos ao respeito à Carta Constitucional, que são: dignidade
da pessoa humana, construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicação da pobreza e da
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e a prevalência dos direitos humanos.
Nesse sentido, aponta o Relatório da Oxfam (2018, p. 44)147 que “os gastos sociais têm sido
fundamentais no combate à pobreza e às desigualdades no país. O efeito geral das políticas sociais
no Brasil tem sido progressivo, ou seja, tem chegado mais a quem mais precisa”. Ou seja, por meio
dos investimentos sociais é que se materializam as diretivas constitucionais.
A efetivação de tais comandos constitucionais só é possível com o aumento em investimentos sociais,
necessitando, nesse sentido, de uma atuação ativa do Estado nessas demandas148. Em contrapartida, o
corte nos investimentos sociais significa a criação de limites orçamentários às áreas mais sensíveis à
população mais carente, porque “os objetivos da política econômica deveriam estar fundamentalmente
relacionados à garantia de que as dimensões produtivas, alocativas e distributivas da sociedade sejam
aprimoradas e funcionem de modo a melhorarem a vida das pessoas” (DWECK; OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p.
6). Caso contrário, o enfraquecimento do Estado Social e Democrático de Direito é evidente.
O neoliberalismo objetiva a intervenção mínima do Estado, sobretudo, em demandas sociais, pois,
na ótica neoliberal, os direitos sociais sobrecarregam o Estado criando déficit ao erário. O Estado, para
o neoliberalismo, não deve se intrometer em causas que visam à redução das desigualdades sociais,
pois o mercado, com sua capacidade autorregulatória, é o mais acertado mecanismo de satisfação das
liberdades individuais. Nessa lógica, transfere-se a responsabilidade para o mercado no fornecimento
de bens sociais, retirando do Estado o dever de prestar direitos constitucionalmente assegurados.
Em relação a cortes nos investimentos sociais e, por consequência, à diminuição do Estado
nessas demandas, o Relatório da Oxfam (2018, p. 40-41) informa que:

147 Para expressão “gastos sociais” utilizada pela Oxfam, entende-se que o termo “investimentos sociais” é o mais adequado.
148 “Houve uma mudança de patamar no apoio à intervenção social do Estado, de 92% para 79% entre aqueles com rendi-
mentos de até um salário mínimo, e de 90% para 75% entre os que ganham mais de cinco salários mínimos. Ainda assim,
nos dias de hoje, quase oito em cada 10 brasileiros esperam que governos ajam para reduzir desigualdades” (OXFAM, 2018).

284
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A partir de 2011, tem início uma trajetória de aumento da dívida que, em 2014, beirava os 60%
do PIB e, em 2015 e 2016, saltou rapidamente para os 70% do PIB - resultado de duas fortes
retrações anuais seguidas, fato sem precedentes no país. Tal escalada culminou em um déficit
primário de 154 bilhões em 2016, abrindo espaço político para soluções radicais na contramão da
redução da pobreza e das desigualdades, que vão no sentido de cortar, a curto prazo, programas
sociais e reduzir o tamanho do Estado a médio prazo. Tais gastos já significavam, em 2016, a
redução de 13 pontos percentuais em relação ao espaço fiscal ocupado pelos gastos sociais de
anos anteriores, num retorno repentino para níveis de 2001. Trata-se de um retorno de 17 anos
de priorização de investimentos sociais contra desigualdades.

Diante do déficit primário apresentado, o debate político agitou-se, sobretudo depois do


afastamento definitivo de Dilma Rousseff (PT) do cargo da presidência da República, em 30 de agosto
de 2016. O governo federal, então, comandado por Michel Temer (PMDB), “passou diretamente a uma
agenda neoliberal de choque, com ataques frontais aos direitos dos trabalhadores, à previdência
social, aos sindicatos, à saúde, à educação, empreendendo privatizações e arrochos, com recessão e
desemprego. Mais uma vez, tudo o que parecia sólido se desmancha” (MASCARO, 2018, p. 9).
O governo Temer, em uma estratégia neoliberal, realizou uma série de iniciativas. Entre elas
destacam-se: a alteração nos contratos de exploração de petróleo, possibilitando a entrada do capital
transnacional em detrimento da Petrobrás; a reforma dos direitos trabalhistas, que implementou a
terceirização e liberalizou o mercado de trabalho; e a tentativa de realizar a reforma da previdência
social (SAAD FILHO; MORAIS, 2018, p. 237-238).
Além dessas iniciativas neoliberalizantes, o governo Temer propôs um Novo Regime Fiscal, por
meio da EC 95/2016 que, inevitavelmente, restringe os investimentos em demandas caras aos mais
necessitados, com a justificativa de reequilíbrio das contas públicas. O governo retomou, para possibilitar a
aprovação da emenda constitucional, o discurso neoliberal, alegando que o Estado estava demasiadamente
intervencionista, e que os custos dos programas sociais estavam acima do orçamento. Em realidade,

A EC 95/2016 representa a reação dos setores políticos e econômicos conservadores da sociedade


brasileira, que nunca aceitaram uma constituição que pretendeu ser dirigente e […] implantar um
Estado Social no Brasil, determinando a função social da propriedade e a intervenção do Estado
nos domínios econômico e social (MARIANO, 2017, p. 276).

Em um País tão desigual como o Brasil, a opção política por restringir investimentos em saúde
e educação compromete o papel redistributivo que deve vigorar em um Estado Social e Democrático
de Direito. Se a CRFB/1988 fosse respeitada, o Brasil seria o País que mais reduziria a desigualdade
da América Latina por meio de transferências e outros investimentos sociais, compensando uma
carga tributária equivocada, que contribui para agravar a desigualdade. Por isso, cortar investimentos
sociais é contribuir para agravar a desigualdade social, impedindo o acesso da população a direitos
sociais básicos. Trata-se de “um projeto de desconstrução do pacto social de 1988 naquilo que ele
tem de melhor: a cidadania social” (DWECK; OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p. 7).
Na contramão da efetivação dos direitos sociais, conforme previsto na Carta Constitucional de
1988, depois de percorrido o trâmite legal, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional,
nº 95, no dia 15 de dezembro de 2016, que alterou o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
para instituir o Novo Regime Fiscal. A EC 95/2016 ficou conhecida como “Teto de Gastos”, que vigorará
por vinte exercícios financeiros. Portanto, até 2036 estará em vigor a EC 95/2016, que limita o
investimento em áreas sociais e em políticas públicas que visam à redução das desigualdades sociais.
Nesse sentido, conforme notícia o Relatório da Oxfam (2017, p. 55):

Na prática, esta emenda – uma medida drástica sem precedentes – limita a expansão do gasto
social por 20 anos, inviabilizando a implementação do Plano Nacional de Educação (PNE) e da
expansão do Sistema Único de Saúde (SUS) e de programas da assistência social, entre outras
políticas centrais para o combate à pobreza e às desigualdades no Brasil. Isto ocorrerá justamente
em um período durante o qual a população brasileira vai se expandir e envelhecer mais, e em
meio a uma grave crise econômica.

O Novo Regime Fiscal institui uma austeridade pelos próximos 20 anos, porque os investimentos
públicos não vão acompanhar o crescimento da renda e o aumento da população. “O não crescimento real

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

das despesas totais do Governo Federal resultará em uma redução do gasto público relativamente ao PIB e
per capita (devido ao crescimento da população ao logo dos anos)” (DWECK; OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p. 24).
De acordo com Mariano (2017, p. 261):

As novas regras desconsideram, portanto, as taxas de crescimento econômico, como também


as demográficas pelos próximos 20 (vinte anos), o que (e aqui já antecipando a nossa crítica a
respeito), poderá levar ao sucateamento das políticas sociais, especialmente nas áreas da saúde e
educação, pondo em risco por completo a qualidade de vida da população brasileira.

Esse Novo Regime Fiscal comprometerá tanto a melhoria da qualidade dos serviços públicos
como a manutenção da infraestrutura de bens e serviços públicos desenvolvida ao longo dos últimos
anos. Isso será um grande prejuízo à garantia dos direitos sociais previstos na CRFB/1988 (DWECK;
OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p. 7).
O investimento, sobretudo, em demandas relacionadas à saúde e à educação são elementares,
porque a população só aumenta. Como cortar, então, investimentos sociais em setores que tendem
à expansão, em virtude da condição da natureza humana?! A redução do Estado em demandas
essenciais da subsistência humana e da construção de uma sociedade intelectualizada e saudável
(educação e saúde) significa o esvaziamento da cidadania social e da força normativa da Constituição.
O investimento na área da saúde é necessário, porque “o crescimento do país deixou de ser parâmetro
para o piso da saúde, e a correção da inflação jamais contemplará o crescimento populacional, os
índices de longevidade e sua epidemiologia, os custos dos insumos, matérias, medicamentos, nova
(e velhas) tecnologias de saúde, dentre outras” (SANTOS; FUNCIA, 2019).
A saúde é um direito fundamental universal assegurado a todos e a todas. Apesar das dificuldades de
sua plena efetividade, em função de já serem escassos os investimentos nessa área, é um dever do Estado
e um direito do cidadão constitucionalmente assegurado. O Estado, adotando uma política econômica
que congela o orçamento para esse serviço social, precariza ainda mais o seu funcionamento e a sua
prestação. Além dessa dificuldade, “os percentuais mínimos da saúde foram alterados negativamente,
tem-se, de modo insofismável, que haverá perdas financeiras para custear a saúde pública brasileira até
2036, com danos irreparáveis à saúde das pessoas [...]” (SANTOS; FUNCIA, 2019)
Da mesma maneira, a falta de investimento do Estado em educação resultará em um grave
retrocesso social. A educação, que nos últimos anos passou por um importante processo de ampliação
do acesso, retornará a ser garantida apenas para uma parcela da população, isto é, para a elite.
Sabe-se que o acesso à educação, direito fundamental de todos e de todas, foi amplamente difundido
nos últimos anos (para exemplificar: PROUNI, FIES, Universidade para Todos, SISU). O congelamento de
investimentos nessa área sensível do Estado Social gera consequências nefastas para o desenvolvimento
intelectual da população. São consequências da falta de investimento em educação, para ilustrar: o
analfabetismo, a evasão das escolas, a precarização e o sucateamento das instituições de ensino, a falta
de qualificação adequada para o mercado de trabalho competitivo, a diminuição da oferta de empregos,
o acesso ao ensino superior possibilitado a apenas uma pequena parcela da sociedade (a elite), a falta de
investimento em pesquisa, desenvolvimento e tecnologia e o corte do financiamento público para essas
demandas. Isto porque uma educação com qualidade contribui para que hábitos, tais como: clientelismo,
corrupção, descuido com o dinheiro popular etc., sejam obstaculizados por meio do controle social.
O modelo neoliberal econômico pretende não apenas reduzir o Estado nas demandas sociais,
mas, também, retirar de espaços importantes da sociedade eventuais atores sociais que, por
exemplo, por meio da educação podem angariar espaços, que, sem investimentos sociais nessa área,
provavelmente, não teriam alcançado. Ou seja, quanto mais se exclui da participação da sociedade,
mais se privilegia seletos grupos.
A Emenda Constitucional 95/2016 significa um projeto de Nação por meio da política econômica
neoliberal. A redução do Estado em demandas como saúde e educação encadeiam uma série de
problemas sociais, na medida em que, sem a atuação propositiva do Estado, privilegia-se uma parcela
da camada social. O privilégio de poucos acarreta a carência de muitos.
A crise econômica, conforme verificado, não se resolve com contracionismo econômico. A falta de
investimento por parte do Poder Público não acarreta uma contrapartida econômica da sociedade. “A
EC 95/2016 pretende alcançar o equilíbrio fiscal pelo lado do corte do gasto, e não pelo investimento,

286
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

que é um grande equívoco” (MARIANO, 2017, p. 274). Políticas públicas geram riqueza, geram
desenvolvimento, pois a renda é descentralizada, e não concentrada. Circulação de riqueza supera a
crise econômica, corte em investimentos públicos, não! O desenvolvimento econômico decorrente de
políticas públicas permitirá a geração de renda e amenizará as desigualdades sociais.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os aportes jurídicos de cunho progressistas são confrontados, para depois serem relativizados
ou extintos, no exato momento em que o mercado é, supostamente, afetado pelos avanços sociais. O
Direito, nessa perspectiva, pode ser comparado a uma corda bamba. Deve ziguezaguear para acolher
os interesses mercantis. O Direito torna-se uma ciência frágil diante de imposições econômicas que
não servem à sociedade. À medida que o mercado dita seus parâmetros, o direito positivado ganha
outra tonalidade – que não a de seu princípio – quer dizer, a sua órbita de proteção é reduzida para
atender a interesses que não são aqueles de um Estado Social e Democrático de Direito, que deve, em
razão de sua natureza, promover critérios favoráveis à promoção da justiça social.
É comum (e equivocado) o argumento de que a crise fiscal-econômica é decorrente do exacerbado
tamanho do Estado e de sua atuação, sobretudo, nas causas sociais. Em outras palavras, é trivial o argumento
de que o problema orçamentário se justifica pelo excesso de direitos sociais e de políticas públicas que
desenvolvem a distribuição de renda. Todavia, o orçamento fiscal é feito por escolhas humanas, e elas são
dirigidas e implementadas, muitas vezes, por pessoas incapazes de manejar com o dinheiro público. A
origem da crise fiscal-econômica não está no tamanho do Estado ou na efetivação de direitos sociais; está
na má administração do dinheiro público, na aplicação equivocada de verbas públicas em áreas que não
precisam, etc. O que desmantela os direitos sociais é o orçamento fiscal, e não o contrário.
A revogação de tal medida, portanto, é premente, na medida em que o ordenamento jurídico
brasileiro não admite que os avanços sociais retrocedam. Dessa forma, em relação aos retrocessos
implementados por meio da EC 95/2016 – saúde e educação, por exemplo – que congela investimentos
em direitos sociais merece destaque o mecanismo jurídico que impede a desqualificação do Estado
Social e Democrático de Direito. Essa proteção jurídica se revela pelo princípio da proibição do
retrocesso social, conforme visto, que se fundamenta em uma leitura do arcabouço constitucional,
uma vez que a transgressão desse princípio revela o desmanche do Estado Social e Democrático de
Direito em função da ineficiência de recursos destinados à implementação de políticas públicas.

REFERÊNCIAS

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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C3%A7%C3%A3o%20por%2020%20anos.>. Ace

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A IMPORTÂNCIA DO RECONHECIMENTO DOS NOVOS DANOS:


A TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR E AS AÇÕES
DO BALCÃO DO CONSUMIDOR DA UNIJUÍ – CAMPUS SANTA ROSA

Maria Aparecida Kowalski149


Fernanda Serrer150

RESUMO: O presente artigo evidencia a importância da proteção jurídica aos consumidores


vulneráveis, bem como a relação que se estabelece entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
da ONU, com ênfase nos objetivos ODS -12 e 16, com as necessidades dos consumidores da região
noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, apresenta a Teoria do Desvio Produtivo
do Consumidor nas ações judiciais que envolvem as relações de consumo, bem como, sua possível
contribuição na diminuição das condutas ilícitas praticadas pelos fornecedores. Ao final, descreve as
atividades do Balcão do Consumidor da Unijuí e o trabalho feito referente à divulgação dos direitos
do consumidor, assim como sua contribuição na efetivação das metas relativas à Agenda 2030 para
o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas.

Palavras-chave: Consumidor. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Teoria do Desvio Produtivo.


Extensão Universitária.

INTRODUÇÃO

São muitos os problemas enfrentados atualmente pelos consumidores em meio às relações de


consumo no país, sendo que, com base nos atendimentos realizados pelo Balcão do Consumidor
da Unijuí em Santa Rosa, é notório que uma das causas está relacionada à falta de punibilidade dos
fornecedores que agem de maneira ilícita, abusando do direito e em descompasso com os princípios
da sociabilidade e da ética, norteadores dos contratos de consumo. Tal afirmativa é feita no sentido
de denotar a falta de interesse, por parte dos fornecedores, na resolução das demandas de consumo
de forma administrativa, evitando os impasses e infortúnios de um processo judicial.
Dessa forma, o presente trabalho objetiva demonstrar a necessidade do reconhecimento e
positivação de novos danos no ordenamento jurídico pátrio, com destaque para a Teoria do Desvio
Produtivo, de modo que as condutas dos fornecedores faltosos possam ser tipificadas e com isso,
cumprir integralmente com as funções da responsabilidade civil aplicadas aos conflitos de consumo.
Além disso, serão demonstradas as contribuições do Projeto de Extensão universitária “Conflitos
Sociais e Direitos Humanos”, destacando o método de desenvolvimento, as técnicas e os objetivos do
projeto, que podem ser associados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), de iniciativa
da Organizações das Nações Unidas (ONU) em sua agenda de prioridades das políticas públicas
internacionais até 2030.
Desse modo, o trabalho tem por objetivo principal a salvaguarda dos direitos dos consumidores,
por intermédio da minimização dos danos derivados do desgaste emocional e temporal do consumidor
frente às dificuldades e sua relação com o cumprimento dos propósitos estampados nas ODSs/
ONU2030.

149 Aluna do Curso de graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ.
Bolsista PIBEX do Projeto de Extensão “Conflitos Sociais e Direitos Humanos” da UNIJUÍ. E-mail: mariakowalski13@gmail.com.
150 Professora do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Orien-
tadora do Projeto de Extensão “Conflitos Sociais e Direitos Humanos” da UNIJUÍ. Mestre e doutoranda no Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Direitos Humanos da Unijuí. E-mail: fernanda.serrer@unijui.edu.br

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 AÇÕES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E A EFETIVAÇÃO DOS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO


SUSTENTÁVEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU)

A extensão é um dos pilares que sustenta o fazer de uma universidade. É por intermédio da
extensão que os alunos têm a oportunidade de colocar o aprendizado teórico em prática dentro
da comunidade local. A atuação dos alunos nos projetos de extensão não beneficia somente os
estudantes, mas também a comunidade, em especial nos setores em que o Estado não se faz presente.
Além disso, as ações práticas são extremamente necessárias para que uma instituição de ensino
forme profissionais mais qualificados, atuantes e melhor preparados para o mercado de trabalho.
Diante disso, o Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais (DCJS) da Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, atualmente dispõe de três Projetos de Extensão
Universitária, quais sejam: Cidadania para Todos, Conflitos Sociais e Direitos Humanos: alternativas
adequadas de tratamento e resolução e Regularização Fundiária Urbana: direito social à moradia
digna. O presente trabalho tem em evidência as ações desenvolvidas no Projeto Conflitos Sociais e
Direitos Humanos: alternativas adequadas de tratamento e resolução, que é composto pelas práticas
de mediação e conciliação, além do Balcão do Consumidor.
As atividades práticas de mediação e conciliação são desenvolvidas em Ijuí e Santa Rosa, mediante
a aplicação de técnicas para a resolução de conflitos familiares e escolares, já o Balcão do Consumidor
da Unijuí é atuante em Ijuí, Santa Rosa e ainda em Três Passos, aplicando, igualmente, as técnicas
alternativas de solução de conflitos, como a conciliação e a negociação. No presente artigo, se tem como
objetivo demonstrar especificamente as atividades do Balcão do Consumidor e suas contribuições com
as metas da ONU de desenvolvimento sustentável, que devem ser alcançadas até 2030.
No que tange o Balcão do Consumidor da Unijuí, ao analisar os objetivos do projeto e associá-
los às ODSs, percebeu-se o encaixe com os propósitos do Objetivo 16, que busca paz, justiça e
instituições eficazes, bem como a sua íntima relação com os tópicos a seguir:

16.3 - promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso
à justiça, para todos; 16.6 - desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos
os níveis; e 16.10 - assegurar o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais,
em conformidade com a legislação nacional e os acordos internacionais. (ONU, 2015, p. 36).

Isto porque, dentre as finalidades previstas para a implementação do Projeto de Extensão


“Conflitos Sociais e Direitos Humanos” destacam-se as seguintes:

[...] como objetivos (a) fomentar a criação e qualificação dos espaços públicos que garantam o
exercício da cidadania, assim como ações individuais e coletivas que busquem a efetivação dos direitos
fundamentais, especialmente os relacionados ao direito do consumidor, bem como (b) promover a
discussão e a aplicação prática de meios alternativos/adequados de tratamento dos conflitos oriundos
das relações de consumo, por meio da conciliação e mediação. (PROJETO DE EXTENSÃO, 2019).

Da mesma forma, em razão das especificidades do trabalho desenvolvido pelo Projeto junto aos
conflitos de consumo, verificou-se a estreita relação com a ODS 12, que tem por objetivo assegurar
padrões de produção e de consumo sustentáveis. Sendo que, na maioria dos atendimentos efetuados pelo
Balcão do Consumidor, as pessoas são desprovidas de conhecimento relativos aos direitos que possuem
em meio a uma relação de consumo, de modo que o trabalho desenvolvido neste viés do Projeto de
extensão relaciona-se com o previsto nas metas da ODS 12, especialmente nos itens citados a seguir:

12.a Apoiar países em desenvolvimento a fortalecer suas capacidades científicas e tecnológicas


para mudar para padrões mais sustentáveis de produção e consumo
12.b Desenvolver e implementar ferramentas para monitorar os impactos do desenvolvimento
sustentável para o turismo sustentável, que gera empregos, promove acultura e os produtos locais
12.c Racionalizar subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis, que encorajam o consumo exagerado,
eliminando as distorções de mercado, de acordo com as circunstâncias nacionais, inclusive por meio
da reestruturação fiscal e a eliminação gradual desses subsídios prejudiciais, caso existam, para refletir
os seus impactos ambientais, tendo plenamente em conta as necessidades específicas e condições dos
países em desenvolvimento e minimizando os possíveis impactos adversos sobre o seu desenvolvimento
de uma forma que proteja os pobres e as comunidades afetadas. (ONU, 2015, p. 31-32)

290
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Outrossim, tendo por base o texto publicado pela ONU (2015, p. 07) ao avaliar as preocupações
e pretensões da organização que atua à nível mundial, pode-se concluir que “a nova Agenda se baseia
nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e pretende completar o que estes não alcançaram,
particularmente, em alcançar os mais vulneráveis”. Diante disso, temos aí uma das grandes questões
trabalhadas nos atendimentos do Balcão do Consumidor da Unijuí em Santa Rosa, pois a maior parte
dos consumidores são idosos em situação de hipervulnerabilidade e o restante, em sua maioria,
consumidores vulneráveis. (PROJETO DE EXTENSÃO..., 2019).
Entretanto, além da grande quantidade de idosos e consumidores em situação de vulnerabilidade,
tanto na região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, quanto no restante do país, o Código de Defesa
do Consumidor, mesmo sendo a legislação vigente para tratar dos conflitos de consumo, necessita do
amparo do Poder Judiciário para a efetivação da tutela ao consumidor, no sentido de aplicar as devidas
sanções legais àqueles que descumprem com as normas estabelecidas na legislação consumerista.
Nessa conjectura, tanto de modo preventivo, por intermédio da educação para o consumo como
forma de instrumentalizar a Política Nacional de Defesa do Consumidor prevista no art. 4º do Código
de Defesa do Consumidor, como de modo repressivo e dissuasório, por intermédio da atuação do
Poder Judiciário, o Estado brasileiro corrobora com os objetivos estabelecidos pela Organização das
Nações Unidas (ONU), dentre os quais:

[...] de respeitar, proteger e promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais para


todos, sem distinção de qualquer tipo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra
opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, deficiência ou qualquer outra condição.
(ONU, 2015, p. 07).

Contudo, é lamentável que os provimentos judiciais derivados das demandas de consumo, as quais
buscam garantir os direitos dos consumidores vulneráveis, muitas vezes não o fazem da forma que deveriam.
Em parte, isso ocorre devido ao posicionamento dos Tribunais em descompasso com as garantias expressas
no CDC. Nesse sentido Julian Baião (2020, n.p), cita como exemplos de posições jurisprudenciais reiteradas
que denotam a inobservância da vulnerabilidade do consumidor em juízo, o conteúdo das Súmulas 380 e
381 do STJ. A primeira, no sentido de que “a simples propositura da ação de revisão de contrato não inibe a
caracterização da mora do autor” e a segunda, que “nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer,
de ofício, da abusividade das cláusulas”. Entendimentos que inibem o acesso dos consumidores em juízo,
dificultando a processualidade judicial e reduzindo as chances de ganho efetivo da ação.
Ademais, os posicionamentos acima citados não se coadunam com o princípio da vulnerabilidade
e com a salvaguarda dos direitos básicos do consumidor, dentre os quais está a facilitação da defesa em
juízo com a inversão do ônus da prova. Com base nos entendimentos contidos nestas súmulas do STJ,
é perceptível que os fornecedores são beneficiados e em contrapartida, os consumidores prejudicados.
Da mesma forma, posicionamentos como os citados violam o dever do Estado que é de garantir
o cumprimento da legislação, principalmente quando estão em jogo os direitos das minorias, que no
mercado de consumo são representadas pelos consumidores. Dentre as garantias previstas no CDC,
no artigo 4ª, I, está expresso o “[...] reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado
de consumo”. (BRASIL, 2019).
No que tange os “direitos básicos do consumidor”, o CDC em seu artigo 6º, VIII, garante “[...] a
inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a
alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”. (BRASIL, 2019).
Para estabelecer um melhor entendimento, naquilo que se refere à necessidade da proteção ao
consumidor vulnerável, é preciso partir do princípio de que são os consumidores a parte mais fraca
na relação de consumo, e alguns são mais vulneráveis que outros, pois têm mais limitações como
a idade, a falta de alfabetização e de conhecimento dos meios digitais, os quais são identificados
como hipervulneráveis, ou na palavras de Schwartz (2016, p.01), consumidores com “vulnerabilidade
agravada”.
É importante, destacar que um dos principais objetivos do Balcão do Consumidor, além de
auxiliar os cidadãos hipossuficientes e vulneráveis, é justamente evitar o acúmulo de ações judiciais
provenientes de demandas de consumo que poderiam ser facilmente resolvidas entre as partes. Com
isso, percebe-se que o desenvolvimento das ações do Projeto de Extensão com destaque para as

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

atividades do Balcão do Consumidor, auxiliam na implementação dos objetivos do desenvolvimento


sustentável representado pela ONU, em especial, naquilo que se refere às pessoas vulneráveis e a
forma de como as mesmas devem ser tratadas:

As pessoas que estão vulneráveis devem ser empoderadas. Aqueles cujas necessidades são
refletidas na Agenda incluem todas as crianças, jovens, pessoas com deficiência (das quais mais de
80% vivem na pobreza), as pessoas que vivem com HIV/AIDS, idosos, povos indígenas, refugiados,
pessoas deslocadas internamente e migrantes. (ONU, 2015, p. 08).

Diante disso, ao resolver a lide de forma administrativa, o consumidor consegue assegurar o


direito que postula de maneira rápida e prática, sem precisar sair mais cedo do trabalho, ou sacrificar
o seu tempo de lazer. Nesse sentido, visando ampliar as possibilidades de efetivação dos direitos dos
consumidores expostos as práticas abusivas é que surge a Teoria do Desvio Produtivo, já reconhecida
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nas ações que envolvem as relações consumeristas desde 2017.
A primeira decisão que corrobora com a referida teoria, foi proferida pela ministra Nancy
Andrigh, da Terceira Turma do STF, relatora do REsp 1.634.851/RJ, interposto pela parte fornecedora.
Na decisão paradigma, entendeu o Tribunal Superior pela responsabilidade dos fornecedores, derivada
da aplicabilidade da teoria do risco-proveito, no que tange ao tempo despendido pelo consumidor
para a solução do conflito de consumo. Nos termos da decisão:

[...] não é razoável que, à frustração do consumidor de adquirir o bem com vício, se acrescente
o desgaste para tentar resolver o problema ao qual ele não deu causa, o que, por certo, pode ser
evitado - ou, ao menos, atenuado - se o próprio comerciante participar ativamente do processo
de reparo, intermediando a relação entre consumidor e fabricante, inclusive porque, juntamente
com este, tem o dever legal de garantir a adequação do produto oferecido ao consumo. Vale
ressaltar que o comerciante, em regra, desenvolve uma relação direta com o fabricante ou com o
representante deste; o consumidor, não. Por isso também, o dispêndio gerado para o comerciante
tende a ser menor que para o consumidor, sendo ainda possível àquele exigir do fabricante o
ressarcimento das respectivas despesas. Logo, à luz do princípio da boa-fé objetiva, se a inserção
no mercado do produto com vício traz em si, inevitavelmente, um gasto adicional para a cadeia
de consumo, esse gasto deve ser tido como ínsito ao risco da atividade, e não pode, em nenhuma
hipótese, ser suportado pelo consumidor, sob pena de ofensa aos princípios que regem a política
nacional das relações de consumo, em especial o da vulnerabilidade e o da garantia de adequação,
a cargo do fornecedor, além de configurar violação do direito do consumidor de receber a efetiva
reparação de danos patrimoniais sofridos por ele. (BRASIL, 2017).

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor foi elaborada por Marcos Dessaune, advogado, que
publicou um livro sobre o tema em 2011, passando a ser adotada como base doutrinária nas decisões
dos tribunais em 2013 e, posteriormente, como já referido, nas decisões do STF em 2017. Entretanto,
a necessidade da utilização desta teoria é de extrema importância no momento atual, em que os
indivíduos imersos em uma sociedade cada vez mais hiperindividualizada estão sobrecarregados com
a necessidade de proverem os recursos necessários à sua sobrevivência e com isso, possuem cada
vez menos tempo para o lazer e o descanso. Dessarte, o autor conceitua a teoria do Desvio Produtivo
do Consumidor e de certa forma, conjuntamente, esclarece a sua necessidade:

[...] caracteriza-se quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa
desperdiçar o seu tempo e desviar suas competências – de uma atividade necessária ou por ele
preferida – para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade
indesejado, de natureza irrecuperável” (DESSAUNE, 2011, p. 12).

Conseguinte, surge o questionamento da necessidade da utilização de tal teoria nas decisões


judiciais, uma vez que, o Código de Defesa do Consumidor, que é uma legislação destinada a defender
os interesses dos consumidores, que são vulneráveis em face dos fornecedores nas relações de
consumo, garantia que está assegurada no artigo 4º, I, CDC e que, infelizmente, em muitos casos não
é respeitada.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2 O BALCÃO DO CONSUMIDOR DA UNIJUÍ, SUA RELAÇÃO COM AS ODSs E A TEORIA DO


DESVIO PRODUTIVO

É de fácil percepção a necessidade do reconhecimento efetivo de novos danos na seara da


responsabilidade civil brasileira, tendo em vista que a legislação pátria, bem como, as decisões judiciais
proferidas pelos julgadores precisam acompanhar as constantes mudanças que estão ocorrendo na
contemporaneidade. Nesse contexto, Kauê Klin Leite e Silva (2019, n.p), leciona sobre a relação cada
vez mais descompassada entre tempo e direito e a necessidade de engendrar mecanismos jurídicos
para sua correção:

É com base nessas nuances da reponsabilidade civil que se reputa perfeitamente possível a
tutela do tempo útil do consumidor frente a um dano extrapatrimonial causado pelo fornecedor/
prestador de serviços, de forma a compensar o ônus excessivo imposto à parte frágil da relação
jurídica, acarretando um desvio produtivo do seu tempo livre. (LEITE E SILVA, 2019, n.p).

O tempo junto com a informação e o conhecimento passam a ser bens de muito valor na
sociedade contemporânea. A velocidade com que as informações chegam a um número cada
vez maior de pessoas e o paradoxo da velocidade com que se tornam obsoletas, faz com que o
homem contemporâneo seja cada vez mais comprimido pelo tempo e pela urgência de constante
atualização.
Esse processo periódico de ininterrupta movimentação em busca da informação, acompanhado
de uma profunda passividade e resiliência, resulta na falta de tempo para o lazer ou o descanso. Com
isso, além da rotina desgastante, o trabalhador precisa utilizar o pouco tempo livre para resolver
os problemas pessoais, o que torna o enfrentamento de uma ação judicial ainda mais desgastante.
Essa realidade vivenciada pela maioria das pessoas precisa ser levada em conta no âmbito da
responsabilidade civil, em especial, sua aplicação na relação de consumo, convocando o Poder
Judiciário para o cumprimento de seu relevante papel de implementação dos direitos de cidadania,
dentre os quais os relativos à proteção dos vulneráveis:

Na ausência de previsão normativa compete ao interprete do ordenamento (poder judiciário)


valorar a ressarcibilidade desses novos danos. Isso porque o direito não está adstrito à lei em
sentido estrito, devendo as cláusulas genéricas e os princípios gerais e específicos orientar o
julgador quando do enfrentamento de tais questões. (LEITE E SILVA, 2019, n.p).

Nesse sentido evidencia-se a importância da atuação do Projeto de Extensão Conflitos Sociais e


Direitos Humanos, sua estreita relação com as ODSs e com a evolução da doutrina da responsabilidade
civil, mediante o reconhecimento de novos danos derivados de relações de consumo frustradas.
Em termos quantitativos, o Balcão do Consumidor da Unijuí nos anos de 2019 e 2020, efetuou
4.121 atendimentos nos três campus em que tem atuação, o que demostra um volume muito
significativo de conflitos de consumo, os quais se levados ao Poder Judiciário tendem a se arrastar no
tempo, potencializando os danos já experimentados pelos consumidores, uma vez que a morosidade
ainda é um marca da tramitação judicial. (PROJETO DE EXTENSÃO, 2019).
De acordo com os dados reunidos no relatório analítico denominado Justiça em Números (2020) do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), embora a taxa de congestionamento dos processos tenha reduzido
significativamente nos últimos anos devido ao incentivo a conciliação e mediação no curso do processo
judicial, o país ainda registra uma taxa média de 50,5%, sendo que o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul registra uma marca de excelência, como uma taxa de congestionamento de 24,9%.
Seguindo a mesma lógica do que ocorre na esfera judicial, no Balcão do Consumidor de Santa
Rosa a taxa de resolutividade de conflitos de consumo é muito inferior ao esperado. Conforme o
gráfico abaixo, no ano de 2019, apenas 12,82% dos casos que chegaram para registro no sistema
SINDEC tiveram solução na esfera extrajudicial:

293
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Os dados revelam que não há empenho em relação aos fornecedores no sentido de evitar
uma ação judicial, em boa medida, garantido pela inexistência ou pouco impacto das indenizações
proferidas nas sentenças condenatórias provenientes dos processos que envolvem as relações de
consumo. Contudo, em que pese os indicadores fornecidos pela CNJ, vemos que o tempo médio
de tramitação de um processo é caracterizado pela morosidade, que tem como causa os trâmites
processuais obrigatórios, além do número elevados de ações judiciais.
Consequentemente, a morosidade do Poder Judiciário contribui para que os fornecedores que
cometem ilicitudes não sejam punidos, ou ainda, que os consumidores desistam das ações propostas,
em virtude da demora na resolução das lides e a situação de hipossuficiência de grande parte dos
consumidores. É preciso levar em conta que, o consumidor não pode esperar anos para ser ressarcido
por prejuízos causados pelo desinteresse de muitos fornecedores, principalmente nos casos em que
estes precisam dos produtos e serviços aos quais postulam judicialmente.
Nesse sentido, Dessaune (2018, p. 08-09), afirma que o fornecedor “[...] deve ser civilmente
responsabilizado a indenizar o dano existencial que causou, independentemente da existência de
culpa, tanto para compensar o consumidor prejudicado quanto para prevenir a reiteração dessa conduta
lesiva”. Porquanto, nesses casos sobressai a necessidade de haver uma condenação que resulte em
maiores custos financeiros ao fornecedor, pois não se deve levar em conta apenas o mero dissabor
ou aborrecimento sofrido pelo consumidor, deixando de lado todos os outros incômodos sofridos e o
descumprimento dos direitos assegurados no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor.
Outrossim, o fato do fornecedor descumprir com seus deveres para com o consumidor, aliado às decisões
que interpretam tal conduta como mero dissabor e aborrecimento ao consumidor, tratando as indenizações
por danos morais como exagero, confirma a tendência a impunidade. Segundo enfatiza Dessaune (2018, p.
08), tais decisões estão equivocadas, pois é necessário “[...] considerar o grau de culpa e a condição econômica
desse agente ofensor, elevando o valor da indenização casuisticamente para que sejam alcançados não só o
efeito satisfatório e o punitivo da condenação, como, também, o seu efeito preventivo.”
No mesmo sentido, Tamila Cavaler Pessoa de Mello (2013, p. 83) ressalta a imprescindibilidade
de pautar a questão da responsabilidade civil no aparecimento dos novos danos no âmbito jurídico,
tendo em destaque o fornecedor que negligencia seus deveres, lesando o consumidor.
Além disso, por mais que este novo dano, qual seja o temporal, esteja enquadrado na esfera
jurídica do dano moral, ele precisa ter a notoriedade que merece para que seja de fato implementado
nas sentenças judiciais, devendo a doutrina caminhar no sentido de defini-lo como categoria
autônoma ou, ao menos, como um dos critérios para a efetivação do dano moral, nos casos em
que o consumidor é duplamente lesado pela abusividade da prática comercial e da morosidade ou
negligência do fornecedor na solução do conflito de consumo.

3 AS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELO BALCÃO DO CONSUMIDOR DA UNIJUÍ NO CAMPUS


DE SANTA ROSA

Na modalidade de prática de extensão universitária, o Balcão do Consumidor do Campus de Santa


Rosa, está em atividade desde o segundo semestre de 2018, junto ao Núcleo de Prática Jurídica da

294
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

referida Universidade, atendendo toda população do Município de Santa Rosa/RS, de forma gratuita,
a fim de tentar resolver questões conflitivas referentes a uma relação de consumo.
Os atendimentos no Balcão do Consumidor consistem inicialmente numa prévia análise dos casos
relatados, verificando se são relações de consumo. A primeira tentativa de contato do Balcão com o
fornecedor deste produto ou serviço, após o registro da reclamação no Sistema SINDEC, é realizada
por telefone, momento em que muitas demandas já são solucionadas. Caso por telefone não ocorra
à solução preliminar, o Balcão do Consumidor envia uma CIP – Carta de Informações Preliminares,
informando ao fornecedor da reclamação trazida pelo consumidor, e solicitando que no prazo de 10
(dez) dias, manifeste-se acerca de tal fato, apresentando, se possível, uma solução para o caso.
Na hipótese de, por intermédio da CIP ainda não ser apresentada solução, tem-se uma terceira
possibilidade, que é o agendamento de sessão de conciliação na tentativa de que as partes, por meio do diálogo,
cheguem a um acordo, pondo fim ao conflito decorrente de relação de consumo. Na sessão é confeccionada
ata, destinando uma cópia para cada parte. Caso não resulte em acordo, nessa ata se declara encerrado o
atendimento pelo Balcão, orientando o consumidor a ingressar em Juízo, se assim demonstrar interesse.
No que tange a importância do Balcão do Consumidor na garantia de efetivação dos direitos básicos
dos idosos, é que oferece um atendimento de qualidade, atendendo todas as necessidades que por eles são
exigidas em virtude de sua idade. Em relação aos inúmeros casos de superendividamento apresentados
busca-se auxiliar e educar os consumidores, para que haja controle, uma vida financeira saudável e
sem comprometer sua renda mensal de forma exagerada. Por fim, vale ressaltar que é por intermédio
de práticas educativas, que o Projeto de Extensão pretende prevenir futuros conflitos e questões que
possam envolver os grupos de pessoas hipervulneráveis, como as crianças, os adolescentes e os idosos,
melhorando a qualidade de vida e contribuindo para a formação de jovens e adultos conscientes de suas
ações, seja cuidando de si, nas relações interpessoais e também para com o meio em que vivem.
Desse modo, no que diz respeito aos dados obtidos pelos atendimentos do Balcão do Consumidor
da UNIJUÍ – Campus de Santa Rosa/RS, é possível afirmar que em grande parte dos casos é gerada
e encaminhada a Carta de Informações Preliminares (CIP), uma vez que a maioria dos fornecedores
acaba por não solucionar a questão via telefone (preliminarmente). Este fato se dá principalmente, pela
falta da obrigatoriedade que os fornecedores possuem em sanar conflitos de forma administrativa ou
sem a presença de uma sentença judicial.
Muito se percebe no relato dos fornecedores, que estes preferem que o consumidor ingresse
judicialmente para buscar seus direitos. Igualmente, foi possível constatar que entre os anos de 2018 e
2019, 46% (quarenta e seis por cento) do total de casos atendidos foram orientados ou preferiram ingressar
judicialmente, visto que não obtiveram solução ou acordo e 31% (trinta e um por cento) de atendimentos,
resultaram num acordo, seja por meio de audiência de conciliação ou pelo atendimento preliminar. Por fim,
23% (vinte e três por centos) dos casos atendidos, ainda aguardam resolução (retorno da Carta enviada).
Dentre as preocupações que afetam o Balcão do Consumidor de Santa Rosa, estão aquelas
relacionadas com o superendividamento envolvendo pessoas idosas, uma vez que a maioria dos
casos atendidos pelo Balcão do Consumidor diz respeito a esta triste realidade. É de conhecimento
geral que os créditos consignados possuem um limite máximo de comprometimento da renda já
positivado em lei, o qual não deverá ultrapassar 30%. No entanto, muitos fornecedores vêm se
utilizando dos créditos pessoais, para assim poder superar o limite acima exposto, comprometendo
o mínimo necessário para a manutenção da vida digna da população idosa.
Por fim, existe uma preocupação extrema em relação aos consumidores jovens (crianças e
adolescentes), sendo que são facilmente induzidos ao consumo por meio das publicidades e mídias,
e consequentemente induzem seus familiares a consumir. De tal modo, são de extrema importância
atividades de educação para o consumo, realizadas pelo Balcão do Consumidor, a fim de prevenir
futuros conflitos e questões que possam envolver estes grupos de pessoas hipervulneráveis.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desse modo, conclui-se que os fornecedores raramente demonstram interesse em promover


acordos extrajudiciais. Muitos dificultam qualquer possível negociação e outros, consideram menos

295
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

oneroso responder judicialmente às demandas, isso em virtude da falta de aplicação efetiva das
normas, como o Código de Defesa do Consumidor. Conseguinte, além de gastar seu tempo útil na
busca de direitos, o consumidor, por vezes, precisa destinar parte dos seus rendimentos ingressando
judicialmente em face do fornecedor, que em muitos casos não é punido da maneira correta com base
nas sanções contidas em lei.
Dessa forma, fica claramente caracterizado que o Desvio Produtivo do Consumidor ocorre com
extrema frequência, sem que os fornecedores respondam pelos danos causados aos consumidores.
Com isso é perceptível quanto as ODSs 12 e 16, que buscam assegurar padrões de produção e de
consumo sustentáveis, além de paz, justiça e instituições eficazes se fazem necessárias.
É de suma importância ressaltar que, os benefícios da sustentabilidade far-se-ão proveitosos
para ambas as partes, tanto consumidores quanto fornecedores, sendo preciso efetivar, mediante
práticas universitárias amparadas pelas forças sociais, a igualdade, tanto no mercado consumerista,
quanto na esfera judiciária. Além de mais igualdade procedimental nas ações judiciais, é preciso que
os direitos já conquistados por mérito do CDC continuem sendo efetivados, de modo que não sejam
sobrepostos por novos entendimentos jurisprudenciais.
Desse modo, o Balcão do Consumidor da Unijuí de Santa Rosa procura auxiliar na concretização
dos objetivos buscados pelas ODSs, assim como, aos consumidores no que tange a garantia da
aplicação do CDC ao caso concreto e as teorias doutrinárias que corroboram na defesa dos direitos
violados, enfatizando a necessidade de proteção jurídica aos consumidores vulneráveis, em sua
maioria idosos.

REFERÊNCIAS

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Jus Navigandi. Publicado em: jan. 2020. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/78904/
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DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor – O prejuízo do tempo desperdiçado. São


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DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: Um Panorama.


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f0010000000000&hitguid=Idff58080c3b711e89af0010000000000&sp os=1&epos=1&td=49&contex
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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ADEQUADAS DE TRATAMENTO E RESOLUÇÃO. UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul; DCJS - DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS. Coordenação:
Fabiana Fachinetto; Vigência: 2018/2019. Ijuí: 2019.

SCHWARTZ, Fabio. A Defensoria Pública e a proteção dos (hiper)vulneráveis no mercado de


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297
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A INFLUÊNCIA DOS SABERES LOCAIS DA SOCIEDADE


EM REDE NA GOVERNANÇA ELETRÔNICA PROMOVIDA
PELO ESTADO BRASILEIRO

Norma Sueli Alves dos Santos Vidal151

RESUMO: O Estado brasileiro vem passando por algumas transformações através da participação
política da sociedade nos movimentos em rede eletrônica. Nesse contexto, a proposta aqui apresentada
tem como objetivo pensar o Estado a partir da governança eletrônica, influenciada pelos saberes locais
produzidos pela sociedade em rede. Questiona-se: os saberes locais produzidos pela sociedade em rede
vêm influenciando ou modificando a governança eletrônica brasileira? A referência teórica considera
as questões relativas à modernidade, a colonialidade e a descolonialidade a partir de estudos latino-
americanos, as definições de governança, com destaque para a governança eletrônica e a formação da
sociedade em rede como uma nova forma de interferência social e política no Estado brasileiro.

Palavras-chave: Estado. Governança Eletrônica. Sociedade em rede. Descolonialidade.

INTRODUÇÃO

O Estado brasileiro, desde Constituição Federal do Brasil de 1988, vem passando por significativas
mudanças, com a afirmação e eficácia dos princípios constitucionais e a redefinição das relações com
a sociedade. O Cidadão começou a ser reconhecido como detentor de poder político pela participação
e controle dos serviços públicos.
Desta forma, surgem novas formas de participação política da sociedade civil, denominada
“sociedade em rede”, que geram, processam e distribuem informação a partir de conhecimento
através da utilização das redes eletrônica, que nos forçam a repensar a maneira como o Estado vem
se organizando no contexto atual. Apesar de muitos atores políticos ainda pensarem que a Internet
é apenas uma ferramenta de comunicação utilizada para melhorar a eficiência e eficácia da gestão
pública, a mudança tecnológica tem um potencial muito maior de trazer saberes locais subalternizados
para espaços anteriormente dominados por um saber científico ou estatal.
Nesse sentido, a problemática orientadora deste trabalho, que deu origem ao presente texto,
pode ser sintetizada no seguinte questionamento: os saberes locais produzidos pela sociedade em
rede vêm influenciando ou modificando a governança eletrônica brasileira?
O objetivo deste artigo é analisar o Estado a partir da governança eletrônica, influenciada pelos saberes
locais produzidos pela sociedade em rede, com a possibilidade de construção de uma nova racionalidade
que possibilite práticas sociais inclusivas, conduzidas por novos atores sociais, comprometidos com
processos de emancipação decolonial e dispostos a fertilizar os saberes locais e interculturais.
Para a consecução do objetivo, o texto encontra-se estruturado em três seções: na primeira seção,
busca-se compreender as questões relativas à modernidade, a colonialidade e a descolonialidade,
fazendo uma breve diferenciação entre “colonialidade” e “colonialismo”, abordando os conceitos de
decolonialidade formados a partir de estudos latino-americanos.
Na segunda seção discute-se a definição de governança, com destaque para o surgimento da
governança eletrônica e a formação da sociedade em rede como uma nova forma de interferência
social e política na política do Estado. E, por fim se faz a reflexão sobre o Estado pensado a partir da
governança eletrônica, com a influência dos saberes locais da sociedade em rede.

151 Mestranda em Direitos Fundamentais da Universidade da Amazônia – UNAMA. Bacharel em Direito pela Universidade
Federal do Pará - UFPA. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade do Pará- FAP. Analista de gestão em pesquisa e
investigação biomédica do Ministério da Saúde.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Diante da natureza teórica do trabalho, em termos de metodologia, utiliza-se a pesquisa


qualitativa, com perfil exploratório, instrumentalizado pelo raciocínio indutivo-dedutivo, mediante o
uso das técnicas de pesquisa documental.

1 O PENSAMENTO DESCOLONIAL/DECOLONIAL

Inicialmente é fundamental, diferenciar “colonialidade” de “colonialismo”. Enquanto colonialidade


denota um processo histórico de colonização pela via do domínio, da submissão e da inferiorização,
colonialismo envolve dinâmicas e estruturas de poder que reproduzem tal lógica para além daquele
tempo e espaço.
Então, não se fala apenas de colonialismo, mas em colonialidade, uma vez que a colonização
não diz respeito apenas à administração colonial direta sobre determinadas áreas do mundo, mas
refere-se a uma lógica de dominação, exploração e controle que inclui a dimensão do conhecimento.
(SPAREMBERGER; DAMÁZIO, 2015, p.35).
O conceito de colonialidade refere-se às condições de estabelecimento do sistema capitalista
como modelo de funcionamento das relações de poder na modernidade, que operam mediante a
“imposição de uma classificação racial-étnica da população do mundo” (QUIJANO, 2010, p. 84).
A colonialidade é o lado obscuro e necessário da modernidade, sua parte indissociavelmente
constitutiva. Não existe modernidade sem colonialidade, assim como não poderia existir uma
economia-mundo capitalista sem a invenção da América. Destaca-se como características fundamentais
do “pensamento descolonial”, a realização de uma leitura desconstrutiva da visão tradicional da
modernidade e uma análise da subalternização epistêmica dos saberes não-europeus.
A modernidade é considerada como sinônimo de progresso, inovação, sofisticação, avanço, que
denota uma sobreposição hierárquica entre aqueles que se julgam posicionados adiante e os que
são tidos como atrasados (MIGNOLO, 2010, p. 76). Tais narrativas são construídas para apresentar e
justificar a modernidade de modo “natural” e “universal”, utilizando de ferramenta como o “ponto zero
do conhecimento”, cujo conhecimento é apresentado de forma “espontânea”, “universal” e “neutra”,
com validade oficial para todos os contextos de tempo e espaço, devendo, portanto, ser assimilado
e reproduzido mundo afora.
Nesse sentido, localizar-se no Ponto Zero seria:

[...] ter o poder de nomear pela primeira vez o mundo; de traçar fronteiras para estabelecer
quais conhecimentos são legítimos e quais são ilegítimos, definindo quais comportamentos são
normais e quais são patológicos. Por isso, o ponto zero é o do começo epistemológico absoluto,
mas também o do controle econômico e social sobre o mundo. Localizar-se no ponto zero equivale
a ter o poder de instituir, de representar, de construir uma visão sobre o mundo social e natural
reconhecida como legítima e autorizada pelo Estado. (CASTRO-GÓMEZ, 2005b, p. 25)

Entretanto, o conhecimento sempre será produzido em determinado local, considerando as


múltiplas e variadas formas de vida, assim como o período em que são produzidos.
O que ocorreu na prática foi que se elegeu a Europa como centro do conhecimento verdadeiro
e universal, e os “outros” conhecimentos foram ignorados. Assim, os conceitos ocidentais de Estado,
democracia, direitos humanos, entre outros, foram com o decorrer dos tempos universalizados,
silenciando muitos saberes e práticas anteriores à colonização.
Vemos que a colonialidade se apresenta como a continuação do colonialismo por outros meios.
A colonialidade é global e se reproduz em uma tripla dimensão: a do poder, a do saber e a do ser.
A colonialidade do poder tem um viés político e econômico que reforça a classificação social
baseada na hierarquia racial e sexual; a colonialidade do saber que envolve a produção da cultura e do
conhecimento eurocêntricos com fundamentação na racionalidade, e a colonialidade do ser envolve
a posição de submissão assumida pelos povos colonizados ao negarem suas culturas originárias e ao
reivindicarem a cosmovisão do colonizador.
Uma implicação fundamental da noção de colonialidade do poder é que o mundo não está
completamente descolonizado. Sendo que a primeira descolonização foi incompleta, já que se limitou

299
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

à independência jurídico-política, e a segunda descolonialização é epistemológica e deve envolver


desobediência epistêmica.(BRAGATO, 2015, p. 59).
Mignolo propõe uma gramática da “descolonialidade”, marcada por uma mudança de léxico
como estratégia de inovação e descolamento das grandes tradições epistemológicas europeias/
estadunidense enquanto sistemas de pensamento e de suas expressões, categorias e conceitos como
reflexo de uma realidade diversa.(MIGNOLO, 2010, p. 95-97)
Quando se reconhece que há uma pluralidade de saberes heterogêneos, forma-se uma ecologia
epistemológica que permite o florescer das lutas emancipatórias e emergentes dos sujeitos subalternos.
Por uma episteme não violenta, orientam-se práticas de transgressão e libertação, desde as margens
do saber eurocêntrico.

[...] as realidades sociais e culturais das sociedades periféricas do sistema mundo onde a crença na
ciência moderna é mais tênue, onde as ligações entre ciência moderna e os desígnios da dominação
colonial e imperial são mais visíveis, e onde outras formas de conhecimento não científico e não
ocidental persistem nas práticas sociais de vastos setores da população. (SANTOS, 2010, p. 108).

Nessa perspectiva, a decolonização pretende uma busca incessante por noções interpretativas que
reafirmem a capacidade local de construção de saber, hábil a orientar entendimentos jurisprudenciais
e a governança como um fenômeno plural e multifacetado. O que não significa em descartar categorias
e práticas discursivamente impostas como ocidentais, mas resignificar esses saberes como saberes
subalternizados, chamado de “epistemologias de fronteira”, que propõe aproximar a racionalidade e
a busca pela emancipação humana no que for possível, com formulações genuínas da América Latina
calcadas na sua realidade cultural e social. (MIGNOLO, 2003, p. 35)
Portanto, pautando-se no pensamento descolonial e que se pretende refletir sobre a utilização
dos saberes locais subalternizados no desenvolvimento da governança eletrônica para aprimoramento
do Estado brasileiro, e consequentemente implicará em mudanças profundas na própria forma de
administrar, que passaria a ser permeada por informações fornecidas pela população, através de uma
rede estruturada eletronicamente, caracterizando processos sociais e políticos das sociedades modernas.

2 GOVERNANÇA: ORIGEM E EVOLUÇÃO

O termo “governança”, etimologicamente possui origem na língua francesa, no século XIII, e cujo
significado evoluiu em decorrência das transformações históricas das sociedades que a empregavam,
as quais incluem seus movimentos migratórios para as diferentes regiões da Europa e do continente
americano.
Quando de sua origem, o termo, no plano semântico, relacionava-se à ação do governante.
Todavia, a partir do século XVI e das reflexões de Maquiavel sobre o Estado e de Jean Bodin sobre a
soberania absoluta, a noção de “governo” se associa à de poder centralizado no Estado e hierarquizado,
enquanto a de “governança” se autonomiza, passando a ser compreendida como a forma de gerir
adequadamente os bens públicos.
O Banco Mundial define a governança como a maneira de como o poder de um país é exercida,
melhor dizendo, é a capacidade do governo para formular e implementar políticas de forma eficaz,
mediante o respeito dos cidadãos e do Estado pelas instituições que governam as interações
econômicas e sociais. (WORLD BANK, 2020).
A Comissão Europeia no ano 2001, em documento intitulado Livro Branco, definiu governança
como o “conjunto de regras, processos e práticas que dizem respeito à qualidade do exercício do
poder a nível europeu, essencialmente no que se refere à responsabilidade, transparência, coerência,
eficiência e eficácia.” (COMISSÃO EUROPEIA, 2001, p. 5).
Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), a governança
corporativa é definida como o conjunto de relações entre a administração de uma empresa, seu
conselho de administração, seus acionistas e outras partes interessadas. Significa dizer que é um
conjunto de práticas que têm por objetivo regular a administração e o controle das instituições.
Vejamos a definição dada pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC):

300
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Governança Corporativa é o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e


incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre proprietários, conselho de administração,
diretoria e órgãos de controle. As boas práticas de governança corporativa convertem princípios
em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o
valor da organização, facilitando seu acesso ao capital e contribuindo para a sua longevidade.

A boa governança se traduz na capacidade de governar o Estado de forma responsável, conforme


se verifica:

Good governance significa, numa compreensão normativa, a condução responsável dos assuntos
do Estado. Trata-se, pois, não apenas da direção de assuntos do governo/administração mas
também da prática responsável de actos por parte de outros poderes do Estado, como o poder
legislativo e o poder jurisdicional. (CANOTILHO, 2012, p.327).

O conceito evoluiu para a governança democrática como um modelo de administração aberto


ao público e que dirige serviços e políticas para o cidadão, que vai além do modelo gerencial e no
qual a qualidade dos serviços públicos importa para a cidadania. Isso significa a administração em
público, para a qual, além da eficiência e da eficácia, importa a legitimidade da ação estatal, tendo em
vista serviços e políticas públicas capazes de promover a equidade e adicionar valor público à ação
do Estado (BEVIR, 2010, p. 12). A governança democrática reúne três elementos que importam para a
constituição da gestão pública: (1) as capacidades estatais para implementação e coordenação; (2) os
mecanismos de transparência e accountability; e (3) os mecanismos de participação política.
A concepção de governança democrática, que representa uma agenda de mudança para a adminis-
tração pública, em que a qualidade dos governos importa para que políticas e serviços públicos sejam
mais eficientes e eficazes, mas que sejam, além disso, legítimos e dotados de plena autoridade pública.
Corresponde, portanto, à forma de ação e decisão em redes, parcerias e por meio de fóruns deliberati-
vos, desconstituindo formas centralizadas e hierárquicas de representação de interesses no momento
de escolhas e ações de interesse coletivo. Dá-se lugar para que os mais diversos atores participem:
tanto entes e órgãos governamentais quanto os mais diferentes interessados da sociedade civil.
A governança democrática se vincula diretamente à participação da sociedade civil, de forma
consciente e organizada, no decision making em questões de interesse público, e com o “empoderamento
democrático” (SCHERER-WARREN, 2006, p. 123) surge a necessidade do combate à exclusão em
suas múltiplas faces e a respectiva luta por direitos (civis, políticos, socioeconômicos, culturais e
ambientais); do reconhecimento da diversidade dos sujeitos sociais e do respectivo pluralismo das
ideias; e da promoção da democracia nos mecanismos de participação no interior das organizações
da Administração Pública, criando uma nova formas de governança: a governança eletrônica.
A governança eletrônica se desenvolve como uma importante ferramenta da administração de
um governo, a qual com o avanço das inovações em sistemas de informação e outras ferramentas
digitais visa a facilitar e aprimorar a interação dentro do próprio governo, entre o governo e os
cidadãos e entre o governo e a iniciativa privada. Para tanto, os governos atuam constantemente no
desenho e na implementação de novos sistemas de informação e de comunicação, tendo como base
a utilização da internet, de modo a melhorar, a cada dia, a acessibilidade a dados, informações e
disponibilização de serviços públicos.
A governança eletrônica corresponde ao modo ou ao processo de conduzir uma sociedade para
melhor atingir suas metas e interesses, sendo a participação civil uma das possibilidades de se realizar
uma renovação dentro do aparato estatal e uma rearticulação entre Estado e sociedade.
São considerados integrantes da governança eletrônica sistemas de ensino a distância,
prestação  online de serviços públicos, licitações e compras feitas por meio eletrônico (como, por
exemplo, o pregão eletrônico), sistemas de monitoramento e avaliação de políticas públicas, sistemas
de execução orçamentária e financeira, sistemas de convênios, sistemas de administração de pessoal,
sistema de administração de material e patrimônio, entre outros.
A Governança Eletrônica possui o potencial de garantir que a sociedade não seja mais constituída
apenas de consumidores passivos de serviços públicos, permitindo à população exercer um papel
ativo nos serviços e na estrutura de governo que almejam.
A partir da governança eletrônica as formas de intervenção política vêm se modificando, surge

301
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a chamada “sociedade em rede”, onde o associativismo e os movimentos sociais de base locais se


articulam com outros grupos com a mesma identidade social ou política, a fim de ganhar visibilidade,
produzir impacto na esfera pública e obter conquistas para a cidadania. (SCHERER-WARREN, 2006,113).
A governança eletrônica - também intitulada e-governança ou governança digital, refere-se ao
modo como a Internet pode melhorar a capacidade do Estado de governar e formular suas políticas,
podendo ser definida como:

a utilização pelo setor público de tecnologias de informação e comunicação inovadoras, como a


Internet, para oferecer aos cidadãos serviços de qualidade, informação confiável e mais conhecimento,
visando facilitar-lhes o acesso aos processos de governo e incentivar sua participação. É um
comprometimento inequívoco dos que tomam decisões [governamentais] com o estabelecimento
de parcerias mais estreitas entre o cidadão comum e o setor público (NAÇÕES UNIDAS, 2002).

A formação das redes eletrônicas como se verá a seguir, a coletividade tem uma importante
ferramenta a seu serviço do poder, porque, por intermédio delas, é possível estabelecer conexões entre
projetos sociais, econômicos e políticos com identidades semelhantes, assim como aproximar atores que
desenvolvem projetos distintos, porém vinculados a um objetivo maior e comum de maior participação
democrática e combate às várias formas de desigualdade e exclusão social. E pode representar, também,
sob uma perspectiva descolonial novas formas de inclusão dos saberes subalternizados no âmbito da
do Estado brasileiro, anteriormente dominado por um saber oficial estatal.

3 GOVERNANÇA ELETRÔNICA: A INFLUÊNCIA DOS SABERES LOCAIS DA SOCIEDADE EM REDE

Com as redes eletrônicas surge um novo modelo de sociedade, a “sociedade em rede”,


caracterizada como:

uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicação e informação
fundamentadas na microelectrônica e em redes digitais de computadores que geram, processam
e distribuem informação a partir de conhecimento acumulado nos nós dessas redes”. (CASTELLS,
2006, p.20).

O uso da tecnologia é uma ferramenta que vem atendendo as demandas sociais, econômicas e
culturais, que nos últimos 20 anos se transformou em veículo de comunicação de massa horizontais, o que
consequentemente permitiu ao indivíduo construir redes de interação virtual para troca de informações.
O ponto essencial da sociedade em rede é a tecnologia, porque, diferentemente das interações
realizadas de forma direta com uma rede social de amigos, as conexões eletrônicas permitem a
interação instantânea e total. Assim, o paradigma da tecnologia possibilitou a expansão das redes
para toda a sociedade. As “redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a
difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos
produtivos e de experiência, poder e cultura”. (CASTELLS, 2008, p. 565).
O uso da internet, das mídias e redes sociais virtuais se constitui num diferencial importantíssimo
do novo movimento social, se constituem em canais de informação, em ambientes comunicacionais, e
arenas de debate, de difusão, acesso e troca de informação. O que permite a construção de uma nova
racionalidade possibilita práticas sociais inclusivas, conduzidas por novos atores sociais, comprometidos
com processos de emancipação decolonial e dispostos a fertilizar os saberes locais e interculturais.
No Estado a influência dos movimentos da sociedade em rede vem modificando as estruturas
hierarquizadas e espaços que antes apenas eram dominados pelos discursos eurocêntricos de
organização e gestão da coisa pública, agora são “invadidos” por uma pluralidade de outros
conhecimentos. Entretanto, pensar a mudança do Estado a partir de saberes locais subalternizados
não significa propiciar a entrada desses saberes diretamente na sua estrutura. A decolonialidade vai
além da inclusão de pessoas e saberes não ocidentais no chamado “ponto zero do conhecimento”, é
necessário ir além e decolonizar o conhecimento, questionando epistemicamente as relações coloniais.
Um ponto importante é que a decolonialidade não é uma missão de resgate essencialista de
“culturas” autênticas e imóveis, visto que os saberes locais são de fronteiras, e não são superiores aos

302
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

demais, apenas diferentes e têm seu direito de não ser subalternizados por padrões de conhecimento
hierarquizados pelos seres humanos. 
Qualquer mudança na forma de administrar requer transformações do Estado, e é obvio que não
se darão unicamente pela introdução das tecnologias de informação no governo. A internet possui
potencialidades para fomentar a democracia, criando novos espaços para o saber local, renovando
os modos de participação popular e de tomada de decisões governamentais, todavia é preciso antes
de tudo vontade política. Portanto, o Estado deve considerar os novos recursos tecnológicos como
elementos fundamentais em suas estratégias de reforma administrativa, participação política e
desenvolvimento urbano (FREY; REZENDE, 2005, p. 10).
Para o pensamento decolonial os saberes são plurais, que surgem em diversos lugares onde são
pensados, a partir dos intercâmbios e diálogos propiciados pela interculturalidade, e somente modificando
a lógica do conhecimento que permitiu que “outros” saberes fossem classificados como inferiores é que
se poderá construir uma proposta de interculturalidade que não se converta em uma mera retórica que
invisibiliza os saberes subalternizados, mas sim, em um ponto de encontro de diversas decolonialidades.
No momento atual com a crise sanitária provocada pelo coronavirus, o mundo passou a se comunicar
pelas redes eletrônicas, propiciando abertura para os saberes subalternizados, entretanto a exclusão
digital ainda é muito grande, representando uma limitação ao acesso e a disseminação do conhecimento.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente buscou-se esclarecer que “colonialismo” denota um processo histórico de colonização


pela via do domínio, da submissão e da inferiorização. Já “colonialidade” envolve dinâmicas e estruturas
de poder que reproduzem tal lógica para além daquele tempo e espaço.
A colonialidade é parte constitutiva da “modernidade”, esta considerada sinônimo de progresso,
inovação, sofisticação, avanço, denotando uma sobreposição hierárquica entre aqueles que se julgam
posicionados adiante e os que são tidos como atrasados. Para justificar a modernidade de modo
“natural” e “universal”, é utilizada ferramenta como o “ponto zero do conhecimento”, cujo conhecimento
é apresentado de forma “espontânea”, “universal” e “neutra”. Entretanto, o conhecimento sempre será
produzido em determinado local, considerando as múltiplas e variadas formas de vida, assim como o
período em que são produzidos.
Destacou-se a origem e a evolução das concepções de governança, para então chegar a
Governança eletrônica que representa uma agenda de mudança para a administração pública, em
que a qualidade dos governos importa para que políticas e serviços públicos sejam mais eficientes e
eficazes, mas que sejam, além disso, legítimos e dotados de plena autoridade pública.
Observou-se que com a governança eletrônica as formas de intervenção política vêm se modificando,
com destaque para a chamada “sociedade em rede”, caracterizada como uma estrutura social baseada
em redes digitais de computadores e constituem em importantes canais de informação, em ambientes
comunicacionais, e arenas de debate, de difusão, acesso e troca de informação de saberes subalternizados.
Portanto, a governança eletrônica promovida pelo Estado Brasileiro vem sofrendo a influência
dos movimentos da sociedade em rede, modificando suas estruturas hierarquizadas e espaços que
antes apenas eram dominados pelos discursos eurocêntricos de organização e gestão da coisa pública,
observando-se agora uma pluralidade de outros conhecimentos. Entretanto, pensar em uma mudança
na forma de administrar, construídos a partir de saberes locais subalternizados, não significa propiciar
a entrada desses saberes diretamente no Estado, pois somente modificando a lógica do conhecimento
que permitiu que “outros” saberes fossem classificados como inferiores é que se poderá construir
uma proposta de interculturalidade que não se converta em uma mera retórica que invisibiliza os
saberes subalternizados, mas sim, em um ponto de encontro de diversas decolonialidades.
Por fim, destaco que a presente pesquisa iniciou antes de pandemia provocada pelo coronavirus,
e com a crise sanitária no Brasil se vivenciou a necessidade de aprimoramento das políticas públicas
para inclusão digital, pois num período onde as formas de comunicação ficaram dependente as redes
eletrônicas, se tornou urgente o debate em torno da inclusão não só dos saberes locais subalternizados,
mas também da inclusão digital para o desenvolvimento social, para a participação popular e para a
tomada de decisões governamentais.
303
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFERÊNCIAS

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE


PACIFICAÇÃO NA ESCOLA:
COMO ROMPER COM O PARADIGMA DA PUNIÇÃO
E PREVENIR A VIOLÊNCIA PELA PALAVRA

Damiane Silvana Dzielinski152


Fabiana Marion Spengler 153

RESUMO: Este texto tem por escopo o tratamento dos conflitos escolares e o atual paradigma da
punição, considerando a precariedade do sistema de reeducação do menor infrator, baseado no sistema
de justiça retributivo. Urge, então, a necessidade de tratar os conflitos sob outro viés. Destaca-se a Justiça
Restaurativa, que busca a valorização da vítima e a educação do infrator. A pesquisa busca responder: a
Justiça Restaurativa pode ser considerada uma política pública de pacificação rompendo com o paradigma
da punição em conflitos escolares? O método utilizado será o dedutivo, partindo de uma análise geral
para uma específica, enquanto o método de procedimento será bibliográfico. Objetiva-se analisar se a
Justiça Restaurativa pode ser considerada uma política pública para resolução de conflitos escolares. Ao
final, conclui-se que sim, embora a justiça restaurativa não seja aplicada em todas as escolas.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Justiça Retributiva. Violência Escolar. Política pública. Direitos
Humanos.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo discorrer acerca da justiça restaurativa nos ambientes
escolares como prevenção e tratamento de conflitos, abordar o paradigma da punição, e por fim,
evidenciar a realidade das unidades de internação, onde os jovens reeducandos cumprem medida
socioeducativa.
A educação brasileira enfrenta desafios diversos, entretanto, merece destaque a conflituosidade
que permeia a seara escolar, implicando em várias consequências. Esta pesquisa delimita-se a
trabalhar os conflitos e a violência dentro das escolas e se é possível resolver tais conflitos por meio
das práticas restaurativas, as quais visam educar o infrator sem puni-lo. Ofertando aos envolvidos
uma opção de solução sem violência e abrindo caminho para a pacificação social. Assim, visando a
humanização do processo penal, conferindo dignidade aos infratores e valorizando a vítima.
O problema que orienta este trabalho procura elucidar a seguinte indagação: é possível desenvolver
as práticas restaurativas considerando-as enquanto política pública de pacificação rompendo com o
paradigma da punição nos conflitos escolares? Como metodologia de pesquisa, utilizou-se o método
de procedimento bibliográfico, a partir da leitura de fontes bibliográficas conexas com o estudo.
Enquanto método de abordagem, valeu-se do dedutivo.
A discussão organiza-se em três itens. O primeiro, aborda a necessidade de mudança no
paradigma do tratamento de conflitos e a violação aos direitos humanos dos jovens reeducandos

152 Acadêmica do curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista de Extensão – PROBEX. Integrante do
Grupo de Pesquisa: “Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos”, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-liderado pelo Pro-
fessor Mestre Theobaldo Spengler Neto. Email: dzielinskidamiane@gmail.com.
153 Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Pq2). Pós-doutora em Direito pela Università degli Studi di Roma Tre, em
Roma na Itália, com bolsa CNPq (PDE). Doutora em Direito pelo programa de Pós-Graduação stricto sensu da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos – UNISINOS – RS, mestre em Desenvolvimento Regional, com concentração na área Político Institucional da Uni-
versidade de Santa Cruz do Sul - UNISC – RS. Líder do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos” certifica-
do pelo CNPq, Coordenadora da Rede de Pesquisa em Direitos Humanos e Políticas Públicas – REDIHPP. E-mail: fabiana@unisc.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

em cumprimento de medida socioeducativa. O segundo item, traça as principais diferenças entre


a Justiça Restaurativa e a Retributiva, dando ênfase para aquela. Para finalizar, o último item versa
sobre os conflitos escolares e as práticas restaurativas na escola, como a Justiça Restaurativa trata tais
conflitos e porque ela se apresenta como uma técnica para a pacificação na escola.
Assim, a hipótese que se levanta é que a justiça restaurativa se caracteriza por possibilitar a
reeducação do ofensor, conferindo dignidade e humanizando o processo penal, também valorizando
os sentimentos da vítima, possibilitando que as partes, abandonem o estado de beligerância com a
busca incessante pela punição e tratem o conflito dentro do próprio local onde se originou, ou seja,
na própria escola.
O problema de pesquisa foi respondido, porque acredita-se que sim, a Justiça Restaurativa pode
ser considerada uma política pública para o tratamento de conflitos escolares, mesmo que não seja
aplicada em todas as escolas, devendo a comunidade escolar seguir trabalhando para a inserção dos
métodos consensuais dentro destes ambientes.

1 A NECESSIDADE DE MUDANÇA NO PARADIGMA DO TRATAMENTO DE CONFLITOS E A


VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DOS JOVENS REEDUCANDOS EM CUMPRIMENTO DE
MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

Neste primeiro item, será abordada a necessidade de mudança no paradigma da punição no


tratamento de conflitos cuja ideia encontra-se inserida na sociedade desde o Código de Hamurabi
até a atualidade. Logo após, também será abordada a situação degradante dos jovens reeducandos
que cumprem medida socioeducativa nas unidades de internação, caracterizando grave violação aos
Direitos Humanos.
A Lei de Talião, insculpida no Código de Hamurabi, de onde tem origem o famoso brocardo “olho
por olho, dente por dente”, surgiu muito antes de Cristo e ainda nos dias de hoje norteia de certo
modo a legislação penal, tendo em vista que o desejo de punir/castigar o infrator é muito latente
na sociedade. Sendo assim, verifica-se que há muitos empecilhos para romper com o paradigma da
punição e implantar métodos consensuais de resolução de conflitos.
Quanto ao paradigma da punição, primeiramente, faz-se mister distinguir os vocábulos
paradigma e cultura, visto que não raras vezes são empregados como sinônimos. Desse modo, na
lição de Spengler e Spengler (2018, p. 101):

“observa-se que a cultura é abrangente, apontando para algo mais amplo, uma construção
sedimentada por anos de práticas sociais, advindas do cotidiano humano. O paradigma é mais
estreito, limitando-se a um modelo, a um exemplo a ser seguido e definindo-se sempre a partir
de uma cultura.”

O conflito pode ser resolvido tanto pela via judicial quanto pelos meios autocompositivos, como
a conciliação, mediação, negociação e as práticas restaurativas. No entanto, a judicialização do conflito
não é a única solução para a concretização dos direitos humanos, existem outros instrumentos aptos
para a solução de conflitos que promovem a pacificação e acompanham doutrina de proteção aos
direitos humanos, respeitando a dignidade humana (MARTINS; MARQUES; GUIMARÃES, 2016).
No que tange aos infantes em conflito com a lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA,
estabelece em seu art. 112 que verificada a prática de ato infracional, está sujeito a: obrigação de reparar
o dano; prestação de serviço à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade
e internação em estabelecimento educacional, cabendo ressaltar que essa última se constitui como
medida privativa de liberdade e está sujeita aos princípios de brevidade, excecionalidade e respeito à
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (BRASIL, 1990).
A lei 12.954/12 instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Sinase, cujo objetivo é
regulamentar o cumprimento de medidas socioeducativas de adolescentes. Esta lei traçou os objetivos a
serem alcançados pela imposição das medidas socioeducativas previstos no artigo 2º, § 2 e seus incisos,
a responsabilização do adolescente incentivando a sua reparação, a integração social do adolescente e
a garantia de seus direitos individuais e sociais, e a desaprovação da conduta infracional (BRASIL, 2012).

306
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Segundo o levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público, o somatório das vagas


disponíveis em todos os estados e no DF alcançou um total nacional de 16.161 vagas, com uma
ocupação real de 18.086 no segundo semestre de 2018. Ou seja, representando uma superlotação
de 11,91% nas 330 unidades de internação do país. Destacando-se o Acre, que apresentou uma
superlotação de 92,99% neste mesmo período, sendo 523 internos para 271 vagas (BRASIL, 2019).
As unidades de cumprimento de medida socioeducativa são ambientes com estrutura precária
e sem recursos, onde os jovens infratores passam o tempo ociosos, sem atividades interativas. As
salas são superlotadas, úmidas e com a presença de insetos e ratos. São ambientes que não ofertam
atividades recreativas, apenas uma maneira muito rígida de puni-lo.
Um jovem de 17 anos, detido por tráfico de drogas, o qual teve sua identidade preservada,
relatou a sua experiência para a reportagem do jornal Folha de São Paulo, sobre o período em que
permaneceu cumprindo medida socioeducativa em uma unidade de internação:

não aprendemos nada que preste. Quem não se defende cai logo. [...] Já dormi no chão duro
porque tinha muita gente, já apanhei muito. Sem falar na sujeira, tem muito rato nas celas. E a
comida é péssima (VALADARES; BARBON; TOLEDO, 2019).

Ainda conforme o jornal Folha de São Paulo, 11 estados do Brasil têm o sistema socioeducativo
lotado, o que fomenta as violações aos direitos humanos dos adolescentes internados e contribui
para a precariedade do atendimento. O Rio de Janeiro, no dia 13 de junho de 2019, apresentava
uma ocupação de 187% das vagas nas unidades de internação. Lembrando que a rotatividade nessas
unidades é grande, e os números podem variar rapidamente (VALADARES; BARBON; TOLEDO, 2019).
O valor do custo mensal per capita por socioeducando em cumprimento de medida socioeducativa
de internação custa em média R$ 9.590,08. Os estados do AC, GO, MA e TO informaram custos mensais
per capita abaixo de dois mil reais para a medida socioeducativa de internação (provisória ou definitiva).
Já outros estados, como: AL, AP, PA, PE, PI, RJ e SE informaram custos mensais entre dois e cinco mil reais,
totalizando 11 que reportaram custo mensal per capita abaixo da faixa dos cinco mil reais (BRASIL, 2019).
O tempo médio de permanência dos adolescentes no cumprimento da medida socioeducativa de
internação por prazo indeterminado dentre os que informaram, 12 estados relataram tempo médio de
duração da medida entre seis meses e um ano: AM, CE, GO, MT, MG, PR, RJ, RN, RS, SC, SP, SE. O DF e
outros seis estados relataram tempo médio entre um e dois anos: ES, MA, PB, PE, RR, TO. Sendo que
o Pará informou tempo médio inferior a seis meses, e os estados do AC, AL e AP reportaram tempo
médio acima de dois anos. O Estado do Piauí reportou tempo médio de 36 meses (BRASIL, 2019).
A lei 12.594/2012, atribui aos estados a obrigação de criar, desenvolver e manter programas
para a execução das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação (artigo 4º, inciso III),
devendo a União prestar assistência técnica e financeira para o desenvolvimento dos sistemas
estaduais, distrital e municipais (artigo 3º, inciso III). Entretanto, nos últimos anos, a União não
contribuiu suficientemente para a implantação de novas unidades de internação e semiliberdade nos
estados e não financiou o custeio dos sistemas estaduais e distrital, obrigando os estados e o Distrito
Federal a arcarem sozinhos com o funcionamento desta política (BRASIL, 2019).
Guilherme Freire de Melo Barros em sua obra sobre Direito da Criança e do Adolescente (2019, p.
306) discorre acerca dos objetivos da aplicação das medidas socioeducativas, sob o seu ponto de vista:

A partir desse rol, fica claro que as medidas socioeducativas não guardam relação direta com
a simples punição do adolescente. Pelo contrário, o que se espera é que o período de privação
de liberdade sirva de reflexão, aprendizado, amadurecimento. Superada a internação, espera-
se que o adolescente - posteriormente adulto - regresse ao seio da sociedade para se integrar
plenamente, trabalhar, formar sua família, alcançar seus sonhos.

Após a leitura do trecho do ilustre doutrinador, observa-se que os objetivos da aplicação das
medidas socioeducativas não possuem a finalidade de punição, mas tendo em vista a precária realidade
das unidades de cumprimento das medidas, conclui-se que a finalidade torna-se punitiva. Ou seja,
não há como ressocializar o jovem infrator diante destas condições, visto que a medida torna-se um
castigo severo, violando a dignidade dos educandos.
O Conselho Nacional de Justiça em 2012 no documento “Panorama das medidas socioeducativas

307
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de internação” ligado ao programa Justiça ao Jovem, manifestou-se acerca da situação, considerando o


sistema violento e distante dos princípios da proteção integral, sendo que os adolescentes se tornam
vítimas no sistema e o que se espera é o incessante combate à forma como estão sendo tratados no
cumprimento das medidas socioeducativas (BRASIL, 2012).

[...] Se esses problemas do sistema socioeducativo brasileiros fossem poucos, ainda teríamos a grave
questão das condições físicas das unidades de internação e de semiliberdade, com alojamentos
precários, esgotos aparentes, animais nocivos circulando e existência de celas de isolamento; condições
bastantes para comprometer qualquer intenção séria de constituir uma política de atendimento e
respeito aos preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ZAMORA, 2005, p. 81).

Este cenário evidencia o atraso do Brasil na implementação da política nacional de atendimento


socioeducativo desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, apesar da regra
ser prioridade absoluta desde 1988, conforme reza o artigo 227 da Constituição Federal.
Assim, constata-se a decadência e a ineficiência do sistema de ressocialização dos menores
infratores. No próximo item, será feita uma abordagem sobre a Justiça Restaurativa, suas principais
características e quais as diferenças entre o sistema retributivo e o restaurativo.

2 JUSTIÇA RETRIBUTIVA X JUSTIÇA RESTAURATIVA – UMA MUDANÇA DE OLHAR

O Estado nem sempre foi o detentor do jus punitionis, uma vez que antes da edificação dele, a
retribuição ao delito cometido partia da própria vítima ou mesmo de seu clã, era a chamada vingança
privada. Somente com o Estado organizado passou-se a depositar nele os conflitos e tensões sociais.
Surgindo, então, a jurisdição (SOARES, 2020).
Desde então, com o fortalecimento do Estado, ele passa a ser a parte ofendida, e consequentemente,
cessando a fase da vingança privada. A partir desse momento o ato criminoso passa a afetar não só
a vítima como também toda a sociedade. Portanto, havendo transgressão ao ordenamento jurídico,
compete ao Estado punir e agir em defesa do ofendido e da sociedade.
A partir daí, consagra-se o sistema retributivo, visando castigar o infrator pela violação à lei.
Nesse sentido, Mirabete (2005, p. 246) afirma que “Desde a origem até hoje, a pena sempre teve
caráter predominantemente de retribuição, de castigo, acrescentado a ela uma finalidade de prevenção
e ressocialização do criminoso (...)”.
Tal sistema, sempre foi alvo de críticas, de modo que a partir da década de 90 e da publicação da
obra de Howard Zehr, “Trocando as Lentes: Um Novo Foco sobre Crime e Justiça” os ideais da Justiça
Restaurativa ganharam força mundial. Essa obra, ensina que com a aplicação da Justiça Restaurativa
o criminoso deixa de ser um agente taxado e passa a ser um agente reconstrutor, que assume seus
erros e busca repará-los (MARTELLO, 2018).

Historicamente então passou-se a ter uma preocupação exacerbada com a punição do infrator,
nos processos penais o que normalmente não oportunizou um processo de responsabilização e
de reabilitação, comprovado pelo alto índice de reincidência de crimes e atos infracionais, em que
se desconsiderou completamente as necessidades das vítimas. Esse hábito, em muitos casos, vêm
se mostrando ineficaz e acabaram suscitando a oportunidade de buscar alternativas mais eficazes
e relevantes para algumas circunstâncias ao processo de justiça (ARAÚJO, 2010, p. 46).

Em 2002 a Organização das Nações Unidas (ONU), edita a Resolução 12/2002, trazendo em seu
texto a definição da Justiça Restaurativa como “um processo através do qual todas as partes envolvidas
em um ato que causou ofensa reúnem-se para decidir coletivamente como lidar com as circunstâncias
decorrentes desse ato e suas implicações para o futuro”. Além dessa, também as resoluções 26/1999
e 14/2000, as duas versando acerca dos procedimentos restaurativos no âmbito criminal.
Como ressalta Martello (2018), o primeiro país a implantar a Justiça Restaurativa na legislação foi
Nova Zelândia e hoje é acompanhada por outros países como Canadá, Austrália, Áustria e Inglaterra. Sendo
que na Nova Zelândia, o sistema restaurativo está implementado em todas as jurisdições, bem como na
Áustria. No Brasil, as práticas restaurativas vêm sendo utilizadas, principalmente nos procedimentos que
versam sobre crianças e adolescentes que cometem infrações penais como forma de reeducação.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

No Brasil, a introdução da justiça restaurativa no sistema de Justiça ocorreu em 2005, a partir


de projetos desenvolvidos no Juizados Especiais Criminais do Núcleo Bandeirante na 3ª Vara da
Infância de Porto Alegre no Rio Grande do Sul e na Vara de são Caetano do Sul em São Paulo
(MARTINS; MARQUES; GUIMARÃES, 2016, p. 12).

No Rio Grande do Sul, o precursor da Justiça restaurativa foi o desembargador do TJ/RS, Leoberto
Narciso Brancher que foi um dos pioneiros nos estudos e implementação da Justiça Restaurativa no
Brasil. Em 04 de julho de 2002, foi trabalhado o chamado “Caso Zero” experiência de aplicação de
prática restaurativa na 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre em um
conflito entre dois adolescentes (ORSINI; LARA, 2013).
O Conselho Nacional de Justiça, CNJ, editou a Resolução nº 125, em 2015, que dispõe sobre a “Política
Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”
e prevê, em seu artigo 7º, parágrafo 3º, a existência de programas de Justiça Restaurativa. Em 2016, o
CNJ, editou a Resolução nº 225, alterada em 2019 pela resolução nº 300, que dispõe especificamente
sobre a Justiça Restaurativa. A resolução conceitua em seu artigo 1º a Justiça restaurativa:

Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios,
métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais,
institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que
geram dano, concreto ou abstrato [...] (BRASIL, 2016, online).

Nota-se que há semelhança entre o procedimento da mediação e o da Justiça Restaurativa,


visto que as duas são formas autocompositivas de solução de conflitos. Elas visam proporcionar um
ambiente harmonioso para que os conflitantes exponham suas angústias e mágoas. Portanto, o papel
do terceiro, tanto do mediador quanto do facilitador é conduzir o diálogo a fim de que as próprias
partes cheguem ao consenso.

A Justiça Restaurativa herdou da Mediação, em especial da abordagem transformativa, algumas de


suas características, tais como o propósito transformador do diálogo entre pessoas comprometidas
com realidades distintas e antagônicas, o foco na responsabilidade relacional, a busca do
atendimento de necessidades e interesses de ambos operando com o binômio do empoderamento
de cada um e o reconhecimento mútuo. Sob esse enfoque, é possível considerarmos o
pertencimento da Justiça Restaurativa aos mecanismos de solução de conflitos e reconhecermos
que veio incrementar e enriquecer esse conjunto de práticas (GRECCO, 2014, p. 57).

Os princípios norteadores da JR estão elencados no artigo 2º da Resolução nº 225, são


eles: a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os
envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a
consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade.
Importante destacar a confidencialidade do procedimento, visto que tudo que ocorre durante o
círculo restaurativo é confidencial e não poderá ser divulgado sem a anuência dos envolvidos. Assim,
cria-se um ambiente mais atrativo para o ofensor ou o ofendido falar e expressar seus sentimentos, sem
receio. Outro princípio, não menos importante, é o da participação. Sendo que o círculo restaurativo só
será exitoso se houver a efetiva participação dos seus integrantes, expondo a sua visão sobre o fato.
Destaca-se também, a voluntariedade, tendo em vista que se trata de um meio consensual,
as próprias partes que dialogam para chegar ao entendimento. Tanto o ofensor como a vítima se
dispõem a participar sem que sejam compelidos. Dessa forma, o círculo deve acontecer se houver real
interesse dos envolvidos em reparar o dano e resolver o conflito.
O procedimento da Justiça Restaurativa consiste em reuniões em que os envolvidos formam um
círculo e podem falar quando tem em mãos o “bastão da fala” ou “bastão da palavra”, esse objeto vai
passando entre os participantes de acordo com a ordem em que se encontram sentados e conferindo
a vez de falar (MARTINS; MARQUES; GUIMARÃES, 2016).
O procedimento pode ocorrer alternativamente ou concomitantemente ao processo penal.
Durante o procedimento, há a formação de três círculos, isto é, o pré-círculo, o círculo restaurativo
propriamente dito e o pós-círculo. Cada um desses círculos procura desempenhar técnicas para que
melhor se desenvolva o procedimento.

309
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O facilitador pode preparar o ambiente de forma lúdica, enfeitando o círculo com a denominada
“Peça de Centro”, que é uma toalha ou manta, posta no chão, com vários objetos, a ideia principal é
visualizar símbolos facilitadores da boa lembrança e do entendimento para propiciar um ambiente de
tranquilidade (RAMOS; ALMEIDA; ALMEIDA, 2017).
Desse modo, a justiça restaurativa mostra-se como um reaprender a se comunicar, dando a
oportunidade de todo cidadão da nossa sociedade, de conhecer e se auto compreender dentro de uma
nova perspectiva, mais saudável, que lhes fará sentir-se melhor, não só pela reflexão, mas pela autonomia
e pelo empoderamento gerado de poder resolver seus conflitos (WILLANI; CACENOTTE, 2013).
A prática restaurativa é um movimento social que ajuda na construção de sociedades civis
mais coesas e resistentes, proporcionando maior participação e interação dos cidadãos junto às
organizações sociais, ao mesmo tempo em que contribui para o fortalecimento das instituições por
meio da cooperação dos cidadãos (GOÉS; BOURGUIGNON; GRAF, 2019).

O enfoque restaurativo, em contraponto ao punitivo retributivo, considera o crime/ato infracional


como uma violação às pessoas e relacionamentos e não uma violação da lei/regras. Diferentemente
do sistema retributivo, que não tem por foco a vítima, a abordagem restaurativa traz a vítima
para o centro, colocando também o ofensor e a comunidade em cena na busca de um consenso
quanto à forma de lidar com as situações presentes e prevenir as futuras (MINISTÉRIO PÚBLICO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2016, p. 20).

Este modelo de justiça que é antagônico ao retributivo, procura colocar as partes no centro
do processo, oferecendo-lhes autonomia para expor suas necessidades. Desse modo, considerando
a necessidade de mudanças devido à ineficácia do atual modelo de justiça, em que as vítimas são
substituídas pelo Estado por meio do órgão acusador, o modelo restaurativo vem para promover a
participação efetiva e democrática das partes (MARTELLO, 2018).
Para a Justiça Restaurativa o que interessa não é apenas a resolução dos conflitos, mas também que eles
sejam vivenciados, isto é, sentidos pelas partes envoltas, possibilitando uma melhor forma de compreensão
entre todos os envolvidos, o que possibilita um ambiente mais harmonioso (PIEDADE; SILVA, 2015).
Enquanto o sistema retributivo entende o crime como uma violação à lei, o restaurativo
compreende como um dano à pessoa e como uma ruptura das relações. Por isso, no sistema atual,
após o crime, busca-se responder: qual norma foi violada? Quem a violou? Qual punição merece? Na
Justiça Restaurativa, mudam-se os objetivos, pois indaga-se: Quem foi prejudicado/ofendido? Quais
são as suas necessidades? Quem deverá prover? (ZEHR, 2008).
O modelo restaurativo busca respostas para questões subjetivas da infração que não são
investigadas no processo penal. Segundo Granjeiro (2012), na Justiça Restaurativa busca-se diminuir
o círculo vicioso da violência, alimentado por retaliações punitivas no modelo retributivo, por meio do
diálogo, estimulando a reconciliação dos sentimentos, além de compreender os motivos das infrações.
No sistema retributivo a vítima ocupa um lugar periférico, seus anseios e e necessidades não são
considerados no decorrer do processo penal, faltando-lhe todo tipo de assistência, seja ela psicológica,
econômica ou jurídica. Quanto à sociedade, não lhe é conferida nenhuma participação ativa na justiça
criminal retributiva, mesmo sabendo-se que a sociedade é diretamente afetada pela infração e sofre
as suas consequências (SOARES, 2020).
A Justiça Restaurativa apresenta uma forma diferenciada de lidar com os conflitos, quebrando
com a cultura de culpa e punição, trocando-os por responsabilização pelos atos e obrigações em
reparar o dano, abstraindo-se o sentido negativo do conflito, tratando-o como algo natural das
relações humanas, mas com base na não violência (GOÉS; BOURGUIGNON; GRAF, 2019).
O criminologista norueguês Nils Christie (2009), um dos grandes defensores da Justiça
Restaurativa, enfatiza que o papel central da vítima e da sociedade foi subtraído pelo Estado nos
processos criminais, sendo que acabou por excluir, quase na sua totalidade, a participação das vítimas
e da sociedade e a possibilidade delas contribuirem de forma ativa para realização da justiça e para a
reparação dos danos que sofreram com a prática do crime.
O professor Nils Christie (2007) defendia uma posição minimalista de abolicionismo penal, em
que a intervenção penal estatal deveria ser restringida ao máximo. Para ele a prisão serviria apenas
para causar dor e sofrimento ao condenado e não para recuperá-lo, além de ser cara e destrutiva.
Após visualizar as principais diferenças entre o sistema retributivo e o restaurativo, no próximo

310
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

item, será abordado sobre a aplicação da Justiça Restaurativa nas escolas, tratando os conflitos deste
âmbito e o modo como provoca mudanças na comunidade escolar e na sociedade.

3 CONFLITOS ESCOLARES E O CÍRCULO DE PAZ NA ESCOLA

Após visualizar o que foi abordado no item anterior sobre a Justiça Restaurativa, neste item será
abordado especificamente os conflitos escolares e de que maneira as práticas restaurativas podem
tratá-los, sem submeter o ofensor a uma pena cruel.
Consoante Abramovay et al. (2002), a escola e seus profissionais formam um universo capaz de
propiciar o desenvolvimento do aluno, bem como de criar condições para que ocorram aprendizagens
significativas e interações entre alunos, professores, diretores e demais membros da equipe técnica
que favorecem ou não os processos informativos e de comunicação na escola. Todavia, neste ambiente
de diversidade, podem ocorrer conflitos.
Nesse sentido, constata-se que a educação vem passando por transformações, e tais mutações não
ocorrem sem os conflitos. No entanto, o grande empecilho é quando os conflitos se manifestam através
da violência nas escolas, devido ao fato de não serem tratados e assistidos com a atenção necessária.
O conflito não deve ser visto como um problema e sim como situação capaz de promover um
melhor conhecimento de si, dos outros, de nossas relações, das instituições, dos interesses, podendo
ser potencializador ou não de mudanças desde que possa ser conduzido não de forma a destruir os
laços sociais, mas, ao contrário, na sua dimensão positiva (BALAGUER, 2014).
Nesse sentido, o conflito apresenta-se como natural e inerente ao ser humano, visto que não é
algo necessariamente ruim, tendo em vista que há entendimento de que o conflito possui aspectos
positivos, considerando que “Uma sociedade sem conflitos é estática” (MORAIS; SPENGLER, 2019, p. 47).

O conflito é uma forma social possibilitadora de elaborações evolutivas e retroativas no concernente


a instituições, estruturas e interações sociais, possuindo capacidade de constituir-se num espaço
em que o próprio confronto é um ato de reconhecimento, produzindo simultaneamente, uma
transformação nas relações daí resultantes. Desse modo o conflito pode ser classificado como
um processo dinâmico de interação humana e confronto de poder no qual uma parte influência e
qualifica o movimento da outra (MORAIS; SPENGLER, 2019, p. 47-48).

Com efeito, sendo o conflito trabalhado de maneira correta pode resultar em aprendizado
e evolução. Para tanto, ele deve ser bem tratado. Sendo o conflito não solucionado, forma-se-à a
chamada “espiral do conflito”, ideia desenvolvida pelos autores Rubin e Pruitt (1986) e Kriesberg
(1998), significa que o conflito não resolvido, forma um círculo vicioso de ação e reação, em que a
cada reação torna-se mais severa e violenta a ação. Desse modo, instaura-se uma espiral de conflitos,
que é constantemente alimentada por novas reações.
Hodiernamente, verifica-se que os conflitos escolares vêm preocupando a comunidade escolar,
os pais e a sociedade. É de notório conhecimento, ou seja, senso comum de que a violência está
presente nas salas de aula das escolas brasileiras. A mídia externa tal fato, pois são comuns relatos
de ameaças, intimidações ou até mesmo agressões entre alunos ou destes contra professores.

Ao definirmos conflito como o resultado da diferença de opinião ou interesse de pelo menos duas
pessoas ou conjunto de pessoas, devemos esperar que, no universo da escola, a divergência de
opinião entre alunos e professores, entre alunos e entre os professores seja uma causa objetiva de
conflitos. Uma segunda causa de conflitos é a dificuldade de comunicação, de assertividade das
pessoas, de condições para estabelecer o diálogo. (CHRISPINO, 2009, p. 16).

Este cenário preocupa ainda mais pelas novas formas de violência, a idade cada vez menor dos
alunos envolvidos, as ações de agentes externos à escola, o acúmulo de situações de conflito não
resolvidas, tudo isso gera uma sensação de ameaça no âmbito escolar (BALAGUER, 2014).
Conforme uma pesquisa realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) sobre violência em escolas com mais de 100 mil professores, o Brasil lidera o
ranking de agressões contra docentes. Dos professores ouvidos, 12,5% afirmaram ser vítimas de
agressões verbais ou ameaças de alunos (D’AGOSTINI, 2019).
311
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Segundo Santana (2011, p. 56), “por ser a violência um problema da sociedade como um todo, particular-
mente quando atinge determinados patamares de intensidade, ela repercute logicamente no meio escolar, de
várias maneiras e por várias razões.” Desse modo, pode-se inferir que a violência na escola é um tema do nosso
cotidiano e recorrente, que afeta a interação entre os principais sujeitos da comunidade escolar (direção, profes-
sores, alunos e funcionários) e produz reflexos negativos no ambiente de aprendizagem (SANTANA, 2011).

Os contextos sociais complexos e violentos que influenciam o dia a dia no âmbito escolar
retratam inúmeros fatores, desde situações inerentes ao próprio ambiente escolar, como de
outras circunstâncias relacionadas a jogos de poder, dificuldades de relacionamento ou mesmo o
reflexo de problemas familiares, financeiros, dependência química, preconceitos, desrespeito às
diversidades, e tantos outros (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2016, p. 17).

Os conflitos nas escolas atingem pessoas e bens materiais. Contra estas, as infrações mais
comuns envolvem: desacato aos professores, brigas entre os discentes, porte ou consumo de bebidas
alcoólicas e drogas, invasões, porte de arma de fogo e ameaças, insultos, indisciplinas em sala de
aula e bullying. Já contra aqueles, ocorrem os estragos, isto é, as depredações, pichações, danos a
veículos, roubos e furtos (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2016).
Assim, diante deste ambiente violento, nota-se a necessidade romper com o paradigma da
punição do infrator e dar a ele a oportunidade de reparar o dano e reeducá-lo, sendo que diante das
condições das unidades de cumprimento de medidas socioeducativas, sabe-se que o infante não
será ressocializado, além de ser submetido à condições degradantes de sobrevivência, violando seus
direitos humanos fundamentais.
Desse modo, se a escola punir os alunos que cometem infrações dentro dela, somente aumentará
a dor e sofrimento e não se resolverá o conflito, então é proposto um modelo de conciliação, abrindo
para um diálogo em que todos exponham suas emoções e angústias, podendo compreender, ambas
as partes e os docentes da escola, as razões dos conflitos estarem acontecendo (JUNIOR; LIMA, 2015).
Com o intuito de modificar este quadro, surge a Justiça Restaurativa que conforme Martello
(2018, p. 173) busca “identificar todo um contexto diante de uma situação problema, o que permite
que se concretize mais a função ressocializadora, diminuindo a reincidência e almejando a reparação
do dano como foco central”.
Os conflitos que ocorrem no ambiente escolar, muitas vezes acabam desaguando no sistema
judiciário, contribuindo para o superlotamento das varas de infância e juventude. Com as práticas
restaurativas, o menor infrator tem a oportunidade de reparar o dano e dialogar com a vítima, sem
ser submetido ao rito do judiciário.
Impende destacar que o início da Justiça Restaurativa na Nova Zelândia aconteceu no âmbito
escolar, onde foi detectada a exclusão dos alunos aborígenes, o que fazia com que estes fossem os
alunos mais violentos. Após o sucesso no sistema escolar, a Justiça Restaurativa disseminou-se em
geral como modelo judicial (JUNIOR; LIMA, 2015).
Na Colômbia, a Justiça Restaurativa também se iniciou em instituições escolares se disseminando
posteriormente. A Colômbia é um avanço na Justiça Restaurativa, não obstante o país apresente
uma escola de formação de mediadores/facilitadores, chamada de “Escola do Perdão e Reconciliação”
(ESPERE) (JUNIOR; LIMA, 2015).
Ademais, a violência na escola implica na evasão escolar e na desmotivação dos professores.
Estabelecer a cultura da paz nas escolas, como forma de tratamento dos conflitos e enfrentamento
da violência surge como meio consensual de resolução de conflitos, e também forma de prevenção
desses conflitos (MARTINS; MARQUES, GUIMARÃES, 2016).
Cria-se a necessidade do conflito ser sinônimo de aprendizagem na escola, pois conforme já visto
as consequências do não tratamento adequado do conflito escolar pode gerar desde a desmotivação
do professor até consequências mais drásticas, como a evasão escolar. Este conjunto de consequências
negativas são maléficas e prejudicam todos os alunos, pois um profissional desanimado não cativa
seus alunos pela busca ao conhecimento.
No procedimento restaurativo, ocorre o encontro, podendo haver a reparação do dano e a
transformação das pessoas. A restauração do convívio educacional ajudaria a promover a harmonia
dos alunos, professores e demais funcionários da escola, quebrando com o paradigma da busca

312
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

insaciável pela punição (JUNIOR; LIMA, 2015).


Para a implementação das práticas restaurativas na escola é muito importante a capacitação dos
membros da comunidade escolar, sendo preciso compreender todo o contexto familiar, psicológico e
social do infrator para lidar com o conflito, pois pode esconder uma gama de motivos que contribuem
para aquele comportamento indisciplinado e agressivo. As situações externas, influenciam na vida escolar
do infante. Considerando que uma sólida formação é fundamental para o êxito da Justiça Restaurativa.
Portanto, a Justiça Restaurativa vem se mostrando uma ferramenta apta na solução de conflitos
escolares, tendo em vista todas as peculiaridades. Embora, seja ínfima a sua aplicação, pode-se
vislumbrar um campo fértil para a sua aplicação nos ambientes escolares brasileiros.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo evidencia como a Justiça Restaurativa trata os conflitos, também como auxilia
a romper com o paradigma da punição, principalmente na seara da infância e juventude, uma vez que
no senso comum, os infantes ficam impunes quando cometem algum ato infracional, devido ao fato
de não serem submetidos ao rito previsto no Código Penal e de Processo Penal, mas sim ao Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Buscou-se apresentar o sistema de cumprimento de medidas socioeducativas no Brasil, bem
como as diferenças entre o modelo de justiça restaurativo e o retributivo, traçando também uma
abordagem histórica de como tais modelos surgiram, dando enfoque maior para o modelo restaurativo
e seus principais aspectos. Também, abordou-se acerca da conflituosidade escolar e a aplicação das
práticas restaurativas neste campo.
Partindo do problema de pesquisa proposto, se a Justiça Restaurativa pode ser considerada
uma política pública para a resolução de conflitos escolares quebrando com o paradigma da punição,
pode-se concluir que sim, uma vez que é uma ferramenta apta para tanto. O estudo realizado cumpriu
com o objetivo proposto e seguindo a metodologia escolhida respondeu ao problema apresentado.
Assim, observa-se que pela Justiça Restaurativa é possível pacificar os ambientes escolares
e prevenir a violência, de uma forma saudável, com harmonia através do diálogo, provocando
uma mudança na cultura jurídica da punição. Melhorando, portanto, o ensino e a aprendizagem,
valorizando os educadores, tornando as salas de aula em ambientes pacíficos de harmonia e diálogo
e contribuindo para a melhoria da educação.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A MEDIAÇÃO DE LUIS ALBERTO WARAT


E SUA APLICABILIDADE NA ALIENAÇÃO PARENTAL:
UM CAMINHO (IM)POSSÍVEL NA (RE)CONSTRUÇÃO
DOS LAÇOS FAMILIARES

Francisco Ribeiro Lopes154


Andressa Laste155

RESUMO: O trabalho tem por objetivo central abordar a mediação de Luis Alberto Warat e sua
aplicabilidade nas questões referentes a alienação parental. Destaca-se que o tema supra é delicado
quando tratado no Direito de Família e que está ganhando cada vez mais notoriedade no cenário
brasileiro. Diante disso, o artigo também explanará acerca do instituto do poder familiar, uma vez
que este elenca deveres e obrigações dos pais com os filhos, como por exemplo, assegurar a criança
ou ao adolescente à convivência familiar e uma vida digna. Assim, o trabalho não tem objetivo de
encontrar respostas, mas sim fomentar novas perspectivas nas questões de alienação parental bem
como fomentar um olhar mais humano nas relações.

Palavras-chave: Alienação Parental. Mediação. Poder Familiar. Waratiana.

INTRODUÇÃO

É de extrema importância que o Ordenamento Jurídico acompanhe as inúmeras e intensas


transformações que ocorrem na sociedade e a síndrome da Alienação Parental é um exemplo dessas
questões que vem ganhando cada vez mais destaque no cenário brasileiro, haja vista que é um dos
temas mais delicados em pauta.
A alienação consiste na deturpação que um genitor faz sobre a imagem do outro perante o seu
filho(a). Todavia, o(a) genitor(a) que pratica o ato não leva em consideração os efeitos psicológicos e
emocionais negativos que pode provocar na relação do(a) filho(a) com o outro pai/mãe.
Perante a delicadeza do assunto e a sua gravidade na formação cognitiva do(a) filho(a) que é
vítima do ato, o Ordenamento Jurídico Brasileiro criou uma Lei para regulamentar a situação. Todavia,
ela não se mostrou inteiramente eficaz a ponto de sanar e evitar de forma total a conduta. Apesar
dos dispositivos da Lei elencarem meios que caracterizem a prática da alienação, ela ainda apresenta
lacunas no tocante a sua disseminação.
O Poder Judiciário, ao ser acionado quando deparado com a prática da síndrome da alienação
parental, acaba, por vezes, por agravar ainda mais a situação, uma vez que a simples suspeita do
ato pode ocasionar algo ainda mais grave.Diante desse cenário, cabe perguntar de que outra forma o
conflito pode ser solucionado para que ele não venha a se tornar algo ainda mais grave?
Com a finalidade de evitar que isso aconteça, destaca-se a mediação como forma de prevenção

154 Mestrando em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI Santo Ângelo. Bolsista
CAPES; Especialista em Direito Previdenciário pela Escola da Magistratura Federal- ESMAFE e Universidade de Caxias do Sul-
UCS; Especialista em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito – EBRADI; Graduado em
Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria – Fadisma. Membro do grupo de estudo de pesquisa intitulado Conflito,
Cidadania e Direitos Humanosvinculado ao CNPq liderado pelo Professor Dr. João Martins Bertaso; Membro do Grupo de
Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS- UNIRIO) liderado pela Prof. Dra. Edna Raquel Hogemann; Mem-
bro da Academia de Letras e Artes Sepeense - ALAS ocupa a cadeira de número 15- Carlos Drummond Andrade; Mediador
Extrajudicial; Professor de Cursos Preparatórios para carreira pública. E-mail: francisco_l@yahoo.com.br
155 Pós-Graduanda em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus; Espe-
cialista em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito - EBRADI; Graduada em Direito pela
Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA. Pesquisadora do Grupo de Estudos As Relações de Trabalho no Século XXI e
os Novos Desafios na Sociedade em Rede (RETRADE) da Universidade Federal de Santa Maria cadastrado na plataforma de
pesquisas CNPq. Email: andressalaste@hotmail.com

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e até mesmo de tratamento para esse conflito, uma vez que ela consiste na criação de uma atmosfera
de segurança e conforto para que os envolvidos no conflito se sintam confortáveis e seguros para
dialogar e (possivelmente) solucionar a situação.
A pesquisa assenta-se no estudo bibliográfico, o método de abordagem dedutivo de acordo com
o entendimento clássico, é o método que parte do geral e, a seguir, desce ao particular e o método
de procedimento monográfico onde parte do princípio de que o estudo de um caso em profundidade
pode ser considerado representativo de muitos outros ou mesmo de todos os casos semelhantes.
Nesse contexto, a mediação de Luis Alberto Warat pode trazer possíveis e viáveis transformações
dos conflitantes para os mesmos encontrarem a melhor decisão dos seus conflitos.

1 UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE O PODER FAMILIAR: O AFASTAMENTO DO SENTIDO DE


“DOMINAÇÃO” E A APROXIMAÇÃO DO SENTIDO DE “OBRIGAÇÃO”

Diante das inúmeras transformações sociais que ocorrem, o Ordenamento Jurídico deve oferecer
respostas e soluções rápidas para as questões que a sociedade apresentar. Desse modo, o Legislador
ao redigir a Constituição Federal no ano de 1988 ampliou os deveres do Estado para com o cidadão.
A Carta Magna passou a ser o fundamento de todo o Direito Nacional, uma vez que abrangeu
questões sociais e trouxe uma visão protetora do cidadão, a qual passou a influenciar, de forma
direta, o ordenamento infraconstitucional, uma vez que os demais Códigos devem necessariamente
respeitar os princípios basilares que norteiam a Constituição. Nesse sentido, Paulo Lôbo afirma que

A perspectiva da Constituição, crisol das transformações sociais, tem contribuído para a renovação
dos estudos do direito civil, que se nota, de modo alvissareiro, nos trabalhos produzidos pelos
civilistas na atualidade, no sentido de reconduzi-lo ao destino histórico de direito de todas as
pessoas humanas (2013, p. 321).

Como exemplo dessas transformações sociais menciona-se o Instituto do Poder Familiar, que na
vigência do Código Civil Brasileiro de 1916 possuía um sentido de dominância dos pais perante seus
filhos. Todavia, com a promulgação da Constituição Cidadã, o sentido de dominação foi afastado pelo
sentido de obrigação. Em respeito aos princípios basilares norteadores da Constituição Federal de
1988 e em acompanhamento dos avanços sociais, é que surgiu, em 1990, o Estatuto da Criança e do
Adolescente trazendo deveres e obrigações dos pais para com os filhos (DIAS, 2016).
A Emenda Constitucional nº 65 de 2010, elencou no artigo 227 da Constituição Federal Brasileira
de 1988 que é dever da família e do Estado assegurar a criança e ao adolescente as condições mínimas
para se viver com dignidade. Vejamos

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,


com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão (BRASIL, 2010).

Assim, se pode observar que é dever principal da família zelar e amparar pelos cuidados de seus
filhos para que esses possuam condições dignas de existência, uma vez que a própria Constituição Federal
de 1988 elencou o principio da Dignidade da Pessoa Humana como um dos fundamentos do Estado.
Todavia, quando os cônjuges decidem por fim ao relacionamento, seja por meio da separação de
fato ou do divórcio, essa separação não pode ocasionar a separação dos filhos menores também, uma
vez que o principio do melhor interesse da criança deve prevalecer sobre qualquer outro interesse
dos pais em conflito (LÔBO, 2011). Desse modo, o artigo 226, § 5º da Constituição Federal de 1988,
dispôs que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos de forma igualitária
pelo homem e pela mulher. Logo, percebe-se que a autoridade parental cabe aos dois genitores.
Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2016, p.786) afirma que

Como o poder familiar é um complexo de direitos e deveres, a convivência dos pais não é requisito
para a sua titularidade, competindo aos dois seu pleno exercício. Têm ambos o dever de dirigir a

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criação e a educação, conceder ou negar consentimento para casar, para viajar ao exterior, mudar
de residência, bem como ambos devem representá-lo e assisti-lo judicial ou extrajudicialmente [...]

Assim, percebe-se que ambos os genitores tem direitos e deveres perante a criação de seus
filhos, uma vez que compete a ambos o seu pleno exercício. Além disso, a proteção dos filhos enseja
a centralidade da tutela jurídico-familiar na pessoa das crianças (LÔBO, 2011).
Todavia, ao ocorrer à separação de fato ou o divórcio dos genitores e estes não decidirem sobre a
guarda dos seus filhos, ou seja, sobre o modo de convivência que cada genitor terá com eles, caberá ao
juiz assegurar esse direito e estipular o melhor meio de convivência a ser adotado (LÔBO, 2011). Isso
por que a dissolução do vínculo conjugal não pode comprometer a continuação dos vínculos parentais,
uma vez que o exercício do poder familiar em nada é afetado. É o que afirma Maria Berenice Dias

Quando existem filhos, a dissolução dos vínculos afetivos dos pais não se resolve simplesmente
indo um para cada lado. O fim da conjugalidade não afeta nem os direitos e nem os deveres de
ambos com relação à prole. O rompimento do casamento ou da união estável dos genitores não
pode comprometer a continuidade dos vínculos parentais, pois o exercício do poder familiar em
nada é afetado ( 2016, p.877).

Tendo em vista que o Poder Familiar não é afetado quando ocorre a separação ou o divórcio dos
genitores, pode-se afirmar que nenhum genitor tem mais ou menos direitos do que o outro, haja vista
o Poder Familiar pertencer a ambos.
Assim, quando da ocorrência da separação ou do divórcio é tendencioso que se mantenha o
status quo, ou seja, é tendencioso que se admita os filhos com quem se encontre, até que o juiz
resolva a situação procedimental da ação de divórcio, uma vez que se encontra autorizado a modificar
o caso quando for comprovada a necessidade ou existência de motivos graves (GONÇALVES, 2017).
Nesse sentido, o artigo 1.583 do Código Civil Brasileiro, dispôs que nos casos em que o juiz
escolher pela guarda compartilhada o tempo de convívio dos filhos com os seus genitores deve ser de
forma equilibrada entre ambos, com o intuito de se manter as condições fáticas do interesse da prole.
Importante mencionar que o exercício exclusivo da guarda, quando da guarda unilateral, não retira e
nem limita o poder familiar do outro genitor, pois somente na falta ou impedimento de um dos pais
é que o outro genitor exercerá exclusivamente o poder familiar (DIAS, 2016). Conforme o que dispõe
o referido Código aquele genitor que não ficou com a guarda dos filhos tem o direito de visitá-los.
Quando se fala em guarda dos filhos e visitações, pressupõe-se que os pais já não residam mais
juntos. Todavia, o rompimento do vínculo familiar não deve comprometer a continuidade das relações
afetivas dos filhos para com os seus genitores (DIAS, 2016). Todavia, essa é uma situação bastante comum
e corriqueira entre os casais que se separam ou divorciam, pois em alguns casos, o ex cônjuge magoado
com o fim do relacionamento procura afastar o (a) filho (a) daquele genitor que pediu pela separação.
Essa conduta é denominada “Síndrome da Alienação Parental” e será abordada a seguir.

2 SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL: O ROMPIMENTO (IN)VOLUNTÁRIO DOS LAÇOS


AFETIVOS COM O GENITOR

A conduta que um genitor tem contra o outro ao deturpar a sua imagem perante os seus filhos é
denominada de “Alienação Parental”. Essa expressão foi utilizada no ano de 1985 por Richard Gardner
ao se referir às ações de guarda de filhos, nas quais se constatava que o pai ou a mãe induzia o menor
a romper os laços afetivos com o outro genitor (GONÇALVES, 2017).

A primeira definição da Síndrome da Alienação Parental – SAP foi apresentada em 1985, por Richard
Gardner, professor de psiquiatria clínica no Departamento de Psiquiatria Infantil da Universidade
de Columbia, nos Estados Unidos da América, a partir de sua experiência como perito judicial.
Gardner denominou síndrome, pois buscava sua inclusão no rol do DSM-IV (manual de diagnóstico
e estatísticas dos transtornos mentais), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana, como
forma de facilitar seu tratamento (MADALENO, 2018, p. 42).

Conforme Gonçalves (2017, p. 385), essa indução geralmente consistia quando

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[...] um deles, magoado com o fim do casamento e com a conduta do ex-cônjuge, procura afastá-lo
da vida do filho menor, denegrindo a sua imagem perante este e prejudicando o direito de visitas.
Cria-se, nesses casos, em relação ao menor, a situação conhecida como “órfão de pai vivo”.

Richard Gardner, ao elaborar o conceito da Síndrome da Alienação Parental, dispôs que ela “[...] é um
fenômeno resultante da combinação de lavagem cerebral com contribuições da própria criança, no sentido
de difamar o genitor não guardião, sem qualquer justificativa, e seu diagnóstico é adstrito aos sintomas
verificados no menor.” (MADALENO, 2018, p.43). Essa conduta descrita por Gardner é bastante corriqueira
entre os casais que se separam, pois é normal que um deles fique magoado e deprimido com o término do
casamento e com a conduta que o (a) ex-cônjuge apresentou, e, assim, procura afastá-lo da vida do filho
menor e para tanto acaba por denegrir a sua imagem perante o (a) filho (a) (GONÇALVES, 2017).
A expressão “Alienação Parental” vem ganhando cada vez mais destaque no cenário brasileiro,
uma vez que consiste em um dos temais mais delicados tratados no ramo do Direito de Família.
O artigo 2º da Lei 12.318 de 2010 dispõe sobre a Alienação Parental, no qual preceitua que a sua
caracterização ocorre quanto acontece a

[...] interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por


um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade,
guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à
manutenção de vínculos com este (BRASIL, 2010).

O Ministério Público do Paraná caracteriza a prática da Alienação Parental como

[...] toda interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente


promovida ou induzida por um dos pais, pelos avós ou por qualquer adulto que
tenha a criança ou o adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância.
O objetivo da conduta, na maior parte dos casos, é prejudicar o vínculo da
criança ou do adolescente com o genitor. A alienação parental fere, portanto, o
direito fundamental da criança à convivência familiar saudável, sendo, ainda, um
descumprimento dos deveres relacionados à autoridade dos pais ou decorrentes
de tutela ou guarda (2019).

Na legislação brasileira, a conotação de “síndrome” não é adotada, pois ela não consta na
Classificação Internacional das Doenças e também por não dizer respeito ao conjunto dos sintomas que
são provocados pela Alienação Parental em desfavor de um dos genitores, haja vista que a legislação
do país trata somente da exclusão em si e não de seus sintomas e consequências (MADALENO, 2018).
Maria Berenice Dias afirma que a tentativa de um dos pais de desqualificar o outro sempre existiu,
porém, apenas recentemente é que o tema começou a ganhar notoriedade no cenário brasileiro.

Muitas vezes, quando da ruptura da vida conjugal, se um dos cônjuges não consegue elaborar
adequadamente o luto da separação, com o sentimento de rejeição, ou a raiva pela traição, surge o
desejo de vingança que desencadeia um processo de destruição, de desmoralização, de descrédito
do ex-parceiro. Sentir-se vencido, rejeitado, preterido, desqualificado como objeto de amor, pode
fazer emergir impulsos destrutivos que ensejam desejo de vingança, dinâmica que faz com que
muitos pais se utilizem de seus filhos para o acerto de contas do débito conjugal (2016, p. 908).

Devido a essa conduta prejudicial que um dos genitores pratica perante o outro é que a Lei da
Alienação Parental surgiu como uma forma de caracterizar a conduta, além de mencionar uma série de
comportamentos que se enquadram na referida síndrome, para que o seu reconhecimento seja facilitado
(GONÇALVES, 2017). Conforme mencionado anteriormente, o artigo 2º da Lei apresenta o conceito e
a caracterização do ato e o parágrafo único do mesmo artigo apresenta, de forma exemplificativa, as
condutas que se enquadram no tipo, tais como dificultar o exercício da autoridade parental; dificultar
o contato da criança ou adolescente com o genitor; realizar campanha de desqualificação da conduta
do genitor no exercício da paternidade ou maternidade, dentre outras.
Diante disso, pode-se dizer que o início da síndrome tem por ponto de partida as disputas
judiciais pela guarda dos filhos menores, pois essas disputas tendem a despertar sentimentos de

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traição, rejeição, culpa e abandono (MADALENO, 2018).A referida Lei que trata da Alienação Parental
deixou claro que a desqualificação de um dos genitores pelo outro é um dos atos da síndrome, uma
vez que o genitor que a pratica realiza uma deturpação da imagem do outro.

Um dos genitores leva a efeito verdadeira “lavagem cerebral”, de modo a comprometer a imagem
que o filho tem do outro, narrando maliciosamente fatos que não ocorreram ou não aconteceram
conforme descrito pelo alienador. [...] Ao conseguir impressioná-los, eles sentem-se amedrontados
na presença do outro. Ao não verem mais o genitor, sem compreenderem a razão do seu afastamento,
os filhos sentem-se traídos e rejeitados, não querendo mais vê-lo(DIAS, 2016, p. 908).

Nesse sentido, quanto ao aspecto sintomático, Madaleno afirma que um dos primeiros sintomas
da síndrome

[...] se dá quando o menor absorve a campanha do genitor alienante contra o outro e passa,
ele próprio, a assumir o papel de atacar o pai alienado, com injúrias, depreciações, agressões,
interrupção da convivência e toda a sorte de desaprovações em relação ao alienado. Os menores
passam a tratar seu progenitor como um estranho a quem devem odiar, se sentem ameaçados
com sua presença, embora, intimamente, amem esse pai como o outro genitor (2018, p. 43-44).

Ainda sobre a questão sintomática, o Ministério Público do Paraná afirma que

A observação de comportamentos, tanto dos pais, avós ou outros responsáveis, quanto dos filhos,
pode indicar a ocorrência da prática. No caso das crianças e dos adolescentes submetidos à
alienação parental, sinais de ansiedade, nervosismo, agressividade e depressão, entre outros,
podem ser indicativos de que a situação está ocorrendo. No caso dos pais, avós ou outros
responsáveis, a legislação aponta algumas condutas que caracterizam a alienação parental (2019).

Atravésda conduta alienante, o filho menor passa a ser compelido a odiar um dos seus genitores
através da campanha de desmoralização que o outro genitor promove e com isso, o menor vai se afastando
de quem ele ama e de quem também o ama (DIAS, 2016). Mediante toda essa trama em que um dos
genitores danifica a imagem do outro, é visível de que os maiores prejudicados são os filhos menores,
todavia, eles não podem terem o sentimento de que são objetos de vingança em face dos ressentimentos
que um genitor tem pelo outro e não devem sofrer as consequências desse ato (DIAS, 2016).

Trata-se de uma campanha liderada pelo genitor detentor da guarda da prole, no sentido de
programar a criança para que odeie e repudie, sem justificativa, o outro genitor, transformando a
sua consciência mediante diferentes estratégias, com o objetivo de obstruir, impedir ou mesmo
destruir os vínculos entre o menor e o pai não guardião, caracterizado, também, pelo conjunto
de sintomas dela resultantes, causando, assim, uma forte relação de dependência e submissão do
menor com o genitor alienante. E, uma vez instaurado o assédio, a própria criança contribui para
a alienação (MADALENO, 2018, p. 43).

Tendo em vista que o alienador pode ser o pai ou a mãe ou até mesmo o companheiro de seus
genitores, a lei da Alienação Parental estendeu seus efeitos não somente aos pais, mas também
aos avós e quaisquer outras pessoas que detenham a guarda do menor e que pratiquem a conduta
alienante (GONÇALVES, 2017).Assim, o artigo 3º da lei que trata da alienação parental, dispõe que
a pratica do ato de alienação fere direito fundamental da criança ou do adolescente de ter uma
convivência familiar saudável, uma vez que prejudica a realização do afeto nas relações com o genitor.
A referida Lei também trouxe esclarecimentos sobre como o Poder Judiciário pode agir e atuar
para reverter a situação de alienação quando diagnosticada, pois o juiz pode afastar o filho do cônjuge
alienante, alterar a guarda e o direito de visitação ou até mesmo impedir esse direito e, como última
solução para parar com a conduta alienante, pode destituir ou suspender o exercício do poder familiar
(GONÇALVES, 2017).
Quando a suspeita da Síndrome da Alienação Parental chega ao conhecimento do Poder
Judiciário, os cuidados devem ser grandes, uma vez que a mera suspeita quando averiguada com
mais profundidade, pode mostrar que a Síndrome não estava presente e isso pode ocasionar danos
na criança ou adolescente perante a imagem do genitor em investigação.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Os juízes de família devem ter informação suficiente acerca dos elementos que identificam a síndrome,
para, assim que surgirem os sintomas, ordenarem rigorosa e compulsória perícia psicossocial. [...]
É importante atender a criança inicialmente sozinha, a fim de obter algumas informações sobre o
modo como ela se sente a respeito do genitor ausente, bem como atender separadamente tanto
o genitor supostamente alienador quanto o alienado. Eventualmente, o psicólogo deve atender a
criança e o genitor ausente em conjunto, com o intuito de mudar, por meio de psicoterapia, tanto
atitudes e comportamentos racionais, quanto sentimentos (MADALENO, 2018, p. 61).

A denúncia de alguns episódios, como abuso sexual ou violência, por exemplo, é difícil de ser
identificada como verdadeira, uma vez que os ex-cônjuges se utilizam delas motivados pelo espírito
de vingança, como meio de pôr fim de vez ao relacionamento deste com o (a) filho (a) menor. Assim,
em algumas situações a mediação surge como uma importante alternativa para solucionar tais casos,
uma vez que a sua função é (re) estabelecer a comunicação entre as partes, pois ela atua como
facilitadora de diálogos (MADALENO, 2018).

3 A MEDIAÇÃO DE LUIS ALBERTO WARAT COMO INSTRUMENTO VIÁVEL NA(RE)CONSTRUÇÃO


DOS LAÇOS AFETIVOS FAMILIARES

A mediação de Luis Alberto Warat possui um papel fundamental na transformação e (re)construção


dos laços afetivos proporcionando uma reflexão aos atores sociais que dela participam sendo uma
ferramenta de transformação dos envolvidos.
É com a mediação livre que se empodera os sujeitos e promove o desenvolvimento dos
conflitantes sem a necessidade de institucionalização criada pelo ordenamento jurídico, ou seja,
o mediador e os atores conflitantes devem e necessitam estar livres para um diálogo propositivo,
evolutivo e transformador.
Importante mencionar, que a mediação lida com pessoas que possuem sua própria visão a respeito
do objeto da controvérsia, defendem suas posições, expõem aspectos que afloram no conflito que estão
enfrentando, criando uma perspectiva pessoal, parcial, limitadora e também sem limitações de qualquer
forma. Nesse sentido, o professor e jurista Luis Alberto Warat destaca que a mediação é o instrumento
que proporcionará a criação de uma atmosfera de confiança e respeito entre os sujeitos onde o estado
emocional das pessoas será poupado, diferente do que ocorreria em um processo judicial, por exemplo.
É com essa perspectiva que Warat elenca uma das palavras e sentimentos mais buscados e sentidos
pelo autor, o amor, que possui como essência o ser humano ser livre para buscar sua própria satisfação.
Para Warat (2004, p. 75)

A mediação, como terapia do reencontro amoroso, parte da ideia de que os processos de amor e desamor
se encontram na vida de toda pessoa; que os vínculos afetivos formam parte de sua socialização e
contribuem para o seu bem estar, ou sua infelicidade no dia a dia, sendo um componente estrutural no
desenrolar dos conflitos e na possibilidade de estabelecer com o outro uma diferença neles.

A forma de ver a mediação na visão de Warat é empoderando os sujeitos e fomentando a mudança,


ampliando e estimulando novas condutas para almejar novas e viáveis expectativas realizando uma
verdadeira transformação social. Destaca-se que a mediação de waratiana é além de procedimentos,
mas sim é o resgate do ser na sua essência proporcionando uma evolução pessoal, social e coletiva
havendo uma amplitude nas relações humanas.
Nesse sentido, pode-se atrelar à mediação uma visão humana de mundo, conforme elucida Warat:

É digno de destacar-se que a estratégia mediadora não pode ser unicamente pensada em termos
jurídicos. É uma técnica ou um saber que pode ser interpretado nas mais variadas instancias.
Estou pensando nas possibilidades da mediação na psicanálise, na pedagogia, nos conflitos
policiais, familiares, de vizinhança, institucionais e comunitários em seus vários tipos. Em termos
de autonomia, cidadania, democracia e direitos humanos, a mediação pode ser vista como a
melhor forma de realização (WARAT, 2018, p. 17).

Assim, percebe-se que a preocupação em ensinar e transmitir o conhecimento amplo (social e humano)
foram características e preocupações que habitavam o cotidiano do professor supracitado havendo a

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

necessidade de utilização de outras áreas do conhecimento para tratar os conflitos de forma humana.
Diante disso, pode-se dizer que a síndrome da alienação parental

[...] não pode ser vista por uma abordagem exclusivamente judicial, o que pode, inclusive,
agravar o problema, pois deve ser feita uma abordagem multidisciplinar, em que sejam aplicadas
as medidas legais juntamente com terapia e mediação interligadas, bem como os Conselhos
Tutelares, que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, estariam aptos a atuar nos casos
de abuso do poder parental (MADALENO, 2018, p. 61).

Nessa perspectiva “ressalta-se que a mediação vem com intuito de desmistificar o procedimento
tradicional realizando um papel educacional e social de extrema relevância proporcionando que os
conflitantes consigam restabelecer o diálogo e decidir a melhor decisão (os envolvidos)” (LOPES;
BERTASO, 2019, p. 2018).
Warat elucida que a reconstrução simbólica possibilita uma nova percepção frente aos conflitos,
colaciona-se:
Um trabalho de reconstrução simbólica dos processos conflitivos das diferenças que nos permite
formar identidades culturais – de nos integrar no conflito com o outro -, com um sentimento de
pertinência comum. Uma forma de poder perceber a responsabilidade que toca a cada um num
conflito gerando devir (devires) reparadores e transformadores (WARAT, 1998, p. 55).

O instituto da mediação, nesse contexto, pode ser visto como a melhor forma de realização da
autonomia, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos, constituindo as práticas sociais de
mediação em um mecanismo de exercício da cidadania, na medida em que educam e auxiliam as
partes envolvidas no conflito a tomarem decisões.
Ressalta-se que a cultura conflitual, na atualidade, nos mais diversos graus de complexidade,
mantém os conflitantes em intensos conflitos, sendo realizados diversos recursos em face da pretensão
dos mesmos. Assim, “a mediação deve levar em conta o respeito aos sentimentos conflitantes, pois
coloca os envolvidos frente a frente na busca da melhor solução, permitindo que, através de seus
recursos pessoais, se reorganizem.” (DIAS, 2016, p. 113).
Dessa forma, a mediação nas questões atinentes a alienação parental tem por finalidade uma mudança
cultural, que consiste em modificar os procedimentos adotados atualmente, ou seja, restabelece o diálogo
entre os envolvidos e fomenta a cultura da paz, sem ter que levar o conflito até o Poder Judiciário.
Dessa forma, essa humanização dos desafios da sociedade contemporânea deve ser vista como
uma possibilidade de (re)ver novas oportunidades para as situações conflituosas no que tange as
questões da alienação parental. Assim, a mediação de Luis Alberto Warat possui um papel fundamental
nas questões de alienação parental onde busca o diálogo propositivo para os sujeitos encontrem
possíveis soluções que atendam seus anseios e angústias.

4 CONCLUSÃO

A pesquisa objetivou analisar o instituto da mediação waratiana e sua contribuição nas relações
atinentes à alienação parental, bem como trazer a reflexão sobre uma nova perspectiva para sociedade
que carece e merece decisões mais equilibradas e humanizadas.
A síndrome da alienação parental acarreta um dos conflitos que vem ganhando cada vez
mais repercussão no cenário brasileiro. A Alienação Parental trata de uma verdadeira interferência
psicológica que afeta o criança e/ou adolescente envolvido, fazendo com que esse repudie aqueles
que o detenham sob sua autoridade, de forma involuntária.
É dever de a família zelar pelos cuidados dos filhos e na medida em que surgem novas relações
familiares, outras se desfazem, e assim, conflitos contemporâneos passam a existir. Imperioso
ressaltar que, no Brasil, há uma tendência de dirimir os conflitos com o método adversarial sendo
levado ao Poder Judiciário, sendo que há outros meios de tratamento.
Salienta-se que a mediação waratiana é um meio de viabilizar um novo momento para os
conflitantes, um recomeçar, contribuindo para uma possível decisão que desmistifica a cultura de
ganhador e perdedor, mas sim, realiza um novo posicionamento de que a cultura de pacificar é uma

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

benfeitoria e ganho para os atores do conflito.


Destaca-se que a forma mais adequada de trabalhar os conflitos familiares é por meio da mediação
de Warat, sendo proporcionado o fortalecimento dos laços familiares e faz com que os mediandos
assumam suas responsabilidades frente à relação familiar, assim possibilitando a continuidade de
uma saudável relação. É imprescindível que os vínculos afetivos entre pais e filhos sejam mantidos
e o fim da conjugalidade não pode afetá-los. Para tanto, é de suma importância que, ao menor dos
sinais da presença da síndrome, essa já comece a ser solucionada de uma forma amigável, a fim de
evitar agravar o problema.
Assim, conforme os ensinamentos do professor Luis Alberto Warat a mediação possui o incentivo
a cidadania com viés transformativo bem como fortalece os atores sociais ao protagonismo das
relações serem mais humanizadas e saudáveis.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição de 1891 -publicação original. Disponível em: <http://www2.camara.leg.


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323
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A MEDIAÇÃO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

Helena Schwantes156
Fabiana Marion Spengler157

RESUMO: A morosidade processual que o Judiciário enfrenta é de conhecimento de todos e torna-se


uma ameaça àqueles que da justiça necessitam, ocasionando a ineficácia na prestação jurisdicional,
nesse viés, o Código de Processo Civil (CPC) de 2015 inovou e trouxe a mediação como política pública
de autocomposição. Busca-se, com a presente pesquisa, averiguar se a mediação prevista no processo
civil brasileiro é política pública adequada para resolução de conflitos. O método de pesquisa foi o
dedutivo e a técnica de pesquisa a bibliográfica. Desse modo, verificou-se que a mediação possibilita o
tratamento dos conflitos pelos próprios litigantes, viabilizando uma resposta adequada ao litígio. Nessa
senda, a mediação se apresenta como um efetivo método de solução de litígios, pois possui o condão
de transformar um sistema que ainda está enraizado no terceiro Juiz que soluciona os seus conflitos.

Palavras-chave: Autocomposição. Código de Processo Civil. Mediação. Política Pública.

INTRODUÇÃO

O sistema processual tornou-se ineficaz devido à crise que o Poder Judiciário enfrenta, não
conseguindo prestar tutela jurisdicional adequada e atender satisfatoriamente aos litígios, deixando
evidenciado o fomento aos mecanismos alternativos. Nesse sentido, o presente trabalho versa sobre o
estudo dos métodos autocompositivos, em especial a mediação, como política pública implementada
no processo civil para resolução dos conflitos.
Através desta necessidade, o Código de Processo Civil buscou a implementação de políticas
públicas de autocomposição, em especial a mediação, que além de trazer celeridade processual, visa
a informalidade, retomando a proximidade entre a justiça e o cidadão, quebrando as barreiras do
tradicional modelo triádico de jurisdição. À vista disto, busca-se, com esta pesquisa, averiguar se a
mediação prevista no processo civil brasileiro é política pública adequada para resolução de conflitos.
O método utilizado para a concretização da pesquisa foi o dedutivo e a técnica de pesquisa a
bibliográfica, como base em livros, artigos e periódicos qualificados dentro do tema proposto.

1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE AUTOCOMPOSIÇÃO

A necessidade de implementação de políticas públicas surgiu devido à crise de efetividade


quantitativa e qualitativa que o Poder Judiciário vem enfrentando. A fim de retomar a credibilidade
que a população detinha no Judiciário, buscou-se implementar meios alternativos que possam de
forma eficiente solucionar os conflitos ocasionados pelos sujeitos das relações sociais (GIMENEZ;
KOPS; KNOD, 2016). Além disso, o Judiciário é uma “instituição que precisa enfrentar o desafio de
alargar os limites de sua jurisdição, modernizar suas estruturas organizacionais e rever seus padrões
funcionais, para sobreviver como um poder autônomo e independente” (SPENGLER, 2014, p. 17).
No entanto, “a existência da prestação jurisdicional é imprescindível para a solução justa dos

156 Estudante de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Bolsista de Iniciação Científica (PUIC/UNISC) no
Projeto de Pesquisa: “O terceiro e o conflito: o Mediador, o Conciliador, o Juiz, o Árbitro e seus papeis políticos e sociais”.
Integrante do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos”.
157 Bolsista de Produtividade em Pesquisa (Pq2) do CNPQ; Pós-doutora em Direito pela Universitàdegli Studi di Roma Tre,
em Roma, na Itália. Doutora em Direito pela UNISINOS – RS. Docente dos cursos de Graduação e Pós Graduação lato e stricto
sensu da UNISC; líder do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos” certificado pelo CNPq.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

conflitos, contudo, esta não é a única forma de resolução dos litígios existentes ou em potencial”
(SALES, 2007, p. 62). Não se intenciona substituir a clássica atividade jurisdicional pelos mecanismos
alternativos, esses métodos vêm sendo implementados apenas como forma de complementação,
disponibilizando outras possibilidades para resolução dos conflitos, com intuito de construir um
sistema pluriprocessual, com métodos adequados e eficientes para cada litígio (TARTUCE, 2008). Logo
a mediação não substitui o controle judicial, pois esta deixa livre para que as partes optem pela melhor
alternativa. Mesmo que realizada a mediação, nada impede o ajuizamento de ação na via tradicional.
Os métodos alternativos para resolução dos conflitos, vêm sendo desenvolvidos há algumas
décadas, a fim de oferecer à sociedade, alternativas que possam dar uma resposta célere aos seus
anseios, com intuito de mudar uma cultura até então enraizada no litígio, que conhece somente um
modo de jurisdição. Buscando desenvolver a cultura do diálogo onde os conflitos possam ser resolvidos
de forma pacífica, pelos próprios envolvidos, para que estes sejam os responsáveis principais pela
melhor forma de resolução de suas controvérsias (SALES, 2007).
Através desta necessidade, o CNJ elaborou a Resolução nº 125/2010, instituindo a criação da
Política Pública Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses, que tem por
finalidade “a utilização dos métodos consensuais de solução de conflitos – principalmente a conciliação
e a mediação – no Poder Judiciário” (CNJ, 2010, <http://www.cnj.jus.br>).
Os métodos consensuais de solução de conflitos, além de desafogar o Judiciário visam à
valorização dos cidadãos, concedendo a eles o encargo e a oportunidade pela solução de seus próprios
litígios e, consequentemente agradando ambas as partes conflitantes (GIMENEZ; KOPS; KNOD, 2016).
Um modelo antagônico ao tradicional método de resolução de conflitos, como expõe Spengler (2019),
pois na heterocomposição temos as partes e um terceiro que decide por elas, a figura deste terceiro
não auxilia e nem representa as partes, é um técnico que tem o poder de julgar e decidir o conflito que
lhe é apresentado. A heterocomposição está prevista na jurisdição e na arbitragem, meios conhecidos
como adversariais (ganha x perde).
Gimenez, Kops e Knod (2016, p. 23) consideram importante ainda salientar que:

[...] a autocomposição é um método alternativo de solução de litígios, não judicial, que visa
solucionar conflitos entre os próprios envolvidos, ou seja, os envolvidos vão expor suas propostas
e vão tentar chegar a um acordo para solucionar a demanda. Neste método ambas as partes devem
estar consensuadas a dispor um pouco de seus interesses até que encontrem um denominador
comum e possam celebrar um acordo dando fim a controvérsia.

Desse modo, ocorrendo a possibilidade de consenso entre os litigantes, independentemente


se for por acordo ou reconciliação, pode-se evitar mais um moroso processo judicial, ofertando aos
litigantes celeridade na resposta (SPENGLER, 2014).
Nesse viés, Sales (2007, p. 62) destaca que:

O poder Judiciário, como órgão estatal responsável constitucionalmente pela efetivação dos
direitos fundamentais por meio da solução de litígios, deve apoiar iniciativas das vias alternativas
de solução de conflitos, tendo em vista a importância de se fortalecer a sociedade por meio do
diálogo e da participação efetiva dos problemas evidenciados.

À vista disso, Spengler (2014, p. 75) expressa que “a mediação e a conciliação enquanto políticas
públicas são alternativas que pretendem mais do que simplesmente desafogar o judiciário diminuindo
o número de demandas que a ele são direcionadas”. Significa dizer que a mediação e a conciliação
visam à pacificação social, afastando-se da cultura do litígio (SPENGLER, 2014).
A mediação e a conciliação como já abordado, foram instituídas pela Resolução 125 do CNJ como
políticas públicas de tratamento adequado de conflitos, no entanto, a Resolução não faz menção as
suas diferenças, abordando ambos os institutos de maneira idêntica, sem estabelecer características
específicas (SPENGLER, 2014). Contudo há diferenças de extrema importância, pois a mediação e a
conciliação foram elaboradas para tratar diferentes tipos de conflitos, ou seja, em cada método o
profissional que operar a sessão desempenhará um expressivo papel a fim de chegar ao resultado
almejado, visto que possuem objetivos diversos (SPENGLER, 2014).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2 MEDIAÇÃO: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

A mediação propõe esse modelo alternativo, no qual se evade da rigorosa determinação das
regras jurídicas e processuais, objetivando à liberdade das partes ao tomar suas decisões, buscando
sempre reparar o mal causado ao invés de punir o causador do litígio (SPENGLER, 2017). Para Silva
(2008, p. 24), a mediação “é uma forma pacífica, tendo em vista que a decisão nasce da vontade das
pessoas que vivem o conflito, as quais encontram uma solução que melhor lhes atenda, mediante o
diálogo e de forma harmônica, com o auxílio do mediador”.
Na mediação o terceiro atua de forma imparcial, como facilitador do diálogo, intervindo com
questionamentos que direcionem as partes ao consenso. O mediador ao realizar a sessão de mediação
não pode sugerir acordos, nem aconselhar os litigantes, mantendo-se neutro, sem demonstrar juízo
de valor em relação ao litígio e a atitudes das partes (GIMENEZ; KOPS; KNOD, 2016).
Deve buscar conquistar a confiança das partes, a fim de que os mediandos consigam se sentir à
vontade para expressar seus sentimentos, pois este não deve ser visto com superioridade pelos litigantes,
pelo contrário, o mediador possui o papel de ouvir as aflições e auxiliar as partes no encaminhamento
de uma proposta que possa agradar ambos os litigantes (GIMENEZ; KOPS; KNOD, 2016).
A mediação objetiva alcançar a satisfação recíproca, no entanto, para chegar a este resultado,
o mediador deve abordar as divergências relatadas, permitindo que as partes encontrem assuntos
convergentes, com intuito de fazer com que ambos ganhem com aquele acordo – ganha-ganha.
Antagônico ao objetivo do tradicional modelo oferecido pelo Poder Judiciário para solução dos
conflitos, no qual, existem partes contrárias, autor/réu, petição inicial/contestação, onde uma parte
ganha e a outra perde a disputa (SALES, 2007).
Nesse contexto, com os ensinamentos de Spengler (2014, p. 44), é possível depreender que:

Atualmente, a mediação vem sendo discutida também porque existe a preocupação de encontrar
meios para responder a um problema real: uma enorme dificuldade de se comunicar; dificuldade
está paradoxal numa época em que a mídia conhece um extremo desenvolvimento. Nesse
contexto, no qual a necessidade de comunicação se demonstra constante, permeado por partes
que não conseguem restabelecer o liame perdido, rompido pelo litígio (cuja consequência é a
necessidade de uma comunicação ‘mediada’), surge a mediação como forma de tratamento de
conflitos que possa responder a tal demanda.

Para chegar aos resultados que a mediação visa, o terceiro que realizará a sessão deve
possuir capacitação, pois a mediação demanda conhecimentos técnicos, bem como um constante
aprimoramento dos estudos específicos. Reitera-se que em momento algum a mediação deve ser
realizada por terceiros sem capacitação, por mais, que a pessoa possua habilidades em gestão de
conflitos ou algum talento para negociação (CAHALI, 2018).
Considerando que se trata, de um método que necessita da ativa participação dos litigantes
na busca pela resolução dos conflitos, este acaba criando uma responsabilidade sob os problemas
vivenciados pelos conflitantes, apresentando uma melhora na perspectiva do acesso à Justiça e no
exercício da cidadania, fazendo com que as partes tenham controle dos seus direitos e deveres ao
realizar um acordo na sessão de mediação (SALES, 2007).
Cabe destacar ainda nas palavras de Gimenez, Kops e Knod (2016, p. 28), que a “mediação
pode tratar sobre todo o conflito ou apenas parte dele, ou seja, os envolvidos podem optar por
resolver parte do conflito por meio da mediação e outra parte no judiciário mediante o tradicional
processo”. Assim, as partes detêm autonomia, pois a mediação não deve ser imposta, o método deve
ser voluntariamente escolhido.
Contudo, há conflitos em que a mediação se enquadra como método mais adequado e outros a
conciliação. Cabe aqui referir que a mediação possui peculiaridades que a torna adequada para solucionar
litígios que envolvam sentimentos, e relações continuadas, pois ela visa que as partes encontrem meios de
retomar o diálogo que foi rompido, através da mediação busca-se demonstrar os pontos de convergência,
com intuito de amenizar os pontos de discórdia e estimular a comunicação das partes (SALES, 2007).
Embora a conciliação possua semelhança com a mediação, a principal diferença entre esses
métodos está na maneira que o terceiro conduzirá o diálogo das partes. Além do mais, utiliza-se a
conciliação em conflitos esporádicos, que não possuem sentimentos ou em que esses sejam menos

326
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

complexos. Assim o conciliador a partir da síntese do problema pode apresentar propostas às partes,
bem como deve interferir de modo a auxiliar os litigantes, para que cheguem a um consenso, ou até
mesmo poderá propor a solução do conflito (SALES, 2007).
A conciliação possui como um dos seus principais objetivos que os conflitantes alcancem de
maneira voluntária o acordo, no entanto neste método de resolução de conflitos o terceiro que realizará
a sessão de conciliação poderá inclusive sugerir propostas de acordo (SPENGLER, 2014).
Já na mediação, para Gimenez, Kops e Knod (2016, p. 27) o principal objetivo “é a busca do
consenso, e esse consenso não está ligado apenas à obtenção de um termo de acordo, mas também ao
fim do conflito”. A mediação visa à pacificação do conflito e a facilitação da retomada do diálogo, e se
este efetivamente ocorrer, o acordo pode sobrevir apenas como consequência (SALES, 2007). Inclusive
Sales (2007, p. 35) destaca que “ao se conseguir facilitar um diálogo, já se pode considerar uma mediação
exitosa, mesmo que, no momento imediato do diálogo, as partes não cheguem a uma solução”.
Em síntese, o mediador possui o papel de facilitador, tradutor e transmissor, ajuda as partes a
identificar e administrar seus sentimentos, visando restabelecer a comunicação, e, assim, espera-se
que juntos cheguem a um consenso.
Por tudo que foi exposto, além das vantagens que foram mencionadas anteriormente, Cahali
(2018, <https://proview.thomsonreuters.com>) destaca ainda que a mediação proporciona: “economia
de tempo, confidencialidade, facilidade para compreensão dos sentimentos, e emoções como parte
do processo, flexibilidade do procedimento e perspectiva de se evitar novos conflitos”.

3 A MEDIAÇÃO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

A mediação e a conciliação, apesar de suas distinções, foram previstas na mesma seção do


Código de Processo Civil, no CPC de 2015 ocorreu, uma valorização nos papéis da mediação e da
conciliação dentro da atividade judiciária, ambos os métodos foram previstos como instrumentos de
pacificação do litígio e incluídos no quadro dos órgãos auxiliares da justiça com servidores capacitados
para desempenhar esta função, sendo disciplinado a sua forma de atuação em juízo nos arts. 165 a
175 do CPC (THEODORO JÚNIOR, 2018).
O art. 165, § 3º do CPC especificou os casos em que preferencialmente será utilizada a mediação,
deste modo em casos que houver vínculo anterior entre as partes, aplicável nas relações de longa
duração, principalmente nas relações familiares, de vizinhança e societárias, visando auxiliar as partes
a encontrar uma solução consensual (CAMBI et al., 2019).
A mediação e a conciliação possuem técnicas diversas, portanto não se confundem, no entanto
ambas são capazes de levar as partes à autocomposição. O CPC estabeleceu a diferença dos institutos
nos §§ 2º e 3º do art. 165, assim enquanto o mediador apenas facilita o diálogo de forma que os
envolvidos construam a solução para o litígio, na conciliação poderá ser apresentada sugestões e
alternativas pelo conciliador cabendo as partes a sua aceitação (WAMBIER; TALAMINI, 2016). Medina
(2018, <https://proview.thomsonreuters.com>), enfatiza que:

Essas diferenças demonstram que a atuação do mediador é mais profunda, já que deverá lidar com
aspectos emocionais ou, até, sentimentais das partes, com o intuito de restaurar a relação antes
existente entre elas. Sob esse prisma, a solução obtida através da mediação tende a ser mais estável
que aquela decorrente da conciliação, já que o conciliador se ocupa de dar fim ao litígio, sem se
ocupar, necessariamente, com aspectos (psicológicos, p. ex.) que não se encontram manifestos.

O CPC também trouxe em sua cláusula geral a oportunidade de adoção de outros métodos de
solução consensual, além da conciliação e da mediação, no entanto faz menção em seu art. 3º, § 3º que a
mediação e a conciliação devem ser incentivadas (THEODORO JÚNIOR, 2018). A utilização da mediação
e da conciliação para resolução dos conflitos poderá ser tanto judicial quanto extrajudicial, o art. 165
do CPC deu ênfase a forma judicial mencionando o conciliador e o mediador enquanto auxiliares da
justiça, contudo, não excluiu ainda a possibilidade de as partes utilizar a forma extrajudicial ou até
mesmo outras formas regulamentadas por lei específica (art. 175 do CPC) (MEDINA, 2018).
A lei de mediação surgiu após a sanção do CPC de 2015, sendo que sua disciplina é ainda mais

327
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ampla, apesar disso não há, todavia, conflitos entre as normas, pois a lei 13.140/2015 é vista como
especial e, portanto, não revoga nem modifica lei geral existente, ambas devem ser interpretadas
sistematicamente (THEODORO JÚNIOR, 2018).
Nesse viés, em nenhum momento a autocomposição deverá ser interpretada como forma de
diminuição de processos que tramitam no judiciário ou como método para aceleração dos processos,
esta política pública de tratamento adequado dos conflitos possui outros valores subjacentes, dentre
eles o incentivo na participação das partes na busca da resolução do seu conflito, onde estas devem
buscar a solução que melhor atenda os seus interesses (DIDIER JÚNIOR, 2017).
Por conseguinte, com a normativa prevista no art. 167 do CPC, os mediadores e conciliadores
receberam um estímulo, pois deixam de ser mera previsão legal, tornando-se norma a ser cumprida
pelos agentes responsáveis pela atividade jurisdicional, assim, haverá o registro dos profissionais
habilitados, com indicação de sua área profissional, e estes serão inscritos no cadastro nacional e no
cadastro do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal (THEODORO JÚNIOR, 2018).
O mediador, o conciliador e a câmara privada podem ser escolhidos consensualmente pelos
interessados (art. 168 do CPC), inclusive esta escolha pode recair em algum profissional que não
esteja ainda cadastrado perante o tribunal (§ 1º, do art. 168 do CPC), assim, neste caso, será preciso
providenciar o seu cadastro (art. 167, caput, do CPC) (DIDIER JÚNIOR, 2017). Não ocorrendo acordo
entre a escolha do profissional, será distribuído entre aqueles que estão cadastrados no registro do
tribunal (art. 168, § 2º do CPC) e sempre que for recomendável poderá ser designado mais de um
mediador ou conciliador para o caso (art. 168, § 3º do CPC) (THEODORO JÚNIOR, 2018).
Ademais, é importante que a atividade de mediação e conciliação sejam remuneradas, inclusive
para que os profissionais busquem o aprimoramento (art. 169, caput, do CPC), esta remuneração será
feita pelas partes de acordo com tabela fixada pelo tribunal, conforme parâmetros estabelecidos pelo
CNJ. Contudo, nada impede que existam mediadores e conciliadores voluntários (art. 169, § 1º, do
CPC) (DIDIER JÚNIOR, 2017). Aos necessitados, será assegurada a gratuidade da mediação, mesmo se
for realizada por instituições privadas, pois conforme o art. 169, § 2º do CPC, em compensação ao
credenciamento das câmaras privadas, estas deverão suportar algumas audiências não remuneradas,
cujo percentual será determinado pelos tribunais (THEODORO JÚNIOR, 2018).
Na mediação e na conciliação também existem hipóteses de impedimento e suspeição, elas são
as mesmas aplicadas ao juiz, conforme arts. 144 e 145 do CPC, assim, caso constatada alguma das
causas, deverá ser imediatamente comunicada ao juiz da causa ou ao coordenador do CEJUSC, sendo
preferível que esta comunicação seja feita por meio eletrônico (art. 170, caput, do CPC).
Por fim, o CPC mencionou a possibilidade da criação de câmara privadas de conciliação e
mediação, a serem regulamentadas por lei específica, admitindo assim outras formas para realização
da mediação e da conciliação, que poderão ser efetivadas por órgãos institucionais ou por profissionais
independentes (art. 175, caput), no entanto estas deverão seguir as normas estabelecidas pelo código
(art. 175, parágrafo único) (THEODORO JÚNIOR, 2018).

3.1 A audiência de mediação

O magistrado ao receber a petição inicial verificará a sua admissibilidade, estando ela processualmente
completa, este emitirá um juízo positivo, determinando assim a citação do réu para comparecimento à
audiência de conciliação ou mediação, e não sendo admitido o procedimento de audiência conciliatória,
este determinará a citação do réu para que apresente contestação (BARROSO; ROSIO, 2017).
Existem conflitos que por causa de sua realidade material subjacente ao processo, não viabilizam
espaço para solução consensual ou mediada (BUENO, 2018). Em regra, “a audiência preliminar de conciliação
ou de mediação é ato integrante do procedimento comum, só não sendo observado nas causas em que a
autocomposição não for admissível nos termos da lei” (THEODORO JÚNIOR, 2018, p. 823).
À vista disso, Wambier e Talamini (2016) ressaltam que houve críticas doutrinárias a esta
normativa, pois embora algumas pretensões sejam indisponíveis, elas comportam autocomposição,
como por exemplo nas ações de alimentos, guarda de menores e nos conflitos que envolvam interesses
difusos, que possibilitam termos de ajuste de conduta.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Isto posto, ao designar a audiência de mediação ou conciliação, o magistrado observará a


necessidade mínima de trinta dias de antecedência, a fim de viabilizar a citação do réu, devendo ser
citado no mínimo vinte dias antes da data marcada. Já a intimação do autor será na pessoa de seu
advogado (THEODORO JÚNIOR, 2018; MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017a).
Por conseguinte, deverá haver um intervalo mínimo de vinte minutos entre o início de uma
sessão e o da seguinte, devendo ser observada esta regra na organização das pautas (art. 334, §
12, do CPC). Porém, com esse lapso de tempo, somente permitirá factibilidade na hipótese em que
as audiências sucessivas seriam conduzidas por diferentes pessoas, ou seja, se o juízo dispuser de
diversos conciliadores ou mediadores, pois vinte minutos, na grande maioria dos casos não é tempo
suficiente para uma tentativa séria de conciliação ou mediação (WAMBIER; TALAMINI, 2016).
Em contrapartida, a lei não estabeleceu prazo máximo para a designação da data da audiência,
pois tudo dependerá da demanda processual de cada juízo. No entanto, o judiciário brasileiro como
se sabe, possui altas taxas de congestionamento o que acaba impondo o agendamento da audiência
de conciliação ou mediação para data muito distante (MEDINA, 2018).
Entretanto a sessão de mediação conforme os termos da Lei nº 13.140/2015, pode ser designada
no despacho da petição inicial ou ser requerida pelas partes de comum acordo ao longo do processo,
em ambos os casos a mediação será realizada nos CEJUSCs (THEODORO JÚNIOR, 2018).
Contudo, o art. 334 do CPC não torna a audiência de conciliação ou de mediação obrigatória
(CAMBI et al., 2019); todavia, estabelece pressupostos para a não realização do ato, assim ambas
as partes devem expressamente manifestar desinteresse na realização da audiência, conforme art.
334, § 4º, inciso I do CPC, sendo que o autor tem o ônus de, na petição inicial, demonstrar sua
negatividade em relação a designação de audiência (art. 319, VII do CPC), já ao réu cabe por meio
de petição demonstrar desinteresse, com pelo menos dez dias de antecedência da data da audiência
(WAMBIER; TALAMINI, 2016).
No entanto, mesmo com a manifestação de desinteresse do autor, o entendimento majoritário é
de que o juiz despachará designando data e hora para a realização do competente ato, pois o autor não
tem poder de, isoladamente, evitar a audiência. Do mesmo modo, não poderá o réu unilateralmente
requerer seu cancelamento, ou seja, as partes não possuem a possibilidade de, sozinhas, impedir a
audiência. Assim, o ato somente não se realizará, se o réu aderir o desinteresse do autor em petição
anterior à data da audiência (THEODORO JÚNIOR, 2018).
À vista disso, em caso de silêncio do autor em relação à designação de audiência, deve o juiz
considerar como indicativo de vontade na realização do ato, pois, assim como o réu, também deverá o autor
expressamente dizer que não deseja a realização (art. 334, § 4º, inciso I, do CPC) (DIDIER JÚNIOR, 2017).
O mesmo conceito vale para a presença de litisconsórcio, sendo necessária a manifestação de
desinteresse de todos os litisconsortes, todos precisam fazê-lo, caso contrário, a audiência ocorrerá
(art. 334, § 6º, do CPC) (WAMBIER; TALAMINI, 2016).
Portanto, nesse contexto pode-se afirmar que:

Muito razoável que, na inicial, ele tenha depositado alguma esperança na eficácia daquele ato - e
que essa tenha se dissipado com a peremptória manifestação do réu. Vale dizer, nesse sentido,
o momento fixado para o autor manifestar o desinteresse não é preclusivo e, em princípio, não
haverá má-fé nessa sua posterior adesão à indicação de desinteresse feita pelo réu. Caberá apenas,
em qualquer caso, respeitar-se o prazo mínimo de dez dias de antecedência da audiência, previsto
expressamente para o réu, e que tem caráter cogente para as partes, pois se destina a conferir
à organização das pautas de audiência, pelo aparato judiciário, um mínimo de previsibilidade e
eficiência (WAMBIER; TALAMINI, 2016, <https://proview.thomsonreuters.com>).

Há ainda entendimentos diversos na doutrina, diante da manifestação expressa de desinteresse


do autor na petição inicial, pois, uma vez que a imposição da audiência de conciliação ou mediação
retiraria o princípio da autonomia das partes e violaria o princípio constitucional da isonomia (CAMBI
et al., 2019 apud MEDINA, 2016).
Manifestando o seu desinteresse na realização de audiência, e no caso em que a parte autora
também se demonstrou negativamente em relação a conciliação ou mediação, o prazo para o réu
apresentar contestação começa a fluir da data do protocolo que requereu o cancelamento (art. 335,
inciso II do CPC) (DIDIER JÚNIOR, 2017).

329
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Designada audiência de conciliação ou mediação, devem as partes comparecer ao ato, caso


ocorra o não comparecimento injustificados de um ou de ambos conflitantes, será considerado ato
atentatório à dignidade da justiça, passível de sanção, com multa de até dois por cento do valor
da causa ou da vantagem pretendida, revertida em favor da União ou do Estado, conforme o juízo
que o processo esteja tramitando (art. 334, § 8º, CPC) (DIDIER JÚNIOR, 2017). No entanto, o não
comparecimento do réu a audiência não configura a sua revelia, apenas, a parte que não comparecer
será sancionada com multa (WAMBIER; TALAMINI, 2016).
Ademais, o legislador disse menos do que pretendia no art. 334, § 8º, do CPC, referindo apenas
à multa para a audiência de conciliação (CAMBI et al., 2019). Theodoro Júnior (2018) explica que o
legislador buscou com a imposição da pena de multa, pressionar os conflitantes, fazendo com que
participem da audiência de conciliação ou mediação. Não sendo, portanto, necessária a realização de
acordo, apenas o dever de atender ao chamado do Judiciário, pois a multa decorre do descumprimento
da ordem de comparecimento, que viola assim o princípio da cooperação, que ambas as partes devem
estimular ao longo do processo (DIDIER JÚNIOR, 2017).
Sendo necessário, nada impede que a mediação e a conciliação ocorram em várias sessões,
podendo ser realizadas quantas forem necessárias para viabilização da solução consensual, porém o
CPC estabelece que a continuação das sessões deverá ser realizada em até dois meses, com intuito
de não prejudicar o andamento da concretização do acordo (art. 334, § 2º, CPC) (CAMBI et al., 2019).
No entanto, o art. 28 da Lei nº 13.140/2015 permite que as partes de comum acordo solicitem a
prorrogação do prazo para a conclusão do procedimento (BUENO, 2018).
Entretanto para que a audiência do art. 334 do CPC, possa alcançar resultados positivos é
necessário usar adequadamente as técnicas conciliatórias e de mediação. A audiência não poderá ser
transformada num mero ritual, ou formalismo que as partes e o juiz tentem a passar para ir adiante
com processo. Assim para que ocorra sucesso na realização da audiência, alguns aspectos deverão
ser observados: a) é necessário que o tempo seja suficiente para o desenvolvimento das técnicas de
mediação ou conciliação; b) que os juízos disponham de um quadro de mediadores e conciliadores; c)
e que estes sejam capacitados para o desempenho da atividade (WAMBIER; TALAMINI, 2016).
Ocorrendo a realização de acordo, ou seja, obtida a autocomposição das partes, este será
reduzido a termo e homologado por sentença conforme art. 334, § 11, do CPC (BUENO, 2018). A
autocomposição do litígio poderá ocorrer de modo integral, sendo neste caso resolvido o processo
com julgamento de mérito e servindo com título executivo judicial, caso ela seja apenas parcial, a
homologação do juiz recairá apenas sobre a respectiva parcela acordada, podendo o restante do
conflito ser contestado pelo réu, com prosseguimento do processo (CAMBI et al., 2019).
O sucesso ou insucesso da mediação ou da conciliação, contudo, não devem estar atrelados à
realização do acordo, pois possibilitar que as partes consigam conversar sobre o conflito, já é um
fator positivo que não pode ser ignorado. E, no entanto, ainda que não realizem o acordo naquele
momento processual, nada impede que isto ocorra posteriormente, pois muitas vezes a realização da
conciliação ou da mediação consegue reaproximar as partes, restabelecer inclusive a comunicação
que havia sido perdido entre elas (CAMBI et al., 2019).

3.2 A mediação nas ações de família

O CPC estabeleceu um capítulo para abordar as ações de família, disciplinando o procedimento


nos arts. 693 a 699, assim quando houver conflitos contenciosos de pedido de divórcio, de separação,
reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação, utilizar-se-á o procedimento
deste capítulo (art. 693, caput, do CPC). No caso destas hipóteses serem consensuais, a disciplina a
ser observada está prevista nos arts. 731 e 733 do CPC (BUENO, 2018).
Nesse viés, o CPC vem priorizando as soluções pacificadoras, principalmente a mediação e a
conciliação, as quais podem ser judiciais ou extrajudiciais, ao invés da decisão de autoridade do juiz,
que ficará adstrita somente aos casos em que não foi possível obter o consenso (THEODORO JÚNIOR,
2016). Para Spengler (2017, p. 162):

330
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Tal se dá porque a mediação familiar poderá ser uma alternativa mais vantajosa, mais próxima
e menos dolorosa de tratamento desses conflitos, justamente porque é um procedimento
interdisciplinar que pretende conferir aos seus envolvidos autonomização e responsabilização
por suas próprias decisões, convidando-as à reflexão e ampliando escolhas e alternativas.

As ações de alimentos e aquelas em que houver criança ou adolescente continuam a ser


disciplinadas por leis próprias, sendo excluído da disciplina do Código, aplicando-se o CPC apenas
o que lhe couber subsidiariamente, conforme o preceito do parágrafo único do art. 693 do CPC
(BUENO, 2018). No entanto, pode-se observar que o objeto de todas as ações do direito de família,
quando processadas sob o amparo do rito especial, podem ser submetidos a soluções consensuais
(THEODORO JÚNIOR, 2016).
Esta nova abordagem do CPC acolheu a pretensão daqueles que entendem que nele discutem-
se questões complexas e de relevância, que necessitam e merecem maior atenção, pois nestes casos
estão envolvidos diretamente a vida, a intimidade e a dignidade das pessoas, com o litígio que deverá
ser solucionado. O legislador entendeu que ocorrendo à solução do conflito pelas partes, ao invés
de ser imposta pelo juiz, poderá esta satisfazê-las de modo mais efetivo (THEODORO JÚNIOR, 2016).
Desta forma, o art. 694, caput, do CPC possibilita inclusive a participação de outros profissionais
que não sejam da área jurídica, com intuito de promover soluções consensuais e adequadas aos litígios
que envolvam o direito de família, nesse mesmo viés, o parágrafo único do art. 694 do CPC incentiva esta
diretriz, autorizando inclusive a suspensão do processo, a fim de possibilitar que as partes possam utilizar
outras vias, como por exemplo: mediação extrajudicial e atendimento multidisciplinar (BUENO, 2018).
Em vista disso, Spengler (2018, p. 54-55), ressalta ainda que “a mediação pode organizar as
relações familiares, auxiliando os conflitantes a tratarem os seus problemas com autonomia. Reduz-
se, assim, a dependência de um terceiro (juiz) e possibilita-se o entendimento mútuo e o consenso”.

3.3 A mediação nas ações possessórias

Mais uma vez o CPC inovou e trouxe a mediação como tentativa de pacificação social, até mesmo
nas ações possessórias, assim devido a sua importância e tendo em vista à realidade brasileira, o
legislador abrangeu esta possibilidade aos litígios coletivos, que ocorrem sobre a posse do imóvel
(art. 565, § 5º) (BUENO, 2018). Restou previsto que antes da concessão de medida liminar, se for
indicado na petição inicial que a perda da posse ocorreu há mais de um ano e dia, o magistrado
designará audiência de mediação (art. 565 do CPC) (CAMBI et al., 2019).
Esta implementação no CPC foi prevista devido as suas inúmeras vantagens, pois geralmente
nos litígios coletivos envolvendo conflitos fundiários, ocorrem despejos forçados e expulsões em
massa, assim a mediação viabiliza a construção do diálogo entre as partes envolvidas, sem prejuízo
ainda da utilização de outros métodos, como por exemplo, a conciliação (CAMBI et al., 2019).
Portanto, as ações de força velha seguem o procedimento comum do CPC, devendo ser aplicado
os termos do art. 334, designando audiência de mediação ou de conciliação, podendo, eventualmente,
ocorrer a concessão de liminar, se na petição inicial estiverem presentes os requisitos da tutela
provisória do art. 300 do CPC (THEODORO JÚNIOR, 2016). Assim “a restrição legal em exame será
inaplicável, e será possível a outorga da proteção liminar. Isso porque, como se sabe, a tutela de
urgência é uma garantia constitucional, e por isso não pode ser afastada por regra infraconstitucional”
(MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017b, <https://proview.thomsonreuters.com>).
A ampla participação pública prevista para esta ação coletiva, compromete também o Poder
Público a auxiliar na solução do litígio, buscando extravasar os limites, a fim de refletir até mesmo
em outras dimensões de maior importância, que poderão protagonizar respostas adequadas, que
na grande maioria é melhor que a resolução judicial (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017b).
Possibilitando assim, o envolvimento de várias pessoas, que estão dispostas a auxiliar os litigantes
na construção de soluções justas e eficientes para o conflito (CAMBI et al., 2019).
Contudo, a ideia do legislador, portanto é evitar o emprego de força, buscando encontrar uma
solução consensual para a controvérsia, assim, este buscou promover a remoção ou consolidar a posse
da área, promovendo uma solução mais humanizada através da mediação prevista no dispositivo do

331
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

art. 565 no CPC (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017b).


Apesar disso, verifica-se que a proposta que o CPC trouxe com este artigo não alcançou as
expectativas, principalmente das entidades que atuam em defesa da posse, pois remeteu a inovação
apenas aos casos de posse velha, e a escala mais significativa de ações possessórias coletivas são as
que envolvem litígios de posse nova (VANIN; SPENGLER, 2018).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Judiciário atualmente enfrenta uma crise, esta que já decorre há certo tempo, em consequência
do aumento de processos, tendo em vista que a sociedade impõe ao Poder Judiciário todos os seus
litígios e atrelado à falta de mão de obra e infraestrutura.
Por isso tudo, o CPC inovou e buscou trazer a autocomposição, visto que, os mecanismos
alternativos de resolução de conflitos visam garantir celeridade processual e atender satisfatoriamente
aos litígios. O presente texto esteve centralizado na mediação inserida no Código como política
pública adequada para resolução de conflitos.
Nesse viés, devido à análise feita na pesquisa, com base na doutrina jurídica, em especialmente
com escopo naquelas trazidas na presente pesquisa, é possível auferir que a mediação prevista no
processo civil brasileiro é política pública adequada para resolução de conflitos. Isto quer dizer que
a mediação viabiliza um tratamento mais humanizado para o conflito, colabora para uma cultura de
pacificação social, possibilitando aos litigantes autonomia e poder para dar fim às suas próprias tensões.
Não obstante, cabe salientar que basilarmente a função da mediação é a construção de uma
solução consensual para os litígios, mediante a viabilização do diálogo, assim possibilitando até mesmo
o restabelecimento dos vínculos anteriormente existentes, os quais foram rompidos pelo conflito. Cabe
ainda, mencionar, que a mediação não substitui o Poder Judiciário, mas o auxilia inclusive na desobstrução
indireta das vias judiciais, principalmente quando ocorre a mediação extrajudicial, na fase pré-processual.
Nesse seguimento, ainda que a mediação ocorra durante a fase processual, é importante destacar
que o consenso, se alcançado através dos métodos autocompositivos, põe fim a um conflito que
poderia se arrastar por anos no judiciário, até que ocorresse o seu efetivo julgamento e sem que este
garanta que a decisão emanada por um juiz togado satisfaça as partes. No entanto, a desobstrução
do Poder Judiciário é uma consequência indireta dos métodos alternativos, não podendo o Estado
transformá-la em uma ferramenta para suavizar a sua crise de eficiência.
Dado o exposto, o descongestionamento do Judiciário decorre da mudança da cultura, tendo em
vista que a mediação busca superar por completo o conflito. Assim, apesar do recente transcurso de
tempo e de prática forense, a mediação se demonstra eficaz enquanto política pública, pois possui
o condão de transformar um sistema de ideias, alterar uma cultura que ainda está enraizada no
terceiro Juiz que soluciona os seus conflitos, porquanto, conforme abordado, a mediação objetiva o
tratamento dos conflitos pelos próprios litigantes e possibilita uma resposta adequada ao litígio.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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334
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A URGÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCLUSÃO DIGITAL


FRENTE AO ACESSO À EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA

Danielli Regina Scarantti158

RESUMO: A sociedade contemporânea vem sendo marcada pelo progresso tecnológico. Nesse cenário,
a internet ganha destaque por sua capacidade de interlocução que ultrapassa as fronteiras territoriais
dos Estados. O acesso a ela se difunde como um meio potencialmente emancipatório do indivíduo
que contribui para sua formação pessoal, intelectual e profissional. Ocorre que grande parte dos
domicílios brasileiros não possui acesso à internet e essa exclusão ficou ainda mais visível no ano de
2020, quando, em razão da pandemia causada pelo Coronavírus, as instituições de ensino precisaram
recorrer às aulas remotas: diversos estudantes sofreram dificuldades para o acesso à educação, por
falta de conexão na rede mundial de computadores. Por isso, o presente artigo tece considerações
sobre a urgência do debate acerca da inclusão digital.

Palavras-chave: Internet. Educação. Emancipação. Inclusão. Políticas públicas.

INTRODUÇÃO

A internet se desenvolve nesse período pós-moderno de uma forma jamais vista na história da
humanidade, proporcionando amplo acesso à informação e à comunicação. Logo, é possível afirmar
que a potencialidade do acesso à internet pode ser um meio de emancipação dos indivíduos, uma
forma de transformar o cidadão em um sujeito ativo – informado, crítico e participativo – no espaço
público da sociedade. No entanto, grande parte dos domicílios brasileiros não possui acesso à internet,
fato este que influencia no aumento dos índices de exclusão social no país.
Essa exclusão, embora venha sendo estudada há vários anos, tornou-se mais visível no ano
de 2020, momento em que eclodiu a pandemia causada pelo Coronovírus no Brasil. Desde meados
do mês de março, todas as instituições de ensino – da educação infantil aos programas de pós-
graduação – foram obrigadas a se adequar a um novo formato de ensino. Com a necessidade de
distanciamento físico, a alternativa encontrada foram as aulas remotas, as quais possibilitam que o
estudante acompanhe a aula em casa. Todavia, diversos estudantes nem mesmo possuem acesso à
internet, então como falar em acesso à educação¿
Diante desse problema, o presente artigo investiga a urgência de alternativas de inclusão digital,
alternativas que não busquem apenas a democratização dos equipamentos, mas sim a emancipação
dos indivíduos no uso dos recursos tecnológicos. Verifica-se que a internet só pode cumprir com
afinco seu papel de difundir informação e conhecimento, se os Estados se comprometerem com o
desenvolvimento de políticas eficientes para universalizar o meio digital. Se isto não for feito, o que
teremos é o aumento das desigualdades em razão de que somente a elite conseguirá ter acesso à
internet, assim, resultando em uma divisão ainda maior entre cidadãos ricos e pobres.
Nesse cenário surgem as ações afirmativas – ferramentas especiais e temporárias – usadas para
fortalecer a inclusão a partir do objetivo de reduzir desigualdades de determinados grupos vulneráveis
que tenham sofrido discriminação por falta de acesso a algum elemento indispensável à manutenção
da dignidade da pessoa humana.
Tais ações serão estudadas, considerando que Norberto Bobbio (1992) afirma que se tem discutido
muito sobre os direitos do homem na sociedade; todavia, os resultados dessa discussão são colocados

158 Mestra em Direito pela UNIJUÍ (2016), especialista em Gestão e Negócios pelo IFFAR (2018) e graduada em Direito pela
UNIJUÍ (2015). É advogada inscrita na OAB/RS nº 97.258 e atualmente exerce as atividades de professora de Direito e coor-
denadora do curso de Direito da Setrem.

335
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

em prática em menor escala no que se refere ao reconhecimento e proteção efetiva deles. Por isso, o
presente artigo discorre sobre o panorama do acesso à educação nas aulas remotas que dependem do
uso de internet e, após, apresentam-se apontamentos sobre a urgência da inclusão digital no país.

1 A RELAÇÃO ENTRE A INTERNET E O ACESSO ÀS AULAS REMOTAS EM TEMPOS DE PANDEMIA


CAUSADA PELO CORONAVÍRUS EM 2020, NO BRASIL

Nos últimos anos o acesso à internet cresce no Brasil. O mundo on-line tornou-se uma extensão
do mundo off-line na vida de grande parte da população, entretanto esta não é uma realidade para
todos os cidadãos que vivem no país. Atualmente, 49% dos domicílios localizados na zona rural não
possuem acesso à internet e 25% dos domicílios localizados na zona urbana não possuem acesso à
internet (COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL, 2019).
Nesse cenário aumenta a preocupação com o acesso à educação em tempos de pandemia
causada pelo Covid-19. Isso porque, com o avanço do novo Coronavírus no Brasil, em 2020, tornou-
se necessário que as diversas regiões do país desenvolvessem aulas remotas159 para evitar o contato
físico e as aglomerações em ambientes fechados. Ou seja, os estudantes não compareciam mais na
escola ou na universidade e passaram a acompanhar as aulas dos próprios lares.
Todavia, de que forma promover o acesso pleno à educação, se muitas crianças, adolescentes,
jovens e adultos nem mesmo possuem internet para acompanhar esse formato de ensino remoto¿
Importante salientar que dentre os 51% dos domicílios localizados na zona rural que possuem acesso
à internet e 75% dos domicílios localizados na zona urbana que possuem acesso à internet, muitas
vezes não há uma conexão estável com a internet e muitas vezes os equipamentos de casa não
comportam as necessidades das atividades encaminhadas pelos professores.
Nessa perspectiva, torna-se fundamental reabrir o debate sobre a importância da inclusão digital
e a urgência de políticas públicas de inclusão no país como um pressuposto para o desenvolvimento
humano, visto que inexiste um “plano nacional que agrupe as iniciativas de promoção do direito à
inclusão digital” (CARMO; DUARTE; GOMES, p. 27, 2020).
Importante ressaltar que mesmo não sendo expressivas, existem diversas propostas para a
inclusão digital no Brasil, contudo elas estão “muito focadas em infraestrutura” e por isso a alfabetização
digital e a emancipação digital acabam não sendo priorizadas. Sendo assim, o presente tópico reitera
a apropriação tecnológica como um meio essencial para o processo de inclusão digital das pessoas
socialmente excluídas do país (CARMO; DUARTE; GOMES, p. 46, 2020).

2 POSSIBILIDADES DE INCLUSÃO DIGITAL E EMANCIPAÇÃO

A presente seção discute alternativas de inclusão digital que sejam viáveis para possibilitar a
construção de sujeitos ativos na sociedade. Consideramos essa discussão pertinente porque o acesso
à internet possibilita meios que contribuem para a emancipação dos indivíduos que vivem nesse
período pós-moderno, e porque “[...] permitir que os seres humanos conjuguem suas imaginações e
inteligências a serviço do desenvolvimento e da emancipação das pessoas é o melhor uso possível
das tecnologias digitais”. (LÉVY, 1999, p. 208).
Então, dada essa importância, entende-se que todos os seres humanos têm direito ao acesso
ao mundo digital. Ocorre que grande parte da população brasileira está excluída desta realidade que
constitui a sociedade da informação e isso se agravou principalmente no cenário educacional durante
a pandemia do Coronavírus. Portanto, propõe-se a discussão de ações afirmativas e políticas públicas
como alternativa para não só garantir o acesso à internet aos indivíduos, mas também, e principalmente,
para emancipá-los diante das inovações do ciberespaço, a fim de que seja possível construir um cidadão
ativo – informado, crítico e participativo – no exercício da cidadania e da democracia.

159 Diferentemente do EaD, o ensino remota preconiza a transmissão em tempo real das aulas. A ideia é que professor e
alunos de uma turma tenham interações nos mesmos horários em que as aulas da disciplina correriam o modelo presencial.
Disponível em: <https://sae.digital/aulas-remotas/>. Acesso em 22 set. 2020.

336
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Observa-se que promover a inclusão digital já é obrigação dos Estados no cenário internacional.
O relatório das Nações Unidas de 2011, o qual reconheceu o acesso à internet como direito humano,
já prevê que os Estados elaborem programas e prestem assistência através de políticas para facilitar o
alcance às tecnologias de informação e comunicação a todos os indivíduos. (UNITED NATIONS, 2011).
Cumprir com o disposto é uma necessidade inadiável, pois é concluível que o ciberespaço vem se
tornando o “principal laço de comunicação, de transações econômicas, de aprendizagem e de diversão
das sociedades humanas” (LÉVY, 1999, p. 146), bem como vem se convertendo cada vez mais na
“principal infra-estrutura de produção, transação e gerenciamento econômicos”. (LÉVY, 1999, p. 167).
Nota-se que o ambiente digital vem ampliando a participação política da sociedade como um
todo. Don Tapscott (2010, p. 80) explica que, na medida em que o acesso à internet permite a
democratização do conteúdo e a plena liberdade de expressão, ele proporciona “um deslocamento
do poder das autoridades para os indivíduos comuns”. Portanto, não é possível admitir que parte da
população permaneça excluída dessas novas possibilidades trazidas pela sociedade da informação.
Enquanto “[...] que a globalização une as pessoas por meio da informação/comunicação, em
razão da evolução tecnológica dos últimos anos, ela também exclui aqueles que não se adaptam
à nova estrutura” (ZEIFERT, 2004, p. 29); por isso é imprescindível debater alternativas de inclusão
digital e emancipação em todos os setores. Mas, principalmente no setor da educação que sofre
tantas dificuldades neste ano de 2020.
A Organização das Nações Unidas afirma que a internet só pode cumprir com efetividade seu papel
de difundir informação e conhecimento se os Estados se comprometerem com o desenvolvimento de
políticas eficientes para universalizar o meio digital. Se isso não for feito, o que se terá é o aumento
das desigualdades em razão de que somente a elite conseguirá ter acesso à internet, assim resultando
em uma divisão ainda maior entre cidadãos ricos e pobres. (UNITED NATIONS, 2011).
Verifica-se que, embora os avanços tecnológicos sejam responsáveis pela expectativa de bem-
estar social e redução da pobreza, por esses mesmos motivos eles podem aumentar a desigualdade
quando o acesso a eles não contempla todos os indivíduos. (FOLADORI; INVERNIZZI, 2005). Todavia,
é preciso compreender que esse risco da desigualdade faz parte do processo, então é necessário
buscar alternativas para reduzir a desigualdade, mas sem travar os avanços tecnológicos, pois eles
são meios de progresso e bem-estar social. (ESCALANTE, 2009).
Conforme expõe Pierre Lévy (1999, p. 12), não é preciso que o indivíduo se coloque contra ou a favor
dessas mudanças tecnológicas: nesse cenário, o que importa é que o cidadão seja humanista e reconheça as
benesses trazidas pela comunicação digital à vida social, política, econômica e cultural dos sujeitos. Logo,
há de se defender a urgente definição de ações afirmativas e políticas públicas porque é inegável que:

Dispositivos informatizados de escuta mútua, de exposição de recursos, cooperação e avaliação


em tempo real das decisões podem ser um poderoso reforço aos mecanismos democráticos e às
iniciativas econômicas nas regiões desfavorecidas. (LÉVY, 1999, p. 191).

Então, é nesse contexto em que se clama pela inclusão digital, da qual surge a necessidade
de se determinar ações afirmativas – ferramentas especiais e temporárias – usadas para fortalecer
a inclusão a partir do objetivo de reduzir desigualdades de determinados grupos discriminados por
falta de acesso a algum elemento indispensável à manutenção da dignidade da pessoa humana.
De acordo com Flávia Piovesan (2006, p. 40-41) as ações afirmativas adquirem uma função pública
elementar na sociedade democrática. Isso porque elas têm a capacidade de garantir a diversidade e
a pluralidade social em virtude do respeito ao direito à igualdade entre os cidadãos, que fomenta a
criação de novas possibilidades de participação de grupos menos favorecidos. Assim, com a definição
das ações afirmativas, o próximo passo é colocar políticas públicas relativas em prática, porque

A reconstrução histórica do legado político construído pela Revolução Francesa, com os ideias de
liberdade, igualdade e fraternidade, assentados na ideia do Estado Democrático de Direito, que
possui uma roupagem encantadora no campo formal; no mundo da vida ainda se revelam práticas
excludentes, violência contra vários grupos sociais e privilégios de poucos. O que se propõe
juridicamente como bem para todos resta desfrutado por apenas alguns. (CENCI; MONTAGNER,
GROSSMANN, 2015, p. 88).

337
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Foi isso que ocorreu com o acesso à internet: embora tenha sido juridicamente elevado a
direito humano, ainda é desfrutado por apenas alguns. Portanto, é urgente discutir a possibilidade
de aplicar políticas públicas para garantir a efetividade do direito de acesso à internet. Assim, a fim
de compreender a relevância adquirida pelas políticas públicas na busca pelo controle da igualdade
social dos cidadãos, é necessário compreender o seu processo de desenvolvimento para perceber que
os anseios do povo são muito importantes nesse contexto.
Enio Waldir da Silva (2014) explica que a elaboração das políticas públicas inicia a partir das
necessidades sentidas no âmbito social. A partir da percepção de uma necessidade da população,
o poder estatal desenvolve planos, programas e ações para atender as demandas, principalmente
nos locais mais marginalizados da sociedade, por meio de investimentos ou de cumprimento de
regulamentações administrativas.
As políticas públicas, segundo Janaína Machado Sturza e Rosane B. Mariano da Rocha B. Terra
(2009, p. 99), atuam na tentativa prática de solucionar os problemas causados pelo paradoxo da
inclusão e da exclusão social. Para as autoras, o propósito é alcançar a “justiça social de fato”, ou seja,
é promover ações que concretizem a efetivação dos direitos - sendo que tais ações são desenvolvidas
a partir do momento em que o governo reconhece a presença de um problema de ordem pública e
constata a urgência de intervenção no caso.
Nesse sentido, políticas públicas são descritas como:

[...] diretrizes, princípios norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos para as
relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do Estado. São,
nesse caso, políticas explicitadas, sistematizadas ou formuladas em documentos (leis, programas,
linhas de financiamentos) que orientam ações que normalmente envolvem aplicações de recursos
públicos. (TEIXEIRA, 2002, p. 2).

Visto isso, verificam-se que as políticas públicas possibilitam um grande espaço de diálogo aberto,
repleto de movimentos, negociações, discussões e contradições entre os atores sociais e o governo.
A partir desse diálogo que ocorre entre os mais diversos segmentos organizados da sociedade é que
o Estado analisa as ações viáveis para serem efetivadas. Como bem define Eloísa de Mattos Höfling
(2001, p. 31), as políticas públicas podem ser explicadas como sendo “o Estado implantando um
projeto de governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade”.
Igualmente, podemos acrescentar que as políticas públicas, então, seriam o Estado em ação na busca
pela diminuição da “distância existente entre os polos ricos e pobres, quiçá eliminando-os, para que
se chegue a um nível intermediário satisfatório” (STURZA; TERRA, 2009, p. 93).
Ademais, é importante que a esfera estatal mantenha pontos de vista amplos, pois muitas vezes
é necessário voltar para trás para refazer e moldar determinadas ações que não estejam atendendo
a expectativa planejada. Por isso, o regime democrático é o que melhor aceita e proporciona o
funcionamento efetivo das políticas públicas, expressando “[...] a dinâmica da cidadania e as mediações
dos direitos como fundamento da organização dos poderes coletivos.” (SILVA, 2014, p. 232). Quanto
mais debate público ocorrer, maiores são as chances das políticas públicas serem realmente efetivas
no âmbito em que estão sendo aplicadas. (TEIXEIRA, 2002).
Janaína Machado Sturza e Rosane B. Mariano da Rocha B. Terra (2009, p. 101) também afirmam
que a estruturação das políticas públicas está intimamente ligada a um processo “bem articulado e
transparente, demonstrando à sociedade, na pessoa do cidadão, o fim a que se destinam”, sendo que
esta finalidade deve sempre visar “o bem comum de toda a sociedade”.
Assim, de acordo com Lindomar Wessler Boneti (2006, p. 74), políticas públicas são, em síntese,
ações que brotam no espaço público e se desenvolvem no espaço estatal para se tornarem decisões que
reconhecem a necessidade do Estado intervir na realidade social. Essa estruturação das políticas públicas se
dá por meio de um jogo de forças estabelecido “no âmbito das relações de poder, relações essas constituídas
pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil”.
Então, é possível concluir preliminarmente que as políticas públicas devem ser colocadas em
prática para garantir o amparo e a proteção social àqueles grupos mais fracos e mais pobres com o
propósito alcançar a eles uma vida digna e contribuir na promoção de uma cidadania mundial. Sendo
assim, esse é um caminho fundamental para efetivar o acesso à educação no país (COMPARATO, 2010).

338
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Logo, a articulação de políticas públicas no âmbito da inclusão digital, além de contribuir para o
acesso à educação e o exercício da cidadania, contribui também para o fortalecimento da democracia
moderna, pois o acesso à internet provoca a exploração de novas formas de opinião pública – elemento
fundamental para o bom funcionamento do sistema democrático (LÉVY, 1999).
Sob a mesma linha de raciocínio, a inclusão digital implica diretamente no desenvolvimento do
país, pois o:

[...] caminho para a inclusão dos indivíduos em uma cidadania global passa pela afirmação de
um Estado que se torne promotor do bem-estar social de todos os seus membros, um Estado
forte, criando políticas públicas que colaborem para o seu desenvolvimento social, político e
econômico. (ZEIFERT, 2004, p. 110).

Considerando, então, o acesso à internet como propulsor do acesso à educação, principalmente


no ano de 2020 que tanto recorreu às aulas remotas, e como propulsor para o exercício da cidadania e
da democracia, ele é também um meio para a promoção do desenvolvimento humano, civil, político,
econômico, social e cultural,

[...] o acesso às TIC e à Internet em específico é alvo de políticas públicas ao redor do mundo desde
o século passado, quando vários trabalhos passaram a relacionar o estágio de desenvolvimento
das nações à capacidade de as pessoas se valerem do insumo que essas tecnologias fazem fluir,
a informação [...] Como ocorreu no passado com o livro, a Internet representou a libertação da
mente humana da necessidade de acúmulo. Mais do que memorizar, o que importa é aplicar a
informação para criar e inovar. (BORGES, 2015, p. 33).

Considerando essa necessidade de usar a informação para criar e inovar, é que precisamos
debater políticas públicas para além das questões tecnicistas de infraestrutura. Ou seja, é imprescindível
discutir políticas públicas de inclusão digital que fomentem a construção de um sujeito ativo –
informado, crítico e participativo – no exercício da cidadania e da democracia, pois isso nos leva ao
desenvolvimento da inclusão social e, especialmente, emancipação do cidadão. (BORGES, 2015).
O eixo central dessa proposta é o uso do poder emancipatório do ambiente digital para tornar o
indivíduo um verdadeiro sujeito, um ator comprometido com a transformação social, pois enquanto a
“[...] mídia impressa e a rede de televisão são organizações hierárquicas que refletem os valores de seus
proprietários” verifica-se que “As novas mídias [..] dão o controle a todos os usuários.” (TAPSCOTT, 2010, p.
33). Então, isso não quer dizer que as mídias tradicionais não são mais importantes, bem pelo contrário, elas
continuam sendo importantes sim. Mas, quer dizer que as novas mídias ampliam as formas de participação
dos sujeitos, expandindo também os meios de exercício da cidadania e da democracia. Por isso:

Medidas de inclusão digital são necessárias para possibilitarem a esses cidadãos agregarem cada
vez mais conhecimento e desenvolverem o capital intelectual, colaborando para a evolução social,
cultural e econômica de nosso país e caminhando para extinguir a divisão entre ricos e pobres de
informação. (ALMEIDA; PAULA, 2005, p. 61).

Imediatamente se constata que a questão não é simplesmente garantir um computador conectado


à internet para cada domicílio brasileiro porque “inclusão digital é muito mais do que apertar teclas,
reconhecer teclas” (PELLANDA; SCHLÜNZEN; SCHLÜNZEN JUNIOR (2005, p. 26), mas sim, a questão é
promover o acesso à internet aos cidadãos a partir de políticas públicas que potencializem a busca
de conhecimento, a participação, a criação, enfim, o desenvolvimento social, político, econômico e
democrático. É fomentar o desenvolvimento do país com as vantagens que as redes oferecem.
Pierre Lévy (1999, p. 219) reforça que a solução para este problema de não conseguir alcançar
internet para todos não é apenas uma questão técnica (tecnológica e financeira), pois não se pode
pensar que colocar um computador na frente de todos os indivíduos seria o remédio para o apartheid
digital criado. Ele explana a questão:

[...] o problema do “acesso para todos” não pode ser reduzido às dimensões tecnológicas e
financeiras geralmente apresentadas. Não basta estar na frente de uma tela, munido de todas as
interfaces amigáveis que se possa pensar, para superar uma situação de inferioridade. É preciso [...]
estar em condições de participar ativamente dos processos de inteligência coletiva que representam

339
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

o principal interesse do ciberespaço. Os novos instrumentos deveriam servir prioritariamente para


valorizar a cultura, as competências, os recursos e os projetos locais, para ajudar as pessoas a
participar de coletivos de ajuda mútua, de grupos de aprendizagem cooperativa etc.

Universalizar e disponibilizar o acesso à internet não é uma tarefa praticável de modo efetivo
em um curto prazo. É um processo que demanda tempo, principalmente porque não basta fornecer
o acesso à máquina, mais do que isso é imprescindível fomentar alternativas baseadas na educação
digital dos cidadãos para que usem o poder emancipatório da internet a favor do desenvolvimento
e do progresso da sociedade. Aos poucos os benefícios serão sentidos, pois é indubitável o poder
transformador da rede, especialmente no sentido de:

[...] fortalecer a participação da população em debates de política pública, melhorar a administração


de recursos municipais e estaduais, dar apoio a empresários de pequeno porte, criar novas
oportunidades para aprendizagem e permitir comunicação fácil entre todas as organizações locais
em comunidades beneficiadas com sua presença. (GOMES, 2002, p. 7)

Para que esse poder transformador do acesso à internet alcance seus objetivos é preciso que
os gestores públicos considerem não só a necessidade de conceder a máquina conectada à internet,
como também fortalecer a educação digital do indivíduo para a sua emancipação, a fim de que ele se
torne um verdadeiro cidadão do mundo nos espaços de convergência midiática.
Logo, é evidente que o investimento em inclusão digital não se resume à entrega ou facilitação de
equipamentos necessários ao acesso à internet. O investimento em inclusão digital abrange muito mais
que isso, pois prioriza a inserção de conteúdos que realmente possam auxiliar a vida dos indivíduos,
das famílias e das comunidades. Além disso, trata-se também de articular ações de recepção e mediação
das vantagens trazidas pela rede mundial de computadores a fim de que o sujeito tenha aptidão para
aplicar os conteúdos explorados na internet. (MIRANDA; MENDONÇA, 2006, p. 5).
Então, torna-se fundamental visualizar quais são os grupos de pessoas que não conseguem
participar desse desenvolvimento tecnológico e discutir estratégias de inclusão digital para eles. Faz-
se necessário examinar de que formas as tecnologias de informação e comunicação podem contribuir
para ações que visem a redução de problemas de ordem econômica e social, por exemplo. Pois,
como já percebido, as novas tecnologias de informação e comunicação, dentre elas a internet, não
são simples aparatos tecnológicos, e sim, quando bem aplicados, podem ser meios poderosos de
aprendizado e de desenvolvimento de tecnologia (CÉLIO; PALMEIRA; SILVA, 2012).
E mais, o ambiente digital, neste século XXI, transformou-se. Antes era um espaço voltado
basicamente para o compartilhamento de informações, já hoje é muito perceptível que, além disso,
ele também “colabora em projetos de interesse mútuo e cria novas maneiras para resolver alguns dos
nossos problemas mais urgentes.” (TAPSCOTT, 2010, p. 54).
Nesta linha de raciocínio, Jesús Martin-Barbero (2005) sustenta a necessidade de ampla
comunicação para se alcançar a emancipação do sujeito. Ele destaca que não basta colocar a internet
com seu leque de informações a disposição do ser humano. É indispensável fomentar planos,
programas e ações para formar indivíduos ativos que recebam e emitam informação de forma crítica
a fim de que a partir da análise das informações eles possam produzir e reproduzir o conhecimento.
Esse é o grande cerne da educação no momento de distanciamento físico: aprender a usar os recursos
tecnológicos de forma ativa.
Ainda neste aspecto, Antonio Miranda e Ana Valéria Machado Mendonça (2006, p. 1) destacam
que apenas o desenvolvimento tecnológico é insuficiente para formar os cidadãos que se almejam.
Em paralelo a isso é fundamental “incentivar a democratização da informação, ampliando o acesso
do cidadão aos espaços públicos de produção e divulgação de conhecimento”, bem como promover o
“desenvolvimento de recursos humanos locais e a construção de uma rede digital rizomática”.
Para o êxito das tentativas de melhoria de vida e a redução dos índices de exclusão, o firmamento
dos programas de inclusão digital requer parcerias sólidas entre governo (municipal, estadual e
federal), escolas, universidades e organizações não governamentais. Esse fortalecimento, para
Antonio Miranda e Ana Valéria Machado Mendonça (2006), é elementar.
Outrossim, Cicília Maria Krohling Peruzzo (2002) destaca que a democratização do acesso às
redes digitais está em processo de desenvolvimento e expansão, haja vista que está sendo dada

340
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

maior atenção para a inclusão digital por meio de sua inserção no nível das políticas públicas neste
século XXI, que apontam caminhos de civilização e emancipação. Todavia, o ano de 2020, no cenário
educacional, evidenciou que o Brasil ainda tem um longo caminho para trilhar neste sentido.
Portanto, a luta pelo combate da exclusão digital requer que o ser humano aprenda a usar a
tecnologia a favor das funções desempenhadas diariamente, bem como para a ampliação de sua
bagagem intelectual, pessoal e profissional. E para se alcançar esses objetivos acredita-se, em virtude
dos argumentos expostos, que os atores sociais e o Estado devem investir no desenvolvimento de
políticas públicas como forma de inclusão no atual sistema.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia do Coronavírus acentuou uma crise mundial. Todas as regiões do mundo sentiram as
consequências do Covid-19 nos mais diversos setores. Um segmento muito afetado foi a educação, isso
porque as escolas e as universidades tiveram que se adaptar a uma nova realidade de distanciamento
físico e inserção de aulas remotas.
Nesse cenário, a grande dificuldade encontrada foi o acompanhamento das aulas remotas e o
domínio desse novo ensino nos lares brasileiros. Tal dificuldade ficou muito visível porque grande
parte dos domicílios não possui conexão à internet; e muitos que estão conectados não possuem
qualidade suficiente para desfrutar do acesso à educação nesse formato e também não possuem
conhecimento suficiente sobre a apropriação dos recursos tecnológicos. Não basta ter conexão à
internet e saber ligar os equipamentos que conectam o estudante à rede mundial de computadores.
Por isso, o trabalho verifica a necessidade de constituir ações afirmativas de emancipação digital dos
sujeitos, pois, observou-se que as ações afirmativas são ferramentas especiais e temporárias usadas para
fortalecer a inclusão a partir do objetivo de reduzir desigualdades de determinados grupos discriminados
por falta de acesso a algum elemento indispensável à manutenção da dignidade da pessoa humana.
Por meio do estabelecimento de ações afirmativas de inclusão digital ocorre o aumento das
possibilidades de participação de grupos menos favorecidos. Após isso, o poder estatal desenvolve
planos, programas e ações destinados a atender as demandas, principalmente nos locais mais
marginalizados da sociedade, por meio de investimentos ou de cumprimento de regulamentações
administrativas. Assim iniciam as políticas públicas.
Atualmente, as políticas públicas de inclusão digital visam universalizar e disponibilizar o acesso
à internet, mas essa não é uma tarefa praticável de modo efetivo em um curto prazo. É um processo
que demanda tempo, principalmente porque não basta fornecer o acesso à máquina, mais do que isso
é imprescindível fomentar alternativas baseadas na educação digital dos cidadãos para que usem o
poder emancipatório da internet a favor do desenvolvimento e do progresso da sociedade.
Diante disso, a pesquisa examinou o cenário educacional do país no ano de 2020 e, dentro deste
cenário, a importância de políticas públicas de inclusão digital não focadas apenas no acesso físico aos
recursos tecnológicos, visto que esse é um caminho fundamental para o desenvolvimento humano.

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343
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

DADOS E PRIVACIDADE:
REFLEXOS ENTRE O PÚBLICO INFANTO-JUVENIL NO MEIO DIGITAL

Daniela Welter160
Gabriely Ostwald Haas161
Thami Covatti Piaia162

RESUMO: A presente pesquisa objetiva, de modo breve, discorrer sobre as consequências geradas ao
público infanto-juvenil nas relações digitais. Ressalta-se que o uso da internet proporciona benefícios
face o desenvolvimento do indivíduo, outrossim, sendo utilizada de forma inadequada, acarreta em
consequências que prejudicam não só a evolução intelectual do indivíduo, mas também a interação
social e convivência no círculo familiar. Além disso, será discorrido sobre problemas que afetam
grande porcentagem de jovens na atualidade, o cyberbullying e sexting. No mais, disserta-se sobre
a evolução do meio tecnológico, a facilidade de comunicação ofertada por aplicativos, e a provável
exposição de dados que deveriam ser preservados, por crianças que ingressam nas redes sociais sem
preencher o requisito básico da idade permitida.

Palavras-chave: Dados pessoais. Privacidade. Internet. Adolescentes.

INTRODUÇÃO

A evolução dos meios de comunicação chega juntamente com a dos seres humanos, possibilitando
o diálogo de uma ou mais pessoas, no mais das vezes, de modo imediato. A comunicabilidade entre
as pessoas é essencial para o desenvolvimento individual e da sociedade como um todo.
O indivíduo que se encontra na fase mais importante do desenvolvimento, é o pertencente ao
público infanto-juvenil. De conformidade com a faixa etária que se encontram, a comunicação se
torna indispensável. Entretanto, para o uso da maioria das redes sociais, ou aplicativos de mensagens
instantâneas que permitem o diálogo, requerem ao menos idade mínima para todos os usuários,
visando preservar a integridade, privacidade e proteção de dados pessoais.
Contudo, dados pessoais são burlados a todo momento, para que o acesso precoce às redes
sociais e demais aplicativos sejam permitidos. Insurgem nessa prática os adolescentes, grande parte
das vezes com apoio dos pais, ou sendo feito por eles próprios. Dessa forma, são expostos dados
pessoais, que ficam à margem de oportunismos, estando apenas sob o controle de crianças e jovens.
Assim sendo, o estudo objetiva demostrar a exposição gerada frente ao contato precoce de
alguns indivíduos com o meio virtual, bem como os reflexos gerados, fatores positivos e negativos.
A metodologia adotada para a elaboração do artigo é dedutiva, por meio de pesquisa em produções
acadêmicas, científicas, jurisprudenciais e em legislações.

160 Acadêmica do 6° semestre da Graduação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI –
Campus de Santo Ângelo. Bolsista do Projeto “Cyberbulliyng nas escolas: informação e conscientização / Cyberbullying nas
escolas: perspectivas e desafios para alunos, professores e sociedade”, da mesma instituição. Endereço eletrônico: danie-
lawelter561@gmail.com.
161 Acadêmica do 6º semestre da Graduação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI –
Campus Santo Ângelo. Bolsista do Projeto “Limites ético/jurídicos aos jogos eletrônicos: o vício de uma geração” da mesma
instituição. Endereço eletrônico: gabihaas01@gmail.com.
162 Doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Visiting Scholar na Universidade de Illinois
– Campus de Urbana-Champaign – EUA (2012). Professora na Graduação e no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Direito, Mestrado e Doutorado da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI -, Campus de Santo
Ângelo/RS. Coordenadora do projeto: “Limites ético/jurídicos aos jogos eletrônicos: o vício de uma geração” Endereço ele-
trônico: thamicovatti@hotmail.com.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 DESENVOLVIMENTO

A evolução das redes sociais fica cada vez mais visível entre a sociedade. Percebe-se isso, em
função do grande leque de aplicativos disponibilizados nas lojas online, que cativam dia a dia mais
usuários com sede de novidades. (MAGRANI, 2019)
O mercado online compartilha cada vez mais de dispositivos inteligentes. Determinados
dispositivos, acompanham a vida do indivíduo, aprendem com ele e se adequam à sua rotina. Dessa
forma, é possível saber o estilo de vida, e demais informações importantes do usuário. (MAGRANI,
2019). Para Estéfano Veraszto, (2008, apud MAGRANI, 2019, p. 46),

tanto as técnicas como as tecnologias abrangem, de maneira indissolúvel, interações entre pessoas
vivas e pensantes, entre entidades materiais e artificiais e, ainda, entre ideias e representações.
Cada sociedade cria, recria, pensa, repensa, deseja e age sobre o mundo através da tecnologia e
de outros sistemas simbólicos. A tecnologia é impensável sem admitir a relação entre o homem e
a sociedade. O desenvolvimento de novas tecnologias, sejam elas produtos, artefatos ou sistemas
de informação e comunicação, constitui um dos fatores chave para compreender e explicar todas
as transformações que se processam em nossa sociedade. E, desta maneira, podemos dizer que
a tecnologia está intrinsecamente associada aos valores humanos. [...] A tecnologia abrange
um conjunto organizado e sistematizado de diferentes conhecimentos, científicos, empíricos e
intuitivos. Sendo assim, possibilita a reconstrução constante do espaço das relações humanas.

Como já mencionado, a internet tornou-se uma ferramenta indispensável no cotidiano dos


seres humanos. É possível perceber o fascínio das crianças pelos computadores, celulares e diversas
plataformas de jogos online e entretenimento. A cada geração, a idade em que os menores obtêm
seu primeiro contato com um meio eletrônico é significativamente menor. Sendo época em que os
pais possuem multitarefas, os eletrônicos passam a ser uma distração para o infante. Contudo, para
os adolescentes, a internet é um meio de comunicação no qual estes a utilizam para conhecer novas
pessoas, interagir com amigos e compartilhar informações sobre sua rotina, que pessoalmente muitos
não conseguiriam desenvolver com tal facilidade (SILVA e SILVA, 2017).
Nesse sentido, pode-se verificar que existe dificuldade de regulamentação dos limites aos
dispositivos inteligentes. No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor dispõe sobre a defesa do
consumidor, sendo a legislação especifica sobre as relações de consumo, ao se deparar com novidades
do meio virtual, acaba se tornando desatualizado. Entretanto, segundo Magrani (2019), destaca-se que

o governo não só está autorizado a intervir para proteger o consumidor, como tem o dever fazê-lo.
Esta é uma medida positiva do ponto de vista do consumidor, já que responsabiliza diretamente o
fabricante quando da ocorrência de algum dano, porém mecanismos repressivos devem ser vistos
com cautela para não acabarem tornando-se um óbice ao processo criativo das indústrias, ainda mais
diante de um contexto no qual o conhecimento geral sobre tais produtos ainda está caminhando.

Entretanto, apesar de existir a regulamentação das relações de consumo, se fez necessário a


criação de legislação específica para o uso da internet no Brasil. Nesse sentido, foi aprovada, em 2014,
o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), afim de regular ações no mundo virtual, evitando a
aplicação direta de sanções mais severas, como as estabelecidas no Código Penal,

o MCI se pretendeu como a “Constituição da Internet” no Brasil e salvaguardou diversos princípios e


direitos fundamentais. A proteção da privacidade, dos dados pessoais e da liberdade de expressão
são expressamente previstas no Marco Civil da Internet representando um grande avanço face
ao cenário anterior ao diploma, que levava a uma quantidade maior de abusos e violações de
direitos181. (MAGRANI, p. 74)

Na legislação supramencionada, é fortemente regulada questão atinente a proteção de dados


pessoais, em seu segundo capítulo, podendo-se destacar o artigo 10

Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de


internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações
privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das
partes direta ou indiretamente envolvidas. § 1º O provedor responsável pela guarda somente será
obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário
ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo,
respeitado o disposto no art. 7º. § 2º O conteúdo das comunicações privadas somente poderá
ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer,
respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7º. § 3º O disposto no caput não impede o acesso
aos dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereço, na forma da lei,
pelas autoridades administrativas que detenham competência legal para a sua requisição. § 4º As
medidas e os procedimentos de segurança e de sigilo devem ser informados pelo responsável pela
provisão de serviços de forma clara e atender a padrões definidos em regulamento, respeitado seu
direito de confidencialidade quanto a segredos empresariais. (BRASIL, 2014)

Ao se falar do público existente no meio digital, fica claro apontar que não são somente adultos,
ou adolescentes a partir da idade permitida, que frequentam as redes socias. Logo, se afirma com
toda certeza, que existem muitas crianças e adolescentes, que ainda não alcançaram a faixa etária
recomendada, mas integram o meio virtual constantemente. (FUCUTA, 2018)
Quando o diálogo é sobre a faixa etária, é necessário a compreensão que se está diante de
um assunto delicado pois, esta fase da vida de um indivíduo é extremamente sensível por diversas
razões. É no período da infância que a criança começa a entender o meio em que está inserida, as
pessoas próximas da família a quem possui confiança e também o começo da descoberta do seu
corpo, com isso, os pais ou responsáveis devem ter o total cuidado com a exposição desta criança
nas redes sociais (SILVA e SILVA, 2017).
Em tratando-se de adolescente, denota-se que este é o lapso temporal da vida que o menor está
diante de descobertas, o primeiro contato com o amor, suas escolhas para o futuro, entendimentos sobre
assuntos considerados mais sérios e importantes sobre a sua intimidade. Do conceito de adolescência
extrai-se: “que encontra-se em processo de maturação; que está no início de um processo; que ainda não
alcançou todo vigor”. Os pais e responsáveis devem dialogar com seus filhos sobre a conscientização
destes no uso tecnológico e o que expõem nas redes socais, uma vez que tornou-se comum nesta década
a exposição de dados e conteúdos infantis nas plataformas. O indivíduo que tem suas intimidades exibidas
pode diante deste ocorrido, desenvolver traumas, problemas psíquicos de confiança e autoestima. O
adolescente que manda fotos do seu corpo, na maioria dos casos, não possui consciência do impacto que
pode causar em sua vida se esta ser compartilhada no meio tecnológico (FUCUTA, 2018).
Desse modo, se torna mais difícil aos pais o controle em determinar horários aos filhos.
Também é possível verificar o desinteresse pelas tarefas escolares, prejudicando o desempenho e o
desenvolvimento do indivíduo. Dados constatam que “nos últimos anos, a maioria dos pré-adolescentes
e adolescentes brasileiros tem passado mais horas na rede do que na escola”. (FUCUTA, 2018)
Verifica-se que o progresso do cérebro humano ocorre, em maior parte, nas três primeiras
décadas de vida. É nesse período em que são absorvidas maior quantidade de informações, e
selecionadas, para que posteriormente determinem o futuro a ser seguido. De acordo com FUCUTA,
pode-se salientar, ainda,

O cérebro adolescente é flexível e aberto ao aprendizado. É criativo e ousado, além de atrevido


e impulsivo. Sem essas características, que, juntas, formam uma condição muito especial, é
possível imaginar que teríamos tido mais dificuldade em suportar as mudanças e inventar novas
ferramentas. Cientistas vêm entendendo a adolescência como uma etapa muito mais complexa e
importante para o desenvolvimento humanos do que se supunha antes.

Para a autora Brenda Fucuta, o processo de especialização se dá da seguinte forma

Na infância, o cérebro é uma esponja que suga a maior quantidade de informação. Na adolescência,
ele se prepara para se tornar seletivo e determinar a arquitetura dos circuitos neuronais adultos.
[...] Terminada a poda, começa a fase que fechará o processo de amadurecimento, que tem nome
de mielinização.

Nesse diapasão, se chega ao ponto principal desta pesquisa. Infere-se que, o uso da internet se
faz de uso indispensável no meio que que habita o ser humano, servindo de meio de pesquisa, estudo
e lazer. Fazendo referência ao público infanto-juvenil, o que mais os faz próximos da conexão, são as
redes sociais. (FUCUTA, 2018)

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

As redes sociais, para os adolescentes e pré-adolescentes, trazem sensação de proximidade aos


amigos e pessoas mais próximas. Destaca-se, que há a promessa de um perpétuo estar junto.

Se as redes sociais servem para estar com os amigos, conforme apontou pesquisa encomendada pela
rede de televisão CNN em 2015, elas servem também para as atividades realizadas com os amigos.
Entre elas, dar risadas. As redes são um território onde os espirituosos, os rápidos e os que têm o
tempo livre se sentem bem à vontade, especialmente passado memes para a frente. (FUCUTA, 2018)

Contudo, o contato desenfreado através das redes sociais, pode gerar problemas nocivos a
saúde física e mental ao indivíduo. Clássico exemplo a ser citado, é o compartilhamento de imagens
sensuais, os nudes.

todo dia, em algum lugar do planeta, alguém está fazendo uma foto ou um vídeo sensual, com
pouca ou nenhuma roupa, e mandando para outra pessoa por meio de computadores, tablets
e celulares. Incluídos na categoria que a língua inglesa registra como sexting [...], os nudes são
enviados como prova de amor, como preliminar de sexo virtual e até como exibição dos atributos
físicos. (FUCUTA, 2018)

Ocorre que, muitas vezes as fotos íntimas acabam corrompendo a privacidade e extrapolando limites.
Observa-se isso, quando imagens enviadas a determinada pessoa são vazadas, causando transtornos e
violando a intimidade de forma constrangedora. Conforme narrado pela autora Brenda Fucuta

Em uma pesquisa feita em onze países pela empresa de segurança digital Avast, a possibilidade
de ser flagrado em imagens comprometedoras foi apontada em muitas regiões do mundo como
algo mais temido que o vazamento de dados bancários. A exposição de imagens e vídeos íntimos
sem o consentimento de um das partes também configurou como uma das maiores violações da
internet denunciadas no Brasil, ao lado do ciberbullying e da publicação de conteúdos de ódio.

Atualmente, existem legislações que dispõem sobre a proteção da criança e do adolescente,


como o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que em seu artigo 5° apresenta: “nenhuma criança
ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais”, também do mesmo Código

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da
criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia,
dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

A legislação referida, garante a criança ou adolescente seus direitos fundamentais. Com a


exposição de dados que pode conter desde informações confidenciais de uma criança, como fotos
íntimas, endereço, escola, e outros indicativos que discorrem sobre a vida pessoal desta, gerando na
maioria dos casos, uma exposição de conteúdo inadequado, ou tratando-se de endereços e rotina da
mesma, a seguridade acaba sendo fragilizada. É indubitável afirmar que o direito desta criança ou
adolescente está sendo violado neste ato, a sua segurança e integridade, tanto física quanto psíquica
precisa ser protegida pelos pais e também pelo Estado.
Diante tais argumentos, é passível de conclusão, que um Estado Democrático de Direito por meio
de políticas públicas, pode promover meio de melhor garantia da segurança da criança e adolescente,
estes sendo considerados vulneráveis, através de programas mais rigorosos sobre a proteção de
dados em tratando-se deste público alvo, haja vista a crescente exposição sobre dados e imagens
infantis, como reportado em um site de notícias da cidade de Rondônia, datado deste ano

durante o cumprimento das buscas, um homem foi autuado em flagrante tanto pelo crime
de disponibilização e divulgação de material de pornografia infantil na internet, como por
armazenamento de imagens e vídeos de exploração sexual infantil... De acordo com a Polícia,
as investigações iniciaram a partir de relatório produzido pelo Núcleo de Repressão aos Crimes
de Ódio e à Pornografia Infantil na Internet da Polícia Federal, em cooperação com a Interpol. Foi
identificado e preso o usuário que armazenava dezenas de arquivos de pornografia infantil e os
compartilhava por meio da rede mundial de computadores.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Compreende-se, com a notícia supramencionada que, a internet está presenta na vida do ser humano,
e tornou-se indispensável para tarefas do cotidiano. As plataformas facilitam na comunicação entre as
pessoas, auxiliam em trabalhos escolares, pesquisas, compartilhamento de documentos, reuniões via
online, etc. Esta ferramenta inova-se a cada dia que passa, o indivíduo acaba tornando-se dependente
dos aparelhos eletrônicos e suas diversas funções que proporcionam a humanidade. Contudo, com a
facilidade de conhecer pessoas, possuir ciência de sua rotina quando divulgada nas redes sociais, tornou-
se um meio extremamente perigoso se não o utilizar-se com extrema consciência e cuidado.
Pode-se referir, que através da internet, indivíduos aproveitaram-se deste meio para, se passar
por outra pessoa e marcar encontro com menores, também por meio de montagens de fotos, fazer com
que a pessoa fique nua, e explorá-la em questões financeiras e ainda realizar chantagem psicológica.
O meio eletrônico pode facilitar a vida do ser humano, mas, no entanto, o cuidado com a utilização
destes deve estar presente na consciência da pessoa, tendo em vista todos os acontecimentos
reportados e que podemos presenciar de atos ilícitos que ocorrem por meio da internet.
Ainda, ao se falar em diálogo sobre o uso considerado adequado das redes sociais, é relevante
destacar a importância da conversa entre pais e filhos sobre os limites necessários e os cuidados que
precisam ser tomados no uso destas, uma vez que uma vez divulgado algo íntimo de um incapaz, é a
família quem passa a ser responsabilizada pelo exposto, a sociedade questiona os responsáveis pela
educação que e a criança ou adolescente está tendo sobre os usos das plataformas. Em razão de se
tratar de um indivíduo menor de idade, a família em que este faz parte, estará sempre envolvida na
vida e acontecimento de sua vida, a afetividade, a confiança e o respeito, estão fortemente ligados na
relação de um ambiente familiar (SILVA e SILVA, 2017).
Havendo exposição de algum dado, foto ou vídeo da criança e do adolescente, vê-se esta relação
abalar-se, principalmente em tratando-se de exposição de conteúdo por adolescente, que em certos
casos, não possui consciência do que poderá gerar este ato. Sobre o diálogo entre pais e filhos na
adolescência e o impacto na relação do ambiente familiar, Silva e Silva discorrem

Essa é uma fase em que o adolescente passa por grandes transformações, principalmente no que
se refere à comunicação no contexto familiar. Por isso, é sobremaneira importante a comunicação
entre os pais e os filhos. A criação de um ambiente onde as emoções e as opiniões possam ser
partilhadas de forma livre, segura e respeitosa é fundamental. Para um adolescente, é importante
que seu ponto de vista seja valorizado, já que ele está passando por um conflito interno e por uma
transição da fase infantil para a adulta.

Além do exposto sobre a preocupação que se tem no uso inadequado das redes sociais e os
perigos das exposição de dados, é necessário uma reflexão sobre as vantagens e desvantagens do
uso excessivo das plataformas e meios eletrônicos. A internet transforma-se, inova-se, busca atingir
diversas idades de pessoas, não tendo em específico um público alvo, haja vista que desde crianças
com seus desenhos infantis, adolescentes com plataformas como WhatsApp, Facebook, Instagram,
Twitter e demais redes sociais, bem como adultos com novos aplicativos de reuniões, meios de
comunicações e meios que auxiliam em seu cotidiano profissional (SILVA e SILVA, 2017).
Contudo, a internet com seus meios convidativos de entretenimento, acaba tornando-se viciante
e um perigo para a etapa de desenvolvimento da criança e adolescente que passa a virar dependente
dos meios eletrônicos e não consegue conciliar tarefas que não envolvem as plataformas, bem como
a interações em sociedade que fazem-se presentes e importante na vida dos seres humanos (ABREU,
et al. 2008). Nesse sentido, colaciona-se de Silva e Silva

Os adolescentes lideram o ranking de uso de celulares e internet. Segundo dados do


Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em seu último censo realizado em
2010, e do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br), de 2014, notou-se que, em um
conjunto de 34,1 milhões de pessoas, entre 10 e 19 anos de idade, existentes no país,
cerca de 81% acessam a internet todos os dias. Isso evidencia o quanto a internet está
inserida nos lares brasileiros e o seu poder de persuasão.

Com o uso excessivo dos aparelhos eletrônicos, os adolescentes passam a ter menor contato e
proximidade com sua família do que é o necessário para sua fase de desenvolvimento. É neste período
que o adolescente começa a entender os compromissos que uma vida adulta requer, como o seu futuro,

348
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

sua vida familiar e também sua sexualidade. Em tratando-se de diálogo, mostra-se imprescindível que
isto ocorra no ambiente familiar em que o infante faz parte, no entanto, com o uso excessivo das redes
sociais, o adolescente distancia-se da fala e intimidade com seus pais e inevitavelmente, passa a maior
parte do seu tempo interagindo no mundo virtual (SILVA e SILVA, 2017).
Diante do uso excessivo das redes sociais, a pessoa começa a possuir dependência tecnológica,
o que acarreta em dificuldades na capacidade de interação no meio social. Ainda, em Silva e Silva

Dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGI.Br21 - apontam que o nível de frequência de uso
da internet por adolescentes para determinadas atividades, como a troca de mensagens
instantâneas, por exemplo, é bem superior ao uso para pesquisas escolares e que o
uso diário da tecnologia, sobretudo da internet, é muito mais frequente para a troca
de mensagens instantâneas (75%) e a interação em redes sociais (56%), via aplicativos
de celulares e computadores, e o uso para pesquisas escolares fica na quinta posição
(21%). Esses números evidenciam que o uso excessivo dessas tecnologias é um fator
preocupante para o desenvolvimento cognitivo dos adolescentes, porque poderá trazer
consequências, como isolamento social, falta de interesse pelos estudos e ansiedade, e
exercer influência em seu desenvolvimento educacional, alterando a sua cognição.

Portanto, o que era para ser um momento de lazer e diversão, além de a proporcionalidade de
facilitação nas pesquisas de trabalhos à escola, tornou-se motivo de preocupação para pais e também
professores, haja vista que esta dependência pode levar a um isolamento social, queda na produtividade
escolar e também acadêmica. O mundo virtual para os jovens, acaba sendo um facilitador da comunicação,
há uma visão diferente da realidade fora das plataformas, uma vez que estas não requerem tantas
responsabilidades e dedicação (ABREU, et al. 2008). ABREU, et al. discorrem sobre o assunto

a Dependência de Internet pode ser encontrada em qualquer faixa etária, nível educacional e
estrato sócio-econômico. Inicialmente, acreditava-se que esse problema era privilégio de
estudantes universitários que, buscando executar suas atribuições acadêmicas, acabavam por
permanecer mais tempo do que o esperado, ficando enredados na vida virtual. Entretanto, tais
pressuposições mostraram ser pura especulação. Sabe-se, hoje, que à medida que as tecnologias
invadem progressivamente as rotinas de vida, o contato com o computador cada vez mais deixa
de ser um fato ocasional e, portanto, o número de atividades mediadas pela Internet aumenta de
maneira significativa, bem como o número de acessos e tempo medido na população brasileira
que, atualmente, ocupa o primeiro lugar no mundo em termos de conexão doméstica.

Com o exposto, é de conhecimento geral que a internet está presente em nossa sociedade e
tornou-se indispensável para a vida do ser humano, possuindo assim, pontos positivos e negativos.
Pode-se falar em pontos positivos na facilidade e no auxílio que os meio eletrônicos beneficiam o ser
humano em comunicação, pesquisa, informação rápida, entretenimento, novos meios empregatícios
e além de programas educacionais às crianças. No entanto, a internet é uma ferramenta que por
meio de seu uso contínuo e desenfreado, torna-se perigosa ao desenvolvimento infanto-juvenil e as
relações socioafetivas destes, uma vez que é preciso uma interação com o meio social, visto que, em
tratando-se de ser humano, é indispensável a interação deste com seu meio.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A internet é resultado de anos de evolução tecnológica. O desenvolvimento desta ferramenta, está


intrinsecamente ligado ao desenvolvimento da sociedade. É fato citar, que os meios de produção, as
pesquisas e os modos de comunicação, evoluíram ainda mais após a interação do meio digital com o social.
Visto que existem inúmeras possibilidades no meio digital, é de se ter como precaução a
segurança ao adentrar na rede. A exposição constante de dados pode por em risco a privacidade
individual, sendo que a neutralidade da rede não é garantida na maioria dos casos.
As redes sociais da atualidade, acessadas através da rede mundial de computadores, e demais
dispositivos modernos, como smartphones e tablets, conta com milhares de usuários. Verifica-se,
entretanto, que o acesso é permitido com algumas prerrogativas, dentre elas, a idade mínima de
quem realiza o acesso.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Nesse sentido, no Brasil é evidente a forma precoce como algumas crianças e adolescentes
passam a frequentar o meio digital. Ressalta-se, que o acesso às redes permite o desenvolvimento
cognitivo dos indivíduos e proporciona demasiado leque de informações.
Outrossim, a falta de neutralidade da rede pode causar dificuldades latentes. Havendo uso
desenfreado pelo público infanto-juvenil, são verificados danos causados à saúde física e mental,
como déficit de atenção e retração com a família e o meio social no qual convive.
Grande problema surge, na dificuldade em controlar o acesso desenfreado das crianças e
adolescentes, principalmente por parte dos pais. O uso irrestrito, proporciona diferentes experiências
aos indivíduos que se encontram nessa faixa estaria. A utilidade da internet, aumenta ainda mais,
sendo que a fase infanto-juvenil gera inúmeras dúvidas, sobre variados assuntos.
A inconveniência do infrene uso das tecnologias, não está apenas relacionado ao tempo que os
indivíduos ficam online. A questão principal aqui destacada, é a invasão da privacidade, e a violação
que acarreta o uso inadequado e inocente por parte de alguns.
Nesse sentido, frisa-se a vulnerabilidade das crianças e adolescentes quando dilemas afetam sua
personalidade. É perceptível, por exemplo, em questões como cyberbullying, e exposição de imagens
íntimas compartilhadas, sem consentimento de uma das partes.
Destarte, é evidente o problema relacionado ao acesso desenfreado pelo público infanto-juvenil.
Logo, também fica claro o aproveitamento por parte de alguns indivíduos de situações vulneráveis, que
causam constrangimentos. Portanto, é de suma importância o papel do mundo jurídico, buscando a
evolução das legislações com propósito de proteger e evitar questões para que não fujam do controle.

REFERÊNCIAS

ABREU, Cristiano N. de, et al. Dependência de internet e de jogos eletrônicos: uma revisão. Revista
Brasileira Psiquiatria, São Paulo, v. 30, nº. 2, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462008000200014&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 24 de set. de
2020.

BRASIL. Lei nº 12.965. Brasília, 2014.

_______. Lei nº 8.078. Brasília, 1990.

_______. Lei nº 8.069. Brasília, 1990.

FUCUTA, Brenda. Hipnotizados: o que nossos filhos fazem na internet e o que a internet
faz com eles. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconectividade.


2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019.

SILVA, Thayse de O.; SILVA, Lebiam T. G. Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a
geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, São
Paulo, v. 34, nº. 103, 2017. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0103-84862017000100009. Acesso em: 24 de set. de 2020.

SEM AUTOR. Mais um homem é preso pela PF por exploração sexual de crianças e adoles-
centes na internet. Jornal Rondoniagora: Rondônia, 2020. Disponível em: https://www.rondonia-
gora.com/policia/mais-um-homem-e-preso-pela-pf-por-exploracao-sexual-de-criancas-e-adolescen-
tes-na-internet. Acesso em 24 de set. de 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

DEMOCRACIA, CULTURA DE VIOLÊNCIA E DIREITOS HUMANOS

Enio Waldir da Silva163

RESUMO: Uma estrutura de relações sociais que subordina e oprime os seres humanos a imperativos
sistêmicos sem que estes disso tenham consciência não é e não pode ser democrática. Esta é a
maior razão da teoria critica em condenar a lógica de acumulação de lucro privado sem limites do
capitalismo, que, em sua essência é oposta a democracia, pois corrói o caráter produtivo e solidário
do homem, as finalidades justas das regulações sociais, as bases concretas de sustentabilidade dos
direitos humanos e a dignidade da vida: o alimento, a moradia, a educação, o trabalho e renda para
garantir a saúde corporal, intelectual, espiritual, afetiva. Aí está a origem da cultura das violências.
Pela metodologia de pesquisa bibliográfica vamos refletir sobre a cultura de direitos humanos como
um antidoto a cultura de violência e assegurador da vida democrática.

Palavras-chave: Democracia; Violência; Cultura; Direitos Humanos

INTRODUÇÃO

As teorias críticas atuais procuram mostrar as resistências e lutas contra o aspecto dominador
das concepções que querem destruir as forças emancipacionistas que do interior destas instituições
onde estavam os pensadores de esquerda. Estas concepções reaparecem agora carregadas pelas
mídias das tecnologias informacionais e comunicativas e sua força produtivista meritocratista de
mercado de lucros rápidos e acumulações instantâneas. A lógica do ethos capitalista, da ciência
neoliberal a serviços das grandes empresas volta a correr nas veias do sistema que exige produção
(multi) seriadas, circulação desprogramadas e distribuição global de mercadorias com preços (super)
agregados. Os programadores da produção são os consumidores e os pretensos consumidores que,
até mesmo acidentalmente, olham as mercadorias nos espelhos das redes sociais.
As tentativas resistências são ineficazes dado o alto grau de diferenciação de como a logica de
dominação nos atacam. O globalismo dominador e sua lógica impõe formas únicas de interpretar o
mundo que desautoriza a expansão de epistemologias periféricas, incapazes de modificar os saberes
leigos, naturais, ignorantes, sem luzes e inspiradores de individualismos que se recolhem em seus
medos de um futuro mais coletivista.
A força que amarra o saber ao poder se desloca e modifica sua imagem confundindo até mesmos
as visões progressistas: aquelas que defendem a democracia e que tentam se levantar esforços de
desconstrução das concepções dominadoras das noções de tempo e espaço modernos e pós-modernos,
procurando pautar novos conteúdos para a vida democrática já imaginada na modernidade. Trata-se da
defesa de um conjunto de ideias que coloca o povo como sujeitos capazes de viver segundo suas próprias
promessas, numa espécie de esperança em ação, emergidas da razão histórica criadas por muitas culturas.
Ecoam os gritos de quem quer limpar a racionalidade das suas formas de poder violento e
excludente e manter uma razão limpa e humanista para guiar os indivíduos no respeito da dignidade
da humanidade vida humana, respeito a natureza e as culturas. O pensamento dialético critico, que
foi sombreado pelo racionalismo economicista, tanto na Europa como no mundo todo, parece ser
a ancora para onde os intelectuais estão retornando de suas jornadas pelos campos práticos do
eleitoralismo da democracia representativa, que possibilitou menos conexões (mas não integração)
globais na economia, na politica, na cultura e em imaginações, e mais expulsões, dominações,
opressões que fragmentam os povos.
O domínio de classe que se instaurou na América Latina fez a hegemonia imperialista se

163 Professor Doutor em Sociologia. Pós-Doutorando na UFRGS. Professor Colaborador do Mestrado em Direitos Humanos. Unijui.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

perpetuar e se renascer constantemente, contaminando, inclusive, aqueles que se diziam resistentes


locais e que não conseguiram formar uma rede com as históricas lutas contra a dominação. Estas
lições históricas das lutas emancipacionistas traziam o germe novo de uma nova razão. O chamado
póscolonialismo não é, portanto, uma invenção recente e nem teve um lugar específico para nascer.
Desde os esforços feitos por Paulo Freire, para traduzir a dialética revolucionária para as
metodologia escolares, até a invenção de uma antropologia cultural por Darcy Ribeiro e as contribuições
de Fals Borda, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Boaventura de Sousa Santos, Frantz Fanon e outros,
notamos esforços de pesquisa sobre o que se trata esta nova razão, bem como esforços na formulação
de propostas que possam integrar esta pluriversalidade da razão em projetos e conquistas.
Os conceitos são mais que palavras ou instrumentos de pesquisa, são expressões pensadas da
realidade que a representam, animam e ordenam a ação, com a perspectiva que os conhecimentos
teóricos possam também ordenar a realidade. Neste sentido, o conceito de decolonialidade se integra
às teorias críticas que faziam interpretação da dialética histórica do ponto de vista da igualdade
humana. A decolonialidade é uma teoria critica de hoje, uma noção que se insurge contra as formas
interpretativas da racionalidade ocidental que orientaram a institucionalidade politica, cultural e
econômica das sociedades colonizadas da América Latina e outros lugares. No caso dos sistemas
jurídicos, onde os direitos humanos foram referenciados, se diz que foram cópias do iluminismo
europeu que defendia a racionalidade do sujeito livre (BRAGATO E DEMACENA, 2013).
Os horrores que se seguiram não foi fruto das concepções inerentes ao que estava escrito
como direitos humanos e sim dos desvios destes. Prevaleceram as lógicas mercantis de infinitas
acumulações de lucros e capitais que pervertiam os valores expressos nos direitos humanos opostos
a lógica da colonização e expansão do capitalismo europeu, oriental ou da América do Norte. Os
direitos humanos continuam a desafiar para se entenda o significado da dignidade humana para
todos (universais, portanto), pois não podemos negar que existe uma essência que nos iguala como
humanos, assim como não podemos apontar tudo que nos diferencia. Se cada sujeito tem direito de
desejar o que quiser sem discutir o significado coletivo destes, passaremos o resto da vida discutindo
desejos diferenciados, e, portanto, se tornarão ainda mais impossibilitados deles se tornarem
concretos. Ter dignidade e direitos iguais não deveria ser entendido como paradoxal ao ponto de uns
acharem que alguns grupos serem mais iguais que outros. Respeitar as diferenças não é possibilitar
que uns vivam de privilégios e outros passem necessidades básicas.
Isso foi acusado pelos pais das teorias críticas revolucionárias como sendo irracionalidades. Os
europeus Marx e Engels, por exemplo, denunciavam as distorções na compreensão sobre o sentido da
vida e da igualdade humana. Isso não é mera questão de efetividade de leis bem escrita, mas de concepção
de mundo e das condições das vivencias e convivências humanas (MARX, 1986). Este é o problema:
como criar a consciência compartilhada da dignidade da humanidade da nossa vida? Como podemos ver
expressa esta consciência numa organização social, cuja própria ordem faz a força de sua manutenção?
Aí estão algumas dimensões epistemológicas, substanciais e institucionais dos direitos humanos
que não ficaram amarrados à trajetória da cultura do mercado capitalista. Os capitalistas, por outro
lado, continuam a compreender que a acumulação sem limite é um direito humano. Os sistemas de
poder criados a partir desta lógica legitimam estas compreensões de quem quer capital a todo custo.
Estes jamais serão racionais ao ponto de propor ou concordar com quem propõe a igualdade econômica
do ser humano de onde decorre as outras liberdade e igualdades: sociais, culturais e politicas.
O estranhamento nas relações sociais tem ali sua origem e somente quando tivermos a efetivação dos
direitos humanos e da democracia teremos a paz social. Cuidaremos deste tema na discussão que se segue.

1 DESENVOLVIMENTO

O padrão de poder da lógica capitalista é o mesmo desde suas fundações originárias na Europa,
mas se revigora diferentemente no tempo e espaço. Mesmo que se façam redes de explicações destas
realidades dominadas não se consegue inserir estes entendimentos em forças transformadoras desta
dominação. Ou seja, para a crítica ser completa, além de interpretar profundamente a realidade é
preciso transformá-la no sentido de quem precisa de transformação de suas subalternidades.

352
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A questões do racismo, de gênero, da desigualdade, a do patriarcalismo, do colonialismo, etc.


precisam ser vistos como parte da luta de classe. Neste sentido, a questão é totalidade histórica
e não somente da América ou da Europa, e não tem como foco único a classe operária, mas todo
o ser humano genérico, como dizia Karl Marx, Gramsci, Lukacs, Marcuse e outros em suas lutas
contra as formas hegemônicas burguesas de compreender o mundo. Sabiam estes autores que a
dominação econômica capitalista só era possível graças forças simbólicas dos valores que lhes davam
legitimidade, grudadas as praticas de produção, consumo e troca sempre mais atraentes.
A partir destes pensadores é possível entender que os direitos humanos estão sempre a depender
de contextos econômicos, políticos, sociais e culturais, mas sua objetividade em proteger a dignidade
humana ultrapassa os tempos e os espaços, pois liga-se ao entendimento que a pessoa precisa ter acesso
a tudo aquilo que respeita e permite desenvolver as atitudes e as aptidões que o empodera diante do que
necessita para ser digno. Ou seja, uma pessoa tem seus direitos humanos respeitados quando ele pode
criar capacidade para prover e prever suas necessidades, não impedindo o outro de também fazer isso.
Uma das funções que os direitos humanos cumpriram foi, no entanto, de possibilitar que as
pessoas compreendessem que são portadoras destes direitos, abrindo caminhos para elas reivindicar
por acesso a alimento, moradia, saúde, educação, trabalho e renda para garantir a saúde corporal,
intelectual, espiritual, afetiva. Isto é também o conteúdo da vida democrática como começo, meio e
fim de uma forma de vivencia e convivência justa.
Na luta pela democracia e, portanto, pelos direitos humanos, a questão é saber como é possível
providenciar estas necessidades genuínas em uma situação em que a violência traduz a complexidade
das sociabilidades e o desconforto das relações sociais embrenhadas em laços de estranhamentos e de
sentidos ameaçadores das perspectivas de uma ordem social que assegura as vivências e convivências
humanas. As ciências, os partidos, os movimentos sociais, as instituições e as organizações não conseguem
propor algo duradouro e universal que assegure a paz social. Além disso, possuem dificuldades de propor
alternativas para enfrentar aquilo que gera as situações de violência: a lógica do capitalismo de mercado
que busca, incessantemente, o lucro, a exploração, a dominação, a concorrência e a livre acumulação. As
artimanhas que forçam a cultura do consumismo tornam-no um ópio que impede o indivíduo de perceber
sua dignidade e, por consequência, a dignidade do outro, que está para além dos negócios e apetites
imediatos. Da violência objetiva do sistema é gerada a violência subjetiva que se expressa em mentes
aliciadas sem disposições para vida simples, solidária e igualitária (SILVA, 2017).
A violência estrutural e sistêmica transforma os bens necessários à vida de todos os seres humanos,
como a terra, a água, o ar, a energia, as sementes, a informação, a tecnologia, a educação, a medicina,
a cultura, os meios de comunicação, etc., em mercadorias passíveis de apropriação, de acumulação
e de especulação privada. Este sentido exploratório implica a privação do acesso da imensa maioria
da humanidade a tais recursos considerados essenciais à vida digna, ao direito humano individual.
Reflexões sobre violências nos levam aos estudos dos direitos humanos que podem nos mostrar que
é preciso que indivíduos e grupos se organizem para enfrentar a mercantilização da vida, as exclusões
e as crescentes desigualdades sociais existentes, além de ser necessária a recriação de regulações
sociais, compatíveis com a vida digna, frutos de pactos de sujeitos livres em diálogos democráticos.
Abordagens atuais destes temas indicam que os mecanismos racionais de controle social
criados na modernidade não foram eficazes para tratar da violência e da conflitualidade humana.
Embora sempre em crise, nos últimos tempos, estes mecanismos vêm sofrendo críticas avassaladoras
diante da ineficácia e ineficiência em tratar dos efeitos de uma estrutura social injusta. Os direitos
humanos, por exemplo, nasceram e vieram ao lado do agravamento das situações de violência,
embora se tornassem um discurso recorrente e uma espécie de dique contra os estranhamentos entre
os indivíduos que resultou na situação atual ampla de violências ao ponto de poder ser comparada a
uma cultura de desrespeito que se torna fonte de constrangimento das sociabilidades humanas.
Assim, compreende-se que, quando os seres humanos são atingidos em uma de suas realidades
sociais, econômicas, culturais, éticas, políticas, afetivas, estéticas, espirituais a ponto de gerar dor e
sofrimento, dissemos que há violências. Esta definição inicial já demonstra a dificuldade em esclarecer
a violência como fato empiricamente medível. Porém, não podemos deixar de fazer esforços para
compreender profundamente os fatos que constrangem os indivíduos para o exercício humano dos
deveres e direitos, fatos que atingem as sociabilidades promotoras da dignidade da vida em convivência.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Embora existisse em todas as fases históricas, a violência adquiriu características especificas


nos contextos diferenciados. Quando está mais presente nas relações sociais, como hoje, conforme
diz a sociologia, a violência é muito destrutiva e anticivilizacional por ser divulgada como presença
em todos os espaços sociais.
Desvelar as formas e tipos de violência não é suficiente e apontar situações pontuais só colabora
para soluções fáceis e monocausais, como é o caso do encarceramento em massa nas sociedades atuais.
Dois espaços colaboram para identificar a variedade de violências de hoje: a academia que elabora teorias
críticas, e os movimentos sociais que lutam por reconhecimento e justiças sociais, tendo como base as
vivências e convivências entre indivíduos. Isso permite a emergência de algumas políticas públicas e a
institucionalização de normas, embora se constate o aumento da criminalidade e da violência.
Isso fortifica a argumentação de que vivemos uma cultura de violência nas relações sociais, pois,
além de estarmos rodeados por ambientes e discursos, estamos com muitas ações tensas relacionadas
a ela. Tavares dos Santos, (2011), chega a perguntar se não está nascendo um código de sociabilidade
orientado pela violência, ou se, a partir da linguagem da violência, estaria nascendo uma nova norma
social. Ao dizer isso, o autor contextualiza a violência como um ato de incivilidade inserida num tempo
social, politico, econômico e cultural, em que tudo parece entrar em crise sistêmica e onde os grupos
particulares a usam como estratégia de resolver conflitos, meio de aquisição de bens materiais, obtenção
de prestígio ou defesa de poder. De qualquer forma, estamos diante de fim de valores universais,
próprio de uma sociedade fragmentada, heterogênea e global (TAVARES DOS SANTOS, 2011; P.14).
Força, coerção e dano, em relação ao outro, enquanto um ato de excesso presente nas relações
de poder – tanto nas estratégias de dominação do poder soberano quanto nas redes de micropoder
entre os grupos sociais – caracteriza a violência social contemporânea. Wieviorka (1997) lança
hipótese explicativa para uma questão sobre a obsessão punitiva de nossa sociedade contemporânea,
materializada nas chamadas “demandas por ordem social”, explica-se justamente pelo modo de
funcionamento da sociedade de risco que edifica toda uma imensa e resistente superestrutura de
prevenção e segurança (por meio da proliferação das sociedades de seguro e dos mecanismos de
vigilância privada) para encarar os medos, perigos e ameaças que tornam a vida humana, social e
intersubjetiva, absolutamente incerta (WIEVIORKA 1997; p. 38).
Na sociologia, os estudos da violência são amplos e complexos, e nem sempre se encaixam em
paradigmas explicativos. Há, no entanto, alguns que reclamam tal a necessidade, mostrando que não
estamos podendo analisar dentro do paradigma político, econômico e social, sob o qual se assentava
o pensamento sociológico do ultimo século. Touraine, por exemplo, escreve que necessitamos de
um novo paradigma para que possamos nos situar com capacidade para nomear os novos atores, os
novos conflitos, as representações do Eu e das coletividades. Defende uma proposta de paradigma
cultural, pois estamos em uma era tecnológica e de informação em que os discursos informam sobre
a era da violência interpessoal, do fim do social, e o triunfo de um individualismo desorganizador
das agências socializadoras como a família, a escola, a religião, as leis, etc. (TOURAINE, 2006; p.10).
A violência liga-se a indivíduos que perderam a esperança, já estão sem causa objetiva, sem razão
histórica e são como representantes da miséria do mundo que zombam da tentativa das autoridades de
querer impor a ordem sem atacar o que causa a desordem. No entanto, ela é causada pela diminuição
do controle social feito família, pela religião, pela educação, pelo trabalho e pelo Estado. Com isto,
parte-se do pressuposto de que a ordem de nossas sociedades não pode ser obtida pelo reforço
das regras e dos comportamentos conformes com elas. A integração somente será possível se o
indivíduo, sua vida e sua palavra, estiverem no centro da vida coletiva: se o indivíduo puder falar, se
for ouvido e entendido. Ou seja, é no aspecto individual que mais se situam as causas e impactos de
ações desordenadas produtoras de resignações. A crise do sujeito individual levou a protestar contra
todas as pontes entre ele o coletivo. Os laços sociais enfraqueceram, a cidadania se dilacerou e a
dignidade se desloca para vários pontos de desejos humanos. As formas de desintegração que nos
parecem mais graves são aquelas que não deixam o indivíduo agir como sujeito, que desintegram
a sua personalidade, que o impedem de ligar seu passado e seu futuro, sua história pessoal a uma
situação coletiva, e o tornam prisioneiro da dependência ((TOURAINE, 2006, p. 314/315)
O indivíduo por si só não poderá resistir à violência. Mas cada indivíduo descobre em si mesmo,
na defesa de sua própria liberdade, sua capacidade de agir de maneira autor-referencial, na busca da

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

felicidade, dizem os subjetivistas. Estes tentam mostrar que diante da destruição da ideia de sociedade
– pois não nos sentimos sócios de nada, cada um acha que somente seu ponto de vista é que vale - só
pode nos salvar de uma catástrofe se ela leva adiante à construção da ideia de sujeito em busca de uma
ação que não procura nem o lucro apenas individual, nem o poder nem a glória pessoal, mas que afirma
a dignidade de cada ser humano e o respeito que a vida merece. Aí está a semente capaz de impedir que
nossas sociedades caiam numa extenuante violência concorrencial generalizada. Então, este sujeito é
aquele que tem consciência do direito de dizer EU sem se perder em falsos caminhos que são reforçados
pelos valores dominantes, colonizantes, excludentes e violentos que tendem a enterrar em um lugar
social imposto e a integrá-lo no sistema social sobre o qual não pode exercer influência.
A violência164do tempo atual carrega múltiplos sentidos ameaçadores de qualquer perspectiva
de ordem para nossas vivências e convivências e amordaça disposições até mesmo para pensar
alternativas, como diz Boaventura de Sousa Santos (2008) e de construir novas subjetividades que
queiram pensar e agir em nome de outras formas de sociabilidades.
A solidariedade é, portanto, uma das características mais comuns dos sentimentos humanos e é um
dos elementos universais presentes na lógica da humanidade dos indivíduos e não a competitividade como
vinham defendo as concepções liberais da modernidade. Quando essa força humana de solidariedade é
percebida e desenvolvida, vemos brotar a grandeza da igualdade humana. E foi a imaginação de um futuro
mais promissor que levou muitos atores sociais a provarem que a grandeza da história humana está mar-
cada pelos momentos em que houve ações coletivas solidárias; quando a humanidade apenas competiu, se
corroeu, entrou em violência, guerras e decadências. Em Marx (1986), por exemplo, podemos ler e interpre-
tar que quem não descobriu a dignidade da vida, não entende a solidariedade e a igualdade; se não se tem
consciência da igualdade, se apela para o estranhamento, a exploração e a dominação (SILVA, 2018).
A violência é, também, um fenômeno que se origina no indivíduo como aspecto de sua dimensão
social e reflete nos grupos e instituições seguindo fatores culturais, sociais e psicológicos, causando
terror, deslocamento, infelicidades e morte do outrem, além de destruir objetos e bens. A violência,
nas interações sociais, envolve atores, agencia situação de contexto, meios, normatividade e valores.
A violência se faz presente em processos que habitualmente a desconhecem, porque não só
limita a sua consideração aos fatos abruptos e excessivos, senão a condições socioestruturais que
se manifestam na série de ameaças evitáveis contra a satisfação das necessidades humanas básicas.
A violência, nesse sentido, consiste na diminuição do nível real de satisfação das necessidades dos
sujeitos por baixo do que seria potencialmente possível165.
Há alguns esforços em classificar a violência em muitos tipos, mas Žižek diz que há basicamente
três: a violência subjetiva, visível e exercida por agentes claramente identificáveis, que nos intimida
e amedronta e é perpetuada de forma direta pelos indivíduos. A violência objetiva, invisível e está
sustentada em um ambiente latente de ações de racismo, machismo e homofobias que passam a
ser naturalizados e até despercebidos. Estas são “simbólicas” e encarnadas na linguagem e em suas
formas, naquilo que Heidegger chamaria a “nossa casa do ser”. Essa violência não está em ação
apenas nos casos evidentes – e largamente estudados – de provocação e de relações de dominação
social que nossas formas de discurso habituais reproduzem; há uma forma ainda mais fundamental
de violência que pertence à linguagem enquanto tal, à imposição de certo universo de sentido, como
ocorre, por exemplo, nos discursos fundamentalistas homofóbicos ou misóginos, onde se perpetuam
as tentativas infundadas de naturalização de discursos de anormalidade dos gays e lésbicas, ou
da condição de submissão biológica da mulher. A violência sistêmica consiste nas consequências
muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas econômico e político que se
fundamenta na injustiça e na desigualdade, na pobreza e na miséria, próprias da lógica do capitalismo
global, mas que não está expressa por nenhum neoliberal166.
Estas tentativas de destacar as tipologias de violência esforçam-se também para criar imaginações
menos catastrofistas que inserem a violência como ansiedades e inquietudes de todos. A fragilidade

164 Etimologicamente a palavra é referenciada ao latim violentia, relacionada a viseviolare, e porta os significados de
força em ação, força física, potência, essência, mas também de algo que viola, profana, transgride ou destrói. In:
ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência, reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Rev. So-
ciologia. USP, São Paulo,10(1):19-47,maio1998.
165 Interpretação feita por André Copetti dos Santos em texto dissertativo. Mímeo. Aulas do Mestrado. Unijui, 2018.
166 ŽIŽEK, Slavoj. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 17.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

da ordem social impõe discursos de necessidade de forças legais e morais que impeçam a explosão
destas ansiedades e paixões. Um mesmo sujeito pode combater atos de barbarismos para populações
inteiras e ser afetuoso e demostrar atos de humanidade para o seu grupo.
O que se duvida sempre é de que exista violência que concerte. Ela não é humana, não é afetiva,
é um desvio da racionalidade deste. Ela é sempre destrutiva. À força que concerta podemos dar
outro nome, mas não violência. A prática da violência como toda ação, transforma o mundo, mas a
transformação mais provável é em um mundo mais violento (ARENDT, 1970; p.51)
Ameaçado em uma destas condições asseguradora da existência, o indivíduo reage. O conjunto
destas reações resulta em um caos, um ambiente caosmos, como diz Sousa Santos (1996). Mas a
reação não é já a violência. Primeiramente teríamos a situação de conflito – próprio das diferenças que
se acirram - e depois a reação como ato agressivo – é instintivo e natural, aparece quando é provocado
- se não for controlado, chegará aos crimes e a violências. O conflito é percebido pela exacerbação
das diferentes compreensões, precisando, muitas vezes, apenas de um mediador, de um acordo; a
agressão, pelo afastamento da ameaça imediata. Os crimes geralmente podem ser resolvidos na
esfera da lei e das estruturas jurídicas (nem todo o crime é violento). A violência, no entanto, não é
possível delimitar as consequências e os caminhos exatos da resolução. Se não podemos medir as
consequências da violência, o melhor de tudo é não deixá-la começar.
Alguns pensadores como Arendt, relacionam às explicações da violência à necessidade de poder
do ser humano. Pensam que, tendo o poder, ele enfrenta todas as ameaças. O problema é que, com
poder, o indivíduo mesmo se torna uma ameaça. A violência é, então, a manifestação do poder que
quer garantia de ser obedecido ou ao que se quer desobedecer, resistir.

Uma das mais óbvias distinções entre o poder e a violência é que o poder tem a necessidade de
números, enquanto que a violência pode, até um certo ponto, passar sem eles por basear-se em
instrumentos de legitimidade. A forma extrema do poder resume-se em Todos contra Um, e a
extrema forma de violência é Um contra Todos... (Arendt; 1970. p .26)

Em nome do poder, que pode ser do Estado ou um de déspota, o sistema todo pode virar uma
violência, que é imposta e não proposta. Corrompe a figura republicana democrática, pois em nome do
poder, que se tem ou que se quer ter, se faz imposições a ele como guerras e revoluções. Mas, por incrível
que pareça, a violência que mais nos ameaça é aquela que aparece próxima de nós, em nossas janelas e
portas, gritando na TV da sala, nos quartos pelas redes sociais e não tanto das guerras e revoluções. Não
nos preocupamos quando alguém nos diz que existe uma realidade concreta de guerra que, se estourar,
pode varrer da face da terra todos os indivíduos e seus bens, como alerta a ciência política quando aborda
a concentração de poder das armas nucleares de algumas nações. Esta grande ameaça parece distante uma
vez que seria suicídio dos atores, e para a tal violência não existe controle, nada podemos fazer. Parece
que hoje rejeitamos a ideia de construir a paz pela guerra, ainda mais diante das armas tecnológicas, as
quais nem sabemos que existe ou não sabemos usar. Contra as guerras não temos nenhum movimento
social. As lutas demarcam estes são por causas societais, mas com temas pontuais.
Talvez nossa grande angústia seja a impotência diante da impossibilidade de fazer alguma coisa
ante as decisões dos “homens de guerras das nações”. Não é bem assim que acontece nas relações
sociais. A violência aqui é outra, mais sorrateira e ceifa mais vidas que não estão agrupadas (como
estão os soldados em guerra).
Mas o incrível nisso que, mesmo na guerra, é como se convence o outro a ir para guerra, como
os milhares de jovens americanos (e de outros países). Vemos muito pouca discussão do poder que
persuade as pessoas a arriscar suas vidas (nas guerras, nos esportes radicais, no terrorismo, etc.). Somente
ameaçado, amedrontado e com esperança de que a guerra elimina os medos é que um indivíduo se sujeita
a outro ou uma instituição para ir, coletivamente, ao ato violento da guerra. Somente o interesse pessoal
em defender a sua vida faz com que o individuo se submeta à força do coletivo. O grupo pode fazer
desaparecer o individualismo e se torna campo fértil para atos irracionais e violentos, parecendo proteger
o violento, encantando-o, iludindo-o e elevando-o. Temos aí o aparecimento da violência do crime.
Continuamos a apelar por uma razão sem violência. O fogo da razão deveria desentortar os ferros
da violência que agarrou o social, o político, o econômico e o cultural. Como um fenômeno social,
um fato experienciado e negado por todos, a violência não existe per si e é mal-estar da sociedade

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

que está espetacularizada nas mídias, apelando e apontando soluções parciais de sensacionalistas
punitivistas, sucumbido no fascismo societal (SOUSA SANTOS, 1996).
Esta violência que se deslocou do Estado (nas nações com governos democráticos) para relações
sociais é resultado, em grande parte, da desigualdade social. A pobreza é produtoras de ansiedades
em relação ao presente e futuro das pessoas. Ao estar na miséria, tem-se mais possibilidades de
confluências destas ansiedades e geram-se várias vulnerabilidades, estranhamentos e ações
desintegradoras dos laços sociais (SOUSA SANTOS, 2000).
Esta violência criminal, no Brasil, é, também, fruto da herança histórica da estrutura e característica
de sociedade escravocrata. Para Jessé de Sousa (2009) é na escravidão que estão os genes de uma
sociedade que humilha e mata os pobres. A mídia, a justiça e a intelectualidade, de maneira quase
unânime, estão a serviço dos donos do poder e se irmanam no objetivo de manter o povo em um
estado permanente de letargia. A menta escravocrata atravessa classes sociais e atinge o nó górdio
da história de nossas sociabilidades que vê o outro como fonte de exploração e dominação.

...Temos uma ínfima elite econômica a qual se une uma classe que podemos chamar de média, detentora
do conhecimento tido como legítimo e prestigioso. Ela também compõe a casta de privilegiados. São
juízes, jornalistas, professores universitários. O capital econômico e o cultural serão as forças de
reprodução do sistema no Brasil. Em outra ponta, temos uma classe trabalhadora precarizada, próxima
dos herdeiros da escravidão, secularmente abandonados. Eles se reproduzem aos trancos e barrancos,
formam uma espécie de família desestruturada, sem acesso à educação formal. É majoritariamente
negra, mas não só. Aos negros libertos juntaram-se, mais tarde, os migrantes nordestinos. Essa classe
desprotegida herda o ódio e o desprezo antes destinados aos escravos. E pode ser identificada pela
carência de acesso a serviços e direitos. Sua função na sociedade é vender a energia muscular, como
animais. É, ao mesmo tempo, explorada e odiada (SOUZA, 2009)

Esta dura e generalizada crítica nos ajuda a diagnosticar a cultura de violência que demarca a
sociedade brasileira atual. Segundo Jessé Sousa, é preciso entender mais profundamente que a sociedade
brasileira foi forjada à sombra da escravidão, que é característica específica ou especial do Brasil. Somos
filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma justiça específica, uma
economia específica que humilha e condena os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.
Uma violência que se liga ao ódio aos pobres. Mesmo em momento em se melhorou a miséria este ódio
gerou reações violentas como a reprodução do padrão cultural herdada do escravismo. 
O passado escravista ainda está no Brasil e se percebe quando a insegurança é agravada pela
intervenção das forças da ordem. Temo um clima de terror para as classes populares; banalização da
brutalidade; desconfiança na lei e no poder legal; visíveis problemas da dominação racial; soluções
privadas para o problema da insegurança; falta de Estado de Direito (como tal). Prevalece a cultura de
escravo tanto nas elites, quanto nas classes que sonham ser elite, e nas classes populares que esperam
migalhas das elites. Exacerba-se a violência de pobre contra pobre, mais do que pobres contra ricos.
Contrastando com esta abordagem do passado violento e criminoso que se reproduz na
sociedade brasileira, Tavares dos Santos (2002) vai nos mostrar que a disseminação da violência
criminal, mas mudou as formas de delitos e de violência que se tinha no passado: a) o crescimento
da delinquência urbana, em especial dos crimes contra o patrimônio (roubo, extorsão mediante
sequestro) e de homicídios dolosos (voluntários); b) a emergência da criminalidade organizada, em
particular em torno do tráfico internacional de drogas que modifica os modelos e perfis convencionais
da delinquência urbana e propõe problemas novos para o Direito Penal e para o funcionamento da
Justiça Criminal; c) graves violações de direitos humanos que comprometem a consolidação da ordem
política e democrática (TAVARES, 2002).
Adorno (1998) destaca à máfia como exemplo para contextualizar a nova realidade sob a
qual o crime e a violência apresentam-se na sociedade atual, por meio de organizações criadas em
determinados contextos locais específicos que dificultam sua expansão, mas facilitam a formação de
redes de solidariedade criminosa. Estas redes apresentam, em comum, o fato de que sempre contam
com a corrupção estatal para estabelecer e manter sua rede de negócios e influências.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora os valores modernos de liberdade, igualdade e solidariedade continuem sendo


fundamentais, o que se quer é mostrar que é necessário reconhecer as violências que, em nome deles,
foram cometidas para consolidar o capitalismo, sem, no entanto, ter conseguido concretizá-los.
As reflexões que têm permeado os direitos humanos tornam visível o invisível e mostram que
essa forma de distribuição se torna opressora e que somente a solidariedade é humana. Por exemplo,
permite-nos pensar na concretude da inovação de igual valor, igual racionalidade aplicada e igual
autoridade. Trata-se de não simplesmente negar o que temos, mas de, também, reapropriarmos
criticamente (negação dialética e afirmação ontológica), “pois, na relação de poder entre amo e
escravo, não há síntese dialética, o que se nega é a escravidão que afirma o amo” (FLORES, 2009).
Por isso é preciso que, nos estudos de direitos humanos, se pense a luta pela dignidade e
se problematize a realidade dominadora que está enraizada em nossos comportamentos e ideias.
Dali emergem hetero-utopias da indignação diante do intolerável, vontades críticas e pretensões de
validade universal: mesmas condições de desfrutar o social, a economia, a política e a cultura. É uma
posição contra a vida de privilégios e a favor de uma igualdade sustentável.
Em direitos humanos, os conhecimentos devem ter funções sociais de marcar a luta pela dignidade
e de fazer crítica das políticas neoliberais e das desigualdades sociais, no político, na economia e na
cultura. O pensamento jurídico não se sustenta sem uma prévia leitura da realidade, sem conhecer os
limites (fronteiras) das normas, sem ter que recorrer a entidades externas ao fundamento do direito,
como o mundo no qual vivemos.
Essas proposições mudaram as relações sociais resultantes de novas formas de capitais
(econômico, social e cultural), de diferentes tipos de poder político, regional e simbólico. A reprodução
social deu-se, então, baseada, nas concepções abstratas de direitos humanos:

...o capital é uma força inscrita na objetividade das coisas que determinam que nem tudo seja
igualmente possível e impossível... determinam as estruturas imanentes do mundo social...
determinam o funcionamento duradouro da realidade social e se decidem as oportunidades
de êxito das práticas. A força do capital domina mantendo os grupos em situação de práticas
orquestrada de disposições de ações isoladas funcionando de forma coordenada. Cria marcas e
esquemas de ações (BOURDIEU, 1972.)

É em virtude disso que, além de ser teoria, leis, concepções de mundo e ideal de justiça, os
direitos humanos são também movimentos sociais que devem quebrar com essa força que orquestra
disposições e ações hegemônicas. A reprodução é escatológica nas condições que tem para reproduzir.
O presente não é meramente consequência do passado.
As ciências sociais contribuíram efetivamente com a construção do saber eurocêntrico, fundador
da modernidade que criou o modo de vida e saber como pressupostos da evolução social ditada pela
marcha dos conhecimentos sistematizados. “Este metarrelato da modernidade é um dispositivo de
conhecimento colonial e imperial em que se articula essa totalidade de povos, tempo e espaço como
parte da organização colonial/imperial do mundo” (LANDER, 2005, p. 13).
Hoje se apresentam novos desafios para compreender os direitos humanos nos marcos das
novas formas hegemônicas de produção de riquezas e pobrezas e como categoria relacionada aos
processos dominantes da divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano. Outro desafio
engloba compreender os aspectos subjetivos e organizativos das relações de forças entre atores e
obstáculos às formas alternativas de organização social. Além disso, uma demarcação que ainda se
impõe é que os direitos humanos devam estar contra o homem burguês, branco e capitalista, contra
uma nova forma de guerra fria e quente, contra as novas formas de colonização e recolonização
amparadas por sistemas jurídicos, contra o falso humanismo que se levanta contra as lutas concretas.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

DEMOCRACIA E VIGILÂNCIA DIGITAL EM TEMPOS DE COVID-19:


UMA ANÁLISE DO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA

Raíssa Arantes Tobbin167


Valéria Silva Galdino Cardin168

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar o direito à autodeterminação informativa em
tempos de COVID-19, tendo em vista medidas governamentais ao redor do mundo de monitoramento
populacional por meio da coleta de dados pessoais e a possibilidade do surgimento de Estados de
vigilância. Para tanto, foi utilizado o método hipotético-dedutivo, fundamentado em revisão bibliográfica
de obras, artigos, notícias, legislação, doutrina e jurisprudência aplicáveis ao caso. Como resultado,
verificou-se que o monitoramento populacional remoto por meio das tecnologias tem sido uma arma
utilizada para antever possíveis locais e surtos da doença, entretanto, fundamental é que o direito à
autodeterminação normativa dos indivíduos seja respeitado, de forma que saibam como seus dados
pessoais serão utilizados no futuro, com vistas a preservar ideais democráticos e liberdades individuais.

Palavras-chave: COVID-19. Estado de Vigilância. Lei Geral de Proteção de Dados. Monitoramento


Populacional.

INTRODUÇÃO

O contexto de pandemia da COVID-19 impôs ao mundo o isolamento social e a tomada de medidas


sanitárias e de segurança para conter a disseminação do novo coronavírus, até que seja desenvolvida a
imunização eficaz. Assim, escolas passaram a funcionar a distância, o mundo corporativo adotou o homeoffice
e os eventos online e o monitoramento de muitos pacientes na área da saúde passou a ser remoto.
Tendo em vista a necessidade de prevenção do vírus e da contenção de novos surtos, muitos países
ao redor do globo adotaram estratégias envolvendo o uso de tecnologias, a coleta de dados pessoais e o
monitoramento remoto populacional, cenário que provocou questionamentos acerca da proteção destes
dados pessoais, da necessidade de controle e transparência acerca de quando e como serão utilizados e
dos riscos do surgimento de eventuais Estados de vigilância, alheios à observância de ideais democráticos
em razão da hodierna hiperconectividade, já que cada vez mais os cidadãos utilizam tecnologias e acessam
o ambiente virtual, identificando-se, concordando com os termos de uso e a coleta de dados.
Diante deste cenário, amplia-se a defesa do direto à autodeterminação informativa, que seria um direito
fundamental e de personalidade do usuário de ter ciência e consentir ou não com o tratamento de dados
que vem sendo gradativamente realizado por aplicativos, dispositivos online e algoritmos desenvolvidos
por empresas privadas e pelo Estado, com objetivos que podem ir desde a elaboração de estatística oficial
até a formação de perfis informacionais e comportamentais a serviço de agendas privadas.
Além disso, as conjunturas propostas pela pandemia evidenciaram a necessidade de debate
acerca da utilização de dados pessoais em tempos de crise, especialmente em razão da necessidade
de proteção dos direitos fundamentais e de personalidade. Desta forma, o presente trabalho tem por
objetivo analisar a possibilidade de coleta, utilização e tratamento de dados do usuário pelo Estado
para fins de monitoramento populacional em tempos de COVID-19, bem como os riscos que envolvem
a vigilância às democracias liberais.

167 Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade CESUMAR; Graduada em Direito pela UNIPAR; Graduada em Letras –
Português/Espanhol pela UEPG; Advogada no Paraná; Endereço: Rua Adolfo Alves Ferreira, nº 466, apto 102, Vila Marumby,
CEP: 87005-105, Maringá/PR; E-mail: tobbinraissa@hotmail.com
168 Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa; Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP; Docente da UEM e do
Mestrado e Doutorado em Ciências Jurídicas pela Universidade CESUMAR; Advogada no Paraná; Endereço: Avenida Joaquim
Duarte Moleirinho, nº 2324, Maringá/PR; E-mail: valeria@galdino.adv.br

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Para tanto, foi utilizado o método hipotético-dedutivo, fundamentado em pesquisa e revisão biblio-
gráfica de obras, artigos de periódicos, notícias, legislação, doutrina e jurisprudência aplicáveis ao caso.
A pesquisa analisou a experiência internacional e nacional acerca do monitoramento remoto populacio-
nal, o contexto de hiperconectividade e de vigilância digital e o direito à autodeterminação informativa,
levando em conta principalmente a Constituição Federal de 1988 e a Lei Geral de Proteção de Dados.

1 COMBATE À COVID-19 E O MONITORAMENTO POPULACIONAL

Em 2020, em razão da ameaça da COVID-19, na tentativa de prevenir a pandemia, muitos países


passaram a adotar medidas sanitárias e de controle populacional por meio do monitoramento remoto,
mediante a coleta de dados pessoais dos cidadãos para tentar identificar locais e conter possíveis
surtos da doença. Esta coleta pode se dar tanto com o fornecimento de informações por empresas de
telefonia como pelo armazenamento e tratamento de dados, considerando a utilização pelos indivíduos
de aplicativos e dispositivos em que o usuário se identifica, preenche formulários, concorda com termos
de uso, autoriza a identificação de sua localização, bem como o acesso aos seus arquivos audiovisuais.
Como demonstram Santin, Magro e Fortes (2017, p. 3), a Internet já faz parte do cotidiano das
pessoas na sociedade pós-moderna, já que conecta indivíduos ao redor do globo e diminui distâncias
e fronteiras. Diante disso, “criou-se um novo modelo de relacionamento, que alterou a organização e
as estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais, tornando a informação o eixo da sociedade”,
tendo em vista sua dinamicidade e capacidade de produção.
De acordo com Sousa e Silva (2020, p. 5), a Internet “tem sido um dos recursos considerados
mais importantes para fornecimento de conteúdo na atualidade”, em razão da “facilidade com que
dados e informações circulam” neste ambiente, o que permite “o crescimento do relevante volume
de documentos disponíveis aos usuários”. Logo, um grande volume de informações, que outrora se
encontrava disposto de forma esparsa, passa a ser armazenado em conjunto e possibilita a “análise
e agregação de todos esses dados por qualquer pessoa, e não apenas por governos e por empresas”.
(LEONARDI, 2012 apud OLIVEIRA; BARROS; PEREIRA, 2017, p. 573).
Este cenário faz com que “muitos setores da sociedade se estruturem e também levem as
pessoas a divulgarem ou compartilharem seus dados pessoais na rede, espontaneamente ou captados
por empresas ou geradoras informáticas”, que objetivam utilizar tais dados para “fins pacíficos ou
prejudiciais, para o Estado e para o usuário”. (OLIVEIRA; BARROS; PEREIRA, 2017, p. 573). Até mesmo
o próprio exercício da cidadania é gradativamente incentivado por meio do mundo virtual, uma vez
que vários serviços e benefícios à população passaram a ser regulados e/ou requeridos por meio do
preenchimento de cadastros e formulários online.
A necessidade de isolamento social provocada pela pandemia do COVID-19 intensificou a
“operacionalização do ciberespaço pelo aparato administrativo”, uma vez que demandou medidas
como o trabalho remoto e o homeoffice (HERN, 2020); a primazia por serviços oferecidos por meio
digital (ALMEIDA, 2020); compras online e no e-commerce (MEYERSOHN, 200) e que a educação
presencial passasse a ser continuada a distância (STAR, 2020). (apud MEDEIROS et al., 2020, p. 652).
Assim, recai sobre o aparato governamental “a responsabilidade de aprofundar medidas de
e-government e adaptar suas comunicações e práticas para o ambiente virtual, em respeito às
diferenças socioeconômicas vigentes”. Todavia, é fundamental mencionar que tal inserção social no
ciberespaço “é passível de exploração por uma miríade de atores capazes de operacionalizar as lógicas
e peculiaridades do universo digital segundo agendas particulares”. (MEDEIROS et al., 2020, p. 652).
Em face da pandemia e da urgência por soluções rápidas e ágeis ao enfrentamento do vírus a
serem adotadas pelas autoridades sanitárias diante dos desafios por ele colocados em relação à saúde
da população mundial, “a utilização de dados pessoais de diferentes fontes vem sendo requerida
para explorar questões científicas a partir de características da população, de dados laboratoriais,
hospitalares”, informações que podem ser utilizadas desde que sigam parâmetros éticos e legais.
(ALMEIDA et al., 2020, p. 2488).
A China foi o primeiro país a enfrentar o vírus e rapidamente implementou uma série de estratégias,
tais como: o “controle de trânsito; o uso de câmeras de medição de temperatura corporal; a utilização

361
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

pela polícia de capacete de reconhecimento termal; o mapeamento epidemiológico; o monitoramento


via drones”; o uso de “software para reconhecimento facial e medida de temperatura; a checagem de
dados telefônicos para verificar contato com infectados”. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020, p. 11).
A Coreia do Sul investiu pesado em testagens rápidas e massivas da população, bem como
em entrevistas, cruzamento de geolocalização, tracking, uso de algoritmos, imagens de câmeras
de segurança, e transações de cartão de crédito com o objetivo de determinar “pontos de infecção”.
(FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020, p. 14). Já o governo de Singapura, em parceria com “o
Ministério da Saúde com o Government Technology Agency of Singapore (GovTech)”, desenvolveu um
aplicativo de tracking que é capaz de, “usando Bluetooth, localizar os expostos ao vírus e usar essa
informação para traçar a rede de contatos, e assim alertar aqueles que possam estar com o risco de
ter contraído a doença”. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020, p. 14).
Israel, que já possuía uma política de vigilância massiva, alterou as regras de privacidade e o
compartilhamento de dados pessoais para que o Ministério da Saúde tivesse acesso a informações
presentes nos celulares dos cidadãos durante a pandemia. A nova regulamentação prevê novas políticas
de geolocalização e tracking. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020). A França passou a utilizar
“tecnologias dotadas de Inteligência Artificial para combater o vírus ao verificar se seus cidadãos
estão cumprindo com medidas estipuladas pelo governo”. Já a Itália, principalmente na região da
Lombardia, “utilizou dados pessoais dos celulares de seus cidadãos para verificar os movimentos de
sua população, ou seja, dados de geolocalização para averiguar os índices de isolamento social e se
estavam sendo respeitados”. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020, p. 19).
Mesmo com a contenção do contágio, as previsões recentes apontam que os próximos meses
serão de adaptação ao vírus, de modo que a utilização de aplicativos e dispositivos que permitem
a coleta de dados pessoais terão papel de destaque não somente na medição do contato, mas
também “para finalidades como verificar o cumprimento do isolamento, de quarentena, de verificação
probabilística de contágio, do gerenciamento de permissões para a pessoa sair em público, entre
muitas outras”. (ALMEIDA et al., 2020, p. 2488-2489).
A grande problemática é que o isolamento provocado pela COVID-19 impulsionou uma espécie
de retórica no campo político de “guerra ao novo coronavírus”, o que estimulou a propositura de
soluções voltadas à “digitalização da vida social”. (BENNET; BERENSON, 2020; NIENABER; CARREL,
2020 apud MEDEIROS et al., 2020, p. 651). Tal contexto aquece o discurso de alguns governos de
que o controle social e o monitoramento remoto em tempo real dos cidadãos que não respeitam o
isolamento, apesar de estudos e pesquisas que relevam que estes dados não seriam tão efetivos ao
enfrentamento do vírus. (RONDON; KOGAN, 2020 apud FREITAS; CAPIBERIBE; MONTENEGRO, 2020).
Conforme elucidam Freitas, Capiberibe e Montenegro, a narrativa que fundamenta tais ações:

supõe que o bem-estar – traduzido, no momento, por controle e eliminação da covid-19 – viria com
uma vigilância maior sobre as ações cotidianas dos cidadãos, garantindo-os um mínimo de bem-
estar. Para tanto, seria necessário o uso de rastreadores e outros artefatos para a extração de dados
de celulares, possível com parcerias estabelecidas com operadoras de telefonia. Identificar padrões
de movimentos das pessoas e verificar se as pessoas estariam seguindo recomendações do governo
de distanciamento social seriam algumas das atividades que justificariam tal uso. Entretanto, a
maioria das ações governamentais vem sendo implementadas sem considerar questões como a
estipulação de um prazo de duração da vigilância ou o tipo de proteção de privacidade que seria
garantida ao cidadão durante o processo. (FREITAS; CAPIBERIBE; MONTENEGRO, 2020, p. 193).

Para Finkelstein; Federighi e Chow (2020, p. 9) “a quantidade de meios tecnológicos utilizados


para a gestão da crise da COVID-19 é infindável”. Ao longo do ano de 2020, já foram utilizados “dados
de geolocalização; passaportes de imunidade; câmeras térmicas; tecnologias de reconhecimento
facial; contact tracing, tracking, etc”. Em 2020, a NSO, empresa de cyber segurança israelense, que
já vem sendo questionada no âmbito judicial tendo em vista a acusação de espionar ativistas e
jornalistas, está sendo acusada de manipulação e espionagem, por meio de dados do aplicativo
WhatsApp, com o intuito de fortalecer regimes antidemocráticos, já que vem oferecendo a alguns
governos um software que monitora telefones celulares, com o objetivo de conter a disseminação do
vírus. (CELLAN-JONES, 2020 apud FREITAS; CAPIBEIBE; MONTENEGRO, 2020).
O sistema funciona “por meio de um mapa de calor que mostra onde há um número grande

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de casos de COVID-19”. Estes dados poderiam ser utilizados para antecipar medidas sanitárias. A
empresa alega que “não terá acesso aos dados dos monitorados”, mas que necessita de informações
fornecidas pelas empresas de telecomunicações. (CELLAN-JONES, 2020 apud FREITAS; CAPIBEIBE;
MONTENEGRO, 2020, p. 193).
Como visto, o monitoramento remoto populacional tem sido uma estratégia utilizada por vários
Estados para tentar conter a disseminação e propagação da COVID-19. Contudo, apesar da importância
do enfrentamento ao vírus, tais medidas ainda levantam muitos questionamentos acerca da proteção
de dados do usuário e de como estes serão utilizados pelo Estado tanto em tempos de crise como
após o período de emergência. A criação de bancos de dados com informações dos cidadãos pode
ser muito útil durante a tentativa de contenção da pandemia, contudo, esta não pode ser utilizada em
desfavor do cidadão tanto pelo Estado como por empresas privadas caso não sejam estabelecidas e
cumpridas regras específicas acerca da necessidade de ciência e do consentimento para a coleta e o
tratamento de dados pessoais.

1.1 Vigilância digital e o risco às democracias liberais

É uma das características da sociedade pós-moderna a vida compartilhada e ambientada no


contexto virtual, de modo que há tempos se fala nas facilidades e, ao mesmo tempo, consequências
da vida hiperconectada, que pode trazer uma gama de benefícios ao usuário, mas também deixá-lo
vulnerável em relação à privacidade e à proteção de dados pessoais, que podem ser utilizados pelo
Estado e por empresas privadas, o que, inevitavelmente representa riscos ao exercício da cidadania
e à própria democracia.
Como observam Sousa e Silva, “o volume da produção e circulação de dados e de informações
tem conduzido ao surgimento de normas destinadas a aspectos da proteção da privacidade e de
dados pessoais”, tendo em vista a vulnerabilidade do usuário. Desta forma, surge a “necessidade
de controlar a circulação desses dados e informações, e consequentemente, que as instituições
estabeleçam seus modelos de governança para o tratamento dos mesmos”, de forma a proteger “os
direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da
pessoa natural”. (SOUSA; SILVA, 2020, p. 2).
Tal discussão é importante já que os dados pessoais são hodiernamente “o principal insumo da
economia globalizada, baseada em tecnologia. Cada vez mais, dados são processados e economicamente
valorados, ao se converterem em informação”, o que permite “facilitar o intercâmbio e maximizar a
qualidade nas empresas, em face de que, cotidianamente, os indivíduos vivenciam um processo de
produção de dados e de informações que podem ser interpretados”. (SOUSA; SILVA, 2020, p. 5).
Desta forma, o controle acerca dos dados e informações pessoais “permite uma mudança de paradigma
que parte de uma visão sobre cidadão-informação-sigilo, para uma visão que atribui relevância cada vez mais
ampla e clara sobre o poder de controle, envolvendo cidadão-informação-circulação-controle”. (RODOTÀ,
2008 apud SOUSA; SILVA, 2020, p. 6). Tal controle do Estado sobre o indivíduo e seus dados pessoais
em tempos de crise provoca questionamentos acerca de Estados de vigilância, que são realidades não
muitos distantes da atual, tendo em vista a hiperconectividade e o fato de que o exercício da cidadania é
paulatinamente exercido no ambiente virtual. Segundo Balkin (2008), o Estado de Vigilância:

caracteriza-se pela coleta, ordenamento e análise de dados, usando-os na identificação de possíveis


ameaças à segurança, na prestação de serviços sociais e na governança da população. A segurança
nacional é utilizada como argumento, pelos governos, para realizarem a mineração de dados. No entanto,
o processamento dessas informações pode ser utilizado para diversos finis, inclusive na obtenção de
vantagens políticas e econômicas entre nações. (apud SANTIN; MAGRO; FORTES, 2017, p. 3).

Se já pairavam suspeitas quanto à privacidade do usuário e a possibilidade de monitoramento


populacional em razão do uso de tecnologias, com a consequente violação de princípios democráticos
e de direitos fundamentais, o caso Edward Snowden, que divulgou um complexo sistema de coleta de
dados e monitoramento de cidadãos americanos e personalidades importantes ao redor do globo, por
parte da NSA e do governo dos Estados Unidos, evidenciou a necessidade de transparência quanto

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

à coleta e o tratamento de dados, bem como o seu consentimento e riscos de utilização indevida.
(SANTIN; MAGRO; FORTES, 2017, p. 3-4).
Outro caso de repercussão internacional é o da Cambridge Analytica, empresa de consultoria
que foi contratada pelo grupo que promovia o Brexit e, posteriormente, pela campanha de Donald
Trump à presidência nas eleições americanas de 2016, e que comprou dados de mais de 50 milhões
de usuário da rede social Facebook, sem que estes tivessem conhecimento ou consentissem acerca
desta transação. A empresa utilizou tais informações:

para criar um sistema que teria permitido predizer e influenciar as escolhas dos eleitores nas
urnas. As informações foram coletadas por um aplicativo chamado thisisyourdigitallife (essa é sua
vida digital, em português), que pagou centenas de milhares de usuários pequenas quantias para
que eles fizessem um teste de personalidade e concordassem em ter seus dados coletados para
uso acadêmico - o app foi desenvolvido por Aleksandr Kogan, um pesquisador da Universidade de
Cambridge, no Reino Unido (a universidade não tem ligações com a Cambridge Analytica). Além
da óbvia questão de que muitos usuários não leem os longos termos e condições e mal sabem
que estão dando suas informações, o grande problema foi que o aplicativo também coletou as
informações dos amigos de Facebook das pessoas que fizeram o teste, sem autorização. À época,
a política do Facebook permitia a terceiros a coleta de dados de amigos, mas apenas para melhorar
a experiência do próprio usuário no aplicativo. Era proibido que os dados fossem vendidos ou
usados para propaganda. (BBC NEWS BRASIL, 2018).

Tal quadro evidencia que os dados pessoais do indivíduo relevam muitas informações acerca
de seus interesses, opiniões, medos e, sobretudo, personalidade, de modo que podem ser utilizados
para o desenvolvimento de algoritmos que padronizem e direcionem conteúdos de cunho comercial,
político, publicitário e social, de acordo com a possibilidade de ocasionar maior impacto no usuário.
(BBC NEWS BRASIL, 2018).
Tanto o caso Snowden como o da Cambridge Analytica demonstram que a dinâmica de coleta,
tratamento e utilização de dados pessoais em rede ainda é muito desconhecida pelo usuário. Geralmente,
este aceita participar de uma rede social, identifica-se para realizar compras online ou preencher
formulários que lhe beneficiam, entretanto, não concorda ou tem a dimensão da utilização de seus
dados por agendas privadas e pelo Estado. Como aponta Estrada (2016) os aplicativos e dispositivos
tecnológicos hoje existentes captam dados a cada minuto que o cidadão anda na rua, estaciona seu
carro e utiliza seu smartphone ou cartão de crédito. Assim, diante da utilização e tratamento destes
dados, surgem questões como a criação de “perfis, discriminação, exclusão, vigilância do governo e
perda de controle”. (apud MAGRANI, 2019, p. 62).
Como destacam Santin, Magro e Fortes (2017, p. 10) parte desta problemática está na separação
do que é público e do que é privado na rede, de forma a garantir a liberdade individual. “A manutenção
dessa liberdade deve ocorrer automaticamente, e os governos somente devem interferir quando essas
forem violadas”. Contudo, atualmente “o Estado é o primeiro a desrespeitá-las, principalmente no
tocante à proteção de dados pessoais”. Desta forma, os governos precisam respeitar o caráter liberal
da rede, “promovendo a proteção dos direitos fundamentais, especialmente da privacidade, que nesse
ambiente é essencial para a promoção das demais liberdades, especialmente a de expressão”.
Conforme Freitas; Capiberibe e Montenegro, a pandemia realçou a existência de práticas biopolíticas,
tendo em vista a necessidade do enfrentamento deste problema de saúde pública. No caso específico
do combate ao novo coronavírus, aos poucos se delineia uma narrativa de que há uma necessidade
de “acesso aos dados pessoais como imprescindíveis à ordem, ao bem-estar e ao desenvolvimento
humano – seja lá o que isso signifique”. (FREITAS; CAPIBERIBE; MONTENEGRO, 2020, p. 194-195).
O biopoder fundamenta-se “no controle sobre a vida – não só de indivíduos, mas,
fundamentalmente, de toda uma população”. Neste contexto, redes multifacetadas captam dados
e controlam desde batimentos cardíacos até perfis comportamentais, sociais e políticos. (FREITAS;
CAPIBERIBE; MONTENEGRO, 2020, p. 194). Isolada socialmente, a população mundial se encontra
mais vulnerável à publicidade direcionada, necessita preencher formulários e participar de eventos na
modalidade virtual, de modo que diariamente é exposta à coleta e ao tratamento de dados pessoais,
que não raro são indevidos.
Em relação ao controle mediante o biopoder, a pandemia “encontrou um nicho interessante,
despertando o desejo – não necessariamente consciente – de maior controle sobre os nossos corpos”, vez

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

que o controle vem sendo justificado como modo de salvação diante do medo da morte. Logo, “o medo é
hoje instrumento de uma narrativa construída para uma suposta proteção da vida e, por conseguinte, para
o afastamento do maior de todos os medos a partir do controle sobre a população”. (FREITAS; CAPIBERIBE;
MONTENEGRO, 2020, p. 195). A narrativa da vigilância como forma de proteção do bem-estar cria:

um imaginário com representações que apontam para a ideia de que os dados são elementos
neutros, descontextualizados temporal, política e historicamente. A narrativa forjada, cada vez
mais dominante, é a de que toda e qualquer apropriação e uso desses dados pessoais – seja
por governos ou por outros atores – não poderão trazer malefícios, mas, ao contrário, serão
fundamentais à manutenção da ordem e do bem-estar público. Nesse sentido, a segurança
nacional precisaria dessa apropriação, sem a qual a manutenção da ordem não seria possível. Ora,
situação complicada quando a segurança nacional passa pela necessidade de acesso a recursos
intangíveis (dados) que não estão sob o controle daqueles responsáveis pela garantia dessa
segurança. (FREITAS; CAPIBERIBE; MONTENEGRO, 2020, p. 193).

Como afirmam Freitas, Capiberibe e Montenegro (2020, p. 195-196), “o capitalismo de vigilância


ancora-se, fundamentalmente, na extração e apropriação de dados pessoais”. Assim, “empresas de
tecnologia, as mais beneficiadas por esse contexto, criam parcerias com governos que tendem a
depender, cada vez mais, do fluxo de dados gerenciados por empresas”. Em 2015, a empresa Uber
ofereceu à cidade de Boston “acesso aos dados anônimos sobre as viagens já realizadas pelo aplicativo
naquela localidade. A iniciativa teria como meta a melhoria do tráfego e do planejamento urbano”. Isso
porque a Uber tem domínio “sobre dados sem os quais o governo local não executa suas políticas”.
O que se questiona é o que será feito com as informações e os dados pessoais dos cidadãos
coletados durante a pandemia quando a situação de crise mundial acabar. Isto é, o risco de que estes
dados sejam utilizados para além do contexto de prevenção e controle do vírus. (REQUIÃO, 2020
apud FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020). Como evidencia Camurça, “em um mundo em que o
poder de uma grande companhia vai muito além de aumentar preços, passando em vez pelo controle
da informação e de como mostrar o mundo aos usuários”, a manipulação “pode passar a ser não
apenas dos consumidores, mas também da própria democracia”. (CAMURÇA, 2020, p. 199).
Contexto já evidenciado no capítulo anterior, visto que empresas privadas podem, com base
na coleta e no tratamento de dados pessoais, agir de forma a direcionar conteúdos, notícias e
críticas, a favor de certo grupo político/partidário e influenciar usuários em rede. Assim, verifica-
se que é fundamental que haja transparência quanto à utilização de dados pessoais para fins de
controle populacional, especialmente em tempos de crise. Mais do que isso, o cidadão precisa ter
a possibilidade de consentir ou não com a coleta, o tratamento e o compartilhamento de dados
pessoais. Do contrário, abre-se caminho para Estados de vigilância e biopolíticas, que podem tanto
representar progresso como significar retrocesso nas democracias liberais.

1.2 Proteção de dados: STF e o direito à autodeterminação informativa

Em que pese a possibilidade de coleta e o tratamento de dados pessoais para monitoramento


remoto e contenção da COVID-19, é fundamental investigar quais seriam os limites desta utilização
e o direito à autodeterminação informativa, já fundamentado no âmbito do direito internacional e
analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
No Brasil, em abril de 2020, o governo federal editou a Medida Provisória (MP) 954, que obrigava
empresas de telecomunicação a compartilharem dados, tais como: nomes, números de telefone celular
e endereços com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins de continuidade
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) durante o período da
COVID-19. Embora a medida contemplasse o descarte destes dados pelo IBGE em no máximo trinta dias
após o fim do estado de emergência e proibisse o seu compartilhamento com empresas privadas ou
órgãos públicos, foram apresentadas cinco ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal, questionando os seus delineamentos. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020).
Em sede de julgamento da ADI 6387, dez dos onze ministros da Corte entenderam que havia
na MP “uma falta de explicação sobre finalidade de compartilhamento de dados de clientes entre

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

empresas de telecomunicações e o IBGE durante o período da pandemia da COVID-19”, de modo


que esta não teria definido “de forma clara “como” e “para que” seriam utilizados tais dados. Para
Finkelstein, Federighi e Chow (2020, p. 22), a decisão “preocupando-se com a possibilidade de
surgimento de um verdadeiro Estado de vigilância”.
Para Santin, Magro e Fortes (2017, p. 2) “a proteção de dados privados deve ser promovida
como direito fundamental e ter garantido seu respeito universal”, sendo fundamental a “criação de
normas ou diretrizes que sejam observadas por todos, perpassando tal medida, necessariamente,
pela regulamentação da rede e por sua dimensão pública e/ou privada”.
Conforme Sousa e Silva (2020, p. 4) “o dado está relacionado a um conjunto de fatos ou descrição
de eventos distintos e objetivos que, em sua forma isolada ou primária não apresenta nenhum
sentido”. Logo, compreendem “uma descrição de coisas, eventos e atividades os quais sozinhos não
conseguem se unir e representar algum significado”. Isto é, “a importância dos dados está em fornecer
subsídios para seu tratamento, transmissão e uso, constituindo-se assim, segundo Davenport (1998),
matéria prima da informação”. (TURBAM, 2003; DAVENPORT, 1998 apud SOUSA; SILVA, 2020, p. 4).
É diante deste cenário que surge o direito à autodeterminação informativa, na tentativa de proteger
e dar maior controle ao titular quanto à utilização de seus dados pelo Estado e empresas privadas
ligadas ao domínio da tecnologia. Com a autodeterminação informativa, tem-se por objetivo assegurar:

um direito constitucional de personalidade que tem por objeto o poder do indivíduo sobre três aspectos:
de decidir sobre a divulgação e o uso dos seus dados pessoais; de decidir sobre quando e dentro de
quais limites esses dados podem ser revelados; e, por fim, de ter conhecimento sobre quem sabe e o
que sabe sobre ele, além de quando e em que ocasião. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020, p. 24).

Para Sousa e Silva, o direito à autodeterminação informativa “constitui um direito do indivíduo


em decidir sobre o uso de seus dados pessoais”. Desta forma, “o Estado deve prover meios de
proteger a privacidade dos cidadãos, pois este se constitui em um direito fundamental, associado
ao desenvolvimento livre da personalidade”. Além disso, tal direito “deve ter uma contrapartida do
Estado quanto a sua proteção”, isto é, “proporcionar a proteção dos dados pessoais por meio de
políticas públicas relacionadas à privacidade e ao direito de dispor e decidir sobre a destinação de
seus próprios dados”. (SOUSA; SILVA, 2020, p. 11).
O termo “autodeterminação informativa” foi utilizado em 1983, pelo Tribunal Constitucional
Alemão, no exame da Lei do Censo, que previa que o “Estado pudesse realizar o cruzamento de
informações sobre os cidadãos para mensuração estatística da distribuição espacial e geográfica da
população”. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020, p. 23).
A mencionada Corte considerou que, tendo em vista o cenário moderno de processamento
de dados, a tutela do indivíduo contra a coleta, o armazenamento e a divulgação ilimitada de seus
dados pessoais “é abrangida pelos direitos gerais das pessoas garantidos na constituição alemã”.
(SOUSA; SILVA, 2020, p. 9). O direito à autodeterminação informativa deve assegurar ao indivíduo a
capacidade para “determinar, em princípio, a divulgação e o uso de seus dados pessoais. As limitações
a esta autodeterminação informacional só são permitidas em caso de interesse público primordial”.
(PEREIRA, 2017 apud SOUSA; SILVA, 2020, p. 9).
Hodiernamente, conforme Mendes (2018, p. 188) é essencial para a concepção do direito à
autodeterminação informativa “o princípio segundo o qual não mais existiriam dados insignificantes
nas circunstâncias modernas do processamento eletrônico de dados”. Desta forma, “o risco do
processamento de dados residiria mais na finalidade do processamento e nas possibilidades de
processamento do que no tipo dos dados mesmos (ou no fato de quão sensíveis ou íntimos são)”. Ou
seja, é necessário que toda coleta ou tratamento de dados online seja de conhecimento e consentido
pelo usuário, uma vez que, apesar de muitas vezes inofensiva, toda informação ou dado pessoal
coletado pode ser útil para fins de perfis comportamentais.
Para o autor, o reconhecimento deste direito não é uma possibilidade, já que “trata-se de uma neces-
sidade para tornar efetivos os fundamentos e princípios do Estado democrático de direito, na sociedade
contemporânea da informação”. (MENDES, 2018, p. 202). No Brasil, a Constituição Federal considera, em
seu artigo 5º, incs. X, XII, XIV e XXXIII, “invioláveis a vida privada e a intimidade”, bem como a intercep-
tação de comunicações telefônicas, telegráfica ou de dados. Ainda, a Constituição prevê os direitos “de

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

acesso, retificação e complementação de informações”. (BRASIL, 1988; SOUSA; SILVA, 2020, p. 15).
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) surge como uma medida que busca “estabelecer o controle
sobre a circulação de dados e de informações, utilizando-se como um de seus fundamentos o princípio
da autodeterminação informativa, dando ao titular poderes, para decidir sobre o que será considerado
ou não objeto de tratamento”. (SOUSA; SILVA, 2020, p. 2). A normativa estabelece uma série de requisitos
e princípios para o tratamento de dados, e o consentimento do titular, que implica na permissão para a
coleta e o tratamento dos dados pessoais por agentes específicos. (SOUSA; SILVA, 2020, p. 7).
Conforme Sousa e Silva (2020, p. 15) “os fundamentos da autodeterminação informativa estão
na ampliação da ênfase na proteção da esfera individual para circulação da informação submetida a
controle público”. Como compreende Rodotà (2008, p. 50) a própria defesa da privacidade “requer,
portanto, um alargamento da perspectiva institucional, superando a lógica puramente proprietária e
integrando os controles individuais com aqueles coletivos”. (apud SOUSA; SILVA, 2020, p. 15).
Como observam Santin, Magro e Fortes (2017, p. 10) o direito à privacidade não é absoluto,
“existindo situações em que sua violação é necessária, como por exemplo, para investigações criminais
e em casos de ameaça à segurança nacional”. Todavia, deve ser “comprovada a efetiva necessidade de
seu desrespeito, especialmente no ciberespaço, onde as informações pessoais circulam livremente no
formato de dados, que contém cada vez mais aspectos da vida privada dos usuários”.
Freitas, Capiberibe e Montenegro (2020) pontuam que da mesma forma que podem prejudicar
democracias, os mecanismos políticos de biopoder podem ser utilizados para a superação de momentos
de crise e pandemias se criados por meio de produção colaborativa e participativa. Exemplo disso, para
o autor, seria o Marco Civil da Internet, fruto de um diálogo do Poder Público com a sociedade civil
organizada, o setor empresarial, a academia e áreas técnicas interessadas na temática. Desta forma:

as inovações democráticas, que evidenciam demandas e necessidades dos cidadãos para que
possam ser, de alguma forma, contempladas nos processos políticos de tomada de decisão, podem
vir a colaborar para a conciliação entre biopoder e democracia. Com base em vários exemplos
apresentados, fica claro que é possível usar os recursos tecnológicos disponíveis a favor da
democracia. Para evitar a centralização do poder e o incremento de mecanismos autocráticos de
governo, ações que visem à convergência entre práticas biopolíticas e democráticas revelam-se,
hoje, mais do que necessárias. (FREITAS; CAPIBERIBE; MONTENEGRO, 2020, p. 199).

Para Finkelstein, Federighi e Chow (2020, p. 27) diante do cenário de pandemia e de desenvolvimento
tecnológico, “não há que se questionar se usar ou não os dados pessoais no combate à COVID-19,
mas sim como utilizá-los”. Como ponderam Almeida et al. (2020, p. 2491) o direito à privacidade e a
necessidade de proteção de dados pessoais “não inviabilizam o uso de dados pessoais e a possibilidade
de seu uso para responder à pandemia”. A atual emergência de saúde pública “aponta para a premente
necessidade de novas formas de governança de dados pessoais que incluam a sociedade civil para a
promoção de benefícios equânimes para toda a sociedade”. (ALMEIDA et al., 2020, p. 2491).
Assim, o aprimoramento e o desenvolvimento de novas tecnologias “é algo vital para humanidade
neste momento”, de modo que o que se espera é “um equilíbrio também entre elas e o direito,
principalmente para facilitar a implementação de pseudonomização nas mais variadas bases
de bancos de dados que tratem da área da saúde”. A pandemia é um teste para as democracias
liberais e “esse momento não pode implicar em retrocessos nas liberdades individuais”. Para tanto, é
fundamental um debate público a respeito da forma com que os dados pessoais serão tratados pelas
autoridades sanitárias, “com vistas a evitar a vigilância intrusiva que vem ocorrendo em diversos
países do mundo”. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020, p. 27). Assim, também é fundamental:

(i) realizar uma avaliação a respeito da necessidade de políticas de saúde centradas em dados,
assim como quais são suas necessidades e objetivos, amparando-se na ciência; (ii) definir
proporcionalidade do tratamento de dados, para fim de restringir a intervenção na esfera privada;
(iii) definir rigidamente o ciclo de vida dos dados e a forma de descarte; (iv) garantir ampla
transparência a todos os processos; (v) estabelecer salvaguardas específicas e concretas a todos
os processos. (FINKELSTEIN; FEDERIGHI; CHOW, 2020, p. 26).

Estas medidas são necessárias tendo em vista que o tratamento de dados é uma atividade de
risco diante da possibilidade de coleta, exposição e utilização indevida e abusiva; os dados podem não

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

representar de forma correta o titular ou serem compartilhados com terceiros sem o seu conhecimento
ou consentimento. Os dados são a expressão direta da personalidade de seu titular, de modo que a
sua tutela é imprescindível à dignidade humana. (DONEDA, 2011).
Almeida et al. (2020, p. 2490) destaca que para uma governança responsável em relação a
dados pessoais é essencial a descrição de metodologias de processamento, a análise de padrões e
de predições dos algoritmos utilizados. “O método científico tem, portanto, papel preponderante
“para validar, aumentar a confiabilidade e a utilidade dos resultados. Inclusive no questionamento de
suposições, valores e vieses que distinguem opiniões de evidências”.
Segundo o autor acima citado, os “dados coletados, compartilhados e utilizados em nome da saúde
pública, especialmente por empresas privadas ou através de parcerias público-privadas, precisam ter termos
e condições claros e transparentes” quanto ao “acesso, compartilhamento, usos e responsabilizações”.
Logo, é fundamental demonstrar por quem, quando e como os dados serão acessados, processados e
utilizados; com que finalidade; como serão descartados; de que forma serão protegidos e quem será
responsabilizado em caso de negligência ou abuso. (ALMEIDA et al., 2020, p. 2490).
Assim, o direito à autodeterminação informativa deve ser levado em consideração “para o uso de
dados pessoais, conjuntamente com as garantias de transparência, segurança e minimização no uso
de dados”. Contudo, em alguns casos de emergência e interesse público, o uso de dados pessoais “é
permitido, mesmo sem o consentimento do seu titular, desde que haja salvaguardas, proporcionalidade
no uso dos dados para alcance das finalidades e especificidades”, de acordo com o Regulamento Geral de
Proteção de Dados da União Europeia e a Lei Geral de Proteção e Dados. (ALMEIDA et al., 2020, p. 2489).
Assim, verifica-se que a utilização de dados pessoais em tempos de crise é defendida tanto na legislação
internacional quanto nacional, especialmente em caso de pandemia. Contudo, mesmo nestas conjunturas
é necessário transparência e a utilização de metodologias que envolvam parâmetros democráticos,
principalmente diante das lacunas e questionamentos quanto à utilização destes dados após o período de
crise e emergência. Debate que é fundamental para que se previna políticas ligadas ao biopoder que tenham
por objetivo promover vigilâncias exaustivas e indevidas com fundamento no medo.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A necessidade de enfrentamento da COVID-19 impôs ao mundo medidas sanitárias e estratégias


de contenção do vírus por meio do controle populacional. Neste sentido, destaca-se a utilização
do monitoramento remoto, para acompanhar pacientes acometidos pela doença e prevenir novos
surtos, o que fez com que muitos países utilizassem dados pessoais para realizar previsões e propor
estratégias de isolamento. A legislação tanto internacional como nacional, especialmente a Lei Geral
de Proteção de Dados, permite a utilização de dados pessoais em condições de emergência com a
pandemia. Contudo, ainda existem muitas dúvidas acerca de como estes dados são e serão utilizados
durante e após o período de crise.
É fato que não se questiona a possibilidade ou não de utilização de dados, mas sim os
parâmetros desta medida, as metodologias utilizadas e o contexto de utilização, principalmente
tendo em vista eventuais discriminações algorítmicas, erros, a utilização indevida, a comercialização
e a monetização de dados, o vazamento de informações, a falta de transparência e de segurança,
circunstâncias que vulnerabilizam o titular, uma vez que os dados são expressão de seus direitos
fundamentais e personalidade.
Logo, é essencial a defesa do direito à autodeterminação informativa, já delineado pela Lei Geral
de Proteção de Dados e pelo Supremo Tribunal Federal em 2020, que tem por objetivo dar maior
controle ao cidadão quanto à coleta, o tratamento, o compartilhamento e os limites da utilização
de seus dados; direito que é essencial para a subsistência de regimes democráticos, o exame de
biopolíticas e a repressão de vigilância indevida e exaustiva. Isso porque é essencial um debate
público e colaborativo quanto à política de utilização de dados pessoais, de forma que a utilização
destes ocorra à luz da transparência, segurança, da adoção de medidas específicas e com limites
bem estabelecidos, que não deixem dúvidas quanto às finalidades e os riscos de compartilhamento
indevido e arbitrário.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFERÊNCIAS

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ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 10 set. 2020.

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Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 10 set. 2020.

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de Inteligência Artificial e Direito, v. 1, n. 1, p. 1-31, jan./abr. 2020.

FREITAS, Christiana Soares de; CAPIBERIBE, Camila Luciana Góes; MONTENEGRO, Luísa Martins
Barroso. Governança Tecnopolítica: Biopoder e Democracia em Tempos de Pandemia. Revista NAU
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MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconectividade. 2. ed.
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MENDES, Laura Schertel Ferreira. Habeas data e autodeterminação informativa: os dois lados da
mesma moeda. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 12, n. 39, p. 185-216, jul./
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DA SOCIEDADE EM REDE, 4., Santa Maria, 2017. Anais [...]. Santa Maria: UFSM, 2017. p. 1-15. Disponível
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SOUSA, Rosilene Paiva Marinho de; SILVA, Paulo Henrique Tavares da. Proteção de dados pessoais e
os contornos da autodeterminação informativa. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v.
30, n. 2, p. 1-19, abr./jun. 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

DEMOCRACIAS LIBERAIS:
A FANTASIA JURÍDICA DA IGUALDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA

Daniela Andreatta169
Leticia Sangaletti170

RESUMO: A humanidade convive hoje com uma ameaça letal à vida humana em uma situação apenas
retratada em filmes de ficção, quando um vírus de proporções microscópicas fez com que todos
enfrentassem uma grande emergência internacional de saúde pública. Considerando a realidade desenhada
pela pandemia no Brasil e a necessidade de políticas públicas voltadas para a promoção da dignidade e
da vida humana, este ensaio parte das considerações de Luiz Alberto Warat, para quem a democracia e
política devem ser consideradas como “uma ordem simbólica interdependente” na tentativa de entender
os fenômenos sociais e políticos atuais sob a ótica do jurista e humanista diante da relação que faz
entre psicanálise, democracia e totalitarismo através do conhecido texto “Fantasia Jurídica da Igualdade:
Democracia e Direitos Humanos na Prática da Singularidade” publicado inicialmente em 2004”.

Palavras-chave: Democracia; Igualdade; Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO

Em um momento de polarizações políticas extremas, em que a ciência mais do que nunca é


compreendida como necessária, quando deveria ser primária a vida das pessoas e não o capital, é
imprescindível que se debata como o termo igualdade vem sendo empregado fantasiosamente.
Refletindo um fenômeno no Brasil, que igualmente se verifica nos Estados Unidos, diante das declarações
de Donald Trump, o populismo e totalitarismo se destacam diante de uma crise mundial de saúde, gerando
caos e elevando o número de mortes. Neste mórbido cenário, vem sendo expostas as fragilidades de
políticas, instituições, poderes, coletividade, sistemas de governo como a democracia brasileira.
A COVID -19 ou SARS – CoV-2, novo tipo do chamado coranavírus nos brindou com o terror vivido
em escala mundial e antes adstrito a filmes de ficção que nunca pensamos ver transformados em
nossa rotina: mortes que se multiplicam, infectados aos milhares, remédios que não curam, vacinas
em estudos sem previsão de uso e hospitais operando em sua capacidade máxima, de estrutura e de
recursos humanos.
Essa doença tem desafiado gestores públicos e cientistas no mundo todo na busca por uma
solução. Sobre isso, Freitas fala sobre a não existência de protocolos que pudessem ser aplicados à
esse tipo de situação. Nas palavras do autor:

Desde o início do atual surto de coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19, houve uma grande
preocupação diante de uma doença que se espalhou rapidamente em várias regiões do mundo, com
diferentes impactos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 18 de março de
2020, os casos confirmados da Covid-19 já haviam ultrapassado 214 mil em todo o mundo. Não
existiam planos estratégicos prontos para serem aplicados a uma pandemia de coronavírus - tudo é
novo. Recomendações da OMS,1 do Ministério da Saúde do Brasil, do Centers for Disease Control and
Prevention (CDC, Estados Unidos)2 e outras organizações nacionais e internacionais têm sugerido
a aplicação de planos de contingência de influenza e suas ferramentas, devido às semelhanças

169 Mestranda e integrante da linha Multiculturalismo, identidade e gênero do curso de Mestrado da Universidade Regional
do Alto Uruguai e das Missões, Santo Ângelo.RS.Graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai
e das Missões – URI Santo Ângelo, RS em 2007. Pós-graduada em Direito Tributário, curso concluído em 2010 pelo LFG –
Instituto Luiz Flávio Gomes. Advogada.
170 Doutoranda em Letras do Curso de Doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. RS.
Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – UFSM Frederisco Westphalen (2010). Mestra em Le-
tras pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Frederico Westphalen, RS em 20013. Jornalista.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

clínicas e epidemiológicas entre esses vírus respiratórios. Esses planos de contingência preveem
ações diferentes de acordo com a gravidade das pandemias (FREITAS, 2020, s/p.).

Se no contexto onde as orientações iniciais eram de não sair de casa, em que cada vez mais
crescem os casos e as mortes pela pandemia do coronavírus, parece muito óbvio que quem deve sofrer
mais perdas, sejam elas financeiras, sociais ou psicológicas, é a classe trabalhadora que se encontra
à margem da sociedade. É o que afirma, neste sentido, Boaventura de Souza Santos, quando diz que
as minorias serão as mais afetadas pela pandemia, dentro da lógica capitalista que vem imperando:

Lição 2.As pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga. É evidente que são
menos discriminatórias que outras violências cometidas na nossa sociedade contra trabalhadores
empobrecidos, mulheres, trabalhadores precários, negros, indígenas, imigrantes, refugiados, sem
abrigo, camponeses, idosos, etc. Mas discriminam tanto no que respeita à sua prevenção, como à
sua expansão e mitigação (SANTOS, 2020, e-book).

Nesta esteira, nos questionamos, é possível proteger toda a população? E mais. Numa democracia
que é o Brasil, todos estão tendo seus direitos frente à problemática do coronavírus?

1 DESENVOLVIMENTO

É preciso ponderar que, diante da ameaça trazida pelo novo vírus, os líderes eleitos de países
democráticos teriam, em tese, a responsabilidade de contribuir para a defesa da vida (de todos) nos
termos preconizados pela lei.
Assim, a reflexão relacionada aos mecanismos simbólicos da existência da sociedade como
espaço de relações e identificação entres os homens, promovendo a autonomia humana é necessária, na
medida em que permite a manifestação individual na construção do espaço público que possibilitaria,
a partir do direito à diferença e não da igualdade homogeneizante, a criação de representações
imaginárias comprometidas com o termo democracia. Warat (2004) explica:

Existe uma igualdade imaginária que, apagando as diferenças entre os homens, os força a
convencionais rituais de comportamentos, formas de alegra-se e sofrer totalmente estereotipadas.
Desta maneira, a igualdade termina convertida em antídoto contra a autonomia. Creio que a
democracia necessita, sobretudo, desfazer-se de sua bandeira igualitária para içar em substituição
a bandeira da diferença. Em nome da Igualdade elimina-se o direito à diferença. As formas sociais
democráticas necessitam do conhecimento necessitam do conhecimento de que todos os homens
são diferentes. Os homens não lutam pela igualdade. Agrupam-se para lutar pelo reconhecimento
de alguma diferença. Usaria para a democracia o lema: autonomia, desigualdade e indeterminação.
A partir destes três elementos podemos pensar em outro tipo de representações imaginárias
comprometidas com o termo democracia (WARAT, 2004).

A questão levantada por Warat (2004) é muito pertinente no contexto do coronavírus, em que
as minorias são as mais afetadas. Essa igualdade não existe, aliás, a desigualdade social no Brasil é
escancarada todos os dias, especialmente em situações de violência diversas, na falta de acesso à
saúde, educação e estrutura.
Neste sentido, em esclarecedor trabalho que aborda a dimensão do amor na cidadania, a
diferença é destacada como valor necessário à democracia, possibilitando o exercício da cidadania
que “potencializaria suas práticas a partir do reconhecimento do outro” (BERTASO, p. 17, 2010).
Partindo do pressuposto de que o simbólico seria uma dimensão do político enquanto esta
igualmente constituiria uma dimensão do simbólico, Luiz Alberto Warat afirma a política como lugar
de interrogação pela qual a sociedade se constituiria.
Assim, tendências democráticas ou totalitária poderiam ser observadas em sociedade através
da conjugação de cinco elementos considerados como dimensões simbólicas da política: o saber, o
poder, a produção de bens materiais, a lei, o saber e a personalidade, as quais deveriam propiciar a
singularidade necessária na visão do autor (WARAT, 2004).
Nesta perspectiva, o saber e a personalidade devem relacionar-se com o desejo de um modo a
trabalhar as instâncias humanas de significação para produção de um espaço público como “lugar de

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

produção de singularidade”. (WARAT,2004).


Estas reflexões dialogam com Charles Taylor para quem a identidade cultural, permitiria através do
diálogo com outros-importantes uma reciprocidade harmônica com a constituição do sujeito consciente
e não alienado, através do sentimento de pertença à comunidade. (APUD SANTOS e LUCAS, 2015, p.104).
A interrelação a que remete o jurista argentino, Warat (2004), se reveste hoje de importância fundamental,
uma vez que, a vida humana depende da consciência individual e coletiva, com a tomada de decisões em
um sistema democrático em que as minorias não estão representadas, sob pena de um genocídio.
Nessa perspectiva, entende-se que há uma importante responsabilidade subjetiva dos sujeitos,
tendo em vista que para pertencer à uma comunidade de forma democrática, deve-se pensar no coletivo,
considerando que suas ações individuais, refletem hoje objetivamente na vida ou morte de outras pessoas.
Em tempos de pandemia, atos em desacordo com as orientações científicas, largamente divulgadas
pelas organizações mundiais, podem causar tal genocídio citado por Warat (2004). Este é o caso da possível
responsabilização criminal do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que enquanto líder político legitima ações
desrespeitosas, através da sua postura autoriária, anti-democrática e desrespeitosa com a população. O
Chefe de Estado brasileiro foi denunciado ao Tribunal Penal Internacional (TPI), que tem sua sede em Haya,
por crime contra a humanidade, em razão da conduta frente ao combate ao Covid19 no Brasil
Destaca-se que Warat parte de conceitos lacanianos na apresentação da ideia de democracia
como dimensão simbólica, o que implicaria para sua consecução o desenvolvimento de instâncias
de significação individual para produção de um espaço público como lugar de produção de política,
como manifestação que contém em si sempre um “sentido inaugural” pela liberdade da palavra e da
ação que não seria simplesmente repassada a exemplo da praça pública grega (WARAT, 2004).
De outra forma, o autoritarismo e totalitarismo característicos do atual governo brasileiro e
mesmo americano poderiam ser apontados, nos termos do autor pela ausência de formas interrogativas
que ultrapassem o racionalismo cartesiano, capaz de abarcar a experiência hoje excepcional e única
do cotidiano que reflita o desejo para a “articulação simbólica do poder, lei, saber, bens materiais e
personalidade” (WARAT, 2004).
O autor afirma, no mesmo texto a supressão do político e morte da realidade através de
mecanismos de defesa sociais diante do terror, a denominada “cegueira histérica” que teriam validados
regimes latino-americanos autoritários e ditatoriais que autorizavam e promoviam a morte, a exemplo
do Brasil e da Argentina de 1970 esclarecendo no item “O político e a morte” no texto “Epistemologia
e Ensino do Direito” os mecanismos subjetivos envolvidos na alienação coletiva:

É preciso dizer aqui que os dispositivos de alienação transcendem o nível das explicações.
Como reforço, os projetos autoritários e totalitários constroem climas alienados, que contribuem
indiretamente para negação da história cotidiana e permitem uma figa coletiva da realidade: o
tricampeonato de futebol brasileiro de 1970 – incluindo a figura de Pelé – no momento de maior
repressão do regime militar brasileiro; o êxito da equipe de Menotti de 1978, em situação bastante
parecida; a recuperação ideológica da Guerra das Malvinas e os fictícios milagres econômicos;
todos estes exemplos serviram de válvula de escape para que argentinos e brasileiros pudessem
abolir, no plano imaginário, todo estado de conflito entre os seus ideais e desejos e a realidade
cotidiana que estavam vivendo (WARAT,2002).

Para Hannah Arendt, os aspectos da condição humana estão necessariamente relacionados com
a política, sendo que o sujeito político se revela no discurso e na ação, expressando a sua diferença,
sendo marcada pelo agir no mundo, ou de iniciar algo novo, ou seja existir de forma singular e
expressar a sua existência:

Em sua forma mais abstrata, a alteridade está presente somente na mera multiplicação de objetos
inorgânicos, ao passo que toda a vida orgânica já exibe variações e diferenças, inclusive entre
indivíduos da mesma espécie. No homem a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que
existe, e a distinção que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se singularidade, e a pluralidade
humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares (ARENDT, 2005, p.189).

Nas palavras da filósofa e intelectual alemã, a ação corresponderia à “condição humana da


pluralidade” uma vez que os homens e não apenas o homem habitam o mundo, equivalendo a pluralidade
à “condition per quam” da vida política o que estaria em direta oposição ao totalitarismo que rompe

372
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

com qualquer tradição política atingindo nosso poder de compreensão. (ARENDT, 2005, p. 15).
A autora afirma, ainda, que para os romanos estar vivo significava estar entre os homens, sendo,
portanto, intrínseco à condição humana a ação no espaço público, reconhecendo os homens como
seres políticos por excelência (ARENDT, 2005, p.15).
Para Habermas o Direito alcança legitimidade apenas quando as normas são frutos de participação
livre “de todos a quem se destina”, o que ocorre com a ação comunicativa que seria a possibilidade de
participar do discurso, intervindo e modificando o discurso, de ser ouvido. (HABERMAS, 2009, p.63).
A restrição de liberdades políticas e civis, segundo o professor da universidade americana John
Hopkins Yascha Mounk, é uma ameaça real que se tornou evidente nos últimos anos com a ascensão de
líderes populistas, como Jair Bolsonaro citado então como um dos adversários mais forte enfrentado
pela democracia brasileira (MOUNK, 2019).
A crise de saúde mundial é acompanhada no Brasil, portanto de uma grave crise política que
coloca em cheque as instituições democráticas exibindo características comuns de governos populistas
como a não aceitação de oposição, da independência de instituições, “a reinvindicação de representação
exclusiva do povo” ou mesmo o próprio desprezo pelas tradições democráticas (MOUNK, 2019, p.10).
Assim, não bastando a grave crise de saúde pública com o aumento constante do número de
infectados e mortos no país, instalou-se uma crise política que foi analisada no Supremo Tribunal
Federal sobre a competência para implemento de medidas de prevenção e isolamento social, sendo
que a Corte salvaguardou o direito de os governadores e prefeitos atuarem no combate ao vírus,
conforme informativo 973 do STF:

(...) O exercício da competência constitucional para as ações na área da saúde deve seguir parâ-
metros materiais a serem observados pelas autoridades políticas. Esses agentes públicos devem
sempre justificar as suas ações, e é à luz dessas ações que o controle dessas próprias ações pode
ser exercido pelos demais Poderes e, evidentemente, por toda sociedade. Sublinhou que o pior
erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo a omissão em relação às ações
essenciais exigidas pelo art. 23 da CF. É grave do ponto de vista constitucional, quer sob o manto
de competência exclusiva ou privativa, que sejam premiadas as inações do Governo Federal, im-
pedindo que estados e municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as
políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União,
mas também os estados-membros e os municípios (...)” (ADI 6341 – Informativo 973).

Neste contexto, o Brasil se destaca, na leitura de Boaventura de Souza Santos, como um dos
países que falharam na luta contra a pandemia, em razão da não implementação de políticas públicas
voltadas ao combate do vírus:

A extrema-direita namora e é namorada pelos partidos de direita convencionais sempre que


estes precisam de apoio às versões menos extremas de políticas neoliberais. Na presente crise
humanitária, os governos de extrema-direita ou de direita neoliberal falharam mais do que os
outros na lutam contra a pandemia. Ocultaram informação, desprestigiaram a comunidade
científica, minimizaram os efeitos potenciais da pandemia, utilizaram a crise humanitária para
chicana política (SANTOS, 2020, p. 7).

Essa falha citada pelo autor, é facilmente compreendida ao observarmos que o Brasil ficou cerca
de quatro meses sem Ministro da Saúde, após dois médicos, com formação também acadêmica, não
permanecerem na função. Luiz Henrique Mandetta foi demitido, e Nelson Tech deixou o cargo. Dentre os
motivos, estão as divergências visíveis entre a condução do trabalho e a posição do governo Bolsonaro.
Em um olhar retrospectivo, médicos e demais profissionais da saúde que atuaram na epidemia
de meningite durante a ditadura militar relataram semelhanças entre as ações do atual governo de Jair
Bolsonaro e aquele, em razão do negacionismo, retenção de dados e ausência de lideranças na esfera
federal, quando os epidemiologistas nos anos setenta constataram subnotificações sendo impedidos
de falar (BBC, Brasil, junho 2020).
Destaca-se a semelhança dos atuais acontecimentos já que na época a preocupação dos militares
era com o “milagre econômico” o que foi a causa de mortes e subnotificações, sendo as tentativas de
negar a gravidade da doença aconteciam com mais força antigamente em razão do menor fluxo de
informações (BBC, Brasil, 2020).
Cabe indagar como uma sociedade tão bem informada e com acesso a notícias e dados sobre

373
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a pandemia que foi amplamente noticiada pelos meios de comunicação em tempo real e de alcance
mundial, vem sendo um campo fértil para a propagação da doença mortal que seria contida pela adoção
de medidas de isolamento social nos termos das indicações da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Nesta perspectiva, a indiferença social diante de tantas mortes igualmente assombra a sociedade
alemã, uma das mais sofisticadas do mundo a exemplo de seus filósofos, artistas e cientistas e
que, no entanto, foi palco das maiores atrocidades cometidas contra os Direitos Humanos durante o
período nazista.
Segundo o historiador André Reggiani, especialista em nazismo, a assinatura do Tratado de
Versalhes constitui um dos fatores diante da a “incapacidade psicológica alemã para aceitar a derrota”
considerando a humilhação teria sido uma das causas para o sentimento nacionalista radical que
cresceu vertiginosamente (SKALARZ, 2013).
Assim, importantes são as contribuições do jurista Carlos Alberto Warat na análise da alienação
individual e coletiva que atravessa o indivíduo em tempos sombrios, lecionando Hannah Arendt, que o
terror nos governos totalitários apenas assume a sua feição após a adesão de muitos (ARENDT, 1989).
É assustador pensarmos que há uma legião de pessoas que, mesmo com as inúmeras orientações
e determinações, está indo contra o bom senso e a ciência, descumprindo todas as normas das
organizações mundiais. Mas a justificativa é simples: há uma figura pública que legitima este
comportamento, realizando assim, a separação radical entre moral e política como previsto e ensinado
ainda por Nicolau Maquiavel (BEDIN, 2017, p.100).
Neste sentido, a cidadania, condição da democracia, não deve ser compreendida apenas como
um direito abstrato sem respeito à diversidade, mas relacionada à dignidade e valores humanos
que ultrapassem portanto, o aspecto formal para se fazer concreto com o reconhecimento no outro
da diferença, singularidade e diversidade a partir dos valores expostos nas Declarações de Direitos
Humanos firmadas a partir de 1948 (BERTASO, 2010).
Esclarecendo que o direito à cidadania constituiu para o indivíduo do Estado Moderno, a
legitimação de seus direitos políticos através de vínculos estatais, identidade nacional e valores
comuns, deve-se estar atento para que a democracia ainda tenha espaço diante da singularidade
humana e condições ontológicas e existenciais de expressões que permitam o exercício reais destes
poderes em uma sociedade multicultural (BERTASO, 2010).
A democracia, portanto, encontra-se ameaçada na medida em que as liberdades individuais, de
informação e de expressão que integram o conceito de cidadania são diariamente atacadas, através de “Fake
News” e demais ações que, conjugadas com a crise de saúde mundial podem levar a supressão de mais
direitos, esvaziando ainda mais as possibilidades de diálogo e reconhecimento do outro em sua dignidade.
Neste sentido, Boaventura de Souza Santos alerta que desde 1980 o mundo vem apresentando
uma constante crise que teria sido utilizada diversas vezes para legitimar políticas neoliberais e
excludentes, trazendo-nos o cuidado de superação desta epidemia de alcance mundial que nos leve a
um melhor estado de coisas (SANTOS, 2020).
Assim, é necessário para o exercício dos direitos políticos e efetividade da própria democracia que esta
parta de um pressuposto de igualdade real consubstanciada na possibilidade de diálogo e reconhecimento
do outro em sua identidade, dentro de uma cultura de alteridade e liberdade para a ação política.
Luiz Alberto Warat, finalmente compreende a crise da democracia como uma crise simbólica
relacionada a cultura pós moderna diante da impossibilidade de resistência do indivíduo frente a um
projeto totalitário, o que nos impele a pensar e refletir as condições necessárias para o efetivo exercício
da cidadania comprometida com Direitos Humanos e não apenas sob uma perspectiva normativista.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das discussões deste trabalho, entendemos que o debate acerca da fantasia jurídica
proposto por Warat (2004), aponta para um importante e assustador fator: estaria a democracia sendo
ameaçada em tempos de pandemia?
É importantíssimo ponderar que o Brasil já viveu fortemente um período sombrio de Ditadura
Militar, em que dados acerca da saúde da população brasileira foram propositalmente ocultados,

374
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

para passar uma imagem de que o país estava em um momento de crescimento econômico e sem
problemas sociais.
Assim, é imprescindível considerar que a problemática do coronavírus descortinou a realidade cruel
do Brasil, em que as desigualdades sociais estão mais evidentes, diante do desemprego e da ausência
de acesso à saúde, especialmente pelos grupos mais vulneráveis. Esta parcela da população chamada
de minorias, na verdade representa a maioria dos brasileiros que vivem à margem da sociedade.
Isto posto, a construção de um espaço democrático passa, na visão de Warat, pela constituição do
sujeito, conjugando fatores subjetivos que permitem ao mesmo dialogar com outros, possibilitando
o exercício da democracia.
Desse modo, a igualdade almejada por Warat, está longe de ser concretizada, visto que a
democracia vem sendo ameaçada por governos populistas e líderes autoritários, que ignoram a
alteridade, preocupando mais com questões financeiras, e menos com a vida humana.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Hannah Arendt: tradução de Roberto Raposo, posfácio de
Celso Lafer. – 10.ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária,2005.

BBC BRASIL acesso em https://www.bbc.com/portuguese/geral-53116243

BERTASO, João Martins. Organização. Cidadania e Interculturalidade: Produção Associada ao Projeto


de Pesquisa “CIDADANIA E INTERCULTURALIDADE”. FURI. 2010.

FREITAS, André Ricardo Ribas. Marcelo; DONALISIO, Maria Rita. ANÁLISE DA GRAVIDADE
DA PANDEMIA DE COVID-19. Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília,  v. 29, n. 2,  e2020119,   
2020 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-
96222020000200900&lng=en&nrm=iso>. access on  27  May  202. Epub Apr 06, 2020.  http://
dx.doi.org/10.5123/s1679-49742020000200008. Acesso em maio de 2020.

MOUNK, Yascha. O Povo Contra a Democracia: Porque a Nossa Liberdade Corre Perigo e
Como Salvá-La. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Editora Almedina. Abril, 2020.

SANTOS, André Leonardo Copetti; LUCAS, Douglas Cesar Lucas. A (in)diferença do sujeito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

SKALARZ, Eduardo. Alucinação coletiva. Nazismo: O Lado Oculto do Terceiro Reich. – São
Paulo: Abril, 2013. ISBN 978 – 85- 364 – 1544-4.

WARAT, Carlos Alberto. O Sonho Acabou: Epistemologia e Ensino do Direito. 2004.

375
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

DESIGUALDADE E MÁ NUTRIÇÃO:
OBSTÁCULOS AO DESENVOLVIMENTO INFANTOJUVENIL

Schirley Kamile Paplowski171


Anna Paula Bagetti Zeifert172

RESUMO: Em um curto espaço de tempo, diversas mudanças foram promovidas às sociedades. São
mutações no sentido sanitário, social, econômico e nutricional. Com subsídio a relatórios produzidos
pela Cepal e pelo Unicef, este artigo apresentará a desigualdade socioeconômica relacionada
umbilicalmente à alimentação (deficiente) de crianças e adolescentes na América Latina, considerando
dados de nível global e também local (sobre o Brasil). Tendo por objetivo desenvolver um breve
estudo com a temática da má nutrição e sua tripla carga, o trabalho considera que a atual pandemia
causada pela Covid-19 gera consequências mais desastrosas ao vulnerável público infantojuvenil,
especialmente no sentido alimentar. Através de duas seções, guiadas por uma pesquisa bibliográfica
e de método hipotético-dedutivo, perquire o problema investigativo atinente à acentuação dos
obstáculos ao desenvolvimento dos mais vulneráveis.

Palavras-chave: Alimentação. América Latina. Crianças. Direitos Humanos. Pandemia.

INTRODUÇÃO

Conhecido a nível global desde o começo do ano de 2020 como novo coronavírus, a Covid-19
(sigla para Coronavirus Disease) é, atualmente, um dos vírus mais perigosos no mundo. Descoberto
no final do ano de 2019, na China, sua origem, consequências e tratamentos ainda são estudados por
especialistas, no anseio de desenvolver uma vacina à doença. Passados mais de seis meses desde a
declaração, pela Organização Mundial da Saúde, de que a situação se trata de uma pandemia, alguns
cenários sociais já podem ser elaborados, na sua maior parte com elementos de consternação.
O presente estudo considera a realidade global experimentada no momento da escrita e a coteja
com fatores sociais, em especial a desigualdade social na América Latina. Relaciona-os ao público
mais vulnerável em circunstâncias sociais e econômicas, que são crianças e adolescentes. Sobre eles,
à luz do isolamento social, a breve pesquisa poderia mencionar os impasses educacionais gerados
por aulas remotas e a infoexclusão. Poderia considerar o aumento do trabalho infantil, a elevação dos
índices de depressão, da violência doméstica, da violência sexual intrafamiliar, bem como a exposição
a dispositivos tecnológicos perniciosos.
Contudo, sem desconhecê-los, mas também cientes do binômio espaço/tempo que nos
compete, direcionamos esta análise à questão nutricional de crianças e adolescentes no contexto da
crise sanitária, a partir de documentos produzidos em momento prévio à pandemia, mas de grande
interesse e aplicabilidade aos temas emergentes.
Uma crise alimentar pode estar sendo anunciada de maneira tímida em documentos como este,
ao passo que experimentada de forma cruel e aflitiva por milhões de meninas e meninos no mundo,
especialmente na América Latina. Uma violação contundente ao direito humano à alimentação
saudável, a documentos nacionais e internacionais, bem como aos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável de números 1, 2, 3 e 10.

171 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (Mestrado em Direitos Humanos), da Unijuí. Bolsista
Capes/PROSUC. Bacharela em Direito pela Unijuí (2019). Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social
e Sustentabilidade (CNPq/UNIJUÍ). E-mail: schirleykamile@hotmail.com.
172 Pós-Doutora pela Escola de Altos Estudos – Desigualdades Globais e Justiça Social (FLACSO Brasil e UNB). Doutora em
Filosofia (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos - e do
Curso de Graduação em Direito da Unijuí. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabili-
dade (CNPq). E-mail: anna.paula@unijui.edu.br.

376
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A má nutrição é narrada neste artigo sob enfoque do relatório da Unicef “Situação Mundial da
Infância 2019”, que a considera em três vertentes. O conceito de má nutrição passou por mudanças
nos últimos anos, à semelhança das modificações na área de moradia, de desempenho profissional dos
membros da família, das condições de vida no planeta e dos próprios alimentos. O que se reconhece,
hoje, por “má nutrição” é a junção de três espécies, a compreender: desnutrição, fome oculta e sobrepeso.
Em 2019, o relatório apontava que mudanças climáticas, a urbanização e a globalização estavam
alterando de modo intenso o que as crianças comem e as perspectivas culturais sobre os alimentos.
Em 2020, essas circunstâncias são acompanhadas de uma crise sanitária e de seus efeitos, os quais
são sentidos diferentemente entre as populações.
Por meio de duas seções, esta breve e simples produção bibliográfica analisará, em um primeiro
momento, questões de ordem geral atinentes à realidade latino-americana e as desigualdades que
atingem meninos e meninas. Após, adentrará no relatório da Unicef (2019a), tecendo paralelos com
o momento contemporâneo. Fazemos isso por meio de uma pesquisa bibliográfica, que persegue o
método hipotético-dedutivo, cujo problema investigativo é se a atual pandemia acentua os obstáculos
ao desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.

1 INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UM RETRATO DA DESIGUALDADE NAS SOCIEDADES LATINO-


AMERICANAS

As desigualdades que persistem nas sociedades latino-americanas colaboram de maneira


significativa para que o desenvolvimento social e econômico tenha maiores obstáculos em se estabelecer.
A América Latina continuam sendo a região mais desigual do mundo, onde os dados demonstram que
quatro em cada dez meninos e meninas não possuem a garantia de seus direitos reconhecidos e que
três em cada dez vivem em áreas urbanas precárias173. Para além da experiência de viver em contextos
complexos, desiguais e adversos, somam-se a pobreza, a indigência e a exclusão (UNICEF, 2019c).
A desigualdade pode ser entendida enquanto diferenças e disparidades na capacidade e nas
possibilidades de apropriação de recursos, de renda, bens e serviços, que causam variações no bem-
estar entre grupos sociais. A desigualdade é reflexo da concentração da riqueza em uma pequena
parcela da população, existindo uma grave desproporcionalidade na distribuição de bens, recursos,
oportunidades e serviços (ZEIFERT; STURZA; AGNOLETTO, 2019).
Como consequência de suas características, a desigualdade social se manifesta nos variados
âmbitos do Estado e da sociedade, mas é especialmente nítida quando se trata de educação, saúde,
mercado de trabalho, renda, acesso a serviços e direitos básicos, condições de vida e proteção ambiental.
“En su permanencia y reproducción inciden diversos mecanismos de discriminación, estructurales e
institucionales, de género, étnicos, raciales y de origen socioeconómico, entre otros” (CEPAL, 2016, p. 18).
Inobstante as tentativas de diversos órgãos, movimentos sociais e regimes políticos, ainda são
muitos os desafios para combater efetivamente este problema, a configurar o cenário de desigualdades
sociais na América Latina. A respeito dos movimentos sociais e de sua contribuição ao reconhecimento
de direitos, ainda que em um primeiro momento seja somente na dimensão formal, Cerezo, Meyer
e Vommaro (2020, p. 21) destacam: “Una revisión por América Latina en las últimas décadas desde
los mundos juveniles permite destacar [...] la ampliación de derechos y el reconocimiento de las
diversidades [...]”. Isso é visível por meio do fomento de “[...] políticas públicas, muchas de ellas fruto
de luchas previas de los movimientos sociales”.
Para além de reconhecer direitos, no plano normativo, portanto, os esforços sociais para reduzir
o contexto de desigualdades também fomentam o desenvolvimento de políticas públicas, muitas das
quais acompanham todo o período de desenvolvimento humano. Essa é a percepção de Trucco (2019,
p. 256), para quem “[...] las políticas públicas acompañen a las personas en las diferentes etapas de

173 Nesse sentido, cabe destacar que: “En los últimos años, Latinoamérica no se presenta como la región más pobre, sino la
más desigual. Sus países encierran en el interior desigualdades que pueden verse en sus indicadores socioeconómicos, pero
también en los culturales y educativos y luego, si realizamos lecturas a nivel regional, las desigualdades entre los Estados
aparecen con fuerza. Inclusive cuando los distintos gobiernos hayan decidido adoptar políticas similares, sus puntos de
partida, muchas veces disí-miles, muestran resultados dispares.” (CEREZO; MEYER; VOMMARO, 2020, p. 19).

377
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

su vida, atendiendo a las necesidades específicas de cada período, mientras se procura mantener una
continuidad y articulación a lo largo del tempo”.
Assim, persevera a necessidade de se pensar políticas de inclusão que fomentem o
desenvolvimento social e amenizem as mazelas de sociedades nas quais, justamente, a desigualdade
é naturalizada com o passar do tempo174.

A importância de discutir desigualdades para o objetivo de políticas sociais, como as de educação,


crítica dos modelos atuais de sociedade e construção de sociedades mais justas, é reconhecida por
autores das mais diversas correntes e cada vez mais se entende que tal conceito deve se relacionar
com os de desenvolvimento, democracia, cidadania e bem estar social. Tal perspectiva é básica quando
instituições como a escola e projetos sociais, entre outros, são destacadas por seu papel de socialização
de gerações de crianças, adolescentes e jovens. (ABRAMOVAY; CASTRO; SILVA, 2020, p. 46).

Porém, uma das mais graves consequências da desigualdade é que sua permanência fortalece e
aumenta os níveis de pobreza. A pobreza pode se manifestar de várias maneiras, a extrapolar o critério
econômico. Em essência, consiste na carência de bens, materiais e imateriais, derivada, em certos casos,
da falta de recursos econômicos, o que ocasiona a exclusão social de indivíduos que não possuem os
meios necessários para participar efetivamente da sociedade (ZEIFERT; STURZA; AGNOLETTO, 2019).
Para tanto, faz-se necessário pensar os caminhos a serem trilhados e perseguidos, principalmente
diante da crise sanitária pela qual o mundo atravessa e que, no contexto latino-americano, parece
ser ainda mais desafiador, sobretudo quando os envolvidos são crianças e adolescentes em fase de
desenvolvimento, necessitados de amparo e atitudes por parte do Estado175.

La pandemia de COVID-19 exacerbó las desigualdades sociales, la inequidad y la exclusión, al


tiempo que se transformó paradójicamente en una oportunidad para el fortalecimiento de las
relaciones sociales, guiadas por los sentimientos de solidaridad y colaboración en torno a la
búsqueda del bien común, y también por la responsabilidad por el cuidado del otro, como una
dimensión esencial del cuidado y supervivencia de uno mismo. La actual crisis ha favorecido la
resignificación de nuestros vínculos sociales y, a partir de ellos, la reconstrucción de identidades
y del sentido de ciudadanía, incluso en una dimensión global, en torno a una noción práctica de
cómo se forja el bien común en el corto plazo, a través de grandes y pequeñas acciones colectivas
en el día a día, que, sin ignorar los conflictos dominantes que influyen en la división de nuestras
sociedades, reconocen y promueven la cohesión como un elemento crítico para alcanzar un futuro
común. (CEPAL, 2020b, p. 16-17).

Contudo, como pensar em um futuro comum? Quais são os desafios que a realidade impõe,
principalmente quando a ideia de futuro depende do tipo de educação e orientação daqueles que
representam a nova geração?
A resposta não é tão simples, cabe analisar o quanto se avançou e o que ainda se tem como desafio
para pensar a realidade, considerando a emergência sanitária e os seus reflexos em sociedades já
fragilizadas. “El aumento del desempleo y la pobreza afectarán severamente el bienestar de las familias,
particularmente aquellas en condiciones de pobreza extrema [...]” (CEPAL, 2020c, s.p.). Os grupos mais
afetados, segundo relatórios da CEPAL (2020a, 2020b), são populações jovens e mulheres, condições
que favorecem a exploração do trabalho infantil e informal. Essa realidade tem como consequência a
retirada de muitos jovens do ambiente escolar, pelo fato de que terão que auxiliar na complementação de
renda das famílias ou na própria sobrevivência. Dados da América Latina apontam para um incremento
do trabalho infantil em países onde a crise econômica é mais evidente.

174 Resta esclarecer que “historicamente o debate de desigualdades sociais foi relacionado com o da distribuição de renda
e das oportunidades, principalmente no campo da economia (enfoque liberal). Utilizou-se inclusive como um indicador de
tais desigualdades o índice de Gini, uma medida que se calcula estatisticamente e que serve para comparar regiões - varia
de 0, extrema desigualdade, a 1- extrema igualdade” (ABRAMOVAY; CASTRO; SILVA, 2020, p. 46).
175 Especificamente na realidade brasileira, importa pontuar que a responsabilidade na proteção dos direitos infantojuvenis
é solidária, competindo, assim como ao Estado, à família e à sociedade. Tal disposição consta do texto constitucional, em
seu artigo 227 (BRASIL, 2020a).

378
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Figura 1 – Gráfico sobre a associação de emprego informal e taxas de incidência do trabalho


infantil na América Latina e Caribe

Fonte: CEPAL (2020c, p. 8)

Nesse contexto, são fundamentais medidas de proteção para minimizar os efeitos da crise
econômica e social. Crise que é agravada pela pandemia e que coloca crianças e adolescentes
diante de situações de necessidade e exploração, visto que o trabalho infantil é fruto do status de
vulnerabilidade a que tais indivíduos se encontram.

En este contexto, se hace necesario enfatizar que se debe mantener la atención para garantizar la
protección de los derechos de niños, niñas y adolescentes, especialmente en lo referido a evitar su
incorporación precoz al mercado de trabajo y, especialmente, en actividades peligrosas. De igual
forma, estas decisiones deben priorizar apoyos específicos a grupos de la población como, por
ejemplo, las familias en situación de pobreza, las personas y/o hogares en el sector informal, la
población de localidades rurales, los grupos indígenas y la población afrodescendiente, las familias
monoparentales usualmente asumidas por las mujeres cabeza de familia, o en otras situaciones de
discriminación o vulnerabilidad, y la población migrante y refugiada, entre otros. (CEPAL, 2020c).

Ao longo de décadas, a América Latina vem instituindo políticas de proteção de crianças e


adolescentes, principalmente nos campos que dizem respeito à exploração e à violação de direitos
humanos. Tais medidas são fundamentais, haja vista se tratar de um grupo que requer ações em
conjunto por parte de todos os governos, atentas às múltiplas necessidades ao sadio desenvolvimento.
Na seção que segue a esta análise, serão tecidas algumas ponderações a respeito de um aspecto, em
específico, para o desenvolvimento infantojuvenil, que se trata da alimentação. Através de dados
prévios ao contexto pandêmico e atento às condições de desigualdade social, tais fatores serão
dialogados com o cenário que se pode trilhar para a América Latina, sobretudo ao Brasil, no que toca
ao público infantojuvenil.

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO SAUDÁVEL DE MENINOS E MENINAS


ATRAVÉS DA ALIMENTAÇÃO

O relatório Situação Mundial da Infância 2019, sob temática de “Crianças, alimentação e nutrição”
apresenta a realidade global prévia à pandemia do novo coronavírus, a evidenciar os maiores problemas
no que toca à alimentação de crianças e adolescentes no mundo. Os dados tendem a ser agudizados
pela pandemia, diante da acentuação das situações de desigualdade, de exclusão e de pobreza. Nesta
seção do artigo, pretende-se narrar o contexto global, com enfoque local, acerca da alimentação e

379
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de sua relação ao desenvolvimento de infantojuvenis. A partir dos elementos teóricos coletados pelo
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em momento anterior à situação peculiar a que toda
a humanidade perpassa, objetiva-se investigar como o quadro configurado inclina-se à acentuação,
desta vez especialmente com escopo à realidade latino-americana, ano de 2020.
Crescer saudável em um mundo em transformação possui seus desafios, dentre os quais a
chamada “tripla carga da má nutrição”, para indicar subnutrição, fome oculta e sobrepeso. A nível
mundial, uma em cada três crianças com idade inferior a cinco anos não está recebendo a nutrição
necessária para que possa crescer de forma adequada (UNICEF, 2019a).
A má nutrição infantil está imersa em um conjunto social de mudanças, a exemplo da globalização,
do aumento populacional nas cidades e da intensificação das desigualdades socioeconômicas. Essas
circunstâncias estão favorecendo o “[...] aumento da disponibilidade de alimentos ricos em calorias,
mas baixos em nutrientes” (UNICEF, 2019a, p. 3). Para além dos prejuízos físicos, a má nutrição afeta o
desenvolvimento de crianças na dimensão mental, na capacidade de aprender, na própria sobrevivência.
No que toca à má nutrição pelo sobrepeso, as consequências se traduzem em estigmatização e depressão.
O alimento é um dos recursos essenciais para a existência humana, vinculado à vida e à saúde;
um direito fundamental para o desenvolvimento físico e mental de crianças e adolescentes. Todavia,
inobstante a sua importância, o alcance e a satisfação das necessidades básicas não são atendidos
automaticamente, tendo em vista que 149 milhões de crianças com idade inferior a cinco anos estão
com crescimento insuficiente para sua idade, e aproximadamente 50 milhões estão com baixo peso
(UNICEF, 2019a). Na América Latina, aproximadamente cinco milhões de crianças dessa faixa etária
tiveram déficit de crescimento, ao passo que 700 mil estavam com baixo peso (UNICEF, 2019b).
Nesse sentir, surgem algumas interrogações, a exemplo de sob quais condições o desenvolvimento
do público infantojuvenil será possibilitado?
“Pelo menos 1 em cada 3 crianças menores de 5 anos está desnutrida ou com sobrepeso e 1 em
cada 2 sofre de fome oculta. Esse cenário prejudica a capacidade de milhões de crianças de crescer e
desenvolver todo o seu potencial” (UNICEF, 2019a, p. 6). A desnutrição a que o relatório se reporta é
tanto a crônica (baixa estatura para a idade) quanto a aguda (baixo peso para a altura). A fome oculta
consiste na deficiência não de alimentos, em sentido amplo, mas de vitaminas e nutrientes essenciais.
Consoante dados do relatório, a desnutrição crônica diminuiu, nos últimos anos, em todos os
continentes, exceto no africano. Entretanto, o sobrepeso infantil aumentou em todos os continentes,
até mesmo na África (UNICEF, 2019a). Tomar por relevante essa informação, auxilia no entendimento
do que se trata de uma mudança aparente dos problemas sociais, enquanto que, na substância,
não há modificação – porque a raiz dos desafios permanece a mesma, a de prover uma alimentação
saudável para um crescimento igualmente saudável, assim como apto à promoção das potencialidades
de crianças e adolescentes.
A tripla carga de má nutrição afeta crianças e adolescentes, mas não somente eles, porque também
atinge economias e nações. No que se refere à desnutrição, o relatório do Unicef (2019a, p. 6) destaca
sua atemporalidade, porquanto representa um conjunto de privações passadas, bem como “um sinal
de pobreza futura”. Os problemas relativos à nutrição inadequada não estão vinculados a uma única
classe social, contudo, os seus efeitos recaem com força preponderante sobre algumas pessoas: “A
maior carga de todas as formas de má nutrição recai em crianças e adolescentes das comunidades mais
pobres e marginalizadas, perpetuando a pobreza através das gerações” (UNICEF, 2019a, p. 6).
Em um período relativamente curto de pandemia, o recrudescimento das desigualdades sociais
e econômicas já foi anunciado (MARTINS, 2020; OXFAM, 2020), assim como o papel de “efeito
anestesia” desempenhado pelo auxílio emergencial176 (ROUBICEK, 2020). As condições adversas no
país brasileiro são incrementadas pela crise econômica entre 2014 e 2016 e, no seu toar, “[...] a
desigualdade de renda do trabalho começou a crescer a partir de 2015, algo que continuou até 2019”.
Em entrevista prestada ao Nexo Jornal, no início de 2020, o economista Marcelo Neri explicou que
a “[...] alta da desigualdade por mais de quatro anos esteve ligada aos movimentos do mercado de
trabalho. Houve elevação do desemprego, aumento da informalidade e queda na renda média – com

176 Auxílio concedido pelo governo federal brasileiro, na razão de R$ 600,00 (seiscentos reais), como medida excepcional
de proteção social durante o período de enfrentamento da emergência sanitária decorrente da Covid-19, o qual foi criado
pela Lei de nº 13.982, de 2 de abril de 2020.

380
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

queda muito maior na parcela mais pobre da população” (ROUBICEK, 2020, s.p.).
A desigualdade de renda no país começou a declinar durante o ano de 2019. Contudo, “[...] a nova cri-
se causada pela pandemia trouxe consigo um novo impulso para a desigualdade no Brasil”, relata Roubicek
(2020, s.p.). Estudos relatados pelo Nexo Jornal, com escopo nas pesquisas do FGV Social demonstram que,
assim como o problema da desigualdade se intensificou durante a pandemia, a renda dos brasileiros declinou,
cuja queda é significativa e assimétrica, porque “[...] quem pertence à metade da população com menor renda
foi mais prejudicado, perdendo mais de um quarto da renda do trabalho, na média” (ROUBICEK, 2020, s.p.).
Além da queda na renda média do trabalhador brasileiro, promovida, em certa medida, pela
redução da jornada de trabalho, milhões de pessoas perderam seus empregos (ROUBICEK, 2020). O
contexto que se torna factível de desenhar a partir dessas considerações não é de alento, sobretudo
ao ter em mente que, por influência do sistema econômico vigente, a aquisição de alimentos depende
de recursos em dinheiro, com exceção de algumas iniciativas.
A respeito, zonas urbana e rural apresentam situações distintas no aspecto nutricional. “Nas cidades,
muitas crianças pobres vivem em ‘desertos alimentares’, enfrentando a ausência de opções de alimentos
saudáveis ou em ‘pântanos alimentares’, confrontados com uma abundância de alimentos processados
de alta caloria e baixo teor de nutrientes”, conforme também observa o relatório da Unicef (2019a, p. 7).
Os benefícios de se investir na alimentação saudável de crianças e adolescentes são variados, destaca-
dos por diversas oportunidades no relatório. São benefícios sentidos como retornos altos do investimento:
“investir na alimentação das crianças é fundamental para a formação de capital humano, porque a nutrição
é essencial ao crescimento, ao desenvolvimento cognitivo, ao desempenho escolar e à produtividade futura
das crianças” (UNICEF, 2019a, p. 8). Nesse diagnóstico de pontos positivos, inegável a importância do de-
senvolvimento físico e cognitivo de meninas e meninos no globo. Contudo, tecemos uma pequena crítica
ao trazido pelo documento, no que tange à “produtividade futura das crianças”, pelo sentido neoliberal que
a expressão “produtividade” pode assumir; ademais, pela confusão que o devido e necessário sentido de
criança como um fim em si mesmo pode ser utilizado enquanto instrumento do sistema capitalista vigente.
“Dietas de baixa qualidade nutricional têm impactos ao longo da vida no crescimento físico e no
desenvolvimento de cérebros das crianças”, reforça o documento (UNICEF, 2019a, p. 16), a vincular
novamente o caráter múltiplo da alimentação na vida humana, especialmente nos primeiros anos e ao
desenvolvimento neurológico, emocional e psicomotor (RIBEIRO; VERONESE, 2020). Os campos social
e econômico reforçam a importância de sistemas alimentares adequados e saudáveis para crianças,
adolescentes e gestantes, na perspectiva solidária de seus efeitos:

Quando os sistemas alimentares funcionam melhor para as crianças, todos nos beneficiamos.
Uma boa nutrição pode quebrar os ciclos viciosos intergerações por meio dos quais a desnutrição
perpetua a pobreza, e a pobreza perpetua a desnutrição. Crianças bem nutridas têm uma base
sólida a partir da qual podem desenvolver todo o seu potencial. Quando as crianças fazem isso, as
sociedades e as economias também se desenvolvem melhor. (UNICEF, 2019a, p. 17).

Dados do relatório da Unicef (2019b), especificamente no que toca à América Latina e ao Caribe,
dimensionam que, a nível mundial, uma em cada três crianças com idade inferior a cinco anos não
está crescendo de forma saudável (ou seja, 33%). Na América Latina e Caribe, por sua vez, é uma
criança a cada cinco (20%). Embora abaixo do índice global, o dado não compreende, por si só, as
desigualdades que permeiam tais crianças, tampouco nega a abrangência do problema. Acreditamos
que, tanto a nível local quanto global, tais números e suas respectivas realidades serão e estão sendo
acentuados na condição de efeitos da crise sanitária e econômica.
Especificamente sobre o Brasil, o país registra crescimento do sobrepeso e da obesidade, a
diminuição da desnutrição crônica, mas a permanência da desnutrição indígena, a níveis elevados. “O
País reduziu significativamente a desnutrição crônica entre menores de 5 anos nas últimas décadas (de
19,6% em 1990 para 7% em 2006), atingindo, antes do prazo, a meta dos Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio (ODM)”. Contudo, a desnutrição crônica ainda é um problema para os mais vulneráveis, a
exemplo de indígenas, quilombolas e ribeirinhos. “De acordo com o Ministério da Saúde, em 2018,
a prevalência de desnutrição crônica entre crianças indígenas menores de 5 anos era de 28,6%. Os
números variam entre etnias, alcançando 79,3% das crianças ianomâmis” (UNICEF, 2019b, p. 6).
Em estudo desenvolvido por Joana Ribeiro e Josiane Rose Petry Veronese (2020), no início da pande-
mia em solo brasileiro, as pesquisadoras já anunciavam o que se daria na sequência: uma crise alimentar,
381
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a atingir os indivíduos e grupos mais vulneráveis do planeta, que são as crianças e adolescentes. Essa crise
é reconhecida enquanto um fato emergencial que se sobressai à análise. Ponderar o entrecruzamento de
vulnerabilidades – a exemplo da tenra idade com etnia, zona de residência e hábitos culturais – é uma ativi-
dade indispensável para a análise brasileira desta crise, por suas potencialidades altas de violação a direitos
humanos, dada a omissão social e pública na proteção integral da criança e do adolescente. Em maio de
2020, as mazelas pandêmicas já estavam atingindo a população brasileira e mundial, bem como deixando

[...] inúmeras famílias em vulnerabilidade financeira e emocional grave, tanto pelas perdas das
vidas humanas que compõem as famílias e cuja falta causará danos muito impactantes nas pessoas
(em especial, nas crianças e adolescentes), como pela perda da renda, dos empregos e do convívio
social (RIBEIRO; VERONESE, 2020, p. 33).

Inobstante a contribuição do poder público através do auxílio emergencial, Ribeiro e Veronese


(2020) tecem as dificuldades de ordem técnica com que muitas pessoas podem se deparar, além dos
requisitos a serem atendidos, o tempo que transcorre entre a solicitação e a confirmação do pedido
de auxílio; circunstâncias que se contrapõem à fome, sua periodicidade e constância.

Já a fome não cumpre requisitos, não é diária, mas horária, cobrando seu crédito a cada duas horas
em média, nas crianças pequenas, às quais não compreendem a espera e cujo sofrimento pela
dor e pela angústia são potencializados pela falta de instrumentos cerebrais ainda em formação,
que são necessários para serem recrutados no momento de compreensão dos acontecimentos
externos e internos. (RIBEIRO; VERONESE, 2020, p. 46).

Mais do que apresentar números e cotejá-los, o Fundo das Nações Unidas para a Infância,
em seu relatório, estipulou uma espécie de Agenda, a que denominou de “Agenda para Colocar os
Direitos Nutricionais das Crianças em Primeiro Lugar”. Elaborada em um momento no qual não se
havia previsão do cenário pandêmico atual, o documento contém objetivos que, não só são úteis
a qualquer tempo, agora se fazem urgentes. Guiada por dois imperativos – que crianças possuem
necessidades nutricionais específicas e que “toda criança e todo adolescente precisarão de dietas
nutritivas, acessíveis e sustentáveis para que as sociedades enfrentem os desafios econômicos,
sociais e ambientais do século 21” (UNICEF, 2019a, p. 23) –, a Agenda contém cinco objetivos.
O primeiro, é capacitar famílias, crianças e adolescentes para exigir alimentos adequados e saudáveis,
considerando que a demanda interfere na oferta e que o conhecimento e a informação podem auxiliar
na formação de crianças em agentes de mudança. O segundo, consiste em incentivar os fornecedores
de alimentos a disponibilizar opções saudáveis, conscientizando-os, portanto, de seu papel fundamental
na oferta. O terceiro objetivo é construir ambientes alimentares saudáveis para todas as crianças (o
que inclui uma embalagem adequada e proteção contra o marketing exploratório). O quarto objetivo
consiste em mobilizar os sistemas de apoio a atuarem de forma coordenada, no intuito de melhorar a
alimentação e a nutrição de todas as crianças. Por fim, o quinto objetivo está relacionado com a produção
de dados e pesquisas relativas ao tema, pois, por meio delas, políticas públicas e ações podem ser melhor
desenvolvidas, o que também permite acompanhar o progresso da Agenda (UNICEF, 2019a).
A importância da atuação do Estado, através de seus três poderes (Executivo, Legislativo e
Judiciário), é novamente salientada, diante das consequências experimentadas pelos mais necessitados,
seja no Brasil ou na América Latina como um todo. Através do direito à alimentação (de qualidade)
e de sua efetiva prestação, outros direitos são assegurados, enfaticamente com relação a crianças e
adolescentes, a possibilitar seu pleno desenvolvimento físico e mental, a satisfazer o direito à saúde,
a diminuir desigualdades e potencializar a erradicação da pobreza. Mostra-se, portanto, um direito
essencial para a proteção da vida digna das pessoas mais vulneráveis e importantes do globo.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O início deste texto ocorreu por perspectivas negativas do momento atual. Em contrapartida, findou com
um plano de ações do Fundo das Nações Unidas para a Infância, através do estabelecimento de estratégias
para articular pessoas, famílias, comunidades, comerciantes, produtores, governos, pesquisadores.
Sem qualquer pretensão de esgotar a temática, este estudo buscou apontar como a pandemia do

382
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

novo coronavírus pode acentuar situações de desigualdade socioeconômica, pobreza e má nutrição,


especialmente no que toca ao público infantojuvenil (composto por crianças e adolescentes), no
contexto global, assim como latino-americano e brasileiro.
Tendo por basilar o direito humano à alimentação, a pesquisa considerou a acepção de má
nutrição apresentada pela Unicef, que compreende a desnutrição, a fome oculta e o sobrepeso.
Mesmo em contextos pandêmicos, o sobrepeso preocupa, na medida em que dietas mais saudáveis
e nutritivas estão cada vez mais elevadas em termos econômicos. Desse modo, até mesmo núcleos
familiares desprovidos de recursos passam a adquirir alimentos que comportem suas condições, mas
deficientes em nutrientes e vitaminas (ainda que ricos em calorias). De mais a mais, a falta de alimentos
e a sua insuficiência persistem como sendo problemas globais, a impedir o pleno desenvolvimento de
crianças, o que é extremamente grave nos primeiros anos de vida.
A preocupação originada pela alimentação moderna não se restringe à saúde humana, porque
também afeta a vida no planeta. A produção de alimentos é responsável pela emissão de gases do
efeito estufa e de 70% do uso da água doce. Em um mundo que experimenta nos últimos anos variadas
crises ambientais, os fatores que envolvem a produção alimentícia não passam despercebidos.
Ao mesmo tempo em que o relatório apresenta certos deveres, como de os sistemas alimentares
posicionarem a nutrição das crianças no centro de seu trabalho, pois suas necessidades nutricionais são
únicas e atendê-las é fundamental ao desenvolvimento sustentável, estamos assistindo medidas do Estado
brasileiro que negam vigência e legitimidade a normas jurídicas e pesquisas científicas. Dizemos isso
diante do teor decisório do Supremo Tribunal Federal, na lavra do Ministro Dias Toffoli, que desobrigou o
governo do estado fluminense a conceder merenda escolar aos alunos da rede, durante a pandemia (G1RIO,
2020; BRASIL, 2020b); também, pelas pretensões do Poder Executivo em revisar o Guia Alimentar para a
População Brasileira, no intuito de reformular regras e inserir alimentos ultraprocessados (KOWALTOWSK,
2020). São situações novamente desafiadoras, inclusive para a academia.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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384
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS DE PANDEMIA:


COMO “ASSEGURAR UMA VIDA SAUDÁVEL E PROMOVER
O BEM-ESTAR PARA TODOS177”?

Evandro Luis Sippert178


Janaína Machado Sturza179

RESUMO: A pandemia, oriunda da propagação do Covid-19, tem produzido consequências substanciais


e grandes repercussões de ordem social e econômica em praticamente todos os países do mundo.
Neste contexto é imprescindível ressaltar a importância dos direitos humanos, bem como o direito
à saúde e a atuação do Estado no combate ao coronavírus. Faz-se necessário evidenciar ainda mais
a importância da Agenda 2030 em relação à saúde, no tocante aos complexos delineamentos que
estão surgindo e afetando a vida de todos, evidenciando o quanto as pessoas continuam vulneráveis,
principalmente no tocante à saúde. Desta forma, é insofismável a importância dos direitos humanos,
de forma a permitir um mínimo de dignidade, bem como o acesso a direitos fundamentais, tal como
o direito a saúde, tão essencial em época de coronavírus.

Palavras-chave: Saúde. Pandemia. Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO

As consequências advindas da pandemia ocasionada pela propagação de um novo coronavírus,


também denominado de Covid-19, ainda não são totalmente conhecidas. Porém, sabe-se que já
ocasionaram mudanças substanciais e de grandes repercussões na vida das pessoas, bem como na
história da humanidade. Ante este cenário, faz-se imprescindível destacar a importância dos direitos
humanos, bem como o direito à saúde, os quais são diretamente influenciados pelos complexos
delineamentos advindos da pandemia.
Aliada com a disseminação do covid-19, também ressurgem antigos problemas estruturantes da
sociedade principalmente aqueles relacionados às desigualdades de classes sociais e as populações
em grupo de risco as quais são afetadas sobremaneira. O vírus tem uma característica “democrática”,
porém as consequências de o contrair, ou a forma de enfrentar a pandemia ou mesmo ter acesso à
saúde, certamente são mais acentuadas nas populações vulneráveis.
Neste sentido, o presente estudo, tem por objetivo, mesmo que breve, fazer uma relação entre
os direitos humanos e o direito à saúde frente à pandemia do covid-19, num mundo que está em
constante transformação e passando por um momento tão crítico.

177 O título faz referência ao “Objetivo 3” da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que tem como meta
“assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades” (OMS/WHO, 2015).
178 Doutorando em Direito pelo PPGD – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Mestre em Direito pela UNIJUÍ, Bacharel em Direito pela Universidade de Cruz Alta -
UNICRUZ, Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS, MBA em Gestão das
Tecnologias de Informação e Comunicação em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/
RS, Pós-Graduação em Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Advogado. Contato:
evandro.sippert@gmail.com.
179 Pós doutora em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.
Doutora em Direito pela Escola Internacional de Doutorado em Direito e Economia Tullio Ascarelli, da Universidade de Roma
Tre/Itália. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Especialista em Demandas Sociais e Políticas
Públicas também pela UNISC. Graduada em Direito pela UNISC. Professora na Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, lecionando na graduação em Direito e no Programa de Pós Graduação em Direito – Mestrado
e Doutorado. Contato: janasturza@hotmail.com.

385
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS DE PANDEMIA DE COVID-19

A pandemia oriunda da propagação de um novo coronavírus, também denominado de Covid –


19, está produzindo consequências substanciais e grandes repercussões de ordem social e econômica
em praticamente todos os países do mundo. Diante das implicações que advindas da pandemia do
Covid-19, faz-se necessário evidenciar a importância dos direitos humanos, em relação aos complexos
delineamentos que estão surgindo e afetando a vida de todas as pessoas.
Neste sentido, Norberto Bobbio leciona que os direitos do homem, em que pese serem direitos
fundamentais, [...] “são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados
por lutas em defesas de novas liberdades contra velhos poderes, nascidos de modo gradual, nem
todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (BOBBIO, 1992, p. 5).
Já na lição de Ferrajoli (2011, p. 107) “os direitos fundamentais são sempre leis dos mais fracos
contra a lei dos mais fortes, esses valem, como direitos do indivíduo, para proteger as pessoas também
– e acima de tudo – contra as suas culturas [...]”. Assim, a positivação dos direitos fundamentais,
principalmente nas Constituições Modernas, tende a insculpir um rol mínimo de direitos humanos em
um documento escrito, derivado diretamente da soberania e da vontade popular.
A crise advinda do novo coronavírus, alcança toda a sociedade a qual já é caracterizada por
problemas de desigualdade social, sendo que grande parte dos problemas, são decorrentes do
mundo globalizado. A forma desigual e injusta de distribuição das riquezas e bens produzidos está
historicamente arraigada à sociedade, sendo que este modelo adotado contribui para que a grande
maioria da população sofra as consequências trágicas da globalização, agravadas pela crise pandêmica,
não permitindo que as pessoas consigam exercer seus direitos humanos. “Numa sociedade cada vez mais
globalizada, produtora de novas formas de regulação jurídica e de novos ambientes de complexidade,
os direitos humanos devem apresentar uma potencialidade bem maior do que os direitos constitucionais
(fundamentais) já apresentam” (LUCAS, 2009, p. 51). Na doutrina de Warat e Pêpe (1996, p. 77):

O surgimento do Estado de Direito estreita as relações das instituições jurídicas com a sociedade.
As questões relativas aos direitos individuais, à justiça, à dominação legítima, assumem novas
formas diante do Estado moderno e sua legitimidade junto aos indivíduos e às demais instituições.
Um exemplo que ilustra bem o surgimento do Estado de Direito é a elaboração da ideia de
cidadania. Nesse sentido as garantias de vida, de liberdade e de propriedade passam a ser vistas
pela ordem jurídica como objeto de reconhecimento e proteção.

Destarte, são inúmeros os fatores que influenciam, oneram e impedem a efetivação dos direitos
fundamentais, principalmente o acesso à saúde, com suas consequências, muitas vezes nefastas,
para a qualidade de vida, principalmente em época de pandemia.
Porém, toda crise também é uma oportunidade de se ressignificar, mesmo sabendo que a pandemia
representa sérios riscos para a saúde das pessoas, principalmente as mais vulneráveis, é necessária a
consciência, principalmente diante desta crise sanitária ocasionada pela pandemia, de que somos todos
humanos, que não somos melhores ou superiores, mas sim vivemos numa sociedade que deve pautar
e defender a diferença. Nesse sentido, Douzinas (2009) infere que os direitos humanos “constroem
seres humanos. Sou humano porque o Outro me reconhece como tal, o que, em termos institucionais,
significa que sou reconhecido como um detentor de direitos humanos” (DOUZINAS, 2009, p. 375-376).
Flores (2009) salienta que os direitos humanos são entendidos como os processos e dinâmicas
sociais, políticas, econômicas e culturais que se desenvolvem historicamente. Pois, embora os
direitos humanos servissem tanto para marcar a luta pela dignidade humana como para justificar
políticas econômicas neoliberais, também devem ser entendidos pelo contexto histórico, social e,
principalmente, cultural, no qual o indivíduo está inserido.
Os direitos humanos permitem, assim, as diferentes culturas explicarem, interpretarem
e transformarem o mundo. Portanto, discorrer sobre direitos humanos, requer “não só fazê-lo de
distribuição mais ou menos justas, mas, também e fundamentalmente de relações de poder que
funcionam oprimindo, explorando e excluindo a muitos coletivos de pessoas que exigem viver
dignamente” (FLORES, 2009, p. 21).
Devem-se construir condições para a eliminação das injustiças e exclusões, e pelo acesso
generalizado e igualitário, e, em se tratando de direito à saúde, a um tratamento digno e adequado

386
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

à população suscetível ao coronavírus, pois “também os direitos do homem são direitos históricos,
que emergem gradualmente das lutas que o homem trava pela sua própria emancipação e das
transformações das condições de vida que essas lutas produzem” (BOBBIO, 1992, p. 32), buscando
sempre a diminuição das desigualdades e a inclusão do indivíduo enquanto sujeito de direitos.
Lucas (2013, p. 286) afirma que os direitos humanos deveriam atuar no sentido de ser “[...] mediador
entre as igualdades e as diferenças, como limite ético para o reconhecimento das particularidades
e para a afirmação das igualdades que não homogeneízem e não sufoquem a humanidade presente
na experiência de cada homem isoladamente considerado”. Delmas-Marty (2003) destaca que o ser
humano, mesmo aquele que esteja incorporado na sua comunidade familiar, arraigado a sua cultura ou
sua prática religiosa, não deve jamais perder sua individualidade e ser reduzido a um mero elemento
cambiável por outros e rejeitado como tal.
Neste sentido, Lucas (2013) ainda aduz que os direitos humanos surgem como sendo resultado
de tomada de consciência do ser humano e de sua dimensão universal, promovendo a aproximação
entre as culturas e, também, como o reconhecimento do outro e produzindo respostas para uma
sociedade cada vez mais afetada por problemas de ordem global.
Ante a grave crise do corononavírus, espera-se também que “o vírus do pensamento em termos
de uma sociedade alternativa, uma sociedade para além do Estado-nação, uma sociedade que se atua-
liza sob a forma de solidariedade e cooperação global” (Žižek, 2020, p. 43), também se estabeleça,
no intuito de viabilizar melhores condições de vida saúde para as pessoas, bem como promover as
políticas públicas de saúde.
Nesse sentido, os direitos humanos tem fundamental importância como contraponto as conse-
quências trágicas da propagação do coronavírus, o qual se alastrou de forma avassaladora por todo o
mundo, evidenciando o quanto as pessoas continuam vulneráveis, pois apesar dos avanços tecnoló-
gicos e científicos do nosso tempo, a falta de saúde, afeta toda a ordem mundial, social e econômica.

2 A CRISE SANITÁRIA E ATUAÇÃO DO ESTADO FRENTE AO COVID-19

Para ter uma boa qualidade de vida, tanto na própria existência física e saúde dos seres humanos
quanto ao aspecto da dignidade dessa existência, é imprescindível que se tenha “o reconhecimento
da essencialidade do equilíbrio interno e do homem com o ambiente (bem-estar físico, mental e
social) para a conceituação da saúde” (DALLARI; FORTES, 1997, p. 188).
Na mesma perspectiva, a Lei nº 8080/90, no seu Art. 3º, diz que “A saúde tem como fatores
determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio
ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais”,
também destaca a importância da inter-relação do homem com o meio em que perfectibiliza a sua vida, pois
ao lado de outros fatores que também são essenciais, ambiente dá suporte, determina e condiciona a saúde.
Verifica-se assim, que a saúde da pessoa, condição fundamental para viver, está intimamente
ligada com o ambiente em que ela vive e suas formas de vida, as condições do seu habitat, seus
hábitos e todo o contexto que pode de alguma forma, exercer influência na sua saúde e o seu bem-
estar. Assim, o conceito de saúde relacionado com o ambiente é enunciado de várias maneiras. Dallari
e Fortes (1997), trazem à baila a visão de alguns autores:

Para Alessandro Seppilli saúde é “a condição harmoniosa de equilíbrio funcional, físico e psíquico do
indivíduo integrado dinamicamente no seu ambiente natural e social”, para John Last saúde é um estado
de equilíbrio entre o ser humano e seu ambiente, permitindo o completo funcionamento da pessoa, e
para Claude Dejours, convencido de que não existe o estado de completo bem-estar, a saúde deve ser
entendida como a busca constante de tal estado (DALLARI; FORTES, 1997, p. 188 in: FLEURY, 1997).

Conhecer a inter-relação entre saúde e ambiente, é fundamental quando se pretende discorrer


sobre os motivos que levaram a diminuir a qualidade de vida. Os diversos aspectos do meio ambiente
físico e social devem ser levados em consideração, destacados por Tambellini e Miranda (2012), que
com a ampliação das explicações do domínio dos conceitos de qualidade de vida e saúde, “torna-se
imprescindível o aporte da ‘categoria ambiente’ em suas múltiplas dimensões, para a compreensão

387
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

integralizada destes problemas que afetam diretamente a saúde” (TAMBELLINI; MIRANDA, 2012, p. 79).
O meio ambiente de má qualidade, sem condições mínimas de saneamento e, sobretudo nas
populações mais carentes, permite que possam “[...] ocorrer doenças diferentes com intensidades
e manifestações também diferentes, a depender das características do dado território, sejam elas
sociais, culturais, econômicas, geográficas, e até mesmo políticas” (VILLARDI, 2015, p. 10).
Villardi (2015) destaca ainda que ao olharmos a situação de saúde e ambiente atuais, há de se
levar em conta que o homem evoluiu através das eras históricas, as quais foram não lineares, e que cada
sociedade seguiu a sua própria forma de organização e a sua relação com a natureza. Desta forma, em
cada momento histórico a inter-relação com o local onde vive, seu ambiente, sua forma de socializar-se,
compreende uma intricada relação que deve ser levada em consideração para a promoção da sua saúde.
Tal necessidade de entender os espaços da vida humana como território vivo e onde se perfectibiliza
a vida, conduz as reflexões de Bauman (2000), que destaca uma fase da sociedade que passa por uma
série de transformações, passando de uma modernidade sólida para uma modernidade líquida, na
qual tudo é transitório e volátil e que se inserem todas as relações sociais e, por consequência, todas
as relações com o meio ambiente, onde o consumismo no processo de globalização degrada de tal
forma os recursos ambientais em detrimento da preservação e da sustentabilidade.

Nesse contexto há uma pressão pela desregulação ambiental e social associada ao uso de
tecnologias do agronegócio, para geração de energia e polos empresariais, de forte impacto
negativo no ambiente e consequentemente na saúde. Ainda, este cenário impacta visivelmente
o espaço do trabalho tendo implicações diretas na saúde do trabalhador (VILLARDI, 2015, p. 14).

Nesse sentido, dada a importância e a influência da inter-relação do ambiente em que habita-se


e a sua consequência sobre a vida e o bem estar, tem-se que “a qualidade do meio ambiente em que
a gente vive, trabalha e se diverte, influi consideravelmente na própria qualidade de vida. Villardi
(2015) destaca que o cenário dinâmico e complexo exige uma análise contínua da situação da saúde
das populações, com a finalidade de nortear as decisões a serem tomadas, “auxiliando na redefinição
de prioridades, predição de cenários futuros, estruturação do setor saúde e avaliação das intervenções
implementadas” (VILLARDI, 2015, p. 14).

[...] reconhece-se a necessidade da superação da abordagem unidisciplinar dos problemas


ambientais pela multi/transdisciplinar, sem a qual teremos enorme dificuldade da compreensão
articulada e abrangente que este campo exige. Deste modo, é fundamental a articulação entre todos
os saberes a ele relacionados, compreendidos de forma interativa, para uma melhor percepção de
sua complexidade (TAMBELLINI E MIRANDA, 2012, p. 9).

Denota-se que o acesso ao meio ambiente sustentável e o acesso à saúde, direitos sociais como
dimensão dos direitos fundamentais do homem, “são prestações positivas proporcionadas pelo Estado
direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições
de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situação sociais desiguais”
(SILVA, 2005, p. 286-287).
Porém, os anos de neoliberalismo na América do Norte e do Sul e na Europa, segundo Harvey (2020),
deixaram as pessoas totalmente expostas e mal preparadas para enfrentar uma crise de saúde pública das
proporções desta pandemia do Covid-19. Em que pese, algumas doenças anteriores como, por exemplo, a
SARS e também o Ebola foram prenúncios do que seria necessário fazer. Também faz necessário destacar
que aqueles que “formam a linha de frente da defesa em emergências de saúde pública e segurança deste
tipo, tinham sido privados de financiamento graças a uma política de austeridade destinada a financiar
cortes fiscais e subsídios às corporações e aos ricos” (HARVEY, 2020, p. 18).
Ante a escassez de recursos investidos na área sanitária, para conter a disseminação do vírus,
os governos atuam “decretando medidas mais ou menos drásticas para conter a população, numa
tentativa de deter a propagação da pandemia e evitar o colapso dos serviços hospitalares, cujas
capacidades operacionais eles próprios reduziram” (BIHR, 2020, p. 27). Tais medidas extremadas
adotadas pelos governos, na tentativa de evitar que o vírus se espalhe, denota um controle social sem
precedentes, para poder de alguma forma evitar o esgotamento dos serviços hospitalares.
A proliferação do covid-19, bem como as medidas tomadas pelos Estados para proteger as

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

pessoas, confirmam a importância da saúde como um bem público e um direito fundamental de todos.
Na doutrina de Sousa (2015), o direito à vida é o mais fundamental e importante de todos os direitos,
pois a partir da vida e uma vida saudável, é que se pode exigir a efetivação de todos os direitos
fundamentais. Assim, a abstenção destes por parte do Estado será sempre lesiva à individualidade
e a condição de sujeitos do homem, principalmente no que tange ao acesso à saúde permeado por
uma vida saudável, sobretudo em época em que se está à mercê de uma grave crise em função da
pandemia do Covid-19.

3 “ASSEGURAR UMA VIDA SAUDÁVEL E PROMOVER O BEM-ESTAR PARA TODOS, EM TODAS


AS IDADES”: O OBJETIVO 3 DA AGENDA 2030 E A PANDEMIA DE COVID-19

Verifica-se que dispor de boa saúde é essencial para enfrentar doenças da espécie como o
coronavírus, pois, apesar da forma “democrática” como o vírus se espalha, é certo que as pessoas
com melhores condições econômicas, conseguem ter melhores atendimentos. Sabe-se que nem todas
as pessoas tem acesso a uma boa qualidade de vida, e muitas das que são infectavas pelo novo vírus,
já possuem outras comorbidades o que agrava o tratamento e a cura do Covid-19.
Tal fato já aconteceu por ocasião da gripe espanhola, onde “A escassez de alimentos resultante
levou dezenas de pessoas pobres à beira da inanição. Eles se tornaram vítimas de uma sinistra sinergia
entre a desnutrição – que suprimiu sua resposta imunológica à infecção e produziu uma inflamação
bacteriana, bem como uma pneumonia viral” (DAVIS, 2020, p. 7). Em relação a tais doenças,
as condições que favorecem a transmissão rápida através dos corpos hospedeiros variam muito.
Populações humanas de alta densidade pareceriam alvos fáceis do hospedeiro. É bem conhecido
que as epidemias de sarampo, por exemplo, só se manifestam em grandes centros populacionais
urbanos, mas desaparecem rapidamente em regiões pouco povoadas. A forma como os seres
humanos interagem uns com os outros, se movem, se disciplinam ou se esquecem de lavar as
mãos afeta a forma como as doenças são transmitidas (HARVEY, 2020, p. 15).

Outro fator importante, relacionado à pandemia, é que este surto expôs as enormes diferenças
de classes sociais na saúde dos países atingidos. As pessoas que possuem condições de manter
planos de saúde, invariavelmente são as mesmas pessoas que também podem trabalhar ou até
mesmo aprender e ensinar de casa, onde estão de forma muito confortável isolados, dos riscos de
contágio, desde que sigam as normas sanitárias. Já outros funcionários, grupos de trabalhadores
serão obrigados a fazer escolhas, por vezes consideradas difíceis, entre ter uma renda ou se proteger.
São milhões de trabalhadores na sua grande maioria com baixos salários, trabalhadores das zonas
rurais, muitos desempregados e ou até mesmo sem teto, jogados a dura sorte (DAVIS, 2020).
Denota-se que o ambiente natural e o equilíbrio com o ambiente onde se vive é condição essencial
para dispor de um completo bem-estar. Embora, a definição de saúde seja de “difícil operacionalização,
qualquer enunciado do conceito de saúde que ignore a necessidade do equilíbrio interno do homem
e desse com o ambiente, o deformará irremediavelmente” (DALLARI; FORTES, 1997, p. 188).
Nesse sentido, são complexas e diversas as formas para demonstrar as controvérsias e a
supressão dos direitos, principalmente, no tocante ao acesso à saúde, como na forma de “[...] leis
repressivas, do dissenso social, das violências, em especial destaque as de gênero, raça e etnia, de
violações em áreas de conflito ambiental e pela posse da terra, ou da desigual determinação social
das enfermidades, entre tantas outras formas de supressão” (OLIVEIRA, et al, 2017, p. 21).
Consequentemente, o ser humano que não possuir acesso a qualquer um dos direitos sociais
garantidos, mas principalmente a serviços básicos de saúde, não poderá desenvolver-se nem como
pessoa e nem como cidadão, pois não há condições de autodeterminação, nem condições físicas ou
mentais, se não tiver a efetivação do acesso à saúde (LEITE, 2014).
Convém destacar que a Organização Mundial da Saúde, que é subordinada a Organização das
Nações Unidas (ONU), lançou em 2015 a “A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que
se trata de um ambicioso plano de ação para as pessoas, bem como para o planeta e também com
foco na prosperidade. Busca fortalecer a paz universal com mais liberdade e assim como reconhece
que a erradicação da pobreza que assola o mundo, em todas as suas formas e dimensões, inclusive na
sua forma mais extrema, é a maior demanda atual bem como o maior desafio global o qual se mostra
389
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável. (OMS/WHO, 2015).


A nova agenda da OMS (OMS/WHO, 2015), destaca a 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável,
que buscam concretizar os direitos humanos, os quais também são também integrados e indivisíveis,
bem como equilibram as três dimensões do desenvolvimento sustentável, quais sejam, a econômica,
a social e a ambiental. Os objetivos e metas têm como foco estimular a ação em áreas as quais foram
consideradas de importância crucial para a humanidade assim também como para o planeta:

Pessoas
Estamos determinados a acabar com a pobreza e a fome, em todas as suas formas e dimensões, e
garantir que todos os seres humanos possam realizar o seu potencial em dignidade e igualdade,
em um ambiente saudável.
Planeta
Estamos determinados a proteger o planeta da degradação, sobretudo por meio do consumo e
da produção sustentáveis, da gestão sustentável dos seus recursos naturais e tomando medidas
urgentes sobre a mudança climática, para que ele possa suportar as necessidades das gerações
presentes e futuras.
Prosperidade
Estamos determinados a assegurar que todos os seres humanos possam desfrutar de uma vida
próspera e de plena realização pessoal, e que o progresso econômico, social e tecnológico ocorra
em harmonia com a natureza.
Paz
Estamos determinados a promover sociedades pacíficas, justas e inclusivas que estão livres do
medo e da violência. Não pode haver desenvolvimento sustentável sem paz e não há paz sem
desenvolvimento sustentável.
Parceria
Estamos determinados a mobilizar os meios necessários para implementar esta Agenda por meio
de uma Parceria Global para o Desenvolvimento Sustentável revitalizada, com base num espírito de
solidariedade global reforçada, concentrada em especial nas necessidades dos mais pobres e mais
vulneráveis e com a participação de todos os países, todas as partes interessadas e todas as pessoas.
Os vínculos e a natureza integrada dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são de
importância crucial para assegurar que o propósito da nova Agenda seja realizado. Se realizarmos
as nossas ambições em toda a extensão da Agenda, a vida de todos será profundamente melhorada
e nosso mundo será transformado para melhor. (OMS/WHO, 2015).

Os objetivos e metas da OMS estabelecem uma visão transformadora, principalmente no tocante


à saúde da população mundial, onde estão assegurados para as pessoas os cuidados de saúde e
proteção social, com o bem-estar físico, mental e social. Existe também com compromisso relativo ao
direito humano ao saneamento e higiene básicos, “(...) onde o alimento é suficiente, seguro, acessível
e nutritivo. Um mundo onde habitats humanos são seguros, resilientes e sustentáveis, e onde existe
acesso universal à energia acessível, confiável e sustentável” (OMS/WHO, 2015).
Segundo as metas da OMS (OMS/WHO, 2015), para promover a saúde física e mental e o bem-
estar, que se redunda no conceito de saúde, bem como para aumentar a expectativa de vida para
todos, deve ser alcançada a cobertura universal de saúde e acesso a cuidados de saúde de qualidade.

Estamos empenhados em garantir o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva,
inclusive para o planeamento familiar, para a informação e para a educação. Iremos igualmente
acelerar o ritmo dos progressos realizados na luta contra a malária, HIV/AIDS, tuberculose,
hepatite, ebola e outras doenças e epidemias transmissíveis, incluindo a abordagem em relação
à crescente resistência antimicrobiana e o problema das doenças negligenciadas que afetam os
países em desenvolvimento. Estamos comprometidos com a prevenção e o tratamento de doenças
não transmissíveis, incluindo distúrbios de comportamento, de desenvolvimento e neurológicas,
que constituem um grande desafio para o desenvolvimento sustentável. (OMS/WHO, 2015).

Nesse sentido, destaca-se o “Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar
para todos, em todas as idades” da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que tem por
metas, em relação a saúde e ao meio ambiente sustentável, dentre outras, até 2030:

3.8 Atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso
a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais
seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

3.9 Até 2030, reduzir substancialmente o número de mortes e doenças por produtos químicos
perigosos, contaminação e poluição do ar e água do solo.
(...)
3.b Apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas e medicamentos para as doenças
transmissíveis e não transmissíveis, que afetam principalmente os países em desenvolvimento,
proporcionar o acesso a medicamentos e vacinas essenciais a preços acessíveis, de acordo com a
Declaração de Doha, que afirma o direito dos países em desenvolvimento de utilizarem plenamente
as disposições do acordo TRIPS sobre flexibilidades para proteger a saúde pública e, em particular,
proporcionar o acesso a medicamentos para todos
3.c Aumentar substancialmente o financiamento da saúde e o recrutamento, desenvolvimento e
formação, e retenção do pessoal de saúde nos países em desenvolvimento, especialmente nos
países menos desenvolvidos e nos pequenos Estados insulares em desenvolvimento.
3.d Reforçar a capacidade de todos os países, particularmente os países em desenvolvimento,
para o alerta precoce, redução de riscos e gerenciamento de riscos nacionais e globais de saúde.
(OMS/WHO, 2015).

Ressalta-se a insofismável importância de se atingir os objetivos constantes da Agenda 2030,


principalmente neste momento que a pandemia representa sérios riscos para a saúde das pessoas,
principalmente as pessoas mais vulneráveis. Dentre as metas relacionadas à saúde, também está
“acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças tropicais negligenciadas, e combater
a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças transmissíveis” (OMS/WHO, 2015).
Ocorre que a pandemia oriunda da propagação de um novo coronavírus, está produzindo
consequências e grandes repercussões de ordem social e econômica em praticamente todos os países do
mundo. Assim, diante das implicações que advindas da pandemia do Covid-19, faz-se necessário evidenciar
ainda mais a importância da Agenda 2030 em relação à saúde e a sustentabilidade, principalmente em
relação aos complexos delineamentos que estão surgindo e afetando a vida de todas as pessoas, pois a
crise sanitária e humanitária, que a sociedade mundial está atravessando, tem se agravado, principalmente
com as questões relacionadas à saúde pública as quais são extremamente deficitárias. Tais disparidades
trazem consequências imediatas sobre a sua saúde e a vida das populações. “Há centenas de milhões de
pessoas ao redor do mundo sem acesso aos serviços mais básicos de saúde” (HARARI, 2020, p. 9).
Portanto, dada a relevância de se ter acesso à saúde como direito fundamental consagrado no
ordenamento jurídico, tendo no Estado o principal implementador de políticas sociais e econômicas
que visem o bem comum, pois “o estado saudável ou mórbido do corpo de cada pessoa depende em
primeiro lugar do estado saudável ou mórbido do corpo social” (BIHR, 2020, p. 25), se coadunando
com a implementação da Agenda 2030, bem como o objetivo de número três da Agenda, que é
assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades. Pois, o
acesso à saúde de forma eficiente, que garantam os valores de preservação da vida e se adequem às
reais necessidades das pessoas, são pressupostos essenciais para que se tenha uma efetivação dos
direitos humanos, proporcionando a todos uma melhor e digna qualidade de vida.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise originada pela propagação do coronavírus torna imperioso que seja destacada a
importância dos direitos humanos bem como o acesso à saúde, os quais tem o condão de proporcionar
melhores condições de vida e saúde para as pessoas, ou pelo menos condições mínimas de dignidade.
O covid-19 se alastrou de forma avassaladora por todo o mundo, evidenciando o quanto as pessoas
continuam vulneráveis, principalmente no tocante à saúde, pois apesar dos avanços tecnológicos e
científicos, a falta de saúde, afeta toda a ordem mundial, social e econômica.
Com a pandemia, as medidas tomadas pelos Estados para proteger as pessoas, confirmam, a
importância da saúde como um bem público e um direito fundamental de todos, pois o direito à vida é
o mais fundamental e importante de todos os direitos, pois a partir da vida e uma vida saudável, é que
se pode exigir a efetivação de todos os direitos fundamentais. Assim, a abstenção destes por parte
do Estado será sempre lesiva à individualidade e a condição de sujeitos do homem, principalmente
no que tange ao acesso à saúde permeado por uma vida saudável, sobretudo em época em que se
está à mercê de uma grave crise em função da pandemia do Covid-19. Sendo o Estado o principal

391
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

implementador de políticas sociais e econômicas que visem o bem comum, conclui-se que “o estado
saudável ou mórbido do corpo de cada pessoa depende em primeiro lugar do estado saudável ou
mórbido do corpo social” (BIHR, 2020, p. 25).
Assim, diante das implicações que advindas da pandemia do Covid-19, para que o Estado
possa perfectibilizar o acesso à saúde e os direitos sociais, faz-se necessário evidenciar ainda mais
a importância da Agenda 2030 em relação à saúde, principalmente em relação aos complexos
delineamentos que estão surgindo e afetando a vida de todas as pessoas. Pois a crise sanitária
e humanitária, que a sociedade mundial está atravessando, com as suas disparidades trazem
consequências imediatas sobre a sua saúde e a vida das populações. “Há centenas de milhões de
pessoas ao redor do mundo sem acesso aos serviços mais básicos de saúde” (HARARI, 2020, p. 9).
Portanto, embora não se tenha ainda a noção de todos os efeitos da pandemia, se faz necessário
uma reflexão acerca de suas consequências na sociedade, bem como no direito, no acesso à saúde e,
principalmente no tocante ao Estado. Porém, denota-se que a propagação do Covid-19 já transformou o
mundo, bem como potencializou antigos problemas, expondo principalmente as desigualdades sociais.
Certamente o mundo não será mais o mesmo após a pandemia. Portanto, é insofismável a importância
dos direitos humanos, ante a crise do coronavírus, de forma a permitir um mínimo de dignidade, bem
como o acesso a direitos fundamentais, tal como o direito a saúde, tão essencial em época de coronavírus.

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393
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

EDUCAR PARA A VIDA REPUBLICANA:


A ESCOLA COMO PARTE DA AFIRMAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS E DA REPÚBLICA
NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Maria Carolina Magalhães Santos180


Paulo Evaldo Fensterseifer181

RESUMO: As questões sobre Educação e Direitos Humanos alinhadas são muito presentes dentro do
campo tanto jurídico como educacional. Busca-se muito por alinhar ambos campos para que se possa ter
um entendimento e seguridade de ambos dentro de um país. A proposta do artigo em questão é trazer ao
debate o tema da Escola Republicana e a mesma como parte da afirmação dos Direitos Humanos. Baseado
nos estudos de Ribeiro (2001), Montesquieu (1996) e Condorcet (2008) buscou-se primeiramente discutir
e debater o conceito de república e democracia, assim como o de Escola republicana. Posterior a este, foi
realizado o exercício de reflexão acerca do modelo republicano de escola afirmar os Direitos Humanos,
por presar pela liberdade, igualdade e principalmente por uma instrução pública (CONDORCET, 2008). O
estudo é de caráter qualitativo bibliográfico e parte de uma metodologia crítico-hermenêutica.

Palavras-chave: Direitos humanos. Educação. Escola republicana. Repúblicas democráticas.

INTRODUÇÃO

Desde a antiguidade o tema da Educação e de quem possui o direito à mesma vem sendo pauta de
discussões teóricas e sociais. No segundo milênio da era pós-cristã, ainda há discussões e debates sobre o
mesmo. Na contemporaneidade nos deparamos com um mundo onde há uma grande desigualdade social,
e junto com essa, surgem os problemas da educação e da instrução pública que tomam pensamento e
o tempo dos pesquisadores acerca da escolarização e desenvolvimento de uma educação de qualidade.
Partindo dessa preocupação que surge o tema abordado no estudo aqui apresentado. Partindo de
uma hermenêutica crítica, busca-se entender um pouco mais acerca do conceito de Escola Republicana
e de sua premissa básica, uma educação para a cidadania e vida republicana. Partindo da perspectiva
dos Direitos Humanos e da Declaração Universal dos mesmos discutir-se-á sobre a importância da
escola e da educação para a manutenção das instituições republicanas democráticas, assim como os
próprios direitos garantidos desde nosso nascimento.
Nesse sentido buscar-se-á a partir de um método crítico hermenêutico discutir a relação entre os
direitos humanos e a escola republicana. A relevância do mesmo vem de encontro ao campo teórico da
educação, mas também dos Direitos Humanos, principalmente por a ideia da escola republicana poder
vir de encontro com os direitos individuais e coletivos de todos, e, como no título que já anunciamos,
tornar-se forma de afirmação desses direitos que são fundamentais para todos os sujeitos.
Assim, esse estudo foi feito e pensado na defesa de um ensino baseado em igualdade e refletido
nos aspectos cotidianos da realidade brasileira contemporânea. Para finalizar esta breve introdução,
coloca-se aqui o pensamento que ensinar de forma republicana é resistir as formas repressivas e
manipuladoras daqueles que desejam calar professores e estudantes. Educação Republicana é a melhor
forma de empoderamento daqueles os quais as vozes são pouco ouvidas, é uma maneira de acender uma
esperança naqueles que já não acreditam mais em um país verdadeiramente republicano e democrático.

180 Mestra em Educação nas Ciências pela Unijuí, professora de história na educação básica da rede privada de ensino. Três
de Maio, RS, Brasil. CEP: 98.910-000. E-mail: maria.magalhaes@sou.unijui.edu.br
181 Orientador. Doutor em Educação pela Unicamp/SP; professor do Departamento de Humanidades e Educação da Unijuí, e do
Programa de pós-graduação stricto sensu em Educação nas Ciências. Ijuí, RS, Brasil. CEP 98.700-000. E-mail: fenster@unijui.edu.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 DESENVOLVIMENTO

Iniciaremos o texto explicitando os conceitos de república e democracia, uma vez que sem os
mesmos, torna-se difícil a compreensão da educação republicana e seus valores dentro da temática
dos Direitos Humanos, além da afirmação dos mesmos.
A república e a democracia não são fenômenos pós-modernos A democracia é um conceito que
surge na sociedade Grega da antiguidade. Quando remontamos suas raízes, chegamos ao seu berço,
a polis de Atenas. A palavra democracia, conforme nos afirma Ribeiro (2013), tem origem no dialeto
helênico ao juntar as expressões demos que significa povo e kratos que significa poder, ou seja, a
democracia tem relação direta com o poder do povo, sendo fundamental a participação do mesmo
dentro dos instituições e organizações do sistema.
Um governo no qual o povo seja soberano pode ser considerado um regime democrático e
principalmente, “O fundamental é que o povo escolha o indivíduo ou grupo que governa, e que
controle como ele governa” (RIBEIRO, 2013 p.8), outrossim, o fato do povo exercer seu poder sobre
o governo, torna-o autônomo e capaz de controlar seu governo conforme sua vontade, que deve
sempre ser pensada pelo bem-estar geral e não apenas de grupos específicos.
Da mesma forma o conceito de República e ela própria, enquanto experiência empírica, também
surgem na Antiguidade Clássica, porém, desta vez, em Roma Antiga. A origem da palavra República
é latina, vindo diretamente da união dos termos res e publica, sendo assim, “coisa pública” ou bem
público. Seu início remonta um dos períodos prósperos anteriores ao grande Império Romano da
antiguidade, que se estendeu no tempo, quando a Monarquia Romana se vê, devido a fatores políticos,
sem saídas para atender sua população, sendo assim, propõe-se uma série de reformas:

As reformas, sob inspiração de Sólon e Pisístrato, dão ao patriciado um outro lugar e outra
legitimidade, o direito de governar porque constituem a porção mais rica da sociedade, ou o
governo dos ricos, ou timocracia. Em Roma, Sólon não conduz à Clístenes e a Efialte e Péricles,
pois a nobreza não estava disposta a ceder tanto. Livra-se da dominação etrusca, livra-se da
monarquia e cria um regime político pelo qual poderia fazer concessões sem ceder o poder, a
República, que nada mais é do que um regime oligárquico do patriciado182 que, rapidamente, verá
surgir um poder contestatório, a plebe (BELATO, 2009 p.79).

Nessa relação, a república Romana representou, na época, uma virada nos regimes monárquicos
que até então governavam a Roma Antiga. Mesmo que fosse um sistema pautado na aristocracia
romana, neste caso os Patrícios, a república era uma forma de tornar o governo, e os bens do estado,
algo público. Destaca-se “antes de mais nada, que o bem público se sobrepõe ao privado” (RIBEIRO,
2001 p. 10), ou seja, a república é algo que diz respeito a todos. Ainda, é o regime que não indica
quem governa, mas sim para o que e o que se governa.
Claramente, as inspirações da antiguidade permaneceram apenas como inspirações. Ambos “mode-
los” tornaram-se inviáveis ao longo do tempo, sendo que a democracia ateniense, mesmo que fosse au-
toproclamada o regime do governo do povo, em nenhum momento se colocou como um regime para toda
a população. Também a república, como indica Ribeiro (2001), sofreu modificações ao longo da história.
Quando ambas são retomadas na idade moderna, já há muito esquecidas pelos povos antigos183,
são ressignificadas pelos ideais iluministas. Montesquieu em sua obra “O Espírito das Leis”, afirma que
há três possíveis governos para a era moderna e que virá a ser semelhante na contemporaneidade;

[...] o REPUBLICANO, o MONARQUICO e o DESPÓTICO. Para descobrir sua natureza, basta a ideia
que os homens menos instruídos têm deles. Suponho três definições, ou melhor, três fatos:
“governo republicano é aquele no qual o povo em seu conjunto, ou apenas uma parte do povo,
possui o poder soberano; o monárquico, aquele onde um só governa, mas através de leis fixas e
estabelecidas; ao passo que, no despótico, um só, sem lei e sem regra, impõe tudo por força de
sua vontade e de seus caprichos” (MONTESQUIEU, 1996 p. 19).

182 Patriciado surge do termo Patrício, cidadão até então sem direitos políticos dentro da Roma Antiga. Belato (2009) coloca
que o patriciado passa a ter direitos apenas no período republicano com as leis e o tribunato da plebe.
183 Uma vez que a Grécia abandona o regime democrático ao fim do esplendor das pólis e Roma entra em um regime Im-
perialista no século I d.C. (BELATO, 2009)

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Logo, o governo republicano é aquele ao qual o povo há de ter uma participação ativa, o
governo deve ser dele e para ele. Outrossim, a república para Ribeiro (2001) parte dos princípios da
democracia, do sufrágio e da possibilidade de escolher e modificar as leis que regem a nação sobre
a qual estão os cidadãos.
Assim, se o governo for de caráter republicano, ele há de ser democrático. Caso contrário, afirma
Ribeiro (2008), não deverá ser atribuído o nome de república. O autor coloca que uma vez que se o
regime é republicano a origem da palavra irá representar a coisa pública, logo aquilo que é de todos. Se
é de todos, deverá ser para todos e por todos, logo, ter essa caracterização, ela tornar-se-á democrática.
Ainda, possivelmente relacionamos a república ao direito, sendo que essa associação pode ser
feita inclusive através do ponto chave de nossa Constituição atual, o Estado de Direitos.

A república está associada ao direito. A modernidade em política constrói duas


grandes obras. Uma delas é a democracia. A outra, mais antiga, avançando
desde a Renascença é o Estado de direito – ou seja, a idéia de obedecer a lei
e não ao arbítrio do poderoso. Em tese, o Estado de direito não precisa ser
democrático(...) Mas essa consagração da lei acima dos interesses particulares
já significa que ela é coisa pública e não privada. Há aí o princípio republicano
da prioridade conferida à rés publica. (RIBEIRO, 2008 p. 65).

Consequentemente temos vistos os valores de uma república. Ao pensarmos no âmbito


democrático precisamos pensar nas suas instituições, uma vez que ela funcionará a partir das mesmas.
A lei (no caso de países como o Brasil, a Constituição Federal) é parte fundamental da república. Sem
ela, o valor republicano de governar para a coisa pública se esvai, abrindo espaço para regimes
autoritários184; em tempo, as instituições que deverão garantir a vontade do demos.
À vista disso, podemos pensar no governo republicano como um modelo a ser seguido, porém,
assim como a lei (e cabe aqui a escola também), é um modelo que deve ser revisto, repensado e
revisitado sempre e preferencialmente por todos. A chave para poder pensar de forma crítica nesses
conceitos, modelos ou sistemas tem um caminho tortuoso e não tem garantias. Essa chave é a Educação.

(...) A boa educação orienta essas mudanças no melhor rumo possível – o de valores que incluam
ou possam incluir os republicanos. (...) E quem não percebe que os mais bem-sucedidos projetos
educacionais são os que investem no espaço público e na participação do maior número de
pessoas – ou seja, em dois grandes temas republicanos? (RIBEIRO, 2008, p. 71-72)

Assim, chegamos a um ponto importante das reflexões expressas aqui, a Educação como parte
constituinte da manutenção da república e dos Direitos Humanos. Dentro desse aspecto encontramos
o conceito de Escola Republicana.

A escola republicana é aquela que parte deste marco antropológico e traduz em meritocracia este
“vazio” inicial: por não termos determinação a priori (embora tenhamos condicionantes) somos
livres para, por meio do trabalho pessoal, disciplinado e orientado, sair de nossa heteronomia (a
regra que vem dos outros) e chegar à autonomia (aquele que se dá a própria regra, desde que
submetida ao crivo da razão) (BRAYNER, 2014 p. 258).

Uma escola republicana é aquela que em sua íntegra primeva função, contribui para a
emancipação do estudante, para que ele possa desempenhar sua cidadania em sua todas as suas
potencialidades. Nesse sentido, a escola republicana mostra-se como a forma para o acesso ao
“Conhecimento Poderoso”, preconizado por Young (2007), em especial para aqueles que o conhecimento
joga um papel decisivo em suas vidas.
Assim, quando Saviani (1986) reflete sobre a modernidade e a educação moderna, levando em
conta a perspectiva de Rousseau sobre o tema, ele expõe que

184 A exemplo disso, podemos citar as ditaduras dos regimes autoritários do século XX, como o Terceiro Reich na Alema-
nha. O partido nazista chega ao poder e suas primeiras ações são o fechamento do Congresso. O mesmo acontece no Brasil
em 1964 com o advento do Golpe Civil-Militar.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

(...) os homens são essencialmente livres; essa liberdade se funda na igualdade natural, ou melhor,
essencial dos homens, e se eles são livres, então podem dispor de sua liberdade, e na relação com
os outros homens, mediante contrato, fazer ou não concessões. (...) Escolarizar todos os homens era
uma condição de converter os servos em cidadãos, era condição de que esses cidadãos participassem
do processo político, e, participando do processo político, eles consolidariam a ordem democrática,
democracia burguesa, é óbvio, mas o papel político da escola estava aí muito claro. A escola era
proposta como condição para a consolidação da ordem democrática (SAVIANI, 1986 P. 43-44).

A escola torna-se republicana no momento em que intencionalmente, ajudamos as crianças,


jovens e adultos a ver o mundo que está em sua volta. Como Saviani (1986), nos indica, “a importância
política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento. É pois, realizando-se na
especificidade que lhe é própria que a educação cumpre sua função política” (SAVIANI, 1986 p. 92).
Mesmo que política e educação cumpram funções distintas, elas são ligadas, e é função da escola
auxiliar os estudantes a acessar aos conhecimentos que permitirão a constituição de pensamentos
políticos críticos, capazes de radicalizar as promessas republicanas.
A temática da escola republicana está relacionada muito fortemente com o advento das Revoluções
americana (1776) e Francesa (1789), uma vez que pela primeira vez na história moderna, que tornou-se con-
temporânea, vemos a escola e a educação como parte de preocupação dos governos que se instauraram.
Essa temática da escolarização, em particular no caso francês, é debatida na obra “Cinco
memórias sobre a instrução pública” de Condorcet, que foi originalmente publicada apenas três anos
após a Tomada da Bastilha (1789) e tem relações diretas com a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão (1789), redigida também na França pós-revolucionária.
Há porém,uma contradição entre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão com a ideia
republicana e de instrução pública de Condorcet. A Declaração foi classificada por Hobsbawm (2014,
p. 106) como um “manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não é um ma-
nifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária” uma vez que permanecia com a ideologia
do Governo Monárquico.
A escola defendida por Condorcet é uma escola igualitária que há de pensar os ideais de uma
república assim como a manutenção das estruturas republicanas. É baseada, como o próprio nome
da obra sugere, na instrução pública, sem distinção de gênero ou classe social. É pensada para toda
a população francesa e com os ideais de igualdade.
Esse modo de escolarizar torna-se pública pois segundo o autor, “A instrução pública é um
dever da sociedade para com os cidadãos” (CONDORCET, 2008 p. 17), uma vez que para se viver
em uma sociedade republicana é necessário a compreensão dos valores da mesma, caso contrário
qualquer um pode chegar ao poder e realizar o governo de forma autoritária.
O processo para o desenvolvimento dessa educação e dessa escola é delicado, além de,
conforme dito anteriormente, não garantido, mostra disto são os eventos traumáticos do século XX,
como o Holocausto, por exemplo. Pois sabemos que pessoas eram assassinadas em câmeras de
gás, experimentos terríveis eram realizados com judeus, homoafetivos, ciganos etc, tendo a frente
pessoas “instruídas”. Nesses casos podemos entender que lhes faltava a criticidade que acompanha o
ato de pensar e que deve ser potencializado pela Escola republicana.
O republicanismo como pensamento pedagógico está relacionado diretamente com a formação
cidadã, tornando os indivíduos aptos para viver em uma sociedade republicana. Como parte desta
sociedade entram nossos direitos e, como sinaliza Ribeiro (2013), entram os Direitos Humanos,
que tomam três ordens diferentes, os Elementos Civis, Sociais e Políticos. Direitos esses que são
fundamentais para compreendermos os fenômenos das sociedades atuais, entre eles, a educação.
Na grande maioria dos documentos escolares da Educação Básica185, como Projetos Políticos
Pedagógicos, ementas de disciplinas e planos de trabalho, tem como parte de sua composição a ideia
de que a escola é para a formação de cidadãos que possam conviver no mundo globalizado. Relativo
a isso, podemos pensar que

185 Educação Básica, segundo a LDBN 9.394 (BRASIL, 1996) entende-se como Educação Infantil, Ensino Fundamental e En-
sino Médio.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A questão crucial dos direitos humanos é limitar o poder do governante. Eles consideram
o poder do ângulo do súdito, do cidadão. “Súdito” vem do latim subditus e quer dizer quem
está submetido, subjugado, subordinado ao que outro manda. Por isso falamos em súditos de
monarquias absolutas. Já o cidadão é o elemento ativo da cidade, da civitas: ele toma parte na
decisão sobre a coisa pública. (RIBEIRO, 2013 p. 17)

Mas a questão é, como educar para a república? Como educar para a cidadania? Uma vez que,
como Bobbio (2003, p. 247) coloca “A diferença entre a arte da política e as outras é que aquela não
se ensina, e não se ensina porque é patrimônio de todos.”. Não podemos discriminar pessoas não
instruídas ao acesso da política. Se o poder é de todos, todos devem ter acesso ao mesmo (ideal que
se encontra também dentro dos direitos humanos).
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o Artigo 21º (UNICEF, 2020) está claro
que todos as pessoas tem direito a cidadania, assim como inteirar-se sobre as questões políticas do
país onde vivem. Para além, a Constituição Cidadã (BRASIL, 2016), traz o mesmo direito, elencando o
voto como também um dever da cidadania.
Em relação a educação no Brasil, dentro da redação Artigo 3º da Constituição de 1988 podemos
observar algumas características de nossa república e os mesmos podem ser classificados como
características fundamentais para a educação

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:


I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. (BRASIL, 2016 p.11),

Podemos pensar como objetivos da educação. Busca-se, segundo estes preceitos, educar para construir
uma sociedade livre, justa e solidária, para que, possivelmente, haja um futuro melhor no país. Educa-se
para o desenvolvimento de cada estudante, no que tange aos conhecimentos e as virtudes republicanas,
com vistas a consolidação da república e dos direitos a ela inerentes.. E esse caminho pode ser visto através
de uma escola que valorize, discuta, entenda e busque a afirmação dos direitos humanos.
Condorcet (2008 p. 18) aposta que “cada um seja suficientemente instruído para exercer por
si mesmo, sem se submeter a razão de outros, aqueles direitos cujo gozo é garantido pela lei”. A
convicção que Condorcet traz nesse excerto mostra-nos exatamente o ideal republicano da escola.
Uma escola que busque, pelo acesso ao conhecimento, potencializar a criticidade, o que certamente
estará auxiliando os alunos no desenvolvimento de requisitos da cidadania.
Permitir e incentivar ao estudante o desenvolvimento da criticidade e o desenvolvimento
de consciência histórica186 faz parte, ou deveria, da formação do sujeito, tornando o ensino mais
igualitário, pois,

(...) em uma sociedade democrática, a educação deve possibilitar a maior abertura possível de
possibilidades. Abrir janelas para o mundo e não manter os sujeitos fechados em suas convicções.
(...) A educação coerente com as liberdades democráticas, assim entendo, não pode ser missionária
ou militante, como se, acerca do futuro, já tivéssemos uma deliberação prévia. (....) Não temos,
e um bom democrata não deveria lamentar isso, uma visão onisciente da história, da sociedade,
acho que de nada do que é humano, do contrário, seríamos deuses, logo, é bom ouvir os outros,
medir a razoabilidade dos nosso argumentos pela escuta e voz do outro (FENSTERSEIFER, Seminário
especial Educação para democracia e direitos humanos, 2020)

A escola preconizada por Condorcet (2008), deve possuir algumas características essenciais
para que cumpra seus ideais de formação; ser laica, pública, obrigatória e universal; essas, podem ser
relacionadas com os ideais dos Direitos Humanos.
O caráter público, tanto em seu financiamento como em seu sentido, fica expresso no Artigo 26º
da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

186 Consciência Histórica aqui entende-se dentro da teoria de Rüsen (2001) que compreende a temática como algo que nas-
ce conosco e vai se desenvolvendo ao longo do tempo, tendo em vista as relações com outros sujeitos e a própria vivência
histórica como ser em um mundo complexo.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus
elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional
será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será
orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do
respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá
a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade
de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos. (UNICEF, 1948).

Ela também pode ser pública, conforme Condorcet (2008) aponta, no seu sentido de servir
para o público que a frequenta. Quando ouvimos ou vemos um estudante falando sobre o local
onde estuda, a linguagem que se ouve é “minha escola é...”, um uso tão simples da linguagem que
demonstra tantos fatores sobre o fenômeno explicado acima. A escola é pública assim no seu sentido
mais bonito, pois traz o sentimento de pertencimento do público ao qual ela atende.
Ela ainda, precisa ser obrigatória e universal. O próprio artigo acima citado demonstra esse
sentido de ser para todos e da necessidade de ser acessível para todas as pessoas. Mesmo que
as famílias tenham a possibilidade de optar pelo tipo de formação de seus filhos, ela deverá ser
ministrada na idade adequada.
Para Masschelein e Simons (2014), a escola vem no ideal de espaço aberto e democrático para
o compartilhamento de conceitos, isso aliada a ser um espaço de desenvolvimento da cidadania.
A instrução pública e de cunho republicano, segundo Condorcet (2008), mostra-se necessária para
preparar as gerações para aquilo que ainda virá, sendo assim, para que os problemas que ocorreram
no passado, não venham a repetir-se, ou seja, a escola republicana vem dentro do intuito da própria
república, ter sua instituição, mas ser pensada e refletida sempre para os que estejam usufruindo dela.
Esse sentimento de pertencimento pode ser visto, ainda, como uma forma de garantia de uma
manutenção da escola e dos valores que ela irá transmitir aos estudantes. A escola que for republicana
é, sem dúvidas, uma escola que buscará repassar os valores de igualdade, fraternidade, identidade
e por conseguinte, de cidadania, pois afinal, não seria esse o objetivo das nossas escolas? Ensina-se
para criar um futuro, com cidadãos preocupados e responsáveis consigo, com o ambiente e com os
demais sujeitos ao seu redor.
Quando pensamos essa escola, republicana, aliada aos Direitos Humanos, ela será aquela que
irá trabalhar com esses valores desde cedo, objetivo inclusive presente na Base Nacional Comum
Curricular (2016), gerando desde as pequenas ações até a formação de pensamento crítico. Não há
garantia, mas em um mundo pós-moderno com poucas certezas, torna-se uma boa aposta.
A educação republicana está então, aliada a educação para a vida na sociedade, a liberdade de pen-
samento e principalmente, aos direitos que a todos são concedidos ao nascimento, os Direitos Humanos.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos, portanto aquilo que podemos pensar como considerações finais, ou simplesmente
início de novos questionamentos e futuras reflexões acerca dessa temática. As reflexões colocadas
neste tópico são parte do entendimento e interpretações do estudo até aqui exposto, e tem a
proposição de pensar a importância e legitimidade que a Educação Republicana pode trazer pensando
na afirmação dos Direitos Humanos.
Sendo assim, torna-se importante relembrar que a república, assim como a educação republicana,
dentro de seus princípios de igualdade e liberdade para pensar e opinar politicamente, torna-se
democrática. Pensando em nossa Constituição de 88 (BRASIL, 2016) e seu apelido (Constituição
Cidadã), percebe-se que esse pensamento não foi leviano, nem mesmo deve ser ignorado, uma vez
que a mesma vem a instituir o Estado de Direito e com ele, a afirmação dos Direitos Humanos.
Ainda, não menos importante, a Constituição de 88 trouxe consigo o fim da censura nas artes,
jornalismo e nas escolas. A partir desta Constituição o Brasil passou a ter uma experiência do que
pode vir a ser um regime verdadeiramente democrático, onde a participação popular pode ter vez
e voz. Nessas relações, a educação é parte primordial para a aquisição de uma cultura pelo cuidado
com a república assim como a manutenção de suas instituições. Condorcet (2008) nos coloca que

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

embora todos tenhamos nascido com os mesmos direitos, alguns tem uma vantagem para com os
demais, e essa vantagem vai depender principalmente da posição social na qual se nasce; apenas a
partir de uma instrução pública de qualidade é que podemos nos “igualar” em competências.
Logo, podemos pensar que a educação com um olhar republicano pode ser um ideal, um ponto
de partida para a libertação do conhecimento, da equidade social e principalmente, que um caminho
para a seguridade e afirmação dos Direitos Humanos e da cidadania.
Esse processo de educar para os Direitos Humanos e a cidadania estão relacionados com a
compreensão do local e da historicidade de onde se vive. Compreender as relações históricas que
permeiam seu redor, farão com que o estudante entenda as considerações e organizações que fazem
nossa sociedade contemporânea. A Escola Republicana passa então a ser um ideal a ser seguido,
e dentro dessa instituição existirá uma democratização dos saberes das mais diversas áreas do
conhecimento, mas, principalmente, para auxiliar na construção de um futuro melhor.
Por fim, que esse breve estudo possa trazer reflexões acerca da liberdade de expressão, da
afirmação de políticas públicas necessárias para a garantia dos Direitos Humanos, mas principalmente,
que sirva com uma espécie de “manifesto” em defesa da educação e destes direitos, que tanto tempo
levaram para ser conquistados e tão facilmente são ignorados pela civilização contemporânea.

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400
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ENTROPIA DA POLÍTICA, DO ESTADO E DA CIDADANIA:


A INDISCERNIBILIDADE ENTRE DEMOCRACIA
E ESTADO DE EXCEÇÃO

Késia Mábia Campana187

“Em outras palavras, é preciso acreditar no progresso.


Esta talvez seja uma de minhas últimas ingenuidades”.
Sartre

RESUMO: O artigo tem por objetivo o exame do lado obscuro da pós-modernidade, que ostenta
um Estado Democrático de Direito fragilizado, senão um “Estado de Direito Ditatorial”. O paradigma
recortado demonstra que o poder estatal sucumbiu-se à hegemonia da mais valia, tornando-se um Estado
máximo aos interesses privados e mínimo às demandas sociais. A aliança do Estado com o mercado
culminou na perda do monopólio da ordem pública, na suspensão permanente da normatividade e na
perda do controle, o que implica na impunidade das ações perpetradas pelas invisíveis e ilocalizáveis
corporações financeiras globais, ora ousadas no rompimento das fronteiras jurídicas. São abordados
os impactos do reducionismo estatal, do enfraquecimento democrático e da volúpia econômica.
Para além da natural e oculta implantação do estado de exceção dentro da democracia a tal ponto
desta ser indistinguível daquele, são examinadas algumas narrativas aptas a reconstrução de uma
cultura democrática. O método de abordagem utilizado é o hipotético-dedutivo, por meio da colheita
bibliográfica. Arremata-se indagando acerca da possibilidade lograr democracia e liberdade mesmo sob
a hegemonia ultraliberal, mediante a criação de um ethos solidário e de um jardim de direitos e Estados.

Palavras-chave: Estado, Estado de exceção, democracia, hegemonia, neoliberalismo.

INTRODUÇÃO

Trabalhos e pesquisas que contemplam o estudo da democracia, da política e da cidadania


num aspecto crítico que descortina as raízes do patriarcalismo e do autoritarismo são muitos,
entretanto, poucas são as obras que abordam concomitantemente a interface entre democracia e
estado de exceção, ou seja, que enfrentam o porquê da convivência naturalizada entre autoritarismo
e democracia frente à opulência neoliberalista.
Neste trabalho teremos como objetivo estudar as consequências da globalização dentro do
Estado Democrático de Direito, abordando as questões históricas e sociais das questões que envolve
poder, política e Estado, demostrando que este perdera os monopólios que lhe deram origem a partir
da sedução e da imposição da proeminência econômica.
O escopo deste artigo busca identificar as raízes históricas e globais que enfraqueceram o
Estado, a democracia e consequentemente a cidadania, norteando-se pelo método de abordagem
qualitativo por meio de uma revisão crítica da literatura.
A partir disso, examina-se os impactos do reducionismo estatal e a invasão da ordem capitalista
no cenário global, mormente nas democracias modernas ocidentais. Por isso, a relevância social
deste artigo funda-se na necessidade de compreender as dinâmicas de poder e a importância do
Direito para seu controle.
Destacamos ainda que a luta pela construção da democracia requer a redefinição desta como um

187 Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ. E-mail: kesiamabia@gmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

modo de viver coletivo, sendo uma fonte de razão pública e princípio de justiça, além de empoderar,
engajar e dar voz aos cidadãos, visando a criação e a propagação de uma robusta cultura democrática
e de direitos humanos assaz a elidir as forças hegemônicas, tendo como horizonte uma educação
emancipatória e qualitativa de novos atores, desprovidos de todo individualismo narcisista e que
logre considerar a alteridade.
Por fim, a relevância deste artigo consiste no estudo sistemático acerca da relação entre Direito
e poder, hegemonia, autoritarismo, estado de exceção e democracia.

1 METODOLOGIA

Este trabalho adota uma perspectiva histórica, por meio de uma revisão crítica da literatura
sobre Estado, política, poder econômico, hegemonia e direitos humanos numa lógica internacional e
seus reflexos no Brasil.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Entropia política, democrática e cidadã188

Não obstante o avanço democrático celebrado com a Constituição “cidadã” de 1988, enfrentamos
a entropia do Estado, cujo reducionismo provocado pelas forças hegemônicas torna qualquer
magnitude institucionalmente instrumentalizada necrosada. As economias são comandadas pelos
centros financeiros globais, permanecendo os governantes reféns destes, que pouco logram quando
se trata da vida pública, emprego, moradia, saneamento básico e demais serviços essenciais à
qualidade de vida dos cidadãos.
A democracia nasceu no Ocidente, com os gregos, no interior da maiêutica socrática, como
expressão de estruturar o poder dos interesses coletivos. Exsurgiu como forma de organizar a sociedade
tendo como centro o interesse universal dos cidadãos. Trata-se de um estilo de vida em que não se quer
apenas as regras do jogo, mas construir formas de fortalecer a participação e compartilhar o poder.
Por isso, visa garantir que os indivíduos tenha capacidade de elaborar seus interesses junto com os
interesses de outros, sem viciá-los ou confina-los à estrutura de poucos (SILVA, 2014).
Entretanto, a partilha democrática dos poderes não soou razoável aos absolutistas, razão pela
qual fora sufocada pelos sofistas com base no teocratismo como de verdade única. A democracia,
renasce com os modernos contra a tirania do poder absoluto dos reis e teólogos, tendo como razão
os pensamentos de Bacon, Descartes e Hobbes. Aprofunda seu sentido com um poder aberto pela
razão em Maquiavel, Montesquieu, Rousseau e Locke, passando por um reposicionamento em Karl
Marx, que a dimensiona no centro da emancipação humana e da utopia da igualdade de todo o gênero
humano. A teoria crítica de Frankfurt a denuncia e hoje continua sendo o centro dos debates, sendo
reconstituída para uma democracia participativa (SILVA, 2014), porém permeada pelo totalitarismo.
Os pensadores sempre almejaram saber como as ideias poderiam moldar a realidade a ponto de
tornar a vida boa de ser vivida, ou seja, criar uma proposta de ordem justa possível de ser percebida
por todos, aceita e praticada, sendo uma ordem com frutos universais, despidos de interesses
particulares e cinismos, enfim, fundaram a democracia como a fonte do poder de ordem justa e
inquestionável (SILVA, 2014).
A democracia é herdeira da filosofia e significou um projeto e um modo de viver coletivo, é fonte
de razão pública e princípio de justiça. Tem como axioma a valoração das discussões celebradas na
polis, lastreada num regime de governo chamado de democrático. Por isso, foi refutada por reis e
imperadores por meio de ideologias distorcidas. Platão já alertava para esse perigo ao desconfiar
que a democracia fosse utilizada por demagogos, falsos sábios e ignorantes. Para Platão, o governo

188 O artigo é lastreado no pensamento de Roberto Romano, disponível em www.ihu.unisinos.br/cadernodeideias.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

justo seria aquele que administra pela força dos universais, pelo governo de qualidade, portanto,
pelo filósofo. Afinal de contas, máxima impõe que se devemos abrir mãos de nossos instintos mais
naturais para sermos governados, obviamente que deveríamos obedecer aos sábios e não aos
ignorantes (SILVA, 2014).
Todavia, com o avanço das guerras e o desenvolvimento de muitas estratégias de poder o
sentido democrático fora aviltado, dando azo à acumulação capitalista e influências comerciais que
outrora repousava aos sábios.
Já no longínquo período medievo, ante a teocratização, desvaneceram-se os valores humanos em
troca da abstração da fé única. A política, como arte de aprimorar as vontades coletivas e fixá-las nas leis
voltou a ser debatida após a falência das monoexplicações teocráticas e ressurge na base epistemológica
da razão moderna, sistematizada pelo iluminismo, em oposição aos regimes absolutistas, aos entraves
à livre expansão do capital e com a ruptura do paradigma teológico (SILVA, 2014).
Na modernidade, o Estado passa a ser uma construção social histórica que podia ser modificado
e estruturado conforme os interesses dos indivíduos, ou seja, a finalidade da razão era a de manter
a esfera pública e garantir que a razão pública não se submeta à razão privada, tendo a ciência
como móbil do Estado. Assim, a democracia, refundada no Ocidente e em outras bases, assume uma
expressão mais normativa e associada à ideia de Direito e de Estado, sendo o cidadão emancipado
como pessoa apta a fazer e a adimplir contratos. Nasce, portanto, a democracia representativa e
contratualista, tendo o contrato como a metáfora fundadora da racionalidade social e política da
modernidade política (SILVA, 2014). Contudo, o lado obscuro da pós-modernidade ostenta uma
democracia com roupagem absolutista e totalitarista, porquanto disputa a hegemonia com lastro na
ordem. Ordem esta comandada pelas forças do mercado global.
Apesar das experiências históricas e dos incontáveis desastres humanos, podemos afirmar que
o Estado ainda é um mecanismo de proteção dos cidadãos, que, por intermédio do heurístico contrato
hobbesiano, a humanidade houve por bem renunciar o estado de natureza para alçar a segurança.
Cediço que as organizações não governamentais, movimentos sociais e organizações da sociedade
civil representam um contrapoder que lutam contra as forças hegemônicas, todavia, não são dotados
de legitimidade política. Falam pelo povo, representa-o, porém não detém forças coercitivas.
Frente à insegurança oriunda do estado de natureza, já que “o homem é o lobo do homem”, a
glória do Leviatã quedou diante das revoluções democráticas, entretanto, retardou sua senescência
ao patrocinar forças vivas da soberania popular por meio da responsabilização dos governantes e da
accountability. Segundo Roberto Romano, a radicalidade das revoluções democráticas não fora assaz a
impedir a intromissão de um governo forte e arrimado pelas massas, como por exemplo, na Inglaterra
com o princípio representativo dual, nos EUA com a forma republicada e representativa e na França com
o fortalecimento do executivo na pessoa de um imperador. Nessas metamorfoses, a soberania popular,
que finda no comando de alguém ou de um grupo, “logrou subsistir” alicerçada num sistema de pesos
e contrapesos, aparato inaugurado por Platão nas Leis e ressignificada por Montesquieu.
Já no século XX, o poder executivo se distanciou de outros blocos estatais, mas sobre eles
exerceu sua oculta primazia absolutista. Com o fascismo, o nazismo e as ditaduras mundiais, o
retrato do ditador imperou, notadamente pelas forças das massas populares, vítimas do terror militar
e das propagandas do medo, que, por sua vez, culminou na efervescência de poderes totalitários.
Roberto Romano sustenta que esses proeminentes ditadores são líderes vorazes de seu reduto
coletivo, alardeiam medo, terror e ideologias de ordem biológica (fascismo e nazismo), histórica
(stalisnismo), além de lançarem mão de impiedosas burocracias civis e militares, ao mesmo tempo
em que utilizam-se do Poder Judiciário para eliminar os indesejáveis, sem que sejam questionados
pelos magistrados, senão recebendo absoluta continência destes.
A aljava destes líderes, cheia de mentira, de terror, de ódio e de estética da propaganda distorcida,
representam os subterfúgios que dão lastro às ordens, aos comandos e à arrogância, fazendo do país
ou da nação um aprisco amedrontado, sem a mínima possibilidade de voz, sob pena de perseguição,
anulação e invisibilidade. Essas experiências totalitárias e arbitrárias não se desgrudaram do Estado
e, apesar de sempre tentar ceifar a soberania do povo e a democracia, logrou com esta ocultamente
aliançar-se a tal ponto de enfraquecer a accountability e romper as fronteiras nacionais para fins ilícitos.
Com a globalização, fruto da expansão capitalista eurocêntrica, emergiram novos contornos

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

para o mundo, notadamente no findar do século XX, quando as sociedades ocidentais alicerçaram
formas globais configuradas na importância das relações internacionais de cunho social, econômico,
político e cultural, além de instrumentalizar cooperações e interdependência, visando tornar, cada
vez mais, amistosas as relações entre as nações.
Todavia, mesmo diante dos avanços humanos, científicos e tecnológicos, o almejado tempo de
paz fora cambiado pela sucessão de guerras pelo colonialismo e pela geopolítica imperial patrocinada
pelos Estados de regime totalitários. Assegura Roberto Romano que as potências hegemônicas da
guerra fria, EUA e URSS, protagonistas de uma política imperial moderna, para manter o segredo de
Estado, fortaleceram o Executivo, impuseram ordens e negaram aos Estados mais pobres o mínimo
equilíbrio de poderes, além de implantarem o cinismo e a corrupção.
A potência soviética aviltou sua cidadania e supliciou a imprensa, o que culminou no
enfraquecimento do Estado socialista. No entanto, mesmo diante de sua queda tirânica, emergiram
Estados deficitários de cidadania e herdeiros de grupos ao arrepio da lei.
Já os EUA, também aviltou sua cidadania com cinismos, aguçou e distorceu propagandas que
restringiu direitos individuais e coletivos tanto no território norte-americano como em terras submetidas.
Com a ajuda de parceiros, os EUA praticaram tortura com os prisioneiros em plena era da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, além de deslocar a burocrática máquina estatal dos povos, reduzindo-
os a meros eleitores e, com isso deflagrou perante o globo uma democracia de cunho autoritário.
Lado outro, a globalização e suas consequências também contribuíram para o enfraquecimento da
democracia, ante ao predomínio do capital financeiro, notadamente porque até os países submetidos
à rígida ditadura, a exemplo do Chile, flexibilizaram as fronteiras econômicas ao ponto de fragilizar
as leis trabalhistas, ou seja, as forças do capitalismo tardio dissiparam o potencial emancipatório
liberal da esfera pública. Conforme assevera Roberto Romano,

(...) mesmo com um Executivo endógeno, forte e truculento, a soberania nacional foi abalada
até os alicerces, no mesmo fôlego em que os direitos humanos e cidadãos foram pisados sem
escrúpulos. Os chefes ditatoriais, tutelados pelas finanças, entregaram seus povos à racionalidade
ditada pelas bolsas de valores, pelas agências de cálculos e riscos, pela especulação sem peias no
trato das dívidas públicas, pelo endividamento oriundo de empréstimos, não rato impostos pelos
mesmos agentes do campo financeiro.

O oximoro da globalização oriundo do Consenso de Whashington evoluiu na recessão econômica,


porquanto a ruptura das barreiras para o ingresso do capital externo trouxe em sua bagagem o
desemprego, a informalidade, segregação social, mercantilização do espaço público, da natureza e da
biodiversidade, ameaça à democracia, desregulamentação dos mercados e flexibilização do trabalho,
enfim, trouxe precariedade e o enfraquecimento dos serviços sociais, de saúde e de educação, ou
seja, resultou no Estado máximo para o atendimento dos interesses das potências econômicas e no
Estado mínimo para o atendimento das questões sociais.
Na era pós-industrial, a solidariedade instrumentalizada na modernidade sólida é cambiada pela
competitividade, ora fruto da modernidade líquida, ou seja, a emergência do mercado capitalista
dissolveu as conquistas solidárias ao transformar as cidades em locais de acumulação da mais valia
por meio da especulação imobiliária, que segrega e demarca os muros da violência, bem como ultimou
o cotidiano e o ser humano a meros produtos mercantilizados.
Importante destacar que o medo sempre existiu e afligiu a humanidade. Enquanto outrora o medo
consistia na insegurança, nos desastres naturais e na morte, atualmente é agudizado pela desregulamentação
do mercado, pela redução do Estado social, já que desvaneceu-se o Estado de bem estar (welfare state) que
assegurava o básico, senão o ínfimo. À contemporaneidade adere-se o medo do terror, da opressão, da
insegurança e da miséria social, pois a racionalidade do mundo pós-moderno persegue a lógica da mais-
valia, que acirra a competitividade em detrimento da solidariedade e do pertencimento.

A segregação das elites globais; seu afastamento dos compromissos que tinham como o populus
do local no passado; a distância crescente entre os espaços onde vivem os separatistas e o espaço
onde habitam os que foram deixados para trás; estas são provavelmente as mais significativas das
tendências sociais, culturais e políticas associadas à passagem da fase sólida para a fase líquida189.

189 BAUMAN, Zigymunt. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 28.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Obviamente, conforme registrado por Roberto Romano, isso resulta na subtração dos três
monopólios do Estado, porquanto seus poderes embrionários sucumbiram à política econômica,
privatizando a política e a ordem pública. Essa necrose jurídica destituiu o controle do Estado, o qual,
por sua vez, lança mão da força bélica para fazer valer o seu poder. Essa insegurança jurídica aguça
a formação de um poder paralelo, como por exemplo, as guerrilhas colombianas, o narcotráfico, o
contrabando, a pirataria que desafiam o poder militar dos Estados ocidentais, sem perspectivas de
repressão, senão caminha à sofisticação para a produção de mais violência.
A hegemonia da norma jurídica é aviltada pelas corporações financeiras globais. O Direito é
transformado em “kits” jurídicos moldados ao bel prazer das pretensões do poder econômico, que,
por sua vez, controlam as políticas públicas, os partidos políticos, o trabalho, o espaço público, a
biodiversidade e as ações governamentais.
Razão disso, indaga Roberto Romano, porque não taxar os excedentes econômicos? Conforme
salientado alhures, no período compreendido pela modernidade sólida, ainda era possível o alcance
das grandes empresas e indústrias. Todavia, a modernidade líquida as dissolveu, de modo que,
ninguém mais as encontra, pois estão ocultadas pelas forças corporativistas globais. Hilário que a
teoria hobbesiana já alertava para tal desastre e conforme salienta Romano:

Se nos dirigirmos ao monopólio da taxação do excedente econômico, o desastre estatal é ainda


maior. Fraudes bilionárias ficam impunes, a circulação de recursos ilegais é incomensurável, nada
mostre que os Estados, sobretudo os hegemônicos, consigam recuperar o controle dos capitais
gerados e distribuídos pelos mecanismos eletrônicos da lavagem de dinheiro.

A lógica pura, fria e calculista da mais valia atenta contra o monopólio estatal. O anonimato
das corporações globais sedimentado pela pós-modernidade corrói a hegemonia da norma jurídica,
vez que o império do lucro oculta e esconde seus proprietários (ROMANO, IHU). A soberania popular
nada mais é do que uma arribana eleitoreira não representada ou sub-representada, mas que dá
“legitimidade” às bodas do Estado com o poder econômico. Povos, nações e países subdesenvolvidos
são submetidos à espoliação, à especulação, ao desemprego, ao relento dos serviços básicos e às
margens dos castelos que com seus muros dão forma à segregação social e espacial e à violência,
tudo isso para sustentar o odioso luxo do global norte.
Outra aliada da quebra do monopólio estatal é a mídia, que flerta com a hegemonia econômica e
com ela se embriaga para pregar uma propaganda de terror, medo, ódio contra aqueles que resistem
à opulência sistêmica e aos interesses financeiros globais. A mídia é prostituída e distorcida, sendo
um veículo feroz para, ora perseguir, ora acobertar. A árdua conquista cidadã pela implantação da
accountability, que é a obrigação de prestar contas, é pretensiosamente relegada, o que configura
senão uma perversão da primazia econômica.
A televisão arregimenta o público à lógica do mercado, desqualifica o discurso e o reduz a
cunho apelativo e sedudor, falsifica o cotidiano, torna o virtual real, molda o gosto, a cultura e o estilo
de vida, sem contribuir para a propagação de qualquer conteúdo emancipatório.
As massas de imigrantes, refugiados e vítimas de toda sorte de crueldade da opulência
neoliberalista permanecem às franjas do sistema e, por mais instrumentalizados que se sejam os
Direitos Humanos, estes não se efetivam, limitando-se, conforme sustentado por Norberto Bobbio,
apenas na era dos direitos.
O enfraquecimento estatal não é apenas assistido nas democracias latinas, mas em todo mundo
ocidental, notadamente na Europa, ante a efervescência de movimentos de inspiração fascista
externado pela extrema direita. Governos sucumbidos pelas corporações financeiras globais e que
detém a mídia, ressurgem e ressignificam práticas discriminatórias contra os negros e imigrantes.
Sob esta ótica, questiona Roberto Romano, frente a hegemonia da mais valia global, é possível
garantir a política e a democracia lastreada na soberania popular? O Estado, minguado da soberania
popular, já que esta é senão apenas um aprisco eleitoral, sem um mínimo de representação,
externa resquícios de absolutismo e totalitarismo, não mais como nos tempos pretéritos, mas
ocultamente ressignificados, ou seja, hodiernamente, “o poder absoluto se aninha nos escritórios de
investimentos financeiros, numa ditadura anônima, que, à semelhança do absolutismo, não presta
contas a ninguém” (ROMANO, IHU). Portanto, a política “como expressão das contraditórias vontades

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

populares, desaparece”. E os direitos humanos? Não passam de requiém!


O recrudescimento de novas ditaduras nos leva a refletir sobre a vida política, intelectual e
econômica. Roberto Romano demonstra que “no mesmo passo em que se definiu o princípio da
responsabilidade para os administradores, surgiu a regra da impessoalidade no trato da coisa pública”,
entretanto, “o mesmo princípio da impessoalidade foi dirigido, em outra perversão sintomática, para
o campo do anonimato das forças que dirigem os poderes estatais nas últimas décadas”.
Não obstante os movimentos sociais, sociedade civil e ONGs, tais restam insuficientes ao
fortalecimento da cidadania, porquanto mesmo detendo poder, este não é legítimo, tampouco coercitivo.

Os partidos, cada vez mais oligarquizados, só aceitam líderes que distribuam o espolio da riqueza
nacional em benefícios dos financiadores de campanha, quase sempre empresas industriais e
financeiras. As lideranças são marionetes nas mãos daqueles verdadeiros donos do poder.

Segundo Jean Claude Monod, citado por Roberto Romano, na contemporaneidade assiste-se
uma democracia “sem líder”, já que esta é comandada pela hegemonia internacional que governam e
controlam os Estados sem quaisquer óbices.
Roberto Romano aduz que o alerta contra o poder democrático moderno é caracterizado pelo
carisma, outrora estudado por Max Weber. Carl Schmitt, numa tendência à “eliminação da dominação
subjetiva do político sobre a objetividade da vida econômica”, num tom liberalista, enfatizou que
“nada é mais moderno do que a luta contra a política”, tanto que vários segmentos propagaram a
predominância econômica e o fim da política.
Roberto Romano, citando Monod, aduz que “Parece dificilmente negável hoje que o liberalismo econô-
mico vença a democracia entendida como possibilidade do povo de decidir coletivamente sobre sua sorte e
a de seus dirigentes, como a soberania popular”, portanto, “notamos que aqui e ali o primado do econômico
sobre o político não se embaraça com as complicações da legitimação eleitoral e democrática tradicionais,
e que a “soberania do povo” é tratada, cada vez mais abertamente, como uma velharia incongruente”.
A ditadura militar de 1964 também externou a fragilidade democrática ao negar voz ao povo.
Desse modo, segundo Roberto Romano, a “prática da democracia representativa está suspensa ao
fio da legitimidade. E o fio que a garante é muito fino”. Ora, mesmo diante das experiências bélicas
da primeira e segunda guerras mundiais, além da guerra fria, ao invés de se promover a democracia
como um estilo de vida, de elevar os interesses públicos e a paz social, os representantes políticos
enveredam-se às paixões privadas, isto é, “operam como lobistas daqueles interesses no Parlamento
e “o elo entre soberania popular e os que operam o Estado em seu nome se rompe”.
Roberto Romano distingue que quando eventual fratura estatal é inaugurada pelos seus dirigentes,
tem-se uma ditadura, cuja suspende as garantias cidadãs. Se iniciada pelos movimentos sociais, exsurge
uma revolução que pode direcionar para soluções institucionais pacíficas, isto é, as leis fundamentais
são mudadas para exprimir novos termos políticos. No entanto, significativa parcela dos movimentos
que logram transformar o Estado e enaltecer o poder popular, antes mesmo de serem dissolvidos pela
hegemonia contrarrevolucionária, são capturados via corrupção de suas próprias lideranças e quadros
funcionais, ou seja, fragmentam-se a ponto de perder sua essência e nada lograr.
A política se dissolve na burocracia e a representação parlamentar é corrompida frente aos
interesses econômicos e financeiros. Tal é o caminho perfeito para a efervescência de líderes
revolucionários e carismáticos para acobertar a “representatividade”, e explica que, assim como
advogado e vocação se une etimologicamente, tendo aquele como alvo ganhar causas, ainda que as
bases empíricas e lógicas sejam frágeis, a figura do líder se aperfeiçoa na esfera política, que aliada
à dissimilação da voz, se divorcia da convicção. Logo, a indagação que nos incomoda é a aquela
que advém menos da qualidade advocatícia e mais com a subida ao poder de carismáticos, que
desprovidos da capacidade que lhe é exigida, transformam as boas ações em perversas (ROMANO).

O burocrata que dispensa a voz em defesa de causa, justifica seus atos por saberes infalíveis,
usa o universo públicos como campo de manobras de aparelhos. A cidadania se reduz a um
laboratório de experiências das quais os operadores não precisam justificar, advogar o bem
fundado ou o fracasso. Eles não são políticos, mas cientistas. Para eles, a noção de justiça que
atravessa a política deve ser afastada para não perturbar o status quo.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

E esses burocratas logram status ao aproximar-se de personalidades carismáticas que


“patrocinam interesses populares”, como também se alicerçam em oligarquias, as quais manipulam
suas composições e, portanto, provido destes artefatos, galgam o carisma popular.

“Uma verdadeira‟ democracia, entendida como poder direto do povo, nunca chegou a criar sua
própria „legitimidade‟ no sentido de uma garantia de obediência e estabilidade duradouras”. A
democracia, em boa parte, consiste em uma ficção, pois é menos o „povo‟ que governa, e mais um
pequeno grupo de dirigente e, nos casos das democracias plebiscitárias, um chefe de governo ou
presidente que reveste as roupagens de um Cesar, periodicamente aclamado. Além desse poder
que se cobre com o nome de democracia, Weber indica a gerência do Estado pelos burocratas,
que impede a expressão da vontade popular, pois o poder dos escritórios tende à sua própria
perpetuação. Ele é o automatismo da máquina racional cujos fins são estranhos ao carisma, à
política, às massas. Se os escritórios são dominados por funcionários presos a empresas que
buscam o lucro acima de tudo, a exploração e opressão das massas ignora limites e regras.

E os direitos dos cidadãos? Ficam apenas na era dos direitos, impossível se serem efetivados
dado o estágio avançado do capitalismo, que é inelutável. Contudo, em que consiste e qual a matriz
que sustenta esta opressão? No tópico seguinte, será enfrentado o endógeno que tem assolado a
humanidade, sendo de extrema importância sua compreensão para que, a partir de então, possamos
traçar novas narrativas emancipatórias.

2.2 Patrimonialismo e a indiscernibilidade entre democracia e estado de exceção

Diante do articulado, evidenciou-se que a política também é um gatilho para o acúmulo de cargos,
poder, status e riqueza individual. A política também fora transformada para satisfazer a demanda do
mercado e da mídia com suas mensagens e imagens consumistas e distorcidas, gerando uma “sociedade
do espetáculo”, uma “sociedade do cansaço” e uma “sociedade do consumo”, todas irresponsáveis. A
ausência de um mínimo de ética da elite política na condução da coisa pública esmorece a democracia
ante a complacência com a sedução do mercado. Na verdade, subjaz um fundo patrimonialista
enraizado na política que fragiliza o Estado de Direito, ou seja, a hegemonia neoliberalista inverteu a
subordinação do poder ao Direito e deste faz uso para tornar hereditária sua voracidade.
Segundo Wermuth e Nielsson (2020, p. 46 e 50), citando Clarice Estés, toda cultura possui uma
espécie de predador que simboliza aspectos devastadores e destrutivos que se instala naturalmente
em mentes, atitudes e sonhos e, no caso pátrio, o predador mais extenso que assola nossa cultura
é aquele apontado por Joaquín Herrera Flores: o patrimonialismo, que é a matriz de nosso tempo e,
à luz de Firestone é “entendido como a base e o sustento de todo tipo de dominação autoritária e
totalitária, ou, na base de todos os processos de dominação política ou penal, sempre se apresentando
de maneira difusa”.
Boaventura de Sousa Santos define que esse tempo é marcado pela existência de “sociedade
que são politicamente democráticas mas socialmente fascistas” ante as desiguais relações sociais
constituídas, tais como: relações de trabalho à margens das leis trabalhistas que exploram mão de obra
de imigrantes, violência doméstica, relações de capital financeiro, etc..., ou seja, todas essas formas de
sociabilidade ocorrem à margem do controle democrático (WERMUTH; NIELSSON, 2020, p. 51).

Sujeitos a constrangimentos, censuras e autocensuras, privação de direitos elementares de


expressão e de movimento contra os quais não podem resistir sob pena de pesadas consequências;
vivem, em suma, sujeitos a ações arbitrárias que são estruturalmente semelhantes às que
sofreram os democratas durante a vigência dos regimes fascistas. Como se trata de um fascismo
subpolítico, não é reconhecido como tal.190

O patrimonialismo, logrou ampla complexificação que requer um exame em três dimensões que
atuam conjuntamente, a saber: econômica (e as injustiças de má distribuição); cultural (e as injustiças
de não reconhecimento) e, política (e as injustiças de subrepresentação). Segundo Herrera Flores, o

190 SANTOS, Boaventura Sousa. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 132.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

conceito de patriarcalismo é definido a partir de três esferas de ação, sendo: politicamente (que prima
o abstrato sobre o concreto); axiologicamente (crenças não deduzíveis e nem deduzíveis a partir
da qual um grupo se considera superior sobre o restante) e, sociologicamente (base de exclusão),
(WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 49 e 52).
Axiologicamente, o patriarcalismo naturaliza valores, induz uma construção social de direito e política
que divide e mesmo diante dos avanços quanto à igualdade de tratamento, as pretéritas desigualdades
se perpetuam ou se (re)inventam a cada fronteira derrubada, ou seja, ainda que abolida a subordinação
legal, as estruturas sociais que nele se lastreia, seguem vigentes. Enfim, é uma espécie de patriarcado
capitalista e ultraliberal estruturado que permeia os problemas de gênero, que não é homogêneo e nem
pode ser compreendido de modo unidimensional (WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 53 e 55).
A lógica do predador, o patriarcalista, que concatenado ao ultraliberalismo e ao populismo,
contamina a educação, exclui os demais seres humanos submetendo-os à margem econômica,
política, cultural e social, de modo que, invisibiliza-os, destituindo das condições de empoderamento,
além de representar ódio à democracia na medida em que esta representa aqueles que nada são, ou
aqueles que não lograram ascender aos padrões hegemônicos.
Corolário disso, é possível associar os paradoxos da democracia no mundo ocidental ao “estado
de exceção”, a ponto de a indiscernibilidade entre democracia e autoritarismo ser tão banal e natural,
que a exceção se subverte na regra.
Cediço que o estado de exceção significa a suspensão provisória, total ou parcial, da Constituição
em situações de crise. Mas ao contrário dessas situações de crise, não se refere a uma forma passageira
do exercício do poder, “mas à sua forma moderna” que ostenta um estado de exceção substancial, no
qual “a autoridade governamental atua no oculto reino intermediário entre direito público e atividade
política” ou seja, num limbo ou numa “zona cinzenta invisível: “a invisilibidade desse modus operandi
do poder governamental resulta não de ocultamento explícito, mas da máscara da normalidade
cotidiana”.” (WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 81-82).
Na verdade, nas democracias ocidentais pós-modernas, a exceção autoritária não olvida o Estado
Democrático de Direito, ao revés, a exceção logra conviver disfarçadamente dentro da democracia,
sendo uma interface desta.
Neste hiato, entre política e direito, a exceção logra grau máximo ao coincidir com uma só pessoa,
o soberano, o qual detém a competência para decidir sobre o estado de exceção e é sobre ele que
reside o oximoro, pois se ele tem o poder de manter a ordem ou declarar a exceção, significa dizer que
o ordenamento jurídico está à sua disposição, já que, à luz de Zafaroni, é o Executivo e não o Judiciário
que detém o poder de definir e enfrentar o inimigo. Sob esta lógica, está o soberano ao mesmo tempo
dentro e fora do ordenamento jurídico, pois ao utilizar seu poder de suspender a ordem, obviamente
coloca-se legalmente à margem da lei (WERMUTH, NIELSSON, 2020). No mesmo sentido é a teoria
hobbesiana ao observar que o soberano não assina o contrato, senão apenas os súditos.
Desse modo, a partir da concepção shimittiana, Agamben examina o estilo da política moderna,
ou seja, o estado de exceção passa a constituir um autêntico paradigma da contemporaneidade.
Neste sentido, indaga-se o que de fato ocorre nesse “reino intermezzo”, cujo vácuo entre direito e
poder se fundem a ponto de ostentar indistinguibilidade? Diferente de Arendt, Agamben acena que
“a decomposição da natureza pública da democracia parlamentar na era do animal laborius orientado
exclusivamente para a vida nua e crua leva à despolitização e à retirada para o privado”. Quer dizer,
“a vida nua e crua do ser humano (zoé) é excluída da ordem estatal de direito (legalidade) e ao mesmo
tempo capturado pela força do direito e enclausurada em seu poder”, de modo que “exclusão e inclusão
são a via pela qual a vida nua é exposta numa zona cinzenta do poder de disposição estatal, sem que se
possa distinguir entre direito e poder, entre direito e violência” (WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 86-87).
Pairando nessa zona indecisa e cinzenta, “a nua “vida do cidadão” passa a ser um corpo
biopolítico, ou seja, um objeto de poder, sem voz, sem língua, um corpo já sempre tido como ponto
de partida do poder soberano, que com ele sempre atuava no caso de exceção”. Hodiernamente, a
zoé, outrora submetida às margens do poder, passa a ser o centro da pólis, até se configurar no espaço
de poder, o que resulta da figura do homo sacer, que, por sua vez, retrata a ambivalência do estado
de exceção e a complexidade do homem contemporâneo, ou seja, é aquele que não é consagrado,
porém é posto fora da jurisdição humana, significando que a vida sacra é aquela em que ao mesmo

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

tempo é insacrificável é também matável. É uma vida suscetível de ser morta impunemente, não
necessariamente fisicamente, vez que na era dos direitos humanos a vida é sagrada, todavia, é
matável simbolicamente, invizibilizando-o, tirando-lhe a voz e a ação (WERMUTH, NIELSSON, 2020).
Não é a toa que o totalitarismo moderno pode ser definido como a implantação oculta, por
meio do estado de exceção, de uma guerra apta à eliminação física não só dos indesejáveis (homines
sacri), mas também de grupos, classes e segmentos que por qualquer razão importuna ou ameaça o
mundo sistêmico. Portanto, a vontade soberana não mais se limita ao poder absolutista, mas também
à ordem moderna do Estado de Direito:

A presença da vontade soberana na sombra da ordem social coloca a vida humana, todas as vidas
humanas, sobre a potencial ameaça da exceção. Isso quer dizer que, se por qualquer circunstância,
uma pessoa ou grupo populacional representasse para a ordem uma ameaça real ou suposta, eles
poderão sofrer a suspensão parcial ou total dos direitos para melhor controle de suas vidas.191

Sendo assim, o estado de exceção passa a ser a regra na qual habita o homo sacer (vida
impunemente matável), e o espaço que se abre a partir dele é o campo, o lugar onde o extremo
se converte no paradigma cotidiano. O campo é a estrutura na qual o estado de exceção executa
a decisão soberana, ou seja, “o campo é o próprio paradigma do espaço político, no ponto em que
a política se torna biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão”, enfim, o
campo é o local de produção de vidas nuas, vez que “as pessoas são expostas a um „processo de
desindividualização que compreende três momentos: mata-se a pessoa jurídica, destrói-se a pessoa
moral e extingue-se a diferenciação individual” (WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 89 e 91).
Disso exsurge uma conexão entre ideologia e terror como nova forma de poder estatal a se
concretizar no espaço do campo, que para Agamben, é um espaço que não atingiu seu ápice com os
campos nazi-fascistas do século pretérito, mas que se aprimorou e encontrou morada em plena era
pós-moderna, notadamente na guerra contra o terror declarada por Bush, ocasião em que instalou o
estado de exceção por excelência. Portanto, o campo deixa de ser um “mero laboratório de sistema
autoritários de poder”, conforme assinalado por Arendt e passa a ser, em Agamben, muito mais
abrangente, pois permite verificar “os campos como espaços excepcionais de exercício biopolítico do
poder tanto em sistemas totalitários quanto nos democráticos”. Consequentemente, paira “o véu da
indiscernibilidade entre poder e direito e permitindo-se que não só o olhar histórico, mas também o
tempo presente cheguem ao conhecimento dessa indistinguibilidade”, onde rumina constantemente “o
estado de politização da vida nua e crua, situada entre poder jurídico-institucional e o poder biopolítico,
e a relação de continuidade entre exceção e regras, entre o campo de concentração nazista e a cidade
moderna, entre o totalitarismo e o Estado de Direito” (WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 92, 93 e 94).
Destarte, a herança predatória do patrimonialismo, reforçada pelo neocolonialismo ameaça
o Estado Democrático de Direito, que, por sua vez, passa a compartilhar o totalitarismo com a
democracia, de modo que o estado de exceção não só ficou restrito aos campos nazi-fascistas,
mas ressurgiu ocultamente no Estado de Direito, a tal ponto de causar uma indistinguibilidade
entre democracia e exceção. Ora, e o que sustenta a força do estado de exceção a ponto deste ser
indiscernível com a democracia?
Cediço que a democracia não é um fim em si mesma, mas um caminho a percorrer (SILVA,
2014). Logo, se é uma ciência em construção e em constante aperfeiçoamento, obviamente das
suas fissuras aproveitam-se os elementos que configuram a exceção, o abuso e a biopolítica, quais
sejam, a afirmação do poder soberano, a configuração do inimigo e a suspensão da normatividade
(WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 96).
Portanto, quem é o soberano pós-moderno? Consoante assinalado por Valim, o senhor soberano
desde a pré-modernidade é o indomável mercado que até hoje impera em nome de uma elite invisível e
ilocalizável. Na verdade, “o estado de exceção é uma exigência do atual modelo de dominação neoliberal,
o meio pelo qual se neutraliza a prática democrática e se reconfiguram, de maneira silenciosa, os
regimes políticos em escala universal”. As bodas do poder econômico com o poder político produz uma

191 RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (re)leituras
biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, ano 10, n. 39, 2012.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ardilosa e oculta teia institucional e global de dominação e espoliação, ficando o poder político refém
dos interesses privados, cuja consequência resulta no reducionismo do Estado social em detrimento da
hegemonia neoliberalista, ou seja, “não são mais os governos democraticamente eleitos que gerem a
vida econômica e social, em vista dos interesses públicos, senão que as potências ocultas e politicamente
irresponsáveis do capital financeiro” (WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 9697).
O segundo elemento da exceção indaga quem é o inimigo que o estado de exceção transforma
a vida nua em indigna? Vilinger aponta que nas democracias ocidentais, após a virada do milênio,
o perigo do terrorismo, da violência e do terror tem desgastado as relações entre direito e poder.
Para Serrano, “vivemos num estado de exceção que governa com violência os territórios ocupados
pelos pobres e sob a ditadura jurídica do capital” (WERMUTH, NIELSSON, 2020, p. 100 e 105). A mídia
também não poderia deixar de ser um veículo aterrorizante, pois manipula o gosto, os valores, a
cultura e as opiniões, como também prega o consumismo, o discurso distorcido, medo e o ódio ao
manipular as massas populares ao bel prazer daqueles que a tem em suas mãos.
Outro elemento que é o arrimo do estado de exceção é a suspensão permanente da normatividade
(WERMUTH, NIELSSON, 2020), que nega a lei e por consequência nega a soberania popular democrática,
um dos pilares do Estado de Direito. As forças hegemônicas capitalistas transformou o Direito em
meros kits jurídicos formatados ao mando daquelas, ou seja, o Direito é submetido à vontade
soberana de poder, manipulando leis e adequando-as ao sentido desejado, além de deslegitimar o
espírito democrático e enfraquecer a cidadania.
Segundo Enio Waldir da Silva (2014), no mundo sistêmico já não há lugar para a ação
comunicativa, pois a linguagem é substituída pelo dinheiro e pelo poder, portanto, uma das patologias
que caracteriza a modernidade é exatamente a colonização do mundo vivido pelo mundo sistêmico
e conforme enfatizado por Habermas, a ação instrumental invade os espaços do mundo vivido e
expulsa a ação comunicativa de seu habitat natural (desde a família, associações, comunidades,
sindicados, instituições e organizações).

2.3 É possível a construção de uma cultura democrática e de direitos humanos?

Para finalizar, despojando-se da entropia rumo à neguentropia, como lograr a democracia e a


liberdade frente a hegemonia do poder econômico que não se distancia da senescência? O capitalismo
evoluiu para a financeirização global que aliado à burocracia, fundiu-se a ponto de escapar do controle
estatal, notadamente porque a abstração da mais valia prosseguiu para o anonimato, o que significa
dizer que o controle estatal não mais logra reprimir as fraudes bilionárias patrocinadas pelas grandes
corporações através dos meios eletrônicos.
Indaga Roberto Romano, como tutelar os direitos humanos da selvageria opulenta do poder
econômico sobre o político? Como encontrar lideranças nacionais e globais que retomem os meios do
Estado e os fortaleça ou radicalize a tese da soberania popular e dos direitos, imanentes à prática política?
Despindo-se da razão melancólica e revestindo-se do altruísmo de Sartre, ou seja, é preciso
acreditar no progresso, ainda que isso quiçá seja uma das últimas ingenuidades, assevera Romano
que o político vocacionado deve sempre responder ao chamado do povo, porquanto isso é preferível
ao ter uma democracia sem cabeça, pois “implica que o portador desse carisma seja igualmente
portador de um ethos de transformação social, rumo à redução das desigualdades, ao avanço da
justiça, à institucionalização de mecanismos jurídicos protetores”.
A política visa ampliar a vida humana em estilo democrático, tendente a fulminar as novas forças
hegemônicas da mais valia e do poder paralelo (narcotráfico, guerra terceirizada, espionagem) para
enaltecer a cidadania. O “labirinto do anti-Estado”, denominado por Noberto Bobbio, urge desvanecer,
porque naquele os direitos são negados e não há política responsável, e sem esta não há direitos
humanos, nem sequer direitos (ROMANO).
Habermas, que não olvida a ação instrumental como essencial para a reprodução material e
institucional da vida, acena para a descolonização do mundo vivido e a restauração da sociabilidade,
da espontaneidade e da solidariedade com base na ação comunicativa que implica no resgate da
cidadania e consequentemente da democracia (SILVA, 2014).

411
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Enio Waldir da Silva (2014) apregoa a possibilidade de instituir um contrapoder crítico e eficaz, capaz
cooptar o maior número possível de pessoas e de promover as conquistas mais sofisticadas e avançadas
da pesquisa científica e artística para oferecer a todos um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais
nobres da reflexão humana. Ainda, reportado autor acena que a implantação de políticas públicas de
cunho distributivo instrumentaliza a democracia como caminho e finalidade de uma sociedade justa.
Nessa toada, a vindicada justiça é uma virtude embebecida pela coragem, temperança,
liberalidade e pela magnificência, não sendo apenas um simples cálculo algébrico. Segundo Bittar,
citando Platão e Aristóles,

Somente a educação ética, ou seja, a criação do hábito do comportamento ético, o que se faz
com a prática à conduta diuturna do que é deliberado pela reta razão (ortòs lógos) à esfera das
ações humanas, pode construir o comportamento virtuoso. A semântica do terno ética (éthos)
indica o caminho para sua compreensão: ética significa hábito, em grego. Aqui, o importante é a
reiteração da prática virtuosa; nesse sentido, ser justo é praticar reiteradamente, ao capital valor
da educação (paidéia) como bem maior de todo Estado (pólis)192.

A concepção arendtiana norteia para uma convivência pacífica entre os homens, ora motor
propulsor da ação conjunta e é esta ação que é geradora de poder.

O único fator indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens. Todo
aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência, renuncia ao poder e
tornar-se impotente, por maior que seja sua forca e por mais válidas que sejam suas razões193.

Por fim, um dos desafios dos direitos humanos consiste na implantação de uma cultura
democrática, pois, segundo Boaventura Sousa Santos, se a democracia lograr assegurar o diálogo
das diferenças, é possível avançar nas conquistas locais até galgar um cosmopolitismo vivencial,
que compreende desde a equidade de distintos saberes científicos antagônicos à lógica capitalista,
fazendo inserções no mundo para regular, emancipar e compartilhar poderes que intervirão com
precaução e participação nas decisões, controle e avaliação destas (SILVA,2014). Além disso, em
plena era digital, certamente a tecnologia é uma ferramenta de construção da paz social, bastando
para tanto que o indivíduo, livre de todo narcisismo, logre ver, aceitar e respeitar a alteridade.
Maturana argumenta que se a pessoa humana possui a mesma lógica biológica, afetiva, social
e cultural, descabe qualquer relativismo, quer dizer, da mesma forma que algumas necessidades são
comuns a todos os seres humanos, daí porque alguns bens são universais (SILVA, 2014). Portanto,
para afastar os efeitos da contemporaneidade neoliberal desviadora da razão do poder público,
é preciso, arremata Enio Waldir da Silva (2014, p. 263) que o indivíduo logre uma capacidade
autolegislativa, despojando-se da competição e do personalismo individualista, ou seja, “garantir as
condições de uma comunicação franca, honesta e autônoma por onde as opiniões e a vontade podem
ser entendidas e refinadas a ponto de se institucionalizarem para serem vividas”.
Enfim, torna-se necessária a criação de novos mecanismos que assegurem a consolidação e
a legitimação da democracia, ou seja, a concretização da democracia dependerá de sua eficácia para
resolver problemas econômicos e sociais, como também para combater o desengajamento cívico. Por
isso, Alain Touraine questiona a democracia por meio da dimensão de cultura democrática, visando
dissipar caminhos de espaços para a participação popular e o respeito às diferenças individuais, sob pena
de o povo não saber escolher entre uma democracia e uma ditadura (SILVA, 2014). Portanto, democracia
é um processo que necessita de atores engajados, longe dos espetáculos midiáticos e do ostracismo.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problematização desenvolvida no presente estudo partiu da ideia de que o Estado não mais
detém o domínio exclusivo de seu monopólio embrionário, vez que os poderes constituídos sucumbiram

192 BITTAR, Eduardo C. B. ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2001, p. 88.
193 Op. Cit. p. 363.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

à hegemonia econômica, a qual privatizou a política, a norma e a ordem pública, configurando-se um


Estado máximo para os interesses econômicos e mínimo para as demandas sociais.
Partilhado o monopólio estatal com o poder econômico, este manipula a lei a mídia e invisibilizam
aqueles que ameaçam as corporações financeiras globais. As consequências do reducionismo estatal
deteriora seu poder de controle, já que não logram alcançar as invisíveis, ilocalizáveis e grandes
empresas que desconhecem as fronteiras nacionais e patrocinam abusos, espoliações e fraudes
bilionárias pelas inacessíveis manobras digitais. Nem sequer as grandes potências políticas planetárias
logram recuperar o controle da mais valia produzida e disseminada pelos meios eletrônicos.
Levando em consideração a fragilidade democrática causada pela opulência neocapitalista, notamos
que o patrimonialismo ainda se faz presente na política mundial e pátria, pois se constitui um lastro
difuso e predatório de todo tipo de dominação autoritária e totalitária, e ainda que tenha sido abolido, as
estruturas sociais denuncia sua configuração, pois por meio de uma bem-sucedida retórica carismática e
populista, ousar esconder a política de redistribuição e causa o desmonte do Estado social.
Portanto, por meio da herança patrimonialista enraizada na contemporaneidade, descortinou-
se que um sistema político-jurídico democrático pode ser aviltado para a ultimação de propósitos
autoritários. Para explicar tal temática, lançou-se mão da filosofia agambeniana, a qual ressignificou
o conceito de estado de exceção, não considerando-o como espaço ditatorial que olvida o Estado
Democrático, mas, ao revés, como espaço de indiscernibilidade entre democracia e autoritarismo,
cujo se solidifica em plena era democrática, ou seja, revela-se na mesma interface democrática.
Com esse objetivo, o estudo esclareceu que o estado de exceção é uma imposição da dominação
neoliberalista, cuja prática neutraliza a política, a democracia e enquadra o ser humano sem voz
num campo biopolítico para a execução da exceção. Também restou demonstrado os elementos que
arrimam a exceção, quais sejam, a configuração do soberano, do inimigo e a potencial de suspensão
permanente da normatividade.
A modernidade, em seu período sólido, administrou o medo por meio da solidariedade,
contudo, as incontroláveis pressões globais enfraqueceram os grupos, os sindicatos, as associações/
comunidades e submeteu o indivíduo da era iluminista ao relento da sua própria sorte. A solidariedade
fora cambiada pela competitividade e pelo terror, ou seja, liquidou-se aquela ao pretexto de conceber
indivíduos de direitos, todavia, despidos de meios para instrumentalizá-los, porquanto proclamados
por “Estados Democráticos Ditatoriais”.
Lado outro, nada mais oportuno encerrar o estudo num tom otimista ao acenar pela possibilidade
de reconstruir democracia e liberdade mesmo diante de uma hegemonia econômica, mediante o
fortalecimento da convivência humana, apto a criar um cosmopolitismo vivencial emancipador que
compreenda a equidade de distintos saberes científicos antagônicos à lógica capitalista, fazendo
inserções no mundo para compartilhar poderes que congregam voz, participação nas decisões, controle
e avaliação destas, enfim, é preciso que o indivíduo logre uma capacidade autolegislativa, despojando-
se da misantropia, da competição e do individualismo para a construção de novas solidariedades.
Tal narrativa encontra guarida com o pensamento arendtiano de que “é somente através do
discurso e da ação que os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como objetos físicos,
mas enquanto homens”, quer dizer, é possível a existência de diálogos num tom que confronta sem
desrespeitar, bem como questionar sem ofender, tudo em prol do aperfeiçoamento democrático.
O exemplar democrático exige a substituição do padrão top-down para uma forma bottom-up,
com vistas ao atendimento da pujante demanda local, mediante a adoção de perspectivas sociais
construtivistas que, não obstante a matriz liberal, a esta se sobreponham, especialmente para a
conscientização da construção de uma cultura democrática e de direitos humanos.
Desse modo, o combate da incerteza democrática que hodiernamente assola a humanidade
requer a formação de um “pensamento à sombra da ruptura”, ou seja, de inovações colaborativas
da sociedade global, tais como, governos, políticas públicas, empresas, universidades e sociedade
civil, perseguindo a manutenção da ordem pública, da justiça e da confiabilidade antropológica, bem
como atenuar as múltiplas fontes de rupturas, reorganizá-las e recriá-las de acordo com as demandas
locais, notadamente para dissipar o fosso crescente das desigualdades sociais, enfim, enaltecer a
mixofilia e garantir que o ser humano continue a ser a centralidade de todas as decisões e elemento
de progresso da humanidade, desde que curvado à ética que considera o outro, a alteridade.

413
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFERÊNCIAS

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SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. Tradução: Manoel Moreira Miranda. São Paulo.
Edipro: 2016.

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SUPIOT, Alain. O Espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Sulina: Porto Alegre,
2014.

414
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ESTADO DE DIREITO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO:


UMA LEITURA DA OBRA “SOBRE A LIBERDADE”
DE JOHN STUART MILL

Kethlyn Mayara Mohnschmidt194


Aline Michele Pedron Leves195
Gilmar Antonio Bedin196

RESUMO: O presente artigo analisa, por meio da utilização do método hipotético-dedutivo e do


procedimento bibliográfico, a liberdade de expressão e a sua viabilidade em um Estado de Direito.
Dessa forma, a discussão é problematizada no âmbito de atuação do poder estatal sobre o seu povo, em
meio a uma sociedade que busca priorizar a liberdade de expressão. O objetivo central encontra-se na
análise da obra “Sobre a liberdade”, de John Stuart Mill, almejando compreender o ponto de vista deste
renomado filósofo em relação à temática em tela. Por fim, corrobora-se a hipótese inicial, constatando-se
a imprescindibilidade da presença do Estado para a segurança da liberdade de expressão populacional.

Palavras-chave: Direito. Estado. Indivíduo. Liberdade de Expressão. Utilitarismo.

INTRODUÇÃO

A relação existente entre o desejo de poder e o desejo de liberdade acompanha o processo


civilizatório. Por isso, o viver em conjunto pressupõe esta tensão permanente e diversos níveis
de concretização histórica. A busca de construção e institucionalização do Estado de Direito é a
tentativa de equilibrar a referida relação. Dessa forma, o Estado de Direito pressupõe a existência do
poder, mas também o estabelecimento de diversos limites. Daí a adoção do chamado princípio da
separação dos poderes e as garantias fundamentais. O objetivo consiste justamente em garantir a
liberdade. Fortemente presente no decorrer da Revolução Francesa de 1789 e de todos os movimentos
emancipatórios, a liberdade é, ainda hoje, uma busca reiterada e uma meta poucas vezes alcançada.
Para alcançar tal objetivo, o Estado de Direito possui uma conformação institucional bastante
complexa. Esta complexidade revela que a sua estrutura foi marcada, inicialmente, pelo liberalismo,
mas, atualmente, incorporou a contribuição de vários dispositivos da ordem democrática. Daí a sua
denominação atual de Estado Democrático de Direito (BEDIN, 2013). Essa forma específica de Estado
passa a ser conhecida como um modelo de organização político-estatal cuja a atividade é determinada
e limitada por um ordenamento jurídico, ou seja, pelas leis da nação. Nesse sentido, o indivíduo que
anteriormente era completamente livre, passa a ter a sua liberdade condicionada.
Além disso, o Estado Democrático de Direito possui como característica o princípio da
isonomia, pelo qual todos são iguais perante a lei, dispondo dos mesmos direitos e consequências na
transgressão destes. Portanto, todos os indivíduos estão afetos à lei de maneira igualitária. Ressalta-
se que este Estado de Direito possui, de maneira presente, a atuação do Estado sobre a vida dos
seus indivíduos, ansiando melhorar a qualidade de vida dos cidadãos por meio do cumprimento de

194 Acadêmica do Curso de Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
(UNIJUÍ) e Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq do Grupo de Pesquisa: Direitos Humanos, Governança e Democracia.
E-mail: kethlyn.may3@gmail.com;
195 Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Hu-
manos – da UNIJUÍ. Bolsista CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq: Direitos Humanos, Governança e Democracia.
Advogada (OAB/RS). E-mail: alineleves@hotmail.com;
196 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor dos Cursos de Graduação em Direito
e dos Programas de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da UNIJUÍ e da URI. Líder do Grupo de Pesquisa do
CNPq: Direitos Humanos, Governança e Democracia. E-mail: gilmarb@unijui.edu.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

direitos fundamentais, dentre os quais se destaca o direito à liberdade de expressão. A liberdade de


expressão é o direito que permite a todas as pessoas a manifestação de suas opiniões e o acesso a
informações sem a interferência de terceiros, das mais diversas formas, com a garantia de que não
serão censuradas por causa destas, exceto no caso de confrontarem a lei.
Nesse sentido, a obra “Sobre a Liberdade”, do filósofo utilitarista John Stuart Mill, apresenta a
importância da liberdade de expressão, estabelecendo uma comparação entre a atuação do poder, ou
das pessoas das classes superiores, sobre a vida dos demais indivíduos. Assim, apresenta-se na obra o
perigo da denominada tirania da maioria. Todavia, evidencia-se a importância do Estado de Direito na
sociedade, propondo um momento para a sua interferência na vida individual, qual seja: em situações
de autodefesa, isto é, na violação das liberdades clássicas alheias. Mill fundamenta, portanto, nos
seus escritos, a busca por caminhos que contribuirão para o desenvolvimento da comunidade social.
À vista disso, esta pesquisa analisa, com escopo na obra de John Stuart Mill, a liberdade de
expressão e a sua viabilidade em um Estado de Direito. O problema central da discussão reside nos
limites de atuação do poder estatal sobre o povo e a forma pela qual a sociedade consegue priorizar
a sua liberdade de expressão. Desse modo, o artigo está estruturado em duas seções. A primeira
aborda os fundamentos do Estado de Direito, seus limites e ações. A segunda, por sua vez, expõe as
possibilidades da liberdade de expressão sob o ponto de vista utilitarista de Mill. Para tanto, utilizou-
se o método hipotético-dedutivo e o procedimento da técnica de pesquisa bibliográfica.

1 ESTADO DE DIREITO: PRINCÍPIOS, LIMITES E AÇÕES

Em seus escritos, John Locke (1999) fazia menção a um Estado de Natureza, momento precedente
ao Estado Civil, no qual os homens eram essencialmente bons e regidos pelas leis naturais. Nesta
comunidade, todos eram iguais e livres, podendo punir uns aos outros para a prevenção ou reparação
de direitos atingidos. Em contrapartida, Thomas Hobbes (2019) também desenvolve sua tese sobre
o Estado de Natureza, o qual, por sua vez, caracteriza o homem como naturalmente mau. Através
de sua célebre constatação metafórica de que “o homem é o lobo do homem” (HOBBES, 2019, p.
47), o autor do Leviatã defendia que os seres humanos viviam em um constante estado anárquico
de conflito, ou seja, em “uma guerra de todos contra todos” (HOBBES, 2019, p. 47), que prejudicava
a sua sobrevivência. Não obstante, ambos os autores concordam com a necessidade da formação
de um Estado Civil, por meio da constituição de um contrato. Para Locke, este Estado solucionaria
as inconveniências do Estado de natureza, já que não era bom que os indivíduos julgassem suas
próprias causas. Por outro lado, para Hobbes, este Estado garantiria a vida aos indivíduos.
O Direito, entendido como a lei escrita e codificada, foi grandemente defendido pelo jurista
Norberto Bobbio (2004) como a norma jurídica com execução institucionalizada e garantida em
virtude da sanção externa. A partir disso, entende-se o Estado de Direito como o Estado submetido ao
Direito ou à lei. Desta forma, é concebido através de um pacto entre as vontades humanas, as quais
estabelecem as leis que serão seguidas por este Estado. Caso essas leis venham a ser infligidas, serão
adotadas medidas especializadas para sua reparação.
Nesse sentido, o filósofo John Stuart Mill (1991), descreveu a extrema importância da presença do
Estado em uma sociedade. Segundo ele, o Estado atuaria de forma a proteger o seu povo somente quando
sobreviesse eventual abuso sobre sua liberdade. É sabido que o filósofo defende que, para além do simples
Estado, este o seja de maneira democrática, compreendendo a democracia como um regime de governo
onde o poder emana do povo. Esta é, portanto, uma forma de sociedade baseada na liberdade e soberania
popular, sistema este, também, adotado pelo Brasil desde a Constituição de 1946. Desse modo, o povo toma
as principais decisões, sendo adotada aquela que possuir mais votos, podendo-se entender que, de certa
forma, as decisões são feitas pela maioria do povo. Comprovando-se aí a ressalva do filósofo relacionada à
“tirania da maioria”, como um mal ao qual a sociedade se deve resguardar (MILL, 1991, p. 26).
Além disso, Mill (1991) especifica à qual tipo de democracia é adepto, sendo, então, a democracia
representativa. Também entendida como democracia indireta, esta é uma forma de governo na qual
o povo elege um ou um grupo de representantes, os quais buscarão satisfazer as ambições dos
eleitores. Esta figura representativa aparece com o intuito de impedir a chamada “tirania da maioria”,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

já que, mais uma vez, torna-se representante aquele que possui mais votos e, consequentemente,
aquele para o qual a maioria estiver a favor.
Ademais, John Stuart Mill é um grande defensor da liberdade de expressão. Frente a isso, nota-
se certa curiosidade ao defender a presença Estatal em uma sociedade liberalista, já que uma função
muito aparente do governo é, justamente, limitar a liberdade do seu povo. Buscando explicar este
questionamento, é deixada, pelo filósofo, a seguinte frase: “o público não tem direito a interferir nos
gostos pessoais e nos interesses estritamente particulares dos indivíduos” (MILL, 1991, p. 152). Daí
o porquê da presença do Estado em uma sociedade que busca pela liberdade. O Estado é o único
capaz de interferir na liberdade individual pois, como já defendia John Locke (1999), não é bom que
os indivíduos julguem suas próprias atitudes. A ação deste terceiro atingiria, então, decisões mais
justas na sociedade, contribuindo com concretização da felicidade da população e cumprindo com o
principal princípio desenvolvido por Mill, a utilidade.
Entretanto, ainda assim, não quer dizer que o Estado é possuidor de tamanho poder passível de
atuação em qualquer situação. É, a ele, somente, permitido intervir e impor seu poder em situações
de conflito de liberdades, isto é, quando a liberdade de um indivíduo passa a interferir na liberdade de
outro, gerando prejuízos para este. Não só nesta situação, são impostas três limitações à atuação estatal
quando não há a interferência da liberdade alheia. Na primeira situação, o governo está proibido de agir
quando não há ninguém melhor para a realização da coisa, a não ser o próprio indivíduo. Na segunda,
não haverá uma melhora significativa na execução se for feita pelo indivíduo, porém é indicado que este
o faça para estimular o exercício do seu julgamento. Por fim, a terceira e última proibição ocorre nas
situações em que se almejar o aumento desnecessário do poder estatal (MILL, 1991).
Para que a função desempenhada pelo Estado seja efetiva, são elaboradas penas específicas
àqueles que descumprirem as normas jurídicas vigentes. Esta medida passou a ser entendida como
uma forma de o infrator responder pelo dano causado. Circunstâncias nas quais não havia o objetivo
de intervenção da liberdade alheia ou, ainda, almejava-se garantir uma liberdade, da vida, por
exemplo, ao impedir que alguém tirasse a sua, não eram vistas como um mal passível de coerção.
Não obstante, mesmo buscando proteger seus direitos, tendo uma boa intenção ao prevenir um mal
contra a liberdade de viver, ainda assim, conforme o último exemplo, é questionável a possiblidade
de intromissão alheia, colocando em risco a liberdade de decisão que esta busca, de tirar sua vida.
Portanto, Mill (1991) observa o Estado como uma maneira de impedir que concepções
equivocadas de alguns indivíduos venham a atingir o restante da população. Confere, para este, o
dever de assegurar ao povo a proteção de eventuais abusos, substituindo o termo Estado de Direito por
Estado Democrático de Direito, também incorporado, atualmente, na Constituição Federal Brasileira
de 1988, pelo qual passa a garantir o exercício dos direitos fundamentais, ligando-se aos princípios
da legalidade e da igualdade.
Ainda, evidencia-se que tal limite estipulado ao poder Estatal somente é válido para cidadãos e
sociedades maduras, as quais procuram a presença e atuação do Estado em suas vidas. Antagônico
a estes, existem povos que, mesmo sofrendo abusos em virtude da presença de ladrões, assassinos
e os mais diversos criminosos, permaneciam os defendendo e ajudando-os a fugir da ação do Estado
e das sanções a eles impostas. Identifica-se, portanto, povos indispostos a cooperarem ativamente
com as normas jurídicas vigentes e com as autoridades públicas. A permanência destas atitudes
impossibilita a atuação do Estado e, logo, se o Estado não pode impor suas leis no limite, o único
momento possível, seu poder se torna inerte e a sua presença é irrelevante.
Em meio a um mundo onde muitas vezes o Estado e, por conseguinte, a sua atuação, são vistos
com maus olhos, é perceptível e dispensa questionamentos e eventuais dúvidas em relação a estrema
necessidade da incorporação ativa deste na sociedade. O Estado, assim como toda a população,
deve respeitar a liberdade dos seus indivíduos, mas precisa, também, vigiar o exercício que qualquer
um pode exercer sobre os outros. Isso significa afirmar que é ele o único ator/ente incumbido da
aplicação de sanções sobre a vida dos indivíduos, no momento limite, e, assim, fazer cessar sua
liberdade de expressão sempre que tal medida for considerado como uma necessidade prioritária
para evitar transgressões ou danos a outrem.
Isto posto, cada indivíduo participante da sociedade possui o livre-arbítrio em suas decisões podendo,
portanto, agir da melhor forma necessária para o alcance de sua felicidade. Em uma sociedade onde o

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

povo é livre, pretende-se que este seja capaz de dar andamento aos assuntos públicos com inteligência,
ordem e decisão. Ainda assim, mesmo essa liberdade possuindo um grande alcance, nos casos em que
são violadas as leis, o Estado é o agente capaz de responsabilizar os indivíduos pelos atos praticados.
Cabe ressaltar que, na mesma medida em que os governados são escravos dos governantes, quando há
a atuação destes, os governantes são escravos de sua própria organização e disciplina (MILL, 1991).

2 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO SOB A ÓTICA DE JOHN STUART MILL

É notória a busca pela liberdade em inúmeros movimentos revolucionários no decorrer da história.


Grandemente propagada através da Revolução Francesa, de 1789, no lema: “liberdade, igualdade e
fraternidade”, ansiava-se pelo fim da desigualdade social e liberdade das minorias (SILVA, 2020, s.p.).
A exemplo da segregação racial, perpetuada nos séculos XIX e XX, nota-se que, infelizmente, ainda
hoje, não se conseguiu colocar um fim na limitação da plena liberdade dos negros, pelo simples
fato de o serem. Dentre os muitos motivos que incitaram revoluções, de certa forma, a busca pela
liberdade, seja de expressão, religião, associação ou minorias, foi um dos principais objetivos a serem
alcançados. No tocante a isto, o filósofo John Stuart Mill (1991) vem dissertar a respeito da relação
entre a liberdade de expressão na conjuntura de atuação do Estado de Direito.
Mill foi um filósofo liberalista notável do século XIX e, dentre as diferentes características
pertinentes a ele, está o caráter utilitarista, ao acreditar no princípio da maior felicidade, ou, também
chamado de princípio da utilidade. De acordo com este princípio, o objetivo político-estatal se encontra
em estimular a felicidade da maior parte possível da população. Presente está o motivo do anseio
da liberdade, pelo filósofo, pois alega que, apenas com a independência dos indivíduos na busca de
seus próprios interesses, será possível às pessoas alcançarem maiores níveis de felicidade. Segundo
Mill, a ingerência do governo na vida individual poderia atuar de maneira prejudicial, não permitindo
a realização deste princípio tão defendido (MILL, 1991).
A defesa de Mill, em concordância ao princípio da Utilidade, assevera que, na proporção em que
o indivíduo pode realizar suas próprias escolhas, torna-se possível a felicidade e, por conseguinte,
são consideradas como ações corretas. Quando, porém, são efetuadas ações erradas, é gerado
sofrimento e, logo, conclui-se que inexiste a liberdade, pois houve um impedimento (MILL, 1991).
Dessa maneira, John Stuart Mill (1991) elenca três razões para a defesa da liberdade de expressão,
através das quais procura provar a sua importante presença e contribuição na comunidade social. A
primeira, denominada de falibilidade, faz menção a possibilidade de, somente uma pessoa, dentro de
um grupo, possuir a opinião verdadeira. Conforme o filósofo:

Se todos os homens menos um fossem, de certa opinião, e um único da opinião contrária, a


humanidade não teria mais direito a impor silêncio a esse um, do que ele a fazer calar a humanidade,
se tivesse esse poder. (MILL, 1991, p. 43-44).

A hipótese em questão, confirma a importância da liberdade de expressão para que esta única
pessoa, minoria, revele a verdade ao grupo. Contudo, nem por isso, pode, ela, se impor aos demais
e impedir a sua manifestação. Mill (1991) identifica a falibilidade do homem, ou seja, a sua limitação
ao ser passível de opiniões equivocadas e, portanto, errar, condição esta de conhecimento humano.
Nesse momento, explica a liberdade de expressão, pois “se uma opinião é compelida ao silêncio, é
possível seja ela verdadeira, em virtude de algo que podemos vir a conhecer com certeza. Negar isso
é presumir a nossa infalibilidade” (MILL, 1991, p. 98). Presumir a infalibilidade é dar a si mesmo a
tarefa de tomar decisões em nome dos demais, impedindo, assim, que estes ouçam o lado contrário.
Sabe-se que o movimento explicado contribuiria para a formação de verdades absolutas e, mesmo
que estas conseguissem, ainda, serem estruturadas, ao longo do tempo surgiriam pessoas que tomariam
conhecimentos dos diferentes lados, retornando à opinião verdadeira. Ainda assim, é entendida a ausência
destas, por mais que haja um certo dever de sua formação, por parte do Estado e dos indivíduos. Nenhum
governo possui autoridade para suprimir a liberdade de expressar uma opinião. Portanto, existe uma
certeza que guia as condutas e esta deve ser desenvolvida em favor dos outros (MILL, 1991).
Não é possível ter a certeza de que a opinião que se tenta sufocar é, realmente, uma opinião

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

falsa e, mesmo que tal certeza houvesse, ainda assim seria um mal sufocá-la. A opinião que se
intenta suprimir pela autoridade pode ser verdadeira. Desse modo, para Mill (1991) é fato que aqueles
que desejam eliminá-la negam sua verdade, mas eles não são infalíveis, não possuindo qualquer
autoridade para tomarem as decisões pelo restante da população. Recusar ouvidos a uma opinião, por
ter certeza de que ela é falsa, é supor que a sua certeza é igual a uma certeza absoluta (MILL, 1991).
A segunda razão se apresenta de modo adverso, quando a maioria possui a opinião correta
e um único a equivocada. Seria comum que, como utilitarista, a opinião da maioria sobressaísse,
entretanto, não é esta a posição de Mill (1991). Mesmo nesta situação, define imprescindível a
liberdade de expressão por parte da minoria. Defende que cada vez que a maioria é confrontada,
recebe a oportunidade de raciocinar, argumentar e perceber se, de fato, concorda com a opinião.
Através desta dinâmica, é possível que, por mais que haja a certeza da opinião, esta seja colocada
em choque, testando-a, configurando uma forma de encontrar falhas inseridas em seu interior. Não
é considerada como uma simples maneira de conhecer a verdade, mas como a única de entender as
opiniões sob a perspectiva de diferentes olhares. Consoante a isto, o autor afirma:

Embora o portador de uma opinião vigorosa não admita de boa vontade a possibilidade de ser
falsa, deve ele mover-se pela ponderação de que, por mais verdadeira que seja, se não for ampla,
frequente e intrepidamente discutida, será sustentada como um dogma morto, não como verdade
viva. (MILL, 1991, p. 70-71).

Em um primeiro momento, entende que a contraposição de opiniões pode ser mal recebida pela
maioria, ao se sentir confrontada. Todavia, afirma que a única forma de o homem conhecer um objeto,
em sua totalidade, e, então, poder chegar a uma determinada opinião, é ouvindo tudo que se pode
ser dito a respeito dele, a partir de diferentes pontos de vista, compreendendo as diferentes formas
que pode ser analisado. Expressa, assim, que este confronto de ideias vem a contribuir para o não
esquecimento, não só da opinião, mas também do seu sentido, contribuindo com o aprimoramento
do conhecimento (MILL, 1991). É através do confronto de ideias que os seres humanos desenvolvem
sua racionalidade e se impede a formação de dogmas dentro da sociedade. Portanto, faz-se essencial
um conflito de opiniões para uma percepção clara da verdade.
Pela terceira razão, ambas as opiniões podem se classificar como verdades, tanto da maioria
como da minoria, no entanto, não no seu todo. Frente a isso, mais uma vez, demostra, claramente,
a importância da liberdade de expressão. Neste momento, a liberdade em argumentar e demonstrar
seus pontos de vista apresenta-se como uma prevenção para o surgimento de dogmas, verdades
absolutas. Mill explica que “só pela colisão das opiniões contrárias se faz provável se complete a
verdade com a parte ausente” (MILL, 1991, p. 98). Verificando-se o confronto de opiniões, de alguma
forma, perceber-se-á a contribuição trazida por aqueles que tem algo digno de ser ouvido.
Nesse contexto, o debate vem a impedir o alastramento de verdades absolutas e incontestáveis e
estimular o raciocínio, a compreensão e, consequentemente, promover a complementação e ponderação
das opiniões. Havendo, assim, a prevenção da perda dos argumentos das opiniões, já que, no momento
em que surgirem verdades absolutas, conforme afirma John Stuart Mill (1991, p. 98), o dogma “se tornará
uma mera profissão formal, ineficaz para o bem, mas a estorvar o terreno e a impedir o surgimento de
qualquer convicção efetiva e profunda, vinda da razão ou da experiência pessoal”.
Desse modo, proibir o exercício da liberdade de pensamento e de expressão de opiniões
prejudica o indivíduo e a sociedade, pois gera um certo atraso no seu desenvolvimento. Eliminar,
silenciosamente, parte da verdade é enrijecer os erros e transformá-los em preconceitos. Em suma,
a partir do momento em que se entende a falibilidade do homem, sua capacidade de errar, que o
diálogo coopera para a construção e consolidação do saber e que as opiniões são complementáveis,
deve-se permitir o livre expressar do pensamento (MILL, 1991).
Em síntese, para alcançar a verdade, toda opinião deve ser ouvida, reputando-se irrelevante sua
origem da maioria ou minoria. Opor-se à verdade presente na maioria é ressaltar sua infalibilidade.
Vedar a expressão da minoria, mesmo que errada, é impedir que, com o choque de opiniões, detecte-
se a verdade completa. Negar a contestação, tanto da maioria como da minoria, é possibilitar a
formação de dogmas e frear o conhecimento humano, é impedir o desenvolvimento da sociedade
e raciocínio lógico do homem. Em todas as situações, rejeitar a liberdade de expressão é contribuir

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

com a infelicidade da população, precisamente o contrário do que é defendido por John Stuart Mill. É,
então, imprescindível a liberdade de expressão na sociedade civil.
Diante desses três métodos, muito bem definidos, Mill (1991), ainda, ressalta e demonstra a
primordialidade de outro pensamento. Para ele, tornar legítima a interferência na liberdade da minoria
e permitir que a opinião da maioria sobressaia, poderia potencializar a utilidade e, consequentemente,
contribuir com a felicidade da população, o intuito de todas as defesas elaboradas. No entanto, a um
longo prazo, a sociedade poderia se tornar pior, regredindo a um Estado autoritário, por exemplo, de
luta dos mais fortes sobre os mais fracos.
À vista disso, na obra “Sobre a Liberdade”, Mill (1991) entende a liberdade como negativa, vendo-a
como um modo de pensar, sentir, expressar e mover, na ausência de impedimentos impostos pela
coletividade ou demais indivíduos. Todavia, estabelece uma única limitação à liberdade de expressão. Esta
é realizada pelo Estado, sustentando a importância de sua presença. Tal limitação existente é motivada
pela prevenção de danos aos outros. A partir disso, o autor elabora o princípio do dano aos outros, ou o
princípio do dano, dividindo-o em duas máximas. Na primeira, o indivíduo não precisa prestar contas à
sociedade por suas ações, desde que não digam respeito a interesses alheios. Na segunda, as ações que
gerarem prejuízos aos interesses alheios deverão chegar aos ouvidos estatais, acarretando na sujeição de
uma pena social ou legal, a qual pretenderá sanar os danos que forem eventualmente ocasionados.
O filósofo avalia as faculdades humanas da percepção, julgamento, atividade moral e mental como
atividades baseadas na escolha, necessárias para aqueles influenciados pelos costumes e incapazes
de decidirem por si. Aquele, porém, que consegue tomar decisões sozinho e não é influenciado pelos
costumes não necessita das faculdades, pois a escolha já está intrínseca a ele. O homem é visto como
uma árvore que precisa crescer e se desenvolver. A liberdade é um elemento essencial para o avanço
da humanidade e, assim como os homens são diferentes, faz-se necessário condições diferentes para o
desenvolvimento, caso contrário não atingirão o máximo de sua felicidade, nem mesmo a justa medida.
Acrescenta-se, ainda, o fato de que a liberdade não é absoluta a ponto de poder aliená-la (MILL, 1991).
Além disso, deve-se considerar que o costume é um impedimento para o avanço da humanidade,
ainda que seja bom, e se divide em dois espíritos. O espírito de avanço pode obrigar o cumprimento de
melhorias, reduzindo a liberdade de escolha, já o espírito de liberdade, na medida em que é restringido
para o cumprimento das melhorias, pode se tornar oposto ao avanço. Assim sendo, a única forma
permanente de avanço reside na liberdade, pois através dela existem diferentes formas para evoluir,
semelhante às diferenças dos indivíduos que compõem a sociedade (MILL, 1991). Ainda, é observado
a melhor condição da liberdade do que a uniformidade, pois esta é vista como consequência de terror
e da democracia. É encontrado, na democracia, o perigo da supressão das diferenças individuais, pois
as decisões são tomadas com base na maioria, sendo, então, conhecida como a “tirania da maioria”
(MILL, 1991). Por fim, pode-se concluir que, as duas condições necessárias para o desenvolvimento
humano são a liberdade e a multiplicidade de circunstâncias, pois, somente assim a individualidade
pode ser desenvolvida e o bem-estar pode ser alcançado.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente análise, respaldada nos argumentos apresentados na obra “Sobre a Liberdade”, de


John Stuart Mill, sugeriu a compreensão da formação e desenvolvimento do Estado de Direito, seus
fundamentos, limites e ações, bem como o entendimento acerca da liberdade de expressão, as razões
pelas quais esta se torna indispensável para a vida humana e a relação entre o poder Estatal e a liberdade.
Nesse contexto, nota-se que não são raras as situações em que o Estado é observado como limitador
das liberdades individuais da população, provocando dúvidas quanto à necessidade da sua presença.
O filósofo utilitarista vem contrapor essa posição adotada por tantos. Então, Mill defende a
liberdade de expressão, pela qual todos são livres para se manifestarem e ninguém pode interferir em
suas decisões. Só assim o homem irá se desenvolver e alcançar sua felicidade maior. Dentro de uma
sociedade onde a minoria contém a verdade, a liberdade está presente para a revelação desta verdade.
Em uma sociedade onde a maioria possui a verdade, a liberdade de expressão busca permitir o confronto
de ideias para impedir o surgimento de dogmas. Por fim, sua última hipótese quanto a primordialidade

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

da liberdade de expressão se encontra quando ambos os lados possuem a verdade, porém, não no seu
todo. Nesse momento, é buscada a soma dos pontos de vistas, para a produção da verdade.
Mill relata os momentos em que a liberdade de expressão se faz precisa, entendendo-a não,
apenas, como o fato de difundir diferentes olhares sobre questões semelhantes, mas com o intuito de,
assim, o homem e a sociedade se desenvolverem, tanto intelectualmente quanto moralmente. Apesar
disso, compreende que a simples liberdade não se é, de todo, boa para a população. Assim, apresenta
uma figura responsável pela limitação da liberdade. O único capaz de realizar tal interferência, na vida
individual, é o Estado. Não obstante, a sua presença só é permitida excepcionalmente, de modo que
pode haver interferência estatal quando a liberdade atinge ao seu próximo, ocasionando-lhe prejuízo.
Além disso, mesmo na ausência da interferência alheia, há situações que proíbem a atuação
estatal. Nesse ínterim, o Estado se apresenta como garantidor das liberdades individuais, capaz de
impor coerções para aqueles que alcançarem o limite de sua liberdade. Sem a presença do Estado para
a punição daqueles que produzem danos aos outros, poder-se-ia questionar sua relevância da vida
em sociedade. Por isso, o desafio do Estado Democrático de Direito é estabelecer este equilíbrio. Daí,
portanto, o destaque dado por Stuart Mill à liberdade de expressão, que demonstra a atemporalidade
de sua obra, não somente de forma individual, mas do debate público esclarecido que deve ser
respeitado pelos poderes do Estado. É que o direito de se manifestar livremente possibilita a construção
de novos pensamentos acerca dos mesmos assuntos, estimula a argumentação e contribui com o
desenvolvimento do ser humano em sua integralidade.
Em um mundo que busca constantemente a perfeição nos mais diversos níveis, a obra descreve
tanto a sociedade da época de Mill, como a atual, apresentando uma perfeição estatal onde as
pessoas não se privam de expor suas opiniões, por medo de estarem erradas. É uma sociedade que
se desenvolve em conjunto e busca não apenas o crescimento, mas o bem-estar de todos. Percebe-
se, então, que a sociedade utópica buscada por muitos, atualmente, só pode se concretizar quando
houver o fim da busca por transformações tão somente individuais. Isso porque, o desenvolvimento
não se encontra no acúmulo de dinheiro para poucos e na superioridade entre as classes, mas na
empatia entre os seres humanos para busca de um objetivo comum: o desenvolvimento estatal, moral
e intelectual, para, assim, alcançar o bem maior: a felicidade. Em suma, relembra-se a afirmação
relacionada ao filósofo iluminista Voltaire, grande defensor da liberdade, que reiteradamente afirmava
“posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o
direito de você dizê-las” (TALLENTYRE, 1906, p. 199).

REFERÊNCIAS

BEDIN, Gilmar Antonio. Estado de Direito: tema complexo, dimensões essenciais e conceito. In:
Revista Direito em Debate, v. 22 n. 39, jan./jun., Unijuí, 2013. p. 144-152. Disponível em:
https://doi.org/10.21527/2176-6622.2013.39.144-152. Acesso em: 19 set. 2020.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004.

HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de
Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2019.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Vozes, 1999

MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Petrópolis: Vozes, 1991.

SILVA, Daniel Neves. Revolução Francesa. In: Mundo Educação. São Paulo: Uol, 2020. Disponível em:
https://mundoeducacao.uol.com.br/historiageral/revolucao-francesa.htm. Acesso em: 18 set. 2020.

TALLENTYRE, Stephen. The Friends of Voltaire. Londron: John Murray, Albemarle Street, 1906.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

FUNÇÃO MODERADORA DAS FORÇAS ARMADAS?


OS ANTECEDENTES DO GOLPE DE 1964
E A CRÍTICA A ALFRED STEPAN

Heloíse Montagner Coelho197


Thieser da Silva Farias198

“Eu vejo o futuro repetir o passado,


eu vejo um museu de grandes novidades.
O tempo não para!” (Cazuza)

RESUMO: Ao longo dos últimos anos, tem-se ouvido o ecoar de vozes defensoras de um suposto
protagonismo das Forças Armadas na vida nacional, as quais desempenhariam um papel de função
moderadora em caso de conflitos entre as instituições políticas. Tal pensamento tem origem na década
de 1970, quando o professor estadunidense Alfred Stepan produziu um estudo pioneiro sobre a Ditadura
Civil-Militar no Brasil, buscando explicar a dinâmica das relações entre as elites civis e castrense e como
isso possibilitou o êxito do levante de 1964. Assim, sem a pretensão de esgotar o tema e a partir
dos métodos dedutivo, histórico e monográfico, o presente trabalho analisa os fatores que levaram à
ruptura da ordem democrática em meados do século XX em nosso país e também quais as principais
inconsistências nas teorias de Stepan acerca do «padrão moderador» de Exército, Marinha e Aeronáutica.

Palavras-chave: Golpe. Militares. Stepan. 

INTRODUÇÃO

Em 2019, na esteira dos cinquenta e cinco anos do Golpe de Estado deflagrado contra Jango, o
Presidente da República Jair Bolsonaro determinou que os quarteis comemorassem a “Revolução de
1964” porque, nas palavras do Chefe do Executivo, “democracia e liberdade só existem quando as Forças
Armadas assim o quer (sic)”199. Tal manifestação demonstra que, para o mandatário máximo da nação,
o Exército, a Marinha e a Aeronáutica desempenham um papel de tutores da ordem constitucional,
sempre prontos a intervirem em situações de grave crise que abalem as instituições democráticas.
Apesar de causar perplexidade, esse pensamento não é novidade. Ainda na década de 1970,
o professor estadunidense Alfred Stepan produziu um estudo pioneiro sobre a Ditadura Civil-Militar
brasileira, buscando explicar, dentre outros, a dinâmica das relações entre as elites políticas civis e os
líderes castrenses e como isso, por via reflexa, possibilitou o êxito da insurreição golpista.
A tese do “padrão moderador das Forças Armadas” foi aceita durante longo interregno nas
Ciências Sociais enquanto forma de interpretar o protagonismo dos militares em eventos políticos
importantes da história republicana do país. Entretanto, com o decorrer dos anos, a mencionada teoria
passou a ser combatida tanto por historiadores quanto por cientistas sociais (sobretudo políticos)

197 Advogada. Pós-graduada em Direito Público. Acadêmica do curso de História da Universidade Federal de Santa Maria –
UFSM. E-mail: heloisemontagnercoelho@gmail.com
198 Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. E-mail: Thieserfarias94@yahoo.com.
br. membro do GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA
MARIA (GPDECON/ UFSM).
199 Discurso do Presidente Bolsonaro em cerimônia de aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais no Rio de Janeiro em 07
de março de 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/07/democracia-e-liberdade-so
-existem-se-as-forcas-armadas-quiserem-diz-bolsonaro-a-militares-no-rj.ghtml. Acesso em: 19 jul. 2019.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

dedicados à pesquisa do período 1964-1985.


Diante disso, exsurgem os seguintes questionamentos: (i) quais fatores levaram à eclosão do
levante que depôs um Presidente legítimo e inaugurou um regime autoritário no Brasil? (ii) Quais
as principais inconsistências nas ideias de Stepan? Sem a pretensão de esgotar o tema, o presente
trabalho tentará responder a essas indagações.
Para tal intento, optou-se por utilizar a metodologia dedutiva, os métodos de procedimento
histórico e monográfico e a técnica de pesquisa bibliográfica. Seu objetivo geral é analisar brevemente os
antecedentes do Golpe Militar, ao passo que seus objetivos específicos são entender a conjuntura político-
social que permitiu a implantação de um Estado de Exceção no Brasil, dissertar acerca da concepção de
Stepan em relação à atuação dos militares ao longo de importantes acontecimentos da história pátria e,
em ato contínuo, discorrer sobre os pontos controversos presentes no entendimento daquele professor.
Esse estudo justifica-se (i) pelo interesse pessoal que os autores há muito nutrem pelo assunto
ora em exame; (ii) pela relevância interdisciplinar do tema, objeto de investigação da História, do
Direito, da Ciência Política e de outras áreas afins, e (iii) pela necessidade de debater, dentro e fora da
Academia, sobre um período conturbado do passado nacional.
O artigo divide-se nos seguintes eixos: em primeiro plano, realiza-se uma contextualização
sobre a conjuntura internacional e nacional que ocasionou o acirramento das polarizações entre
grupos ligados à esquerda e à direita; em seguida, passa-se a explicar a tese da função moderadora
das Forças Armadas construída pelo brasilianista Alfred Stepan por meio de exemplos concretos que
demonstram a atuação tutora dos militares no sistema político na fase pré-1964; feito isso, narra-se a
conjuntura de causas da insurgência da caserna contra o Governo de João Goulart; por fim, traçam-se
as críticas ao pensamento de Stepan, elucidando seus aspectos inconsistentes relativos à postura dos
militares nos eventos político-sociais do século XX no Brasil.

1 BREVE CONTEXTO

Segundo Schilling (2013, p. 7), “os dez anos que separam o suicídio do presidente Getúlio
Vargas do levante contra João Goulart, em 1964, foram os mais agitados e tensos da história do Brasil
moderno”. Nesta contextualização, urge elucidar os contextos mundial e nacional relacionados ao
Golpe que encerrou o ciclo democrático inaugurado pela Constituição de 1946.
Desde o fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), a ordem mundial organizou-se sobre novas
bases, marcada pela polarização (VICENTINO, 2007) entre dois centros político-econômico-ideológicos
opostos: os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (ex-URSS).
Foram cerca de quarenta e seis anos em que as superpotências tentavam demonstrar superioridade
bélica e tecnológica (a exemplo das corridas nuclear e espacial) uma em relação à outra, além da
disputa por influência em regiões de todo o globo.
Assim, parte da Europa ocidental ficou sob a orientação do capitalismo ianque e a parcela oriental do
Velho Mundo esteve sob as ingerências do Governo de Moscou. Mas as influências não se restringiram ao
solo europeu; proliferaram-se por todos os continentes, fomentando contrastes que ocasionaram antagonis-
mos inconciliáveis entre diferentes setores internos nos países, principalmente nos menos desenvolvidos.
Tal qual Chile, Argentina e Uruguai – cada um com as suas especificidades locais -, o Brasil
inseriu-se no contexto da Guerra Fria (1945- 1991) e de expansão das ideias socialistas, sendo palco
de uma crescente polarização entre grupos divergentes desde a volta de Getúlio ao poder “nos braços
do povo”. De um lado, a grei nacionalista avessa ao imperialismo norte-americano (trabalhadores
urbanos, sindicatos, estudantes universitários, artistas, literatas e militantes do Partido Trabalhista
Brasileiro e do Partido Comunista do Brasil); do outro, setores conservadores (sob o prisma político e
de costumes) e liberais (na perspectiva econômica) simpáticos às potências ocidentais (empresariado
nacional, lideranças religiosas, alto oficialato militar e jornais de grande circulação, dentre outros).
As contrariedades entre esquerda e direita aumentaram exponencialmente durante a República
Populista de 1946 a 1964 (KOSHIBA; PEREIRA, 2003), cujos momentos de maior tensão deram-se a partir
da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. O cenário de oposições acirradas que já vinha de 1954,
perpassou as crises de 1955 e 1961 e encontrou seu ápice em 1964 contou sempre com a participação

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

das Forças Armadas enquanto “elementos” de (des)estabilização da normalidade institucional.


Por sua ação, findaram-se governos antes do término regular do mandato (Washington Luís-
1930), cessaram-se regimes despóticos (Estado Novo- 1945) e possibilitaram-se a posse de um
Presidente eleito pelo sufrágio popular (JK- 1955).
A atuação decisiva dos militares em eventos importantes da história nacional, porém, não se restringe
à era republicana. O processo de politização do Exército – a mais “popular” dentre as três Forças – deu-
se, sobremaneira, a partir da Guerra do Paraguai (1865-1870), ocasião em que tomou consciência de sua
importância enquanto organização e passou a interferir em maior ou menor grau no desenrolar dos destinos
do país, pondo fim a ciclos que julgavam ultrapassados e sendo fiadores de novas realidades sociopolíticas.
Em verdade, se os principais episódios políticos que seguiram da queda da Monarquia, em 1889,
à Redemocratização de 1985 não foram causados pelos militares, pelo menos contaram, em algum
nível, com a atuação efetiva da caserna.
O maior exemplo dessa postura proativa da classe militar foi o Golpe de 1964, responsável
por provocar uma ruptura na ordem vigente, de bases constitucionais, para erigir uma outra, em
que a legalidade foi usada para justificar toda sorte de arbítrios e perseguições aos considerados
“subversivos” durante vinte e um anos. No próximo subtópico, abordar-se-ão as primeiras hipóteses
explicativas sobre o referido levante que iniciou o ciclo de governos dos generais no Brasil.

1.1 Stepan e o padrão moderador das Forças Armadas

Ao longo da segunda metade do século XX, surgiram os primeiros trabalhos que se dedicaram
ao estudo do Regime imposto pelos homens das armas na década de 1960. Uma dessas pesquisas
pioneiras foi a do professor estadunidense Alfred Stepan, por ocasião da defesa de seu doutorado na
Universidade de Columbia, em 1969.
Publicado em 1976 com o título “Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira”,
o livro trazia em seu cerne a tese de Stepan, segundo a qual as Forças Armadas brasileiras caracterizavam-se
por seu “padrão moderador”. Ao analisar as instabilidades da experiência republicana nacional, constatou
a reiterada presença dos militares na condição de promotores das crises políticas ou de solucionadores
destas, seja por meio de deposições de mandatários, seja para fazer valer os ditames da Lei.
Mas a tese de Alfred Stepan não surgiu do acaso. Após longo estudo sobre a história do país, o
mestre estabeleceu uma comparação entre o Poder Moderador do Império e o papel desempenhado
pelas Forças Armadas já na República. No seu entendimento, estas detinham uma função velada de
tutoras do sistema político, sempre prontas a intervirem em situações de grave crise que abalassem
as instituições democráticas.
Originalmente idealizado pelo francês Benjamin Constant como “Poder Neutro”, o Poder Moderador
foi concebido no fito de aprimorar a teoria de Separação de Poderes de Montesquieu. É que, para
Constant, a divisão funcional do poder em três – Legislativo, Executivo e Judiciário, conforme apregoado
pelo autor iluminista – ocasionou um desequilíbrio na configuração política interna da França, onde os
embates entre os membros desses órgãos eram constantes, o que provocou o caos na Revolução de
1789, sobretudo nos acontecimentos durante o Terror jacobino (1792-1795) (LYNCH, 2010).
No pensamento de Constant, os três poderes clássicos, por estarem em posições equânimes e
independentes, inevitavelmente entrariam em rota de colisão tanto na interpretação da Lei quanto
no efetivo exercício de suas atribuições, o que poderia levar à sobreposição de um Poder em relação
aos demais. Logo, na busca de se impedir uma nova forma de absolutismo, fazia-se necessária a
existência de um Quarto Poder, superior e “apolítico” (LYNCH, 2010, p. 95), somente invocado em
situações de crise com vistas à garantia da ordem.
Aliando os ideias liberais que tanto modificaram a Europa no fim da Idade Moderna a um
“mecanismo” que lograsse ser o fiel da balança institucional em momentos de desequilíbrio, propugnou
Constant que devia o Poder Neutro ser exercido pelo Rei (LYNCH, 2010) porquanto este, símbolo da
unidade nacional, “não interviria na política e na administração do dia a dia e teria o papel de moderar
as disputas mais sérias e gerais” (FAUSTO, 1995, p. 152), portando a isenção necessária para arbitrar
com sapiência e restabelecer a normalidade caso fosse abalada.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

No Brasil, o citado Poder Neutro foi adotado através da Constituição Imperial de 1824, mas com
substanciais modificações, de acordo com o artigo 96 da Carta outorgada:

Art. 96 O Poder Moderador é a chave de toda organização política, e é delegado privativamente ao


imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente
vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos
(BRASIL, 1824)

O Texto Constitucional conferiu ao Poder Moderador – incorporado à pessoa do Imperador –


atribuições mais amplas que a função arbitral teorizada por Benjamin Constant, tornando-se a fonte
para o exercício pleno do poder pelo Soberano. Veja-se:

Art. 101. O imperador exerce o Poder Moderador:


I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43.
II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim
o pede o bem do Imperio.
III. Sanccionando os Decretos e Resoluções da Assembléa Geral para que tenham força de Lei.
IV. Approvando e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes.
V. Prorrogando, ou adiando a Assembléa Geral e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos
que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra que a substitua.
VI. Nomeando e demittindo livremente os Ministros de Estado.
VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154.
VIII. Perdoando e moderando as penas impostas aos Réos condemnados por Sentença.
IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do
Estado (BRASIL, 1824).

Desvirtuou-se a concepção inicial projetada por Benjamin Constant acerca de um poder neutro e
imparcial, uma vez que “o Poder Moderador não foi tão claramente separado do Executivo” (FAUSTO,
1995, p. 152). Por ele, o Monarca poderia regular a cena política ao seu alvitre, haja vista que detinha
as prerrogativas para balizar os conflitos entre autoridades, nomear ministros e juízes, destituir
parlamentares, convocar eleições e mediar as disputas pelo poder entre conservadores e liberais ao
longo do II Reinado (1849-1889).
Apesar de ter sido extinto oficialmente com o fim da Monarquia, o Poder Moderador passou a
ser exercido pelas Forças Armadas brasileiras na fase republicana, consoante depreendeu o professor
e cientista político Alfred Stepan.
Isso porque, consoante Stepan (1976), diferentemente das nações que realizaram revoluções de
combate ao absolutismo dos Monarcas e consolidaram desde cedo uma realidade pautada na limitação
do poder, na estabilidade das instituições político-jurídicas e na obediência às regras eleitorais para
escolha de representantes, os países latino-americanos tinham pouca tradição democrática, onde as
instituições eram fracas e os governos pendiam para o personalismo e o autoritarismo, fator que
abria espaço para a politização da classe militar.
Enquanto na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos (modelos de Estados democráticos
surgidos pós-revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII) a regra é que os militares sejam altamente
profissionalizados e depurados de qualquer inclinação ideológica no exercício de suas funções, no
Brasil, na Argentina e em outros territórios do continente americano a lógica é inversa.
A fragilidade dos partidos políticos (STEPAN, 1976) e a incapacidade de resolução das lideranças
civis no Parlamento às múltiplas crises (econômicas, de governabilidade e até mesmo morais
envolvendo os altos escalões do poder) motivam outros grupos políticos - normalmente na oposição
– a buscarem uma solução externa, radical e definitiva. Assim, esses mesmos grupos, na esperança de
ascenderem à Administração por um caminho fora das eleições, aliam-se aos militares para que estes
fossem seus instrumentos de ação (e consequente alteração) na realidade do país.
No sentir de Stepan (1976, p. 49), “a própria ausência de instituições políticas sólidas num país
como o Brasil teve como resultado a tentativa dos principais políticos de cooptar os militares como
força sustentadora adicional, na busca de objetivos políticos”.
Tal percepção decorre do fato de que, na maioria dos países latino-americanos,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a sociedade é “pretoriana”, no sentido de que todas as instituições – a igreja, o trabalho, os


estudantes - são altamente politizadas. Ao mesmo tempo, porém, as instituições políticas são
fracas. Nesse tipo de sociedade, os militares também são politizados e todos os grupos tentam
cooptá-los para aumentar sua força política” (STEPAN, 1976, p. 49).

À guisa de exemplo dessas relações entre civis e militares, em que “estes são chamados repetidas
vezes para agir como moderadores da vida política” (STEPAN, 1976, p. 50), tem-se a proclamação da
República (1889) e a consolidação do novo sistema governamental com os Marechais Deodoro da
Fonseca e Floriano Peixoto, o fim da República Oligárquica (1930), a deposição de Vargas (1945) e
o próprio golpe de 1964, afora outras atuações que, à diferença das primeiras aqui elencadas, não
produziram, por si só, significativas alterações no quadro institucional pátrio (vide as pressões pela
renúncia de Getúlio em 1954 e no impasse gerado pela posse de Jango na Presidência em 1961).

1.2 A (s) tentativa (s) de explicação para o Golpe

Até a primeira metade da década de 1960, destaca Stepan (1976, p. 51-52) que as Forças Armadas
comportaram-se como tutoras do sistema político, “controlando ou depondo o Executivo”, vez que
“os militares não só assumiram como também lhes foi delegado o tradicional “poder moderador”,
originariamente exercido pelo Imperador”. Daí defluem, segundo o autor, duas possíveis hipóteses
explicativas para o êxito da conspiração de 1964.
A primeira vincula o sucesso dos golpes de Estado à legitimidade conferida ao Executivo e aos
próprios militares. A segunda, a seu turno, relaciona a propensão dos militares a intervirem no cenário
político quando a coesão entre lideranças e grupos civis pró-regime é baixa e a rejeição ao Presidente
da República é alta. Em verdade, ambas as hipóteses stepanianas não são excludentes. Acontece que
uma se sobressai em relação à outra dependendo de como se examina os momentos concretos da
vida nacional, quais os episódios de 1889, 1930, 1945, 1955, 1961 e 1964.
A construção teórica de Stepan na Parte II de “Os Militares na Política” parece enfatizar a
segunda tese. Segundo ele, o autoritarismo faz parte da trajetória das sociedades dos países em
desenvolvimento, e as rupturas no regime democrático são habituais. Nelas, os militares, detentores
de relativa autonomia interna, assumiam a tarefa de garantidores da ordem em nome da estabilidade
social, recebendo da sociedade civil (políticos, empresários, clérigos e etc.) a legitimidade para
intervirem contra governantes considerados maus ou ineptos. Portanto, na correlação de forças entre
situação e oposição, o Exército simbolizava um apoio indispensável.
Assim, as múltiplas instabilidades que se abateram sobre o Governo de João Goulart abriram
espaço para a mais drástica das intervenções militares na cena política brasileira. A economia estava
em colapso. Jango herdou de seus antecessores uma inflação “incontrolável, atingindo mais de 80 %”
ao mês em 1963 (SCHILLING, 2013, p. 61), pesada dívida externa com o Fundo Monetário Internacional
e o crescimento vertiginoso do desemprego, desagradando tanto o empresariado (que já lhe era hostil
desde o segundo Governo Vargas) quanto os trabalhadores.
Nessa quadra, buscando recuperar o apoio das camadas populares, o Presidente lançou as
reformas de base, cujas metas imediatas eram a aprovação da Lei de Remessa de Lucros, a implantação
do monopólio (produção e distribuição) de energia, a reforma bancária (SCHILLING, 2013), a reforma
educacional e a mais polêmica das propostas: a reforma agrária.
Realizar mudanças tão profundas, contudo, não era fácil. Por ditames da Constituição de 1946,
o Governo precisava do apoio do Congresso Nacional. A base de apoio ao Presidente no Legislativo,
composta pela aliança entre o Partido Trabalhista Brasileiro (urbano e de base trabalhista) e o Partido
Social Democrata (conservador e de base rural – FIGUEIREDO, 1993, p. 35) enfraquecia-se na medida
em que as polarizações ideológicas transformaram o campo dos debates em arenas de antagonismos.
As propostas governistas encontraram, ao mesmo tempo, forte resistência da União Democrática
Nacional e fraco apoio dos parlamentares situacionistas, levando a um contexto de paralisia decisória
(FIGUEIREDO, 1993) e de descrença na capacidade do Governo em resolver o caos nas finanças públicas.
A falta de coesão entre as siglas apoiadoras de Jango em torno de uma agenda que trouxesse, pelos
meios institucionais e republicanos, respostas à crise econômica e a aproximação do Presidente com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

setores nacionalistas e de esquerda (Comando Geral dos Trabalhadores e Juventude Universitária


Católica, por exemplo) acionou “a mobilização (...) de toda a força direitista ou conservadora contra
Goulart” (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 510).
Ante a perda de autoridade e de legitimidade do Presidente (o qual, segundo seus adversários, havia
se unido às forças comunistas que pretendiam a sindicalização da República), não havia mais a possibilidade
de retorno. O conchavo direitista foi se organizando gradativamente ao longo do tempo até se tornar um
movimento com mais ou menos consistência, à diferença dos atos inarticulados de 1954 e 1961.
Neste, o veto dos ministros militares à posse de Jango foi resolvida por meio de uma casuística
emenda à Constituição que implantou o parlamentarismo; naquele, o tiro no peito do “pai dos pobres”
repeliu a ameaça dos oficiais de assumir à força a linha sucessória da Presidência, estabilizando-se
a realidade do país com o mandato de Juscelino Kubitschek (1956-1961). As semelhanças entre os
dois episódios são a não ruptura da ordem constitucional, a solução advinda de parâmetros legais e
a ausência de um minucioso planejamento pelas oposições ao populismo.
Para Thomas Skidmore (1988, p. 19) - outro brasilianista que, tal qual Alfred Stepan, dedicou-se ao
estudo da Ditadura -, a resposta definitiva aos impasses e controvérsias provocados pela polarização
esquerda vs. direita na segunda metade do século passado veio “do Exército, sempre o árbitro final
nas contendas da política brasileira”. De fato, em 1964, a conjuntura de forte rejeição ao Presidente
Goulart entre as classes urbanas média e alta coadunada à inércia dos setores legalistas pró-regime
viabilizaram a ação militar (DREIFUSS, 1981) que incorporava os anseios dos grupos anti-esquerdistas
há muito desejosos de eliminar os herdeiros do getulismo da administração do país.
Naquele fatídico 31 de março, concebe Stepan (1976) que os militares atingiram o ápice de
sua função moderadora não somente porque depuseram um Presidente legitimamente constituído a
partir de uma quartelada oriunda de Minas Gerais, mas porque eles mesmos assumiriam o controle
do poder político pelos anos seguintes.

2 AS INCONSISTÊNCIAS NA COMPREENSÃO DE STEPAN

Em sua tese de doutorado apresentada em 1969, publicado no Brasil em 1975 e intitulada de


“Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira”, o cientista político Alfred Stepan
defendia que a instituição militar precisava ser pensada como um subsistema dentro do sistema
político, ou seja, a instituição militar não poderia ser vista como um fator autônomo, mas sim um
subsistema que reagia conforme as mudanças no conjunto do sistema político.
A pesquisa tornou-se extremamente conhecida por ter adotado o conceito de “padrão moderador”,
isto é, no entendimento de Stepan, até 1964 houve no Brasil um padrão de relacionamento entre
os militares e os civis caracterizado como “moderador”, uma vez que os militares somente eram
chamados para depor um governo e transferi-lo para outro grupo de políticos civis, não assumindo
efetivamente o poder. No entendimento do cientista político, o poder moderador das Forças Armadas
se esgotou em 1964 com o golpe militar (STEPAN,1976; FICO, 2004).
Assim, a crise de 1964 modificou o padrão, uma vez que houve a percepção, por parte dos
militares, que as instituições civis estavam falhando, o que fez com que os militares se sentissem
diretamente ameaçados em função das tentativas de quebra de disciplina e de hierarquia no governo de
João Goulart, aliado a um pensamento que Goulart poderia dar um golpe com o apoio dos comunistas.
Além disso, a influência da doutrina de segurança nacional difundida pela Escola Superior de
Guerra fez com que as Forças Armadas adquirissem um nível de confiança, ao impulsionar a ideia de
que os militares eram responsáveis pela política no desenvolvimento nacional e que possuíam uma
solução relevante para os problemas brasileiros. Nesse sentido, os militares passaram a sentir-se
habilitados para assumir de modo direto o governo.
Ou seja, todos esses elementos fizeram com que houvesse uma mudança do padrão, uma vez
que os militares passaram a acreditar na imprescindibilidade de um governo militar autoritário apto
à concretizar transformações radicais e extinguir certos atores políticos. (STEPAN, 1976; FICO, 2004).
Mesmo exercendo grande importância no campo da ciência política, diversos pesquisadores
sinalizam para incongruências no conceito de padrão moderador desenvolvido pelo cientista político

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Alfred Stepan. O historiador e cientista político José Murilo de Carvalho defende que as organizações
militares possuem características próprias, ou seja, o funcionamento das Forças Armadas jamais pode
ser reduzido a reflexos do mundo externo, uma vez que “estas instituições, pelo fato de envolverem
todos os aspectos da vida de seus membros, desenvolvem identidade mais marcada, o que aumenta
seu grau de autonomia em relação ao mundo exterior”. (1978, p. 197).
Nesse norte, como as Forças Armadas são organizações fechadas, acabam por se encaixar
em um âmbito interno de complexidade, mas essa característica organizacional não torna essas
instituições tão somente instrumentos da sociedade civil, assim como também é impossível ponderar
que essas organizações estejam completamente imunes ao que ocorre fora dos seus muros. É
importante salientar que Carvalho desenvolve uma concepção da vertente organizacional, ou seja,
apresenta como perspectiva o estudo dos aspectos internos da instituição militar para se obter uma
compreensão da atuação política das Forças Armadas.
Ao construir o modelo moderador, Stepan argumentava que o elemento central para a com-
preensão do papel dos militares estava no exame de sua interação com as elites civis. Nesse sentido,
as Forças Armadas constituiriam, em sua abordagem, mais uma variável dependente que independen-
te. Ao construir o modelo moderador, Stepan procurava atribuir às elites civis um papel fundamental
na configuração do comportamento militar, através de sua hipótese do papel de legitimidade civil no
sucesso das intervenções das Forças Armadas.
Nesse quadro geral, parece coerente com seu esquema de análise a ideia de que, embora não sejam
politicamente irrelevantes, as características institucionais dos militares subordinam-se à interação com
o mundo civil na definição do comportamento político das Forças Armadas. Contudo, um dos pontos
mais frágeis na teoria de Stepan, foi atribuir aos militares um papel secundário no sistema de relações
com as elites civis, às quais a teoria do cientista político atribuía a iniciativa das ações (FILHO, 1993).
No entendimento do historiador Carlos Fico (2004), as principais insuficiências históricas do pensa-
mento desenvolvido por Alfred Stepan estavam na própria análise do chamado “padrão moderador”, já
que existiram interferências diretas dos militares na política brasileira antes de 1964. Além disso, é bas-
tante problemática a visão do “subsistema militar” como “variável dependente” do sistema político global.
De igual modo, é relativamente superficial a análise histórica da ideologia militar anterior ao
golpe. Afora tais fragilidades, a análise de Stepan também parece não dar conta integralmente do
problema da heterogeneidade política dos militares: embora ele faça a distinção entre grupos que
propõe sejam chamados de «internacionalistas liberais» (moderados) e «nacionalistas autoritários»
(duros), tal tipologia não parece ter muita importância para a tese da «mudança de padrão», e não
altera, a não ser nominalmente, a tipologia já consolidada na imprensa e na academia.
Seja como for, Alfred Stepan apontou, corretamente, a necessidade de se estudar os militares
considerando-se tanto suas interações com a sociedade quanto suas características específicas de
grupo especializado.
A positividade maior do livro de Stepan consistia, curiosamente, na sua simples existência, isto
é, na demonstração de que era possível pesquisar o tema, pois o autor valeu-se de material de algum
modo acessível a todos (publicações oficiais e material jornalístico, principalmente), exceto talvez
as entrevistas que obteve, para as quais contou com o fascínio que a figura do estrangeiro exerce
em alguns brasileiros. Mas, além desse aspecto de ordem heurística, outro benefício de “Os militares
na política” foi colaborar para a divulgação, notadamente entre os historiadores, das questões que
animavam amplo debate na Ciência Política e na Sociologia.
Segundo diversos especialistas na análise da era ditatorial, é inconcebível crer que a força-motriz
para a ruptura institucional de 1964 foi o fato de os militares comporem um subsistema constantemente
manipulado (ou, na linguagem empregada por Stepan, “cooptado”) pelas forças políticas civis conforme
os interesses momentâneos dos grupos situacionistas ou oposicionistas ao Governo Federal.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, o presente artigo tentou, sucintamente e à luz das ideias do professor Alfred
Stepan, explicar os antecedentes do golpe de 1964 e o plexo de variáveis que possibilitaram o sucesso

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

da insurreição, na medida em que implantou um dos mais longevos regimes autoritários da história
da América do Sul.
Ancorado em uma matriz teórica crítica que combinou estudos dos pesquisadores das Ciências
Sociais e Humanas (sobremodo do Direito, da História e da Ciência Política), o trabalho buscou demonstrar
a visão do mencionado professor sobre o “padrão moderador das Forças Armadas” durante considerável
interregno da República para, em um segundo momento, apontar as suas principais falhas. 
Em que pese o caráter vanguardista para a época (afinal, “Os Militares na Política” constituem
verdadeiro marco na produção científica dedicada à análise da Ditadura Civil-Militar brasileira), os mais
destacados resultados obtidos foram: (a) a fragilidade das teses de Stepan quando confrontadas por
outros elementos importantes e explicativos do Golpe, a citar os interesses econômicos dos grupos
empresariais (nacionais e estrangeiros ligados ao grande capital) e de outros setores conservadores
ou reacionários inclinados no combate ao avanço das propostas de esquerda (ou “subversivas”), (b)
a inconsistência substancial das hipóteses stepanianas quando tentam reduzir as Forças Armadas à
condição de “massa de manobra” de determinados segmentos políticos e sociais, por vezes demasiado
dependentes destes, haja vista que a caserna tivera objetivos semelhantes aos opositores de Jango
quando incorporou o sentimento antivarguista para deflagrar o movimento que interrompeu o ciclo
democrático iniciado em 1946, e (c) a constatação da existência de uma conspiração de forças
ultradireitistas que, de forma gradual, articularam-se em investidas contra os governos progressistas
(Getúlio - 1951/1954, posse de Juscelino - 1955, João Goulart-1961/1964) até desferirem o “tiro de
misericórdia” que fulminou a democracia e vilpendiou os postulados fundamentais do Estado de Direito. 
Neste sentido, a frase atribuída a Tancredo Neves não deixa dúvidas quanto ao movimento
antidemocrático germinado em alguns grupos desde o retorno de Getúlio à Presidência da República e
materializado na ação militar que culminou na deposição de Jango: “se não fosse o suicídio de Vargas,
1954 já teria sido 1964. Você verifica que as lideranças de 64 são as mesmas lideranças de 54, com
os mesmos objetivos”. 

REFERÊNCIAS

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430
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

GLOBALIZAÇÃO, PANDEMIA E TRABALHO


NO BRASIL CONTEMPORÂNEO:
DISRUPÇÃO E RETROCESSOS OU VIABILIDADE E CONFORMAÇÃO

Régis Natan Winkelamann200


Elenise Felzke Schonardie201

RESUMO: O texto contempla a temática do direito ao trabalho em tempos de globalização e pandemia.


Tem por objetivo demonstrar a importância do reconhecimento formal do direito ao trabalho, como um
direito fundamental de cunho social no Brasil e, suscitar novas provocações reflexivas ao leitor, no que
diz respeito a silenciar frente aos retrocessos ou avançar por caminhos ainda não construídos em busca
da viabilidade e conformação. Inicia-se a partir do reconhecimento constitucional de um direito de
cunho social, num cenário de globalização e sucessivas reformas legislativas que parecem retroceder e
ameaçar esse direito. Segue com a identificação dos reflexos advindos da crise pandêmica da Covid-19,
no universo social do trabalho no país. Observa o método de abordagem hipotético-dedutivo, através do
procedimento bibliográfico e, interpretação jurídico-sociológica, não se limitando a retórica doutrinária,
mas sim, crítico-reflexiva. Conclui, que a viabilidade de concretização do direito humano ao trabalho
depende da configuração de uma nova conformação entre os interesses da sociedade e do mercado.

Palavras-chave: Direito ao trabalho; Direitos humanos; Globalização; Pandemia.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O DIREITO AO TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE


1988 E UMA PROPOSTA REFLEXIVA

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 constitui-se num dos mais importantes
marcos da recente história democrática do país. A bem da verdade, o texto constitucional promulgado
em outubro daquele ano de 1988, inaugurou uma nova fase para a sociedade brasileira, diante da
determinação literal de que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e, tem, dentre os seus
fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, entre outros.
Uma atmosfera de júbilo espalhou-se pelo país naquele momento histórico. As reivindicações da
sociedade brasileira encontravam seu amparo legal na Carta Maior. O caminho para a observância e
a concretização de direitos e garantias (individuais e coletivas), em âmbito nacional, havia retomado
seu curso, após vinte e um anos de regime militar ditatorial202. Assim, como resultado de lutas sociais
e composições políticas, emerge a Constituição Federal de 1988, a Constituição Democrática, a
Constituição Cidadã, como é denominada.
O texto constitucional, em seu Título II, passou a disciplinar os “Direitos e Garantias
Fundamentais”, no âmbito individual e coletivo, social e político, devolvendo a esperança ao povo
brasileiro por uma vida melhor. Todavia, passados trinta e dois anos da promulgação da chamada
Constituição Cidadã, faz-se pertinente a análise de alguns aspectos relacionados aos direitos sociais

200 Acadêmico na graduação em Direito da UNIJUÍ, bolsista de Iniciação Científica PIBIC - CNPq/UNIJUÍ vinculado ao Grupo
de Pesquisa “Direitos Humanos Governança e Democracia”. E-mail: natan.rw@hotmail.com; ORCID: https://orcid.org/ 0000-
0002-1114-5892; ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/5741784556105482
201 Doutora em Ciências Sociais (UNISINOS), Mestre em Direito (UNISC), Bacharel em Direito (UNIJUI); docente permanente
do Programa de Pós-Graduação Doutorado e Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUI, vinculada à Linha de Pesquisa “De-
mocracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento”, membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Justiça Social e Susten-
tabilidade” e do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Governança e Democracia”. Advogada. Email: elenise.schonardie@
unijui.edu.br ; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9240-5886; ID Lattes: 0918929438055294.
202 O regime ditatorial ao qual nos referimos iniciou com o golpe militar de 1964, perdurando até 1985. Esse evento ca-
racteriza-se como um Golpe de Estado, na medida em que as Forças Armadas Brasileiras afastaram um presidente demo-
craticamente eleito – João Goulart.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

estabelecidos e protegidos pelo texto constitucional em vigor, em que pese ou possa pesar todas as
transformações pelas quais a sociedade brasileira passou e, continua a passar, mas agora, em um
contexto de complexas e intensas interconexões globais.
O foco da análise tem como protagonista o art. 6° do texto constitucional, que consagra o direito
ao trabalho dentre os direitos sociais aos quais o Estado está comprometido. Mas o alcance da previsão
sobre o direito ao trabalho, vai muito além de simples menção, dentro da construção da Carta brasileira
de 1988. O direito ao trabalho exerce papel fundamental na ideia e estrutura de um Estado democrático e
com compromisso dirigente para com a construção de um futuro mais equitativo da sociedade nacional.203
De tal modo, quando a Constituição Federal de 1988 – CF/88, designa o Estado brasileiro como
democrático de direito, no Art. 1°, o trabalho é alcunhado como um dos fundamentos sociais da
República — inciso IV do artigo supra citado. Esta definição é tão significativa que irá repercutir,
por exemplo, no art. 205 do mesmo texto constitucional, estabelecendo que até a educação, dentre
outros objetivos, será incentivada visando a “[...] qualificação para o trabalho.” (BRASIL, 1988)
No ápice desta construção, conforme o art. 170, a valorização do trabalho humano é alocada dentre
os fundamentos da ordem econômica nacional, tendo por fim assegurar a todos uma existência digna,
observando — dentre outros — o princípio do pleno emprego. Todos estes ditames, objetivos e compro-
missos, levados a serem garantidos mediante a providencia de uma justiça especializada nesta matéria, a
justiça do trabalho, tendo a sua organização extensamente indicada no texto constitucional. (BRASIL, 1988)
Além das diversas legislações infraconstitucionais, da qual a principal é a Consolidação das
Leis Trabalhistas (CLT), que foi recepcionada pelo texto constitucional. O destaque dado ao direito do
trabalho na Carta Magna mostra a importância que ele exerce na manutenção da dignidade da pessoa
humana e na construção da sociedade brasileira.
Entretanto, nem sempre foi assim, importa lembrar que o entendimento — relativo ao trabalhado
e o conjunto de direitos trabalhistas — acima exposto é extremamente recente na história mundial e,
mais ainda, na brasileira. A Constituição atual tem apenas 32 anos e a consolidação das leis trabalhistas
data de 1943, sendo que as legislações anteriores eram bem mais restritivas a este respeito e não
especializadas na matéria — a relação trabalhista era vista como um apêndice da matéria civil, disto
testemunha o antigo código civil de 1916 (MORAES, 2008). A relação de trabalho escravagista no
Brasil (espectralmente antagônica aos valores do direito trabalhista de hoje), por exemplo, quase
adentrou em legalidade o século XX, sendo abolida apenas em 1888. Logo, “Com vistas a melhor
entender a criação do Direito do Trabalho no Brasil, é mister concebermos a substituição do trabalho
escravo pelo assalariado e a concomitante mudança jurídico-política.” (MORAES, 2008, p. 12)
A situação em que os direitos trabalhistas foram sendo construídos no Brasil, numa perspectiva
histórica, pode ser descrita como “[...] um barril de pólvora, baseado num distanciamento muito grande
entre os donos do poder e os trabalhadores.” (MORAES, 2008, p. 12). Sistematizando em poucas palavras:

No mundo do trabalho, temos a substituição crescente e gradativa da mão-de-obra negra escrava


pela do emigrante branco; [no início do séc. XX] está em curso, ainda, a criação de sindicatos –
sem a tutela do Estado – bastante combativos e com orientação anarquista. Para os negros recém-
libertos, número bastante relevante na sociedade, não existia qualquer política de reparação de
danos, nem políticas públicas de inclusão. (MORAES, 2008, p.12)

A conquista de direitos trabalhistas no Brasil, assim como em todo o mundo, não se consagrou
sem muitas lutas — como as greves gerais de 1917, 1918 e 1919 que fizeram os trabalhadores serem
enxergados pela sociedade brasileira (MORAES, 2008) — em prol da aceitação e da busca (ainda
incompleta) pela efetivação. Neste sentido, tais direitos fazem parte de uma construção conflitiva
evolutiva do espaço social.
Hoje em dia o direito ao trabalho é entendido como um direito fundamental (direitos instituídos
pela constituição, que visão garantir um mínimo existencial, algo sem o qual o homem não consegue
sobreviver); fica compreendido — dentro do desenvolvimento histórico de tais direitos — naquilo que
é considerada a segunda geração (ou dimensão) dos direitos fundamentais, estes direitos, como a
própria constituição já versa, são os direitos sociais. (SANTOS, 2015; SARLET, 2003)

203 Ver Sarlet (2003).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Os direitos sociais advieram como parte de uma fase de desenvolvimento dos direitos humanos
e do Estado moderno (a segunda geração/dimensão dos direitos e o Welfare State ou Estado social);
passam a ser alcançados quando o Estado sai do primeiro estágio liberal e passa a ter influência marxista
através das pressões sociais das organizações de trabalhadores criadas no final do século XIX e decorrer
do XX. (WINKELMANN; SCHORNADIE, 2019; MORAES, 2008). Sendo mais assertivo, é na primeira metade
do século XX que ocorre a expansão dos direitos sociais, e sua consolidação, no período pós-guerras,
impelidas por reivindicações de grupos organizados e exigências do desenvolvimento econômico, para
uns, e consequência dos processos de democratização - social democracia, para outros.
O fato a considerar é que o direito ao trabalho, enquanto direito social, é fruto de reivindicações,
de conflitos de interesses antagônicos que ocorriam, concomitantemente, com o desenrolar de uma
evolução que era social, cultural e econômica, em nossas sociedades. E, em razão das transformações
operadas por essa evolução, garantir aos seres humanos – homens e mulheres – o direito ao trabalho
como elemento constituinte de sua condição humana.

1 OS DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO

Quando pensamos que os direitos trabalhistas são tão recentes e ao mesmo tempo um movimento
inconcluso, a globalização se apresenta como um grande desafio, pois, é um complexo desenvolvimento
de fluxo e refluxo204 que acomete todas as bases da sociedade, incidindo, inevitavelmente, sobre os
direitos sociais, dos quais o trabalho faz parte.
A globalização é um fenômeno extremamente complexo e as análises sobre ele se espraiam por
muitas conclusões por vezes antagônicas. Neste sentido, é difícil definir sua influência especifica so-
bre determinada faceta da organização social contemporânea. Entretanto, ela está aí, numa materia-
lidade, sem necessariamente medir o sentido para o qual caminham seus efeitos, ela definitivamente
existe. (HELD; MCGREW, 2001)
É uma realidade a qual precisamos nos acostumar e aprender a conviver, pois, “Queiramos ou
não, avança incessantemente. Inexoravelmente vai tomando os espaços da vida social, estabelecendo
novas formas de relação, reordenando os processos sociais em função de suas próprias demandas
sistêmicas.» (JULIOS-CAMPUZANO, 2008, p. 20)
Existem benefícios nesta nova realidade, possibilidades as quais a pouco tempo atrás eram
inimagináveis e hoje são comuns, ou podem sê-lo, trazendo grandes benignidades, basta saber
administrar e interpretar tais novidades. (BHAGWATI, 2004) Todavia, para muitos, estes benefícios não
chegam significativamente e há muitas mazelas que acompanham o processo de globalização que,
para estes, tornam o movimento de globalização extremamente perverso. (SANTOS, 2001)
Ao refletir sobre o direito ao trabalho, um dos efeitos da globalização que logo salta aos olhos
é fragilização da soberania, como consequência, a dificuldade do Estado em fazer cumprir aquilo que
está disposto em sua constituição.

É claro que não se apagam o princípio da soberania nem o Estado-nação, mas são radicalmente
abalados em suas prerrogativas, tanto que se limitam drasticamente, ou simplesmente anulam,
as possibilidades de projetos de capitalismo nacional e socialismo nacional. (IANNI, 1996, p. 34)

No cenário atual muitos outros atores (concorrentes) estão batendo páreo com o Estado e dificultan-
do sua ação. Esta instituição que guiou a modernidade, sendo um de seus paradigmas, hoje se encontra
numa tremenda corda bamba e com falta de jogo de cintura para superar seus desafios. Em certo sentido,
com alguma falta de vontade, mas, também, extremamente acometida pelo cenário predatório no qual o
leviatã não é mais o ápice da cadeia alimentar. (IANNI, 1996; SANTOS, 2001; JULIOS-CAMPUZANO, 2008)
Ciente destes movimentos, das dificuldades que os direitos sociais encontram — primeiro por
já serem pouco incrementados e incentivados pelas vontades políticas dominantes, segundo, pelas
complexidades da globalização — as Nações Unidas lançaram algumas metas — 17 objetivos de
desenvolvimento sustentável —, das quais a oitava versa sobre o direito ao trabalho, pondo, dentre

204 Ver neste sentido, Odete Maria de Oliveira “Teorias globais: elementos e estruturas” (2005) vol. 1

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

vários pontos o seguinte: “Até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e trabalho decente para
todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração
igual para trabalho de igual valor.” (ONU, 2020)
Certamente uma meta, visto os desenvolvimentos atuais, que flerta com a utopia. Não restam
dúvidas de que os direitos trabalhistas são um grande ganho e, também, uma oportunidade conformativa
da sociedade em busca de um ideal de equidade. Porém, não se concretizam apenas com boa vontade,
para sua existência é necessário viabilidade e luta. Neste sentido, é oportuno lembrar que:

[...] os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem
quando o aumento do poder do homem sobre o homem — que acompanha inevitavelmente o
progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros
homens — ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as
suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder;
remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de
modo protetor. (BOBBIO, 1992, p. 6)

Não que a busca de alvos utópicos deva ser descartada, pois, como afirma Darcísio Corrêa
(2002), a construção do espaço público é sempre um misto do conflito entre a atuação utópica pela
transformação e a ideológica pela continuidade. Entretanto, para que as proposições teóricas não
caiam em um descolamento da realidade e tornem-se elucubrações inúteis, devem sempre trabalhar
a necessidade de conformação da realidade paralela a propostas viáveis para tal realização. E, essa
viabilidade, tanto em relação a levar a vontade política ao ato de conformação, quanto na possibilidade
material de realização desta conformação, são os maiores desafios da atualidade para o Direito e, por
seguinte, para o direito social ao trabalho.

2 REFORMAS TRABALHISTAS RECENTES: DISRUPÇÃO E RETROCESSOS

Embora a Constituição Federal estabeleça o espirito geral do entendimento acerca do direito


ao trabalho e seu conjunto protetivo do trabalhador brasileiro, temos como face de atuação prática,
regulamentando de forma mais direta a matéria, as legislações complementares.
A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), apesar de ser anterior a constituição (datando de
1943) e oriunda de decreto-lei, foi recepcionada como lei ordinária no novo ordenamento jurídico
— sendo a principal fonte a complementar a constituição, regulando o direito ao trabalho. Desde o
advento da nova Constituição e toda a constitucionalização do sistema que ela proporcionou, influindo
sobre a interpretação dos diplomas já existentes e na feitura dos novos, não houve (de forma alguma)
um congelamento estático na regulamentação do direito social do trabalho. Muito pelo contrário,
ocorreram mudanças legislativas e interpretativas objetivando acompanhar o caminhar da sociedade
e adequar as normas a devida conformação do ambiente social.
As últimas alterações significativas que influíram sobre a regulamentação trabalhistas
aconteceram em um período recente, através da lei 13.467 de 2017, que alterou significativamente a
CLT, sob o pretexto de modernizá-la e a Medida Provisória da liberdade econômica, lei 13.874 de 2019
que tem aplicação residual as relações trabalhistas. Ambas as reformas buscaram trazer adequações
ao cenário de mercado, na sua maior parte reduzindo exigências legais em nome da manutenção
e criação de empregos, haja a vista o cenário predativo de competição econômica atual e a crise
econômica desencadeada pela crise política vivida pelo país — dentre outros fatores — que fazem a
busca por trabalhadores se tornar escassa.
O objetivo deste artigo não é analisar analiticamente e valorar cada alteração feita com as edições
dos diplomas legais denominados reformas trabalhistas, mas, indicar que tais iniciativas fazem parte
de ações de governança voltadas a se adequar as novas realidades econômicas predominantes,
que fazem com que seja praticamente impossível ao Estado controlar soberanamente a atividade
econômica. E, isso é uma das consequências da globalização em seu aspecto econômico.
Aliás, o que se observou naquele ano de 2017, foi a prevalência do paradigma econômico e seu
poder incidindo sobre a criação da lei. No caso, a legislação trabalhista que regulamenta o direito
fundamental ao trabalho, cuja finalidade é a proteção do trabalhador, uma vez que este encontra-

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se em posição de desvantagem em relação ao poder do capital e de seus detentores, passou a ser


instrumento de manipulação dos interesses econômicos que, em meio a uma enorme crise política,
visualizaram uma oportunidade para “passar a boiada”, ou seja, concretizar suas intenções em prol
do mercado, reduzindo direitos e garantias socais dos trabalhadores.

Em agosto de 2017, com 55% de aprovação, segundo o Ibope, a menor de um presidente desde
a redemocratização do país, Michel Temer podia fazer – e fez – todas as maldades e concessões
que precisou para continuar no Planalto. Não precisa dar qualquer satisfação à população, porque
não tinha nenhuma expectativa de recuperar a popularidade que nunca teve – e que, depois das
evidências de corrupção, não tinha nenhuma chance de conquistar. (BRUM, 2019, p. 160)

Como descrevem Dias e Nunes da Silva (2017) em concordância com Guimaraes Junior e Barbosa
da Silva (2020): as reformas trabalhistas brasileiras dos últimos anos são ações de governança que
se traçam em consonância com as tendências econômicas mundiais iniciadas a partir das décadas de
70 e 80 e que vieram a ganhar espaço no cenário brasileiro mais fortemente a partir da década de 90,
buscando desregular, flexibilizar, privatizar e possibilitar a terceirização das atividades econômicas.
Tendências que crescem junto ao processo de globalização em seu viés econômico atual e são
denominadas por alguns autores de políticas neoliberais.
Os reflexos das mudanças podem trazer modernização e possibilidade de competição no cenário
econômico, se traduzindo em benefícios econômicos, criação de empregos e crescimento da riqueza
(DIAS e N. SILVA, 2017). Mas, também, colocar o trabalhador em um estado de vulnerabilidade social
em que seus direitos são suprimidos e é ocasionada a precarização do trabalho (JUNIOR e B. SILVA,
2020). Todavia, essas reformas até o presente momento não foram benéficas aos trabalhadores
brasileiros, pois estes não tem conseguido retomar postos de trabalhados perdidos ou extintos.

3 REFLEXOS DA PANDEMIA DE COVID-19: MUITO MAIS DO MESMO

O ano de 2020, definitivamente, entrou para a história global, caracterizado por um evento
biológico de proporções globais e multidimensional. Este fato, de grande relevância e implicações
complexas, influiu sobre todos os aspectos da vida social, mas, sem dúvidas, com consequências
extremamente pesadas sobre a ordem econômica nacional e sobre o direito ao trabalho: a pandemia
mundial de COVID-19205. O vírus altamente contagioso infectou milhares de pessoas na China e
rapidamente espalhou-se pelo mundo chegando, também, ao Brasil.
Para além das preocupações em relação aos riscos à saúde e à morte de pessoas, essa situação
pandêmica acelerou e acentuou os problemas sociais e econômicos do Brasil, que encontrava-se imerso
e, de certa forma, refém de uma grave crise política com severas repercussões econômicas. Vejamos,

Segundo a Síntese de Indicadores Sociais – SIS, o mercado de trabalho brasileiro mostrou que a taxa
de desocupação era de 6,9% em 2014 e subiu para 12,5% em 2017, o equivalente a 6,2 milhões de
pessoas desocupadas a mais entre 2014 e 2017 (IBGE, 2018). O estudo aponta que o crescimento da
taxa de desocupação cresceu em todas as regiões e em todos os grupos etários. Com isso, observou-
se, também, um aumento em relação ao trabalho informal que no ano de 2017 alcançou 37,3 milhões
de pessoas, o que representava 40,8% da população ocupada, ou dois em cada cinco trabalhadores
do país. Em comparação com o ano de 2014, esse contingente aumentou em 1,2 milhões de pessoas,
quando representava 39,1% da população ocupada. (IBGE apud BEDIN; SCHONARDIE, 2019, p. 193)

Ocorre que, mesmo antes da chegada da pandemia ao país já enfrentava grande dificuldade em
dar eficácia ao direito social ao trabalho. E, com a pandemia, isso se agravou. Segundo dados do SUS,
em território nacional chegamos a mais de 4 milhões e meio de casos confirmados e mais de 130
mil mortes em decorrência da infecção viral206 (SUS ANALITICO, 2020). A facilidade de transmissão e

205 Em 11 de março de 2020, Tedros Adhanom, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou que a or-
ganização elevou o estado da contaminação à pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2).
Segundo a OMS a classificação da doença como pandemia, não se deve a sua gravidade, mas sua rápida capacidade de
disseminação geográfica.
206 Dados averiguados e atualizados até o momento da escrita em 23/09 /2020

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

inexistência de uma vacina eficaz levaram a adoção de “lockdown207” em alguns países e em toda a
parte de medidas de distanciamento social controlado. No Brasil, algumas cidades – em geral capital de
estados, onde há intensa aglomeração humana – também, foi utilizada tal medida. Muitas atividades
consideradas não essenciais, por decreto federal, foram, totalmente, paralisadas e, também, ocorreram
a substituição de atividades presenciais pôr atividades a distância de forma online.
Devido a impossibilidade de circulação e paralização de muitas atividades o consumo diminuiu e a
economia sofreu drástica desaceleração, certamente sofrerá ainda muitos reflexos de recessão e dificuldades
para a retomada dos patamares anteriores. O PIB brasileiro, em meio aos efeitos da pandemia, no segundo
trimestre de 2020 teve uma queda histórica de 9,7% em relação ao primeiro trimestre do ano (IBGE, 2020a).
A taxa de desocupação no país que na primeira semana de maio era de 10,5 %, passou para 14,3% na
quarta semana de agosto (IBGE, 2020b). Isto significa um total de 13,7 milhões de pessoas desempregadas
no país, que estavam à procura de trabalho formal. Nesse total, não estão incluídas aquelas pessoas que
desistiram de procurar uma ocupação formal, ou que estavam impedidas de fazê-lo, por motivos diversos.
Todos estes fatores interferem sobre a ordem econômica e sobre a eficácia do direito social ao
trabalho. Pois, assim como o trabalho é um direito humano não se pode esquecer que também o é uma
atividade econômica. Neste sentido, adentra em campo a necessidade de uma análise interdisciplinar e
multidimensional da matéria, pois, apenas constatações formalistas a respeito da matéria de lei positiva
não serão suficientes para desvendar um caminho tão complexo como o é a missão de conformação da
realidade posta ao direito, dentro de um Estado democrático de direito, na atual realidade do mundo.

4 DIREITOS TRABALHISTAS: VIABILIDADE E CONFORMAÇÃO NA ATUALIDADE

Quando se pensa de modo holístico logo percebe-se que a discussão relativa a realização pratica dos
direitos sociais hoje — logicamente tal raciocínio se estende também ao direito ao trabalho — encontra-
se dentre duas facticidades: primeiro a necessidade de conformação da realidade, que é a vocação do
direito e, segundo, a necessidade de viabilidade desta conformação na ordem atual da sociedade, visto
que o cenário onde tais direitos foram criados já não é mais o mesmo. Hoje, observando a performance do
Estado como instrumento de efetivação do Direito, constatamos que “A dinâmica das relações processos
e estruturas que constituem a globalização reduzem ou anulam os espaços de soberania, inclusive para
nações desenvolvidas, dominantes, centrais, do norte ou do Primeiro Mundo.” (IANNI, 1996, pg. 68)
O mundo de hoje não é mais o mesmo do século XX, ele mudou e continua mudando rapidamente,
em decorrência das revoluções técnicas que inundam, interligam e transformam as pessoas e a realidade.
Tudo isso faz com que o mundo se torne interdependente e o pensamento do Estado enquanto paradigma
social totalmente soberano e encarregado da justiça social: apenas uma lembrança, pois:

As alterações ocorridas nas relações de trabalho, as transformações econômicas e tecnológicas, os novos


modelos de família com a incorporação da mulher ao mercado de trabalho e o aumento das demandas
por serviços públicos, acabaram provocando uma redefinição nas funções do Estado de Bem-Estar que
já não pode proporcionar os mesmos bens e serviços que vinha proporcionando. (MARTÍN, 2005, p. 72)

O que ocorre é que, diferentemente do início do século XX, momento no qual os direitos sociais se ex-
pandiam e consolidaram, onde o Estado era orbitado por todas as demais forças sociais — pois a sociedade
praticamente se conformava ao âmbito nacional — hoje existe um trânsito intenso internacional das deman-
das culturais, tecnológicas, e principalmente econômicas que caminham em um sentido inverso daquele.

Efetivamente, a globalização dos mercados não foi acompanhada de um processo simultâneo de


caráter global nos âmbitos jurídico e político. Essa situação propiciou a emergência de um capitalismo
global cuja capacidade de gestão se sobrepõe às próprias estruturas estatais e limita severamente
os âmbitos de decisão política em nível interno. O impacto da crise do Estado no âmbito jurídico
se traduz em uma crescente perda de capacidade reguladora, no debilitamento do estatuto das
liberdades e em ameaças para a garantia dos direitos humanos. (JULIOS-CAMPUZANO, 2008, p. 27)

207 Expressão que traduzida para a língua portuguesa significa bloqueio total ou confinamento; é um protocolo de isola-
mento que geralmente impede que pessoas ou cargas de animais e objetos deixem uma área. Esse protocolo de isolamento,
no caso brasileiro, somente pode ser iniciado pela autoridade político-administrativa local (o prefeito municipal).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Logo, numa visão evolutiva, o monstruoso e dominante Leviatã estatal acabou ficando para
traz na seleção natural, agora tem necessidade de compartilhar território com outros predadores
e se torna até mesmo presa de alguns. Na atualidade “[...] a sociedade nacional não dá conta, nem
empírica nem metodologicamente, nem histórica ou teoricamente, de toda a realidade na qual se
inserem indivíduos e classes, nações e nacionalidades, culturas e civilizações.” (IANNI, 1996, p. 191).
Entretanto, se o Leviatã não tem mais a mesma energia ao liderar o seu bando, não se pode simplificar
o problema a ponto de entregar o cargo de guia ao primeiro macho alfa inconstante, sem controle, que se
candidatar a substitui-lo, simplesmente baseando-se em uma demonstração de forças (econômicas). “A
gravidade e a relevância dos problemas que a globalização [enquanto redefinição da realidade] apresenta,
determinam que esses não podem ser abordados com êxito nem pelos Estados de maneira exclusiva ou
unilateral, nem pelo mercado global desregulado.” (JULIOS-CAMPUZANO, 2008, p. 81)
Tal realidade é tão complexa, premente e urgente que “Assumir essa situação é algo prioritário: há que
se ter em conta que o mundo já não voltará a ser o que era, que uma nova ordem começa a emergir e que
nos incumbe a responsabilidade de modelá-lo” (JULIOS-CAMPUZANO, 2008, p. 34). Neste sentido, entra a
responsabilidade de conformação da realidade e a busca de viabilização desta ação ligada ao direito social ao
trabalho. Pois, como todos os direitos sociais, frágeis por serem recentes na construção histórica, ainda não
totalmente efetivados e dependerem muito da contraprestação do Estado — no cenário contingente atual —
acabam sendo os primeiros membros do bando a serem jogados aos predadores com a fragilização do líder.
A complexidade da situação vai além de simplesmente alçar a solução propondo garantias
legislativas formais aos direitos, pois, ao se fechar numa realidade teórica ou fugir do processo de
transformação da realidade atual acaba-se se deparando com a constatação de que além da competição
com o Estado “[...] o sistema técnico dominante no mundo de hoje tem uma outra característica, isto
é, a de ser invasor. Ele não se contenta em ficar ali onde primeiro se instala e busca espalhar-se, na
produção e no território.” (SANTOS, 2001, p. 26). Assim, o capitalismo global se espalha, transforma
e impele por todos os lados, queiramos ou não.

No território, a finança global instala-se como a regra das regras, um conjunto de normas que escorre,
imperioso, sobre a totalidade do edifício social, ignorando as estruturas vigentes, para melhor poder
contrariá-las, impondo outras estruturas. No lugar, a finança global se exerce pela existência das
pessoas, das empresas, das instituições, criando perplexidades[...]. (M. SANTOS, 2001, p. 101)

Existem duas variáveis somadas resultando nesta impetuosidade contingenciadora da capacidade


de articulação do Estado ao redor de suas políticas públicas, afetando diretamente a discussão acerca
das medidas de reforma das legislações trabalhistas. A primeira, sim, como já advertido, refere-se

As limitações que a governabilidade do sistema financeiro global introduz, no âmbito das políticas
públicas estatais, [que] provocam a necessidade de adaptação e ajuste dessas às margens da
disponibilidade do sistema. Isso supõe que as políticas econômicas dos Estados devem adaptar-
se às exigências do mercado global se desejam entrar no círculo da competitividade econômica,
cujas regras são ditadas por instâncias de poder difusas cuja legitimidade não é outra que a
outorga a concentração de capital e de recursos produtivos. (JULIOS-CAMPUZANO, 2008, pg. 54)

Além disto, porém, a segunda variável é relativa à sedução que as vantagens da inclusão no
capitalismo global despertam e fazem com que além de um aspecto de imposição possa se dizer que
“Há, também, uma vontade de adaptação às novas condições do dinheiro, já que a fluidez financeira
é considerada uma necessidade para ser competitivo e, consequentemente, exitoso no mundo
globalizado.” (SANTOS, 2001, p. 102)
Assim a fragilização e enfraquecimento do Estado (consequentemente — mas talvez inconsciente-
mente — a fragilização dos direitos sociais, em vias do patrocínio do enfraquecimento do seu único meio
atual de efetivação democrática e impositiva: o Estado) não é só imposta, senão, também, requerida, bus-
cada, almejada não apenas pelos atores globais como também pelos próprios beneficiários destes direi-
tos, e por toda a sociedade. Em consequência da busca desenfreada pela inclusão no mundo de consumo.
Algo que Milton Santos chamaria de Ideologia, o que se enquadra bem ao pensamento de
manutenção do status quo que proporciona, mas, não deixa de ser de todo ilógico (uma ideologia
totalmente cega). Ao homem médio que não toma parte diretamente decisiva no direcionamento das
tendências políticas, econômicas, jurídicas, nem toma tempo refletindo acerca dos complexos problemas
437
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

aqui expostos: comprar produtos chineses — ao invés dos locais — e assim fortalecer cada vez mais o
sistema capitalista transnacional, economizando seu dinheiro com preços mais baixos, parece ser um
ótimo negócio. Um negócio que não sinaliza demonstrar sinais de falência em tempos próximos.
Seria demais inferir, por exemplo, que até mesmo o dispositivo onde se lê este texto, ou os
componentes eletrônicos que o constituem, foram adquiridos fortalecendo tal sistema de negócio?
Assim, a ordem da competição vai tomando a centralidade na sociedade e influindo diretamente na via-
bilidade e capacidade de conformação do Direito, com consequências marcantes sobre o direito ao trabalho,
como demonstram as reformas trabalhistas levadas a cabo recentemente no Brasil. Isso acontece porque

Num mundo globalizado, regiões e cidades são chamadas a competir e, diante das regras atuais
da produção e dos imperativos atuais do consumo, a competitividade se torna também uma
regra da convivência entre as pessoas. A necessidade de competir é, aliás, legitimada por uma
ideologia largamente aceita e difundida, na medida em que a desobediência às suas regras implica
perder posições e, até mesmo, desaparecer do cenário econômico. Criam-se, desse modo, novos
“valores” em todos os planos, uma nova “ética” pervasiva e operacional face aos mecanismos da
globalização. (SANTOS, 2001, p. 57)

Neste cenário que se instaura “A competitividade tem a guerra como norma. Há, a todo custo,
que vencer o outro, esmagando-o, para tomar seu lugar.” (SANTOS, 2001, p. 46), tanto no ambiente
privado como nas relações entre Estados e localidades. Todos contra todos, entretanto, curiosamente,
ao mesmo tempo, interdependentes!
Resistiremos por uma outra globalização? Uma nova ordem mundial? Quem o fará? Como o fará?
Terá capacidade para isso? Se esgotará o sistema ou se reinventará como parece estar fazendo? Qual
será a alternativa? Será uma alternativa realmente melhor? As perguntas falam por si quando o que se
pretende responder é o tamanho da complexidade de tal matéria.
Há também que se advertir ainda que a globalização não se reduz a um processo econômico recente.
“A gênese da globalização encontra registros em tempos longínquos, podendo-se mesmo dizer remotos.
Trata-se de fenômeno que apresenta longo, complexo, desigual percurso e que se movimenta entre fluxos
e refluxos — avanços e retrocessos [...]” (OLIVEIRA, 2005, p. 171) Abarca tanto desenvolvimentos econômi-
cos, como políticos, religiosos, históricos, jurídicos, tecnológicos, culturais... enfim, todos os aspectos da
vida social (OLIVEIRA, 2005; HELD; MCGREW, 2001) — Até mesmo sanitários, como bem demonstra a Pan-
demia ocasionada pelo vírus da COVID-19. Nem pode ser de todo considerada perversa. Não se jogue fora
a água suja do banho com a criança dentro. Muitos avanços que nenhum de nós pensaria em se desfazer
foram proporcionados por esta realidade que interliga o mundo. Neste sentido adverte Julios-Campuzano

A reciprocidade dessas dinâmicas não nos pode induzir à confusão: a interdependência é uma realidade
irreversível e não é necessariamente negativa. Lembra-nos que o mundo fracionado do Estado-nação
está deixando de existir, que, em sua configuração tradicional, está próximo a exalar o último suspiro,
que a realidade não pode fracionar-se em espaços geográficos isolados, pois as partes são cada vez
mais peças de uma totalidade na qual todos se encaixam. (JULIOS-CAMPUZANO, 2008, p. 31)

Logo a chamada a reflexão crítica e a sua necessidade se agigantam diante da complexa pergunta:
como proceder? De fato, na leitura das políticas neoliberais pode se dizer que muitas delas significam
retrocessos na questão da efetivação dos direitos sociais (BEDIN, 1998). O que está longe de significar
que a resposta seja simplesmente dar meia volta e retornar para onde estávamos.

[...] a realidade não pode ser vista de soslaio, como se nada que acontece ao seu redor pudesse
inquietar as certezas consolidadas de um saber arrogante e auto-suficiente. O direito necessita
respostas a questões novas e também a questões de sempre. As que existem não nos permitem
afrontar com êxito os desafios de nosso tempo, umas porque são estéreis, por que nunca serviram
outras porque são simplesmente ultrapassadas. (JULIOS-CAMPUZANO, 2008, p. 39)

Num palpite arriscado, poder-se-ia, quem sabe, se inferir que o caminho talvez estaria em entrar
à baila e tentar aprender a dançar a nova música, não se conformando com as coreografias dadas,
mas, aos poucos contribuindo (conformando-a —não enquanto objeto, sim como sujeito democrático
do ato) na criação de novos passos e na conformação viável da realidade da dança.

438
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo procurou demonstrar que o reconhecimento formal do direito ao trabalho,


como processo histórico importante, é decorrente da evolução social conflitiva que operou-se ao
longo século XX. Em especial, que o processo de redemocratização brasileiro, inaugurado com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, é um marco histórico e jurídico essencial para a
concretização do direito ao trabalho, como um direito fundamental de cunho social.
Também, ocupou-se em demonstrar as imbricações e consequências advindas do fenômeno
da globalização e suas complexidades disruptiva ao mundo do trabalho, em sua dimensão real,
vivenciada pela sociedade brasileira. Tais como, a fragilização do Estado, a influência do poder
econômico nas dinâmicas sociais e, até mesmo, na produção da lei.
Do mesmo modo, demonstrou-se que mesmo antes da pandemia da Covid-19, o país imerso em uma
grave crise política, já sofria as mazelas da não efetivação do direito ao trabalho, seja em razão do alto
índice de desemprego, seja em razão das reformas à lei trabalhista que reduziam garantias e fragilizavam
o direito de milhões de brasileiros. Nesse sentido, o ideal do pleno emprego, da redução das desigualdades
e do acesso ao trabalho formal estão cada vez mais longe da realidade do povo brasileiro – as esperanças
renovadas pela Constituição de 1988, de um futuro melhor, estão longe de tornarem-se realidade.
Por fim, a acomodação e a estagnação não farão com que os direitos sociais, em especial o direito
ao trabalho, escorram por entre os dedos da nossa sociedade! Sabemos que a resposta e as ações para
tanto, ainda não estão prontas e definidas. Até o momento, é certo que precisamos construir novas
conformações - políticas, econômicas, sociais e culturais – na ordem global que se apresenta, para
então, viabilizar a efetivação do pleno emprego e dignidade do trabalhador. Em outras palavras, um
novo arranjo (pois o que está colocado não serve, já demostrou que não serve!) entre os interesses
da sociedade e do mercado. E, por gentileza, que não se confunda conformação desempenhada
enquanto sujeito democrático, com conformar-se enquanto objeto (acomodação).

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440
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

HUMANIZAÇÃO DOS DIREITOS NO OLHAR DO CUMPRIMENTO


DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS DOS ATOS INFRACIONAIS

Dieniffer Portela Perotto Lopes208


Fernanda Parussolo209

RESUMO: Com a evolução da sociedade, veio conjuntamente a evolução da proteção das crianças e
adolescentes por intermédio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que típica condutas recusáveis
para vida em sociedade, e que no direito penal são tipificadas como crime, em sede de ECA, são chamados
de atos infracionais, cujo objetivo é sócio educar o menor dito aqui infrator, para fins de que sua vida
adulta pode ser resguardada com as lições aprendidas nesta fase, o presente artigo tem como foco analisar
o quão humanizadas são estas medidas socioeducativas aplicadas aos atos infracionais praticados.

Palavras-chaves: Criança. Adolescente. ECA. Infracionais. Socioeducativas.

INTRODUÇÃO

Em uma sociedade de regra capitalista, que vive em busca constante da evolução econômica, vê-se a
discrepância entre as classes sociais E e A210, o que denota-se a grande diferença de oportunidades e benefícios
tanto alimentares, tecnológicos, estruturais familiares, quanto educacional, fazendo com que muitas vezes
esta relativa diferença seja o maior fator de motivação para o cometimento do ato infracional praticado por
adolescentes, os quais tem sua idade classificada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conforme
cita Charles Maciel Bitencourt, Juiz da 3ª Vara Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre:

Em regra, jovens que começam no ato infracional cedo não têm pensamento crítico, não
permaneceram na escola, falta alimento, falta tudo que possa imaginar de subsistência. A família
acaba se desestruturando por conta disso. O jovem quer ter um tênis, uma camiseta. Coisas da idade.
Ele também quer sentir que pertence a um grupo. Se não consegue na escola, qual grupo ele vai se
envolver? O crime. A ausência da frequência na escola, aliada à vulnerabilidade e carência econômica,
resulta no perfil dos jovens que cometem atos infracionais. O que o Estado não abraça o estado paralelo
abraça. E, por óbvio, quem tem controle do crime organizado são os adultos. Infelizmente, utilizam
como mão de obra os adolescentes. Pergunto para os jovens que sentam à minha frente se estavam na
escola ou não. E 90% não estavam indo na aula. É o meu levantamento. Podiam até estar matriculados,
mas não estavam frequentando. O jovem que não desenvolve pensamento crítico é fácil de manipular.
Já o jovem que está na escola, em regra, não está cometendo ato infracional. Ele está desenvolvendo
senso crítico, está se relacionando com outras pessoas e sabe dizer não para o crime. Se não tiver
a escola fortalecida, não vamos avançar. Quanto mais escolas fechamos, mais oportunidades para
o crime vamos dar. Não pode faltar a vaga. Quando o jovem não tem muito conhecimento, não tem
acesso à cultura, não tem acesso a um circuito onde pode se sentir pertencido, acaba no tráfico211.

Pensar acerca do estatuto do ser humano é, sem dúvida, o núcleo em torno do qual a história do
pensamento orbitou, conforme Cecília de Sousa Neves. De fato, várias antropologias subjazem as filosofias,

208 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, no
campus de Ijuí – RS, 2019. Advoagada. E-mail: advdieni@gmail.com.
209 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Ba-
charela Em Direito. E-mail: feparussolo@hotmail.com.
210 Segundo o Ministério da Fazenda Brasileiro, a população da Classe E, são aqueles cuja renda é de até 2 salários mínimos
nacionais, enquanto a população da Classe A, são aqueles cuja renda é acima de 20 salários mínimos nacionais. MINISTÉRIO
DA FAZENDA. Desafios da economia brasileira, dezembro de 2010. Disponível em: http://fazenda.gov.br/centrais-de-con-
teudos/apresentacoes/arquivos/2010/p061210.pdf0. Acesso em: 20 jul. 2019.
211 “Quanto mais escolas fechamos, mais oportunidades para o crime vamos dar”, afirma juiz sobre adolescentes infrato-
res. GaúchaZH, 03 de maio de 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2019/05/quan-
to-mais-escolas-fechamos-mais-oportunidades-para-o-crime-vamos-dar-afirma-juiz-sobre-adolescentes-infratores-cjv8jdp-
v500rb01maw0y8ir18.html. Acesso em: 20 jul. 2019.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

religiões e ciências em seus esforços de explicar a gênese, o significado e o destino do fenômeno humano.
Conforme cita Cecília de Sousa Neves (2015, p 254):

[...] que o pensar mediante dicotomias constitui uma constante na tradição ocidental, é inevitável
que tais esforços de auto compreensão sejam atravessados por uma série de dualismos. Razão
pela qual nos é familiar as oposições entre corpo e espírito, instinto e consciência, emoção
e razão, natureza e cultura e, por conseguinte, ciências naturais e humanidades. Segundo o
antropólogo inglês Tim Ingold, o fator decisivo para a formatação de uma perspectiva acerca do
que é o ser humano dependerá em cada autor (ou corrente) da centralidade que se confere aos
termos da expressão “natureza humana”: se a ênfase recai sobre a noção de natureza, conforme
o paradigma das ciências naturais, é a animalidade o aspecto central do fenômeno humano,
sendo este considerado, portanto, como uma “pequena província do reino animal”; ao passo que
se o acento recai no termo “humano”, conforme o paradigma das humanidades e da filosofia, é a
espiritualidade, a consciência ou a “aptidão para a cultura” que constitui a qualidade distintiva do
humano concebido antes como um “império dentro do império”. Tais oposições nos encaminham
para a paradoxal concepção ocidental do homem como ser dilacerado, dividido entre a condição
física de sua animalidade e a condição moral de sua humanidade.

1 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

A desigualdade social é um produto da má distribuição de renda e, de acordo com Marx, é um dos


problemas do capitalismo. O sistema político-econômico é baseado no lucro e fundamentado na ideia de
liberdade econômica, aderindo concorrências de mercado e permitindo ao consumidor várias opções.
Segundo o ECA em seu artigo 4º:

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar,
com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária.

Este capitalismo infra referido, gera a divisão em duas classes: o burguês, dono das empresas e
indústrias e os proletários, os geradores de riqueza para o primeiro grupo. A desigualdade social se
aplica em vários conceitos, que não só o econômico. Ela separa a sociedade em classes e faz com que
a raça seja uma classe, a posição social e as demais áreas que podem aparecer.
A divisão de classes é um gerador de desigualdade e pode salientar o preconceito. E esse é um
motivo que pode levar a violência e criminalidade desenfreadas. Dificilmente os moradores de bairros
pobres serão tratados bem nos lugares. Não é regra o tratamento, mas existe. Isso é um produto da
divisão, porém segundo o ECA:

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de
qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de
castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina,
educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos
responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer
pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.

No entanto quando um adolescente comete um ato infracional, ele é responsabilizado segundo


as normas do ECA, estando sujeito as seguintes medidas socioeducativas, como cita na lei:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao
adolescente as seguintes medidas:
I - advertência;
II - obrigação de reparar o dano;
III - prestação de serviços à comunidade;
IV - liberdade assistida;
V - inserção em regime de semi-liberdade;
VI - internação em estabelecimento educacional;
VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

circunstâncias e a gravidade da infração.


§ 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.
§ 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual
e especializado, em local adequado às suas condições.
Art. 114. A imposição das medidas previstas nos incisos II a VI do art. 112 pressupõe a existência
de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese de remissão,
nos termos do art. 127.
Parágrafo único. A advertência poderá ser aplicada sempre que houver prova da materialidade e
indícios suficientes da autoria212.

O Princípio do Respeito, tem como característica prevista em vários dispositivos legais, no sentido
de zelar pela integridade física e mental dos internos, reavaliação da medida a cada seis meses e
cumprimento em estabelecimento próprio. Deste modo, o respeito deve sempre existir em relação
ao adolescente. Assim, a internação do adolescente em situação infracional será eficaz se todas as
garantias supracitadas forem atendidas, com o objetivo de reeducá-los para o convívio em sociedade.
Ressalta-se que a aplicação de medidas socioeducativas referentes aos adolescentes que cometem
atos infracionais deve seguir algumas orientações, tais como a obrigatoriedade de escolarização e
profissionalização, bem como a garantia de atendimento personalizado, respeitando a identidade
e singularidade dos adolescentes. Quando o ato infracional tiver sido cometido por crianças,
serão aplicadas medidas de proteção como, por exemplo, matrícula e frequência obrigatórias em
estabelecimento oficial de ensino.
Ao analisarmos a medida de advertência consistirá em admoestação verbal, que será reduzida a
termo e assinada, sendo ofertada com o objetivo de que o adolescente que errou possa refletir sobre
o que fez e seguir sua vida sem antecedentes para prejudica-lhe.
No que tange a medida Da Obrigação de Reparar o Dano cita a lei que em se tratando de ato
infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente
restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima,
exceto havendo manifesta impossibilidade, a medida poderá ser substituída por outra adequada.
Quando o ato infracional possui um impacto maior poderá ser aplicada a medida de Prestação de
Serviços à Comunidade, cujo objetivo conforme a lei consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse
geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros
estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais, mas sempre
levando em consideração que as tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente, devendo
ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em
dias úteis, de modo a não prejudicar a frequência à escola ou à jornada normal de trabalho.
A mediada de Remissão pode ser ofertada antes de iniciado o procedimento judicial para apuração
de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de
exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem
como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. Parágrafo
único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na
suspensão ou extinção do processo.
Quanto a Liberdade Assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada
para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente, onde a autoridade designará pessoa
capacitada para acompanhar o caso, a qual poderá ser recomendada por entidade ou programa de
atendimento, com o prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada
ou substituída por outra medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e o defensor.
A medida socioeducativa de Semi-liberdade pode ser determinado desde o início, ou como forma
de transição para o meio aberto, possibilitada a realização de atividades externas, independentemente
de autorização judicial, porém são obrigatórias a escolarização e a profissionalização, devendo,
sempre que possível, ser utilizados os recursos existentes na comunidade, e não comporta prazo
determinado aplicando-se, no que couber, as disposições relativas à internação.
E quando a gravidade do ato é maior ou necessita-se invocar o princípio da proteção integral
da criança e adolescente, a medida socioeducativa será de Internação, cuja medida privativa da

212 BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente: lei 8.069, de 13 de julho de 1990. 1990.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de


pessoa em desenvolvimento. Onde Será permitida a realização de atividades externas, a critério da
equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.
Sendo que a medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada,
mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses, e em nenhuma hipótese o período
máximo de internação excederá a três anos, e atingindo este limite o adolescente deverá ser liberado,
colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida. Porém a liberação será compulsória
aos vinte e um anos de idade.
A medida de internação só poderá ser aplicada quando, tratar-se de ato infracional cometido
mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou por reiteração no cometimento de outras infrações
graves, por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta, esta não
poderá ser superior a três meses.
Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas,
e ainda conforme cita o ECA, em seu Art. 125, “É dever do Estado zelar pela integridade física e mental
dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e segurança.”
Uma pesquisa sobre o sistema socioeducativo do país, realizada em cooperação com agências das
Nações Unidas (ONU), concluiu em sua fase preliminar divulgada pela ONU, que a semiliberdade é subutilizada
no Brasil, especialmente nas unidades femininas para adolescentes que cometeram atos infracionais.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na semiliberdade, utilizada em
casos de atos infracionais de menor gravidade, o adolescente tem a possibilidade de realizar atividades
externas, sendo obrigatórias a escolarização e a profissionalização. O jovem poderá permanecer com
a família aos finais de semana, desde que autorizado pela coordenação da Unidade de Semiliberdade.
O estudo foi realizado por cooperação entre Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos. Segundo a pesquisa, frequentemente a semiliberdade
é utilizada apenas como progressão da medida de internação, e não como uma das medidas previstas
no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O estudo buscou identificar boas práticas, conteúdos e
instrumentos técnicos e metodológicos, com o objetivo de fortalecer a gestão pública.
De acordo com o ECA, na semiliberdade, o adolescente tem restrição de sua liberdade, mas com a
possibilidade de realizar atividades externas, sendo obrigatórias a escolarização e a profissionalização.
O jovem poderá permanecer com a família aos finais de semana, desde que autorizado pela coordenação
da Unidade de Semiliberdade. Os resultados preliminares foram consolidados a partir de visitas em
nove unidades de semiliberdade das cinco regiões do país, nos estados do Amapá, Ceará, Pará,
Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Sergipe, São Paulo e Distrito Federal.
A pesquisa “Educar ou Punir?” mostra de forma inédita o perfil e a situação dos adolescentes internados
em unidades socioeducativas no estado de Pernambuco. O levantamento de dados ocorreu durante 12
meses, de outubro de 2013 a setembro de 2014, usando como referencial indicadores globais propostos
pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para avaliar e monitorar o sistema de justiça juvenil.
Entre outros dados, a pesquisa mostra que, em sua grande maioria, os adolescentes internados
são meninos (92%), entre 15 e 17 anos, vindos da capital ou da região metropolitana do Recife (98%).
Quanto ao tipo de ato infracional pelo qual o adolescente é acusado, o tráfico de entorpecentes
destaca-se com 33%. O roubo representa o segundo maior motivo das acusações. No total, pelo A
pesquisa confirma o histórico de superlotação das unidades de internamento. Em 30 de setembro de
2014, havia 1.110 adolescentes nas unidades, cuja capacidade era de 644. O Centro de Atendimento
Socioeducativo (Case) Abreu e Lima, com 98 vagas, tinha 218 adolescentes. E a unidade do Case Cabo
de Santo Agostinho, com 166 vagas, tinha 400 adolescentes internos. O Case Abreu e Lima e o Case
Cabo de Santo Agostinho são as duas unidades de internamento onde mais ocorrem rebeliões.
Assim, na idealidade de Foucault (1999) é visível se pensar, partir da liquidação do direito
a uma natureza humana fixa e especial e da recolocação do humanismo na agenda de
discussão, visto que o homem não é senão “uma invenção cuja recente data a arqueologia de
nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo.”
Outro destaque é o descumprimento do caráter educativo da internação. Segundo a pesquisa, a
maioria dos adolescentes não tem acesso à educação nem antes, nem depois da internação. Ao todo,

444
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

95% dos adolescentes internados estão em atraso escolar. menos 40% dos adolescentes internados
não estão ligados a atos graves.
Segundo João Paulo Roberti Junior (2012, p.107) “As crianças e os adolescentes desde os
tempos mais remotos, nos egípcios e mesopotâmios, passando pelos romanos e gregos, até os povos
medievais e europeus, não eram considerados como merecedores de proteção especial.”
Em nosso país existem programas sociais para reeducar e ressocializar o menor infrator,
porém muitas vezes esses projetos se tornam ineficazes, pois família que nesta fase é de extrema
importância, não participa dos trabalhos realizados pelos profissionais o que dificulta a inserção dos
jovens infratores. Ainda, em alguns projetos como a Fundação Casa – CASE, onde os adolescentes
na verdade ficam internados, tal maneira não permite a evolução e a capacidade de reinserção na
sociedade, valendo ressaltar que na maioria dos casos esses adolescentes ao saírem voltam a cometer
atos infracionais (Cassandre, 2008).
Neste caso segundo Cassandre (2008), é interessante ressaltar o papel da autoridade judiciária,
que para que as medidas socioeducativas tenham efeito, é necessário que o Juiz a aplique de forma
inteligente, sendo analisado cada caso concreto, ou seja verificando a cada realidade para levar em
consideração não somente a consequência, ou seja o ato infracional cometido, mas sim a origem.
A adolescência é uma fase em que a pessoa é tomada por conflitos internos e externos. É nesta fase
que surgem as dúvidas e as experiências que irão conduzir as pessoas rumo à fase adulta. É uma fase da
vida em que o que importa é o agora, não há preocupações com o amanhã. Adolescente é imediatista, não
faz plano para o futuro como um adulto que planeja suas economias para tempos difíceis.
Na adolescência há um processo de maturação, onde o adolescente estará aprendendo a lidar com
problemas da vida, que irão formar sua personalidade e não raras as vezes, tais adolescentes irão ter
dificuldades, as quais irão variar de pessoa a pessoa, conforme a percepção de cada um da realidade.
A assistência familiar é de fundamental importância, a base para a formação do indivíduo maduro,
adulto. É através da família que o adolescente aprende a subordinar-se à autoridade, que o adolescente
inicia suas relações sociais e a partir desse aprendizado é que ele irá compor as demais interações.
No Brasil, onde o desemprego assola o país, sobretudo nas classes baixais em que as pessoas
não possuem qualquer qualificação para o trabalho, onde um curso superior parece ser uma realidade
distante, o crime se apresenta como uma forma de emprego muito atraente a estes jovens. O menor
de 18 anos não poderia trabalhar pelas regras legais, seria considerado menor aprendiz com salário
inferior ao salário mínimo. Para obter uma renda maior teria que procurar o mercado informal. Contudo,
a saída através do crime faz com que o adolescente sinta – se economicamente independente, visto
que muitos destes adolescentes infratores ganham até mais que seus pais.

2 CONFLITOS DA ADOLESCÊNCIA PELO VIÉS PSICOLÓGICO

Com armas nas mãos, adquirem a falsa impressão de conquistaram prestígio, que agora são
alguém importante, coisas que não conseguiriam pela via normal. Assim como qualquer adolescente,
querem usar o tênis da moda, a bermuda de marca, conquistar as meninas, e pelo imediatismo inerente
à adolescência não podem esperar pela expectativa de um futuro promissor para adquirirem tais coisas.
Destacamos neste ponto, o papel dos meios de comunicação na formação da sociedade consumerista.
A adolescência por ser uma fase turbulenta na vida da pessoa, onde o indivíduo está em processo
de formação, requer especial atenção não só do Estado, em seu papel sócio-educacional, mas também
de toda a sociedade.
O adolescente encontra-se em uma fase em que as propostas criminosas são muito atraentes,
ainda mais para aquela parcela da população que não tem perspectiva de futuro promissor, enxergando
no crime a forma mais imediata de ascensão social e de poder.
Sofrimento, sangue e morte... Lévy (2001)alerta para imagens da violência que visam terror e
medo apontando para a necessidade de manter-nos distante deste mal. Em geral, é através da idéia
de moralidade que a violência é compreendida: um ato de incivilidade, ou seja, uma ação não civil, de
acordo com leis, escritas ou não- escritas, que regem relações sociais. Vista desta forma, a violência
inaugura o fundamento para a inserção da normatização, como força tranquilizadora, da criação de

445
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

leis e regras que visam a repressão de contestações, ao controle em nome de valores que diriam
respeito a todos. Assim Lévy (2001, p. 77):

Provocado horror, condenando seus autores, as imagens para manter a violência distante, para nos
prevenir contra nossa tendência natural de sermos dela cúmplices, mas também para mascarar
(ou negar) aquela outra violência que, por ser considerada legítima, é vista, simplesmente, como
um ato de autoridade, exercício em nome do direito, do bem público.

Conforme a Psicóloga Heloisa Aun (2005, p.136), que realizou tese de doutorado em uma
unidade da antiga FEBEM:

Nascida da desmesura e desmedida, a tragédia toca e diz a respeito do público no público da vida cotidiana
(VERNANT e VIDAL-NAQUET, 1991), um espaço feito de mentira, para a expressão e desvelamento de
verdade. A violência, na esteira do trágico, é aquilo que o homem recusa ver e ser: o desmesurado, a
desmedida, a hybris, mostrando-se na força centrípeta do buraco negro. Mais uma vez isso para estes
meninos é levado à risca, estão presos pela condição de querer ter. Mesmo na suposta liberdade do
mundo do crime, há o código de honra e ética misturadamente. Na FEBEM, encontrei talvez mais a
honra, pois dizem muito mais de uma estética, da imagem, do que de uma ética, da conduta.

Assim para Costa (2004) a desigualdade social e de oportunidades, a falta de expectativas


sociais, a desestruturação das instituições públicas e as facilidades oriundas do crime organizado.
Todas essas causas não podem ser encaradas de forma deterministas, não considerando a participação
ativa dos sujeitos envolvidos e suas vontades. No entanto, esses fatores contribuem para a ocorrência
de delinquência e estão relacionados à observação da maior ou menor incidência de violência em
grupos sociais, que vivem em determinadas circunstâncias sociais.
Ainda, no que tange as políticas de repressão, tem sido em demasia defendida, a redução da
maioridade penal como uma forma de coibir a criminalidade adolescente. Convém, contudo, destacar
que não haveria grandes mudanças no panorama da criminalidade, pois como medida de repressão,
não estaria atuando no cerne da questão. Primeiro se reduziria a maioridade para 16 anos, depois
para 14 anos e fazendo uma alusão à Lombroso, com o homem delinquente, chegaria a um ponto
em que estariam prendendo os bebês dentro da barriga das mães, sob o discurso de proteção social.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A solução de conflitos através do Direito Penal, exclui as outras vias de solução de conflitos. Não
se pode conceber uma solução Penal para um problema que é de ordem eminentemente social. Não
faz sentido atuar pela repressão, pois não se está resolvendo a causa do problema.
Portanto um jovem na Fase custa R$ 12 mil por mês, segundo informações da Instituições
fornecidas a Gaúcha ZH, sendo assim precisamos olhar para as políticas públicas preventivas na área
de saúde e educação que devem ser melhoradas. Tem que dar bolsas para esses jovens, eles precisam
de incentivo econômico educacional.
Por fim conforme nota-se com esta leitura, é que a responsabilização pelos atos infracionais por
intermédio das medidas socioeducativas, ou seja formas punitivas não resolvem o problema para diminuir
a pratica dos atos infracionais, e sim é necessário investir na causa do problema, cm políticas publicas
que visem reforçar a base da rede de socialização, a educação sendo acompanhada e estruturada, bem
como dignificar e humanizar o cumprimento das medidas socioeducativas de forma que os adolescentes
infratores encontrem novas perspectivas para uma nova fase das suas vidas, com oficinas, cursos,
oportunidades de trabalho, para que assim possam enfim empoderar-se de uma nova realidade, até então
muitas desconhecidas por eles, o que pode gerar novas realidades do que as das pesquisas citadas.

REFERÊNCIAS

AUN, H. A. Trágico avesso do mundo: narrativas de uma prática psicológica numa instituição
para adolescentes infratores / Heloisa Antonelli Aun – São Paulo: s.n., 2005. 136 p.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente: lei 8.069, de 13 de julho de 1990. São Paulo: Saraiva,
1990.

CASSANDRE, Andressa Cristina Chiroza. A eficácia das medidas socio-educativas aplicadas ao


adolescente infrator. 2008. 57 f. Monografia (Direito) – Faculdades Integradas Antônio Eufrásio
de Toledo, Presidente Prudente, 2008, p. 48. Disponível em: http://intertemas.toledoprudente.edu.
br/index.php/Direito/article/view/876/846. Acesso em: 16 jun. 2019.

CASSANDRE, Andressa Cristina Chiroza. A eficácia das medidas socio-educativas aplicadas ao


adolescente infrator. 2008, p. 48.

COSTA, M. Estatuto da criança e do adolescente comentado. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.
76.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 536.

ZH, Gaúcha, 03 de maio de 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/


noticia/2019/05/quanto-mais-escolas-fechamos-mais-oportunidades-para-o-crime-vamos-dar-afirma-
juiz-sobre-adolescentes-infratores-cjv8jdpv500rb01maw0y8ir18.html. Acesso em: 20 jul. 2019.

INGOLD, Tim. Humanidade e animalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.
28, p. 1-15, jun. 1995, p. 8.

LÉVY, A. Violência, mudança e desconstrução. 2001, p. 77.

LÉVY, A. Violência, mudança e desconstrução. In: ARAUJO, J.N.G. e CARRETEIRO, T.C. (Org.)
Cenários Sociais. São Paulo: Escuta, 2001. P. 75-89.

MINISTÉRIO DA FAZENDA. Desafios da economia brasileira, dezembro de 2010. Disponível em:


http://fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/apresentacoes/arquivos/2010/p061210.pdf0. Acesso
em: 20 jul. 2019.

NEVES, Cecília de Sousa. A questão do humano: entre o humanismo e o pós-humanismo. Griot:


Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v. 12, n. 2, p. 254-269, 18 dez. 2015. Disponível
em: https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/656/372. Acesso em: 20 jul.
2019.

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Estudo afirma que semiliberdade é subutilizada no sistema


socioeducativo brasileiro. Disponível em: https://nacoesunidas.org/estudo-afirma-que-
semiliberdade-e-subutilizada-no-sistema-socioeducativo-brasileiro/. Acesso em: 20 jul. 2019.

ROBERTI. JR, João Paulo. Evolução jurídica do direito da criança e do adolescente no Brasil. Revista
da Unifebe (Online), v. 1, n. 10, jan/jul 2012, p. 107. Disponível em: https://periodicos.unifebe.
edu.br/index.php/revistaeletronicadaunifebe/article/view/7. Acesso em: 26 maio 2019.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

INTERSECÇÕES ENTRE O PRINCÍPIO


DA SOLIDARIEDADE E OS DIREITOS SOCIAIS

Gabriel Marques Luzzardi213


Luís Eduardo Abraham Silveira214

RESUMO: Este artigo tem por objeto um estudo do princípio da solidariedade e suas relações com os
direitos sociais. Opta-se por este estudo por ser temática pouco abordada na doutrina jurídica brasileira,
apesar de a solidariedade ser um objetivo de nossa República Federativa. Inicialmente, busca-se trazer
conceituações não-jurídicas de solidariedade, no âmbito da filosofia e sociologia. Posteriormente,
conceitua-se o princípio da solidariedade previsto no art. 3º, inciso I da Constituição Federal e suas
consequências em nosso ordenamento jurídico. Por fim, traçam-se paralelos entre o referido princípio e
a efetivação dos direitos sociais. Adotam-se no presente trabalho o método dedutivo, o procedimento
da pesquisa bibliográfica e a abordagem qualitativa. Conclui-se que o princípio da solidariedade dá
fundamentação teórica aos direitos sociais e auxilia na sua concretização e efetivação.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Direitos Sociais. Solidariedade.

INTRODUÇÃO

O presente artigo versará sobre uma temática severamente negligenciada pela produção
acadêmica e doutrinária em direito em nosso país: o princípio da solidariedade. Destaca-se que,
apesar de o art. 3º, inciso I da Constituição Federal brasileira elencar “a construção de uma sociedade
justa, livre e solidária” como um dos objetivos fundamentais de nossa república federativa, pouco se
debate este dispositivo.
No entanto, como se buscará demonstrar, esta norma, ao contrário do que possa parecer, não
expressa uma mera sugestão de conduta, mas sim trata-se de um princípio fundamental, que vincula
tanto o Estado e seus entes quanto os particulares, apresentando reflexos no direito público e privado.
O objetivo primordial do artigo é entender como o aludido princípio se relaciona com o Estado
Social e com a efetivação dos direitos sociais previstos em nossa Constituição nos arts. 6º e seguintes.
A hipótese ora defendida é a de que o princípio da solidariedade não só serve como sustentação
teórica para a construção do Estado Social e para a garantia dos direitos sociais, como também possui
força integrativa, vinculando o legislador e os intérpretes do direito.
O presente artigo justifica-se pelo fato de que o princípio da solidariedade é tema pouco estudado
no Brasil, apesar do papel central que exerce (ou deve exercer) em nosso ordenamento jurídico. Ademais,
a temática ganha importância destacada no momento em que vivemos, com o contínuo desmanche do
Estado social, que sequer foi devidamente implementado em nosso país. Neste sentido, defende-se a
plena efetivação do princípio da solidariedade, a fim de reverter este quadro de retrocessos.
No primeiro capítulo, busca-se compreender o conceito de solidariedade em suas acepções
não-jurídicas, trazendo ideias da sociologia, da filosofia e da ciência política acerca do tema. No
segundo capítulo, o estudo se volta especificamente ao entendimento da solidariedade como um

213 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Especia-
lista em Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas
(UFPel). Advogado inscrito na OAB/RS. Endereço de e-mail: gabrielluzzardi@gmail.com.
214 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Graduado em
Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Advogado inscrito na OAB/RS. Endereço de e-mail: luisabrahamsilveira@gmail.com.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

princípio jurídico, conforme previsto em nossa Constituição Federal. No terceiro e último capítulo,
correlaciona-se o princípio da solidariedade com a previsão e a efetivação dos direitos sociais em
nosso ordenamento jurídico.
A presente pesquisa adota o método dedutivo, buscando demonstrar, a partir das premissas
menores de que a construção da sociedade solidária é objetivo fundamental de nossa República e de
que os direitos sociais são direitos fundamentais assegurados pela Constituição, a premissa maior, de
que o princípio da solidariedade informa e dá concretude aos direitos sociais.
O procedimento adotado é o da pesquisa bibliográfica, mediante a consulta de livros, artigos
e dissertações acerca das temáticas do princípio da solidariedade e da teoria dos direitos sociais,
destacando-se como teoria de base as obras de Massaú (2011, 2012, 2016 e 2017) e de Sarlet (2018).
A abordagem da pesquisa é qualitativa, haja vista tratar-se de uma análise de teoria jurídica, buscando
entender a dinâmica entre o princípio da solidariedade e os direitos sociais.

1 ACEPÇÃO NÃO-JURÍDICA DO TERMO “SOLIDARIEDADE”

Inicialmente, é interessante trazer algumas conceituações não-jurídicas de solidariedade, para


posteriormente correlacioná-las às suas expressões no mundo do Direito. A ideia de solidariedade
acompanha a evolução humana há séculos. Aristóteles afirmava que o homem não pode viver isolado,
sendo ordenado teleologicamente a viver em sociedade. Assim, o homem possui uma condição inata
de ser membro de um grupo social, que vive e se relaciona com os seus semelhantes, não podendo
renunciar tal condição. Aristóteles utilizava as palavras philia e homonoia. A philia era um ato de
doação e benevolência para com os outros, fundamentado em um querer o bem do próximo. Já a
homonoia possuía o sentido de criar as condições de vida dos cidadãos, direcionando a criação de
uma melhor ordem política. (DINIZ, 2008, p. 32; MASSAÚ, 2011, p. 207)
No âmbito da sociologia, Durkheim sustenta que a existência humana não seria possível sem a
ideia de solidariedade. O autor classifica a solidariedade em duas espécies: solidariedade mecânica e
solidariedade orgânica. Na primeira, os indivíduos são semelhantes geralmente possuem os mesmos
valores, sentimentos e crenças, fazendo parte de pequenas coletividades que possuem pouca
complexidade e diferenciações internas. Já a segunda, presente em sociedades mais complexas,
resulta da diferenciação entre os indivíduos em relação aos valores, crenças e símbolos que adotam,
sendo que o consenso entre eles se realiza na diferenciação, com todos contribuindo com funções
diferentes para a manutenção de todos, fazendo-se uma analogia aos órgãos do corpo humano,
sendo o elemento de integração a diferenciação do trabalho. (MASSAÚ, 2011, ps. 251-252)
Solidariedade, na visão de Mason (2000, p. 27), é um conceito ambíguo e com múltiplos significados,
por ele entendido como uma “preocupação mútua”, em que os membros de uma comunidade, ao exercerem
sua razão prática, levam em consideração – ao menos minimamente – os interesses dos demais. Complementa
afirmando que a solidariedade pressupõe a inexistência de “exploração” ou “injustiça” sistêmicas.
Sommermann (2014, p. 10), por sua vez, entende que “[t]he principle of solidarity is based on
the mutual recognition of the individual autonomy on the one hand and the awareness of the mutual
dependence of the members of a given community on the other hand”215.
Tratando da solidariedade no âmbito da República, Massaú (2011, p. 208) afirma:

(...) constitui-se em elemento de equilíbrio entre o aspecto individual e o aspecto social, pois
ambos são partes integrantes e indissociáveis do ser humano. (…) A solidariedade é a ligação
entre o indivíduo e o(s) seu(s) semelhante(s), destarte, o indivíduo é em si mesmo com o(s)
outro(s) em coletividade, ao sair de si mesmo e abranger o exterior com sua ação. Com isto, o
indivíduo não deixa de ser único e irrepetível e, simultaneamente, manifesta sua dimensão social.
A solidariedade deve ser justamente esse sair de si e atingir o outro na res publica.

Em citação das ideias de Peces-Barba (1993, p. 255-259), Facchini Neto (2018, p. 389) busca
explicar o que denomina de “significado moderno” da solidariedade:

215 “O princípio da solidariedade é baseado no reconhecimento mútuo da autonomia individual, por um lado, e a consciên-
cia da dependência mútua entre os membros de uma determinada comunidade, por outro lado” (tradução nossa)

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O significado moderno do valor solidariedade abrange (...) algumas características, dentre as quais o re-
conhecimento da realidade do outro e a consideração dos seus problemas não como estranhos e alheios
a nós, mas como problemas cuja resolução pode exigir uma atuação nossa ou uma intervenção dos po-
deres públicos. O objetivo político é a criação de uma sociedade na qual todos se considerem membros
e superem, no seu seio, suas necessidades básicas, realizando-se como seres autônomos e livres.

As ações do ser humano repercutem em todos os membros da sociedade. Assim, a solidariedade


implica a corresponsabilidade e a compreensão da transcendência social das ações dos seres humanos,
em razão de conviverem em um mesmo espaço. Ademais, a solidariedade possui uma dimensão ética, no
sentido de reconhecer que todos os seres humanos são iguais em direitos e obrigações. (DINIZ, 2008, p. 32)
De acordo com Morais e Massaú (2011, p. 153), a solidariedade busca amenizar uma lógica
individualista e fazer predominar a liberdade e a igualdade entre os indivíduos que compõem a sociedade.
Portanto, a solidariedade não visa a um agir que seja dotado de sentimentos pelo próximo, mas
sim um tratamento digno, que reconheça a essência humana do outro, ainda que haja um sentimento
negativo para com este. (MASSAÚ, 2012, p. 137)
A solidariedade pode ser classificada em vertical e horizontal. A referida classificação é adotada
por Nabais (2005, p. 114-115), citado por Morais e Tenório (2017, p. 7):

(...) solidariedade vertical, é aquela concretizada pelos deveres do estado social em minimizar as
desigualdades sociais, efetivando os direitos em benefícios de todos os indivíduos membros da
sociedade. (...) solidariedade horizontal, atinge a sua realização quando entende que a efetivação
dos direitos fundamentais seja vista como obrigação não apenas do estado, mas da própria
sociedade, pois cada cidadão é vinculado também à ideia de solidariedade.

Dessa forma, vista a acepção não-jurídica do termo “solidariedade”, passa-se a analisar o referido
valor como princípio jurídico.

2 O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO BRASILEIRO

A solidariedade, na concepção de Scholz (2014, p. 60), deve ser considerada um direito humano
e, por consequência, como um direito moral. Para tornar-se um direito legal, deve ser positivada, e o
Estado deve “facilitar, garantir e proteger” este direito.
O art. 3º da Constituição Federal traz os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, sendo que o seu inciso I determina a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Conforme Streck e Morais (2018, p. 150), não existe nenhuma referência a uma norma semelhante nas
Constituições brasileiras anteriores, que não trataram de objetivos da República em um dispositivo
específico, como foi o caso do art. 3º.
A Constituição Federal de 1988 incorporou um conjunto de objetivos fundamentais que são
fins que devem ser perseguidos pelas ações estatais, norteando as ações políticas de todos os entes
estatais, e que operam como um critério da atividade hermenêutica, devendo sempre ter o seu conteúdo
observado pelo intérprete das normas do ordenamento jurídico. (STRECK; MORAIS, 2018, ps. 151-152)
Asseveram Streck e Morais (2018, p. 153) que a ideologia constitucional não é neutra, ela é
política e vincula o intérprete, sendo o art. 3º uma expressão da opção ideológica sobre as finalidades
econômicas e sociais do Estado na Constituição Federal de 1988. Assim, prosseguem:

“Constitui o art. 3o da Constituição de 1988 um verdadeiro programa de ação e de legislação,


devendo todas as atividades do Estado brasileiro (inclusive as políticas públicas, medidas
legislativas e decisões judiciais) se conformar formal e materialmente ao programa inscrito no
texto constitucional. As políticas públicas podem ser controladas, assim, não apenas em seus
aspectos de legalidade formal, mas também no tocante à sua adequação ao conteúdo e aos fins
da Constituição, que são, entre outros, fundamentalmente, os fixados no art. 3o.

Os objetivos trazidos pelo art. 3º da Constituição Federal são normas de aplicabilidade imediata,
que independem de posterior restrição pelo legislador e possuem alta densidade normativa, devendo
cada norma do ordenamento jurídico observar o conteúdo trazido por eles. Dessa forma, em razão
do critério hierárquico, os objetivos são critérios interpretativos para a aplicação das normas

450
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

constitucionais e infraconstitucionais, todavia sempre deve-se levar em consideração os objetivos


que podem ser concretizados no caso em análise. (MASSAÚ; BAINY, 2020, p. 20)
Adaptando o ensinamento de Massaú e Bainy (2020, ps. 21-22) ao art. 3º, inciso I da Constituição
Federal, tem-se que o texto normativo do referido dispositivo traz critérios valorativos para que
o intérprete estabeleça posição diante de um caso concreto, mas o seu conteúdo não pode ser
determinado apenas da sua leitura isolada, em razão do seu grau de vagueza. Assim, é necessária
a análise do contexto histórico-constitucional para que se possa delimitar o sentido de que seria
“construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
A solidariedade está expressada no ordenamento jurídico brasileiro no inciso I do art. 3º
da Constituição Federal como um dos objetivos fundamentais da República, sendo entendida,
portanto, como uma cláusula transformadora. Dessa forma, resta evidenciada a sua normatividade
constitucional, estabelecendo um norte que deve obrigatoriamente ser buscado por todos os entes
públicos (e também privados) em suas ações. (MASSAÚ, 2016, p. 29)
De acordo com os ensinamentos de Massaú (2012, p. 145) e também de Donnini, citado por
Casabona (2007, p. 135), do postulado da dignidade da pessoa humana é que deriva o princípio da
solidariedade, sendo esta um instrumento de efetiva proteção daquele princípio. Massaú (2012, p.
146) ensina que a solidariedade:

“(...) deve transcender a perspectiva de caridade a atingir o objetivo de fornecer as condições


mínimas de dignidade (Art. 1°, III, da CF) para que cada indivíduo possua as condições mínimas a se
desenvolver com autonomia (Art. 1°, IV, da CF) e contribuir com sua personalidade ao desenvolvimento
da humanidade, não se resume ao combate à miséria econômica, mas a redução da miséria humana.”.

A autora Martins-Costa (2002), citada por Blauth e outros (2013, p. 379), tenta definir a ideia
de sociedade solidária, prevista no inciso I do art. 3º da Constituição Federal, nos seguintes termos:

“A expressão ‘sociedade solidária’ tem, no entanto, amplíssima vagueza semântica e precisa ser,
nos mais variados campos da vida social, devidamente densificada. Antes de mais, a palavra
‘solidariedade’ traduz categoria social que exprime uma forma de conduta correspondente às
exigências de convivência de toda e qualquer comunidade que se queira como tal, implicando
a superação de uma visão meramente individualista do papel de cada um dos seus singulares
membros e assim configurando elemento de coesão da estrutura social. Essa categoria social (e
igualmente ética e política) é apreendida pelo Direito na Constituição, indicando, em linhas gerais,
a exigência de evitar, ou ao menos reduzir, a conflitualidade social mediante a superação de uma
visão estreitamente egoística do Direito”.

Em sentido semelhante, Massaú (2017, p. 16) destaca que, apesar de isoladamente ser a
solidariedade um conceito vazio, esta consiste em uma atitude positiva e integrativa frente à diferença e
a desigualdade, devendo ser projetada nas circunstâncias da situação analisada para ser substantivada
juridicamente. Assim, na lição de Morais e Massaú (2011, p. 172): “[e]m todas as esferas a solidariedade
precisa estar ligada a algum princípio, pois sua forma isolada não possui características jurídicas. Assim,
ela compõe a construção e a aplicação de outros princípios e institutos jurídicos.”.
Percebe-se, portanto, que não há uma previsão direta de consequência jurídica caso não se aja de
uma forma solidária. Assim, Massaú (2017, p. 17) complementa que o princípio da solidariedade, para
além de sua incidência nas relações entre as pessoas, possui também uma efetividade indireta como um
“fenômeno de integração”, agindo como fundamento para a positivação de valores socialmente relevantes.
No Brasil temos vários exemplos da expressão da solidariedade em dispositivos constitucionais
e legais. Pode-se enxergar o princípio da solidariedade de forma clara no Direito Civil, mais
especificamente nas questões da função social da propriedade e na função social dos contratos. De
acordo com Facchini Neto (2018, p. 338-339), citando Almeida Costa:

“(...) entende-se que os poderes do titular de um direito subjetivo estão condicionados pela respectiva
função, ao mesmo tempo em que se alarga a esfera dos direitos que não são conferidos no interesse
próprio, mas no interesse de outrem ou no interesse social (direito-função). A ideia de que também
o direito privado desempenha uma função social está ligada ao valor da solidariedade (...)”.

No caso da função social da propriedade, resta claro que o direito fundamental à propriedade

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

é restringido pelo objetivo de construir uma sociedade solidária, que limita tal direito em prol do
bem comum, superando o caráter absoluto que o instituto possuía no passado. Daí surge a ideia
da interferência do Estado na propriedade, que permite, dentre outras ações, a desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização do
administrado em dinheiro (art. 5º, inciso XXIV, CF/88) e o uso de propriedade particular pelo Estado
em caso de iminente perigo público (art. 5º, inciso XXV, CF/88).
Já a função social do contrato, prevista expressamente no caput do art. 421 do Código Civil,
também surge de uma colisão entre o valor social da livre iniciativa e o princípio da solidariedade.
Conforme Tepedino (2015, p. 255), a função social dos contratos “(...) impõe às partes o dever de
perseguir, ao lado de seus interesses individuais, interesses extracontratuais socialmente relevantes,
dignos de tutela jurídica, alcançados pelo contrato”.
Krell (2018, p. 2.180) aponta o princípio da solidariedade intergeracional no âmbito do Direito
Ambiental, dispondo que é necessário que sejam asseguradas condições de vida com dignidade para
as gerações futuras, o que veda a alteração irreversível dos ecossistemas e dos recursos naturais
essenciais à vida humana.
Tem-se também no Direito de Família normas que expressam o princípio da solidariedade, tal
como o art. 229 da Constituição Federal, o qual prevê que “[o]s pais têm o dever de assistir, criar e
educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice,
carência ou enfermidade”. Irradia de tal artigo o dever de alimentos entre parentes, cônjuges ou
companheiros, previsto no art. 1.694 do Código Civil.
No Direito Tributário, o princípio da solidariedade é materializado pelo princípio da capacidade
contributiva, previsto no art. 145, §1º da Constituição Federal, o qual dispõe que “[s]empre que possível, os
impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte (...)”.
A liberdade de associação e a liberdade de reunião, previstas no art. 5º, incisos XVII e VXI da
Constituição Federal, respectivamente, bem como programas sociais de distribuição de renda e
aperfeiçoamento profissional e educacional fornecido para pessoas de baixa renda, são apontados
por Massaú (2012, ps. 145-146) como direitos e políticas que decorrem de uma dinâmica solidária.
Podemos visualizar também a solidariedade na forma de organização do Estado brasileiro, no qual
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios formam uma União indissolúvel, nos temos do art.
1º da Constituição Federal, e devem concorrer na construção e manutenção do Estado, distribuindo a
arrecadação e as tarefas que devem ser concretizadas por cada um dos entes federativos, devendo todos
eles auxiliar-se mutuamente para que haja o fortalecimento do bem comum. (MASSAÚ, 2011, p. 222)
Realizada a exposição sobre o princípio da solidariedade no Direito brasileiro, busca-se agora
entender como este se relaciona com os direitos sociais, positivados em nossa Constituição Federal.

3 VIÉS SOLIDÁRIO DOS DIREITOS SOCIAIS

Tradicionalmente, os direitos sociais são vistos como direitos fundamentais de segunda geração
(ou “dimensão”), sendo aqueles que exigem uma prestação positiva do Estado (como a educação,
assistência social e a saúde), em uma perspectiva de igualdade material e não apenas formal. Os
direitos referidos como direitos de solidariedade ou de fraternidade, por sua vez, estão associados a
uma terceira dimensão dos direitos fundamentais, de caráter coletivo ou difuso, englobando “direitos
à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida,
bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de
comunicação”. Exigem esforços não apenas do Estado, mas de toda a coletividade, num âmbito não
apenas transindividual, mas também transnacional (SARLET, 2018).
No entanto, conforme a lição de Diniz (2008, p. 34), tais dimensões não podem ser vistas como
categorias estanques, pois elas se relacionam:

(...) apesar de a solidariedade estar mais frequentemente incluída no quadro conceptual dos
direitos de 3ª dimensão, não se mostra desarrazoado sustentar a tese de que os seus pressupostos
fundamentais e exigências de densificação atuam também no âmbito da eficácia dos ‘direitos
sociais’ (de 2ª. Dimensão, ou direitos da fraternidade); aqueles cuja moldura jurídico-constitucional

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

surge a partir da segunda metade do Século XIX, tendo sido a sua positivação em algumas
Constituições do início do Século XX (México, 1917; Weimar, 1919), uma resposta possível à
denominada ‘questão social’.

Resta claro que os objetivos inseridos no art. 3º da Constituição Federal, entre eles o de “construir
uma sociedade solidária”, se tratam de cláusulas que visam a transformar a realidade fática existente.
Desse modo, dão amparo aos direitos sociais, que possuem um caráter marcadamente prestacional, a
fim de alcançar condições mínimas à população. Conforme Streck e Morais (2018, p. 150), as normas
que implementam os direitos sociais são concretizadoras dos objetivos da República. De acordo com
Sarlet (2018), os direitos sociais manifestam a busca por justiça social e guardam sintonia com os
objetivos previstos no art. 3º da Constituição Federal, entre eles a solidariedade.
Dessa maneira, o Estado de Direito moderno possui a função positiva de assegurar o
desenvolvimento da personalidade, de modo que deve intervir na vida social, econômica e cultural,
se comprometendo com uma função transformadora da sociedade. A Constituição Federal brasileira
buscou transformar o modelo de Estado, estabelecendo em nosso ordenamento jurídico bases de um
Estado Social. (BERCOVICI, 1999, p. 37; STRECK, 2003, p. 275)
Complementarmente, Massaú (2011, p. 222-224) entende que o Estado social só pode existir
a partir de um esforço comum dos membros da sociedade, ou seja, a partir da solidariedade. A
assunção dos compromissos estatais em garantir direitos sociais anteriormente relegados ao setor
privado se baseia no princípio da solidariedade. Este princípio também orienta as obrigações de
indivíduos que ao, pagar impostos, garantem que o Estado realize programas de saúde pública,
seguridade social, redistribuição de renda, etc. Assim, cada cidadão, seja recebendo os benefícios ou
pagando os impostos, participa de uma “teia solidária”, buscando a garantia da dignidade humana de
todos e mitigando o individualismo exacerbado.
Dessa forma, se percebe que os direitos sociais estão intimamente atrelados à ideia do princípio da
solidariedade e, até mesmo, ao fundamento da dignidade da pessoa humana. Na lição de Massaú (2011,
p. 219): “[o] Estado social torna este fator relevante quando incorpora a noção de dignidade humana e
estabelece políticas e serviços públicos para garantir o mínimo existencial ao indivíduo (Art. 6º da CF).”.
Assim, a Constituição de 1988 foi a primeira na história brasileira a trazer um título específico
para os chamados direitos e garantias fundamentais, dentro do qual foram consagrados os direitos
sociais, sendo que estes surgiram no texto constitucional como densificadores da dignidade da
pessoa humana. Dessa forma, percebe-se que os direitos sociais foram efetivamente positivados
como autênticos direitos fundamentais, o que lhes confere uma posição de supremacia e maior
força normativa, de forma que se reconhece que os direitos sociais possuem um regime jurídico-
constitucional semelhante ao instituído para os demais direitos fundamentais. (SARLET, 2018)
Destaca-se também a visão de Garcia (2011, p. 352), que entende que os direitos sociais impõem
fins a serem alcançados, sendo princípios constitucionais com natureza de “mandados de otimização”,
expressando “a ideia de solidariedade, de justiça social, de igualdade factual e de complementaridade
entre as liberdades individuais e suas condições sociais”. No ensinamento de Sarlet (2009, p. 284):
“[o]s direitos sociais a prestações (...) encontram-se intimamente vinculados às tarefas de melhoria,
distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como à criação de bens sociais não
disponíveis para todos os que deles necessitem.”.
Da leitura do art. 6.º da Constituição Federal, já modificado por algumas Emendas Constitucionais,
temos que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, além da assistência
aos desamparados. Ressalta-se que, conforme o entendimento de Sarlet (2018), este rol é extensivo,
pois pode abranger também, direitos e garantias implícitos, direitos positivados em outras partes
do texto constitucional, tais como o mínimo existencial, o direito a um meio ambiente equilibrado, a
tutela do patrimônio histórico, artístico e cultural, e a proteção do idoso, da família e dos índios, por
força do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal.
De acordo com Sarlet (2018), existe, em uma perspectiva objetiva, uma eficácia dirigente dos
direitos sociais, que impõe ao Estado o dever permanente de sua realização, além de permitir às
normas de direitos sociais operarem como parâmetro para o controle de constitucionalidade, para a
aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, para a execução de políticas públicas, além

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de impor uma eficácia dos direitos sociais entre particulares.


É possível falar em uma eficácia vertical e uma eficácia horizontal da solidariedade. A eficácia vertical
diz respeito justamente às prestações que são deveres do Estado social, implementando e efetivando os
direitos sociais, buscando a correção das desigualdades e beneficiando a sociedade como um todo. A
eficácia horizontal, por sua vez torna a solidariedade obrigação da sociedade civil, que passa a ser (co)
responsável pela garantia dos direitos fundamentais, incluindo os sociais (ROSSO, 2007, p. 213).
Quanto aos destinatários, os direitos sociais obrigam precipuamente os poderes públicos,
mas não só eles. Também incidem nas relações entre particulares, em nítida ideia de solidariedade
horizontal, sendo exemplificado em hipóteses envolvendo planos de saúde que, mesmo alegando
não haver cobertura contratual, são obrigados a arcar com algumas despesas de saúde de seus
segurados. (SARLET, 2018)
Assim, como visto anteriormente, a ideia da solidariedade parte da dignidade da pessoa humana
e busca amenizar uma lógica individualista, de modo a fazer predominar a liberdade e a igualdade
entre os indivíduos que compõem a sociedade. Desse modo, os direitos sociais prestacionais são
uma importante ferramenta para a concretização da ideia trazida pelo princípio da solidariedade, pois
buscam, através da transformação da realidade, garantir melhores condições de vida à população.
(MORAIS; MASSAÚ, 2011, p. 153)
Desse modo, percebe-se que a prestação de direitos sociais é corolário da busca da Constituição
Federal de 1988 de estabelecer um Estado Social, através de normas programáticas, tais como os
objetivos do seu art. 3º, no qual está incluída a solidariedade em seu inciso I, buscando uma igualdade
em sentido material e concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana.
Tem-se no Brasil exemplos de normas que densificam o conteúdo dos direitos sociais e que
concretizam claramente a ideia da solidariedade. A oferta de um Sistema Único de Saúde, que visa
materializar o direito social à saúde previsto no art. 6º da Constituição Federal e que advém do art.
196 da Carta Magna, claramente atende a ideia de construção de uma sociedade solidária, já que
garante a prestação de serviços de saúde também a pessoas que não possuem condições financeiras
de arcar com os custos desse serviço na rede privada, sendo o sistema financiado através de impostos
pagos por toda a sociedade, inclusive daqueles que raramente utilizam tal sistema.
A solidariedade também se expressa como fundamentação da seguridade social. Na formulação
clássica de Beveridge (1942), trouxe-se a ideia de que o sistema de seguro social deveria ter caráter
universal, abrangendo todas as pessoas, não apenas aquelas mais necessitadas. Assim, haveria
uma solidariedade entre todos os membros do país (no caso o Reino Unido), com todas as pessoas
suportando os encargos da seguridade social, facilitando desta forma também uma redistribuição de
renda (CONCEIÇÃO, 2016, p. 544). Na Constituição Federal brasileira, o art. 195 prevê o financiamento
da seguridade social por toda a sociedade. De acordo com Massaú (2012, p. 146), “[o] sistema de
segurança social recolhe dos economicamente ativos ou abonados e distribui benefícios para os
cidadãos economicamente necessitados (ela abrange a todos) (...)”.
Além disso, o viés solidário pode ser visto de forma cristalina no art. 229 da Constituição, o qual
prevê que “[o]s pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm
o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”, dispositivo que objetiva a
proteção à infância e também a assistência aos desamparados.
Por fim, o princípio da solidariedade pode servir como um argumento para estender a eficácia
direta dos direitos sociais às relações entre particulares, em especial quando se trata do mínimo
existencial (“condições mínimas para uma vida com dignidade”). Por exemplo, no caso do direito
à saúde, pode se obrigar um plano de saúde particular a aumentar sua cobertura para atender
necessidades específicas e graves de seus segurados. Para além do mínimo existencial, há o exemplo
da disponibilização de algumas vagas em curso superior oferecido por universidade privada por meio
de programas de ação afirmativa. (SARLET, 2018)
Em linha argumentativa similar à de Sarlet, afirma Diniz (2008, p. 39):

Sob essa ótica, quando a realização dos direitos sociais, ainda que sob o aspecto do mínimo
vital, ocorre com base no princípio da solidariedade, tem-se a necessidade de tornar-se eficaz o
princípio geral de que os indivíduos (concidadãos) são chamados a adimplir certos deveres ou
exigências constitucionais para a tutela e realização dos valores constitucionais fundamentais que

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

decorrem, inclusive, das concepções do que seja o bem comum: ‘salus populi suprema lex est’.
Com efeito, a solidariedade, como valor, fornece as bases da convivência social, reconhecida e
prefigurada pela sociedade e pelo constituinte, superando-se uma visão atomística e promovendo
um senso ou vínculo de comunidade.

Observa-se, portanto, que o viés solidário dos direitos sociais pode se concretizar tanto na
orientação da atividade estatal em fornecer as prestações relativas a eles, que são obrigações
constitucionais, quanto em uma extensão do princípio da solidariedade e da garantia dos direitos
fundamentais aos particulares. No entanto, é preciso ter cuidado para que não se sobrevalorize
esta eficácia vertical dos direitos fundamentais, sob pena de retirarmos do Estado os compromissos
assumidos na Constituição e os transferirmos por completo para os particulares, desvirtuando a ideia
de construção de uma sociedade solidária.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resta claro, portanto, que o termo “solidariedade” comporta diversos significados, a depender
do aspecto temporal e espacial em que é analisado. Após conceituações filosóficas e sociológicas,
como as de Aristóteles e Durkheim, respectivamente, a solidariedade foi inserida no mundo do Direito.
Ao longo do tempo, a solidariedade foi inserida no mundo do Direito. No plano nacional, a
Constituição Federal de 1988, de forma inovadora e de modo a concretizar o fundamento da dignidade
da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), positivou objetivos fundamentais que devem ser observados por
todos os entes na República Federativa do Brasil, sendo que o seu inciso I determina a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária. Ressalta-se que, com base na ideia se eficácia horizontal, os particulares
também possuem a obrigatoriedade de observação dos objetivos impostos pelo art. 3º da Carta Magna.
A solidariedade, portanto, é reconhecida como um princípio informador do Direito brasileiro,
de modo que diversas matérias e institutos sofrem influência de tal princípio em sua conformação.
A funcionalização social da propriedade e dos contratos, o princípio da capacidade contributiva no
Direito Tributário e a federação como forma de organização do Estado brasileiro são claramente
informados pelo referido princípio. Além disso, em questões atinentes ao Direito Ambiental e ao
Direito de Família estão claramente presentes o ideário da solidariedade intergeracional.
Além disso, conforme foi exposto ao longo do presente, da lógica do princípio da solidariedade
é que adveio a positivação de direitos sociais no art. 6º da Carta Magna, rol que inclui os direitos à
educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social,
proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados, e que devem ser prestados a
todos os indivíduos que compõem a sociedade, a fim de assegurar-lhes melhores condições de vida.
Assim, percebe-se que a prestação de direitos sociais é corolário da busca da Constituição
Federal de 1988 de estabelecer um Estado Social, de forma a buscar uma igualdade em sentido
material e de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, resta claro que
o viés solidário dos direitos sociais pode se concretizar na orientação da atividade estatal, que tem
o dever de fornecer as prestações relativas a tais direitos, bem como numa extensão do princípio da
solidariedade e da garantia dos direitos fundamentais aos particulares.

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457
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

JUSTIÇA SOCIAL:
DA CONCEPÇÃO À CONCRETIZAÇÃO E OS DESAFIOS
CONTEMPORÂNEOS PARA GARANTIR A PLENA EFETIVIDADE

Simone Paula Vesoloski216


Josieli Fátima Vesoloski217

RESUMO: O presente artigo objetiva destacar pontos relacionados à conceituação e compreensão


do que é justiça social e a sua essencialidade. Ainda, busca-se demonstrar os meios capazes de
concretizar a justiça social e minimizar as injustiças, dando ênfase aos desafios a serem enfrentados
para garantir e perfectibilizar a justiça social plena. A metodologia utilizada compreende o raciocínio
indutivo e o método analítico-descritivo. A justiça social é um tema amplo e esta preocupada em
produzir melhoria na qualidade de vida e bem-estar comum a todos os indivíduos dentro da sociedade
contemporânea. Desse modo, todas as possibilidades, seja por meio das ações afirmativas, pelas
políticas públicas, pelo ativismo do Estado e todo o cidadão são formas de concretizar a justiça social
e conduzir a sociedade para um cenário mais justo, igualitário, equânime e humanizado.

Palavras-chave: Ações Afirmativas. Injustiças. Justiça Social. Políticas Públicas. Sociedade.

INTRODUÇÃO

A ideia de justiça e a teoria da justiça sempre ensejam debates em torno de temas amplos, caros e sen-
síveis para todo o cidadão. A sociedade atual, apesar de avanços perceptíveis na melhoria da qualidade de
vida e de acesso aos direitos fundamentais, ainda demonstra uma realidade nua e crua que muitos cidadão
enfrentam diariamente seja pela desigualdade, pela dificuldade de acesso ou simplesmente pelo descaso.
Desse modo, o conteúdo que tange a pesquisa foi realizado em artigos, dissertações, livros e
site relacionados ao tema, utilizando a metodologia indutiva e o método analítico-descritivo. Este
artigo, além da introdução, tem o intuito de trazer fundamentos e conceitos o entendimento acerca
da justiça social e sua essencialidade.
Nesta senda, aprofundou-se a pesquisa na temática da justiça social e a compreensão do que
ela é e da importância dentro da sociedade democrática de direito. Ainda, perscrutou-se saber quais
os meios para concretizar a justiça social e minimizar as injustiças dentro da sociedade, bem como
se investigou quais os desafios contemporâneos a serem enfrentados para garantir e perfectibilizar a
justiça social plena. Buscou-se de modo simples, numa pesquisa não exaustiva, aclarar questões de
um tema tão abrangente e tão essencial para cada ser humano.
Instrumentalizar e concretizar a justiça social é fundamental para toda a sociedade. A partir da
sua implementação efetiva é possível vislumbrar as mudanças positivas produzidas, bem como a
melhoria da qualidade de vida das pessoas, a minimização das desigualdades e injustiças, mantendo
sempre o propósito de construir uma sociedade mais justa, igualitária e equânime.

1 CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA SOCIAL E SUA ESSENCIALIDADE

Falar de justiça social ainda é tema de amplo debate nas áreas das ciências sociais. Para tanto,
não existe um conceito fechado do que é justiça social. Pizzio (2016) aduz que a ideia da justiça social

216 Graduanda do 10º semestre do Curso de Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, URI-
Campus Erechim-RS, membro integrante do Grupo de Estudos do Centro Brasileiro de Pesquisas sobre a Teoria da Justiça de
Amartya Sen – IMED – Passo Fundo, RS. E-mail: simonels17@hotmail.com
217 Graduada em Agronomia, Pós graduanda em Gestão e Sustentabilidade Ambiental – Uergs – Campus Erechim, Mestran-
da do Curso de Engenharia de Alimentos – Uri – Campus Erechim, RS. E-mail: josy_vesoloski@hotmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

esta centrada na ideia de uma justiça distributiva onde se tem a máxima de que é necessário dar a cada
indivíduo o que lhe é devido, seja pela necessidade ou pelas escolhas, ou até mesmo pelo próprio mérito.
Para o autor, a justiça social constitui uma tarefa árdua a qual tem por intuito remover as desigualdades e
tem como meta alcançar um patamar elevado de justiça social dentro da sociedade brasileira.
Para Ignacio (2020) compreender a concepção do que é justiça social contempla a compreensão
e a ligação com os ideais de igualdade e equidade. Assim, resumidamente a igualdade é um princípio
fundamental para toda sociedade democrática, e é a partir da perfectibilização dela que será possível
que todo indivíduo desfrute seus direitos. Ademais, a autora ressalta que falar de igualdade sempre
gerará reflexões, investigações e discussões para se alcançar maior uniformidade de tratamento entre
os indivíduos dentro da sociedade, reduzindo desigualdades e estruturando tanto as políticas como
as lutas sociais. Ademais, para a autora a equidade está ligada a exigência do reconhecimento das
desigualdades existentes entre as pessoas a fim de assegurar o tratamento desigual aos desiguais
na busca da igualdade, assim, com suas diferenças, tanto a igualdade e a equidade são princípios
fundamentais e imprescindíveis para balizar políticas e lutas para a construção de sociedades justas
e mitigar as arbitrariedades, iniquidades, desigualdades e injustiças.
Nesse sentido, para Garcia Junior (2016) a justiça social pode ser entendida como aquela que
impulsiona e dirige a consecução do bem comum, faz com que todos direcionem os seus esforços para
criar bens econômicos que sejam capazes e que possam ser utilizados como medidas para garantir
a existência digna para toda a sociedade. Assim, a justiça social adquire um papel fundamental na
formatação das relações sociais e econômicas, importante e significativo para afirmar e segurar a
dignidade e para propiciar a concretização do bem comum.
Destarte, Lacerda (2016) sintetiza a justiça social sendo fundamental para a coexistência humana,
ressaltando que o papel dela se pauta em atenuar a disparidade econômico-material entre aqueles que
detêm mais riquezas e aqueles que pouco ou nada possuem (por condições não escolhidas). Contudo,
é importante compreender a justiça social, não somente nesse aspecto de bem-estar material, pois
cabe à sociedade política distribuir também bens culturais, educação entre outras necessidades para
aqueles que não possuem; não é a toa que na contemporaneidade se fala em salário justo, direito à
saúde, à cultura, ao lazer, à educação, enfim.
Como sociedade contemporânea, é perceptível que já houve um avanço significativo para
estruturar, proteger abarcar e contemplar um número maior de pessoas a fim de garantir direitos e
possibilitar a diminuição das desigualdades. A implementação de vários programas governamentais,
como exemplo as políticas públicas entre outros, são palpáveis e tornam isso mais claro e visível.
Nesse viés, para Lacerda (2016) todo esse amparo, ‘assistência’ e soma de forças para garantir
direitos aos que menos detêm, são declarados como direitos sociais, também tidos como direitos
humanos e vem se perfectibilizando dentro da sociedade democrática por meio de políticas públicas,
leis reformistas, ações afirmativas e decisões judicias.
Nesse passo, Sen (2010) retrata que direitos humanos são vistos como direitos de todos, comuns
a todos, são benefícios que todos deveriam ter. Assim, o autor considera que para a justiça social,
todos devem ser ativos nas decisões sociais, não apenas os socialmente privilegiados.
Essas questões voltadas para o benefício comum, o benefício geral, que abrange a maior
quantidade de pessoas possíveis, reforça a importância de perfectibilizar a justiça social, proporcionado
que qualquer pessoa tenha a oportunidade

como ler e escrever (por meio da educação básica), ser bem informado e estar atualizado (graças
a meios de comunicação livres) e ter oportunidades realistas de participar livremente (por meio
de eleições, plebiscitos e o uso geral dos direitos civis). Direitos humanos no sentido mais amplo
estão envolvidos nesse exercício. (SEN, 2010, p. 310).

Ramos e Oliveira (2016) acreditam que existe muita robustez na conceituação e noção de
justiça social, existem na doutrina diferentes modos de justificação que permitem novos contornos
no paradigma contemporâneo, desse modo, uma sociedade mesmo que não unânime, se torna
imprescindível perquirir novos caminhos para tornar uma sociedade mais equilibrada e justa, cabendo
ao Estado, aos representantes, instituições e a todos os cidadãos convergir para essa construção.
Nesse diapasão, Barzotto (2005) defende que a justiça social é ordenadora da vida social, está ligada

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a dignidade inerente de todos os seres humanos. Para o autor mencionado, a justiça legal é fundada na
legalidade que reforça e afirma a igualdade das pessoas em sociedade repudiando tratamentos desiguais
e injustos, que por sua vez impõem direitos e deveres iguais a todos, nesse sentido, essa mesma justiça
legal também se torna de certo modo uma justiça social, pois iguala as pessoas da comunidade, visa o
bem comum e almeja alcançar a igualdade proporcional em toda forma de distribuição.
Ainda, o autor supramencionado ressalta que todas as pessoas fazem parte da comunidade
em que vivem e se tornam partícipes quando estão engajadas e compromissadas em processos e
alternativas de garantir os mesmos direitos a todos, pois cada indivíduo deve respeitar no outro o
mesmo direito que exige para si próprio. Deste modo, o laço constitutivo da comunidade é formado
pela justiça social, pois a existência da comunidade depende de todos para terem ‘a mesma coisa’, ou
seja, os mesmos direitos e deveres garantidos de forma unânime.
Sendo assim, Silva Junior (2010) entende que múltiplas são as deduções interpretativas a respeito
do conceito de justiça social, pois conceituar de forma definitiva não é possível, pois tal conceito evolui
e se adapta conforme os avanços da sociedade, sobretudo, com o que ela mesmo julga ou compreende
como necessário, básico ou primordial. Desse modo, a proteção social assume um papel importante
em vista de equilibrar as disparidades sociais, e como fator de justiça social essa proteção tem como
essência amparar os menos favorecidos e por consequência, assegurar-lhes a estes o direito de uma vida
mais justa, digna, suprindo as necessidades básicas e mínimas, além de fomentar o desenvolvimento
socioeconômico. Para o autor, a proteção social acaba por ser um fio condutor da ordem econômica
eficaz, pois é através da sua perfecbilização e aplicação que se possibilita a garantia do bem-estar
as pessoas de um modo mais abrangente, e por consequência, toda a sociedade ganha com esse
crescimento socioeconômico, não somente os beneficiários dessa proteção.
Em linhas gerais, Moreira e Serau Junior (2015) consideram que é por meio da justiça social
que se alcançará a vida digna, dignidade esta que é inalienável e irrenunciável, sendo inerente,
imprescindível e de extrema importância para cada cidadão.
Desse modo, para Sem (2011) a concepção e a ideia de justiça social esta relacionada e conexa com a
liberdade e a capacidade que cada indivíduo tem para exercer, interligando com a oportunidade de escolha.
Como bem pontuado por cada autor, se extrai a partir de cada concepção, que a justiça social é
uma pretensão urgente e necessária para cada cidadão, bem como para a sociedade como um todo. A
sua essencialidade esta pautada em produzir melhoria na vida das pessoas, diminuir as desigualdades
e maximizar a igualdade proporcional com o idealismo voltado para a construção de uma sociedade
mais justa, igualitária, equânime e humanizada. Portanto, para oportunizar que essas mudanças
ocorram dentro da sociedade moderna é necessário perquirir novos caminhos e criar oportunidades
para se alcançar a almejada justiça social.

2 MEIOS PARA CONCRETIZAR A JUSTIÇA SOCIAL E MINIMIZAR AS INJUSTIÇAS

Para Sen (2010) remover as injustiças e promover a justiça social requer análise. O autor acredita
que é a partir da capacidade e do poder do indivíduo em participar da vida da comunidade é que
acontecerão as primeiras mudanças, ademais, é necessário proporcionar meios de ouvir as pessoas por
meio de um debate aberto e público. Desse modo “a capacidade (capability) de uma pessoa consiste nas
combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível para ela”, (SEN, 2010, p. 105).
Desta maneira, Sen (2010) acredita que todo o ser humana que tenha seu bem-estar comprometido
ou sofra uma injustiça, cabe ao Estado garantir formas de proteger e garantir a igualdade de diretos
e oportunidades. Pois por exemplo, a

desigualdade de rendas pode diferir substancialmente de desigualdade em diversos outros


espaços (ou seja, em função de outras variáveis relevantes), como bem-estar, liberdade e
diferentes aspectos de qualidade de vida (incluindo saúde e longevidade). E até mesmo realizações
agregativas assumiriam formas diferentes dependendo do espaço no qual a composição ou a
totalização é feita (por exemplo, um ranking das sociedades com base na renda média pode diferir
de um ranking baseado nas condições médias de saúde). (SEN, 2010, p. 128).

460
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Assim, o autor supramencionado acredita que a falta de renda pelo desemprego pode em certo
grau e em um período de tempo ser compensada com um auxílio-renda. Porém, para se ter alternativas
para garantir a justiça social almejada é necessário participação pública que concretize o exercício da
democracia e de uma escolha social responsável. A realização da justiça social está atrelada as formas
institucionais, bem como a prática efetiva.

A criação de oportunidades sociais contribui diretamente para a expansão das capacidades humanas
e da qualidade de vida. A expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social etc. contribui
diretamente para a qualidade de vida e seu florescimento. Há evidências até de que, mesmo com renda
relativamente baixa, um país que garante serviços de saúde e educação a todos pode efetivamente
obter resultados notáveis da duração e qualidade de vida de toda a população. A natureza altamente
trabalho-intensiva dos serviços de saúde e educação básica e do desenvolvimento humano em geral
faz com que sejam comparativamente baratos nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico,
quando os custos da mão de obra são baixos. (SEN, 2010, p. 191).

Para Souza e Brandalise (2015) a concretização da justiça social ocorre por meio da participação
popular efetiva na política, assim, a justiça social é um modo de justificação de adoção de medidas,
de possibilidades que propiciam e facilitam um resultado de empoderamento de classes excluídas e
faz com sejam diminuídas as desigualdades sociais.
Desse modo, Ignacio (2020) frisa que a formalização da justiça social se concretiza e por meio
das ações afirmativas e por meio das políticas compensatórias, visando combater as desigualdades
e através desses dois instrumentos pode-se garantir acesso a posições importantes na sociedade
de cidadãos que de certa maneira ficariam excluídos. Assim, o Estado, por meio da adoção desses
instrumentos poderá melhorar a vida em sociedade em todos os âmbitos, e com isso, mitigando
e minimizando a discriminação, a exclusão, seja ela uma exclusão social, cultural, educacional e
econômica de muitos cidadãos, promovendo a solidariedade e a justiça de modo pleno.
Nesta senda, Sen (2010) acredita que é por meio do debate público, por meio das discussões
abertas que será possível criar meios para remover as injustiças dentro da sociedade, direcionando
políticas públicas adequadas.

A política pública tem o papel não só de procurar implementar as prioridades que emergem de
valores e afirmações sócias, como também de facilitar e garantir a discussão pública mais completa.
O alcance e a qualidade das discussões abertas podem ser melhorados por várias políticas públicas,
como liberdade de imprensa e independência dos meios de comunicação (incluindo ausência de
censura), expansão de educação básica e escolaridade (incluindo a educação das mulheres), aumento
da independência econômica (especialmente por meio de emprego, incluindo o emprego feminino)
e outras mudanças sociais e econômicas que ajudam os indivíduos a ser cidadão participante.
Essencial nesta abordagem é a ideia do público como um participante ativo da mudança, em vez de
recebedor dócil e passivo de instruções ou de auxílio concedido. (SEN, 2010, p. 358).

O Estado pode criar espaços para oportunizar o debate público, porém é importante ressaltar
que o local e os horários sejam compatíveis, de fácil acesso e que possam oportunizar a participação
real do indivíduo da sociedade civil. Ainda, é interessante reforçar que não basta o poder público criar
estes espaços, é preciso que o cidadão se sensibilize e participe ativamente, cobre as demandas, exija
mudanças, peça reavaliação de atos públicos. Poder público e cidadão devem ter uma ligação de mão
dupla e com a essência voltada para o bem comum, bem universal.
Assim, Sen (2011, p. 74) deixa claro que “o papel da argumentação pública irrestrita é bastante
central para a política democrática em geral e para a busca da justiça social em particular”. Todavia,
quando se fala em escolha social existe uma pluralidade de razões que exigem a atenção e todas
sendo consideradas como questões de justiça social, Nesse caminho, é importante reavaliar e analisar
com mais profundidade cada anseio, pois a teoria da justiça tem que possibilitar dar espaço para a
tentativa e para a assertividade. Sen (2011) ressalta que a tentativa proporciona refletir as dificuldades
operacionais (que tratam da limitação de conhecimento, complexidade de cálculo ou qualquer outra
barreira de aplicabilidade), já a assertiva foca na solução. Resumidamente para o autor mencionado,
é necessário “repensar o comportamento por razões de justiça social e a necessidade institucional
de avançar na busca de justiça social, tendo em conta os parâmetros comportamentais em uma
sociedade”, (SEN, 2011, p. 142).

461
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Na verdade, a ligação fundamental entre argumentação pública, por um lado, e as demandas de


decisões sociais participativas, por outro, é fundamental não apenas para o desafio prático de tornar a
democracia mais efetiva, mas também para o problema conceitual de basear uma ideia devidamente
articulada de justiça social nas exigências da escolha social e da equidade. (SEN, 2011, p. 143).

Resta cristalino enfatizar que para propiciar a escolha social visando à justiça social, também
deve ser levando em conta a imparcialidade. Sen (2011) faz uma ressalva quanto à imparcialidade
aberta e a imparcialidade fechada. No caso da imparcialidade fechada, o autor destaca que o processo
de fazer juízos de valor e sopesar a imparcialidade decorre da invocação dos membros da sociedade
(o povo), já a imparcialidade aberta à avaliação da imparcialidade pode invocar juízos de fora, aquém
da sociedade local, sendo esta visão imparcial de alguém que não pertença ao meio, à realidade local.
“A liberdade democrática pode certamente ser usada para promover justiça social e favorecer uma
política melhor e mais justa. O processo, entretanto, não é automático e exige ativismo por parte dos
cidadãos politicamente engajados”, (SEN, 2011, p. 386).
Por conseguinte, Sen (2010) retrata que o desenvolvimento só será possível quando se remover as
desigualdades. Existem desafios para serem superados, o caminho pode parecer árduo, mas acima, é notável
que muitas mudanças já produziram diferenças positivas em meio a sociedade. Assim coadunando com
a ideia do autor, é perspicaz que a efetivação das liberdades políticas, dos direitos civis, da capacidade e
das oportunidades sociais e todo o conjunto de ações que visam à proteção social são meios de efetivar as
justiça social, além de formarem um conjunto de bens imensuráveis para proporcionar uma boa qualidade
de vida digna dentro de uma sociedade democrática estruturada e moderna.

3 DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS PARA GARANTIR E PERFECTIBILIZAR A JUSTIÇA SOCIAL

Pesaro (2020) menciona que a justiça social no nosso país depende de mudanças profundas e todos
sem exceção são responsáveis por esta mudança, pois a equidade social garante a universalização do aces-
so a variados direitos previsto nas mais diversas leis que temos vigente. O autor ainda faz menção de que é
preciso incorporar práticas de desenvolvimento sustentável que venham garantir a justiça social, todos os
cidadão devem lutar para abolir as práticas de discriminação independentemente de qual for, pois essa e ou-
tras condutas não podem impedir o acesso de qualquer pessoa à saúde, a educação, ao trabalho, a cultura,
enfim. É necessário efetivar a equidade de oportunidades para desenvolver estratégias capazes de minimi-
zar os obstáculos decorrentes da realidade individual ou social, reconhecendo sempre que possível maior
parte das desigualdades existentes para, a partir de então removê-las e promover a justiça social de fato.
Nesse sentido, a Constituição Federal atual218 preconiza no Art. 193, que o Estado terá como
prerrogativa planejar as políticas sociais, e a ordem social objetiva tanto o bem-estar como a justiça
social. Assim, ainda a Magna Carta, interligada com a promoção da justiça social, elenca no Art. 203
uma série de objetivos:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de
contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao
idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por
sua família, conforme dispuser a lei. (BRASIL, Constituição Federal De 1988).

Em vários artigos da Constituição é possível vislumbrar garantias, direitos e deveres de toda a


sociedade, contudo sabe-se que muitas vezes o acesso não é tão facilitado como deveria efetivamente

218 BRASIL, Constituição Federal de 1988, “Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo
o bem-estar e a justiça sociais.
Parágrafo único. O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participa-
ção da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas.”

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ser. Obstáculos para efetivar e proporcionar a distribuição equânime de direitos ainda é falha e
perpetua de certo modo a desigualdade dentro da sociedade contemporânea.
Nesse compasso, um direito amparado na magna carta é a educação219, e para efetivar o acesso
de todos, principalmente aos mais excluídos, Motta (2014) explicita que foi por meio das ações
afirmativas que se possibilitou equacionar a disparidade social no âmbito da educação. As ações
afirmativas garantem a aplicabilidade dos direitos garantidos aos indivíduos. Nesse sentido, a autora
salienta que o sistema de reserva de vagas, de cotas, para cidadãos negros e cidadãos de baixa renda
facilitou o ingresso e o acesso a muitos acadêmicos, garantido a educação ao ensino superior.
Ainda Motta (2014) aduz que viabilizar o acesso ao emprego público através da implementação de
ações afirmativas instituindo cotas nos concursos públicos também favorece parcela da população. O direito
e a justiça andam lado a lado, cabendo ao Estado proporcionar meios capazes de efetivá-los. A autora
menciona que não existe receita pronta para viabilizar, mas o Estado precisa aplicar e direcionar as políticas
públicas e sociais, e constantemente reavaliá-las, encontrando um ponto de equilíbrio para garantir efetiva e
continuamente a entrega da justiça social aos cidadãos da atual sociedade plural moderna e multifacetada.
Ribeiro (2015) sintetiza que a justiça social esta relacionada à noção de igualdade na distribuição
de bens aos indivíduos da sociedade, dentro desses bens, a saúde vincula o Estado como responsável
por esta distribuição. Nesse contraponto, o autor considera que a saúde não pode ser considerada
como sinônimo de qualidade de vida, mas ela deve ser constituinte da noção satisfatória de qualidade
de vida. O Estado deve garantir acesso a todos, inclusive a constituição garante essa universalidade.
Nesse diapasão, Gerbase (2020) destaca que a justiça social almejada pode ser alcançada por
meio da justiça fiscal e da arrecadação tributária. Desse modo, a autora elenca cinco medidas que
estão nas mãos do governo em relação à melhoria da justiça fiscal e social. A primeira medida está
direcionada a promover um sistema tributário mais justo, a segunda visa priorizar o gasto social no
orçamento público, já a terceira medida se atenta em garantir que as pessoas mais ricas paguem
seus impostos, a quarta medida busca revisar os incentivos fiscais, combatendo as injustiças, e como
quinta e última medida elencada pela autora, se pauta em assegurar que as pessoas mais vulneráveis
sejam atendidas e priorizadas na política fiscal.
Ainda, a autora supramencionada ressalta que a política fiscal deve identificar as disparidades e
corrigi-las, além de direcionar orçamento para a população vulnerável por meio de políticas públicas.
Assim, ela acredita que o governo precisa focar a visão para a política orçamentária e tributária
voltada para as desigualdades, fazendo a identificação das barreiras que os indivíduos enfrentam em
decorrência do sexo, da idade, raça, religião, região, deficiência entre outras peculiaridades, ignorar
essas barreiras é corroborar para a perpetuação das injustiças dentro da sociedade moderna.
Sabe-se que muitas políticas públicas, ações afirmativas, entre outras medidas de enfrentamento
a desigualdade e em busca da justiça social foram efetivadas e obtiveram o resultado esperado. Em
meio a uma sociedade plural e multifacetada que convive e enfrenta oscilações constantes na economia,
se faz necessário reavaliar se realmente as atuais ações governamentais com a essencialidade voltada
para a justiça social estão surtindo o efeito esperado. Analisar, reavaliar e garantir a efetivação deve
não somente ser o compromisso e a responsabilidade de cada Estado, mas de todo e qualquer cidadão
em busca de uma sociedade que tenha como primazia a verdadeira justiça social que visa o bem estar
e a qualidade de vida digna para todos sem exceção.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como bem visto, é por meio da formalização e da concretização de ações voltadas para a justiça
social é que a sociedade é elevada a um patamar diferenciado e pautado na preocupação com o ser
humano, com o outro. As verdadeiras ações pensadas com o viés voltado para a justiça social são
tracejadas pela alteridade e na eliminação do egocentrismo.
A justiça social tem a essencialidade relacionada à remoção das desigualdades sociais e todos

219 BRASIL, Constituição Federal de 1988, “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será pro-
movida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

os modos, os métodos de concretizá-la vão estar voltadas para ações que visem a resolução dessas
desigualdades. Obviamente o Estado é o anfitrião para promover e perquirir meios para compensar
e minimizar estas desigualdades sociais, contudo, cabe a qualquer instituição, a qualquer cidadão
buscar mecanismos capazes de suprir esta lacuna, romper barreiras e maximizar a justiça social por
meio de ações capazes de produzirem diferenças positivas e significativas dentro da realidade social.
Muitas ações afirmativas, políticas públicas, sistemas de garantias e de acesso fizeram e
continuam fazendo a diferença para minimizar as desigualdades sociais, porém, ainda existe um
caminho longo a seguir a fim de garantir a igualdade de tratamento entre os povos, o respeito às
diversidades existentes, a promoção do desenvolvimento socioambiental...
Alcançar com plenitude a justiça social não é uma tarefa fácil, mas é preciso cada vez mais
conhecer sobre o que ela é, toda a amplitude que a cerca, analisando a realidade local e delineando com
assertividade as mudanças que se esperam produzir e que essas mudanças sejam realmente capazes
de serem efetivadas. Garantir a perfectibilizarão da justiça social dentro da sociedade democrática de
direito requer responsabilidade, compromisso e ativismo, pois ela é tida como um princípio norteador
e de grande valia para a coexistência pacífica e digna de toda a sociedade.

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465
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

LOOT BOXES: OS JOGOS ELETRÔNICOS ESTÃO


SE TRANSFORMANDO EM JOGOS DE AZAR?

Rafael Sangoi 220

Stéfani Reimann Patz 221

RESUMO: O presente artigo objetiva analisar o que são as loot boxes e se elas podem ser caracterizadas
como jogos de azar. Nesse intuito, será investigado como se dá o uso das novas tecnologias na
sociedade contemporânea, quais foram algumas das repercussões da pandemia da COVID-19 no setor
dos e-games, o que são as loot boxes, quais são algumas das repercussões que os jogos causam (em
especial em no público infanto-juvenil) e se os jogos eletrônicos estão se transformando em jogos de
azar. Para isso, será utilizado o método de abordagem descritivo, com suporte em revisão de literatura
e análise descritiva dos fenômenos pesquisados. Em conclusão, aponta-se para a necessidade de
primeiro enquadrar as loot boxes como jogos de azar, para em seguida, efetuar a regulação da temática.

Palavras-chave: Loot boxes; Jogos eletrônicos; Jogos de azar; Tecnologia.

INTRODUÇÃO

A pesquisa dedica-se ao estudo das loot boxes, questionando se os jogos eletrônicos estão se
transformando em jogos de azar, considerando a ausência de legislação específica dessa prática na
grande maioria dos países, em especial com relação ao público infanto-juvenil. A temática tem sido
debatida com maior ênfase em razão das preocupações da comunidade interacional com a (in)efetividade
de diretrizes e políticas para a proteção das crianças e adolescentes no mundo dos e-games.
As perguntas que norteiam o estudo pretendem investigar os efeitos da pandemia da COVID-19
no aumento dos números de usuários de jogos virtuais, a conceituação das loot boxes e as repercussões
dessa prática, considerando, é claro, a ausência de legislação sobre a temática.
Nesse mote, apresenta-se um breve histórico do desenvolvimento do universo conectado e as
repercussões da pandemia da COVID-19 no aumento dos números de jogadores de jogos virtuais.
Na sequência, aborda-se o que são as loot boxes e quais as repercussões gerais da prática. Por fim,
investiga-se a transformação de jogos eletrônicos em jogos de azar.
Para isso, será utilizado o método de abordagem descritivo, com suporte em revisão de literatura
e análise dos fenômenos pesquisados. Importante salientar que, não se busca uma análise exaustiva
do assunto em comento, o que, pelo pouco espaço, associado à densidade da temática, seria inviável.
A proposta do presente estudo é tão somente situar o/a leitor/a acerca da importância do tema.

1 TECNOLOGIA E A PANDEMIA DO COVID-19

Há um tempo a tecnologia deixou de ser apenas uma ferramenta para resolver problemas, facilitar o dia
a dia ou aumentar a produtividade. Turbinada pelo digital e por um ambiente disruptivo sem precedentes na

220 Qualificação completa do autor. Mestre em Direitos Especiais pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direi-
to - Mestrado e Doutorado da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Campus Santo Ângelo/
RS (2020). Bacharel em Direito pela Faculdade Metodista de Santa Maria (2016). Possui experiência na área de Direito, com
ênfase em Direito Digital.
221 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito - Mestrado e Doutorado da Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Campus Santo Ângelo/RS. Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação
de Instituições Comunitárias de Ensino Superior (CAPES/PROSUC). Bacharela em Direito pela URI, Campus Santo Ângelo/RS.
Pesquisadora voluntária dos projetos de pesquisa “Crisálida: Direito e Arte” e “Internet, liberdade de informação, manipula-
ção de comportamentos e a desestabilização do processo democrático”. E-mail: stefani.patz@hotmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

história, a tecnologia se infiltrou em camadas cada vez mais humanas, sensíveis e íntimas da vida como os
relacionamentos, o estudo, a religião, o lazer e até a morte, influenciando a maneira de pensar, agir e sentir.
Na visão de Abel Reis, especialista em comunicação digital brasileiro, a tecnologia tem o “poder
de nos impactar para além de seus objetivos e funções inicialmente previstos. Provoca ‘efeitos
colaterais’ que, a essa altura, já são nosso modo de funcionamento ‘original’ no mundo.” (2018,
p. 48). A tecnologia transforma a “dinâmica corporal (agilidade nos dedos, as costas curvadas e a
vista cansada por interagir com telas e teclados são exemplos disso), afetiva (relação com o tempo,
sociabilidade e empatia) e cognitiva (concentração e memória).” (2018, p. 48).
Para Susan Greenfield, neurocientista britânica e pesquisadora sênior da Universidade de Oxford,
as tecnologias digitais “afetaram nosso cérebro da mesma forma que qualquer elemento de interação
que faça parte do nosso cotidiano”. Consoante a autora, isso altera a forma como “nos relacionamos
com os outros e a distribuição do nosso tempo para determinadas atividades”.
Questionada sobre como a imersão num ambiente virtual pode afetar o cérebro, a Greenfield
divide a sua resposta em três pontos. O primeiro é o impacto das redes sociais na identidade e nos
relacionamentos. O segundo é o impacto dos videogames na atenção, agressividade e dependência.
E o terceiro é sobre o impacto dos programas de busca no modo como as pessoas diferenciam
informação de conhecimento e como aprender de verdade. (ROSSI, 2018, s.p.). Conforme a autora:

[...] já foi demonstrado que jogar videogames pode ser similar a fazer um teste de QI. Pode ser que o
aumento de QI visto em alguns testes aconteça graças à repetição de uma certa habilidade ao jogar
videogames. Agora, só porque vemos um aumento de QI em quem joga videogames não quer dizer que
haja um aumento de criatividade ou capacidade de escrita. Também se sabe, por alguns estudos, e por
exames de imagem, que os videogames aumentam áreas do cérebro que liberam dopamina. Também
sabemos que, em casos extremos, nos quais as pessoas gastam até 10 horas por dia na frente da tela,
existe uma forte correlação com anormalidades em exames cerebrais. (ROSSI, 2018, s.p.)

Portanto, pode-se facilmente afirmar que esses impactos e seus desdobramentos são objetos
de diversos estudos e pesquisas há algum tempo, e que, os avanços das tecnologias digitais já são
sentidos no cotidiano de grande parte da população. Atividades que já eram habituais começaram a
ter um crescente protagonismo no cotidiano das pessoas. O consumo de games, que já movimentava
quantias bilionárias no mercado ano após ano, vem se tornando um dos ramos de entretenimento
mais rentáveis em âmbito mundial nos últimos anos.
E então chegou 2020 e por essa ninguém esperava. Quem poderia prever que o ano de 2020 seria
assim? Um ano, no mínimo, atípico. Distantes e ao mesmo tempo conectados, todos depararam-se com
a seguinte notícia: “a pandemia da COVID-19”. O mundo parou e em alguns momentos/locais, o caos foi
instaurado. Voos cancelados, corridas por papel higiênico, cantorias e aplausos em varandas italianas e
brasileiras. Uma “gripezinha” para alguns e um lembrete que “a vida é um sopro” para outros. Na visão de
professor Celso Gabatz, as pandemias “dizem mais sobre nós mesmos do que a doença em si”. (2020, p. 1).
Cabe pontuar que o período de quarentena vem sendo marcado por uma crise econômica
generalizada em vários países, inclusive no Brasil, que tem afetado as mais diversas indústrias.
Contudo, o mercado de games foi um dos únicos impactados positivamente em meio ao caos
provocado pela pandemia da COVID-19.
No entendimento de Carla Matsu, ainda que o hábito de consumo de games venha seguindo um
crescimento constante nos últimos anos, essa curva foi acelerada nesse momento em que as pessoas
estão recolhidas em suas casas. Na visão da autora, isso ocorreu com a necessidade do isolamento social,
uma vez que as pessoas começaram a buscar novas formas de entretenimento para gastar o tempo
ocioso, colaborando assim com o sucesso nas vendas de jogos e equipamentos eletrônicos. (2020, s.p.).
Matsu lembra que o hábito de jogar já era um comportamento presente no dia a dia das pessoas,
e a tendência é que o mercado de games continue conquistando novos adeptos e mantenha-se em
constante ascensão, reforçando cada vez mais a influência das mídias digitais na vida das pessoas.
De acordo com a 2020 Global Games Market Report, um relatório publicado pela Newzoo, a indústria
de videogames deve gerar U$ 159 bilhões até o fim de 2020. Mesmo diante uma situação mundial delicada,
é previsto um aumento de cerca de 9,3% das receitas no setor. O relatório apontou que os mercados
emergentes, como o Oriente Médio e África, já ultrapassaram a Europa e a América do Norte em termos
de crescimento de jogadores. Todavia, tratando especificamente sobre o poder financeiro, os territórios

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europeus e norte-americanos continuam à frente das regiões citadas. (2020, s.p.). Neste contexto, o próximo
tópico observa o que são as loot boxes e alguns aspectos relevantes do universo dos jogos virtuais.

2 UNIVERSO DAS LOOT BOXES

Um relatório divulgado em 2018 pela Comissão de Jogos do Reino Unido, identificou que 450
mil crianças entre 11 e 16 anos apostam regularmente, mais do que aquelas que usam drogas, fumam
ou bebem álcool. Além disso, a Comissão observou, que 13% dos adolescentes de 11 a 16 anos
jogavam jogos no estilo de jogos de azar online e que 31% haviam acessado as caixas de saque em
um videogame ou aplicativo para tentar adquirir itens em algum jogo (UNITED KINGDOM, 2018, s.p.).
Dessa perspectiva, faz-se necessário conceituar loot boxes, também chamadas de caixas de
recompensas ou caixas de saques, que nada mais são, do que caixas com itens sortidos que podem
ser obtidas dentro do jogo. Comprar uma delas é exatamente como uma aposta: o jogador pode
conseguir um item raro ou precioso ao jogo, ou então, adquirir algo inútil, indesejável, trazendo com
isso, questionamentos, pelo crescente aumento do número de pessoas conectadas à internet e pelo
elevado número de crianças e adolescentes praticantes de jogos eletrônicos, como Counter Strike:
Global Offensive (CS:GO), League of Legendes (LoL), Fortnite, FIFA Ultimate Team e GTA, para citar
alguns dos mais famosos e-games da atualidade.
Esse modelo de negócio, também chamado no Japão de gacha gaming, baseado em nudges, tem
o potencial de literalmente viciar o jogador, haja vista a sequência crescente e estruturada a partir
de algoritmos que estimulam o consumo por meio de pagamentos que tornam a rotina insaciável,
especialmente para crianças e adolescentes.
Mark Griffiths, Diretor da Unidade Internacional de Pesquisa em Jogos e professor de Dependência
Comportamental na Nottingham Trent University, alega que alguns podem argumentar que comprar
caixas de saque não seria um jogo, porque as recompensas só têm valor dentro do jogo. Mas nem
sempre é assim: há muitos sites independentes (como loot.farm e skins.cash), que permitem aos
jogadores trocar itens no jogo ou moeda virtual, em troca de dinheiro real. Além disso, argumenta
que os “prêmios” ganhos são – em termos financeiros – muitas vezes menos valiosos do que os preços
pagos. Com efeito, é uma loteria sobre quais itens podem ser ganhos. (GRIFFITHS, 2018b, s.p.).
Ocorre que o perigo das estratégias das loot boxes acontece no plano real e não somente no meio
eletrônico, na medida em que são desenhadas para serem reforçadores muito eficientes, usando vários
recursos estéticos e comportamentais para estimular a liberação de dopamina no cérebro, levando a
um comportamento compulsivo muito similar ao que a sensação de vitória nos jogos de azar é capaz
de fazer. Um estudo recente encontrou evidências entre a quantia que os jogadores de videogames
gastavam com as caixas de saque e a gravidade do problema que tinham com jogos. Em uma pesquisa
com 7.422 jogadores, identificou-se que quanto mais dinheiro uma pessoa gastava comprando caixas
de saque, maior a probabilidade de ser um jogador com problemas (GRIFFITHS, 2018b, s.p.).
Pesquisadores da Universidade de Yale fizeram um estudo com jogadores colocados diante de
um vídeo com imagens de pessoas jogando e falando de jogos. Através de um exame chamado
ressonância magnética funcional, capaz de mapear as áreas cerebrais que estão em atividade mais
intensa naquele momento, os autores verificaram que, ao assistir ao vídeo, entram em atividade no
cérebro do jogador áreas do lobo frontal e do sistema límbico idênticas às dos usuários de cocaína
colocados diante da droga (VARELLA, 2002, s.p.). Portanto, jogos de azar e drogas que podem causar
dependência química como a cocaína, ativam as mesmas estruturas cerebrais. (BRUNA, 2011, s.p.). Os
jogos, portanto, propiciam uma multiplicidade de satisfações. (MCLUHAN, 1964, p. 269).
Os jogos são modelos dramáticos de nossas vidas psicológicas, e servem para liberar tensões
particulares. [...] A incerteza do resultado de nossas disputas constitui uma justificativa racional para o
rigor mecânico das regras e procedimentos do jogo. (MCLUHAN, 1964, p. 268). Nas sociedades tribais,
o jogo de azar era um caminho bem visto para os esforços de realização e de iniciativa particular.
Numa sociedade individualista, os mesmos jogos e loterias parecem ameaçar toda a ordem social. O
jogo leva a iniciativa individual a um ponto de zombaria de toda a estrutura social individualista. A
virtude tribal é o vício capitalista. (MCLUHAN, 1964, p. 263).

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Em decorrência desses efeitos negativos, no ano de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
publicou a nova Classificação Internacional de Doenças (CID-11), um sistema que foi criado para listar, sob
um mesmo padrão, as principais enfermidades, problemas de saúde pública e transtornos que causam
morte ou incapacitação de pessoas. Pela primeira vez, o vício em videogames foi incluído como perturbação
mental, ou seja, doença caracterizada pela “perda de controle no jogo”. O diagnóstico considera, por
exemplo, a falta de controle e a prioridade dos jogos na vida da pessoa (AGÊNCIA BRASIL, 2018, s.p.).
McLuhan muito bem argumenta quando diz que o jogo é uma máquina que começa a funcionar
só a partir do momento em que os participantes consentem em se transformar em bonecos
temporariamente. Para o homem individualista ocidental, muito de seu ajustamento” à sociedade tem
o caráter de uma rendição pessoal aos imperativos coletivos. (1964, pp. 267-8). Os jogos são situações
arbitradas que permitem a participação simultânea de muita gente em determinada estrutura de sua
própria vida corporativa ou social. (1964, p. 275). São formas artísticas populares e coletivas que
obedecem a regras estritas. (1964, p. 266).
Situada na trama dessas relações progressivamente tensas nos últimos anos e demonstrada a
importância de se trazer polêmicas como esta às lentes acadêmicas, servindo para enriquecer nossa
epistemologia legal, inicia-se a pesquisa, centrando-se na problemática de que as micro transações
decorrentes do uso de loot boxes são propulsionadas, na maioria das vezes, pela facilidade de
aquisição das mesmas – um click –, associadas à ausência de legislação específica dessa prática na
grande maioria dos países, inclusive para o público infanto-juvenil.

3 LOOT BOXES E A TRANSFORMAÇÃO DOS JOGOS ELETRÔNICOS

Para responder a premissa inicial do trabalho: se estariam as loot boxes transformando jogos
eletrônicos em jogos de azar, é preciso identificar o modelo de mercado adotado pelas empresas
produtoras de jogos eletrônicos, que tanta polêmica vem trazendo ao cenário dos e-games, para
posteriormente se falar em loot boxes e jogos de azar.
Cumpre ressaltar, como destaca o sociólogo David Lyon, que todo desenvolvimento tecnológico
certamente é o produto de relações culturais, sociais e políticas. Tudo que chamamos de “tecnologia” é mais
propriamente uma característica de relações “tecnossociais” ou “sociotécnicas”. (2013, p. 91). Lyon enfatiza
não estar propondo, claro, que as novas tecnologias sejam uma espécie de ferramenta “neutra”, cuja direção
moral é revelada apenas naquilo “para o qual é usada”, ao contrário, as instituições não são neutras, o
mercado não é neutro, por consequência, a tecnologia da internet também não é neutra, especialmente a
tecnologia utilizada pela rentável indústria de jogos eletrônicos. (2013, p. 91). Para McLuhman,

Os jogos são artes populares, reações coletivas e sociais às principais tendências e ações de
qualquer cultura. Como as instituições, os jogos são extensões do homem social e do corpo político,
como as tecnologias são extensões do organismo animal. Tanto os jogos como as tecnologias
são contra-irritantes ou meios de ajustamento às pressões e tensões das ações especializadas
de qualquer grupo social. Como extensões da resposta popular às tensões do trabalho, os jogos
são modelos fiéis de uma cultura. Incorporam tanto a ação como a reação de populações inteiras
numa única imagem dinâmica. Mudam as culturas, mudam os jogos. (1964, pp. 264-9).

No estudo Freedom of Connection, Freedom of Expression222, uma publicação da UNESCO, que


possui como alvo, delimitar as garantias que devem ser respeitadas no uso da internet, foi dedicado
um trecho para a defesa da liberdade de informação. Segundo Wittzack (2010, p. 1945), a liberdade
de informação foi reconhecida pelas Nações Unidas em 1946, com a Resolução n. 59, a qual diz que:
“A liberdade de informação é um direito humano fundamental e (...) a pedra de toque para todas as
outras liberdades que a ONU consagra.”223
Diante da espiral do silêncio imposto pela indústria de jogos eletrônicos sobre o tema das loot boxes,
ferindo a liberdade de informação dos envolvidos, inclusive do público infanto-juvenil, onde os jogos

222 Tradução livre: “Liberdade de Conexão, Liberdade de Expressão.”


223 Tradução livre: “freedom of information is a fundamental human right and … the touchstone of all the freedoms to which
the UN is consecrated.”

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possuem um apelo popular muito elevado, pelo gosto que esse público tem por e-games, pelo tempo que
despendem jogando, além do elevado risco de tornarem-se viciados em jogos eletrônicos pela vulnerabilidade
e imaturidade associadas à tenra idade, critica-se a facilidade com que são ofertadas e posteriormente
adquiridas: um click. Em entrevista para o Drauzio Varella, o psiquiatra Hermano Tavares informou que:

Está assustando muito os americanos que a taxa de jogo patológico na geração adulta atual seja
algo em torno de 2% e, nos adolescentes, 6%, quer dizer, três vezes maior. As crianças que estão
nascendo hoje fazem parte de uma geração que não se conhece o comportamento em relação aos
jogos de azar. Ao contrário dos adultos que começaram a ter exposição maciça a esse tipo de jogo
num passado recente, elas estarão expostas desde o dia em que nasceram. Assim que aprenderem
a entrar no computador e a acessar a internet, terão cassinos virtuais à disposição e muitas não
resistirão ao apelo e irão jogar. (BRUNA, 2011, s.p.).

Assim, para especificar o conceito de loot boxes, faz-se necessário associá-lo à ideia de micro
transações em jogos eletrônicos, sendo essas caixas de recompensas, subcategorias de micro
transações, onde há o intercâmbio de dinheiro real por créditos em um jogo específico. Dessa
forma, micro transações são, essencialmente, funcionalidades adicionadas aos jogos eletrônicos,
para majoritariamente permitir o intercâmbio de dinheiro real em créditos em um determinado
jogo. Esses créditos, posteriormente, podem ser utilizados pelo jogador para adquirir algo dentro
do jogo (seja um personagem, um equipamento, um item estético, entre outros), prática que ficou
popularmente conhecida como pay to win (pague para vencer). Contudo, o diferencial nesses jogos,
consiste no fato de que esses créditos não são usados diretamente para que o jogador adquira algo
específico e determinado dentro do jogo, ao invés disso, paga-se por um item surpresa/desconhecido,
associando-se essa prática, aos jogos de azar. O problema principal, portanto, está nas probabilidades
excessivamente baixas de se adquirir o item desejado, fato que corrobora para que os jogadores,
inclusive crianças e adolescentes, gastem quantias cada vez mais elevadas nessas compras.
No artigo “Is the Buying of Loot Boxes a Form of Gambling or Gaming224?”, de Mark Griffiths, o
autor define loot boxes como, a compra de caixas de recompensa que ocorre nos videogames online e
são (em essência) jogos de azar virtuais. Os jogadores usam dinheiro real para comprar itens virtuais
no jogo e podem resgatá-los comprando chaves para abrir as caixas, onde recebem uma chance de
seleção de outros itens virtuais. Outros tipos de ativos virtuais no jogo, equivalentes que podem ser
comprados, incluem caixas, baús, pacotes e pacotes de cartões (GRIFFITHS, 2018a, s.p.).

A compra de caixas de recompensas dá-se dentro dos videogames on-line e são (em essência)
jogos virtuais de azar. Usuários utilizam dinheiro real para comprar itens de jogo virtuais e podem
coletar tais itens ao comprar códigos para abrir as caixas onde receberão a possibilidade de
uma seleção a mais de itens virtuais. Outros tipos de ativos virtuais dentro do jogo que podem
ser comprados incluem contêineres, baús, caixas, pacotes e decks de cartas. Os itens virtuais
que podem ser “conquistados” podem compreender uma customização básica (por exemplo,
cosmética), opções para o personagem de jogo do usuário (avatar) até ativos de jogo que auxiliam
o jogador a progredir de maneira mais efetiva no jogo (ex: itens de melhorias de gameplay como
armas ou armaduras). [1-3]. Todos os jogadores esperam que possam conquistar itens “raros” e
são frequentemente encorajados a gastar mais dinheiro para fazê-lo, pois as chances de conquistar
tais itens são mínimas. Muitos videogames populares hoje possuem caixas de recompensas (ou
equivalentes) incluindo Overwatch, Middle-earth: Shadow of War, Star Wars Battlefront 2, FIFA
Ultimate Team, Mass Effect: Andromeda, Fortress 2, Injustice 2, Lawbreakers, Forza Motorsport 7,
e For Honor [1,2]. Em resumo, todos esses requerem o pagamento de dinheiro real em troca de
itens completamente aleatórios de jogo. (GRIFFITHS, 2018a, s.p., tradução nossa).

Griffiths trouxe sua atenção para os efeitos negativos das loot boxes dentro de seu campo de es-
tudo, porque quando se abre (uma caixa de recompensas), se pega algo incrível (ou se pode pegar algo
inútil). Essa aleatoriedade toca em um dos caminhos fundamentais do funcionamento do nosso cérebro,
ao tentar predizer se uma coisa boa irá ou não acontecer. Nós estamos excitados particularmente pelos
prazeres inesperados como um punhado de frutas do bosque ou um skin (revestimento) épico para o
nosso personagem. Isso porque nossos cérebros tentam dar atenção e compreender tais recompensas

224 Percebe-se que quando países de língua inglesa tratam do assunto eles não usam “bad luck games” para definir jogos
de azar, mas sim, gambling, como sinônimo de jogos de azar.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

incríveis. Mas, diferentemente do mundo real, essas recompensas podem ser completamente aleatórias
(ou algo muito parecido, sendo irrelevante a diferença) e não podemos predizer a aleatoriedade. Mas o
sistema de recompensas no seu cérebro não sabe disso. Comprar (caixas de recompensas) coloca elas
na mesma categoria de pacotes e cartas de Pokémon ou cartas de baseball. Diferentemente da jogatina
em um casino, você receberá algo desse pacote. Apenas talvez não seja o que você queria. (GRIFFITHS,
2018a), como demonstra o caso recentemente ocorrido no Reino Unido, onde filhos menores esvazia-
ram a conta bancária dos pais, jogando Fifa19, e não conseguiram comprar o personagem desejado:
Lionel Messi. Quatro crianças, com idades inferiores a 10 anos, gastaram quase 550 libras (cerca de R$
2,6 mil) em três semanas comprando pacotes de jogadores do Fifa 19, game de futebol online, usando
a conta da família no Nintendo Switch. No jogo, é possível comprar pacotes de jogadores especiais, mas
o conteúdo do pacote só é revelado após o pagamento ser concluído (KLEINMAN, 2019, s.p.).

[...] Carter, pai das crianças, comprou um único pacote para eles por cerca de 8 libras (R$ 38),
e não percebeu que os filhos tinham observado como ele efetuou a compra. Segundo ele, o
Nintendo Switch foi confiscado “indefinidamente”. A Nintendo concordou em conceder reembolso
integral e removeu os jogadores comprados. Embora o game seja distribuído pela Electronic Arts,
os pagamentos foram feitos por meio da conta da família na Nintendo. (KLEINMAN, 2019, s.p.).

A Comissão do Reino Unido sobre Jogos de Azar, publicou texto sobre Virtual Currencies, E-s-
ports and Social Casino Gaming (2017, p. 7) onde na seção 3.17 alega que à exceção de websites ter-
ceirizados apresentados abertamente como de jogos de azar, (oferecendo apostas, jogos de cassino
e produtos de loteria) a habilidade de troca de itens “in-game” (itens de jogo) por dinheiro ou a troca
dos mesmos em mercados secundários também arriscam aproximar elementos dentro destes pró-
prios jogos das definições de jogos de azar. Por exemplo, um método utilizado com frequência para
jogadores adquirirem itens de jogo se dá através da compra de códigos da produtora de jogos para
desbloquear “contêineres”, “baús” ou “pacotes” que contém uma quantidade e valor desconhecidos
de itens de jogo como prêmio. O pagamento em questão (código) referente a oportunidade de ganhar
um prêmio (itens de jogo) determinado (ou apresentado como determinado) aleatoriamente, possui
uma semelhança próxima, por exemplo, ao ato de jogar em uma máquina de jogos de azar. Quando
existem oportunidades disponíveis de se ganhar dinheiro ou trocar os itens de jogo por dinheiro ou
dinheiro que equivalha a esses elementos do jogo, esses jogos são passíveis de serem considerados
como atividade de jogos de azar licenciáveis. (UNITED KINGDOM, 2016, s.p., tradução nossa).
Carter, que é de Hampshire, no Reino Unido, admite que “não tomou todas as precauções para
limitar o acesso à sua conta na Nintendo: não usou seu pin e os recibos foram enviados para um endereço
de e-mail antigo que estava com a caixa de entrada lotada”. (KLEINMAN, 2019, s.p.). Carter relata que:

‘Nunca pensei que as crianças fossem fazer isso’. Ele e a esposa só perceberam o que aconteceu
quando o cartão foi recusado em outro lugar porque a conta bancária estava vazia. O jogo Fifa19
certificado como adequado para jogadores a partir dos três anos de idade.” (KLEINMAN, 2019, s.p.).

Já a seção 3.18 do texto, compreende que para que essa proteção adicional ao consumidor na
forma da regulação de jogos de azar tome efeito, são necessárias circunstâncias onde os jogadores estão
sendo incentivados a participar em atividades com estilo de jogos de azar através da disponibilização
de prêmios em dinheiro ou quantias correspondentes a dinheiro. Quando os prêmios são de fato,
restritos para uso apenas dentro do próprio jogo, tais características do jogo não configurariam jogos
de azar licenciáveis, não se confundindo com os elementos de gasto e acaso. (2017, p. 8). Percebe-se
que o texto não contradiz o posicionamento geral do Reino Unido sobre jogos de azar, que possui
legislação flexível, permitindo que jovens participem de alguns jogos de azar, por vezes até pecando
por excesso, se observado o grande problema que enfrentam com vício em jogos na adolescência.
Carter conta que seus filhos, todos com menos de 10 anos, estavam arrependidos e não tinham
ideia do impacto do que estavam fazendo. No entanto, ele também acredita que o conceito de comprar
pacotes de jogadores dentro de um game sem saber o que você está adquirindo seja antiético. “Você
paga 40 libras (cerca de R$ 190) pelo jogo, o que é muito dinheiro por si só, mas a única maneira
de obter um ótimo time é essencialmente um jogo de azar”, afirmou ele, se referindo ao jogo online.
(KLEINMAN, 2019, s.p.). Carter informa que: “Eles gastaram 550 libras (cerca de R$ 2,6 mil) e ainda

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

assim não conseguiram Lionel Messi, jogador favorito deles.” (KLEINMAN, 2019, s.p.).
A produtora de videogames Electronic Arts, distribuidora do Fifa, se recusou a comentar, mas
forneceu um link com suas diretrizes sobre o controle de compras no jogo – que varia dependendo
da plataforma ou do console que está sendo usado. (KLEINMAN, 2019, s.p.). Nesta senda, o próximo
tópico busca investigar se as loot boxes estão se transformando em jogos de azar.

4 LOOT BOXES SÃO JOGOS DE AZAR?

Para conceituar jogos de azar, oportuna a participação de Nelson Rose em seu artigo Gambling
and the Law®: an introduction to the law of internet gambling, referindo que o jogo de azar “[...] se
caracteriza por três elementos: consideração, prêmio e chance. Se um destes três elementos não
estiver presente, o jogo simplesmente não é de azar.” (2006, s.p.). Mais a fundo, dissecados estes três
elementos, o autor pontua, que

[...] consideração é um termo jurídico, mais comumente encontrado no direito dos contratos.
Geralmente isso significa que cada lado coloca algo de valor, como dinheiro para um carro. (...) O
segundo elemento, prêmio, significa que o jogador pode ganhar algo de valor. Se os jogadores não
podem ganhar dinheiro ou mercadoria, a atividade é um jogo de diversões. (...) Quanto ao terceiro
elemento, se uma atividade oferece prêmios valiosos e requer consideração, mas o resultado não é
determinado pelo acaso, é um jogo de habilidade e, por definição, não é um jogo de azar. (2006, p. 3).

Diante da caracterização de jogos de azar oferecida por Rose, tem-se claramente que as loot
boxes se transformaram em jogos de azar. Observe-se que os três elementos por ele apontados
(consideração, prêmio e chance) estão incluídos em seu modo operacional. Tal perspectiva impõe
uma discussão mais ativa sobre essa prática, que está transformando jogos eletrônicos em cassinos
digitais, e que, portanto, deve ser submetida ao mesmo tratamento dos jogos de azar.
O tratamento que deve ser dado às loot boxes, como jogos de azar, resta evidente na medida em
que o risco das pessoas expostas a tal prática, as quais, compulsivamente, gastaram grandes somas
de dinheiro em jogos digitais, na tentativa de obter vantagens frente a outros jogadores, sendo que
o resultado é determinado pelo acaso. Tal aspecto, por si só eleva as caixas de recompensa categoria
de jogo de azar na medida em que nesse modelo de negócio, a soma de dinheiro gasta no serviço até
que se obtenha o item desejado é alavancada por impulso em obter a recompensa na próxima rodada,
tornando o hábito da aposta um evento cíclico dentro do jogo.
Outro fator que intensifica a discussão é o fato de que os jogos que empregam o modelo de loot
boxes, na massiva das vezes têm como público alvo significativa de jogadores ativos as crianças e os
adolescentes. Como referido acima, há jogos cujo certificado trata como adequado o perfil de jogadores
a partir dos três anos de idade. Tranquilamente é possível afirmar que esta parcela de jogadores não
tem o discernimento necessário para efetuar apostas, ou mesmo jogos de cassino e produtos de loteria,
entretanto, são o público alvo dos jogos eletrônicos que utilizam o sistema das loot boxes.
O enquadramento das loot boxes como jogos de azar envolveria, portanto, em um primeiro
momento, o reconhecimento destas como modalidade de jogo de azar para que, posteriormente,
sejam reguladas para impedir o acesso do público infanto-juvenil não apenas aos jogos nos quais
elas são implementadas, mas também para impedir que as campanhas publicitárias desses jogos
alcancem esse público.
Nesse sentido, importante contribuição do civilista italiano Stefano Rodotà (2004), que em
diversas ocasiões mencionou que além do princípio da dignidade humana, aplicam-se à tecnologia,
os princípios da finalidade, da pertinência, da proporcionalidade, da simplificação, da harmonização
e da necessidade. O autor compreende que o direito não deve render-se à razão tecnológica, e que
o equilíbrio e a ponderação deveriam estar constantemente presentes nas relações entre direito,
tecnologia e sociedade, nesse trabalho, em específico, a relação entre o público infanto-juvenil e
jogos eletrônicos, quando transformados em jogos de azar pelas loot boxes, confrontando a ética,
corroborando com a lastimável tendência que Bauman chama de adiaforização, em que sistemas e
processos se divorciam de qualquer consideração de caráter moral. (2013, p. 15).

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presença dos jogos na cultura contemporânea é algo que não se pode negar. Com a pandemia
da COVID-19, um dos únicos setores que prosperou foi o dos jogos virtuais. Nesta senda, interessante
observar as pesquisas sobre o aumento no número de jogadores/as, em especial, do público infanto-
juvenil e no aumento das receitas do setor.
Dentro do universo dos e-games, as loot boxes estão cada vez ganhando mais destaque. Tratam-
se de caixas de recompensas ou caixas de saques, que nada mais são, do que caixas com itens sortidos
que podem ser obtidas dentro do jogo. Algo aparentemente inofensivo, mas que está causando
inúmeras repercussões, tantos psíquicas, como sociais.
Diante do exposto, portanto, é possível afirmar o enquadramento das loot boxes como jogos
de azar (Levando em conta os três elementos: consideração, prêmio e chance) envolveria, então, em
um primeiro momento, o reconhecimento destas como modalidade de jogo de azar para que, em
seguida, sejam reguladas para impedir o acesso do público infanto-juvenil não apenas aos jogos nos
quais elas são implementadas, mas também para impedir que as campanhas publicitárias desses
jogos alcancem esse público.
Assim, entende-se que a discussão sobre as loot boxes não se encerra aqui e que, por se tratar
de um assunto tão relevante, merece ser debatida na comunidade jurídica - em eventos, congressos
e aulas - tendo em vista o grande número de pessoas afetadas pela falta de regulação da temática.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA BRASIL. OMS inclui vício em videogame em classificação internacional de


doença. Publicado em: 18 jun. 2018. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/
noticia/2018-06/oms-inclui-vicio-em-videogame-em-classificacao-internacional-de-doenca>. Acesso
em: 20 set. 2020.

BAUMAN, Zygmunt e LYON, David. Vigilância Líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio
de Janeiro: Zahar, 2013.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

MEDIAÇÃO DIGITAL:
UM AVANÇO NO ACESSO À JUSTIÇA?225

Fabiana Marion Spengler226


Rafaela Matos Peixoto Schaefer227

RESUMO: A complexidade das relações sociais e a necessidade de ampliar e modernizar os meios do


acesso à justiça ensejaram a criação de leis que preveem a utilização dos meios eletrônicos no sistema
judiciário. No entanto, esse cenário foi antecipado pela pandemia de covid-19. O presente estudo tem
como objetivo analisar o acesso à justiça virtualizado, especialmente, acerca do instituto da mediação
digital. O problema de pesquisa que se pretende responder é: a mediação digital pode ser considerada um
avanço no acesso a justiça? A hipótese se dá no sentido que de a mediação digital pode ser considerada
um avanço tecnológico, mas não social. Como metodologia, utilizar-se-á a pesquisa bibliográfica,
consubstanciada principalmente de livros e artigos, aliada ao método de pesquisa dedutivo.

Palavras-chave: Acesso à justiça. Mediação digital. Políticas públicas.

INTRODUÇÃO

O cenário social conflituoso, agravado pela pandemia de covid-19, ressaltou na necessidade de


empregar meios cooperativos de resolução de conflitos. Seguindo esta linha, a legislação brasileira
já vinha inclinada à adoção de meios alternativos/complementares ao processo judicial. Atualmente,
a necessidade de ampliar e modernizar os meios do acesso à justiça ensejaram a criação de leis que
preveem a utilização dos meios eletrônicos no sistema judiciário.
Neste trilhar, o presente estudo tem como objetivo analisar o acesso à justiça virtualizado,
especialmente, acerca do instituto da mediação digital. A mediação digital possibilita que pessoas
distantes umas das outras passam se comunicar e debater acerca dos seus conflitos.
O problema de pesquisa que se pretende responder é: a mediação digital pode ser considerada um
avanço no acesso a justiça? A hipótese se dá no sentido que de a mediação digital pode ser considerada
um avanço tecnológico, mas não social. Como metodologia, utilizar-se-á a pesquisa bibliográfica,
consubstanciada principalmente de livros e artigos, aliada ao método de pesquisa dedutivo.
Assim sendo, primeiramente serão abordados os principais aspectos da autocomposição

225 Este artigo foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –
Código de Financiamento 001, a partir de bolsa de Mestrado cuja beneficiária é a segunda autora.  É também resultado das
atividades do projeto de pesquisa “O terceiro e o conflito: o mediador, o conciliador, o juiz, o árbitro e seus papeis políticos
e sociais” financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - Fapergs, Edital 02/2017 - PqG
– Pesquisador Gaúcho, coordenado pela primeira autora. A pesquisa é vinculada à Rede de Pesquisa em Direitos Humanos e
Políticas Públicas – ReDiHPP e ao Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos” certificado pelo CNPq, li-
gado ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
226 Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Pq2). Pós-doutora em Direito pela Università degli Studi di Roma Tre,
em Roma na Itália, com bolsa CNPq (PDE). Doutora em Direito pelo programa de Pós-Graduação stricto sensu da Universi-
dade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – RS, mestre em Desenvolvimento Regional, com concentração na área Político
Institucional da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC – RS. Líder do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento
dos Conflitos” certificado pelo CNPq, Coordenadora da Rede de Pesquisa em Direitos Humanos e Políticas Públicas – REDIHPP.
E-mail: fabiana@unisc.br. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8254613355102364.
227 Mestranda em Direito junto ao Programa de Pós-Graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com bolsa/
taxa Prosuc-Capes, modalidade II, na linha de pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Especialista em Direito Pro-
cessual Civil pela Faculdade Futura/SP. Integrante do grupo de pesquisa denominado Políticas Públicas no Tratamento de
Conflitos, vinculado ao CNPq e liderado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler, com vice-liderança do Prof.
Me. Theobaldo Spengler Neto. Mediadora voluntária de família no Projeto de Extensão denominado: A crise da jurisdição e
a cultura da paz: a mediação como meio democrático, autônomo e consensuado de tratar conflitos da UNISC, desenvolvido
junto a Defensoria Pública de Santa Cruz do Sul. Advogada, OAB/RS nº 113.211 E-mail: rafaelapeixoto@mx2.unisc.br. Currí-
culo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5374937703229735.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

enquanto política pública de acesso à justiça, a partir da definição do acesso à justiça. Por conseguinte,
serão analisadas as principais características e princípios da mediação. Por fim, o debate se dá em
torno da perspectiva do acesso á justiça por meio da mediação digital.

1 AUTOCOMPOSIÇÃO ENQUANTO POLÍTICA PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA

O ponto de partida para analisar o acesso à justiça se dá a partir de sua definição. Para tanto,
segundo as lições de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988) o acesso à jurisdição consiste no: a) ins-
trumento pelo qual se podem obter resultados individuais e socialmente justos; b) instrumento pelo
qual é possível reivindicar direitos ou tratar conflitos na esfera estatal.
O acesso à justiça é um direito fundamental que, com a promulgação da Constituição Federal de
1988, ganhou moldes mais estruturados, qualificados e acessíveis aos cidadãos. Sobre a evolução do
acesso à justiça, ponderam Bedin e Spengler (2013, p. 97):

[...] o direito ao acesso à justiça sofreu inúmeras transformações importantes ao longo da história,
passando da influência direta da religião para o monopólio do Estado laico; de mero direito formal
e abstrato para se tornar uma garantia essencial ao Estado Democrático de Direito, bem como
fundamental para efetivar a realização de todos os direitos. Com efeito, o direito de acesso à jus-
tiça adquiriu cada vez mais protagonismo, passando a ser entendido como um direito essencial e
garantidor dos direitos humanos.

A complexidade das demandas sociais e a crise da jurisdição, especificamente, na produção de


soluções justas e efetivas, são fatores que norteiam a busca pelo aprimoramento do acesso à justiça
por meio da incorporação de medidas alternativas capazes de corresponder satisfatoriamente às
expectativas da sociedade contemporânea. Essas razões também embasaram o projeto “Florença”,
desenvolvido por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, no qual propuseram três ondas renovatórias de
universalização do acesso à justiça. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).
A mediação está prevista na terceira onda renovatória como um direito humano básico. Esta
onda propõe um novo “enfoque de acesso à justiça”, com objetivo de ampliar a concepção de acesso
utilizando novas alternativas para o enfrentamento de controvérsias. “O acesso à justiça pode,
portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de
todos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12).
A necessidade de consolidar um novo paradigma de tratamento de conflitos depende da
participação e da aceitação social do emprego das formas autocompositivas (SPENGLER, SPENGLER,
2018), as quais buscam oferecer uma resposta adequada e satisfatória condizente com a proposta de
construção de uma sociedade harmônica e comprometida com a solução pacífica das controvérsias,
conforme disposto no preâmbulo da Constituição Federal.
“A judicialização de problemas humanos, muitos deles sem previsão normativa, requer nova
estratégia jurisdicional e social, tal como conscientizar o indivíduo para essa nova realidade” (PINHO;
SPENGLER, 2018, p. 240). Para Nalini (2015, p. 38), o sistema de justiça brasileiro não resolve o
conflito, pelo contrário, o eternizam por meio de um processo moroso, desgastante e oneroso.

Grande percentual de lides é resolvido mediante análise de questões procedimentais,


sem que se alcance o cerne do conflito que a elas deu origem. Pobre em estatísticas, o
Brasil não dispõe de dados confiáveis para saber qual a percentagem de processos judiciais que
terminam sem o conhecimento do mérito. São as decisões epidérmicas ou periféricas, que tanto
denigrem a credibilidade da Justiça. Ou seja: a decisão termina o processo; mas não acaba
com o conflito. Este permanece, talvez até agravado, pois ao desconforto da parte vai
se adicionar a decepção diante do dispêndio de tempo, dinheiro e angústia à espera do
justo concreto. (NALINI, 2015, p. 38, grifo nosso).

No ordenamento jurídico brasileiro, o acesso à justiça se transformou, especialmente, a partir das


alterações da norma constitucional e do regramento processual civil. Destaca-se como a mais significativa
alteração, a incorporação do acesso à justiça como direito fundamental, assegurado pela Constituição

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Federal (art. 5º, XXXV), que possibilitou a criação de caminhos para viabilizar o acesso aos hipossuficientes.
Neste trilhar, cumpre mencionar o papel das políticas públicas de autocomposição na pacificação
social e na consolidação do acesso à justiça no seu sentido amplo228.

A autocomposição enquanto política pública é mecanismo que pretende fomentar o acesso à


justiça como direito humano fundamental mais do que simplesmente descongestionar o Judiciário
diminuindo o número de demandas que a ele são direcionadas. O que se espera da autocomposição,
é que contribua para um acesso à justiça mais adequado não só em termos quantitativos (celeridade
e descongestionamento), mas também em termos qualitativos (adequação e exequibilidade da
resposta jurisdicional) (SPENGLER, 2019a, p. 10).

A institucionalização das formas autocompositivos ocorreu em 2010, com a edição da Resolu-


ção nº 125 do Conselho Nacional de Justiça, que regulamentou as práticas da mediação e da concilia-
ção, bem como a atuação dos terceiros e determinou a criação dos Centros Judiciários de Solução de
Conflitos e Cidadania (CEJUSC), como local para a realização das sessões autocompositivas.
Os primeiros passos da mediação, enquanto prática consensual, se deu no meio popular como uma
interferência meramente informal, realizada entre parentes, amigos e/ou líderes comunitários e religiosos
(SERPA, 1999). Na esfera jurídica, a mediação brasileira está regulamentada pelo microssistema normativo
que compreende além da Resolução 125/2010 do CNJ, a Lei de Mediação e o Código de Processo Civil.
A mediação tem como fundamento basilar: acolher e transformar as pessoas e os conflitos, sem
que para isso seja necessário extingui-lo. Neste sentido, o procedimento mediado contrapõe-se ao
tradicional modelo de justiça fundado no paradigma bélico, o qual se caracteriza pela: a) conduta
adversarial das partes; b) lógica binária do ganhador x perdedor; e c) resposta imposta por um terceiro.
Já no paradigma cooperativo, proposto pelos métodos autocompositivos, o tratamento de conflitos se
dá por meio de práticas não adversariais fundadas no modelo ganha-ganha (SPENGLER, 2017a).
Do exposto, verificou-se que a política pública da mediação de conflitos é reconhecida como
meio adequado para tratar conflitos sociais e romper o paradigma conflituoso instaurado na sociedade
contemporânea, plural e complexa. Assim, a mediação representa mais que um meio de acesso à justiça,
pois é também, um meio pacificador e transformador. No entanto, para alcançar tais benesses é preciso
investir na correta aplicação do procedimento considerando suas principais características e seus princípios.

2 CARACTERÍSTICAS E PRINCÍPIOS DA MEDIAÇÃO

A mediação é um sistema não adversarial, voluntário e autônomo, o qual proporciona espaço


para o diálogo e escuta, possibilitando, assim, que os mediandos entendam o conflito, discutam
as soluções e evitem o acirramento das controvérsias. Ao mesmo tempo, busca afastar a figura do
adversário, em que aquele mais “injustiçado” pretende impor sua vontade. Desta forma, a mediação
representa “um espaço para acolher a desordem social, um espaço no qual a violência e o conflito
possam transformar-se, um espaço no qual ocorra a reintegração da desordem, o que significaria uma
verdadeira revolução social” (SPENGLER, 2017b, p. 14).
A mediação é uma política pública qualificada pela fraternidade, em razão disso é uma prática
assentada na humanização, na inclusão e na pacificação social. A proposta principal é oferecer um
novo olhar para o conflito229 e, assim, romper os arraigados paradigmas conflitivos e a partir disso
propor um novo modelo de justiça.

A mediação, como espaço de reencontro, utiliza a arte do compartir para tratar conflitos e oferecer
uma proposta inovadora de pensar o lugar do Direito na cultura complexa, multifacetada e
emergente do terceiro milênio. Essa proposta diferenciada de tratamento dos conflitos emerge
como alternativa à jurisdição tradicional, propondo uma sistemática processual que faça novas
abordagens linguístico-temporais (SPENGLER, 2010, p. 338).

228 Entende-se como acesso à justiça no sentido amplo, o acesso aos meios tanto judiciai, bem como aos extrajudiciais
que promovem o desenvolvimento social, político e econômico, reiterando os ideais de uma justiça efetivamente social.
(SPENGLER, 2019b).
229 Sobre o tema consultar: SIMMEL (1983).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Os princípios norteadores da mediação estão descritos no artigo 2º, da Lei nº 13.140, a Lei da
Mediação, são eles: autonomia da vontade das partes, busca do consenso, isonomia entre as partes,
confidencialidade, boa-fé, oralidade, informalidade e imparcialidade do mediador. Além destes, o
Código de Processo Civil determina como tarefa de todos os operadores do Direito, o incentivo à
prática do princípio da cooperação, em qualquer fase do processo judicial.
O princípio da autonomia da vontade representa o empoderamento das pessoas envolvidas na
busca pelo consenso, uma vez que o mediador desempenha o papel de agente facilitador. Desta maneira,
as partes têm liberdade para decidir da forma mais conveniente, todavia, são responsáveis por suas
escolhas. Por isso, deve-se agir com prudência e boa-fé. Ainda, cabe ressaltar que o procedimento de
mediação é voluntário, logo, as partes possuem autonomia para decidir entre participar ou não. Assim,
“em vez de se utilizar pressão e o poder, utiliza-se a criatividade como ferramenta, a flexibilidade como
atitude e a comunicação sincera e genuína para se chegar ao melhor acordo.” (SPENGLER, 2017a, p. 103).
Para alcançar o êxito do procedimento mediado, é essencial a observância do princípio da isonomia,
de modo que, deve-se viabilizar a todos a oportunidade de se manifestar e assegurar a sua compreensão. O
equilíbrio entre as partes corrobora o processo de harmonização das relações, eis que trata não somente a
questão jurídica, mas, compreende a pacificação das controvérsias de cunho afetivo/sentimental (MORAIS;
SPENGLER, 2019). Para Spengler (2017b, p. 14): “as práticas sociais de mediação configuram-se em um
instrumento de exercício da cidadania, na medida em que educam, facilitam e ajudam a produzir diferenças e
a realizar tomadas de decisões, sem a intervenção de terceiros que decidem pelos afetados em um conflito”.
O princípio da confidencialidade é de suma importância para garantir que os envolvidos sintam-
se confortáveis e confiantes para expor seus sentimentos mais íntimos. Assim, deve o mediador zelar
pelo sigilo das informações obtidas durante a sessão, salvo aquelas que as partes autorizarem sua
revelação ou por determinação legal (SPENGLER, 2017a).
A informalidade e oralidade são características marcantes que tornam o procedimento mais
próximo das pessoas. A importância destes princípios se dá em razão da exposição de sentimentos
como fator fundamental para o restabelecimento das relações estremecidas. Sobre a oralidade, Spengler
(2017a, p. 148) aponta que “tal princípio depreende-se nada mais do que a exigência precípua da
forma oral no tratamento da causa, sem que com isso se exclua por completo a utilização da escrita.”
No que tange à informalidade, cabe mencionar que o desenvolvimento da mediação não segue
ritos pré-definidos ou regras rígidas, “mas sua realização profissional é caracterizada por métodos
elaborados e comprovados com rigor científico” (CALMON, 2019, p. 121). Logo, é possível adaptar
os passos do procedimento ao caso concreto, tendo em vista que o andamento dependerá das
circunstâncias e das peculiaridades da lide.
Merece destaque a atuação do terceiro na condução da sessão de mediação. Este terceiro é o
mediador, um profissional imparcial que poderá “ser qualquer pessoa que, porventura, as partes,
órgão estatal ou privado, venham a indicar” (MORAIS; SPENGLER, 2019, p. 155). Baseado na confiança
mútua, o mediador atuará na condução do conflito, auxiliando as partes, de forma consensual, na
busca pela solução mais adequada/satisfatória, sem privilégios ou vantagem a um ou ao outro,
respeitando a igualdade entre as partes.
Segundo Calmon (2019, p. 123), “o papel do mediador é o de um facilitador, educador ou
comunicador, que ajuda a clarificar questões, identificar e manejar sentimentos, gerar opções e,
assim se espera, chegar a um acordo sem a necessidade de uma batalha adversarial nos tribunais”.
Nesta linha, Spengler (2017a, p. 106) ressalta a regra da ausência da obrigação de resultados, a
qual estabelece que

[...] os conflitantes não estão obrigados a realizar, ao final do procedimento, um acordo. Do


mesmo modo, a competência do mediador/conciliador não é medida pelo número de acordos
entabulados a partir das sessões por ele presididas. Essa regra aponta para o dever do mediador/
conciliador não forçar um acordo e de não tomar decisões pelos envolvidos, podendo, quando
muito, no caso da conciliação, criar opções, que serão ou não acolhidas pelos conflitantes.

Por fim, da análise das características e dos princípios da mediação observa-se que seu o objetivo
está atrelado ao tratamento de conflitos, não meramente à sua extinção. O foco do procedimento
é restabelecer a comunicação, ora estremecida por questões afetivas/sociais que, muitas vezes,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

permanecem latentes. Por isso, a mediação acolhe o “caos” no qual está inserida, e oferece um
espaço para debate e reflexão, bem como estimula que a tomada de decisões seja um processo
desenvolvido pelas próprias pessoas envolvidas, privilegiando a autonomia, o empoderamento e a
responsabilização (SPENGLER, 2017a).
No que se refere ao processo de modernização do sistema de justiça, este foi antecipado
pela necessidade de adequação do atendimento às demandas atuais agravadas pela crise sanitária
instaurada pela pandemia230 de covid-19. Assim, verificou-se que novos contornos sociais foram
impostos, inclusive no que diz respeito ao acesso à justiça e ao enfrentamento de conflitos. Isto
posto, o próximo tópico discorrerá acerca da mediação desenvolvida no meio digital.

3 A MEDIAÇÃO DIGITAL E AS PERSPECTIVAS DO ACESSO À JUSTIÇA VIRTUALIZADO

A preocupação com a ampliação da oferta do acesso à justiça há muito já é percebida nas legislações
que trazem expressamente o fomento ao acesso de todos em todas as regiões do país. Voltados para esse
intento, a Resolução 125/2010 do CNJ, a Lei 13.140/2015, a Resolução 174/2016 do CSJT e o Código de
Processo Civil preveem a mediação e a conciliação enquanto políticas públicas de pacificação social que
promovem o acesso à justiça qualificada pela resolução consensual de conflitos (CABRAL, 2017).
Nesta perspectiva, dentre as propostas de tratamento de conflitos está prevista a utilização
dos meios eletrônicos com objetivo de tornar o procedimento mais célere, econômico, bem como
diminuir a distância geográfica e física entre consumidores da justiça e o sistema jurisdicional estatal.
Diante deste contexto, a mediação digital é “uma ferramenta bastante mencionada no cumprimento
de tais objetivos, cuja meta é proporcionar um acesso à justiça virtual com qualidade igual ou melhor
do que aquelas oferecidas pelos meios tradicionais” (PINHO; SPENGLER, 2018, p. 229).
Neste sentido, a Lei nº 11.419/2006231 dispõe sobre a informatização do processo judicial nas áreas
cível, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição. Cumpre men-
cionar que para assegurar esta acessibilidade se faz necessário dispor de equipamentos eletrônicos, como:
computador, telefone celular, ipad, tablet, etc (PINHO; SPENGLER, 2018). Para Lévy (2010) estes equipamen-
tos, uma vez conectados à internet, representam uma ferramenta veloz de acesso e de alcance ao mundo.
Desta forma, o meio virtual facilmente acessado pelos equipamentos eletrônicos é responsável
pela conexão das redes digitais e pela transformação do acesso à justiça. Essa transformação
é percebida no “modo de ingressar, de se comunicar, de se manifestar e, também, ao modo de
sentenciar”, especialmente, depois da inserção do processo eletrônico no cenário jurídico brasileiro
(PINHO; SPENGLER, 2018, p. 230).
Em que pesem os avanços tecnológicos que não encontram barreiras geográficas e facilitam a
comunicação entre pessoas que, fisicamente, estão distantes uma das outras, é preciso contextualizar de
que modo acontece a inclusão digital no Brasil. Sobre este tema, verifica-se que a sua regulamentação é
relativamente recente e se deu por meio do Decreto nº 6.991/2009, que instituiu o Programa Nacional de
Apoia à Inclusão Digital nas Comunidades, com a finalidade de promover ações visando à implantação e
à manutenção de telecentros públicos. Em 2010, o Decreto nº 7.175 criou o Programa Nacional de Banda
Larga (PNBL). cujo objetivo é fomentar e difundir o uso e o fornecimento de bens e serviços de tecnologias
de informação e comunicação.
Em 2016, o Banco Mundial apresentou o Desenvolvimento Mundial: Dividendos Digitais que
aponta que aproximadamente quatro bilhões de pessoas não têm acesso à internet, cerca de dois
bilhões não utilizam telefone celular e, quase meio bilhão vive em área sem sinal móvel.

230 Pandemia. Esta palavra de origem grega que é formada com o prefixo neutro pan e demos, que designa povo, foi
utilizada, pioneiramente, por Platão na obra “Das Leis”1. Na obra de Platão, a expressão, utilizada genericamente, designa
qualquer fato/acontecimento que possua capacidade de alcançar toda uma população. No campo da medicina, Galeno foi
responsável pela utilização da expressão “pandêmica” para designar doenças epidêmicas de grande difusão entre a popu-
lação2. De acordo com estudo realizado por Joffre Marcondes de Rezende3, a incorporação definitiva do termo pandemia
na léxica da medicina ocorre a partir do século XVIII, sendo que seu registro, na língua francesa, pode ser encontrado no
Dictionnaire universel français et latin, de Trévoux, datado de 1771. Na língua portuguesa, a expressão foi dicionarizada
como termo médico por Domingos Vieira, em 1873. (WERMUTH; BOLZAN, 2020, p. 3, grifos no original).
231 Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo
Civil; e dá outras providências.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Nós nos encontramos em meio à maior revolução de informação e comunicação da história da


humanidade. Mais de 40% da população do mundo têm acesso à Internet, e novos usuários entram
on-line todos os dias. Entre os 20% dos domicílios mais pobres, quase sete de cada 10 têm telefone
celular. É mais provável que os domicílios mais pobres tenham acesso a telefones celulares do que
a sanitários ou água potável (BANCO MUNDIAL, 2016, p. 5).

No Brasil, a criação dos programas mencionados acima não foi suficiente para garantir o acesso
à internet a todos, fato que se comprova com os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) realizada em 2018,
e divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo a pesquisa, o percentual
de domicílios com acesso à internet subiu de 74,9% para 79,1%, de 2017 para 2018, deste índice 83,8%
estão localizados em área urbana e 49,2% na área rural. Outro dado relevante diz respeito à renda,
nas casas com acesso à internet, o rendimento médio por pessoa era de R$ 1.769, enquanto que nas
residências sem acesso, a renda era de R$ 940, ou seja, valor inferior a um salário mínimo232.
Estes dados são preocupantes, sobretudo, quando se tratam das condições adequadas para
assegurar o acesso à justiça virtual/digital seguro e eficiente “justamente porque o sistema de justiça
brasileiro não se encontra preparado e não possui os meios disponíveis para conviver com a ideia
da ciberdemocracia” (PINHO; SPENGLER, 2018, p. 233). A ciberdemocracia é uma proposta de Lévy
(2010) que consiste na participação popular através do meio virtual.
Além das dificuldades/impossibilidades de acesso à internet, outros fatores obstam a
concretização da era eletrônica no sistema judiciário brasileiro: a) grande resistência a implantação
de meios eletrônicos; b) insegurança quanto às informações; e c) apego ao papel (PINHO; SPENGLER,
2018). Apesar disso, o processo eletrônico já é uma realidade em boa parte do território brasileiro.

A proposta do processo eletrônico é trabalhar pela busca de direitos do cidadão sem a utilização
do meio físico, acessando os autos, juntando documentos e sentenciando eletronicamente. Esse
mecanismo só se faz viável e presente se o cidadão e o Judiciário estiverem servidos de uma boa
internet (PINHO; SPENGLER, 2018, p. 234).

Almeida Filho (2015) analisa o acesso virtualizado a partir do código binário, no qual existem duas
categorias: exclusão e inclusão. Neste contexto, os excluídos digitais também chamados de analfabetos
digitais ou analfabetos de cidadania são aqueles que não têm acesso à internet, tampouco à informação.
“Encontram-se, pois, alijados em sua cidadania duplamente: primeiro porque muitas vezes desconhecem
seus próprios direitos ou os mecanismos digitais de acesso a eles; segundo quando não têm acesso à
internet e não conseguem, por exemplo, reclamar seus direitos” (PINHO; SPENGLER, 2018, p. 235).
Por essa razão, tanto interessa ao processo eletrônico quanto a mediação virtual/digital que
as políticas públicas de inclusão digital sejam pensadas considerando as questões de acessibilidade
virtual, de informação e de disseminação isonômica de acesso à internet. Pois, é justamente por meio
dessas ações que será possível utilizar as redes de comunicação para romper as barreiras geográficas
e sociais que atingem, especialmente, a população hipossuficiente (PINHO; SPENGLER, 2018).
No que tange ao instituto da mediação, o desenvolvimento do procedimento no meio digital está
previsto na Resolução 125/2010 do CNJ233, na Lei de Mediação234 e no Código de Processo Civil235.
Importa dizer que a mediação é um método pacífico que objetiva restabelecer a comunicação e
promover a harmonização da relação. Segundo a concepção de Warat (2004), a mediação exitosa não
se apura quando finda em acordo, mas quando é percebida a mudança do cenário conflituoso, das
pessoas, dos sentimentos e dos interesses envolvidos.

232 Segundo a Medida provisória nº 919, de 30 de Janeiro de 2020, a partir de 1º de fevereiro de 2020, o salário mínimo
será de R$ 1.045,00 (mil e quarenta e cinco reais).
233 Art, 6º, X – criar Sistema de Mediação e Conciliação Digital ou a distância para atuação pré-processual de conflitos e,
havendo adesão formal de cada Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, para atuação em demandas em curso, nos
termos do art. 334, § 7º, do Código de Processo Civil de 2015 e do art. 46 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015 (Lei de
Mediação); (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020).
Art. 18-A. O Sistema de Mediação Digital ou a distância e o Cadastro Nacional de Mediadores Judiciais e Conciliadores deve-
rão estar disponíveis ao público no início de vigência da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015 (Lei de Mediação). (Redação
dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020).
234 Art. 46. A mediação poderá ser feita pela internet ou por outro meio de comunicação que permita a transação à distân-
cia, desde que as partes estejam de acordo.
235 Art. 334, § 7º A audiência de conciliação ou de mediação pode realizar-se por meio eletrônico, nos termos da lei.

480
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Por isso, a teoria transformadora dos meios adequados de solução de conflitos, quando se
depara com a prática, encontra alguns obstáculos, pois a mediação, originalmente, não é uma
técnica disposta para avaliar e proteger direitos, não há um juiz para assegurar os direitos de
hipossuficientes. Diversamente, o foco é propiciar a negociação de interesses, preferencialmente
entre pessoas com níveis, habilidades e poder equivalentes (PINHO; SPENGLER, 2018, p. 237).

Nesta linha, a mediação ainda enfrenta grandes desafios, como a falta de envolvimento da
sociedade, a formação beligerante do profissional do direito, a falta de conhecimento tanto no âmbito
acadêmico quanto social, visto que se os consumidores não conhecerem o método, o ignorarão. Essa
dificuldade é agravada quando se refere ao acesso virtualizado, “que deveria ser mais barato e rápido,
mas que não atinge seus objetivos devido a falta de informação e as dificuldades no acesso à Internet”
(PINHO; SPENGLER, 2018, p. 239, grifos no original).
A mediação digital prevista no ordenamento jurídico brasileiro foi inspirada na Diretiva nº
11/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia que regulamenta o tratamento de
litígios consumeristas. Logo, a mediação digital consiste no espaço cibernético destinado ao debate.
Desta forma, além de diminuir as distâncias, pode também reduzir os gastos financeiros e oferecer
um deslinde mais célere (CURY, 2020).
Ademais, a mediação digital objetiva facilitar a aproximação dos envolvidos e a compreensão
acerca do conflito, oferecendo a possibilidade de dialogarem utilizando a linguagem positiva. “Assim,
os participantes de diversos locais, conectados pelo sistema online, poderão encontrar uma solução
para o seu conflito de modo ponderado, rápido e econômico. Se necessário, é possível que alguns
casos sejam encaminhados para mediação presencial” (PINHO; SPENGLER, 2018, p. 243).

Com isso, não apenas se amplia significativamente o acesso à ordem jurídica, como se afirmou,
mas se torna possível a reflexão e a adaptação dos discursos e dos interesses às contingências dos
acontecimentos que continuam a se desenvolver, o que permite alcançar soluções mais ajustadas
e contemporâneas, e, portanto, mais estáveis (CURY, 2020, p. 248).

Por outro lado, é possível destacar algumas inquietações quanto ao procedimento desenvolvido no
meio digital. A mediação é um procedimento que acolhe as pessoas e suas relações, neste sentido, busca
oferecer um meio de acesso à justiça humanizado, no qual as pessoas são os protagonistas da solução.
Quando o procedimento ocorre virtualmente, os participantes estão distantes, privados da presença física,
da possibilidade de olhar nos olhos, de manter a comunicação direta, de dar o aperto de mão. Assim,
receia-se que a mediação perca seu caráter humanizador e pacificador (PINHO; SPENGLER, 2018).

Se, de um lado, a mediação on-line aproxima virtualmente os mediandos e o mediador, evitando


gastos com deslocamentos e dispêndio de tempo, por outro, inviabiliza o contato pessoal (cara a cara)
e dificulta a ampla percepção e captação dos sentimentos, das angústias, dos interesses subjacentes
ao conflito, o que pode prejudicar o procedimento de construção do consenso (PINHO, 2020, p. 13).

Como descrito no tópico anterior, a prática da mediação está condicionada a observância de


seus princípios basilares, o que no ambiente virtual pode não vir a acontecer. Especialmente, no
que concerne à imparcialidade e à confidencialidade, previstas no Código de Ética de mediadores
e conciliadores - Resolução 125/2010 do CNJ e na Lei da Mediação, estas exigências podem ser
prejudicadas quando o procedimento se dá diante de uma tela. Neste cenário, o sigilo e a privacidade
dos participantes podem ser violados, pois aumenta a dificuldade de garantir que a conversa não será
gravada ou que alguém estranho ao conflito acompanhe a sessão (PINHO; SPENGLER, 2018).
Neste sentido, Pinho (2020, p. 13) alerta para a necessidade de treinamento dos profissionais,
uma vez que
é importante que os mediadores on-line tenham, além da capacitação técnica, habilidade e
familiaridade com as particularidades do ambiente virtual. Mais do que isso, é imprescindível
regular os critérios de qualidade que garantam o funcionamento do procedimento digital de forma
eficaz, transparente e eficiente.

Por fim, observa-se nas recentes alterações legislativas acerca dos meios de acesso à justiça,
uma tendência à inclusão da tecnologia no tratamento de conflitos, tanto que a prática da mediação
digital já vinha sendo timidamente difundida e utilizada no cenário jurídico brasileiro. No entanto,

481
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a pandemia de covid-19 alterou o modo de desenvolvimento dos procedimentos autocompositivos


e antecipou a inclusão digital no sistema judiciário, visto que diante da impossibilidade de reuniões
presenciais, o ambiente virtual passou a integrar o processo de resolução de conflitos. Em suma, o
novo paradigma jurídico-digital apresenta-se como uma questão de suma importância que requer
maior reflexão e debate tanto no que diz respeito ao direito de acesso à justiça, quanto às condições
de acesso à internet. (PINHO; SPENGLER, 2018).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mediação é reconhecida como o meio mais adequado para o tratamento de conflitos sociais,
pois propõe a substituição do tradicional modelo de justiça pelo paradigma consensual. A propositura
deste novo paradigma não almeja apenas produzir efeitos na seara judicial, mas visa à reeducação
das pessoas quanto à compressão do outro e dos conflitos.
Deste modo, o presente estudo teve como objetivo analisar o acesso à justiça virtualizado,
especialmente, acerca do instituto da mediação digital. O acesso à justiça vem sendo modificado
ao longo dos anos, com o intento de atender de forma mais satisfatória às expectativas sociais.
Neste sentido, em 2010, a política pública da mediação passou a ser regulamentada pela Resolução
125/2010 do CNJ, posteriormente, pela Lei da Mediação, e também, pelo Código de Processo Civil.
O problema de pesquisa, que norteou a construção das principais conclusões, trouxe a indagação
acerca da possibilidade da mediação digital ser considerada um avanço no acesso à justiça. Para
tanto, observando o objetivo proposto e a metodologia escolhida, bem como considerando os dados
apresentados sobre o acesso à internet, conclui-se que a mediação digital representa um avanço
tecnológico de acesso à justiça, mas por outro lado, não pode ser considerada um avanço social, pois
apesar dos esforços legislativos no que se refere aos serviços de internet, no Brasil ainda há uma
parte expressiva da população que não tem acesso ao mundo virtual.
No que tange ao procedimento, constatou-se que a principal vantagem da mediação digital é
a possibilidade de oportunizar o diálogo entre pessoas que estão distantes, em qualquer parte do
mundo, desde que conectadas à internet. No entanto, o encontro virtual não permite o contato físico,
a conversação direta, o olho no olho. Assim, a principal vantagem pode ser considerada também, a
principal desvantagem. Do mesmo modo, a atuação do mediador pode ser prejudicada, uma vez que
este não poderá observar e interpretar a linguagem corporal dos mediandos.
Por fim, as legislações que tratam da regulamentação da informatização do processo judicial buscam
ampliar o acesso por meio da utilização de equipamentos eletrônicos pelos consumidores da justiça. No
entanto, não se pode olvidar que o grande desafio das políticas de inclusão digital está no fato de que
para garantir essa acessibilidade é necessário dispor de um telefone, de um computador ou equipamento
similar. À vista disso, verifica-se que, historicamente, o acesso ao mundo virtual nunca foi não tão facilitado,
porém permanece inacessível aos excluídos digitais, ou seja, à população hipossuficiente.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

MEDIDA DE SEGURANÇA:
UMA ANÁLISE DO INSTITUTO PSIQUIÁTRICO
FORENSE DE PORTO ALEGRE,
SOB O OLHAR DOS DIREITOS HUMANOS

Vera Lucia Martins dos Santos Veiga Rios236

RESUMO: Na presente pesquisa, analisou-se o contexto vivenciado pelas pessoas que cumprem medida
de segurança, sanção aplicadas a indivíduos inimputáveis, quando em conflito com a lei. O referido
estudo tem como objetivo, trazer à tona o tema em tela e visa proporcionar melhores subsídios para a
compreensão de como vivem os “loucos”, submetidos á medida de segurança. Desta forma, analisou-se
o relatório dos representantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, apresentado
após visita ao Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico de Porto Alegre. Ao fim, constatou-se que esses indivíduos são negligenciados pelo Estado
e pelas famílias, verificou-se que há a possibilidade dessa internação tornar-se eterna, bem como, além
da tortura vivenciada por esses indivíduos diante das condições desumanas em que vivem.

Palavras-chave: Dignidade. Direitos Humanos. Medida de Segurança. Insanidade.

INTRODUÇÃO

Inicialmente há de se destacar a relevância do tema proposto, ou seja, as condições a que são


submetidos os doentes mentais que cumprem medida de segurança, bem como as várias formas de
violação dos seus direitos e garantias legais. A proposta desse estudo, não é analisar a loucura a nível
clínico ou patológico, busca-se evidenciar a forma como são tratados os doentes mentais e como
reagem ao tratamento recebido do Estado.
O objetivo é criar-se uma visão crítica neste contexto, contribuindo de forma plena para maximizar
o debate e a compreensão do tema em questão. Ou seja, evidencia-lo de forma ampla para propiciar
discussões relacionadas aos doentes mentais que cumprem medida de segurança. Destaca-se a importância
de se discutir a loucura, que como regra, é tratada como um tabu pela sociedade, tema que normalmente
é “varrido para de baixo do tapete”, como se ao ignorar sua existência fosse resolver o problema.
Com esse estudo procura-se averiguar a realidade do Instituto Psiquiátrico Forense Maurício
Cardoso, Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Porto Alegre, através do relatório dos
representantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).
Em um primeiro momento abordar-se-á a medida de segurança, sanção aplicada ao inimputável
por doença mental, que comete ato ilícito, quando em conflito com a lei e posteriormente nesse
mesmo tópico, verificar-se-á o conceito de loucura.
Em um segundo momento, verificar-se-á como vivem esses inimputáveis que cumprem medida
de segurança no Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico de Porto Alegre. E ainda, breves considerações sobre o significado de tortura.
Para tanto, utilizou-se para a realização do presente trabalho o método de abordagem indutivo,
e como método de procedimento o monográfico, como técnica de pesquisa o método indireto, através
de pesquisa bibliográfica, fontes secundárias e doutrina no que diz respeito ao cumprimento de
medidas de segurança e suas consequências.

236 Graduada em Direito pela Faculdade Metodista de Santa Maria-RS (FAMES). Pós Graduanda em Direito Penal e Processual
Prático Contemporâneo, pela Universidade de Santa Cruz-RS (UNISC). Endereço eletrônico: veramartins1997@gmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO SANÇÃO

A medida de segurança como sanção, começou a ser aplicada no Brasil em 1940, influenciada
pelo Código Penal Suíço de 1893. No entanto, o sistema era duplo binário, sendo possível a aplicação
cumulativa e sucessiva de pena e medida de segurança para os inimputáveis.
Após a reforma que ocorreu em 1984 com a lei 7.209, o sistema dualista deixa de ser aplicado,
passando a vigorar o sistema vicariante, ou seja, “pena ou medida de segurança” (BRASIL,1984). A
partir de então, afastou-se por completo o duplo binário, ou seja, ao imputável a pena cabível de
acordo com o delito, e ao inimputável aplicada medida de segurança como sanção.
Estabelece a legislação que “é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o
caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (BRASIL, 1940). Significa que,
o incapaz, não poderá ser responsabilizado, por não possuir liberdade de escolha, logo, é isento de pena, o
crime subsiste, mas, seu autor não recebe pena, por falta da imputabilidade que é um dos pressupostos da
culpabilidade, no entanto fica sujeito a medida de segurança. Nesse sentido, Nucci esclarece que o inimputável:

É capaz de cometer um injusto penal, isto é, algo não permitido pelo ordenamento (fato típico
e antijurídico), mas não merece ser socialmente reprovado, por ausência de capacidade de
entendimento do ilícito ou de determinação de agir conforme esse entendimento. Cabe-lhe, ao
invés da pena, típica sanção penal aplicável aos criminosos, a medida de segurança, espécie de
sanção voltada à cura e ao tratamento. (NUCCI, 2016, p.546).

Deste modo, é inimputável o agente “inteiramente incapaz de entender o caráter delituoso do


fato e, de orientar seu agir de acordo com aquela compreensão, e semi-imputável quem não possui
plenamente esse discernimento” (PRADO, 2014, p. 561). Deste modo, se o individuo não possuí
condições de discernir seus atos considera-se inimputável, no entanto se tiver algum lampejo da
realidade será considerado semi-imputável.
As medidas de segurança se dividem em detentivas e restritivas, a primeira diz respeito á
internação e a segunda, ao tratamento ambulatorial, se for “inimputável, o juiz determinará a sua
internação, no entanto, se, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz
submetê-lo a tratamento ambulatorial” (BRASIL, 1940).
Deste modo, medida de segurança não é pena, e sim tratamento ao qual deve ser submetido o
autor de delito com o fim de curá-lo ou no caso de tratar-se de doença mental incurável, de torná-lo
capaz de conviver em sociedade, sem voltar a delinquir.
Desta forma, é assegurado aos “internados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela
lei” (BRASIL, 1984). Entre esses direitos estão:

Ser tratado dignamente, em local adequado e por profissionais competentes que possam
proporcionar sua cura e recuperação e consequente retorno ao convívio social. O prazo para
cumprimento da medida de segurança, seja internação, ou tratamento ambulatorial, será por
tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a
cessação de periculosidade. (BRASIL, 1984).

O prazo para cumprimento da medida de segurança “deverá ser, no mínimo de um a três anos,
perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação da periculosidade,”
(BRASIL, 1940).
Se for constatado que a periculosidade do agente persiste, a medida de segurança deve ter
prosseguimento, ao menos até que se faça uma nova avaliação, que “deverá ocorrer uma vez ao ano”
(BRASIL, 1940), até que seja constatada a cessação da periculosidade. A esse respeito, “adverte-se
acerca da inconstitucionalidade da tal dispositivo, sob o argumento de que, todo condenado tem o
direito de saber a duração da sanção que lhe será imposta” (PRADO, 2014, p.569).
A Lei 10.216 de 2011, embora dispondo sobre a proteção e direitos dos doentes mentais, não
prevê prazo máximo para a internação. Assim como a legislação penal, também não estabelece o prazo
máximo de duração da medida de segurança, no entanto, determina que “o tempo de cumprimento das
penas privativas de liberdade não poderá ser superior a quarenta anos” (BRASIL, 1940). A Constituição

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Federal também determina que, no Brasil “não haverá pena de caráter perpétuo” (BRASIL, 1988).
Neste mesmo sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, dessa interpretação
surgiu á súmula 527 (quinhentos e vinte e sete) que prescreve que, “a duração da medida de segurança
não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado” (BRASIL,
2015). Ou seja, não deverá ultrapassar a pena máxima estipulada para o delito cometido.
Portanto, é possível afirmar que o período da medida de segurança não deverá ser superior a
quarenta anos. Mesmo porque, se o que se busca com a internação é o tratamento e consequentemente
a cura ou a recuperação do internado e não sua punição, quarenta anos é um prazo bastante longo
para que se possa alcançar esse objetivo.

1.1 Breves considerações sobre a loucura

Ao analisar a loucura busca-se um conceito que a defina, no entanto, sem analisá-la a nível
clínico ou patológico, desta forma, delimitou-se ao conceito contido no dicionário, que a define como:

Doença mental caracterizada pela alienação total do indivíduo em relação aos fatos que lhe
são pertinentes; Ato, estado ou dito que revela falta de senso ou de juízo; maluquice, piração.
Extravagância no agir:  Paixão excessiva: Procedimento que revela insensatez; Tudo que está fora
das regras da normalidade. Entusiasmo exagerado ou insano; desatino, desvario (MICHAELIS, 2015).

Ou seja, trata-se de um conceito bastante amplo, que pode justificar qualquer ato que não seja
considerado como “normal” ou dentro dos padrões exigidos pela sociedade. Também esta diretamente
relacionada com a demência, um termo de origem latina que significa desligado ou alheio da mente.
Trata-se de uma forma adquirida da loucura que “manifesta-se pela perda acentuada das
faculdades sensorial e volitiva do paciente e que revela incoerência de ideias e ações, tornando-o
psiquicamente inadaptável à convivência social e juridicamente incapaz de conduzir seus atos e
gerir seus próprios bens” (MICHAELIS, 2015). Neste sentido, a demência consiste na ausência ou na
perda das funções cognitivas, que geralmente impedem o indivíduo de realizar atividades comuns do
cotidiano, tornando-o incapaz.
Em síntese, considera-se loucura qualquer ação ou gesto descabido ou incoerente que pelas
suas características anormais possa surpreender. Desta forma, significa privação do uso da razão ou
quiçá, do bom senso.

2 A DINÂMICA DO INSTITUTO PSIQUIÁTRICO FORENSE MAURÍCIO CARDOSO, SEGUNDO O


RELATÓRIO DO MECANISMO NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA.

No Rio Grande do Sul, o Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, Hospital de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico em Porto Alegre e fica localizado no bairro Partenon, um dos Hospitais
psiquiátricos mais antigo do país, foi inaugurado em 1925.
A instituição recebeu em 2015, os representantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e
Combate à Tortura (MNPCT). Após a visita foi apresentado um relatório sobre as condições do Instituto,
assim como um relato detalhado sobre as condições de tratamento disponibilizado aos internos que
lá cumprem medida de segurança. Relatório esse, que será o objeto de análise dessa pesquisa.
A Constituição Federal tem com um de seus pilares “a dignidade da pessoa humana” (BRASIL,
1988). Assim como, a Declaração Universal dos Direitos dos Humanos garante que “ninguém será
submetido á tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (ONU, 1948).
Também, nesse mesmo sentido a Legislação Penal, no que se referem à aplicabilidade das medidas
de segurança aos inimputáveis por doença mental, afirma que “no período em que se encontrar
internado, será oferecido acompanhamento psiquiátrico, assim como medicações que favoreçam a
recuperação do alienado” (BRASIL, 1984). Assim, ao verificar a legislação vigente, imaginamos que
serão oferecidas instalações dignas e tratamento adequado aos internos de maneira que, esses fatores
possam contribuir para sua recuperação.

487
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A Lei de Execuções Penais e o Código Penal no que se referem à aplicabilidade das medidas
de segurança aos inimputáveis por doença mental afirmam que no período em que se encontrar
internado, será oferecido acompanhamento psiquiátrico assim como medicações que favoreçam a
recuperação do alienado.
Deste modo, partindo do princípio de que todo ser humano deverá viver com o mínimo de
dignidade apresentar-se-á as informações contidas no relatório. Estruturalmente a instituição é
bastante precária, a equipe do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura relata essa
precariedade das instalações.

[...]tais espaços eram sujos e não garantiam qualquer privacidade às pessoas internadas. A
estrutura de todos os prédios é bastante precária, sendo que alguns apresentavam sérios
problemas de entupimento de encanamentos, mofo, pintura gasta etc. Todos os locais visitados se
encontravam em condições de higiene desumanas, eram mal iluminados e com pouco arejamento.
Os alojamentos da ala G estavam com os tetos queimados o que, além de deixar o local mais
insalubre, escurecia em excesso o ambiente. Muitas paredes do IPF estavam sujas com o que
parecia ser fezes humanas. E a maioria dos banheiros, quase todos coletivos, não tinha qualquer
condição de uso e privacidade. Boa parte deles apresentava sanitários dispostos próximos do
nível do chão. Ainda, em um deles, todas as pias e sanitários estavam completamente entupidos,
sendo possível observar dejetos humanos e outros detritos. A água para o banho é fria, o que
em dias de inverno em Porto Alegre é bastante hostil, podendo ser considerado maus tratos,
tratamento desumano, cruel e degradante (BRASIL, 2015, p.6).

Ou seja, os internos vivem em um ambiente precário e degradante e sem as mínimas condições


de higiene. Ainda, verificou-se que, “os homens dormiam em alojamentos coletivos com mais de
trinta camas, com colchões e roupas de cama em péssimo estado de conservação e, em uma das
camas ao invés de lençol, havia saco plástico” (BRASIL, 2015). Sob essa perspectiva, os doentes
mentais internadas no local não passam de meros objetos, compondo um cenário macabro sem o
mínimo necessário para que se viva com dignidade.
Conforme o relatório apresentado, “embora as normas internas da unidade prevejam a realização
de atividades terapêuticas, o atendimento psicossocial é limitado, senão nulo. Segundo explicitado,
não eram desenvolvidas ações de terapia ocupacional na unidade, pois não havia profissionais
habilitados para isso” (BRASIL, 2015).
Deste modo, sem que sejam desenvolvidas atividades terapêuticas o tratamento oferecido aos
internos é precário e ineficiente para que o doente apresente condições de recuperar-se da enfermidade.
Assim, entende-se que o único tratamento disponibilizado a esses indivíduos seria através de
medicação. No entanto, “a utilização excessiva de medicamentos impossibilita o desenvolvimento e
reforço da autonomia das pessoas internadas, ou seja, apenas as cronificam, prejudicando qualquer
tratamento assim como o processo de desinstitucionalização” (BRASIL, 2015).
Desse modo, percebeu-se ainda, que a medicação é distribuída aos internos como uma forma de conte-
los, “pela maneira como a medicação é empregada pareceu ser muito mais um elemento disciplinante das
pessoas internadas, ao invés de ser uma medida puramente terapêutica” (BRASIL, 2015). Nesse sentido,
conforme o relatório apresentado os visitantes presenciaram a contenção de um dos internos:

No dia da visita, presenciamos a contenção de um homem situado na unidade de Admissão e


Triagem (UAT). De acordo com a equipe de saúde do local, a pessoa Internada estava bastante
agitada, entrando em surto. Um grupo formado por três agentes penitenciários e uma técnica de
enfermagem entrou na cela, segurou o homem e o sedou [...]. Ademais, não escutamos qualquer
diálogo um pouco mais prolongado entre a equipe e o interno, pois foi priorizada a realização da
contenção mecânica, seguida da química. Assim, poucos minutos após o procedimento, vimos
pela abertura localizada na porta da cela que a pessoa estava totalmente tranquilizada. Imóvel na
cama, dormindo com o cobertor envolto em todo o corpo (BRASIL, 2015).

Desse modo, seja a contenção, mecânica ou química, em qualquer das situações, o isolamento
do doente mental é abusivo, pois não pode ser considerado como uma medida terapêutica e sim uma
forma de controle.
A Lei nº 10.216 de 2011 é clara ao estabelecer que a pessoa com transtorno mental, será “tratada
com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua
recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade” (BRASIL, 2011), assim como,

488
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

estabelece que o interno será “protegido contra qualquer forma de abuso e exploração” (BRASIL, 2011).
Além disso, a Resolução número 04 de 30 de julho de 2010 do Conselho Nacional de Politica
Criminal e Penitenciária, também não deixa dúvidas sobre a importância do fortalecimento da
autonomia da pessoa com transtorno mental em conflito com a lei.
Assim, pode-se afirmar que a dimensão terapêutica fica abalada diante da lógica de contenção
manicomial, imposta pelo funcionamento institucional observado no Instituto Psiquiátrico Forense
de Porto Alegre e apontados pela Comissão Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Neste
passo, à ausência de tratamento terapêutico individualizado e apropriado para os internos, gera um
processo de mortificação individual, dificultando ou mesmo impedindo, qualquer possibilidade de
desinstitucionalização progressiva das pessoas internadas.
Segundo o relatório, na área destinada às mulheres, observou-se, que apesar da precariedade,
o ambiente apresentava-se relativamente mais limpo do que os espaço destinados aos homens. No
entanto, “elas pareciam estar circunscritas a um espaço bastante limitado da instituição, para não
entrar em contato com os internos do sexo masculino. A unidade pareceu ser voltada e planejada
especificamente aos homens, as mulheres fortemente invisibilizadas no IPF” (BRASIL, 2015).
Outro fator importante constatado foi á baixa participação de familiares, segundo a direção do
IPF, “a equipe técnica, realiza a busca ativa dos familiares dos internos, no entanto, observou que
várias famílias romperam os laços com os internos pelo crime cometido. Com isso, boa parte não
recebe visitas, nem apresenta qualquer vínculo externo à instituição” (BRASIL, 2015).
Tal situação condena essas pessoas ao esquecimento dificultando a desinstitucionalização e tornando
ainda mais precárias as condições de permanência nas unidades, por disporem de menores cuidados, afeto
ou bens materiais são totalmente dependentes do Estado. As relações externas à instituição são fundamentais
para ao tratamento, esse vínculo é essencial para que possam dar um novo significado a sua trajetória.
Observa-se que, se tratam de pessoas com desvios mentais que são internados justamente para que
sejam tratados e recuperados, no entanto, não recebem o devido tratamento. Na verdade a Lei nº 7.209
de 1984 trocou o nome manicômio por Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, no entanto, não
previu a construção de melhores estabelecimentos, persistindo assim à antiga e precária situação.
Os hospitais de custódia para tratamento, onde devem ser feitas as internações, “vieram substituir,
em tese, os antigos manicômios judiciários presentes na legislação de 1940, entretanto, a quase
ausência de estabelecimentos do gênero acaba por conduzir à utilização dos antigos manicômios”
(PRADO, 2014, p. 568).
Deste modo as pessoas internadas nessas instituições, sucateados pelo tempo e pelo descaso
vivem as agruras do abandono, esquecidos por aqueles que deveriam zelar pela saúde mental dos
inimputáveis que cumprem medida de segurança nessas instituições.
Seria tortura, submeter seres humanos a viver nessas condições?. O dicionário brasileiro de
língua portuguesa define o ato de torturar como sendo:

1) Ato ou efeito de torturar. 2) Volta tortuosa; dobra; curvatura. 3) Sofrimento físico ou moral
imposto a alguém, geralmente para obter alguma revelação; suplício, tormento:  4) Grande aflição
do espírito; angústia, sofrimento; 5) Situação que apresenta dificuldade; complicação, embaraço.
(MICHAELIS, 2015).

Deste modo, torturar é causar sofrimento, angustia ou aflição tanto física como mental a uma
pessoa. Nesse sentido a Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanas ou Degradantes de 1984, internalizada na legislação brasileira a través do Decreto de nº
40 de 1991, define a tortura como:

O termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais,
são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,
informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido,
ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por
qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza [...] (ONU, 1984).

Assim, tortura são as dores e sofrimentos infringidos ao indivíduo para coagi-lo ou a um terceiro
através dele. Da mesma forma, a Lei 9.455 de 1997, que tipifica os crimes de tortura a define como:

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento psíquico
ou mental: a) com o finalidade de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de
terceiros; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação
racial ou religiosa. [...]submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo
pessoal ou medida de caráter preventivo (BRASIL, 1997).

Assim, as definições de tortura supracitadas a definem como o ato de violência ou que possa
causar sofrimento psíquico ou mental a um indivíduo. Desse modo, diante das condições insalubres
em que vivem esses internos, sem o mínimo que lhes de condições de um tratamento eficaz para que
possa efetivamente haver a possibilidade de cura.
Despidos de sua dignidade, vivendo em um ambiente insalubre ao completo abandono, desse modo,
“é possível afirmar que os internos do Instituto Psiquiátrico de Porto Alegre, estão sujeitos á tortura e a
outros tratamentos degradantes e cruéis” (BRASIL, 2015), em quanto estiverem sob a tutela do Estado.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo chega ao seu final e talvez, alguns pontos tenham ficado em aberto, pois
descrevemos aqueles mais importantes para a compreensão da proposta apresentada.
Assim, inicialmente, discorreu-se sobre a aplicação da medida de segurança aos inimputáveis
por doenças mentais em conflito com a lei. Desse modo é inimputável o indivíduo que não tem a
capacidade de entender o caráter delituoso do delito cometido e semi-imputável, aquele indivíduo
que não tem discernimento pleno do ato cometido.
Em um segundo momento, apresentou-se de forma sintetizada o relatório dos representantes do
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, após visita ao Instituto Psiquiátrico Forense
Maurício Cardoso, Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Porto Alegre.
Ao analisarmos o quadro apresentado pelo relatório, nota-se que contrariando o que dispõe
a legislação e apesar de todo o avanço no que se refere ao tratamento que deveria ser ofertado aos
incapazes por doença mental, ainda é possível verificar, pessoas expostas a condições e a tratamento
precário e indigno, nas instituições em que ficam reclusos.
Percebe-se que, embora o Estado tenha se movimentado com o objetivo de humanizar o
tratamento disponibilizado aos inimputáveis, instituído leis para regular o funcionamento dessas
instituições, as arbitrariedades persistem, assim como as violações aos Direitos Humanos mostram-se
evidentes a cada visita que é feita a essas instituições.
Logo, é possível afirmar que, o sistema manicomial permanece como os existentes, antes da
legislação vigente, violando a integridade física o direito à dignidade da pessoa humana, à liberdade,
à saúde, além da exclusão do convívio social ao manter esses indivíduos segregados.
Em síntese, percebe-se que as medidas de segurança aplicadas aos doentes mentais em conflito
com a lei, estão muito aquém do que se poderia considerar ideal para um Estado Democrático de
Direito. O quadro apresentado nos fez perceber que, há sim o caráter de perpetuidade latente nas
medidas aplicadas aos inimputáveis, quando se constata que, sob a alegação de que estão em
tratamento, permanecem anos sem assistência médica hospitalar adequada, sujeitos a intervenções
piores que aquelas dispensadas aos condenados.
Quando o Estado, condiciona a desinternação do doente mental ao fato dele estar curado,
ficando aquele, responsável por reabilitá-lo, quando lhes faltam apoio psicossocial adequado, se o
tratamento psiquiátrico disponibilizado é precário, se há carência na estrutura física da instituição.
Existe a possibilidade dos internos permanecerem custodiados, pelo resto de suas vidas.
Da mesma forma pode-se afirmar que, os internos sob as condições apresentados no relatório,
estão sendo torturados de forma desumana. É extremamente constrangedor perceber que o ser
humano pode ser tão cruel com o seu semelhante a ponto de despi-lo de sua dignidade e de sua
natureza humana, igualando-o a animais, ou pior ainda, tratando-o como se fosse um ser inferior,
desprovido de qualquer sentimento, condenando-o a viver em permanente clausura.

490
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei 9.455 de 1997. Crimes de Tortura. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/
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BRASIL. Resolução CNPCP nº- 4, de 2010. Diretrizes Nacionais de Atenção aos Pacientes
Judiciários e Execução da Medida de Segurança. Disponível em: <www.criminal.mppr.mp .br›
Outros › ResolucaoCnpcp4>. Acesso em 23 de set de 2020.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. STJ - Súmula 527. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 30
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BRASIL. Decerto nº 40 de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e Outros


Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0040.htm>. Acesso em 25 de set. de 2020.

MICHAELIS. Dicionário On-line de português. Ed. Melhoramentos Ltda., 2015. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/modernoportugues/busca/portugues brasileiro/ tortura>. Acesso em
24 de set. de 2020.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. rev., atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

ONU. Convenção contra a tortura e outro tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou


degradantes. Assembleia Geral das Nações Unidas,10 de dezembro de 1984. Disponível em:
<http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacaoconteudosdeapoio/legislacao/tortura/convencaoonu.pdf>.
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ONU. Declaração Universal de Direitos Humanos. Nações Unidas, 10 de novembro de 1948.


Disponível em: < https://www.oas.org/dil/port/1948%20Declara%C3%A7%C3% A3o%20Universal%20
dos%20Direitos%20Humanos.pdf> Acesso em 24 de set. de 2020.

PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. 13ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

491
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

MORADORES DE RUA À MARGEM DA PANDEMIA DA COVID-19: O


RETRATO DO DESCASO DO SER HUMANO E OS SEUS DESAFIOS

Ana Maria Foguesatto237


Estela Parussolo de Andrade238

RESUMO: O artigo busca demonstrar os reflexos das desigualdades na contemporaneidade no


enfrentamento da pandemia de COVID-19 novo coronavírus (SARS-CoV-2) pelos moradores de rua.
Objetiva-se analisar como a população em situação de rua está sendo vista pelos órgãos estatais e
reagindo às medidas recomendadas pelos órgãos mundiais da saúde acerca da proteção do ser humano
perante a crise sanitária atual. O texto é desenvolvido por meio do emprego do método fenomenológico-
hermenêutica, pois os sujeitos-autores da verificação se encontram inseridos na sociedade ora analisada,
e alia-se a técnica de pesquisa bibliográfica e documental. Conclui-se ser de grande importância um
olhar mais preciso do poder público, por essa população, para assim, instalar formas permanentes de
implementação das políticas estatais, para atender as necessidades desse grupo social específico.

Palavras-Chave: Desigualdade. Direitos Humanos. Moradores de rua. Pandemia. Saúde.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca demonstrar como as desigualdades têm se manifestando na


contemporaneidade, mais precisamente no presente ano (2020). A partir de dados divulgados
pelo Relatório Mundial de Ciências Sociais, de 2016, foi publicado pelo Conselho Internacional de
Ciências Sociais (International Social Science Council – ISSC) e coeditado pela UNESCO, o qual vincula a
problemática da desigualdade social com a saúde da população, pautado neste artigo principalmente
no que se refere a população de baixa renda e moradores de ruas em nosso país.
O objetivo da presente pesquisa é perseguir como a população em situação de rua está sendo
vista pelos órgãos estatais e reagindo às medidas recomendadas pelos órgãos mundiais aceca da
proteção ao ser humano ante a pandemia de COVID-19 novo coronavírus (SARS-CoV-2), tendo em
vista que os moradores de rua sempre foram a parte da relação estado versus sociedade que sentiu na
própria pele a dor do esquecimento, em uma verdadeira crise nas relações de alteridade e identidade
para com o outro, vítimas da violência do esquecimento.
Este trabalho enfrenta a temática e as hipóteses levantadas através do emprego do método
fenomenológico-hermenêutica, tendo em vista que os sujeitos-autores da verificação se encontram
inseridos na sociedade ora analisada, e como técnica de pesquisa optou-se pelo emprego da vasta
pesquisa bibliográfica e documental, através de textos, artigos, estudos, relatórios, livros e pesquisas
existentes acerca da temática pelos meios digitais, além da leitura e fichamento dos materiais.
Para atingir o objetivo proposto, o texto foi dividido em três partes, iniciando com a introdução,
a exposição dos resultados obtidos e a conclusão acerca da temática proposta no presente estudo. No
primeiro capítulo, busca-se demonstrar os tipos de desigualdades existentes, como eles contribuem
para a acentuação dessas ocorrências. Aponta-se os números da desigualdade em vários lugares
do Brasil e do mundo. Por fim, importa referir que a prioridade, conquanto, será o respeito ao ser
humano que vivencia essa situação de exclusão social, tentando-se não permitir na produção do
trabalho qualquer conteúdo alheio à conjuntura ou aspiração dos verdadeiros atores.

237 Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito - Curso de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Re-
gional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ; Graduada em Direito pela UNIJUÍ. E-mail: anafoguesatto@hotmail.com;
238 Mestranda e Bolsista UNIJUI do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito - Curso de Mestrado em Direitos Hu-
manos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ; Graduada em Direito pela UNICRUZ.
Advogada. E-mail: estela_andrade@hotmail.com.

492
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Atualmente no Brasil, uma crise na saúde mundial muda a história de milhares de pessoas, tem-
se tido um viés totalmente diferente daquele que se esperado, o caos, a anormalidade está instalada.
Isso porque, um vírus invisível, sem cheiro e sem cor está moldando a vida não só aqui, mas em todo
o globo, refletindo em grande escala no estilo de vida da população em geral, não obstante, fazendo
com que também a história da civilização tenha outro desfecho.
Instalou-se uma crise sanitária mundial, qual mudou a história de milhares de pessoas. A pandemia
ocasionada pela COVID-19 se apresenta como um grande desafio sanitário em escala global deste
século. Logo, está trazendo duras consequências à realidade da população mais vulnerável, quais sejam,
cidadãos, entre eles, crianças e idosos moradores de ruas. Trata-se justamente dos seres humanos
descartados pelo sistema que, certamente, sofrerão os efeitos nefastos dessa pandemia. Isolados em
seu próprio mundo, à mercê da preocupação do Estado e invisíveis, assim como o Novo Coronavírus.

1 A DESIGUALDADE SOCIAL NO BRASIL E AS IMPLICAÇÕES PARA IMPLEMENTAÇÃO DE


POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE

Como bem assegura a Constituição Federal Brasileira de 1988, somos todos iguais em direitos e
deveres perante a Lei, todavia, sabe-se que na prática não é bem assim. Mesmo com muito avanços no
setor econômico brasileiro na questão da distribuição de renda, o Brasil segue sendo um dos países
mais desiguais do mundo. A desigualdade social é um mal que atinge todo o globo, mas destaca-se
principalmente nos países subdesenvolvidos.
O Conselho Internacional de Ciências Sociais (International Social Science Council – ISSC) juntamente
com a UNESCO, publicam de tempos em tempos o Relatório Mundial de Ciências Sociais, neste consta
dados e análises realizadas sobre as desigualdades existentes no mundo, destacam especialmente
as ligadas com a economia, as desigualdades sociais, culturais, intelectuais, políticas, espacial e de
cunho ambiental. O último Relatório foi publicado em 2016, e expõe o quão significativo destaque as
desigualdades estão evidenciadas na nova era mundial no século XXI. O Relatório fundamenta-se em
estudos feitos com mais de 100 cientistas sociais e demais pensadores sobre o tema no mundo inteiro.
A desigualdade econômica, está fundamentada nas diferenças estabelecidas entre níveis de renda,
riqueza e capital, padrões de vida e emprego; a desigualdade social está nas diferenças de status social
entre a população, no sistemas educacional, no acesso a saúde, justiça e proteção; a desigualdade cultural
vincula discriminações em razão de gênero, etnia, cor, religião, deficiências; a desigualdade política está
relacionada à capacidade de influenciar os processos políticos na tomada de decisões e participar da
ação política; a desigualdade espacial diz respeito às disparidades espaciais e regionais entre centros e
periferias, áreas urbanas e rurais; a desigualdade ambiental está relacionada à irregularidade no acesso
aos recursos naturais e aos benefícios de sua exploração; exposição à poluição e a riscos. (UNESCO, 2016).
No ano de 2015 o Relatório apontou que, “quase metade de toda a riqueza das famílias de todo
o mundo pertencia a 1% da população mundial, e que as 62 pessoas mais ricas possuíam o mesmo
que a metade inferior da humanidade”. (UNESCO, 2016, p. 3). Logo podemos dizer que se essa
desigualdade constatada não for controlada, pode colocar-se em risco a sustentabilidade da economia
primeiramente local e assim suceder-se a um nível global.
O Relatório também estuda as forma de como as desigualdades influenciam na vida do ser
humano, e como esta pode dar origem a um círculo vicioso de malefícios. O nível quantitativo de
desigualdades sociais vêm crescendo a um bom tempo, teve sua origem nas décadas de 1980 e 1990,
período no qual o neoliberalismo se tornou predominante no ocidente. No entanto, elas não ficaram
apenas nos países ocidentais, mas se espalharam para diversos países do mundo, em consequência
do fenômeno da globalização.
Acerca da globalização, cabe mencionar alguns pontos relevante conceituais na história, após o fim
da Guerra Fria239, o capitalismo começa a tomar forma, de acordo com o sociólogo Octavio Ianni (1999,
p. 184): “nessa época ocorre uma transformação quantitativa e qualitativa do capitalismo, como modo de
produção e processo civilizatório”. Essas transformações foram principalmente na área do processo de

239 Conflito ideológico pela disputa internacional pelo poder, declarado entre Estados Unidos (capitalista) e URSS (socialis-
ta), iniciado por volta de 1945 e teve seu término em 1991, momento em que ocorre a extinção da União Soviética.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

produção, na organização do trabalho e, também, trouxe mudanças significativas na vida das pessoas.

Na medida em que se dá a globalização do capitalismo, como um modo de produção e processo


civilizatório, desenvolve-se simultaneamente a sociedade global, uma espécie de sociedade
civil global em que se constituem as condições e as possibilidades de contratos sociais, formas
de cidadania e estruturas de poder de alcance global. Nessa mesma medida, desenvolvem-se
as relações e os processos característicos da globalização, formam-se as estruturas do poder
econômico e político também característicos da globalização. (IANNI, 1999, p. 215).

Portanto, a globalização constituiu-se no mais relevante evento das últimas décadas. Foi um
verdadeiro marco referencial da emergência de uma nova era, com dimensões bastante extensivas no
que se refere “à redução das distâncias, à aceleração do tempo, à quebra das identidades nacionais,
à ruptura das fronteiras e à conformação de novas relações políticas” (BEDIN, 2011, p. 130). Isto
provocou inúmeras mudança na vida das pessoas, nos cidadãos citadinos exclusos do centros
econômicos, ou seja, para a população de baixa renda.
A falta de acesso aos recursos básicos para sua subsistência, acarreta ao indivíduo uma série de
consequências, entre elas, psicológicas e a não possibilidade de acessar alternativas para o seu bem-estar em
geral. Essas ocorrências propiciam a redução dos esforços desses indivíduos às demais prioridades globais.
Quando falamos em indivíduos que integram grupos excluídos e marginalizados, estamos fazendo
referência a pessoas que não estão inseridas no mercado de trabalho, e em razão disso, não possuem
uma renda para sua sobrevivência, consequentemente, não conseguem ter acesso a uma série de
direitos fundamentais que deveriam ser garantidos pelo salário mínimo, no Brasil. Essas pessoas não
possuem, muitas vezes, uma alimentação diária, seus filhos estudam em escolas periféricas, a suas
residências tem carência de saneamento básico o que aumenta a proliferação de doenças, localizam-se
em regiões afastadas do centro urbano, dificultando o acesso a informação, cultura, arte e lazer.
Nesse sentido, dispõe Martha Nussbaum (2015, p. 24):

[...] os educadores que defendem o crescimento econômico não se limitam a ignorar as artes: eles
têm medo delas. Pois uma percepção refinada e desenvolvida é um inimigo especialmente perigoso
da estupidez, e a estupidez moral é necessária para executar programas de desenvolvimento
econômico que ignoram a desigualdade.

Infelizmente o termo desenvolvimento, vem sendo atrelado apenas no que tange ao


desenvolvimento econômico, sendo que este somente poderia existir no plano real como uma
consequência do desenvolvimento humano, nas mais diversas dimensões que abrange capacidade
física, intelectual, afetiva e social.
Conforme dispõe o Relatório da Unesco, assim como as desigualdades têm consequências que se in-
ter-relacionam, os benefícios decorrentes das atividades realizadas, que visam a redução das desigualdades,
também se inter-relacionam, proporcionando ganhos em áreas como saúde, educação e sustentabilidade.
Visando a redução das desigualdades existentes, um grupo de medidas são apresentadas
no Relatório, buscam reduzir ou estabilizar desigualdades crescentes, dentre eles destacamos
primeiramente uma proposta de política macroeconômica, qual engloba políticas públicas para
melhorias na educação, tornando-a de qualidade e preparando jovens para o mercado de trabalho,
que as pessoas passam a ter melhor acesso a empregos e trabalhos com salário digno.
A segunda alternativa, é a das políticas redistributivas de riqueza e de recursos, estabelece políticas
progressivas de impostos sobre a renda para reduzir as diferenças de rendimentos para a proteção social.
Proteção e serviços sociais, bem como as de transferências de dinheiro e de assistência médica e educação
gratuitas e acessíveis. Governança inclusiva, que parte de instituições políticas e governamentais de alta
qualidade, as quais são fundamentais para a redução da desigualdade. Isso envolve políticas como por
exemplo as de cotas para mulheres e indígenas, na ocupação de cargos políticos formais.
Destaca-se de suma importância na pesquisa a área das ciências sociais, como alternativa
para o enfrentamento das desigualdades, pois esta área estuda e ajuda a entender o motivo pelo
qual as desigualdades persistem. Essas abordagens devem ser integradas após uma ampla gama
de abordagens disciplinares, de definição de agendas e de marcos para a pesquisa, não obstante as
áreas das ciências sociais, a das artes e das humanidades são de suma relevância no buscar pelos

494
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

resultados qualitativos para diminuir as taxas de desigualdades, e não apenas um levantamento de


dados e números.
Nesse esfera de discussão acerca das desigualdades sociais, destacamos as implicações na
implementação de políticas públicas de saúde para a população menos favorecida. A saúde é um direito
fundamental da pessoa humana. Sendo assim, a saúde se encontra em igual importância com outros
direitos garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A Constituição Federal de
1988 também assegura o direito a saúde, em seu artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
A saúde é um importante elemento para o desenvolvimento humano, social e econômico, na
promoção da sadia qualidade de vida. Para efetivação desse direito é necessário uma ação coordenada
entre as partes envolvidas, quais sejam, o governo, o setor de saúde, e não obstante os setores sociais
e econômicos. Os cuidados devem ser integrais e permanentes para com a saúde da população. A
promoção da saúde trabalha a fim de prevenir doenças e fatores de risco.
Levamos a discussão para o âmbito das políticas públicas relacionadas a saúde. Quando há
déficit de algumas dessas medidas que auxiliam a não desigualdade social, pensamos na saúde da
população. Em termos de política, é importante destacar que a manutenção da saúde pública quando
prejudicada afeta diretamente o setor econômico, pois enfraquece a produtividade, logo a renda dos
indivíduos. Sobre situações que derivam da desigualdade social quais abrangem questões de saúde
da população ocupa-se o texto em sua sequência.

2 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E OS DESAFIOS DA SOBREVIVÊNCIA EM TEMPOS DE


PANDEMIA

Uma crise sanitária mundial muda a história de milhares de pessoas. A pandemia ocasionada pelo
COVID-19 novo coronavírus (SARS-CoV-2) se apresenta como um dos maiores desafios sanitários em
escala global deste século, tem levado às pessoas para dentro de suas residências e a se isolarem, do
mundo, da família, dos seus amores, da sua vida, da sua rotina. E o vírus não diferenciou classe social,
raça ou cor. A regra para todos é isolar-se. Isso porque, segundo a Organização Mundial da Saúde
(OMS), a melhor maneira de prevenir a infecção pelo Novo Coronavírus seria pela restrição social, o
que, entretanto, está trazendo duras consequências à realidade da população mais vulnerável.
São crianças que não têm o que comer pois dependem para se alimentar da merenda escolar, só
que as aulas estão suspensas, são profissionais liberais e autônomos que foram dispensados, devido
ao fechamento do comércio, pedintes sem esmolas, já que as pessoas estão em suas casas, assistindo
suas séries e comendo seu estoque de alimentos, enclausuradas e banhadas em álcool gel.
E, justamente os seres humanos descartados pelo sistema que, certamente, sofrerão os efeitos
nefastos dessa pandemia. Enquanto os órgãos sanitários mundiais e, no Brasil, o Ministério da Saúde
reforçam à população acerca das medidas básicas de higienização, recomendando que sejam evitadas
aglomerações de pessoas e incentivando o isolamento social, percebe-se que os moradores de rua
estão imersos, como de costume, em seu próprio isolamento.
Isolados em seu próprio mundo, à mercê da preocupação do estado e invisíveis, assim como o Novo
Coronavírus. Os moradores de rua foram obrigados a isolar-se a sua própria sorte, muitas vezes sem
sequer entender o motivo pelo qual as pessoas a sua volta começaram a se equipar com máscaras e luvas.
O mundo a sua volta mudou, os comportamentos mudaram, as ruas esvaziaram-se, e eles continuaram
lá, segregados em sua dor e isolados, mais uma vez, do mundo e das medidas sanitárias de proteção.
Diversos são os motivos que levam as pessoas a fazer da rua seu lar, a exemplo da situação de
pobreza, miséria, marginalidade, migração, laços familiares rompidos, desemprego estrutural dentre
outros. Trata-se de parcela da população excluída da estrutura convencional da sociedade, vivendo na
linha da indigência ou pobreza absoluta, cuja sobrevivência encontra-se repetidamente comprometida.
A paisagem dos moradores de rua desnuda uma realidade que tem como arrimo um padrão
convencional de vida, com casa, comida, afeto, aconchego e situação de pertencimento, já que
pessoas em situação de ruas muitas vezes, sequer possuem o mais básico do necessário para atender

495
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

as suas necessidade, as necessidade básicas de um ser humano que são.


Para Hino, Santos e Risa (2018, p. 773):

A existência da população que vivencia situação de rua e um fenômeno social que vem assumindo
novas expressões nas sociedades contemporâneas, particularmente nos centros urbanos. Esse
grupo social marginalizado pela sociedade tem como habitação os logradouros ou albergues
públicos ou filantrópicos e, ainda, vivencia situações de trabalho, condições de vida e inserções
sociais precárias. A falta de moradia convencional não é o único problema vivenciado pelas
pessoas que integram esse grupo, essa situação incide no comprometimento de outros fatores
socioeconômicos importantes [...]

No dia 11 de março do ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde - OMS declarou que que o
mundo estava vivendo uma pandemia de COVID-19, doença causada pela disseminação global do novo
coronavírus, com a capacidade de infectar seres humanos com facilidade e de ser transmitido de uma
pessoa para outra de forma eficiente e continuada, em diversas regiões do mundo e ao mesmo tempo.
Palavras ditas como: Isolamento social, distancie-se, lave bem as mãos com água e sabão, use
álcool gel regularmente, ou a famosa hastag “#fiqueemcasa”, são algumas das principais orientações
para o combate ao COVID-19, ou a não propagação da doença. Não há dúvidas que tais medidas
são de suma importância. Muitas dúvidas surgiram de como o ritmo de vida no mundo aconteceria.
Seguindo a linha da ciência, o mundo isolou-se em suas respectivas residências, afim de combater
a pandemia. O pedido foi de modo universal pelas autoridades da saúde para que todos ficassem
em casa, em regime de quarentena, com um rígido protocolo de medidas de higienização. Neste
contexto, cabe perguntar: e para população que não tem casa, ou, então, quando o seu único teto é
a própria rua, como ficar em quarentena em casa?
Quando a ausência de moradia e de condições de saúde já era um grande problema para os
moradores de rua, certamente, agora, tornou-se uma questão essencial. Em que pese as políticas
públicas implementadas para reduzir o grau de letalidade do vírus, verifica-se que ela penaliza os mais
pobres e beneficia os mais ricos, mostrando, mais uma vez, o quão clara é a questão de desigualdade
de condições da população.
A crise no Brasil mostrou que ele é muito mais que política e econômica, mas sim uma crise
sanitária e humanitária. Isso porque, enquanto se busca minorar os efeitos deletérios da pandemia de
COVID-19 sobre a vida humana, verifica-se que as medidas deslocadas envolvem parcela da camada
populacional, fazendo com que os mais moradores de rua pratiquem um isolamento social precário,
pois a eles não existem políticas sanitárias de isolamento e, tampouco, um modelo de gestão da crise
sanitária para moradores de rua.
Muito mais que uma situação de pandemia, verificamos uma crise de situação humanitária das
populações pauperizadas, e muitas da medidas para achatar a curva da transmissão da COVID-19 são
inconsistente com a realidade dos moradores de rua, e ai passa-se a perquiri que a pandemia veio
também trazer um novo olhar dos direitos humanos das pessoas mais afastadas do sistema, pelo
impacto que ela vem causando.
Para o doutor, pesquisador e professor Julvan Moreira de Oliveira, a vulnerabilidade vai atingir
especialmente, conforme a história tem mostrado (2020, s/p):

Bem, historicamente, as tragédias que atingem a humanidade, têm um peso muito maior sobre
os grupos mais vulneráveis. Na sociedade brasileira, especificamente, devido a nossa história
marcada por uma herança escravista, em que alguns ainda se comportam e pensam dentro daquele
modelo colonial, há que se pensar que a vulnerabilidade atinge especialmente os negros, por um
racismo estrutural, as mulheres e os homossexuais e transexuais, com uma carga muito maior
quando esses são pobres. Não há como se pensar em vulnerabilidade no Brasil sem considerar a
interseccionalidade desses grupos, que já foi apresentada a nós por Lélia Gonzalez, na década de
1970, no que ela denominava “o lugar social estabelecido com base na hierarquização por sexo
e raça”. São justamente esses grupos – de mulheres negras pobres, transexuais e homossexuais
negros pobres – os mais atingidos, devido não só às condições de vida econômico-social, mas
sócio-cultural. [...] Se houve mudanças nos últimos anos, elas foram extremamente tímidas, pois
ainda é explícito esse quadro gritante de desigualdade.

E conclui:

496
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Se considerarmos que as principais medidas de prevenção para conter a Covid-19 são lavar as mãos, fa-
zer uso de álcool gel e praticar o distanciamento social, elas não estão ao alcance de uma parte conside-
rável da população. As nossas cidades expressam de uma maneira muito forte essas desigualdades [...]

Sem acesso a cuidados básicos, essa parcela fica exposta ao vírus, o que demostra a distancia entre
as orientação das autoridades sanitárias e a realidade dos brasileiros que vivem em vulnerabilidade
social. Abandonados pelo estado, muitos acompanham a evolução da pandemia pelas capas de
revistas expostas em bancas de jornais de ruas.
Se não fosse entidade da sociedade civil, ongs, muitos morreriam, antes, de fome, pois com
o fechamento do comércio e restaurante, muitos não tinham mais alimentos. Enfatiza-se assim a
necessidade de elaborar estratégias para incubação de políticas públicas não apenas de inclusão
social, mas de redução das crueldades e desigualdade bem como a erradicação da pobreza, a exemplo
do que preceitua o artigo 3, inciso III e IV da CF, segundo o qual afirma ser objetivo da República
Federativa do Brasil “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais”, além de “IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.” (Brasil, 2020).
Caminhando nesta direção, os deputados Talíria Petrone (Psol-RJ) e Glauber Braga (Psol-RJ),
encaminharam Projeto de Lei à Câmara dos Deputados (Projeto de Lei 707/20), visando um tratamento
digno aos moradores de rua durante a pandemia. Na justificativa que acompanha o projetos, ao
autores enaltecem que (2020, sqp):

O texto procura garantir que as pessoas em situação de rua sejam tratadas com dignidade, tenham
acesso aos serviços necessários, sejam incentivadas a, dentro de sua autonomia, buscarem o
melhor local para se abrigarem quando da necessidade de isolamento.

De acordo com o IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (2020): “A população em


situação de rua cresceu 140% a partir de 2012, chegando a quase 222 mil brasileiros em março deste
ano, e tende a aumentar com a crise econômica acentuada pela pandemia da COVID-19”. Dentro desses
percentuais, podemos citar como exemplo a população desempregada, vendedores ambulantes e
diaristas. Ainda alerta que “a propagação do novo coronavírus aumenta a vulnerabilidade de quem
vive na rua e exige atuação mais intensa do poder público.” O Brasil ocupa a 7º posição no ranking
de desigualdade social e o impacto da pandemia sobre as populações mais pobres e vulneráveis,
certamente reflete a desigualdade que já está enraizada há anos no país.
Construir políticas públicas sociais, para população que mora nas ruas sempre foi um desafio no
Brasil. Mas o momento atual clama por alguma medida social para esses cidadãos em vulnerabilidade
total, tenham alguma esperança em sobreviver nesse tempo de pandemia, ou seja, mudanças
aconteceram no cenário mundial pelo novo coronavírus (COVID-19) e exige-se respostas imediatas,
bem como eficaz, pelo poder público, para a estabilização e proteção das populações de rua, quais
têm uma maior possibilidade de contaminação pela doença.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou demonstrar como as desigualdades têm se manifestado na


contemporaneidade e como elas têm atingido a vida das pessoas. Como demonstrado, os reflexos das
desigualdades se inter-relacionam e consequentemente, as ações realizadas no sentido de minimizá-
las, também alcança todos os campos. Nesse sentido, uma medida de proteção a saúde, de forma
urgente nesse período da pandemia possibilitaria uma melhora na qualidade de vida, em diversos
aspectos, para a população de rua, qual é o objeto em questão desse trabalho.
Conforme pode-se verificar, a concentração de renda e riquezas tem sido um dos grandes
contribuintes para o aumento das desigualdades. Elas dão ensejo a uma série de violações de direitos
sociais. Importante demonstrar que as consequências da desigualdade social é um ponto decorrente
do fenômeno da globalização, qual centraliza os economicamente mais ricos, excluindo ainda mais a
população pobre, de fato não propositalmente, é uma via de mão dupla, no que tange as consequências

497
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

negativas que se destaca diversas formas de desigualdade.


A pandemia do coronavírus (COVID-19) pode ser considerado um reflexo da desigualdade. Trata-
se de uma emergência sanitária que se instalou em todo o globo, o que nos leva a pensar e refletir
sobre as questões sociais básicas para o bem viver, como são tratados, historicamente, as populações
menos favorecidas. Situação triste e lamentável vivida por essas pessoas a muitos anos. Existe uma
permanência na violência estrutural brasileira.
O governo federal brasileiro tem sido negligente para com esse grupo social em especifico,
pois ainda não se pronunciou quanto a questão de criação e implementação de políticas sociais
emergenciais para fins de apoiar os órgãos de assistência social no enfrentamento da COVID-19. Não
se enfrenta os problemas públicos sociais somente na emergência, mas sim é de grande importância
um olhar mais preciso por essa população, para assim, instalar formas permanentes de implementação
das políticas estatais, para tirar de vez a população das ruas.
Embora tenha havido avanços positivos no acesso a saúde pública e na produção do cuidado à
saúde, ainda há uma vasta precarização no acesso e na violação do direito à saúde dessa população
moradora de rua. Precisamos mais do que planos, precisamos de ação e efetividade na implementação
de estratégias para o enfretamento das questões sociais de saúde no Brasil.

REFERÊNCIAS

BEDIN, Gilmar Antonio. A sociedade internacional clássica: aspectos históricos e teóricos. Ijuí:
UNIJUÍ, 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 set. 2020.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto assegura tratamento digno a moradores de rua durante
epidemia ou pandemia. Agência Câmara de Notícias. 2020.
https://www.camara.leg.br/noticias/648119-projeto-assegura-tratamento-digno-a-moradores-de-
rua-durante-epidemia-ou-pandemia/. Acesso em: 01 mai. 2020.

HINO, Paula; SANTOS, Jaqueline de Oliveira; ROSA, Anderson da Silva. Pessoas que vivenciam
situação de rua sob o olhar da saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 71, p.
732-740. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
71672018000700684&lng=en&tlng=en. Acesso em: 01 mai. 2020.

IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica aplicada. População em situação de rua cresce e


fica mais exposta à Covid-19. 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.
php?option=com_content&view=article&id=35811. Acesso em: 20 set. 2020.

NUSSBAUM, Martha C. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades.
Tradução Fernando Santos. São Paulo: Editora: WMF Martins Fontes, 2015.

OLIVEIRA, Julvan Moreira de. A vulnerabilidade atinge especialmente


negros e pobres. Entrevista concedida ao Portal da Universidade Federal de Juiz de Fora. 2020.
Disponível em: https://www2.ufjf.br/noticias/2020/03/20/a-vulnerabilidade-atinge-especialmente-
negros-e-pobres/. Acesso em: 01 mai. 2020.

UNESCO. Relatório Mundial de Ciências Sociais: o desafio das desigualdades: caminhos para
um mundo justo. 2016. Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/social-and-human-
sciences/social-transformations/world-social-science-report/. Acesso em: 27 abr. 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O DIREITO À SAÚDE EM TEMPOS DE PANDEMIA:


COMO A JUDICIALIZAÇÃO PODE SER UM ENTRAVE
PARA A EFETIVAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA

Caroline da Rosa Cavalheiro240


Adriane Medianeira Toaldo241

RESUMO: Em face da pandemia do coronavírus, o debate sobre a saúde pública e o dever do Estado para
com os cidadãos voltou a se impor. Neste artigo, analisa-se, do ponto de vista do método hipotético-deduti-
vo, como reacendeu a necessidade de uma saúde pública de qualidade para atender a população, seguindo
os preceitos da Constituição de 1988, e como o poder público e a sociedade reagiram diante da iminência
do caos, ensejando gestos de solidariedade e cooperação. O trabalho também analisa o fenômeno da judi-
cialização, que continuou presente neste momento. Concluiu-se que a pandemia fortaleceu o sistema públi-
co de saúde e gerou novo entendimento sobre o conceito de cidadania, com maior solidariedade e coope-
ração, além de questionar a validade dos processos que garantem a saúde individual através do Judiciário.

Palavras-chave: Pandemia. Saúde Pública. Solidariedade. Cooperação. Judicialização.

INTRODUÇÃO

Desde os primeiros meses do ano, quando começaram a circular as notícias de uma pandemia,
quando surgiram os primeiros casos, o mundo e o país mudaram muitos, pois estavam enfrentando
um inimigo invisível e precisavam ensejar todos os esforços para que o sistema público de saúde
pudesse absorver o impacto da nova realidade e não entrasse em colapso.
A saúde pública brasileira, que nos últimos anos estava em processo de franca decadência, viu-
se repentinamente responsável por enfrentar a situação, mesmo com falta de leitos, equipamentos,
profissionais qualificados e sem proteção individual, anunciando o caos iminente.
Porém, passado o susto e com base nas experiências de outros países que foram acometidos
anteriormente pelo vírus, houve decisões acertadas no sentido de retardar a propagação do vírus com
o isolamento social, ao mesmo tempo em que preparavam-se as unidades de saúde para atender a
iminente demanda.
Os propósitos elencados na Constituição, de que a saúde é um direito de todos e um dever
do Estado voltaram a ser pronunciados e houve uma injeção de recursos em volume extraordinário
nas unidades de saúde pata atender a nova realidade. Ao mesmo tempo, empresas e a sociedade
civil organizada se mobilizaram para doar equipamentos, materiais de proteção, cestas básicas com
alimentos e higiene para as comunidades mais pobres, enfatizando a solidariedade e a cooperação.
Este artigo, confeccionado sob a ótica do método hipótetico-dedutivo, analisa os reflexos gerados
pela pandemia sob dois aspectos: o do incremento da solidariedade e da colaboração da sociedade
civil que teve como resultado o fortalecimento da saúde pública; e o advento da judicialização, que
continuou existindo durante a pandemia, como um recurso legal, mas que compromete as políticas
públicas de saúde. Além disso, pontua aspectos importantes sobre a devida prestação em saúde,
como princípio originário do Estado constitucional, que continuam válidos no momento atual ou até
mesmo foram acentuados.

240 Acadêmica do curso de Direito. Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Santa Maria - RS. carolinedrcavalheiro@gmail.com
241 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, UNISC. Santa Cruz do Sul, RS. Professora Adjunta
da Universidade Luterana do Brasil, ULBRA, Campus Santa Maria, RS. Advogada. E-mail: adrianetoaldo@gmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 DIREITO À SAÚDE: EM CONSONÂNCIA COM A CONSTITUIÇÃO

Compreende-se o direito à saúde como fundamental para a existência humana, pois sem o
mesmo ninguém consegue dignidade, bem-estar e tudo que é necessário para uma pessoa ser feliz e
realizar o que quer. A pessoa com saúde também se transforma em um membro ativo da comunidade,
disposto a cooperar para o bem. Assim, entende-se que uma sociedade somente poderá ser justa
quando todas as pessoas, sem exceção, estiveram com este direito realizado, ou seja, com completo
bem-estar físico, mental e social (DALLARI, 2004).
O direito à saúde tornou-se um dos pilares de sustentação da ideia de dignidade humana prevista na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 pela sua importância como direito social e funda-
mental que vai além da simples erradicação da doença e contempla um bem-estar físico e mental para que
o cidadão possa se sentir seguro e apto a realizar suas atividades pessoais e profissionais (BRASIL, 1988).
A Constituição de 1988 surgiu como o congraçamento de um conjunto de medidas e debates em
nível internacional e nacional de promoção da saúde da população, convergindo com a ideia de um
Estado Democrático de Direito, ou seja, como um direito ao qual todos devem ter acesso e que seja
um dever do Estado (art. 196), devendo este criar os instrumentos de gestão e as políticas públicas
eficazes para sua efetivação (BRASIL, 1988).
Ao redefinir o conceito de saúde, amplia-se o seu espectro, visto que a saúde, em si, contempla um
conjunto de direitos sociais que devem, obrigatoriamente, estar alinhados com a oferta de serviços públicos
de saúde. É por este motivo que entende-se que, se um cidadão não está bem alimentado, ele é um doente
em potencial e não vai adiantar ser atendido em uma unidade de saúde e voltar para casa, pois o problema
da subnutrição vai continuar e já pode marcar a sua consulta novamente. Da mesma forma, pode-se dizer
o mesmo de uma habitação que não oferece condições de higiene necessárias, como água encanada e
esgoto sanitário, implicando no aparecimento de doenças. E que o dizer do subemprego, da precarização
do trabalho, que relegam direitos e subtrai a renda necessária para uma devida qualidade de vida. Somado
a este conjunto de fatores, sobrevém uma educação precária, que implica na falta de conhecimentos básicos
de higiene corporal e compreensão do fenômeno de proliferação de micro-organismos.
Por isto, é importante que se tenha esta noção de saúde ampliada, ligada aos demais direitos
sociais, direitos fundamentais estes que são essenciais para a dignidade humana, constituindo
elementos fundamentais da ordem constitucional (SARLET; FIGUEIREDO, 2010). Ter saúde, pensando
desta maneira, vai além da simples relação com a doença e está em consonância com o que preconiza
a Organização Mundial da Saúde e o texto constitucional, ao arrolar em seu artigo 1º, inciso III, o
princípio da dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático brasileiro. O
que se se afirma é muito mais do que um direito à saúde, mais do que um simples viver longe de
enfermidades, pois sua efetivação está associada com a qualidade de vida que as pessoas deveriam
ter (FIGUEIREDO, 2007, p. 80), superando a antiga noção de ausência de doenças.
A Constituição, ao prever que a saúde é um dever do Estado inerente a todos os cidadãos,
estabeleceu que as políticas públicas garantam efetivamente a redução do risco de doenças e de outros
agravos, criando mecanismos que garantam o acesso universal e igualitário às ações que promovem,
protegem e recuperem a saúde dos cidadãos recuperação (BRASIL, 1988). Toda ação de saúde pública
constitui uma ação relevante e cabe ao poder público dispor de meios necessários para sua efetivação,
o que foi bem articulado com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) (artigo 198, CF/88).
Sabe-se que a efetivação dos direitos sociais fundamentais, como a saúde, ocorre por meio de políticas
públicas, que identificam os problemas e pontuam os interesses específicos de determinados grupos sociais
com o fim de atender suas demandas. Uma boa política pública é aquela que nasce dentro das comunidades,
é elaborada pelo poder público em conjunto com a sociedade civil e este relacionamento permanece
atuante nas demais fases, como a operacionalização, controle e análise de sua eficácia permitindo atender
os diferentes interesses dos grupos representantes da sociedade civil e do Estado, formulando ações que
realmente expressem os interesses e necessidades de todos os envolvidos (CUNHA; CUNHA).
É importante ressaltar que a efetivação de direitos como a saúde constituem a responsabilidade do
poder público, que foi criado para atender a sociedade; por isto, se diz que é o seu dever prestacional.
É neste sentido que as políticas públicas devem atingir, primeiramente, os interesses coletivos, antes
que aos individuais, motivo que os relaciona à execução e implementação das políticas públicas

500
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

(de educação, saúde, assistência, previdência, trabalho, habitação) que facultem o gozo efetivo dos
direitos constitucionalmente protegidos (KRELL, 2002,).
O Brasil é um país extremamente avançado em termos de legislação que protege os direitos
da população, notadamente no que diz respeito à saúde. Preconiza uma saúde ampla e irrestrita,
disponibilizada para toda a população, independente ou não de ter contribuído para o sistema de
seguridade social. Conseguiu implantar uma política de saúde pública em todo o país, o Sistema Único
de Saúde (SUS), gerenciado em conjunto entre a União, o Distrito Federal, os estados e os municípios e
ainda fiscalizado pela sociedade através dos Conselhos de Saúde. Ainda que se faça crítica ao sistema,
sabe-se que ele funciona e foi a estrutura do poder público de saúde que permitiu combater a pandemia.
Porém, o sistema de saúde pública vive o seu dilema desde 1988, pois o Brasil, ao expandir
o seu sistema, a partir das diretrizes constitucionais, não se preocupou com a implantação de um
gradual aumento da capacidade técnica, financeira e humana para suportar esta nova demanda.

2 A PANDEMIA E O FORTALECIMENTO DA SAÚDE PÚBLICA

A pandemia do coronavírus mostrou a deficiência do sistema de saúde pública, que corria o risco de
entrar em colapso devido a sua infraestrutura precária em termos de equipamentos, leitos disponíveis,
profissionais qualificados e recursos financeiros para estruturas ações de emergência em grande porte.
A propagação da Covid-19 também mostrou que a sociedade civil possui um baixo nível de educação
e, por este motivo, não respondeu aos apelos das autoridades para que houvesse o isolamento social e se
adotassem as medidas de prevenção necessárias. Também foi possível observar que havia um desnível na
oferta de saúde entre as grandes cidades e capitais e os pequenos municípios, que não possuem estrutura
de atendimento ambulatorial e de UTIs, frutos da falta de investimentos e da cultura da “ambulancioterapia”,
cuja política pública de saúde consiste em transportar os pacientes para municípios com maiores recursos.
Apesar disto, é preciso ressaltar que o poder público investiu uma soma considerável de recursos
na saúde pública neste período, situação inversa ao que vinha acontecendo há alguns anos, quando
o setor via, ano a ano, aumentarem as responsabilidades e diminuírem as verbas, sem falar dos
problemas de corrupção e má gestão. A pandemia, até porque não houve outra solução, obrigou os
governos, ainda que liberais, a fortalecer o sistema público de saúde.
Mas o ponto importante a ser ressaltado nesta pandemia foi o envolvimento das empresas com
a sociedade civil organizada e o Estado no sentido de atender as demandas existentes. Organizações
comerciais de todos os segmentos, de pequeno, médio e grande porte atenderam aos apelos de
responsabilidade social e destinaram recursos volumosos para aumentar o número de leitos de UTI,
adquirir equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde e providenciar cestas
básicas com alimentos e produtos de higiene para a população.
Nunca, na história do Brasil, houve uma disposição tão grande do setor empresarial em apoiar
ações públicas sociais e de saúde. E grande parte deste envolvimento ocorreu junto à comunidade local
onde as empresas estão localizadas. Esta é uma oportunidade para se repensar a ideia de comunidade
e de gerenciamento, por parte da sociedade, daquilo que é público, redimensionando a relação entre
Estado e sociedade.
É o momento de se repensar o espaço comunitário, de entender que existe um setor público
que não é necessariamente estatal, que alcança uma dimensão maior do que instituído em nível
governamental. A pandemia mostrou que existe um espaço público de atual, muito amplo que o
estatal, que todos e para todos, mesclando o estatal com o não estatal. É estatal uma forma específica
de espaço ou de propriedade pública: aquela que faz parte do Estado. É privada a propriedade que se
volta para o lucro ou para o consumo dos indivíduos ou dos grupos (BRESSER PEREIRA, 1999, p. 26).
Quando as empresas fazem doações, determinando exatamente onde devem ser aplicadas, elas
estão aplicando a lógica de ingerência nos negócios públicos, o que constitui uma forma avançada de
cidadania e do entendimento do que vem a ser a comunidades, porque suas decisões afetam a todos,
os quais, justamente por serem membros interessados e afetados, possuem o direito de exercer
influência sobre o governo na tomada de decisões (ARAÚJO, 2010).
As empresas tomaram à frente no processo de participação comunitária e promoveram a

501
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

solidariedade, aqui entendida como a execução de processos específicos, através do qual indivíduos
e coletividades promovem ações inclusivas e de pertencimento, unindo a coletividade em um mesmo
objetivo, como ocorreu quando as empresas tiveram a ajuda de lideranças comunitárias, que conheciam
bem o seu bairro, para a justa distribuição de alimentos e produtos higiene (DOMINGUES, 2002).
A solidariedade, demonstrada sobremaneira durante a pandemia, constitui um componente essencial
da cidadania, uma vez que se apresenta como uma nova solução às demandas oriundas da sociedade
complexa moderna. Através da solidariedade, gera-se maior espírito de cidadania na procura de soluções
que conduzam à igualdade e busca a garantia do direito à saúde na comunidade local. É essa igualdade
que garante o pertencimento integral e participativo na comunidade (DOMINGUES, 2002).
O envolvimento das empresas e de seus colaboradores, que também fazem parte da população,
definem proposições políticas para a melhoria das condições de vida da população, em vista da
redução drástica de renda, principalmente para aqueles de menor poder aquisitivo. A participação
comunitária revelou-se como estratégia para uma prestação e gestão eficiente de saúde, com
valorização da comunidade local e o fortalecimento dos laços sociais na comunidade e da ideia
do “cidadão comunitário-cívico”, dotado de um “dever-cívico”, consciente e comprometido com os
interesses de saúde pública na comunidade em que vive.
Nesse contexto, ganhou destaque a noção de comunidade cívica que, no dizer de Putnam (1996,
p. 102) “implica direitos e deveres iguais para todos”, no qual “os cidadãos interagem como iguais, e não
como patronos e clientes ou como governantes e requerentes”, mas “cidadãos virtuosos, prestativos,
respeitosos e confiantes uns nos outros, mesmo quando divergem em relação a assuntos importantes”.
Restou evidente que houve uma reorganização dos serviços de saúde, que passou a ser compartilhada
pelos indivíduos da comunidade, em que o cidadão se torna parte ativa do processo, verdadeiro gestor
das políticas públicas de saúde e não mais seu mero destinatário. Desta forma, a cidadania é construída
de forma efetiva e emancipatória, a partir da interação entre o espaço público estatal e sociedade civil,
agregando as ideias de pertencimento, solidariedade e cooperação no espaço local (HERMANY, 2007).
O compartilhamento das políticas públicas locais de saúde promoveu ações solidárias e
cooperativas através da criação de mecanismos de interlocução entre diversos atores sociais, bem
como o surgimento de parcerias. Neste sentido, as comunidades assumiram um importante papel
de destaque através da interação com atores governamentais e não governamentais (FARAH, 2000),
visto que a atuação ocorreu de acordo com as necessidades específicas da população.
A solidariedade, enquanto estratégia de um novo modelo de gestão, decorreu da necessidade
da sociedade criar formas de união, de cooperação para concretizar e fortalecer o seu capital social,
compartilhando as experiências de construção desta nova realidade, o que ocorreu através das
chamadas redes associativas, que uniram centros de decisões mais distantes em sociedades mais
complexas, gerando formas de coordenação e solidariedade que são capazes de criar uma “relação
social colaborativa” (DOMINGUES, 2002).
A solidariedade entre empresas, comunidades e a saúde pública gerou um espírito de cooperação,
que, na visão de Senett (2012, p. 09 e 15) “azeita a máquina de concretização das coisas, e a partilha
é capaz de compensar aquilo que acaso nos falte individualmente”, razão por que consiste em um
processo de ajuda mútua entre as partes. Além disso, este processo de cooperação e solidariedade
está consonância com os pressupostos elencados na Constituição da República Federativa do Brasil
(art. 198, I) (BRASIL, 1988), cujo entendimento é o de que o Sistema Único de Saúde possui maior
eficácia quando é administrado pelos entes locais, devido ao caráter de proximidade da população,
que apresenta melhores condições de avaliar e resolver as demandas envolvendo a assistência à
saúde, tanto no que se refere a sua prevenção como no tratamento.
Trata-se de aplicar o que na ciência administrativa é conhecido como inovação gerencial através da
qual novas ideias se apresentam como solução para problemas há muito tempo existentes e que possam ser
operacionalizadas na forma de produtos e processos, instrumentalizando e direcionando os esforços para
que as dificuldades do sistema implantado não sejam mais proeminentes do que as soluções oferecidas.
Quando a inovação entra em cena, há uma reconstrução das relações sociais e a estrutura
de regras e recursos que reproduzem o antigo sistema precisam ser renovados. É vista como “um
processo de transformação social”, em que envolve novos atores, novos papéis e novos valores”
(FLEURY, 2014, p. 62).

502
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A inovação administrativa reside, também, na possibilidade da população opinar sobre a política


de saúde do seu bairro, da sua vila, do seu município ou região, através de canais de comunicação
criados especificamente para essa finalidade, auxiliando, ainda, na promoção e prevenção de doenças,
o que, de certa forma, contribuirá, para diminuir os investimentos econômicos nesse setor.
A prática inovadora deve seguir uma mudança de comportamento também na forma de atender
as pessoas, pois é para elas, ou deveria ser, que o sistema de saúde foi criado. Porém, nos termos da
burocracia instalada, o paciente deixa de ser uma pessoa, alguém com sentimentos e pensamentos,
para ser enquadrado como mais um número dentro das estatísticas, ao qual deve ser aplicado uma
técnica ou medicamento e espera-se que reaja dentro do previsto.
Em síntese, o que se propõe como alternativa para resolver as deficiências de gestão da saúde no
município é uma atuação cooperada e integrada dos entes federados e sociedade civil para compartilhar
soluções na definição de políticas públicas eficazes. Um primeiro princípio a ser aplicado na definição
de uma atuação que envolva os entes federados é a solidariedade, norteando a relação entre os entes
federados no sentido de haver uma redefinição do pacto federativo então vigente. A solidariedade entre
as três esferas de governo e entre a socidade gerará um compromisso em prol de um bem comum, no
caso a saúde, promovendo o equilíbrio necessário a se ter uma eficiente gestão (WARAT, 2004).
A solidariedade vai promover a tecelagem de redes sociais que se encontrarão na gerência
de governanças solidárias com base na pluralidade e no diálogo, definindo ações priorizadas e
compartilhando responsabilidades (BUSATTO, 2008). A solidariedade, como princípio inerente a uma
nova postura em relação ao que é público, redimensionará o papel da sociedade e dos entes federados
nos mecanismos de integração e cooperação social (COSTA, 2012).
A pandemia mostrou que é possível alcançar um novo patamar de cooperação e solidariedade,
capaz de gerir o sistema público de saúde de forma mais eficiente, compartilhando decisões e resultados.

3 A JUDICIALIZAÇÃO COMO UM ENTRAVE À SAÚDE PÚBLICA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Presente no sistema público de saúde antes e durante a pandemia, o fenômeno da judicialização,


isto é a garantia de atendimento prioritário em detrimento dos cidadãos que aguardam a sua vez na
fila de espera, tem sido considerado como um entrave ao bom andamento das políticas públicas de
saúde, embora não se negue o direito constitucional das pessoas de apelaram ao Poder Judiciário para
atender suas demandas individuais.
A judicialização consiste em uma ação individual ou coletiva aprovar, através do Poder Judiciário, o
cumprimento dos direitos fundamentais, garantindo a efetivação do direito à saúde. Ela decorre do modelo
constitucional que se adotou e não um exercício deliberado de vontade política, configurando-se condições
jurídicas, políticas e institucionais mais amplas e estruturais que favorecem a transferência do poder decisó-
rio legislativo-executivo para o Judiciário (BARROSO, 2009), como resultado de uma progressiva apropriação
das inovações da Constituição Federal de 1988 por parte da sociedade e de agentes institucionais (VIANNA;
BURGOS; SALLES, 2007), sobretudo cunhada na sua centralidade e na sua força normativa.
Este é um procedimento que visa atender as promessas constitucionais de prestação dos
serviços de saúde, tendo como consequência, a efetivação das políticas públicas de saúde. Constitui,
ao mesmo tempo, uma ameaça e salvaguarda do sistema único de saúde (FLEURY; FARIA). Através
dela, prioriza-se um direito individual em detrimento dos direitos sociais, bem na contramão do que
seria realizado por políticas públicas, que pode culminar na falta de implementação dos preceitos e
garantias constitucionais (SCAFF, 2011).
Quando o Estado não consegue cumprir com seus deveres para atender a população, os cidadãos
recorrem ao Judiciário. Porém, mesmo com esta intervenção tem sido impossível atender a todos
que necessitam de políticas públicas com qualidade. Por conta disso, a judicialização do direito à
saúde constitui-se em corolário da falta de concretização deste direito fundamental e, por via, de
consequência, inobservância dos preceitos e garantias constitucionais, na medida em que interfere
nas políticas públicas de saúde.
A bem da verdade, o Poder Judiciário não teria a prerrogativa de ingerência nas atividades de
outro poder, o Executivo, mas esta possibilidade foi levantada pelo Supremo Tribunal Federal em face da

503
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

inoperância das políticas públicas de saúde aplicadas no país, que se mostraram incapazes de garantir
um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais. Assim, em nome da necessidade
de garantir direitos fundamentais, abdica-se da ideia de separação de poderes para invocar os princípios
constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações que admitem a
intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais (KRELL, 2002).
De acordo com o Supremo Tribunal Federal, estipulou-se a incumbência de fazer implementar
políticas públicas fundadas na Constituição, de forma excepcional, quando ficar evidenciado que os
órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem
em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de
direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional (BRASIL, 2004).
A intervenção do Poder Judiciário, desta forma, se justifica pela inoperância do poder Executivo
em prestar devidamente aos cidadãos seu direito à saúde, tornando-se legítima, sempre que se
impuser (BRASIL, 2004).
Porém, as decisões jurídicas não atingem somente o objeto da ação, ou seja, o cidadão que
entrou com a ação. Estas, ainda que justas e amparadas na Constituição, provocam interferência nas
políticas públicas, que seriam, de regra, responsabilidade do poder executivo, cabendo ao judiciário
atuar apenas na sua execução (APPIO, 2005).
O excesso de judicialização das decisões políticas pode culminar na falta de implementação
dos preceitos e garantias constitucionais, posto que, em muitos casos, alguns jurisdicionados são
beneficiados em detrimento da maioria, “que continua dependente das políticas universalistas
implementadas pelo Poder Executivo” (BARROSO, 2007, p. 4). Na realidade se está diante de um
verdadeiro dilema jurisdicional, pois cabe ao julgador decidir a favor do direito fundamental e, por
isso, atrelado ao direito à vida e à saúde, assegurado pela Lei Fundamental ou fazer prevalecer a
teoria da reserva do possível e, por isso, favorecer o poder estatal, devendo-se recorrer ao princípio
da proporcionalidade ou razoabilidade (ALEXY, 2007), em razão da colisão de princípios.
Nesse cenário, prevalece o entendimento de que o atendimento satisfatório das demandas
de saúde deve ser estendido a toda a população; no entanto, a judicialização da saúde acaba por
deflagrar um alerta positivo acerca das falhas na prestação desse direito fundamental essencial a uma
existência digna, ou melhor, evidencia-se que existe uma ineficiência muito grande na prestação desse
dever por parte do Estado. Não obstante, não se pode aceitar sob um viés de justiça “coletiva”, que o
atendimento de situações particulares seja descartado, especialmente sobre argumentações jurídicas
questionáveis como a reserva do possível e o seu já conhecido conflito com o mínimo existencial, cuja
discussão restou demonstrada no tópico segundo deste capítulo.
Sabe-se, de antemão, que a decisão judicial não estará resolvendo o problema da prestação
de serviço em saúde, mas simplesmente mudando a ordem cronológica para recebimento do
atendimento. Diante disso, os processos judiciais acarretam, além de enormes gastos aos cofres
públicos, “superposição de esforços envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando
grande quantidade de agentes públicos”, assim como “imprevisibilidade e desfuncionalidade da
prestação jurisdicional” (BARROSO, 2007, p. 3), o que, muitas vezes, afeta o planejamento dos gastos/
orçamento e da administração do sistema de saúde pública ou das políticas públicas.
Conclui-se ainda, que judicialização distorce a ideia de igualdade, princípio fundamental da
Constituição brasileira, ao possibilitar que cidadãos com maior poder aquisitivo e acesso ao Judiciário
tenham preferência ao atendimento no sistema público de saúde, o que, em tempos de pandemia,
pode ser a diferença entre a vida e a morte, pois a quantidade de leitos é escassa em relação à
quantidade de pacientes na fila de espera.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando o caos se tornou iminente, as soluções apareceram. Na pandemia do coronavírus, parte


da população atendeu ao apelo dos governantes e isto serviu para retardar o processo de contágio,
dando tempo para que o sistema público de saúde se reorganizasse e evitasse o caos.
Paralelo a isto, empresas e a sociedade civil organizada se uniram para doar equipamentos,

504
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

utensílios e fortalecer a capacidade de atendimento das unidades de saúde. Restou evidente que a
participação da sociedade nos assuntos públicos constitui, assim, uma nova exigência no processo de
democratização da gestão pública, visto que, hodiernamente, é indispensável à nova interface entre
a sociedade civil e a sociedade política, a fim de superar a suposta dicotomia público-privado e servir
de instrumento para a concretização das políticas públicas de saúde.
Fortalecido o sistema público de saúde, também restou evidenciado que somente este é capaz de
atender demandas de maior porte para toda a população. Em que pese a importância do setor privado de
saúde, sua lógica individualista nunca poderia dar conta de problemas dessa magnitude. Fica a lição para
os governantes de que deve-se promover e incentivar a saúde pública de qualidade, pois foi esta estrutura
que livrou o país do caos, como aconteceu em países onde o sistema de saúde é totalmente privado.
Por fim, resta comentar que, embora seja um direito do cidadão, entrar com uma ação solicitando
a preferência no atendimento em saúde pública constitui um gesto que leva à judicialização, isto é,
à interferência nas políticas públicas de saúde, em absoluta inconformidade com a igualdade como
princípio. Além disso, a judicialização gera gastos ao Estado, que poderiam ser investidos em saúde,
além de diminuir a celeridade da Justiça.

REFERÊNCIAS

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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teux, 2004. v. II.

506
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O IMPACTO DO COVID-19 (NOVO CORONAVÍRUS)


NAS RELAÇÕES DE CONSUMO: PERCEPÇÕES NO ÂMBITO DO
BALCÃO DO CONSUMIDOR DA UNIJUÍ CAMPUS TRÊS PASSOS

Alana Maísa Machado242


Eliete Vanessa Schneider243

RESUMO: O presente ensaio busca trazer uma reflexão face aos impactos causados pelo Novo
Coronavírus nas relações de consumo, as percepções obtidas no âmbito do Balcão do Consumidor da
Unijuí Campus Três Passos acerca desse impacto, bem como mencionar possíveis formas de resolução
extrajudicial de conflitos consumeristas. Hodiernamente, o Brasil e o mundo enfrentam um período
atípico, um momento imprevisível de força maior. O estudo baseado em uma pesquisa exploratória
propõe a tentativa de compreensão do atual momento, assim como busca demonstrar as possíveis
formas de resolução de conflitos consumeristas de forma mais rápida e eficaz para as partes de uma
relação de consumo. A realização do presente trabalho utilizou enquanto metodologia, a pesquisa
exploratória nos meios digitais e dados da Organização Mundial da Saúde.

Palavras-chave: Novo Coronavírus. Covid-19. Projeto de Extensão. Relação de Consumo. Resolução


extrajudicial de conflitos.

INTRODUÇÃO

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor - Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990 -


é uma legislação elaborada visando exclusivamente à proteção e efetivação dos direitos de todos
os consumidores, tendo em vista que se está vivendo um momento pandêmico a aplicação desta
norma se faz ainda mais necessária, por isso a importância do trabalho desenvolvido pelos órgãos de
proteção e defesa do consumidor, os quais serão discutidos no decorrer deste estudo.
No ano de 2020 o mundo foi surpreendido com o surgimento de um novo vírus, o COVID-19,
popularmente conhecido como coronavírus, o qual se disseminou de forma célere atingindo pessoas
de todos os países. No mês de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou como
pandemia o novo coronavírus.
O termo pandemia compreende a condição de que uma doença atingiu o ápice de contaminação
mundial, indica que a enfermidade se espalhou por diversos continentes com transmissão entre
os indivíduos. O atual diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus se pronunciou sobre a
importância de utilizar a palavra pandemia da forma correta, ao mencionar que “Pandemia não é
uma palavra para ser usada à toa ou sem cuidado. É uma palavra que, se usada incorretamente, pode
causar um medo irracional ou uma noção injustificada de que a luta terminou, o que leva a sofrimento
e mortes desnecessários” (MORALES, 2020).
É indiscutível que este momento ficará marcado na história mundial, e o sentimento é de
desespero por saber que algo que não se pode ver esteja refletindo de uma forma negativa no estado
físico, mental, psicológico e econômico da população em geral. O momento não deve ser de pânico,
e sim de união por parte de todas as pessoas, que, mesmo distantes, devem manter os laços pela
esperança de que dias melhores virão. E esses laços envolvem também as relações de consumo, vez
que estas também foram afetadas em grande medida pelo COVID 19.
O Covid-19 afetou não só a saúde das pessoas, mas, também, as relações saudáveis de consumo,
bem como a estabilidade econômica dos mercados, refletindo diretamente e de forma negativa na

242 Acadêmica do curso de graduação em Direito da UNIJUÍ; alanamaisamachado@hotmail.com.


243 Mestre em Direitos Humanos pela Unijuí, Doutoranda em Direitos Humanos pela Unijuí, Docente da Unijuí, eliete.schnei-
der@unijui.edu.br. Pesquisa realizada no âmbito do Projeto de Extensão “Conflitos Sociais e Direitos humanos”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

eficácia dos direitos do consumidor, ao exercício laboral dos comerciantes e fornecedores. Nesse
sentido, o presente estudo visa demonstrar alguns dos impactos causados pelo coronavírus nas
relações consumeristas e as possíveis formas de resolução extrajudicial.

1 CONFLITOS EM RELAÇÕES DE CONSUMO DECORRENTES DO COVID 19

O novo coronavírus foi descoberto no dia 31 do mês de dezembro de 2019 após o surgimento de
casos registrados de pessoas infectadas na China. Esse vírus é agressivo, causa infecção respiratória
grave e outras complicações. O período de incubação varia de 2 a 14 dias, e a transmissão ocorre
enquanto persistirem os sintomas na pessoa infectada. Os sintomas são semelhantes a um resfriado
causando febre, tosse e dificuldades para respirar, lembrando que a forma com que o organismo
reage face ao vírus muda de uma pessoa para outra (Ministério da Saúde BR. 2020).
O surgimento do vírus foi uma surpresa para todos. As pessoas não estavam preparadas para
ver sua vida ser revolucionada de um dia para o outro. O COVID-19 exigiu que autoridades tomassem
decisões drásticas a fim de evitar a disseminação do vírus, pois o Estado não possuía e ainda não
possui preparação ambulatorial com equipamentos suficientes para tratamento da doença de grande
parte da população de forma simultânea.
Neste caso, o governador do Estado do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, por meio do Decreto
do Governo Estadual do RS nº 55.154, de 1º de abril de 2020 decretou o fechamento do comércio em
todos os municípios do Estado do Rio Grande do Sul no período compreendido entre o dia 1º de abril
de 2020 até o dia 15 de abril de 2020, com o objetivo de evitar a circulação das pessoas pelas cidades
e consequentemente aglomeração. Ocorre que esse decreto causou revolta em muitos empresários e
comerciantes, pois a maioria não possuía valores em caixa disponível para eventuais acontecimentos
como o ocorrido, e sem condições financeiras não poderiam manter funcionários e vínculos com
fornecedores (RIO GRANDE DO SUL, 2020).
Este momento vivenciado mundialmente está refletindo diretamente nas relações de consumo,
pois os consumidores, naturalmente, já são considerados vulneráveis, e em razão da atual situação
esta vulnerabilidade acaba se agravando ainda mais, em consequência disso o consumidor desconhece
a forma correta de agir em determinadas circunstâncias.
O período exige que as pessoas olhem para si mesmas e reflitam sobre os seus hábitos de
consumo. É indispensável que as pessoas tenham a consciência de que se está vivenciando um
momento delicado e sempre que possível optem pela solução extrajudicial de conflitos. Observado
o cenário, mostra-se necessário apresentar algumas relações de consumo impactadas pelo Covid-19.

1.1 Aumento na procura de produtos e serviços face à pandemia do Coronavírus

O Balcão do Consumidor frente à atual Pandemia e diversas reclamações da comunidade


trespassense, realizou no mês de abril de 2020 uma pesquisa face a todas as farmácias ativas na
cidade de Três Passos, solicitando esclarecimentos acerca da comercialização dos produtos utilizados
em grande quantidade para prevenção do COVID-19, em específico máscaras e álcool gel. O Código
de Proteção e Defesa do Consumidor dispõe em seu artigo 39, inciso X que é considerada prática
abusiva o aumento sem justa causa de valores de produtos e serviços.
Ademais, em tempos difíceis como o que se está vivenciando é de extrema importância a prática do
princípio da boa-fé entre as pessoas, tanto consumidor quanto fornecedor. O tema é disposto no artigo
4º, inciso III do CDC e tem como propósito garantir a lealdade e cooperação nas relações consumeristas.
O aumento injustificado no preço de produtos e serviços é caracterizado ato ilícito, ou seja, um
abuso de direito em virtude de o fornecedor estar se aproveitando da situação para adquirir vantagem
excessiva em face do consumidor. Essa atitude é considerada uma prática abusiva com respaldo legal
no artigo 39, incisos V e X do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, e o descumprimento poderá
caracterizar a penalização do empresário/fornecedor com a cassação do alvará de funcionamento do
seu estabelecimento e multas. Diante deste lucro gerado de maneira desmedida, o causador do dano

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

sempre terá a obrigação de repará-lo. O empresário pode justificar-se pelo aumento de um produto
comprovando acréscimo do valor de repasse de fornecedor/revendedor.
Em consequência da pandemia do Coronavírus muitos setores da indústria, comércio e transporte
de produtos tiveram de se reinventar, alguns sofreram quedas nas vendas, outros estão lucrando
ainda mais neste período pandêmico. Obviamente, um dos ramos que mais engrenou foi o digital,
o uso da internet aumentou significativamente. A companhia norte-americana intitulada SEMrush,
especializada em marketing digital, realizou uma pesquisa com o objetivo de analisar o impacto da
pandemia no comportamento online das populações buscando compreender quais atividades foram
mais e menos afetadas (MARI; ARBEX, 2020).
Considerando que uma das formas de prevenir o contágio pelo coronavírus é evitar aglomerações,
muitos empresários tiveram de reduzir o quadro de funcionários trabalhando de forma presencial,
optando (quando possível) pelo trabalho remoto. Neste sentido, as plataformas mais utilizadas foram
o Skype que segundo a Microsoft registrou um aumento de 70% de utilização em março, e o Meet,
do Google, o qual aumentou 25 vezes comparando os dois primeiros meses do ano totalizando um
acréscimo de 60% nas últimas semanas (MARI; ARBEX, 2020).
Além disso, dois dos setores mais afetados pelas consequências trazidas pelo Coronavírus são
o das academias e produção de eventos. O primeiro ainda encontrou a oportunidade de realizar
orientação aos clientes via internet, criando passo a passo de exercícios que podem ser realizados
em casa. Por outro lado, os empresários que trabalham tão somente com a realização de eventos
encontram-se totalmente prejudicados neste período pandêmico, impedidos de realizar suas atividades
de modo que as mesmas afrontam as regras de distanciamento e contingência do Coronavírus.
A Netflix, que é uma empresa provedora de filmes e séries divulgou dados satisfatórios no mês de
abril de 2020, fazendo menção à surpresa de ter ganho 15,77 milhões de novas assinaturas, fato esse
que afrontou as expectativas dos analistas. Em relação a esse setor, considera-se que houve um aumento
significativo na procura por parte dos consumidores, pois considerando que escolas e faculdades estão
com as portas fechadas, crianças, adolescentes e adultos encontram-se “entediados” e essa plataforma
acaba se tornando uma opção para lazer de forma segura e em casa (MARI; ARBEX, 2020).
Ainda, em razão da pandemia do Covid-19, alguns consumidores decidiram cancelar desde
passagens aéreas até mesmo pacotes turísticos, adquiridos anteriormente, em razão da existência
de barreiras sanitárias e outros por medo de contágio da doença, mesmo não existindo proibição de
transporte. O cancelamento de passagens ou viagens é um direito do consumidor, porém, deve ser
solicitado em última hipótese, priorizando a relação contratual e optando pelo reagendamento do
serviço sem custo adicional.
O consumidor que não puder ou não quiser manter o contrato não poderá ser punido pela
perda integral de valores ou aplicação de multas, visto que o cancelamento se deu em razão de
fato extraordinário. Em relação ao tema, se faz necessário uma análise do que dispõe o artigo 3º
da Medida Provisória nº 925, de 18 de março de 2020 que regulamenta o reembolso do valor pago
pelo consumidor em caso de cancelamento do contrato, qual diz que: “O prazo para o reembolso do
valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses, observadas as regras do serviço
contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente” (BRASIL, 2020).
Com relação à cobertura de exames e tratamentos pelos planos de saúde, a Resolução 453 da Agência
Nacional de Saúde – ANS, inclui como responsabilidade dos planos de saúde garantir a cobertura dos testes
diagnósticos para a infecção pelo coronavírus para todos os pacientes. É necessário que o paciente obtenha
um encaminhamento médico e se enquadre na definição de caso suspeito ou provável de doença pelo
COVID-19 definido pelo Ministério da Saúde (Resolução Normativa nº 453 de 12 de março de 2020).
A internação será custeada pelos planos de saúde quando o contratante possuir plano com
segmentação hospitalar, não é garantida para contratação limitada a cobertura ambulatorial. A recusa
da cobertura para os exames caracteriza prática abusiva, conforme dispõe o artigo 39, incisos IV e V
do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Em relação aos cuidados de prevenção ao contágio pelo Coronavírus a orientação do Ministério
da Saúde é a utilização de máscaras a toda população pois a mesma protege as vias respiratórias do
vírus que pode ser transmitido de uma pessoa para a outra através de espirros, por exemplo. O Jornal
Correio Braziliense em uma das suas publicações no site virtual no mês de abril de 2020 menciona que

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

o Brasil triplicou a capacidade de produção de máscaras de proteção individual durante a pandemia do


Novo Coronavírus, chegando a expectativa de produção de 2 milhões de máscaras (BARBOSA, 2020).
O Jornal Estadão do Estado de São Paulo publicou conteúdo no site virtual UOL na data de 18 de
março de 2020 a fim de compartilhar a indignação de hospitais face ao aumento do valor da caixa
de máscaras que antes da pandemia custavam R$ 4,50 (quatro reais e cinquenta centavos) e durante
a pandemia passou a custar R$ 140,00 (cento e quarenta reais). Os hospitais da região realizaram
denúncia ao Ministério da Saúde a fim de conter o aumento abusivo dos produtos usados em grande
quantidade na prevenção ao contágio pelo coronavírus (OKUMURA; TOMAZELA, 2020).
Ademais, o uso de máscaras de proteção individual passou a ser obrigatório a partir da publicação
da Lei nº 14.019, de 2 de julho de 2020 pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. A
legislação foi criada a fim de impor a todos os cidadãos brasileiros a responsabilidade de evitar a
disseminação do vírus, pensando no bem-estar coletivo do país (BRASIL, 2020).
Desta forma, notadamente o coronavírus causou impacto em todas as áreas de atividades do
país, inclusive no que tange às relações de consumo. No início da pandemia, observou-se um certo
egoísmo por parte das pessoas, pois compareceram aos supermercados com o objetivo de adquirir
muito mais do que o necessário para sobreviver, com a finalidade de estocar produtos na residência
sem pensar que outras pessoas também precisam adquirir suprimentos.
Neste caso, como já visto anteriormente, alguns produtos foram mais adquiridos pelos
consumidores em tempos de pandemia, como por exemplo, máscaras, álcool em gel, luvas, vitaminas
e medicamentos para fortalecimento da imunidade. Além disso, a Sociedade Brasileira de Varejo e
Consumo (SBVC) constatou a partir de um estudo um aumento significativo no consumo através
do comércio eletrônico, evidentemente, esse fato demonstra a preocupação dos consumidores em
prevenir o contágio pelo coronavírus (UOL, 2020).

2 A FRAGILIDADE DAS RELAÇÕES DE CONSUMO DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19

Inegavelmente, o atual momento foi totalmente impensado, inesperado por todos, mas inevitável.
Muitas rotinas foram alteradas, pessoas perderam entes queridos, amigos, conhecidos. O Covid-19
devastou vidas, mas também o mercado de consumo e consequentemente a economia brasileira e
mundial. Os impactos causados pelo coronavírus não são poucos, pelo contrário, são consideráveis e
amplamente visíveis, atingiram e ainda atingem todas áreas, desde escolas a grande empresas.
É de conhecimento geral que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor - Lei nº 8.078 de 11
de setembro de 1990 - dispõe em seu artigo 4º, inciso I sobre a vulnerabilidade do consumidor, seja
ela técnica, fática, e/ou jurídica. Em relação ao tema se faz extremamente relevante fazer menção aos
conceitos de vulnerabilidade criados pelo excelente autor da área de Direito do Consumidor Bruno
Miragem (BRASIL, 2020).
Segundo Bruno Miragem (2016) a vulnerabilidade técnica é caracterizada quando o consumidor não
possui conhecimento técnico suficiente sobre o produto ou serviço que está adquirindo e por isso necessita
de informações claras e objetivas, bem como amparo legal. Neste sentido, presume-se que o fornecedor que
disponibiliza seu produto no mercado tem conhecimento específico para repará-lo em caso de vício.
Nesta perspectiva, o mesmo autor conceitua vulnerabilidade fática como aquela que reconhece a
fragilidade econômica do consumidor face ao fornecedor, ou seja, o primeiro não possui condições financeiras
de se impor ao segundo dificultando o débil equilíbrio da relação consumerista (MIRAGEM, 2016).
Ademais, ainda sobre vulnerabilidade, Bruno Miragem (2016, p.129) expõe que “a vulnerabilidade
jurídica, a nosso ver, se dá na hipótese da falta de conhecimentos, pelo consumidor, dos direitos e
deveres inerentes à relação de consumo que estabelece, assim como a ausência da compreensão sobre
as consequências jurídicas dos contratos que celebra.” Este conceito é de grande importância, até mesmo
para reflexão, pois basta a realização de uma pesquisa para verificar que muitos consumidores sequer
sabem que existem direitos do consumidor, imagina ter conhecimento jurídico para reivindicá-los.
Mediante o exposto, sabe-se que o consumidor é considerado vulnerável naturalmente pelo
simples fato de ser consumidor, ocorre que durante a pandemia do coronavírus as relações de
consumo, os comerciantes, fornecedores e fabricantes também demonstram estar passando por um

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

momento de vulnerabilidade e por esse motivo também necessitam de um amparo, à vista disso é
que se pede que as pessoas procurem se colocar no lugar do próximo e buscar resolver os conflitos
prezando sobretudo o diálogo.
Durante a pandemia o consumo passou a ser repensado pelas pessoas, somente o necessário
está sendo adquirido, pois o momento é de incerteza e não é possível prever quando isso irá passar.
O período é de instabilidade econômica e psicológica, muitos empresários tiveram de demitir
funcionários, reduzir horário de jornada, encerrar suas atividades. No momento em que uma pessoa
é demitida, ela perde a sua renda e automaticamente deixa de ser uma consumidora ativa, vez que
não terá condições de adquirir produtos e serviços, em consequência disso o giro da economia reduz.
Segundo uma pesquisa divulgada pelo IBGE (2020) a taxa de desemprego no Brasil elevou para
13,3 % no mês de junho de 2020 alcançando o número de 12,8 milhões de pessoas e um fechamento
de 8,9 milhões de postos de trabalho. A estimativa é que grande parte dos desempregados não
possuem renda e, por conseguinte não movimentam o mercado de consumo.
Tem-se a figura do consumidor, do objeto e do fornecedor como elementos necessários para a
caracterização de uma relação de consumo. Então, neste caso, a falta de um desses elementos produz
impacto em todo o mercado de consumo, veja bem: Consumidor > Comerciante > Fornecedor >
Fabricante, se o consumidor não adquire o produto, o comerciante não dispõe de condições financeiras
para remunerar seus empregados e nem de comprar o produto do fornecedor, o fornecedor da mesma
forma que o comerciante não será capaz de manter seus funcionários e nem adquirir o produto do
fabricante, consequentemente o fabricante será obrigado a suspender sua produção e não adquirir
matéria prima, ou seja, o consumo será prejudicado e pessoas serão demitidas.
Deste modo, semelhantemente ao consumidor vulnerável, neste momento atípico de pandemia
pelo coronavírus o fornecedor também pode ser caracterizado como figura vulnerável na relação de
consumo, por essa razão é que se orienta aos consumidores que tiverem problemas derivados de
uma relação de consumo que procurem primeiramente os órgãos de proteção e defesa do consumidor
a fim de tentar a resolução extrajudicial de conflitos consumeristas.

3 POSSÍVEIS FORMAS DE RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS CONSUMERISTAS E A


ATUAÇÃO DO PROCON EM TEMPOS DE PANDEMIA

É inegável que o Coronavírus causou muitas lacunas no direito dos consumidores, mas, o
momento é de dificuldades para todos, por isso a importância de pôr em prática o diálogo social a
fim de buscar a resolução de conflitos adequada para ambas as partes de uma relação consumerista.
Sabe-se que a parte vulnerável de uma relação de consumo é o consumidor, porém, neste momento
o fornecedor também está passando por adversidades, por isso preza-se pela diálogo e união. Dentre
as formas de solucionar o conflito o consumidor pode utilizar-se da conciliação e da mediação, e
sempre que necessário buscar auxílio no Balcão do Consumidor e no Procon.
O Balcão do Consumidor de Três Passos/RS é um projeto de extensão da Universidade Regional do
Noroeste do Rio Grande do Sul originado de um convênio realizado entre o Município de Três Passos/RS,
Unijuí e o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul criado com o objetivo de resolver conflitos
de relação de consumo de forma extrajudicial, proporcionando prática aos estudantes do Curso de
Direito que podem realizar estágio não obrigatório supervisionado e desobstrução do judiciário.
A lei é brilhante, mas na prática nem sempre é efetiva, por isso a importância do trabalho
realizado no Balcão do Consumidor, visto que é necessário ter alguém para reafirmar a existência do
direito e fazer o possível para efetivá-lo. Um consumidor vulnerável possivelmente desistiria por falta
de fundamentação ou nem mesmo tentaria a resolução com receio de incômodo futuro. 
O Procon/RS é um Programa de Defesa dos Direitos do Consumidor que trabalha exclusivamente
para fins de esclarecimento, conscientização, educação e informação dos direitos e deveres dos
cidadãos enquanto consumidores, orientação e recebimento de reclamações, fiscalização face ao
trabalho dos fornecedores com o objetivo de garantir a eficácia dos direitos do consumidor.
É de fundamental importância mencionar que existem outros meios de solucionar conflitos, entre
eles, os efetivos métodos de autocomposição praticados através da conciliação e mediação. A primeira

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

é conduzida por um terceiro que possui a liberdade de intervir e sugerir propostas direcionando a
realização de um acordo, ao passo que a segunda representa a oportunidade de as partes envolvidas
no conflito dialogarem expressando seus sentimentos e interesses, sem o intermédio do mediador, o
qual está presente para transmitir tranquilidade e segurança às partes, bem como tentar desvendar o
ponto conflitante (MORAIS E SPENGLER, 2012, p. 172-173).
No tocante à mediação, mostra-se relevante colacionar entendimento dos ilustríssimos escritores
Fabiana Marion Spengler e Doglas Cesar Lucas em sua obra Justiça Restaurativa e Mediação: “A mediação
visa restabelecer o diálogo entre as partes para poder alcançar um objetivo concreto: a realização de um
projeto de reorganização das relações, com resultado o mais satisfatório possível para todos” (2010, p. 163).
Em síntese, os métodos alternativos de resolução de conflitos de forma extrajudicial são
extremamente relevantes, especificamente no momento pandêmico, pois além de representar uma
forma mais rápida de resolver problemáticas, ainda proporciona a participação e colaboração ativa
das partes que juntas podem desenvolver a melhor solução para ambas. Neste sentido, Marco Aurélio
Gastaldi Buzzi, Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) dispõe:

Acerca da maior eficiência dos métodos informais (alternativos) de pacificação social, que superam
em muito as expectativas do usuário do sistema tradicional, ante o qual se assiste o inevitável
confronto entre o princípio do efetivo acesso à justiça e aquele da duração razoável do processo;
distinguem-se, neste seara, os meios mais adequados de resolução das controvérsias, os quais
observam a informalidade sobre os procedimentos estabelecidos pelos próprios interessados,
substituindo a rigidez do sistema jurisdicional tradicional para construir, em participação conjunta,
tanto o método quanto a solução final da disputa (BUZZI, 2014, p. 461).

Neste sentido, o Ministro do STJ expõe de forma esclarecedora a praticidade proporcionada


pelos meios alternativos de resolução de conflitos, considerando a participação conjunta das partes
na busca de uma solução satisfatória para ambas e, também, a desconstrução da rigidez imposta no
sistema jurisdicional tradicional.
Do mesmo modo que existem formas extrajudiciais de resolver conflitos, há também a esfera
judicial e sobre esse último quesito se faz necessário mencionar a existência da Lei nº 14.010 de 12
de junho de 2020 sancionada pelo Presidente da República e publicada pelo Diário Oficial da União. A
legislação foi elaborada com o objetivo de instituir algumas normas a serem observadas no que consiste
as relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (BRASIL, 2020).
Em observância ao tema relação de consumo a Lei nº 14.010 dispõe em seu artigo 8º que
estará suspensa até 30 de outubro de 2020 a aplicação do artigo 49 do Código de Proteção e Defesa
do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo
imediato e de medicamentos (BRASIL, 2020).
No sentido de esclarecer o que dispõe a nova lei sobre relação de consumo, vale mencionar que
o artigo 49 da Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990 - CDC garante ao consumidor a possibilidade de
desistir do contrato dentro de 7 dias a contar do recebimento do produto, desde que a compra tenha sido
realizada o fora do estabelecimento comercial. Neste caso, a regra não será aplicada em casos de compra
com entrega domiciliar de produtos perecíveis (consumo imediato) e medicamentos (BRASIL, 2020).
Levando em consideração os aspectos, o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor do
Estado do Rio Grande do Sul - PROCON/RS - disponibiliza atendimento eletrônico no site virtual,
esse procedimento é exclusivamente para aqueles consumidores residentes em municípios que não
possuem Procon nem Balcão do Consumidor instalado.
Para atendimento no site é necessário que o consumidor esteja munido de documentos, sendo
eles RG e CPF, comprovantes da relação de consumo, como por exemplo, cópia de contrato, nota
fiscal, extratos bancários, entre outros. Depois de registrada a reclamação no site o atendimento terá
um retorno no prazo de 10 dias corridos.
Uma novidade do Procon/RS é o projeto ESDC entrevista, desenvolvido pela Escola Superior de
Defesa do Consumidor do Estado. O objetivo é entrevistar especialistas na área para entender os
impactos do covid-19 na vida dos consumidores, tendo em vista as práticas de mercado. O primeiro
entrevistado foi o doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS, Guilherme Mucelin, in verbis:

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ESDC: Quais os primeiros impactos da pandemia especificamente no que diz respeito às relações
de consumo?
Guilherme Mucelin: Os primeiros impactos imediatamente percebidos, desde quando declarada
a pandemia (porém antes das recomendações de isolamento social), foram indiscutivelmente
(i) o aumento abusivo de preços de produtos de prevenção ao Coronavírus, como álcool gel
70%, máscaras e luvas, e (ii) as preocupações dos consumidores com relação a viagens, pacotes
turísticos, eventos e demais compromissos já assumidos antecipadamente. Após as determinações
de isolamento, contudo, o foco se deu na impossibilidade de os consumidores adimplirem seus
contratos relativos a suas necessidades básicas e de sua família, como água, luz, internet, gás
encanado e outros serviços essenciais (PROCON/RS, 2020).

O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE - divulgou um mapeamento


demonstrando que os setores mais impactados pela pandemia do Covid-19 no Brasil foram os
relacionados à Construção Civil, alimentação fora do lar, moda e varejo tradicional (Agência Sebrae
de Notícias, 2020).
Em pesquisa exploratória observa-se a análise da crise econômica originada pelo Coronavírus
publicada no jornal Estadão do Estado de São Paulo, qual diz que os setores mais afetados pelas regras
do isolamento social são os associados a aviação, turismo, bares e restaurantes, shoppings e vestuário.
Por outro lado, os setores que ganharam evidência e aumentaram o faturamento em tempos de pandemia
foram os supermercados, as farmácias e os serviços de telecomunicações (Estadão, 2020).
Destarte, os órgãos de proteção e defesa do consumidor possuem significativa importância para
a sociedade em geral, ainda mais em tempos atípicos e de maior vulnerabilidade do consumidor, a
título do que estamos vivenciando. Neste caso, além de o atendimento ao consumidor ser menos
rígido e mais acessível, a atuação do Balcão do Consumidor/Procon oportuniza que os estudantes
do curso de Direito da Unijuí possam realizar estágio supervisionado não obrigatório e, ainda, é
capaz de descomprimir as demandas no judiciário, facilitando a resolução dos conflitos de forma
administrativa, rápida e eficaz para ambas as partes da relação de consumo.

4 PERCEPÇÕES NO ÂMBITO DO BALCÃO DO CONSUMIDOR DA UNIJUÍ CAMPUS TRÊS PASSOS/RS

Após o surgimento do novo coronavírus o Balcão do Consumidor de Três Passos/RS atendendo aos
decretos estaduais e municipais passou a adotar medidas de prevenção ao contágio pelo coronavírus,
realizou a colocação de faixa de distanciamento entre a mesa da atendente e a cadeira do consumidor,
disponibiliza álcool em gel para o público e orienta aos consumidores que agendem previamente o
seu atendimento a fim de evitar aglomeração no espaço físico do órgão.
Dentre as significativas mudanças ocasionadas pelo coronavírus, é de extrema importância
mencionar uma modificação positiva acolhida pelo Balcão do Consumidor, o atendimento online,
atendendo as necessidades de contato com os consumidores dentre a impossibilidade de atendimento
presencial, o mencionado órgão inovou a forma de registro de reclamações, recebendo dúvidas e
problemáticas através da telefonia móvel (55) 996074305, fixa (55) 3522-8126, whatsapp (55) 3522-
8126 e e-mail: tpbalcaodoconsumidor@unijui.edu.br.
Nos últimos meses, a demanda mais atendida no Balcão do Consumidor é relacionada ao aumento
da fatura de energia elétrica (serviços essenciais, conforme demonstrado no gráfico acima). Em
tempos de pandemia, essa insatisfação por parte dos consumidores originou-se a partir da Resolução
Normativa nº 878 de 2020, publicada no dia 24 de março pela ANEEL, a qual autorizou a opção, por
90 dias, de as distribuidoras de energia elétrica de todo o Brasil efetuarem o faturamento de consumo
pela média aritmética dos últimos 12 meses de consumo do cliente, visando evitar a visita presencial
de um funcionário (BRASIL, 2020).
Neste caso, a maioria dos consumidores que compareceram ao órgão mostrou descontentamento
e, por isso, exigiram esclarecimentos por parte da reclamada. O procedimento realizado no Balcão
do Consumidor foi o padrão, de princípio, a técnica coleta os dados do titular do cadastro junto a
empresa de energia elétrica e, por conseguinte, tenta contato com a mesma.
O atendimento quanto ao aumento do valor da fatura de energia elétrica foi realizado de forma
individual fez-se um pequeno resumo do relato do consumidor, o qual foi encaminhado juntamente

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

com o anexo de contas de meses anteriores para ao endereço de e-mail procon-rge@cpfl.com.br,


plataforma de atendimento próprio ao PROCON. A empresa intitulada Rio Grande Energia (RGE)
surpreendeu, especificamente, neste período de pandemia, vez que todas as respostas direcionadas
a este órgão foram rápidas e fundamentadas.
Diante do momento pandêmico vivenciado pelo país alguns bancos e correspondentes
bancários aproveitaram a fragilidade psicológica e financeira dos consumidores para realizar
condutas consideradas práticas abusivas pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, como por
exemplo, o depósito em conta do consumidor sem a sua autorização, se o valor não for devolvido
gera automaticamente um consignado sem nem mesmo necessitar da assinatura do titular da conta,
o valor é simplesmente liberado em conta corrente.
O Balcão do Consumidor como garantidor de direitos dos consumidores orienta a todo consumidor
a necessidade de realizar conferência em sua conta bancária diariamente e/ou semanalmente. Ademais,
esse órgão aconselha ao consumidor que no momento em que observar o surgimento de um valor
desconhecido em sua conta bancária se dirija imediatamente ao órgão para registrar reclamação,
pois serão realizadas medidas para evitar novas fraudes. Primeiramente é realizado contato com a
empresa reclamada, posteriormente solicita-se a emissão de um boleto para devolução do dinheiro ao
remetente, o fato é denunciado como possível fraude, vez que o consumidor não solicitou nenhum
tipo de consignado, pede-se o bloqueio de possíveis depósitos em conta desse consumidor sem a
confirmação de seus dados pessoais.
Em vista do cenário atual, o trabalho realizado no Balcão do Consumidor e PROCON/RS se
torna ainda mais útil e eficaz, vez que muitas relações de consumo foram frustradas face ao impacto
causado pelo coronavírus no mercado de consumo. O objetivo principal dos órgãos de proteção e
defesa do direito do consumidor é o de resolver demandas consumeristas de forma administrativa
visando a satisfação do consumidor e fornecedor, assim como a desobstrução do sistema judiciário.
Com base nos atendimentos realizados no Balcão do Consumidor de Três Passos/RS a atuação deste
órgão representa relevante importância no município, pode-se vislumbrar a diferença instigada após
o atendimento na vida de cada consumidor que nos procura.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o exposto, conclui-se que com o surgimento deste vírus todos os setores foram amplamente
afetados, de uma forma ou de outra, tanto que algumas empresas foram obrigadas a encerrar suas
atividades em razão da queda brusca de faturamento, em consequência disso o desemprego aumentou
em todas as regiões do Brasil e no mundo.
Não obstante, o mais incrível é que o ser humano está em constante aprimoramento, e diante
dos desafios que surgiram, soube se reinventar objetivando não passar necessidades. Neste sentido,
observa-se vários exemplos práticos de empresas do ramo de eventos que em face da pandemia
tiveram de cancelar a prestação de serviços, restando o presente prejudicado em razão da falta de
rendimentos, adaptaram-se às necessidades do mercado produzindo outros produtos que não o da
atividade principal, mas que se mostram relativamente úteis para o consumo no momento.
A atual situação é de extrema dificuldade para todos, porém, com a cooperação mútua das
pessoas essa fase vai passar, é necessário manter a calma e procurar resolver os conflitos ocasionados
pelo Covid-19 de forma pacífica utilizando-se da conciliação, pois os impactos atingiram tanto
consumidores quanto fornecedores.
Em face da existência de órgãos de proteção e defesa do consumidor a resolução de conflitos pode
ser realizada de forma extrajudicial, mais rápida e eficaz para ambas as partes da relação de consumo.
Esses órgãos representam uma função fundamental no que diz respeito aos direitos consumeristas da
população em geral, ainda são eficientes ao descomprimir as demandas no judiciário.
Outrossim, a conciliação e mediação são institutos de suma importância para a sociedade
brasileira, vez que representam meios alternativos para resolução de conflitos de uma forma mais
justa, eficaz e menos onerosa em razão de as próprias partes serem as responsáveis pela construção
de uma nova cultura de pacificação social.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFERÊNCIAS

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O (NÃO) LUGAR DA IDENTIDADE CIGANA


E A NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO

Heleonora Flores Fontana244


Doglas Cesar Lucas245

RESUMO: As histórias e crenças a respeito das origens do povo cigano são as mais variadas, além de
serem marcadas por fantasias. Portanto, muito do que se compreende sobre essa etnia está envolvido
pelo senso comum, desde a tipicidade da aparência quanto ao comportamento marginal. O objetivo é
desmistificar os povos Romani, compreender sua forma de organização quanto à moradia e trabalho,
e como exercem seus direitos dentro dos costumes multiculturais que carregam. Pretende-se, ainda,
desmontar o preconceito existente e alcançar o entendimento de que são brasileiros pertencentes a
etnia cigana, assim como as tantas outras que integram o país.

Palavras-chave: ​Identidade cigana. Direitos. Redução da desigualdade.

INTRODUÇÃO

A partir da constituição de 1988 e os demais instrumentos normativos dispostos, minorias sociais foram
também reconhecidas como sujeitos de direitos e responsabilidade de proteção do Estado. Entretanto, a falta
de conhecimento dos próprios direitos faz com que essas pessoas abram margem para inferiorização acarre-
tando na não efetivação dos mesmos. A partir disso, a invisibilidade de minorias étnicas, como a dos ciganos,
foi se desconstruindo, porém, outros problemas surgiram, por exemplo, o registro civil dessas pessoas.
Dissertar sobre um povo que exclui a escrita como apoio à lembrança de sua cultura torna-se um
desafio. O fato é que são muitos, os referidos ciganos, e mesmo não se tendo certeza da quantidade
sabe-se que estão espalhados por todos continentes. Dentro dos grupos Romns, Sinti, Calon e seus
derivados possui uma alteridade cultural, social e econômica imensa, contudo carregam os reflexos
de séculos de perseguição e extermínio.
Com uma maior representação da ciganeidade e a integração cultural advinda da globalização
esperava-se também o rompimento das barreiras impostas pela xenofobia. Todavia, as fronteiras
culturais continuam a se erguer pelo comodismo em apegar-se as generalizações sem o mínimo de
exame crítico da história ou sobre a realidade enfrentada por esses povos. Além disso, a imagem
estereotipada e distorcida repassada pelas mídias não corrobora para essa aproximação.
A bibliografia sobre os ciganos é bem reduzida no Brasil o que os torna a minoria étnica menos conheci-
da e talvez pelo mesmo motivo seja tão mal recepcionada. Nesse sentido, cabe a reflexão sobre a identidade
cigana a partir do que os próprios revelam sobre si, desconsiderando o olhar e aplicações externas concebi-
das sobre o assunto, para desmistificar e compreender o seu pertencimento ao status de cidadão brasileiro.
O presente trabalho foi dividido em três partes. Num primeiro momento dedica-se a falar, brevemente,
sobre o “ser” cigano no mundo. Na segunda parte o trabalho destaca a narrativa e representação dos
ciganos na mídia brasileira e na terceira parte ocupa-se do cigano como sujeito de direito.

1 OS “SER” CIGANO NO MUNDO

O termo “cigano” genericamente utilizado carrega uma imagem negativa para seus referidos devido
à má significação construída por não-ciganos. Ainda que “entre eles a denominação fosse calés (singular

244 Bolsista de iniciação científica Pibic/Unijui, acadêmica do 4° semestre do curso de Direito da Unijuí. E-mail: heleonora.
fontana@sou.unijui.edu.br
245 Professor orientador. Doutor Unisinos e Pós-doutor pela Università degli Studi Roma Tre. Professor da graduação, mes-
trado e doutorado em direito da Unijui. E-mail: doglasl@unijui.edu.br

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

caló), e ainda rons ou rones” (RAMOS, 1947, p. 269). O exônimo para tal grupo se denomina “Romani” ou
“Roma” que carrega a tradução, no singular, a palavra “homem”. Essa foi aceita e também apropriada para
indicar a língua usada por algumas dessas famílias que é repassada oralmente como parte da tradição.
A identificação do início da configuração dos povos ciganos só foi possível, muito recentemente,
através de testes genéticos e comparações linguísticas que apontam para o norte da Índia (ZIEGLER, 2012).
Tal pesquisa explana ainda sobre a teoria de que um grande grupo hindu se deslocou da Índia para a Europa
e se espalhou por todo continente, podendo-se afirmar que existem vários grupos ciganos descendentes
(COMA et ali, 2012). Dentre os grupos descendentes, academicamente, podem ser destacados os Calon, os
Sinti e os Rom. “São grupos específicos e distintos do ponto de vista cultural, grupos que se pensam e são
pensados como diferentes” (LOPES, 2013, p.22), os três se distinguem de forma social, econômica e cultural,
discrepâncias essas advindas do contato com povos colonizadores nos quais vivem ou permearam. Dentro
disso, ser “cigano” para o professor ciganólogo Frans Moonen é definido como:

Cada indivíduo que se considera membro de um grupo étnico que se auto- identifica como Rom,
Sinti ou Calon, ou um de seus inúmeros sub-grupos, e é por ele reconhecido como membro. O
tamanho deste grupo não importa; pode ser até um grupo pequeno composto de uma única família
extensa; pode também ser um grupo composto por milhares de ciganos. Nem importa se este grupo
mantém reais ou supostas tradições ciganas, se ainda fala fluentemente uma língua cigana, ou se
seus membros têm características físicas supostamente ‘ciganas’ (MOONEN, 2013, p. 7).

O grupo mais estudado por antropólogos e linguistas é o grupo dos Rom pelo fato de terem
mantido a autenticidade e conservarem a língua tradicional romani. As famílias Roma viveram por
muito tempo como escravas nos Balcãs, atual Romênia, e somente no século XIX foram libertas,
período esse em que migraram para as américas e para alguns países europeus. Também chamados
de Manouch, os povos Sinti desenvolveram a língua Sintó e se encontram na Alemanha, Itália e
França. Já a família Calon, a primeira a chegar no Brasil, se comunica pela língua Caló e é conhecida
como os “ciganos ibéricos” pois vivem em grande maioria na Espanha e em Portugal.
Dentre as famílias destacadas Acton (1974) distingue ainda quatro grupos de ciganos: os
conservadores, em processo de desintegração cultural, em fase de adaptação cultural e os em processo
de assimilação. Essas divisões são genéricas para todos os países uma vez que existem ciganos pobres
e ricos como em qualquer outra etnia no mundo. Os ciganos conservadores possuem alto nível de
instrução, são uma pequena elite que se mesclaram em casamento com não ciganos. Esses têm diplomas
e seguem carreiras universitárias ou outros empregos assalariados, é dentro desse grupo que estão os
ativistas que buscam o reconhecimento da identidade cigana dentro da sociedade.
Os ciganos que se encontram em desintegração cultural apresentam um número bem mais
elevado que o grupo anterior, são ciganos que trabalham em profissões tradicionais como comerciantes,
vendedor em antiquários ou até mesmo artistas, mas todos de certa forma economicamente bem-
sucedidos. Um fato interessante sobre esse grupo é que casam com pessoas dentro de sua categoria
social para manter a admiração dos outros ciganos.
As famílias que se encontram em adaptação cultural são a maior formação em relação numérica.
Vivem em bairros do subúrbio das cidades e juntamente com pessoas não ciganas, por isso alguns
valores e tradições são adaptados para uma melhor relação social. Esses ciganos trabalham geralmente
com emprego temporário, ferro velho ou com o comércio ambulante, como suas atividades econômicas
são instáveis acabam muitas vezes por depender da assistência social.
O quarto e último grupo denominado como os ciganos que estão em processo de assimilação são
desestruturados e caracterizados como marginais. A maioria dos ciganos em processo de assimilação
são analfabetos e os que frequentam alguma escola não o fazem com regularidade. Sendo assim,
para sobrevivência trabalham como catadores, vendedores ambulantes ou também com o tráfico, na
mendicância e dependem, para tudo, da assistência pública. Esse grupo é responsável pela imagem
genérica negativa carregada pelos ciganos, são considerados como um grupo gerador de conflitos e
socialmente problemático que tem a cultura semelhante a qualquer outro grupo miserável. O escritor
e desenvolvedor desse sistema dos quatro grupos disserta sobre os ciganos que

“[Os ciganos] são um povo extremamente desunido e mal-definido, possuindo uma continuidade,
em vez de uma comunidade, de cultura. Indivíduos que compartilham a ascendência e a reputação

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de “cigano” podem ter quase nada em comum no seu modo de viver, na cultura visível ou na
língua. Os ciganos provavelmente nunca foram um povo unido” (Acton 1974: 55).

Nesse sentido, não é possível afirmar que todas as grandes famílias Romani sejam nômades ou que
usem roupas coloridas acetinadas. Muito embora a leitura de mão, feitio de artesanato e atrações dançan-
tes estejam diretamente ligadas a ciganeidade, o estilo de vida da maioria desses foi adaptada conforme a
fixação de moradia e sua inserção no mercado de trabalho. Entretanto, o aumento significativo das famílias
e subgrupos Roma não fez com que os valores extremamente ricos ficassem no passado, seja na escolha
de um líder vitalício para administrar o clã ou nos arranjos matrimoniais conforme escolha dos patriarcas.
Os ciganos sempre foram perseguidos e a sua não identificação com o modelo de Estado-nação
lhe impediu o acesso a um lugar de pertença propriamente seu. No século XVII, o imperador alemão
Karl IV emitiu um decreto que ordenava a matança de todos os ciganos adultos e o corte das orelhas
das mulheres e crianças, com objetivo de punir e identifica-las. No século XIX, ainda na Alemanha, foi
criada a Central para o combate da Moléstia Cigana, com intuito de controlar esse povo considerado
“altamente perigoso”, proibindo-se também o casamento de pessoas não-ciganas com ciganos
(GUIMARAIS, 2015). O regime nazista, por exemplo, promoveu um “holocausto cigano” que dizimou
a vida de mais de 500 mil ciganos, juntamente com os seis milhões de judeus, um episódio que o
mundo praticamente esqueceu. Esse ódio aos ciganos não nasceu com o nazismo
Com o fim da II Guerra o governo alemão teve que indenizar os familiares e atingidos com o
regime Nazista. Após as experiências médicas, tratamento desumano e outros absurdos ocorridos na
época, milhares de judeus foram indenizados, entretanto grande parte dos ciganos teve seu pedido
indenizatório negado por falta de testemunho e outras provas necessárias (Margalit,2002). Parte das
negações se deram sob a alegação de que os ciganos não foram para os campos por causa da “Higiene
Racial” proposta por Hitler, mas sim porque estavam ligados a crimes comuns e serem associais.
O que se apresenta de forma clara é que os ciganos não são nem mencionados quando se trata do
Holocausto. Nesse sentido, os milhares de vidas tiradas pertencentes à etnia são varridos para debaixo
do tapete como se não tivessem grande importância ou ainda pior, como se nunca tivesse ocorrido tal
episódio de horror. No pós-guerra, os ciganos que sobreviveram continuaram desamparados, odiados
e as práticas anticiganas se consolidavam nos círculos policiais. A situação somente se neutralizou na
década de 80 quando as famílias ciganas foram aceitas oficialmente como vítimas do nazismo.

2 REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS E SUA LIGAÇÃO COM A NÃO INSERÇÃO DOS ROMANI NA


SOCIEDADE BRASILEIRA

A complexa diversidade dentro das próprias famílias Rom, Sinti e Calon é suficiente para embaralhar
o que a sociedade em geral entende sobre o que é ser cigano, já que na contemporaneidade quase não
se encontram as famosas tendas, as moças adornadas em ouro com suas saias compridas ou os homens
com seus lenços atados na cabeça. De acordo com o antropólogo Frans Moonen (2013) as adaptações
dos elementos culturais ao decorrer do tempo são normais e isso não quer dizer que haja uma cultura
impositiva dominante sobre a cigana, mas sim transformações inevitáveis aos contextos diversos em que
se encontram. Assim sendo, os estereótipos repassados pelas mídias para fazer referência às famílias não
passam de uma visão ultrapassada da etnia, que hoje é somente usada em apresentações artísticas.
É importante ressaltar a importância dos meios de comunicação para estabelecimento de imagem de
mundo, a ligação do indivíduo aos seus pares, uma vez que a imputação da responsabilidade das mediações
sociais é da mídia. O problema desse sistema são as modelagens pretenciosas desenvolvidas para benefi-
ciar os paradigmas do mercado, da mesma forma que privilegia um grupo restrito em detrimento de uma
imensidão de excluídos não condizentes com o padrão conveniente. O preconceito está estampado nos
programas televisivos brasileiros ao colocar os ciganos como místicos rogadores de praga ou trambiquei-
ros, fatos esses que serviram para o descontentamento e alvo de críticas das comunidades Romani.
As representações inadequadas que se multiplicam pelos meios de comunicação em massa apontam
para um problema no processo democrático. O distanciamento da realidade das famílias ciganas para
o que se traz na mídia é o completo descaso com a história de uma nação e defendido pelo argumento

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de que é preciso estabelecer um lugar para cada povo na desordem da miscigenação brasileira.

Na história dos chamados ciganos, também experimentamos e imaginamos uma tradição cultural
complexa com base em representações, memórias e impressões cristalizadas em uma consciência
coletiva – está o produto de disputas e dissensões no campo das relações interétnicas –, que em
muito se assemelham a emblemas entre emblemas constantemente reformulados em um zodíaco
de fantasmas da mente. (FAZITO, 2006, p. 691)

As novelas, por exemplo, colocam duas hipóteses de vida para os ciganos: ou são seres exóticos
e admiráveis de alta classe, ou pessoas sujas e imorais que vivem em suas barracas tirando o sustento
de trapaças. O não conhecimento leva à escassez do contato, sem o contato não há esclarecimento,
por consequência o preconceito sobre os Roma acaba afastando a integralidade, como a inserção
desses no mercado de trabalho formal, o acesso à educação e saúde. Esse fenômeno é explicado pelo
ativista espanhol cigano Valeriu Nicolae como um movimento anticiganista:

O antigitanismo em si é um fenômeno social complexo que se manifesta através da


violência, discurso de ódio, exploração e discriminação, em sua forma mais visível.
O preconceito contra os ciganos vai claramente além dos estereótipos racistas que
os associam a traços e comportamentos negativos. A desumanização é o seu ponto
central. Os ciganos são vistos como menos que humanos; que são menos que
humanos, são percebidos como seres que não têm direito moral de usufruir de
direitos humanos iguais aos do restante da população. (NICOLAE, 2016, p.79)

Além da imagem surreal pregada e da invisibilidade social experimentada pelas famílias Roma,
muitos de seus membros não conhecem a própria história. Em função da cultura ágrafa e o distanciamento
dos grupos ciganos derivados principalmente da diferença de língua não há registros fidedignos sobre
o passado do grupo do qual vier a integrar. Também por esse motivo uma criança cigana não aprenderá
na escola sobre personalidades que se destacaram em sua etnia como outras crianças das demais etnias.

3 CIGANOS COMO SUJEITOS DE DIREITOS: “SOMOS BRASILEIROS IGUAL A VOCÊS, SÓ QUE


CIGANOS”

As famílias Roma vivem espalhadas pelos cinco continentes, porém no Brasil a sua história
começa em 1574 com a chegada de João Torres, sua mulher e filhos. Pelo fato de não haver registros
suficientes sobre a etnia, seu estilo de vida livre trouxe inquietações dentro da sociedade, logo foram
entendidos como uma anomalia social e racial. A partir disso, conflitos começaram a emergir, de
uma maneira mais acirrada com a polícia que tentou controla-los por muito tempo em função da
dissonância com os valores progressistas.
No século XIX, os desentendimentos se deram com a igreja pelo fato de que os ciganos não seguiam
os preceitos católicos. Ignorar os sacramentos como o casamento ou o batismo de recém-nascidos foi
uma afronta, além de que as comemorações à moda cigana são carregadas de misticismo, tal coisa era
entendida como feitiçaria para os religiosos. O fato de não ter controle sobre essa parcela da população
fez com que gerasse uma antipatia duradoura e uma vez que atingiu a igreja, a coroa portuguesa
também se sentiu afetada. Um século mais tarde, a edição do dicionário do Padre Raphael Bluteau,
reeditado pelo brasileiro António de Moraes Silva, já expressava o desprezo pelos povos ciganos.

“Raça de gente vagabunda, que diz vem do Egito, e pretende conhecer de futuros pelas rayas, ou
linhas da mão; deste embuste vive, e de trocas, e baldrocas; ou de dançar, e cantar: vivem em bairro
juntos, tem alguns costumes particulares, e uma espécie de Germania com que se entendem. (...)
Cigano, adj. que engana com arte, subtileza, e bons modos.” (SILVA, 1922, pág.326)

O ápice do litígio se deu com a polícia no início do séc. XX denominado “correrias de ciganos”.
Entendidos como inúteis à sociedade, incivilizáveis e corruptores dos costumes a polícia tentou
controlá-los o que resultou em fuga do grupo desprezado e mortes para ambos os lados. Vistos como

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

estrangeiros que visavam exclusivamente o roubo foram discriminados, sofreram e sofrem violações
pela falta de políticas que compreendam seu contexto de vida.
Essa minoria étnica foi recepcionada na constituição de 1988 como sujeitos de direitos e
principalmente o de inserção nas políticas públicas. A responsabilidade de proteção por parte do Estado
está expressa, também, no art.216, inciso I e II, CF/88 reconhecendo como valor histórico brasileiro
“as formas de expressão” e “os modos de criar, fazer e viver” dos “diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”. Em busca da concretização dos direitos culturais, em 1993 a lei complementar
75 trouxe em seu corpo de texto, no art. 6, VII, “c”, a defesa dos interesses das minorias étnicas
atribuindo o incentivo e a fiscalização do Estado, nesse quesito, ao Ministério Público.
Somente em 2008 foi feita a primeira publicação sobre os direitos dos ciganos em uma espécie de
cartilha, “Povo Cigano- o Direito em suas mãos” por uma advogada do clã Kalderash, subgrupo nobre
dos Roms. Um dos objetivos da referida cartilha é fornecer instrumentos de amparo governamental
para garantir a proteção dos povos ciganos. Porém, o documento foi muito criticado, inclusive pelos
próprios ciganos, pois foi entendida como uma evolução que desfazia parte de suas tradições. O que
passa despercebido por essas minorias, talvez pela desinformação ou falta de acessibilidade, é que
como regra geral todo ser que nasce ou apenas reside em solo brasileiro, mesmo que portador da
cultura cigana, é cidadão e para tanto tem respaldo constitucional sobre seus direitos.
Mais tarde, 25 de maio de 2011, foi discutida “a importância da cidadania cigana” em audiência
pública no Senado Federal. A audiência sucedeu o Dia Nacional do Cigano e levou ao debate situações
cotidianas como o não fornecimento de energia e água, as dificuldades de permanência das crianças
ciganas nas escolas e de inserção no mercado formal de trabalho, ambos motivados pelo preconceito.
Para além disso, de acordo com relatórios oficiais do Cadastro Único Federal, as famílias ciganas
detêm a “maior proporção de pessoas sem instrução (52,4%)” (BRASIL,2013) comparadas com outras
minorias cadastradas. Assim como outras mazelas do país não têm suas causas enfrentadas ou ao
menos identificadas, o que se torna mais um erro porque é preciso “entender as realidades culturais
no contexto da história de cada sociedade, das relações sociais dentro de cada qual e das relações
entre elas” (SANTOS, 1986). Em apoio a essas famílias, a embaixada cigana, situada em São Paulo,
dispõe de roteiros e demais informações para a reivindicação de tais direitos, no sentido de conceber
aos entes federativos tal responsabilidade. Assim descreve Robson Siqueira

Através da publicação do Programa Brasil Sem Racismo, da aprovação do Estatuto da Igualdade


Racial e da criação do SEPPIR, o governo brasileiro avança no dever de garantir condições iguais de
desenvolvimento para negros e brancos. O mesmo, porém, não se aplica aos Calon, já presente no
Brasil desde a segunda metade do século XVI. É notório que o principal órgão federal, incumbido
de gerar soluções para os problemas que dizem respeito à diversidade étnica do nosso país, é
politicamente limitado diante dessa diversidade. (SIQUEIRA, 2013, p.95)

Ademais, em 2015 foi criado o projeto de lei para o Estatuto cigano de autoria do senador federal
Paulo Paim (PT), reeleito pelo estado do Rio Grande do Sul (2019-2026). Esse projeto visa garantir
políticas públicas específicas destinadas a essa parcela social desfavorecida. No momento o PLS n°
248/2015 se encontra em tramite. Dentro disso, somos levados a reflexão sobre a identidade cigana e
quais são suas influências nas práticas sociais, e ainda, por qual motivo se requere uma lei específica.
No corpo da lei 248/2015 em seu primeiro artigo já aponta a disparidade entre ciganos e não-ciganos
“Esta Lei institui o Estatuto do Cigano, para garantir à população cigana a igualdade de oportunidades.”.
Uma vez que esses povos não aparecem nos sensos demográficos brasileiros, não há como
trazer exatidão na quantidade de ciganos existentes por região ou ao menos a parcela concentrada
apenas no Brasil. Além disso, a partir das subdivisões dos três grupos originários (Romns, Sinti e
Calon) a diversidade cigana é infinita, existem várias “autodenominações, falam centenas de línguas
ou dialetos, têm os mais variados costumes e valores culturais, são diferentes uns dos outros [...] Em
comum todos eles têm apenas uma coisa: uma longa História de ódio, de perseguição, de discriminação
pelos não-ciganos” (MOONEM, 2011). Por conta disso, os ciganos são confundidos com não-ciganos,
pois não existe um padrão específico como o imaginado, as classificações que se têm são externas,
que vem de fora, não são dos próprios ciganos.
Aqui cabe ainda destacar que ser cigano e brasileiro de forma alguma traz contradições. A
designação “ser brasileiro” deve ser compreendida como a nacionalidade e “ser cigano” como a pertença
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ao grupo étnico, assim as duas afirmativas compõem a identidade do sujeito. Conforme Tomaz Silva,

Em uma primeira aproximação, parece ser fácil definir “identidade”. A identidade é simplesmente
aquilo que se é: “sou brasileiro”, “sou negro”, “sou heterossexual”, “sou jovem”, “sou homem”. A
identidade assim concebida parece ser uma positividade (“aquilo que sou”), uma característica
independente, um “fato” autônomo. Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si
própria: ela é autocontida e autossuficiente. (SILVA, 2000, p.73)

A identidade cigana é uma condição de ser de seus membros e não pode rivalizar ou servir
como argumento de negação dos direitos mais básicos devidos a todos os brasileiros de modo ge-
ral. Entender a importância da diferença e da diversidade cultural que constitui o Brasil tem sido um
dos grandes desafios de nossa democracia.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de construção de uma identidade é infindável pela dinamicidade das relações. Porém,
decompor uma imagem construída por terceiros sobre um determinado povo se apresenta como um
processo ainda mais longo. As diferenças, como aponta Silva (2007, p.73), constituem a identidade e a
identidade, por sua vez, depende das diferenças, que não se tratam de atribuições sem consentimento,
mas como o ser é de fato. Embora essas discrepâncias existam, não servem de argumento para a negação
de direitos fundamentais a essas pessoas, porque não as fazem menos humanas. Infelizmente a exclusão
dessa etnia se dá por verdades criadas pelos mesmos que os excluem sem o mínimo de aproximação.
Atualmente, pode-se dizer que existem aproximadamente 5 milhões de ciganos espalhados pelo
mundo, sendo que em média 800 mil desses se encontram no Brasil. Mesmo entendendo que são famílias
ciganas brasileiras, ainda não são vistos como parte da construção da história, da economia e das transições
do país. Os motivos estruturais relevantes para não terem conseguido se desenvolver no Brasil se concentram
no analfabetismo; a concentração de renda e o autoritarismo político que dificulta a participação social nos
rumos a serem tomados no país. Essa dominação social pelas elites não é novidade em lugar nenhum do
mundo, a partir dela várias parcelas da população são marginalizadas e o modo incomunicável intercultural
que o povo brasileiro vive acaba por promover esse processo de hierarquização.
A falsa impressão de “cordialidade” ou “democracia racial” tem efeito imobilizador nas comunidades
ciganas quanto a concentração desses para a produção de discursos e consensos sobre o que deve ser
disposto publicamente. Nesse sentido, as redes têm dado um maior alcance e transparência, um espaço
maior de diálogo, no processo de legitimação e união entre ciganos e não-ciganos. Em face de atender
algumas demandas específicas da etnia, o projeto de um Estatuto Cigano se integra ao movimento
ativista na tentativa de construir o reparo no histórico negacionista de direitos básicos de uma fração
brasileira. A imperatividade dessa lei não se dá somente para correção do passado, mas também para
o amparo de famílias que ainda hoje sofrem com a inclusão não efetivada.
De modo geral, apesar dos avanços recentes é preciso que muito mais seja feito e efetivado para
redução das desigualdades. A inclusão de ciganos deve ser trabalhada em vários sentidos, desde o
alcance das campanhas de saúde por meio de unidades móveis como a integração da cultura cigana
nas festividades em que se expõem as demais etnias e ainda a educação respeitosa aos costumes e
crenças de crianças ciganas. Ademais, fornecer o amparo governamental como meio de garantia de
proteção desse povo, usando as palavras do papa João Paulo II de seu discurso em 1999 e também
exposto na cartilha cigana: “Enquanto a humanidade não resgatar sua enorme dívida para com nossos
irmãos ciganos, nenhum de nós poderá falar em direitos humanos e cidadania”.

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523
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O PROJETO DE LEI 3515/2015 E A TUTELA


DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO:
MECANISMOS DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE
HUMANA NAS RELAÇÕES CONSUMERISTAS

Maikeu Alexandre Mallmann246


Fernanda Serrer247

RESUMO: O presente artigo apresenta um estudo acerca da garantia do mínimo existencial do


consumidor superendividado e a importância da garantia do princípio da dignidade em face da satisfação
de débitos. O trabalho está dividido em três momentos. O primeiro dedicado ao estudo das origens
do crédito como mecanismo de circulação da riqueza na sociedade moderna e o advento da proteção
jurídica do consumidor no cenário brasileiro. O segundo relacionado com a compreensão do princípio da
dignidade da pessoa humana, sua relação com o mínimo existencial e a situação de superendividamento
dos consumidores nacionais. E finalmente, o último, focado no estudo dos contornos Projeto de Lei
3515/2015 e a sua importância para a garantia da dignidade dos consumidores superendividados.

Palavras-chave: Consumidor. Superendividamento. Dignidade da Pessoa Humana. Tutela Jurídica.

INTRODUÇÃO

Tendo em vista a problemática da insolvência e o superendividamento por parte dos consumidores,


relevante se faz a ponderação acerca da importância da tutela jurídica protetiva do consumidor como
garantidora de condições mínimas de existência humana ao endividado.
Inicialmente, serão analisados os aspectos relacionados ao crédito e seu impacto na sociedade
moderna, assim como as problemáticas oriundas dele e seu uso indiscriminado, assim como será
tratado do tema do superendividamento, problema cotidiano que aflige boa parte dos consumidores
e merece cada vez mais atenção do ordenamento jurídico pátrio.
Após isso, o superendividamento será tratado com foco nas relações de consumo e na garantia
constitucional da dignidade da pessoa humana, assim como a proteção do chamado mínimo existencial.
Por fim, serão tratados alguns pontos de destaque do atual Projeto de Lei 3515/15, que
visa regular de forma mais abrangente o problema do superendividamento, oferecendo garantias
ao consumidor e promovendo a proteção da dignidade da pessoa humana, assim como o mínimo
existencial do consumidor superendividado.

1 O CRÉDITO E A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR BRASILEIRO

O desenvolvimento econômico e a circulação de bens e serviços demandam a criação de uma


alternativa para transferência da riqueza, viável a quem se encontra em insuficiência de recursos
financeiros e baseada em uma relação de confiança, proporcionando garantias ao credor e recursos
financeiros ao devedor. Deste modo, surge o termo conhecido como “crédito”.
Nas palavras de Leoni (1998, p. 96) a palavra crédito “é de origem latina e significa crença, confiança”.
O crédito está diretamente vinculado a confiança existente entre credor e devedor. Em que o credor, ao
dispor do recebimento imediato de determinado valor pecuniário, espera que este lhe seja ressarcido no

246 Graduado em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
247 Professora no Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
(Unijuí). Mestre e doutoranda em Direito no Programa de Doutorado em Direitos Humanos (PPGDH- UNIJUÍ).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

tempo, havendo assim uma relação mútua de comércio, no qual o crédito de um é o débito de outro.
Na acepção jurídica o crédito representa a obrigação sob a perspectiva do sujeito ativo da
relação contratual, possibilitando ao credor, portanto, o direito de exigir a satisfação da prestação
pelo devedor. Conforme leciona Aquino (2020, n.p.) o crédito “é um direito de fruição. O credor é
aquele em proveito de quem a prestação deve ser executada.”
Hodiernamente, as sociedades vivem um período de exponencial crescimento econômico
advindos da “cultura de consumo” e de uma democratização do crédito, técnica comercial que no
cenário brasileiro foi impulsionada pelo Plano Real e solidificada por períodos de relativa estabilidade
financeira (RIBEIRO, 2019). Com isso, verifica-se um processo de migração da economia monetária
para a economia financeira, na qual a moeda dá espaço ao crédito, mudando assim a forma com que
as negociações são realizadas, oferecendo mais facilidade no acesso aos produtos, fomentando o
comércio e, consequentemente, impulsionando a economia.
No comércio brasileiro, as ofertas de crédito são normalmente feitas pelas instituições financeiras
e empresas varejistas, sendo o financiamento de crédito e o parcelamento de compras tratados como
mercadoria. No que diz respeito à opção pelo crédito, essa vem se tornando cada vez mais frequente.
Em pesquisa realizada em 2015 pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e pelo portal Meu Bolso
Feliz, que investigou o comportamento dos brasileiros relacionado ao parcelamento de compras,
constatou-se que 79% dos consumidores parcelam suas compras, sendo que a maioria dos produtos
corresponde a roupas, 32%, seguido dos eletrônicos, 28% (SPC, 2020, n.p.)248.
Dentre os motivos que levam o consumidor a optar pelas compras à prazo ou financiamento
junto às entidades financeiras, é mister destacar o poder de compra proporcionado pelo crédito, que
oferece mais opções de bens de consumo, facilitando o acesso àqueles bens e serviços até então
inacessíveis em consequência de seu alto valor, como imóveis e viagens.
Não obstante, a capacidade de consumo também está ligada a fatores de inclusão social, reflexos
de uma sociedade cada vez mais consumista, na qual “condutas e regramentos são voltados para
criação de um modelo social predeterminado” (RIBEIRO, 2019, p. 12)
Contudo, o senso de urgência em adquirir determinado produto ou serviço sem planejamento
prévio e a falta de informação sobre os termos de determinado contrato, criam no consumidor, não
poucas vezes, a falsa ideia de que a concessão do crédito gera capital, acarretando consequências
futuras não vislumbradas pelo consumidor no momento da negociação, dentre as quais, a inadimplência
e o looping do endividamento, na medida em que diante da insolvência muitos consumidores optam
por soluções imediatas e irrefletidas como o financiamento de crédito junto às instituições financeiras.
Nesse sentido, mesmo o crédito sendo uma ferramenta fundamental para o impulsionamento
econômico e social, o aumento da insolvência acaba ancorar a economia, impedindo o consumidor de
adquirir novos produtos em decorrência da falta de recursos, situação essa que perdura por longos
períodos, a depender do tamanho da dívida contraída.
Assim, na realidade de muitas famílias brasileiras, o crédito não é mais um meio de se realizar
um sonho. Não se trata mais de obtenção de bens, mas sim uma forma de subsistência, tornando o
superendividamento uma realidade presente em milhares de lares brasileiros, pois, visando quitar uma
dívida anteriormente postergada, o devedor contrai nova dívida, agora junto à instituição financeira,
afetando diretamente a qualidade de vida e a garantia do mínimo existencial do consumidor endividado.
Tendo em vista a extensão e importância da temática, somente a elaboração de leis esparsas
e genéricas não seriam suficientes para garantia desses Direitos, sendo necessária a criação de um
Código específico.
O Código de Defesa do Consumidor,  Lei n.8.078, de 11 de setembro de 1990, é o principal
responsável pela tutela dos direitos nas relações de consumo travadas no cenário nacional, sendo a
defesa do consumidor também elencada no rol dos direitos fundamentais constantes na Constituição
Federal de 1988, mais precisamente no art. 5°, inciso XXXII, que prevê que “o Estado promoverá, na
forma da lei, a defesa do consumidor” (BRASIL, 2020).

248 Outro ponto importante a ser destacado é a mudança operada no modo de consumir. A internet mudou a forma com
que o consumo se efetiva. Atualmente, no Brasil, segundo estudo realizado em 2019 pela NZE Intelligence, que contou com
a participação de 3 mil pessoas e avaliou as preferências do consumidor brasileiro, estima-se que as compras online são a
preferência de 74% dos consumidores. (NZE, 2020, n.p.).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O CDC visa equilibrar as relações de consumo, tendo em vista que recai sobre o consumidor a
prerrogativa da vulnerabilidade, sendo o fornecedor quem, costumeiramente, detém o maior capital,
que escolhe o que é posto em circulação e que dispõe acerca das informações do produto que serão
repassadas ao consumidor.
Um dos primeiros temas apontados pela Lei n.8.078/90 é a garantia da dignidade do consumidor
nas relações de consumo, evidenciando o desequilíbrio existente entre este e o fornecedor. Nesse
sentido, Ricardo Ribeiro (2019, p. 19) afirma que se faz

imperioso destacar que já no art. 4º, o CDC explicita a Política Nacional de Relações de Consumo
que tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua
qualidade de vida, bem como transparência e harmonia das relações de consumo [...] sempre com
base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

Da premissa de vulnerabilidade do consumidor, prevista no art. 4° do referido Código, fluem


diversas garantias expressamente previstas em lei. Uma dessas prerrogativas, que detém extrema
importância nas relações de consumo, é a proteção do consumidor frente à publicidade enganosa,
garantindo clareza e precisão nas informações fornecidas ao consumidor, evitando que o consumidor
seja induzido a contratar sem as informações necessárias, e minimizando prejuízos futuros, tais
como o superendividamento (BRASIL, 2020).
Ademais, antevendo a evolução do perfil dos consumidores ao longo de seus 30 anos de
existência, o CDC apresenta a previsão de que o Direito evolua junto com a sociedade. Neste sentido,
o artigo 4° do referido diploma, promove, em seu inciso VIII, o princípio dos “estudos constantes
das modificações do mercado de consumo” (BRASIL, 2020), visando garantir que o Direito não fique
desatualizado frente às modificações ocorridas nas relações de consumo.
Com o intuito de resguardar o consumidor frente às cláusulas abusivas ou excessivamente
onerosas, o CDC, em seu art. 6°, inciso V, prevê a modificação do contrato para alterar as cláusulas
consideradas abusivas, e, mais adiante, no caput do artigo 42, o referido diploma inibe a cobrança
abusiva ou vexatória, assim resguardando a imagem do consumidor insolvente.
Tais previsões evidenciam a vulnerabilidade do consumidor e almejam o equilíbrio nas relações
consumeristas, garantindo direitos ao consumidor e impondo limitações ao fornecedor, estabelecendo
assim a boa-fé como princípio basilar nas relações de consumo.
Para que tenha atingida a devida efetividade, as normas presentes na Lei 8.078/90 têm caráter
de ordem pública e interesse social, não sendo possível sua revogação por intermédio das partes,
tornando nulo qualquer ato que ameace a ordem pública. Nas palavras de Viviane Rocha dos Santos
(2020, n.p.), se trata de um “sistema que sintetiza todos os princípios e objetivos criados pelo Estado,
os quais devem ser observados pelas partes envolvidas na relação de consumo.”

2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, MÍNIMO EXISTENCIAL E SUPERENDIVIDAMENTO

O sistema jurídico pátrio adotou o sistema normativo para regular a vida em sociedade e exercer
sua soberania. Outrossim, não só as normas integram o Direito, mas os princípios também têm
papel fundamental para que o direito se adapte no ritmo da evolução da sociedade contemporânea.
(BERNARDES; CALCAGNO, 2012).
Nas decisões, inclusive, os princípios exercem papel fundamental, podendo o magistrado utilizar-
se destes de forma direta ou como ferramenta de interpretação dos dispositivos legais, uma vez que
os princípios contém uma maior carga valorativa, abrangendo uma gama mais variada de situações
fáticas, indicando uma direção a observar sem especificar a conduta a ser seguida (BARROSO, 2009).
Além disso, pode-se acrescentar que princípios são “mandados de otimização” (LEAL, 2003, p. 86),
pois podem ser levados a efeito em diferentes
graus no caso concreto, a depender dos valores envolvidos.
Dentre os princípios que integram o sistema normativo brasileiro, um deles, em especial, orienta
todos os demais e regula todo ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista seu caráter irrenunciável e

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

soberano na Constituição Federal de 1988, além de ter suma importância, não só para o Direito, mas
para a história da civilização. Trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana. Na lição de Sarlet
(2011, p. 73, grifo do autor), a dignidade da pessoa humana é

[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,
um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo
e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa
e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres
humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.249

O surgimento das discussões acerca de tal princípio e a sua efetiva implementação, alteraram a
forma com que o indivíduo se relacionava com o Estado. No princípio, o Estado era o centro da relação,
enquanto o sujeito era um meio pelo qual se atendia as necessidades do Estado. Hodiernamente, o sujeito
é fim, enquanto o Estado passa a ser um instrumento que visa garantir a efetivação de seus direitos.
Essa mudança na posição do indivíduo em relação ao Estado está atrelada à evolução do próprio
conceito de dignidade humana. Na esfera jurídica, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana não
deve ser tido apenas como um direito fundamental, mas sim como o pilar que dá ensejo a tais direitos.
Além disso, a dignidade humana não é relacionada exclusivamente aos direitos fundamentais previstos
na Constituição Federal, sua garantia se formaliza mediante tratados internacionais ou princípios do
Direito. Conforme preconiza Karine da Silva Cordeiro (2019, n.p., grifos da autora):

[...] o constituinte adotou um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais (textura


aberta dos direitos fundamentais), abrangendo, além daqueles expressamente previstos, os
direitos fundamentais constantes fora do catálogo e em tratados internacionais e os não escritos,
consagrando a teoria dos direitos implícitos e decorrentes [...].

Essa possibilidade de “extensão” do direito se apresenta como necessária para a proteção da


dignidade humana, tendo em vista que não é possível elencar um rol taxativo que se enquadre em
cada caso, o que, inclusive, limitaria a aplicabilidade de um valor intrínseco de cada indivíduo.
Da necessidade de garantir a dignidade da pessoa humana, decorrem prerrogativas básicas que
devem ser garantidas pelo Poder Público para que cada sujeito de direito tenha o mínimo existencial
para uma vida digna. A relação entre dignidade humana e o mínimo existencial é preconizada por
Cordeiro (2019, n.p.), que discorre:

Ao explicitar o complexo conteúdo da dignidade, tem o mérito de avançar na discussão sobre


a estreita ligação entre esta e o mínimo existencial. Ao justificar a necessidade da garantia
deste, recorre a uma fundamentação não estritamente jurídica, o que amplia seu espectro de
argumentação. Recorre ao ponto de vista moral com a preocupação de mostrar o que significa
propriamente garantir uma vida digna enquanto dever jurídico.

Quanto ao estudo do mínimo existencial, este e a dignidade da pessoa são indissociáveis, sendo
dois paralelos na busca pela existência digna do ser humano. Nesse sentido, Antônio Ítalo Ribeiro Oliveira
(2020), discorre que “O mínimo necessário à existência constitui um direito fundamental, posto que sem
ele cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade”.
É possível afirmar que o estudo do mínimo existencial ganhou ainda mais relevância a partir da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, contendo previsão expressa em seu
artigo XXV, 1, conforme prevê:

249 O conceito supracitado carrega toda a complexidade e abrangência de dignidade e remete a sua origem filosófica. Foi
Immanuel Kant o pensador que melhor trabalhou o conceito moderno (secular) e a fundamentação de dignidade da pessoa
humana. Para esse filósofo, a dignidade está vinculada à natureza racional do ser humano, o que culmina em uma qualidade
indissociável. Defende que o fundamento da dignidade humana reside na capacidade (potencial) de autonomia da vontade
humana, que consiste na faculdade (liberdade potencial) de agir e reger sua vida do modo que melhor lhe aprouver, dentro
das regras sociais e respeitando a dignidade alheia. Assim, o homem possui consciência racional e moral, e tem um valor
inestimável, o que o afasta da condição de coisa, a qual é possível atribuir um preço (SARLET, 2011).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Artigo XXV: 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família,
saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou
outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Com isso, evidencia-se a preocupação internacional, não apenas à garantia de direitos


fundamentais para subsistência, mas também sua preocupação com direitos sociais individuais e
coletivos. Assim como ocorre com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, não é possível valorar
o mínimo existencial, objetivando o que cada pessoa precisa ou até mesmo limitando o que abrange
tal preceito, pois não se trata tão somente de um déficit financeiro, ou um direito fundamental sendo
negado, deve-se atuar diante de cada caso a fim de se verificar se a dignidade da pessoa humana está
sendo atingida de forma injustificável (PETRY, 2013, p. 21)
Com isso, verifica-se a íntima ligação do mínimo existencial com a dignidade da pessoa humana,
por ser um Direito indiscutível e inegável de cada indivíduo, não cabe ao Poder Público se omitir da
responsabilidade de auxiliar a quem se encontra em situação indigna, a quem não tem o mínimo para
que tenha auferida sua condição humana.
No direito Consumerista, tal prerrogativa é melhor analisada sob a ótica do superendividamento,
tendo em vista ser este um dos fatores mais importantes a serem analisados na árdua tarefa de
garantia da dignidade da pessoa humana, pois não causa apenas a morte civil do indivíduo, mas a
física, sua e de sua família.
A incapacidade de arcar com suas dívidas, aliada à fatores externos, como falta de emprego,
dificuldades financeiras em momentos inesperados e a falta de planejamento familiar ao efetuar
determinado negócio, envolvem o consumidor em uma condição de insolvência, muitas vezes
irreparável a curto prazo. Este fenômeno de incapacidade em arcar com o conjunto de suas dívidas
sem prejuízo de sua renda mensal é denominado superendividamento. (RIBEIRO, 2019, p. 14)
Assim sendo, “superendividado” não é um termo aplicável a qualquer consumidor, mas sim
àquela pessoa física que não possui condição alguma de arguir com suas dívidas atuais e futuras,
decorrentes do consumo. O ordenamento jurídico brasileiro apesar de não tratar de modo expresso
do superendividamento, tem no Projeto de Lei 3515/15, um inicial e importante referencial, conforme
prevê o projetado art. 54-A, §1° do CDC:

§1º: Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta do consumidor, pessoa


natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem
comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.

O superendividamento pode se apresentar de duas espécies. Quando o sujeito se coloca na


situação de endividado, seja de má-fé ou não, tem-se o superendividamento “ativo”. Em contrapartida,
quando esta situação ocorre em razão de outros fatores, sejam estes uma dívida não planejada, um
problema familiar que exige um investimento a curto prazo, este se apresenta na sua modalidade
“passiva” (RIBEIRO, 2019, p. 15, grifo nosso).
O superendividamento ocupa espaço na sociedade brasileira de maneira exponencial. O número
de consumidores inadimplentes vem crescendo de maneira vertiginosa na sociedade brasileira. Em
março de 2017, a estimativa era de 59,8 milhões de consumidores inadimplentes, mas em 2020,
a marca atingiu os 61,88 milhões, corresponde a 39,45% da população adulta do país, sendo sua
concentração voltada à faixa etária de 30 a 39 anos, e os índices que mais aumentam são dos
consumidores idosos (com idade acima de 61 anos), que geralmente encontra mais barreiras no
que tange ao acesso a informações, sendo ainda mais vulneráveis à propaganda abusiva e a falta de
informação (SPC Brasil, 2020, n.p.).
Neste sentido, segundo Luiz Rabi, economista da Serasa Experian (SERASA EXPERIAN, 2019, n.p.)

[...] “O aumento do desemprego e o repique da inflação nos primeiros meses do ano resultaram
em perdas da renda do consumidor, que impacta diretamente na inadimplência. Também a
concentração de compromissos financeiros típicos de início de ano (IPTU, IPVA, material escolar
etc.) pressionaram o orçamento da população. O recorde de pessoas com dívidas atrasadas em
março mostra um patamar elevado e traz prejuízos ao crescimento da economia.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Estes dados somente evidenciam a disponibilização irresponsável do crédito, que, por si só gera
riscos ao consumidor, principalmente haja vista a realidade social, na qual há déficit na educação
básica e a educação financeira se revela uma exigência distante (NUNES; VERBICARO, 2019).
O consumidor deve ser resguardado da má-fé da cessionária de crédito. Cabendo ao ente público
garantir condições mínimas vitais e uma existência digna ao consumidor, assim como oferecer meios
que auxiliem o consumidor superendividado a sair de tal condição.

3 DIGNIDADE HUMANA DO CONSUMIDOR E A PL3515/15

No que tange ao superendividamento no cenário nacional é fundamental que o Estado ofereça


condições para que o consumidor tenha renda suficiente para garantia de sua subsistência, para
que, ao menos, tenha condição de pagar aquelas contas tidas como essenciais, tais como luz, água,
alimentação, transporte, dentre outros. Não obstante, quando a condição econômica familiar impõe
ao sujeito o ônus de ter de decidir entre quitar uma dívida e garantir alimento a seus filhos, deve o
ente público intervir, visando a proteção do mínimo existencial à uma vida digna (PETRY, 2020, p. 26).
Como apontado anteriormente, as causas do superendividamento não podem ser atribuídas
exclusivamente ao consumidor. Fatores como a concessão indiscriminada de crédito, gastos não pla-
nejados, e até mesmo a publicidade abusiva por parte do fornecedor, que se aproveita da ingenuidade
e vulnerabilidade do consumidor menos favorecido, são frequentemente apontados como impulsio-
nadores do superendividamento.
Ocorre que, a imprevisibilidade do cotidiano faz surgir situações não vislumbradas pelo
consumidor ante a quitação de suas dívidas. Tais situações, como uma demissão, ou um problema de
saúde no âmbito familiar, fazem o consumidor mudar seu planejamento, o levando a ponderar quais
dívidas são mais importantes naquele momento.
Alguns serviços essenciais devem ser resguardados àquele consumidor de boa-fé. Atualmente, o
não pagamento das contas de água e luz acarretam suspensão dos serviços, o que altera drasticamente
o padrão de vida do sujeito e sua família, implicando em danos ainda maiores à estrutura familiar. Nos
dizeres de Petry (2020, p. 33):

Se um consumidor de boa-fé está em dificuldades (pela perda de um emprego ou doença, por exemplo),
e deixa de pagar a conta de luz e água, o simples corte é certeza de apenas uma coisa: o agravamento
da situação econômica. Sem essa “interferência” do Estado, que continua tendo responsabilidade sobre
estes serviços e o dever de garantir o mínimo existencial, dificilmente esse consumidor com problemas
crônicos conseguirá se recuperar e, inevitavelmente, sequer conseguirá suprir o seu mínimo vital.

Deve-se respeitar a máxima de que a dignidade humana é soberana quando em conflito com
qualquer outra norma ou princípio do direito, sendo toda e qualquer cláusula contratual ineficaz
quando ferir o mínimo existencial do sujeito, que, comumente, é devedor de boa-fé.
Visando complementar e aperfeiçoar o atual Código de Defesa do Consumidor, o Projeto de Lei
3515, apresentado em 04 de novembro de 2015, de autoria de José Sarney, encontra-se pronto para
pauta na Comissão Especial destinada a proferir seu parecer e sua aprovação é de suma importância
para o ordenamento jurídico, por apresentar inovações na tutela dos direitos consumeristas e na
proteção das garantias fundamentais do consumidor, principalmente em face do superendividamento.
Dentre todas as alterações propostas pelo Projeto de Lei 3515/15, abordaremos, neste tópico,
os mais expressivos e relacionados à garantia do mínimo existencial dos consumidores.
Uma das implementações mais significativas do referido PL, é a garantia expressa, até então inexistente,
de defesa ao mínimo existencial do consumidor, visando evitar a exclusão social oriunda da condição de
insolvência. O PL traz previsão clara de promoção ao consumo consciente e incentivo a educação financeira,
visando justamente maior autocontrole por parte do consumidor, nas relações de consumo e mais ênfase
na necessária clareza de informações nos produtos e serviços fornecidos pelos varejistas. O referido Projeto
de Lei também promove, em seu artigo 1°, a promoção da educação financeira, a prevenção e tratamento
ao superendividamento, evitando assim a exclusão social (BRASIL, 2020).
Tais previsões visam dar equilíbrio às relações de consumo e inibir práticas abusivas por parte

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

dos fornecedores de produtos e serviços, reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor e assim


oferecendo tutela jurídica para tal.
O PL não só apresenta a definição de superendividamento, como vai além, reservando um
capítulo inteiro abordando mecanismos de prevenção e proteção, trazendo ao ordenamento jurídico
a atualidade do tema e dando a devida importância ao consumidor que se encontra nesta situação.
O Capítulo VI-A, aborda a implementação e complementação de mecanismos para inibir o
superendividamento, assim como oferecer meios que visam tirar o consumidor de tal condição,
enquanto os artigos 54-B e 54-C limitam a oferta de crédito pelas instituições financeiras e empresas
varejistas, visando inibir práticas abusivas e cláusulas contratuais exacerbadas (BRASIL, 2020).
Dentre tais limitações, mais especificamente no artigo 54-C, o PL veda a utilização de expressões
do tipo “sem juros” ou “taxa zero” no momento da oferta de crédito, assim como a indicação de que
a operação pode ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito, o que garante mais
segurança na oferta de crédito (BRASIL, 2020).
Tais imposições condicionam a oferta do crédito, limitando a livre economia de mercado em face
da garantia dos direitos consumeristas, tendo em vista a condição vulnerável do consumidor frente a
ofertas, muitas vezes, abusivas. Vale destacar que os direitos da livre concorrência e livre economia
de mercado devem respeitar o interesse social, devendo o Estado exercer seu poder discricionário
para intervir na ordem econômica em face da garantia de direitos fundamentais, quando os direitos
do consumidor estiverem sendo desrespeitados.
O artigo 54-E trata da proteção contratual do consumidor contra cláusulas consideradas abusivas
na condição de crédito consignado, àquele em que as parcelas são descontadas diretamente do salário
ou benefício previdenciário. Tal artigo implementa a possibilidade de imediata revisão contratual
quando a soma conjunta das parcelas para pagamento de dívidas pessoais supere o valor de 30% da
remuneração mensal líquida do consumidor (BRASIL, 2020).
O exercício do direito de arrependimento em até 7 dias da celebração do contrato também é algo
crucial para a defesa do consumidor, possibilitando que este, após seguido o procedimento do § 3°
do art. 54-E, desista do crédito contratado, mediante a devolução deste acrescido de eventuais juros
incidentes. Além de garantir Direitos ao consumidor, o artigo também impõe deveres ao fornecedor de
crédito, tais como o de facilitar o Direito de arrependimento do consumidor, por meio da elaboração
de formulário que seja de fácil interpretação e anexo ao contrato (Art. 54-E, § 3°) (BRASIL, 2020).
Não obstante, antes mesmo de conceder o crédito, ao fornecedor incumbe o dever de avaliar a
capacidade do consumidor em quitar a dívida, consultando informações nos órgãos de proteção ao crédito.
Todas estas medidas visam inibir o superendividamento do consumidor, oferecendo limitações
aos fornecedores de crédito e atribuindo aos direitos consumeristas, um escopo mais dignitário e
garantindo o mínimo existencial do consumidor.
O capítulo V do referido PL traz em seu texto uma nova redação sobre as soluções alternativas
de conflitos, por meio da conciliação nos casos de superendividamento, o que visa reduzir a procura
da via judicial e apresenta assim um viés mais humanitário, de diálogo entre credor e devedor, para
que ambos tenham suas pretensões atendidas, de forma mais equilibrada possível.
Nesse sentido, o Projeto de Lei 3515/15 introduz, no art. 104-A, o chamado “plano de
pagamento”, em que o devedor ingressa com um processo judicial ou extrajudicial, elencando e
intimando todos os seus credores, para assim, devidamente supervisionado pelo judiciário ou órgão
de defesa do consumidor, elaborar um plano de pagamento de suas dívidas, que visa a quitação das
dívidas no prazo de até 5 anos, visando a satisfação do débitos de forma razoável, protegendo o
mínimo existencial do consumidor (BRASIL, 2020).
Ao não comparecer à audiência, deve o credor do crédito assumir o ônus por uma possível decisão
favorável ao consumidor devedor, que no caso é o sujeito vulnerável da situação que se encontra
em audiência para chegar a um consenso, realizar um acordo que lhe garanta condições dignas de
arcar com suas dívidas sem ter sua dignidade violada. Nesse sentido, o PL 3515/15 estabelece, nos
parágrafos 2° e 3° do art. 104-A, respectivamente, quais as consequências do não comparecimento
à audiência, como a suspensão de exigibilidade do débito e interrupção dos encargos da mora e,
havendo acordo, quais os efeitos deste (BRASIL, 2020).
Essa abertura aos procedimentos extrajudiciais acima mencionados demonstra a preocupação

530
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

do legislador em utilizar as formas de composição extrajudiciais para contribuir com a solução de


litígios, desobstruindo o judiciário e tornando todo procedimento mais célere e eficaz, dando um
caráter mais humanitário para a solução de litígios consumeristas.
As implementações trazidas pelo PL visam dar maior efetividade à proteção de direitos
fundamentais do consumidor, fortalecendo os órgãos de defesa do consumidor, promovendo o
consumo consciente e, principalmente, inibindo o superendividamento, limitando a concessão de
crédito e trazendo maior equilíbrio nas relações consumeristas.
A renegociação de dívidas, soluções alternativas para conflitos consumeristas, o texto focado
na proteção de direitos fundamentais, tais implementações fazem parte da evolução do direito e sua
readequação social. Muitas medidas ainda serão tomadas, sejam elas judiciais, administrativas, até
mesmo educacionais, visando sempre equilibrar a balança consumerista e proteger o consumidor de
boa-fé, não limitando o direito de consumir, mas sim promovendo o consumo com direitos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A globalização, aliada à fatores como a tecnologia e a evolução de práticas comerciais trouxeram


facilidades aos consumidores e inovações aos fornecedores de produtos e serviços para auferir renda
a seus negócios, contudo, trouxeram novos desafios ao ordenamento jurídico.
O exponencial crescimento do mercado e a condição de vulnerabilidade do consumidor frente a
práticas abusivas, tem levado ao agravamento do desequilíbrio nas relações consumeristas, afetando
negativamente não apenas o consumidor, mas a própria economia local.
Diante dessa nova realidade torna-se ainda mais imprescindível a busca por equilíbrio nas
relações de consumo e objetivando garantir direitos fundamentais ao consumidor, como a dignidade
da pessoa humana e as condições mínimas de subsistência.
A importância devida à educação financeira, que logrará frutos à médio e longo prazo, a
constante prática de soluções alternativas dos conflitos na renegociação de dívidas, a prevenção ao
superendividamento, são todos aspectos de fundamental relevância que estão sendo abordados pelo
Projeto de Lei 3515/15.
O referido PL apresenta pontos importantíssimos na busca pela efetividade jurisdicional da dignidade
da pessoa humana dos consumidores, limitando a oferta de crédito, visando proteger o consumidor,
fortalecendo PROCONs e demais órgãos de defesa do consumidor e também oferecendo soluções
alternativas para não só resguardar o consumidor superendividado, como inibir práticas abusivas
praticadas pelos detentores do crédito, complementando assim o Código de Defesa do Consumidor na
defesa de direitos fundamentais dos consumidores e equilibrando as relações de consumo.
O grande destaque do referido Projeto de Lei é a proteção contra o superendividamento que se
dá, dentre outros modos, como a possiblidade de renegociação de dívidas por meio de encontros
em audiências de conciliação e a implementação do chamado “plano de pagamento”, procedimento
semelhante à recuperação judicial de empresas, mas que visa resgatar o consumidor do poço de
dívidas em que se encontra, de forma digna e justa.
O PL 3515/15 ainda não é uma realidade e talvez apresente lacunas que só serão vislumbradas
após sua aprovação, porém, já é um marco na defesa dos direitos consumeristas, por “atualizar” o Código
de Defesa do Consumidor. Não vislumbrando criar novos direitos, mas efetivar os pré-existentes, não
limitando, portanto, a garantia de consumir, mas promovendo o consumo com garantias.

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set. 2019

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nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e o art. 96 da Lei
nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do
crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.
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533
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O SISTEMA PENITENCIÁRIO DIANTE DA PANDEMIA:


OS NEO-MISERÁVEIS SITIADOS AO SUL DO SUL
DA QUARENTENA DURANTE A EXCEPCIONALIDADE DA EXCEÇÃO

Luan Fernando Dias250


Maria Aparecida Lucca Caovilla251

RESUMO: Com o presente estudo objetivou-se verificar como o Estado está respondendo à pandemia
que atravessamos, para com o sistema penitenciário. Dentre aqueles que se encontram “ao sul da
quarentena”, foram levantados os números daqueles que podem ser considerados como os “sitiados
ao sul do ‘sul da quarentena’”. Foram também analisadas as políticas públicas adotadas e cogitadas
neste período de “excepcionalidade da exceção” no sistema penitenciário. Percebe-se que o Estado e o
sistema penitenciário não estavam e ainda não estão preparados para a pandemia e que as unidades
prisionais tem enfrentado grandes dificuldades para atender ao dever de proteção da vida e integridade
dos presos, e que não tem conseguido fazê-lo sem limitar direitos fundamentais, constitucionais e
internacionais dos encarcerados, e sem realizar mudanças drásticas que atingem sua qualidade de vida.

Palavras-chave: Pandemia. Políticas Públicas. Sistema Penitenciário.

INTRODUÇÃO

Vivenciamos ao longo deste ano de 2020, sem qualquer margem de dúvida, um episódio impar na
história contemporânea da humanidade. O período é sem precedentes e as mudanças experimentadas
por todos nós abrangem todos os possíveis aspectos de nossas vidas, incluindo as formas de nos
relacionarmos com os outros, estudarmos, trabalharmos, consumirmos, e nos comunicarmos.
Máscaras, álcool gel e tecnologias de telecomunicação tiveram um crescimento exponencial em
suas demandas. O álcool em gel, que já fazia parte da lista de compras de instituições e algumas famílias
brasileiras, especialmente depois do surto de H1N1, ocorrido em 2009, teve um aumento de 5.000%
(cinco mil por cento) em suas vendas (MARINS ,2020). As máscaras, em função da grande procura,
registraram um reajuste de até 4.000% (quatro mil porcento) no valor do produto (TÚLIO, 2020). As
ações da startup americana Zoom Video Communications, proprietária do aplicativo Zoom, que divide o
mercado com o Skype, da Microsoft, o Hangouts e o Meet, do Google, e que serve para conectar diversas
pessoas em uma reunião a distância em tempo real, diante da pandemia do coronavírus (Covid-19),
tiveram uma valorização de 60% (sessenta por cento) em seu valor, enquanto o mercado financeiro, de
forma geral, chegou a desabar globalmente e passou por um período de insegurança (AGRELA, 2020).
São exemplos de produtos e serviços que não faziam, até então, parte dos hábitos de consumo
da maioria das pessoas e que, de forma repentina, passaram a ser considerados itens essenciais e
adquiridos por muitos.
O momento foi e ainda é de virtualização das relações, de distanciamento social e de cautela.
Estamos diante de período que é definido por Boaventura de Sousa Santos (2020) como sendo de
excepcionalidade da exceção.
Todavia, esse momento não tem sido sentido e ultrapassado por todos da mesma forma. Aqueles
que segundo definição de Boaventura encontram-se a sul da quarentena, ou seja os integrantes dos

250 Mestrando em Direito pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó, sob a linha de pesquisa
Direito, Cidadania e Socioambientalismo (2020); pós-graduando em Psicologia Jurídica pela Universidade do Oeste de Santa
Catarina - UNOESC (2019). E-mail: luan.dias@unoesc.edu.br.
251 Doutora em Direito (2015) na área de concentração Direito, Política e Sociedade e Mestre em Direito (2000) pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação
(Mestrado) em Direito da Unochapecó. E-mail: caovilla@unochapeco.edu.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

grupos que “padecerem de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com
ela” (SANTOS, 2020), certamente suportam-na de forma mais árdua e dolorosa e possuem dificuldade
em cumprir com as recomendações dos órgãos de saúde. Isso quando não estão até mesmo totalmente
impossibilitados de atendê-las.
A desigualdade se mostra de forma ferina e ferrenha fazendo com que a pandemia seja mais
pesadas para determinadas categorias ou agrupamentos sociais, especialmente para (a) as mulheres;
(b) os trabalhadores precários, informais, e autônomos; (c) os trabalhadores da rua; (d) os sem-teto, a
populações de rua; (e) os moradores das periferias pobres das cidades, das favelas; (f) os segregados
em campos de refugiados, imigrantes indocumentados e as populações deslocadas internamente;
(g) os deficientes; (h) os idosos; (i) as pessoas com problemas de saúde mental, nomeadamente
depressão; (j) e os presos; dentre outros (SANTOS, 2020).
A quarentena acaba sendo suportada por cada um destes agrupamentos de forma diversa
daquela que é experimentada pelos demais, em função especialmente de segregações, exclusões e
preconceitos aos quais já se encontravam submetidos.
O que é mais cruel, todavia, é que o possível perecimento, ainda que de parcela significativa de tais
extratos sociais, é por alguns considerado como tolerável. São seres humanos cuja identidade e dignidade
cederá lugar a um mero número que poderá integrar a lista de mortos em função da pandemia, tanto nos
noticiários como nas estatistas oficiais; sem que isso importe para alguns (DIAS; CAOVILLA, 2020).
É a lamentável aceitação do darwinismo social, que pode ser compreendido, segundo Aragon
(2017), como sendo a teoria evolucionista social cunhada por Herbert Spencer, resultante da aplicação,
quiçá indevida, das teorias biológicas de Charles Darwin às relações sociais e institucionais humanas,
o que é feito no afã de se tentar justificar a supremacia de determinados extratos ou agrupamentos
sociais sobre outros, num pseudo contexto natural de luta pela própria sobrevivência.
O darwinismo social é, portanto:

(...) teoria social, baseada em uma brutal luta pela existência (...) que pleiteava que a guerra
dos fortes contra os fracos, dos ricos contra os pobres, deveria seguir seu curso natural, pois
seria através dela que a sociedade humana alcançaria aquele patamar de pleno desenvolvimento,
purgando-se dos pobres e dos fracos. (STRAUSS; WAIZBORT, 2008)

Trata-se, em outras palavras, do “uso da teoria evolucionista para apresentar a pobreza como
algo inevitável” (GOULD, 1991, p. 111, apud STRAUSS; WAIZBORT, 2008), e para se justificar as
consequências dela advindas como sendo naturais, ainda que perniciosas e devastadoras.
A teoria acaba emergindo, especialmente nos debates acadêmicos e análises dos especialistas,
diante do atual cenário que atravessamos, e ante algumas “afirmações (...) que, sem rodeios,
consideram a morte de idosos e pessoas frágeis perdas colaterais, menos importantes do que manter
os negócios” (GELEDÉS - INSTITUTO DA MULHER NEGRA, 2020a) e a economia ativa.
Almeida (2020) lembra-nos e sustenta que:

Historicamente no capitalismo, nas pandemias geralmente surge esse discurso de descarte de corpos.
Na gripe espanhola aconteceu a mesma coisa. Não é novo na história colocar uma escolha entre a
fome e a peste. Agora isso está muito evidente. Não dá para sustentar a vida e o sistema ao mesmo
tempo. (...) É preciso hierarquizar as vidas. É uma grande contradição. Mais do que uma imoralidade,
é uma tentativa desesperada de preservar o funcionamento do sistema tal como ele é hoje.

Tais discursos, todavia, só encontram terreno fértil em função da clara evidencia do enraizamento
em nossa sociedade do que Luciano Oliveira (1996, apud DIAS, 2013) considera ser um sentimento de
hostilidade em relação aos segmentos menos favorecidos, os quais, no cenário de exclusão social em que se
encontram inseridos, seriam indivíduos “sem lugar no mundo”, os quais ele nomeia como “neo-miseráveis”.
Esses neo-miseráveis dos dias atuais são justamente:

Os pobres, doentes, desempregados, idosos, ou seja, aqueles indivíduos que não podem comprar,
vender, emprestar, consumir, etc. -. Esta massa “imprestável” para o mercado, o capital, que só
representa despesas, não lucros (este é o significado da âncora fiscal). E aqui é onde entra a
tese da necropolítica, que se vale do argumento de Foucault, para dizer que vem ocorrendo um
extermínio deliberado de pessoas, seja em países pobres ou entre os pobres de alguns países, no
sentido de uma limpeza não só étnica, mas também social. (ZAIDAN, 2020).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Ou seja, os nossos neo-miseráveis, são todos aqueles que se encontram hoje a sul da quarentena.
São aqueles que não fazem ideia do que é o Zoom, que não conseguiram comprar álcool gel, e que
usam máscaras improvisadas, confeccionadas por si mesmo com alguma sobra de tecido de alguma
roupa não mais usada.
Partindo de tais premissas conceituais, ousaríamos ainda dizer que possuímos, dentre os neo-
miseráveis, alguns que estão mais ao sul do sul da quarentena, posto que sitiados em locais de ainda
mais difícil acesso e onde o risco de que um eventual contágio seja ainda mais catastrófico é maior
que dos demais extratos sulistas identificados por Boaventura de Sousa Santos (2020).

1 OS AO SUL DO SUL DA QUARENTENA

Os neo-miseráveis sitiados ao sul do sul da quarentena são, segundo dados mais recentes do
Infopen252, 748.009, dos quais 362.547 encontram-se no regime fechado, 133.408 no semiaberto,
25.137 no regime aberto (mas segregados), 222.558 presos provisoriamente, 250 em tratamento
ambulatorial e 4.109 cumprindo medidas de segurança em hospitais de custódia (BRASIL, 2019a).
Em Santa Catarina, os números seriam de 23.470, dos quais 11.840 encontram-se no regime
fechado, 5.891 no semiaberto, 2 no regime aberto (mas segregados), 5.686 presos provisoriamente,
51 em tratamento ambulatorial e, supostamente, ninguém cumprindo medidas de segurança em
hospitais de custódia (BRASIL, 2019b).
Os números reais, todavia, certamente são maiores que os registrados pelo Infopen. Tomando-se
por base os dados de Santa Catarina, percebe-se que não há registro de cumprindo medidas de segurança,
quando é público e notório que o estado possui Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, que já
teve (não sendo necessariamente sua maior ocupação) 120 internos (SANTA CATARINA, 2020).
Segundo dados constantes do World Prison Brief (WPB), base mantida pelo Institute for Crimine
& Justice Policy Research (ICPR), da Birkbeck University of London, o Brasil é o terceiro pais no mundo
dentre os que possuem maior número de pessoas presas253 (ICPR - INSTITUTE FOR CRIMINE & JUSTICE
POLICY RESEARCH, [2019 ou 2020a]).
E diferentemente das representações de presídios dos filmes norte-americanos [que já foram em
partes descontruídas por produções nacionais como Carandiru (2003)], as celas de nossas unidades
prisionais são lotadas, não há cama para todos os presos, e em algumas unidades sequer há espaço para
que todos possam se deitar ao mesmo tempo ao chão (HUMAN RIGHTS WATCH, [entre 1998 e 2018]).
As condições são insalubres, e potencializam o risco de contaminação e a proliferação de
doenças. Segundo Mello (2020) “estima-se que o risco de contágio de tuberculose nos presídios, por
exemplo, seja 30 vezes maior do que o risco verificado na população comum.”.
Mello (2020) traça o perfil deste segmento de neo-miseráveis e das condições a que estão expostos:

As pessoas encarceradas já têm as vidas marcadas pela ausência de políticas de saúde, educação,
habitação e emprego, para dizer o mínimo. Como é o ambiente prisional? É insalubre, lotado, sem
ventilação, tem problemas advindos da inconstância no fornecimento de água. Em algumas unidades
as celas são projetadas para 12 pessoas, mas são ocupadas por 50 ou 60. O atendimento médico é
precário e os serviços técnicos de enfermagem, serviço social e psicologia sofrem em virtude de uma
organização que não conta com plano de cargos e salários nem formação continuada dos servidores,
também sujeitos à precariedade das unidades prisionais. Como podemos ver, as condições são
propícias ao desenvolvimento e contágio de doenças dos mais diversos tipos. Ainda que houvesse
servidores suficientes para atender as pessoas doentes nas unidades prisionais, de nada adiantaria,
porque elas, mesmo depois de atendidas − vejam bem, não quero dizer pessoas tratadas ou cuidadas,
mas apenas atendidas −, continuam no mesmo lugar onde desenvolveram as doenças.
A tuberculose, a sarna, o HIV e a sífilis são doenças comuns e não tratadas em muitas unidades
prisionais no Brasil. Já sabemos quais são os fatores que contribuem para desenvolvimento e
transmissão dessas doenças.

252 “Criado em 2004, o Infopen compila informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, por meio de um formu-
lário de coleta preenchido pelos gestores de todos os estabelecimentos prisionais do país com a finalidade de diagnóstico
da realidade prisional brasileira.” (BRASIL, 2020a)
253 O instituto utilizou, para o ranqueamento, os dados do Infopen do primeiro semestre de 2019. (ICPR - INSTITUTE FOR
CRIMINE & JUSTICE POLICY RESEARCH, [2019 ou 2020b])

536
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Ou seja, é notável a ineficácia dos programas de saúde nas prisões até mesmo diante de doenças
que já são há muito conhecidas e com tratamentos e protocolos clínicos padronizados. E se “o cárcere
já é uma máquina mortífera sem a Covid-19, (...) com este vírus a situação vai piorar.” (SILVIA, 2020).
Em que pese o direito à saúde seja garantido à todos, inclusive àqueles que se encontram privados de
sua liberdade, e se trate de um direito fundamental com previsão expressa na Declaração Universal de Direitos
Humanos (ONU, 1948) e em nossa Carta Magna (BRASIL, 1988); e cuja concretização seja também preconizada
nos planos de políticas públicas tanto do Ministério da Justiça, quanto do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008.
BRASIL, 2014); de um modo geral ainda há uma falta de zelo e atenção com a saúde dos encarcerados em nos-
so país, e isso em situações de normalidade; pois é uníssono que o cárcere é responsável tanto pela produção
quanto pelo agravamento de problemas de saúde física e mental dos presos, que sem o devido acompanha-
mento, tem o seu direito à saúde incontestavelmente violado (CONSTANTINO; ASSIS; PINTO, 2016).
Não se descura que estamos tratando de um agrupamento de indivíduos que infringiram as
leis; de um conjunto de pessoas dentre as quais se encontram inclusive os responsáveis por crimes
considerados bárbaros, como estupros e homicídios; e muitos criminosos são, inclusive, reincidentes.
Todavia, ainda que estivéssemos nos referindo única e exclusivamente à homicidas e estupradores
contumazes, não podemos esquecer que a pena que deve ser suportada por cada um deles é tão
somente aquela que lhes foi imposta pelo juiz natural. A submissão de qualquer ser humano, por mais
“delinquente” ou “degenerado” que eventualmente seja, a qualquer espécie de tratamento degradante,
torna os responsáveis por essa submissão também violadores das leis e de preceitos fundamentais.
A violação da lei não permite que sejam sonegados os direitos do preso, que decorrem de sua
dignidade humana, pois como bem nos lembra Robert Alexy, a dignidade da pessoa humana é:

Atribuída às pessoas, independentemente das situações e condições em que se encontram, ou seja, a


dignidade humana também se destina às pessoas que cometeram os crimes mais cruéis, a exemplo
de assassinos e terroristas, pois mesmo aqueles que violam os direitos dos seus semelhantes, são
reconhecidos como pessoas que devem ter seus direitos preservados (ALEXY, 2015, p. 217).

E complementa Sarlet (2013, p. 37) ao asseverar que a dignidade da pessoa é:

A qualidade inerente e distinta de cada ser humano [que] o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando num complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa contra qualquer ato de cunho degradante e desumano.

E nesse norte, Nunes Júnior (2004, p. 78) afirma que o direito à saúde é o pressuposto básico
para que haja dignidade humana e acrescenta que:

O princípio da universalidade aponta que todo ser humano, só por sê-lo, tem direito de acesso ao sistema
público de saúde. Tal acesso, contudo, há de se dar em compasso com o princípio republicano, que proíbe
tratamento diferenciado aos cidadãos. Só o acesso igualitário assegura a correta distribuição dos recursos
públicos na área da saúde, promovendo, portanto, a equidade no sistema” (NUNES JÚNIOR, 2004, p. 79).

A observância de tais preceitos e a concretização do direito à saúde dos presos (dentre tantos
outros), todavia, já era um desafio colossal para o Brasil antes da pandemia, e prova disso, à exemplo
de inúmeros outros episódios veiculados pela imprensa nacional ou denunciados pelas entidades de
proteção dos direitos dos presos, é o caso dos detentos de Roraima, que estavam sendo “consumidos
vivos” por bactérias e cujo atendimento médico só foi prestado quando alguns já apresentavam
paralisia em membros e outros pele em estágio de decomposição (LEITE, 2020).
Portanto, não é à toa que órgãos de defesa dos direitos humanos ficaram e continuam preocupados
com as possíveis consequências, desse momento de excepcionalidade da exceção, aos neo-miseráveis
sitiados ao sul do sul da quarentena.

2 O SISTEMA PENITENCIÁRIO DIANTE DA PANDEMIA:

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já no dia 17 de março editou a Recomendação nº 67, através
da qual expediu orientações aos Tribunais e magistrados quanto a adoção de medidas preventivas

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

à propagação da infecção pelo Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.
Dentre as medidas recomendadas extrai-se: a) aplicação preferencial de medidas socioeducativas
em meio aberto à menores infratores; a revisão das decisões que determinaram a internação provisória de
adolescentes; e a reavaliação de medidas socioeducativas de internação e semiliberdade; b) a reavaliação
das prisões provisórias; c) a suspensão do dever de apresentação periódica ao juízo das pessoas em
liberdade provisória ou suspensão condicional do processo; d) a realização de novas prisões preventiva
apenas em casos de máxima excepcionalidade; e) concessão de saída antecipada dos regimes fechado
e semiaberto; f) concessão de prisão domiciliar em relação a todos as pessoas presas em cumprimento
de pena em regime aberto e semiaberto; g) colocação em prisão domiciliar de pessoa presa com
diagnóstico suspeito ou confirmado de Covid-19; h) suspensão temporária do dever de apresentação
regular em juízo das pessoas em cumprimento de pena no regime aberto, prisão domiciliar, penas
restritivas de direitos, suspensão da execução da pena (sursis) e livramento condicional; i) colocação
em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia (BRASIL, 2020b).
A recomendação, que teve como foco a redução do fluxo e ingresso no sistema prisional e
socioeducativo, medidas de prevenção na realização de audiências indispensáveis, a suspensão,
em caráter excepcional, das audiências de custódias, entre outros aspectos, ganhou projeção
internacional, tendo sido divulgada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
como exemplo de estratégia de prevenção à propagação do novo coronavírus no sistema de justiça
penal e socioeducativo. Foi apontada como um padrão de boa prática a ser seguido (ONU, 2020).
A divulgação da Recomendação do CNJ foi realizada pela ONU no afã de que servisse “de
referência e inspiração para outros países que buscam adotar medidas nesse sentido.” (ONU, 2020).
Ocorre, todavia, que estamos diante de mera recomendação, que, portanto, não possui efeito cogente
e que na prática surtiu resultado muito aquém daquele que parece emanar da vontade do seu legislador.
Em que pese o Departamento Penitenciário Nacional estime que cerca de 30 mil presos tenham sido
postos em liberdade em função da recomendação (DEPEN, 2020), na prática se verifica que, em regra,
estão sendo postos em liberdade apenas as pessoas presas que se enquadrem no grupo de risco e que
estejam respondendo por crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa (BORGES, 2020)
São consideradas condições de risco:

• Idade igual ou superior a 60 anos;


• Cardiopatias graves ou descompensados (insuficiência cardíaca, cardiopatia isquêmica);
• Pneumopatias graves ou descompensados (asma moderada/grave, DPOC)
• Imunodepressão;
• Doenças renais crônicas em estágio avançado (graus 3, 4 e 5);
• Diabetes mellitus, conforme juízo clínico;
• Doenças cromossômicas com estado de fragilidade imunológica;
• Gestação de alto risco (BRASIL, 2020c).

Excetuados, portanto, os grupos de risco, em regra as prisões preventivas estão sendo mantidas e con-
tinuam sendo decretadas (SANTA CATARINA, 2020); não estão sendo identificadas concessão de saídas ante-
cipadas dos regimes fechado e semiaberto, salvo extrema proximidade em relação à data já prevista; e, em
regra, não há concessão de prisão domiciliar em relação a todos as pessoas presas em cumprimento de pena
em regime aberto e semiaberto; contrariando-se, portanto, disposições da Recomendação exarada pelo CNJ.
E o coronavírus também adentrou no cárcere. Segundo dados do Depen, até meados de setembro
deste ano de 2020, já haviam sido registrados 110 óbitos em função do vírus, 26.038 casos confirmados
e outros 4.749 casos ainda suspeitos. Dos casos confirmados, 24.846 presos já se recuperaram. Os
números de contaminados, todavia, podem ser muito maiores, posto que, em todo o sistema penitenciário,
foram realizados apenas 85.329 testes (BRASIL, 2020e; BRASIL, 2020d;). O primeiro contágio dentre
presos se deu no Complexo da Papuda, em Brasília, (PENITENCIÁRIA, 2020); e a primeira morte foi
registrada no Rio de Janeiro (BRASIL, 2020) e a segunda em São Paulo (SÃO PAULO, 2020).
O atual cenário se deve, em boa parte, ao fato de que além de não acolher-se integralmente as
recomendações do CNJ, medidas outras de restrição de direitos dos presos foram adotadas em todo
o país, dentre as quais as proibições de visitas, suspensão de correspondências física, suspensão do
trabalho interno e externo, suspensão do recebimento de alimentos e itens (as chamadas “sacolas” ou
“compras”), trazidos pelas famílias, suspensão de cursos, dentre outras (BRASIL, 2020f).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

As limitações realizadas, notadamente, violam as Regras de Mandela (Regras Mínimas para


o Tratamento de Prisioneiros) (ONU, 2015) e a previsões da Lei de Execução Penal (LEP) (BRASIL,
1984), todavia, o são sob a fundamentação da proteção da saúde, segurança e integridade dos presos
custodiados (BRASIL, 2020g).
O que se percebe e já é alertado por atores nacionais e internacionais é que o remédio legal que
vêm sendo ministrado contra o coronavírus em alguns estados do Brasil, à exemplo do que ocorre
em alguns outros países, pode inclusive resultar em mais prejuízo que benefícios para os direitos
humanos dos presos (CHARLEAUX, 2020).
Cientes das implicações das limitações aos direitos dos presos, e das repercussões que surgem,
e que só não são maiores em função do efetivo risco que correm os detentos em caso de uma eventual
contaminação em massa, medidas alternativas por parte de alguns estados federativos foram e estão
sendo adotadas, com o afã de se reestabelecer a observância dos preceitos mínimos das Regras de
Mandela, especialmente no que tange ao contato dos presos com seus familiares.
Em que pese o Brasil não tenha sido tão inovador quanto a Itália, que chegou a realizar a aquisição
de mais de 1.600 telefones celulares para disponibilizar aos seus presos e ainda iria adquirir outros
1.600; ou quanto a Espanha, que adquiriu 230 smartphones e os distribuiu entre as prisões para que
os presos possam fazer chamadas de vídeo através do WhatsApp (BRASIL, 2020h); mudanças nas
políticas prisionais estão sendo implementadas nos estados da federação, para que o contato, ainda
que telefônico, possa ser realizado entre os detentos e suas famílias, que anseiam por notícias dos seus.
As chamadas medidas concessivas realizadas pelos Departamentos Prisionais dos estados
compreendem basicamente desde: a) o restabelecimento de correspondência postal em alguns estados; b)
o repasse de informações às famílias por meio de interpostas pessoas (agentes, assistentes sociais, etc.);
c) a possibilidade de envio de correspondências eletrônicas, a ser encaminhadas às unidades prisionais,
que as imprimem e entregam aos detentos; d) contato telefônico com os presos, mediante ligação para
linhas que foram disponibilizadas pelas unidade prisionais; até e) em unidades mais modernas e afinadas
aos direitos humanos, a realização de vídeo chamadas e vídeo conferências (BRASIL, 2020i).
Todavia, não há como considerar-se que tais medidas sejam efetivas concessões, mas no máximo
readequações necessárias e implementadas, ante as restrições involutivas já realizadas ante a pandemia
(DIAS; CAOVILLA, 2020), para fins de cumprimento do disposto no item 58 das Regras de Mandela:

Regra 58
1. Os reclusos devem ser autorizados, sob a necessária supervisão, a comunicar periodicamente
com as suas famílias e com amigos:
(a) Por correspondência e utilizando, se possível, meios de telecomunicação, digitais, eletrônicos
e outros; e
(b) Através de visitas.
2. Onde forem permitidas as visitais conjugais, este direito deve ser garantido sem discriminação
e as mulheres reclusas devem exercer este direito nas mesmas condições que os homens. Devem
ser instaurados procedimentos e disponibilizados locais, de forma a garantir o justo e igualitário
acesso, respeitando-se a segurança e a dignidade. (ONU, 2015)

Todavia, enquanto medidas concessivas são realizadas de um lado, medidas cruéis e deploráveis são
cogitadas de outro, demonstrando que a involução pode ter cogitações ainda mais involutivas em seu amago.
A involução da involução veio à tona:

No dia 17 de abril de 2020, [quando] o Diretor-Geral do Departamento Penitenciário Nacional, enviou


ofício n. 806/2020/GAB-DEPEN/DEPEN/MJ ao Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária expondo que, em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus e a ocorrência
do estado de calamidade pública, devem ser iniciadas ações para provimento de vagas temporárias e
emergenciais em unidades prisionais. Ainda, informa que existe a possibilidade de serem criadas vagas
por meio de instalações provisórias com estruturas metálicas, uso de contêineres (containers) adaptados
e outras estruturas análogas. Por fim, apresenta proposta de minuta de resolução para a flexibilização
das regras de arquitetura penal. (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO ET AL, 2020).

Em suma, enquanto em Portugal as forças armadas construíram 05 hospitais de campo, um em


cada prisão, criando uma oferta total de 150 leitos (BRASIL, 2020h), no Brasil cogita-se o isolamento
de presos que venham a ser contaminados em “celas micro-ondas” (CONSELHO, 2009).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A alcunha não é recente. Advém de um período em que uso de containers para aprisionamento
de presos em condições extremamente degradantes e deploráveis crescia no Brasil, e que perdurou
de forma um tanto quanto indiscriminada até meados de 2010 quando a sexta turma do Superior
Tribunal de Justiça no HC 142513/ES, reconheceu o emprego de contêiner como cela como inadequado
e ilegítimo, como um caso de manifesta ilegalidade (BRASIL, 2010).
O que se percebe, portanto, é que, enquanto a Portaria Interministerial nº 7, exarada em conjunto
pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública e o Ministério da Saúde, que dispõe sobre as medidas de en-
frentamento da emergência de saúde pública, no âmbito do sistema prisional, recomendou que os espaços
de isolamento dos contaminados contivessem porta fechada e ventilação adequada; suprimentos para a
realização de etiqueta respiratória; e propicie meios para higienização constante das mãos, inclusive com
água e sabão (BRASIL, 2020j); autoridades do Sistema Penitenciário nacional cogitaram segregar os presos
contaminados em ambientes que a prática já demonstrou não dispor de isolamento térmico (aliado ao fato
de que os contêineres em regra ficariam expostos ao tempo, possivelmente sem qualquer material que isole
o calor ou o frio), cujas entradas e saídas de ar são muito pequenas, que possuem espaço insuficiente para
o número de pessoas, e não dispõem de chuveiros e estruturas sanitárias adequadas (JUSTIÇA, 2019).
As temperaturas registradas em estados do norte do país, quando do uso de tais estrutura,
alcançaram a marca 45º C, de onde adveio a alcunha “celas micro-ondas” (CONSELHO, 2009).
Desta feita, a utilização de tais estruturas sugeridas, ao que tudo indica, submeteria os
detentos, que já estariam, obviamente, com a saúde comprometida, ao desconforto térmico das altas
temperaturas (“micro-ondas”) nos estados do norte, e à baixas (“freezers”) nos estados do sul (onde
as temperaturas consabidamente caem muito ao longo do inverno).
Tão logo a proposição foi apresentada, Defensorias Públicas e órgãos de proteção e observação
dos direitos humanos de diversos estados (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO ET AL,
2020), assim como a OAB, manifestaram seu inconformismo com a proposição, “ainda que temporária
e emergencialmente alvitrada para o enfrentamento da pandeia em curso” (OAB, 2020), pois a eventual
implementação afrontaria regras constitucionais e internacionais de Direitos Humanos.
Até o momento a apreciação da utilização das aludidas estruturas ainda não foi apreciada. E o
Sistema Penitenciário Nacional e as Secretarias de Segurança Pública dos Estados estudam a retomada
das visitas presenciais aos detentos.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste momento de exceção e sem precedente, em decorrência de nossas raízes históricas, ideológi-
cas, políticas e culturais, involuções nas políticas de segurança pública e prisional, como as mencionadas
neste trabalho, acabam por emergir, distanciando-nos, e muito, de um padrão ou modelo de boa conduta a
ser seguido, como quis nos fazer ser a ONU, quando da apresentação da Recomendação do CNJ ao mundo.
A Recomendação, propalada internacionalmente como um modelo a ser replicado, apesar de possuir
orientações que, se efetiva e amplamente implementadas, diminuiriam o número de nossa população carcerá-
ria (especialmente com relação aos presos provisórios) e, portanto, o número de pessoas em risco acentuado,
acabou não alcançando a amplitude e abrangência que aparentava ter lhe dado o legislador da norma.
E, não suficiente, de encontro à Recomendação e também a todas as orientações exaradas
pelos órgãos de saúde, adveio a proposição da utilização de containers para a segregação dos presos
infectados, o que, se admitido, poderá nos levar a sermos apontados pela ONU como um modelo ou
padrão de conduta a não ser seguido por nenhum outro país.
Ainda que o momento seja, inegavelmente, de excepcionalidade da exceção, não podemos ser
tão sociais-darwinistas a ponto de admitirmos, a despeito da dignidade da pessoa humana e dos
preceitos de direitos humanos, e sem qualquer remorso, que os neomiseráveis que sitiamos ao sul do
sul da quarentena definhem e jazam, hipo ou hipertérmicos, em freezers ou micro-ondas metálicos
espalhados pelas unidades prisionais de nosso País.
O desencarceramento massivo também não é cogitado como solução. Alias, não temos uma
resposta pronta a ser apresentada. O problema, sem sombra de dúvidas, é complexo e multifacetário.
Em curto prazo, todavia, o tratamento igualitário e humanizado é uma alternativa, muito mais

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

adequada que o encarceramento em containers. E a fórmula já foi apresentada pelo CNJ.


Diante da contração da doença pelos encarcerados, basta que se siga os termos da exemplar
Recomendação, isolando-os (os que não tiverem cometido crimes com violência ou grave ameaça) em
suas residências, em prisão domiciliar e com o uso de tornozeleiras eletrônicas, as quais os estados,
em regra, já possuem.
A liberação de presos do regime semiaberto próximos da progressão para o aberto, e a revogação
de prisões provisórias (de crimes que não tenham sido cometidos com violência ou grave ameaça)
quiçá abririam suficiente número de vagas, que permitiriam o remanejamento de presos perigosos
que venham a ser contaminados e que não possam ser colocados em prisão domiciliar (em razão de
sua periculosidade) para outras celas ou alas.
Em longo prazo, por outro lado, o problema da criminalidade em si precisa ser repensado,
através de uma reestruturação das políticas públicas educacionais, assistenciais, previdenciárias,
habitacionais, de saúde e de segurança, para que o crime seja prevenido e reduzido, sendo esta a
melhor forma de diminuir a população carcerária.
Outrossim, não podemos ignorar a constante necessidade de se refletir e exigir o planejamento e a
implementação de políticas públicas penitenciárias adequadas à situação impar que atravessamos, que
devem estar devidamente afinadas com os preceitos e ditames dos direitos humanos e fundamentais
dos destinatários de tais políticas.
Infelizmente o que já se percebe, de forma muito clara, é que a todas as deficiências e mazelas
que nosso sistema penitenciário já possuía, foram somadas diversas outras, que emergiram das
dificuldades decorrente do dever do Estado de preservar a saúde e a integridade dos presos, sem
violar (ou, pelo menos, sem afrontar tanto) os direitos básicos e fundamentais que os encarcerados
continuam titularizando, independe da sua condição de encarcerados.
Ainda assim, não podemos permitir que, mesmo em se tratando de um momento de exceção,
essa parcela da população, seja ignorada pelo estado e pela sociedade.

REFERÊNCIAS

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545
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O USO DA TECNOLOGIA COMO MEIO DE MITIGAÇÃO


DOS EFEITOS DA PANDEMIA NA JUSTIÇA DO TRABALHO

Tânia Regina Silva Reckziegel254

RESUMO: O presente artigo aborda o uso da tecnologia na Justiça do Trabalho diante da necessidade do
isolamento social em vista da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), discorrendo sobre o lado positivo
que as ferramentas tecnológicas oferecem para as atividades ligadas à Justiça, principalmente como forma
de enfrentamento da crise pela qual todos estamos passando, mitigando seus efeitos. Apresenta os atos
normativos publicados pelo CNJ - Conselho Nacional de Justiça, que uniformizaram o funcionamento da
justiça neste período histórico. E, ainda, lança um olhar para o futuro, já que foi necessário alterar previsões
e paradigmas a este novo tempo, que permanecerão como uma forma de evolução no sistema de justiça.

Palavras-chave: Justiça do Trabalho. Uso da tecnologia. Resoluções. CNJ - Conselho Nacional de


Justiça. Pandemia de Covid-19.

INTRODUÇÃO

Vivemos na era digital e é inegável que o Poder Judiciário, nas últimas décadas, avançou sobremaneira
no uso de ferramentas tecnológicas, com o objetivo de prestar um serviço universal, eficiente, célere e
satisfatório. Afora todos os esforços para garantir o acesso à justiça a todos, o ano de 2020 trouxe a
necessidade de uma nova perspectiva em termos de prestação jurisdicional frente à pandemia do novo
coronavírus. Mais do que nunca, foi necessário lançar mão de todos os recursos tecnológicos disponíveis.
Como forma de evitar a paralisação de grande parte das funções jurisdicionais cuja prestação seria
inviável sem o uso da tecnologia, em virtude da pandemia, foram criadas normativas que regulamentaram a
realização de audiências, sessões e mediações à distância. O objetivo foi garantir a continuidade da prestação
jurisdicional conforme previsto na Constituição Federal da República, em seu Artigo 93, inciso XII, que diz que
“A atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo
grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente”.
O objetivo do artigo, dessa forma, é apresentar as diferentes formas do uso da tecnologia,
especialmente no âmbito da Justiça do Trabalho, e como essa possibilidade impactou positivamente
o andamento processual, bem como garantiu a continuidade do trabalho, sem se descuidar da saúde
dos profissionais do Direito e dos jurisdicionados.
A pandemia, de certa forma, exigiu a união de esforços em prol de maior adoção de tecnologia,
demonstrando que a transformação digital do Judiciário, ainda que com espaço para evoluir, foi capaz
de fazer frente a este especial momento de nossa história.
Num segundo momento, são apresentadas as Resoluções do CNJ - Conselho Nacional de Justiça, que
contribuíram para uniformizar o funcionamento da Justiça do Trabalho durante a pandemia em todo o país.

1 O USO DA TECNOLOGIA NA JUSTIÇA DO TRABALHO DURANTE A PANDEMIA

Há várias décadas, o Poder Judiciário vem ampliando o uso da tecnologia, com resultados cada vez mais
satisfatórios à medida em que ocorre a ampliação desta prática no dia-a-dia da função jurisdicional. Em uma
retrospectiva histórica, podemos pensar neste fenômeno em quatro fases, sendo o primeiro denominado

254 Desembargadora do Trabalho (TRT da 4.ª Região - RS). Conselheira do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Doutoranda
em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul
- UNISC. Possui Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Especialista
em Gestão Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. E-mail: taniasilvareck@gmail.com.

546
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Direito 1.0, em que as petições eram redigidas à mão ou com máquinas de escrever e o controle das
publicações era feito a partir de recortes do Diário Oficial. Em seguida, adveio o chamado Direito 2.0,
com o aparecimento dos editores de texto e planilhas, que promoveu mais rapidez para executar a rotina
básica. O passo seguinte foi a criação dos softwares jurídicos, aplicativos, processo eletrônico e certificado
digital, realidade que marcou o Direito 3.0. Por fim, chegamos ao Direito 4.0255, com o desenvolvimento
da tecnologia, incluindo inteligência artificial, que permitiu ganho de tempo para os operadores do Direito
dedicarem na construção de estratégias, e argumentações para pedidos e decisões.
Na era digital, é impossível desvincular o uso da tecnologia da prestação de serviços. Atualmente,
praticamente tudo pode ser feito de forma virtual. Aproveitar os inúmeros benefícios dos recursos
tecnológicos à disposição e muitos outros que ainda estão por vir é uma necessidade no meio jurídico,
ainda mais nessa época de pandemia.
Em notícia publicada no site do TST - Tribunal Superior do Trabalho, destacamos a afirmação da
Presidente do TST, Ministra Maria Cristina Peduzzi:

No painel de abertura do evento on-line “Democratizando o Acesso à Justiça”, realizado no dia 30


de julho de 2020 por videoconferência pelo CNJ - Conselho Nacional de Justiça, a Presidente do
Tribunal Superior do Trabalho, Ministra Maria Cristina Peduzzi, assinalou que no atual contexto
da pandemia, a Justiça do Trabalho tem realizado não só a mediação e a conciliação processual
impositivas, mas também tem se valido das videoconferências por plataformas digitais para
realizar mediações pré-processuais e, assim, facilitado o acesso à Justiça por meio da tecnologia.
A Presidente do TST lembrou que, em março deste ano de 2020, Vice-Presidência do TST, com
o aval do CSJT - Conselho Superior da Justiça do Trabalho, disciplinou o uso da mediação e da
conciliação pré-processual, considerando o contexto do isolamento social e a facilidade que
representa, para as partes, requererem diretamente no site do TRT a designação de uma audiência
por videoconferência. “Um percentual significativo de acordos diretos tem sido efetivado, sem a
necessidade do ajuizamento da ação”, afirmou (TST, 2020).

Com relação à utilização da conciliação e da mediação online na Justiça do Trabalho, embora


conclusões mais definitivas possam ser feitas de forma consistente mediante a avaliação em um futuro
próximo, podemos afirmar que a ampliação do espaço de possibilidades para a solução de conflitos só
pode ser benéfica. Aproxima-se, neste particular, a Justiça do Trabalho da sua origem, a partir da criação
de juntas de conciliação e julgamento, que têm por objetivos harmonizar as relações de trabalho, ou, na
linguagem atual, com o propósito de pacificar os conflitos sociais pela implantação de uma nova cultura.
Trata-se de um caminho sem volta; a tecnologia no Poder Judiciário é uma realidade que deixa
a todos - operadores e usuários do sistema de Justiça - os benefícios de seu emprego e o encargo
de vigiar para seu constante aprimoramento. “A cada paradigma que surge no mundo do trabalho, o
Direito do Trabalho sofre reflexos e precisa atualizar suas normas para oferecer segurança jurídica à
sociedade e garantir o desenvolvimento econômico”. (BELMONTE; MARTINEZ; FREDIANI, 2020).
Com efeito, mediante as particularidades da Justiça do Trabalho, cujo ponto mais característico é a
proximidade com as partes em litígio através de audiências e conciliações presenciais, há de se estar atento
às considerações do juiz do Trabalho da 21.ª Região (RN) Hermann de Araujo Hackradt (CONJUR, 2020):

Cabe ao Judiciário, e essencialmente ao que lida com um Direito de vertente tutelar, e de


sensibilidade social, atuar na limitação das explorações econômicas que relativizam questões
essenciais de proeminência e salvaguarda dos direitos humanos. Não se pode, a usufruto de uma
situação de desagregação ampla no campo social, relativizar garantias e direitos do trabalhador
para superdimensionar direitos de natureza econômica. Sob argumentos de comoção pública, não
podemos tornar mais valorosa a economia que a vida e a dignidade de quem já trabalhou, perdeu
o emprego, porém não recebeu, em tempo regular do contrato, o que lhe era devido. O verbo no
passado é realidade processual, já que as demandas trabalhistas normalmente só ingressam no
Judiciário quando da demissão do empregado, e sem os pagamentos legais.
As medidas regulatórias sobre a Covid-19 não se limitam a conferir, tão somente, proteção às empresas
durante a pandemia, tampouco devem ser objeto para conferir regalias aos empregadores, num plano de
disposição de direitos que pertence claramente aos trabalhadores. Essa inversão apresenta vício desde
a origem, já que as medidas excepcionais, lançadas para vigência nacional, foram criadas ao objetivo
de proteção do emprego e de trabalhadores, e não para a superioridade e prevalência da exceção de
proteção sobre o capital. Não há como referendar, neste momento, atos e postulações que não versam

255 O chamado “Direito 4.0” guarda paralelismo ao fenômeno da quarta revolução industrial, de onde advém a expressão
“indústria 4.0”. Sobre o tema vide SCHWAB: 2016.

547
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

sobre oportunidade processual evidente. Entre conceitos, há distinção incomunicável entre legitimidade
e oportunismo. A hermenêutica das medidas excepcionais veio na salvaguarda dos mais fracos. Eis a
questão: merece sobreviver o ser humano ou o patrimônio? Eis a conclusão: depois de 27 anos lidando
com o mundo do trabalho, uma pandemia e um vírus cruel, eu não tenho dúvidas da relevância humana.

Assim, em termos de tecnologia, a pandemia acelerou seu uso e seu desenvolvimento, considerando
que as inovações tecnológicas já vinham impactando o Judiciário antes da Covid-19. O necessário
isolamento social evidenciou as vantagens do trabalho remoto, por exemplo, com ganhos de eficiência
aos Tribunais. Apesar de todos os problemas enfrentados no país, o Judiciário seguiu funcionando, em
grande parte, devido ao uso das tecnologias, mesmo com todos os problemas advindos do seu uso, o
maior deles, sem dúvida, a dificuldade de acesso pelos menos favorecidos econômica e socialmente.

2 OS ATOS NORMATIVOS DO CNJ - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA DURANTE A PANDEMIA

E para que o Judiciário pudesse continuar funcionando durante a pandemia, os atos normativos
do CNJ - Conselho Nacional de Justiça foram essenciais para a uniformização dos procedimentos. Foram
exigidas atualizações frequentes das normas administrativas que regem o funcionamento dos Tribunais.
Como integrante do Grupo de Trabalho criado pelo CNJ para acompanhar as propostas de
normativos e resoluções para enfrentamento da crise sanitária no Judiciário e supervisionar as medidas
preventivas ao contágio pelo coronavírus tomadas pelos tribunais em todo o país, afirmo que temos
trabalhado intensamente para que o CNJ possa dar uma resposta rápida aos tribunais e à sociedade.
Entre as normas editadas neste período, destaco a Resolução do CNJ nº 322/2020, que facultou a
retomada das atividades presenciais do Poder Judiciário, de forma gradativa e sistematizada, a partir de
15 de junho. O CNJ deixa claro, no entanto, que os tribunais têm autonomia para deliberar sobre a volta
gradativa e organizada ao trabalho presencial, o que vai depender das condições sanitárias de cada região.
Passo a apresentar cada um dos atos normativos editados no período da pandemia:
Resolução 312/2020 (19/3/2020) - Altera o Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça
para acrescentar o art. 118-B, que amplia as hipóteses de julgamento por meio eletrônico. 
Entre outras questões, define que:

Em situações de emergência, de calamidade pública ou de manifesta excepcionalidade, assim


reconhecidas no respectivo ato convocatório, o Presidente do Conselho Nacional de Justiça poderá
convocar, a qualquer tempo, sessão extraordinária no Plenário Virtual (CNJ, 2020).

Resolução 313/2020 (19/3/2020) - Estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, regime de Plantão


Extraordinário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir
o contágio pelo novo Coronavírus - Covid-19, e garantir o acesso à justiça neste período emergencial. 
Destaque para o Art. 3.º, que estabelece a “suspensão do atendimento presencial das partes, advogados
e interessados, que deverá ser realizado remotamente pelos meios tecnológicos disponíveis” (CNJ, 2020).
Portaria 58/2020 (24/3/2020) - Institui Grupo de Trabalho destinado a elaborar parecer sobre a
realização de videoconferências no âmbito da justiça criminal e apresentar proposta de ato normativo
e protocolos técnicos voltados à regulamentação da temática. 
Em seu Art. 3.º, estabeleceu que “o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema
Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas - DMF prestará apoio e assessoramento
técnico para o desenvolvimento dos trabalhos previstos na Portaria” (CNJ, 2020).
Portaria 61/2020 (31/3/2020) - Institui a plataforma emergencial de videoconferência para
realização de audiências e sessões de julgamento nos órgãos do Poder Judiciário, no período de
isolamento social, decorrente da pandemia Covid-19. 
Em seu Art. 4.º, estabeleceu “que a Plataforma permitirá a gravação audiovisual do conteúdo da videocon-
ferência, e seu armazenamento, caso desejado, poderá ocorrer no sistema denominado PJe Mídias” (CNJ, 2020).
Resolução 314/2020 (20/4/2020) - Prorroga, no âmbito do Poder Judiciário, em parte, o regime
instituído pela Resolução nº 313, de 19 de março de 2020, modifica as regras de suspensão de prazos
processuais e dá outras providências. 
Em seu Art. 6.º, estabelece que:

548
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Sem prejuízo do disposto na Resolução CNJ 313/202, os tribunais deverão disciplinar o trabalho
remoto de magistrados, servidores e colaboradores, buscando soluções de forma colaborativa
com os demais órgãos do sistema de justiça, para realização de todos os atos processuais,
virtualmente, bem como para o traslado de autos físicos, quando necessário, para a realização de
expedientes internos, vedado o restabelecimento do expediente presencial (CNJ, 2020).

Resolução 317/2020 (30/4/2020) - Dispõe sobre a realização de perícias em meios eletrônicos ou


virtuais em ações em que se discutem benefícios previdenciários por incapacidade ou assistenciais, enquanto
durarem os efeitos da crise ocasionada pela pandemia do novo Coronavírus, e dá outras providências. 
Em seu Art. 1.º, § 2.º, estabelece que:

O perito poderá, expressamente, manifestar entendimento de que os dados constantes do


prontuário médico e a entrevista por meio eletrônico com o periciando são insuficientes para
formação de sua opinião técnica, situação em que o processo deverá aguardar até que seja viável
a realização de perícia presencial (CNJ, 2020).

Resolução 318/2020 (7/5/2020) - Prorroga, no âmbito do Poder Judiciário, em parte, o regime instituído
pelas Resoluções nº 313, de 19 de março de 2020, e nº 314, de 20 de abril de 2020, e dá outras providências. 
Em seu Art. 2.º, estabelece que:

Em caso de imposição de medidas sanitárias restritivas à livre locomoção de pessoas (lockdown)


por parte da autoridade estadual competente, ficam automaticamente suspensos os prazos
processuais nos feitos que tramitem em meios eletrônico e físico, pelo tempo que perdurarem
as restrições, no âmbito da respectiva unidade federativa (Estados e Distrito Federal) (CNJ, 2020).

Resolução 322/2020 (1/6/2020) - Estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, medidas para


retomada dos serviços presenciais, observadas as ações necessárias para prevenção de contágio pelo
novo Coronavírus - Covid-19, e dá outras providências. 
Estabelece, em seu Art. 2.º, § 4.º, que “será mantido, preferencialmente, o atendimento virtual,
na forma das Resoluções do Conselho Nacional de Justiça referidas no § 3.º deste artigo, adotando-se
o atendimento presencial apenas quando estritamente necessário” (CNJ, 2020.)
Resolução 329/2020 (30/7/2020) - Regulamenta e estabelece critérios para a realização de audiências e
outros atos processuais por videoconferência, em processos penais e de execução penal, durante o estado de ca-
lamidade pública, reconhecido pelo Decreto Federal nº 06/2020, em razão da pandemia mundial por Covid-19. 
Em seu Art. 18, estabelece que:

Deverá o magistrado ter especial atenção aos atos que envolvam violência doméstica e familiar
contra a mulher, crianças, adolescentes ou idosos e crimes contra a liberdade sexual, com a adoção
de salvaguardas e medidas adequadas para evitar constrangimento e revitimização, podendo
consultar as coordenadorias especializads do respectivo tribunal (CNJ, 2020).

Recomendação 70/2020 (4/8/2020) - Recomenda aos tribunais brasileiros a regulamentação


da forma de atendimento virtual aos advogados, procuradores, defensores públicos, membros do
Ministério Público e da Polícia Judiciária e das partes no exercício do seu Jus Postulandi (art. 103 do
NCPC), no período da pandemia da Covid-19. 
Em seu Art. 2.º, estabelece que “os tribunais deverão adotar, prioritariamente, a plataforma já
utilizada para a realização de audiências e sessões por videoconferência” (CNJ, 2020).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso da tecnologia, seja esta de automação ou com autonomia, é essencial para o funcionamento
do Poder Judiciário. Seu emprego traz inegáveis benefícios como facilidade, baixo custo e rapidez
na operacionalização dos processos, além de se mostrar mais flexível e condizente com situações
inesperadas, tais como a pandemia mundial do coronavírus.
Com a impossibilidade da convivência presencial, o ambiente virtual nos une e oportuniza a
continuidade de inúmeros procedimentos que de outra forma não seriam possíveis, em decorrência

549
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

das medidas de prevenção sanitária e confinamento. Dessa maneira, a atividade judicial, que já estava
em parte mediada pela tecnologia, especialmente pela automação do processo eletrônico, aprofunda
o emprego da tecnologia com a interação telepresencial e o uso da inteligência artificial.
Embora conclusões mais definitivas sobre a utilização da conciliação e da mediação online na
Justiça do Trabalho possam ser feitas de forma consistente mediante a avaliação em um futuro pró-
ximo, este texto autoriza concluir que a ampliação do espaço de possibilidades para a solução de
conflitos só pode ser benéfica.
De outra forma, há de se considerar o fato de a justiça ser uma atividade essencial, impondo a
organização de medidas par garantir seu funcionamento, vencidas, até o momento, com a colaboração
de todos os envolvidos.
No Seminário digital “A Pandemia e o acesso à Justiça: impactos, transformações e novos desafios”,
realizado pelo CNJ em 21 de gosto de 2020, o Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho, Ministro
Aloysio Corrêa da Veiga, falou sobre a importância da normatização das atividades administrativas
e do aporte tecnológico para a continuidade dos serviços prestados durante a pandemia, já que a
última doença que mobilizou o país ocorreu um século antes, a gripe espanhola de 1919:

Na Justiça do Trabalho, a questão é muito mais sensível, diante da natureza alimentar dos créditos
trabalhistas, revelando a necessidade indiscutível em dar curso aos julgamentos em trâmite. Os conflitos
surgidos com a crise econômica bem como as controvérsias decorrentes das relações jurídico-trabalhistas
afetam as atividades essenciais, conforme definidas por lei, como a atividade jurisdicional, que está
exposta a maiores riscos. São apenas alguns dos fatores que elevam a importância da atuação dos juízes
do trabalho durante o período de incertezas e excepcionalidade que vivemos em 2020 (CNJ, 2020).

Atenta ao fato de que era necessário dar seguimento ao trabalho, durante a quarentena, a Justiça
do Trabalho proferiu 1.655.043 sentenças e acórdãos, 1.784.103 decisões, 6.592.752 despachos e
90.300.203 movimentações processuais (CNJ, 2020).
Também foi a que mais contribuiu com a destinação de recursos, com R$ 197.119.206,70 (CNJ, 2020)
para o combate à covid-19, um papel extremamente atuante em parceria com o Ministério Público do Trabalho.
Dessa forma, podemos afirmar que o uso da tecnologia mitigou os efeitos da pandemia na Justiça
do Trabalho, auxiliando na continuidade da prestação de serviços aos jurisdicionados. Fica o desafio
para que sigamos no aperfeiçoamento das mais diversas formas de ferramentas tecnológicos, contri-
buindo para uma justiça célere e eficiente!

REFERÊNCIAS

Atos normativos. Site CNJ, 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/atos_normativos/.


Acesso em: 21 ago. 2020.

BELMONTE, Alexandre Agra. MARTINEZ, Luciano. FREDIANI, Yone. X Congresso Internacional da


ABDT: Crise econômica e social e o futuro do Direito do Trabalho. In: Anais do Congresso.
São Paulo: Matrioska Editora, 2020. p. 21.

CNJ. Corregedores atestam continuidade dos serviços da Justiça na pandemia. Site CNJ,
2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/corregedores-atestam-continuidade-dos-servicos-da-
justica-na-pandemia/. Acesso em: 23 ago. 2020.

HACKRADT, Hermann de Araujo. Justiça do Trabalho na pandemia: desmistificando o


possível e o imaginário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-13/hermann-
hackradt-justica-trabalho-pandemia Acesso em 22 de agosto de 2020.

SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016.

TST. Presidente do TST destaca mediação e conciliação como instrumentos de democrati-


zação da justiça. Disponível em: https://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/
id/26593625/pop_up Acesso em 22 de agosto de 2020.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

OS EFEITOS DA LÓGICA DA DIVISÃO


DO TRABALHO SOCIAL NO DIREITO

Luciano Augusto de Oliveira Paz256


Gabriel Maçalai257

RESUMO: Tendo por tema a divisão do trabalho social, este artigo delimita-se em uma análise
do direito a partir da perspectiva de Durkheim e Bourdieu. Problema que direciona a investigação
pergunta: o que é a divisão do trabalho social e quais os seus efeitos no direito? Com isso, objetivo
de pesquisa é compreender se o direito é um instrumento de estabelecimento de algumas visões
de mundo consagradas como legítimas e justas, em detrimento de outras, tutelando apenas ao
habitus dominante, à cultura dominante na sociedade - hipótese que se traça e, ao final, confirma-
se. Metodologicamente, trata-se de investigação teórica, com tratamento qualitativo de dados e fins
explicativo-descritivos, com dados coletados por meio de investigação bibliográfica e analisados e
interpretados a partir de método de abordagem hipotético-dedutivo.

Palavras-chave: Divisão do Trabalho Social. Fato Social. Construção do Campo Jurídico.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como tema a divisão do trabalho social sob a ótica durkheimiana. A sua
delimitação temática, por sua vez, visa a analisar a lógica da função da divisão do trabalho social e os
seus reflexos no Direito. Para este estudo, questiona-se: no que consiste a divisão do trabalho social?
Ainda, indaga-se: quais são os reflexos no Direito da lógica da função da divisão do trabalho social?
Diante disso, estabelece-se como objetivo geral deste trabalho a análise dos reflexos da lógica da função
da divisão do trabalho social e os seus reflexos no Direito. Para esse fim, traçam-se objetivos específicos: a)
um estudo da divisão do trabalho social e de sua função sob a ótica durkheimiana; b) um estudo do conceito
de fato social e de sua inter-relação com a divisão do trabalho social e sua função; e c) um estudo da lógica
da função da divisão do trabalho social e seus reflexos no Direito sob a ótica bourdieusiana.
O estudo proposto se justifica por se tratar de uma tentativa para compreender e denunciar o
Direito como sendo um instrumento de estabelecimento de algumas visões de mundo consagradas
como legítimas e justas, em detrimento de outras, reduzindo-se em orientações interpretativas que
manterão a coesão do habitus dominante, da cultura dominante.
Afinal, por exemplo, posturas de Frentes Parlamentares Religiosas chamam atenção a isso, uma
vez que visam a um estabelecimento/determinação de sentidos particulares, isto é, de alguns grupos de
interesse/pressão – a um dado nível de consciência coletiva – é disposto para regular/controlar condutas
cujo habitus seja diferente, revelando o Direito como fato social, pressão externa – social – exercida sobre
o indivíduo, resistindo às suas iniciativas individuais, isto é, às suas próprias determinações sobre si.

1 A FUNÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL SOB A ÓTICA DURKHEIMIANA

Função exprime correspondência entre os movimentos do organismo e as suas necessidades.


Questionar o que é a função do trabalho social é questionar a que corresponde essa função. Nesse

256 Mestre em Direito pela URI, Campus de Santo Ângelo - RS, sendo bolsista PROSUC/CAPES. Especialista em Direito Públi-
co pela EBRADI/UNA. Bacharel em Direito pela FEMA. Professor do Curso de Graduação em Direito da FACOL. Professor do
Estratégia Concursos. Advogado. E-mail: lucianoaugustopaz@gmail.com.
257 Doutorando em Direito (URI), Mestre em Direito - Direitos Humanos (UNIJUÍ). Advogado, filósofo e teólogo. Professor
Coordenador dos Cursos de Pedagogia, Psicologia e Teologia da FAL. E-mail: gabriel.macalai@americalatina.edu.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

sentido, a primeira observação que Émile Durkheim faz é a de que a divisão do trabalho social é estranha
à moral. Afinal, para o autor, a moral obriga que um caminho determinado seja seguido, traduzindo-se
em uma finalidade definida, uma obrigação, uma injunção/mandamento (DURKHEIM, 2016).
A função do trabalho social, para Durkheim, tem a ver com civilização. Esta, segundo o autor, não
tem um valor intrínseco absoluto, logo, não tem a ver com moral. É que a civilização é constituída para
responder a necessidades e a isso corresponde a função da divisão do trabalho social. Exemplo disso,
sustenta Durkheim, é a especialização das profissões. Uma dada profissão não é um mandamento
moral. Pode-se ser artesão, ou grande manufatureiro. No entanto, a industrialização responde a
necessidades sociais, as quais não são necessariamente morais. Nesse mesmo sentido, pode-se falar
da especialização das funções políticas, administrativas e jurídicas – às quais esse trabalho se deterá
–, bem como científicas e artísticas, etc. (DURKHEIM, 2016).
Isso se á porque, para o autor, são as diferenças de determinado tipo que atraem outras diferenças,
são incompletudes que atraem incompletudes. E isso é aplicável, no entender de Durkheim, seja em
trocas econômicas ou não. Por exemplo, para o autor, buscamos em nossos amigos as qualidades que
nos falta, porque, ao nos unirmos a eles, partilhamos de alguma forma de sua natureza e nos sentimos,
então, menos incompletos. Formam-se, assim, pequenas associações de amigos em que cada um tem
seu papel conforme seu caráter, em que há uma verdadeira troca de serviços (DURKHEIM, 2016).
A partir disso é que Durkheim falar em moral. Embora os efeitos de trocas econômicas, como diz o
autor, não estejam ao lado da moral, as trocas entre os diferentes indivíduos produz um efeito moral, que
é a solidariedade e que se traduz na verdadeira função da divisão do trabalho social. Deve-se alertar que a
divisão do trabalho aumenta o rendimento das funções divididas. Além disso, torna as relações solidárias.
Se os indivíduos estão ligados, desenvolvem-se em conjunto e combinam os seus esforços, são solidários,
dependendo mutuamente um do outro, por serem ambos incompletos (DURKHEIM, 2016).
Para Durkheim isso se dá de forma que o outro, aquele que nos completa, torna-se inseparável
da nossa imagem, sendo parte integrante de nossa consciência. Diante disso, o autor indaga se a
divisão do trabalho social tem por função integrar o corpo social, garantindo a sua unidade. Frente
a essa indagação, Durkheim sugere que a divisão do trabalho social é condição de existência da
sociedade. Somente por essa divisão, por uma repartição continua dos diferentes trabalhos humanos
que o organismo social se estende e complexificação (DURKHEIM, 2016).
Com isso, Durkheim passa a mensurar a medida que a divisão do trabalho social contribui para a
integração geral da sociedade, questionando se é essencial ou condição acessória para se atingir a coesão
social. Reiterando-se que, embora a divisão do trabalho social não seja moral, o seu resultado, a solidariedade,
o é. Isso é vislumbrado por Durkheim no Direito. É que, como diz o autor, a vida toma forma definida e se
organiza, sendo o Direito a sua organização, sendo a quantidade de relações entre indivíduos proporcional
à quantidade de regras jurídicas que determinam aquelas relações (DURKHEIM, 2016).
Diante disso, Durkheim ressalva que, conquanto nem todas as relações sociais assumam forma
jurídica, nem por isso permanecem indeterminadas, vez que, se não forem reguladas pelo Direito,
o serão pelos costumes. Ainda, Durkheim adiciona que, embora algumas relações sociais sejam
determinadas pelos costumes, somente às essenciais à sociedade o são pelo Direito. Entretanto,
postos esses sentidos, com Durkheim, questiona-se: podem-se verificar as causas da solidariedade
social por seus efeitos? Experimentam-se formas distintas de solidariedade social, como a doméstica,
a profissional, a nacional, etc. Diante disso, a solidariedade é reconhecida como um fato social.
No entanto, tem forma indefinida e, para que assuma uma forma compreensível, deve ter as suas
consequências traduzidas, isto é, os seus efeitos materializados (DURKHEIM, 2016).
O fato social, para Durkheim, “[...] é toda a maneira de fazer, fixada ou não, susceptível de exercer
sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade
tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais.”
(DURKHEIM, 2007, p. 47, grifo do autor). Ainda, segundo o autor,

Um facto social reconhece-se pelo poder de coerção externa que exerce ou susceptível de exercer sobre
os indivíduos; e a presença desse poder reconhece-se, por sua vez, pela existência de uma sanção deter-
minada ou pela resistência que o facto opõe a qualquer iniciativa individual que tende a violá-lo. No entan-
to, podemos defini-lo também pela difusão que tem no interior do grupo, desde que, de acordo com as
observações precedentes, se tenha o cuidado de acrescentar como segunda e essencial característica que
ele existe independentemente das formas individuais que toma ao difundir-se. (DURKHEIM, 2007, p. 44).

552
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Se se segue a afirmação de Durkheim de que o direito reproduz as formas principais de solidarie-


dade social, basta apenas classificar os diferentes tipos de Direito para verificar quais tipos de solida-
riedade social a eles correspondem. Para tanto, classificam-se as regras jurídicas segundo a elas asso-
ciadas. Tem-se, então, a) regras de conduta repressivas organizadas e b) regras de conduta restitutivas.
A primeira (a) diz respeito a atingir o indivíduo em sua fortuna, honra, vida ou liberdade. Trata-se do
Direito Penal. A segunda (b) diz respeito ao restabelecimento do estado das coisas, restabelecimento de
relações perturbadas sob a sua forma normal (DURKHEIM, 2016).
Para Durkheim, o vínculo de solidariedade a que corresponde ao direito repressivo é aquele cuja
ruptura constitui crime. Embora haja espécies de crimes, Durkheim atem-se a analisar a reação que os
crimes determinam. Embora sejam diferentes os crimes, todos determinam uma reação cujo objetivo é
reprimir. Assim, busca-se um conceito para crime. Para o autor, crime natural, é aquele que ofende os
sentimentos que, em todos os lugares, são a base do Direito Penal. No entanto, Durkheim indaga: se
um crime ofender ao sentimento de um tipo social seria menos crime que outros? (DURKHEIM, 2016).
Durkheim assinala que já se acreditou que os atos criminosos eram antagônicos a grandes
interesses nacionais, bem como eram antagônicos, em cada tipo social – em cada sociedade dada –, às
condições fundamentais da vida coletiva. Desse modo, a autoridade do direito repressivo deriva de sua
necessidade. Como as necessidades variam de acordo com as sociedades, o direito repressivo é um
direito variável. Dita variação do direito repressivo pode ser verificada em uma regulamentação moral
do direito repressivo – condutas não reguladas pelo Direito Penal, mas reprimidas pela moral –, como as
regulamentações do rito, da etiqueta, do cerimonial, das práticas religiosas (DURKHEIM, 2016).
Embora Durkheim traga essa conclusão, afirma que isso não esclarece por que sociedades impuseram
práticas que não eram úteis – como no caso de condutas não reguladas pelo Direito Penal. Para Durkheim,
isso se dá por estima, com ou sem razão a determinadas regras. Nesse sentido, Durkheim refere que a única
característica comum a todos os crimes é que, salvo exceções, consistem em atos universalmente reprovados.
Entretanto, Durkheim questiona: isso diz no que consiste um crime? O Direito Penal, ao ser codificado, surge aí
como um resumo de tradições. Trata-se, para o autor, de uma regra obrigatória, conhecida e aceita por todos,
embora a regra não seja expressamente formulada, apenas determine a sanção (DURKHEIM, 2016).
Durkheim sustenta esse argumento tento como exemplo o direito repressivo bíblico. Neste tem-se um
resumo de tradições do qual todos estão cônscios, servindo a codificação à reprodução da tradição, fixando-
se as crenças populares. No entanto, para o autor, os sentimentos encarnados pelas regras penais são mais
uniformes. Enquanto para o direito repressivo religioso bastam sentimentos fortes, para a repressão, para
o Direito Penal é necessário que os sentimentos sejam explícitos. Não podendo ser entendidos de maneiras
diferentes, são sempre os mesmos: fazer ou não fazer, não matar, não ferir, etc. (DURKHEIM, 2016).
É que não basta que o sentimento encarnado seja moral, como o sentimento de caridade. A moral que
coloniza o Direito e é por ele mensurada é sempre capaz de reprimir, do que diferem alguns sentimentos morais,
como o já citado da caridade. O que se tem, assim, é uma ordem de ideias que questiona um possível conceito
de crime. Para Durkheim, um ato é criminoso quando ofende aos estados fortes e definidos de consciência
coletiva. Aqui as funções judiciais, governamentais, todas as funções específicas, são de ordem psíquica, uma
vez que consistem em representações de ações e traduzem uma consciência coletiva (DURKHEIM, 2016).
Para Carlos Eduardo Sell,

[...] Durkheim sustentava a tese de que a explicação da vida social tem seu fundamento na sociedade,
e não no indivíduo. Esta afirmação não significa que uma sociedade possa existir sem indivíduos,
o que seria totalmente ilógico. O que ele desejava ressaltar é que uma vez criadas pelo homem,
as estruturas sociais passam a funcionar de modo independente dos atores sociais, condicionando
suas ações. A sociedade é muito mais do que a soma dos indivíduos que a compõem. Uma vez
vivendo em sociedade, o homem dá origem a instituições sociais que possuem dinâmica própria [...]
é a sociedade que age sobre o indivíduo, modelando suas formas de agir [...] (SELL, 2015, p. 81).

Assim, Durkheim inaugura o que se chama de holismo metodológico. Como, no grego, hóloios,
quer dizer todo, holismo significa que o todo predomina sobe as partes. Isso se traduz na tese de que
“[...] a sociedade tem precedência lógica sobre o indivíduo.” (SELL, 2015, p. 82). Então, o conceito de
crime aparece como uma construção social. Para Durkheim, não o reprovamos porque ele é um crime,
mas ele é um crime porque se trata de uma ação que se reprova. Trata-se de um sentimento que, por
encontrar-se em todas as consciências – isto é, difusamente, em cada indivíduo particularmente con-

553
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

siderado –, ao ser ofendido, é considerado crime. No entanto, se o que define o crime é a rejeição de
um ato, como se mensurar essa rejeição? Durkheim cita como exemplo o fato de que um crime contra
a Administração Pública – a autoridade pública, em suas palavras – é mais ofensivo que aquele crime
que se comete, por exemplo, contra a natureza (DURKHEIM, 2016).
Para o autor essa dificuldade é resolvida ao se observar que, no lugar em que se estabelece um poder
diretivo, a sua principal função é fazer respeitar a consciência coletiva, repelindo qualquer força antagonista.
Desse modo, afirma-se que é da consciência coletiva que decorre toda a criminalidade. O crime não aparece,
assim, como uma lesão a interesses importantes, mas como sendo uma lesão contra uma autoridade concebi-
da como transcendente (DURKHEIM, 2016). Nesse sentido, Sell argumenta que o comportamento do indivíduo
não deriva de sua autonomia de vontade propriamente, “[...] mas de algo exterior a ele: a sociedade. Entre os
exemplos que ele menciona estão [...] as crenças e práticas religiosas [...] A segunda propriedade dos fatos
sociais é que eles são coercitivos, ou seja, são impostos pela sociedade ao indivíduo.” (SELL, 2015, p. 83).
A partir daí é que se fala em pena, em sanção decorrente do crime. A sua natureza, para
Durkheim, é a mesma, em sua essência, que nas sociedades primitivas: repressão/vingança. Consiste
agora, contudo, em uma reação de intensidade graduada. Afinal a reação contra o crime aparece não
como uma punição por um indivíduo – mesmo quando representando a sociedade –, mas como uma
punição praticada pela sociedade. Trata-se de uma organização. Nesta a pena consiste essencialmente
em uma reação passional, de intensidade graduada, que a sociedade exerce por intermédio de um
corpo constituído. Isto é, a infração, em vez de a infração ser julgada por cada indivíduo, ou seja,
difusamente, passa a ser julgada por um intermediário (DURKHEIM, 2016).
Para Durkheim, isso se coloca desse modo porque os sentimentos que o crime ofende são,
no cerne de uma sociedade, os mais universais, tendo em vista que são o que chama de estados
particularmente fortes da consciência coletiva, incapazes de tolerar contradição. Nesse sentido, o autor
menciona o grau de energia que uma crença ou sentimento podem assumir por serem sentidos em
uma mesma comunidade. Com isso, Durkheim aduz que do mesmo modo que estados de consciência
contrários enfraquecem-se, os idênticos, ao se permutarem, fortalecem-se. Nisso, segundo Durkheim,
aparece o que se chama se solidariedade mecânica ou por similitudes/semelhanças (DURKHEIM, 2016).
Para Durkheim, quando se exige a repressão de um crime, quer-se vingar algo compreendido como
sagrado, fora e acima de nós. Para o autor, tendo em vista a sua origem coletiva, a sua universalidade, a sua
permanência no tempo, etc., esse sentimento são dotados de força que excedem à consciência, aparecendo
como eco superior ao que somos e que, portanto, somos obrigados a projetar para fora de nós. É que o
caráter social da repressão, para Durkheim, deriva da natureza social dos sentimentos ofendidos. Todos são
ofendidos, portanto todos fazem frente à ofensa. Essa reação é geral, mas também coletiva. É dizer: não se
produz isoladamente em cada um, mas como uma sincronia e uma unidade (DURKHEIM, 2016).
Assim, em Durkheim, pode-se dizer que é a natureza dos sentimentos coletivos que explica as
penas e, por conseguinte, os crimes – ou condutas reprovadas/resistidas, não aceitas pelo grande grupo.
Vê-se aí, a propósito, o poder de reação de que as funções governamentais dispõem, tendo em vista que
emanam do poder de reação que está difuso na sociedade, o que possibilita a manutenção da consciência
coletiva. Compreende-se, então, a espécie de solidariedade que o Direito Penal simboliza. Trata-se de
uma coesão social cuja causa está em conformidade com todas as consciências particulares de um tipo
coletivo. Surge daí uma solidariedade sui generis que é nascida das semelhanças e vincula diretamente
o indivíduo à sociedade. Os atos que essa solidariedade proíbe e qualifica como crimes ou manifestam
uma diferença demasiada violenta entre o agente que os comete e o tipo coletivo, ou ofendem o órgão
da consciência coletiva. Nos dois casos, a força que ataca ao crime é produto das similitudes sociais mais
essenciais e tem como efeito manter a coesão social que resulta dessas similitudes (DURKHEIM, 2016).

2 A FUNÇÃO DO DIREITO SOB A ÓTICA BOURDIESIANA: UMA ANÁLISE DAS TEORIAS DE


HABITUS E DE CAMPO SOB A LÓGICA DA FUNÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL E SEUS
REFLEXOS NO DIREITO

Para examinar os reflexos da função da divisão do trabalho social no Direito, examinam-se,


para tanto, ditos reflexos nos campos político e jurídico. Assim, sob um enfoque jurídico-sociológico,

554
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

examina-se a influência de grupos de interesse/pressão – de um dado nível de consciência


coletiva – na construção da realidade social, mormente no que diz respeito a controle/regulação
de comportamentos individuais, o que revela o Direito como fato social. Para tanto, utilizam-se os
conceitos de por Pierre Bourdieu para compreender habitus, campo, campo político e campo jurídico,
uma vez que os estudos de Bourdieu partem de Durkheim. Com essa base conceitual, compreende-
se possível a análise jurídico-sociológica de como se dão as relações sociais nos processos político-
jurídicos contemporâneos, como no caso concreto brasileiro, aqui discutido.
Em Bourdieu, a noção de habitus, desprezando a ideia de um espírito universal e de uma natureza ou
razão humanas, remonta à ideia de conhecimento adquirido. Este é apontado como um bem ou um capital
adquirido possuído pelo indivíduo. Com esse capital em mãos, o indivíduo é tornado em um agente258 apto
à ação. Em outras palavras, o habitus é apontado como um conjunto de disposições adquiridas, produto
de condicionamentos ao indivíduo, o qual tende a reproduzi-los. Isso possibilita que um comportamento
seja naturalizado, convencionado como sendo o único possível (DA ROCHA, 2008).
Maria da Graça Jacintho Setton afirma: “Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as
características de uma identidade social, de uma experiência biográfica [...] para designar então
características do corpo e da alma adquiridas em um processo de aprendizagem.” (SETTON, 2002, p.
61). Desse modo, o habitus aponta para um conjunto de esquemas/regras introjetados que constituem
a cultura de um indivíduo – fato social, para conversar com Durkheim. Esses esquemas traduzem-
se em percepções sobre a realidade que são adquiridas em relações sociais como as familiares, as
religiosas e as escolares e simplesmente refletidas/reproduzidas pelo indivíduo (SETTON, 2002).
A noção de campo, por sua vez, alinha-se a uma ideia de disputa entre agentes. Para Bourdieu,
para ser definido, o campo precisa de objetos a ser disputados e de agentes interessados a disputá-los.
O campo é, então, uma arena em que agentes disputam objetos. É a estrutura interna de cada campo
(político ou jurídico, por exemplo) que estabelece os objetos de disputa entre os agentes, tendo em
vista os seus padrões de pensamento e de formação, isto é, o seu habitus (DA ROCHA, 2008).259
Por essa ocasião, a noção de campo se faz indissociável da noção de habitus. É que a estrutura
do campo, segundo Bourdieu, é um estado dinâmico entre agentes, que visam à manutenção do campo
com o equilíbrio de seus próprios interesses. Afinal, é o êxito de uma estratégia ou ação empreendida
no campo que determina a distribuição de capital, ditando qual o habitus que será conservado, em uma
clara relação de força que visa a monopolizar o capital – conhecimento/experiência. Desse modo, em
Bourdieu, o habitus aparece como um conjunto de referências externas ao agente – que eventualmente
as reproduz –, ditadas por um campo (político ou jurídico, por exemplo) (DA ROCHA, 2008).
Lembrando que habitus aparece em Bourdieu como uma cultura constituída, como leciona Setton
(SETTON, 2002, p. 62), aqui se abre o primeiro parênteses. É que, como visto alhures, as lutas políticas
contemporâneas se expressam por meio do multiculturalismo, quando movimentos políticos visam a
reconhecer diferentes culturas, fazendo com que, no choque de diferentes valores culturais, a cultura
obtenha força política (SANTOS; NUNES, 2004). Aproximando essa leitura de Alain Touraine, tem-se a
ideia de que a realidade é uma construção social resultante das atuações dos sujeitos na sociedade –
no campo político, para conversar com Bourdieu – com as suas culturas, com os seus pertencimentos
e com a sua historicidade ou ainda com os seus padrões de pensamento e de formação (GOHN, 2010).
Essa inter-relação é feita porque, em Touraine, o agente260 é percebido como dinâmico, produtor de
reinvindicações e de demandas que dá sentido às suas condutas, ainda que em oposição ao sentido dado
pela sociedade (GOHN, 2010). Quando a sociedade apresenta um campo em que agentes disputam para
conservarem os seus habitus (DA ROCHA, 2008), é em contraposição à ideia de conservação de um habitus
– ou em justaposição à ideia de criação de um novo habitus – que surgem os movimentos políticos. E isso

258 Agente aqui é compreendido como o indivíduo – na própria acepção da expressão, sem, nessa ocasião, referir-se à
conceitualização de Touraine – inserido em um corpo socializado, capaz de adotar uma postura social (DA ROCHA, 2008).
259 Para Setton, em apertada síntese, campo é o espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais,
espaço de disputa e jogo de poder. Segundo Bordieu, a sociedade é composta por vários campos, vários espaços dotados
de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias (SETTON, 2002).
260 Enquanto Bourdieu parte do conceito de agente, Touraine parte do conceito de sujeito, indivíduo e ator. Resumindo as
ideias de Touraine – sem menosprezo à obra do autor –, sujeito é o desejo do indivíduo de ser ator, isto é, de ser constru-
tor da realidade, quando vê a sua individualidade situada entre semelhantes e reconhecida entre diferentes (HAHN, 2015),
orientando culturalmente às posturas da sociedade, isto é, inserindo em ditas posturas o reconhecimento de seus pertenci-
mentos, de suas historicidades, de seus padrões de pensamento e de sua formação, etc. (GOHN, 2010).

555
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

se dá por ocasião de terem esses movimentos políticos uma noção emancipatória (SANTOS; NUNES, 2004).
É que a ideia de conservação indica razões sociais totalizantes, as quais visam a condicionar/determinar o
sujeito. E o que querem os movimentos sociais – ou políticos, para manter a conversa alinhada com Santos
e Nunes – é possibilitar a abolição de relações de dominação (GOHN, 2010).
A partir do estabelecimento dessa inter-relação é que se buscam os sentidos de campo político e de
campo jurídico. Este último é apontado por Bourdieu como “[...] o lugar de concorrência pelo monopólio
de dizer o direito [...] que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira
mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo
social.” (BOURDIEU, 2007, p. 212). ssa compreensão, para Bourdieu, faz surgir uma ilusão, com o que o
Direito é percebido como absolutamente autônomo a pressões externas. É que, em que pese a interpreta-
ção das leis possa ser objeto de disputa, uma vez que na concorrência pelo monopólio de dizer o Direito
diferentes interpretações possam conflitar, o que há, segundo o autor, é um arranjo de manutenção do
campo, por meio do qual posições divergentes reduzem-se a uma referência comum, a visão de mundo
dominante na sociedade, a qual é absorvida pelas lógicas sociais, ou seja, naturalizada (DA ROCHA, 2008).
No entanto, as leis são apresentadas pelos agentes do campo político. Para Bourdieu, o campo
político é compreendido como um campo de lutas em que se visa a transformação de relações sociais,
como “[...] o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos,
produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos [...]”
(BOURDIEU, 2007, p. 164). Ao contrário do campo jurídico, o campo político não mantém uma ideia de
autonomia. Desse modo, depende de um processo de legitimação externa, como o processo eleitoral,
ao qual se submetem os parlamentares (DA ROCHA, 2008).
Quando Bourdieu refere-se ao campo político como um campo de lutas em que se visa a transfor-
mação relações, o autor está falando do processo democrático-legislativo, em que o Direito é apresenta-
do. Mais que isso, Bourdieu refere-se ao processo democrático-legislativo representativo. A estrutura do
campo político baseia-se na relação entre mandantes (parlamentares) e mandatários (eleitores) e a relação
entre estes últimos e as suas organizações, tendo em vista a sua distância dos instrumentos de produção
política. Isso faz com que o autor considere a vida política baseada na lógica da oferta e da procura. Nesta,
os eleitores são reduzidos a consumidores da produção política parlamentar, sendo mais consumidores
quanto mais distantes do lugar de dita produção (DA ROCHA, 2008).
Essa relação de conceitos permite pensar os processos político-democráticos do Brasil
contemporâneo a partir de uma ótica sociológica. É que, sendo os conceitos de habitus e de campo
interdependentes, pode-se compreender que o estabelecimento do habitus depende das ações
empreendidas no campo. No caso específico do processo democrático, no campo político. O campo
político, ao apresentar o direito, dita as referências externas ao agente, que deve reproduzir o habitus
da totalidade social. Afinal, o direito posto pelo campo político torna-se direito (im)posto pelo campo
jurídico, quando a visão de mundo dominante na sociedade – ou tendente a dominar as visões na
sociedade – é dada para ser absorvida pelas lógicas sociais, isto é, naturalizada (DA ROCHA, 2008).
No que diz respeito especificamente ao campo jurídico, este é a arena na qual se luta para dizer
o direito, para interpretar a norma escrita, isto é, as visões consagradas como legítimas e justas do
mundo social. Segundo o autor, essa luta para dizer o direito resume-se em dizer o direito dentro
dos limites de um conhecimento jurisprudencial produzido – o que serve para restringir a autonomia
do campo. Nas palavras de Bourdieu, “[...] no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma
maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra [...]” (BOURDIEU, 2007, p. 2013).
Conquanto na atividade de interpretação que se dá no campo jurídico possa se experimentar
choque entre interpretações, para Bourdieu, ditas interpretações encontram-se abaixo de uma regulação
hierárquico-judicial que se submete a textos unanimamente reconhecidos, como uma Constituição – o
que supostamente dita as interpretações autorizadas. Isso possibilita, assim, o que o autor diz ser a
coesão dos habitus – visões ajustadas de mundo. No entanto, para o autor, a força do direito aparece
quando, ao ser pensado como instrumento, é concebido como um utensílio dos dominantes. Embora
possa ser pensado como relativamente independente de pressões sociais, o direito que se cria no
campo político é notadamente afetado por essas pressões. Por isso Bourdieu afirma que a autonomia
absoluta do direito, isto é, a sua não afetação por pressões sociais, é ilusão (BOURDIEU, 2007).
É que, para Bourdieu, a legitimidade que se confere ao direito, não se confunde com um reconhecimento

556
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

universal a uma jurisdição que enuncia valores universais, transcendentes a interesses particulares. Nem
se confunde com o reconhecimento dos interesses dominantes a costumes e relações de força (BOURDIEU,
2007, p. 240). Ao contrário, para o autor, tanto a produção (no campo político), quanto a aplicação do
direito (no campo jurídico), tem a ver com as afinidades que unem os detentores do poder simbólico,
temporal, político ou econômico. Com a afinidade dos habitus desses detentores de poder, as escolhas
feitas, dentre interesses, valores e visões, não os desfavorecem, mas justificam (BOURDIEU, 2007, p. 242).
Desse modo, o direito que se tenta apresentar no campo político e aplicar no campo jurídico
aparece como um direito dominador, dado a uma lógica de conservação, própria para a manutenção
de uma ordem simbólica. O direito, quando é aplicado, é justificado pela ideia de universalidade, o
que revela o poder simbólico. Afinal, dita universalidade não se opõe ao ponto de vista dos dominan-
tes (BOURDIEU, 2007, p. 245). No autor,

Compreende-se que [...] os efeitos da universalização é um dos mecanismos, e sem dúvida


dos mais poderosos, por meio dos quais se exerce a dominação simbólica ou, se se prefere, a
imposição da legitimidade de uma ordem social [...] [para] aumentar o efeito da autoridade social
que a cultura legítima e os seus detentores já exercem para dar toda a sua eficácia prática à
coerção jurídica. (BOURDIEU, 2007, p. 246).

E, aqui, ao analisar-se o campo político, como o caso concreto brasileiro, percebe-se a atuação
de frentes parlamentares, como as chamadas Frentes Parlamentares Religiosas, A atuação dessas
frentes parlamentares no campo político, que é dominante, tendo em vista a sua inserção na política,
possibilita a confecção de um direito pautado em discursos ideológicos, com vistas a estabelecer
um habitus e conservá-lo, em detrimento de outros. Como adverte Tatiane dos Santos Duarte, trata-
se de atuação de um grupo de interesse/pressão no Congresso Nacional brasileiro como um grupo
de interesse/pressão e a repercussão de seus projetos legislativos, os quais implicam supressão de
direitos diversos-diferentes daqueles que sejam relativos à cultura cristã (DUARTE, 2011).
Com um discurso carregado de carga moral, a agenda legislativa da Frente Parlamentar Evangélica
no Congresso Nacional brasileiro pauta-se no raciocínio de que os evangélicos, justos; em contraponto
aos não cristãos, tidos por ímpios, legislam com vistas a restabelecer os bons costumes da sociedade.
Desse modo, “[...] valores religiosos são travestidos em projetos políticos intencionando moralizar
costumes e garantir que o Estado legisle em prol dos cidadãos retos.” (DUARTE, 2011, p. 192).
Evidencia-se, assim, a atuação da Frente Parlamentar Evangélica como atuação de grupo de
interesse/pressão. Afinal, trata-se de grupo com influência sobre o poder político para que tenha os
seus interesses favorecidos por meio do Estado (BONAVIDES, 2010) e o potencial para determinar
condutas por meio de valores (BOBBIO, 2000), sendo esses valores referentes à cultura cristã e
travestidos de projetos legislativos (DUARTE, 2011).
Como exemplo, tem-se o Projeto de Lei n.º 6.583/2013, o Estatuto da Família, cujo objetivo é
o de (re)definir o que é entidade familiar261. Nesse sentido, artigo 2º, do projeto, dispõe: “[...] define-
se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher
[...]” (BRASIL, 2013). Esse recorte demonstra aqui o que falava Durkheim: os fatos sociais possuem
características coercitivas, pautadas em controle/regulação de comportamentos e não procedem dos
indivíduos propriamente ditos, mas da sociedade, exterior ao indivíduo, sendo exemplo disso a pressão
contra comportamentos diferentes, isto é, resistência a comportamentos diferentes (SELL, 2015).
Afinal, como até aqui leciona Bourdieu, sendo o campo jurídico a arena para interpretar a norma
escrita e dar vida/forma às visões consagradas como legítimas e justas do mundo social, utilizando-se da
força simbólica que na norma se encontra, o que um campo jurídico (um direito) construído com vistas a
coesão do habitus religioso – ou visão ajustada de mundo – pretende, é possibilitar a advocacia em causa
própria de grupos de interesse/pressão – denominados então grupos dominantes, para conversar com
Bourdieu – por meio do poder ideológico, para Bobbio; ou sistemas ideológicos, para Bourdieu.
Isso identifica uma articulação ideológica do campo político, para conversar com Bobbio. Afinal, o poder

261 Em que pese a postura do Poder Legislativo, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.277, reconheceu a
união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, estendendo os mesmos direitos e deveres dos companheiros
nas uniões estáveis àquelas uniões (BRASIL, 2011a). Na ADPF 132, por sua vez, compreendeu a Corte Superior que o não
reconhecimento da união homoafetiva contraria direitos fundamentais (BRASIL, 2011b).

557
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ideológico, como ideia investida de autoridade que se comunica por meio de procedimentos (como os do cam-
po político), isto é, que por ditos procedimentos se estabelece (BOBBIO, 2000), traduz-se como instrumento do
que Bourdieu denomina de poder simbólico. É que para Bourdieu, os sistemas simbólicos são instrumentos de
comunicação e o poder simbólico um poder de construção da realidade, do mundo (BOURDIEU, 2007).
A ideologia, se não como poder ideológico, como produção simbólica, nesse sentido, ao servir
a interesses particulares, torna-se instrumento de dominação, uma vez que

[...] enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação [...] cumprem a sua


função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem
para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) [...] As diferentes
classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem
a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses [...] (BOURDIEU, 2007, p. 12-13).

Vislumbra-se, desse modo, uma tentativa de universalizar culturas, pela força do direito e de sua
capacidade de universalização – ou de conformação de condutas, em evidente relação de forças em que
a cultura dominante prevaleça sobre a diferente – como no caso da tentativa de fazer prevalecer a cultura
cristã sobre os habitus que dela difiram, quando se debate a articulação das Frentes Parlamentares
Religiosas nos processos político-democráticos brasileiros que, a despeito de qualquer atenção às lógicas
dialógicas desses processos, reduz os eleitores a consumidores da produção política parlamentar.
A força do direito, para Bourdieu, acaba sendo aplicada no sentido de, ao estabelecer as visões de
mundo baseadas em visões consagradas como legítimas e justas do mundo social, reduz-se em orientações
interpretativas que manterão a coesão do habitus dominante, que acabará consagrado como legítimo e
justo (BOURDIEU, 2007). No caso, percebe-se que as tendências legislativas das Frentes Parlamentares Reli-
giosas, visam a um estabelecimento/determinação de sentidos que, privilegiando interesses particulares – a
um dado nível de consciência coletiva – é disposto para regular/controlar condutas cujo habitus seja dife-
rente, revelando o Direito como fato social, pressão externa – social – exercida sobre o indivíduo, resistindo
às suas iniciativas individuais, isto é, às suas próprias determinações sobre si (DURKHEIM, 2007).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito Posto, isto é, o Campo Jurídico construído, tem aparecido como um instrumento para o
estabelecimento de algumas (cosmo)visões de mundo, as quais são consagradas como legítimas e justas,
reduzindo-se a orientações que visam a manter a coesão de um habitus dominante, de uma cultura dominante,
na sociedade. Essa coesão, fato social, faz do Direito um instrumento coercitivo, disposto a regular/controlar
condutas que sejam diferentes ao habitus/cultura socialmente dominante. Nesse sentido, chamam atenção as
posturas das Frentes Parlamentares Religiosas que, ao visarem regular/controlar condutas que sejam diferentes
de seu próprio habitus/cultura – que é socialmente dominante –, revelam o Direito como uma pressão externa
ao indivíduo, resistindo às suas iniciativas individuais, isto é, às suas próprias determinações sobre si.
Para corroborar a essa afirmação, estabeleceu-se como objetivo geral deste trabalho a análise
dos reflexos dos reflexos da lógica da função da divisão do trabalho social e os seus reflexos no
Direito. Para tanto, estudou-se da divisão do trabalho social e de sua função sob a ótica durkheimiana
e conceito de fato social e de sua inter-relação com a divisão do trabalho social e sua função. Nesse
sentido, concluiu-se a função da divisão do trabalho social aparece como uma especialização de
funções, sejam elas políticas, jurídicas. E isso se dá no sentido de, havendo uma especialização das
funções sociais, o seu rendimento seja aumentado, a sua eficácia no mundo da vida, uma vez que essa
divisão/especialização gera solidariedade social, isto é, relações entre indivíduos que, combinando
os seus esforços, possibilitam a integração da sociedade, a coesão social, a criação de cosmovisões
culturais. Aqui aparece o fato social, que se inter-relaciona com a função divisão do trabalho social,
uma vez que a possibilidade/criação de coesão/cosmovisões se dá para controlar/regular condutas,
coagindo-as para que estas não sejam diferentes daquelas que estão integradas na sociedade.
A partir disso, realiza-se o estudo da lógica da função da divisão do trabalho social e seus reflexos
no Direito sob a ótica bourdieusiana, tendo em vista as posturas das Frentes Parlamentares Religiosas.
Afinal, traduzem-se em grupos de interesse/pressão, em um dado nível de consciência coletiva, que

558
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

visam a controlar/regular comportamentos individuais que agridam a essa consciência coletiva – à


sua identidade, esquemas/regras introjetados que constituem a sua cultura. Para tanto, essas frentes
parlamentares articulam-se no Campo Político, visando à construção do Campo Jurídico, isto é, articulam-
se no processo político-democrático, visando à criação de um direito que se torne posto, quando, então,
o Direito aparece como um fato social, na acepção durkheimiana, isto é, uma pressão externa – social –
exercida sobre o indivíduo, resistindo às suas iniciativas individuais, isto é, às suas próprias determinações
sobre si. Exemplo disso é aquele que se dá a partir do Estatuto da Família, Projeto de Lei que, visando
pelo Direito, manter/conservar um habitus/cultura, denuncia características coercitivas, pautadas em
controle/regulação de comportamentos – hipótese sustentada neste trabalho que acaba confirmada.
Desse modo, a força do direito aparece no sentido de, ao estabelecer as visões de mundo baseadas em
visões consagradas como legítimas e justas do mundo social, reduz-se em orientações interpretativas que
manterão a coesão do habitus dominante, que acabará consagrado como legítimo e justo. Aqui o Direito apa-
rece como uma tentativa de universalizar culturas, pela força do Direito, de sua capacidade de universalização
– ou de conformação de condutas, em evidente relação de forças em que a cultura dominante prevalece sobre
a diferente – como no caso da tentativa de fazer prevalecer a cultura cristã sobre os habitus que dela difiram,
uma vez que as Frentes Parlamentares Religiosas, visam a um estabelecimento/determinação de sentidos
que, privilegiando interesses particulares – isto é, a um dado nível de consciência coletiva –, é disposto para
regular/controlar condutas revelando o Direito como fato social, pressão externa – social – exercida sobre o
indivíduo, resistindo às suas iniciativas individuais, isto é, às suas próprias determinações sobre si.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de
Janeiro: Campus, 2000.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

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Bertrand Brasil, 2007.

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Federal, Relator: Ayres Britto, Julgado em: 05/05/2011a. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
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_____. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 132, Tribunal Pleno.


Supremo Tribunal Federal, Relator: Ayres Brito, Julgado em 05/05/2011b. <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: 11 nov. 2015.

_____. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 6.583, de 2013. Dispõe sobre o Estatuto da
Família e dá outras providências. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra?codteor=1159761&filename=PL+6583/2013>. Acesso em: 11 nov. 2015.

DA ROCHA, Álvaro Filipe Oxley. O Campo Jurídico e o Campo Político: o Direito na obra de Pierre
Bourdieu. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 35, n. 112, p. 9-24, 2008.

DUARTE, Tatiane dos Santos. “A casa dos ímpios se desfará, mas a tenda dos retos florescerá”:
a participação da Frente Parlamentar Evangélica no legislativo brasileiro. 2011. 229f. Dissertação (Mes-
trado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2011. Disponível em: <http://reposito-
rio.unb.br/bitstream/10482/9803/1/2011_TatianeSantosDuarte.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2015.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Tradução de Eduardo Lúcio Nogueira. 10.
ed. Lisboa: Editorial Presença, 2007.

_____. Da Divisão do Trabalho Social. Tradução de Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: EDIPRO, 2016.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

GOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010.

HAHN, Noli Bernardo. A Afirmação do Sujeito (de Direitos) num Processo de Resistência: a emergência do su-
jeito humano como liberdade e como criação. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, XXIV, 2015, Aracaju.
Anais do XXIV Encontro Nacional do Conpedi. Florianópolis: CONPEDI, 2015. Disponível em: <https://
www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/x552ze4o/J3dKsyN1voIl4zYs.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2017.

SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do
reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: BALDI, C. A. (Org.). Direitos humanos na
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SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Marx, Durkheim e Weber. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 20, p. 60-70, ago. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/
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560
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

PANDEMIC OF DISINFORMATION:
THE FIGURE OF THE CHARISMATIC LEADER
AND THE IMPACT OF FAKE NEWS UPON THE PUBLIC

Maurício Fontana Filho262


Rodrigo Tonel263

ABSTRACT: The investigation is on the pandemic of Covid-19, focusing on whether government


disinformation has a social impact and what is it. The United States, failing to prepare for the disease in
its early stages, has contributed to the deaths of the most vulnerable groups of society. The method is
the hypothetical-deductive through bibliographical research. The hypothesis is that a charismatic leader,
through discourse, is capable of making people neglect their welfare. The principal objective is familiarizing
the importance of trustful sources, more so during times of exception, and exposing the dangers of
disinformation as the principal source of disease contraction. Secondly, the pronouncements and views of the
president, Donald J. Trump are explored, its consequences and impacts to the public as well. The conclusion
points to the disorientation and death mostly of the poorest, a product of government negligence.

Keywords: Charismatic Leader. Discourse. Necropolitics. Pandemic. President Donald J. Trump.

INTRODUCTION

Access to information is a fundamental element in human survival, and more so during times
of pandemic and frequent deaths reported by the media. What is the impact of disinformation on
society? Who suffers the most from the spread of untrue news? These general questions are analyzed
with a specific focus on the North American case.
Through a hypothetical-deductive methodology and a bibliographic analysis of the main
communication vehicles in the country, like The New York Times, The Washington Post, The Atlantic,
The Guardian and many others, this investigation proposes to investigate the impacts of ambiguous
pronouncements and the irresponsible uses of social media networks by the President Donald J. Trump.
The initial hypothesis to be defended is that a national president, being the leader of a country,
is imbued with intrinsic legitimacy to the office occupied. His discourse is naturally official, and by
that, it weighs more in favor of his moral and political positions. Through that initial rationality, a
president that is not prepared to deal with political, economic and worldwide crisis naturally leads its
people towards ignorance, suffering and death.
In the first session, it is elaborated an historical context of pandemics and important distinctions
between the ones caused by viruses from others caused by bacteria, as well as between epidemics and
pandemics. The aim is to provide precision to the terms. In the second session, it is entered into the
sphere of media and the impact of disinformation on people, intrinsically harmful to the most vulnerable.
On several occasions, the pandemic is relativized, even more during the period of incipient
contagion, which has thus delayed the taking of necessary measures for the protection of human life
and especially in the prevention of the disease. During the period of exception that this pandemic is,
the article that attempts against massive disinformation is justified in itself.

262 Especializando em Ciências Sociais pela Universidade Passo Fundo. Bacharel em Direito pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa “Finanças partidárias: equilíbrios organizacionais
nos partidos políticos brasileiros (1995-2017)”. mauricio442008@hotmail.com
263 Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da Universidade Regio-
nal do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUI. Bacharel em Direito pela mesma instituição. Integrante do grupo de
pesquisa “Biopolítica e Direitos Humanos”. tonelr@yahoo.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 INITIAL CONCEPTS AND HISTORICAL PRECEDENT

What is a pandemic? In its most concise sense, the pandemic is an outbreak of disease that
occurs in geographical coverage and affects a high proportion of the population. It differs from an
epidemic, which refers to infections that spread rapidly in a specific population. The pandemic is more
widespread, affecting different continents in the world. The term pandemic refers to geographical
contamination and not about the severity of the outbreak, which means that a pandemic will not
necessarily be more deadly than an epidemic, but only that it covers more regions (DUNCAN, 2020).
The word pandemic is generally used to describe events within which contagion has been
documented in different parts of the world. The statement of a pandemic occurrence tends to trigger
social phobia and despair, especially when misinterpreted. It is a term that, when misused, can present
danger, fomenting mass panic, unjustified fear and even a premeditated acceptance of defeatism within
which it is interpreted that everything is lost, giving up then turns into a fair option (DUNCAN, 2020).
Infectious diseases have preyed on human communities since ancient times, significantly affecting
and modulating societies. One of the consistent elements present in most pandemics was the attack on
medical bodies. It was a consequence of a primitive fear of contamination and death. Even in today’s time,
it continues to foment mistrust and irrationality between medics and common people (ROSENWALD, 2020).
Justinian’s plague of 541, which would return periodically until the middle of the 18th century,
is the first example. Its estimated death toll is over ten million people. The disease was caused by a
bacterium called Yersinia pestis, which used to be transmitted by flies and rodents. It spread mainly
across Central Asia, Europe and Mediterranean populations. Most of the people of that period did not
understand the phenomenon, but merely through a religious connotation (MCMULLAN et al, 2020).
In a similar sense, the famous Black Death, which spread across Europe, the Middle East and Africa
in the 14th century, killing around half the population, was a pandemic caused by the same lethal
bacteria that caused Justinian’s plague, spreading mainly by trade routes. It was taken as a sign of the
apocalypse, divine actions and planet alignment. Prayer was taken as a fair practice in such a massive
way as to stop the disease. In many cases, foreigners had been accused of being the cause, resulting in
bloody revolts and lasting conflicts (MCMULLAN et al, 2020).
In the 19th century, about six cholera pandemics occurred, having their origin in India and, since
then, migrating to Europe and the Americas. Entire indigenous populations perished from the disease,
which was brought exclusively by conquerors. Even today, contamination is intense, especially in
environments lacking clear water and basic hygiene. Mortality from cholera was already very high.
People died very shortly after being infected, which contributed to mass panic and conflict, as the
public did not understand the disease (MCMULLAN et al, 2020).
Improvised hospitals had been set up in key cities in the most affected countries, but, overall,
people’s resistance to the government and the medical staff has generated conflict and aggression.
In many regions, there was a suspicion that doctors, after receiving money for the treatment, would
abandon the sick and, after their deaths, dissect their bodies. Neither the government nor the doctors
tended to be seen well. The lack of scientific knowledge about the disease exacerbated the feelings of
fury. Only later on the public would discover the information on the disease about its spreading only
through water instead of air. People were ignorant about the disease, fearing that they would die and
not reach the divine skies, as their religions frequently implied (MCMULLAN et al, 2020).
In the Spanish Flu of 1918-1919, over 35 million people died, being considered the most
devastating pandemic of the last century. During its occurrence, people were quarantined, while
emergency hospitals were repeatedly built in massive numbers (WELFORD, 2018). Many discussions
about wearing masks have taken place. History can help people understand the present, because most
of the areas of public health have an equivalent response to the pandemic in contemporary times.
The HIV pandemic began in the 1980’s and has continued to result in more than 35 million
deaths worldwide (ROSENWALD, 2020). It was a pandemic marked by panic, ignorance and fear. All
these elements fostered by disinformation. At the beginning of the disease, any suspicion of being
HIV positive was sufficient reason for the individual’s social segregation by friends, family and co-
workers. The thought that only homosexuals could contract HIV and that this disease was transmitted
even by shaking hands persisted for some time, being gradually overcome (TONEL et al., 2018).
The Russian flu, yellow fever, Asian flu, Hong Kong flu, swine flu and Ebola are all different

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

examples of high impact pandemics on human societies, shaping the structures of social life and the
course of history (ROSENWALD, 2020). The swine flu is even labeled by historian John M. Barry (2004,
p.100) as “among the most perfect of these perfect organisms.”
The Coronavirus is the most recent example of pandemic activity (WORLD HEALTH ORGANIZATION,
2020a). As of May 23, 2020, there were more than 217,000 victims of the disease, and three million cases
since January (MCMULLAN et al, 2020). On June 22, on the other hand, the number of deaths had already
reached 471,998, and more than 9 million cases (WORLDOMETERS, 2020). Until September 18, 2020, over
948,795 deaths, while 30,369,778 confirmed cases (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020b).
In comparison with other historical pandemics, one of the most striking elements of the
Coronavirus is the delay of many countries in preparing, remaining stagnant while the growing
number of deaths and contagions took place. The disease has spread over China for months, and
very little has been done in a concrete way to reduce the spread of the virus (MCMULLAN et al, 2020).
Bacteria and viruses have caused many pandemics. The Spanish Flu pandemic was as long lasting
as it was intense, but for which reason? In agreement with Barry (2004, p.99), the main element that
makes the virus more dangerous than the bacterium is that “a virus has only one function: to replicate
itself.” Even so, it does not do this alone, needing to take possession of the cells of a host, such as the
human, and bend them to its will. The host cells, then, no longer do what they are supposed to do,
but work for the virus. Thereafter, the virus reproduces in thousands, and sometimes in hundreds of
thousands of new viruses. The bacterium no longer has all these prerogatives (BARRY, 2004). Thus,

viruses are themselves an enigma that exist on the edges of life. They are not simply small bacteria. Bacteria
consist of only one cell, but they are fully alive. Each has a metabolism, requires food, produces waste, and
reproduces by division. Viruses do not eat or burn oxygen for energy. They do not engage in any process
that could be considered metabolic. They do not produce waste. They do not have sex. (BARRY, 2004, 98-99).

Based on the explanation above, it is worth highlighting what a pandemic caused by viruses
represents. This new pandemic reveals how fragile the social and economic system in which people
live in really is. It only took one virus to impose upon society for chaos to perpetuate itself for months.
Empty streets, quiet cities and stagnant industries are the current state of affairs (MCKIBBEN, 2020).
Even so, pandemics and epidemics have always functioned as the perfect biopolitical laboratory for
testing security devices and population control techniques (FOUCAULT, 2008).
Today, communication and a diversified field of monitoring technology are developed at a
level that could have never been imagined. This did not represent agility in preventive actions, but
disinformation initiatives when interacting with the issues that people still have to endure. The public
cannot protect itself without reliable information. “If I intend to reflect correctly on a problem to which
I attach great importance, I must have knowledge for that and, therefore, sufficiently relevant and
reliable qualified information”, says French biologist Philippe Kourilsky (2013, p.91, our translation).
Through the basis that forms the first session of the article, an analysis may now be stablished
upon the North American communication vehicles and the contamination of social networks with
confusing, untrue and ambiguous news. The specific focus is the speeches and government decisions
of US President Donald J. Trump and his government.

2 LEADING DISINFORMATION TOWARDS SOCIAL CHAOS

“First appearing in the United States on January 21, 2020, in Snohomish County, Washington”
(GRAHAM et al, 2020, p.1), the coronavirus disease has drastically changed the lives of the people.
Once seen only in Hollywood pandemic movies, the concepts of social distancing, self-isolation and
quarantining have now become part of North Americans’ everyday experience (GRAHAM et al, 2020).
More than 2 million messages on the social network Twitter bombarded anyone seeking
information about the disease with conspiracy theories about the origin of Covid-19, indicates a study
by the US Department of State. The danger of online misinformation started very early, already in the
first weeks of the spread of the disease in China (ROMM, 2020).
The study indicated that the messages represented a coordinated and inauthentic initiative.
The analysis has as a result the idea that foreign forces tried to foment fear through a campaign
for disinformation during a period of emergency in health. In the end, the analysis proves that the
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misinformation spread more quickly than the virus itself (ROMM, 2020).
In February, the United States was prepared to celebrate several festivals, such as the so-called Mardi
Gras, the North American carnival. At the same time, what circulated on social media and government
commissions was the view that the Covid-19 virus was a minimal risk for the people. At that time, only
12 cases had been documented across the country. In the end of February, the president, in a conference,
took a similar position, stating that everything was under the government’s control (VILLAROSA, 2020).
It is now known, however, that his ministers had already warned him of the possibility of a
pandemic and the death of at least one million people, and Trump took them for being too alarmist.
A few days later, the Center for Disease Control and Prevention (CDC) issued an alert recommending
social distance. The president still did not grant his approval, stating that few people had the disease,
from which everyone was improving and that, in a few days, the number of patients would be close
to zero (VILLAROSA, 2020). The Coronavirus is very much under control in the USA, tweeted Trump
in the end of February, which became a font of misinformation and confusion (PARKER et al, 2020).
Since March, false possibilities of curing Covid-19 have been spreading through social networks,
both Facebook, Twitter, Instagram, YouTube and TikTok. Eating garlic, drinking bleach, masturbating
and even the use of cocaine are the revered healing examples in the social Medias. In perhaps the
most incredible sign of the times in which people live, the World Health Organization created an
account on the social network TikTok in order to break with the massive misinformation about the
pandemic through the sharing of serious and scientific data (CAPATIDES, 2020).
Meanwhile, the president compared the virus to the Swine Flu on Twitter, calling the media and
the opposition Democratic Party as alarmists for interpreting the situation as more heinous than it
really was. Until the end of March, the president would remain with the position that the virus was not
a big deal, words frequently used by him in his rhetoric (VILLAROSA, 2020).
On the matter of testing, he said that anybody that needs a test would get one, but that was not the case.
They have the tests, and the tests are beautiful, he suggested, but there were not remotely enough tests, and
the ones that existed at the time were faulty, while the testing criteria was very much limited. There still was
a lack of understanding of the disease, this ignored by the national leaser. The repeated false claims by the
president that the virus was being contained exacerbated the problem. They made it difficult for public health
officials to lay out the need to prepare for what was going to happen next (PARKER et al, 2020).
These presidential claims undermine social distancing effectiveness. A moral-political context
relates itself with health measures, contributing to its acceptance by the public or negligence. In
most other societies, “national leaders, such as Queen Elizabeth II of the United Kingdom and German
Chancellor Angela Merkel, are preaching communitarian values and adherence to safe social practices”
(GRAHAM et al, 2020, p.2). Their influence, if any, would be to increase social distancing.
This effect might well be the opposite in the United States, where President Trump has dominated
public discourse surrounding the coronavirus crisis. Jair Bolsonaro, president of Brazil follows the
same rationality of opposing isolation and world health organized measures. Although evolving,
Trump’s messaging has been to downplay the risks of the outbreak and to accuse Democrats of using
the crisis as a means to impose their hoax to undermine him (GRAHAM et al, 2020).
The areas with a high population level of black people were the ones that suffered the most due
to the deadly advance of the virus, a consequence of their state of poverty, ignorance and the proximity
in which these people lived to each other. The poorest suffering horrors is nothing new in the history of
humankind. Covid-19 in China showed the severity of the disease, which attacked mainly elderly people
and those with problems of hypertension, diabetes, lung disease and so on (VILLAROSA, 2020).
What intensified the problem was the news spread through social media and rumors from local
communities regarding black people having natural protection against the virus due to their high
levels of melanin. These false theories were documented since the middle of March. Disinformation
has exacerbated the effect of the pandemic, resulting in the loss of precious lives, especially in
communities vulnerable to disinformation and contagion (VILLAROSA, 2020).
After 50 years of legislative and social advances, the United States remains deeply segregated. Black
people are more likely than white ones to live in poor communities where social structures are in disrepair and
where employment opportunities are low. The conditions of social places and the physical environment where
these people live, work, go to school, play and pray, directly influence their initial health status. As a result,

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they are more likely to have some health problem to be exacerbated by a pandemic (VILLAROSA, 2020).
This fact highlights the concept of necropolitics by the Cameroonian philosopher Achille Mbembe
(2016), who works with the idea that the State tends to leave certain individuals and groups of society
to die, considering that they are expendable for the proper functioning of social relations. The term
necropolitics refers to “contemporary forms that subjugate life to the power of death (necropolitics)”
(MBEMBE, 2016, p.146, our translation), profoundly reconfiguring the relationships of life in society.
When some governors ignored the president’s statements and imposed an obligation on their
respective states to quarantine, Trump reacted. He used his favorite social network, Twitter, to encourage
residents to rebel. Therefore, he wrote, in a fiery tone, demanding that people should be freed from the
bonds of compulsory quarantine. Liberate Minnesota! Liberate Michigan! Liberate Virginia! In this manner,
the president followed, undermining the quarantine efforts done by the governors (VILLAROSA, 2020).
In the days that followed, there were rallies in favor of ending social distance. Most of the
Protestants did not wear a mask, but caps in alignment with the president. Many called for freedom
of expression and wanted to go back to work. Even before the coronavirus, the feeling that followed
from the White House was that of mistrust towards legitimate science, and such a feeling extended to
the streets. What made this issue more impactful was the pandemic, which intensified the danger of
this type of thinking in times of massive contagion (VILLAROSA, 2020).
At the end of March, the president’s speech consisted of the idea that there was a light at the
end of the tunnel, signaling the possibility that everything would be fine until Easter. In April, rumors
emerged from a speech by the president about the possibility of taking bleach as a means of purifying
the lungs and the body against Covid-19. Even after Trump clarified that it was sarcasm, many people
tried the measure and suffered dire consequences. Another recommendation was to receive UV rays
on the body, again, as a purification mechanism against the disease (HAMBLIN, 2020).
The purpose of a press conference during a pandemic period is to help the public on how to proceed
in case of contagion. In the face of a desperate situation such as the North American one, the expectation is
that the government takes the condition of the people and the need to fight the virus seriously. The medical
and scientific staff emphatically denied that the use of bleach and UV rays could be a possible treatment for
the virus (ROGERS et al, 2020). The large public is not formed of scientists and professors, but of common
people, and these people need to learn about the pandemic through clear and unequivocal rhetoric.
It is important to highlight that the impact of a president arguing about the effectiveness of taking bleach
as a treatment for a global pandemic was concrete, resulting in deaths and new miracles who claimed by social
networks to be able to exempt the population from the evils of Covid-19 (JACOBS, 2020). When a normal
human being speaks, some may hear his voice, but when a national leader raises his voice, he inevitably
has with him the official symbol. A representative of the State has imbued in him the official, that is, intrinsic
legitimation, as he is not a common person, but one that speak for many others (BOURDIEU, 2016).
When the president of the United States, the most powerful country in the world, speaks as to
neglect the importance of taking care of oneself or in defense of bleach and UV lights as a possible
answer for Covid-19, in a worldwide pandemic, his voice is heard, and creates effects. The effect of
not caring very much about the pandemic corroborates to massive transmission, full hospitals and
uncountable deaths. The effect of endorsing an impossible cure is putting people’s lives at risk. Trump
is a charismatic leader, and they are very common in society. “History shows that charismatic leaders
emerge in all areas and in all ages.” (WEBER, 2018, p.70, our translation).
In this context, the speeches of quick and cheap cures become the only path envisioned by
patients in serious situations, who tend to ignore scientific perspectives or even specialized international
institutions. This is the public of the ambiguous, controversial and sarcastic discourse. For these people,
poorly crafted speech is especially dangerous. The authority of a president, for many, represents more
and adds a whole load of authority than that of established scientists and public health authorities
(MCMULLAN et al, 2020). Some people tend to accept phrases like Make America Great Again! (MAGA)
from presidents rather than Do Not Drink Bleach, It Will Corrode Your Organs!, from scientists.

“Fake news” and “alternative facts” are not simply overused phrases. When we cannot trust what our
leaders, experts and news sources tell us, we lose the ability to hold people accountable, solve problems,
understand threats, judge progress and communicate effectively with each other, all of which is critical
for the functioning of a democracy. Amid the fog of falsehood, the truth tends to lose out. Principled liars
can manipulate the truth more when they become powerful. (CLINTON, 2018, p.545, our translation).

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Three possible reasons exist as to why President Trump might influence the public’s social distancing
behavior. First, his potential to sway public opinion and behavior is not unique to him. Many presidents have
the capacity to influence public views because their role is that of leaders. Second, Trump has endeavored to
transform the role of the presidency into his former reality television show. As the star for the governmental
show, many people view him as a charismatic leader. Third, Trump’s messages hold a unique influence due
to the reinforcement of his messages by news networks, such as Fox News, and by conservative talk radio
hosts, such as Rush Limbaugh, who also achieve strong levels of viewership (GRAHAM et al, 2020).
Max Weber (2018, p.68, our translation), points “three internal reasons” that justify legitimacy.
The second is the one that concerns this investigation, that is, the authority based on an individual’s
personal and extraordinary gifts, such as charisma, strictly personal devotion and trust deposited in
someone who stands out for prodigious qualities, heroism or other exemplary qualities that make
him the chief. This is the charismatic power, exercised by the elected representative, the chosen
sovereign, the great demagogue and by the leader of a political party (WEBER, 2018).
In mid-April, Trump suspended funding the World Health Organization and declined to accept a
global effort to design a vaccine for Covid-19. A few days later, the president sent an e-mail, which
would later be published with irony on his Twitter account, demanding adaptation of the organization
under the penalty of the United States withdrawing from its list of members and a permanent
suspension of funding taking action (THAI, 2020).
In May, the attacks by the American president and his allies targeted the use of protective masks against
Covid-19, ridiculing Joe Biden, the main contender for re-election, who wore them. On the other hand, on
the perimeters of the White House, the general order was that everyone should wear them. The main social
networks used by the president to ridicule the use of masks were Twitter and Instagram (SCHERER, 2020).
Even in 2016, the president was already showing his personality and natural tendencies. The
personal attacks against the candidate for the presidency of the country were much reverberated
(FONTANA FILHO; PERSICH; TONEL, 2019). “Trump used personal attacks when he called Hillary a
puppet and a hideous woman” (FONTANA FILHO; PERSICH; TONEL, 2019, p.186, our translation),
corroborating that she was a terrorist and should be arrested.
The message the president sends to the public is that science must be underestimated and even ignored,
having as much value as a common opinion. In contrast, all North American governors recommended the
use of masks, while nine of them made their use mandatory in their respective states (SCHERER, 2020).
Finally, dealing with powerful waves of disinformation, Facebook, Twitter and Google have
positioned themselves to promote policies to search for false information, such as texts, videos,
photos and even cures that do not exist, banning the promoters of this disinformation and excluding
them from their respective communication networks (ROMM, 2020).
Throughout May, Trump had himself some of his Twitter messages deleted by the social network,
which motivated him to articulate his government in order to prevent this from happening again. The
social network’s policies argued that these were false messages that could lead to future errors. In
response, the president mobilized himself through executive orders, to guarantee his freedom to write
whatever he wants (CONGER; ISAAC, 2020).
On May 29, the president signed an executive order to the detriment of social media companies. He
justified himself by saying that he was defending free speech against censorship. The measure limits the
discretion of social networks, while adding executive power to hold the media accountable for the content
created by its users (FUNG et al, 2020). On the same day, Trump announced the severance of any ties between
the United States and the United Nations, fulfilling the ultimatum he had previously given (BORGER, 2020).
In august, not only Twitter, but Facebook as well have taken extraordinary action against President Trump
for spreading coronavirus misinformation. Facebook removed from Trump’s official account the post of a
video clip from a Fox News interview in which he said children are almost immune from Covid-19. Facebook
previously deactivated dozens of ads placed by President Trump’s reelection campaign team that included a
symbol once used by the Nazis to designate political prisoners in concentration camps (KELLY, 2020).
A study that analyzes the usage of Twitter by G7 world leaders in response to this pandemic found
that the majority of tweets fell within the Informative category, right followed by the Morale-boosting
category. The study found that the G7 leaders have a large following number of people on Twitter, a
combined 85.7 million followers (RUFAI; BUNCE, 2020). “A disproportionately high number of followers

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were attributed to the Twitter account of US President Donald Trump. This may in part be due to his
previous celebrity status through reality television and popular culture.” (RUFAI; BUNCE, 2020, p.515).
The communication and language used by world leaders can influence the opinions and behavior
of the public. “World leaders can use their influence to address crises, especially by disseminating
evidence-based information.” (RUFAI; BUNCE, 2020, p.512). It is essential, however, to consider the
impact of misinformation and propaganda during times of crisis and conflicts. During World War II, the
use of Nazi propaganda led to the demonization and mass murder of Jewish people. Misinformation
also negatively affects the views of the public on health matters (RUFAI; BUNCE, 2020).
“Twitter may represent a powerful tool for world leaders to rapidly communicate with citizens
during public health crises.” (RUFAI; BUNCE, 2020, p.515). However, that does not mean this
communication will necessarily take the form of help or informative directions. The impact of a leader’s
speech is concrete, but not the content.
Trump, for being a television presenter, has capabilities developed in rhetoric and dramatization.
Its placements are inflammatory, which naturally contributes to its popularity, even acting to misinform
those who listen to it (FONTANA FILHO et al, 2019). An executive leader who has the freedom to throw
people into ignorance and extricate an entire nation from its relationship with logical and empirically
verifiable science tends to hinder their survival. This freedom is dangerous, especially for the most
vulnerable members of society. It is easy to give out freedom, being only needed to let go, but so
easily as it is done, it is as well very dangerous (FONTANA FILHO, 2020).
The greater the freedom given to a man, the more intense is the impact of his nature (FONTANA
FILHO, 2020). It is not the aim of this investigation to demonize the character of the president of the
United States. All that it is done is an analysis of his speeches and decisions during the pandemic. On
the other hand, a chief position of State presupposes capacities such as organization and responsibility,
while times of exception empower these premises.

3 FINAL CONSIDERATIONS

The Covid-19 pandemic is not the first contagious disease to spread to different continents. It
is a virus with a high potential for suffering and death in elderly people and among those with pre-
existing health problems. Disinformation, in times of crisis, affects society mainly in relation to the
lower economic classes, which find it more difficult to comply with quarantine measures, but worse
still because people tend to seek quick cures for the ills they suffer.
Social networks, mechanisms of instant interaction and easy access to information, were the bastion of
the diffusion of untrue controversies and controversial opinions. In times of normality, the emphasis on their
role tends to go unnoticed. During the pandemic, it became very much evident that these advanced means
of communication failed people in their unsuccessful attempts to contain contagion through permissiveness
towards freedom of expression. John Locke (2012) opposes the idea of freedom when the people are
composed of beasts, as such a freedom would harm them. Therefore, liberty of expression given to bleach
drinking people does not sound like a reasonable option, as much as freedom may be valued.
The ability to disseminate information was abusive. The amount and multiplicity of untrue data
followed negligent government leadership. The president was not an example whose position is imbued
with expectations. He expressed himself as the well-known TV presenter, creating controversies instead
of guiding the public towards prevention and safety. The misinformation in the United States has been
leading people towards ignorance, full hospitals and death, or else, in the necropolitical language, the
State is letting those considered undesirable, to die. The impact of disinformation is of contributing to
the deaths of the most vulnerable groups, selectively picked and annihilated by negligence.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

POLÍTICAS PÚBLICAS, COMUNIDADE E DANOS COLATERAIS

Fernanda Lavinia Birck Schubert264


Patrick Meneghetti265

RESUMO: É possível conceituar políticas públicas a partir da ótica do Direito? Em sendo possível, quais
definições estão relacionadas ao conceito jurídico dessas políticas? Com o objetivo de responder a esses
questionamentos, problema da presente pesquisa, é que o artigo foi desenvolvido. Tal estudo se justifica
à medida que, considerando a interdisciplinaridade inerente ao tema políticas públicas e a carência
de estudos atuais relacionando o fenômeno jurídico a elas, propõe-se a esclarecer muitas confusões
semânticas que ocorrem a seu respeito, tendo como pretensão servir, além disso, como base teórica
inicial para os que se dedicam a estudar o tema. Metodologicamente, a pesquisa se ancora no método de
abordagem dialético, e é construída a partir de uma revisão sócio-histórico-bibliográfica sobre políticas
públicas e sua correlação com a comunidade, além da análise dos principais danos colaterais.

Palavras-chave: Estado Social. Políticas Públicas. Direito. Comunidade. Danos Colaterais.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta os resultados de um estudo semântico sobre políticas públicas, a partir de
uma revisão sócio-histórico-bibliográfica, tendo como objetivo principal sintetizar e elucidar os mais
importantes conceitos e definições relacionados ao tema, enfatizando as tentativas de conceituar
políticas públicas a partir do campo do Direito.
Pretende, assim, servir como um possível direcionamento inicial àqueles que se propõem a
navegar nos mares não tão mansos e pacíficos desta área multifacetada, mas tão basilar para estudos
interdisciplinares, extremamente necessários em dias atuais para dar conta dos diversos problemas
sociais, cada vez mais emergentes. Entende-se por conceito a verdadeira essência de políticas públicas
e por definição os detalhamentos e contornos necessários para esclarecer o conceito (SCHIMIDT, 2018).
Partindo desse estudo semântico inicial, o artigo se propõe a apresentar os principais conceitos
e definições relacionados às políticas públicas, e estabelecer suas conexões, em tempos líquidos, com
a comunidade, ou seja, com o locus principal de construção e de efetivação dessas políticas, definindo
e analisando os principais danos colaterais decorrentes da inefetiva ação do Estado social, quando
faltam políticas públicas ou essas são ineficientes.
Embora carregue em si a palavra “públicas”, a origem histórica das políticas públicas remete também
a estudos realizados pela iniciativa privada, ocorrida nos EUA. Apenas nos tempos atuais, enquanto ramo
das ciências sociais, elas passaram a ser estudadas e aplicadas prioritariamente no campo do Estado
social enquanto ente responsável por efetivar os direitos sociais às populações e às comunidades onde
elas estão inseridas. Até então esses direitos eram apenas positivados em documentos legais.
Autores mais contemporâneos alertam que as efetivas políticas públicas ocorrem no campo do
local, tendo em vista ele estar mais próximos dos cidadãos, promovidos a sujeitos ativos, devendo
eles, por conseguinte, serem considerados verdadeiros atores sociais.
Simplificadamente, enquanto conceito, as políticas públicas se configuram em respostas a problemas
políticos266. Ou seja, a “política significa a capacidade de decidir quais são as coisas que devem ser feitas,
ou seja, para que finalidade se deve usar o poder disponível” (BAUMAN, 2013, p. 128). Deve estar, portanto,

264 Acadêmica do 10º semestre do Curso de Direito da UNICRUZ. Integrante do Projeto de Pesquisa Estado de Direito e De-
mocracia: espaço de afirmação dos Direitos Humanos e Fundamentais. E-mail: fernanda_lbs@hotmail.com.
265 Mestre em Direito. Especialista em Direito Público com ênfase em Gestão Pública. Bacharel em Direito. Técnico-judiciário na
Vara Federal de Cruz Alta/Justiça Federal do Rio Grande do Sul/Tribunal Regional Federal da 4ª Região. E-mail: pch@jfrs.jus.br.
266 Por problemas políticos, entendem-se aqueles correlacionados à vida dos atores sociais na comunidade.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

atrelada ao poder, ou seja, a “uma abreviatura da capacidade de fazer coisas” (idem, ibidem).
Para Schmidt (2018, p. 122), “as políticas não são um setor ou departamento com vida própria.
Elas são o resultado do processo político, que se desenrola sob o pano de fundo institucional e
jurídico, e estão intimamente ligadas à cultura política e ao contexto social”, o que comprova a
importância de um estudo pormenorizado acerca dos seus elementos.
Metodologicamente, a pesquisa se ancora no método de abordagem dialético, já que, em
se tratando as políticas públicas na principal maneira de efetivar os chamados direitos sociais e
considerando o constante dinamismo desses direitos, decorrente da própria evolução da comunidade,
é preciso considerar a conexão entre objetos e fenômenos (GIL, 2008). Nesse contexto, vale destacar
que, a cada dia, o Direito também tem se tornado mais plural.
A presente pesquisa, é fruto do paradigma emergente da ciência pós-moderna, aberta ao diálogo
com as experiências da sociedade, seus valores e crenças, pois, partindo do senso comum, aqui
entendido positivamente como a realidade social, “utópica e libertadora” (SANTOS, 1987, p. 56), está
centrada na responsabilidade social do conhecimento, em razão da qual ele deve servir ao sentido
humanista, buscando uma verdadeira apreensão do mundo.
O estudo sobre políticas públicas se justifica, basicamente, conforme Schmidt (2018), sob dois
prismas: 1) o esclarecimento sobre a complexidade da gestão pública, multifacetada, sendo inclusive
influenciada na sociedade em rede atual por tecnologias, não podendo em hipótese alguma ser limitada
a reducionismos, já que eles tendem a autoritarismos; e 2) a necessária eficácia da participação cidadã,
a qual, embora advenha da ágora grega, parece, a cada dia, ceder espaço ao que Bauman (2013, p.
29-30) chama de “liberticídio para denotar essa combinação das novas e extravagantes ambições dos
Estados com a timidez e indiferença dos cidadãos”.
Salienta-se que, considerando a complexidade e, também, a interdisciplinaridade do tema
políticas públicas, o estudo se desenvolveu ancorado na prudência, definindo-a como sendo “a
insegurança assumida e controlada. Tal como Descartes, no limiar da ciência moderna, exerceu a
dúvida em vez de a sofrer, nós, no limiar da ciência pós-moderna, devemos exercer a insegurança em
vez de a sofrer” (SANTOS, 1987, p. 57)
Daí a importância que estudos como este merecem, já que, ao procurar esclarecer semanticamente
políticas públicas, evitando confusões advindas inclusive da popularização do termo, reforça o papel
ativo dos cidadãos na sua eficácia, inclusive cobrando do Estado social, já que são esses mesmos
cidadãos que sentem os danos colaterais da falta ou da ineficácia das políticas públicas.

1 A SEMÂNTICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Enquanto marco situacional, as políticas públicas precisam ser analisadas do ponto de vista
social e histórico. Logo, a melhor tentativa de conceituá-las não pode ser apartada do contexto sócio-
histórico em que os indivíduos estão inseridos. Assim, é no cenário do “Estado ativo, interventor na
economia e na vida social dos países capitalistas centrais” que se pode ambientar o estudo sobre
políticas públicas (SCHMIDT, 2018, p. 121). O welfare state ou Estado do bem-estar social é, portanto,
o campo das investigações sobre políticas públicas.
Inegavelmente, cuidados entre si, cooperação e espírito comunitário sempre estiveram presentes
na maioria das diversas sociedades históricas, sendo, inclusive, anteriores a polis grega e a res pública
romana. Essas sociedades se organizavam sob a égide de “ordens imaginadas” (idem, ibidem). No entanto,
é no Estado contemporâneo que o estudo sobre políticas públicas se encontra devidamente localizado.
Destaca o autor que “as políticas públicas configuram uma modalidade recente de atendimento de
demandas sociais, uma forma tardia de cuidar do que é público” (idem, ibidem, grifo nosso).
Historicamente, pode-se afirmar que sua origem remonta aos Estados Unidos, após a 2ª Guerra
Mundial, momento em que as instituições governamentais e, também, privadas, frisa-se, passaram a
reconhecer que uma boa gestão governamental precisava de base científica (SCHMIDT, 2018).
Por conseguinte, as políticas públicas se configuraram, na década de 50, como “subárea da ciência
política norte-americana (...), marcando uma mudança de foco nas investigações sobre política: em
lugar das estruturas e instituições políticas, (...) ação dos governos” (SCHMIDT, 2018, p. 119). Veja-se,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

porém, e infelizmente, que até os dias atuais estruturas e instituições, especialmente consolidadas
em sistemas burocráticos, ocupam um amplo e, muitas vezes, espaço desnecessário nas questões
envolvendo políticas públicas.
Como, em especial a partir dos anos 60, os governos da época se encontravam repletos de
problemas, e os cidadãos estavam insatisfeitos com a ineficiência da gestão pública que não dava
conta das suas demandas, a nova área se propôs a aplicar o conhecimento científico às várias questões
de governo, no seu agir (IDEM, IBIDEM).
Assim, “nas décadas de 1960 a 1980 predominou a orientação à solução de problemas,
assentada em métodos científicos, tendo como pano de fundo as premissas da democracia liberal e
do positivismo” (IDEM, IBIDEM, p. 120). Verifica-se que as políticas públicas não estavam a serviço dos
problemas sociais, mas sim “da política tecnocrática e autoritária”.
Hoje, um dos elementos básicos da melhor definição do que sejam políticas públicas traz em si a
intencionalidade como sendo fundamental ao agir político, ou seja, superando qualquer ideia de neutralidade,
devendo ao político fazer escolhas, o que, por si só, elimina qualquer ideia de inatismo. Observa-se, portanto,
que desde os anos 60 e até os dias atuais, as políticas públicas, em sua maioria, envolvem uma ação, e não
inação, embora alguns autores afirmem que o “não fazer” também é política pública, como Thomas Dye, para
quem “política pública é tudo aquilo que os governos decidem fazer ou não fazer” (SCHIMIDT, 2018, p. 126).
Nos anos 90, o pós-positivismo, sem deixar de lado a experiência concreta, passou a dar
ênfase à análise do discurso político e afirmou seu compromisso com a participação democrática.
Preliminarmente, convém delimitar que a busca pela definição de políticas públicas se correlaciona
ao cenário do Estado Democrático de Direito. Isso significa que se opta por pensar a melhor definição
dessas políticas em realidades nas quais todo o poder emana do povo que o exerce de forma direta
ou, como é o caso no Brasil, por seus representes eleitos, configurando a chamada Democracia
Representativa. Por conseguinte, articula-se essa democracia com o respeito à lei.
Como bem afirma Silva (2012, p. 232), “em formações sociais nas quais prevalece a democracia,
as políticas públicas expressam a dinâmica da cidadania e as mediações dos direitos como fundamento
da organização dos poderes coletivos”. Reforça Bauman (2013, p. 22) que “se os direitos democráticos,
e as liberdades que os acompanham, são garantidos na teoria, porém inatingíveis na prática, a dor
da desesperança sem dúvida será coroada pela humilhação da infelicidade”. Nesse sentido, para
entender os problemas da sociedade, necessário reconhecer a importância da interdisciplinaridade no
seu tratamento e o envolvimento de vários agentes nas questões públicas (SCHIMDT, 2018, p. 120).
Comparativamente, enquanto na Europa as pesquisas sobre políticas públicas seguiram se
desenvolvendo a partir dos anos 70, preocupando-se em explicar o papel do Estado e também do governo,
afastando-se do positivismo e com críticas ao liberalismo, no Brasil, a partir dos anos 80 e, em especial nos
anos 2000, as políticas públicas ganharam lugar de destaque, fazendo parte da mídia, dos documentos
públicos, dos discursos das autoridades políticas e nas pautas dos movimentos sociais (idem, ibidem).
Conforme ressalta Schmidt (idem, ibidem, p. 120), “a popularização do termo foi acompanhada
da falta de rigor e da polissemia comuns na popularização de termos técnicos. Políticas públicas
tornou-se sinônimo de ação governamental”. Considerando a amplitude desse conceito, poder-se-ia
compreender que políticas públicas incluiria, por exemplo, a simples compra de material de expediente
para o funcionamento de um órgão público até os investimentos em saúde com o propósito de
prevenir a contaminação por Covid-19. Daí a imprecisão e vagueza do conceito trazido por Dye.
Como contexto inicial, verifica-se, então, que a base da definição de políticas públicas está nas
demandas sociais vinculadas a problemas políticos. Assim, a política pública é uma resposta a um
problema político (idem, ibidem). Ou seja, “as políticas designam iniciativas do Estado (governos e
poderes públicos) para atender demandas sociais referentes a problemas políticos de ordem pública
ou coletiva” (idem, ibidem, p. 122).
Percebe-se claramente que, como as demandas são maiores do que a capacidade para dar respostas,
os gestores públicos necessitam fazer escolhas, ou seja, adotar prioridades. Evidentemente que essas
escolhas costumam estar de acordo, por exemplo, com a ideologia do governante, apresentada aos
eleitores durante o período eleitoral ou, até mesmo, com a cultura política vigente em determinado
período histórico.
Partindo, então, de que a política pública é a resposta a um problema político, a

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

concepção sistêmica proposta por David Eanston (1968) consagra a lógica input-output, que pode
ser resumida assim: a) os inputs são as demandas e apoios provenientes do ambiente social; b)
o sistema político (instituições, agentes) processa esses inputs; c) os outputs são as políticas
públicas adotadas, na forma de decisões e ações; d) há um processo de retroalimentação entre
inputs e outputs. (SCHIMIDT, 2018, p. 123).

A partir da lógica input-output, conclui-se que as políticas têm origem clara, não sendo ações
repentinas ou sem qualquer propósito pelos governantes. Essa origem não está no próprio Estado ou
na burocracia que, muitas vezes, é inerente a ele. Estão “associadas ao contexto sócio-histórico ao
qual pertence o Estado” (idem, ibidem, p. 123).
Considerando que as políticas públicas são respostas a problemas políticos, pode-se afirmar
que os problemas políticos são problemas públicos, e não privados, ou seja, são de todos. São,
também, problemas coletivos, isto é, ligados a uma determinada coletividade social, como é o caso,
por exemplo, da política de distribuição de terras aos indígenas no Brasil.
Se a demanda por políticas públicas (input) é maior do que a resposta do Estado (output), forma-se os
chamados danos colaterais, já que nem todos serão atendidos por essas políticas. Para Bauman (2013, p.
15), as baixas podem ser colaterais ou inesperadas, quando, respectivamente, “[...] rejeitadas como não
importantes o suficiente para justificar os custos de sua prevenção” ou “[...] porque os planejadores não
as consideraram dignas de serem incluídas entre os objetos das ações de reconhecimento preparatório”.
Como bem destaca Laswell apud Schmidt (2018, p. 124), considerando as políticas públicas
como respostas a determinados problemas, elas não respondem a todos coletivamente, sendo que
alguns acabam privilegiados. Assim, “o estudo da política é o estudo da influência e de quem é
influente, sendo que as pessoas influentes são aquelas que se apropriam da maior parte do que é
apropriável. Os valores à disposição são deferência, renda e segurança”. Nesse sentido, os receptores
desses valores pertencem à “Elite” e o restante pertencem à “Massa”267.
Como tentativa de compensar essas desigualdades, surgem as chamadas políticas públicas
redistributivas, as quais buscam equalizar a distribuição de recursos, passando dos mais ricos aos mais
pobres. No entanto, mesmo que não atendam a todos da mesma forma, as políticas públicas não devem
perder o ideal de universalidade, que deve ser referência aos gestores públicos (SCHMIDT, 2018).
Vale destacar, ainda, que as políticas públicas nem sempre são justas, inclusive também configuram
políticas públicas medidas muitas vezes consideradas impopulares por parte dos governantes para,
por exemplo, reduzir a inflação. Quanto ao fracasso das políticas públicas, podem ser destacados,
além da incompetência, a falta de vontade e a corrupção dos governantes,

a) consequências negativas derivadas de um estilo de gestão excessivamente centralizado ou desarticula-


do; b) a falta de uma visão sistêmica no planejamento (de modo que os efeitos positivos de uma política
são anulados pelos efeitos negativos de outra); c) a supremacia de interesses particulares poderosos (mui-
tas vezes invisíveis) sobre os interesses da maioria; d) o predomínio de valores e crenças na sociedade que
obstaculizam a implementação de políticas (...); e) os limites (insuperáveis) da inteligência humana na to-
mada de decisão pública; f) recursos escassos para atender demandas sociais crescentes; g) a interferência
de forças macrossociais que estão além do controle dos gestores (SCHMIDT, 2018, p. 125-126).

Nesse contexto de falhas governamentais, há ainda as chamadas medidas paliativas, que não se
configuram em verdadeiras políticas públicas, apresentando-se apenas como simulacros, tendo como
objetivo principal desviar a atenção para os reais problemas dos cidadãos.
Para Schmidt (2018, p. 126), “ações isoladas não fazem uma política. Nenhum problema político
pode ser resolvido mediante uma única ação ou por algumas poucas ações fragmentadas”. Por
conseguinte, no Brasil, segundo o Ministério da Saúde brasileiro:

Políticas Públicas configuram decisões de caráter geral que apontam rumos e linhas estratégicas de
atuação governamental, reduzindo os efeitos da descontinuidade administrativa e potencializando os
recursos disponíveis ao tornarem públicas, expressas e acessíveis à população e aos formadores de opi-
nião as intenções do governo no planejamento de programas, projetos e atividades. (BRASIL, 2006, p. 9)

267 Para Schmidt (idem, ibidem, p. 123), “em sociedades desiguais, comuns na maior parte do planeta, no passado e no
presente, o poder público raramente adota ideias que beneficiam a todos por igual”. Completa Bauman (2013, p. 15) que “na
seleção de candidatos a danos colaterais, os pobres progressivamente criminalizados constituem os ‘fracassados’ – marca-
dos de modo permanente, como tender a ser, pelo duplo estigma de desimportância e falta de mérito”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Imperioso mencionar que, conforme essa definição apresentada, as políticas públicas acontecem
a partir de recursos públicos, leia-se dinheiro público. Daí a importância do controle social, através da
fiscalização pelos atores sociais. Exige-se, assim, o empoderamento e qualificação desse capital social.
Não se pode deixar de destacar os formadores de opinião, os quais, especialmente no cenário de fake
news em que se vive atualmente, são capazes, muitas vezes, de distorcer o sentido das políticas públicas.
Por fim, ao trazer “as intenções do governo”, pressupõe-se a necessidade das políticas atenderam
ao que expressamente traz a Constituição Federal no seu artigo 37, ou seja, o princípio da publicidade.
Segundo Schmidt (2018, p. 127), “o Estado deixa de ser uma ‘caixa preta’ na medida em que as
diretrizes governamentais são conhecidas, de modo que os cidadãos podem apoiar, monitorar ou
lutar para alterar a política pública”.
Schmidt (2018, p. 127), por sua vez, define política pública como sendo “um conjunto de decisões
e ações adotadas por órgãos públicos e organizações da sociedade, intencionalmente coerentes entre
si, que, sob coordenação estatal, destinam-se a enfrentar um problema político”.

2 CONCEITUANDO JURIDICAMENTE POLÍTICAS PÚBLICAS

Por conseguinte, qual o conceito jurídico de políticas públicas? Como um estudo originário das
ciências políticas e sociais, embora se torne, ainda hoje, difícil conceituá-las sob a ótica do Direito,
para Bucci (2006) as políticas públicas se efetivam a partir de regras oriundas do ordenamento jurídico,
seguindo, inclusive, o princípio da legalidade, segundo o qual o Estado só pode agir conforme a lei.
Embora a linguagem do direito e a linguagem das políticas públicas mantenham a sua
singularidade, “a comunicação entre o Poder Legislativo, o governo (direção política) e a Administração
Pública (estrutura burocrática) é delimitada pelo regramento pertinente”. (BUCCI, 2006, p. 37).
Frise-se, assim, a partir das atribuições específicas da linguagem das políticas públicas e da
linguagem do direito, que aquelas não podem desrespeitar padrões de legalidade e, também, de
constitucionalidade, partindo do pressuposto que a Constituição Federal, no caso brasileiro, ocupa a
hierarquia das normas legais. Nesse sentido, atos e omissões envolvendo políticas públicas, além das
suas consequências, passam a ser reconhecidos pelo Direito.
Bucci (2006), ao definir juridicamente políticas públicas, em tempos atuais, destaca o aspecto
processual do termo, já que, segundo ela, “a política pública só pode ser compreendida como arranjo
complexo, conjunto ordenado de atos” (p. 38-39). Enfatiza ainda a autora que, ao trazer para o
campo jurídico a noção de políticas públicas, almeja-se a diminuição do problema da “esterilização
do direito”, muitas vezes centrado apenas na “objetividade” e na “cientificidade”, não acompanhando
o caráter dinâmico e funcional da sociedade e, consequentemente, das políticas públicas (2001, p. 6).
Segundo a autora (idem, 2001, p. 6), “por definição, todo direito é política pública, e nisso está
a vontade coletiva da sociedade expressa em normas obrigatórias; e toda política pública é direito;
nisso ele depende das leis e do processo jurídico”. Parte-se do pressuposto que as leis, ao menos
teoricamente, emanam das necessidades sociais.
Juridicamente, então, política pública

é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos


juridicamente regulados (...) visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades
privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.
Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a
seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo
em que se espera o atingimento dos resultados (BUCCI, 2006, p. 39).

Para Rua (2014, p. 18), “embora as políticas públicas possam incidir sobre a esfera privada, elas
não são privadas”. Ainda que seja possível a participação de entidades privadas na sua formulação e,
até mesmo, na sua implementação, isso só ocorre se amparada em decisões públicas, “tomadas por
agentes governamentais, como base no poder imperativo do Estado” (idem, ibidem). Por conseguinte,
a dimensão pública das políticas públicas não se encontra no agregado social, ou seja, no maior ou
menor número de pessoas em que elas incidem, mas sim pelo seu caráter jurídico imperativo. Trata-
se da autoridade soberana do poder público (RUA, 2014).

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Por processo se pressupõe um percurso que tende a culminar em um objetivo, especificamente


relacionado à dimensão participativa, ou seja, à participação popular. Inclusive, para Perez (2006, p.
163), a participação da sociedade na formulação e fiscalização de políticas públicas se configura em um
princípio jurídico, pois “é por meio de processos de decisão que permitam o diálogo entre a sociedade e a
Administração Pública que esta aumenta o grau de eficiência de sua atuação”. Reforça o autor que, no Brasil,
esse princípio, inclusive, faz parte tanto do Direito Constitucional quanto do Direito Administrativo268.
Assim, “no lugar da imperatividade tradicional, a Administração, hoje, deve procurar mudar suas
relações com a sociedade, (...) procurando o convencimento, a persuasão, a sedução, esforçando-se,
enfim, para obter a adesão dos cidadãos às políticas governamentais” (PEREZ, 2006, p. 166-167).
Resume-se ao que o autor chama de trinômio participação, eficiência e legitimidade.

3 SOBRE A NOÇÃO DE COMUNIDADE

Mundialmente, o Estado Liberal dá espaço ao Welfare State a partir da crise econômica de 1929 e das
consequências da 2ª Guerra Mundial. No cenário brasileiro, é a partir da Revolução de 30 que esse Estado
ganha espaço (PEROBELLI, SCHMIDT, 2011). Nesse contexto, a dimensão social passa a ser a prioridade.

O Estado Social de Direito surge como promessa de efetivação dos direitos formalmente assegurados
na era liberal e incorpora à primeira dimensão de direitos (os direitos civis e políticos) uma segunda
dimensão (dos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos), trazendo em
seu bojo a necessidade de se realizar uma releitura dos primeiros direitos, chamados fundamentais,
adaptados à demanda social. O princípio da igualdade material substituiu a ideia de mera
igualdade formal. (IDEM, IBIDEM, p. 149, grifo nosso)

Junto ao cenário do Welfare State esteve a construção da democracia, a qual acompanhou


a afirmação, crise e tentativa de renovação desse Estado. As políticas públicas, por conseguinte,
somente são possíveis de serem pensadas e efetivadas em contextos democráticos. A democracia,
segundo Bauman (2013, p. 17), “é a forma de vida da ágora: aquele espaço intermediário que liga/
separa dois aspectos da pólis: a ecclesia e o oikos. (...) Oikos significava onde os interesses privados
eram constituídos (...) e ecclesia o ‘público’”.
Mesmo que com a expansão das cidades fosse impossível manter essas praças públicas, a
democracia, ao longo da história, sempre tentou manter a memória da ágora. Para Bauman (ibidem, p.
18), “a história da democracia pode ser narrada como a de sucessivos esforços para manter vivos tanto
o propósito quanto a busca de sua concretização após o desaparecimento de seu substrato original”.
No longo percurso histórico das sociedades democráticas, porém, verifica-se que a grande
dificuldade da democracia reside na dicotomia entre a universalidade meramente formal dos direitos
democráticos, garantidos a todos os cidadãos, indistintamente, e a capacidade desses cidadãos de,
concretamente, terem os seus direitos efetivados (BAUMAN, 2013).
Na tentativa de superar essa dicotomia, surge o chamado “Estado de bem-estar social”, o qual
Bauman (2013) prefere chamar de Estado social269. Sobre a importância desse Estado, prossegue o autor:

Pouca ou nenhuma expectativa de socorro no que se refere à indolência ou impotência individuais


pode advir de um Estado político que não seja (e se recuse a ser) um Estado social. Sem direitos
sociais para todos, um número amplo e provavelmente crescente de pessoas irá considerar seus
direitos políticos de pouca utilidade e indignos de atenção. Se os direitos políticos são necessários
para que se estabeleçam os direitos sociais, estes são indispensáveis para que os direitos políticos
se tornem “reais” e se mantenham em operação. Os dois tipos de direitos precisam um do outro
para sobreviver; sua sobrevivência só pode ser uma realização conjunta.

268 Pode-se citar, a título de exemplo, como institutos de participação: conselhos, comissões e comitês participativos; a
consulta pública; o orçamento participativo; o referendo; o plebiscito; dentre outros. Esses institutos têm como função a efi-
ciência e a legitimidade das políticas públicas. Nesse sentido, através do princípio jurídico da participação, a Administração
Pública se coloca numa relação horizontal com a sociedade, criando uma cultura do diálogo.
269 Segundo ele (BAUMAN, 2013, p. 24), elimina “a ênfase de distribuição de benefícios materiais para pô-la no processo de
construção comunitária que motiva sua implantação”. Ou seja, na visão do autor, no Estado social deve haver a participação
ativa do cidadão para que, de fato, os seus direitos sociais sejam efetivados.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

O Estado social, então, acaba por substituir a regra do egoísmo, responsável por gerar
desconfiança e suspeita, pela regra da igualdade, que inspira confiança e solidariedade (idem). Esse
Estado materializa a ideia de comunidade, enquanto memória da ágora, ou seja, trata-se de uma
“‘totalidade imaginada’ – composta de dependência, comprometimento, lealdade, solidariedade e
confiança mútuos” (BAUMAN, 2013, p. 22), na qual há uma sensação de segurança quase integral e a
ideia de surpresa ou desconcerto não costuma fazer parte.
Verifica-se a ideia mítica que o homem pode ter de comunidade, para quem ela é composta
exclusivamente por pessoas boas, na qual a empatia e a alteridade são valores essenciais. No entanto,
alerta Bauman (2003), as comunidades reais não são assim, inclusive muitas comunidades historicamente
reconhecidas se revelaram opressivas e limitantes. Há, ainda, conforme ele, as chamadas comunidades
estéticas, as quais substituem a vida real por simulacros e laços líquidos, valendo-se da metáfora
utilizada pelo autor que remete à fragilidade das relações, em que nada é feito para durar.
Sendo os conflitos inevitáveis nas comunidades, já que elas agregam pessoas com diferentes
características e valores, há duas possíveis maneiras para solucionar esses conflitos: pela coerção
ou pela política (RUA, 2014). Segundo a autora, o consenso não ocorre natural ou automaticamente,
precisando ser construído. Já que a coerção pressupõe, muitas vezes, inclusive o uso da violência e
pode gerar elevados custos, os membros da comunidade optam pela política.
Então, o que é política no contexto da comunidade? Para SCHMITTER (1984, p. 34), numa visão
simplificada, “política é a resolução pacífica para os conflitos”. Em complemento, para Rua (2014, p.
15), “política consiste no conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de
poder e que se destinam à resolução pacífica dos conflitos quanto a bens públicos”. Assim, trata-se de
força exercida pelo Estado para valer o direito tendo como objetivos construir consensos ou controlar
os conflitos. Ou seja, a política é constitutiva e essencial da vida social.
Nesse cenário, as políticas públicas somente são possíveis em um verdadeiro Estado social, que
realmente é verdadeiro “quando promove o princípio da comunalidade endossada, do seguro coletivo
contra o infortúnio individual e suas consequências. É esse princípio (...) que ergue a ‘sociedade
imaginada’ até o nível de uma ‘totalidade autêntica’” (BAUMAN, 2013, p. 25).
Esse princípio da comunalidade endossada é capaz de elevar simples membros de uma sociedade
à real condição de cidadãos de direitos e, também, cidadãos de ações de uma sociedade politicamente
organizada, “beneficiários, mas também atores responsáveis pela criação e alocação decente dos
benefícios” (idem, ibidem). Configura-se, assim, o que Perez (2006, p. 170) chama de “políticas
públicas do povo, pelo povo e para o povo”.

4 DANOS COLATERAIS E DESIGUALDADES SOCIAIS NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Apesar de a pobreza ser comumente associada à desordem e ao desrespeito à lei, sua origem é
social, intensificada pelo estímulo ao consumo, configurando uma verdadeira política consumerista, e
pela ausência de oportunidades de vida para escapar dela de “forma socialmente aprovada e garantida”
(BAUMAN, 2013, p. 11). Completa o autor que, para muitas autoridades, lamentavelmente, “a desigualdade
não é em si mesma um perigo para sociedade como um todo, nem uma fonte dos problemas que a afetam
(...), já que a qualidade do todo deve ser avaliada pela média de suas partes” (idem, ibidem, p. 8-9).
A partir disso, surgem os danos (ou baixas ou vítimas) colaterais, expressões utilizadas
originalmente pelos jornais para se referir aos imprevistos ocorridos em forças expedicionárias
militares270 (BAUMAN, 2013). Trazendo para o contexto do estudo sobre políticas públicas, pensar em
termos de danos colaterais é “presumir tacitamente uma desigualdade de direitos e oportunidades
preexistente, ao mesmo tempo que aceita a priori a distribuição desigual dos custos da ação
empreendida (ou, nesse sentido, de se desistir dela)” (BAUMAN, 2013, p. 12).
Diante desse cenário, importante o questionamento: a quem cabe a busca na redução desses danos cola-
terais, formulando e implementando políticas públicas? Originalmente, em regra, criar e implementar políticas
públicas não está nas atribuições do Poder Judiciário, sendo esse papel inerente ao Poder Executivo e Legislativo.

270 Esses imprevistos não faziam parte do planejamento da operação. Também poderiam ser interpretados como “risco
válido, levando-se em conta a importância do objetivo militar” BAUMAN, 2013, p. 11).

576
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Porém, a título de exceção, caso os órgãos do Estado deixem de cumprir com os seus “encargos políti-
co-jurídicos, comprometendo, por exemplo, a integridade de direitos individuais e sociais”, segundo o enten-
dimento do Supremo Tribunal Federal, pode o Poder Judiciário receber a incumbência de criar e implementar
políticas públicas. Trata-se do controle judicial de atos administrativos, nos casos de “ineficiência administra-
tiva, descaso governamental com direitos básicos do cidadão, incapacidade de gerir recursos públicos (...),
inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais (...)”.
Para Bucci (2001, p. 10), então, considerando que as políticas públicas atuam no campo
mais operacional do direito, nos casos da sua não efetivação resta a “justiciabilidade, isso é, a
possibilidade de o indivíduo exercer o direito de ação e exigir do Poder Judiciário medidas em relação
ao descumprimento do princípio jurídico ou ao desatendimento ao direito”. Isso porque as políticas
são criadas com o propósito de realizar objetivos concretos, determinados, ao passo que as leis
costumam ser gerais e abstratas (idem).
Complementa a autora (idem, ibidem, p. 12) que, atualmente, há um verdadeiro alargamento
da justiciabilidade do direito, “passando a abarcar todo o caminho de efetivação de um direito, desde
o seu nascimento, quando é previsto na norma, até a sua emancipação, quando é encartado em
determinado programa de ação de um governo (...)”.
Ressalva-se, porém, que, mesmo diante desse alargamento da justiciabilidade, com a passagem
do “Estado-serviço público para o Estado-políticas públicas” (BUCCI, 1997, p. 91), ainda faltam ao direito
instrumentos para regrar sistematicamente as tarefas do Estado na administração das políticas públicas.
Assim, considerando esse alargamento da justicibialidade em razão, inclusive, da falta de
instrumentos jurídicos para regrar a atuação do Estado-políticas públicas, para Bauman (2013, p.
15), “a probabilidade de se tornar “vítima colateral” de algum empreendimento humano, ainda que
nobre em seu propósito declarado, (...) é hoje uma das dimensões mais marcantes e surpreendentes
da desigualdade social”. Isso se deve ao status baixo e ainda em queda, prossegue o autor, das
desigualdades sociais na agenda política contemporânea, pois, como o presente artigo já demonstrou,
as políticas públicas estão diretamente ligadas ao fazer ou não fazer dos governantes.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os direitos sociais, para Bucci (2001, p. 8), são entendidos como “direitos meios, isto é, direitos
cuja principal função é assegurar que toda pessoa tenha condições de gozar os direitos individuais
de primeira geração”271. Porém, ao tomar para si a responsabilidade de garantidor do bem estar
social, através da efetivação desses direitos, como saúde, educação, seguridade social e habitação,
o “welfare state agigantou-se e acabou enredado em um excesso de meios (burocratização) (...)”
(PEROBELLI, SCHMIDT, 2011, p. 150).
Assim, “muitas vozes, em parte com viés neoliberal, em parte com outros matizes políticos,
passaram a defender uma visão de Estado centrada na articulação de políticas públicas (...), delegando
serviços à iniciativa privada e à sociedade civil” (idem, ibidem, p. 150). Não obstante a delegação de
serviços à iniciativa privada ou à sociedade civil, o Estado (...) é um sistema operacional cujo poder
regulatório ultrapassa os seus próprios limites organizacionais e se estende sobre a sociedade como
um todo – sendo, por isso, chamado de “poder extroverso” (RUA, 2014, p. 19), diferente de outras
organizações da sociedade, cujas normas e regulamentos se limitam internamente.
As políticas públicas são resultantes da atividade política e esta consiste na resolução pacífica de
conflitos, processo essencial à preservação da vida em sociedade (RUA, 2014, p. 19). Todavia, embora a
noção de comunidade traga uma certa segurança, na opinião de Bauman (2013), o Estado social não tem
como erradicar a pobreza isolado. Segundo o autor, a verdade, mesmo que pareça enfraquecer a democracia,
é que “não podemos defender efetivamente nossas liberdades em nossa própria terra colocando cercas
entre nós e o resto do mundo e cuidando apenas dos nossos interesses” (idem, ibidem, p. 31).
Prossegue o autor (2013, p. 16) que “a mistura explosiva de crescente desigualdade social e
volume cada vez maior de sofrimento humano relegado à condição de ‘colateralidade’ (marginalidade,

271 A título de exemplo a autora traz o direito à educação como um garantidor do direito à livre manifestação do pensamento.

577
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

exterioridade, ‘removibilidade’, de não ser uma parte legítima da agenda política’” se tornará nos
maiores problemas a serem enfrentados a resolvidos pela humanidade no século atual.
Substituindo o Estado social, somente o planeta social é capaz de resolver os problemas da pobreza,
da desigualdade e, de modo mais geral, dos danos colaterais da globalização. E esse planeta social será
formado não a partir dos Estados soberanos, mas sim “organizações a associações não governamentais
cosmopolitas, aquelas que atingem diretamente as pessoas necessitadas por sobre as cabeças dos
governos locais ‘soberanos’ e sem interferência deles”, segundo Bauman (idem, ibidem, p. 38).
Ao que tudo indica, Bauman parece estar certo. Porém, como destaca Bucci (2001), toda política
pública deve ser considerada uma política social e, como tal, multifacetada e interdisciplinar. Sendo
assim, é de interesse do campo jurídico, especialmente em razão do aumento da pluralidade do
Direito, buscar também conceituar políticas públicas. Destaque-se, ainda, que uma ordem jurídica
bem estabelecida pode ser instrumento significativo de melhoria social e, consequentemente, de
efetivação de políticas públicas, sejam elas a partir do Estado social ou do planeta social.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

PROMOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS ATRAVÉS


DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE MEMÓRIA:
O CASO BRASILEIRO EM CONSTANTE DISPUTA

Fernanda R. Abreu Silva272

RESUMO: O ponto central deste artigo é apresentar brevemente a construção de políticas públicas de
memória como promoção de direitos humanos, cujos objetivos seriam lidar com a herança do passado
autoritário e consolidação de uma estabilidade democrática – trazendo a experiência do caso brasileiro.
Para tal, o texto foi elaborado a partir de um encadeamento de ideias: inicialmente, apresenta-se a relação
das políticas públicas com os direitos humanos; em seguida, discorre-se sobre o estabelecimento da
memória como um direito e, por fim, como políticas públicas voltadas à questão da memória podem
ser instrumentos para promoção dos direitos humanos numa sociedade atravessada pelo autoritarismo.

Palavras-chave: Democracia. Ditadura civil-militar. Justiça de Transição. Não repetição. Políticas de


memória.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo apresentar brevemente a importância das políticas públicas
de memória para o fortalecimento da democracia. Ao lembrar e reparar, o Estado assume a sua
responsabilidade nas graves violações de direitos humanos praticadas contra cidadãos que resistiam
ao regime autoritário. Assim, tem-se um empenho para que essas ações não voltem a ser adotadas,
elaborando políticas públicas a partir da perspectiva dos direitos humanos.

1 POLÍTICAS PÚBLICAS E SUA RELAÇÃO COM DIREITOS HUMANOS

Discorrer sobre a relação das políticas públicas com os direitos humanos envolve primeiramente
apresentar quais são esses direitos.273 Os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes,
isso significa que são universais porque se estendem a todos os sujeitos, bastando apenas a condição de
pessoa humana – ou seja, ser um ser humano – para que seja dotado de direitos. São indivisíveis porque
sua importância é equiparável, logo os direitos sociais e culturais, por exemplo, são tão necessários
quanto os direitos econômicos – não há uma hierarquia de direitos. Por fim, são interdependentes porque
a garantia de uns assegura a existência de outros, como o direito à formação de sindicatos (segunda
geração) garante o direito de participação política direta ou indireta (primeira geração), dentre outros.
Esses direitos são divididos em quatro gerações ou dimensões apenas para efeitos didáticos – uma
vez que são indivisíveis e interdependentes. São eles: i) direitos à liberdade; ii) direitos à igualdade; iii)
direitos à solidariedade, direito a uma nova ordem internacional; direitos metaindividuais e direitos
difusos; e iv) direitos das gerações futuras.
Por sua abrangência, a garantia desses direitos não é dada somente quando são transformados
em leis; é preciso formular políticas públicas para assegurá-los. São necessárias políticas específicas
para ratificar o acesso universal e indivisível dos direitos humanos, bem como é igualmente necessário
que os direitos humanos fundamentem toda política pública independentemente do seu objetivo.

272 Graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestra em História na Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e doutoranda em Direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), na linha de Direitos
Humanos. Contato: fernandaabreu2@gmail.com
273 Há uma extensa bibliografia que discute o surgimento (ou surgimentos) dos direitos humanos, de cada uma das suas gerações,
que não convém expor novamente aqui. Sobre isso, ver os trabalhos de Lynn Hunt, Fábio Konder Comparato, entre outros.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Segundo Maria Paula Dallari Bucci (2011, p.13), as políticas públicas servem como meios de
organizar o planejamento estatal a fim de se estabelecer prioritariamente os seus objetivos diante da
crescente demanda por direitos. Seria um mecanismo em que interesses individuais são agregados
e passam a compor uma coletividade de interesses. Assim, sendo a política pública um meio de
realização da ação do governo, é imperativo que os direitos humanos alicercem sua elaboração.
Apenas com o desenvolvimento de políticas públicas baseadas em direitos humanos – e políticas
de direitos humanos – que se cria circunstâncias políticas e sociais apropriadas para que os sujeitos
conheçam os seus direitos individuais e coletivos, bem como possam desfrutar e colocá-los em
prática. Uma educação política e social também se faz por meio de políticas públicas e através dela a
população pode se empoderar e se reconhecer como possuidora de direitos.
Considerando a dignidade humana como o objetivo final desse conjunto de garantias que é chamado
de direitos humanos, entende-se que a pessoa é portadora de direitos independentemente de qualquer
singularidade. Atentar contra a dignidade humana, ou seja, violar os direitos humanos, é um meio de
não reconhecer o outro enquanto sujeito ou mesmo ser humano. Vê-se bem que o não reconhecimento
do outro é o fundamento de agressões a gênero e raça, a imigração etc., pois ao não admitir a existência
da particularidade, como um ser singular, o agressor procura diminuir a existência do outro na sua
humanidade. Torna-o um objeto que pode ser lesado já que não é reconhecido como igual.
Dessa forma, os primeiros direitos a serem forjados, os de primeira geração, tratam da igualdade
a fim de garantir a dignidade humana: direito à vida, direito a não escravidão, a não ser torturado, a
igualdade dentro do casamento etc. Flávia Piovesan fala que essa “plataforma emancipatória voltada
à proteção da dignidade humana” (2014, p.33) relaciona-se à concepção contemporânea dos direitos
humanos inaugurada com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)274 que, logo após a
Segunda Guerra Mundial, deu início ao entendimento de que a dignidade humana é inerente aos direitos.
Posteriormente, a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 reiterou essa concepção.
A conferência da qual resultou esta declaração, II Conferência Mundial de Direitos Humanos,
contou com mais de duas mil organizações não-governamentais (ONGs) e reuniu cerca de dez mil
pessoas ao longo de 15 dias de evento, além da representação oficial de 171 nações. Apesar dos
conflitos e o enfrentamento de temas polêmicos, o resultado da conferência apontou a princípios
norteadores (DORNELLES, 2003), como no artigo quinto que trata da universalidade, interdependência,
indivisibilidade e interrelação entre os direitos humanos, e, sobretudo, pelo artigo oitavo que diz:

A democracia, o desenvolvimento e o respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades


fundamentais são interdependentes e reforçam-se mutuamente. A democracia assenta no desejo
livremente expresso dos povos em determinar os seus próprios sistemas políticos, econômicos,
sociais e culturais e a sua participação plena em todos os aspectos das suas vidas. Neste contexto,
a promoção e a proteção dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais, a nível nacional
e internacional, devem ser universais e conduzidas sem restrições adicionais. A comunidade
internacional deverá apoiar o reforço e a promoção da democracia, do desenvolvimento e do
respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades fundamentais no mundo inteiro (ONU, 1993).

Sobre isso, Piovesan comenta que “não há direitos humanos sem democracia, tampouco democracia
sem direitos humanos” (2014, p. 37). Como já mencionado, uma população que é ciente de seus direitos
políticos e sociais, agrega poder e se torna capaz de pressionar os governos, além de se articular politicamente.
A Carta de Viena apontou ainda a necessidade de elaboração de programas de políticas públicas voltados
para a prevenção e o combate a violações aos direitos humanos (artigo 20, parte II), bem como a obrigação
dos Estados de garantirem o pleno exercício de direitos a minorias sociais (art. 19, parte I).
Assim, tanto a Carta de Viena quanto outros acordos e resoluções da Organização das Nações Unidas
(ONU) a respeito dos direitos humanos criaram uma série de obrigações ao Estado: os seus órgãos devem
respeitar os direitos humanos, não podendo violá-los seja por ação ou por omissão; devem fiscalizar para que
pessoas ou entidades (não-estatais) não cometam violações; garantir que os direitos sejam exercidos e pro-
mover ações a fim de cumprir as obrigações internacionais na temática (VÁZQUEZ; DELAPLACE, 2011, p. 42).

274 “A Declaração Universal de Direitos Humanos se distingue das tradicionais Cartas de direitos humanos que constam de diver-
sas normas fundamentais e constitucionais dos séculos XVIII e XIX e começo do século XX, na medida em que ela consagra não
apenas direitos civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho e à educação”.
Louis B. Sohn e Thomas Buergenthal apud PIOVESAN, F. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014. 7. ed. p. 54.

581
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Para cumprir com tais obrigações, não basta ao Estado criar um conjunto de dispositivos legais
se não houver uma real aplicabilidade; é necessário criar políticas públicas que contemplem esses
diplomas e os insira na sociedade. Inclusive, são as políticas públicas que permitem assegurar que
esses direitos sejam efetivamente exercidos. Cabe então ao Estado promover não só os direitos
humanos e seu exercício pleno, como também encorajar a temática na sociedade através de programas
e projetos para que haja mobilização social e participação popular, uma vez que ao se perceber como
sujeito de direito, a pessoa também se percebe capaz de participar das decisões em relação à sua vida
e à sua comunidade. Assim, o autorreconhecimento como sujeito de direito, a elaboração de políticas
públicas e a construção de leis são fatores inter-relacionados para a garantia da dignidade humana.
Sendo, portanto, essas questões interdependentes para o efetivo exercício dos direitos.
Na esteira dessa discussão, em resposta à Conferência Mundial de Direitos Humanos e à Carta
de Viena, o Brasil lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-1) em 1996 – o terceiro
do mundo, sendo o primeiro da América Latina275 - que deu origem à Secretaria Nacional de Direitos
Humanos (SNDH), criada no ano seguinte, a fim de acompanhar a execução e monitoramento das
ações do programa. Segundo Paulo Sérgio Pinheiro, relator do projeto, o programa não foi “resultado
de decisões tomadas em gabinetes fechados” (PINHEIRO; MESQUITA NETO, 1997, p. 117), contou com
a colaboração de ONGs, universidades e centros de pesquisa, além de seis seminários regionais em
que participaram 210 entidades. Ele afirma ainda que “ficou evidente, desde o primeiro instante, que
não se tratava de um contrato de confiança entre Estado e ONGs, mas de um projeto de parceria no
qual a autonomia da sociedade civil é condição necessária” (Ibidem).
O novo entendimento dos direitos humanos surgido com a sua internacionalização e ratificado
pela Carta de Viena, como já mencionado, também está presente no PNDH-1 já em seu início: “Todos,
enquanto pessoas, devem ser respeitados, e sua integridade física protegida e assegurada”, “[os direitos
humanos] são aqueles direitos que garantem existência digna a qualquer pessoa” e “é justamente
quando a sociedade se conscientiza dos seus direitos e exige que estes sejam respeitados que se
fortalecem a Democracia e o Estado de Direito” (BRASIL, 1996, p. 7-8). A partir desses trechos, nota-
se a presença dos princípios de universalidade e indivisibilidade, e da dignidade da pessoa humana,
bem como da obrigação assumida pelo Estado em proteger e assegurar os direitos. Ainda, não menos
importante, o entendimento de que o Estado Democrático de Direito só é alcançado à medida que a
sociedade se torne consciente dos seus direitos e seja mobilizada social e politicamente.
O prefácio do PNDH-1 é assinado pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso
– ele próprio um atingido pela repressão na ditadura civil-militar – , cuja pauta de direitos humanos é
apontada claramente como política de governo. Pinheiro (1997, p. 123) comenta que, ao assumir esse
compromisso, o governo brasileiro também declara a obrigação do Estado com a nova concepção
de direitos humanos, sobretudo tangente à proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais
junto aos direitos políticos e civis. Um dos efeitos positivos do PNDH-1 como política de governo foi
a criação da SNDH para acompanhar a execução e o monitoramento do programa que, por sua vez,
estimulou o surgimento de órgãos de acompanhamento e promoção de políticas de direitos humanos
nas esferas municipais e estaduais.
Esses avanços certamente não partiram apenas no governo federal, foi fruto de muita mobilização
de grupos e entidades sociais de defesa de direitos humanos em demanda pelo alargamento dos
direitos e sua aplicação na sociedade. Segundo Jussara Reis Prá (2006, p. 184), esse aumento de
busca por direitos teve como resultado a institucionalização de instâncias da administração pública
direcionada à elaboração e implementação de políticas públicas de direitos humanos, como o
surgimento da SNDH e similares nas diversas instâncias governamentais:

Isso permitiu modificar as percepções acerca das políticas públicas, que puderam ser entendidas
como: a) linhas de ação coletiva que concretizam direitos declarados e garantidos em lei (Pereira,
1994); e b) resultado de um “conjunto de processos mediante os quais as demandas sociais se
transformam em opções políticas e em tema de decisão das autoridades públicas” (Guzmán, Lerda
e Salazar, 1994, p.1) (Ibidem).

275 É importante destacar que somente após o início do processo de redemocratização que o Brasil passou a ratificar os tra-
tados internacionais de direitos humanos, começando pela Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, em 1989.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Em vista disso, nota-se que relação entre políticas públicas e direitos humanos é bastante evidente,
afinal, “todo direito é uma política pública (...) e toda política pública é um direito” (Willian Clune apud
BUCCI, M. P. D. et al. 2001, p. 6). A ampliação da demanda por direitos, bem como o aumento da
titularidade desses mesmos direitos – ou seja, quem são os sujeitos que os possuem – são posturas que
exigem uma posição do Estado na medida em que se trata da promoção e reconhecimento da dignidade
humana. Para tal, como já exposto, a elaboração de políticas públicas de direitos humanos tem um
papel fundamental na educação da sociedade e no fomento a uma cultura política de respeito aos
direitos fundamentais. Todavia, não mais importante é a necessidade de estabelecer uma perspectiva de
direitos humanos à composição de toda e qualquer política pública a fim de que não haja na sociedade
uma compartimentalização dos direitos – o que prejudica sobremaneira sua universalização.
Uma perspectiva em DH na política pública implica em uma maior abrangência de seu objeto, isto é,
não trata apenas de um problema específico, mas de todo um leque de questões. Por exemplo, a violência
sofrida por pessoas em situação de rua não deve ser o único foco de uma política pública, mas sim o direito
a uma condição de vida digna. Assim, o que se espera nessa lógica é que os direitos humanos permeiem a
construção de políticas voltadas ao bem-estar da sociedade e o respeito integral à pessoa humana.

2 MEMÓRIA COMO UM DIREITO: O DIREITO À MEMÓRIA E SUA DIMENSÃO FUNDAMENTAL

2.1 Direito à memória

Conhecer, recuperar, refletir: esses são os termos que mais se destacam na discussão sobre
direito à memória. Trata-se de um direito subjetivo de conhecer o passado da sociedade sobretudo a
partir da liberdade de apurar, pesquisar e analisar os fatos passados, sejam quais forem. Dentro da
temática de direitos humanos, o direito à memória comumente surge associado ao direito à verdade
e isso decorre devido a este se referir ao esclarecimento das circunstâncias nas quais ocorreram as
violações de direitos humanos em contextos de violação sistemática por parte de Estados. Nesses
casos, recorre-se ao direito à verdade para que tanto os crimes quanto os atingidos e perpetradores
sejam conhecidos. Por sua vez, o direito à memória surge para dar conta da herança autoritária ao
trabalhar a memória para que as cicatrizes sejam ressignificadas.
O jurista José Carlos Moreira da Silva Filho oferece uma definição de direito à memória bastante
apropriada para o debate sobre o legado da ditadura civil-militar brasileira, entre outros regimes
ditatoriais autoritários:

Direito à Memória indica a necessidade de recordar tais fatos gravosos, sinalizando de modo coletivo
para o seu repúdio, mediante gestos, feitos e políticas que aportam na dimensão cultural e simbólica
e na representação cívica do passado ausente, tentando escapar da aparição desse passado como
sintoma de repetição não devidamente purgado e catalisador do caráter mimético da violência (2010).

O direito à memória é um direito que demanda um posicionamento ativo dos atores envolvidos.
Exige ação do Estado na viabilização do acesso às informações necessárias para o conhecimento
dos crimes de violação e na execução de programas que promovam a não aceitação da repetição
das violações aos direitos humanos, tais como as ocorridas anteriormente. Dos atingidos, o direito
à memória impele o constante engajamento, além da exposição do sofrimento vivido para que não
ocorra novamente na sociedade.
O direito à memória é ele próprio um direito humano, não obstante esteja relacionado diretamente ao
conjunto dos direitos humanos à medida que o seu exercício é justamente rememorar as arbitrariedades
cometidas no passado. Em 2005, a ONU sinalizou para a compreensão do direito à memória como
um direito humano sobretudo nos princípios 3, 4 e 5 do Conjunto de principios actualizado para la
protección y la promoción de los derechos humanos mediante la lucha contra la impunidad (ONU,
2005). Este documento, assinado por Diane Orentlicher, apresenta os princípios gerais a orientar os
Estados para adotarem medidas eficazes contra a impunidade. Trata de comissões da verdade; abertura,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

preservação e livre consulta de arquivos da repressão;276 direito à reparação e garantias de não repetição
etc. Os princípios destacados referem-se ao “direito a saber”: o direito inalienável à verdade, o dever de
recordar, o direito das vítimas a saber e as garantias para o efetivo direito ao saber.
O direito de saber das vítimas surge em destaque no documento, pois afirma que, a despeito de
ações que envolvam a justiça, os atingidos possuem o direito imprescritível de conhecer a verdade
sobre as circunstâncias das violações cometidas contra elas e o esclarecimento das mortes e dos
desaparecimentos forçados. Ainda, cabe ao Estado assegurar que esses fatos sejam descortinados e
garantir que o direito a conhecer o passado seja efetivo; para isso, o documento sugere que a criação
de comissões da verdade pode beneficiar sociedades que tenham passado por violações sistemáticas
aos direitos humanos. É imperativo ao Estado que preserve as provas das violações cometidas, bem
como estimular o seu conhecimento para “preservar do esquecimento a memória coletiva e, em
particular, evitar que surjam teses revisionistas e negacionistas” (tradução nossa).277
Pelo exposto, é possível compreender o porquê o direito à verdade é constantemente associado
ao direito à memória. Para rememorar, é preciso conhecer. A memória é ativa, é movimentação, e ter
acesso aos acontecimentos dolorosos do passado é fundamental para o seu exercício. Enquanto o
direito à verdade versa o esclarecimento das circunstâncias nas quais ocorreram os crimes de violação
aos direitos humanos, o direito à memória aponta à necessidade de recordação desses fatos junto a
um trabalho de elaboração para que a violência não volte a se repetir. Como comentam o ex-ministro
da Justiça, Tarso Genro, e o ex-presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão: “O direito à memória
é condição imprescindível para a manutenção do tecido social, caso contrário a sociedade repetirá
obsessivamente o uso arbitrário da violência, pois ela não será reconhecida como tal” (2012, p. 56).

2.2. O direito à memória: fundamental e humano

A procuradora federal Fabiana Santos Dantas (2010) em sua tese de doutorado faz uma
abrangente discussão acerca do caráter fundamental da memória. Logo no primeiro capítulo, a autora
aponta que não há uma diferença ontológica entre direitos humanos e direitos fundamentais, uma vez
que remetem à garantia e defesa de uma vida digna aos indivíduos. Ambos buscam a igualdade e o
respeito mútuo na sociedade por meio de ações garantidoras do Estado.
Todavia, afora essa semelhança substancial, os direitos humanos e os fundamentais possuem
algumas diferenças de forma. A primeira destacada por Dantas refere-se à forma de positivação
dado que os direitos humanos são estabelecidos em dispositivos internacionais (como declarações,
cartas e convenções), enquanto os direitos fundamentais são previstos no Direito Interno e normas
constitucionais. Disso, decorre outra diferença que é o grau de concretude: os direitos fundamentais,
por constarem nas constituições, têm aplicabilidade mais direta e imediata que os direitos humanos,
pois estes são considerados soft law por serem normas internacionais. Por fim, a autora realça que a
diferença ou a igualdade entre ambos direitos pode ser apenas uma questão de ênfase, uma vez que
um e outro têm por função “servir de fronteira ao intolerável” (2010, p. 32-33).
Em sua análise, Dantas discorre sobre o que atribui “fundamentalidade” ao direito é a sua necessidade,
assim o direito à memória é considerando fundamental conforme a memória em si é entendida como uma
necessidade fundamental, e esse direito deve ser acolhido para que se preserve a dignidade humana
(2010, p. 44). A memória se estabelece como uma necessidade à medida que é compreendida como
uma construção social coletiva (HALBWACHS, 2006), sendo formulada pela presença em grupos sociais.
Considerando que a memória coletiva seria fruto das interações sociais, a manutenção dessa memória
demanda a permanência das ligações entre os indivíduos que integram um grupo social. A inserção do
sujeito no grupo repercute na própria memória individual, pois ao passo que se insere e interage com o
grupo, suas memórias são recuperadas e, por conseguinte, mantém a memória coletiva ativa.
Alguns dos pontos do direito à memória sublinhados pela autora concernem ao direito subjetivo
de uma sociedade de conhecer e refletir sobre o seu passado, assim como poder pesquisar livremente

276 Maneira pela qual são conhecidos os acervos de períodos ditatoriais.


277 “Esas medidas deben estar encaminadas a preservar del olvido la memoria colectiva y, en particular, evitar que surjan
tesis revisionistas y negacionistas”.

584
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a respeito. Comenta:

A História recente do Brasil é pródiga em violência contra os seus cidadãos, contra os valores
da sociedade, contra as suas normas. Então, o direito fundamental à memória pode garantir que
essas violações não caiam no esquecimento que leva à impunidade. A sociedade e os indivíduos
que não têm acesso à verdade e experimentam a impunidade acabam por ver prejudicada a sua
capacidade de percepção, de distinguir entre o certo e o errado, gerando a insegurança, incerteza,
ansiedade e a perda da confiança que destroem a solidariedade social (BAEZA, 2005). Não é
exatamente esse o diagnóstico da atual sociedade brasileira? (DANTAS, 2010, p. 59).

Embora seja um texto de 2010, o trecho acima destacado permanece atual. O direito à memória
tem valor sobretudo para que os crimes contra os direitos humanos não sejam esquecidos; esquecê-
los é uma segunda violação. Atinge o indivíduo duplamente: no passado, onde as violações ocorreram,
e no presente, onde essa memória é construída. Negar o acesso ao conhecimento do que se passou
garante não apenas a impunidade dos algozes – que estiveram ou não a mando do Estado –, mas
também provoca um novo atentado à dignidade humana do atingido.
Importa ainda que há ao menos dois sujeitos titulares ao direito à memória: o atingido propriamente
e as gerações futuras, mesclando assim o caráter individual referente à pessoa que sofreu a violação
com o caráter coletivo referente às gerações que demandam o direito de conhecer e reivindicar
esse passado. Ao atingido, a memória ajuda a enfrentar os traumas e as questões resultantes dos
abusos cometidos; enquanto às gerações futuras, a memória contribui para interromper o processo
de violação. O seu papel e sua relevância está em permitir justamente que aqueles que não viveram
os acontecimentos possam demandar a sua não repetição.
De acordo com o desembargador Rogério Gesta Leal (2012. p. 16.), é por conta da articulação entre
passado e presente que a temática da memória adquire importância no que tange a busca por verdade
e justiça nos casos de violações de direitos. Aponta que não obstante essa memória seja dolorosa, ela
se insere como parte de políticas públicas para prevenir a repetição desses crimes e o participar do
derrocamento das instituições (e instrumentos) que permitiram as arbitrariedades cometidas.
Vale reforçar que o direito à memória não é somente a recordação, mas sim o exercício dessa
memória através de (des)comemorações, memoriais, monumentos, entre outras formas, para que
seja possível dar voz aos atingidos diretos e/ou indiretos, para que suas vidas não sejam silenciadas,
suas trajetórias e lutas não sejam esquecidas. Como comenta Castor Ruiz:

A justiça ética requer a memória como condição necessária. A memória é o recurso que o injustiçado
tem para fazer presente a injustiça do passado. A injustiça sempre remete a um passado como
condição do presente justo. Os interesses dominantes da ordem vigente tendem a esquecer a
injustiça do passado e suas vítimas, embora elas sejam a condição de possibilidade deste presente.
O esquecimento é uma segunda injustiça, necessária para preservação da estabilidade da ordem.
O esquecimento possibilita que se perpetue a injustiça do passado, ignorando suas consequências
no presente. Esquecer é, também, a condição necessária para repetir a barbárie. O que nos leva
a recordar a máxima de que toda barbárie se executa como tragédia e se repete como comédia.
Contrariando o esquecimento da ordem, a verdadeira justiça no presente requisita a memória
do acontecido. Sem a memória, a injustiça cai no esquecimento e com ela a vítima sobre uma
segunda injustiça, a injustiça do olvido (2009, p. 12).

3 POLÍTICA PÚBLICA DE MEMÓRIA COMO PROMOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

Uma das grandes atribuições dos PNDHs foi justamente conferir o caráter de política pública à
promoção e preservação dos direitos humanos. Isto é, seguindo as recomendações da Carta de Viena
(1993) da qual o Brasil é signatário, o país passou a tratar as questões de direitos humanos como
um problema social e político a ser solucionado de maneira ampla, envolvendo vários setores da
sociedade, estruturando-o e mantendo na agenda governamental.
A inovação bastante polêmica do último programa, o PNDH-3, foi a inclusão da temática de
direito à memória e à verdade como uma demanda de política pública. Nota-se que no eixo VI do texto
não há somente as diretrizes, como também ações programáticas previstas e os responsáveis por
sua implementação. Outra especificidade que não havia anteriormente foi a determinação de prazos

585
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

(curto e médio) para a efetiva execução, provocando assim um atributo deliberado, estabelecido.
Tem-se desse modo uma demarcação de um problema social e os meios públicos para sua possível
solução. Em termos gerais, formou-se então proposições de políticas públicas de memória.
Claramente os PNDHs não são em si uma política pública, mas sim a indicação de parâmetros
e fundamentos para a sua aplicação. Em vista disso, a inclusão do direito à memória na terceira
versão foi bastante significativa sobretudo porque nesta versão estabeleceu-se diretamente tanto
os responsáveis pela execução quanto os prazos limites para tal, como já dito. Embora muitas das
determinações precisassem – ou ainda precisem – de leis à parte para sua regulamentação e apesar
de todo embate que provocou um vultoso recuo do governo, tê-las como indicativos de políticas
públicas representou um grande passo na condução do país em direção à solidificação da democracia.
A cientista política Alexandra Barahona de Brito afirma que é possível definir política de memória
de uma maneira restrita, que seriam as políticas para promoção de verdade e justiça, ou de maneira
ampla, que seria como a “sociedade interpreta e apropria o passado, em uma tentativa de moldar o
seu futuro (memória social)” (2009, p. 72). Assim, as políticas de memória são parte do processo de
construção da identidade coletiva, determinando a maneira com grupos sociais distintos se relacionam
com a política e os objetivos a serem alcançados posteriormente. Ainda segundo Brito,

As ‘políticas de memória’ sociais e culturais são parte integral do processo de construção de várias
identidades coletivas sociais e políticas, que definem o modo como diferentes grupos sociais
veem a política e os objetivos que desejam alcançar no futuro. (...) A política da memória se
torna parte do processo de socialização política, ensinando às pessoas como perceber a realidade
política e as ajudando a assimilar ideias e opiniões (Ibidem).

A relevância das políticas de memória no contexto da redemocratização sobressai conforme o


Estado assume, ao lembrar e reparar, sua responsabilidade quanto aos crimes cometidos contra os
opositores, que ali exerciam direitos de resistência. E, também, assume um esforço no sentido de
consolidar uma narrativa de não-repetição.
No Diccionario de la Memoria Colectiva, o verbete “Política Pública de la Memoria” (BAUER, 2018),
assinado por Caroline Bauer, apresenta a seguinte definição: “a ação deliberada por parte dos governos e
outros atores políticos de criar a memória coletiva, isto é, preservar, transmitir e pôr em valor a lembrança de
determinados aspectos do passado considerados especialmente significativos ou importantes” (tradução
nossa).278 É uma ação deliberada do Estado, algo que faz parte da agenda pública – seja temporariamente,
seja permanentemente. Como exemplos, há a criação de arquivos, museus e centros de documentação;
reformulação de currículos escolares; realização de comemorações em datas simbólicas etc. São múltiplas
as possibilidades de políticas públicas de memória, mas todas possuem um mesmo objetivo: “reconhecer a
existência sistemática da violação de direitos humanos por parte dos Estados” (tradução nossa) (Ibidem).279
As políticas possuem um caráter mais holístico, mais abrangente e com efeito na totalidade da
sociedade. Diferentemente das medidas de memória, definidas por Bauer em sua tese de doutorado
(2011, p. 215), que seriam as concretas e as simbólicas, como as indenizações pecuniárias e as
construções de memoriais, respectivamente. Como medidas, entende as reparações financeiras aos
atingidos e familiares de mortos e desaparecidos políticos, visto que beneficiou somente ao grupo de
atingidos diretos sem fazer um trabalho com a sociedade como um todo.
Denise Friedrich (2013) aponta corretamente que as políticas públicas de memória devem ter
como foco a comunidade que passou pelos eventos objetos da rememoração, “pois é ela a credora
da memória que gera identidade cultural”. A autora comenta que, ao trabalhar a memória através de
políticas públicas, o Estado estimula um cenário mais favorável à inclusão e proteção. Nessa mesma
linha, Roberta Baggio comenta sobre a necessidade do debate transgeracional concernente ao direito
à memória pois à medida que as novas gerações têm acesso aos fatos passados, a luta pela não-
repetição das arbitrariedades do Estado se intensificam: “Ao vivenciar as oportunidades de acesso à
memória, as novas gerações assumem a luta por justiça contra as violações do passado e se colocam

278 “La acción deliberada por parte de los gobiernos u otros actores políticos con el objeto de crear la memoria colectiva, es
decir, preservar, transmitir y poner en valor el recuerdo de determinados aspectos del pasado considerados especialmente
significativos o importantes”.
279 “Reconocer la existencia sistemática de la violación de los derechos humanos por parte de los Estados”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

do lado dos que optaram por resistir a um Estado opressor, praticando o ideal de alteridade em
colocar-se do lado do outro” (2012, p. 113).
Baggio argumenta que as novas gerações têm a capacidade de atribuir sentidos diversos às memórias
que são expostas e permanecem acessíveis, além do potencial transformador de ações políticas fruto das
interações e compartilhamento de experiências. Para ela, o conhecimento dos eventos passados em livre
acesso às gerações do presente e do futuro pode se tornar uma “peça imprescindível de empoderamento
do processo transicional”, uma vez que a atuação em conjunto para defesa de ideais de justiça e suas
demandas, pode agregar força às reivindicações por justiça das gerações anteriores (Ibidem, p. 112).
Ao garantirem o direito à memória, as políticas públicas de memória contribuem para que as
gerações do presente possam escolher viver sob uma democracia que acima de tudo as incluam
inteiramente, e que dela possam cobrar.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito deste artigo consistiu em criar um fio que conduzisse ao entendimento da importância
da formulação de políticas públicas para a consolidação – e talvez preservação – da democracia.
Políticas públicas em geral devem ser formuladas pelo Estado em conjunto com a sociedade sob
uma ótica dos direitos humanos, especialmente as políticas que dizem respeito à reparação do dano
causado pelo Estado opressor.
Andreas Huyssen (2014) ao tratar da memória como parte fundamental do processo de
internacionalização dos direitos humanos – afinal “onde estaria hoje o movimento internacional dos
direitos humanos, sem a memória dos campos de carnificina do século XX?” – (2014, p. 199), aponta
que a memória dos atingidos deve ser preservada cautelosamente uma vez que o objetivo final
dos genocidas era justamente eliminar toda lembrança daqueles indivíduos. Portanto, é necessário
que haja uma expansão dos discursos da memória nos grandes meios de comunicação para que os
processos contra as graves violações aos direitos humanos em casos como da ditadura civil-militar
brasileira tenham uma instauração ativa nos tribunais (HUYSSEN, 2014. p. 200).
No entanto, o autor explicita que a memória é algo frágil para servir de embasamento para
elaboração de leis. Enquanto os direitos humanos associam moral e lei; falta à memória a dimensão
jurídica, ainda que não possa haver justiça sem memória. Desta forma, caberia aos direitos - que possuem
uma dimensão moral e afetiva – sustentar juridicamente a memória. A criação de política pública é o
meio pelo qual o Estado garante os direitos à população, para o direito à memória não é diferente.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS


NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Ana Carolina Corrêa Salvio280

RESUMO: Este trabalho pretende refletir sobre a educação em direitos humanos e como esta figura no
aparato normativo do estado brasileiro, e ainda acerca das implicações e contradições destes regramentos na
prática escolar nacional. A ideia geral que conduz a pesquisa é que a educação em direitos humanos, apesar
de figurar em inúmeros documentos jurídicos e fazer parte da agenda de políticas públicas educacionais
brasileiras em termos genéricos, ainda não alcançou verdadeiramente o “chão da escola” plenamente.
Indo além, pode-se dizer que existe um desafio gigantesco para nossa democracia em construção: dar
conta de “problemas ocultos” (preconceitos, violência cotidiana, reprodução de injustiças seculares etc.),
geralmente não enfrentados no ensino regular e, portanto, um desafio diuturno da Educação.

Palavras-Chave: Democracia. Prática Educacional. Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar como a educação em direitos humanos figura nos
documentos normativos do estado brasileiro, que a fundamentam, tendo em vista que a educação,
segundo os princípios derivados dos direitos humanos, constitui um dos eixos fundamentais para a
construção de uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária e democrática.
Partindo de tais pressupostos, vê-se que o cenário nacional e mundial é marcado pelo
neoliberalismo econômico, que estabelece um autêntico abismo social, pois, de um lado temos as
classes dominantes que continuam a “ditar as regras do jogo”, e do outro, um número cada vez maior
de pessoas excluídas do processo de desenvolvimento econômico, destituídas das condições de
dignidade humana. Em decorrência desse processo injusto, os direitos humanos são cotidianamente
violados, mesmo estando previstos e garantidos em diversos instrumentos jurídicos e proclamados
como valores universais, no ordenamento jurídico interno e externo.
De acordo com Jesus (2011), o amplo respaldo documental não impede as constantes violações
dos direitos humanos em todo o mundo. Pensa-se, então, em formas de possibilitar o respeito e a
eficácia desses direitos humanos que deveriam, na prática, ser consagrados. Nessa perspectiva, surge
a educação em direitos humanos como um dos caminhos necessários para a efetivação dos direitos
mais elementares e para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Para Horta (2000), a educação em direitos humanos situa-se em uma perspectiva crítica em
relação ao modelo neoliberal vigente e impele o desvendar da sua racionalidade, suas implicações
sociopolíticas e seus pressupostos éticos. A autora ressalta que promover processos educacionais
sem questionar o paradigma hegemônico vigente significa esquivar-se da responsabilidade política
da educação em relação ao presente e ao futuro. Com base nessa ótica de educação, deve-se propor
uma ética que enfatize o público, a solidariedade e o bem comum.
Nesse contexto, a preocupação com o ensino dos direitos humanos vem se afirmando
progressivamente com grande força no plano internacional e nacional, tanto no âmbito das políticas
públicas, quanto na esfera das organizações da sociedade civil. Todavia, não tem alcançado ainda o
cotidiano escolar ou o cotidiano social da população. (CANDAU; SACAVINO, 2013).
Especificamente no Brasil, a implementação (ainda incipiente) do Plano Nacional de Educação em

280 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica no Instituto Federal Sudeste de
Minas. Pós-graduanda em Educação em Direitos Humanos, pela Universidade Federal do ABC. Bacharel em Direito pelo Fun-
dação Educacional São José (2014). Licenciada em Pedagogia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (2006). Espe-
cialista em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica do Peru (2012) É supervisora pedagógica da rede pública
municipal e estadual de educação em Minas Gerais.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Direitos Humanos (PNEDH) – nas suas duas versões (2003 e 2006), reimpresso em 2018 – tem exercido
uma função relevante de referência, estímulo, apoio e viabilização de diversas atividades desse processo.
Portanto, pensa-se que esse estudo pode contribuir para a efetivação da educação em direitos
humanos, no ponto em que pretende analisar as diretrizes e programas públicos nacionais, verificando
se a “letra da lei”, ou as “cartas de intenções”, têm realmente chegado ao chamado “chão da escola”.
A hipótese da pesquisa é de que apesar da educação em direitos humanos figurar em diversos
documentos normativos e fazer parte da agenda de políticas públicas educacionais no Brasil, a vivência na
área da educação reforça a observação de que as coisas são muito mais complexas do que geralmente a
imagem pública da educação deixa transparecer. Não fala-se apenas da estrutura física deficiente, salários
baixíssimos e condições gerais precárias de trabalho. Trata-se de algo mais profundo, relacionado com as
desigualdades sociais educacionais, preconceitos explícitos e ocultos contra crianças, jovens e famílias
em situação quase marginal, violência real e potencial, discriminações contra os “diferentes” etc.
Diante disso, acredita-se que existe uma grande distância entre o discurso oficial e a prática
desses direitos no dia-a-dia da escola. O cotidiano escolar evidência a debilidade da adesão aos
preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), bem como a constância de condutas
incoerentes e incompatíveis com os valores públicos da educação.
Na visão de Candau (2009) a educação em direitos humanos é um processo dinâmico, sistemático e
muldimensional, que não ocorre somente por meio da sua inclusão no plano normativo e político de um
estado. Ao contrário, constitui-se em um processo em nível pessoal, social, ético, político, cognitivo e
celebrativo que orienta a formação do sujeito de direitos e à promoção da cidadania ativa e participativa.
Assim sendo, para que se possa educar em direitos humanos é necessário que os valores e
direitos humanos, além de estarem incluídos na legislação e documentos oficiais do estado, façam
parte do dia-a-dia dos educadores e educandos, através da construção de uma cultura, um “clima”
de proteção, legitimação, respeito e vivência dos direitos humanos, que penetre as diversas relações
sociais, e principalmente, aquelas estabelecidas dentro do ambiente escolar.
Segundo Candau (2010), durante o I Semana de Educação em Direitos Humanos, a educação em
direitos humanos é uma educação contextualizada, que constrói democracia, é político-transformadora,
integral, holística, ético-valórica, construtora de sujeitos de direitos e promotora da paz. Deve estar
presente nas decisões pedagógicas e curriculares (currículo explícito e oculto), no plano formal e
informal, sendo incorporada ao projeto político pedagógico e às demais práticas escolares.
Partindo de tais considerações, este estudo tem como objetivo principal compreender como
a educação em direitos humanos figura aparato normativo do estado brasileiro, e ainda, suas
implicações, contradições e repercussões na prática escolar nacional.
Para atingir esse objetivo e verificar a hipótese, realizou-se pesquisa bibliográfica e documental
(planos e programas oficiais referentes ao tema), assim como revisão do aparato legislativo nacional.
Primeiramente, procedeu-se uma revisão da literatura teórica, tendo como ponto de partida a
conceituação da educação em direitos humanos sob a ótica de autores de referência sobre a temática,
como Maria Victoria Benevides, Beatriz de Basto Teixeira, Vera Maria Candau, Flávia Schilling, Maria
de Nazaré Tavares Zenaide, Aida Silva, entre outros.
No segundo momento, fez-se uma revisão da legislação e documentos que tratam do tema,
pretendendo traçar uma “linha do tempo”, na qual procurou-se explicitar no âmbito normativo
nacional, como a educação em direitos humanos foi inserida nestes documentos e a evolução de tais
aparatos legislativos.
Finalizando, inseriu-se no estudo a crítica de especialistas, bem como a percepção da pesquisadora
acerca do tema.

1 O QUE É EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Estamos inseridos em um mundo globalizado, ideologicamente dominado pelo neoliberalismo, que


impôs, nas últimas décadas, um modelo econômico marcado por desigualdades, exclusões, injustiças e
acúmulo de renda e riqueza nas mãos de poucos. Para Candau (2009), vivemos um contexto de debilidade da
sociedade civil, de indicadores persistentes de acentuada desigualdade social, de discriminação e exclusão

590
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de determinados grupos socioculturais e falta de horizonte utópico para a construção social e política.
Diante dessa realidade e contrapondo-se a ela, nasce a vontade de estar ao lado das vítimas desse
sistema, ajudando-as a reconstruir sua dignidade humana negada, pretendendo assim avançar para
uma sociedade mais justa e democrática. Para que isso seja possível, como coloca Boaventura Souza
Santos, é necessário que tenhamos o direito de ser iguais sempre que as diferenças nos inferiorizem e
que tenhamos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracterize (SANTOS, 1997).
Os princípios inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, nessa falta de
horizonte utópico, são compreendidos como pilares morais e éticos atuais do mundo globalizado.
Em definitivo, a questão dos direitos humanos tem ocupado importante papel nas agendas políticas
nacionais e internacionais, assim como em organismos de alcance mundial.
Na visão de Benevides (2000), conceitualmente os direitos humanos são aqueles considerados comuns
e fundamentais a todos os seres humanos, sem quaisquer distinções de sexo, nacionalidade, etnia, cor da
pele, faixa etária, classe social, profissão, condição de saúde física e mental, opinião política, religião, nível
de instrução e julgamento moral. Decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca a todo ser humano.
O tema dos direitos humanos continua central, passados sessenta e dois anos da Declaração de
1948 porque o mundo, nesse período, evoluiu em muitos aspectos, mas, infelizmente, estagnou ou
até mesmo regrediu em vários outros pontos previstos no documento.
No Brasil, a partir da década de 1970, a questão dos direitos humanos ocupou lugar de destaque
e ganhou maior espaço em função do processo de redemocratização do país. Nesse período, foram
adotados muitos instrumentos de proteção dos direitos humanos, como a Constituição Federal, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e o Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos (PNEDH), entre outros, além da ratificação dos tratados internacionais281.
É a partir dessa realidade que vislumbra-se a importância da educação para a real efetivação dos
direitos humanos. De acordo com Benevides (2000), a educação em direitos humanos parte de três
pontos essenciais: primeiro, é uma educação de natureza permanente, continuada e global; segundo,
é uma educação necessariamente voltada para a mudança; e terceiro, é uma inculcação de valores,
para atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente transmissora de conhecimentos.
A isso deve se somar a inclusão dos direitos humanos nas legislações e planos nacionais, alguns
afetando diretamente a esfera educacional, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), PNDH e PNEDH.
O PNEDH é um documento de referência para essa área no país, pois considera a educação como
um meio privilegiado na promoção dos direitos humanos. O documento compreende a educação
em direitos humanos como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do
sujeito de direitos. Entende que a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais
na educação básica, seus conteúdos devem ser introduzidos nas diretrizes curriculares da escola de
forma transdisciplinar, na formação inicial e continuada dos profissionais da educação, no projeto
político pedagógico, nos materiais didático pedagógicos, no modelo de gestão e avaliação. A prática
escolar deve ser orientada para a educação em direitos humanos, assegurando o seu caráter transversal
e a relação dialógica entre os diversos atores sociais. (BRASIL, 2018).
Para Teixeira (2005), a educação em direitos humanos não é diferente de uma educação para
a democracia, entendida a democracia como um modo de vida, mais que uma forma de governo.
É uma tarefa que requer o esforço de todos os envolvidos no processo educativo e deveria ser o
objetivo e o norte de todo processo educacional desenvolvido pela sociedade que deseja ter uma vida
democrática. Para tanto, é necessário criar estruturas e processos democráticos por meio dos quais a
vida escolar se realize e criar um currículo que ofereça experiências democráticas aos jovens.
A educação em direitos humanos opera como uma trilha que pode levar as pessoas a terem a devida
consciência dos seus direitos e deveres, e dessa forma terão maiores chances de intervir no cenário social,

281 Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 3 de dezembro de 2008, mudou o estatuto legal das convenções interna-
cionais de direitos humanos das quais o Brasil é signatário. Antes tinham o valor de lei, segundo a Constituição, mas desde a
decisão são supralegais (nenhuma lei brasileira pode contrariar tais convenções), embora infraconstitucionais. Votação apertada:
cinco votos (capitaneados pelo entendimento do Ministro Gilmar Mendes) contra quatro votos (capitaneados pelo entendimento
ainda mais radical do Ministro Celso de Mello querendo dar estatuto constitucional a tais convenções), caráter supranacional. Tal
decisão é histórica, porém, teve parca divulgação, demonstrando o abismo entre legislação e vida concreta no Brasil. Mas está
em vigor, sendo um tremendo avanço na questão dos direitos humanos em nosso país, além de exemplo para outras nações.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

atuando na construção de uma sociedade em que os direitos humanos sejam efetivamente respeitados.
Logo, fazer com que a educação em direitos humanos penetre realmente na cultura, nas
práticas escolares e na sociedade em geral é um grande desafio. Entretanto, é fundamental que ao
reconhecermos este desafio, estejamos comprometidos com ele, trabalhando-o no nosso dia-a-dia, a
começar pela análise das proposições legais e posteriormente pelo repensar da prática pedagógica.
A educação em direitos humanos possui caráter permanente e global, portanto, é complexa e
difícil, mas não impossível. Sob o olhar de Benevides (2000) é uma utopia que se realiza na própria
tentativa de realizá-la. Trata-se de enxergar que a democracia é, literalmente, educação, e que sem
educação para todos não há cidadania.
Um fecho adequado para estas breves reflexões podem ser as sábias palavras do grande
educador Anísio Teixeira, que, em 1947, ainda um pouco antes da Declaração dos Direitos Humanos
da ONU, na apresentação de seu projeto para a Bahia, explicava: “Educação é a base, o fundamento,
a condição mesma para a democracia. A justiça social, por excelência, da democracia, consiste nessa
conquista da igualdade de oportunidades pela educação. Nascemos desiguais, nascemos ignorantes
e, portanto, nascemos escravos. É a educação que pode mudar” (TEIXEIRA, 1994).
Portanto, saber que a educação em direitos humanos está prevista no aparato normativo estatal e na
agenda de políticas públicas do estado brasileiro, traduz-se sem dúvida em um grande avanço, mas, fazer
com que esta penetre efetivamente no cotidiano escolar, ao que nos parece, é um norte, um dos caminhos
que rumam para modificação de mentalidades, para a formação social e política da nossa população, para
construção de escolas democráticas, processo que se dá pela base, ou seja, no “chão da escola”.

2 A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NOS DOCUMENTOS E LEGISLAÇÕES NACIONAIS

Historicamente, o Brasil sempre foi um país marcado pelas desigualdades e pela exclusão social,
econômica, étnico/racial, de gênero e cultural, que estão avançando, em função de um modelo de
Estado pautado na concepção neoliberal, que opta por valorizar as políticas públicas relativas aos
direitos políticos em prejuízo dos direitos sociais.
A atual legislação brasileira contempla os direitos sociais, mas sabe-se que na prática esses
direitos não se realizam de forma imediata ou natural, é preciso que haja políticas públicas que
viabilizem a concretização desses direitos.
E para que esses direitos sejam efetivados, faz-se necessário ressaltar o importante papel da
Constituição Federal de 1988, que é um marco para a proteção e promoção dos direitos humanos no
Estado brasileiro.
A Constituição de 1988 estabelece que a “dignidade da pessoa humana” é um dos “fundamentos”
da República (artigo 1º, III), o que significa dizer que tudo o que o Estado brasileiro desenvolve deve
ser feito com este fundamento. A mesma Constituição estabelece que a República brasileira se rege,
em suas relações internacionais, pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos” (artigo 4º, II).
Deste modo, segundo Jesus (2011), com a Constituição de 1988, os direitos humanos são
reconhecidos como parte do arcabouço jurídico e institucional, tornando a educação em direitos
humanos tema integrante da política de Estado. Assim, tendo como marco a própria Constituição
Federal, o final da década de 1980 inaugura um período caracterizado pelo surgimento de uma série
de instrumentos legais, voltados para a proteção e promoção dos direitos humanos.
Para Zenaide (2008), após a Constituição de 1988, o Estado Democrático de Direito admite os direitos
humanos como parte integrante do arcabouço jurídico e institucional, das políticas sociais e da cultura
democrática, o que torna a educação em direitos humanos tema central integrante da política de Estado.
Especificamente, no que concerne ao direito social à educação, a Constituição Federal, trata do
tema no artigo 6º:

Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988).

Além da proteção aos direitos humanos figurar na Constituição Federal, o Estado brasileiro tem ratificado
documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e vem criando internamente mecanismos de

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

proteção aos direitos humanos, tais como: Lei 7.716/89 (BRASIL, 1989), que define os crimes resultantes
de preconceito de raça ou de cor; Lei 8.069/90 (BRASIL, 1990), que trata do Estatuto da Criança e do
Adolescente; Lei 10.741/2003 (BRASIL, 2003), que trata do Estatuto do Idoso; Lei 10.098/2004 (BRASIL,
2004), que define o Programa de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência, dentre outras.
Felizmente, Pinheiro e Neto (1997) afirmam que o Brasil foi o pioneiro no continente americano
ao pôr em prática a recomendação da Declaração e Programa de Ação da Conferência sobre Direitos
Humanos, de Viena (1993).
Em 1996, o Brasil criou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH I), com base no art. 84,
inciso IV, da Constituição, pelo Decreto n° 1904 de 13 de maio de 1996, “contendo diagnóstico da situação
desses direitos no País e medidas para a sua defesa e promoção, na forma do Anexo deste Decreto”.
O primeiro PNDH teve como objetivos identificar os principais obstáculos à promoção e proteção
dos direitos humanos no país, eleger prioridades e apresentar propostas concretas de caráter
administrativo, legislativo e político-cultural que busquem equacionar os mais graves problemas que
impossibilitam ou dificultam a sua plena realização.
Também em 1996, o Estado brasileiro sancionou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN),
que no artigo 27, inciso I, faz menção a educação em direitos humanos, ao preconizar que os conteúdos curricula-
res da Educação Básica devam observar as seguintes diretrizes: “[...] a difusão de valores fundamentais ao interesse
social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e a ordem democrática”. (BRASIL, 1996).
De acordo com Jesus (2011), a LDBEN reflete o compromisso em assegurar a educação em
direitos humanos no artigo 2º, onde se lê: “[...] educação [...] inspirada nos princípios de liberdade e
nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. (BRASIL, 1996).
Já em 1997, o governo do país apresentou à sociedade civil os Parâmetros Curriculares Nacionais
para o Ensino Fundamental (PCNs), que devem tratar os conteúdos dos direitos humanos por meio
dos temas transversais (que devem perpassar todas as disciplinas). Temáticas, tais como ética,
pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho, consumo e temas de caráter
local, deverão ser trabalhadas no ensino fundamental.
Para Candau, os PCNs foram propostos,

[...] na perspectiva da educação para a cidadania, como estratégia de introdução das demandas
atuais da sociedade, incorporando na sua dinâmica questões que fazem parte do cotidiano dos/as
alunos/as, com as quais se confrontam diariamente. Nessa perspectiva, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, privilegiam os princípios de ‘dignidade da pessoa humana’, que implica no respeito aos
Direitos Humanos, ‘igualdade de direitos’, que supõe o princípio da equidade, ‘participação’ como
princípio democrático e ‘corresponsabilidade pela vida social’, implicando parceria entre os poderes
públicos e os diferentes grupos sociais na construção da vida coletiva. (CANDAU, 2000, p. 84).

Nesse sentido, a discussão acerca do desenvolvimento da educação em direitos humanos no Brasil


foi sendo progressivamente ampliada e culminou no ano de 2002, na criação do Programa Nacional
de Direitos Humanos II (PNDH II) pelo governo federal, que incorporou ações específicas no campo de
garantia do direito à educação, à saúde, à previdência e assistência social, ao trabalho, à habitação,
à alimentação, à cultura e ao lazer, assim como apresentou propostas voltadas para a educação e
sensibilização de toda a sociedade, com vistas à consolidação de uma cultura de respeito aos direitos
humanos (PNDH II, 2002, p.3), na explicação de Jesus (2011). O Programa dedicou uma parte a educação
com propostas para curto, médio e longo prazo. Dentre eles, o item 470: “[...] criar e fortalecer programas
para o respeito aos direitos humanos nas escolas do ensino fundamental e médio através do sistema de
temas transversais, assim como de uma disciplina sobre direitos humanos.” (BRASIL, 2002).
Em 2003, foi instituída a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), órgão da Presidência
da República, que instaurou o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, com o objetivo de
criar e implementar o PNEDH, dar parecer e apresentar propostas de políticas públicas, propor ações
de formação, capacitação, informação, comunicação, estudos e pesquisas na área de direitos humanos
e políticas de promoção da igualdade de oportunidades. A versão inicial do PNEDH282 foi lançada em

282 O PNEDH é organizado em torno de cinco áreas de atuação: educação básica, educação superior, educação não-formal,
educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança e educação e mídia. Além de apresentar concepções e prin-
cípios dessas áreas, o PNEDH apresenta também ações programáticas para cada uma delas.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

2003 e, após submissão a um período de consulta, conforme consta no próprio documento, e debate
com a sociedade civil, teve sua versão finalizada em 2006. (JESUS, 2011, p. 94).
A partir do PNEDH, fica mais fácil visualizar como a sociedade civil, organizações governamentais e não-
governamentais, organismos internacionais, universidades, escolas de educação infantil, do ensino fundamen-
tal e médio, mídia e instituições do sistema de segurança e justiça podem contribuir na construção de uma
cultura voltada para o respeito aos direitos humanos fundamentais da pessoa humana. (BRASIL, 2003, p. 5).
Dessa forma, o PNEDH (2003) baseia-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e
no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. E conforme preceitua Jesus
(2011), em 2006, foi elaborada uma nova versão do PNEDH, que visou atender a Década da Educação
para os Direitos Humanos (1995-2004), prevista no Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos
da ONU e seu Plano de Ação (2005), e fundamenta-se em documentos internacionais e nacionais.
O PNEDH (2006) reconhece que, apesar dos avanços de direitos no plano normativo, o contexto
nacional caracteriza-se por desigualdades e exclusões econômica, social, étnico-racial, cultural e
ambiental, decorrente do modelo de Estado em que muitas políticas públicas deixam em segundo
plano os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Diante disso, o PNEDH:

[...] afirma a educação para o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e do ser humano,
pleno desenvolvimento da personalidade e senso de dignidade, prática da tolerância, do respeito
a diversidade de gênero e cultura, da amizade entre todas as nações, povos indígenas e grupos
étnicos e linguísticos e da possibilidade de todas as pessoas participarem efetivamente de uma
sociedade livre. (BRASIL, 2006, p. 11).

E também, explicita a sua concepção de educação em direitos humanos como:

[...] um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação dos sujeitos de direitos,
articulando as seguintes dimensões: a) apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre
os direitos humanos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local; b) afirmação
de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os
espaços da sociedade; c) formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente nos níveis
cognitivo, social, ético e político; d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de
construção coletiva, utilizando linguagens e materiais contextualizados; e) fortalecimento de práticas
individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa
dos direitos humanos, bem como da reparação das violações. (BRASIL, 2006, p. 17).

Para este documento a educação deve buscar, “[...] efetivar a cidadania plena para a construção
de conhecimentos, o desenvolvimento de valores, atitudes e comportamentos, além da defesa
socioambiental e da justiça social”. (BRASIL, 2006, p. 18).
Em 2018 o PNEDH foi reimpresso pelo governo federal sem nenhuma alteração textual em
relação ao documento anterior.
Já no ano de 2009, o Brasil conheceu a terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos
(2009) — PNDH III, também apoiado em documentos internacionais e nacionais.
Segundo o governo federal, o PNDH III dá continuidade ao processo histórico de consolidação das
orientações para concretizar a promoção e defesa dos Direitos Humanos no Brasil. Avança incorporando a
transversalidade nas diretrizes e nos objetivos estratégicos propostos, na perspectiva da universalidade,
indivisibilidade e interdependência dos Direitos Humanos. Está estruturado em seis eixos orientadores,
subdivididos em 25 diretrizes, 82 objetivos estratégicos que incorporam ou refletem os 7 eixos, as 36
diretrizes e as 700 resoluções da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos (11ª CNDH). O Programa
tem ainda, como alicerce de sua construção, as resoluções das Conferências Nacionais temáticas, os
Planos e Programas do governo federal, os Tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro e as
Recomendações dos Comitês de Monitoramento de Tratados da ONU e dos Relatores especiais.
Portanto, ao analisarmos o aparato legislativo que trata da educação em direitos humanos,
vislumbramos que muito se tem anunciado, e que o tema tem sido tratado como uma importante
ferramenta para a efetivação da democracia no país.
Assim, vemos que a educação em direitos humanos tem ocupado um lugar de destaque na
agenda pública e nos documentos oficiais, já que o estado brasileiro tem ratificado diversos pactos

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

internacionais e elaborado vários planos internos, objetivando fornecer base aos estados e municípios
para que os mesmos criem e executem seus próprios programas de educação em direitos humanos.
Entretanto, mesmo não sendo recente a discussão sobre a necessidade da educação em direitos huma-
nos no Brasil, esta por vezes fica adstrita ao plano das ideias e ao positivismo normativo, sem, contudo, che-
gar efetivamente às escolas. À vista disso, conclui-se que no âmbito jurídico nacional, a educação em direitos
humanos fundamenta-se no direito internacional, possui respaldo e incentivo da legislação interna, mas é um
processo ainda em construção, pois não se efetiva, na maioria das vezes, na prática educacional brasileira.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme vimos anteriormente, ao analisar-se o atual cenário nacional, sob o prisma das legislações,
historicamente, vê-se muito já se foi discutido e normatizado tanto acerca dos direitos humanos e como da
educação em direitos humanos. No entanto, a universalização do discurso não tem correspondido à efetivação
dos direitos na prática. Se os vários marcos normativos não podem ser menosprezados, também não se pode
negar a realidade contínua de violações de direitos humanos em todo o mundo. (JESUS, 2011, p.91).
Entrevendo a importância das normas e documentos que visam assegurar a realização da
educação em direitos humanos, podemos citar como documentos fundamentais a Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948 e a Constituição Federal Brasileira de 1988.
O artigo primeiro da Declaração de 1948 ressalta que “todas as pessoas nascem livres e iguais
em dignidade de direitos”. Todavia, como bem pondera Arendt (1979), os seres humanos não nascem
livres e iguais em dignidade e direitos, mas conquistam esses direitos em processos de construção e
reconstrução, de organização e luta política.
Igualmente, a Constituição de 1988, como esclarece Viola (2010), trouxe o debate sobre as
possibilidades de construção de políticas públicas na área dos direitos humanos no país. Mas, para
que a educação em direitos humanos seja realmente implementada no Brasil, os princípios oriundos
dos direitos humanos devem pautar todo o processo de elaboração, implementação e avaliação, de
tais políticas, com a participação ativa de toda população.
Olhando a realidade brasileira mais de perto, percebe-se que conforme coloca Servilha:

O discurso em defesa da democratização do acesso e do ensino de boa qualidade, da participação


da comunidade local e escolar quanto à tomada de decisão permeia a legislação oficial desde o
período pós-ditadura militar até nossos dias. Porém, o modelo continua centralizador, mesmo
quando seus decretos, pareceres, leis dizem o contrário. A gestão continua regulamentada e
ordenada de cima para baixo, atendendo ao ideário neoliberal. (SERVILHA, 2008, p. 129).

Logo, a realidade educacional brasileira nos mostra que na maioria das vezes não existe “vontade”
política para que a educação seja realmente transformadora, voltada para formar sujeitos de direitos, críticos
e conscientes de seu papel na sociedade. Já que quanto maior for o nível de consciência, conhecimento e
envolvimento político da população, maior será o trabalho da classe dominante para “dominar”.
Este cenário deixa transparecer que a escola reproduz a ideologia dominante, voltada para uma
sociedade capitalista, cuja lógica é o lucro e a exploração do outro, atendendo dessa forma aos
interesses do Estado neoliberal.
Entretanto, se houver vontade política e ações concretas, acredita-se que seja possível efetivar a
educação em direitos humanos, a fim de auxiliar na formação de sujeitos capazes de realizarem uma
leitura de mundo diferente da que é apregoada pela ideologia dominante, de se oporem a ela e se
engajarem na luta por outra sociedade menos desigual.
Pois, o espaço de luta para superação da sociedade capitalista, forjada na divisão social das
classes (dominante x trabalhadora), se dá dentro dos espaços de contradição dessa mesma sociedade,
e a educação é um espaço privilegiado para a resistência, luta e debate, visto que sozinha ela não
pode tudo, mas é exatamente não podendo tudo, que ela pode alguma coisa! (FREIRE, 2019).
Também para Symonides (2003, p. 170), “[...] quanto mais avançar a educação para os direitos
humanos, também avançarão as possibilidades de construirmos alternativas de desenvolvimento que
valorizem a vida e a justiça”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Segundo Candau (2009), a educação constitui um campo de batalha importante, onde se


pode inculcar hábitos conservadores, cultivar tendências conservadoras, acomodatícias, resignadas
ou meramente pragmáticas, mas onde se pode também fortalecer disposições críticas, estimular
o inconformismo e a inquietação, incentivar o desenvolvimento da capacidade questionadora. Nas
instituições educacionais pode prevalecer tanto a formação de súditos como a formação de cidadãos.
O educador, no diálogo com seus alunos, precisa lhes transmitir não só conhecimentos, mas
também convicções (KONDER, 2004, p. 21).
Se, de um lado, os documentos que tratam dos direitos humanos apresentam limitações a sua efetivação
na prática, de outro, apresentam lacunas que permitem a batalha pela materialização dos direitos. Neste pro-
cesso de lutas a educação escolar (na perspectiva dos direitos humanos) desponta como instrumento capaz
de colaborar com as lutas sociopolíticas mais amplas por uma sociedade mais justa. (JESUS, 2011, p. 100).
Nessa perspectiva, a educação em direitos humanos também contribui, enquanto educação
crítica que contesta, questiona e visa, em última instância, contribuir com a superação do modelo
hegemônico vigente. A este respeito, para Benevides:
A educação [...] para os direitos humanos, [...] tem como premissa a superação da antiga visão
liberal e ‘neoliberal reformada’ — sobre educação e cidadania. Isto é, aquela concepção do cidadão
como indivíduo livre perante o Estado (o que é essencial), mas visto de forma fragmentada, como
só contribuinte, ou só consumidor definido pelas regras do mercado, ou só o eleitor que precisa ser
conquistado, ou o trabalhador qualificado que deve ser ‘reciclado’, ou a elite dirigente mandatária
‘por direito divino’ etc. Tal superação significa reconhecer sim o cidadão como membro [...] de
classes sociais diferenciadas, [...] em conflito. Cumpre reafirmar: reconhecer, ainda, que o cidadão
é sujeito de direitos e deveres, mas também sujeito criador de direito. (BENEVIDES, 1998, p. 173).

Partindo do pressuposto de que a educação em direitos humanos é essencialmente político-


transformadora e tem a capacidade de libertar, de emancipar as pessoas, a mesma não pode ser
realizada apenas com palavras, nem somente com belos discursos. Ao contrário, deve ser efetivada e
vivenciada dentro das escolas, por educadores e educandos.
Como diz Carvalho (2005, p. 188), a educação em direitos humanos tem que ser antes de tudo
cultivada e aprendida por meio de todos os atos vivenciados no cotidiano do universo escolar, em
todas as matérias, gestos e atitudes. Literalmente: “isso porque ensinar alguém a ser democrático,
por exemplo, não se confunde com ensinar o que e democracia, dado que a conduta não decorre
simplesmente da posse ou ausência de uma informação”.
E ao analisar-se a realidade educacional brasileira com mais acuidade, segundo Jesus (2011),
apesar do Estado investir na área dos direitos humanos apregoando, entre outros, a educação em
direitos humanos como instrumento de efetivação da democracia, a realidade aponta para a falta
de mecanismos que garantam a efetivação de direitos constitucionais e da ausência de um trabalho
efetivo que envolva as comunidades escolares na elaboração e execução de projetos que contemplem
a temática dos direitos humanos. Esta incoerência entre o discurso e a prática ressalta a contradição
do sistema e a manutenção de veiculação da ideologia dominante dentro das instituições escolares.
O contexto educacional permite a compreensão de que não há um investimento significativo por
parte do governo em ações práticas para a concretização da proposta de educação em direitos humanos.
Bem como, no campo de formação de professores e professoras, as iniciativas para discutir a temática são
tímidas ainda, e esta e uma questão urgente “[...] se queremos colaborar para a construção de uma cultura
dos direitos humanos que penetre as diferentes práticas sociais” (CANDAU; SACAVINO, 2000, p. 110).
Silva (2010) também destaca a falta de elaboração e aquisição de recursos didático-pedagógicos em
direitos humanos. E essas são apenas algumas falhas e entraves que o sistema educativo brasileiro apresenta,
quando se trata da educação em direitos humanos – existem muitas outras, maiores e mais graves.
É dizer, as normatizações acerca da educação em direitos humanos são importantes e necessárias, mas
somente isso não basta, é preciso que as práticas pedagógicas estejam pautadas por condutas que propiciem
o aprendizado e a vivência dos direitos humanos, ou seja, a educação brasileira precisa ter como pilar o ensino
e a vivência voltados para os valores humanos, cidadania, democracia, justiça, igualdade, solidariedade etc.
Assim, conclui-se que não basta somente que a educação em direitos humanos figure nas
legislações e documentos oficiais do Estado, pois efetivar a educação em direitos é um processo
extremamente complexo e difícil, e que exige engajamento nas lutas sociais, consciência e vontade
política. Não basta apenas “ter direitos”, é preciso “vivenciar direitos”.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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598
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

TEORIA DA DECISÃO QUE DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA:


UMA LEITURA CRÍTICA DO HABEAS CORPUS Nº 126.292
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Marcelo Gonçalves283

RESUMO: A pretensão de compensação de déficits de cidadania pelo Poder Judiciário é uma realidade
brasileira; esse cenário gera fenômenos contemporâneos, como o ativismo judicial, que são nocivos à
democracia. Diante disso, a proposta é analisar a decisão do Supremo Tribunal Federal, no HC nº 125.292,
não sob a ótica da violação das garantias que aconteceu (e depois foi revista), mas sob uma teoria da
decisão judicial, voltada para prisão preventiva, através do método dedutivo, pela abordagem bibliográfica
e de estudo de caso. A primeira seção será dedicada ao estudo das prisões antes do trânsito em julgado da
sentença penal condenatória, espécies e requisitos. A segunda parte buscará encontrar um paradigma de
decisão judicial, sob viés constitucional. Por fim, criticar-se-á o Supremo Tribunal Federal, quando autorizou
a execução provisória da pena. A decisão que decretar qualquer prisão antes do trânsito em jugado de
sentença penal condenatória sempre dependeu dos requisitos estabelecidos pelo sistema jurídico.

Palavras-chave: Ativismo judicial. Constituição Federal. Execução provisória de pena. Prisão


preventiva. Teoria da decisão judicial.

INTRODUÇÃO

O protagonismo do Poder Judiciário, na intervenção em política públicas de competência exclusiva


do Poder Executivo, é uma realidade brasileira. Há muito se vê o Supremo Tribunal Federal assumindo o
front da implementação de medidas que são reservadas à lei, ou à discricionariedade do administrador.
Surge assim fenômenos como o ativismos judicial, neoconstitucionalismo, panprincipiologismo
(STRECK), em que o Judiciário extrapola seus limites, e torna-se um verdadeiro ator (aquele que age), no
panorama democrático, ao invés de ser o ente inerte, a fim de preservar sua neutralidade e imparcialidade.
Muitos denunciam, capitaneados por Lênio Streck, os perigos do ativismo judicial. O que o Supremo
Tribunal Federal fez no julgamento do Habeas Corpus nº 126.292, não foi somente uma violação ao
princípio da presunção de inocência, direito humano fundamental, quando autorizou a execução provisória
de pena, após o exaurimento das vias recursais ordinário. O julgado gerou uma carga hermenêutica muito
forte na decisão que autoriza a execução provisória de pena, a partir das considerações do Ministro Luis
Roberto Barroso. A relevância do tema é incontroversa diante da repercussão da posição do Supremo
Tribunal Federal frente a todo sistema prisional e processual penal brasileiro, e pela posterior revisão do
entendimento, que se revelou uma covardia hermenêutica protagonizada pela Corte.
Sob essa ótica que será desenvolvido o presente estudo. Embora o atentado à presunção de
inocência e ao devido processo legal sejam altamente relevantes, até mais que o objeto de pesquisa,
a grande questão que será trabalhada é como a decisão que permitiu a execução provisória da pena,
após o fim da jurisdição de segundo grau, deveria ser produzida, a partir de parâmetros constitucionais
e legais. O método científico utilizado será o dedutivo, partindo da compreensão das prisões antes do
trânsito em julgado da sentença penal condenatória, para a análise de uma teoria da decisão judicial,
para, ao final, ser realizada uma crítica ao decidido no Habeas Corpus nº 126.292, do STF, através da
análise de bibliografias vinculadas ao tema e o estudo de caso.
A primeira seção do artigo, portanto, será dedicada ao estudo das prisões antes do trânsito em

283 Advogado, inscrito na OAB/RS sob nº 103.166. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UPF, em 2015. Especialista
em Advocacia Criminal pela UPF, em 2017. Mestre em Direito no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade
de Passo Fundo, linha de pesquisa “Relações Sociais e Dimensões do Poder”, 2020/1. E-mail: 120084@upf.br.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

julgado da sentença penal condenatória, espécies e requisitos. A segunda parte buscará encontrar
um paradigma de decisão judicial, a partir da proposta de Lênio Streck, como a decisão na forma de
“resposta adequada à Constituição”. Por fim, na última seção acontecerá a crítica ao Supremo Tribunal
Federal, quando autorizou a execução provisória da pena, não sob a ótica da violação das garantias
constitucionais, mas sobre a questão da decisão judicial que autoriza o cumprimento provisório.
Com efeito, afirmar que o requisito para a prisão é a decisão de autoridade competente, e para
a formação de culpa é o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, sendo esses institutos
diferentes, não trouxe nada de novo para o sistema. A decisão que decretar qualquer prisão antes do
trânsito em jugado de sentença penal condenatória sempre dependeu, não importando a posição do
STF, dos requisitos estabelecidos em Lei, Constituição de República, e Tratados Internacionais.

1 PRISÃO PREVENTIVA: DOGMÁTICA

A prisão como pena é uma criação recente, decorrente da concepção moderna de punição.
O cárcere, no princípio, foi uma medida cautelar, um instrumento inquisitorial preparatório para o
julgamento final (condenação pela confissão) (WEDY, 2006, p. 38).
Por mais nefasto seja o sistema inquisitorial original, foi na inquisição que a prisão tinha um
caráter eminentemente cautelar, pois visava garantir a eficácia do processo, que era, simplesmente,
aplicar a pena sumariamente. A prisão-pena começou a surgir com a modernidade, e a humanização
do processo penal. Luigi Ferrajoli (2014, p. 359-360) fixa o nascimento da pena prisão, conforme a
concepção moderna, na metade final da idade média.
Assim, a prisão, como conhecida atualmente, é algo novo, embora a prisão cautelar seja tão
antiga quanto à noção de Estado e de vida em sociedade. A prisão preventiva possui um caráter
estigmatizante, porque não deixa de ser a exclusão do réu da sociedade, por não ser considerado
como apto ao convívio em comunidade (WEDY, 2006, p. 5). Qualquer prisão, antes do exaurimento
do devido processo legal, pode ser enquadrada nesse critério
Não é por outro motivo que, tanto a prisão cautelar, quanto a prisão condenatória, ostentam
um caráter excepcional, pois a regra deve, sempre, ser a liberdade, em especial em uma democracia,
consoante leciona Nereu Giacomolli:

A estruturação da República em um Estado Democrático de Direito (art. 1º CF), a fundamentação


da ordem jurídica na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e o rol de direitos e garantias
fundamentais situam, de forma clara e objetiva, a prisão antes do trânsito em julgado de uma sentença
penal condenatória, em um patamar de extrema ratio, ou seja, como uma medida excepcionalíssima.
Ademais, afastam a concepção medieval de obrigatoriedade da prisão, do recolhimento ao cárcere
como uma antecipação da tutela penal material. A excepcionalidade da restrição da liberdade antes de
uma sentença penal com trânsito em julgado advém do art. 5º, LVIII, da CF. A regra é o recolhimento ao
cárcere após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória, nas hipóteses em que não for
possível substituir a pena privativa de liberdade por multa (art. 60, §2º, do CP), por sanções restritivas
de direito (art. 44 do CP) ou ser suspensa a execução da pena (arts. 77 ss do CP). (2014, p. 359).

A prisão, mesmo com a culpa formada, é medida de ultima ratio, pois é direito subjetivo do réu a
conversão da pena restritiva de liberdade em restritiva de direitos, e na impossibilidade, a aplicação de
SURSIS penal. Ou seja, preenchidos os requisitos subjetivos e objetivos, deve ser concedida a benesse legal.
O objeto desse estudo, porém, são as prisões anteriores ao trânsito em julgado da sentença
condenatória, que serão analisados pela ordem em que podem ser decretadas no curso do inquérito
policial ou do processo.
A primeira prisão, anterior ao trânsito em julgado, é a prisão flagrante, prevista nos artigos 301
e seguintes do Código de Processo Penal. Flagrante é o crime que está acontecendo, que é evidente,
visível, como uma chama queimando (MALTA, 1933, P. 23)
O artigo 302 do Código de Processo Penal delimita os momentos em que o agente pode ser
encontrado em flagrante delito. Os incisos I e II tratam do flagrante próprio, ou seja, quando o autor,
em tese, do crime, é encontrado cometendo a infração, ou recém finalizando a conduta. A hipóteses
do inciso III é do chamado flagrante impróprio, quando o agente é perseguido pela autoridade. Por
fim, a hipótese do inciso IV é o do flagrante presumido, quando pelas circunstâncias é suposto que o

600
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

agente tenha cometido a infração. (BONFIM, 2016, p. 583/584).


A prisão em flagrante, segundo a lição de Garcez Ramos (1998, p. 150), possui as características
de sumariedade formal e temporariedade. Muito é discutido sobre a natureza cautelar da prisão em
flagrante. Castelo Branco (1980, p. 13), por exemplo, define a prisão em flagrante com uma medida
administrativa cautelar penal, considerando o momento (anterior ao processo, que revela uma
precaução), cuja decisão é emanada fora da esfera processual, por uma autoridade administrativa.
Contudo, inobstante louvável doutrina citada, a posição que parece ser mais correta é a que
considera a prisão em flagrante como uma medida precautelar. Na esteira do que ensina Aury Lopes
Jr. (2013, p. 806), a prisão em flagrante é o instrumento do instrumento, pois serve apenas como
medida preparatória para a prisão preventiva ou temporária, cuja precariedade é marcada pelo fato de
ser uma medida administrativa, adotada pela autoridade policial, ou por particular, que pode durar no
máximo 24h. Assim, arremata Choukr: “Na nova lógica das cautelares, a prisão em flagrante aparece
explicitamente como uma espécie precautelar [...]”. (2014, p. 626).
Após a prisão em flagrante, o Magistrado deve proceder em uma das alternativas do artigo 310
do Código de Processo Penal, ou seja, relaxar a prisão, converter em prisão preventiva, conceder
liberdade provisória, com ou sem fiança, aplicando ou não eventual medida cautelar diversa, nos
termos do artigo 319 do Código de Processo Penal.
O relaxamento da prisão será obrigatório na hipótese em que esse for manifestamente ilegal
(MACHADO, 2013, p. 648), o que difere da declaração de nulidade do auto de prisão em flagrante,
que acontece por razão de defeito jurídico. Nas hipóteses de relaxada a prisão, ou convertida para
liberdade provisória, cessa a medida precautelar de constrição da liberdade. Entretanto, pode o Juiz,
ainda, converter a prisão em flagrante em preventiva, ou, se o delito permitir, em prisão temporária.
A prisão preventiva está prevista nos artigos 311 a 316, do Código de Processo Penal. Sendo que, os
artigos 312 e 313, do Código de Processo Penal são os mais relevantes para o estudo da matéria. O artigo
313 apresenta os requisitos objetivos que autorizam a prisão preventiva: i) crime punido com pena superior
a 04 (quatro) anos; ii) reincidente por crime doloso; iii) o crime envolver violência doméstica. O parágrafo
único, do mesmo artigo, permite a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade do agente.
O artigo 312 elenca os requisitos que decorrem da casuística, cuja doutrina moderna (LOPES JR.,
2013a, 833/836) define como o fumus comissi delicti (indícios de materialidade e autoria) e periculum
libertatis (risco à ordem publica ou econômica; garantida da instrução; assegurar a aplicação da lei
penal). Dentro da linha de pensamento, as únicas prisões preventivas eminentemente cautelares, são
pela garantia da instrução e assegurar a aplicação da lei penal, as únicas que almejam assegurar o
resultado útil do processo, podendo esse rol ser considerado exaustivo (POLASTRI, 2014, p. 222).
Fixados, ao menos perfunctoriamente, os requisitos da prisão preventiva, será feita uma breve
análise da prisão temporária. A prisão temporária possui sua base legal na Lei nº 7.960/1989, e
encontra sua gênese na antiga prisão para averiguações, que é um ranço da ditadura (POLASTRI,
2014, p. 208). Ironicamente, a referida lei possui um avanço, em termos de prisão cautelar, pois é a
única com prazo determinado: 05 dias, prorrogáveis por igual período ou; 30 dias prorrogáveis por
mais 30 dias se for caso de crime hediondo, nos termos do artigo 2º, §3º, da Lei 8.072/1990.
A prisão temporária, na lição de Aury Lopes Jr. (2014, p. 170), é “[...] uma prisão finalisticamente dirigida
à investigação e que não sobrevive no curso do processo penal por desaparecimento de seu fundamento.
[...]”. A prisão temporária, nos termos do artigo 1º da Lei nº 7.960/1989, combinará os requisitos do fumus
commissi delicti (inciso I), e do periculum libertatis (inciso III), somado a um rol taxativo de crimes.
O inciso II ainda do artigo 1º, da Lei nº 7.690/1989, autoriza a prisão preventiva caso o agente
não tenha residência fixa, ou não fornecer elementos para identificação civil.
Por fim, é impossível de ignorar a construção jurisprudencial realizada por meio do Habeas Corpus nº
126.292, de São Paulo, do Supremo Tribunal Federal, que permitiu a execução provisória de penas, com a fi-
xação da seguinte tese: “A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação,
ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presun-
ção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal”. O estudo do julgado em questão
será realizado na terceira seção desse artigo, razão pela qual não será aprofundado o tema nesse momento.
Isso posto, é vislumbrável elencar uma sequência lógica nas prisões que antecedem o trânsito
em julgado, começando pela medida precautelar da prisão em flagrante, com a possibilidade de con-

601
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

versão em prisão temporária, caso existente a hipótese legal e, somente, no curso da investigação
penal, a prisão preventiva que pode ser decretada a qualquer tempo, durante o inquérito policial, o
processo judicial, ou após sentença de primeiro grau ou decisão de segundo grau, por fim, a possibi-
lidade de execução provisória da pena, conforme entendimento recente do STF.

2 TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL

Uma teoria da decisão judicial é imprescindível para o estabelecimento do equilíbrio do sistema


legal. A realidade é que o judiciário lida com situações de conflito que geram uma expectativa das
partes, que demandam uma solução para a controvérsia. Assim, é necessário um paradigma decisório
para a formação da segurança jurídica.
O sistema jurídico, estabelecido pelo liberalismo, quase sempre teve como centro a legislação, e
nessa perspectiva vinculada ao princípio da legalidade, o Poder Judiciário sempre assumiu um papel
neutro frente aos outros poderes (CAMPILONGO, 2002, p. 28).
Com efeito, o Poder Judiciário é o único que não pode agir de ofício, e, em nome da harmonia entre
os Poderes, não pode interferir no processo legislativo, tampouco nas decisões do Poder Executivo.
Dentro desse espectro, o Poder Judiciário sempre dependerá da plena confiança no legislador.
Todavia, conforme denuncia Streck (2013, p. 20), existe um axioma contemporâneo de entregar ao
protagonismo judicial o papel de concretização de direitos.
A jurisprudência, obviamente, possui um papel criativo, o qual, segundo Mendonça (2000, p. 17/18),
não pode ser visto apenas como algo nocivo ao sistema, pois existiria uma relação de complementariedade
entre o aspecto inventivo da jurisprudência e a rigidez da lei. O Juiz possui liberdade e autonomia, para deci-
dir o caso concreto, porém, a partir da legalidade. Cabe mencionar, portanto, o contraponto de Campilongo:

A “independência do juiz” jamais pode ser entendida como “absoluta”, ou seja, o Judiciário não é um
Poder distante, oposto e contraditório em relação aos demais Poderes do Estado. A magistratura integra
o sistema político e não pode ser examinada à margem dos parâmetros institucionais de relacionamento
entre um dos ramos de Poder do Estado (que é o seu caso) e os demais. Da mesma forma, a existência de
um “direito judicial” só pode ser reconhecida se integrada à obra geral de criação estatal do direito. Assim,
a criatividade judicial (do mesmo modo que a independência e a imparcialidade) deve ser examinada
nestes limites. Se, nos chamados “casos difíceis”, o juiz é obrigado a fazer escolhas políticas – muitas
vezes por delegação do próprio legislador – essa criatividade é exercida nos limites da legitimidade legal-
racional. O legislador pode rever a delegação ou fixar a opção políticas. Entretanto, até que isso aconteça,
a determinação de uma linha política por parte do juiz – desde que em conformidade com os valores
fundamentais positivados pelos ordenamentos – não significa, necessariamente, um comportamento
antidemocrático, contrário à divisão de poderes ou ofensivo do Estado de Direito. (2002, p. 48/49).

Obviamente, o papel dos Juízes pressupõe imparcialidade e neutralidade para com os envolvidos
e as teses propostas na demanda. Nalini (1994, p. 96) chama de “corajoso” o Juiz que não cede ao rico
e ao poderoso, tampouco beneficia os desprivilegiados, pois todos têm direito igual à justiça. Todavia,
por expressa previsão constitucional, o Estado não pode se furtar da obrigação de resolver o conflito.
Essa situação gera uma carga de responsabilidade muito alta a um Poder, que deve agir (não de ofício),
quando outro poder falha, em especial, o Poder Legislativo.
Para Fernando Vieira Luiz (2013, p. 43), a judicialização da política não pode ser confundida com
ativismo judicial, porque, nesse último, há a substituição dos juízos estabelecidos, constitucional,
legal, e democraticamente, por juízos subjetivos. Já no primeiro:

A judicialização da política, por outro lado, é um fato que decorre do próprio aumento do caráter herme-
nêutico do Direito a partir do segundo pós-guerra. Na medida em que os direitos sociais passam a fazer
parte dos direitos fundamentais e, por outro lado, o Estado não os cumpriu sequer de forma mínima,
a jurisdição aparece como lugar último ao cidadão para a garantia de tais direitos. (LUIZ, 2013, p. 43).

A questão de fundo parece relativamente simples. Com as promessas da modernidade não


cumpridas, o Judiciário, talvez, pudesse suprir as falhas dos demais poderes. A Constituição assumiu um
novo papel em países periféricos, como o Brasil. Segundo Lênio Streck (2014, p. 46), sob o argumento
“neconstitucionalista” abrigam-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; e o um
dirieto constitucional assombrado pela ponderação de valores.

602
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Assim, o neoconsitucionalismo é uma espécie de redimensionamento na práxis político-jurídica, em


que se almeja limitar o Poder Estatal, e gerar e garantir o exercício da cidadania (STRECK, 2012, p. 47).
Com efeito, o neoconstitucionalismo, sob a perspectiva teórica, tenta compensar os déficits de cidadania:

El neoconstitucinalismo, como teoría del Derecho, aspira a describir los logros de la constitucionalización,
es decir, de es proceso que ha comportado un modificación de los grandes sistema jurídicos
contemporáneos respecto a los existente antes del despliegue integral del proceso mismo. El modelo de
sistema jurídico que emerge de la reconstrucción del neoconstitucionalismo está caracterizado, además
de por una Constitución <invasora>, por la positivización de un catálogo de derechos fundamentales,
por la omnipresencia en la Constitución de principios y regla, y por algunas peculiaridades de la
interpretación y de la aplicación de las normas constitucionales respecto a la interpretación y la aplicación
de la ley. Como teoría, el neoconstitucionalismo representa por tanto una alternativa respecto a la teoría
iuspositivista tradicional: las transformaciones sufridas por el objeto de investigación hacen que esta
no refleje más la situación real de los sistemas jurídicos contemporáneos. En particular, el estatalismo,
el legicentrismo y el formalismo interpretativo, tres de las características destacadas del iuspositivismo
teórico de matriz decimonónica, hoy no parecen sostenibles. (COMANDUCCI, P. 83).

O Judiciário, a partir da leitura de princípios constitucionais, inicia um processo de compensação


de déficits legislativos, em nome das garantias fundamentais (STRECK, 2009, p. 214), diante do
descumprimento de promessas da modernidade. Assim, portando bandeiras democráticas, são praticados
abusos, dentro de uma perspectiva eficientista do direito, através do uso de expressões vazias de
sentido, que servem apenas para justificar os fins e não os meios. Nesse sentido, que deve ser temida
a razoabilidade e a proporcionalidade (STRECK, 2013), pois são utilizados como álibis hermenêuticos
para decisões deficientes de juízos legais, mas ricas em consciência dos julgadores. Existe a exceção
de que o fim teleológico do julgado admite o uso da ponderação, por exemplo, porém a técnica de
argumentação não pode ser utilizada como justificativa para arbitrariedades e discricionariedade.
Seguindo na esteira de Lenio Streck (2014, p. 505), ele afirma que discutir as condições de
possibilidade da decisão jurídica é uma “questão de democracia”. Com efeito, sob os auspícios
do “neoconstitucionalismo”, muitas arbitrariedades e decisões vazias de sentido vêm sendo
testemunhadas pela comunidade jurídica. A técnica de redação e aplicação de precedentes não vem
sendo das melhores, e muitas decisões estranhas surgem pelo imenso Brasil.
Todavia, o papel da jurisdição, segundo Galvão (2017, p. 160), atualmente “[...] está do
direcionamento de seu olhar para o aperfeiçoamento dos sistemas judiciais, de forma a torná-lo
crível perante a sociedade [...]”. Isso porque, a Constituição é uma manifestação do poder do povo,
através do processo democrático. Por essa razão, que Liton Lanes Pilau Sobrinho e Caroline Müller
Bittencourt, apontam como o modelo ideal de juiz, aquele que é atento à Constituição Federal:

Um modelo de juiz ideal deveria ver a Constituição como algo além de uma mera ordem jurídica o exercício
dos cidadãos nos seus direitos e obrigações para com a sociedade; necessita perceber que a Constituição é
a expressão cultural de um povo, sua autorrepresentação ética, seu legado cultural e também a fundamenta-
ção de suas esperanças e desejos para o futuro. Pode-se dizer que a realidade jurídica é apenas uma parte da
Constituição, cuja autenticidade é composta pela letra viva, que é resultado da vivência dos seus intérpretes
na sociedade aberta, como expressão e instrumento mediador da cultura e depósito de vivências, saberes,
experiências para a formação das identidades atuais e da geração futura [...]. (2011, p. 87).

Diante disso, possivelmente, o melhor paradigma para o estabelecimento de uma teoria da


decisão judicial, é o proposto Lenio Streck (2014, p. 624), como a “resposta adequada à Constituição”,
que é aquela na medida em que é respeitada, em maior grau, a autonomia do direito (presumidamente
produzido democraticamente), em que se evita a discricionariedade, e respeita a coerência e integridade
do direito, através de fundamentação idônea, completa e detalhada. Nesse sentido, a resposta adequada
à Constituição deve ser de princípio, não de política: “Dito de outro modo, não se pode ‘criar um
grau zero de sentido’ a partir de argumentos de política (policy), que justificariam atitudes/decisões
meramente baseadas em estratégias econômicas, sociais, ou morais.” (STRECK, 2014, p. 624).
Assim, para que seja evitado o atentado ao Princípio Democrático, e a separação dos Poderes, bem
como não fique o sistema refém da consciência do Magistrado ou, pior, à verdade real ou livre convencimento
motivado, a teoria de argumentação adotada, necessita de padrões hermenêuticos, com o objetivo de:
a) preservar a autonomia do direito; b) estabelecer condições hermenêuticas para a realização de
um controle da interpretação constitucional (ratio final, a imposição de limites às decisões judiciais

603
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

– o problema da discricionariedade); c) garantir o respeito à integridade e coerência do direito; d)


estabelecer que a fundamentação das decisões é um dever fundamental dos juízes e tribunais; e)
garantir que cada cidadão tenha sua causa julgada a partir da Constituição e que haja condições
para aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente adequada. (STRECK, 2013, p. 106/107).

O direito assume um papel relevantíssimo na contemporaneidade em países periféricos. As


promessas não cumpridas da modernidade exigem que o Judiciário compense certos déficits de
cidadania existentes na nação. Diante disso, argumentos como “prestígio das instituições”, “interesse
público”, “garantia da ordem pública”, e técnicas de argumentação como a ponderação, ganham uma
força e presença extraordinária, inclusive, nas Cortes Superiores.
Todavia, essas expressões não podem ser utilizadas vazias de sentido. O interesse público,
toda vez que for utilizado, deve ser demonstrado de forma concreta. O mesmo vale para a garantia
da ordem pública. O prestígio das instituições deve ser esclarecido sob qual aspecto a decisão pode
ser útil para o “prestígio” daquela “instituição”.
Outro aspecto importante, dos requisitos estabelecidos por Lenio Streck, é a preocupação com
a higidez e a coerência do direito. O papel das Cortes Superiores é de trazer segurança jurídica para
que sejam evitadas reviravoltas jurisprudências que gerem o caos no sistema legal.
O dever de fundamentar as decisões judiciais nem deveria ser mencionado por Lenio Streck. Essa
constatação não deve ser vista sob a ótica crítica, mas como um lamento, porquanto a Constituição
da República já prevê o dever de fundamentação das decisões judiciais; o que, também, seria
dispensável, visto que a obrigatoriedade da motivação de um ato decisório, por parte da autoridade,
é um corolário óbvio e indispensável de uma democracia.
Assim, deve ser respeitado um paradigma de decisão judicial, que traga segurança jurídica, e
garanta coerência a um sistema legal, jurisprudencial e, inclusive, doutrinário. Somente dessa forma
que será contido fenômenos caóticos vinculados ao ativismo judicial.

3 A DECISÃO QUE DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA EM SEGUNDA INSTÂNCIA

O Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2016, reviu posição, anteriormente consolidada (que
posteriormente foi novamente revista)284, no sentido de que seria possível a prisão, antes do trânsito
em julgado da sentença penal condenatória, depois de exaurida a jurisdição de segunda instância. A
decisão foi assim ementada:

Ementa: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE


INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE
SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória
de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial
ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado
pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.

A decisão fixou uma tese que permite que Tribunais de Justiça (segunda instância), depois de
finalizada sua jurisdição, determine o cumprimento provisório de pena. Afora a afronta direta ao
Princípio da Presunção de Inocência, o precedente do Supremo Tribunal Federal criou mais problemas,
do que era possível imaginar à época do julgado.
O acórdão será analisado, a partir de uma teoria da decisão judicial, fazendo uma leitura crítica do voto
do Excelentíssimo Ministro Luis Roberto Barroso, posicionamento de maior fôlego, e único que tentou exaurir
a matéria. Em apertada síntese, o Ministro considerou que, o que está condicionado ao trânsito em julgado de
sentença penal condenatória a formação da culpa, e a prisão estaria adstrita, apenas, a decisão fundamentada:

15. Para chegar a essa conclusão, basta uma análise conjunta de dois princípios à luz do princípio da
unidade da Constituição. Veja-se que, enquanto o inciso LVII define que “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, logo abaixo, o inciso LXI prevê que
“ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade

284 O STF, no julgamento das ADC’s n. 43, 44 e 54, julgou “constitucional” o artigo 283, do CPP, reestabelecendo a proibição
da prisão automática, após decisão de segunda instância.

604
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

judiciária competente”. Como se sabe, a Constituição é um conjunto orgânico e integrado de normas,


que devem ser interpretadas sistematicamente na sua conexão com todas as demais, e não de forma
isolada. Assim, considerando-se ambos os incisos, é evidente que a Constituição diferencia o regime
da culpabilidade e o da prisão. Tanto isso é verdade que a própria Constituição, em seu art. 5º,
LXVI, ao assentar que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir liberdade
provisória, com ou sem fiança”, admite a prisão antes do trânsito em julgado, a ser excepcionada pela
concessão de benefício processual (a liberdade provisória). (BARROSO, STF, 2016, p. 10).

Acontece que nunca se teve dúvida que, no ordenamento jurídico brasileiro, fosse admitida a
prisão antes do trânsito em julgado, inclusive, na fase inquisitorial, com base em provas indiciárias,
produzidas sem contraditório. Até então, nenhuma novidade. Todavia, o risco surge quando a
discussão avança para: o que é decisão fundamentada?
A própria técnica de redação do precedente se mostrou equivocada, ao usar um negativo no sentido de
que a prisão em segunda instância “[...] não compromete o princípio constitucional da presunção de inocên-
cia afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal.”. O espanto ocorre pelo fato de que todos já
sabiam disso. Contudo, o acórdão em nenhum momento refere a legalidade da execução provisória de pena.
Isso posto, o ordenamento jurídico brasileiro possui um déficit normativo que não fora compensado
pela reviravolta jurisprudencial, que inclusive é nociva ao sistema (STRECK, 2014, p. 651). A dúvida
que remanesceu era qual é essa decisão fundamentada que permite a execução provisória da pena.
A decisão penal é muito mais exigida do que em qualquer outra área do direito, pois é a única possibili-
dade legislativa de uma pena corporal, na forma de contenção de liberdade. Segundo Gabriel Antinolfi Divan:

No momento em que decide um caso penal, um magistrado responde ao réu jurisdicionalizado, à víti-
ma do crime e a todo corpo social, de certa forma, e é para isso (e não por outro motivo) que a publi-
cidade dos atos jurisdicionais vai erigida enquanto norma constitucional basilar. (Constituição Federal,
artigo 93, IX). A decisão judicial é uma resposta, não qualquer resposta, mas a resposta oficial e ne-
cessariamente qualificada que o Estado fornece ao caso jurisdicionalizado pelo processo, optando por
uma solução (jurídica) em detrimento de outras possíveis na gestão do conflito posto. (2016, p. 335).

A decisão judicial em jurisdição penal, portanto, deve prestar contas a muitos atores processuais,
que foram, muitas vezes literalmente, violentados pelo crime.
Para ficar claro, o objeto do processo penal não é a aplicação da pena, mas, segundo a lição de
Aury Lopes Jr. (2015, p. 191), o objeto do processo penal é a pretensão processual acusatória. Claro
está que o objeto do processo não é aplicação da pena, pois esse decorre do poder punitivo estatal,
tampouco, é questionar o estado de inocência do réu, visto que superada a ideia de lide no processo
penal, e de pretensões resistida (LOPES JR., 2015, p. 74).
O mito da “verdade real” já foi superado (KHALED JR., 2013) e hoje deve ser abandonado como
fundamento de qualquer decisão processual penal. O regular exercício de defesa não pode prejudicar
o réu. Assim, somente resta como fundamento da prisão preventiva, a garantia da instrução e da
aplicação da lei penal, os únicos fundamentos eminentemente cautelares, em relação ao objeto do
processo penal. Nessa posição, Oliveira Castilhos e Felipe Lazzari da Silveira:

[...] O caráter instrumental das cautelares possui especial importância no processo penal, uma vez
que nenhuma delas (nem mesmo a prisão preventiva) possui um fim em si mesmo, na medida
em que, em sentido amplo, têm como função precípua garantir a sentença e sua execução final
do processo. A prisão cautelar é a última solução e cumpre fins estritamente processuais, ou
seja, deve ser utilizada apenas para garantir que o imputado não destrua provas ou se evada
da aplicação da sentença, devendo ser substituída sempre que outras medidas menos severas
mostrem-se suficientes para assegurar interesses processuais. (2016, p. 337).

Portanto, a conclusão alcançada pelo voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, criou mais
problemas do que soluções. Sempre se soube que prisão preventiva depende de decisão fundamentada,
isso não é novidade no sistema, logo, pode haver prisão antes do trânsito em julgado. A questão
é qual é essa decisão que permite a execução provisória da pena. Como esclarecido na primeira
parte desse artigo, todos os modelos de prisões anteriores ao trânsito em julgado da sentença penal
condenatória, possuem previsão legal e requisitos específicos. Toda a construção legislativa é realizada
para legitimar a violação de uma das garantias mais caras à democracia: a presunção de inocência.
Com efeito, o papel da Corte Constitucional não é atender a demandas políticas e eivadas de
paixão, mas, segundo Laurentiis:
605
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Certamente, a função exercida por Cortes como o Supremo Tribunal Federal no sistema processual não
é salvaguardar os interesses das partes em litigio. Na verdade, sua existência deve-se, antes de tudo,
a necessidades relacionadas à busca de ordem, previsibilidade e segurança ao sistema político como
um todo. Presumidamente, sua função é, portanto, eminentemente política. Não obstante, a defesa
da ordem constitucional pressupõe, antes de tudo a defesa dos direitos ligados à pessoa. Pressupõe,
assim, a salvaguarda dos direitos fundamentais do homem. Se isso é certo, é preciso também admitir
que, enquanto pender controvérsia acerca da legalidade ou legitimidade da condenação julgada em
segundo grau de jurisdição, a competência do órgão de sobreposição ainda não está esgotada. O
processo não está findo e, sendo assim, toda a prisão que ocorrer nesse interregno caracterizar-
se-á, quando não presentes as condições necessárias para a imposição da prisão cautelar, pura e tão
somente como antecipação da pena privativa de liberdade. (2012, p. 177/178).

Contudo, a despeito do Brasil viver um regime democrático, discursos punitivistas e que clamam
pela intervenção estatal, legitimam decisões vazias de sentido, mas com alta carga de poder e autoridade,
gerando um fenômeno de banalização da prisão (CASTILHOS; SILVEIRA, 2016, p. 335). Porém, a atividade
estatal, em regimes de direito, deve estar fundamentada em todas as consequências que podem ser gerada
nos potenciais afetados pela decisão, fruto do próprio processo democrático (GALVÃO, 2017, p. 157).
Diante disso, de nada serviu o Supremo Tribunal Federal dizer que a execução provisória da pena não
ofenderia a presunção de não culpabilidade. Todos os juristas sabem que existem prisões antes do trânsito em
julgado da sentença penal condenatória, é essa vem estabelecida por requisitos legalmente estabelecidos, que
sequer foram enfrentados pelo Corte Constitucional. A morosidade do processo, o exercício regular do direito
de defesa não podem ser transmutados como fonte violadora do Princípio da Presunção de Inocência. Isso por-
que, segundo Divan (2007, p. 130), inexiste serventia para decisões que não sejam tecnicamente coerentes, e
que priorizem concepções internas do Magistrado, que contaminam o próprio princípio de justiça e imparcia-
lidade, e lancem de mão de concepções não previstas legalmente. Ademais, deve ser superado o conceito de
que o processo penal e/ou o direito penal podem suprir demandas sociais de segurança pública e discursivos
punitivistas, incompatíveis com a ideia de Estado Democrático de Direito, e Direito Penal de garantias.
Isso posto, toda a prisão antes do trânsito em julgado deve estar galgado em algum requisito
legalmente previsto de prisão, eminentemente, cautelar; inclusive, a prisão aplicada na interposição
de algum recurso extraordinário:

[...] A antecipação da pena ao trânsito em julgado do processo não pode ser admitida na atual ordem
jurídica. Por isso, caso o réu tenha aguardado ao julgamento em liberdade, só situações extremas,
relevantes e novas poderão fundamentar o decreto de prisão preventiva. Argumentos fundados na defesa
da ordem pública e econômica estarão, por exemplo, a priori afastados. Afinal, se esses fundamentos
não puderam fundamentar a prisão processual logo após a prática do delito, por mais razão não se
prestarão a essa finalidade após o julgamento de segunda instância e enquanto pender a apreciação do
recurso extremo. Sendo assim, na prática, a não ser que o acusado tumultue o andamento processual,
dificilmente haverá fundamentos cautelares para a prisão processual. (LAURENTIIS, 2012, p. 189).

Logo, a “decisão” que é a única exigência para execução provisória da pena, não foi suficientemente
esclarecida pelo Supremo Tribunal Federal. Na realidade o julgamento do HC 126.292 não trouxe nada
de novo para o ordenamento jurídico, e sob nenhuma hipótese autorizou o cumprimento automático
de pena, em razão do exaurimento das vias recursais ordinárias. A decisão que determinar a execução
provisória da sentença penal deve ter como fundamento os requisitos cautelares previstos em lei, de modo
contrário, a decisão será absolutamente ilegal, e não corresponderá à resposta adequada à Constituição.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A autorização para execução provisória da pena, após o exaurimento das vias recursais ordinárias
(segunda instância), promovida pelo Supremo Tribunal Federal, não trouxe nada de novo para o
ordenamento jurídico brasileiro. O julgado, na forma como foi redigido, afirma que a condicionante
para a prisão preventiva é decisão proferida por autoridade competente.
A questão que fica é como e qual é essa decisão? Isso porque, a decisão judicial que determinar
o cumprimento provisório de pena, deve estar atenta a Lei (em especial, processual penal), e à
Constituição de República. Acontece que, inexiste previsão legal de execução provisória de pena,
logo, não tem como haver prisão automática após exaurimento do segundo grau de jurisdição.

606
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A decisão que determinar o recolhimento à prisão, após o julgamento de segunda instância


deve (como qualquer outra decisão) judicial estar pautada em Lei e na Constituição da República, e
argumentos racionais, coerentes, e isentos, ou pelos menos com a pretensão de isenção, de impressões
pessoais e carga subjetiva do julgado. Além disso, é papel do Judiciário assegurar o pleno exercício
dos direitos e garantias individuais, em especial, a liberdade, que está logo abaixo do direito à vida.
Assim, quando o Supremo Tribunal Federal afirma que a prisão antes do trânsito em julgado de sen-
tença penal condenatória está condicionada, somente, à decisão de autoridade competente, a Corte Superior
determina que a execução provisória da pena somente pode ocorrer quando pautada em lei, e corresponder à
“resposta adequada à Constituição”. Sem previsão legal, não existe execução provisória de pena, a prisão em
segunda instância somente acontecerá quando presentes os requisitos legais, de prisões de índole cautelares.

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608
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

TIPOLOGIA DA VIOLÊNCIA E PROTEÇÃO SOCIAL:


OS PARÂMETROS ÉTICOS DO ESTADO
ENTRE A SUBJUGAÇÃO E O ABSENTEÍSMO

Humberto Acacio Trez Seadi285

RESUMO: O artigo busca analisar proteção social e a violência cometida pelo Estado, tanto sob
o aspecto do Estado hiperburocratizado, retratado por Edgar Morin por meio da terminologia
“megamáquina”, quanto por parte do Estado de Exceção descrito por Giorgio Agamben. Em outro
extremo, questiona-se sobre a violência no Estado absenteísta, que nada representa para a cidadania.
Ao final, são analisados os parâmetros de conduta ética (não-violentos) esperados do Estado para a
promoção devida da proteção social, o que encontra respaldo na análise de Jürgen Habermas acerca
da ética discursiva e também sobre a recursividade democrática, tal como analisada por Morin.

Palavras-chave: Violência estatal. Proteção Social. Ética.

INTRODUÇÃO

Toma-se, como ponto de partida, no presente texto, a noção de violência articulada por Benjamin:
“(...) uma causa (...) só se transforma em violência (...) quando interfere em relações éticas”. (2011, p.121).
A partir dessa premissa, busca-se estabelecer, no presente texto, uma análise sobre a violência
estatal relacionada a mecanismos inicialmente estabelecidos para a proteção social dos indivíduos. Dito
de outra forma: a ideia de proteção social pelo Estado pode redundar em uma violência? E, de outra
banda, a falta de proteção pelo Estado, também pode ser assim caracterizada? Existe um meio-termo
ético e, portanto, não violento, no qual deve transitar o Estado, a fim de proteger os seus cidadãos? E,
em caso positivo, existe uma tipologia específica deste Estado e também do Direito nele inserido?

1 POR UMA ÉTICA DIALOGADA DA PROTEÇÃO SOCIAL

No desenvolvimento do presente texto busca-se argumentar no sentido de que o Estado pode


incorrer em violência ao agir, mas também ao omitir-se de agir, quando se considera a questão da
proteção social. O que se busca demonstrar é que tanto uma presença muito opressiva dos mecanismos
estatais quanto, também, a abstenção do corpo estatal implicam em escolhas violentas, porquanto
dissociadas de padrões éticos, à medida que não respeitam direitos mínimos de participação na
busca pela cidadania. Tenta-se desenvolver, então, a ideia de que um Estado aberto a processos
comunicacionais na deliberação sobre quais os parâmetros de proteção social devem ser garantidos
mostra-se menos suscetível ao uso da violência e estimula a participação democrática, de forma ética.

1.1 A violência estatal entre o excesso e a ausência de proteção social

A ideia de violência estatal parece ser mais usualmente relacionada ao excesso de intervenção
e ao autoritarismo. Acentua-se esta associação quando se pensa em certas experiências realmente
traumáticas registradas ao longo da história, em especial o que ocorreu nos regimes totalitários da
Alemanha e da União Soviética, marcadamente na primeira metade do século passado.

285 Mestre em Direito. Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UNIJUI/RS. Professor no
Curso de Direito da Faculdade CNEC – Santo Ângelo. Procurador Federal/AGU. Endereço eletrônico: humberto.seadi@gmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A obra de Hannah Arendt, por exemplo, traz uma exaustiva análise dos regimes totalitários
nazista e stalinista, desde sua formação até o auge dos campos de concentração e extermínio, que
constituem o ápice daqueles regimes, segundo a autora. Pode-se perceber, da leitura de Arendt,
que o modelo totalitário se caracteriza especialmente pelo uso da administração estatal em apoio
da implantação de seu projeto de poder. Conforme refere Arendt, “O totalitarismo no poder usa a
administração do Estado para o seu objetivo a longo prazo de conquista mundial e para dirigir as
subsidiárias do movimento” (ARENDT, 2013, p. 411).
O Estado totalitário, isso Arendt deixa claro, não é um Estado normal, de caráter burocrático ou
tirânico ou ditatorial, trata-se de um movimento que se vale muito mais do Estado como uma fachada
para a implantação do totalitarismo. Por isso, Arendt concebe este Estado como uma autoridade
aparente, em oposição à autoridade real do Partido, que exerce o poder totalitário.
Esta é uma primeira e interessante noção que se pode estabelecer, portanto. O Estado totalitário
é uma instituição solapada pelo poder totalitário. Não se trata, aqui, de um inchaço da máquina
estatal, mas de um Estado ressequido por um poder paralelo e superior. Da mesma forma, talvez a
noção de “proteção social” às luzes de movimentos tipicamente totalitários não seja de fácil definição.
Cabe perguntar: o poder totalitário oferece algum tipo de proteção social? Ao que tudo indica, não,
pois o culto ao líder confere apenas a este uma absoluta proteção. Não há que se cogitar, portanto,
de violência do Estado totalitário. Mas de violência no Estado totalitário (admitindo-se, certamente,
que o termo Estado totalitário pode configurar um paradoxo, sob a perspectiva Arendtiana aqui
referida). Estas são observações feitas a fim de manter uma premissa metodológica no presente
texto: a de que regimes totalitários não podem ser examinados sob a perspectiva de uma postura
ética e, portanto, não violenta, em relação aos indivíduos. O totalitarismo pressupõe a violência, que
inclusive ultrapassa os limites do poder estatal.
Noção um pouco diversa é aquela desenvolvida por Giorgio Agamben, o qual alude ao denominado
Estado de Exceção, que se constitui em uma segunda estrutura, paralela àquela da constituição e do
Estado, seja no fascismo, seja no nazismo:

O que caracteriza tanto o regime fascista quanto o nazista é, como se sabe, o fato de terem
deixado subsistir as constituições vigentes (...) fazendo acompanhar (...) a constituição legal de
uma segunda estrutura, amiúde não formalizada juridicamente, que podia existir ao lado de outra
graças ao estado de exceção (...) a estrita oposição democracia/ditadura é enganosa para uma
análise dos paradigmas governamentais hoje dominantes (AGAMBEN, 2004, p. 75/76)

Agamben, contudo, cogita sobre a existência de Estado(s) de Exceção que não seja(m) aquele(s)
de cunho nazifascista. Em verdade, o autor italiano deixa claro que tal paradigma subsiste inclusive
no bojo de Estados democráticos.
Quando se pensa na problemática do excesso de aparato burocrático, que pode levar ao Estado de
Exceção, talvez seja possível estabelecer aqui um paralelo com a obra de Edgar Morin, pensador conhecido
por seu foco na problemática da complexidade, conceito que se relaciona à tentativa de estabelecimento
de um novo paradigma sobre o conhecimento humano, à busca por um conhecimento enciclopédico, que
originariamente e idealmente, conforme afirma Morin, era compreendido na própria acepção do termo
como en-ciclo-pediar, ou seja “aprender a articular os pontos de vista separados do saber em um ciclo ativo”.
A análise de Morin acerca da interação entre indivíduo, sociedade e Estado também pressupõe
a complexidade. Sustenta o autor que as sociedades formam-se a partir de indivíduos complexos e
também retroagem sobre estes indivíduos, fornecendo-lhes sua cultura. A relação entre sociedade e
indivíduo, sustenta Morin, é “hologramática, recursiva e dialógica” (MORIN, 2007, p. 167). A imagem
do holograma, em verdade, é uma metáfora de que se vale o autor, para significar que as partes
(indivíduos) estão no todo (sociedade) e que também o todo está nas partes. Também a recursividade
remete à relação entre parte e todo, apenas aqui no sentido de que “os indivíduos produzem a
sociedade, que produz os indivíduos; a emergência social depende da organização mental dos
indivíduos, mas a emergência mental depende da organização social” (2007, p. 167). Por fim, Morin
alude ainda à característica da dialogicidade, esclarecendo, quanto ao ponto, que as relações entre
indivíduo e sociedade são ao mesmo tempo complementares e antagônicas. (2007, p. 167).
Entre sociedade e Estado, de seu turno, não se estabelece, segundo se extrai da leitura de
Morin, uma necessária inter-relação. Isto porque não há Estado nas denominadas sociedades arcaicas,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

primitivamente organizadas, com funções de seus membros determinadas de acordo com o sexo
e a idade (divisão em bioclasses) e com indivíduos policompetentes para a execução de diversas
funções. O Estado, por sua vez, surge no âmbito das denominadas sociedades históricas (de tipo
imperial ou cidade-Estado) que acabarão metamorfoseando-se nas nações modernas. Nesta evolução
da sociedade histórica às nações modernas, o Estado faz-se presente, e seu paradoxo é ser ao mesmo
tempo bárbaro e civilizador, emancipador e escravizador. Uma noção chave apresentada pelo autor é
a que analisa o Estado como aparelho, que segundo Morin constitui-se em:

(...) dispositivo de comando e de controle que capitaliza a informação, estabelece programas


e, através disso, gere a energia material e humana; um aparelho introduz a sua determinação
num meio amorfo ou heterogêneo (assim, o aparelho de Estado pode controlar populações muito
diversas); no sentido cibernético do termo, submete um sistema sem enfrentar a sua reação, mas
recebendo deste informação.
Dos impérios antigos até as nações modernas, o Estado constitui o aparelho central de controle e
de comando da sociedade. (MORIN, 2007, p. 78)

Este Estado dominador, segundo criticamente pondera Morin, transforma-se em uma


megamáquina, que nos Estados modernos é mais desenvolvida e também mais complexa. A
terminologia megamáquina é utilizada por Morin, a partir da obra do sociólogo norte-americano Lewis
Mumford, para designar a organização estatal centralizada, comandada pelo Estado, que subjuga os
indivíduos. Isto se dá inicialmente, na antiguidade, pela força do exército, da religião e das castas
sociais; na sociedade atual, democratizada, esta megamáquina tem um perfil burocrático.
Conforme reflete Morin, a hiperburocratização do Estado é o reflexo mais evidente do aumento
de complexidade da megamáquina dos dias atuais:

As sociedades atuais são, às vezes, democratizadas, ou seja, o Estado modera-se, as dominações são
atenuadas, as sujeições, temperadas; o novo Estado-Providência criou sua própria megamáquina,
comportando numerosos aparatos administrativos para todos os aspectos da vida social. Mas essa
megamáquina administrativa se hiperburocratizou, tornando-se hipertécnica, levando à lógica
mecânica, especializada, cronométrica da máquina artificial para todas as atividades humanas.
Os Estados-nação contemporâneos comportam duas megamáquinas, uma econômica, capitalista,
semiautônoma e outra administrativa, burocrática, de Estado. (MORIN, 2007, p.185)

Eis aí um paradoxo bem captado pelo autor: a máquina do Estado, engendrada para atender
certos direitos e realizar cidadania, burocratiza-se a ponto de restringi-los. Ou seja, a megamáquina
administrativa estatal, sob esta linha de análise, mais do que garante da democracia consubstancia-se
em uma ameaça ao sistema democrático. Nessa linha, Morin reflete que “A democracia contemporânea
está em crise justamente onde bem se instituiu: o Estado-nação contemporâneo desenvolve uma
gigantesca burocracia que restringe o direito do cidadão”.
Uma parte relevante da explicação sobre este fenômeno está no que Morin chama de Estado
paranoico, ou seja, um Estado forjado pela guerra e pela dominação, e tendendo sempre a mais poder,
ávido pelo aumento do seu território e de suas riquezas, o que parece justificar, ao menos em parte,
os óbices que cria no para oferecer maior proteção aos seus cidadãos. Conforme observa Morin,

O Estado ainda é um dinossauro ou um mamute. Não se pode excluir a possibilidade de um Estado


neototalitário que, beneficiado pelos novos controles informáticos e pelas manipulações genéticas
e cerebrais, subjugaria, manipularia, oprimiria, infantilizaria os indivíduos. (2007, p.197)

O contraponto da restrição de direitos sociais pela burocracia do Estado parece estar no excesso
de assistencialismo, situação que também não escapa à crítica de Morin, o qual observa: “O Estado
assistencial, cuja proteção tende a cobrir todos os campos da existência, protege e infantiliza, ao
mesmo tempo, os indivíduos” (MORIN, 2007, p. 198). Ou seja, se é indesejável a engrenagem
opressora da megamáquina estatal quando se trata dos direitos dos indivíduos, afigura-se também
negativa a dependência excessiva destes mesmos indivíduos em relação ao Estado
Não há, contudo, em uma primeira análise, um paralelo preciso na comparação entre a noção de
megamáquina em Morin e aquela desenvolvida sobre o Estado de Exceção em Agamben. Trata-se de duas
posturas críticas sobre os perigos do excesso de Estado, ou talvez, do excesso de poder nas mãos do Estado.

611
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A violência estatal que neste ponto rompe as premissas éticas das relações com os indivíduos, é
aquela do Estado hipertrofiado, transformado em cumpridor burocrático de tarefas de auxílio, tarefas
esta que exerce com fastio, ou deixa de exercer por excessivo apego à burocracia que ele mesmo
estabeleceu. Ou mesmo do Estado que opera ao nível da Exceção, suspendendo o ordenamento
jurídico, abandonando o vivente ao direito (AGAMBEN, 2004).
O outro extremo da violência estatal é aquele do Estado absenteísta, que não se compromete com
a proteção social dos seus cidadãos. Ou seja, trata-se de um quadro em que o Estado abstencionista
de cunho liberal, se não institui per se, a violência, ao menos permite que esta ocorra, à medida que
não se coloca na posição de garantidor do cidadão necessitado, em especial diante de crises de larga
escala sobre uma estrutura capitalista hoje quase monopolista ao redor do mundo.
Resgate-se, aqui, a ideia de tipologia da violência proposta por Martin e Pampols (2004), para
os quais, além da violência política, ou seja, aquela que inclui formas de agressão física e terror, de
responsabilidade das autoridades oficiais, há também que se reconhecer outras formas, como, por
exemplo, aquela de ordem estrutural, relacionada à organização econômico-política da sociedade;
a violência simbólica, representada por legitimações de desigualdade e hierarquia; e a violência
cotidiana, que pode ser encontrada em um nível “microinteracional”, podendo se estabelecer entre
indivíduos, nas relações domésticas e de delinquência.
Ora, deixar o cidadão à mercê das normas do mercado constitui-se uma violência ao menos
porque isto significa submissão a instrumentos violentos, comissivos ou omissivos, conscientes ou
inconscientes, deste mesmo mercado. Não é difícil perceber que se não há, por razões evidentes,
uma violência política inerente ao capitalismo, todos os demais tipos acima mencionados de violência
(estrutural, simbólica e cotidiana) se apresentam sob esta lógica e os exemplos são facilmente
perceptíveis em um rápido exame da realidade.
É de notório conhecimento que há uma enorme quantidade de cidadãos desamparados pela
impossibilidade de acesso a bens de consumo de primeira ordem (comida, medicamentos...) pois
forçosamente afastados de seu trabalho formal ou informal, nada mais recebem em contrapartida a
fim de proverem a si próprios ou aos seus familiares.
E a instrumentalização violenta do mercado aqui se apresenta bastante clara, à medida que se
estabelece uma lógica de “tudo ou nada” no que tange ao acesso aos bens de consumo: sob tal lógica,
ou você possui recursos materiais para adquirir determinados bens, ou não.
Ou seja, trata-se de um quadro em que o Estado abstencionista de cunho liberal (no aspecto
econômico), se não institui per se, a violência, ao menos permite que esta ocorra, à medida que não
se coloca na posição de garantidor do cidadão necessitado, em especial diante de crises de larga
escala sobre a estrutura capitalista hoje quase monopolista ao redor do mundo.
Com efeito, não há muitas outras alternativas nesse quadro, que não seja aquela de uma forte
atuação estatal supletiva, fazendo valer os mecanismos de um Estado de Proteção Social. E a história
traz exemplos da relevância de um estado protetor, portanto, não abstencionista, inclusive enquanto
uma espécie de fiador do próprio sistema capitalista, à medida que facilitador da retomada do
consumo, como se verifica no new deal promovido por Roosevelt após a crise mundial enfrentada
com o crack da Bolsa de Nova Iorque em 1930.
Um Estado radicalmente abstencionista gera também, potencialmente, o risco de uma violência
relacionada à conjuntura da crise, à medida que o tecido social, caso excessivamente tensionado, sirva como
um estopim para atos de insurreição. É o que parece indicar Hannah Arendt, em outra de suas obras, quando
a autora refere que “Recurrir a la violencia cuando uno se enfrenta con hechos o condiciones vergonzosos,
resulta enormemente tentador por la inmediación y celeridad inherentes a aquélla”. (ARENDT, 2005, p. 85).
E aqui não se trata apenas da violência física, mas também de outras tipologias da violência,
como a que se dá ao nível da legitimação de desigualdades sociais ou mesmo pelas dificuldades
interacionais e comunicacionais que se apresentam no cotidiano. É o que se lê na seguinte advertência
de Arendt: “Esperar que gente que no tiene la más ligera noción de lo que es la res publica, la cosa
pública, se comporte no violentamente y argumente racionalmente, en cuestiones de interés, no es ni
realista ni razonable”. (ARENDT, 2005, p. 107).
Portanto, a redefinição da ideia de proteção social para o século XXI e também para o futuro mais distan-
te, como aquele que que se avizinha com o pós-humanismo, não prescinde da atuação do Estado na promoção

612
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

de bem-estar social como forma de redução da violência inerente a um sistema capitalista excludente.
De outra banda, o Estado promotor de Bem-Estar Social coloca-se também como um garantidor
do debate público, reduzindo tensões, permitindo um diálogo que, dificultado ou inviabilizado,
redundaria em uma violência social utilizada como ultima ratio.
Advém daí, também, a importância de evoluir permanentemente no estabelecimento de uma tipologia
da violência e na crítica às relações sociais estabelecidas com base nesse tipo de premissa, bem como de
um debate sobre os contornos éticos (e não violentos, portanto) que devem permear a convivência social.

1.2 Proteção social e os pressupostos da ética comunicativa (não violenta) em Edgar Morin
e Jürgen Habermas

O delicado equilíbrio necessário à produção de cidadãos socialmente engajados, cientes de suas


obrigações e também zelosos por seus direitos, inclusive para que se faça o contraponto necessário
ao perigo de crescimento desenfreado do Estado, até às raias do indesejado neototalitarismo, também
pode ser projetado a partir da análise da obra de Morin. O autor, com efeito, alude ao que denomina
“circuito democrático”, a partir do qual remete à característica da recursividade nas relações entre
sociedade e indivíduo. Observa que:

A democracia serve-se de dois circuitos recursivos: 1) os governos dependem dos cidadãos que
dependem dos governos; 2) a democracia produz cidadãos que produzem a democracia. Se os
cidadãos tornam-se subprodutivos, a democracia também se torna subprodutiva; se a democracia
fica subprodutiva, os cidadãos passam a ser subprodutivos. (MORIN, 2011, p. 150)

Ou seja, para Morin, há uma estreita ligação entre a estruturação de uma democracia forte e a
afirmação da cidadania, em um processo recursivo, sem que um elemento seja apenas causa e o outro
tão somente efeito.
Aliás, não se pode deixar de vislumbrar algum ponto de contato entre as análises feitas por
Morin, quando alude ao denominado circuito democrático recursivo como contraponto à megamáquina
burocrática estatal e aquela realizada por Habermas, ao referir-se às possibilidades da ação comunicativa
diante da razão instrumental do Estado. Destaque-se um trecho da obra de Habermas, que também
parece referir-se, ainda que indiretamente, à recursividade, no seguinte trecho de um de seus livros:

Os direitos de participação política remetem à institucionalização jurídica de uma formação pública da


opinião e da vontade, a qual culmina em resoluções sobre leis e políticas. Ela deve realizar-se em duas
formas de comunicação, nas quais é importante o princípio do discurso, em dois aspectos (…) o sentido
cognitivo de filtrar contribuições e temas, argumentos e informações (…) o procedimento democrático
deve fundamentar a legitimidade do direito (…) outrossim, o sentido prático de produzir relações de
entendimento, as quais são “isentas de violência”, no sentido de H. Arendt, desencadeando a força
produtiva da liberdade comunicativa. (…) O direito não regula contextos interacionais em geral, como
é o caso da moral; mas serve como medium para a auto-organização de comunidades jurídicas que se
afirmam, num ambiente social, sob determinadas condições históricas. (HABERMAS, 2003, p. 190-191)

Ora, Morin diz textualmente que “a democracia produz cidadãos que produzem a democracia”
e Habermas segue esta mesma linha de raciocínio quando diz que os direitos de participação política
servem à institucionalização da opinião pública, a qual de seu turno delibera sobre leis e políticas, o
que pode ser compreendido como a recursividade a que nos remete Morin.
Note-se que Habermas alude diretamente, no trecho acima, à menção que Arendt faz a relações de
entendimento em um sentido oposto à violência. De onde se pode também inferir, aceitando a premissa
de Benjamin mencionada no início do texto, que relações de entendimento são relações éticas.
Mais adiante, em sua obra, Habermas vale-se novamente da recursividade, desta feita quando destaca
o papel do direito como medium na transformação do poder comunicativo em administrativo e vice-versa:

(…) o direito não é apenas constitutivo para o código do poder que dirige o processo de
administração: Ele forma simultaneamente o medium para a transformação do poder comunicativo
em administrativo. Por isso, é possível desenvolver a idéia do Estado de direito com o auxílio de
princípios segundo os quais o direito legítimo é produzido a partir do poder comunicativo e este

613
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

último é novamente transformado em poder administrativo pelo caminho do direito legitimamente


normatizado. (HABERMAS, 2003, p. 190-191)

Assim, ainda que a obra de Morin não seja diretamente ligada à análise do direito, sua proposta de
análise vinculada à complexidade permite uma abordagem crítica do papel do direito nos dias atuais, em
especial quando se tem em vista o modelo de Estado burocratizado e os riscos daí decorrentes. Nessa
mesma linha, parece possível estabelecer um paralelo entre o pensamento de Morin e outros autores mais
ligados à abordagem sociológica do direito, dentre os quais Habermas, consoante acima esboçado.
Como, então, pensar o Estado e também o direito a partir dessas premissas aqui direcionadas à
ideia de proteção social?
O direito, na linha do pensamento de Habermas, constitui-se em um meio ambíguo de integração
social, que tanto serve à viabilização de processos de entendimento por meio do agir comunicativo, mas
também como força legitimadora dos meios sistêmicos característicos da modernidade (poder e dinheiro),
exerce relevante papel como garantidor da solidariedade social, desde sejam exercidos reflexivamente e não
concedidos de forma paternalística. Nesta linha, o autor propõe uma reconstrução do sistema de direitos, os
quais devem ser compreendidos, não apenas como liberdades de ação subjetivas, mas de modo a confrontar
seus participantes com expectativas normativas relacionadas ao bem da comunidade. (HABERMAS, 2003).
Assim, Habermas pretende estabelecer um liame entre soberania do povo e direitos humanos,
a fim de que os integrantes de uma dada comunidade jurídica possam examinar o assentimento,
ao menos potencial, de todos os que são atingidos pela norma (princípio do discurso). O princípio
do discurso é neutro em relação à moral e ao direito e, quando institucionalizado juridicamente,
configura-se em princípio da democracia. (HABERMAS, 2003).
O autor aborda, então, os princípios do Estado de Direito, o que identifica como a perpetuação de
um momento anterior, justamente o do reconhecimento recíproco de direitos. Habermas valoriza dois
aspectos: o direito à proteção jurídica individual, por intermédio de uma justiça independente e imparcial
nos julgamentos e o direito à positivação política autônoma dos direitos, pela participação em processos
legislativos democráticos, o que ocorre a partir da mediação do direito, responsável pela ligação entre
o sistema administrativo e o poder comunicativo. Quanto à soberania popular, esta é concebida como
charneira entre o sistema de direitos e a construção do Estado de direito. (HABERMAS, 2003).
Este princípio da soberania popular contempla, entre outros, a garantia legal a uma justiça
independente e, de forma mais específica, a garantia de uma proteção jurídica individual ampla, com
um sistema de justiça separado da legislação e impedido de autoprogramação. (HABERMAS, 2003).
Outro aspecto relevante da soberania popular está na legalidade da administração, que deve
agir de forma a possibilitar a instalação, aplicação e organização do direito. Caso isto não ocorra,
viabiliza-se tanto o exercício do controle parlamentar quanto do judicial. Certo é, por outro lado, que
a administração não pode ficar limitada à implantação técnica de normas gerais, considerando-se a
atual tendência de uma legislação de conteúdo finalístico. (HABERMAS, 2003).
A teoria de Habermas, partindo dessas premissas, julga imprescindível a participação dos cidadãos
na atividade estatal, em especial no âmbito da chamada esfera pública e parece plenamente compatível
quando inserida no debate sobre níveis desejados e necessários de proteção social dentro da comunidade.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado atua de forma a reproduzir relações violentas tanto naquelas situações em que se
instrumentaliza burocraticamente em desfavor dos cidadãos quanto nos casos em que opta pelo
absenteísmo. Em ambos os casos pode-se vislumbrar um déficit de proteção social e uma lacuna sobre
pressupostos éticos de discurso, nos quais deveriam estar inseridos os Estados democráticos. Ao se pensar,
portanto, no oferecimento da proteção social pelo Estado, deve-se, antes de mais nada, compreender
que esta proteção deve ser viabilizada por meio da participação discursiva dos cidadãos na definição da
proteção social pretendida e também na análise da necessidade desta proteção. Esta noção de participação
discursiva é um pressuposto ético essencial, veiculado por autores como Edgar Morin e Jürgen Habermas,
preocupados em estabelecer procedimentos de legitimação democrática para a afirmação da cidadania.
A redefinição do campo de atuação do campo da Proteção Social pelo Estado é um dos grandes

614
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

desafios que se colocam pelo avanço da (pós-) modernidade, ampliação dos riscos sociais e proximidade
do pós-humanismo. De outra banda, fatos recentes como a pandemia de coronavírus colocam outro
debate sobre a mesa: que tipo de intervenção deve ser realizada pelo Estado no sentido de garantir
níveis mínimos de proteção social em crises pontuais como a que se apresenta?
As premissas da não-violência e da participação ética e discursiva devem estar, portanto,
presentes nos corpos do Estado e mais especificamente do Direito, à medida que se caminha para um
mundo cada vez mais complexo e, ao menos em parte, desigual.

REFERÊNCIAS

ARENDT. Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia. de Bolso, 2013.

________. Sobre La Violencia. Madrid: Alianza Editorial, 2005.

BENJAMIN, W. Para uma crítica da violência. In: BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem.
Tradução Ernani Chaves. Organização Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades,
2011. p. 121-156.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro. 2003.

MARTÍN FERRANDIZ, Francisco; FEIXA PAMPOLS, Carles. Una mirada antropológica sobre las
violencias. Alteridades, México, D.F.: Universidad Autónoma Metropolitana, v. 14, enero/julio 2004,
p. 159-174.

MORIN, Edgar. O Método 5: A humanidade da humanidade. 4 ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.

MORIN, Edgar. O Método 6: Ética. 4 ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

TRANSTORNO DO DÉFICIT DA ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE:


UMA ANÁLISE DA JUDICIALIZAÇÃO ENVOLVENDO
A POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Silvio Gama Farias286


Reginaldo de Souza Vieira287

RESUMO: As pessoas que desenvolvem o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade vivenciam


dificuldades importantes a ponto de afastá-las do convívio escolar e de ter um acesso à educação
na sua integralidade. Assim, importa entender melhor acerca dessa disfunção, bem como ter um
olhar crítico no sentido de analisar o respeito ao ser humano num sentido mais amplo e não apenas
formalista, considerando que o desenvolvimento da pessoa deve ser pleno. O direito à educação
é considerado direito fundamental, verificando-se diversas situações em que na omissão do Poder
Público, o Judiciário acaba por determinar sua efetivação. O método utilizado no estudo foi o dedutivo,
com o uso de técnicas de pesquisa documental e bibliográfica.

Palavras-chave: Educação Inclusiva. Políticas Públicas. Judicialização das políticas públicas. Direitos
humanos. Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade.

INTRODUÇÃO

A condição humana é muito complexa e as limitações que cada um experimenta lhe é muito pecu-
liar, sendo que políticas públicas efetivas, podem contribuir para minimizar os efeitos dessas limitações,
as quais em determinados casos acabam por gerar um processo de exclusão. Importa considerar as difi-
culdades vivenciadas pelas pessoas com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, analisando
as situações que tem gerado demanda judicial envolvendo as políticas públicas que tratam do assunto.
Esclareça-se que o tema envolve um olhar crítico no sentido de analisar o respeito ao ser humano num
sentido mais amplo e não apenas formal, levando-se em conta que o desenvolvimento da pessoa deve ser
pleno. O Supremo Tribunal Federal entendeu que o direito à educação é considerado direito indisponível e
diante da omissão do Poder Público o Poder Judiciário pode determinar a sua implementação.
Assim, a temática central do artigo envolve a análise das circunstâncias que tem dado azo
às demandas judiciais envolvendo políticas públicas para as pessoas com Transtorno do Déficit
de Atenção e Hiperatividade, levando-se em conta a efetividade dos direitos fundamentais numa
perspectiva de educação inclusiva.
Para fins de delimitação do tema será considerado o acesso a educação inclusiva no ensino funda-
mental público e, quanto ao aspecto espacial, limitar-se-á a região sul do Brasil numa análise qualitativa
e por amostragem das decisões judiciais, bem como algumas regulações no âmbito do Estado de Santa
Catarina. O método do estudo é o dedutivo, com o uso de técnica de pesquisa documental e bibliográfica.
Por isso apresenta-se o problema central objeto desse estudo no sentido de saber de que forma e
acerca das circunstâncias que tem motivado demandas judiciais envolvendo as políticas públicas para as
pessoas portadoras de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, considerando as garantias fun-
damentais previstas na Constituição da República Federativa do Brasil. Traz-se como hipótese a carência
de efetividade na aplicação das políticas públicas que tratam do assunto diante das reais necessidades
que se apresentam e propõe-se considerar a necessidade de uma ampliação dessas políticas públicas.

286 Mestrando em Direito (UNESC). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED/UNESC). Advogado inscrito
na OAB/SC 19.186. Especialista em Direito Público. Professor de Graduação em Direito Público. E-mail: sfarias.adv@hotmail.com
287 Doutor em Direito pelo PPGD/UFSC. Professor e coordenador adjunto do PPGD/UNESC. Professor doPPGDS/UNESC. Líder
do NUPED/UNESC e do LADSSC/UNESC. Email: prof.reginaldovieira@gmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

1 O TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE DIMENSIONADO NAS


DISFUNÇÕES QUE ENVOLVEM A SAÚDE MENTAL E OS TRANSTORNOS COMPORTAMENTAIS

O direito a educação inclusiva está alicerçado na Constituição da República Federativa do Brasil


de 1988, tendo, dessa forma, a devida proteção jurídica e seu art. 5º, §1º (BRASIL, 1988) dispondo
que as normas atinentes aos direitos fundamentais têm aplicação imediata, ao passo que o seu art. 6º
(BRASIL, 1988) também incluiu a educação no rol dos direitos sociais a serem considerados.
Entender o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade – também conhecido como TDAH -
é fundamental para se verificar as circunstâncias da judicialização no âmbito das Políticas Públicas de
educação envolvendo esse assunto. Por isso a importância de verificar essas circunstâncias que geram
demanda judicial, afim de contribuir-se para a efetividade de medidas de inclusão dessas pessoas.
Há embasamento científico para o diagnóstico desse Transtorno, que é encontrado em diversos
países, tanto que a Organização Mundial da Saúde – OMS, a qual possui o controle e cadastro das
doenças que existem, tanto as mais comuns, como as raras, já o reconheceu.
Quanto a questão de categorização, necessário compreender que se está diante de um diagnóstico
dimensional. Mattos (2015) traz a explicação de que todos nós podemos ter alguns sintomas ligado
à desatenção e inquietude, porém, determinadas pessoas desenvolvem esses sintomas com muito
mais intensidade, causando reais e importantes problemas em suas vidas. O autor em referência
é médico psiquiatra, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fundador e membro do
Comitê Científico da Associação Brasileira do Déficit de Atenção.
Assim, quando se fala em diagnóstico por categorias (MATTOS, 2015), é viável se fazer um
enquadramento no sentido de que se tenha ou não determinada doença, como, por exemplo,
cardiopatia ou nefropatia. Porém, existem situações em que o diagnóstico é feito considerando um
critério dimensional, porque se leva em conta os sintomas a partir de uma certa intensidade como é
o caso do TDAH, pois crianças, adolescentes e, até adultos, podem ter dificuldades significativas para
manter-se atentos por longo tempo ou sofrerem com exacerbada inquietude.
Em termos de enquadramento na Classificação Internacional de Doenças – CID 10 e do Manual
de Diagnóstico Estatístico de Doenças Mentais (DSM-5, 2014), o Transtorno do Déficit de Atenção
e Hiperatividade está inserido no código F90 em que se refere aos Transtornos Hipercinéticos.
Há cinco desdobramentos de subclassificações desse código a considerar: F90.0 - Distúrbios da
atividade e da atenção: Síndrome de déficit da atenção com hiperatividade, Transtorno de déficit da
atenção com hiperatividade, Transtorno de hiperatividade e déficit da atenção; F90.1 - Transtorno
hipercinético de conduta: Transtorno hipercinético associado a transtorno de conduta; F90.8 -
Outros transtornos hipercinéticos; F90.9 - Transtorno hipercinético não especificado: Reação
hipercinética da infância ou da adolescência sem outra especificação e Síndrome hipercinética sem
outra especificação; F98.8 - Outros transtornos comportamentais e emocionais especificados
com início habitualmente na infância ou adolescência: Déficit de atenção sem hiperatividade.
Com base em protocolos clínicos (SANTA CATARINA, 2016), é realizado uma anamnese e um
exame das funções psíquicas para o diagnóstico que é clínico. “Não há exames laboratoriais, de
imagens cerebrais ou testes psicológicos que possam definir se uma pessoa se enquadra ou não nos
critérios da CID-10 ou do DSM-5 para os transtornos hipercinéticos e de atenção”.
Existem critérios clínicos que são levados em consideração para o diagnóstico. Rohce (2004,
p. 16) explica que: “Os sistemas classificatórios definem um número mínimo de sintomas como
necessários para o diagnóstico (DSM-V: seis sintomas de desatenção e/ou hiperatividade; CID-10:
seis sintomas de desatenção, três de hiperatividade e um de impulsividade)”.
O DSM é uma sigla inglesa, Diagnostic and Statistical Manual, que significa Manual de Diagnóstico
e Estatística acerca da saúde mental, sendo que já foram feitas cinco revisões (DSM-5, 2014). Os
sintomas são os seguintes no que tange ao TDAH:

A. Desatenção:
1) Dificuldade de prestar atenção a detalhes ou errar por descuido em atividades escolares e de
trabalho;
2) Dificuldade para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas;
3) Parecer não escutar quando lhe dirigem a palavra;

617
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

4) Não seguir instruções;


5) Não terminar tarefas escolares, domésticas ou deveres profissionais;
6) Dificuldade em organizar tarefas e atividades;
7) Evitar, ou relutar, em envolver-se em tarefas que exijam esforço mental constante;
8) Perder coisas necessárias para tarefas ou atividades;
9) Distraído por estímulos alheios à tarefa e apresentar esquecimentos em atividades diárias.
B. Hiperatividade:
1) Agitar as mãos ou os pés ou se remexer na cadeira;
2) Abandonar sua cadeira em sala de aula ou outras situações nas quais se espera que
permaneça sentado;
3) Correr ou escalar em demasia, em situações nas quais isto é inapropriado;
4) Dificuldade em brincar ou envolver-se silenciosamente em atividades de lazer;
5) Estar frequentemente “a mil” ou muitas vezes agir como se estivesse “a todo o vapor”;
6) Falar em demasia.
C. Impulsividade:
1) Frequentemente dar respostas precipitadas antes das perguntas terem sido concluídas;
2) Com frequência ter dificuldade em esperar a sua vez;
3) Frequentemente interromper ou se meter em assuntos de outros.

O tema é bastante relevante, tanto que a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (KESTELMAN,
2020) está realizando uma pesquisa por meio de um questionário acerca do “Impacto da pandemia de CO-
VID-19 na Saúde Mental de Crianças e Adolescentes: Fatores de Risco e Proteção”. Referido levantamento
visa auxiliar numa melhor compreensão sobre o efeito de situações estressantes na saúde mental de
crianças e adolescentes e os fatores que podem auxiliá-los a enfrentar essas circunstâncias, tanto duran-
te, como após a pandemia. Assim, Kestelman (2020) essa pesquisa apresentada na referida associação,
busca entender a relação entre os sintomas do TDAH e a maneira como os pais estão fazendo a prevenção
contra o Coronavírus. Tal preocupação demonstra a importância de se dar maior visibilidade e aplicar-se
políticas públicas para não somente incluir, mas efetivamente incluir e manter essas pessoas de forma
adequada na escola afim de evitar sua exclusão escolar e social, pois uma vez se sentindo acolhidas por
meio de medidas inclusivas, o aspecto emocional e afetivo também terá significativa melhora.

2 POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA E O TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO


E HIPERATIVIDADE

Investir em políticas públicas de inclusão, sobretudo na educação, é fundamental para as pessoas


que desenvolvem o TDAH, pois diversos estudos demonstram que existem formas de minimizar as
consequências negativas dessa disfunção.
Por isso, a necessidade de políticas públicas efetivas para que se viabilize medidas de inclusão
para essas pessoas que se sentem invisíveis diante da falta de compreensão geral acerca desse assunto.
Ademais, é preciso verificar o que tem motivado a judicialização no âmbito do Transtorno do
Déficit de Atenção e Hiperatividade. Schmidt (2018) salienta que: “Em sociedades desiguais, comuns
na maior parte do planeta, no passado e no presente, o poder público raramente adota iniciativas que
beneficiam a todos por igual”. Sabe-se que existem variáveis a serem consideradas pelo administrador
público e a questão de recursos econômicos, notadamente, sempre é trazida a baila para justificar a não
contemplação de diversas necessidades sociais.
Todavia, não se pode perder de vista que as demandas giram em torno de necessidades que
se evidenciam dentro de uma condição ligada a dignidade da pessoa humana e isso precisa ser
minimamente contemplado em atendimento ao tão buscado por muitos, que é o mínimo existencial,
termo que ainda se apresenta como atual. Note-se que para as pessoas que desenvolvem o transtorno
aqui em estudo, a falta de uma efetividade mínima, do ponto de vista inclusivo, afeta diretamente o
seu acesso à educação, podendo lhes trazer sérias consequências no âmbito afetivo e educacional.
Para se ter uma ideia e conhecer um pouco mais sobre os casos de TDAH, no Estado de Santa Catarina,
por exemplo, tem-se os seguintes números em levantamento feito no ano de 2019 pela Secretaria de Estado
de Educação - Sistema de Gestão Educacional, no que tange à educação especial (SANTA CATARINA, 2019):

(...)
EDUCAÇÃ ESPECIAL EM NÚMEROS

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Quantitativo de alunos por deficiência na rede pública estadual:


deficiência intelectual – 8.192 alunos;
deficiência física – 1.107 alunos;
deficiência auditiva – 431 alunos;
surdez – 418 alunos;
cegueira – 92 alunos;
baixa visão - 664 alunos;
surdocego – 1 aluno;
transtorno global do desenvolvimento – 573 alunos;
Autismo – 2.112 alunos;
Síndrome de Rett – 10 alunos;
Síndrome Asperger - 280 alunos;
Transtorno Desintegrativo da Infância – 80 alunos;
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade/TDAH – 7.231 alunos.
(Fonte: SIGESC OUTUBRO/2019)

Um dado curioso é que o Transtorno do Espectro Autista que possui políticas públicas mais definidas e
abrangentes, tem, em quantidade de casos, um número quase quatro vezes menor do que o Transtorno do
Déficit de Atenção e Hiperatividade. Por isso, entende-se a pertinência do estudo em tela, sobretudo na área
jurídica, dada a necessidade de se dar mais visibilidade, também nessa área, para esse tipo de disfunção.
A Educação Especial se insere numa modalidade de ensino que envolve o atendimento às Pessoas
com Deficiência, Transtorno do Espectro Autista, Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade
e Altas Habilidades/Superdotação, no âmbito da escola, assunto esse regulado pela Resolução nº
100/2016 (SANTA CATARINA, 2016).
Todavia, se observa judicialização envolvendo esse assunto. Colhe-se trecho da ementa referente
ao Acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina na Apelação Cível n. 0900030-39.2017.8.24.0044:

APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. DIREITO À EDUCAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AFORADA PELO MI-
NISTÉRIO PÚBLICO. PLEITO COM FITO DE CONDENAR O ESTADO A DISPONIBILIZAR SEGUNDO PROFESSOR
PARA ALUNO COM DEFICIÊNCIA QUE FREQUENTA A REDE ESTADUAL DE ENSINO. ADOLESCENTE PORTADOR
DE TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (CID 10:F90.0) E DISTÚRBIO DO PROCESSA-
MENTO AUDITIVO CENTRAL (DPAC). SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO DO ESTADO. (...)JURIS-
PRUDÊNCIA PACÍFICA DESTA CORTE, QUE RECONHECE A DECLARAÇÃO MÉDICA, RELATÓRIOS DE ACOMPA-
NHAMENTO E DEMAIS ELEMENTOS DE PROVA COMO HÁBEIS A DEMONSTRAR A NECESSIDADE DO ALUNO.
O ordenamento jurídico, ao garantir a inserção dos portadores de deficiência no ensino regular, ao
mesmo tempo impõe ao Poder Público ferramentas para promover a isonomia material. Para mitigar as
barreiras que suprimem a participação plena, compensam-se as limitações subjetivas com programas
para permitir, tanto quanto possível, a convivência em igualdade de condições. A jurisprudência do TJSC
respalda a tese: comprovada a deficiência e indicado por profissionais habilitados que o déficit pode ser
equilibrado com o professor auxiliar, há o dever de a Administração franqueá-lo. Compreensão inclusive
das demais quatro Câmaras de Direito Público. (TJSC, rel. Des. Hélio do Valle Pereira. (Apelação Cível n.
0900030-39.2017.8.24.0044. Relator: Pedro Manoel Abreu. Primeira Câmara de Direito Público. Julgado
em: 16/06/2020)

Veja-se que o Transtorno do Déficit da Atenção e Hiperatividade não está contemplado na Resolução
nº 100 (SANTA CATARINA, 2016) dentre as situações que permitem a contratação de segundo professor
(auxiliar), sendo que, situações envolvendo deficiência intelectual, transtorno do espectro autista e
ou deficiência múltipla que apresentem comprometimento significativo nas interações sociais e na
funcionalidade acadêmica, estão previstas nos incisos IV e VI do § 2º do art. 1º, e no § 3º do art. 1º da
citada resolução (SANTA CATARINA, 2016), em que há possibilidade de contar-se com professor auxiliar.
Nesse contexto, pertinente trazer decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na
Apelação Cível n. 0900043-38.2017.8.24.0044 (SANTA CATARINA, 2018). O caso trata justamente da
não contemplação na referida Resolução 100/2016 para fornecer o segundo professor auxiliar a aluno
da rede estadual de educação. O Ministério Público de Santa Catarina ingressou com Ação Civil Pública
objetivando justamente que o poder público providencie, de forma efetiva, a devida inclusão do aluno
para integrá-lo ao processo educacional diante das dificuldades por ele apresentadas. Consta da ementa
da referida decisão judicial (SANTA CATARINA, 2018):

REEXAME NECESSÁRIO E RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EDUCAÇÃO


ESPECIAL. INTERESSADO QUE POSSUI TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

(TDAH). REQUERIMENTO DE PROFESSOR AUXILIAR. JULGAMENTO PROCEDENTE EM PRIMEIRO GRAU


DE JURISDIÇÃO. IRRESIGNAÇÃO. ARGUIÇÃO DE ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. PRELIMINAR
AFASTADA. AUSÊNCIA DE DEFICIÊNCIA. NÃO PREVISÃO NA RESOLUÇÃO N. 100/2016 DO
CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DE SANTA CATARINA. PREVISÃO LEI FEDERAL N. 9.394/96
ARTS. 58 E 59 E ART. 1º DO DECRETO FEDERAL N. 7.611/2011. (...) NECESSIDADE COMPROVADA
POR LAUDO PSICOLÓGICO. DEVER DO ESTADO. EXEGESE DOS ARTS. 6º, 205, 206, I E 208, III
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ASSISTÊNCIA ESPECIAL PREVISTA NA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA
EDUCAÇÃO NACIONAL. OBRIGAÇÃO DEVIDA. APELO E REEXAME NECESSÁRIO DESPROVIDOS.
(Apelação Cível n. 0900043-38.2017.8.24.0044. Relator: Desembargador Sérgio Roberto Baasch
Luz. Orgão Julgador: Segunda Câmara de Direito Público. Julgado em: 23/10/2018)

Nota-se que a decisão supra se encontra em sintonia com a efetivação dos direitos fundamentais
e a noção dos fundamentos do Estado Social. É preciso reconhecer-se que as pessoas, na busca de sua
integração na sociedade, desde já na tenra idade, não conseguem partir das mesmas condições que
lhe permitam uma disputa igualitária nesse mundo competitivo em que se vive. Essa competição não
deveria existir de forma como se apresenta, mas isso, além de não ser o objeto do presente estudo,
acaba por fazer um flerte com a utopia.
Contudo, há de se olhar a necessidade de se garantir um mínimo de inclusão, a qual, se não
for observada, poderá culminar no afastamento total de pessoas que precisam da implementação
de políticas públicas concretamente inclusivas. Esse contexto passa pela noção de uma teoria crítica
dos direitos humanos (WOLKMER, 2015), pois a mera formalização de políticas públicas sem o
compromisso de atender de forma efetiva os objetivos propostos, não atinge sua finalidade.
Aí está um dos motivos da judicialização envolvendo esse tema, já que no âmbito formal
apresenta-se políticas públicas, porém a realidade externa a carência de aplicação prática. Isso nos
faz refletir acerca dos chamados ciclos das políticas públicas trazidos por Schmidt (2018) e que a
política pública deve representar uma resposta às demandas sociais, ou seja, uma resposta a um
problema político de caráter público ou coletivo.
Nesse passo, (SCHMIDT, 2018, p. 131) explica que: “A teoria dos ciclos elenca cinco fases que
permitem entender como uma política surge e se desenvolve: (i) percepção e definição do problema;
(ii) inserção na agenda política; (iii) formulação; (iv) implementação; e (v) avaliação”.
Considerando a questão da judicialização que envolve o tema aqui em estudo e, levando-se em
conta esse ciclo das políticas públicas, percebe-se que as situações que tem levado à busca pelo Poder
Judiciário se deve a problemas quando da implementação e avaliação adequadas. Por isso, importa
considerar que o processo que envolve as políticas públicas não pode ser encarado como estático,
mas sim deve-se entender pelo seu dinamismo, pelo que exige constante adequações e atualizações,
bem como a permanente avaliação de seus resultados.

3 JUDICIALIZAÇÃO ENVOLVENDO O TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO E


HIPERATIVIDADE: UMA ABORDAGEM QUALITATIVA DAS DECISÕES JUDICIAIS

O tema em estudo trabalha a questão da efetividade, pois se constata uma carência na


implementação de políticas públicas concretamente efetivas nesse assunto. Nesse ambiente é
necessário dar azo à noção dos Direitos Humanos não somente num aspecto conceitual e formalista,
mas de modo efetivo e concreto, bem como sob o ponto de vista crítico, pois a visão tradicional não
consegue mais atender aos anseios e necessidades da nossa sociedade.
Nota-se que, de maneira geral, o poder público não desconhece o problema e há a adoção de determinadas
medidas para atender essa situação. Então, porque se costada considerável demanda judicial envolvendo
essa temática? A hipótese trabalhada, e que está se confirmando, é justamente a falta de efetividade na
implementação das políticas públicas como forma de atender a real necessidade das pessoas que vivenciam
essa disfunção, ou seja, há necessidade de ampliação dessas políticas no enfoque da concretude.
Pertinente se fazer uma relação com a noção da chamada efetividade constitucional, o que
transcende o aspecto meramente formalista do texto constitucional. Assim, Bonavides (2008) sustenta
que nisso reside a essência desse figurino de constitucionalidade que há de ser o mais democrático,
o mais aberto, o mais legítimo dos modelos de organização da democracia emancipatória.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Importante não esquecer que o acesso à educação inclusiva está contemplado na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, com o dever do Estado de, efetivamente, garantir a educação
inclusiva com a integração do estudante com deficiência no ensino regular. O art. 208, III da CRFB (BRASIL,
1988) dispõe: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] III - atendimento
educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.
Ainda, o seu artigo 227, § 1º, II (BRASIL, 1988) prioriza um rol de medidas a serem efetivadas,
incluindo a criação de programas de prevenção e atendimento especializado:

[...]
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de
deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem
portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do
acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas
as formas de discriminação.

Dessa forma, a noção de efetividade, necessariamente, é o diferencial para uma implementação


real de políticas públicas. É preciso que observemos a ideia de unidade constitucional trazida por
Bonavides (2008, p. 27), que explica: “Com efeito, esse princípio magno e excelso, comum a todo
regime constitucional legítimo, é, na forma, a unidade normativa da Constituição; e, na substância, a
unidade espiritual da Carta Magna, ou seja, o espírito da Constituição em seus fundamentos invioláveis”.
Observe-se alguns julgados que acabam por evidenciar a necessidade de judicialização para
implementação de determinadas medidas efetivas. Em acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, no Agravo de Instrumento Nº 70064598758 (RIO GRANDE DO SUL, 2015) tem-se
caso em que o Ministério Público ajuizou ação civil pública ante a negativa do Conselho Regional
de Educação daquele estado na disponibilização de um professor apoiador para viabilizar a devida
inclusão de um aluno adolescente que estava cursando o 6º ano do ensino fundamental.
No caso foi concedida medida liminar para o que a escola mantivesse o acompanhamento
de profissional na Escola Estadual de Ensino Fundamental Padre Jaeger, durante o período de aula.
Referida liminar fora devidamente confirmada por sentença.
Nota-se que, além dos diversos atestados médicos apresentados envolvendo a situação e que
constam dos autos, foram apresentados pareceres técnicos (RIO GRANDE DO SUL, 2015): “Conforme os
pareceres das fls. (...) apresenta quadro de grande ansiedade e impulsividade, o que dificulta
suas relações sociais, demandando grande atenção de seus cuidadores”(Grifo Nosso). A
situação também já tinha piorado pelo que se constata do seguinte relato que faz parte da decisão em
referência: “Ainda, consoante ocorrência policial [...] é vítima de bullyng na escola onde estuda, sofrendo
agressões físicas, morais e psicológicas, pelo fato de ser especial e ter problemas de impulsividade”.
Continuando a análise dos fundamentos da decisão proferida no referido acórdão (RIO GRANDE DO
SUL, 2015), pertinente colacionar trecho em que são destacados os fundamentos constitucionais da decisão:

É de se ver que a pretensão deduzida na exordial objetivava efetivar o direito à educação do menor,
mediante a disponibilização, pelo Estado, de um professor apoiador que atendesse às suas necessidades,
independentemente do estabelecimento de ensino que frequentasse, tendo constado, na exordial, que,
à época, J. L. estava matriculado na Escola Estadual de Ensino Fundamental Padre Jaeger.
Conforme já referido no parecer exarado em sede de Apelação, na dicção do artigo 208, inciso III,
da Constituição Federal, o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de
“atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede
regular de ensino”.
Ainda, dispõe o artigo 206, inciso I, da Constituição Federal:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...]
Da mesma forma, o artigo 54, inciso III, do ECA, estabelece que ‘É dever do Estado assegurar à
criança e ao adolescente: [...] III - atendimento educacional especializado aos portadores de defi-
ciência, preferencialmente na rede regular de ensino’.
[...]

O Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, em muitas situações precisa ser tratado


com medicamentos, até porque o devido controle dessa disfunção refletirá também no âmbito escolar.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Contudo, há situações em que o próprio fornecimento de medicamentos acaba sendo judicializado,


como se destaca em decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível
em Remessa necessária Nº. 70079567806 (RIO GRANDE DO SUL, 2019):

[...] Ação ordinária ajuizada por menor portador de TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO e HI-
PERATIVIDADE (CID 10 F 90.0), postulando o fornecimento do medicamento VENVANSE 30mg. [...]
Direito à Saúde, Separação de Poderes e Princípio da Reserva do Possível.
A condenação do Poder Público para que forneça tratamento médico ou medicamento à criança e ao
adolescente, encontra respaldo na Constituição da República e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em razão da proteção integral constitucionalmente assegurada à criança e ao adolescente, a condenação
dos entes estatais ao atendimento do direito fundamental à saúde não representa ofensa aos princípios
da separação dos poderes, do devido processo legal, da legalidade ou da reserva do possível.
Direito, Política e Indisponibilidade Orçamentária.
A falta de previsão orçamentária do Estado para fazer frente às despesas com obrigações rela-
tivas à saúde pública revela o descaso para com os administrandos e a ordem constitucional,
e que não afasta ou fere a independência dos Poderes. (Grifo Nosso) (TJRS. Apelação em Remessa
Necessária Nº 70079567806. Comarca de Passo Fundo. Des. Rui Portanova. Decisão de 27/06/2019)

Verifica-se que as decisões judiciais que envolvem essa temática, giram em torno de fundamen-
tos semelhantes no sentido se observar os preceitos constitucionais para fins de viabilizar o acesso
à saúde e educação inclusiva. Consta da decisão em Acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina
na Apelação Cível Nº. 0900030-39.2017.8.24.0044:

APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. DIREITO À EDUCAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AFORADA
PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PLEITO COM FITO DE CONDENAR O ESTADO A DISPONIBILIZAR SEGUNDO
PROFESSOR PARA ALUNO COM DEFICIÊNCIA QUE FREQUENTA A REDE ESTADUAL DE ENSINO. ADO-
LESCENTE PORTADOR DE TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (CID 10:F90.0) E
DISTÚRBIO DO PROCESSAMENTO AUDITIVO CENTRAL (DPAC). SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIG-
NAÇÃO DO ESTADO. DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS QUE TORNAM CRIS-
TALINA A OBRIGAÇÃO DO RÉU DE DISPONIBILIZAR PROFESSOR AUXILIAR A ALUNOS COM DEFICIÊNCIA
[...]
Para mitigar as barreiras que suprimem a participação plena, compensam-se as limitações subje-
tivas com programas para permitir, tanto quanto possível, a convivência em igualdade de condi-
ções. A jurisprudência do TJSC respalda a tese: comprovada a deficiência e indicado por profissio-
nais habilitados que o déficit pode ser equilibrado com o professor
(TJSC. Apelação Cível Nº. 0900030-39.2017.8.24.0044. Relator: Pedro Manoel Abreu. Primeira
Câmara de Direito Público. Julgado em: 16/06/2020)

Em pesquisa no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, identificou-se decisão em


Remessa Necessária envolvendo Mandado de Segurança, determinado a realização de exames para
fins de esclarecimento para evitar a possibilidade da perda da qualidade de vida. Colhe-se do Proces-
so Nº 0032526-45.2019.8.16.0030 (PARANÁ, 2020), Remessa Necessária em Mandado de Segurança:

REMESSA NECESSÁRIA. MANDADO DE SEGURANÇA. PACIENTE PORTADOR DE TRANSTORNO DO DÉFICIT


DE ATENÇÃO COM HIPERATIVIDADE - TDAH. NECESSIDADE DA REALIZAÇÃO DE EXAMES DENOMINA-
DOS PROCESSAMENTO AUDITIVO CENTRAL E ELETROENCEFALOGRAMA EM SONO VIGÍLIA. OBJETIVANDO
AUXILIAR NO ESCLARECIMENTO E TRATAMENTO DE FORMA A EVITAR A POSSIBILIDADE DE PERDA DA
QUALIDADE DE VIDA. CUMPRIMENTO DOS REQUISITOS ESTABELECIDOS PELO STJ NO BOJO DO RESP N.
1.657.156/RJ. SENTENÇA INTEGRALMENTE MANTIDA EM SEDE DE REMESSA NECESSÁRIA. (TJPR. Processo
Nº 0032526-45.2019.8.16.0030. Remessa Necessária em Mandado de Segurança. Relator(a): Desem-
bargadora Astrid Maranhão de Carvalho Ruthes. 4ª Câmara Cível. Data do Julgamento: 10/08/2020)

Essa amostragem qualitativa permite verificar concretamente situações que tem motivado a
judicialização das políticas públicas envolvendo o TDAH. Constata-se que alegações de cunho eco-
nômico, bem como a carência de regulamentação clara para aplicação efetiva de medidas como pro-
videnciar segundo professor e fornecimento de medicamentos e exames, acabam por exigir que o
Poder Judiciário venha a suprir essas providências.
É perceptível que, na carência da aplicação prática de fundamentos constitucionais, no âmbito
educação inclusiva, como o fornecimento de professor auxiliar e, até situações ligadas à saúde, como
no caso de exames e tratamento, ocorre a judicialização para que se sejam disponibilizadas medidas
que concretamente venham a integrar as pessoas com TDAH no ambiente escolar.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Por isso, pertinente repisar e trazer a lição de Bonavides (2008) em que sustenta a premissa
material do texto constitucional, abordando uma teoria cuja materialidade tem os seus limites
jurídicos de eficácia e aplicabilidade determinados grandemente por um controle que há de combinar,
de uma parte, a autoridade e a judicatura dos tribunais constitucionais e, doutra parte, a autoridade
da cidadania popular e soberana exercitada em termos decisórios de derradeira instância.
Nesse contexto, confirma-se também a necessidade de uma maior e também efetiva participação
popular nas políticas públicas, pois que o destinatário final é a própria sociedade. Ora, a implementação
de uma política pública sem a oitiva dos maiores interessados logicamente poderá conduzir a
judicialização posterior por determinadas carências quando da sua implementação. Também, técnicos,
especialistas e educadores devem ser ouvidos nesse contexto.
Costa (2012) faz um pertinente contraponto entre a democracia participativa e a representativa,
destacando que o desejo participativo não nasce isolado ou como simples decorrência de uma ação
determinista, mas ao longo de algumas décadas de busca por uma nova forma de trazer o povo mais
uma vez para o papel central no que lhe diz respeito, discorrendo que: “A insistência na necessidade
de associar a participação com a democracia nasce, no fundo, do recorrente reapresentar-se de um
problema que acompanhou toda a história da democracia representativa.” (COSTA, 2012, p. 299).
Por isso, a importância dessa participação também no momento de se avaliar as políticas públicas a
fim de verificar a necessidade de adequações e ampliações. Schmidt (2018, p. 137) discorre: “A avaliação de
uma política consiste no escrutínio dos êxitos e das falhas do processo de sua implementação. Ela propor-
ciona retroalimentação (feedback) e pode determinar a continuidade, a mudança ou a cessação da política”.
Deve-se encarar políticas públicas como um meio para implementar direitos fundamentais. Nesse
giro, tem-se a importância da construção desses direitos e não apenas de encará-los formalmente.
Assim, ao analisar as situações que tem motivado a judicialização envolvendo o Transtorno
do Déficit de Atenção e Hiperatividade observa-se que, sem prejuízo de se verificar a existência de
regulações em determinadas políticas públicas, há carência no que tange a efetividade de medidas que
possam realmente atender a contento as demandas existentes numa perspectiva concreta de inclusão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à educação como direito fundamental está vinculado a um pressuposto que zela por
um processo de desenvolvimento tanto individual como social, que é próprio da condição humana
e requer um olhar crítico num sentido mais amplo e não apenas formal, levando-se em conta que o
desenvolvimento da pessoa deve ser pleno.
Políticas Públicas de educação inclusiva para as pessoas com Transtorno do Déficit de Atenção
e Hiperatividade são importantes e necessárias para fins de amenizar as dificuldades vivenciadas por
elas. Confirma-se a hipótese com base no problema apresentado ante a temática proposta nesse es-
tudo, identificando-se as circunstâncias que tem motivado a judicialização nas políticas públicas para
as pessoas portadoras desse transtorno.
Ficou evidenciado que a busca pela tutela judicial se deve a problemas quando da implementa-
ção efetiva dessas políticas públicas de inclusão, envolvendo a temática em comento. Por isso, impor-
ta considerar que o processo das políticas públicas exige constante adequações e atualizações, bem
como a permanente avaliação de seus resultados.
Constata-se a carência de efetividade na aplicação das políticas públicas que tratam do assunto
diante das reais necessidades vivenciadas e sugere-se que seja considerada a necessidade de ampliação
dessas políticas públicas a fim de viabilizar a devida concretude numa perspectiva do processo de
inclusão das pessoas com TDAH no ensino fundamental público.
O presente estudo logicamente não esgota o assunto, mas contribui para dar visibilidade e
estimular o debate acerca do tema, já que o assunto se apresenta bastante relevante e existem formas
de minimizar as consequências negativas dessa disfunção, como a disponibilização de professor
auxiliar, dentre outras medidas, o que, certamente pode contribuir e viabilizar um processo mais
inclusivo que refletirá positivamente no âmbito educacional, social e emocional, propiciando uma
melhor qualidade de vida para as pessoas que vivenciam essa situação.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIA


ACERCA DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA PREVISTA NO ART. 150, VI,
ALÍNEA “D” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Daiane Caroline Tanski288

RESUMO: O presente trabalho científico é o resultado da investigação realizada sobre interpretação da


Imunidade Tributária e as decisões jurisprudências e doutrinárias acerca deste assunto. Com o enfoque
direcionado preponderantemente à imunidade sobre os livros, jornais e periódicos, previsto no art.
150, VI, alínea “d” da Constituição Federal de 1988. O presente trabalho procura fazer uma análise
sobre eficácia da legislação tributária em face das garantias fundamentais constitucionais relativas aos
Direitos Fundamentais, como a garantia da liberdade de expressão, analisando se a referida imunidade
tributária se trata meramente de um interesse público ao barateamento dos livros, jornais e periódicos.

Palavras-chave: Competência. Constituição. Imunidade. Livros. Tributário.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal do Brasil da República configura-se uma constituição analítica, tendo


em vista se tratar de uma constituição extensa que regulamenta todos os assuntos que entende
relevante, bem como assuntos do Direito Tributário.
Na parte da atual Constituição Federal brasileira intitulada “Do Sistema Tributário Nacional”
há mais de quinze artigos tratando de matéria tributária, dentre os quais se situa o art. 150, que
trata sobre o instituto das imunidades tributárias. Com ela, o poder constituinte buscou garantir que
determinadas pessoas, bens e situações não fossem objeto de tributação.
A interpretação das imunidades tributárias prevista nas constituições brasileiras é um tema
que sempre suscitou inúmeros questionamentos na doutrina e na jurisprudência quanto às suas
abrangências ou não no plano fático, até porque, a imunidade tributária é um instituto tipicamente
brasileiro, já que não possui base teórica anterior junto à legislação alienígena em que poderiam
fundar eventuais considerações sobre o tema.
Na alínea “d” do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal, tem-se a imunidade genérica e obje-
tiva dos livros, jornais, periódicos e do papel destinado a sua impressão, que é o foco do presente estudo.
A proposta apresentada para o desenvolvimento do presente trabalho se refere à justificação da
imunidade tributária sobre os livros, jornais e periódicos. O argumento oficial da presente imunidade
tributária em estudo consiste na garantia fundamental da liberdade de expressão, em contrapartida,
há uma doutrina minoritária que afirma que a justificação seria, no entanto, o interesse social de
baratear dos produtos, a fim de melhorar os índices de alfabetização do país.
O presente trabalho não busca esgotar a matéria apresentada, mas apenas fazer uma abordagem
diferenciada acerca do assunto, com uma visão desse tema considerado relevante para a sociedade brasileira.

1 CONCEITO DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

As competências tributárias são fixadas na Constituição da República Federativa do Brasil de


1988 e decorrem do poder de tributar conferido aos entes políticos da Federação – União, Estados,
Distrito Federal e Municípios –, por meio do qual essas pessoas jurídicas de direito público interno

288 Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Metropolitana. Graduada no Curso de Direito pela
Unicruz (2019). E-mail: daitans@hotmail.com.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

encontram-se autorizadas a instituir tributos, por meio de lei, nos limites fixados pela Constituição.
O conceito de competência tributária configura o seguinte:

(...) é resultado da análise conjunta de duas espécies de normas jurídicas: de um lado, das normas
que atribuem poder ao Estado para instituir tributos por meio da especificação dos fatos e
situações que se tornam suscetíveis de tributação (normas de competência), de outro, das normas
que subtraem poder do Estado sobre determinados fatos e situações que se tornam insuscetíveis
de tributação (normas limitativas da competência). A parcela de poder do Estado para instituir
tributos é resultado do poder que lhe atribui menos o poder que lhe é subtraído, nos termos da
Constituição (ÁVILA, 2010, p. 217).

Destaque-se que a competência tributária, é o poder que os entes políticos (União, Estados-
Membros, Distrito Federal e Municípios) têm para instituir tributos e este poder não é ilimitado, visto
que o exercício dessa competência vincula-se às regras, aos princípios, aos pressupostos e aos limites
estabelecidos na Constituição Federal, bem como à observância dos direitos e garantias fundamentais
do indivíduo e da coletividade.
Ou seja, da mesma forma que a Constituição Federal estabelece a competência tributária das
pessoas jurídicas de direito público interno, ela também estipula limitações ao exercício do poder
de tributar, definindo diretrizes que delimitam e orientam a atuação do legislativo de cada esfera da
Federação na instituição dos tributos.

2 CONCEITO DE IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS

As imunidades tributárias são consideradas normas negativas de competência tributária, tendo


em vista que são uma forma de limitação do poder estatal no ato de tributar.
Como afirma Carolina Barrocas (2017, p. 101), quanto à imunidade: “não estamos diante de
uma norma que veda a competência; na verdade, ela não existe. Do mesmo modo que a Constituição
outorga competências, ela também a afasta em determinadas situações”.
Paulo de Barros Carvalho (2017, p. 117 apud Baleeiro e Derzi, 2018, p. 259), cita o conceito de
imunidade tributária: “Classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no
texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas
políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem
situações específicas e suficientemente caracterizadas”.
As limitações constitucionais ao poder de tributar do Estado que desoneram certas pessoas e
situações do pagamento de tributos, buscando evitar restrições de natureza fiscal a valores relevantes
reconhecidos pelo ordenamento constitucional (ABRAHAM, 2018).
As imunidades tributárias, tradicionalmente estudadas como uma limitação do poder de tributar,
no sentido de “supressão”, “proibição” ou “vedação” do poder de tributar, como afirma Luciano Amaro
(2014, p. 114) a imunidade configura:

[...] simples técnica legislativa por meio da qual o constituinte exclui do campo tributável determinadas
situações sobre as quais ele não quer que incida este ou aquele gravame fiscal, cuja instituição é
autorizada, em regra, sobre o gênero de situações pelo qual aquelas estariam compreendidas.

As imunidades tributárias são garantias fundamentais, visto que possuem o objetivo de proteger
direitos fundamentais como o da liberdade de crença (imunidade dos templos) ou da manifestação
do pensamento (imunidade dos livros). A importância de tomar uma imunidade como garantia
fundamental está em lhe atribuir a condição de cláusula pétrea inerente aos direitos e garantias
fundamentais, constante nos termos do art. 60, § 4º, da Constituição Federal de 1988.
Note-se que no que tange à classificar as imunidades a fim de serem direitos fundamentais e
estarem cobertas pelo manto da cláusula pétrea, há uma enorme diferença axiológica entre:

[...] a imunidade dos livros a impostos, prevista no art. 150, VI, d, da Constituição, e a imunidade
das receitas de exportação a contribuições sociais e interventivas, prevista no art. 149, § 2º, I,
da Constituição. A primeira assegura a liberdade de manifestação do pensamento, preservando

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a democracia, o pluralismo, o acesso à informação, de modo que configura cláusula pétrea, não
podendo ser revogada nem restringida pelo poder constituinte derivado. A segunda constitui
simples elevação, em nível constitucional, da política de desoneração das exportações, podendo
ser revogada ou alterada pelo constituinte derivado (PAULSEN, 2020, p. 152).

Entretanto, convém observar que há certas imunidades que, por serem logicamente dedutíveis
de princípios fundamentais irreversíveis, como a forma federal de Estado e a igualdade-capacidade
contributiva, independem de consagração expressa na Constituição. É o caso das imunidades recíprocas
das pessoas estatais e das instituições de educação e assistência social sem finalidade lucrativa, por
exemplo. Por essa mesma razão é que as imunidades, como regra geral, contemplam apenas os impostos.
Dessa forma, como afirma Sabbag (2013) a norma imunizante, burilada pelo legislador
constituinte, em nome do “cidadão-destinatário”, visa preservar valores políticos, religiosos, sociais
e éticos, colocando a salvo da tributação certas situações e pessoas (físicas e jurídicas). Assim, o
presente estudo visa especificamente analisar a imunidade tributária que visa proteger o direito
fundamental da liberdade de expressão, como se verá a seguir.

3 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO PROTEGIDO PELO MANTO DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA

O postulado do Estado Democrático de Direito, a liberdade de pensamento, é essencial para a


dignidade do indivíduo e constitucionalmente distingue-se em duas facetas:

A liberdade de consciência e a liberdade de expressão ou manifestação do pensamento. A primeira


é a liberdade do foro íntimo. Enquanto não manifesta, é condicionável por meios variados, mas é
livre sempre, já que ninguém pode ser obrigado a pensar deste ou daquele modo. Essa liberdade
de consciência e de crença a Constituição (art. 5º, VI) declara inviolável. [...] A manifestação do
pensamento pode, porém, dirigir-se a outrem e não apenas exprimir as convicções do indivíduo,
sem preocupação deste que outros a percebam, ou não. Essa liberdade, expressão fundamental
da personalidade, também é consagrada, mas sob regimes diversos, conforme sua importância
social. (FERREIRA FILHO, 2012, p. 226-227)

Conforme ensina o professor Alexandre de Moraes (2015, p. 131) a proteção constitucional


de manifestação do pensamento, objeto do atual estudo, “engloba não só o direito de expressar-se,
oralmente, ou por escrito, mas também o direito de ouvir, assistir e ler”. Por este motivo, a publicação
de livros e periódicos independe de licença do Poder Público.
Outra forma de manifestação do pensamento é a pela palavra escrita, destinada a pessoas
indeterminadas, divulgada por meio de livros, jornais e revistas. Durante longos séculos, as publicações
eram dependentes de autorização estatal, expressando uma forma de limitação ao direito de liberdade
de pensamento, consoante explica Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2012, p. 227):

Todas as publicações dependeram de autorização governamental, cientes os poderosos do tempo


da força da palavra escrita, o meio de comunicação de massa ao tempo existente. Essa autorização
só era dada após a censura da obra, que, conforme o tempo, se fazia com rigor maior ou menor. Por
atingir talvez bem de perto os enciclopedistas e iluministas que inspiraram a Revolução de 1789, esta
se preocupou em proscrever a censura. A Constituição brasileira (art. 5º, IX) veda a censura da palavra
escrita. Declara independente de censura ou licença do Poder Público a “expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação”. Proíbe, todavia, o anonimato (não o pseudônimo).

Com fundamento no dispositivo constitucional de liberdade de expressão e entre outros, o STF


considerou integralmente revogada, por incompatibilidade material com a Constituição Federal de
1988, a antiga Lei de Imprensa, editada ao tempo de regime militar (lei nº 5.250/1967).
As disposições de tal lei eram incompatível com o padrão de democracia e liberdade de imprensa conce-
dido pelo legislador constituinte moderno de 1988, que se apoia em dois pilares: a) informação em plenitude
e de máxima qualidade; e b) transparência ou visibilidade do poder, seja ele político, econômico ou religioso.
A liberdade de expressão, portanto, tal como sugeriu Jónatas Machado (2002), é tratada como
uma espécie de “direito mãe”, já que este direito fundamental é o motivo da existência da imunidade
prevista no art. 150, inciso VI, alínea “d” da CF, e justamente por isso, que a referida imunidade

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

tributária é considerada uma garantia fundamental do sistema constitucional vigente.


As imunidades sobre papeis, livros e periódicos também são consideradas imunidades objetivas.
Nesse sentido, Sabbag (2013, p. 404) explica: “As imunidades objetivas, também denominadas reais,
são aquelas instituídas em virtude de determinados fatos, bens ou situações importantes para o bom
desenvolvimento da sociedade”.
Diferente das imunidades específicas que se circunscrevem geralmente a um único tributo e se
dirigem a situações específicas. Elas estão espalhadas pelos diversos artigos da Constituição, como
por exemplos os artigos 153, § 3°, inciso III e § 4°; artigo 155, § 2°, inciso X alíneas “a” e “b”; artigo
156, § 2°, inciso I; artigo 195, § 7°; artigo 155, § 3°; artigo 184, § 5°; e artigo 195, inciso II.
Por fim, o art. 150, VI, d, da CF/88 que outorga imunidade aos livros, jornais, periódicos e ao papel
destinado à sua impressão consiste em uma forma de garantia do direito à liberdade de manifestação
do pensamento e tem o objetivo de evitar a utilização do imposto como forma de censura.

4 IMUNIDADE TRIBUTÁRIA SOBRE OS LIVROS

Apesar da doutrina majoritária e até mesmo a Suprema Corte afirmar que a imunidade sobre os
livros possui por objetivo proteger o direito fundamental da liberdade de expressão, há uma parte da
doutrina que discorda.
De fato, a presente imunidade em estudo vem evitar uma situação de perigosa submissão
tributária das empresas jornalísticas, verdadeiras destinatárias dessa especial prerrogativa de ordem
jurídica, ao poder impositivo do Estado.
Entretanto, Ricardo Lobo Torres (p. 286, apud SABBAG, 2013, p. 405) afirma que o real motivo
para a existência da imunidade sobre livros será o interesse público em baratear o produto, até
porque o índice de alfabetização no Brasil não é satisfatório:

Não se pode deixar de assinalar, ad argumentandum, que a justificação axiológica passa a ser duvidosa
se observarmos que há países (como por exemplo, os Estados Unidos) que preservam a liberdade de
expressão e, ao mesmo tempo, cobram impostos sobre livros e jornais. Além disso, é possível recordar
que, à época do regime militar, permanecia o manto protetor da imunidade para livros e jornais,
todavia a mutilação da livre manifestação de pensamento grassava a olhos vistos. Daí se pretender
afastar o elemento justificador dessa imunidade, calcado na liberdade de expressão, colocando-o como
“argumento subalterno”, para se abrir espaço ao fundamento de utilidade social, em face da redução do
custo dos veículos de pensamento. O raciocínio, demonstrado pelo eminente professor Ricardo Lobo
Torres, é bastante sedutor, merecendo a citação neste Manual, principalmente se levarmos em conta
a premente necessidade de aumento nos índices de alfabetização no país, que passa, por certo, pelo
“barateamento dos produtos, facilitando a sua divulgação e, com esta, a propagação da cultura nacional”.

Inclusive, o STF já se valeu desse elemento axiológico para justificar certas desonerações
tributárias, como a que se deu com as listas telefônicas, referindo-se a estas como “periódicos de
inegável utilidade pública”.
No âmbito do Recurso Extraordinário nº 101.441289 decidiu-se pela abrangência da imunidade
tributária às listas telefônicos, assim como a Corte Suprema, no Recurso Extraordinário nº 221.239,
também decidiu que a imunidade tributária também alcançaria os “álbuns de figurinhas”290, cujo
fundamento seria estimular o público infantil a se familiarizar com meios de comunicação impressos,
atendendo, em última análise, à finalidade do benefício tributário.
No entanto, expõe Hugo Machado (2018), que a imunidade tributária possui uma característica
objetiva, visto que não está condicionada ao conteúdo do livro, jornal ou periódico, se mais ou menos
útil, instrutivo ou culturalmente elevado, bastando que não se trate de um livro em branco.
Desse modo, salienta Harada (2018) a imunidade estabelecida é a objetiva. Já se acha superada
a jurisprudência que exigia que o conteúdo dessas publicações se revestissem de caráter jornalístico,
literário, artístico, cultural ou científico.

289 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no 101.441. Red. p/ o acórdão Min. Sydney Sanches, 4 nov.
1987. Diário de Justiça, Brasília, 19 ago. 1988.
290 Álbuns a serem completados por cromos adesivos considerados tecnicamente ilustrações para crianças.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Livro, no dizer dos dicionaristas, significa “porção de cadernos manuscritos ou impressos e


cosidos ordenadamente”. E periódico significa publicação que aparece em tempos determinados ou em
intervalos iguais, contendo informações de caráter geral. Por isso, até mesmo os catálogos telefônicos
encontram-se sob a proteção da imunidade, conforme, não apenas a jurisprudência mencionada
anteriormente, mas inúmeros outros pronunciamentos da Corte Suprema.
Afirma Hugo Machado (2018, p. 96) como correto o entendimento do STF, pois:

[...] caso fosse admitida a aplicação da imunidade apenas a livros “valorosos”, considerados
subjetivamente pelo intérprete como sendo “úteis” ou “positivos”, estabelecer-se-ia, por via
indireta, precisamente o que a imunidade visa a evitar: a censura através do tributo. Não importa,
assim, se o livro tem conteúdo erótico, ou por qualquer critério considerado “negativo”, fazendo
jus, em qualquer caso, à imunidade tributária.

Isso porque sua finalidade desta imunidade tributária é a de “evitar embaraços ao exercício da liberdade
de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à
cultura, à informação e à educação”, não tendo a CF/88 feito quaisquer ressalvas “quanto ao valor artístico
ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade cultural de uma publicação”291.
Por isso, “não cabe ao aplicador da norma constitucional em tela afastar este benefício fiscal instituído
para proteger direito tão importante ao exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca
da qualidade cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público infanto-juvenil”292.
E, por igual razão, a imunidade abrange também o papel destinado à impressão dos álbuns de figurinhas.
Sabe-se que os livros são meios de difusão da cultura, representando um suporte material
de propagação de um pensamento, e por isso, afirma Sabbag (2018) que não são abarcados pela
imunidade os livros que não veiculam ideias, nem pensamentos formalmente considerados, como
livro de ponto, livro de bordo, livros fiscais, livro de atas.
Quanto à proteção da liberdade de pensamento, impende trazermos a relevante advertência
de Aliomar Baleeiro (apud, Sabbag, 2013, p. 405), que mostra como a mutilação da imunidade pode
servir de instrumento de controle estatal das liberdades individuais, ou seja, da liberdade de informar
e do livre direito do cidadão de ser informado:

A Constituição almeja duplo objetivo ao estatuir essa imunidade: amparar e estimular a cultura
através dos livros, periódicos e jornais; garantir a liberdade de manifestação do pensamento, o
direito de crítica. (...) o imposto pode ser meio eficiente de suprimir ou embaraçar a liberdade da
manifestação do pensamento, a crítica dos governos e homens públicos, enfim, de direitos que
não são apenas individuais, mas indispensáveis à pureza do regime democrático.

Como afirma Sabbag (2018, p. 405):

Fácil é perceber que toda essa liberdade almejada deságua, em última análise, no direito à
educação, que deve ser fomentado pelo Estado, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa e
ao seu preparo, para o exercício da cidadania e à sua qualificação para o trabalho, na atividade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 5º, IV, IX, XIV, XXVII;
arts. 205, 206, II, 215 e 220, §§ 2º e 6º, todos da CF).

No entanto, Sabbag (2013, p. 405) salienta uma crítica interessante proferida pelo doutrinador
Ricardo Lobo Torres sobre as imunidades tributárias:

O raciocínio, demonstrado pelo eminente professor Ricardo Lobo Torres, é bastante sedutor, merecendo
a citação neste Manual, principalmente se levarmos em conta a premente necessidade de aumento nos
índices de alfabetização no país, que passa, por certo, pelo “barateamento dos produtos, facilitando
a sua divulgação e, com esta, a propagação da cultura nacional”. Diga-se, em tempo, que o STF já se
valeu desse elemento axiológico para justificar certas desonerações, como a que se deu com as listas
telefônicas, referindo-se a estas como “periódicos de inegável utilidade pública”.

Ou seja, o doutrinador Ricardo Lobo afirma que a imunidade sobre livros é uma forma desesperada

291 RE nº 221239
292 RE nº 469641

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

do Estado para aumentar os índices de alfabetização do país, com isto, não constituindo em uma
forma de proteger o direito fundamental da liberdade de expressão.
No entanto, possui o entendimento de Sacha Calmon Coêlho (2004, p. 361), que afirma que o
fundamento da imunidade, objeto do presente estudo, seria político e cultural:

Em nada autoriza livrar as receitas dos anúncios do ISS municipal nem os lucros de balanço do
IR, imposto geral. A imunidade, seu fundamento, é político e cultural. Procura-se retirar impostos
dos veículos de educação, cultura e saber para livrá-los, de sobredobro, das influencias políticas
para que, através do livro, da imprensa, das revistas, possa-se criticar livremente os governos sem
interferências fiscais. Por isso mesmo o insumo básico, o papel de impressão, está imune. Não
por ser custo, senão porque, através dos impostos de barreira e do contingenciamento, poderia
o Fisco embaraçar a liberdade de imprensa. A imunidade filia-se aos dispositivos constitucionais
que asseguram a liberdade de expressão e opinião e partejam o debate das idéias, em prol da
cidadania, além de simpatizar com o desenvolvimento da cultura, da educação e da informação.

Portanto, após a análise da abrangência da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, alínea
d da CF, há ainda um importante ponto a ser abordado neste estudo que são os livros eletrônicos, o
que será tratado a seguir.

5 A INCLUSÃO DO LIVRO DIGITAL NA INTERPRETAÇÃO DO ART. 150, VI, ALÍNEA “D” DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL

O Direito Tributário têm o condão de modificar realidades econômicas e sociais, com isso, a temática
sobre a imunidade dos livros e sua extensão possuem inegáveis reflexos no campo da educação, da cul-
tura e da economia brasileira, devendo o tema ser analisado, portanto, sob a ótica da ordem econômica e
social, que tem por objetivo garantir a todos uma existência digna, segundo os ditames da justiça social.
Como afirma Harada (2018, p. 456): “a legitimidade do direito repousa exatamente no seu
caráter dinâmico, muitas vezes, exteriorizado por meio de interpretações à luz da realidade vigente”,
isso porque, a interpretação atual do texto constitucional precisa ser atualizada diversas vezes ao
longo do tempo, a fim de acompanhar as mudanças ocorridas na sociedade.
Com a evolução da sociedade e o avanço da moderna tecnologia na área da informática, o
conceito de livro, jornais e periódicos, como salienta Harada (2018) deixaram de ser considerados
apenas pelo seu aspecto físico, apegando-se ao objeto cultural, ou seja, o livro passou a ser assim
entendido pela sua função básica de transmitir e conservar informações, como idéias, comentários,
narrações, reais ou fictícias, sobre todos os interesses humanos, por meio de caracteres alfabéticos
ou por imagens e, até mesmo, por signos de Braille destinados a cegos.
Estabeleceu-se grande debate, nas últimas décadas, para saber se a imunidade prevista sobre os
livros se aplica, também, aos chamados livros eletrônicos, veiculados, por exemplo, em sites na web.
Depois de bastante tempo, em que diversos tribunais espalhados pelo Brasil já estavam
entendendo pela abrangência desta norma aos livros eletrônicos, o Supremo Tribunal Federal
finalmente pronunciou-se de maneira clara e direta sobre a imunidade do livro eletrônico.
Em 8 de março de 2017, como bem menciona Vittorio Cassone (2018), o STF chancelou a
imunidade tributária, reconhecendo a abrangência da regra do art. 150, IV, “d”, da CF/88 também
aos livros eletrônicos (e-books), e aos dispositivos destinados à sua leitura, aparelhos leitores de
livros eletrônicos confeccionados exclusivamente para fixá-los, ainda que equipados com outras
funcionalidades, como por exemplo o aparelho Kindle293 e outros e-readers.
Como Sabbag (p. 54, 2018) afirma sobre o tema:

Para a Corte Suprema, o art. 150, VI, d, da CF não se refere exclusivamente ao “método
gutenberguiano de produção de livros”. Quanto à análise dos leitores digitais, o STF se valeu
de uma aproximação, por analogia, do “papel utilizado para a impressão”, já tradicionalmente
imune, ao papel eletrônico (e-paper), imunizando-os indistintamente. A seu ver, “apesar de não se

293 Kindle é o nome do leitor digital da Amazon, cuja principal função é a leitura de livros digitais, além de outras como
acesso à internet, armazenagem de músicas, acesso a jogos, vídeos e aplicativos em geral, leitura de documentos etc.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

confundirem com os livros digitais propriamente ditos, esses aparelhos funcionam como o papel
dos livros tradicionais impressos, e o propósito seria justamente mimetizá-lo”.

O entendimento, no entanto, não alcança os aparelhos multifuncionais, como tablets, smartphones


e laptops, que são muito além de meros equipamentos utilizados para a leitura de livros digitais.
Convém notar nenhuma ofensa à literalidade do art. 150, VI, “d”, da CF/88, com o reconhecimento
da imunidade ali prevista aplicando-se também a livros veiculados em suportes físicos diversos do
papel. Nesse sentido, Hugo Machado (2018, p. 94) argumenta:

Afinal, o dispositivo se refere a livros, jornais, periódicos, e ao papel destinado à sua impressão, o que
significa dizer que a própria Constituição diferencia o livro, enquanto entidade imaterial, e o papel que
eventualmente pode ser usado caso ele seja impresso. Isso, por outras palavras, significa dizer que, além do
livro propriamente dito, o único insumo usado na confecção de um livro impresso que goza de imunidade é
o papel, mas daí não se pode concluir – até porque isso não está escrito na Constituição – que a imunidade
alcança apenas os livros que se achem impressos em papel. Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal já
havia reconhecido, no julgamento da ADIn 1.945, que o ICMS pode incidir sobre download de software,
mesmo sendo tradicional a definição mercadoria como sendo coisa corpórea destinada ao comércio.

Até porque, o mesmo livro, em versão impressa e digital, não há fundamento para que o primeiro
seja imune e o segundo não.
O importante é que se trate de informação escrita, razão pela qual é acertada a denominação
de Eduardo Sabbag (2018), que se reporta à regra veiculada pelo art. 150, VI, “d” da CF/88 como
dizendo respeito à “imunidade de imprensa”, seja ela veiculada por meio tipográfico ou impresso, ou
eletrônico ou cibernético.
Dessa forma, conclui-se:

Além disso, frisou-se que o vocábulo “papel” não é essencial ou condicionante para o conceito final do
livro e, pragmaticamente, para o desfrute da imunidade cultural. Relativamente à abrangência do binômio
papel-livro, o suporte (ou continente) está para o conteúdo assim como o corpus mechanicum está para
o corpus misticum das obras. Com efeito, o livro tipográfico depende de um suporte tangível (ou físico)
– peculiar aos códices –, enquanto o livro digital associa-se a um suporte intangível. Dessa forma, o
suporte físico é elemento acidental ao conceito de livro, podendo este prescindir daquele. Nessa toada
intelectiva, serão considerados imunes, indiferentemente, um livro veiculado por CDROM ou o próprio
audiolivro ou audiobook (estando em formato de CD-Rom ou não). Com efeito, a moderna visão vai ao
encontro da difusão da cultura e da democratização ou liberdade de ser informado e de formar opinião,
permitindo uma celebrável exegese contemporânea das normas constitucionais (SABBAG, 2018, p. 54).

O estudioso Ricardo Lobo Torres (2003), até mesmo no caso do livro digital, afirma que a imunidade
sobre este objeto teria por motivo o interesse publico de baratear o produto. Torres afirma que o livro
eletrônico requer equipamentos sofisticados e de alto custo, acessível apenas para parcela da sociedade.
Não é possível concordar com o argumento de Torres, como afirma Hélcio Lafetá Reis (2015)
visto que as ferramentas de computação e informática vem sendo, paulatinamente, estendido às mais
diferentes parcelas da população seja por meio de incentivos fiscais, seja por intermédio de programas
assistenciais de governo ou, ainda, pela difusão do acesso à internet e à informática nas redes pública
e particular de ensino, em bibliotecas públicas e em casas especializadas, as conhecidas lan houses.
Além disso, justamente pelo argumento de se tornar acessível a toda a população, que é tão
importante que se possibilite o barateamento de livros eletrônicos e aos seus dispositivos destinados
a sua leitura por meio do perceptivo imunitório.
Portanto, como a Constituição visa se aproximar da realidade, com a utilização da interpretação
evolutiva, as mudanças históricas e os fatores políticos e sociais da atualidade, seja em razão do avanço
tecnológico seja em decorrência da preocupação ambiental, justificam a equiparação do ‘papel’, numa
visão panorâmica da realidade e da norma, aos suportes utilizados para a publicação dos livros.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizar esta pesquisa, conclui-se que se está diante de um instituto do Direito Tributário que
trás diversas discussões acerca do tema há anos.

632
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

No momento da elaboração do dispositivo que se encontra na Constituição Federal brasileira de


1988, mais especificamente no rol da imunidade tributária, que se encontra vigente no art. 150, VI,
alínea “d”, teve sua caracterização expendida pelos diversos entendimentos jurisprudenciais alcançando
produtos que se justifica pelo próprio interesse social da jurisprudência que se expande o entendimento.
O legislador quis deliberar o enquadramento da referida imunidade tributária como uma forma
de garantia fundamental da liberdade de expressão, a fim de obedecer o padrão de democracia.
Com isso, existe uma parte minoritária na doutrina que este não seria o motivo da referida
imunidade tributária, e sim o interesse político e social em baratear os produtos e melhorar os índices
de alfabetização do país.
No entanto, é inegável que a referida imunidade tributária tem por objetivo precípuo evitar a utilização
dos impostos como forma de censura, garantindo a liberdade de imprensa às empresas jornalísticas, as
verdadeiras destinatárias dessa prerrogativa, o exercício da sua expressão intelectual, artística, científica e
de comunicação, bem como facilitar à população brasileira o acesso à cultura, à informação e à educação.

REFERÊNCIAS

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AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2014.

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TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10ª Ed. São Paulo: Editora Re-
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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

UMA ANÁLISE SOBRE A COMPATIBILIDADE DO INSTITUTO


DA COLABORAÇÃO PREMIADA COM O ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Raquel Souza294
Daiane Caroline Tanski295

RESUMO: O presente trabalho científico objetiva analisar, por meio bibliográfico, o instituto da dela-
ção premiada a partir da Lei nº 12.850/2013 e sua compatibilidade com a ordem constitucional vigen-
te, visando investigar se o instituto guarda harmonia com a garantia fundamental do silencio e da não
autoincriminação. A Delação Premiada é um instituto processual penal relativamente novo no diploma
legal, em que o investigado colabora com o andamento das investigações criminais ou da instrução
processual penal trazendo informações relevantes para a descoberta dos arranjos complexos que
contemplam as práticas das organizações criminosas, e em seu procedimento o delator acaba abrindo
mão de alguns direitos fundamentais, para ao final, receber algum benefício na sua pena.

Palavras-chave: Colaboração Premiada. Constituição. Democracia. Garantias Fundamentais.

INTRODUÇÃO

A Colaboração Premiada caracteriza-se como um meio especial de obtenção de prova e prevê a


concessão de benefícios penais ao delator em face de informações prestadas ao judiciário e ao avanço
das investigações criminais sobre a organização da qual o delator faz parte.
O instituto permite que um criminoso, membro de uma organização criminosa, delate informações
quanto à estrutura de sua organização e suas práticas delituosas, sendo beneficiado de alguma forma
na aplicação da sua pena, que se realizada na etapa da investigação criminal, é possível impedir a
prática de outros ilícitos, se tornando uma importante ferramenta para a polícia e o Ministério Público.
O enfoque dessa pesquisa visa investigar a compatibilidade do instituto da colaboração premiada
com os postulados do Estado Democrático de Direito, com ênfase na relativização que acarreta a
algumas garantias fundamentais previstas na ordem constitucional brasileira, como o princípio da
não autoincriminação e o direito ao silêncio.
Para tanto, será necessário analisar o instituto sob o âmbito processual penal, tendo em vista
que, quando o criminoso opta por colaborar com o poder estatal, delatará um ou mais (co)réus e
participes do delito, trazendo informações relevantes que colabore efetivamente para o sistema de
persecução penal, renunciando o seu direito de permanecer em silêncio, e como deverá confessar
a prática do crime, também abrindo mão do princípio da não autoincriminação, que constituem
garantias fundamentais essencial à dignidade humana.
Desta forma, o ordenamento jurídico recompensa a infidelidade do agente criminoso em relação
ao seu grupo, que poderá receber um benefício na eventual punição do delator, que alterna entre a
diminuição da pena e a impunidade, a depender da discricionariedade do magistrado.
Por se tratar de um instituto ainda recente no ordenamento jurídico processual e de extrema
relevância, tendo em vista o cenário atual da ineficiência do sistema jurídico-penal brasileiro, é
necessário o estudo de algumas questões controversas no instituto da Delação Premiada, especialmente
a partir da lei 12.850/13.

294 Pós graduanda em Direito Público pela Esmafe. Graduada em Direito pela Unicruz (2018). E-mail: raquelsouza.escritorio@
gmail.com.
295 Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Metropolitana. Graduada no Curso de Direito pela
Unicruz (2019). E-mail: daitans@hotmail.com.    

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Com isso, por se tratar de um instituto importado do sistema anglo-americano, cuja vertente é
o Common Law, é necessário investigar se suas medidas se adaptam ao sistema brasileiro de justiça,
cuja vertente é o Civil Law, que possui uma tradição jurídica romano-germânica.

1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O regime político é a forma pela qual o Estado exerce seu poder sobre a sociedade, e esta forma
adotado pelo Brasil é a democracia, cujo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Em uma
noção clássica, é o governo do povo, pelo povo e para o povo, em que é uma forma de governo que
não é governada pela totalidade do povo, mas sim por manifestação eleitoral do maior número de
cidadãos em pleno gozo dos seus direitos políticos.
A concepção de democracia como um governo do povo traz à luz uma Carta Constitucional
que disciplina direitos fundamentais e sociais. Surgindo assim o Judiciário, onde o acesso à justiça
assume um papel fundamental para o resgate das promessas da modernidade contempladas no texto
constitucional (STRECK, 2018).
Tem-se o conceito de direitos sociais na doutrina de Alexandre de Moraes (2009, p. 195):

Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras


liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por
finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da
igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV,
da Constituição Federal.

Assim, analisa-se que os direitos fundamentais possui uma íntima ligação com o Estado Social de
Direito, e como afirma Canotilho (2003, p. 93): “O Estado Constitucional, para ser um estado com as
qualidades identificadas pelo constitucionalismo moderno, deve ser um Estado de direito democrático.
Eis aqui as duas grandes qualidades do Estado constitucional: Estado de direito e Estado democrático”.
O Estado de direito está consagrado na afirmação do princípio da legalidade como meio limitador do
poder, por isso Canotilho (2003, p. 90) afirma que “o estado constitucional é uma tecnologia política de equi-
líbrio político-social”, visto que a legislação objetiva equilibrar o poder da atividade político-estatal visando
o interesse do povo, obedecendo os direitos fundamentais bem descritos no ordenamento constitucional.
A consagração do Estado de direito ocorreu sob a influência da filosofia política liberal,
institucionalizada com a Revolução Francesa em 1789, cujo movimento político-social teve influência
direta do jusnaturalista Rousseau e teve a virtude de dar universalidade aos seus princípios, os quais
foram expressos na declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DALLARI, 1998).
Nesse sentido, Canotilho (2003, p. 97-98) evidencia que:

O Estado de direito é um Estado liberal no seu verdadeiro sentido. Limita-se à defesa da ordem
e segurança públicas, remetendo-se os domínios econômicos e sociais para os mecanismos de
liberdade individual e da liberdade de concorrência. Neste contexto, os direitos fundamentais
liberais decorriam não tanto de uma declaração revolucionária de direitos, mas do respeito de
uma esfera de liberdade individual. Compreende-se, por isso, que os dois direitos fundamentais –
liberdade e propriedade – só pudessem sofrer intervenções autoritárias por parte da administração
quando tal fosse permitido por uma lei aprovada ela representação popular. [...] O Estado
constitucional é, assim, e em primeiro lugar, o Estado com uma constituição limitadora do poder
através do império da lei. As ideias do “governo de leis e não de homens”, de “Estado submetido
ao direito”, de “constituição como vinculação jurídica do poder”.

Conforme afirma o teórico Alexandre Morais da Rosa (2013), no campo do Direito Penal, o
manejo do poder no Estado Democrático de Direito deve se dar de maneira controlada, com o
fim de evitar a arbitrariedade dos eventuais indivíduos investidos no exercício do poder Estatal.
Desta forma, para que as sanções possam se legitimar democraticamente, precisam respeitar os
Direitos Fundamentais, que possuem como características a indisponibilidade, inalienabilidade,
imprescritibilidade, inviolabilidade, intransigibilidade e personalíssimos.
Partindo do modelo do Estado de Direito, particularmente no que respeita à gestão das relações entre
o Poder Público e o particular, é necessário analisar os limites para a contenção da nascente e crescente

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

liberdade judiciária, do ponto de vista específico do Direito Penal e do Processo Penal (OLIVEIRA, 2017).
Especialmente no que tange ao recente instituto da colaboração premiada no ordenamento jurídico
penal brasileiro, o qual trás a tona discussões polêmicas sobre o risco de afetar princípios fundamentais
legitimantes do sistema penal e processual penal positivados pela Constituição Federal de 1988.

2 CONCEITO DE COLABORAÇÃO PREMIADA

Inicialmente, a colaboração premiada é uma espécie de direito premial que pode ser conceituada
como uma técnica especial de investigação por meio do qual o coautor e/ou partícipe da infração
penal, além de confessar seu envolvimento no fato delituoso, fornece aos órgãos responsáveis
pela persecução penal informações objetivamente eficazes para a consecução de um dos objetivos
previstos em lei, recebendo, em contrapartida, determinado benefício legal em sua pena (LIMA, 2017).
Nesse sentido, na jurisprudência, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2007, on-line)
aplicou no julgamento do Habeas Corpus 90.962 um conceito para a instituição da colaboração premiada da
seguinte maneira: “o instituto da delação premiada consiste no ato do acusado que, admitindo a participação
no delito, fornece às autoridades informações eficazes, capazes de contribuir para a resolução do crime”.
Ou seja, o instituto da colaboração premiada é um meio de obtenção de provas que tem como
objetivo o combate aos crimes praticados em quadrilhas ou organizações criminosas, buscando a
reconstrução da história narrada pelo colaborador.
Como atualmente o instituto é disciplinado pela lei que dispõe sobre o combate ao crime organizado,
com isso, importa dizer que o método é aplicável apenas nos casos em que o delito é praticado no âmbito
da organização criminosa. A lei mais recente que trata sobre o conceito de organização criminosa é a
própria Lei nº 12.850/2013 (Lei sobre Organizações Criminosas – LOC), em seu §1º, art. 1º296. 
São requisitos para que se caracterize a criminalidade organizada, segundo Vicente Greco Filho
(2014, p. 12):

A) Associação (reunião com animo associativo, que e diferente de simples concurso de agentes)
de quatro ou mais pessoas.
B) estrutura ordenada que se caracteriza pela divisão de tarefas ainda que informalmente.
C) O fim de obtenção de vantagem de qualquer natureza (portanto, não apenas a econômica)
mediante a prática de crimes (excluídas as contravenções).
D) Crimes punidos, na pena máxima, com mais de quatro ou que os crimes tenham caráter
transnacional, independentemente da quantidade da pena.

Nestes termos, é necessário introduzir um conceito doutrinário do instituto processual penal


posto em pauta. Portanto, Lima (2017, p. 759) classifica o instituto da Delação Premiada como uma
espécie do direito premial:

[...] a colaboração premida pode ser conceituada como uma técnica especial de investigação por meio da
qual o coautor e/ou partícipe da infração penal, além de confessar seu envolvimento no fato delituoso,
fornece aos órgãos responsáveis pela persecução penal informações objetivamente eficazes para a
consecução de um dos objetivos previstos em lei, recebendo, em contrapartida, determinado prêmio legal.

Em contrapartida, o criminoso colabora com os órgãos de persecução penal com o objetivo de


receber benefícios na aplicação da sua eventual pena, conforme previsto no art. 4º da Lei n. 12.850/2013:

Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3
(dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que
tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde
que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações
penais por eles praticadas;

296 Art. 1º, §1º da Lei 12.850/2013: Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas es-
truturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou
indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superio-
res a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;


III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela
organização criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

É importante frisar que o método em tela iniciou um processo de introdução na legislação


interna brasileira por motivo dos diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário,
sendo possível afirmar uma compatibilidade entre os tratados internacionais assinados pelo Brasil e
a ordem constitucional vigente.

3 PREVISÃO DO INSTITUTO DA COLABORAÇÃO PREMIADA NO SISTEMA INTERNACIONAL DE LEIS

Para analisar se o instituto em tese possui compatibilidade com o Estado Democrático de Direito
brasileiro, é necessário averiguar os tratados internacionais assinados pelo Estado Brasileiro e que
prevêem a Delação Premiada como instituto legal e eficaz, visto que estes tratados possuem hierarquia
inferior à Constituição Federal, ou seja, em tese, estes tratados internacionais estão compatíveis com
o sistema constitucional vigente.
O Brasil é signatário de Convenções Internacionais que recomendam a medida como meio de
formação de provas, reconhecendo a sua compatibilidade com as ordens constitucionais dos diferentes
Estados signatários. A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,
comumente conhecida como Convenção do Palermo, foi adotada na Assembleia da Organização das
Nações Unidas (ONU), no mês de novembro do ano de 2000, na cidade de Nova Iorque.
A Convenção do Palermo foi promulgada no Brasil, apenas quatro anos depois, pelo Decreto nº
5.015, de 12 de março de 2004. Para fins de colaboração premiada, o tratado internacional autoriza
também a celebração de acordos de cooperação jurídica entre diferentes Estados Partes, como na
hipótese do delator estar em um país e dispuser de informações relevantes às investigações criminais
realizadas em outro país297.
A Convenção de Mérida, também com força de lei ordinária, pois foi internalizado pelo Decreto
nº 5.687/06, constitui outro tratado internacional firmado pelo Estado Brasileiro que prevê em seu
artigo 37.2 trata da “Cooperação com as autoridades encarregadas de fazer cumprir a lei”.
Note-se que o Estado brasileiro celebrou estes tratados internacionais em 2004 e 2006, no
entanto, desde a década de 90 já ocorria o fenômeno de inserção da colaboração premiada no
ordenamento jurídico pátrio, os primeiros dispositivos legais que trataram da colaboração premiada
no Brasil, com espécies de benefícios concedidos a colaboradores, são os seguintes: a) Lei 8.072/90,
art. 8°, parágrafo único; b) CP, art. 159, § 4°; c) revogada Lei n° 9.034/95, art. 6°; d) Lei n° 7.492/86,
art. 25, § 2°; e) Lei n° 8.137/90, art. 16, parágrafo único. Estes dispositivos legais variam apenas
quanto ao objetivo do instituto, bem como quanto aos benefícios concedidos ao delator (LIMA, 2017).
Apesar de já existir a Delação Premiada antes da Lei nº 12.850/2013 (Lei sobre Organizações
Criminosas – LOC), a legislação tratava somente da figura de um benefício ao coautor que contribuísse
com a persecução penal, legislando de forma esparsa e sem maior uniformidade, o que gerava algumas
dúvidas em relação a sua aplicabilidade.
Com o advento da lei que disciplina sobre os crimes organizados, o instituto da delação premiada
foi disciplinada de maneira pormenorizada, possuindo, por fim, procedimento próprio. Com a novatio
legis, além de prever regras cristalinas sobre a sua aplicação, possui um especial cuidado para a
preservação dos direitos e garantias do delator.
No entanto, por se tratar de um instituto importado do sistema anglo-americano é necessário
analisar se suas medidas se adaptam ao sistema brasileiro de justiça, além de tratar de assuntos
controversos enfrentados pela doutrina, tendo em vista que a Justiça negocial, além de ser uma

297 5. Quando uma das pessoas referidas no parágrafo 1 do presente Artigo se encontre num Estado Parte e possa prestar
uma cooperação substancial às autoridades competentes de outro Estado Parte, os Estados Partes em questão poderão
considerar a celebração de acordos, em conformidade com o seu direito interno, relativos à eventual concessão, pelo outro
Estado Parte, do tratamento descrito nos parágrafos 2 e 3 do presente Artigo.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

novidade no ordenamento jurídico brasileiro, traz ao procedimento criminal uma figura de relativização
de garantias fundamentais.

4 A COLABORAÇÃO PREMIADA E A GARANTIA FUNDAMENTAL AO SILÊNCIO

É inegável a relevância que a delação premiada possui no combate ao crime organizado, até
porque a complexidade das organizações criminosas só veio a ser do conhecimento dos órgãos
públicos com essa comunicação com as pessoas pertencentes dessas organizações.
No entanto, o recente instituto vem sendo alvo de duras críticas quanto à necessária mitigação
de alguns direitos fundamentais na aplicação do seu procedimento, como o direito ao silêncio e o
direito de não se autoincriminar, havendo um questionamento quanto à possibilidade da colaboração
premiada ser um método incompatível com o Estado Democrático de Direito.
A LOC versa sobre o procedimento a ser seguido para a elaboração do acordo de colaboração
premiada e prescreve em seu §14, art. 4º (BRASIL, Lei 12.850/13) que “nos depoimentos que prestar,
o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao
compromisso legal de dizer a verdade”.
O direito ao silêncio consta na Convenção Internacional de Direitos Humanos de 1969, assim
como no Código de Processo Penal – CPP, em seu art. 186, caput, que assegura ao acusado o direito
de permanecer em silêncio e não responder a perguntas a ele endereçadas, sem que se possa extrair
qualquer valoração em prejuízo da sua defesa.
Ou seja, é possível acusar a violação ao direito de permanecer em silêncio, visto que o acusado
leva aos órgãos da persecução penal informações relevantes às investigações, importando em confissão
do crime, e em contrapartida, abrindo-se ao direito de receber benefícios que será aferido pelo juízo.
O estudioso Vasconcelos (2017, p. 264) sustenta a inconstitucionalidade do referido parágrafo,
pois “não pode lei infraconstitucional excepcionar garantia fundamental ao silêncio; onde a Constituição
não excepcionou, o legislador não pode criar exceção”.
Uma vez que configura um direito fundamental que possui, justamente, o objetivo de limitar a
discriscionariedade da atuação estatal, Bitencourt (2014, p.3) também afirma que o referido dispositivo
é passível de inconstitucionalidade:

Uma vez iniciado o processo, sendo o colaborador, induvidosamente, parte no processo, goza
de pleno direito ao silêncio. A lei incorrendo em grave inconstitucionalidade estabelece em seu
parágrafo 14º do artigo 4º, que o colaborador renunciará — utiliza-se voz cogente — ao direito ao
silêncio, na presença de seu defensor. Ora, o dispositivo legislativo é claramente inconstitucional
enquanto obriga (ou condiciona, o que dá no mesmo) o réu a abrir mão de um direito seu
consagrado não apenas na constituição, como em todos os pactos internacionais de direitos
humanos, dos quais o Brasil é signatário. Afinal, o réu simplesmente não está obrigado a fazer
prova contra si em circunstância alguma, mesmo a pretexto de “colaborar” com a Justiça, ou seja,
na condição de colaborador. Afinal, lhe interessa muito mais (lhe é muito mais benéfico) uma
sentença absolutória, que a aplicação dos benefícios decorrentes da colaboração.

No entanto, de forma a realizar uma interpretação compatível com os preceitos fundamentais


sobre possível violação de direito fundamental na elaboração do acordo de colaboração premiada,
Borges de Mendonça (apud, VASCONCELOS, 2017, p. 265), afirma que “o colaborador renuncia a
exercer – não é renúncia permanente – o seu direito de ficar em silêncio”. Dessa forma:

Tal posição parece ter sido adotada pelo Supremo Tribunal Federal - STF, pois, em decisão
homologatória de acordo recente no âmbito da operação Lava Jato, o Ministro Teori Zavascki
determinou que: “(...) o conjunto das cláusulas do acordo guarda harmonia com a Constituição e
as leis, com exceção da expressão ‘renúncia’ à garantia contra a autoincriminação e ao direito ao
silêncio, constante no título VI do acordo, no que possa ser interpretado como renúncia a direitos e
garantias fundamentais, devendo ser interpretada com a adição restritiva ‘ao exercício’ da garantia
e do direito respectivos no âmbito do acordo e para seus fins” (VASCONCELOS, 2017, p. 265).

Mendonça (p. 10, 2016) defende a coerência da delação premiada com o sistema atual brasileiro, afir-
mando sua compatibilidade tanto com o princípio constitucional da ampla defesa quanto do direito ao silêncio:

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A colaboração premiada é uma estratégia defensiva, que deflui diretamente dos princípios da ampla
defesa e da autonomia da vontade, ambos com estatura constitucional. Isso porque, ao celebrar
o acordo de colaboração premiada, o imputado, embora se obrigue a narrar fatos e apresentar
provas que irão incriminá-lo e a terceiros, receberá benefícios por esse acordo, que variarão,
conforme será visto, desde a imunidade total à acusação ou o perdão judicial até a diminuição
da pena ou sua substituição. É, assim, uma estratégia de defesa, visando obter benefícios legais,
como a melhor opção a ser adotada pelo imputado naquele caso concreto. É claramente uma
escolha racional, à luz de um cálculo utilitarista de custos e benefícios.

No entanto, na visão do professor Renato Brasileiro de Lima (2017, p. 762), em sua obra, nega
qualquer violação ao princípio de permanecer em silêncio, com um argumento inovador:

Ao delatar, o indivíduo assume o compromisso de ser fonte de prova para a acusação, sendo
assim, abre mão do direito de permanecer em silêncio (nemo tenetur se detegere), não tendo o
que se falar em violação a este princípio. Porém, desde que não haja nenhuma espécie de coação
para obrigá-lo a cooperar, com a prévia advertência quanto ao direito ao silêncio (CF, art. 5º,
LXIII)298, não há a violação ao direito de não produzir prova contra a si mesmo. Nessas condições,
cabe ao próprio indivíduo decidir livre e assistido pela defesa técnica, se colabora (ou não) com os
órgãos estatais responsáveis pela persecução penal.

Desta forma, Brasileiro de Lima afirma que a nomenclatura escolhida pela lei esta equivocada, pois o
acusado realiza uma mera escolha pelo não exercício do seu direito de permanecer em silêncio, da mesma
forma que o faz quando escolhe confessar o crime, não havendo o que falar em renúncia deste direito,
visto que é um direito fundamental configurando, assim, em um direito irrenunciável e indisponível.

5 COLABORAÇÃO PREMIADA E O DIREITO FUNDAMENTAL DE NÃO SE AUTOINCRIMINAR

O princípio da não autoincriminação está previsto na Convenção Internacional de Direitos Humanos


de 1969 e no art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal Brasileira de 1988, o qual dispõe “o preso será
informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado [...]”, ou seja, o dispositivo afirma que
o indivíduo não é obrigado a produzir provas contra si mesmo, sendo permitido manter-se em silêncio.
Este princípio é uma decorrência do Estado Democrático de Direito e da sua estrutura penal
acusatória, dessa forma:

A doutrina destaca o princípio nemo tenetur como verdadeiro “divisor de águas” entre o processo
de estrutura acusatória daquele de estrutura inquisitória, já que somente se considera o indivíduo
com sujeito processual quando se reconhece ao mesmo o direito de manifestar-se, se e como
desejar. A pessoa, que no processo inquisitório era visto como mero objeto de prova, portanto
sujeito a todo tipo de ação pensável para extração da verdade, demonstrada através da confissão,
considerada a rainha das provas, passa a ser visto como sujeito do processo, titular de direitos
inerentes a sua condição humana, o que se dá no processo acusatório (VIDAL, 2012, p. 162-163).

Além disso, como forma de assegurar o princípio a não autoincriminação, a própria legislação
prevê em seu §10, do art. 4º299, da Lei nº 12.850/2013 sobre a possibilidade de o delator se retratar
no caso em que o acusado concluir que seu depoimento foi autoincriminatório, deixando de vincular
a declaração realizada ao Juízo.
Nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima (2017, p. 523) explica:

Na hipótese de as partes se retratarem do acordo (v.g., o colaborador altera seu depoimento


em juízo), as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas
exclusivamente em seu desfavor, embora possam ser úteis, na medida de sua veracidade, contra os
demais agentes, que não podem ser beneficiados pelo exercício do direito ao silêncio titularizado
pelo colaborador.

298 LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assis-
tência da família e de advogado;
299 §10. As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador
não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Não havendo qualquer restrição ou condicionamento na lei, entende-se que, caso haja
arrependimento do acusado, a delação pode ser retratada a qualquer momento e sem necessidade
sequer de se justificar, por mero ato dispositivo do delator, segundo Badaró (2015, p. 108):

Ainda quanto à retratação, como a delação contém uma confissão do delator, a admissão da retratação
da delação, pelo menos em relação à autoincriminação do delator, implica em regra especial no caso
de crime organizado, em relação ao art. 200 do CPP300. Isso porque, a ressalva de que o juiz poderia
formar seu convencimento com base na confissão retratada, implicava que ela ainda assim poderia ser
valorada de forma negativa ao acusado, o que atualmente está vedado a Lei nº 12.850/2013.

O colaborador pode se retratar da proposta, dessa forma, se arrependendo dela, sem a necessidade
de justificar seu ato, e, como afirma Fonseca (2017), impossibilitando o juízo da utilização das provas já
produzidas em seu desfavor por meio dos depoimentos no âmbito do instituto da colaboração premiada.
Assim, na visão de Fonseca (2017, p. 131) “ao aceitar firmar o acordo de colaboração premiada,
o acusado mantém direitos e garantias constitucionais, porém, por se tratar de justiça consensuada,
é certo que o réu colaborador renuncia determinados direitos visando a obtenção de outros”.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo, concluiu-se pela existência da relativização dos direitos fundamentais ao
silêncio e a não autoincriminação na aplicação do procedimento do instituto colaboração premiada.
O direito ao silêncio e da não autoincriminação são direitos fundamentais legitimantes do Estado
Democrático de Direito, visto que são garantias fundamentais que limitam a atuação estatal e visam
proteger a dignidade da pessoa humana.
No entanto, o instituto da colaboração premiada está previsto em diversos tratados internacio-
nais que prevêem o método como meio de obtenção de prova dos quais o Brasil é signatário, e como
os tratados internacionais possuem hierarquia inferior à Constituição Federal, presume-se sua com-
patibilidade com o sistema constitucional vigente.
É possível constatar que o instituto da colaboração é uma opção de escolha do criminoso, sendo
uma estratégia de defesa legal para as acusações direcionadas a ele. Como o instituto configura
uma espécie de justiça negocial e resulta de uma escolha voluntária do criminoso, a conseqüência
desta hipótese é a relativização do direito fundamental ao silêncio e do direito fundamental da não
autoincriminação, tendo em vista os benefícios que ele receberá como contrapartida.
Ainda, para assegurar o princípio da não autoincriminação, a Lei n. 12.850/2013 prevê a possibi-
lidade da retratação da colaboração premiada nos casos em que o depoimento foi autoincriminatorio.
Por fim, conclui-se que a colaboração premiada está prevista em diversos tratados internacionais
dos quais o Brasil é signatário e que o instituto trata-se de justiça consensuada e compatível com o
Estado Democrático de Direito.

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Editora Saraiva, 2014.

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300 Art. 200. A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das
provas em conjunto.

640
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS A PACIENTES SUICIDAS:


A NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS
DE PREVENÇÃO AO SUICÍDIO

Rodrigo Tonel301
Janaína Machado Sturza302

RESUMO: A saúde é o completo bem-estar físico, mental e social - não apenas ausência de doenças.
O suicídio enquanto acometimento físico e mental, não deve ser tratado somente com hospitalização
e medicalização - é preciso um olhar social e jurídico através de políticas públicas. Este artigo objetiva
uma reflexão sobre o direito à saúde mental, frente a precariedade no atendimento de suicidas,
destacando a necessidade de políticas públicas de prevenção. Através de um estudo bibliográfico,
tendo como método o hipotético dedutivo, verificou-se como essenciais políticas públicas estratégicas
de prevenção ao suicídio e, consequentemente, de proteção e preservação da vida humana.

Palavras-chave: Direito à saúde. Prevenção; Políticas públicas; Saúde mental; Suicídio.

INTRODUÇÃO

No presente artigo propomos uma abordagem acerca do fenômeno do suicídio e a dicotomia


entre o direito à saúde mental e a negligência ao atendimento de pacientes que apresentam compor-
tamento suicida nos serviços de emergência e, a ausência (ou insuficiência) de políticas públicas de
saúde voltadas a prevenção do suicídio.
Muitos indivíduos acometidos por doenças mentais e que apresentam comportamento suicida,
quando buscam auxílio nos serviços de emergência, são em algumas ocasiões discriminados pelos
próprios profissionais de saúde e, em outras, não recebem o devido atendimento, cenários que configuram,
portanto, a inobservância do direito à saúde mental dos cidadãos e, em certos momentos, também,
violações de direitos humanos – destacando a precariedade na oferta das políticas públicas de prevenção.
Assim, discutimos a possibilidade de formulação e implementação de políticas públicas de saú-
de voltadas a prevenção do fenômeno do suicídio, levando em consideração os diferentes contextos
socioculturais. Entendemos que, as políticas públicas, aliadas as medidas já existentes, podem servir
de instrumentos não só para a redução da ocorrência de suicídios em nossa sociedade contemporâ-
nea, como também podem permitir uma compreensão mais ampla e melhor esclarecida, acerca do
referido fenômeno, desmistificando-o e descontruindo preconceitos.
Com isso, objetivamos analisar e propor uma reflexão sobre o direito à saúde mental,
especialmente frente a precariedade no atendimento de pacientes suicidas, além de apontar para a
necessidade de políticas públicas bem sucedidas, voltadas para a prevenção do fenômeno do suicídio.
A metodologia que empregamos nesta pesquisa é do tipo exploratória, tendo como base o método
hipotético-dedutivo, ou seja, baseado na análise bibliográfica, bem como a utilização e acesso a todo
o tipo de materiais e instrumentos disponíveis.
Por fim, a discussão que propomos encontra sua relevância quando confrontada dentro dos
ramos do direito fundamental à saúde, direito à saúde mental e políticas públicas. Por consequência,
a presente pesquisa também traz contribuições sociais, na medida em que apontamentos importantes

301 Pesquisador. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos pela Uni-
versidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, com bolsa CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa
Biopolítica e Direitos Humanos. E-mail: tonelr@yahoo.com
302 Pós doutora em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISI-
NOS. Doutora em Direito pela Escola Internacional de Doutorado em Direito Tullio Ascarelli, da Universidade de Roma Tre
- Itália. E-mail: janasturza@hotmail.com

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

são destacados acerca de um fenômeno que atinge a toda a sociedade.

1 O FENÔMENO DO SUICÍDIO COMO UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA

Na definição proposta por Durkheim (2011, p. 14, grifo do autor), “[...] chama-se suicídio todo
o caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela
própria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado”. Em outras palavras, podemos afirmar
que o suicídio é a abreviação da existência a partir de ação ou omissão deliberada e voluntária do
próprio indivíduo tendo consciência do resultado morte.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 800.000 mil óbitos por suicídio acontecem
todos os anos no mundo. Em um cálculo matemático, isso equivaleria a um suicídio a cada 40 segundos.
A referida fonte ainda sustenta que a cada suicídio consumado, outros vinte foram tentados. O suicídio
pode ocorrer em qualquer momento da vida, todavia, está em segundo lugar no ranking das causas de
morte entre jovens de 15 a 29 anos no mundo (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020).
Compreendemos que o suicídio é um fenômeno de abrangência interdisciplinar, podendo ser
originado a partir de múltiplas causas. Todavia, em nossa sociedade contemporânea, a grande maioria
dos suicídios que vem ocorrendo são, essencialmente, provenientes de algum tipo de doença mental,
sendo a depressão considerada a principal doença associada ao suicídio (NETTO, 2013). Por conta
disso, o suicídio tem se tornado um problema de saúde pública no mundo todo.
Sabemos que a saúde é um direito humano estabelecido na Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, art. 25, item 1, onde podemos observar que “toda a pessoa tem direito a um nível
de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à
alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica [...]”.
No Brasil, na Constituição Federal de 1988, a saúde é um direito fundamental social disposto no
art. 6º, e arts. 196 a 200. Destacamos aqui o art. 196, onde está expresso que: “A saúde é direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”.
De igual modo, o direito à saúde mental também é amparado não só no viés constitucional, mas
infraconstitucional, através da lei nº. 10. 216/2001 que, especificamente, dispõe sobre os direitos das
pessoas com transtornos mentais como o respeito, a proteção contra abusos, tratamento em ambiente
terapêutico, acesso aos meios de comunicação disponíveis, garantia à presença médica, entre outros
(MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO, 2012).
Deste modo, a perspectiva que veio a partir da Constituição da Organização Mundial da Saúde
(1946, p.1, tradução nossa), é uma definição mais ampla de saúde, e se dá da seguinte maneira: “A
saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença
ou enfermidade”. Podemos vislumbrar uma definição mais ampla de saúde do que presenciamos no
senso comum. Essa definição, muito além de incluir a ideia de combate e tratamento a doenças que
comprometam o indivíduo física e mentalmente, também engloba o aspecto social. Assim, “[...] por ter
uma amplitude maior, perpassa outras esferas como a qualidade de vida do indivíduo, a alimentação,
a moradia, o trabalho, o ambiente em que vive etc.” (STURZA; TONEL, 2019, p. 83).
Neste sentido, analisemos a (in)efetivação do direito à saúde mental no cenário brasileiro
aos pacientes suicidas que buscam auxílio nos prontos socorros e, igualmente, trazemos algumas
situações que vem a evidenciar a negligência do adequado atendimento o que, consequentemente,
configura violações de direitos humanos.

2 VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS A PACIENTES SUICIDAS E A NÃO EFETIVAÇÃO DO


DIREITO À SAÚDE MENTAL

As situações de vulnerabilidade que geralmente potencializam o risco de suicídio podem ser decorrentes
de distúrbios mentais, traumas, violências, tentativas de suicídio anteriores, doenças degenerativas ou

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

incuráveis, perda de ente querido, entre tantas outras. Destacamos, neste contexto, adicionalmente, fatores
de risco associados ao indevido atendimento e a falta assistência nas instituições de saúde, evidenciando
problemas não só técnicos, como também, éticos. Conforme relata Marcolan (2018, p. 2481),

verificamos ao longo de nossa vivência profissional a atenção prejudicial dada comumente


por médicos e profissionais da enfermagem ao indivíduo que tentou se matar. Punição, falas
preconceituosas, ameaças, julgamento moral e agressão verbal foram atitudes comuns vistas em
prontos-socorros e outras unidades de saúde – infelizmente, vindas também de profissionais de
saúde mental, que deveriam ter melhor entendimento do que ocorre.

Consequentemente, podemos concluir que, isso gera receio e medo nos indivíduos que
apresentam comportamentos suicidas, ou mesmo, os sobreviventes de suicídio, pois esse tipo de
atendimento agressivo por parte dos profissionais da saúde, além de ter o efeito de revelar o quanto
o fenômeno ainda é tabu em nossa sociedade e atinge até mesmo aquelas pessoas que, em tese,
esperaríamos que fossem mais esclarecidas, e, todavia, quando confrontadas com casos práticos, ao
invés de prestarem a devida assistência, acabam optando por seus conjuntos subjetivos de crenças
pessoais, demonstrando desconhecer a complexidade do fenômeno. Isso comprova o quanto é
necessário preparação e qualificação dos profissionais da saúde, para lidar com os comportamentos
suicidas durante atendimentos emergenciais, dentro de hospitais e clínicas.
Outro absurdo diz respeito a desconsideração das razões que levaram determinado indivíduo
a tentar se matar. Em algumas situações, muitos profissionais da saúde só prestam séria assistência
após várias tentativas de suicídios ou os meios utilizados eram considerados letais. Para muitos deles,
esses são os dois fatores predominantes para averiguar se o indivíduo estava legitimamente impelido
a se matar ou só queria chamar a atenção (MARCOLAN, 2018).
Percebemos, com isso, que os pacientes que apresentam risco de suicídios, além de não receberem a
atenção e compreensão devida por falta de qualificação dos profissionais da saúde, também são sujeitos a
julgamentos discriminatórios, em alguns casos, seus direitos são desrespeitados e violados. Destacamos
certa tendência por parte dos profissionais de saúde em apresentarem comportamentos preconceituosos
àqueles indivíduos que apresentam comportamento auto agressivo e buscam o devido auxílio e ajuda.
Atitudes negativas que apenas potencializam os sentimentos de raiva, medo, angústia, tristeza, decepção
em indivíduos que sofrem de determinadas doenças mentais e aumentam as chances de morte voluntária.
Isso implica evidente violação aos direitos humanos e ao direito à saúde mental. Ademais,

por razões culturais, o suicídio tem sido entendido como um ato imoral, tabu, pecado, ato de
desaprovação pela maioria das pessoas, o qual, consequentemente, é responsável por não dar a
esse fenômeno a devida atenção e, muitas vezes, ser dispensado de uma discussão clara. No senso
comum, as pessoas que cometem suicídio ou tentam suicídio são erroneamente interpretadas
como insanas, loucas, dementes, e isso é considerado um sintoma de doenças mentais e, portanto,
precisam ser hospitalizadas e tratadas por psiquiatras. Mesmo assim, o próprio fato de contemplar
o suicídio é evidência de que o indivíduo é louco. (STURZA; TONEL, 2019, p. 229, tradução nossa).

Neste contexto, trazemos em tela um estudo realizado por Vidal e Gontijo (2013), na cidade de
Barbacena, Estado de Minas Gerais, que teve por objetivo investigar o atendimento de pacientes que
sofriam de doenças mentais e sua recepção nos serviços de emergência após tentativa de suicídio.
O referido estudo, através de uma abordagem metodológica descritiva e qualitativa, contou com a
participação de 28 mulheres entrevistadas, que buscaram os serviços de emergência e o respectivo
acolhimento advindo dos profissionais de saúde.
O estudo evidenciou a falta de capacidade dos profissionais de saúde que atuam nos serviços
de emergência de Barbacena, em lidar com situações de comportamento suicida. Todas as mulheres
entrevistas se dirigiram aos prontos atendimentos para buscarem ajuda. Em contrapartida, algumas
equipes de saúde ministraram medicações, outras apenas insurgiram comentários negativos e
aparentaram não dar muita atenção e, outras sugeriram as pacientes que agendassem consultas
com psiquiatras ou psicólogos. De acordo com Vidal e Gontijo (2013, p. 111), foi possível averiguar
que “[...] algumas tentativas de suicídio são vistas como manifestações histéricas e essa percepção
desencadeia atitudes hostis e desumanizadas por parte da equipe de saúde, particularmente quando
o risco de vida é mínimo ou nulo.”

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Em outra situação, conforme aponta Tavares (2013), para o relato de um médico que prescreveu a
administração de uma lavagem gástrica desnecessária em um paciente que apresentava comportamento
suicida, como uma forma evidentemente punitiva frente a tendência do paciente a um ato considerado
inconcebível aos olhos do médico. Uma situação como essa, indubitavelmente, nos revela uma
verdadeira catástrofe em termos de mal preparo, insensibilidade e incompetência de um profissional da
saúde, além da clara violação de direitos humanos. Nas palavras de Tavares (2013, p. 55),

[...] o sarcasmo transmite o conteúdo agressivo da ação. Isto é, uma atuação claramente perversa e,
no contexto dos serviços de saúde, comunica ao paciente que ali não é o lugar efetivo de se buscar
apoio para o seu sofrimento, que ninguém ali deseja ou é capaz de compreendê-lo. Considerando-
se que essas pessoas já têm uma história de múltiplas relações de ajuda fracassadas, ações desse
tipo aumentam o sentimento de desamparo e estão relacionadas a novas tentativas, muitas vezes
mais graves, e apontam para a direção oposta ao ideal de eficácia terapêutica.

Portanto, todo aquele indivíduo que se identifica com comportamento suicida e busca auxílio
em determinados prontos socorros no Brasil, corre risco de ser considerado um ser indesejado. O
atendimento é feito de forma morosa, sendo que, frequentemente, são deixados nas filas de espera.
A empatia é rara e tênue. Alguns profissionais de saúde demonstram irritação, rejeição e aversão a
todo aquele que cogita abreviar sua existência. Outros afirmam que os prontos socorros são locais
para tratarem e cuidarem de pessoas que querem viver, e que todo aquele que atenta contra a própria
vida só assim age por excesso de ócio e falta de ocupação. Assim, podemos comprovar a carência
técnica no atendimento ao indivíduo que apresenta comportamento suicida, falta de equipamentos
e profissionais em nível de qualificação e competência necessários para prestar a devida assistência.
Compreendemos, no entanto, que os locais dedicados aos serviços de urgência e emergência
são ambientes que, invariavelmente, encontram-se sob contínua tensão, estresse e vigília, justamente
porque, a rápida e adequada intervenção em casos de emergência pode significar a diferença entre
vida e morte. O que podemos sorver do referido estudo é o fato de que, o fenômeno do suicídio não
se enquadra dentro da percepção psicológica e profissional dos profissionais da saúde como uma
questão de urgência e emergência, mas sim, uma questão que deve ser resolvida por especialistas,
negligenciando, consequentemente, a atenção e os esforços em prevenção e intervenção ao suicídio.
Não só no Brasil, mas ao redor do mundo, podemos verificar práticas e determinados tipos de
tratamento que desumanizam o paciente em risco de suicídio, realizadas, em muitos casos, pelos
próprios profissionais da saúde. Conforme aduz Albuquerque (2017, p. 41-42),

[...] verifica-se a adoção de tratamentos mais dolorosos, a negligência no cuidado, a falta de


alimentação do paciente e o excesso de medicação como meios usados por profissionais de saúde
para punir os pacientes que tentam suicídio, o que caracteriza violação ao seu direito de não ser
submetido a tratamento desumano ou degradante. A discriminação do “paciente suicida” é expressa
via discursos acusatórios e julgamentos morais relacionados ao ato. A discriminação do paciente
interfere negativamente nos cuidados em saúde. Manifestações expressas de preconceito, o emprego
de tom jocoso, a condenação moral e até mesmo o uso de termos injuriosos concorrem para a menor
adesão ao tratamento proposto, o aumento do sofrimento do paciente e do risco de nova tentativa.

Não podemos nos esquecer, contudo, que o suicídio não é um evento que ocorre de forma repentina,
mas sim, um evento previsível, que vem tomando forma com o passar do tempo através da ideação,
planejamento, tentativas até chegar à sua consumação. A fase da tentativa, no entanto, pode nos
indicar a exteriorização de um pedido de ajuda. Em outras palavras, para um indivíduo chegar até essa
fase, presumimos que ele já deve ter passado por um longo período de sofrimento, tentando resolver
os problemas que o afligem de diversas formas, porém, sem ter êxito. E, diante de sua impotência em
superar esses obstáculos, esse mesmo indivíduo tenta destruir sua existência, chamando a atenção
não só de pessoas que convivem ao seu redor, mas de certa forma, de toda a sociedade. Portanto,
entendemos que quando alguém chega a esse nível e se dirige a um pronto atendimento com o objetivo
de buscar ajuda, os profissionais de saúde deveriam fornecer todo o amparo e atenção necessários, e
não fazer piada da pessoa que já não tem mais forças, tampouco, esperanças em continuar vivendo.
Além disso, nos cursos de saúde em geral, sejam cursos técnicos ou graduações acadêmicas, não exis-
tem disciplinas que contemplam o estudo do suicídio dentro de suas grades curriculares. A superficialidade

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

na abordagem do tema e sua não inserção nessas áreas do conhecimento revela o reflexo de uma sociedade
que ainda não superou os tabus históricos, que vem desde a Idade Média e continuam a percorrer os dias
atuais. Tabus que coordenam e comandam o comportamento dos profissionais da saúde, prejudicando o
atendimento, a assistência e potencializando o preconceito e, por conseguinte, a ideação suicida. Tabus
que não permitem a discussão aberta em nossa sociedade contemporânea. Aliás, enquanto o tabu sobre o
fenômeno do suicídio imperar, seus efeitos, do mesmo modo, continuarão a operar em nossa sociedade.
A maioria dos cursos técnicos ou graduação nas áreas da saúde “[...] valoriza a formação pela
técnica, não priorizando a análise crítica reflexiva, a cidadania, a mudança do paradigma social, o
comprometimento com o SUS, a humanização e a integralidade da assistência.” (MARCOLAN, 2015, p.
2481). Podemos observar que esse fenômeno reflete não somente nas áreas da saúde, mas, de certa
forma, acaba atingindo quase todas as áreas do conhecimento, ou seja, a formação voltada para o viés
econômico e o mercado de trabalho, e não a responsabilidade de utilizar as habilidades e conhecimentos
adquiridos durante o período de formação para contribuir dentro da perspectiva social.
Importante notarmos que, em outros países, na tentativa de prevenir com mais eficiência as
mortes por suicídios, disciplinas são ofertadas em universidades, cursos e seminários são promovidos
com o intuito de fomentar as discussões, possibilitar e instigar o incremento de novas ideias. Aliás, a
suicidologia já vem se tornando um campo do saber em alguns países (MARCOLAN, 2018).
Diante disso, podemos destacar a relação cada vez mais intensa do comportamento suicida entre os
profissionais e estudantes das áreas da saúde. Neste contexto, atentamos para os acadêmicos em áreas
da saúde que revelam levar uma rotina de burnout durante todo o processo de formação. Marcolan (2018),
analisando o perfil suicida de alguns acadêmicos de um curso de enfermagem, elenca como principais
fatores instigadores ao suicídio, o excesso de atividades que ocasiona a redução de tempo dedicado a
atividades de lazer, recreação e socialização, o que, por conseguinte, acaba levando muitos estudantes a
contemplação da abreviação de suas existências. Para piorar, nos estágios práticas, o referido autor faz
menção a relação interpessoal inadequada entre os discentes e os docentes que supervisionam o estágio.
Muitos dos estudantes relataram falta de diálogo, humilhações e insensibilidade nas suas relações com os
supervisores docentes quando se dirigiam a estes para sanar alguma eventual dúvida.
Casos como este nos fazem refletir e repensar que tipo de formação profissional em saúde
queremos para a nossa sociedade? Uma formação que objetive meramente a obtenção de resultados
econômicos e que se baseie na competitividade, ou uma formação que possa trazer contribuições na
resolução dos problemas que assolam a sociedade?
Temos consciência de que no Brasil, a saúde e a educação estão sendo cada vez mais mercantilizadas
por interesses políticos, ideológicos e econômicos, não permitindo o completo desenvolvimento do SUS
e de maior atenção à saúde mental, inserção de disciplinas e cursos em suicidologia, e da implementação
de políticas públicas de saúde voltadas a prevenção ao suicídio. As consequências disso se traduzem
em termos de aumento do número de mortes por suicídio, preconceito e tabu.

3 POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO AO SUICÍDIO: UMA ALTERNATIVA VIÁVEL (?)

Na atual conjuntura política em que vivemos no Brasil, dentro do contexto da saúde mental, há apelos a
volta dos manicômios, eletrochoques, camisas de força, acorrentamento, tortura, medicação pesada, mortes,
violência etc. Para isso, basta analisarmos as propostas da Nota Técnica N. º 11/2019 (BRASIL, 2019), a qual,
pretende fazer alterações na Política Nacional de Saúde Mental que correm em detrimento a Lei n.º 10.216
de 2001, também conhecida por Lei Antimanicomial, que veio a abolir os manicômios, dispondo sobre
a proteção e preservação aos direitos daqueles indivíduos acometidos por transtornos mentais (BRASIL,
2001), objetivando limpar as ruas da cidade, ou seja, uma proposta estarrecedora e inconcebível.
Diante disso, o que podemos conjecturar, nas palavras de Guimarães e Rosa (2019), é uma tentativa
de remanicomialização do cuidado e atenção à saúde mental no Brasil, desconsiderando completamente
todo o processo histórico de reforma psiquiátrica, sinalizando para tendências neoliberais baseadas na
privatização e, consequentemente, desrespeitando e ferindo o direito constitucional fundamental à saúde.
A partir disso, Binsfeld e Sousa (2017) aduzem que, diante de tempos de loucura coletiva e da
tendência de repetir os atos bárbaros do passado, da selvageria pura, brutalidade e a perversidade,

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

imprescindível a necessidade de intensificar o diálogo entre saúde mental e direitos humanos.


Temos consciência das gigantescas violações de direitos humanos ocorridas na década de 1960,
no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, mais conhecido por Hospital Colônia, onde 60 mil
vidas foram ceifadas no período que o referido hospital esteve em atividade. O local ficou conhecido
pelo nome de Holocausto Brasileiro, por apresentar características semelhantes aquelas ocorridas nos
campos de concentração durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais (ARBEX, 2013).
Diante de todas as atrocidades ocorridas naquele local durante aquele período, o Brasil começou
a se preocupar mais com pessoas acometidas por doenças mentais. Com isso, nosso país começou a
adotar medidas em prol da preservação dos direitos mais mínimos a serem respeitados. A partir daí,
com a reforma psiquiátrica no Brasil se sucedeu, sendo marcada pela sua respectiva anuência com
a Declaração de Caracas de 1990, documento que desencadeou as reformas em atenção na saúde
mental nas Américas (DECLARAÇÃO DE CARACAS, 1990). Daí em diante, o Brasil passou a adotar
maior compromisso, respeito e atenção as questões de saúde mental.
Posteriormente, no ano de 2001, foi instituída a política Nacional de Saúde Mental, através da
Lei n.º 10.216, também conhecida como Lei Antimanicomial, isto é, uma ação do governo federal
na proteção e preservação dos direitos daquelas pessoas acometidas por doenças mentais oriundas
de causas diversas, incluindo dependentes de substâncias psicoativas, como são os casos mais
conhecidos como o uso de drogas e alcoolismo. De acordo com o art. 1º da referida lei, tais direitos
serão assegurados “[...] sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação
sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de
gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.” (BRASIL, 2001).
Um dos destaques desta lei foi a classificação apresentada no art. 6º, parágrafo único, incisos I,
II, III, das internações que se dividem, taxativamente, em três tipos, quais sejam, internação voluntária,
internação involuntária e, internação compulsória. A primeira, se supõe que seja dada com o consentimento
do paciente. A segunda, é feita a partir da solicitação de terceiros, podendo discordar com o consentimento
e vontade do paciente. A terceira, por fim, é aquela que é determinada pela justiça, na qual a vontade do
paciente é indiferente. Nesta última, preleciona o art. 9º que “a internação compulsória é determinada, de
acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança
do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.”
Posteriormente, tivemos ações mais práticas como é o caso da Resolução n.º 3.088 de 23 de dezembro
de 2011, com a instituição da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS – e sua respectiva ramificação para os
CAPS- Centros de Atenção Psicossocial - , que vem a dar amparo para os indivíduos que manifestam algum
tipo de sofrimento mental, assim como, adicionalmente, para aqueles com necessidades decorrentes do uso
de drogas e álcool (BRASIL, 2011). Em 2006, através da Portaria n.º 1.876, foram instituídas as diretrizes para
a prevenção do suicídio a serem implantadas por todas as unidades federadas, levando em consideração
o suicídio como um problema de saúde pública que atinge a toda a sociedade, causando impactos para as
famílias, locais de trabalho, escolas, entre outras, mas que pode ser prevenido (BRASIL, 2006).
Dentro dos objetivos elencados nos incisos do art. 2º, destacamos para o desenvolvimento
de estratégias de informação e comunicação para sensibilizar e conscientizar a sociedade de que o
fenômeno do suicídio é um problema de saúde pública, além de, desenvolver estratégias de promoção
de qualidade de vida, educação e recuperação da saúde.
Importante destacarmos que, recentemente, tivemos grande avanço na prevenção ao suicídio,
dentro do contexto brasileiro, através da promulgação da Lei nº 13.819, de 26 de abril de 2019,
que institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, cuja principal missão
é a necessidade atual de notificação compulsória tanto para os casos que configurem situações de
automutilação e suicídios, como também, a possibilidade de suas ocorrências. A notificação compulsória
está prevista no art. 6º, inciso I, onde preleciona que estabelecimentos de saúde públicos e privados
deverão notificar as autoridades sanitárias. Já, o inciso II do referido artigo, aduz que estabelecimentos
de ensino público e privado deverão comunicar ao conselho tutelar casos de automutilação ou suicídio.
O § 3º do referido artigo, esclarece acerca do caráter sigiloso da notificação (BRASIL, 2019).
Já, o art. 4º da referida lei, reforça a manutenção do serviço telefônico fornecido pelo Centro
de Valorização da Vida – CVV. Esse serviço telefônico é proveniente de uma associação civil que não
visa lucratividade, inicialmente, surgiu em São Paulo no ano de 1973. Essa associação civil, em linhas

647
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

gerais, “[...] presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para
todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato.” (CVV, 2019, n.p.).
O § 1º do referido artigo ainda carrega a afirmação de que as formas de comunicação serão
expandidas para além do serviço telefônico, ou seja, devido os avanços tecnológicos na área das
comunicações através da Internet e redes sociais, que podem ser facilmente acessadas por dispositivos
como smartphones, computadores, tablets etc. Assim, serão considerados os meios mais utilizados
pela população com a intenção de alcançar o maior número de pessoas possíveis, permitindo que
mais pessoas possam buscar ajuda caso necessitarem. Por este viés,

[...] a prevenção do suicídio também é abordada através de vieses sociais e legais. Em outras
palavras, o suicídio não é um problema de responsabilidade apenas nas áreas de psiquiatria e
psicologia, não se reduz a um mero problema de natureza biológica, mas percorre outras esferas
que, consequentemente, fazem com que sua prevenção seja dada maneira mais ampla. (STURZA;
TONEL, 2019, p. 75, tradução nossa).

Portanto, a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio é um importantíssimo


instrumento em nosso país na direção da prevenção ao suicídio e promoção de saúde mental, porque
prevê a notificação compulsória tanto para os casos que configurem situações de automutilação
e suicídios, fornecendo subsídios teóricos para a formulação e implantação de políticas públicas
preventivas, além de configurar um novo mecanismo para a efetivação do direito à saúde mental.
Neste contexto, importante destacar a elaboração e implementação de políticas públicas de
saúde mental para que os cidadãos possam ter acesso mais amplo aos programas e serviços de
saúde. De acordo com Sturza e Lucion (2018, p. 29), “as políticas públicas de promoção da saúde, as
quais, por meio da ações que favorecem o bem estar das pessoas e manutenção da saúde, acabam
também por promover o direito à saúde.”
No que diz respeito ao fenômeno do suicídio e as políticas públicas, entendemos serem
necessários maior atenção e esforços para a prevenção do suicídio no cenário brasileiro. O Brasil não
dispõe de uma política pública especificamente voltada para a prevenção do suicídio sendo, portanto,
necessária a elaboração e efetivação de uma política pública de prevenção ao suicídio baseada numa
perspectiva multidisciplinar, levando em consideração os contextos sociais e as diversidades culturais
que constituem nosso país (KOCH; OLIVEIRA, 2015). Conforme apontam Teixeira et al. (2018, pp. 1-2),

conhecer os fatores que predispõem uma pessoa a tentar tirar sua própria vida ou o primeiro
passo para os programas reproduzidos e efetivos de prevenção, bem como para a estruturação
de políticas públicas, ou seja, um exame de alternativas sobre o que fazer com esse problema de
saúde pública através de instrumentos e definir um curso de ação.

Além disso, importante levarmos em consideração que, mesmo com a elaboração e execução
de uma política pública de saúde voltada para a prevenção do suicídio no Brasil, é necessário que
ocorra sua respectiva divulgação e publicação para que toda a população possa ter conhecimento e
buscar auxílio quando necessite. Para isso, imprescindível atentarmos para o direito à informação e
trazermos em tela os arts. 5º, XXXIII, CF/88, combinado com o princípio da publicidade art. 37, caput
e §1º, da Administração Pública (BRASIL, 1988).
Isso porque, muitos aspectos importantes de políticas públicas são desconhecidos pela população
em virtude de falta de clareza, informação e publicidade por parte da Administração Pública e, isso,
acaba por dificultar sua efetivação impedindo que os resultados possam se concretizar integralmente
e se estender para todos lugares e pessoas.
Sabemos que um país como o Brasil, devido à grande dimensão continental e a pluralidade de culturas,
obstaculiza, em certa medida, o alcance das políticas públicas em saúde quando as pessoas não obtêm a
devida informação sobre aquelas. Deste modo, “[...] o alcance e os objetivos das ações em saúde só serão
cumpridos se houver conhecimento e aderência da população” (CORREA DE MELO; STURZA, 2018, p. 84).
Albuquerque et al. (2017) faz um apelo a adoção de efetivas políticas públicas de prevenção ao
suicídio como um elemento fundamental para assegurar ao direto à vida daqueles indivíduos que se
encontram em condição de risco ao suicídio. Na perspectiva internacional, existe uma infinidade de
pesquisas e publicações acadêmicas, como artigos, livros, seminários, conferências, falando sobre

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

a prevenção do suicídio. Dentre as alternativas mais eficientes em termos de prevenção, urgem os


especialistas para as políticas públicas, programas específicos que lidem com a questão do suicídio e
estudos epidemiológicos (KOCH; OLIVEIRA, 2015).
No entanto, abordagens genéricas na formulação de políticas públicas para a prevenção do suicídio
dificilmente irão angariar resultados satisfatórios e compensatórios. Não podemos nos esquecer de que
“[...] devem ser pesadas as diferenças culturais e as especificidades das populações que as políticas querem
ver atingidas por suas ações. A complexidade do fenômeno suicida impõe um tratamento local para
formulação de políticas públicas.” (KOCH; OLIVEIRA, 2015, p. 164). Dessa forma, tendo como exemplo,
uma política pública de prevenção ao suicídio implantada no Canadá dificilmente produzirá os mesmos
resultados no Marrocos, visto que cada país, devido seus próprios arranjos socioculturais fazem com que
a prevenção do suicídio seja encarada a partir de diferentes abordagens.
Isso também pode ocorrer até mesmo dentro do próprio país, quer dizer, “[...] aquela política
pública com bom desempenho na parte Sul de um país pode não apresentar os mesmos resultados no
Norte, por exemplo. Isso se deve ao contexto sociocultural inserido em cada um dos grupos de risco”
(STURZA; TONEL, 2019, p. 77, tradução nossa).
Ainda assim, algumas medidas genéricas implantadas em várias partes do mundo têm
apresentado efeitos positivos em termos de prevenção. Poderíamos destacar as táticas situacionais,
por exemplo, como as restrições aos meios e métodos, enquadrando a questão de regulação de
aquisição de armas de fogo, medicamentos, agrotóxicos, construção de cercados em locais altos,
como pontes, passarelas, arranha-céus etc (KOCH; OLIVEIRA, 2015).
No mesmo sentido, afirma Bertolote (2004, n.p. tradução nossa), “[...] uma visão geral das evidências
indica que a redução do acesso a métodos (por exemplo, medicamentos, pesticidas, escapamentos de
carros, armas de fogo) talvez seja a intervenção com maior impacto no nível da população.”
Muito embora, as táticas situacionais aparentem reduzir e/ou evitar a posse dos meios, sobre os
quais, o indivíduo suicida possa utilizar para sua morte, tais táticas não são soluções de longo prazo,
justamente porque só tem o condão de propiciarem situações segures, porém, isso não significa
indivíduos seguros. Em outras palavras, podemos afirmar que “[...] uma vez que o prisioneiro é
libertado da prisão, as táticas situacionais para impedir o suicídio na prisão não são mais relevantes
no mundo exterior” (LESTER, 2009, p. 8, tradução nossa).
Existem, no entanto, objeções as táticas situacionais, uma vez que a restrição de um meio irá
proporcionar a opção e adoção de outro meio, o que implica dizer, que tais medidas geram prevenção
temporária e não muito eficiente (LESTER, 2009). Mesmo assim, evitam aquelas situações de suicídios
impulsivos e emotivos.
Dentro das medidas genéricas, utilizadas em várias partes do mundo, que apresentam certo
alcance em termos de prevenção, destacamos os centros de prevenção ao suicídio, que normalmente,
funcionam através de via telefônica, 24 horas por dia, onde voluntários se dispõe e se revezam
ao atendimento e aconselhamento de pessoas que eventualmente estejam pensando em cometer
suicídio. Em alguns países, alguns desses centros ainda podem contar com clínicas e equipes de
emergência que podem até mesmo localizar e ir de encontro ao indivíduo aflito para ampará-lo.
No Brasil, por exemplo, temos o Centro de Valorização da Vida – CVV, um serviço telefônico para o
atendimento de indivíduos que se encontrem em necessidade de ajuda e amparo.
Há, igualmente, o tratamento medicamentoso em pessoas diagnosticadas com transtornos
mentais como a depressão e a esquizofrenia - doenças que estão associadas ao suicídio -, como medida
de tratamento e, por conseguinte, prevenção. Contudo, de acordo com Bertolote (2004), estudos
afirmam não haver significativa redução nas taxas de suicídios anuais em países onde esses tipos
de medicamentos são amplamente usados. Mesmo com a introdução dos chamados medicamentos
antidepressivos, seu impacto nas taxas de suicídio se demonstra controverso. Contudo, em doenças
específicas os resultados são otimistas.
Necessitamos, portanto, de políticas públicas de prevenção ao suicídio, formação e qualificação
de profissionais para assistência aos indivíduos acometidos por comportamento suicida, cursos e
disciplinas de sucidologia, desenvolver pesquisas que reflitam de forma interdisciplinar o fenômeno
do suicídio, entre outras.
Nas escolas, do mesmo modo, apontamos que programas de prevenção ao suicídio devem

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ser implantados com o objetivo de conscientizar os estudantes acerca dos fatores de risco, além
de, fornecer o conhecimento necessário para que os estudantes possam identificar, não só colegas
que apresentem características que possam constituir o comportamento suicida, mas também, toda
a sociedade em geral. Portanto, “[...] muitos dos programas, portanto, parecem orientados para
transformar todos os alunos em possíveis conselheiros de crise.” (LESTER, 2009, p. 3, tradução nossa).
Da mesma maneira, a mídia deve tomar certos cuidados ao noticiar suicídios quando, por exemplo,
noticia o suicídio de uma determinada celebridade e isso acaba influenciando e/ou contagiando outras
pessoas através do fenômeno da imitação. Em outras palavras, o sensacionalismo ou excesso de glamour
no momento em que se noticia o fato, pode acabar sugerindo e/ou impactando a ideia de cometer
suicídio em outras pessoas. Além do mais, Lester (2009) sustenta que, cada vez que a mídia noticiar
histórias de suicídios, essas notícias devem vir acompanhadas de informações sobre prevenção.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme evidenciamos, a saúde pode ser traduzida como o completo bem-estar físico, mental
e social, e não apenas a ausência de doenças e/ou enfermidades. A saúde configura, portanto, um
direito humano fundamental de todos os cidadãos e dever do Estado. No que diz respeito ao suicídio,
não devemos somente tratar dos aspectos físicos e mentais através de hospitalização e medicação,
mas também, nos valer da abordagem social e jurídicas através de políticas públicas, educação nas
escolas e universidades, campanhas de esclarecimentos na mídia etc.
Deste modo, uma sociedade saudável é a maior expressão de onde há uma democracia que
efetivamente funciona e um Estado que se preocupa com a sua população. Além disso, o direito à saúde
é reconhecido em variadas legislações e constituições internacionais, o seja, isso demonstra uma espécie
de moralidade comum entre as noções e uma ampla abrangência do direito à saúde. Além disso, a saúde
deve ser tratada sob uma ótica global e universal, não mais sendo tratada somente no âmbito interno dos
Estados, visto que é de responsabilidade de todos os Estados prezarem pela saúde, ultrapassando essa
concepção para além das fronteiras nacionais afim de garantir o acesso à saúde a todos os povos.
Todavia, pudemos observar que existem muitos obstáculos e desafios acerca da prevenção do
suicídio. É necessário, antes de tudo, desmistificar, quebrar o tabu e descontruir essa compreensão
equivocada de que todo o indivíduo que contempla o suicídio é insano, desocupado, imoral, pecador
etc, e buscar levar a toda a sociedade a devida informação e orientação a respeito desse fenômeno.
Caso contrário, mais mortes ocorrerão, maiores serão as taxas anuais, e as violações de direitos
humanos à pacientes vítimas de doenças mentais persistirão.
Ainda assim, necessitamos de medidas mais abrangentes em termos de prevenção ao suicídio.
Reiteramos para a necessidade de implantação de políticas públicas voltadas para a prevenção do
suicídio que, no momento atual, se mostram imprescindíveis frente as taxas que vem crescendo a cada
ano. As políticas públicas, neste contexto, funcionam como mecanismo para a completa efetivação do
direito à saúde e manutenção do bem-estar da população.

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652
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

VULNERABILIDADE NAS SOCIEDADES LATINO-AMERICANAS

Vitória Agnoletto303
Anna Júlia Bandeira Ceccato 304

RESUMO: O presente estudo analisa os níveis de desigualdade e pobreza nas sociedades latino-americanas
com base nos relatórios publicados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
A partir da organização e análise dos dados, a pesquisa divide-se em dois momentos: investiga o quanto
referidas mazelas colaboram para as injustiças sociais e a relação dessa com a permanência de um
racismo estrutural decorrente do desequilíbrio socioeconômico. Para seu delineamento o artigo utiliza
o método de abordagem hipotético-dedutivo, centrado na pesquisa bibliográfica de autores que fazem
referência aos temas. Por fim, o trabalho evidencia a vulnerabilidade da população da América Latina e
os obstáculos para a efetivação dos direitos humanos nos contextos social, políticos e econômico.

Palavras-chave: América Latina. Direitos Humanos. Desigualdade. Pobreza. Racismo Estrutural.

INTRODUÇÃO

A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) publicou em 2016 um relatório destinado
a demonstrar as matrizes da desigualdade no contexto latino-americano e caribenho. Nesse sentido, a CEPAL
(2016) argumentou que as desigualdades sociais são elementos estruturais e históricos das sociedades da
América Latina, determinantes no desenvolvimento social, político e econômico das populações.
Durante alguns períodos políticos e econômicos a América Latina presenciou a ascensão de
políticas públicas e sociais voltadas para o combate à pobreza extrema e às graves desigualdades,
tais medidas tinham como objetivo central a efetivação dos direitos humanos e a construção de
sociedades democráticas e igualitárias. Contudo, tais medidas, cuja possibilidade de continuidade
foi interrompida com o crescimento do movimento neoliberal, não foram suficientes para reverter o
cenário latino-americano no que tange os altos índices de pobreza e de exclusão social.
É a partir desta perspectiva que o presente estudo busca evidenciar dados sobre a pobreza e
as desigualdades na América Latina, argumentando, por meio da adoção do pensamento crítico dos
direitos humanos, que o sistema neoliberal agrava as situações de exclusão social e política, impondo
empecilhos para o desenvolvimento da liberdade e da autonomia da população latino-americana.
A pesquisa, então, centra-se no estudo das desigualdades, da pobreza e do racismo estrutural,
como condições de vulnerabilidade das populações latino-americanas. Nesse sentido, argumenta-se
que as soluções e propostas de combate a esses graves problemas passam, necessariamente, pela
construção de uma racionalidade crítica e emancipadora.

1 DESIGUALDADE E POBREZA EM EVIDÊNCIA NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO: ANÁLISE


A PARTIR DOS RELATÓRIOS DA CEPAL

As desigualdades persistem nas sociedades latino-americanas, de maneira que se tornam o


maior obstáculo contra o desenvolvimento econômico e social, uma vez que esse fator impede que

303 Graduanda do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. Voluntária do projeto de pesquisa “Justiça Social: os desafios
das políticas sociais na realização das necessidades humanas fundamentais”, grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Justiça
Social e Sustentabilidade” (CNPq). Assistente Editorial Voluntária da Revista Direito em Debate da UNIJUÍ (Qualis B1) E-mail:
viagnoletto@yahoo.com.br
304 Graduanda do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
(UNIJUÍ); Bolsista PIBIC/UNIJUÍ; Integrante do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade” (CNPq).
E-mail: annajuliabandeiraceccato@hotmail.com

653
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

persistam os avanços na erradicação da pobreza, na expansão da cidadania e no exercício de direitos


fundamentais, assim como enfraquece as sociedades democráticas. Isso fica ainda mais evidente com
o momento que vivemos.

O quadro apresenta um panorama dos efeitos graves decorrentes da pandemia, e como essa
situação vai potencializar os problemas que, historicamente, marcam a realidade social e econômica
dos povos latinos. (CEPAL, 2020)
O aumento dos níveis de desigualdade possui relação direta com a diminuição dos níveis de mobilidade
social, tal indicação feita pela CEPAL (2016) reafirma os estudos do sociólogo Fernando Luís Machado
(2015) de que quanto mais cristalizada as desigualdades, maiores as possibilidades de fortalecimentos
das categorias e grupos sociais que introduzem rigidez na sociedade, dificultando a mobilidade social.
Isto é, elevados níveis de desigualdade possuem impacto nos processos de integração social,
pois geram experiências de vida e expectativas sociais divergentes. Consequentemente, maior será a
possibilidade de rigidez social, de segregação e de conflitos.
O gráfico a seguir demonstra as variações decorrentes do processo de desenvolvimento inclusivo
ou não ao longo do tempo na América Latina.

Em 2008, com esta grande crise, se tornou importante a construção de relatórios e de dados
para que fosse possível gerenciar e moderar os efeitos das crises nas economias, uma vez que a
crise de 1980 demonstrou as consequências geradas no quadro social, visto o aumento nos níveis de
pobreza e levando aproximadamente 25 anos para que a região retornasse ao seu nível anterior, com
os conceitos analisando para que o mesmo não ocorra em 2020.

654
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

As diversas formas de desigualdades são vistas como injustas na medida em que as oportunidades
apresentadas às pessoas para melhorar sua situação socioeconômica são marcadamente diferentes e
desproporcionais, assim como quando aqueles que estão no topo da distribuição de renda alcançam
essa posição a partir de normas, valores e mecanismos institucionais e sociais que legitimam e
preservam as desigualdades (CEPAL, 2016).
A desigualdade consiste em diferenças e disparidades na capacidade e nas possibilidades de
apropriação de recursos, de renda, bens e serviços, que causam variações no bem-estar entre grupos
sociais. Isto é, a desigualdade é reflexo da concentração da riqueza em uma pequena parcela da população,
existindo uma grave desproporcionalidade na distribuição de bens, recursos, oportunidades e serviços.
Portanto, o acesso ao poder político e a efetividade dos direitos fundamentais são limitados para
a maioria da sociedade, tornando a desigualdade social um “fenômeno indissolúvel das relações de
poder no nível individual e coletivo” (CEPAL, 2016, p. 18).

Como consequência de suas características, a desigualdade social se manifesta nos variados


âmbitos do Estado e da sociedade, mas é especialmente nítida quando se trata de educação, saúde,
mercado de trabalho, renda, acesso a serviços e direitos básicos, condições de vida e proteção ambiental.
“En su permanencia y reproducción inciden diversos mecanismos de discriminación, estructurales e
institucionales, de género, étnicos, raciales y de origen socioeconómico, entre otros” (CEPAL, 2016, p. 18).
A América Latina, em especial, vivência um grave cenário de desigualdades sociais e, apesar das
tentativas de diversos órgãos, movimentos sociais e regimes políticos, ainda são muitos os desafios
para combater efetivamente esse problema.305
O quadro abaixo apresenta dados relativos a pobreza e a extrema pobreza que afetam os países
na América Latina e a tendência até o final do ano 2020.

305 “La Agenda Regional de Desarrollo Social Inclusivo aprobada en 2019 ofrece líneas de acción para alcanzar ese objetivo.
Incluye propuestas para avanzar en la garantía universal de un nivel de ingresos básico y evaluar la posibilidad de incorporar
gradualmente en los sistemas de protección social de los países una transferencia universal para la infancia y un ingreso básico
de ciudadanía. Propone también el fortalecimiento de la institucionalidad social para implementar políticas sociales de
calidad. Para la planificación, diseño e implementación de medidas de protección social es importante proteger el gasto público
social y contar con sistemas de información, seguimiento y evaluación de las prestaciones sociales, incluidos registros
de la población destinataria o potencialmente destinataria que sean lo más amplios y actualizados posible.” (CEPAL, 2020)

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Uma das mais graves consequências da desigualdade é que sua permanência fortalece e aumenta
os níveis de pobreza. A pobreza pode se manifestar de várias maneiras, mas, essencialmente,
consiste em uma carência de bens, materiais e imateriais, derivada da falta de recursos econômicos,
ocasionando, consequentemente, na exclusão social de indivíduos que não possuem os meios
necessários para participar efetivamente da sociedade.

En la región, el hambre se deriva de la pobreza (en particular la pobreza extrema) y no de la falta de


alimentos. Teniendo en cuenta que la línea de la pobreza extrema se determina sobre la base del costo
de la canasta básica de alimentos, las personas cuyos ingresos están bajo esta línea no cuentan con los
recursos suficientes para cubrir los costos básicos de alimentación. Así, la caída económica pronosticada
para 2020 afectará directamente a la seguridad alimentaria de millones de personas. (CEPAL, 2020)

A partir deste gráfico é possível analisar como os recursos orçamentários que são destinados ao
programa de reeducação da pobreza estão ligados a dimensão das necessidades básicas. Argumenta-
se, nesse sentido, que tais programas deveriam ser ampliados, visto que nos últimos cinco anos a
pobreza e extrema pobreza cresceram de forma abrangente, gerando uma proporção de recursos,
que devem ser alocados pelo governo em programas de redução da pobreza, visto que a destinação
de recursos para políticas públicas e sociais de combate a pobreza manteve-se praticamente estável
desde 2016, totalizando em 2019 apenas 1.26% do orçamento da união.

2 INJUSTIÇAS SOCIOECONÔMICAS E RACISMO ESTRUTURAL

De acordo com a Organização das Nações Unidas e o Banco Mundial, a pobreza extrema atinge
pessoas que vivem com apenas um dólar por dia, enquanto a pobreza modera consiste na situação de
pessoas que vivem com mais de um dólar e menos de dois dólares por dia. Esses valores, de acordo
com as instituições citadas, demonstrariam a impossibilidade de acessar bens e serviços mínimos.
A este respeito, a filósofa Adela Cortina (2017), em sua obra dedicada ao estudo da aporofobia306,
demonstra que a pobreza, muito além da perspectiva econômica, compreende diversas formas de
discriminação, que resultam no impedimento total da autonomia e liberdade dos indivíduos pobres e
excluídos do contrato social firmado implicitamente.
O cenário latino-americano, por exemplo, demonstra, através dos dados analisados anteriormente, a
clara rejeição ao pobre. Essa rejeição se dá em diversas áreas da sociedade e, grande parte das vezes, nem
se nota estar presente, isso porque o preconceito e o rechaço ao indivíduo pobre é uma construção histórica,
social e cultural que se enraizou nos próprios pressupostos e princípios da sociedade contemporânea.
Portanto, a racionalidade aporofóbica, em essência, sustenta a cultura do desprezo pelo pobre e
da rejeição aos sujeitos incapazes de devolver algo para a sociedade na lógica troca. Nesse sentido,

306 O termo aporofobia, desenvolvido por Adela Cortina (2017), consiste na rejeição, aversão, medo e desprezo pelo pobre
e desamparado que, aparentemente, não pode devolver nada bom em retorno para a sociedade fundada em um contrato
político de troca.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Adela Cotina (2017, p.6) demonstra que dessa racionalidade deriva a razão pela qual o pobre é excluído
“de un mundo construido sobre el contrato político, económico o social, de ese mundo del dar y el
recibir, en el que sólo pueden entrar los que parecen tener algo interesante que devolver como retorno”.
Consequentemente, se o indivíduo é excluído do contrato político que constitui a essência das
sociedades contemporâneas, o sujeito pobre perde qualquer prova de sua existência perante o Estado
e a sociedade. Isso significa, por exemplo, que esses indivíduos serão excluídos permanentemente, os
impossibilitado de acessar oportunidades econômicas, políticas e sociais que permitiriam desenvolver
a autonomia e liberdade. Por isso, “la aporofobi es un atentado diario, casi invisible, contra la dignidad,
el bienser y el bienestar de las personas concretas hacia las que se dirige” (CORTINA, 2017, p. 7).
Logicamente, a exclusão do pobre acarreta a sua discriminação nas variadas áreas da sociedade,
impossibilitando a efetivação de seus direitos fundamentais, garantindo que esse sujeito não participe
das escolhas políticas, econômicas e sociais de um Estado. E isto, claramente, significa o aumento e
a intensificação de desigualdades sociais.
Nesse sentido, o estudo das desigualdades, a partir de sua perspectiva tradicional, compreende
a desigualdade como a distância entre as posições de indivíduos e grupos na hierarquia de acesso a
bens socialmente relevantes, como renda e riqueza, e recursos de poder, como direitos, participação
política e posições políticas (BRAIG; COSTA; GÖBEL, 2015).
A partir da perspectiva do sociólogo Fernando Luíz Machado (2015) as desigualdades sociais não
são apenas diferenças sociais entre grupos ou populações com culturas e estilos de vida distintos e
específicos, assim como não são meras distinções de talentos, capacidades e desempenhos individuais.
De acordo com Silvio Luiz de Almeida (2019), a ideia de desigualdade está diretamente ligada
ao desenvolvimento econômico, o que dignifica que é um problema que não pode ser ignorado
por teorias econômicas. Entretanto, apesar de vinculada à economia, a desigualdade só pode ser
compreendida a partir do entendimento da sociedade e dos conflitos que dentro dela ocorrem.
Assim, na realidade, “as desigualdades sociais são diferenças sistemáticas e persistentes de acesso a
bens, recursos e oportunidades, que se estabelecem entre pessoas, grupos sociais ou mesmo populações
inteiras” (MACHADO, 2015, p 299). Portanto, as diferenças de acesso a bens, recursos e oportunidades
existem independentemente das diferenças entre culturas, estilos de vida, talentos e capacidades.
Entretanto, as desigualdades sociais podem derivar de diferenças graves entre culturas ou entre
capacidades, ou seja, são elementos que existem independentemente, mas podem se relacionar
e gerar outras formas e intensidades de desigualdades. Além disto, as desigualdades assumem
diversas formas e possuem diferentes mecanismos e instrumentos. É a partir destes pressupostos
que Fernando Luís Machado (2015) fala de multidimensionalidade das desigualdades sociais.
A multidimensionalidade parte da compreensão de que as desigualdades se se classificam em
grandes grupos: desigualdades de classe, étnico-raciais e de gênero, desigualdades vitais, existenciais
e de recursos. Para o referido autor essas classificações facilitam a compreensão acerca da dinâmica
das desigualdades e como elas são, na maioria das vezes, interligadas e interdependentes.
A dinâmica das desigualdades sociais segue a lógica de que quanto mais cristalizadas as desigualdades,
maiores são as possibilidades de perpetuação, o que acaba por introduzir rigidez na sociedade. Nesse
sentido, Tim Anderson (2015) analisa que, como consequência dessa lógica, as desigualdades colocam
em perigo a dinâmica da sociedade, do desenvolvimento individual e social, na medida que degrada a
integridade da própria sociedade, colocando em crise os sistemas sociais fundamentais, como a saúde e
a educação. Em essência, a desigualdade é um problema básico que causa exclusão social que, por sua
vez, tem como consequência a obstrução na autodeterminação individual e social.
A este ponto do estudo é cada vez mais nítido que as desigualdades e a pobreza interferem
diretamente na efetivação dos direitos humanos, especialmente no contexto latino-americano que
vive a constante luta contra a discriminação e exclusão dentro das próprias sociedades, buscando um
ideal de sociedade justa que parece cada vez mais distante.
Como argumenta Silvio Luiz de Almeida (2019), a análise da desigualdade e da pobreza, a
partir unicamente da perspectiva econômica, significa ignorar fatores sociais e políticos presentes
na dinâmica da desigualdade. Consequentemente, se torna invisível a vulnerabilidade de grupos e
populações, como o caso de negros e mulheres.
A população negra e feminina constitui mais da metade da população total da América Latina.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Isso significa que, ao ignorar os fatores sociais que indicam a vulnerabilidade desses grupos, grande
parte da sociedade latino-americana está sendo ignorada, desamparada pelos direitos humanos
tradicionais, que, consequentemente, auxiliam o sistema neoliberal e capitalista a concentrar a renda,
limitar direitos sociais e evitar a construção de políticas públicas voltadas para a emancipação de
comunidades vulneráveis.
Falar sobre desigualdade e pobreza, necessariamente, significa falar sobre raça, afirma Silvio Luiz
de Almeida (2019, p. 104) a partir do estudo de pesquisas e dados, uma vez que a “raça é um marcador
determinante da desigualdade econômica, e que direitos sociais e políticas universais de combate à
pobreza e distribuição de renda que não levam em conta o fator raça/cor mostram-se pouco efetivas”.
As desigualdades multidimensionais, explicadas pela teoria de Luiz Fernando Machado (2015),
são muito bem explicadas a partir da situação que vive a população negra. Isto é, de acordo com Silvio
Luiz de Almeida (2019), as pessoas negras vivem diversas desigualdades, que afetam umas às outras.
Tal afirmação se mostra nítida ao pensar no sujeito negro que ao ser discriminado no acesso
à educação, provavelmente terá dificuldade para acessar o mercado de trabalho, terão menos
informações sobre econômica e política. “Consequentemente, dispondo de menor poder aquisitivo e
menos informação sobre cuidados com a saúde, a população negra terá mais dificuldade não apenas
para conseguir um trabalho, mas para permanecer nele” (ALMEIDA, 2019, p. 105).
As desigualdades e discriminações, que atuam entre si e determinam uma realidade de
impossibilidade, associadas à pobreza, levam a vulnerabilidade da população negra ao extremo,
sem oportunidade de educação, de acesso a oportunidades, informações e excluído da participação
política e econômica da sociedade que vive.
O racismo estrutural, que permeia as relações sociais e políticas dos Estados contemporâneos,
principalmente na América Latina, cuja maioria de sua população é negra e vive em situação de extrema
pobreza e desigualdade, de acordo com Silvio Luiz de Almeida (2019), está diretamente ligado ao capitalismo.
Analisando a teoria desenvolvida por Oliver Cox, Silvio Luiz de Almeida (2019) demonstra que o
racismo está diretamente ligado às relações econômicas que perduram em uma sociedade, estando,
portanto, relacionado a luta de classes. A partir disso, o referido autor argumenta que “o antagonismo
racial é um fenômeno surgido na modernidade, não verificado em sociedades pré-modernas, a
exploração e o preconceito racial desenvolveram-se entre europeus com o surgimento do capitalismo
e do nacionalismo” (ALMEIDA, 2019, p. 106).
Consequentemente, em razão da dimensão mundial do capitalismo e, posteriormente,
do neoliberalismo, o racismo passou a se relacionais com as políticas e atitudes das sociedades
capitalistas, se sedimentando nas estruturas das relações sociais e econômicas.
Portanto, no entendimento de Silvio Luiz de Almeida (2019), a solução para o racismo está
diretamente ligada ao combate das desigualdades e da pobreza, passando diretamente por uma
mudança e transformação nas estruturas e instituições políticas, econômicas e sociais, construindo
uma racionalidade cuja moral não seja definida por interferência de ordem econômica, mas sim de
acordo com os ideais de igualdade, constituindo políticas para o acesso equitativo a oportunidades,
educação e nos âmbitos de participação na sociedade.
Entende-se, então, a partir dessa perspectiva, que pensar soluções para as graves desigualdades,
a pobreza e o racismo estrutural, que inviabilizam o desenvolvimento de sociedades justas no contexto
latino-americano, significa pensar na efetivação dos direitos humanos, atendendo às demandas dos
grupos vulneráveis no cenário político, econômico e social.

3 VULNERABILIDADES LATINO-AMERICANAS E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

Pensar a efetivação dos direitos humanos, de acordo com sua perspectiva tradicional e neoliberal,
é praticamente uma missão impossível para a América Latina. Isso porque, de acordo com a teoria
crítica dos direitos humanos de Joaquín Herrera Flores (2009), a perspectiva tradicional e clássica dos
direitos humanos, caracterizada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, reduz os
direitos humanos a uma justificativa conservadora que implica no aumento das desigualdades e da
pobreza em prol do desenvolvimento econômico.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Para Joaquín Herrera Flores (2009), os direitos humanos não comportam o sistema capitalista e
neoliberal, visto que estes criam e intensificam desigualdades. Por isso, o referido autor argumenta que,
por ser imprescindível transformar a realidade de mais da metade da população mundial que vivem
em condições distantes do ideal de vida digna, é necessário adotar uma nova perspectiva dos direitos
humanos, que trate, necessariamente, da abertura de processos de luta pela dignidade humana.
Esse paradoxo se agrava devido a política de condicionamento do desenvolvimento. Isto é,
a sociedade internacional propõe, em seus próprios termos, auxiliar o desenvolvimento de países
que enfrentam graves desigualdades sociais, econômicas e políticas, na condição de que primeiro
estes Estados cumpram primeiro com os princípios dos direitos humanos. Contudo, argumenta
Joaquín Herrera Flores (2009, p.70), “como respeitar direitos humanos concretos em países agoniados
econômica e politicamente pela obrigação de pagar uma dívida e juros que lhes impedem de criar
condições (desenvolvimento) que possibilitem práticas sociais em prol dos direitos?”.
O sucesso do neoliberalismo ao utilizar os direitos humanos como um instrumento deriva do conteúdo
da declaração, que consiste essencialmente, como aponta Flores (2009), em um rol de direitos que tem como
objetivo adquirir mais direitos, sem tratar dos bens a serem garantidos ou das condições para exigir tais
direitos e coloca-los em prática. Além disso, o artigo primeiro Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948, ao determinar que os indivíduos possuem direitos “naturalmente”, sem terem efetivamente os
meios e capacidades para exercê-los ou exigi-los, tem como consequência o enfraquecimento da luta por
condições e por direitos, elemento que sustenta o sistema capitalista neoliberal.
Neste contexto, compreendendo o contexto do desenvolvimento da perspectiva tradicional dos
direitos humanos e de sua relação com a perpetuação do sistema capitalista e neoliberal, Boaventura
de Sousa Santos (2013) demonstra que a luta pela dignidade não foi construída pelo ocidente, apenas
construiu a ideia de dignidade humana em função dos interesses ocidentais. Por isso, o discurso
clássico fala apenas dos direitos humanos do homem branco, ocidental e proprietário.
Nesse contexto, a partir de uma intensa crítica às propostas neoliberais e à globalização da
racionalidade capitalista que Joaquín Herrera Flores (2009) constrói uma visão emancipadora dos
direitos humanos como processos de luta pela dignidade humana. Essa perspectiva adotada se
diferencia em suas características por enxergar os direitos humanos como razão e consequência
da luta pela justiça e pela democracia, e por defender que a universalidade dos direitos humanos
não se sustenta na ordem jurídica internacional ou nacional, mas sim na construção de condições
que visem o acesso igualitário aos bens, materiais e imateriais, e recursos que constituem uma vida
digna de ser vivida.
A abordagem emancipadora proposta entende os direitos humanos como “processos, ou seja, o
resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para terem acesso aos
bens necessários para a vida” (FLORES, 2009, p. 28). Diferentemente da perspectiva tradicional, essa abor-
dagem adota a lógica de que um direito humano trata dos bens necessários para se viver com dignidade e
que, através das lutas pelo acesso aos bens, os direitos humanos se transformam em direitos positivados.
O aspecto fundamental desta abordagem é a emancipação do pensamento de grupos vulneráveis,
especialmente comunidades e populações latino-americanas excluídas da participação política e
econômica. Para isso, argumenta Joaquín Herrera Flores (2009), é de suma importância denunciar os
mecanismos que reduzem os direitos humanos ao direito dos indivíduos egoístas e atomizados.
Somente ao compreender os processos de exclusão e desigualdade, sustentados pela lógica
neoliberal, será possível construir, a partir de coletividades e grupos sociais vulneráveis, uma ideia de
direitos humanos a partir das demandas dos sujeitos excluídos da sociedade contemporânea. É nesse
sentido que o referido demonstra que “revoltar-nos é assumir o testemunho da história” (FLORES,
2009, p. 54).
Conclui-se, então, a partir da abordagem crítica de Joaquín Herrera Flores (2009), que os direitos
humanos, como instrumentos efetivos para a luta pela dignidade para grupos sociais vulneráveis,
passa necessariamente pelo empoderamento de comunidades e populações excluídas, discriminadas
e deixadas à margem da sociedade pelas instituições econômicas e políticas que estruturam-se a
partir de pressupostos capitalistas e neoliberais.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa apresentada buscou analisar dados referentes ao nível de desigualdade e pobreza


dentro das sociedades latino-americanas, tomando como base os relatórios publicados pela Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Deste modo, demonstrou o crescimento acelerado dos níveis de desigualdade e de pobreza dentro
dos Estados latino-americanos, indicando um grave enfraquecimento de políticas públicas e sociais
que constroem oportunidades e garantem efetividade de direitos para grupos vulneráveis.
A partir desta demonstração, a pesquisa se centrou em estudar o conceito e o contexto das
desigualdades e da pobreza, a partir da análise de sociólogos e filósofos contemporâneos, passando
a argumentar que as sociedades contemporâneas carregam o preconceito e a desigualdades em
suas bases fundantes, o que consequentemente acarreta na realidade latino-americana: sociedades
marcadas por desigualdades extremas e pela pobreza sedimenta no núcleo da estrutura social, política
e econômica dos Estados.
Para essa construção teórica, o estudo utilizou como referência o estudo de Fernando Luís Machado
(2015) para demonstrar como as desigualdades afetam umas às outras, intensificando os processos de
discriminação e influenciando o aumento da pobreza dentro da sociedade. Situações que, como argumenta
Silvio Luiz de Almeida (2019), significam na maior vulnerabilidade das mulheres e da população negra,
uma vez que o indivíduo negro é excluído da educação e, consequentemente, do mercado de trabalho e
de oportunidades, condicionado pelas políticas estatais a viver na margem da pobreza.
Joaquín Herrera Flores (2009), a esse respeito, constrói uma teoria crítica que expõe os
instrumentos neoliberais que atuam sobre a cultura tradicional dos direitos humanos que sustentam
tais processos de discriminação, intensificação de desigualdades, aumento da pobreza e permanência
da vulnerabilidade como condição de determinados grupos sociais, entre eles a população negra.
Deste modo, o estudo demonstrou que o neoliberalismo e o sistema capitalista fomentam e
sustentam práticas discriminatórias antigas e as utilizam para seu desenvolvimento e enriquecimento,
usufruindo dos direitos humanos ocidentalizados e da cultura econômica contemporânea para se
perpetuar nas sociedades. Consequentemente, tais sociedades vivenciam o aumento acelerado dos
níveis de pobreza, especialmente no caso de grupos vulneráveis e nos Estados latino-americanos, e a
intensificação das desigualdades econômicas e políticas.
A solução, ainda muito distante e praticamente inimaginável, passa, necessariamente, pela
construção de políticas sociais e públicas voltadas para o empoderamento dos grupos vulneráveis,
buscando a efetivação de direitos básicos e fomentando a luta pela dignidade. Nesse sentido, no
entendimento de Silvio Luiz de Almeida (2019), a solução para o racismo estrutural, a pobreza sedimentada
e as desigualdades extremas está diretamente ligada a mudança das estruturas e instituições políticas,
econômicas e sociais, construindo uma racionalidade cuja moral não seja definida por interferência de
ordem econômica, mas sim de acordo com os ideais de igualdade, constituindo políticas para o acesso
equitativo a oportunidades, educação e nos âmbitos de participação na sociedade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. Coleção Feminismos Plurais. São Paulo: Pólen, 2019.

ANDERSON, Tim. ¿Por qué importa la desigualdad? Del economicismo a la integridad social. Cidade do
México: Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, ano LX, número 223, p. 191-208, 2015.

CEPAL. La matriz de la desigualdad social en América Latina. Santiago: Nações Unidas, 2016.

CEPAL. Medición de la pobreza por ingresos: actualización metodológica y resultados.


Santiago: Nações Unidas, 2018.

CEPAL. Panorama Social da América Latina. Santiago: Nações Unidas, 2019.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

CEPAL. Enfrentar los efectos cada vez mayores del COVID-19 para una reactivación
con igualdad: nuevas proyecciones. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/
handle/11362/45782/4/S2000471_es.pdf. Acesso em: 21 set. 2020.

CORTINA, Adela. Aporofobia, el rechazo al pobre. Un desafío para la democracia. Barcelona:


Paidós, 2017.

FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo
Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2009.

MACHADO, Fernando Luís. Desigualdades sociais no mundo actual: teoria e ilustrações empíricas.
Luanda: Mulemba - Revista Angolana de Ciências Sociais, volume V, número 9, páginas 297-318, 2015.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. In: SAN-


TOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São
Paulo: Cortez, 2013.

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DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA: DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Este livro reúne os trabalhos que foram apresentados


durante a realização do VIII Seminário Internacional
de Direitos Humanos e Democracia, promovido pelo
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito
da UNIJUÍ. A obra reúne pesquisadores de vários Es-
tados brasileiros e de alguns países europeus e latino-
-americanos, apresentando ao leitor um conjunto de
textos oriundos de pesquisas em nível de graduação,
mestrado e doutorado e que, acima de tudo, estão
profundamente comprometidos com a temática da
efetivação dos direitos humanos.

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