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ORGANIZADORES

ANDERSON VICHINKESKI TEIXEIRA,


LENIO LUIZ STRECK,
LEONEL SEVERO ROCHA

CONSTITUIÇÃO,
SISTEMAS SOCIAIS
E HERMENÊUTICA
ANUÁRIO DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM
DIREITO DA UNISINOS

MESTRADO E DOUTORADO - N.17


CONSTITUIÇÃO,
SISTEMAS SOCIAIS E
HERMENÊUTICA
Anuário do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Unisinos

Mestrado e Doutorado - N.17


Anderson Vichinkeski Teixeira
Lenio Luiz Streck
Leonel Severo Rocha
(Orgs.)

CONSTITUIÇÃO,
SISTEMAS SOCIAIS E
HERMENÊUTICA
Anuário do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Unisinos

Mestrado e Doutorado - N.17

1ªEdição

Editora Dom Modesto


Blumenau, 2021
Editora Dom Modesto
Endereço: Rua Julio Michel, n 263, sala 5C, Blumenau/SC
Cep: 89.055-000
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Foi feito o depósito legal.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

C758
Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Nº 17 / Orgs.
Anderson Vichinkeski Teixeira, Lenio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha. -
Blumenau/SC : Editora Dom Modesto, 2021. 398 p. ; il.

[recurso eletrônico]
ISBN 978-65-86537-38-3

1. Teoria do Direito. 2. Pandemia. 3. Laicidade. 4.Direitos Humanos. I.


Teixeira, Anderson Vichinkeski. II. Streck, Lenio Luiz. III. Rocha, Leonel
Severo. IV. Título.

CDU: 34

Bibliotecário: Mário Sérgio Leandro - CRB - 10/2468

REVISÃO GRAMATICAL:
Michelle Dayane Krause

ARTE-FINAL E DIAGRAMAÇÃO:

Novo Hamburgo - RS - E-mail: imagine@arklom.com


www.arklom.com
Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino


Vice-Reitor: Pedro Gilberto Gomes

Diretora da Unidade Acadêmica de Pesquisa e Pós-Graduação


Dorotea Frank Kersch

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito


Prof. Dr. Anderson Vichinkeski Teixeira

Corpo Docente PPG Direito


Anderson Vichinkeski Teixeira, André Luiz Olivier da Silva,Clarissa
Tassinari, Darci Guimarães Ribeiro, Délton Winter de Carvalho, Fernanda
Frizzo Bragato, Gabriel de Jesus Tedesco Wedy, Gerson Neves Pinto, JâniaMaria
Lopes Saldanha, José Rodrigo Rodriguez, Lenio Luiz Streck, Leonel Severo
Rocha, Luciane Klein Vieira, Marciano Buffon, Miguel Tedesco Wedy, Raquel
Von Hohendorff, Roger Raupp Rios, Têmis Limberger, Vicente de Paulo
Barre�o, Wilson Engelmann

* Os textos que seguem são resultados parciais dos projetos de pesquisa


desenvolvidos pelos autores durante os últimos 12 meses, no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS.
6 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

CONSELHO EDITORIAL
Profª. Drª. Ana Paula Basso – UFCG e UFPB/Brasil
Profª. Me. Analice Schaefer de Moura – Dom Alberto/Brasil
Profª. Me. Angela Dias Mendes – UERJ/Brasil
Profª. Drª. Charlise Paula Colet Gimenez – URI/Brasil
Profª. Drª. Clarissa Tassinari – UNISINOS/Brasil
Prof. Dr. Clovis Gorczevski – UNISC/Brasil
Profª. Drª. Daiane Moura de Aguiar – UAM/Brasil
Prof. Dr. Daniel de Mello Massimino – CatólicaSC/Brasil
Profª. Drª. Danielle Anne Pamplona – PUCPR/Brasil
Prof. Dr. Danilo Pereira Lima – IMESB/Brasil
Profª. Drª. Eliane Fontana – UNIVATES/Brasil
Profª. Me. Elisa Berton Eidt – UFSC e PGE-RS/Brasil
Profª. Me. Flávia Candido da Silva – REGES/Brasil
Prof. Dr. Giancarlo Copelli – UNISINOS/Brasil
Prof. Dr. Guilherme Valle Brum – PGE-RS/Brasil
Profª. Drª. Isadora Wahys Cadore Virgolin – UNICRUZ/Brasil
Prof. Dr. Iuri Bolesina – IMED/Brasil
Prof. Dr. Ivo dos Santos Canabarro – UNIJUI/Brasil
Profª. Me. Janete Schubert – UNICRUZ/Brasil
Prof. Dr. Jonabio Barbosa dos Santos – UFPB, UFCG e UNIFACISA/Brasil
Prof. Dr. Luiz Felipe Nunes – CESURG/Brasil
Prof. Dr. Marcelino da Silva Meleu – FURB/Brasil
Profª. Drª. Maria da Glória Costa Gonçalves de Sousa Aquino – UFMA/Brasil
Profª. Drª. Marli Marlene Moraes da Costa – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Mateus Barbosa Gomes Abreu – UNIRUY e UNINASSAU/Brasil
Prof. Dr. Ma�eo Finco – UniRITTER/Brasil
Profª. Me. Rafaela Cândida Tavares Costa – FEOL/Brasil
Profª. Drª. Roberta Drehmer de Miranda – Dom Bosco/Brasil
Prof. Me. Rodrigo Cristiano Diehl – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior – ESMARN e UFRN/Brasil
Prof. Dr. Sandro Cozza Sayão – UFPE/Brasil
Profª. Drª. Tássia Aparecida Gervasoni – IMED/Brasil
Profª. Drª. Vera Lucia Spacil Rada� – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Willame Parente Mazza – UESPI/Brasil
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 11

CAPÍTULO 1 - TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO: um breve ensaio 13


Anderson Vichinkeski Teixeira

CAPÍTULO 2 - O QUE OS DIREITOS FAZEM COM AQUELES QUE


POSSUEM DIREITOS? APORTES ANALÍTICOS PARA A
COMPREENSÃO DA RELAÇÃO ENTRE VONTADE E
INTERESSE NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DE DIREITOS 33
André Luiz Olivier da Silva

CAPÍTULO 3 - DESAFIOS DEMOCRÁTICOS NO CONTEXTO DA


DINÂMICA ENTRE PODERES: os perigos das tentativas de
sobreposições institucionais 49
Clarissa Tassinari

CAPÍTULO 4 - CRITÉRIOS OBJETIVOS DO ATUAL SISTEMA DE


NULIDADES NO CPC/15 65
Darci Guimarães Ribeiro

CAPÍTULO 5 - CONSTITUCIONALISMO CLIMÁTICO: a tridimen-


sionalidade do direito das mudanças climáticas 85
Délton Winter de Carvalho

CAPÍTULO 6 - LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA EM DIREITOS HUMA-


NOS, ASSIMETRIA DE PODER E COLONIALIDADE 107
Fernanda Frizzo Bragato
CAPÍTULO 7 - ESTADO DE DIREITO CONTEMPORÂNEO: estrutura e
novos desafios 121
Gabriel Wedy

CAPÍTULO 8 - OS DESAFIOS DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO 141


Gerson Neves Pinto

CAPÍTULO 9 - O “MUNDO GRIPADO” DA COVID-19:da globalização


do medo ao cosmopolitismo de interação 153
Jânia Maria Lopes Saldanha

CAPÍTULO 10 - “CONSTITUIÇÃO DA EMERGÊNCIA”: uma proposta


de solução para o conflito entre os poderes na crise da covid-19 187
José Rodrigo Rodriguez

CAPÍTULO 11 - POSITIVISMO E LITERALISMO: o caso do art. 45 do


Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (CARF) e o “crime de hermenêutica” 201
Lenio Luiz Streck

CAPÍTULO 12 - CONSTITUIÇÃO, AUTOPOIESE E ACOPLAMENTO


ESTRUTURAL: Propostas e desafios do constitucionalismo social
em LUHMANN e TEUBNER 219
Leonel Severo Rocha

CAPÍTULO 13 - AS DIRETRIZES DAS NAÇÕES UNIDAS DE


PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR E A SUA IMPLEMENTAÇÃO
NO MERCOSUL: o direito à informação como ferramenta para o
fomento do consumo sustentável nos Estados Partes 249
Luciane Klein Vieira

CAPÍTULO 14 - A TRIBUTAÇÃO E A DESIGUALDADE DE RENDA E


RIQUEZA 271
Marciano Buffon
CAPÍTULO 15 - O STANDARD DE PROVA “PARA ALÉM DE TODA A
DÚVIDA RAZOÁVEL” NO PROCESSO PENAL – BARD – 289
Miguel Tedesco Wedy

CAPÍTULO 16 - A AGENDA 2030 DA ONU E O DIREITO: as


possibilidades transdisciplinares para a avaliação da produção e
do consumo sustentáveis a partir da ferramenta do Safe by Design 309
Raquel Von Hohendorff

CAPÍTULO 17 - TRAMAS E INTERCONEXÕES NO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL: Antidiscriminação, gênero e sexualidade 325
Roger Raupp Rios

CAPÍTULO 18 - A LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO PÚBLICA (LAI) E


A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD): a busca da
interpretação adequada constitucionalmente, em prol da
concretização dos direitos do cidadão 351
Têmis Limberger

CAPÍTULO 19 - AS NANOTECNOLOGIAS E SUAS APLICA-ÇÕES NO


MEIO AMBIENTE: entre os riscos e a autorregulação 371
Wilson Engelmann
SUMÁRIO
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 11

APRESENTAÇÃO

O Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos,


Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica, chega a sua décima sétima edição,
reafirmando o propósito de apresentar à comunidade acadêmica brasileira a
produção científica de suas linhas de pesquisa, marcando a tradição de excelência
da pesquisa realizada pelos professores deste Programa.

O trabalho que aqui se apresenta está inserido em uma trajetória


marcada pelo esforço de um grupo de professores organizados no ano de 1997,
que criou um Programa de Pós-Graduação com a pretensão de se tornar um polo
irradiador de práticas e pensadores inovadores na área do Direito, abrigados em
uma Universidade de forte orientação humanista. Passados 24 anos, esse
Programa consolidou-se com a contribuição de inúmeros outros pesquisadores
que se somaram a essa iniciativa e que, juntos, vêm produzindo trabalhos de
altíssima qualidade teórica e de repercussão nacional e internacional, refletido na
consolidação de sua nota 6 nas duas últimas avaliações da CAPES.

Na trilha desta tradição inaugurada há mais de duas décadas, o corpo


docente não só publica anualmente e em conjunto uma amostra de sua produção
científica e a apresenta à comunidade acadêmica, como também reafirma a sua
vocação de fomentar reflexões e práticas jurídicas inovadoras e afinadas com as
transformações e problemas sociais para os quais o Direito precisa encontrar
respostas justas e adequadas. Cada texto que compõe esse anuário é resultado de
uma pesquisa vinculada a uma das duas linhas desenvolvidas no PPG/Unisinos
por parte dos autores que são os professores do corpo docente deste Programa.
Na linha 1, “Hermenêutica, Constituição e Concretização de Direitos”, estão os
professores Anderson Vichinkeski Teixeira, Clarissa Tassinari, Darci Guimarães
Ribeiro, Gabriel Wedy, Jânia Maria Lopes Saldanha, Lenio Luiz Streck, Marciano
SUMÁRIO

12 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Buffon, Miguel Tedesco Wedy e Têmis Limberger. À linha 2, “Sociedade, Novos


Direitos e Transnacionalização”, pertencem os professores André Luiz Olivier da
Silva, Délton Winter de Carvalho, Fernanda Frizzo Bragato, Gerson Neves Pinto,
José Rodrigo Rodriguez, Leonel Severo Rocha, Luciane Klein Vieira, Raquel Von
Hohendorff, Roger Raupp Rios e Wilson Engelmann.

A linha de pesquisa 1 discute o Estado e suas possibilidades de


responder às demandas sociais, a partir da concretização dos direitos
fundamentais. O objetivo é aprofundar críticas elaboradas aos modelos
hermenêuticos tradicionais, a partir dos aportes da Semiótica, da Hermenêutica
Filosófica e da Teoria da Argumentação Jurídica. Com isso, investiga a efetividade
do Direito e da aplicabilidade das normas pelos tribunais, por meio, de um lado,
da revisão dos conceitos predominantes da doutrina, jurisprudência, Teoria Geral
do Estado e Teoria do Direito, e, de outro, do estudo da Constituição e da
Jurisdição e seus vínculos com as diversas áreas do Direito Material e Processual.

A linha de pesquisa 2 investiga as transformações ocorridas no Direito,


incrementadas pelas crises conceitual, estrutural, funcional e institucional que
atravessam o Estado Contemporâneo, ocorridas a partir do surgimento de novos
Direitos e do fenômeno da globalização. Essas transformações impõem aos
juristas a necessidade de reflexões sobre as novas formas de institucionalização.
A linha de pesquisa trata ainda de direitos emergentes, como a Bioética, o
Biodireito, a proteção da propriedade intelectual, os Direitos difusos e coletivos,
o meio ambiente e os Direitos Humanos. Os estudos são realizados sob uma
perspectiva transdisciplinar ligada à noção de complexidade.

Dessa forma, cada pesquisa contribui para a consolidação das


respectivas linhas do Programa como importantes referências de pesquisa e
compreensão do fenômeno jurídico, abrindo novas perspectivas de discussão ao
público acadêmico.

Desejamos uma boa leitura!

Os Organizadores
SUMÁRIO

Capítulo 1

TEORIAS DA
CONSTITUIÇÃO
um breve ensaio

Anderson Vichinkeski Teixeira


SUMÁRIO

14 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO: um breve ensaio

Anderson Vichinkeski Teixeira¹

Introdução

O presente ensaio tem como objetivo geral tentar sintetizar, muito


brevemente, algumas das mais relevantes contribuições do pensamento
constitucional no que concerne às respostas clássicas ao questionamento essencial
que, desde o início do movimento constitucional liberal, tem sido feito: o que é
uma constituição?

Portanto, tendo como tema a natureza de uma constituição e a sua


função dentro de uma ordem político-jurídica organizada, o problema que a
pesquisa buscará enfrentar é tentar delimitar como o dito pensamento
constitucional clássico pode apresentar contribuições ao debate atual sobre o
constitucionalismo transnacional e seus escopos primários. No projeto de
pesquisa em curso no PPGD/UNISINOS sobre este último tema geral, diversas
teorias apontam para uma certa continuidade evolutiva do constitucionalismo e
suas variantes, notadamente de matriz nacional ao fenômeno constitucional
transnacional, tendo em vista o deslocamento de alguns dos fundamentos de

1 Doutor em Teoria e História do Direito pela Università degli Studi di Firenze (IT), com estágio de pesquisa
doutoral junto à Faculdade de Filosofia da Université Paris Descartes-Sorbonne. Pós-Doutor em Direito
Constitucional pela mesma Universidade. Coordenador e Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Membro internacional do Colegiado de Docentes do
Doutorado em Direito da Università degli Studi di Firenze (IT). Professor visitante do Instituto de Ciências
Jurídicas e Filosóficas da Sorbonne. Membro Permanente da Association Française de Droit Constitutionnel.
Advogado e consultor jurídico.
SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 15
legitimidade da ordem político-constitucional do Estado-nação para a ordem
internacional colocar em discussão praticamente todos os elementos essenciais do
constitucionalismo ocidental (conceito, forma, matéria, função, limites etc.).

A abordagem a seguir será em formato de ensaio para que se possa


pontualmente delimitar como as contribuições dos autores selecionados aqui
podem, ou não, servir de fundamentação epistemológica para um possível
conceito de constituição da ordem internacional. Cronologicamente, as seis
teorias da constituição que foram eleitas para o presente ensaio situam-se entre os
períodos das revoluções liberais do século XVIII e a primeira metade do século
XX, pois o pós-Segunda Guerra Mundial ocasionou, no mínimo, a
internacionalização do Direito Constitucional, criando as bases do que muitos
entendem como o início do constitucionalismo transnacional. Na medida do
possível, as referências feitas serão a versões publicadas em português, embora o
caráter ensaístico retire a necessidade de constantes referências diretas.

1. O que é uma constituição?

Esse questionamento tem sido recorrente no pensamento político-


jurídico ocidental desde antes mesmo do período das revoluções liberais. André
Lemaire referia o século XVI como um momento em que, por um lado, juristas
como François Hotman demonstravam preocupação em dissociar o fundamento
da origem da França do puro poder absoluto do monarca, tanto que o seu clássico
Franco-gallia (1573) aponta para uma noção – ainda incipiente à época – de
soberania popular como tal fundamento, enquanto que, por outro lado, o uso do
termo lois fondamentales já se mostrava recorrente em políticos como o Duque
d’Anjou, de Alençon, que sustentava não ser possível manter um reino sem suas
“leis fundamentais”.² Ainda que estivéssemos aqui diante de caracteres que
remetem diretamente a uma das mais essenciais funções de uma constituição, isto
é, a limitação do poder, o próprio emprego da palavra constituição mostra-se
muito mais antigo, podendo ser visto em Aristóteles com o altamente abrangente
conceito de politeia, e também nos romanos do período imperial com as
constitutiones principis – um conjunto de expedientes legislativos que incluía

2 Cf. LEMAIRE, Andrè. Les Lois Fondamentales de la Monarchie française. D’après les théoriciens de l’ancien
régime. Paris: Fontemoing, 1907, pp. 99-102, 106.
SUMÁRIO

16 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

normas de caráter geral, como as edicta e mandata, bem como normas de caráter
particular, como decreta, epistulae e rescripta.

O que parece unir Aristóteles, Hotman e outros autores pré-modernos


distantes entre si por séculos ou milênios é a necessidade de dar forma, isto é, de
corporificar as normas mais essenciais que estruturam as bases de suas
organizações políticas e, por consequência, separam a civilidade da barbárie. No
entanto, a porta de entrada muito própria da Modernidade intocada por todos
eles é algo evidente: a limitação do poder público como função essencial de uma
constituição. Função essencial e suficiente em si mesma, independentemente de
legitimações metafísicas ou teológicas. Assim, a singela pergunta que dá título a
este item poderia ser respondida com inúmeras páginas, em diversos sentidos
possíveis ao longo da história.

Nos itens seguintes ousaremos tentar responder o referido


questionamento em cada um dos autores que, ao nosso sentir, foram decisivos na
formação do pensamento político-jurídico Ocidental: Burke, Lassalle, Marx,
Hauriou, Kelsen e Schmi�. O caráter aparentemente “arbitrário” dessa eleição é
suavizado pelo fato de que diversos autores, mesmo manualistas, apontam para
o referido rol como um elenco mínimo de pensadores responsáveis por aquilo
que se convencionou chamar de teorias da constituição.³

1.1 A constituição jusnaturalista

Uma primeira definição de contato temporal imediato com o início do


constitucionalismo ocidental é remetida ao impreciso conceito de constituição
jusnaturalista. Impreciso porque não é uma terminologia recorrente na doutrina e
por não ter claras bases teóricas que o dissocie das medievais lois du royame ou lois
fondamentales, responsáveis pela estruturação normativa das monarquias
europeias da baixa Idade Média.

Todavia, não apenas no século XVIII, mas um ou dois séculos antes, na


Europa continental e na Inglaterra, as monarquias passaram a tentar justificar
seus poderes absolutos de modo mais incisivo na natureza humana. Desenvolvia-

3 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 188-192,
apresenta o mesmo elenco como uma espécie de ilustração daquelas que são as grandes correntes doutrinais
acerca do problema constitucional.
SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 17
se uma concepção de constituição jusnaturalista que descrevia as organizações
entre poderes, sob a legitimidade espiritual da Igreja católica, como uma situação
de fato produzida pela evolução histórica de determinada coletividade, não por
uma mera vontade soberana; o reino seria um corpo orgânico responsável por
bem ordenar uma sociedade, antes mesmo de garantir direitos. Jean-Baptiste
Busaall recorda que a dinastia Bourbon foi a responsável por esse alto grau de
organicidade do Reino da França, uma vez que até então as relações de
privilégios, foros e mesmo leis estavam centradas em diferentes pontos de
sustentação fora do território francês, como em Roma e no Reino da Espanha.⁴

Resumidamente, pode-se definir a constituição jusnaturalista como uma


tentativa, antecedente aos eventos históricos que culminaram com a Revolução
Francesa, de fundamentar o poder político em uma ordem superior de princípios
e regras de direito natural que serviria de parâmetro ético e metafísico para o
direito positivo. Embora fortemente marcada pelo tomismo, no campo filosófico,
e pelo catolicismo, no âmbito religioso, podemos afirmar sem receios que a
constituição jusnaturalista foi a grande tese a ser contestada pelas correntes que
surgiriam nos séculos XVIII e XIX, em especial por parte da constituição
historicista em solo britânico.

1.2 Edmund Burke (1729-1797) e a constituição histórica

A história constitucional do Reino Unido é notadamente marcada por


uma divisão entre o período de direito costumeiro e o período de common law. A
distinção entre ambos os momentos históricos pode ser sintetizada na expressão
cunhada por Christopher Hill: anti-normanismo.⁵ Esta expressão objetiva
demonstrar a oposição da tradição e costumes locais britânicos contra as demais
formas societárias existentes à época, sobretudo vikings e tradições mais ao leste.
Todavia, a oposição maior será contra os eventos que se passaram no século XI e
estão diretamente relacionados ao período de dominação de Guilherme, o
Conquistador (William, the Conquer), isto é, a Invasão Normanda, de 1066.

Iniciada com a Batalha de Hastings, em 14 de outubro de 1066, uma


nova ordem político-jurídica fora instituída, subvertendo o poder local do

4 BUSAALL, Jean-Baptiste. Le spectre du jacobinisme: l’expérience constitutionnelle française et le premier


libéralisme spagnol. Madrid: Casa de Velázqvez, 2012, p. 271.
5 HILL, Christopher. Puritanism and revolution: studies in interpretation of the English Revolution of the
seventh century. New York: St. Martin’s Press, 1997.
SUMÁRIO

18 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

municipal law ao introduzir o direito romano como referência normativa, a ideia


de corte judicial como locus típico para a solução das controvérsias, a primazia do
direito escrito, o latim como língua oficial das cortes e do próprio direito
legislado. Em outras palavras, o common law nasce não como consequência da
Invasão Normanda, mas como um movimento do pensamento organizado contra
a tradição romanista trazida pelos normandos. A relação disso com a ideia de
constituição histórica poderia ser desenvolvida com muito maior profundidade,
mas, tendo em vista a proposta metodológica de ensaio que nos guia nas
presentes páginas, iremos ressaltar pontualmente a significativa conotação de
narrativa, de filosofia da história, presente em uma interpretação que divide a
história constitucional britânica em pré e pós-Invasão Normanda: a tese do
Norman Yoke (Jugo Normando).

John Pocock salienta que essa tese fundamenta a divisão entre Ancient
constitution e British constitution no curso da história, recordando inclusive que o
Jugo Normando foi objeto de grande importância para movimentos políticos
como os Niveladores (Levellers) durante a primeira Guerra Civil Britânica
(1642-1651); a retórica antinormanista favorecia a crítica e insurreição contra a
ordem estabelecida àquela época, sobretudo contra o poder absoluto do
monarca.⁶ Os Levellers tinham a pretensão de sustentar uma soberania popular
com base no argumento de que somente um homem livre poderia conhecer os
desígnios de Deus para ele, o que tornava qualquer forma de mediação, seja por
meio do monarca ou de um parlamento restrito a nobres, uma ofensa à condição
natural do homem e, em última instância, a Deus.

Edward Coke (1552-1634) esteve no centro de acirrados debates,


sobretudo com os Levellers, na Inglaterra do séc. XVII. O primeiro ponto de
desacordo entre eles reside no fato de que Coke entendia ter Guilherme assumido
o trono em virtude de um exercício do seu direito com base nas antigas leis
britânicas, não havendo assim a imposição de um novo sistema, nem ruptura com
a ordem até então existente.⁷ Se para os Levellers era importante sustentar a tese
de que o Jugo Normando teria provocado uma ruptura na tradição histórica
britânica, para os parlamentaristas era fundamental defender o common law como

6 Cf. POCOCK, J. G. A. Ancient Constitucional and the Feudal Law. Cambridge: Cambridge University Press,
1967, p. 319.
7 Cf. SEABERG, R. B. The Norman Conquest and the Common Law: the Levellers and the Argument from
Continuity. The Historical Journal, Vol. 24, n. 4, 1981, p. 804.
SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 19
o melhor sistema para a realização plena da commonwealth⁸ e para a função
essencial de distribuição de justiça⁹. Enquanto aqueles sustentavam um modelo
político republicano e revolucionário, capaz de colocar o povo diretamente no
poder, Coke e os parlamentaristas buscavam algo politicamente mais viável: a
limitação do poder da dinastia Stuart e a ampliação das prerrogativas do
Parlamento.

Cerca de um século depois da Guerra Civil, Edmund Burke (1729-1797),


notabilizado como um dos grandes teóricos do conservadorismo, representa com
suas ideias uma grande síntese de quinhentos anos de evolução da British
constitution, pois sustentava, sem recorrer ao direito natural, que haveria uma
relação de continuidade responsável por formar a tradição histórico-
constitucional de um país, a qual seria reconhecível por sua capacidade de limitar
o poder, dividir o seu exercício e afirmar direitos individuais.

Pensador respeitado ao longo do tempo por liberais, conservadores e


progressistas, Burke produziu seus principais textos quando parlamentar
(1766-1794) na Câmara dos Comuns (House of Commons), sobretudo na observação
crítica de eventos históricos, como a Revolução Francesa, e no combate efetivo a
políticas de sua época, inclusive culminando com a moção de desconfiança, em
1782, que pôs fim ao governo do polêmico Lord North, primeiro-ministro durante
a Guerra de Independência dos EUA.

O filósofo George H. Sabine coloca em evidência o fato de que, antes de


uma constituição histórica, em Burke a ideia essencial será a de uma “constituição
prescritiva”¹⁰. Muito mais do que uma dimensão local do poder, ou um agregado
momentâneo de indivíduos, uma nação é formada por uma ideia de continuidade
norteada por decisões que, deliberadamente por parte do povo, encontram
reconhecimento nas gerações futuras; ideias que prescrevem os títulos, os direitos,
tudo que há de mais essencial, inclusive que prescrevem o governo; para Burke, a
constituição britânica existe por ser, antes de tudo, uma constante evolução que
remonta a um tempo imemorável.¹¹

8 Registre-se a dificuldade de tradução literal para o português que a expressão commonwealth nos oferece, pois
ela possui vários significados, como: bem-comum, Estado, nação e comunidade.
9 Cf. POCOCK, J. G. A. Ancient Constitutional and the Feudal Law, cit., p. 32.
10 SABINE, George H. Storia delle do�rine politiche. 4 ed. Trad. Luisa de Col. Milano: Edizioni di Comunità, 1962,
p. 489.
11 BURKE, Edmund. Reform of representation in the House of Commons (1782). In: Id. Works, Vol. VI. London:
Bohn, 1861, p. 147.
SUMÁRIO

20 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

1.3 Ferdinand Lassalle (1825-1864) e a constituição sociológica

Com o prussiano Lassalle inaugura-se um período no


constitucionalismo ocidental em que a rivalidade com a perspectiva historicista
britânica deve ser superada – pelo menos, de modo explícito – e definições
concretas passam a surgir na Europa continental para diferenciar a constituição
como mero ato legislativo da constituição como lei maior de um ordenamento
político-jurídico. A proximidade com Marx durante a época da Revolução
Prussiana, de 1848, pode ser sentida no modo como reciprocamente ambos em
suas obras refletem a necessidade de conceber um espaço próprio para a
composição entre as forças políticas existentes em uma sociedade. Vem de
Lassalle, em livro originado a partir de conferência proferida em Berlim, em 1862,
o direto enfrentamento a uma questão não menos clássica do que a pergunta que
norteia o presente ensaio: qual a essência de uma constituição?

A resposta a tal questionamento é dada de modo a, primeiramente,


diferenciar lei e constituição, pois esta é também uma lei, mas não se resume a ser
apenas uma lei, pois é a lei fundamental de uma nação�¹² Afirma que “Esta é, em
síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais de poder que
regem uma nação.”¹³ Mas o que seriam tais fatores reais de Poder? Responde ele que
“os fatores que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que
informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não
possam ser, em substância, a não ser tal como eles são.”¹⁴

Trata-se de conceito tão impactante historicamente quanto polêmico,


pois seu caráter altamente descritivo poderia condenar uma nação eventualmente
influenciada por agentes viciosos – entre os fatores reais de poder ele arrola igreja,
monarquia, banqueiros, aristocracia, grande burguesia, pequena burguesia e
classe operária – a permanecer fatalmente entregue a um destino sombrio. Não
obstante essa importante crítica que se possa fazer, o conceito sociológico de
constituição possui o mérito inegável de tentar se aproximar da realidade
socioeconômica e histórica do momento constituinte, deixando que a medida da
efetividade da constituição seja definida pelos rumos que a composição entre os
fatores reais de poder vier a assumir. O componente transformador que uma
constituição precisa ter, guiando a coletividade rumo ao bem comum e a valores

12 LASSALLE, Ferdinand. A essência de uma constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 06.
13 LASSALLE, Ferdinand. A essência de uma constituição, cit., p. 18.
14 LASSALLE, Ferdinand. A essência de uma constituição, cit., p. 10.
SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 21
compartilháveis, seria presumivelmente construído no seio de um conflito
dialético-materialista, constante e infindável, entre os diferentes fatores reais de
poder.

1.4 Karl Marx (1818-1883) e a constituição como superestrutura?

Embora nunca tenha escrito sobre temas estritamente jurídico-


constitucionais, Marx tem associada a si a paternidade da noção de constituição
como superestrutura, isto é, como norma jurídica maior de uma organização
estatal. Posto em termos tão breves, poderia equivocadamente remeter ao
estruturalismo filosófico que, já em Saussure, buscava a descrição das relações de
equivalência ou oposição como determinantes de um conjunto de elementos que
formariam a estrutura; porém, o enfoque de Marx é essencialmente originado na
crítica às relações econômicas. Um dos conceitos mais importantes da teoria
marxista, a superestrutura seria o nível máximo de projeção ideológica das
estratégias de grupos econômicos e políticos (as elites) para fins de manutenção e
perpetuação dos seus domínios.

Em contrapartida, a infraestrutura – outro conceito central nessa teoria


– seria composta por relações materiais entre aqueles que detêm as forças de
produção em si, isto é, os trabalhadores que empregam seus esforços na
transformação da matéria-prima em produtos (manufaturados, industrializados).
Assim, o conjunto dessas relações de produção constituiria, para Marx, a
“estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva a
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de
consciência social.”¹⁵

A partir dessa perspectiva altamente determinista, restaria à


constituição o papel de ser a referência normativa suprema na ordenação de uma
sociedade organizada para fins de manutenção dos detentores dos meios de
produção. O próprio emprego da palavra “constituição” por Marx remetia, com
imprecisão, à ideia de lei maior em uma organização político-jurídica
independente. Entretanto, a relevância da teoria marxista da constituição tornou-
se expressiva não apenas por sua influência na origem da URSS e nos países que
aderiram ao Pacto de Varsóvia, mas, mesmo com a dissolução da União Soviética

15 MARX, Karl. Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Estampa, 1973, p. 28.
SUMÁRIO

22 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

e o início do século XXI, as muitas críticas aos processos de globalização


recorrentemente apelam aos referenciais marxianos para tentar abordar temas
como desigualdade social, pobreza extrema, entre outros problemas para os quais
as respostas atuais não encontram guarida na realidade.

De uma constituição-balanço, como denominada pelo leninismo, que


apenas descreve as estruturas de poder estatal e a organização político-econômica
existente, passa-se a uma concepção de constituição marxista no sentido de
limitação jurídico-política à superestrutura representada pela economia. Ao
nosso sentir, não mais para uma revolução anticapitalista global teria sentido
pensar a partir da matriz marxiana, mas sim como fonte de possíveis subsídios
teóricos para a refundação das bases do capitalismo rumo a uma ordem
internacional menos desigual entre as nações e com reais instrumentos de
promoção da dignidade humana em suas múltiplas dimensões existenciais.

1.5 Maurice Hauriou (1856-1929) e a constituição como instituição

As teorias institucionalistas do direito e da constituição foram objeto de


diferentes proposições durante a primeira metade do século XX, em diversos
países, sobretudo em França e Itália. Na virada do século XIX para o XX, Vi�orio
Emanuele Orlando, professor de direito constitucional em Palermo e político
próximo tanto de diplomatas de outras nações como de juspublicistas da
expressão de Georg Jellinek, introduzia as bases do que seria o direito público
italiano. Todavia, o pensamento jurídico-constitucional do início do século XX
ainda não contava com teorizações próprias acerca de puramente questões
teóricas, estando marcado pelo dogmatismo e, em certa medida, também pelo
pragmatismo. Foi com Santi Romano, o mais notável aluno de Vi�orio Emanuele
Orlando, que o institucionalismo jurídico italiano ganhou corpo e alma, em
especial na obra L’Ordinamento giuridico¹⁶, onde delimita suas diferenças com o
formalismo positivista ao sustentar que “o direito é instituição”, isto é, antes de
ser norma ou conjunto de normas, o direito seria uma instituição, um âmbito de
ação no qual as normas tornam-se possíveis.

Tal ideia já se encontrava presente, contemporaneamente, em solo


francês com Maurice Hauriou. Diferentemente de Santi Romano e sua visão de

16 ROMANO, Santi. L’Ordinamento giuridico. Pisa: Mario�i, 1918.


SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 23
instituição como um ente único¹⁷, Hauriou sustentava haver uma linha de
continuidade entre o surgimento do Estado moderno, o contrato social, em
especial após as contribuições de J.J. Rousseau, e a afirmação da instituição como
expressão objetiva do poder subjetivo difuso entre os indivíduos no seio da
sociedade. Assim, não haveria propriamente uma “unidade” do ordenamento
jurídico, mas um dualismo entre a constituição social e a constituição política que
representa a transição do subjetivismo característico daquela para o objetivismo
que deve marcar esta. Hauriou demonstrava que a evolução do direito moderno
era baseada na afirmação histórica de dualismos que podem ser resumidos na
relação sujeito de direito e norma jurídica, ou também nas noções de direito
subjetivo e direito objetivo.¹⁸

Um possível conceito de constituição no institucionalismo de Hauriou


poderia se aproximar, aos olhares menos atentos, dos formalismos positivistas
muito difundidos em sua época, mas inquestionavelmente tal conceito apresenta
o diferencial de ser a constituição uma instituição enquanto ordem essencial que
congrega em si mesma os dualismos próprios do direito e os dualismos da
sociedade (indivíduo e estado, poder e ordem).

1.6 Hans Kelsen (1881-1973) e a constituição positiva

Um dos juristas mais reconhecidos e influentes do século XX, Kelsen


possui a célebre concepção de ordenamento jurídico como uma estrutura
escalonada e piramidal, na qual o nível normativo superior atribui legitimidade
formal ao nível normativo inferior. Dita concepção viria a se consolidar como
referência básica para as diferentes variantes do positivismo surgidas após sua
obra. Na Teoria Pura do Direito (1934), Kelsen definia constituição como a norma
mais elevada do escalão de direito positivo, possuindo a função de ser “a norma
positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das
normas jurídicas gerais.”¹⁹

17 Sobre a temática da unidade do ordenamento jurídico, ver Tommaso Gazzolo, Santi Romano e l’ordinamento
giuridico, Jura Gentium, Vol. XV, n. 2, 2018, pp. 115-127, sobretudo nas precisas referências às obras de
Fioravanti e Grossi sobre o tema em objeto.
18 HAURIOU, Maurice. Aux sources du droit: le pouvoir, l’ordre et la liberté. Paris: Librairie Bloud & Gay, 1933,
pp. 90-91.
19 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 247.
SUMÁRIO

24 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

O conceito kelseniano de constituição é comumente confundido, de


modo profundamente equivocado, com sua concepção de norma fundamental.
Desempenhando função central na legitimação não apenas da ordem político-
jurídica estatal, mas também da ordem internacional, Kelsen define norma
fundamental como uma pressuposição lógico-transcendental, estabelecida
aprioristicamente apenas de modo formal, pois materialmente desprovida de
conteúdo prescritivo, cuja função é fundamentar a validade objetiva de uma
ordem jurídica positiva, ou seja, legitimar a forma a partir da qual o conteúdo será
elaborado.²⁰

O monismo kelseniano, responsável pela tentativa de formação de uma


ordem internacional universalista, faz referência a uma “ética universal” e,
sobretudo, a uma “consciência humana universal” enquanto elemento
intersubjetivo capaz de unir diferentes povos.²¹A sua própria definição de norma
fundamental do direito internacional também não determina conteúdo material
a priori para a ordem internacional, sendo descabido definir que um sistema que
nem sequer se encontra institucionalmente consolidado – já que o próprio Kelsen
reconhece que o direito internacional²² é apenas um direito primitivo, isto é, um
direito que “sofre incontestavelmente de uma imperfeição técnica, que, porém,
lhe impede de ser reconhecido como um verdadeiro direito”²³ – possa vir a ter
valores éticos e morais a nortear a sua criação. Diante dessa “imperfeição técnica”
do direito internacional, restaria aos Estados nacionais a prerrogativa de
seguirem ocupando o locus principal de exercício do poder político instituído.²⁴

Esse vazio substancial da norma fundamental in genere justifica-se pelo


fato de “que Direito e Moral constituem diferentes espécies de sistemas de
normas”, uma vez que: “parte-se de uma definição do Direito que o determina
como parte da Moral, que identifica Direito e Justiça.”²⁵

20 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, cit., p. 244-245.


21 KELSEN, Hans. Les rapports du système entre le droit interne et le droit international public. Recueil des cours
de l’Académie de droit internacional, Vol. 13, n. 4, 1926, p. 326; e Id., Il problema della sovranità e la teoria del
diri�o internazionale: contributo per una do�rina pura del diri�o. Milano: Giuffrè, 1989, p. 469.
22 Cfr. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, cit., pp. 239-243.
23 KELSEN, Hans. Les rapports du système entre le droit interne et le droit international public, cit., p. 318.
24 Para uma crítica à proposta de Kelsen para a ordem internacional, remetemos ao nosso TEIXEIRA, Anderson
Vichinkeski. Teoria Pluriversalista do Direito Internacional. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
25 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, cit., pp. 71-72.
SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 25
1.7 Carl Schmi� (1888-1985) e o realismo da constituição

Notabilizado como um dos mais polêmicos juristas do século XX,


Schmi� não foi menos qualificado do que polêmico, certamente. Ainda jovem
ganhou rápido reconhecimento acadêmico pela marcante habilidade em versar
sobre temas atinentes a direito constitucional, à teoria política e teoria do direito,
bem como à filosofia das relações internacionais e do direito internacional. No
que concerne ao tema central do presente ensaio, foi com sua obra de 1933,
Verfassungslehre, que elaborou a definição talvez mais marcante para o realismo
jurídico: a constituição como “decisão política fundamental” de uma ordem
politicamente instituída.²⁶

Para melhor compreender essa sucinta conceituação de constituição,


faz-se mister recordar um dualismo do pensamento schmi�iano que está na base
de todo o seu pensamento político-jurídico: normalidade vs. exceção. Ainda
durante a Faculdade de Direito, seus principais interesses eram autores que
tratavam de justificar as origens do poder político do Estado moderno: desde Jean
Bodin e Thomas Hobbes, passando por Joseph De Maistre e Donoso Cortés,
ambos muito vinculados aos contextos políticos de seus países, França e Espanha,
respectivamente, até chegar a importantes interlocuções com jovens
contemporâneos seus, como Walter Benjamin. Em sua tese doutoral e, logo em
seguida, em tese de livre-docência, Schmi� demonstrava intenso fôlego em
dissecar os conceitos políticos que chamava de “teológicos”, dizendo que teria
sido uma “teologia secular” que, desde o século XVI, erigiu as bases do Estado
moderno em oposição a qualquer outra forma de poder existente, sobretudo ao
poder da Igreja.

A exceção surge com uma metáfora de difícil compreensão para aqueles


que não são muito próximos das obras de Schmi�: o estado de exceção estaria
para o Estado moderno assim como o milagre está para a teologia.²⁷ O milagre
seria uma forma de corrigir os atos humanos que violam as leis da natureza.
Logo, a exceção seria um modo de corrigir a política do Estado quando ela não
funciona com base na própria normalidade que institui. Não seria isso uma
perigosa supervalorização da capacidade humana de se autoguiar e transcender

26 Schmi�, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza, 2011, p 23-25.


27 Utilizo-me aqui da coletânea que inclui o texto de 1922, ver SCHMITT, Carl. Le categorie del politico. Bologna:
Il Mulino, 1972, p. 61-62.
SUMÁRIO

26 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

da normalidade para a exceção? Schmi� não estaria concebendo um remédio


demasiadamente amargo contra as insuficiências do próprio Estado? Diversas
vezes ele se dizia um mero intérprete do fenômeno político, pois a essência do
humano é o existir político, seja na normalidade ou na exceção. Na antiguidade
grega, o nomos era o que separava a civilidade da barbárie, da anomia, da ausência
de qualquer padrão de conduta aceito por todos.

Exatamente por ter tanta convicção na política e na capacidade humana


de se ordenar que ele entendia que mesmo na exceção existiria um soberano. Na
normalidade, este seria o Estado. Mas quem seria o soberano no estado de
exceção? A resposta está sintetizada naquela que talvez seja sua frase mais
conhecida: “Soberano é quem decide em estado de exceção.”²⁸

Ocorre que o seu conceito político-jurídico de soberania encontra-se


intimamente vinculado à noção de poder (comando máximo) em uma sociedade
política, resultando em um conceito de soberania que lhe é peculiar e, até mesmo,
reducionista. Assim, em uma ordem politicamente instituída, a decisão
fundamental adotada pelo detentor do poder soberano seria denominada
constituição, fosse ela emanada de um monarca ou de um parlamento
democraticamente eleito. Estar em condições de decidir pela adoção de uma lei
maior, isto é, a lei fundamental do Estado, pressuporia estar politicamente
legitimado pela superação da barbárie, pela superação da exceção por parte da
normalidade.

2. Um conceito pluriversalista de constituição da ordem internacional?

Recordando que o caráter ensaístico do presente texto permite um certo


grau de liberdade na abordagem dos conceitos, pense-se então na pergunta que
nos guia até aqui – “o que é uma constituição?” –, redimensionada para a ordem
internacional: seria possível uma constituição para a ordem internacional? Qual a
utilidade das tradicionais teorias da constituição para um possível conceito de
constituição transnacional?

No projeto de pesquisa em curso no PPGD/UNISINOS, o tema geral da


pesquisa envolve o modo como diversas teorias apontam para uma certa
continuidade evolutiva do constitucionalismo e suas variantes notadamente de

28 Schmi�, Carl. Le categorie del politico, cit., p. 33.


SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 27
matriz nacional rumo ao fenômeno constitucional transnacional. Haveria sim
uma constituição, pois um constitucionalismo estaria em curso.²⁹ Recorde-se o
conceito geral de constitucionalismo ofertado por Maurizio Fioravanti: “um
movimento do pensamento voltado, desde suas origens, a perseguir as
finalidades políticas concretas, essencialmente consistentes na limitação dos
poderes públicos e na afirmação de esferas de autonomia normativamente
garantidas.”³⁰ Nicola Ma�eucci, por sua vez, acentua o caráter finalístico do
fenômeno: “[C]om o termo ‘constitucionalismo’ geralmente se indica a reflexão
acerca de alguns princípios jurídicos que permitem a uma constituição assegurar
nas diversas situações históricas a melhor ordem política.”³¹ Em síntese,
inegavelmente o fenômeno constitucional exerce duas funções essenciais: a
limitação do poder político e a tutela de direitos fundamentais. Transpondo para
a ordem internacional, a limitação ao poder – seja ele político, econômico ou de
outra natureza que tenha expressão transnacional – e a tutela dos direitos
humanos serão os fundamentos de qualquer compreensão de constituição que se
pense para a ordem internacional.

No âmbito dos Estados nacionais é altamente expressivo o predomínio


de constituições escritas. Todavia, no âmbito internacional, como nas
comunidades regionais, é muito discutível a adoção desse formato de
constituição, como se tem visto sobretudo desde a criação da União Europeia e os
insucessos de todos os projetos de Constituição da UE. Logo, em nível global/
supranacional soaria até mesmo utópico a crença em um documento único e
universalmente válido. A existência de documentos jurídicos historicamente
garantidos e legitimados pelos atores da ordem internacional permite falar da
existência, no que concerne à forma, de uma constituição histórica, ao passo que, no
que toca ao conteúdo, de uma constituição material.

Nesse aspecto formal, convém lembrar de Burke e sua defesa das


instituições garantidoras da liberdade contra os arbítrios da monarquia. A
constituição britânica, por ser produto de uma evolução histórica, estaria em
condições de enfrentar com maior legitimidade eventuais crises políticas
circunstanciais, sem que a constituição em si fosse questionada. Atualmente, a

29 Remetemos a seguinte pesquisa já desenvolvida há alguns anos e a partir da qual diversos desdobramentos se
seguiram: TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Constitucionalismo transnacional: por uma compreensão
pluriversalista do Estado constitucional. Revista de Investigações Constitucionais, Vol. 3, n. 3, 2016, p. 141-166.
30 Fioravanti, Maurizio. Costituzionalismo. Percorsi della storia e tendenze a�uali. Roma-Bari: Laterza, 2009, p. 5.
31 Ma�eucci, Nicola. Lo Stato moderno. 2ª ed. Bologna: il Mulino, 1997, p. 127.
SUMÁRIO

28 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

ordem internacional está diretamente vinculada aos eventos ocorridos logo em


seguida ao final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo ao surgimento da
Organização das Nações Unidas e de uma série de documentos jurídicos
internacionais protetivos dos direitos humanos. Por mais que os princípios
vestfalianos mantenham-se conservados, uma constituição histórica da ordem
internacional teria como marco temporal imediato a própria instituição das
Nações Unidas e todos os documentos jurídicos que se sucederam.

Nesse sentido, é oportuno recordar a singular contribuição teórica de


Costantino Mortati, um institucionalista influenciado por Santi Romano e
Hauriou. Ele afirmava que “um conceito material de constituição somente poderia
ser dado fazendo referência a um momento determinado do desenvolvimento
histórico.”³² Ou seja, a historicidade será sempre um aspecto a se destacar em uma
constituição, independentemente de qual forma assuma. A dimensão unificadora
da constituição material é reforçada por ele quando afirmava que o critério
material “pode se mostrar apto a unificar as várias fontes de produção, enquanto
pré-exista a estas, i.e., enquanto tenha em face destas a sua autonomia.”³³ Embora
Mortati tenha pensado a constituição material a partir da perspectiva do Estado
moderno, a função de conservação da forma de organização do poder e do
próprio regime merece também ser sublinhada, pois aquela terá por função
“garantir, acima das modificações dos institutos ou de finalidades específicas, a
manutenção do fim essencial que serve para identificar um tipo de Estado frente
a outros.” Uma comparação com a constituição material de Mortati deve servir, no
momento, apenas para ilustrar que mesmo categorias próprias do
constitucionalismo de matriz estatal também se aplicam a um constitucionalismo
de matriz transnacional – e, mais do que isso, terminam por atribuir maior
consistência teórica a este.

Conclusivamente, mesmo contribuições como as de Lassalle, ao pensar


a constituição como ordenação dos fatores reais de poder, ou de Schmi�, ao
conceber a necessidade de ordem como pressuposto para a superação da exceção
e estabelecimento de uma normalidade, encontram condições de possibilidade
para que sejam reconfiguradas em seus elementos teóricos e redimensionadas
para além das fronteiras estatais. A perenidade de uma teoria é, em larga medida,

32 MORTATI, Costantino. La costituzione in senso materiale. Milano: Giuffrè, 1998, p. 07.


33 MORTATI, Costantino. La costituzione in senso materiale, cit., p. 136.
SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 29
dependente das suas condições de adequação e de redefinição aos novos
contextos que o futuro tratará.

Sem se enlear irrestritamente a todos os pressupostos de uma específica


perspectiva epistemológica – e, assim, incorrer no perigo de se afastar da
realidade fenomênica do mundo da vida –, verifica-se que um possível conceito
de constituição para a ordem internacional necessita compreender o
constitucionalismo transnacional como parte de um processo evolutivo do
fenômeno constitucional originado nos Estados nacionais. As constantes crises no
cenário internacional permitem concluir que, ao longo do século XXI, o Estado
nacional permanecerá desempenhando seu papel de primeira referência político-
jurídica para as coletividades humanas, mas cada vez mais enfrentando
discussões sobre a necessidade de uma expressa e limitada relativização da
soberania nacional em benefício exclusivo de instituições supranacionais capazes
de transcender as vontades políticas circunstanciais das grandes potências e dar
representatividade – no sentido de uma democracia radical e contínua – aos
indivíduos e aos países que atualmente se encontram marginalizados tanto do
mercado internacional quanto do cenário político internacional.

A tutela de bens jurídicos universais, como a saúde, a segurança e o


meio ambiente, são flagrantes exemplos que apontam para a necessidade de uma
constituição transnacional que tenha por finalidade última garantir aos Estados
nacionais e aos espaços regionais o fortalecimento dos seus objetivos específicos.
A ubiquidade da existência humana é um fato posto e inegável; já a proteção de
sua dignidade, enquanto corolário da existência, é um fim a buscar nas suas
múltiplas dimensões essenciais.

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FIORAVANTI, Maurizio. Costituzionalismo. Percorsi della storia e tendenze a�uali.


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SUMÁRIO

30 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

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SUMÁRIO

Anderson Vichinkeski Teixeira


CAPÍTULO 1 31
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SUMÁRIO
SUMÁRIO

Capítulo 2

O QUE OS DIREITOS FAZEM


COM AQUELES QUE
POSSUEM DIREITOS?

aportes analíticos para a compreensão da


relação entre vontade e interesse na
constituição do sujeito de direitos

André Luiz Olivier da Silva


SUMÁRIO

34 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

O QUE OS DIREITOS FAZEM COM AQUELES QUE POSSUEM


DIREITOS? aportes analíticos para a compreensão da relação entre
vontade e interesse na constituição do sujeito de direitos

André Luiz Olivier da Silva¹

Introdução

O tema da presente investigação aborda a função que a linguagem dos


direitos desempenha diante do sujeito de direitos. O que significa ter ou possuir
um direito? O que os direitos fazem com os seus possuidores? Qual a função que
desempenham? Para responder a essas perguntas, pretende-se analisar o que
significa possuir um direito e quem pode figurar como seu titular, destacando a
função que a linguagem dos direitos desempenha para os seus detentores ou
possuidores, tendo como referência o seu principal projeto racionalista de
fundamentação teórica, a saber, a teoria da vontade, agência e autonomia
normativa. Com base nesta teoria, pretende-se mostrar que só pode possuir um
direito – e figurar como sujeito de direitos – aquele que consegue controlar
racionalmente as suas escolhas e decisões para, com isso, controlar a ação e o
comportamento dos outros. Em seguida, pretende-se escrutinar os pontos frágeis
dos argumentos em torno da teoria da agência normativa da ação e, com base na
sua tese arquirrival – a teoria do interesse –, apontar as suas limitações,
mostrando que, no fundo, possui um direito todo aquele que consegue tirar
algum proveito, benefício ou vantagem da relação obrigacional da qual emanou
o próprio direito.

1 Professor da Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Professor no Programa
de Pós-Graduação em Direito e nos Cursos de Graduação em Direito e Relações Internacionais da Unisinos.
Doutor em Filosofia pela Unisinos. Bacharel em Filosofia e Direito. Advogado e, atualmente, Coordenador do
Curso de Graduação em Direito da Unisinos. E-mail: andreluiz@unisinos.br.
SUMÁRIO

André Luiz Olivier da Silva


CAPÍTULO 2 35
A presente investigação revelará que ambas as teorias apresentam
argumentos consistentes e outros mais frágeis e nem tão consistentes assim.
Ambas merecem críticas, embora intentem explicar o que os direitos fazem com
os seus possuidores. Entre a vontade e o interesse, o presente artigo pretende
ressaltar que a teoria da vontade é limitada e não consegue explicar o caso dos
direitos de personalidade, em especial aqueles que se destinam a pessoas
incapazes, como crianças e pessoas com deficiência. Mas, a recusa à tese da
vontade, não pode significar uma adesão cega à teoria do interesse, que, embora
se apresente como alternativa para explicar a função que os direitos
desempenham aos seus titulares, também apresenta as suas dificuldades. Por fim,
iremos apresentar alternativas para se evitar a moldura de uma ou outra vertente
como fonte única e exclusiva. Essas alternativas consistem, basicamente, em uma
perspectiva híbrida e em uma perspectiva de múltiplas funções.

1. A teoria padrão: vontade, escolha e agência normativa

Vamos começar colocando as cartas na mesa. O que os direitos fazem


com aqueles que os possuem? Qual é a função que desempenham? Encontrar uma
resposta para essas perguntas é explicitar a razão do sujeito de um direito poder
ter ou possuir esse direito. O candidato preferido dos projetos de fundamentação
dos direitos a explicar o que os direitos fazem com aquele que os possui é a
vontade, mais precisamente a teoria da vontade, escolha e agência normativa. Os
adeptos desta teoria² tomam como ponto de partida o pressuposto de que o ser

2 A inspiração para a teoria da vontade foi dada por Kant, que propôs uma vontade fortemente racional que
conseguiria inclusive se colocar à parte dos movimentos do mundo natural para prescrever, julgar e decidir
sobre o uso de sua liberdade. A filosofia prática kantiana esteve sempre preocupada com o intercâmbio entre
vontade, autonomia, liberdade e dever (seja um dever moral, seja um dever jurídico) e, por causa destes
conceitos-chave, inspirou profundamente uma discussão muito semelhante no domínio da teoria dos direitos.
Para todo adepto da teoria da vontade, pode-se verificar uma “intenção” ou “intencionalidade” por detrás do
fenômeno empiricamente observável, o que pressupõe a ideia de uma vontade livre e racional capaz de fazer
escolhas. Seguindo o rastro da tese da vontade, chegaremos em autores que desenvolveram e desdobraram a
noção de “intencionalidade” na teoria do direito, como Herbert Hart (HART, 1983, p. 106). Além de Hart,
podemos referenciar Henry Shue, Allan Gewirth, Friedrich Carl von Savigny, Bernhard Windscheid, Hans
Kelsen, Sumner, Carl Wellman e Hillel Steiner. Todos eles concordam que o sujeito de direitos só pode possuir
um direito se e quando estiver capacitado a fazer escolhas e, com isso, demandar, exigir e até mesmo renunciar
aos seus direitos.
SUMÁRIO

36 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

humano é livre e pode agir e controlar a sua ação e também a ação dos outros com
base na sua capacidade racional para escolher, demandar e renunciar aos direitos.

O ser humano é motivado racionalmente por uma vontade que lhe


habilita a fazer escolhas no domínio das obrigações (jurídicas e morais) – e a
função principal dos direitos é promover e patrocinar “escolhas” ao indivíduo, “é
dar ao titular discrição sobre o dever de outro” (WENAR, 2005, p. 238, tradução
nossa), visto que “todo direito é um veículo para algum aspecto da
autodeterminação ou iniciativa de um indivíduo.” (KRAMER, 1998, p. 62,
tradução nossa). Conforme complementa Wenar: “onde não há escolha
normativamente respeitado, não pode haver direito.” (WENAR, 2008, p. 253,
tradução nossa). Movido por esta capacidade volitiva da razão, o homem não só
realiza promessas e empenha a sua palavra, como também julga moralmente,
distinguindo o bem do mal em conformidade com os ditames da sua própria
consciência. Ao mesmo tempo em que se obriga e entra no jogo da promessa, o ser
humano não apenas se onera ao cumprimento de um dever, como também
adquire um direito e, ao possuir o direito, passa a exercer o controle da relação
obrigacional, o controle perante o responsável de um dever, em conformidade
com a sua própria vontade.

Logo, possui um direito todo aquele que tem o controle da obrigação.


Este controle no exercício de um direito promove a liberdade do seu titular para
agir com base na sua própria vontade, inclusive quando não precisa levar em
consideração a vontade da outra parte ou de terceiros alheios à obrigação. Trata-
se da linguagem dos direitos subjetivos, segundo a qual o titular de um direito
tem o poder de escolher como irá exercer o seu próprio direito.

Pensemos no caso de uma dívida contratual – o clássico exemplo do


direito subjetivo privado. O devedor, como o nome já diz, possui o dever de
quitar a dívida, enquanto o credor possui o direito (subjetivo) de cobrar a dívida
atrasada. Pode o credor optar por cobrar a dívida, perseguindo o devedor até o
judiciário para reaver os valores não-quitados. Ele pode, inclusive, abrir mão do
seu direito de cobrar a dívida e perdoar o devedor pelo atraso,
independentemente da vontade do devedor.

Podemos ir além e pensar as liberdades individuais, que constituem


vários exemplos de direito subjetivo público, como o exercício da liberdade de
opinião e pensamento, de ir e vir etc. O Estado deve se abster de interferir no uso
SUMÁRIO

André Luiz Olivier da Silva


CAPÍTULO 2 37
dessas liberdades por parte de determinado cidadão, pois possui o dever de não
colocar obstáculos contra liberdades e garantias individuais.

Ter um direito é ser livre para agir e determinar a sua ação a partir de si
próprio; é estar dentro de um perímetro de atuação, ao qual ninguém pode
ultrapassar para obstaculizar o exercício da sua vontade por meio do direito. Ter
um direito significa ter uma escolha respeitada dentro dos limites da lei,
conforme afirma Hart ao definir os direitos legais a partir da teoria da vontade:

(...) aquele que tem um direito tem uma escolha respeitada


pela lei. Nessa visão, haveria apenas um sentido de direito le-
gal – uma escolha legalmente respeitada – embora seja uma
escolha com diferentes exemplificações, dependendo do tipo
de ato-dentro-da-lei em que existe liberdade para fazer.
(HART, 1982, p. 188-189, tradução nossa)

Em outro artigo, Hart defende um conteúdo mínimo do direito natural,


mas, para se compreender essa afirmação, precisamos ir além dos direitos legais
e enxergar a linguagem dos direitos no campo da moralidade, com os chamados
direitos morais (isto é, aqueles direitos que existem independentemente do seu
reconhecimento por parte de um ordenamento jurídico). Ter um direito moral
significa, ainda, possuir uma justificação moral para limitar a liberdade do outro:

E isso é o que eu acho uma característica muito importante de


um direito moral, que o possuidor é concebido como tendo
uma justificação moral para limitar a liberdade do outro e que
ele tem esta justificação não porque a sua ação é intitulada a
requerer do outro que tenha alguma qualidade moral, mas
simplesmente porque, nessas circunstâncias, uma certa distri-
buição da liberdade humana será mantida se ele por sua pró-
pria escolha continuar a determinar como o outro deve agir
(HART, 1955, p. 178, tradução nossa).

Assim, aquele que possui um direito (legal ou moral) possui


discricionariedade e pode controlar o movimento daquele sobre o qual recaiu o
dever. Na relação entre direitos e deveres, o direito é a medida de controle do
dever correlato. Se analisarmos a proposição “A possui um direito X em relação a
B”, veremos que A, o titular do direito, quando diz que possui um direito, está a
afirmar que (i) A pode exercer algum tipo de controle perante a conduta de B, o
SUMÁRIO

38 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

detentor de um dever; ou que (ii) A pode renunciar ao direito prometido.


Controle e renúncia são, portanto, exigências para a titularidade de um direito. O
titular do direito pode, por um lado, exigir o cumprimento do direito prometido,
como se puxasse a corda que o vincula ao portador do dever, “puxando” a outra
parte ao seu encontro e, por conseguinte, à efetivação da promessa. Mas pode
também renunciar ao direito que até então possuía, transferi-lo a outrem,
soltando, por assim dizer, a corda ou o vínculo que o ligava ao outro polo da
relação obrigacional. O controle normativo da relação obrigacional encontra-se na
vontade do sujeito de direito, que pode, em última instância, escolher o modo
como quer operar o dever correlato.

A justificação dos direitos por meio da vontade dos seus portadores


pressupõe um agente capaz de fazer escolhas, isto é, um agente que, ao possuir
um direito, pode escolher e, com isso, pode exigir o cumprimento do seu direito
ou, até mesmo, renunciar a ele, abrindo mão daquilo que outrora lhe foi
concedido. A principal função dos direitos é, pois, proporcionar escolhas ao seu
titular, que poderá decidir de acordo com a sua própria consciência, com a sua
razão.

Disso decorre um problema sobre a capacidade daquele que pode


figurar como sujeito de direitos, pois, conforme alerta Kramer: “Além de estar
formalmente autorizada a fazer uma escolha, uma pessoa com um poder genuíno
deve ser factualmente capaz de fazer a escolha.” (KRAMER, 1998, p. 64, grifo do
autor, tradução nossa). Jones segue a mesma linha e afirma o seguinte: “Para
aqueles que subscrevem a teoria da escolha dos direitos, faz sentido atribuir
direitos apenas aos seres capazes de escolha.” (JONES, 1994, p. 67, tradução
nossa). O sujeito de direitos, para a teoria da vontade, precisa ser um agente capaz
de fazer escolhas e agenciar normativamente a sua ação e a ação dos outros – o
que não ocorre em todos os casos, em especial aqueles que envolvem direitos
humanos.

2. A tese arquirrival: interesse, vantagem e benefício

Visto em que consiste a teoria da vontade, é preciso, logo em seguida,


explorar os seus pontos frágeis, destacando-se, ainda, as dificuldades em se
encontrar uma resposta universalista para o problema do que são e para quem se
destinam os direitos humanos. As falhas e os equívocos da teoria da vontade
serão suprimidos pela teoria antagônica e arquirrival, fundada no interesse, e que
SUMÁRIO

André Luiz Olivier da Silva


CAPÍTULO 2 39
se habilita como outro candidato a explicar a função que os direitos
desempenham. Diria Wenar: “onde a teoria da vontade vacila, floresce a teoria do
interesse.” (WENAR, 2005, p. 240, tradução nossa). Assim, a alternativa mais
recorrente a ser usada contra a teoria da vontade é justificar a função dos direitos
a partir do “interesse” do titular de um direito, como pretende a teoria do
interesse ou do benefício.

Para a teoria do interesse, a função básica dos direitos é proporcionar


algum tipo de benefício ou vantagem a seu titular; é garantir a felicidade e o bem-
estar do seu titular na relação obrigacional; “(...) a função de todos os direitos é
promover os interesses dos seus detentores.” (WENAR, 2008, p. 254, tradução
nossa). Dentre os defensores da teoria do interesse, podemos destacar Ma�hew
Kramer, que afirma o seguinte: “A ideia básica subjacente à Teoria do Interesse é
que todo direito protege algum aspecto do bem-estar de uma pessoa, que pode
ou não incluir algum aspecto da liberdade da pessoa.” (KRAMER, 1998, p. 61,
tradução nossa). Nesse diapasão, é preciso destacar, para não incorrer nos
mesmos equívocos que a teoria da vontade, que: “Aqui [os] direitos não dão
opções; ao invés disso, direitos são exigências sobre as ações dos outros que são
justificadas pelos interesses do titular do direito.” (WENAR, 2008, p. 254,
tradução nossa). Segundo este expediente, o que impulsiona o ser humano a agir
e a comungar do jogo das obrigações jurídicas e morais é o autointeresse, na
medida em que os direitos trazem benefícios a seus titulares.

Se pegarmos a promessa e a concessão de direitos especiais, veremos


que, na correlação entre direitos e deveres, aquele que possui um direito tem, no
fundo, algum benefício ou vantagem perante o outro polo da relação obrigacional
para satisfazer o seu próprio interesse. Ter um benefício significa obter um
resultado proveitoso dentro de uma circunstância favorável. É tirar proveito e
vantagem da situação. Complementa Wenar:

A teoria do interesse sustenta que a função única dos direitos


é promover os interesses dos seus detentores. Mais especifica-
mente, os direitos são esses incidentes cujo propósito é pro-

3 Apontar o interesse como o fundamento dos direitos é um recurso que perpassa a modernidade, desde Hobbes,
passando por outros contratualistas, até chegar em Jeremy Bentham e John Stuart Mill, bem como a autores
mais contemporâneos como Joseph Raz, David Lyons, Rudolf Von Ihering, John Austin, John Finnis, John
Tasioulas, James Nickel, Neil MacCormick, Ma�hew Kramer, James Griffin, Martha Nussbaum e Amartya Sen.
SUMÁRIO

40 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

mover o bem-estar do titular do direito (WENAR, 2005, p.


240–241, tradução nossa).

Em oposição à teoria da vontade, a tese arquirrival ataca o pré-requisito


de que só pode possuir um direito aquele que for capaz de fazer escolhas, o que
atinge em cheio a teoria da vontade, pois é evidente que nem todo o ser humano
está em plena capacidade racional para agir e tomar uma decisão, e, portanto,
nem todos conseguem exercer o seu direito por meio da vontade. Ou seja, a teoria
da vontade encontra sérias dificuldades para justificar o porquê de crianças,
algumas pessoas com deficiência e animais possuírem direitos, visto que, nestes
casos, todos são incapazes de manifestar a sua vontade e de escolher como
querem controlar o dever que compete à outra parte da relação obrigacional.

O instituto da incapacidade civil absoluta, por exemplo, personificado


em bebês e crianças, ou em menores de idade, ou ainda em pessoas com algum
tipo de deficiência mental (o que impossibilitaria o seu discernimento e a tomada
de decisão com base na sua própria vontade), revela que nem todos os seres
humanos estão racionalmente habilitados ao exercício do direito e ao controle da
ação dos outros por meio da linguagem dos direitos. Nem por isso alegamos que
essas pessoas não possuam direitos, principalmente quando os direitos humanos
estão em jogo. Nesse sentido, fica claro que uma teoria que explique os
fundamentos da titularidade de um direito não pode se negar a ver que os
incapazes possuem, por certo, direitos, embora não possuam a capacidade ou
faculdade de agir ou de tomar decisões por conta própria. Em razão disso,
terceiros falam em seu nome, como procuradores, tutores ou curadores. Ocorre o
mesmo com os animais⁴, que, segundo a tese a favor da vontade, não poderiam
ser considerados titulares de direitos.

Jones afirma que as teorias do interesse costumam ser mais generosas e


acolhedoras com os detentores de direitos:

Em contraste, as teorias do benefício ou interesse dos direitos


são potencialmente muito mais generosas em suas atribuições
dos direitos. Qualquer um, ou seja o que for, pode ser um be-

4 Quando dizemos que chimpanzés possuem direitos ao serem usados em experimentos científicos, dizemos, ao
mesmo tempo, que o seu direito não é considerado um direito por causa de sua vontade ou faculdade para
decidir e escolher– o que mostra, por si só, as limitações da teoria da vontade para justificar os direitos.
SUMÁRIO

André Luiz Olivier da Silva


CAPÍTULO 2 41
neficiário ou possuir um interesse para poder, potencialmen-
te, possuir um direito. Assim, a teoria do benefício pode feliz-
mente atribuir direitos não apenas para ‘pessoas’ estritamen-
te definidas, mas para todos os seres humanos, do presente,
do passado ou do futuro, jovens ou velhos, sãos ou insanos,
contanto que eles sejam pensados capazes de receber benefí-
cios ou possuir interesses. Também é fácil ver como, dentro
da teoria dos benefícios, direitos podem ser estendidos para
seres não-humanos (JONES, 1994, p. 68, tradução nossa).

Outra dificuldade apontada pela teoria do interesse contra a tese da


vontade diz respeito à renúncia ao próprio direito, pois, segundo esta tese, só
pode possuir um direito aquele que pode escolher se quer ou não exercer o
próprio direito. Trata-se, sempre, de um direito subjetivo, de modo que todo
direito, para ser considerado como tal, deve também ser passível de renúncia.

O problema aqui reside nos direitos inalienáveis, como, por exemplo,


direitos humanos como a vida (salvo, em algumas situações, nos casos do aborto
e da eutanásia) e a liberdade. Ninguém pode renunciar ao direito inalienável de
não ser escravizado ou ao direito de não ser torturado. Aliás, conforme destaca
MacCormick: “Estamos todos acostumados a falar e pensar sobre alguns direitos
como ‘inalienáveis’. Mas se a teoria da vontade estiver certa, quanto mais eles
forem inalienáveis, menos serão direitos.” (MACCORMICK, 1977, 198–199,
tradução nossa). Ao se referir a esta citação, Penner complementa: “Em outras
palavras, se inalienabilidade significa que o titular do direito não tem controle,
então o teórico da escolha é incapaz de aceitar que muitos direitos humanos
fundamentais são direitos.” (PENNER, 1997, p. 301, tradução nossa). Segundo a
tese da vontade, se porventura tivéssemos realmente direitos inalienáveis, o seu
titular não poderia renunciá-los nunca; não poderia fazer uso de sua vontade e
escolher conforme a sua própria consciência, pois tais direitos não seriam objetos
passíveis de alienação ou renúncia. Logo, os direitos irrenunciáveis não poderiam
existir e nem poderiam ser classificados como direitos.

Em razão dessas críticas, autores como Neil MacCormick (1977, p. 189),


Joseph Raz (1986, p. 166) e Ma�hew Kramer (1998, p. 7) serão críticos em relação
a Hart e mais críticos ainda contra os adeptos da teoria da vontade. A crítica
elencada pela teoria do interesse revela que o exercício e a renúncia dos direitos
não se constituem como elementos indispensáveis para se dizer quando alguém
possui um direito e, ao evidenciar esse ponto, parece que a teoria da vontade
SUMÁRIO

42 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

transparece os seus pontos fracos de limitação para explicar o que os direitos


fazem com aqueles que os possuem.

Embora a teoria do interesse tenha mais facilidade que a da vontade


para acolher, como sujeito de direito, aquele que é incapaz de exigir ou exercer os
seus direitos e deveres, ela também apresenta problemas e o principal deles diz
respeito ao terceiro beneficiário, que é aquele sujeito que não pertence à
obrigação, mas tem o seu interesse envolvido nela, razão pela qual será, mesmo
assim – mesmo sem ter ou possuir um direito –, beneficiado ou afetado pelo
cumprimento do dever pactuado por outros. O terceiro interessado é alheio à
relação e, portanto, não possui direitos nem deveres envolvidos nesta obrigação
jurídica. No entanto, o seu interesse restará atrelado à relação que une detentor e
destinatário e, mesmo sem participar diretamente da relação, é beneficiário ou
tem o seu interesse envolvido com as consequências daquela relação. Como pode,
então, termos o mesmo interesse que o detentor na relação jurídica, mas, nem por
isso, sermos portador ou titular do direito em questão?

A propósito disso, terceiros à relação jurídica existem no que tange aos


dois polos da obrigação. Tanto o polo do dever quanto o do direito pode ser
manipulado por um terceiro, como, por exemplo, no caso do pagamento de uma
dívida por um amigo que, ao ver o seu companheiro devedor passando por sérias
dificuldades financeiras, resolve ajudá-lo, vindo a quitar a dívida na posição de
terceiro, uma dívida que não era sua, mas que, por algum motivo pessoal, ele a
tomou para si ao liquidar a fatura. Os casos do fiador de uma locação, ou do
adquirente de imóvel dado como garantia (por exemplo, um imóvel hipotecado),
mostram que terceiros podem ser chamados à prestação de contas diante das
obrigações jurídicas. Terceiros podem intervir no processo judicial e passar a
integrar o feito mesmo sem ser parte, autor ou réu. Nesse caso, o interveniente
não só poderá interagir no processo para cumprir uma obrigação, como também
poderá se beneficiar da decisão judicial que julga em conformidade com os seus
interesses.

No que tange aos direitos, o exemplo clássico trazido à colação pela


doutrina jurídica é o contrato de seguro, ao qual há um estipulante, que
estabelece a obrigação; um promitente ou devedor, que se compromete a uma
performance futura; e, por fim, um terceiro à relação, que se beneficiará das
cláusulas convencionadas na relação obrigacional. Um pai, por exemplo, pode
realizar um seguro de vida para a proteção dos interesses dos seus filhos, no
sentido de que pactua hoje o pagamento de um determinado valor para os seus
SUMÁRIO

André Luiz Olivier da Silva


CAPÍTULO 2 43
herdeiros quando da sua morte por acidente de carro. No caso do sinistro, haverá
um direito a uma quantia a título de indenização e, por certo, este valor não será
depositado na conta do pai falecido, que foi quem aderiu às cláusulas do contrato
e participou como signatário da concessão mútua de direitos e deveres. Será um
dinheiro para satisfazer o bem-estar e o interesse do seu filho.

3. Um impasse: vontade ou interesse?

Aberto o baralho e colocadas as cartas na mesa, observa-se que a


discussão filosófica sobre a função dos direitos encontra-se perdida em uma
encruzilhada, como se toda justificação teórica tivesse que escolher se adota uma
ou outra das duas teses. Cada uma delas busca esgotar a justificação sobre o que
são os direitos e, principalmente, sobre quem pode possui-los, e ambas
apresentam argumentos razoáveis para explicar a constituição do sujeito de
direitos. Ambas também merecem críticas, de tal modo que o panorama
desenhado a partir desse embate é de uma cizânia, uma controvérsia, segundo a
qual as teorias se esgrimam na arena do debate sobre a função que os direitos
desempenham para aqueles que os possuem – e não há vencedores nem vencidos.

A defesa dessas teorias conduz a investigação a um grande impasse


sobre a justificação filosófica dos direitos, conforme afirma Wenar: “Nenhum dos
lados pode ganhar uma vitória decisiva, e o debate acaba em um impasse.”
(WENAR, 2005, p. 223, tradução nossa). Sumner vai na mesma direção: “O
resultado desses conflitos extensionais é, portanto, essencialmente, um impasse.”
(SUMNER, 1987, p. 51, tradução nossa). Em complemento a isso, podemos extrair,
como uma primeira conclusão sobre o debate acerca da função dos direitos, que
os seus programas teóricos estão reclusos a essa divisão metodológica entre
vontade e interesse, conforme esclarece MacCormick:

Os teóricos jurídicos têm tradicionalmente se dividido em


dois campos na questão da explicação mais adequada sobre os
direitos. Uma linha de pensamento, que pode ser chamada de
‘teoria da vontade’, afirma que o fato de um indivíduo ter al-
gum tipo de direito depende do reconhecimento legal (ou,
mutatis mutandis, moral) da sua vontade, da sua escolha,
como sendo preeminente sobre os outros em relação a um de-
terminado assunto e dentro de uma relação dada. A ‘teoria do
interesse’, por outro lado, afirma que o que é essencial para a
constituição de um direito é a proteção legal (ou moral) ou a
SUMÁRIO

44 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

promoção dos interesses de uma pessoa em relação a outra


pessoa ou ao mundo em geral, pela imposição ao último dos
deveres, deficiências ou responsabilidades em relação à parte
favorecida (MACCORMICK, 1977, p. 192, tradução nossa).

Não há uma terceira via, conforme destaca Kramer, que afirma o


seguinte: “Existem alternativas para a Teoria do Interesse e a Teoria da Vontade,
mas não existe uma terceira via confiável e atraente.” (KRAMER, 2007, p. 310,
tradução nossa). Kramer, juntamente com MacCormick e Raz, vão defender a
teoria do interesse e todos serão contrários à defesa de qualquer tese que inove ao
sair o esquadro binário em questão.

Mas voltemos ao impasse. Por não conseguir vencer o debate, cada uma
dessas teorias turbina críticas à outra, mostrando as suas falhas e os seus defeitos,
pois “a fraqueza de cada uma delas é a força da outra.” (WENAR, 2005, p. 243,
tradução nossa). Prossegue Wenar:

Sem os meios para provar que sua teoria preferida é superior,


teóricos da vontade e do interesse têm recorrido ao aumento
do volume em apontar como a teoria rival conflitua com o en-
tendimento comum (WENAR, 2008, p. 267, tradução nossa).

O problema desses programas de fundamentação é que os direitos são


tomados apenas mediante uma função única e singular: enquanto para a teoria da
vontade o direito possui a função exclusiva de proporcionar escolhas ao seu
possuidor, na teoria do interesse o papel do direito consiste em patrocinar
vantagens e benefícios ao titular. Em ambas, portanto, o direito desempenha uma
só função e esse é um equívoco significativo para aqueles que adotam uma ou
outra destas teorias, ainda mais se observarmos que os direitos desempenham
múltiplas funções não só para o ordenamento jurídico como também para o
fenômeno moral, conforme alerta Wenar:

As teorias da vontade e do interesse são cada uma delas teori-


as de “funções-únicas” sobre os direitos. De acordo com estas
teorias, todos os direitos têm uma função única, embora as
duas teorias difiram sobre o que esta função seja (WENAR,
2005, p. 237, tradução nossa).
SUMÁRIO

André Luiz Olivier da Silva


CAPÍTULO 2 45
Mas, como sair desta encruzilhada? Como solucionar o presente
impasse? Particularmente, pensamos que a via do interesse seja mais adequada –
no sentido de ser mais inclusiva e acolhedora – do que a da vontade, ainda mais
quando se abordam os direitos humanos. Com base na teoria do interesse, mais
pessoas podem figurar como sujeito de direitos. Contudo, essa teoria também
apresenta problemas e, para justificar toda a gama de direitos existente no âmbito
de um sistema jurídico, também precisará recorrer à teoria da vontade. Como,
então, resolver essa controvérsia?

Para escapar da tese de que os direitos sempre desempenham uma


única função no vínculo existente entre o titular e o destinatário de um direito, a
sugestão é mostrar que a linguagem dos direitos desempenha variadas funções e,
para fazer isso, algumas análises mais recentes sobre os direitos tentarão
combinar as duas teorias, acolhendo os seus pontos fortes ao mesmo tempo em
que desprezam as suas falhas e objeções. Nesse sentido, afirma Jones: “As teorias
da escolha e do interesse nem sempre são tratadas como mutuamente
excludentes.” (JONES, 1994, p. 36, tradução nossa). Um exemplo disso é a tese
apresentada por Sreenivasan, que propõe, como alternativa, “um híbrido entre a
teoria da vontade e a teoria do interesse” (SREENIVASAN, 2005, p. 267, tradução
nossa), misturando as funções desempenhadas pela linguagem dos direitos.
Sreenivasan mostra que os direitos dão controle e liberdade ao detentor, mas
também lhe garantem benefícios e vantagens. Cruft (2004, p. 347) segue a mesma
linha de raciocínio e propõe que todos os direitos possuem algum tipo de valor
para dar autonomia e saciar o interesse do detentor. Georg Jellinek também
propõe uma teoria eclética entre o poder de querer da vontade e a proteção
jurídica dos interesses.

Contudo, mais recentemente, autores como Leif Wenar irão alertar que
a composição de ambas as teorias em uma só não será suficiente para justificar a
posse de um direito. Será preciso, por certo, dar um passo mais radical do que as
propostas híbridas e deixar de lado tanto a teoria da vontade quanto a do
interesse, visto que ambas limitam a análise dos direitos a funções únicas e
exclusivas. A melhor alternativa é abandonar as duas teorias e explicar quais são
as múltiplas funções que o direito pode desempenhar. Diz Wenar: “Uma
alternativa melhor, creio eu, é o que poderia ser chamada a teoria das diversas
funções dos direitos.” (WENAR, 2005, p. 238, grifos do autor, tradução nossa).
Continua:
SUMÁRIO

46 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

A teoria das múltiplas funções sustenta que qualquer inciden-


te ou combinação de incidentes é um direito (...) todos os
(combinações de) incidentes são direitos desde que marquem
isenção, discrição, ou autorização, ou entitulem os seus deten-
tores à proteção, provisão, ou desempenho. Apenas aqueles
incidentes (combinações de) que executam, pelo menos, uma
das seis funções específicas são direitos (WENAR, 2005, p.
246, tradução nossa).

Os direitos desempenham múltiplas funções, conforme dirá Wenar ao


identificar, no mínimo, seis funções básicas, as quais acarretam a detentores de
direitos algum tipo de isenção, discrição, autorização, proteção, provisão ou
efetividade. Afirma Wenar: “Cada direito tem uma ou mais das seis funções
específicas (isenção, discrição, autorização, proteção, provisão, desempenho).”
(WENAR, 2005, p. 235, tradução nossa). Por certo, Wenar sabe que aquele que
adotar a célebre repartição entre vontade e interesse para explicar o que os
direitos fazem com aqueles que os possuem verá que “Ambas as teorias de função
única, portanto, rejeitarão a explicação (...) em que os direitos têm seis funções
distintas.” (WENAR, 2005, p. 237, tradução nossa). Kramer e Steiner⁵ serão
críticos desse modelo proposto por Wenar, um modelo que tem o seu mérito na
medida em que pretende demonstrar que a análise dos direitos a partir de funções
singulares é bastante limitada e está longe de explicar o papel que os direitos
desempenham, tanto na esfera jurídica quanto em uma moralidade que seja
fundada em direitos.

Considerações Finais

O binômio vontade-interesse constitui uma controvérsia


filosófica difícil de ser resolvida, pois se pode encontrar argumentos para se
justificar qualquer um dos lados do duelo ao qual nos debruçamos nas últimas
páginas. A posse de um direito pode acarretar ao seu titular o poder de escolher e
agenciar a ação dos outros, como quer a tese da vontade, mas pode, mais do que

5 Wenar recebe duras críticas de Ma�hew Kramer e Hillel Steiner: “Isso causa confusão ao simplificar demais as
involuções das relações jurídicas de Hohfeld; acaba por ser uma elaboração (uma elaboração
desnecessariamente detalhada) da Teoria dos direitos do interesse, que ele presume rejeitar; e perde o ponto
principal das altercações entre teóricos do interesse e teóricos da vontade.” (KRAMER, 2007, p. 299, tradução
nossa).
SUMÁRIO

André Luiz Olivier da Silva


CAPÍTULO 2 47
isso, promover e proteger os interesses do sujeito de direitos, como quer a teoria
do interesse, conferindo-lhe alguma vantagem ou benefício.

Entre vontade e interesse, qual dessas teorias deve prevalecer? A


resposta é difícil, mas, se tivermos que escolher entre um dos lados, certamente
iremos tender para a via do interesse, em especial porque, segundo essa teoria,
fica mais fácil justificar os direitos humanos de pessoas incapazes, como crianças
e pessoas com deficiência. Não obstante a idealização do sujeito de direito como
agente racional e possuidor de uma vontade autônoma, a teoria que fundamenta
os direitos na escolha racional está enredada em problemas que dizem respeito a
uma concepção estreita de sujeito de direitos fundada em uma capacidade
racional que, na realidade, não é comum e universal a todas as pessoas. Por isso,
a tese a favor do interesse parece ser mais inclusiva e acolhedora para determinar
o que os direitos fazem com aqueles que os possuem. Contudo, é preciso destacar
que a teoria do interesse também apresenta dificuldades, o que nos levou a
procurar outras alternativas para se explicar a função dos direitos. Diante desse
contexto de dúvida, além da mera oposição do interesse contra a vontade,
podemos, ainda, propor uma perspectiva híbrida, segundo a qual a função única
de cada teoria é substituída por uma função binária que oscila entre vontade e
interesse; ou podemos ir além e propor, ainda, o abandono do binômio vontade-
interesse para, com isso, analisar as múltiplas funções desempenhadas pelos
direitos.

Referências

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SUMÁRIO

Capítulo 3

DESAFIOS
DEMOCRÁTICOS NO
CONTEXTO DA DINÂMICA
ENTRE PODERES
os perigos das tentativas de
sobreposições institucionais

Clarissa Tassinari
SUMÁRIO

50 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

DESAFIOS DEMOCRÁTICOS NO CONTEXTO DA DINÂMICA


ENTRE PODERES: os perigos das tentativas de
sobreposições institucionais

Clarissa Tassinari¹

Introdução

O que é o Estado? E Estado para quê? Talvez essas sejam as mais


simples e desafiadoras perguntas em contextos democráticos. Ou melhor: em
contextos que buscam atingir qualidade democrática e práticas institucionais que
correspondam a esse estágio ótimo da democracia, que, evidentemente, não está
limitado à análise da prestação estatal. Quais são as condições que um país de
recente experiência democrática – como é o caso do Brasil – tem para atender a
essas expectativas sociais e, até mesmo, normativas? Ensaiar respostas a essa
pergunta possivelmente envolva a (re)construção de uma engenharia histórico-
conceitual. Nessa complexa engrenagem, que, observando o passado, projeta
também futuros, gostaria de dar ênfase, no espaço destinado a este texto, ao
papel das instituições. Especificamente, aos três Poderes da República.

Eis, então, o problema de pesquisa que mobiliza a escrita deste capítulo:


como compreender, no âmbito do constitucionalismo democrático brasileiro
contemporâneo, as tensões entre Executivo, Legislativo e Judiciário? A partir de
2013, inicia-se no Brasil (e em outros países) um período de intensificação das

1 Doutora (2016) e Mestre (2012) em Direito Público pelo PPG Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
– UNISINOS (bolsista CNPq-BR em ambos os casos). Estágio pós-doutoral (com bolsa CAPES/PNPD), na
mesma instituição, sob a tutoria do prof. Lenio Streck (período: de 2017 até 2018/1). Professora da UNISINOS
(mestrado e graduação). Coordenadora do grupo de pesquisa GPolis – Direito, Política e Diálogos
Institucionais. Advogada (OAB/RS). E-mail: clarissa@tassinari.adv.br
SUMÁRIO

Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 3 51
manifestações, exigindo-se de nossas instituições o comprometimento com
renovadas e diversificadas pautas sociais. Com o pleito eleitoral de 2018,
conjugado a esse cenário de efervescência social, inaugura-se um novo momento na
política, que, dentre outros elementos, caracteriza-se pela existência de uma
“presidência de confrontação” (ABRANCHES, 2020, p. 156), oportunizando fortes
embates institucionais internos, bem como com setores do Legislativo e da
sociedade (ABRANCHES, 2020, p. 155).

Levando em conta esses acontecimentos, e considerando a mais recente


conjuntura política (que sofre os impactos da crise sanitária e vice-versa), parece
adequado afirmar que a dinâmica entre os três Poderes pode ser visualizada a
partir de tentativas de sobreposições institucionais.² Essa afirmação – que é lançada ao
patamar de tese da tese – possui, é claro, no mínimo, um custo teórico-
argumentativo. E trato isso como “o mínimo” porque, nesse primeiro estágio da
pesquisa e de registros acadêmicos de seus resultados, deixo de lado toda a
riqueza – e todo o esforço – da realização do que poderia ser considerado como
uma importante (e talvez futura) pesquisa empírica.

Com base nisso, este texto busca realizar uma análise exploratória
acerca das práticas institucionais eventuais e das leituras teóricas que possam ser delas
decorrentes, com o potencial e o propósito de materializar, isto é, dar um pouco de
forma e conteúdo, à hipótese aqui ensaiada sobre as tensões vivenciadas entre os
Poderes. Desse modo, os argumentos – ainda em fase de teste, diga-se de
passagem – estão organizados em duas partes, com finalidades específicas:
primeiro, compreender como se chega ao cenário de tentativas de sobreposições
institucionais no Brasil e o que está envolvido nesse debate; e, segundo,
caracterizar esse fenômeno a partir da análise de posturas institucionais (ou
práticas institucionais eventuais) e dos fenômenos delas decorrentes (leituras
teóricas possíveis). Ao final, como considerações finais, serão apresentados alguns
pontos de reflexão ao problema, à luz da democracia e de seus desafios.

Por fim, considero fundamental destacar que este capítulo apresenta os


resultados da execução conjunta de dois projetos de pesquisa, sob os seguintes
títulos: a) A relação Direito e Política em tempos de protagonismo judicial
(vinculado ao PPG Direito UNISINOS); e b) Estado, políticas públicas e

2 Recentemente, Giancarlo Montagner Copelli publicou um texto na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, na
coluna Diário de Classe (espaço destinado aos integrantes do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos),
problematizando a existência de sobreposições entre Poderes (COPELLI, 2021).
SUMÁRIO

52 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

populismo: democracia à margem das instituições? (financiado pela FAPERGS,


Edital Auxílio Recém Doutor 4/2019). Apesar da especificidade dos objetivos da
propositura de cada um desses projetos, eles constituem um ponto de
convergência de meus interesses acadêmicos. E ele corresponde às necessárias
reflexões sobre os desafios e os riscos da democracia no Brasil. Essa é, evidentemente,
apenas uma pequena amostragem de uma das faces do problema.

1. A dinâmica entre os três Poderes no constitucionalismo brasileiro: o


contexto para o surgimento das mais recentes tentativas de sobreposições
institucionais

As negociações e tensões existentes entre os três Poderes não são


novidade recente para o constitucionalismo brasileiro, tenham sido elas
aparentes, com impactos institucionais, ou não. Se fizermos uma análise mais
abrangente, que, inclusive, também possa se afastar das especificidades nacionais,
a própria compreensão sobre o papel do Estado e, como consequência, as
diferentes ênfases nas possibilidades de intervenção estatal deram origem ao que
poderíamos chamar de momentos constitucionais.

Em outras palavras, pode-se entender que as tentativas de dar sentido e


conteúdo a formas de Estado – que aparecem na literatura sob diversos nomes,
tais como: Estado de Direito, Estado Legislativo, Estado Social, Estado de Bem-
Estar Social, Estado Constitucional, Estado Democrático de Direito – impliquem a
percepção de que a história constitucional brasileira vivenciou algumas fases, que,
por sua vez, dentre outros tantos aspectos, podem ser caracterizadas pela
predominância de um ou de outro braço do Estado na tomada de decisão jurídica,
compreendida lato sensu, isto é, como o processo de construção de respostas
possíveis, provenientes dos mais diferentes setores em disputa, para a pergunta
sobre “o que é o Direito”.

Aliás, isso não é peculiaridade do contexto brasileiro, podendo também


ser visualizado a partir das experiências de outras tradições jurídicas. É o que nos
apresenta, por exemplo, a obra de Raoul C. Van Caenegem (2010), quando trata,
sob a perspectiva histórica, da existência de diferentes fontes do direito ocidental,
especificamente: nos Estados Unidos e na Inglaterra, o direito dos juízes; na
Alemanha, o direito dos professores; e na França, o direito legislado. É claro que
o fio condutor da abordagem realizada por Caenegen tem outra finalidade, muito
SUMÁRIO

Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 3 53
mais relacionada a refletir sobre as origens dos sistemas jurídicos (traçando
diferenças entre civil e common law). Entretanto, ainda assim, é possível verificar a
existência de um ponto de contato com a percepção de que a construção de
sentidos no direito tem como palco certas disputas institucionais.

Voltando ao contexto brasileiro, pode-se afirmar que a atuação dos três


Poderes reflete a mobilização de outra relação: as tensões entre Direito e Política.
E esse parece um ponto de partida importante a ser compreendido. A dinâmica
Direito-Política abre um diversificado leque para teorizações. Podemos pensar,
por exemplo, nas contradições (e associações) entre democracia e
constitucionalismo; ou, ainda, nas diferenças existentes na construção da
legitimidade das decisões que constituem cada um desses dois sistemas sociais; e
no contraste entre as competências funcionais das instituições que poderíamos
considerar tipicamente políticas, como é o caso do Executivo e do Legislativo, e
aquelas atinentes às instituições jurídicas, os órgãos do Poder Judiciário. Tudo
isso é possível. E talvez muito mais.

Mas há um ponto sensível ao constitucionalismo brasileiro que está


submerso, enraizado nesse diálogo entre Direito e Política, e que,
particularmente, gostaria de dar destaque. Ainda que o Direito e a Política sejam
dois polos distintos dessa dinâmica – e, por isso mesmo, poderíamos apontar
diferenças sistêmico-estruturais e de legitimidade para a tomada de decisões –,
seus pontos de conexão tornam possível a materialização de algumas concepções
chaves para contextos democráticos: bom funcionamento institucional;
efetividade de direitos; atendimento a (renovadas) demandas sociais, citando
aqui apenas o que poderia ser pensado como o mínimo das projeções da
democracia sobre o agir do Estado. Em outras palavras: a conexão entre o Direito
e a Política garante, simultaneamente, dinamicidade e estabilidade às
expectativas democráticas.

Na verdade, isso reflete ainda outra questão, e é exatamente nesse ponto


que gostaria de chegar de forma ainda mais contundente, a fim de construir os
pressupostos para o(s) problema(s) que pretendo abordar na sequência.
Politicamente, na efervescência da contraposição de ideias, em um cenário ótimo
de deliberação pública, na capacidade de exposição pública de gostos e
contragostos, são construídos imaginários sobre o que se espera do Estado e de
suas instituições (ainda que inexista a horizontalidade esperada nesses processos;
ainda que consideremos que essas formulações sejam produto de uma ou de
outra forma de dominação). A isso corresponde uma dimensão hermenêutica-
SUMÁRIO

54 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

paradigmática sobre as responsabilidades do Estado. Afinal, fundamos o Estado – e


modelos de Estado – pelo Político.³

Todavia, ao mesmo tempo em que essa compreensão hermenêutico-


paradigmática (STRECK, 2021⁾⁴ pode determinar o papel do Estado, ela também
acontece – como condição de possibilidade – a partir daquilo que foi minimamente
desenhado por vias institucionais, como é o caso dos processos constituintes, que são,
justamente, fundantes, até mesmo sob a perspectiva formal/procedimental. Por
isso, é possível afirmar, com Gilberto Bercovici, que “(...) questões constitucionais
essenciais são políticas” (BERCOVICI, 2020, p. 14). E, assim, nessa perspectiva de
imbricação entre elementos hermenêuticos e institucionais, constituições
garantem previsibilidade à relação Direito-Política e, simultaneamente,
proporcionam sua dinâmica, porque criam possibilidades (institucionais) de
incorporar ou canalizar expectativas democráticas.

E por que isso interessa particularmente às preocupações centrais deste


texto? Acontece que, ao longo da história brasileira, a relação Direito e Política
sempre esteve permeada por fortes tensões – seja pela existência de intenções (e
intervenções) políticas que minavam o bom funcionamento das instituições
jurídicas e, até mesmo, a efetividade de direitos; seja por um direito que legitimava
práticas insensíveis a (novas) demandas políticas, fazendo do próprio arcabouço
jurídico, e da obediência a seus adequados procedimentos, o instrumento para
neutralizar o atendimento de pautas político-sociais. A partir do constitucionalismo
democrático insurgente no pós-88, essa relação parecia ter se libertado da
dinâmica de sobreposição, passando a assumir um tom conciliatório. Não por
outro motivo, nossa Constituição é compreendida como o elo entre o Direito e a
Política, ou seja, não apenas como um documento para explicitação de meras
intenções políticas sem força normativa (sem cumprimento obrigatório),
tampouco como simples documento técnico-burocrático destinado
exclusivamente à organização do poder.

3 Em que pese venha tratando, ao longo deste texto, da relação Direito-Política, considero relevante,
especificamente para este momento quando trato daquilo que funda o Estado, a adotar a distinção entre a
Política e o Político, proposta por autores como Chantal Mouffe. O seguinte trecho do livro de Mouffe justifica
a minha opção: “Se quiséssemos expressar essa distinção de maneira filosófica, poderíamos dizer, recorrendo
ao repertório heideggeriano, que a política se refere ao nível ‘ôntico’, enquanto o político tem a ver com o nível
‘ontológico’. Isso significa que o ôntico tem a ver com as diferentes práticas da política convencional, enquanto
o ontológico refere-se precisamente à forma em que a sociedade é fundada” (MOUFFE, 2015, p. 7-8).
4 Lenio Streck foi quem, de modo inaugural, desvelou a dimensão hermenêutica que atravessa o Direito
(STRECK, 2021).
SUMÁRIO

Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 3 55
No contexto brasileiro, portanto, o sentido de Constituição passa a
corresponder à dupla expectativa da democracia, isto é, tanto àquilo que diz
respeito a assegurar os direitos de liberdade contra o arbítrio do Estado (sem os
quais, numa perspectiva contramajoritária, não há democracia possível) quanto
ao direcionamento do agir político, criando responsabilidades ao ente estatal e
determinando a execução de ações positivas (em atendimento às demandas
democráticas, que exsurgem do tecido social). Nesse diálogo entre Direito e
Política, portanto, nossa Constituição impõe o mínimo, como redução do espaço
de governabilidade quando se trata da preservação de direitos intocáveis, e
projeta o máximo, possibilitando (e determinando, de modo programático) ao
Estado vias de interlocução com a sociedade, exigindo-lhe criatividade para
promover a canalização institucional – a implementação – das demandas sociais.

Esse é o lugar do novo que nos constitui como sociedade há mais de 30


anos, desde 1988. E, apesar de ser fácil dissertar sobre isso, porque a arquitetura
constitucional em nosso País é muito autoevidente sobre o que se espera do
Estado, as práticas institucionais ao longo desse período vêm tornando a dinâmica
entre Direito e Política uma relação difícil. Apesar do anúncio da aurora da
Constituição, ao longo da nossa recente trajetória constitucional, talvez nunca essa
relação tenha sido tão afetada por crises como na última década.

É assim que, como já referido a partir da introdução, desde as


manifestações em 2013 – que colocaram o povo na rua em defesa de suas pautas
e, com isso, tornou a sociedade mais alerta com a vida política –, a dinâmica entre
Executivo, Legislativo e Judiciário passou a ser qualificada não mais por
predominâncias ou ênfases, mas por tentativas de sobreposições institucionais, algumas
delas até bem-sucedidas sob determinadas circunstâncias. Mas o que isso
significa? Significa que Legislativo, Executivo e Judiciário, a partir do que pode ser
chamado de “falhas sistêmicas das democracias” (ABRANCHES, 2020, p. 71), têm
investido em tentativas de monopolizar o debate público, sobrepondo-se à
atuação um do outro.

Isso pode ser observado quando o Judiciário toma para si a


responsabilidade de fazer a boa política por meio de decisões judiciais. Ou quando
o Executivo passa a governar com o excessivo manuseio de medidas provisórias.
Por fim, quando o Legislativo monopoliza a agenda política apenas para fazer
oposição. Tudo isso podem ser, sim, condutas eventuais. Mas também podem
caracterizar a insurgência de alguns fenômenos, como é o caso, por exemplo, do
populismo, que ganham ares de perenidade quando assentados num discurso de
SUMÁRIO

56 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

naturalização. Afinal, tudo isso acaba sendo justificado por sentimentos de


insatisfação, abandono e ressentimento (ABRANCHES, 2020, p. 71), que atingem
a sociedade na medida em que o atendimento de suas demandas é frustrado pela
atuação de qualquer um dos três Poderes. É o que passarei a tratar com mais
detalhes na sequência.

2. Práticas eventuais de sobreposições institucionais e suas possíveis


traduções em fenômenos complexos e duradouros: a supremacia judicial
consentida, o populismo e o seletivismo legislativo

A princípio, podemos visualizar a materialização dessas tentativas de


sobreposições institucionais a partir de dois grandes eixos. É possível que
pensemos em ações isoladas, posturas institucionais eventuais, que representam
iniciativas – nem sempre conscientes – de monopolizar o debate público,
centralizá-lo a partir de tomadas de decisões com exclusividade por quaisquer
dos três Poderes, caracterizadas como distorções institucionais. Mas também é
provável que, na medida em que, discursivamente, esse tipo de prática eventual
se justifica (naturalizando-se) e se legitima (na insatisfação popular), ela passe a
consolidar certos fenômenos, atribuindo ainda maior complexidade à questão.

O que se busca explicitar nesse momento é que, em contextos


democráticos frágeis, como é o nosso, cada um dos Poderes é capaz de gerar suas
próprias distorções. Em relação ao Judiciário, podemos perceber que a
inexistência de um satisfatório vínculo de representatividade entre Legislativo e
o povo pode conduzir a tentativas de ocupar essa espécie de vazio democrático por
definições judiciais. É nesse contexto que a intervenção judicial assume perspectiva
majoritária, centralizando nesse espaço institucional pouco deliberativo a tomada
de decisão sobre pautas sensíveis, socialmente controversas.

Como já mencionado acima, isso pode acontecer pontualmente (e de


forma não persistente, sem caracterizar um padrão), limitando-se à (infeliz)
eventualidade de um julgamento. Mas, por outro lado, é possível, também, que se
consolide um perfil institucional que incorpore esse apelo representativo. E é,
então, que a intervenção do Judiciário vai, pouco a pouco, ganhando ares de
supremacia judicial. Nesse sentido, entendo que a concepção de supremacia
judicial no Brasil possui um triplo desdobramento: a tese de que o Judiciário é
fonte exclusiva de construção de sentidos para o Direito, sendo dotado de uma
SUMÁRIO

Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 3 57
autoridade interpretativa exclusiva; a ideia de que o Judiciário possui maiores
condições técnicas de avaliar e garantir o atendimento a demandas sociais,
possuindo autoridade política; e a crença de que as instâncias judicias possuem
maior aptidão para resolver as controvérsias sociais, associada à confiança nelas
depositadas, o que, por sua vez, é garantido por uma autoridade simbólica.
Considero, ainda, que o exercício dessas autoridades muitas vezes é consentido
pelos demais Poderes, com o intuito de evitar desgastes eleitorais. Daí a noção de
que a supremacia judicial no Brasil é consentida (TASSINARI, 2016).

No fundo, a supremacia judicial (consentida) diz respeito a uma leitura


sobre a projeção política do papel exercido pelo Judiciário. Por isso mesmo, em se
tratando de uma ideia de monopólio da tomada de decisão por um único poder
constituído, importa referir que tanto a judicialização da política – inerente a
contextos com ausência de concretização de direitos – quanto o ativismo judicial
– decisões judiciais pautadas por critérios não jurídicos – atravessam a noção de
supremacia judicial no Brasil. Ainda, a supremacia judicial produz a existência de
uma solução verticalizada para problemas ínsitos à arena política e, portanto, à
deliberação pública, que se pressupõe constituída de horizontalidade, por
maiores que sejam as dificuldades para garanti-la.

Por outro lado, não apenas o Judiciário é o palco de distorções


democráticas. Isso também acontece em relação ao Poder Executivo.
Recentemente, é possível visualizar a existência de uma postura institucional da
Presidência caracterizada pela excessiva edição de medidas provisórias e
decretos. Por si só, isso já pode ser traduzido em processos formais de
centralizações decisórias no Executivo. Contudo, para além disso, a sociedade
brasileira convive com manifestações (pronunciamentos) que estimulam soluções
controversas a problemas que não podem ser resolvidos com a ação exclusiva da
Presidência. A persistência desse perfil institucional do Executivo conduz ao
populismo como possível manifestação de sobreposição entre os Poderes.

Sérgio Abranches afirma que o populismo é um fenômeno recorrente,


que “(...) assume formas recondicionadas às circunstâncias de cada época”
(ABRANCHES, 2020, p. 79). Na atual conjuntura, isso está relacionado, também,
a uma nova forma de fazer política, na qual “(...) as pessoas apegam-se mais
fortemente às suas afinidades afetivas, às identidades que lhes dão mais
autoestima e segurança” (ABRANCHES, 2020, p. 62). E, assim, o populismo
constitui-se a partir de uma “(...) homogeneidade das massas populares”
(INCISA, 2010, p. 981), numa tentativa de implementação de demandas sociais
SUMÁRIO

58 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

através de uma relação pessoal e direta com um líder carismático. Ocorre que a
principal característica de atendimento social corresponde, também, a “uma
politização à margem dos canais institucionais existentes” (INCISA, 2010, p. 985).
Isso porque, a partir de um discurso mítico, o populismo “(...) mina a burocracia
necessária à impessoalidade – que, entre outros fatores, caracteriza o Estado de
Direito – e, ao alimentar toda sorte de ativismos – como rápido caminho à
satisfação popular – procura, também, reescrever a Constituição” (COPELLI,
2021). Mais uma vez, aqui, visualiza-se a materialização de tentativas de
sobreposições institucionais, agora direcionadas ao Poder Executivo.

Ao final, talvez o caminho mais difícil seja observar as distorções


institucionais relacionadas ao Poder Legislativo. É possível que essa dificuldade
esteja vinculada ao fato de que esse talvez seja o braço mais desacreditado do
Estado, por sua inércia, por tudo o que ele não nos representa. Dito isso, a verdade
é que o presidencialismo de coalizão, expressão criada por Sérgio Abranches
(1988), foi a primeira conexão que fiz com a caracterização de um perfil para o
Legislativo. Entretanto, seria o presidencialismo de coalizão um elemento de
distorção institucional que afeta esse braço do Estado?

E é aqui que podem ser constituídos os maiores mal compreendidos em


relação ao tema. O presidencialismo de coalizão – entendido como a necessidade
de acordos entre Parlamento e Presidência para gerar governabilidade – faz parte
do jogo democrático (pelas características de nosso sistema político-partidário).
Aliás, ele pode ser pensado como “solução institucional” que afeta a relação entre
a eleição presidencial e a representação proporcional no Congresso quando o
presidente não possui a maioria, tornando possíveis a efetivação de medidas
governamentais (AVRITZER, 2016, p. 29).

Apesar disso, a forma como o Congresso Nacional vem materializando


– por suas práticas – esse complexo fenômeno está longe de ser imune a críticas.
Afinal, embora o presidencialismo de coalização seja importante para produzir
governabilidade, ele também “(...) se tornou um problema para ela, assim como
para a efetivação de uma agenda política progressista” (AVRITZER, 2016, p. 29).
Sérgio Abranches, inclusive, abriu um capítulo específico para tratar do que ele
chama de “crise do presidencialismo de coalizão”. Para o autor, com a
desorganização do sistema político-partidário, “(...) os partidos passaram a
orientar o jogo político para a formação de coalizões majoritárias,
independentemente do partido vencedor da disputa presidencial”
(ABRANCHES, 2020, p. 154). Isso é reflexo, também, da postura da Presidência da
SUMÁRIO

Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 3 59
República nos primeiros movimentos de mandato, que recusou o
“enquadramento institucional do presidencialismo de coalizão”, exercendo
preponderantemente suas possibilidades legislativas, incentivando um
“protagonismo retaliatório do parlamento” (ABRANCHES, 2020, p. 156-157).

A expressão utilizada por Sérgio Abranches – “protagonismo


retaliatório do parlamento” – talvez possa ser um caminho para tratar do
problema das tentativas de sobreposições em relação ao Legislativo. E, no fundo,
ela nos remete a outro problema, bem explicitado por Leonardo Avri�er: “(...)
mesmo que o presidencialismo de coalizão tenha sido capaz de produzir uma
forma estável de governabilidade (...), esta foi restrita, no sentido de
frequentemente ter colocado em questão a legitimidade e a estabilidade do
sistema político” (AVRITZER, 2016, p. 46).

Aqui – em relação ao Poder Legislativo –, talvez a questão da


legitimidade seja o que importa mais. A fragmentação partidária, que se justifica
tanto pela ausência de coerência interna nos partidos políticos quanto pela falta
de construção de um elo de representatividade com os eleitores (MIGUEL, 2017,
p. 107), tem produzido um tipo de tensão entre a Presidência e o Poder
Legislativo que passa a ser orientada por confrontos político-partidários,
sufocando o interesse público ou deixando-o em segundo plano. É claro que, no
funcionamento do presidencialismo de coalizão, isso também já poderia existir.
Mas, ainda assim, produzia algum tipo de diálogo institucional, voltado à
governabilidade. Ou seja, o presidencialismo de coalizão tem muito mais relação
com equilíbrio institucional do que com protagonismos; ele tem muito mais de
dinâmica democrática, algo que tentativas de monopolizar o debate via
sobreposições institucionais não têm.

Por isso, começo a pensar que essa recusa ao presidencialismo de


coalizão pela Presidência da República e a forma como o Legislativo reage a isso
produz algo que – na falta de melhor expressão –, por enquanto, arrisco a chamar
de seletivismo legislativo. O Congresso Nacional, tão caracterizado por sua
apatia ou por sua inércia, gerando o que ficou conhecido como crises da
democracia, torna-se ativo e produtivo para garantir a incorporação de agendas
reformistas (como a reforma da previdência ou a trabalhista) ou para reagir às
propostas do Executivo, motivado por uma espécie de disputa política
permanente (ainda que muitas vezes sua intervenção tenha sido para retirar das
propostas executivas conteúdos contrários à cultura democrática). Ou seja, há
uma espécie de seleção da pauta política, que antes vinha sendo construída com
SUMÁRIO

60 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

a participação da Presidência da República, que pouco incorpora a


representatividade, constituindo-se de disputas ideológico-partidárias.

Talvez isso não seja nenhuma novidade. E é possível que essa seja ainda
uma construção muito precária. E parece-me que é preciso aprofundar ainda mais
nessa visão sobre o papel do Legislativo, nessa dinâmica pautada por disputas e
tensões. Minha intenção, aqui, foi arriscar algum tipo de leitura, e provocar
possíveis compreensões sobre o problema. É, portanto, o argumento que precisa
ser melhor e mais testado, mas, ainda assim, arrisquei expô-lo aqui. Para finalizar:
supremacia judicial, populismo e seletivismo legislativo. A questão, ao final, fica
sendo: quanto de estabilidade institucional e de qualidade democrática esses
fenômenos são capazes de produzir? Talvez esses sejam os maiores desafios da
democracia.

Considerações finais

A preocupação central do capítulo consistiu em analisar criticamente as


tensões existentes entre os três Poderes. Por isso, tomou como pressuposto a
compreensão dessas tensões como tentativas de sobreposições institucionais, que se
justificam numa espécie de descompasso entre o Direito e a Política (ou entre
perspectivas hermenêuticas e institucionais sobre as responsabilidades estatais).
Assim, na ausência do atendimento à pluralidade de expectativas sociais e
normativas, surgem posturas eventuais do Legislativo, do Executivo e do
Judiciário, que pretendem monopolizar o debate público, tomando para si
competências que não correspondem ao desenho institucional existente e
projetado para suas intervenções. Tudo isso acaba sendo naturalizado por
discursos de insatisfação social, caracterizando fenômenos complexos e que
podem ser duradouros (não eventuais), como a supremacia judicial, o populismo
e o seletivismo legislativo.

Diante de tudo isso, ao final, gostaria de passar por mais alguns pontos
que me parecem centrais para a discussão proposta, porque revelam importantes
desdobramentos do que foi tematizado ao longo do texto. Parece-me claro que, na
raiz do problema do que venho tratando como tentativas de sobreposições
institucionais está, também, a crise de representatividade. E talvez esse seja o
maior dos desconfortos democráticos que o Brasil vem atravessando, pelo
SUMÁRIO

Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 3 61
descompasso criado entre as expectativas de representação, que se extraem da voz
das ruas, e aquilo que realmente acontece no ambiente institucional.

Problematizando ainda mais esse ponto sobre as dificuldades


representativas, Luis Felipe Miguel afirma que a sociedade brasileira convive com
“assimetrias de recursos e de poder” no sistema político, e que isso produz alguns
impactos significativos na forma de compreender a representação. Acontece que
a existência dessas assimetrias não significa que os cidadãos não participem do
debate público que antecede a tomada de decisão política, mas, sim, que isso
acontece de modo mais marginal e isolado. Para além disso, como produtos
desses processos, na maioria das vezes, são estabelecidas “(...) percepções do
funcionamento da política que são decerto ingênuas” (MIGUEL, 2017, p. 64).

É nessa dimensão de uma possível ingenuidade social sobre o que se


espera daqueles que foram eleitos para representar que se desenvolve uma
“concepção ‘popular’ da representação política”, nas palavras de Miguel (2017, p.
65). Por sua vez, essa concepção compreende o representante como “(...) um
intercessor e a relação significativa é a de proteção. Aquele que exerce a função de
representação é alguém que tem acesso a bens controlados pelo Estado (...)”
(MIGUEL, 2017, p. 66). Dito de outro modo, a sociedade cria imaginários de
representatividade, em que o direcionamento de demandas aos braços do Estado
pode ser traduzido no desejo de acolhimento e proteção, que, na maioria das
vezes, não é correspondido ou acaba sendo mal correspondido pelos Poderes
destinatários desse tipo de endereçamento social. Como consequência, talvez isso
permita a existência de exigências sociais com focos de representatividade itinerantes.

Assim, ao parar para refletir sobre tudo isso para elaborar as


considerações finais, visualizei a construção de um imaginário que concebe a
representatividade – em suas conexões com os três Poderes – a partir de um
movimento pendular, conduzido pela mobilidade das pretensões sociais. Nesse
contexto, metaforicamente, a representatividade sai, de modo não definitivo (pelo
menos é o que se espera), de seu local de origem, o Poder Legislativo, em direção
aos demais braços do Estado (Executivo e Judiciário), constituindo-se como pontos
de repouso. E, assim, oscilando entre loci distintos de tomadas de decisão, com
impactos igualmente diferentes na Política e no Direito, esse modo de conceber a
representatividade pode romper com a estabilidade que é própria da dinâmica
intra e interinstitucional, especialmente quando associada a tentativas de
sobreposições entre Poderes – porque, nesses casos, passa-se a tratar esses pontos de
repouso da concepção de representatividade pendular com exclusividade, com ares de
SUMÁRIO

62 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

monopólio institucional. Ao mesmo tempo, também é possível – mas talvez


improvável – que, nesse movimento itinerante de destinação da representatividade,
finalidades constitucionais sejam, de fato, atendidas no que diz respeito ao
desenho projetado para essas instituições, garantindo estabilidade.

Disso podem surgir outras inquietações. Afinal, o que justifica o


Judiciário ser o destinatário da representatividade? Quais os limites que o
Executivo encontra – na Constituição e na legalidade constitucionalmente
produzida – para elaborar sólidas e criativas estratégias governamentais, vertidas
em medidas institucionais eficazes e duradouras, que satisfaçam os interesses da
sociedade? Qual a capacidade que possui o Legislativo de manifestar,
institucionalmente, representatividade? Todos esses questionamentos são
provocações, convites a pensar criticamente os mais recentes acontecimentos no
Brasil, antes e depois da pandemia, triste evento que tornou mais agudos os
problemas que já se enfrentava há algum tempo. No fundo, essas perguntas são
impulsionadas pela expectativa de equilíbrio institucional que é pressuposta a
Estados democráticos; no fundo, elas dizem respeito a preocupações democráticas.

Mas, voltando à metáfora da representatividade como pêndulo⁵, há


algo ainda pior de ser observado. Acontece que essa espécie de representatividade
de passagem, como um pêndulo a se mover de um lugar a outro – de uma
instituição a outra –, com um tempo na maioria das vezes pouco rítmico, nem
sempre tem os três Poderes como destinatários de seu movimento. Ao contrário,
é possível que, de meros destinatários de uma concepção de representatividade
pré-constituída no imaginário social, essas instituições assumam a condição de
manipuladoras do pêndulo. E é nessa manipulação da representatividade que
surgem alguns pesadelos da democracia: pretensões de legitimidade de atuação
fundadas tão-somente em discursos de autoridade (autoritários); simulacros de
representatividade; representatividade(s) homogeneizada(s), sufocando a
pluralidade e a divergência social, dentre outras questões.

E é pensando nesse movimento pendular das concepções de


representatividade, que perpassam os diferentes braços do Estado, que podem
surgir teses oportunistas – como a defesa da supremacia do Judiciário, como o
populismo do Executivo e o seletivismo (na falta de melhor expressão) do

5 A utilização do pêndulo como metáfora não é novidade. Ela está presente, por exemplo, em Leonardo Avri�er
e, inclusive, em autores que eu possa desconhecer. Neste texto, vale menos o lúdico e mais os desdobramentos
dos argumentos, que se diferem dos apresentados pelo autor acima referido.
SUMÁRIO

Clarissa Tassinari
CAPÍTULO 3 63
Legislativo. Essas leituras teóricas das tentativas de sobreposições institucionais são
produtos dessas distorções representativas, que se fixam no imaginário social
justamente pelas insuficiências do Estado e/ou pelo longo período de desgaste
democrático – de carência na materialização da democracia – que o Brasil vem
passando, desde sua ruptura com a ditadura militar. Lancei nesse espaço
algumas ideias precárias sobre como compreender as relações entre os três
Poderes, a partir de tensões institucionais e do que elas possam representar para
democracia. Finalizo, então, com as palavras de Sérgio Abranches, porque são
capazes de melhor explicitar as minhas angústias acadêmicas: “Creio que os
constituintes desenharam um sistema institucional robusto e maleável para
evitar rupturas democráticas. Mas essa resiliência tem medida, não é elástica ao
infinito” (ABRANCHES, 2020, p. 155). Precisamos refletir cada vez mais sobre
isso.

Referências

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Letras, 2020.

______. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados: Revista


de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-33. 1988.

AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2016.

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3. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2020.

CAENEGEM, Raoul Charles van. Juízes, legisladores e professores. Rio de Janeiro:


Elsevier, 2010.

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sobreposição de poderes. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 2021. Disponível em:
h�ps://www.conjur.com.br/2021-jun-26/diario-classe-mal-estar-democratico-nao-
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______. O populismo como problema jurídico: conceito e impactos do discurso populista


no Estado Democrático de Direito. Revista Direito (Mackenzie). 2021. (artigo inédito e
aceito).
SUMÁRIO

64 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

INCISA, Ludovico. Populismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,


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MIGUEL, Luis Felipe. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo:


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MOUFFE, Chantal. Sobre o político. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2015.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.

TASSINARI, Clarissa. A supremacia judicial consentida: uma leitura da atuação do


Supremo Tribunal Federal a partir da relação direito-política. Tese de Doutorado. PPG
Direito. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 2016.
SUMÁRIO

Capítulo 4

CRITÉRIOS OBJETIVOS
DO ATUAL SISTEMA DE
NULIDADES NO CPC/15
Darci Guimarães Ribeiro
SUMÁRIO

66 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

CRITÉRIOS OBJETIVOS DO ATUAL SISTEMA DE


NULIDADES NO CPC/15

Darci Guimarães Ribeiro¹

Introdução

A necessidade de forma é, antes de tudo, garantia de segurança e da


própria liberdade jurídica. A abolição das formas, no entendimento de OVÍDIO
B. DA SILVA, “provocaria a instauração imediata do arbítrio absoluto, tornando
simplesmente impossível a convivência social”². Portanto, a forma é garantia da
eficácia jurídica do ato processual praticado.

Os inconvenientes decorrentes da necessidade da forma para a prática


dos atos processuais podem ser justificados por meio das palavras de
CALAMANDREI, segundo as quais “anzichè un intraltio alla giustizia, sono in realtà
una preziosa garanzia dei diri�i e delle libertà individuali”³. Ou, como quer
MONTESQUIEU, quando afirma que as formas de justiça “son el precio que cada
ciudadano paga por su libertad”⁴.

1 Advogado. Professor Titular de Direito Processual Civil da UNISINOS e PUC/RS. Pós-Doutor pela Università
degli Studi di Firenze. Doutor em Direito pela Universidade de Barcelona. Especialista e Mestre pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Membro da Associação Internacional de Direito
Processual. Membro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual Civil. Membro do Instituto Brasileiro
de Direito Processual Civil e da Academia Brasileira de Direito Processual. darci.guimaraes@terra.com.br
2 Curso de Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2006, 7ª ed., vol. 1, p. 190. Nesta ordem de ideias,
CHIOVENDA, para quem as formas “son tan necesarias y aún mucho más que en cualquiera otra relación
social; su falta lleva al desorden, a la confusión y a la incertidumbre”, Principios de Derecho Procesal. Trad. por
José Casáis y Santaló. Madrid: Reus, Tomo II, 1925, L. II, §43, p. 110.
3 Istituzioni di Diri�o Processuale Civile. In: Opere Giuridiche, Roma: Roma Tre-Press, 2019, vol. IV, §43, p. 168.
4 El Espíritu de las Leyes. Trad. por Siro Garcia del Mazo. Madrid: Librería General de Victoriano Suárez, 1906,
Livro VI, Cap. II, p. 115.
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 67
O processo é de natureza eminentemente instrumental, razão pela qual,
consequentemente, prevalece o domínio do princípio da liberdade das formas,
que, no Brasil, está consagrado no art. 188 do CPC, segundo o qual: “Os atos e os
termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente
a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a
finalidade essencial”. Conclui-se, portanto, que a forma do ato processual é um
meio e não um fim para que possa produzir seus efeitos.

A forma dos atos processuais se traduz, portanto, como um caminho


que aponta para um fim⁵. Ou, como prefere dizer CARNELUTTI, ao identificar a
forma como “el cuerpo del acto”⁶, já que, em linhas gerais, o processo pode ser
concebido como um conjunto de formas que o Estado coloca à disposição das
partes para que estas possam realizar a justiça.

Dentro desta perspectiva, pois, é importante assinalar, como o faz


COUTURE, que: “Siendo el derecho procesal un conjunto de formas dadas de antemano
por el orden jurídico, mediante las cuales se hace el juicio, la nulidad consiste en el
apartamiento de ese conjunto de formas necesarias establecidas por la ley”.⁷

Apesar da legislação brasileira ter optado pela expressão ‘nulidade’,


acredito que o termo mais correto seja ‘invalidade’ e, atualmente, é o mais
utilizado pela doutrina brasileira.⁸ A uma, porque é mais amplo e se pode falar,
também, sem cair em contradição, da anulabilidade e irregularidade. A duas,
porque trata do problema especificamente dentro do plano da validade e não da
eficácia, como estudaremos mais adiante.⁹ Por esta razão, doravante usaremos o
termo invalidade em substituição ao termo nulidade.

5 Para um estudo detalhado da causa nos atos processuais, consultar por todos, GUASP, Indicaciones sobre el
problema de la causa en los actos procesales. In: Estudios Jurídicos, Madrid: Civitas, 1996, nº 15, p. 473-492.
6 Leciones de Derecho Procesal Civil, Madrid, 1933, vol. III, p. 239.
7 Fundamentos del Derecho Procesal, Buenos Aires: Depalma, 1958, nº 231, p. 374.
8 ANTÔNIO JANYR DALL’AGNOL JR, Invalidades Processuais, Porto Alegre: Letras Jurídicas Ltda., 1989,
ARAKEN DE ASSIS, Processo Civil Brasileiro, São Paulo: RT, 2015, V. II, T. I, Cap. 55, p. 1.618 e ss; ROQUE
KOMATZU, Da Invalidade no Processo Civil, São Paulo: RT, 1991 y EDUARDO SCARPARO, As Invalidades
Processuais Civis na perspectiva do Formalismo-Valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
9 Para um estudo mais aprofundado do problema terminológico, consultar ANTÔNIO JANYR DALL’AGNOL
JR, Invalidades Processuais, ob. cit., p. 11-16 e ARAKEN DE ASSIS, Processo Civil Brasileiro, ob. cit., nº 1.248,
p. 1.629.
SUMÁRIO

68 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

1. Princípios relativos às formas processuais


Para que se possa compreender adequadamente as invalidades
processuais, apresenta-se como conditio sine qua non o estudo dos princípios
relativos às formas processuais. O conceito de forma, como acertadamente
declara ALSINA, “comprende tanto la estructura y modo de exteriorización del acto,
como el orden de colocación que a éste corresponde en el desarrollo de la relación
procesal”¹⁰.

Estimo extramuro neste trabalho, a análise aprofundada de cada princípio,


por isso me limitarei a identificá-los na nossa legislação.

1.1 Princípio da instrumentalidade das formas

O princípio da instrumentalidade das formas está em oposição ao


princípio da legalidade das formas, pois, enquanto neste princípio a lei se encarrega
de estabelecer o caminho para a realização do ato processual, naquele a forma é
livre, uma vez alcançada sua finalidade essencial.

No Brasil, não se adota puramente nenhum dos dois princípios.


Todavia, a lei é muito clara ao dizer, no art. 188 do CPC, anteriormente citado,
que: “Os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a
lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe
preencham a finalidade essencial”. Vale dizer, predomina o princípio da
instrumentalidade das formas, exigindo-se formalidade somente para os atos
processuais considerados muito importantes¹¹, como, por exemplo, a demanda
(art. 319 do CPC), a citação (art. 250 do CPC), a contestação (art. 337 do CPC), a
sentença (art. 489 do CPC), a apelação (art. 1.010 do CPC), entre outros.

Desta forma, podemos conceituar o princípio da instrumentalidade das


formas, de acordo com LINO PALACIO, como “la idoneidad de los actos procesales

10 Las Nulidades en el Proceso Civil, Buenos Aires: Ejea, 1958, §4º, p. 28.
11 Nestes casos, o caminho que o ato processual deve seguir é obrigatório, pois de acordo com IHERING, “Toda
forma decretada o impuesta limita la voluntad en la elección de sus medios de expresión. (…). La forma exige
y quiere ser exactamente conocida, y por eso castiga la ignorancia, la desatención, la torpeza, la ligereza”, El
Espíritu del Derecho Romano en las diversas fases de su desarrollo. Trad. por Enrique Príncipe y Satorres.
Granada: Comares, 1998, T. III, §50, p. 643 e 647.
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 69
desde el punto de vista de la finalidad que en cada caso están llamados a cumplir, sin que
la inobservancia de las formas, por sí sola, pueda dar lugar a su nulidad”¹².

1.2 Princípio da conservação dos atos

Este princípio está previsto no art. 277 do CPC, segundo o qual: “Quando
a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro
modo, lhe alcançar a finalidade”.

O princípio da conservação dos atos possui uma dupla formulação, de


acordo com MAURINO:

“a) ‘No basta la sanción legal específica’, para declarar la


nulidad de un acto, si éste, no obstante su defecto ha logrado la
finalidad a que estaba destinado (función atenuadora e
integradora).

b) ‘No habiendo sanción legal específica’, puede declararse la


nulidad, cuando el acto no ha cumplido su finalidad (función
autónoma)”¹³.

Esta visão teleológica dos atos processuais faz com que todo ato no
processo seja considerado válido independentemente de como se tenha realizado,
uma vez que alcance sua finalidade. Pouco importa se estamos diante de uma
invalidade absoluta, relativa, anulabilidade ou uma simples irregularidade, ela
não será decretada.

1.3 Princípio pas de nuli�é sans grief

Também conhecido como princípio da existência do prejuízo ou, como


prefere chamar COUTURE, princípio de “transcendência”¹⁴. Vale dizer, não se
declara a invalidade de um ato processual sem que seja provado o efetivo prejuízo
causado por ele. Se o ato ao ser praticado desrespeitou a forma, mas não causou
prejuízo, significa que alcançou sua finalidade.

12 Manual de Derecho Procesal Civil, Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2003, 17ª ed., nº 33, p. 74.
13 Nulidades Procesales. Buenos Aires: Astrea, 1985, §30, p. 39.
14 Fundamentos del Derecho Procesal, ob. cit., nº 251, p. 390.
SUMÁRIO

70 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Encontra disposição expressa no CPC a máxima ‘não existe invalidade sem


efetivo prejuízo’, no §1º do art. 282 do CPC, quando diz: “O ato não será repetido nem
sua falta será suprida quando não prejudicar a parte”.

Em igual sentido, o §2º do art. 282 do CPC, ao declarar que: “Quando


puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a decretação da nulidade, o juiz
não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta”, bem como o
parágrafo único do art. 283 do CPC, ao apontar que: “Dar-se-á o aproveitamento dos
atos praticados desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer parte”.

Como podemos perceber, o CPC brasileiro é pródigo com esse princípio


ao colocar na lei processual diversos artigos para acomodar, com mais amplitude,
as diversas possibilidades de não anular ou repetir um ato processual que não
apresente um dano capaz de prejudicar uma das partes.

Daí que quando o Ministério Público não seja intimado para intervir e
sua presença se faça obrigatória, nos termos do art. 178 do CPC: “A nulidade só
pode ser decretada após a intimação do Ministério Público, que se manifestará sobre a
existência ou a inexistência de prejuízo”, conforme o §2º do art. 279 do CPC.

Outro não é o entendimento dos nossos tribunais que reiteradamente


têm afirmado que a existência do prejuízo é elemento indispensável para a
decretação da invalidade no processo, seja no âmbito civil⁵ ou penal⁶.

2. A sanção processual e as invalidades

Se o processo é um instrumento de realização da justiça, ou seja, um


conjunto de atos que devem obedecer à determinada forma, o legislador instituiu

15 “Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, "o reconhecimento da nulidade processual exige a efetiva
demonstração de efetivo prejuízo suportado pela parte interessada, em respeito ao princípio da
instrumentalidade das formas (pas de nullité sans grief)" (AgInt no AREsp 1310558/SP, Rel. Ministra MARIA
ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 02/04/2019, DJe 08/04/2019)”, STJ, 4ª Turma, AgInt no
AREsp 1595325/MT, Rel. Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, j. 07.12.2020, DJe 14.12.2020.
16 “(...). Os Tribunais Superiores firmaram posicionamento no sentido de que a nulidade apenas será considerada
causa determinante para o refazimento do ato se houver comprovação do prejuízo sofrido, obedecendo, em
linhas gerais, às determinações da legislação penal em vigor, segundo a qual é imprescindível, quando se trata
de alegação de nulidade de ato processual, a demonstração do prejuízo sofrido, em consonância com o
princípio pas de nullité sans grief, consagrado pelo legislador no art. 563 do Código de Processo Penal, o que,
na hipótese, não ficou demonstrado. (...)”, STJ, 5ª Turma, AgRg nos EDcl no HC 619245/SP, Rel. Min.
REYNALDO SOARES DA FONSECA, j. 23.02.2021, DJe 01.03.2021.
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 71
para aqueles que não respeitem a forma, quando prescrita, uma sanção. Esta se
traduz na invalidade dos atos processuais, que pode ser maior ou menor
conforme a gravidade do desrespeito à forma¹⁷.

3. O sistema do CPC de 2015

Não se pode estudar o sistema brasileiro de invalidades processuais


sem conhecermos a clássica obra de GALENO LACERDA, considerado o pai das
invalidades processuais no Brasil, quando publicou sua tese para a Cátedra de
Direito Processual Civil, em 1953, denominada “Despacho Saneador”. Esta obra
delineou todo o sistema de invalidades processuais do CPC de 1973. Seu valor
persiste até nossos dias, posto que o atual CPC manteve quase integralmente o
sistema de invalidades da legislação processual anterior.

A fonte inspiradora de Galeno Lacerda foi a obra de Carnelu�i¹⁸,


quando o mestre italiano identificou os vícios essenciais do ato processual como
insanáveis e sanáveis, estando as invalidades absolutas na primeira categoria,
enquanto as invalidades relativas e as anulabilidades na segunda.

O sistema desenvolvido por GALENO LACERDA levou em


consideração os vícios que podem ser essenciais ou não essenciais. Os essenciais
podem ser insanáveis ou sanáveis. Enquanto a invalidade absoluta é insanável, a
relativa e a anulabilidade são sanáveis. Todavia, as invalidades absolutas e
relativas violam normas cogentes/imperativas, enquanto as anulabilidades
violam normas dispositivas. Os vícios não essenciais traduzem as irregularidades
que podem ser corrigidas ou não¹⁹.

Para chegar a esta conclusão, o Mestre gaúcho considerou dois aspectos


de uma norma: sua natureza que pode ser cogente ou dispositiva e sua finalidade,
já que pode tutelar interesse público ou privado²⁰.

17 Para uma análise detalhada e histórica dos vários tipos de invalidades no processo civil brasileiro, consultar
PIMENTA BUENO, Apontamentos sobre as formalidades do processo civil, Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1858, p. 08-119.
18 Sistema del Diri�o Processuale Civile, Padova: Cedam, 1936, vol. III, nº 551 e 552, p. 495-497.
19 Despacho Saneador, Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1985, 2ª ed., 1985, Cap. IV, nº 6, p. 72 e 73 e Cap. V, nº 8, 124
a 127.
20 Despacho Saneador, ob. cit., Cap. V, nº 8, p. 124.
SUMÁRIO

72 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Daí concluir GALENO LACERDA que “a teoria das nulidades processuais,


como afirmamos, parte das linhas mestras da teoria geral, para singularizar-se através de
critério distintivo nascido da natureza e da finalidade da norma violada”²¹.

Quando já em vigor o CPC de 1973, GALENO LACERDA, em uma


conferência memorável, nos dez anos do CPC/73, revisita as invalidades
processuais para aplicar o princípio da instrumentalidade das formas a todas as
invalidades, fazendo com que as invalidades absolutas também sejam sanáveis.
Sua justificativa encontra fundamento: “Exatamente porque a preocupação maior
consiste em tudo fazer para salvar o instrumento, a fim de que alcance o objetivo, verifica-se
que as regras sobre nulidades possuem o necessário e indispensável condão de relativizar a
maior parte das normas cogentes processuais e, por conseguinte, as sanções resultantes de
sua infração”²³. Daí concluir o autor, portanto, que: “as regras sobre nulidades se
integram no "sobredireito" processual porque se sobrepõem às demais, por interesse
público eminente, condicionando-lhes, sempre que possível, a imperatividade”²⁴.

4. Classificação das invalidades processuais

4.1. Invalidade cominada e não cominada

No sistema brasileiro atual existem invalidades cominadas, art. 276 do


CPC, mas não invalidades sem cominação²⁵. Todavia, essa previsão é relativizada
com a aplicação dos princípios da conservação dos atos e da existência do
prejuízo.

21 Despacho Saneador, ob. cit., Cap. V, nº 8, p. 125.


22 Em sentido contrário, entendendo que as invalidades absolutas são insanáveis, ARAKEN DE ASSIS, Processo
Civil Brasileiro, ob. cit, V. II, T. I, nº 1.251, p. 1.634.
23 O Código e o Formalismo Processual, In: Revista Ajuris, nº 28, 1983, p.11 (también publicado en Revista da
Faculdade de Direito UFPR, nº 21, 1983, p. 16 e 17. Direção electrônica h�ps://revistas.ufpr.br/direito/article/
view/8874/6183).
24 Ibidem. Para um estudo mais aprofundado desta simbiótica relação, consultar por todos o excelente estudo de
Danilo Costalunga, A Teoria das Nulidades e o Sobredireito Processual. In: Revista de Doutrina e
Jurisprudência do TJDF, vol. 51, 11-80, mai./ago 1996, p. 51 a 80. Disponível no endereço eletrônico: h�ps://
bdjur.tjdft.jus.br/xmlui/bitstream/handle/tjdft/34888/a%20teoria%20das%20nulidades%20e%20o%20
sobredireito%20processual.pdf?sequence=1
25 No antigo art. 244 do CPC/73, existia a prescrição de invalidade sem previsão de sanção, ao dizer que: “Quando
a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado
de outro modo, lhe alcançar a finalidade”.
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 73
Coube a PONTES DE MIRANDA a melhor conceitualização deste
sistema, ao dizer que:

“No sistema jurídico do Código de Processo Civil de 1973, tal como


antes, há distinção que está à base mesma da sua ‘teoria das nulida-
des’: nulidades cominadas, isto é, nulidades derivadas da incidência
de regra jurídica em que se disse, explicitamente, que, ocorrendo a
infração da regra jurídica processual, a sanção seria a nulidade; nu-
lidades não cominadas, isto é, nulidades que resultam da infração de
regras jurídicas processuais, mas para as quais não se disse, explici-
tamente, que a sanção seria a nulidade”²⁶.

A causa disto, podemos concluir que a invalidade cominada é aquela


em que o legislador determinou uma sanção na norma processual para o caso de
incumprimento da forma predeterminada na lei, ao passo que na invalidade não
cominada inexiste no ordenamento processual qualquer sanção para o
descumprimento da forma na realização do ato processual.

Não se pode confundir, tentando identificar, invalidades cominadas


com invalidades absolutas e, também, entre invalidades relativas ou
anulabilidades com invalidades não cominadas.

Isto não é correto porque uma invalidade cominada pode ser tanto
absoluta, art. 93, IX da CF, quanto relativa, art. 74, § único do CPC, bem como art.
76, I do CPC. Igualmente, uma invalidade não cominada pode ser absoluta, art.
142 do CPC, em havendo a má formação na composição do tribunal, ou então
relativa, art. 833 do CPC.

4.2. Espécies de vícios dos atos processuais

Para que se possa compreender adequadamente o estudo das


invalidades processuais, é necessário identificar, mesmo que superficialmente, os
planos da existência, validade e eficácia, nos quais a vida dos fatos jurídicos vai
se desenvolver e aqui mais especificamente dos atos processuais, como espécie
daqueles. Vale recordar, portanto, as corretas ilações realizadas por PONTES DE
MIRANDA, segundo as quais:

26 Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1996, 3ª ed., T. III, p. 355 e 356.
SUMÁRIO

74 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

“Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se
de validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão
da existência é questão prévia. Somente depois de se afirmar que
existe é possível pensar-se em validade ou em invalidade”²⁷.

No plano da existência, o ato processual deve cumprir “aquel mínimo de


requisitos constitutivos que es indispensable para su existencia jurídica”, nas palavras
de LIEBMAN²⁸.

No plano da validade, devemos identificar se o ato processual é perfeito


ou imperfeito, lícito ou ilícito, vale dizer, se o ato processual cumpriu os requisitos
considerados essenciais pela lei processual, ademais das formalidades mínimas,
para que possa permanecer ou não no processo.

No plano da eficácia, a discussão gira ao redor da aptidão do ato


processual para produzir efeitos no processo, pois, segundo a máxima latina:
nullum est quod nullum effectum producit. Vale dizer, uma vez que o ato processual
tenha ingressado no plano da existência, ele sempre irá produzir efeitos, já que no
processo o ato inválido ou ineficaz produzirá efeitos enquanto não seja declarada
sua invalidade ou ineficácia²⁹. Assim, por exemplo, quando o advogado pratica
ato processual urgente sem procuração e posteriormente não a junta ao processo,
§2º do art. 104 do CPC, este ato será considerado ineficaz, mas esta ineficácia,
obviamente, deverá ser declarada pelo magistrado no processo.

O ato processual, quando praticado no processo, pode desatender


algum requisito que a lei processual considere importante, causando assim um
vício. Contudo, nem todo requisito possui a mesma transcendência. Por isso
ARAKEN DE ASSIS, os qualifica como “requisitos necessários e requisitos úteis”³⁰.

Os vícios dos atos processuais costumam ser divididos em três (3)


grandes categorias:

a) A mais grave de todas é a inexistência;

27 Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 1983, 4ª ed., T. IV, §357, p. 06 e 07.
28 Manual de Derecho Procesal Civil. Trad. por Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Ejea, 1980, nº 124, p. 203.
29 Em igual sentido, ANTÔNIO JANYR DALL’AGNOL JR, Invalidades Processuais, ob. cit., p. 22 e ARAKEN DE
ASSIS, Processo Civil Brasileiro, ob. cit, V. II, T. I, nº 1.249, p. 1.630.
30 ARAKEN DE ASSIS, Processo Civil Brasileiro, ob. cit, V. II, T. I, nº 1.245, p. 1.623.
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 75
b) Em menor gravidade encontramos a invalidade absoluta (que fere
norma cogente e de interesse público), a invalidade relativa (que fere norma
cogente, cujo interesse é privado), e a anulabilidade (que fere norma dispositiva
de interesse privado);

c) E a menos grave são as irregularidades.

4.2.1. Ato inexistente

Não se pode confundir um ato inválido ou ineficaz com um ato


inexistente, pois enquanto os primeiros ingressaram no mundo jurídico, o
segundo não³¹. De acordo com a acertada opinião de CALMON DE PASSOS,
“Existir é "não ser". A não existência é uma negação, e o ato processual inexistente é um
"ato não processual", vale dizer, é um "não ser" e o que "não é" nunca pode ser viciado
ou defeituoso”³².

Corretamente afirma PONTES DE MIRANDA que “não pode ser


deficiente o que não existe, o que ‘não’ é. Para ser deficiente, é preciso que exista. O que
não existe nem é válido, nem inválido: não entrou, ou já não está no mundo jurídico”³³.

Deste modo, podemos dizer que o ato é inexistente, nas palavras de


ROQUE KOMATZU, “quando carece desse mínimo de elementos constitutivos, sem os
quais o ato não configura sua identidade ou sua fisionomia particular”³⁴. Por isso,
podemos concluir através das palavras de CALMON DE PASSOS, para quem: “O
inexistente tem sido ineficaz desde sua origem, insanável, irremediável, não sofre a

31 A redação havida no parágrafo único do art. 37, do revogado CPC/73, induziu os mais desavisados a
confundirem ato ineficaz com ato inexistente, felizmente corrigido na redação do atual §2º do art. 104 do CPC.
Neste sentido algumas decisões do STJ que ainda confundem, entre as quais, aquela que afirma: “AGRAVO
INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. IMPUGNAÇÃO AO PEDIDO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA. AUSÊNCIA DE PROCURAÇÃO. ATO INEXISTENTE. VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC/73.
INEXISTÊNCIA. REVISÃO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DO
ENUNCIADO N.º 7/STJ”, STJ, 3ª Turma. AgInt no REsp 1549359/RS, Rel. Min. PAULO DE TARSO
SANSEVERINO, j. 15.09.2016, DJe 22.09.2016.
32 Esboço de uma Teoria das Nulidades aplicada às Nulidades Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 2002, nº 79, p.
96.
33 Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 1983, 4ª ed., T. IV, §360, p. 19.
34 Da Invalidade no Processo Civil, São Paulo: RT, 1991, Cap. 8, p. 159.
SUMÁRIO

76 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

cobertura da coisa julgada, nem pode constituí-la nem legitimá-la.”³⁵. Por isso a
máxima: quod non est confirmare nequit.

De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo


sendo o ato inexistente, mas tendo sido praticado dentro do processo, seus efeitos
precisam ser desconstituídos através de decisão judicial. Neste sentido, a decisão,
segundo a qual é necessário a “desconstituição dos efeitos decorrentes de atos
inexistentes”³⁶.

Como exemplo podemos apontar uma sentença proferida por uma


pessoa que não tem poder jurisdicional, ou, de acordo com as equivocadas
jurisprudências do STJ, uma sentença sem assinatura do juiz³⁷, que seria melhor
classificado como ato ineficaz, de acordo com o §2º do art. 104 do CPC, bem como
o pedido de reconsideração, por “considerá-lo inexistente na sistemática
processual”³⁸.

4.2.2. Invalidade absoluta

Existe invalidade absoluta quando o ato processual praticado não


respeitar uma norma processual cogente que tutele interesse público³⁹.

O interesse público pode ser compreendido, de acordo com FRANÇOIS


GÈNY, como “las reglas superiores, que forman, por decir así, las condiciones vitales de
la sociedad”⁴⁰.

Atualmente, os princípios da conservação dos atos e da existência de


prejuízo são aplicados, inclusive, nas invalidades absolutas, porque: “Não há outro

35 Esboço de uma Teoria das Nulidades aplicada às Nulidades Processuais, ob. cit., nº 85, p. 103 y 104. Esa es la
razón por la cual COUTURE dice que, “el acto inexistente (hecho) no puede ser convalidado, ni necesita ser
invalidado”, Fundamentos del Derecho Procesal, ob. cit., nº 234, p. 377.
36 STJ, 2ª Turma, EDcl no REsp 465580/RS, Rel. Min. CASTRO MEIRA, j. 03.04.2008, DJe 18.04.2008.
37 Neste sentido a jurisprudência do STJ, segundo a qual: “(...) Impossibilidade de atribuição de eficácia de título
executivo judicial à sentença sem assinatura do juiz, homologando o acordo de
separação consensual, por se tratar de ato inexistente. (...)”, STJ, 3ª Turma, REsp 858270/MS, Rel. Min. PAULO
DE TARSO SANSEVERINO, j. 22.03.2011, DJe 28.03.2011, RSTJ vol. 222 p. 328.
38 STJ, 3ª Turma, AgRg no RCD na MC 22196/RS, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, j. 11.03.2014, DJe
17.03.2014, RDDP vol. 135 p. 144.
39 Para LINO PALACIO, “No existen por lo tanto en el proceso nulidades absolutas”, Manual de Derecho Procesal
Civil, Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2003, 17ª ed., nº 152, p. 332.
40 Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo. Trad. por José Luis Monereo Pérez. Granada:
Comares, 2000, nº 175, p. 496.
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 77
interesse público mais alto, para o processo, do que o de cumprir sua destinação de veículo,
de instrumento de integração da ordem jurídica mediante a concretização imperativa do
direito material”, nas palavras de GALENO LACERDA⁴¹.

Podemos identificar como características das invalidades absolutas:

a) A possibilidade de ser declarada em qualquer fase do processo⁴²;

b) O juiz deve decretá-la ex officio;

c) Qualquer das partes pode suscitá-la, independente de possuir


interesse;

d) São sanáveis.

Podemos citar como exemplos de invalidades absolutas, entre tantos


outros, a ausência de litisconsorte quando necessário⁴³; a decisão extra petita e
aquela que viola o princípio do contraditório⁴⁴; o art. 64, §1º; o art. 142 e o art. 272,
§2º⁴⁵, todos do CPC.

4.2.3. Invalidade relativa

Como dizia COUTURE: “En principio, en derecho procesal civil, toda


nulidade se convalida por el consentimento”⁴⁶.

Existe invalidade relativa quando o ato processual praticado pela parte


não respeita uma norma processual cogente que tutele interesse privado. Neste

41 O Código e o Formalismo Processual, In: Revista Ajuris, nº 28, 1983, p. 10 y 11 (también publicado en Revista
da Faculdade de Direito UFPR, nº 21, 1983, p. 16).
42 Sobre esta questão, convém mencionar o posicionamento do STJ, segundo o qual esta: “Corte de Justiça, em
diversas oportunidades, tem exarado a compreensão de que a suscitação tardia da nulidade, somente após a
ciência de resultado de mérito desfavorável e quando óbvia a ciência do referido vício muito anteriormente à
arguição, configura a chamada nulidade de algibeira, manobra processual que não se coaduna com a boa-fé
processual e que é rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça, inclusive nas hipóteses de nulidade absoluta."
(REsp 1.714.163/SP, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe 26/9/2019)”, STJ, 1ª Turma, AgInt
no REsp 1455125/SP, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, j. 28.09.2020, 30.09.2020.
43 STJ, 2ª Turma, RMS 62831/MT, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, j. 15.12.2020, DJe 18.12.2020.
44 “A adoção como fundamento determinante de elementos jurídicos sobre os quais não pende a causa é hipótese
de nulidade absoluta do acórdão recorrido, pois viola reflexamente a inércia jurisdicional e o contraditório”,
STJ, 1ª Turma, AgInt no AREsp 832007/RJ, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, j. 17.11.2020, DJe
25.11.2020.
45 STJ, 5ª Turma, HC 212928/PR, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, j. 01.10.2015, DJe 19.10.2015.
46 Fundamentos del Derecho Procesal, ob. cit., nº 252, p. 391.
SUMÁRIO

78 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

caso, como a norma processual tutela o interesse das partes, o vício também
poderá ser sanado pela parte interessada. Todavia, em virtude de a natureza da
norma ser cogente e imperativa, uma vez existente o vício, o juiz deve ordenar ex
officio o saneamento do mesmo⁴⁷.

A característica pela qual o juiz deve e não pode decretar ex officio o


saneamento do vício, está na natureza da norma processual violada ser cogente e
não pelo fato da norma tutelar interesse público. Se assim fosse, somente as
invalidades absolutas poderiam ser decretadas de ofício, já que nas invalidades
relativas à norma processual tutela interesse privado. Ademais, sendo a norma
processual cogente e existindo a possibilidade de sanação, sua violação não pode
ficar à disposição da vontade do juiz em decretá-la ou não. Uma vez identificada
a violação da norma processual cogente, o juiz tem o dever de saná-la, porque o
ordenamento não lhe confere margem de discricionariedade em face da
imperatividade da norma. A cogência da norma violada impõe e não faculta o seu
respeito para todos no processo. Se facultasse, sua natureza seria dispositiva e
não imperativa e cogente. Talvez os autores que sustentam que o juiz pode
decretá-la, estejam se referindo somente aos poderes do juiz quando comparado
aos poderes das partes⁴⁸.

Da mesma forma que as invalidades absolutas, as invalidades relativas


podem ser alegadas em qualquer momento do processo, e não na primeira
oportunidade em que couber a parte falar nos autos, posto que não há preclusão
para elas, na medida em que o parágrafo único do art. 278 do CPC afasta a
preclusão quanto “às nulidades que o juiz deva decretar de ofício”⁴⁹. Vale dizer, nas
invalidades relativas o juiz deve decretá-las ex officio, vez que a norma violada é
cogente e imperativa, e, se não há preclusão para o juiz, não pode haver para a
parte, nos termos do inc. II do art. 342, §5º do art. 337 e §3º do art. 485, todos do

47 Entre aqueles que sustentam a possibilidade de o juiz agir ex officio, cabe citar ROQUE KOMATZU, Da
Invalidade no Processo Civil, ob. cit, Cap. 10, p. 209 e 210; ANTÔNIO JANYR DALL’AGNOL JR, Invalidades
Processuais, ob. cit., p. 54; ARAKEN DE ASSIS, Processo Civil Brasileiro, ob. cit, V. II, T. I, nº 1.259.2, p. 1.652 e
MONIZ DE ARAGÃO, Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de janeiro: Forense, 2005, nº 347, p. 295.
48 Entre eles, ARAKEN DE ASSIS, Processo Civil Brasileiro, ob. cit., V. II, T. I, nº 1.259.2, p. 1.652.
49 Neste sentido vários julgados do Superior Tribunal de Justiça, entre os quais cito: “(...). O art. 245 do CPC, que
impõe seja alegada a nulidade dos atos na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, não
tem incidência quanto às nulidades decretáveis de ofício pelo juiz. Precedentes do STJ: REsp 161.458/MG, 2a T.,
Rel. Min. Adhemar Maciel, DJ 20/10/1998; REsp 29.852/PR, 4aT., Rel. Min. Fontes de Alencar, DJ 17/06/1996.
(...)”, STJ, 1ª Turma, EDcl no REsp 765566/ RN, Rel. Min. LUIZ FUX, j. 13.11.2007, DJ 29.11.2007.
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 79
CPC⁵⁰. A lógica é simples, não pode haver preclusão para a parte se o juiz possui
o dever de agir ex officio – basta pensarmos na seguinte situação concreta: imagine
que o réu, na contestação, não alegue, em preliminar, a incapacidade processual
da parte autora ou nulidade da citação, ambas hipóteses de invalidade relativa.
Na audiência de instrução e julgamento, o réu alega a incapacidade processual do
autor ou a nulidade da citação. Pode o juiz aplicar o caput do art. 278 do CPC e
dizer que a parte deveria ter apontado esta invalidade na primeira oportunidade
em que falou nos autos, que foi a contestação? Obviamente que não, pois deve ser
aplicado o parágrafo único do art. 278 do CPC. E, mesmo para quem entenda
haver preclusão, se a parte alega a invalidade relativa a destempo, o juiz que
agora sabe da invalidade, pode simplesmente desconsiderar a invalidade
alegada, sendo a norma imperativa e cogente? Me parece que, também, não. E se
não pode desconsiderar a alegação extemporânea da invalidade relativa, não
existe lógica alguma em considerar preclusa a oportunidade para a parte.

Para que se declare uma invalidade relativa é necessário:

a) A existência de um efetivo prejuízo à parte, segundo o §1º do art. 282


do CPC, pois do contrário o ato terá alcançado sua finalidade, como determina o
art. 277 do CPC;

b) Que o ato processual não tenha sido praticado pela própria parte
interessada na declaração de nulidade, conforme art. 276 do CPC. Aplica-se aqui
a máxima: venire contra factum proprium⁵¹. É o princípio da proteção, nas palavras
de CAMUSSO⁵².

Como exemplos, podemos citar o §1º do art. 239 do CPC, art. 833 do
CPC e art. 76 do CPC, entre tantos outros.

50 Em sentido contrário, entendendo que as invalidades relativas devem ser alegadas na primeira oportunidade,
sob pena de preclusão, ARAKEN DE ASSIS, Processo Civil Brasileiro, ob. cit, V. II, T. I, nº 1.259.2, p. 1.652. Este
também tem sido o posicionamento de alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça, entre os quais o
seguinte: “Segundo o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, o vício relativo à ausência
de intimação constitui nulidade relativa, devendo ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte
se manifestar nos autos, sob pena de preclusão”, STJ, 3ª Turma, EDcl no AgInt no AREsp 1589406/RJ, Rel. Min.
RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, j. 19.10.2020, DJe 29.10.2020.
51 Sobre referido princípio, consultar o que escrevi em O Novo Processo Civil Brasileiro: Presente e Futuro.
Londrina: Thoth, 2020, nº 2.5.2, p. 63 e 64, bem como nos Comentários ao Código de processo Civil. Coord.
Cássio Scarpinella Bueno. São Paulo: Saraiva, 2017, vol. 1, p. 99-109.
52 Nulidades Procesales, Buenos Aires: Ediar, 1983, Cap. XII, p. 226.
SUMÁRIO

80 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

4.2.4. Anulabilidade

Existe anulabilidade quando o ato processual praticado não respeita


uma norma processual dispositiva que tutele interesse privado. Por isso o juiz não
pode atuar ex officio, estando sua anulação a cargo exclusivo da parte interessada,
independentemente da existência do prejuízo. Vale dizer, o ato processual será
convalidado pela omissão do interessado, salvo demonstração do justo
impedimento, ou será anulado por sua reação. A anulação, logicamente, deve ser
alegada na primeira oportunidade em que caiba a parte manifestar-se no
processo, sob pena de preclusão, como determina o caput do art. 278 do CPC.

Na anulabilidade a preocupação do Estado se mostra quase alheia à


relação processual, limitando-se somente à prestação da tutela jurisdicional.
Desta forma, não consideramos a ordem de produção da prova oral em audiência,
art. 361 do CPC, como um exemplo de anulabilidade, pois sobre ela o juiz poderá
ex officio alterá-la, conforme inc. VI do art. 139, ambos do CPC⁵³.

Como exemplos, podemos citar a incompetência relativa, art. 65 do CPC


combinado com o §5º, do art. 337 do CPC; a convenção de arbitragem, §5º, do art.
337 do CPC; a penhora dos frutos dos bens inalienáveis, art. 834 do CPC.

4.2.5. Irregularidades

Por vezes ocorrem vícios que não são essenciais, vale dizer, não colocam
em risco a vida ou a validade do ato processual praticado.

A este respeito merece aprovação o exposto por MONIZ DE ARAGÃO


quando afirma que as irregularidades são “vícios de mínima importância, (...). Estas
são infrações que não comprometem a ordem jurídica ou o interesse da parte; nem afetam
a estrutura do ato até o ponto de fazer que não seja hábil para produzir os efeitos para os
que está destinado”⁵⁴.

Em muitas situações as irregularidades podem ser sanáveis, e. g., art.


207 do CPC, outras vezes não, v. g., quando o juiz não cumpre o prazo

53 Em sentido contrário, entendendo que a ordem de produção da prova oral em audiência é um exemplo de
anulabilidade, ARAKEN DE ASSIS, Processo Civil Brasileiro, ob. cit., V. II, T. I, nº 1.253, p. 1.640.
54 Comentários ao Código de Processo Civil, ob. cit., nº 349, p. 298.
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 81
estabelecido pela lei para a prática de um ato processual, art. 226 do CPC, ou
quando a sentença é excessivamente concisa.

5. Classificação com base em princípios processuais constitucionais

Essa classificação está em conformidade com o art. 1º do CPC, segundo


o qual: “O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e
as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil,
observando-se as disposições deste Código”. Vale dizer, especialmente depois da
promulgação do atual CPC, a discussão sobre a invalidade de um ato processual
deve ser realizada desde princípios e valores fundamentais do processo e não
mais sobre normas processuais infraconstitucionais.

Dentro desta perspectiva, pois, cumpre apontar a permanente tensão


que existe entre os dois grandes princípios processuais que informam a vida do
processo: segurança jurídica e efetividade. Pois, sempre que o pêndulo passa para o
lado da segurança jurídica, temos, claramente, menos efetividade e quando o
pêndulo se desloca para a efetividade, temos, igualmente, menos segurança
jurídica. Esta é a tragédia com a qual desafortunadamente o processo deve
conviver. Quanto mais segurança jurídica no processo, menos efetividade teremos
e quanto mais efetividade o processo tenha, menos segurança ele possuirá.

Não se pode negar que a efetividade está diretamente ligada à economia


processual, à instrumentalidade das formas, à finalidade dos atos praticados e à
existência do prejuízo, enquanto a segurança jurídica está vinculada à
estabilidade das situações processuais, à previsibilidade das condutas no processo
e ao respeito à lei.

Por isso, afirma corretamente EDUARDO SCARPARO, que: “Como


regra, a efetividade se esforça por ignorar a invalidade e, em consequência, aproveitar o ato
defeituoso. A segurança jurídica luta pela invalidação e o estrito respeito pelo tipo, criando
um conflito axiológico estrutural em termos de validade processual”⁵⁵.

Não resulta fácil sopesar em cada descumprimento de um ato


processual qual é o princípio que está por detrás da norma processual violada.

55 As Invalidades Processuais Civis na perspectiva do Formalismo-Valorativo. Porto Alegre: Livraria do


Advogado, 2013, nº 5.2.1.2, p. 114.
SUMÁRIO

82 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Será sempre o caso concreto que apontará o correto caminho em direção a um


processo adequado aos princípios retores do Estado Democrático de Direito.

Considerações finais

Depois de analisar o sistema de invalidades que parte da análise das


normas e princípios infraconstitucionais para identificar as diversas classes de
invalidades, chegamos ao novo Código de Processo Civil, que permite solucionar
os mesmos problemas agora desde uma perspectiva constitucional, com a
utilização dos princípios da segurança jurídica e efetividade. No sistema
tradicional, temos, de um lado, as invalidades absolutas quando o ato processual
praticado não respeita uma norma processual cogente que tutele interesse público
e, de outro, as invalidades relativas que ocorrem quando o ato processual praticado
também não respeita uma norma processual cogente, sem embargo, ela tutela
interesse privado. Já na anulabilidade, o ato processual praticado não respeita uma
norma processual dispositiva que tutele interesse privado; e, por fim, as
irregularidades, que são vícios não essenciais, razão pela qual não colocam em risco
a vida ou a validade do ato processual.

Em todas essas invalidades são aplicados os princípios da conservação


dos atos e da existência do prejuízo, permitindo com isso a convalidação do ato
processual.

Todavia, o atual CPC trouxe uma nova perspectiva para o estudo das
invalidades processuais. Vale dizer, agora a discussão sobre a invalidade de um
ato processual deve ser realizada desde princípios e valores fundamentais do
processo e não mais sobre normas processuais infraconstitucionais. Em especial
os dois grandes princípios processuais que informam a vida do processo:
segurança jurídica e efetividade. É necessário sopesar, portanto, em cada caso
concreto, se a norma processual violada alberga o princípio da segurança jurídica
ou da efetividade. Se proteger o princípio da efetividade haverá a convalidação
do ato processual e seu aproveitamento, mas se a norma processual violada
proteger o princípio da segurança jurídica, a norma processual violada não
poderá ser convalidada e a invalidade deverá ser decretada. A dificuldade na
correta ponderação dos princípios diante de situações concretas, não pode ser um
estímulo para não avançarmos na aplicação dos princípios processuais
fundamentais. Somente o estudo e uma ponderada jurisprudência poderão
SUMÁRIO

Darci Guimarães Ribeiro


CAPÍTULO 4 83
apontar um caminho seguro para que todos nós, operadores do direito, possamos
trilhar com determinação e confiança.

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SUMÁRIO

Capítulo 5

CONSTITUCIONALISMO
CLIMÁTICO:
a tridimensionalidade do direito
das mudanças climáticas

Délton Winter de Carvalho


SUMÁRIO

86 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

CONSTITUCIONALISMO CLIMÁTICO:
a tridimensionalidade do direito
das mudanças climáticas

Délton Winter de Carvalho¹

Introdução

Com a intensificação dos eventos climáticos extremos e sua chegada


antecipada frente às previsões científicas, o Direito passa a uma posição de
protagonismo no processo global que vem demandando por respostas à
mitigação, à adaptação e às perdas e danos relacionadas às mudanças climáticas.
Diante desta constatação, há a necessidade de delinear as bases estruturantes
deste ramo, construído nas fronteiras do sistema jurídico com o da ciência. Para
tanto, o presente texto elucida não apenas o Direito das Mudanças Climáticas nas
dimensões mais tradicionais do Direito, isto é, o Direito Internacional e o Direito
Nacional, mas também apresenta a formação de uma nova dimensão, a
transnacional. Esta dimensão emerge tanto dos instrumentos internacionais
clássicos quanto das aquisições evolutivas obtidas nos direitos nacionais e
regionais, que ganham influência global por uma metodologia de direito
comparado. Como fator propulsor destas aquisições, encontra-se um fenômeno,
cada vez mais intenso, que é o da litigância climática.

Em seguida, o presente texto aprofunda uma análise acerca desta


dimensão transnacional. Necessário trazer à tona que uma geração de conflitos e
problemas ambientais surgiram a partir do avançar da Sociedade Industrial. Este

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.
Pós-Doutor University of California, Berkeley, CA, USA. Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Risco e
Ecocomplexidade (CNPq). Advogado.
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Délton Winter de Carvalho


CAPÍTULO 5 87
fenômeno produziu uma vasta consagração do direito ao meio ambiente equilibrado
e sadio em diversas tradições constitucionais com o objetivo de apresentar
respostas aos desafios da justiça ambiental, formando-se aquilo que vem sendo
denominado Constitucionalismo Ambiental. Com a entrada do Antropoceno² em
cena, agregam-se a uma primeira geração de conflitos ambientais, problemas de
ordem mais complexa, desterritorializada e transtemporal. E é nesta nova geração
onde se encontram os litígios climáticos. Tais litígios trazem à discussão jurídica
uma nova dimensão de (in)justiça, para além da social e da ambiental. Trata-se da
justiça climática. A entrada do Direito no Antropoceno demanda por uma teoria
constitucional compatível e apta a guiar o Estado de Direito nesta nova dimensão
de conflitos e de justiça climática. Aí que começam os recentes debates acerca da
formação de um Constitucionalismo Climático, uma evolução de seu
predecessor, o ambiental.

Finalmente, a importância de um Constitucionalismo Climático, como


um elo congruente entre as diversas experiências constitucionais para tratamento
da matéria climática, é trazida a partir de um estudo lançado sobre dois dos mais
relevantes casos de litígios climáticos, Leghari v. Paquistão e Juliana v. USA.
Apesar das diferenças entre estes casos, ambos trazem uma reflexão sobre a
importância do papel exercido pelas previsões constitucionais, como estratégia
para enfrentar a fragilização de direitos fundamentais em razão dos efeitos
negativos das mudanças climáticas. Ainda em nível de semelhanças, estes
aproximam-se também na influência que produziram e produzem em nível
transnacional.

1. Regime climático internacional

O Direito das Mudanças Climáticas é constituído por um regime jurídico


tridimensional, constituído pelos regimes internacional, transnacional e nacional
de tratamento da mudança climática e seus efeitos. Entre 1988 e 1990³, as

2 Antropoceno consiste em um conceito que representa “era dos humanos”, criado para descrever uma nova era
geológica, ainda não oficial, a partir da qual as dinâmicas do sistema terrestre são determinadas pela atividade
humana. O termo foi proposto por Paul J Cru�en em 2002 em texto publicado na Nature (CRUTZEN, Paul J.
Geology of mankind. Nature. 415, 2002.)
3 Neste sentido, vide a Resolução 43/53, de 6 de dezembro de 1988, a Resolução 44/207, de 22 de dezembro de
1989, a Resolução 45/212, de 21 de dezembro de 1990 e a Resolução 46/169, de 19 de dezembro de 1991, todas
da Assembleia Geral das Nações Unidas.
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mudanças climáticas passaram a ser determinadas como “uma preocupação


comum para a humanidade”, momento em que a Assembleia das Nações Unidas
formalmente começou a colocar em movimento as negociações para um tratado
que enfrentasse tanto a mudança climática quanto seus efeitos (SANDS; PEEL,
2018, p. 299).

Tais negociações culminaram com a adoção da Convenção-Quadro das


Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC, em inglês) em 1992. O
regime internacional do Direito das Mudanças Climáticas orbita a partir de três
instrumentos de Direito Internacional: a referida Convenção-Quadro de 1992, o
Protocolo de Quioto de 1997 e o Acordo de Paris de 2015 (FARBER; CARLARNE,
2018, p. 57). A Convenção-Quadro consiste em um instrumento bastante amplo
que estabelece objetivos e princípios básicos, assim como as estruturas de
negociação para converter estes princípios em obrigações mais concretas.
Portanto, esta depende de regulamentação. Já o Protocolo de Quioto é um tratado
derivado da Convenção-Quadro, cujo conteúdo estabelece metas e cronogramas
para reduzir a emissão de gases do efeito estufa. Este adota um regime top-down,
estabelecendo obrigações vinculantes independentes para a redução de emissões
por países desenvolvidos, a ser obtida por meio de uma série de instrumentos de
mercado de mitigação climática e atendimento de suas metas.

O Acordo de Paris, por seu turno, representa o ápice deste processo de


negociações no plano internacional e prevê a estrutura normativa para
governança climática a partir de 2020. O tratado compromete as Partes, por meio
de um consenso político internacional, “a manter o aumento da temperatura
média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, e envidar
esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1,5°C em relação aos níveis
pré-industriais, reconhecendo que isso reduziria significativamente os riscos e os
impactos da mudança do clima” (UNFCCC, 2015)⁴.

Diferentemente do Protocolo de Quioto, o Acordo de Paris não tem um


prazo final definido, prevendo um processo contínuo de submissão de ações
climáticas voluntárias pelos países, as chamadas Contribuições Nacionalmente
Determinadas (NDCs, acrônimo na língua inglesa). Como manifestação ao
princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, estas devem refletir a
mais alta ambição possível de cada Parte, sendo periódica e progressivamente
revistas pelos países (FARBER; CARLARNE, 2018, p. 67). Ao invés de metas e

4 Vide o artigo 1º, (a), do Acordo de Paris de 2015 (UNFCCC, 2015).


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CAPÍTULO 5 89
cronogramas rígidos para as reduções de emissões, o Acordo de Paris adotou uma
abordagem bo�om-up, com as ações de mitigação e de adaptação sendo
determinadas individualmente pelas partes em conformidade com as prioridades
políticas e econômicas domésticas de cada Parte.

2. Regime climático nacional

De outro lado, as respostas jurídicas às mudanças climáticas devem


também ser objeto de atenção em nível de direito doméstico. Em outras tintas, as
mudanças climáticas devem ser pensadas e negociadas globalmente, mas as ações
mitigadoras, adaptativas e de perdas e danos devem ser executadas localmente.
Para tanto, os países passam a desenvolver seu Direito das Mudanças Climáticas
em nível interno, (i) ratificando tratados climáticos de direito internacional; (ii)
promulgando normativas acerca da matéria climática, tais como previsões
constitucionais, processos legislativos nacionais, subnacionais e municipais, e
atos normativos infralegais; (iii) por meio do desenvolvimento de planos
executivos de mitigação e adaptação climática. As estratégias também podem se
basear em instrumentos de mercado, como é o caso da taxação do carbono, de um
lado, e a formação de um mercado de carbono (cap-and-trade), de outro. Assim,
qualquer medida para combate nacional às mudanças climáticas necessariamente
terá de lançar mão de alguma destas estratégias: regulação jurídica convencional,
taxação das emissões ou mercado de quotas de emissões. Finalmente, um
importante fator de propulsão e definição da regulação climática é exercido pelas
cortes jurisdicionais (nacionais, regionais, comunitárias ou mesmo
internacionais), naquilo que é denominado litigância climática (UNEP, 2020).

O regime jurídico climático brasileiro é estruturado sobre as bases da


Política Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC, instituída pela Lei nº 12.187
de 29 de dezembro de 2009, de um lado, e a ratificação do Acordo de Paris pelo
Decreto nº 9.073, de 5 de junho de 2017, de outro. Também o direito doméstico
deve adotar como diretrizes da PNMC todos os compromissos assumidos pelo
Brasil no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre o Clima e
demais documentos sobre mudança climática dos quais o país vier a ser signatário
(art. 5º da Lei nº 12.187/2009). Importante destacar que, no sistema pátrio, há uma
ambiguidade de metas, capaz de causar confusões e insegurança jurídica.
Primeiro, o texto legal da PNMC prevê como meta a redução de 36,1% a 38,9% das
emissões projetadas até 2020, tendo como base o inventário de 2010 (art. 12 da Lei
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nº 12.187/2009). Para a obtenção e sistematização desta meta climática nacional, a


projeção das emissões para 2020 são quantificadas setorialmente para (i) mudança
de uso da terra, (ii) energia, (iii) agropecuária, (iv) processos industriais e
tratamento de resíduos, mediante regulamentação emanada do Decreto nº 9.578,
de 22 de novembro de 2018 (vide art. 18). Finalmente, esta regulamentação infra
legal define planos setoriais de mitigação e adaptação climática para a consecução dos
objetivos definidos pela PNMC, notando-se forte destaque ao combate ao
desmatamento (art. 17). Tais planos consistem em planejamentos executivos
setoriais de conteúdo científico, com função de operacionalizar a governança climática
por setores e com força normativa. Nota-se, portanto, um sistema normativo, com
metas setoriais quantificáveis e planejamentos executivos operacionais.

De outro lado, a ratificação do Acordo de Paris, promulgada pelo


Decreto nº 9.073/2017, torna norma doméstica a meta climática de manutenção do
aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-
industriais, e envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1,5°C em
relação aos níveis pré-industriais. Para tanto, a NDC brasileira prevê, como meta
brasileira ao Acordo de Paris, a redução de 37% na emissão de gases do efeito estufa para
2025 em comparação às emissões registradas em 2005, e 43% em 2030, com obtenção de
neutralidade climática em 2060. Digno de destaque que esta meta está construída
sobre bases diversas daquelas previstas na PNMC, havendo uma ambígua
duplicidade de metas climáticas no sistema jurídico climático nacional. Da mesma
forma, giza-se a ausência de um sistema completo, coerente e operacional da NDC
brasileira, uma vez ausente uma setorização quantificável das metas e de
respectivos planos executivos.

3. Regime climático transnacional

Para além das dimensões internacional e nacional, há a formação de


uma, cada vez mais forte, dimensão transnacional. Esta volta-se para os aspectos
globais do Direito das Mudanças Climáticas, tendo por base propulsora a
expansão global dos litígios climáticos que, por seu turno, desencadeiam um
movimento transnacional por justiça climática (PEEL; LIN, 2019, p. 681). Neste
processo, cada vez mais frequente, casos paradigmáticos mundiais passam a
influenciar e ter sua aderência testada em outras jurisdições, desencadeando uma
verdadeira governança climática transnacional pelo litígio (CARVALHO, 2015.
p.140-149; CARVALHO, 2020. p. 188-197). Os litígios climáticos são fenômenos
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Délton Winter de Carvalho


CAPÍTULO 5 91
jurisdicionais e, portanto, frequentemente ocorrem em âmbito local, em cortes
nacionais ou subnacionais. Ante a constante ausência de um caráter vinculante
(binding) e de execução forçada (enforcement) dos instrumentos internacionais,
como o Acordo de Paris, os litígios climáticos envolvem litigantes e decisões de
cortes domésticas (PEEL; LIN, 2019, p. 696). Apesar de frequentemente os
litigantes serem de uma mesma nação, onde tramita a demanda jurisdicional, o
caráter transnacional decorre da constatação de que os seus reflexos judiciais
adquirem um alcance local e global, simultaneamente (BODANSKY, 2015).

Um dos aspectos mais destacados desta dimensão, originadas nas


orientações emanadas do próprio Acordo de Paris, é o fato da governança climática
ser (i) multinível e para além do Estado (tendo como atores indivíduos,
organizações não governamentais, cidades, estados, países etc); (ii) ter uma base
científica (fundada em Relatórios Científicos do Intergovernmental Panel on
Climate Change - IPCC); e (iii) identificar o potencial que as mudanças climáticas
têm de afetar os mais vulneráveis e ocasionar a violação a direitos humanos, tais
como a vida, a dignidade da pessoa humana, a propriedade, o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, entre outros. E é no âmago deste movimento
transnacional que um constitucionalismo global passa a adquirir sua face
ambiental e, mais recentemente, climática.

4. O Constitucionalismo Ambiental

O aumento das preocupações com o equilíbrio ambiental global


repercute em um crescimento da inserção de direitos e obrigações ambientais nas
constituições de diversos países. A inserção de disposições ambientais
constitucionais substanciais teve seu início no início da década de 70, sendo a
Iugoslávia, por exemplo, um dos primeiros países a adotar um direito ao meio
ambiente em nível constitucional, em 1974 (KOTZÉ, 2016, p. 136), em decorrência
da influência internacional exercida pela Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente Humano de Estocolmo em 1972. Esta proliferação de previsões de
direitos substanciais ou procedimentais ambientais em constituições ao redor do
mundo estabeleceu a marca de que, em 2015, 76 países já reconheciam
expressamente o direito ao meio ambiente em suas constituições (DALY; MAY,
2015, p. 10).

Não obstante uma influência internacional, as previsões constitucionais


de cada país são marcadas por especificidades nos respectivos textos
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92 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

constitucionais, influenciados por suas próprias culturas, teorias, doutrinas e


jurisprudências constitucionais nacionais. Esta diversidade vai desde países que,
a exemplo do Equador e Bolívia, consideram a natureza como uma entidade legal
(Pachamama e o princípio do “buen vivir”). Outros países latino americanos, como
Brasil, México, Colômbia e Argentina inseriram o direito ao meio ambiente em
suas constituições na década de 80, em grande parte atribuindo direitos subjetivos
individuais ao ambiente sadio. No caso do Brasil, a inserção do direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado envolve uma dupla
dimensão, de um lado direitos subjetivos públicos e, de outro, deveres objetivos de
proteção (CARVALHO, 2020a, p. 139-140).

A partir de uma perspectiva metodológica comparada (MAY; DALY,


2015), o Constitucionalismo Ambiental atua em uma dimensão transnacional, a
partir da qual a comparação entre a adoção da proteção ambiental nas diversas
tradições constitucionais mundiais, no direito internacional, nos direitos
humanos e no direito ambiental, é capaz de formar um corpo coerente apto a
permitir o preenchimento de lacunas e uma influência recíproca em prol de uma
efetiva proteção do ambiente a partir de um nível e um status constitucional.
Trata-se, portanto, de um fenômeno global emergente de direito constitucional
comparado, formando um processo de interpretação coerente das diversas
culturas constitucionais em multiníveis, tais como subnacional, nacional e
supranacional (DALY; MAY, 2015, p. 10).

Erin Daly e James May chamam a atenção para cinco vantagens do


constitucionalismo ambiental ou, em outras palavras, da proteção constitucional
do ambiente em detrimento de sua previsão apenas em normas
infraconstitucionais (DALY; MAY, 2015, p. 21-22). A primeira vantagem é a
superioridade normativa e maior durabilidade das normas constitucionais em
relação àquelas de natureza diversa. A segunda, se dá no sentido de que, como
parte de uma lei superior de um dado território, a previsão constitucional guia o
próprio discurso e comportamento público. Um terceiro benefício é a
probabilidade de obediência, que aumenta em face de previsões constitucionais.
A quarta vantagem apresentada pelos autores diz respeito ao fato de que, quando
comparadas com leis ambientais ordinárias, estas cobrem questões mais
específicas: as disposições constitucionais ambientais protegem direitos
substantivos ambientais amplos, não apenas inerentes a matérias específicas ou
isoladas. Finalmente, a quinta vantagem da tutela constitucional, em detrimento
da proteção apenas por leis infraconstitucionais, consiste em que o
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Délton Winter de Carvalho


CAPÍTULO 5 93
constitucionalismo ambiental fornece uma rede de segurança para proteger o
meio ambiente quando regras internacionais ou outras leis domésticas não se
mostram suficientemente fortes para sua imposição judicial.

Digno de nota que a constitucionalização de uma determinada matéria


torna sua proteção mais perene e guia as decisões jurídicas futuras de um sistema
jurídico, controlando a temporalidade jurídica, a partir de uma dimensão
constitucional. Limita-se, assim, o âmbito de discricionariedade futura, quer da
Administração Pública quer das próprias cortes judiciais. Nos termos acima
enfrentados, o constitucionalismo ambiental envolve uma dimensão fundamental
(constitucionalismo ambiental fundamental), a partir dos dispositivos
constitucionais textuais que protegem direitos substantivos e procedimentais dos
cidadãos à qualidade ambiental, assegurados por instrumentos nacionais ou
subnacionais (HUDSON, 2015, p. 201). Além disso, há uma segunda forma de
constitucionalismo ambiental, naquilo que se denomina “constitucionalismo
ambiental estrutural”, como a alocação de autoridade regulatória ambiental nos
diversos níveis governamentais e que reflete os limites e restrições estruturais à
implementação de políticas ambientais (HUDSON, 2015, p. 202).

5. O Constitucionalismo Climático

A consolidação, desde o final do século passado, da nova era geológica,


ainda informalmente denominada de Antropoceno, demanda por uma governança
transnacional e um constitucionalismo climático apto a fornecer as bases para
uma nova onda de conflituosidade jurídica global, dentre a qual destaca-se a climática.
O Antropoceno impõe não apenas a necessidade de compreensão de uma
narrativa de emergência física (physis), mas também uma crise por justiça (polis)
(JARIA-MANZANO; BORRÀS, 2019, p. 3), fortemente orientada pelo combate às
vulnerabilidades climáticas. Para lidar com este novo momento histórico, há a
necessidade de integração entre a governança climática e o constitucionalismo
global, naquilo que vem sendo descrito como constitucionalismo climático (JARIA-
MANZANO; BORRÀS, 2019).

A conscientização acerca da gravidade da emergência climática levou a


uma evolução do constitucionalismo ambiental para um de índole climática, com
algumas constituições começando a incluir direitos especificamente relacionados
à estabilidade climática. Neste sentido, há pelo menos sete países que já
incorporaram o assunto mudanças climáticas em seus respectivos textos
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constitucionais, sendo eles República Dominicana (1998), Venezuela (1999),


Equador (2008), Vietnam (2013), Tunísia (2014), Costa do Marfim (2016) e
Tailândia (2017) (MAY; DALY, 2019, p. 240-241). Outros países, como França e
Chile, consideram a realização de referendos para a inclusão de referencias ao
ambiente e à luta às mudanças climáticas. No Brasil, há a Proposta de Emenda
Constitucional – PEC n. 233/2019 da Estabilidade Climática, a qual visa incluir
entre os “princípios da ordem econômica a manutenção da estabilidade climática
e determina que o poder público deverá adotar ações de mitigação da mudança
do clima e adaptação aos seus efeitos adversos”, por meio do acréscimo do inciso
X ao art. 170 e o inciso VIII ao §1° do art. 225, ambos da Constituição Federal
(BRASIL, 2019).

Em nível transnacional, a Convenção-Quadro e o Acordo de Paris


formam as bases do processo de constitucionalização da governança climática
(JARIA-MANZANO; BORRÀS, 2019, p. 10). A imposição de novos problemas
ambientais globais trazidos pelo Antropoceno desencadeiam a necessidade de
uma transição constitucional, apta a lidar com tais desafios. Ante a ausência de
coercitividade do Direito Internacional e a dificuldade do direito doméstico em
lidar com problemas globais, o constitucionalismo global passa a conceber um corpo
coerente para lidar com os desafios impostos pela justiça climática. Inicialmente,
textos constitucionais nacionais, textos normativos internacionais ou regionais,
assim como decisões em cortes nacionais constitucionais, regionais e
internacionais, começam a formar peças que, apesar de num primeiro momento
mostrarem-se fragmentadas, logo, em um segundo, formam um corpo global
integrado e coerente capaz de exercer uma influência recíproca entre países e suas
cortes, num constitucionalismo climático de dimensão transnacional.

Este movimento evolutivo transconstitucional direcionado à reflexão


acerca da inclusão de direitos e deveres relacionados à estabilidade climática
consiste em uma resposta jurídica aos efeitos deletérios das mudanças climáticas.
Para James May e Erin Daly (2019, p. 240), o constitucionalismo climático oferece
ao menos dois caminhos adicionais para o avanço da justiça climática: a
incorporação expressa das mudanças climáticas no texto constitucional ou a
inferência de que outros direitos constitucionais expressos (vida, dignidade,
devido processo e meio ambiente equilibrado) incorporam implicitamente
obrigações que exigem respostas às mudanças climáticas.

A importância do constitucionalismo climático é permitir a absorção de


aquisições evolutivas envolvendo elementos científicos e jurídicos transnacionais
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CAPÍTULO 5 95
que sejam compatíveis e coerentes com a prática constitucional em nível nacional.
Também, por se tratar de norma frequentemente aceita como de status superior e
direcionada a uma determinada comunidade nacional ou subnacional, a
Constituição e o seu texto desfrutam de uma perenidade e legitimidade perante
as cortes. Desta maneira, o tratamento do conteúdo climático pela teoria
constitucional tem como efeito fornecer a capacidade de seu tratamento ser mais
acessível judicialmente, de ter maior capacidade de operacionalidade e maior
aplicação prática local. Como dito na Constituição Norte Americana, a
Constituição é a lei suprema de uma terra (“The Supreme Law of the Land”)⁵. O
papel do constitucionalismo climático é, portanto, induzir o enfrentamento do
fenômeno global das mudanças climáticas por meio de soluções (constitucionais)
mais localizadas, oriundas de um aprendizado transnacional em prol de uma justiça
climática. Ao termo justiça climática atribuímos o sentido decorrente da forma
pelas quais a mudança climática impactará direitos humanos básicos,
exacerbando vulnerabilidades. No cenário brasileiro, uma manifestação deste
Constitucionalismo Climático tem sido descrita a partir da ação civil pública
climática do IEA v. Brasil (SETZER; CARVALHO, 2021, no prelo), cujo conteúdo
postula a defesa de um direito fundamental à estabilidade climática, assim como o
cumprimento da meta climática de combate ao desmatamento na Amazônia
prevista no Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia Legal
- PPCDAm, como plano setorial de mitigação climática.

A forte adesão das cortes judiciais e o status destacado do texto


constitucional nos sistemas jurídicos nacionais demonstra o potencial
significativo que o constitucionalismo climático detém para desenhar respostas à
justiça climática, a partir do desenho institucional do Estado de Direito,
especialmente a partir do nível doméstico. Além disso, o maior atributo do
constitucionalismo é servir de fundamento e sustentação para decisões em nível
territorial nacional, direcionadas a solucionar conflitos climáticos referentes às
circunstâncias particulares de cada país (MAY; DALY, 2019, p. 245). É a partir do
constitucionalismo climático, como fenômeno transnacional, que há a formação
de uma base mais sólida para uma sustentação cada vez mais efervescente dos
litígios climáticos.

5 Conforme disposto no artigo VI da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787.


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96 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

6. Rights-turn: a virada da litigância climática em aproximação aos


direitos humanos

Como é amplamente conhecido, a litigância vem se mostrando uma


profícua estratégia de governança climática pela judicialização dos compromissos
e metas assumidas em nível internacional e doméstico. Também não se trata de
novidade o fato deste fenômeno consistir em um processo dinâmico e inovador
que faz uso de instrumentos judiciais com o escopo de cobrar medidas necessárias
para a mitigação, adaptação ou perdas e danos climáticos, a serem adotadas pelos
governos ou atores privados. Como já demonstrado, as iniciativas ocorridas em
cada país dialogam influenciando transnacionalmente umas às outras,
despertando reflexões acerca da viabilidade e aderência destas estratégias em
nível doméstico. Uma importante característica deste fenômeno emergente em
plena efervescência é a utilização de instrumentos judiciais para lidar com os
desafios trazidos pela mudança climática, permeando tais debates pela
reinterpretação de conceitos jurídicos tradicionais.

Apesar de uma inegável fragmentariedade deste fenômeno, também é


verdade que tais ações guardam relação e semelhanças por refletirem em última
instância respostas jurídicas às informações e dados científicos climáticos. Num
padrão mais recente, estas demandas judiciais climáticas vêm chamando a
atenção para a relação direta entre as consequências da mudança do clima e seus
efeitos deletérios (violação ou fragilização) aos direitos humanos. Esta
aproximação histórica entre litígios climáticos e direitos humanos (“rights-based
litigation”) (PEEL; OSOFSKY, 2018, p. 37-67) foi endossada e fortalecida pelo
próprio texto contido no Preâmbulo do Acordo de Paris⁶. Em nível global, a
recente direção dos litígios climáticos apresenta um padrão estrutural que
demanda judicialmente por medidas mitigatórias ou adaptativas (1) para atender
aos objetivos do regime climático traçados pelo Acordo de Paris em 2015 (governança
climática); (2) a partir dos conhecimentos científicos quantificáveis vigentes,
trazidos pelo IPCC em seus Relatórios e Avaliações; (3) invocando as normas,
molduras (frameworks) e mecanismos para a aplicação dos direitos humanos, a

6 “Reconhecendo que a mudança do clima é uma preocupação comum da humanidade, as Partes deverão, ao
adotar medidas para enfrentar a mudança do clima, respeitar, promover e considerar suas respectivas
obrigações em matéria de direitos humanos, direito à saúde, direitos dos povos indígenas, comunidades locais,
migrantes, crianças, pessoas com deficiência e pessoas em situação de vulnerabilidade e o direito ao
desenvolvimento, bem como a igualdade de gênero, o empoderamento das mulheres e a equidade
intergeracional.” (UNFCCC, 2015).
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Délton Winter de Carvalho


CAPÍTULO 5 97
fim de responsabilizar juridicamente governos a cumprir com tais objetivos
(RODRÍGUEZ-GARAVITO, 2021, no prelo; WEGENER, 2020).

Passamos a enfrentar a seguir alguns casos emblemáticos para


demonstrar a força tanto da virada dos litígios climáticos em direção aos direitos
humanos, quanto a importância de um constitucionalismo transnacional para
sustentar um Estado de Direito capaz de enfrentar os desafios da justiça climática.
Este é o caso exatamente de Leghari v. Paquistão⁷, onde há uma importante
transição da noção de justiça ambiental em direção a sua dimensão climática. De
outro lado, em casos de litígios estratégicos não é raro o fato de que, mesmo casos
que não tenham sido julgados procedentes, sejam capazes de servir de bases para
iniciativas futuras, bem como induzir mudanças de comportamentos,
indutivamente. Este é o caso de Juliana v. USA, que lançou luzes sobre o potencial
de um direito fundamental à estabilidade climática.

7. Case Leghari v. Paquistão: a reinterpretação dos direitos


fundamentais ante os novos desafios da justiça climática

O enfrentamento judicial da complexa questão climática deve ser


analisado como um processo histórico, de superação da estratégia jurídica
baseada exclusivamente na regulação de comando e controle. A aproximação da
questão climática e os direitos humanos vem na esteira evolutiva das conquistas
da justiça social, num primeiro momento, devidamente seguidas por sua
dimensão ambiental e, mais recentemente, climática. Como bem explica Randall
S. Abate (2019, p. 34), o “rights-based thinking” estava, até recentemente, adstrito
ao domínio da justiça social. Neste período, a litigância estratégica usava direitos
humanos para defesa dos civil rights e de ações afirmativas, a partir das bases da
justiça social. Num segundo momento evolutivo do direito norte-americano, esta
estratégia passo a ser ampliada para debates acerca da justiça ambiental. A fim de
superar um sistema regulatório exclusivamente de comando e controle
ambiental, a litigância de justiça ambiental (environmental justice litigation) inseriu
a rights-based theory, visando combater a exposição desproporcional de grupos
mais vulneráveis à poluição (ABADE, 2019, p. 34), a partir da utilização dos

7 Para acessar o inteiro teor vide: PAKISTAN. Lahore High Court. Leghari v. Pakistan. (2015) W.P. No. 25501/201.
Disponível em: <h�p://climatecasechart.com/climate-change-litigation/non-us-case/ashgar-leghari-v-
federation-of-pakistan/>.
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98 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

direitos fundamentais. Neste curso histórico, a justiça climática traz esta análise
para uma dimensão mais complexa, atual e ampla na análise e interpretação dos
direitos fundamentais.

Este processo de transição de problemas de justiça ambiental para


aqueles relacionados à climática, é objeto de atenção no caso Leghari v. Paquistão
(ABADE, 2019, p. 34). Ashgar Leghari, um agricultor paquistanês, ajuíza uma
ação contra o Governo Federal do Paquistão para cobrar a execução, pelo governo
paquistanês, de sua Política Nacional de Mudança Climática do país, de 2012,
assim como o respectivo Plano para sua implementação (Framework for
Implementation of Climate Change Policy – 2014-2030). Conforme constatado pela
própria Corte de Apelação de Lahore, “nenhuma implementação prática ocorreu
no local” até o momento do ajuizamento da ação pelo demandante. As razões do
autor confrontavam a gravidade das mudanças climáticas e as vulnerabilidades
locais (inundações extremas e secas frequentes) com a ausência de quaisquer
estratégias governamentais para conservar a água ou movimento na direção de
sementes resistentes ao calor, temendo o autor não ter condições de manter o seu
sustento pela produção agrícola.

Em sua ação, Leghari postula que a não implementação de tais


instrumentos pelo governo acarretaria, em nível doméstico, na violação de seus
direitos fundamentais, em especial o direito à vida, que inclui o direito a um meio
ambiente sadio e equilibrado, assim como o direito à dignidade da pessoa humana.
Para tanto, usa uma base argumentativa a partir dos princípios constitucionais da
justiça social e econômica. Ainda, lança mão dos princípios de direito ambiental
internacional, tais como desenvolvimento sustentável, princípio da precaução,
estudo de impacto ambiental, equidade inter e intrageracional e na doutrina da
confiança pública (public trust doctrine). Em decisão final ocorrida em 25/01/2018,
a Corte julgou procedente a demanda de interesse público, a fim de assegurar que
a ausência da implementação das políticas nacionais de mudança climática
violava os direitos fundamentais dos cidadãos paquistaneses.

Sem adentrar em profundidade em toda a riqueza deste caso, destaca-se


que, para o Chief Justice Syed Mansoor Ali Shah (Lahore High Court), enquanto
a justiça ambiental tem uma abrangência mais local e restrita aos nossos próprios
ecossistemas e biodiversidade, a dimensão climática desta consiste em uma
reinterpretação da primeira. Assim, questões jurídicas climáticas envolvem o
debate de “uma questão ambiental linear”, inerente às questões de justiça
ambiental, na direção de um “problema global mais complexo” (LSE;
SUMÁRIO

Délton Winter de Carvalho


CAPÍTULO 5 99
GRANTHAM INSTITUTE ON CLIMATE CHANGE AND THE
ENVIRONMENT, 2021, p. 22), que é a crise climática. A justiça climática,
portanto, “vincula direitos humanos e desenvolvimento para alcançar uma
abordagem centrada no ser humano” e deve ser “informada pela ciência,
responder à ciência e reconhecer a necessidade de uma gestão equitativa dos
recursos do mundo” (LSE; GRANTHAM INSTITUTE ON CLIMATE CHANGE
AND THE ENVIRONMENT, 2021, p. 22). Nota-se que em Leghari se atribui
grande peso à ciência, como comunicação capaz de descrever os efeitos negativos
do fenômeno das alterações climáticas. Além disso, neste caso, há uma tradução
jurídica destas informações científicas para a constatação judicial de que a
omissão governamental em adotar as devidas ações climáticas acarreta em
violação a uma série de direitos fundamentais, como a vida e o meio ambiente, a
propriedade e a dignidade da pessoa humana. Nas palavras da decisão em
Leghari, o esquema dos direitos constitucionais, na atualidade, deve ser
“projetado para atender às necessidades de algo mais urgente e poderoso, i.e., as
Mudanças Climáticas” (LSE; GRANTHAM INSTITUTE ON CLIMATE
CHANGE AND THE ENVIRONMENT, 2021, p. 11).

8. Case Juliana v. USA: o direito fundamental à estabilidade climática

Neste curso histórico, foi Juliana v. USA⁸ a ação climática que ganhou
grande holofote ao propor a viabilidade constitucional de defesa de um direito
fundamental a um sistema climático estável. Para os autores – 21 jovens norte-
americanos –, as políticas e programas governamentais de fomento ao uso de
combustíveis fósseis violaram seus direitos constitucionais à vida, à liberdade, à
propriedade, à proteção igualitária (equal protection) e aos recursos dados em
confiança pela comunidade à administração (public trust resources) (MAY; DALY,
2020, p. 2). Em síntese, os autores afirmam que o governo federal, ao autorizar,
financiar e executar políticas e programas que causam ou contribuem para um
“sistema climático instável”, afeta negativamente a liberdade ordenada
assegurada pela Constituição dos EUA. Merece destaque no case Juliana v. USA
que, apesar de seu revés em nível recursal pela falta de judicialidade
(justiciability) (UNITED STATES, 2020a), esta causa, ainda pendente de decisão

8 Para acessar o inteiro teor da ação vide: UNITED STATES (a). Supreme Court of the United States. Kelsey
Cascadia Rose Juliana et al., v. United States of America et al. 947 F. 3d 1159 (9th Cir. 2020). Disponível em:
<h�p://climatecasechart.com/climate-change-litigation/case/juliana-v-united-states/>.
SUMÁRIO

100 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

final, representa um marco, sobretudo no conteúdo da decisão histórica da Juíza


da Corte Distrital do Oregon, Ann Aiken.

Por entender que a instabilidade climática afeta os direitos fundamentais,


em especial os de liberdade, a juíza acatou a alegação dos autores a fim de adotar
o padrão mais exigente de escrutínio de políticas governamentais que possam
estar violando direitos fundamentais (MANK, 2018; UNITED STATES, 2020a).
Fazendo uso da noção de liberdade (ordered liberty) como um direito
fundamental a partir da substantive due process clause em Obergefell v. Hodges
(UNITED STATES, 2015), a decisão prolatou que “ao exercer meu julgamento
fundamentado não tenho dúvidas de que o direito a um sistema climático capaz
de sustentar a vida humana é fundamental para uma sociedade livre e ordenada”
(UNITED STATES, 2020a). Segundo esta, as ações governamentais que danificam
o sistema climático são capazes de comprometer direitos fundamentais, tais como
a vida, a liberdade e a propriedade, protegidas constitucionalmente sob a égide
da cláusula do devido processo substancial (substantial due process clause). A Juíza
da Corte Distrital entendeu, ainda, pela existência de um direito fundamental ao
sistema climático estável, sob o argumento de que direitos fundamentais podem
ser aqueles enumerados na Constituição, assim como aqueles que, apesar de não
estarem previstos expressamente, são (1) “profundamente enraizados na história
e tradução desta nação” ou (2) “fundamentais para o nosso esquema de
liberalidade ordenada”⁹⁻¹⁰; (UNITED STATES, 2020a, p. 32). Isto é, mesmo em
uma tradição jurídica que analisa os direitos fundamentais a partir de uma
perspectiva eminentemente individualista, como é o caso da tradição
constitucional norte americana, a sua reflexão a partir dos desafios impostos para
mudança climática foi capaz de trazer à tona a convicção judicial de que “o direito
a um sistema climático estável capaz de sustentar a vida humana é fundamental
para uma sociedade livre e ordenada” (UNITED STATES, 2016, p. 34).

9 “Fundamental liberty rights include both rights enumerated elsewhere in the Constitution and rights and
liberties which are either (1) "deeply rooted in this Nation's history and tradition" or (2) "fundamental to our
scheme of ordered libe1ty[.]"
10 A corroborar com a análise deste argumento, vide: NOVAK, Sco�. The Role of Courts in Remedying Climate
Chaos: Transcending Judicial Nihilism and Taking Survival Seriously. The Georgetown Environmental Law
Review, Washington, v. 32, n. 743, p. 743-778, 2020
SUMÁRIO

Délton Winter de Carvalho


CAPÍTULO 5 101
Considerações finais

O Constitucionalismo Climático emerge da dimensão transnacional do


Direito das Mudanças Climáticas, a partir de uma simbiose entre as dimensões
internacional e a nacional. Adotando uma perspectiva metodológica comparada,
forma-se um corpo coerente e sistemático de como as estruturas constitucionais
podem assegurar uma atenção judicial cuidadosa às violações a direitos
fundamentais ocasionadas por omissões ou atividades vinculadas às mudanças
climáticas.

O presente texto visa apresentar a novel terminologia do


Constitucionalismo Climático, como estratégia transnacional de aprendizagem
acerca do papel que os direitos fundamentais têm num cenário de mudanças
climáticas e, consequentemente, de conflitos jurisdicionais que tenham como
objeto a justiça climática. Para tanto, existem duas formas de uso do
constitucionalismo para tratamento de conflitos climáticos. A primeira, pela
inserção da matéria climática no texto constitucional, caminho adotado por um
grupo de países precursores ao redor do mundo. De outro lado, o uso do Direito
Constitucional para tratamento da questão climática parte da (re)interpretação de
direitos fundamentais antropocêntricos (vida, propriedade, dignidade da pessoa
humana e mesmo meio ambiente), agora em face dos fenômenos climáticos e das
potenciais violações provocadas pela ausência de cumprimento das metas e
compromissos climáticos. Em ambos os casos, as cortes jurisdicionais terão a
função de participar da governança climática, provocadas pela litigância
estratégica, sob a orientação das premissas constitucionais, nacionais e
transnacionais.

Assim, um Constitucionalismo Climático, forjado na dimensão


transnacional de aprendizados e influências recíprocas, em alguma medida,
estabelece as bases para o movimento da virada dos direitos (rights-turn) se
desenvolver, unindo governança climática e direitos humanos. Neste caminho
evolutivo, o leading case climático Leghari v. Pakistan promove uma precursora
releitura de direitos fundamentais tradicionais (à vida, à dignidade humana, à
saúde, ao patrimônio e ao ambiente), elaborada a partir do emergir de um novo
contexto global de justiça climática. De outro lado, Juliana v. U.S., propõe a
viabilidade de um direito fundamental à integridade climática, em virtude de o
sistema climático equilibrado ser fundamental para uma sociedade justa e livre.
Ambas ações, independentemente dos resultados, lançam luzes sobre outras
SUMÁRIO

102 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

diversas tradições constitucionais, mostrando toda a força da dimensão


transnacional dos litígios climáticos e a formação das bases de um
Constitucionalismo Climático. Afinal, como dito na inicial da ação climática
brasileira do IEA v. Brasil, “percebe-se, portanto, que a estabilidade climática se
trata de uma nova necessidade social essencial à preservação da vida humana e
do equilíbrio ecológico” (LSE; GRANTHAM INSTITUTE ON CLIMATE
CHANGE AND THE ENVIRONMENT, 2020. p. 34).

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SUMÁRIO

Délton Winter de Carvalho


CAPÍTULO 5 103
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Délton Winter de Carvalho


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SUMÁRIO
SUMÁRIO

Capítulo 6

LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA
EM DIREITOS HUMANOS,
ASSIMETRIA DE PODER E
COLONIALIDADE
Fernanda Frizzo Bragato
SUMÁRIO

108 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA EM DIREITOS HUMANOS,


ASSIMETRIA DE PODER E COLONIALIDADE

Fernanda Frizzo Bragato¹

Introdução

As populações indígenas brasileiras têm encontrado incontornáveis


barreiras para efetivar seu direito à demarcação das terras que tradicionalmente
ocupam, apesar de estar assegurado nos arts. 231 e 232 da Constituição Federal.
Interesses econômicos sobre suas terras e recursos, que abastecem o mercado
mundial de commodities, aliam-se à lógica discursiva de deslegitimação das
demandas indígenas. Frequentemente, agentes políticos que possuem
aproximação com setores empresariais do agronegócio e outros promovem
discursos desumanizantes em relação aos povos indígenas, seus costumes e sua
cultura. Esses discursos, por mais que carreguem uma dimensão racista, possuem
a clara e manifesta intenção de deslegitimar as demandas desses povos pelos seus
territórios originários, cuja manutenção é imprescindível para a reprodução da
vida dessas comunidades conforme seus modelos tradicionais de vida
(BRAGATO, 2019).

Os obstáculos para acessar a justiça em um sentido adequado e efetivo


não são um problema enfrentado apenas pelos povos indígenas, mas também por

1 Pós-doutora pelo Birkbeck College da Universidade de Londres. Professora do Programa de Pós-Graduação


em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Pesquisadora Produtividade em Pesquisa
CNPq.
SUMÁRIO

109
Fernanda Frizzo Bragato
CAPÍTULO 6

vítimas de violações de direitos humanos que se encontrem em condição de


vulnerabilização social. A debilidade de poder econômico, cultural e político de
determinados grupos, como indígenas, pessoas negras, LGBTQI, com
deficiências, refugiados, mulheres em determinadas situações, gera impactos na
falta de acesso aos remédios judiciais apropriados e na dificuldade de
reconhecimento de seus direitos frente ao Poder Judiciário.

Situações como essa vão ao encontro do que Mauro Cappelle�i e Bryant


Garth (1988) sustentaram em sua famosa obra sobre acesso à justiça no final dos
anos 80. Segundo os autores, era (e continua sendo) necessário repensar o acesso
à justiça, não somente no sentido de promover aos mais necessitados a prestação
jurisdicional, mas também no que diz respeito à adequação do sistema judicial às
novas demandas que são apresentadas por esses sujeitos que não possuíam
condições de acessar o Judiciário. Cappelle�i e Garth (1988) apontam que a
jurisdição precisa se adequar para, dentre outras coisas, suprimir, no campo da
litigância, desigualdades socioeconômicas existentes entre as partes que possam
afetar diretamente o resultado do processo judicial.

Este artigo propõe-se a analisar como as assimetrias de poder social, que


resultam em obstáculos ao acesso à justiça, podem ser superadas por meio do uso
da litigância estratégica. Ao mesmo tempo, partindo da perspectiva dos estudos
descoloniais, analisa as razões por trás das assimetrias de poder social que
vulnerabilizam grupos sociais a ponto de a justiça ser inacessível, dificilmente
acessível ou até mesmo um remédio temerário.

1. Assimetrias de poder e acesso à justiça: uma resposta à luz da


colonialidade

Em países como o Brasil, acessar o Poder Judiciário não implica


necessariamente altos custos para o demandante, caso comprovada sua
hipossuficiência econômica. Mesmo assim, a vantagem de determinados sujeitos
e grupos, como grandes corporações, é inegável, em razão do poder econômico,
político e cultural que garante acesso à melhor assessoria jurídica e a serem
ouvidos com mais atenção pelos juízes nos tribunais. Para muitos sujeitos e
grupos historicamente vulnerabilizados, tais como as comunidades indígenas,
acessar remédios jurídicos capazes de assegurar seus direitos reconhecidos
legalmente pode ser impossível porque o acesso à justiça, quando ocorre, é
SUMÁRIO

110 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

meramente formal. Para os grupos vulnerabilizados, a debilidade de poder


econômico (recursos para contratar advogados, arcar com custos do processo,
mesmo que não existam custas judiciais), cultural (acesso à informação,
conhecimento dos direitos, acesso a advogados qualificados e disponíveis) e
político (capacidade de influenciar na tomada de decisões políticas) resulta em
obstáculos muitas vezes incontornáveis para proteger seus direitos. O fato de os
direitos estarem garantidos em lei não significa que sejam efetivos; quando
estamos falando de sujeitos historicamente subordinados é importante que a lei
os preveja, mas isso é apenas o começo.

O que a teoria descolonial tem a nos dizer sobre esse problema?

Em relação à perspectiva descolonial, pode-se considerar que a


categoria da colonialidade seja o seu ponto central. É uma noção que “atualiza” o
colonialismo como característica central das relações de poder contemporâneas e
que o situa como característica constitutiva, central e encoberta da modernidade.
Colonialidade remete a vários significados. Um deles é a ressignificação do
colonialismo moderno, que passa a ser considerado não apenas um processo de
ocupação e dominação de territórios pelas metrópoles europeias, mas como um
discurso autorizado a falar, inferiorizar (por meio da estereotipação e da
ambivalência) e dominar o outro que se torna então um colonizado; essa é uma
contribuição especificamente de Homi Bhabha (2010). Porém, trata-se também da
permanência conflitiva da relação e do domínio colonial – que se iniciou em 1492
– e evidencia uma estrutura ou matriz de poder colonial ainda vigente e baseada
em dois pressupostos. Segundo Quijano (2005, p. 227), de um lado, esta matriz
define-se a partir da “codificação das diferenças entre conquistadores e
conquistados na ideia de ‘raça’, uma estrutura biológica supostamente diferente
que colocou alguns em uma situação natural de inferioridade em relação aos
outros”. Esta ideia foi assumida pelos conquistadores como uma premissa básica
de suas relações com os nativos americanos. De outro lado, colonialidade define-
se pela “constituição de uma nova estrutura de controle do trabalho e dos seus
recursos, da escravidão, da servidão, da pequena produção mercantil
independente, em conjunto e sobre a base do capital e do mercado mundial”
(Quijano, 2005, p. 227). Ou seja, a conversão das diferenças em hierarquias serviu
para propósitos de dominação econômica, política e cultural por parte dos povos
brancos europeus que passaram a se beneficiar quase que exclusivamente da
acumulação capitalista.
SUMÁRIO

111
Fernanda Frizzo Bragato
CAPÍTULO 6

Até aqui a perspectiva descolonial, com aporte do pós-colonialismo,


propõe entender as relações sociais desde as lentes da colonialidade. Isso implica
reconhecer que a história do pensamento ocidental tem se orientado por
descrever e julgar os fenômenos a partir de dicotomias hierárquicas e que o
eurocentrismo, que consolidou a visão da superioridade cultural europeia, joga
um papel fundamental para determinar o polo superior entre esses opostos.
Dentre os elementos mais importantes do eurocentrismo, Quijano destaca: a)
uma articulação peculiar entre um dualismo (pré-capital-capital, não europeu-
europeu, primitivo-civilizado, tradicional-moderno etc.) e um evolucionismo
linear, unidirecional, de algum estado de natureza à sociedade moderna
europeia; b) a naturalização das diferenças culturais entre grupos humanos por
meio de sua codificação na ideia de raça; e c) a distorcida relocalização temporal
de todas essas diferenças, de modo que tudo aquilo que é não-europeu é
percebido como passado e atraso a ser superado (Quijano, 2005).

Com base na desconstrução derridiana, Feitosa (2014) observa que


essas dicotomias podem se apresentar tanto na forma de versões, como de
inversões. Por versões, o autor entende “as hierarquias mais tradicionais (do tipo
“o belo é melhor do que o feio” ou “a razão é melhor do que os afetos”), que
costumam privilegiar o idêntico em detrimento do diferente”. Por inversões, o
autor entende “as diversas tentativas de tentar superar as hierarquias pela mera
reação ou reversão dos polos, sem um questionamento da dicotomia ou da
hierarquia nelas mesmas (do tipo “o feio é melhor do que o belo” ou “os afetos
são melhores do que a razão”).” Como observa o autor, tanto a versão como a
inversão operam na mesma lógica dualista em que o horizonte do pensamento é
previamente determinado. Na perspectiva descolonial, poderíamos dizer que a
versão é a proposta eurocêntrica de ver o mundo e que a inversão poderia ser
alguma tentativa de inverter os polos, mantendo as relações de dominação,
sobretudo capitalistas, mas invertendo os sujeitos.

Uma típica “versão” da narrativa moderno-colonial é a do indígena


como expressão da primitividade, pela absoluta carência de racionalidade, a ser
civilizado por meio da assimilação à sociedade envolvente e culturalmente
superior. Na ideia de versão, há um padrão que estabelece um critério de
racionalidade e de civilidade, que é também a norma e o normal. Desse padrão
ou da capacidade de se adequar a ele, o que raramente ocorre de forma
voluntária porque está ligado a questões de identidade (por exemplo, cor da pele,
etnia ou orientação sexual), decorrem em primeiro lugar o poder cultural ou
SUMÁRIO

112 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

ideológico dos grupos dominantes e, como consequência, os poderes econômico


e político, como demonstra Quijano.

O mito da igualdade de toda uma população que compõe determinado


“povo” também faz parte do repertório das “versões” modernas. Os Estados
Democráticos modernos constituíram-se sob a premissa artificial de que todos os
afetados pelo poder soberano são membros integrais da comunidade política,
resultando daí a máxima de que todos são iguais perante a lei. De fato, não é o que
acontece, pois a ausência ou a debilidade de poder cultural e econômico tem
reflexos não apenas no acesso desigual às decisões políticas, mas na forma como
a justiça é prestada. Quando ocorre uma violação a direitos humanos de uma
pessoa ou de grupos vulnerabilizados, ainda que formalmente cidadãos,
geralmente os Estados, especialmente o Brasil, falham em prestar uma tutela
efetiva, como demonstram os inúmeros julgados da Corte Interamericana de
Direitos Humanos². Como observa Fanon (2008) em relação aos povos

2 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso do povo indígena Xucuru e seus


membros vs. Brasil. Presidente Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. Sentença de 5 de fevereiro de 2018.
Disponível em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf. CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de
Jesus e seus Familiares vs. Brasil. Presidenta Elizabeth Odio Benito. Sentença de 15 de julho de 2018. Disponível
em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_por.pdf. CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS. Caso Escher e outros vs. Brasil. Presidenta Cecilia Medina Quiroga. Sentença de 6 de
julho de 2009. Disponível em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_por.pdf.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Garibaldi vs. Brasil. Presidenta Cecilia Medina
Quiroga. Sentença de 23 de setembro de 2009. Disponível em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_203_por.pdf.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso favela Nova Brasília vs. Brasil. Presidente
Eduardo Mac-Gregor Poisot. Sentença de 16 fev. 2017. Disponível em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_333_por.pdf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Garibaldi vs.
Brasil. Presidenta Cecilia Medina Quiroga. Sentença de 23 de setembro de 2009. Disponível em: h�ps://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil. Presidente
Diego Garcia-Sayan. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_219_por.pdf.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Herzog e Outros vs. Brasil. Presidente Eduardo
Ferrer Mac-Gregor Poisot. Sentença de 15 de março de 2018. Disponível em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_353_por.pdf.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs.
Brasil. Presidente Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. Disponível em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_318_por.pdf.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Presidente: Sergio
Garcia Ramírez Presidente. Sentença de 4 de julho de 2006. Disponível em: h�ps://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Todos acessados em: 01 Jul. 2021.
SUMÁRIO

113
Fernanda Frizzo Bragato
CAPÍTULO 6

colonizados, existe uma zona da não-existência que faz com que certas pessoas
não contem, de modo que a relação entre eles e o Estado e a sociedade acaba se
reduzindo à esfera da repressão e da marginalização³.

Não é difícil entender como as assimetrias de poder refletem na


capacidade de obter justiça dos aparatos oficiais do Estado, seja na forma de
restauração, reparação, compensação, restituição ou punição, mesmo que, em
tese, todos sejam iguais perante a lei e os direitos dos chamados grupos
minoritários estejam garantidos na lei.

2. Litigância estratégica e assimetria de poder

Em função da condição de desvantagem, é fundamental que o modo


como sujeitos e grupos vulnerabilizados demandam o Poder Judiciário para
buscar a efetivação de seus direitos seja capaz de contrapor a lógica colonial de
poder que impede essa efetivação, ainda que esses direitos estejam garantidos no
ordenamento jurídico pátrio. Para tanto, muitos estudiosos têm proposto e
muitos advogados têm praticado uma forma diferente de litigar que pressupõe
estratégia e a observância de uma série de condições que superam a simples
previsão de um direito no ordenamento jurídico.

A litigância estratégica tem se tornado cada vez mais relevante e


decisiva para a defesa de direitos humanos⁴. Osório (2019) parte da ideia de que
a litigância estratégica é uma ressignificação do ato de litigar. Isso porque, por
meio de um litígio estratégico, não se busca única e exclusivamente a procedência
final da ação, mas muito mais. São objetivos da utilização estratégica do litígio: o
empoderamento dos indivíduos e comunidades titulares de direitos, a
conscientização da sociedade sobre a importância daqueles direitos, bem como a
pressão sobre as instâncias do Poder Público para mudarem de posicionamento
sobre determinada temática, por exemplo, a partir de campanhas de mobilização
ou naming and shaming (OSÓRIO, 2019). Visando essa ressignificação do ato de
demandar é que se apresenta a ideia de litigância estratégica em direitos
humanos, entendida como “a ação legal perante uma corte para o alcance de

3 Ver: BRAGATO, Fernanda F. Discursos desumanizantes e violação seletiva de direitos humanos sob a lógica da
colonialidade. Quaestio Iuris (Impresso). v.9, p.1806 - 1823, 2016.
4 Isso não significa dizer que a educação em direitos humanos não seja tão ou mais importante para a efetivação
de direitos humanos.
SUMÁRIO

114 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

mudanças relacionadas a direitos, legislações, políticas públicas, práticas e/ou a


conscientização do público” (OSÓRIO, 2019, p. 574). Dessa forma, a litigância
estratégica em direitos humanos não busca somente o resultado favorável em
uma demanda judicial, mas pensa a demanda a partir de uma série de ações das
quais ela é apenas uma, almejando que um determinado quadro de violações a
direitos possa ser revertido (OSÓRIO, 2019, p. 574). Segundo a Anistia
Internacional, a ideia é mudar leis, políticas e práticas, além de assegurar
remédios para violações e conscientizar o público a respeito de injustiças
(ANISTIA INTERNACIONAL, 2020).

Para Rekosh et al (2001), por litigância estratégica entende-se o “litígio


de um caso ou conjunto de casos em que o autor principal é emblemático de uma
classe de pessoas que sofrem o mesmo tipo de violação, tendo a mudança de
política como objetivo final.” Por meio da litigância estratégica, o objetivo é
estabelecer padrões legais progressivos, mas também moldar a opinião pública e
reforçar a mobilização social, criando ativamente oportunidades para ativistas e
sociedade civil se organizarem e se mobilizarem em torno de um caso” (Rekosh et
al, 2001). Assim, a litigância estratégica é considerada uma ferramenta poderosa
para a mudança social que os ativistas deveriam usar em combinação com outros
mecanismos de “advocacy”, incluindo protestos, reformas legislativas, lobbying
etc. (A4ID, 2012).

Considerando a natureza de transformação social da litigância


estratégica, especialmente no campo dos direitos humanos, tal ferramenta precisa
ser dirigida a casos nos quais os impactos podem ir muito além da pessoa ou da
coletividade específica que está litigando, o que torna inequívoca a natureza
estratégica desse modelo de litigar (DUFFY, 2018, p. 3).

Exemplo que sustenta a necessidade (e a efetividade) de um novo modus


operandi de acessar a jurisdição foi o processamento e julgamento da Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, ajuizada pela Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), cujas medidas cautelares foram deferidas
pelo Ministro Luis Roberto Barroso (do Supremo Tribunal Federal) em julho
desse ano. O objeto central da ação era fazer com que o Estado brasileiro passasse
a tomar medidas efetivas para prevenir o contágio da Covid-19 entre as
populações indígenas, que, segundo os demandantes, não estavam sendo
executadas. Todavia, o deferimento das cautelares não foi o único sucesso que os
peticionantes obtiveram no ajuizamento da ADPF. O ministro Luis Roberto
Barroso, no julgamento das cautelares, também reconheceu a APIB como entidade
SUMÁRIO

115
Fernanda Frizzo Bragato
CAPÍTULO 6

legitimada para ajuizar ADPFs, algo que era adstrito a entidades de classe que
cumprissem, na sua organização e desenvolvimento, as normas concernentes às
associações que estão previstas na Constituição Federal e no Código Civil
(AZAMBUJA; BRAGATO, 2020). Por conta disso, ao permitir que a APIB se
tornasse legitimada a ajuizar ADPFs sem seguir as normas organizativas
vigentes, seguindo apenas os mecanismos organizativos atinentes aos próprios
povos indígenas, o ministro Barroso reconheceu uma espécie de pluralismo
jurídico interno, abrindo um importante precedente para que outras organizações
formadas por povos indígenas e demais comunidades tradicionais do Brasil
possam pleitear a efetivação de seus direitos no STF por meio de ADPFs
(AZAMBUJA; BRAGATO, 2020).

Porém, os estudiosos concordam que existem certas condições que


devem ser estabelecidas para aumentar a probabilidade de que o litígio
estratégico seja uma opção viável e um empreendimento bem-sucedido. Desde
uma perspectiva estratégica, a opção pelo litígio deve observar ou passar pelo
teste das quatro condições, que se reforçam mutuamente. A primeira delas é a
existência de marco legal, pois a litigância só será possível se o ordenamento
jurídico do Estado em questão considerar o ato a se litigar como violação de
direitos humanos. A segunda condição é a existência de autoridade judiciária que
não esteja sujeita a interesses políticos e econômicos de determinados setores, e
que tenham consciência do seu papel na efetivação dos direitos humanos
previstos no ordenamento jurídico. A terceira condição é a presença de
advogados e advogadas capazes de promover a litigância estratégica, isto é, que
conheçam a legislação pertinente ao caso, possuam condições de escolher os
melhores meios para exercer a litigância, e que tenham interlocução com a
sociedade civil organizada, para que a demanda se torne visível socialmente. A
quarta condição é a existência de mecanismos de financiamento para iniciativas
de litigância estratégica em direitos humanos, bem como de uma rede de
organizações da sociedade civil, para que o uso da ferramenta seja possível e
eficaz (KLUGMANN; ROA, 2014, p. 32-34).

Caso estas condições não estejam presentes (teste das quatro


condições), é necessário construí-las e isso envolve medidas e articulações que
vão muito além do simples litígio judicial. Caso estejam presentes, é possível
considerar-se ir adiante e propor a ação judicial.

Em recente livro que discute a eficácia do direito internacional dos


direitos humanos, De Búrca (2021) propõe uma teoria experimentalista do Direito
SUMÁRIO

116 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

e da prática (advocacy) dos direitos humanos. Segundo essa teoria, o direito


internacional dos direitos humanos pode se tornar efetivo quando for articulado
e desenvolvido por meio da interação reiterada de uma multiplicidade de atores
e instituições situadas em diferentes níveis e locais dentro de um sistema político
multinível. Os três casos analisados no livro (Paquistão, Irlanda e Argentina)
apontam que a dinâmica criada pela interação reiterada ao longo do tempo entre
três conjuntos de atores e instituições internos e externos – movimentos e ativistas
domésticos, instituições e redes internacionais e transnacionais, e instituições e
atores nacionais independentes – tem sido a chave para o processo de
concretização da reforma que promoveu os direitos humanos de mulheres,
crianças e pessoas com deficiência nos três países analisados. Ainda que de difícil
acesso para comunidades longínquas, pouco instruídas e desconectadas de redes
acadêmicas e da sociedade civil, De Búrca propõe um caminho para o
fortalecimento das condições do litígio.

A necessidade de se verificar preliminarmente a presença de tão


complexas condições para se medir a viabilidade de um litígio demonstra os
obstáculos de fato existentes para a defesa de direitos humanos por parte dos
grupos vulnerabilizados. Além disso, a decisão sobre ir adiante com uma ação
judicial ou não se deve ao fato de que muitas experiências passadas ensinaram
que os litigantes (sejam eles indivíduos ou comunidades) expuseram-se a altos
riscos e perdas em virtude de sua vulnerabilidade social, como ameaças, e
sofreram profundo stress ou frustração por falsas expectativas que foram geradas.
Uma palavra que pode resumir as desvantagens de um litígio, mesmo que
presentes as condições, é backlash, ou seja, uma reação forte e adversa por um
grande número de pessoas, especialmente contra um desenvolvimento social ou
político (DUFFY, 2018).

Além de sofrer violações de seus direitos, de necessitar de condições


favoráveis para litigar ou então ter de construí-las, no caso de decidir pelo litígio
para defender seus direitos, indivíduos e comunidades vulnerabilizadas ainda
podem ser revitimizadas por meio de ameaças, frustrações e backlash por parte
dos grupos dominantes contra os quais litigaram⁵.

5 Um caso emblemático que ilustra essa situação é o caso Aguinda v. Texaco. Ver em: How the Environmental
Lawyer who Won a Massive Judgment Against Chevron Lost Everything, The Intercept (January 29, 2020),
h�ps://theintercept.com/2020/01/29/chevron-ecuador-lawsuit-steven-donziger/ Acesso em: 12 Fev. 2021.
SUMÁRIO

117
Fernanda Frizzo Bragato
CAPÍTULO 6

Considerações finais

Embora todos sejam formalmente iguais perante a lei, a violação de


direitos humanos é um fenômeno seletivo, relacionado à condição de
vulnerabilidade e subordinação dos afetados. Mas não somente os abusos contra
os direitos humanos são uma realidade desses grupos. Os obstáculos para acessar
mecanismos judiciais capazes de tutelar seus direitos são, em condições
ordinárias, intransponíveis. Mesmo que direitos estejam assegurados legalmente,
a sua efetivação não é automática, mas barrada pela ausência de poder
econômico, cultural e político.

Desse modo, pesquisadores e advogados têm defendido a necessidade


da utilização da litigância estratégica como forma de efetivar direitos humanos,
caso o caminho a ser trilhado seja o litígio judicial. As dificuldades envolvidas na
litigância estratégica, como a presença das condições favoráveis ao litígio ou
mesmo a necessidade de construí-las, reafirma o enorme impacto que as
assimetrias de poder têm sobre grupos vulnerabilizados e vitimizados. Isso
porque o acesso à justiça para os grupos socialmente empoderados é muito mais
facilitado e provimentos judiciais favoráveis muito mais prováveis. Porém, a
vantagem da litigância estratégica é que se trata de um mecanismo de defesa de
direitos não limitado a buscar apenas um provimento judicial favorável, mas
mudanças sociais mais amplas e estruturais, por meio das inúmeras ações
promovidas pelos envolvidos (partes, advogados, acadêmicos, organizações da
sociedade civil, mídia, etc).

Vencidas as próprias dificuldades que impedem sujeitos e grupos


vulnerabilizados de acessarem parceiros capazes de se engajar em um litígio
estratégico, a conclusão deste artigo é a de que essa é uma ferramenta
imprescindível para o incremento da proteção de direitos humanos destes
grupos e que o engajamento acadêmico pode jogar um papel fundamental na
viabilização desse instrumento.

Referências

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Strategic Litigation and Its Role in Promoting and Protecting Human Rights 3. 2012.
SUMÁRIO

118 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

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DUFFY, Helen. Strategic Human Rights Litigation: Understanding and Maximizing


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SUMÁRIO

119
Fernanda Frizzo Bragato
CAPÍTULO 6

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SUMÁRIO
SUMÁRIO

Capítulo 7

ESTADO DE DIREITO
CONTEMPORÂNEO
estrutura e novos desafios

Gabriel Wedy
SUMÁRIO

122 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

ESTADO DE DIREITO CONTEMPORÂNEO:


estrutura e novos desafios

Gabriel Wedy¹

Introdução

Muito tergiversa-se sobre a definição do Estado de Direito Contemporâneo.


Releituras comprometem o seu conceito que, em boa doutrina, apresenta um
delineamento claro, preciso e que não dá espaço para formulações ilusórias ou
vazias em relação aos seus elementos e aspectos essenciais. Nas palavras de Hans
Kelsen, o Estado é a ordem jurídica que possibilita transformar os problemas que
surgem dentro da Teoria Geral do Estado em algo que faça sentido dentro da Teoria
Geral do Direito (1945, p. 299). Deve ser possível apresentar todas as propriedades
do Estado como uma ordem jurídica caracterizada por três elementos: o território,
o povo e o poder. Embora existam exceções, outrossim, o Estado é marcado pelo
princípio da impenetrabilidade, ou seja, a ordem jurídica nacional tem validade
exclusiva para um determinado território, o território do Estado em sentido mais
restrito e, dentro deste território, todos os indivíduos estão sujeitos, única e
exclusivamente, a essa ordem jurídica nacional ou ao poder coercitivo do Estado.
Ou seja, em regra, só pode existir um Estado no mesmo território (KELSEN, 1945,
p. 306).

1 Juiz Federal. Professor nos programas de Pós-Graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos - Unisinos. Pós-Doutor em Direito. Visiting Scholar pela Columbia Law School e Professor Visitante
na Universität Heidelberg - Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. É professor na Escola
Superior da Magistratura Federal – Esmafe. Foi Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil – Ajufe
e da Associação dos Juízes Federais do Estado do Rio Grande do Sul - Ajufergs. Autor de diversos livros e
artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior. E-mail: gabrielwedy@unisinos.br
SUMÁRIO

123
Gabriel Wedy
CAPÍTULO 7

Já o segundo elemento do Estado, segundo a teoria tradicional, é o povo,


isto é, os seres humanos que residem dentro do território do Estado (KELSEN,
1945, p. 334). O povo é considerado uma unidade jurídica, e não natural, tal qual
o território. Para além da teoria tradicional, em um histórico acerto, o jurista
austríaco insere o tempo como um elemento do Estado. Como refere Kelsen, um
Estado não existe apenas no espaço, mas também no tempo e, se considerado o
território um dos seus elementos constitutivos, então deve-se considerar o
período de sua existência igualmente como um destes elementos. Refere o jurista
que ambas esferas (tempo e território) são limitadas: “assim como o Estado não é
espacialmente infinito, ele não é temporalmente eterno” (KELSEN, 1945, p. 315).
A ordem jurídica, portanto, que regula a coexistência espacial dos Estados, é a
mesma que estrutura a sua sequência temporal.

Partindo-se destas premissas elementares, neste breve ensaio, será


aprofundada a investigação científica sobre os contornos e os delineamentos do
Estado de Direito Contemporâneo e identificados os seus novos desafios impostos
pela perspectiva mundial e, também, brasileira, levando-se em consideração,
evidentemente, o sistema jurídico consagrado pela Constituição de 1988.

1. Teoria do Estado e ordem jurídica

O Estado de Direito caracteriza-se pela garantia e (1) a concretização dos


direitos fundamentais, pela (2) observância do princípio da Separação dos
Poderes, pelo (3) respeito às regras da democracia e, em especial, pela (4)
ampliação da participação da sociedade na gestão pública e na boa governança
estatal. Não assiste razão a Thomas Fleiner-Gerster, quando este refere em
Allgemaine Staatslehre que reduzir o Estado ao direito, como fazem os positivistas
como Kelsen, é desprezar a história. É simplista a visão de que o Estado é
considerado por estes tão-somente como fenômeno da ordem jurídica e o homem
somente como sujeito de direitos (FLEINER- GERSTER, 2006, p. 287). Justamente
porque o Estado e o Direito estão inegavelmente e intrinsicamente ligados e
constituem-se também em fenômeno histórico e cultural. O Estado não é mais do
que o direito – ele é precisamente a ordem jurídica, que é algo riquíssimo e não
dispensa a história e práticas reflexivas em sua constituição. Reducionista é a
crítica de que o Estado para Kelsen e alguns juristas é criado por artigos de lei,
pois a ordem jurídica é bem mais do que isto. Ela é o próprio Estado, são os seus
elementos essenciais e os seus princípios, os seus valores e as suas normas
SUMÁRIO

124 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

estruturantes. Se é verdade para Fleiner-Gerster que o desaparecimento ou a


divisão de um Estado é um processo doloroso e revolucionário (2006, p. 187), não
é se emancipar da verdade afirmar que este deve ser constituído por uma ordem
constitucional que estabeleça direitos e imponha deveres constitucionais
fundamentais aos seus cidadãos e assegure as devidas garantias de um
procedimento democrático e justo, no âmbito formal e material.

Consoante Robert Nozick, autor de outra vertente, foi legítima a


transição do Estado da natureza para o Estado de Direito. O autor enfatiza duas
de suas marcas características: (1) o monopólio necessário sobre o uso da força no
território, e que este sirva para (2) a proteção dos direitos de todos neste espaço,
ainda que esta tutela universal só possa ser proporcionada de forma redistributiva
(1974, p.113).

Como bem definido na pena de Karl Doering, o Rechtstaat, que tem


origem nas ciências jurídicas alemãs, “certamente não obteve em nenhuma
Constituição do mundo um destaque tão especial no decorrer do seu
desenvolvimento, tal como hoje tem sob a vigência da norma fundamental da
Alemanha” (2008, p. 311). Aliás, o Tribunal Constitucional incluiu no conceito de
Estado de Direito quase todas as garantias juridicamente previstas no
ordenamento: divisão de poderes, direitos fundamentais, segurança jurídica,
clareza das leis, direito de oposição, liberdade de imprensa, irretroatividade da
lei, observância da competência dos órgãos estatais e a garantia do devido
processo legal (DOEHRING, 2008, p. 312). Correto, aliás, está Doering ao afirmar
que “quando esses elementos são analisados separadamente, pode-se constatar
que estão englobados quase todos os conceitos com os quais o ordenamento
fundamental democrático-liberal da Constituição tem ligação” (2008, p. 312).

Por evidente que o conceito de Estado de Direito deve estar vinculado à


segurança jurídica formal e à sua garantia por meio de tribunais independentes,
pois a justiça material é preservada em função da observância dos direitos
fundamentais, das garantias institucionais e da cláusula do Estado Social. O que
representa as mesmas limitações que são impostas ao legislador. A doutrina do
Estado para Doering inova em relação ao pensamento jurídico conservador ao
referir a possível troca do conceito de Estado de Direito por Estado Justo (2008, p.
312), o que, por certo, pode trazer, ao lado de aparentes vantagens democráticas,
problemas como a criação da nefasta figura do juiz legislador ou, o que é pior, do
juiz justiceiro, sem imparcialidade e que age de modo político, partidário e
persecutório – inclusive quando motivado por interesses pessoais –,
SUMÁRIO

125
Gabriel Wedy
CAPÍTULO 7

desmoralizando e ferindo de morte o sistema de justiça, pois afasta (e espanta) a


necessária crença na democracia pregada por John Hart Ely na festejada obra
Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review (1980). De fato, quem controla
o povo não são os juízes, mas a Constituição, o que significa que o povo controla
a si mesmo. Esse argumento, aliás, remonta ao Federalist 78 de autoria de
Hamilton e ao voto célebre do Chief-Justice, John Marshall, no leading case Marbury
v. Madison (ELY, 1980, p. 13).

Outro ponto que denota os desafios de uma disciplina de Teoria do


Estado Contemporâneo é o liberalismo político (seus contornos e nuances), que
ainda é a sua moldura mais comum. O liberalismo apresenta deficiências
evidentes, em alguns aspectos, como na distribuição dos direitos de igualdade e
de fraternidade e na concretização dos direitos fundamentais do homem. Aliás,
Carl Schmi�, crítico radical do liberalismo, embora não tenha rompido totalmente
com este (STRONG, 2007), tem sido redescoberto nas últimas décadas com o
distanciamento histórico do final da Segunda Guerra Mundial e do benfazejo
aparente aniquilamento do nacional-socialismo. De fato, certas escolhas que
Schmi� faz em sua doutrina não são realmente excluídas pela moldura jurídica
liberal, ou seja, algumas têm lugar nos termos permitidos pelo Estado de Direito
Contemporâneo. Lições deixadas por Schmi�, especialmente em Der Begriff des
Politischen (SCHMITT, 2007), e pesquisadas atualmente por juristas e cientistas
políticos de esquerda e de direita, são possíveis meios de mitigar a igualmente
perigosa negação de qualquer alternativa possível fora do Estado Liberal no
presente e no futuro. Schmi�, importante enfatizar desse modo, possui, portanto,
um compromisso instrumental, mas não material, com o liberalismo. E é
justamente esta crítica material ao liberalismo que pode e tem sido objeto de
exploração científica e despertado profundo interesse, acima das ideologias,
nestes dias.

Alguns juristas de língua inglesa, defensores de Schmi�, como refere


Tracy Strong, outrossim, sustentam que a tradição liberal já não oferece os
recursos intelectuais para enfrentar os desafios (especialmente os do capitalismo
tecnologicamente dominante e burocratizado) do mundo moderno (2007). No
centro desta necessidade premente de novos recursos teóricos está o público e
notório colapso do marxismo (jamais como utopia) como posição teórica
possivelmente viável para os países desenvolvidos e, também, em
desenvolvimento. Nesta perspectiva, a apresentação das formas dos institutos
liberais, na concepção Schmi�iana, mina os valores que suas instituições
SUMÁRIO

126 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

deveriam proteger e promover originalmente. Assim, a rejeição das estruturas


liberais é feita simplesmente em nome dos próprios valores liberalizantes em um
círculo autofágico, se analisado do ponto de vista político e jurídico.

Com efeito, liberais discordam de modo veemente das ideias de Schmi�


porque elas vão de encontro a uma das mais profundas máximas do liberalismo,
ou seja, de que a política é necessária, mas não se deve levá-la demasiadamente a
sério. Outra crítica formulada pelos liberais, e pretensamente refutada por
Schmi�, é de que a política não tem relação com a identidade na medida em que
as decisões políticas são divisórias e perigosas. Para os liberais, de fato, direitos
são direitos, independentemente da forma como se conquistam. Já para os
defensores hodiernos de Schmi� os direitos não são direitos, a menos que sejam
conquistados (STRONG, 2007).

Diferentemente de Platão que, apesar de ter servido Dionísio de Siracusa,


O Tirano (BABICH, 2006, p.242), tem sido absolvido pela história, como
demonstram os seus estudos e reflexões crescentemente pesquisados e citados nos
dias atuais na academia, Schmi� não ficará imune às duras críticas e às grandes
polêmicas – que inexoravelmente afetam a sua obra – nos próximos séculos, por
sua ligação com o partido nacional-socialista alemão. Com efeito, as noções de
amigo e de inimigo que Schmi� pretendeu impregnar de cientificidade padecem
de inúmeros problemas e se adotadas, sem reflexão científica, podem gerar
polarizações que, na maioria dos casos, são nefastas (SUNSTEIN, 2016;
SUNSTEIN, 2009; SUNSTEIN, 2005; SUNSTEIN, HASTIE, 2015; KAHNEMAN,
2011).

Em que pese tudo isto, apenas a título de exemplo, Derrida, faz pouco,
alimentou a polêmica acadêmica ao referir que Schmi�, ao elaborar a sua noção
de inimigo, criou ao mesmo tempo a sua ideia de amigo (1997, p. 106). De outro
modo, como salta às escâncaras, autores influenciados por Schmi�, como Henry
Kissinger (1961) – este inclusive nas suas ações práticas como homem de Estado
nos EUA –, focam a qualidade das relações humanas no aspecto eminentemente
político. Aliás, desse modo, concedendo prevalência ao político em detrimento do
direito, agem boa parte das nações – em especial as que guardam resquícios
imperialistas – no âmbito de suas decisões no cenário internacional.
SUMÁRIO

127
Gabriel Wedy
CAPÍTULO 7

2. Estado de Direito e a realização da democracia

Talvez uma das alternativas para que o Estado de Direito


Contemporâneo realize a democracia justamente esteja na adoção, ainda que
parcial, das treze teses que Roberto Mangabeira Unger divide em quatro partes e
que fazem parte do Manifesto, pouco explorado, infelizmente, na doutrina
brasileira. Assim estão expostas e divididas as teses pelo professor da Harvard
Law School no referido escrito que merece maior reflexão:

I. A organização constitucional do governo e a moldura legal da política


eleitoral:

Primeira tese: Sobre a história das instituições democráticas;

Segunda tese: Sobre os arranjos constitucionais de governo;

Terceira tese: Sobre a reorganização da política eleitoral;

II. A organização da sociedade civil e a proteção de direitos:

Quarta tese: Sobre a concepção de direitos fundamentais;

Quinta tese: Sobre a proteção dos direitos fundamentais;

Sexta tese: Sobre a organização legal da sociedade civil;

III. A organização das finanças públicas e da economia:

Sétima tese: Sobre o sistema tributário e de finanças públicas;

Oitava tese: Sobre a reforma do sistema de produção e a sua relação com


o Estado;

Nona tese: Sobre o direito de propriedade;

IV. Democracia e esquerda:

Décima tese: Sobre quais os meios para ser progressista hoje;

Décima primeira tese: Sobre a interpretação da causa democrática;

Décima segunda tese: Sobre a base social dos partidos progressistas;

Décima terceira tese: Sobre o foco da inovação institucional e o conflito


ideológico no mundo (1998, p. 261-278).
SUMÁRIO

128 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

É preciso refletir sobre o esquema proposto pelas referidas teses, ainda


que de modo inicialmente formal. A pesquisa científica sobre o Estado de Direito
Contemporâneo, de fato, focada no experimentalismo, reformulando o afirmado
por Mangabeira Unger, não pode ficar perdida em abstrações, mas, de fato, deve
buscar a realização da democracia e para isto precisa propor um governo
organizado com as funções constitucionais dos Poderes do Estado bem definidas.
As regras político-eleitorais precisam ser claras e jamais podem afastar a
participação política das minorias. Para isto, embora seja o Estado ordem jurídica,
deve ser observada também a história das instituições democráticas, com os seus
acertos e erros, nesta formulação. A sociedade civil, com cultura democrática,
precisa estar juridicamente organizada e os direitos fundamentais, nas suas
dimensões objetiva e subjetiva, delineados com nitidez. As finanças públicas,
pautadas pela transparência e pelo controle popular, devem estar estruturadas
organizacionalmente de acordo com o texto constitucional, as leis orçamentárias
e metas de boa governança. A economia, voltada para a produção das riquezas,
do bem-estar e da felicidade, deve ser regulada, evitando-se assimetrias, em
virtude das limitações e das imperfeições da mão invisível do mercado,
idolatrada pelos neoliberais. Direitos de propriedade que cumpram com as suas
funções socioambientais devem ser tutelados pela ordem jurídica e o sistema
tributário, por sua vez, deve ser progressivo em relação às rendas não aplicadas
na produção e às grandes fortunas. O Estado de Direito dos nossos dias não pode
admitir a desigualdade. Outrossim, a tributação das fontes de poluição e de
emissão de gases de efeito estufa deve estar presente nas políticas estatais para
que sejam coibidas as externalidades negativas.

Mercado e governo devem ser combinados de modo harmônico em


todos os aspectos para o incremento da estrutura estatal, em especial para a
criação e para o desenvolvimento do mercado de compra e venda de licenças de
emissões de gases de efeito estufa, essencial para a preservação e a exploração
sustentável do meio ambiente. A esquerda pode e deve ter um papel importante
na realização da democracia no Estado de Direito ao (re)definir quais são os meios
para ações progressistas e quais as melhores regras de interpretação política da
causa democrática. Esta ação política deve ocorrer de acordo com o direito
internacional, com a Constituição e com a ordem jurídica interna. Neste sentido,
os partidos populares e ecologicamente engajados precisam de uma base social
bem definida de acordo com sólidos conteúdos programáticos ancorados na
sustentabilidade. Outrossim, esta visão progressista não pode representar um
retrocesso histórico, ou a promoção de ideias reacionárias e corporativas, mas
SUMÁRIO

129
Gabriel Wedy
CAPÍTULO 7

deve significar um impulso para a inovação institucional, tecnológica e ideológica


apta a reforçar a moderna definição de Estado de Direito que continua em
construção dentro deste experimentalismo democrático que combina o progresso
e as exigências de emancipação individual.

3. O Estado de Direito e os seus desafios atuais

A moderna Teoria do Estado e as atribuições deste inseridas em novos


desafios são produto deste século e estão expressas igualmente na precisa lição de
Reinhold Zippelius em Allgemeine Staatslehre: Politikwissenschaft. O jurista, na
obra, aprofunda o debate sobre a necessária atualização científica do conceito de
Estado de Direito:

Hoje trata-se, como princípio vital do Estado moderno, exten-


sível até ao mais trivial e ínfimo pormenor do quotidiano po-
lítico, de conformar as estruturas sociais segundo critérios ra-
cionais e realizar o bem-estar geral e a justiça social através do
seu planejamento e da orientação. Em face da escassez e da
poluição da água doce em nível mundial, da progressiva des-
truição dos solos férteis, da extinção em massa das espécies
vegetais e animais, das ameaçadoras alterações climáticas e
sobretudo também do aumento ameaçador da população
mundial, também se está a refletir sobre o modo como se
pode delinear a transformação global através de uma política
global de estruturação, isto é, como se podem controlar de
uma maneira cultural e ecologicamente compatível os movi-
mentos de colonização e as migrações dos povos, como de po-
der utilizar da melhor maneira possível os recursos existentes
– em especial os solos aráveis, as fontes de energia disponí-
veis e a água –, como se pode preservar da destruição a rique-
za florestal e a biodiversidade, como se podem reduzir tam-
bém outros erros de desenvolvimento. Trata-se, sobretudo,
também de limitar o crescimento da população mundial, cres-
cimento em que reside o problema-chave de tantos proble-
mas do mundo moderno (2016, p. 256).

Como bem refere Geoffrey Garver, no mesmo sentido que Zippelius, o


termo Estado de Direito tem dois significados nos dias atuais. O primeiro
significado é que o Estado de Direito é constituído por “instituições e normas
legais, do global ao nível local, que devem fornecer uma estrutura coerente,
SUMÁRIO

130 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

confiável, justa e equitativa para assuntos que interessem aos seres humanos”
(2013, p. 319). O segundo significado é que as leis científicas que governam o
funcionamento da Terra restringem as arquiteturas jurídicas formando o que se
chama de direito ecológico.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas bem compreendeu a


essência do primeiro destes significados em sua descrição do Estado de Direito
como uma ordem jurídica que assegura o cumprimento dos princípios de
supremacia da lei, da igualdade perante a lei, da responsabilidade perante a lei,
da justiça na aplicação da lei, da separação de poderes, da participação popular
na tomada de decisões, da segurança jurídica e para evitar arbitrariedades e
garantir transparência processual e jurídica” (2013, p. 319).

O segundo significado, como se nota, tem origem na ênfase que os


juristas empregam na definição do Estado de Direito Ecológico, caracterizado
pelo fato de que “as normas e as leis se baseiam não apenas em princípios legais,
mas também em limites planetários e outras expressões dos limites ecológicos
que têm relação com a capacidade de sustentação da vida na Terra”. Assim,
Garver, com acerto, refere que o contemporâneo Estado de Direito “deve garantir
as fronteiras regulatórias globais, necessárias para atender aos limites ecológicos
e assegurar o respeito à distribuição dos recursos da Terra” (2013, p. 319).

O cenário atual marcado pelo terrorismo, pelas pandemias, pelas


catástrofes ambientais, pelo aquecimento global, pela fome, pela desigualdade,
pela desarmonia entre os Poderes, pelos riscos à democracia, pela inteligência
artificial, entre outros, em que inserido o Estado de Direito Contemporâneo,
precisa ser enfrentado, com destemor e visão inovadora, capaz de superar
conservadorismos e, até mesmo, retrocessos científicos.

A visão hodierna de Estado de Direito, aliás, é perfeitamente compatível


com o texto constitucional de 1988, que não precisa ser suprimido ou alterado. De
fato, expostos estão os fundamentos constitucionais da República Federativa do
Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, no Art. 1º da Carta Política. São
estes: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Ainda, como referido pelo
saudoso Paulo Bonavides, no país, o Estado constitucional “está fundado, por
inteiro, sobre a democracia e o direito” (2018, p. 77). Ou melhor:
SUMÁRIO

131
Gabriel Wedy
CAPÍTULO 7

...democracia e Estado de Direito, sem embargo das escamote-


ações teóricas habituais, representam duas noções que o povo,
melhor do que os juristas e os filósofos, sabe sentir e com-
preender, embora não possa explicá-las com a limpidez da ra-
zão nem com a solidez das teorizações compactadas (BONA-
VIDES, 2018, p. 332).

A complexidade dos problemas a serem superados pelo Estado de


Direito, enquanto ordem jurídica, outrossim, não permite que este erre, por ação
ou omissão, em questões como: a- gestão de pandemias; b- políticas ambientais; c-
planos climáticos; d- programas sociais; e- políticas econômicas; f- proteção dos
direitos humanos; g- fortalecimento das regras democráticas; h- incentivo à
pesquisa e às novas tecnologias; i- prevenção ao terrorismo, entre outras que
afligem e colocam em risco a finalidade estatal de busca da consecução do
interesse público e do bem comum. O Estado de Direito não é irresponsável em
relação ao seu povo, à ordem jurídica interna, comunitária e internacional. Cabe a
este assumir seu papel de instituição estabilizadora da democracia e da promoção
e concretização dos direitos individuais, sociais e fraternais para que o homem
tenha a sua dignidade respeitada não apenas em uma perspectiva intrageracional,
mas, especialmente, intergeracional. É isto que se espera, sem pompas e
exageradas circunstâncias, do Estado de Direito Contemporâneo.

4. Estado de Direito e os riscos para a democracia

O Estado e o Direito não são objetos diferentes – esta dualidade não é, e


nem poderia ser, verdadeira. Seria a contradição inerente e manifesta. O Estado
como comunidade jurídica não é separado da ordem jurídica. A comunidade a
que costumeiramente se chama de Estado é a própria ordem jurídica. Como diria
Hans Kelsen, “o Estado é aquela ordem de conduta humana que chamamos de
ordem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações humanas, a ideia à qual os
indivíduos adaptam a sua conduta” ou, ainda, pela imorredoura pena do mesmo
autor, “o Estado é uma organização política por ser uma ordem que regula o uso
da força... trata-se de uma sociedade politicamente organizada porque é uma
comunidade constituída por uma ordem coercitiva, e essa ordem coercitiva é o
Direito” (1945, p. 273). Como Ulisses, o Odisseu, atado pela tripulação ao mastro
do navio na palpitante Odisseia de Homero (2014), não pode o jurista deixar-se
seduzir pelo canto das belas e estonteantes sereias e cair na falácia de que o Estado
SUMÁRIO

132 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

é o poder por trás do Direito, “pois este sugere a existência de duas entidades
distintas onde existe apenas uma: a ordem jurídica. O dualismo de Direito e
Estado é uma duplificação supérflua do objeto de nossa cognição, um resultado
de nossa tendência de personificar e então ampliar as nossas personificações”
(KELSEN, 1945, p.275).

Aliás, não foram poucas nações que caíram nesta armadilha ao longo da
história (e continuam caindo), como demonstram o fascismo, o nazismo, as
ditaduras comunistas (e as de direita) e uma nova classe de ordoliberais que
surgiu das ruínas do neoliberalismo (BROWN, 2019). O resultado disto, e a
história não perdoa, não é positivo e, de fato, não poderia sê-lo. Nem por simples
gracejo, ou por não esclarecida crença saudosista.

Oxalá, em tempo, Kelsen venceu inapelavelmente Carl Schmi� no


debate não apenas sobre o controle de constitucionalidade, mas sobre a teoria do
direito e da Constituição como se pode observar com o passar das décadas.
Embora juristas agradeçam, com justiça acadêmica, a pertinência da crítica de
Schmi� ao liberalismo e suas nuances (SCHMITT, 1996) – que em alguns aspectos
não podem ser desconsideradas (SCHMITT, 2015) e podem ser utilizadas, desde
que cum grano salis², nos dias atuais –, é o conceito de Estado de Kelsen que se
demonstra compatível com o regime democrático e coloca-se apto a atingir o bem
comum e o bem público como finalidades estatais.

O Estado de Direito, em anos recentes, sofre afrontas perpetradas por


regimes de esquerda e de direita populistas que colocam em risco a
independência dos Poderes, os direitos fundamentais e a democracia – em suma,
a ordem jurídica que tanto defendeu Hans Kelsen, o maior jurista do Século XX.
E o fazem, os tiranos de papel, sem rigor científico, assessorados no mais das
vezes por consultores com modestos conhecimentos jurídicos, para dizer o
mínimo. Pior, procedem dentro de regras aparentemente democráticas, violadas
aos poucos e não mais com rupturas instantâneas e violentas como em um
passado não tão distante. Este fenômeno, aliás, foi identificado com precisão, e
sucesso mundial de vendas, por Steven Levitsky e Daniel Zibla� na obra How
Democracies Die (2018).

Nesta senda observa-se que países com instituições fortes, como os


Estados Unidos, possuem poucos riscos de uma aniquilação total do rule of law

2 O decisionismo é uma das nefastas heranças da obra de Carl Schmi� que nos assombra ainda nos dias atuais.
SUMÁRIO

133
Gabriel Wedy
CAPÍTULO 7

(POSNER, 2018, p. 18), uma espécie de versão do Estado de Direito como por nós
concebida (BINGHAN, 2011, p. 7), e da democracia. A América possui uma
sociedade civil atuante, dois partidos extremamente fortes: os republicanos e os
democratas. Os Poderes são independentes e com agentes que gozam de
prerrogativas constitucionais bem definidas e uma mídia que, de algum modo,
seja liberal ou conservadora, cumpre o seu papel e enriquece o debate público
com informações. As agências federais independentes e aquelas outras,
vinculadas ao Poder Executivo, cumprem as suas atribuições do modo mais
técnico possível, em especial após o decidido pela Suprema Corte no caso
Chevron, não cedendo a uma adoção pura da análise do custo-benefício
(SUNSTEIN, 2005; SUNSTEIN, 2007; SUNSTEIN, 2013; SUNSTEIN, 2014; WEDY,
2020). De fato, deve-se ter presente no realismo estatal que existem valores que o
dinheiro não pode comprar em virtude dos limites morais do mercado, na expressão
de Michael Sandel (2012, p. 203).

Conservadores e liberais alteram-se no Poder e a Declaração de Virgínia


de 1776, a Constituição de 1787, as emendas do Bill of Rights e as emblemáticas
decisões da Suprema Corte, em especial na Era da Reconstrução e do New Deal,
sustentam, de acordo com Bruce Ackerman em sua trilogia We the People, a
democracia na América, o que também não a isenta de grandes problemas e
imperfeições (1993; 1998; 2014).

Aliás, em primoroso livro, David Runciman sustenta que o aparente


triunfo da democracia, após o fim da 2ª Guerra Mundial, encontra-se ameaçado.
Ou seja, não basta observar com atenção o passado. Reflexões fixas sobre o
fascismo e os golpes de Estado não são mais suficientes. A sociedade pode
enfrentar colapsos de outras maneiras. Importante, portanto, que uma alternativa
à democracia seja pensada, pois esta tem prazo de validade e está no meio de sua
existência (RUNCIMAN, 2018). Cabe, no mínimo, com certeza, séria reflexão
sobre o tema, pois nenhum regime, sistema ou instituição, obviamente, tal qual a
vida humana, são eternos.

5. Estado de Direito e o povo brasileiro

Um certo Jean-Jacques Rosseau, em Du Contrat Social (1762), cunhou o


conceito de vontade geral, entendido como a real fonte da autoridade legítima. Isto
é importantíssimo nos dias atuais em que, como singelo exemplo, minorias
SUMÁRIO

134 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

elegem o mandatário máximo de um país em menoscabo a uma maioria de


eleitores, como no caso da eleição de Donald Trump no ano de 2016, marcada
pelo nefasto gerrymandering, uma das máculas e grandes chagas da democracia
norte-americana.

O povo, em tempo, para Rousseau, era a fonte da soberania. Para ele,


havia a necessidade do legislador encontrar no sistema político uma religião civil
que reunisse a comunidade em um sistema educacional que deveria criar
cidadãos patriotas. Trazia ele uma mensagem de igualdade, que aproximava a
comunidade livre. O sistema econômico deveria introduzir uma igualdade
aproximada e o sistema político permitiria ao homem agir livre, mas
responsavelmente (ROUSSEAU, 1976). Seguindo estas premissas, as diferenças
de poder em um povo democrata “não devem ser tão grandes que possam ser
exercidas com violência”. Outrossim, “ninguém deve ser tão rico que possa
comprar o outro nem tão pobre que seja obrigado a se vender” (ROUSSEAU,
1976, p. 97). Evoluindo no tema, não se pode aceitar como válida a assertiva de
Friedrich Hayek de que o social não existe (1960) e, tampouco, os emotivos
escólios de Hannah Arendt de que o moderno social inchado destruiu capacidades
humanas de liberdade e de ação na esfera pública (1958).

Alex de Tocqueville, no seu célebre Democracy in America, enfatizava


que a democracia era uma “revolução na matéria da sociedade” e uma
transformação social que destruiu as “desigualdades de condições”( 2000, p. 6.).
Quanto à última assertiva sobre a democracia, concorda-se parcialmente. Esta
diminuiu, sem dúvida, as diferenças e as posições hierárquicas nas sociedades.
Todavia, a democracia, para Churchill, o pior de todos os regimes, sem que haja
nenhum outro melhor que ele, não conseguiu acabar com a desigualdade
econômica, social e política.

Toca-se na mesma tecla em face da relevância do tema: a desigualdade,


especificamente econômica. O Estado de Direito deve permitir uma melhor
distribuição de renda em países que são internamente muito desiguais: os ricos
ficam cada vez mais ricos, na parte superior da pirâmide social, e os pobres cada
vez mais sem esperança de melhorar de vida. Economistas como Joseph Stigli�
(2013), Paul Krugman (2008) e Thomas Pike�y (2013), em recentes obras,
apontaram para este referido mal demonstrando com argumentos, e documentos,
o que pode ser feito para diminuí-lo, como a tributação dos mais ricos e os
investimentos em políticas sociais, ciência e tecnologia. Em 2019, no mesmo
sentido, o Prêmio Nobel de Economia foi conquistado pelos economistas Abhijit
SUMÁRIO

135
Gabriel Wedy
CAPÍTULO 7

Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer em virtude de suas pesquisas e


investigações direcionadas às causas da desigualdade e aos meios adequados
para combatê-la (FORBES, 2019).

Por esses dias, Armínio Fraga, ex-Presidente do Banco Central, um dos


economistas brasileiros mais respeitados no cenário internacional, denunciou o
aumento da desigualdade no Brasil, os seus efeitos nefastos e manifestou-se no
sentido da necessidade de combatê-la imediatamente como prioridade (2020).

Observamos atônitos, igualmente, a hipertrofia dos Poderes do Estado.


Demagogos usurpando ou tentando usurpar competências constitucionais
(Viktor Orbán, Recep Tayyip Erdogan, Jaroslaw Kaczynski, entre outros)
(BROWN, 2019), os caudilhos com sede do poder pelo poder (Nicolás Maduro),
os agentes políticos falastrões (Jair Bolsonaro, Boris Johnson e o ex-presidente
Trump), os abusos do poder econômico de toda ordem, o obscurantismo, a
ignorância jurídica, os decisionismos, o Lawfare, o negacionismo climático e
pandêmico, o terrorismo e muitas outras mazelas que assolam o Estado de
Direito.

Nosso país tem consolidado o Estado de Direito, não sem dificuldades,


desde 1988. Passou pela luta contra a hiperinflação; pelo impeachment de Collor;
pelo plebiscito que confirmou o presidencialismo; pelo governo tampão de Itamar
Franco; pelo Real, e consequente controle da inflação; pela polêmica emenda da
reeleição e as privatizações realizadas de modo pouco criterioso no Governo
FHC; pelo combate à fome no Governo Lula, acompanhado do escândalo do
mensalão; pelo confuso Governo Dilma e seu impeachment; pela prisão de Lula, já
como ex-presidente, de políticos poderosos e dos maiores empreiteiros do país,
na chamada Operação Lava-Jato; pelo curto e questionável Governo Temer,
também assolado por denúncias de corrupção; e, agora, pelo polêmico e errático
governo Bolsonaro, que chegou a indicar como Ministro da Justiça, Sérgio Moro,
o magistrado federal que julgou parte dos processos da já referida operação em
primeira instância, antes de deixar a toga e enveredar para a vida política e ter,
posteriormente, suas decisões, enquanto juiz, anuladas pelo egrégio Supremo
Tribunal Federal com o fundamento de falta da necessária imparcialidade para os
julgamentos dos processos que envolveram o ex-Presidente Lula.

Este é o Brasil, país que ante tantas permissividades, abusos e desatinos,


possui um Estado Democrático de Direito consagrado pelo texto constitucional.
SUMÁRIO

136 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

País com imensas desigualdades econômicas, políticas e sociais, com


problemas ambientais, com desmatamentos e queimadas na Amazônia, em plena
era do aquecimento global e, como se não bastasse, como os demais países, agora
atingido pela pandemia do Covid-19 em tempos de obscurantismo e
negacionismo governamental.

Considerações finais

Neste cenário, resta ainda em pé, para a incredulidade de muitos, o


Estado de Direito. Cabe à cidadania, à sociedade, aos Poderes do Estado e aos
operadores do direito fortalecê-lo, concretizá-lo e não buscar ou permitir o seu
aniquilamento.

Parece que esta geração de operadores do direito terá de enfrentar este


desafio com pesquisa séria, até como um exercício científico de cidadania. Os
juristas de hoje possuem a Constituição de 1988, tão maltratada e vilipendiada,
nas mãos, como sua única arma contra as tiranias e mal feitos institucionais. A
Carta Política pátria já não é a mesma que Ulysses Guimarães deixou. Retrocessos
nos direitos fundamentais foram perpetrados por malsinadas emendas e por
algumas interpretações não razoáveis do próprio Poder Judiciário em suas
decisões...

A história dirá as consequências disto. E, o Tribunal da história, é


sempre implacável... Não mudará os seus critérios de julgamento e a sua
jurisprudência. Suas decisões são inapeláveis.

Portanto, devem os pesquisadores e os operadores do direito, ao olhar


para o futuro, observar atentamente as lições de Lord Tom Bingham, autor do
clássico Rule of Law, e verificar que os agentes políticos e os servidores públicos
de todos os níveis “devem exercer os poderes que lhes são conferidos com boa fé
e com justiça, para cumprir as competências que lhes foram outorgadas, sem
exceder os limites destas e não exercê-las sem razoabilidade” ( 2011, p. 60).

Relevante observar, em tempos de heróis de ocasião e de pretensos


justiceiros constitucionais, as lúcidas palavras da Chief Executive of the Swedish Bar
Association, Anne Ramberg: “... o Estado de Direito exige muitas coisas. Exige
uma legislação adequada amplamente adotada. Rigorosa quanto à forma, mas
também no aspecto qualitativo e substantivo. O direito deve incorporar os
valores da sociedade, incluindo as demandas pelos direitos humanos. Tudo isto
SUMÁRIO

137
Gabriel Wedy
CAPÍTULO 7

não é suficiente. O Estado de Direito exige uma administração apropriada da


justiça. Isto é, um sistema de Cortes qualificado, confiável e com mandato, com
juízes, promotores e advogados honestos e preparados” (BINGHAM, 2011, p.
171).

E devolve-se a palavra ao Lord Tom Bingham para referir as suas


objeções aos críticos do Estado de Direito, nestes termos: (a) invocar a autoridade
do Estado de Direito nas decisões judiciais não pode ser algo sem significado; (b)
o Estado de Direito está incorporado em instrumentos do direito internacional de
elevada estatura como no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950) e em
diversas constituições; (c) o Estado de Direito está previsto, igualmente, na Lei de
Reforma Constitucional da Inglaterra (2005) que o elevou a princípio
constitucional (2011, p. 7).

Não se ignoram, obviamente, as críticas de Joseph Raz (1979, p. 2010) e


de Jeremy Waldron (2005, p.119) à banalização do rule of law, mas é sob este, ou
sob o Estado de Direito, que estão ancorados os direitos fundamentais, o princípio
da separação dos Poderes, e, em última instância, a democracia. Sobre estes
pilares, inerentes ao Estado de Direito (que fazem parte da ordem jurídica como
diria Kelsen!), é que o povo brasileiro pode e deve construir o desenvolvimento
sustentável do país tendo como base a inclusão social (em respeito ao princípio da
dignidade da pessoa humana), a tutela ambiental, o desenvolvimento econômico
(movido pelas energias renováveis) e a boa governança. Com a devida cautela,
para não se incorrer nos riscos do nefasto one size fits all (TRUBEK, GALANTER,
1974, p. 1100; TRUBEK, SANTOS, 2006), o Estado de Direito, na era da
desigualdade, das mudanças climáticas e das pandemias, tem como alternativa a
adoção de um Green Deal dos Trópicos para que sejam alcançados o interesse
público e o bem comum.

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SUMÁRIO

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SUMÁRIO

Capítulo 8

OS DESAFIOS DA
BIOÉTICA E DO
BIODIREITO
Gerson Neves Pinto
SUMÁRIO

142 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

OS DESAFIOS DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO

Gerson Neves Pinto¹

Introdução

A humanidade carrega consigo uma infinita curiosidade sobre sua


própria existência e, no intuito de desvendar esses mistérios, a ciência não só
descobre respostas, como também cria instrumentos que modificam a própria
existência.

Esse poder de criar, o que antes apenas era “dado” pela natureza,
proporcionou avanços surpreendentes na seara da saúde. A evolução das
ciências, em especial das técnicas em reprodução humana e a facilitação do acesso
a essas novas tecnologias, tem modificado os comportamentos sociais nas últimas
décadas, abalando os conceitos éticos e morais existentes até então.

Nesse sentido, é da Bioética a função de ajudar na reconstrução dos


limites da antiga ética, não iguais, mas que deem conta dessa nova era e das
descobertas que ainda estão por vir.

O jusfilósofo Jürgen Habermas preocupa-se com as interferências ético-


jurídicas que esses avanços científicos proporcionam. Nesse sentido o autor
aponta que:

1 Possui Doutorado em Philosophie, Textes Et Savoir, mention très honorable na École Pratique Des Hautes
Etudes – Sorbonne, Paris (2011), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998)
e Graduação em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1985). Atualmente é professor
adjunto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e do Programa de Pós-Graduação em Direito.
SUMÁRIO

Gerson Neves Pinto


CAPÍTULO 8 143

É nessa situação que nos encontramos hoje. O progresso das ciên-


cias biológicas e o desenvolvimento das biotecnologias ampliam não
apenas as possibilidades de ação já conhecidas, mas também possibi-
litam um novo tipo de intervenção. O que antes era ‘dado’ como na-
tureza orgânica e podia quando muito ser ‘cultivado’, move-se atu-
almente no campo da intervenção orientada para um objetivo (HA-
BERMAS, 2004, p. 17).

Neste contexto, existem determinados avanços da ciência que


representam uma revolução na maneira de como se vivia, até então, a experiência
moral e ética. Em que pese a humanidade sempre buscar melhorar o que lhe é
dado pela natureza, algumas invenções instigam mais que outras a capacidade do
ser humano de não só compreender o limite entre o certo e o errado, como
também descobrir os limites do que é ser certo ou errado.

Ao redor do mundo, cada país reage a esses avanços científicos de


acordo com as suas leis, costumes e, infelizmente, alguns interesses privados. O
problema ultrapassa os discursos filosóficos sobre a vida, trazendo à tona
discursos de mercado e interesses privados que se sobrepõem às discussões que
realmente são pertinentes ao problema. Tudo isso com o claro interesse de
acelerar os processos normativos, sem o devido aprofundamento teórico que a
temática merece.

Habermas diz que a velha ética não é suficiente para responder a essas
questões e preocupa-se quanto à necessidade de regulamentação das novas
tecnologias. Para esse autor, são evidentes os riscos decorrentes da abreviação de
processos políticos de autocompreensão (Habermas, 2004, 19).

Entretanto, entre a discussão aprofundada do tema e a criação de uma


legislação consistente, a ciência novamente ultrapassa o estado da arte em que se
encontrava, resultando num descompasso entre o processo legislativo para a
regulamentação dos avanços científicos e a ciência propriamente dita.

Para Ronald Dworkin, esses avanços podem modificar a compreensão


dos valores e convicções pré-concebidas, deslocando a linha divisória entre o que
somos e o que fazemos com isso. Todas essas mudanças de paradigma
provocaram a passagem de um momento de estabilidade para a instabilidade
moral, através da ampliação do poder de cada ser humano sobre a natureza,
proporcionado pela ciência. Para esse autor, a engenharia genética provoca uma
SUMÁRIO

144 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

mudança ainda maior, pois altera de forma mais profunda o conjunto de valores
morais, a ponto de torná-los obsoletos (Dworkin, 2016, 633).

Dworkin entende que o problema não está fundado em saber se


determinado ato é correto ou não, mas sim em se perder o conceito sobre o que é
ser certo ou errado. O autor chamou essa mudança de perspectiva de “queda livre
moral” das convicções morais tradicionais. Todavia, ele defende que, desde o
início da humanidade, nós buscamos, através do conhecimento, produzir
descobertas que colocam à prova nossos conceitos e valores morais. Por
conseguinte, devemos buscar um meio de transcender o problema, sem fugir
dele. Nas palavras do autor:

Não temos o direito – seria uma grave confusão – de pensar que até as
mudanças mais avassaladoras na fronteira entre a sorte e a opção de algum modo
desafiem a própria moralidade, de forma que um dia não haverá mais certo ou
errado. Todavia temos o direito de estar apreensivos que nossas convicções
arraigadas, muitas delas, venham a ser solapadas, que venhamos a sofrer uma
espécie de queda-livre moral, que tenhamos de pensar novamente contra um
novo pano de fundo e com resultados incertos. Brincar de Deus é brincar com
fogo (Dworkin, 2016, 446, grifo nosso).

A partir dessa análise, passar-se-á à análise de como os avanços


científicos na seara da bioética tem modificado o entendimento que se tinha, até
então, sobre a vida e o que podemos, ou não, fazer com ela e quais seriam os
limites a estes avanços científicos.

1. O Principialismo

Grande parte dos avanços no campo da bioética, em sua curta


existência, advém principalmente de discursos do paradigma dos princípios.
Naturalmente, desde a primeira publicação de Beauchamp e Childress
(Beauchamp e Childress, 2013), a abordagem principialista coleciona críticas e
não é mais vista como um procedimento quase-infalível para a resolução de
conflitos éticos. Com efeito, a obra de Beauchamp e Childress, Principles of
biomedical ethics, pode ser considerada como um dos marcos da fundação do
principialismo no campo da bioética. Todavia, o destaque deve ser dado aos
autores, pois estes acabaram criando um sistema teórico-prático, ou seja, um
paradigma para a reflexão bioética em geral (ALIBÉS; TUBAU 2011).
SUMÁRIO

Gerson Neves Pinto


CAPÍTULO 8 145
Convenientemente, o próprio rótulo do modelo de princípios, o
“principialismo”, foi cunhado como um termo técnico crítico por K. Danner
Clouser e Bernard Gert, em 1990, em seu artigo intitulado A Critique to Principlism.
Ambos os autores representam uma das concepções estadunidenses mais críticas
ao paradigma dos princípios. Tal abordagem não é feita com o intuito de difamar
os princípios, mas sim como um alerta aos abusos praticados pelos profissionais
que se apoiam cegamente no modelo. Para eles, os princípios expostos no
principialismo não operam como princípios tradicionais, os quais servem como
uma síntese de uma teoria elaborada. Exemplificando, os princípios de Kant,
Mills e Rawls representam boas sínteses de suas teorias; no entanto, “o caso do
principialismo pode ser um tanto ilusório, posto que não há uma teoria
subjacente que unifique os princípios propostos” (CLOUSER, 1995). Ao invés
disso, cada princípio opera por si como um lembrete de que existe um valor ético
a ser considerado pelo agente tomador de decisão (CLOUSER, 1995). Como
consequência, o agente pratica a ação sem receber uma orientação – como pensar
ou como lidar com determinado valor – e acaba por atribuir sua própria métrica
de valores, com suas próprias interpretações e exceções. Quais elementos
entraram na esfera de julgamento do agente? Qual o viés de interpretação? Os
questionamentos que buscam apontar o que determinou a conclusão moral ficam
prejudicados pela ausência de uma base teórica.

As manifestações do principialismo através de máximas condicionadas,


com os princípios agindo de pressuposto para a análise ética, faz com que estes
pareçam construções ad hoc (CLOUSER, 1995). De fato, sem unificação, cada
princípio apenas representa alguma ênfase historicamente importante, sem as
teorias de fundamento: autonomia de Kant, consequência de Mills, não-
maleficência de Gert e justiça de Rawls. Para mais, a ausência de unificação
resulta em uma falta de cuidado e observação às circunstâncias específicas e às
particularidades do caso concreto. Logo, a universalização abstrata concebida por
meio de princípios não seria suficiente para compor todo o processo de tomada
de decisão (JUNGES, 1999).

Uma boa deliberação prega a utilização dos princípios como guias de


ação e como ferramentas de auxílio para a análise de casos. Conforme Pessini e
Barchifontaine (2014, p.64), “a gênese dos abusos cometidos pelo paradigma dos
princípios advém de uma necessidade humana de segurança moral”. As
violações ocorrem sobretudo no desrespeito aos limites do método, como nos
casos em que o agente deliberador modela as circunstâncias de determinado caso
SUMÁRIO

146 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

para que se encaixe na compreensão de um princípio específico de sua preferência


– exatamente como ocorre nos casos de convenções específicas, presentes na
crítica de Gert, Culver e Clouser. Fica evidente, portanto, as preocupações dos
críticos com a generalizada popularização do paradigma dos princípios na ética
biomédica: “o uso impróprio dos princípios serve para encobrir julgamentos ad
hoc.” (GERT; CULVER; CLOUSER 2006, p.101).

Semelhantemente, as críticas de José Roque Junges mencionam que a


falta de unidade do principialismo cria problemas práticos e teóricos. Ainda que
os princípios sejam uma proposta eclética, a inexistência de uma teoria ética que
forneça unidade sistemática aos princípios impede “uma orientação unitária na
criação de leis específicas para a ação que sejam claras e coerentes” (JUNGES,
1999, p. 65). Como resolver os conflitos entre os princípios se não há um
referencial comum como base? Do ponto de vista de Junges, o caráter eclético, que
ofusca o raciocínio ético, representa a falha da bioética principialista (JUNGES,
1999).

2. A Bioética como razão prática

Apesar da pretensão do principialismo de ocupar um lugar privilegiado


na bioética, nem ele nem a ética das virtudes devem reivindicar ser superiores ou
logicamente anteriores um em relação ao outro. Como afirmam Polansky e
Cimakasky (2015), não se trata de uma tentativa de suplantar o principialismo
pela ética das virtudes, mas sim fornecer uma versão mais adequada da vida
moral, indo além do que cada uma das teorias poderia oferecer isoladamente. As
virtudes do principialismo são clareza, simplicidade e universalidade. Mas os
vícios dessa abordagem são o inverso de suas virtudes: negligência de fatores
singulares de cada caso, simplificação decorrente de sua universalidade. A ética
das virtudes, por outro lado, oferece uma abordagem complementar, fornecendo
uma teoria sobre o caráter moral do agente, uma coordenação entre razão e
emoção e uma abordagem das circunstâncias das deliberações e escolhas que não
se verifica no principialismo. Neste sentido, os casos a serem analisados podem
ser compreendidos de forma mais adequada se combinarmos as duas
abordagens.

A razão para isso, como afirmam Polansky e Cimakasky, é que os


quatro princípios do principialismo – autonomia, beneficência, não-maleficência
e justiça – são frequentemente celebrados pelo seu êxito, mas eles também são
SUMÁRIO

Gerson Neves Pinto


CAPÍTULO 8 147
frequentemente complementados por considerações vindas da ética da virtude.
Para elucidar e aprofundar a sensibilidade ética do principialismo, Polansky e
Cimakasky afirmam que os quatro princípios do principialismo devem ser vistos
como correlatos das quatro virtudes cardeais – prudência, coragem, moderação e
justiça –, tal como aparecem no ocidente, desde Platão no livro IV da República.
Do mesmo modo, Aristóteles, o qual tratará a coragem e a moderação no livro III
da Ética nicomaquéia. A justiça ocupará um livro inteiro, o livro V e a prudência
(phronesis) – que é a principal virtude intelectual relativa à ação – ocupará todo o
livro VI da Ética nicomaquéia. Uma outra referência clássica destas quatro
virtudes vamos encontrar no tratado Da Trindade de Santo Agostinho (1955), em
que a prudência é mencionada junto com as três outras virtudes cardeais: a
justiça, a força e a temperança. Neste mesmo sentido, Tomás de Aquino irá
abordar pela primeira vez o estudo da prudência em seu comentário ao livro III
das Sentenças (1253-1255). Voltará a estudá-la na segunda parte da Suma Teológica
(1268-1272) contemporânea do seu Comentários à Ética de Nicômaco. Sem dúvida, o
texto mais longo e sistemático de Tomás sobre a prudência são as questões 47-56
da IIa Ilae, isto é, da segunda parte da Suma Teológica. Na questão 61 da Ia Ilae da
Suma Teológica, Tomás irá tratar das virtudes cardeais, nas quais ele vai dizer que
a temperantia (moderação) se aplica a que o ser humano não se desvie da razão por
causa dos desejos sensíveis e a fortitudo (coragem) se aplica a que o ser humano
não se afaste do reto juízo da razão por causa do medo ou da audácia. Mas, cabe
à ordenação da prudência determinar como e através de que modo o ser humano,
ao agir, observa o meio razoável. Em resumo, observar o justo meio, como será
visto a seguir, é o fim da virtude moral (o que lhe é preestabelecido pela razão
natural prática), mas este justo meio só é encontrado pela conveniente ordenação
do que se refere a este fim (o que compete à prudência).

Esta percepção da complementaridade entre o principialismo e a teoria


das virtudes mostra que a racionalidade exigida no caso da bioética é o que a
tradição identificou por meio da noção de razão prática. Recorrer à razão prática
na solução de casos difíceis tem como resultado a refutação de uma ética
meramente dedutiva do que devemos fazer, como se a ética fosse apenas a
aplicação concreta ou a mera subsunção de regras em situações específicas. Ao
contrário, pensar a bioética como um campo da razão prática é reconhecer que as
dificuldades originadas pelas novas tecnologias não encontram soluções na mera
capacidade de aplicação de princípios ou regras, mas na capacidade de discernir
racionalmente o que está em jogo no âmbito de cada prática singular.
SUMÁRIO

148 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Como nos afirma Paul Ricouer (Ricouer, 1990, 317-318), podemos


perceber a parte da sabedoria prática (a prudência) incorporada na bioética, por
exemplo, na busca pelo justo meio – mesotes de Aristóteles – que parece ser um
bom conselho, no entanto sem ter valor de princípio universal. É bom lembrar que
o justo meio, como nos informa Tomás, seguindo Aristóteles, é a ação que não
peca nem pelo excesso nem pela falta e que, portanto, existe sempre um modo
adequado de julgamento em nossas ações. Ele é um certo justo meio e, na medida
em que ela visa o “meio” e o realiza, ele é uma ação virtuosa. É necessário, pois,
saber o que é o justo meio, isto é, através de quais preceitos da razão prática nós
somos conduzidos – pela virtude da prudência – ao justo meio das demais
virtudes cardeais. Como decorrência disso, a norma ética não é nem única e nem
a mesma para todos os casos, mas ela se adapta, de uma maneira essencial, às
circunstâncias onde se produz a ação.

Tomás de Aquino assinala, primeiramente, que existe uma incerteza e


variação nas regras práticas formuladas de forma universal:

[...] a razão prática versa sobre o contingente, onde entram as obras


humanas. Por onde, embora no geral também haja uma certa neces-
sidade, quanto mais descermos ao particular, tanto mais exceções en-
contraremos (Tomás de Aquino, 2001, Ia-IIae, Questão 94, a.4).

Devemos assinalar que, apesar do que fica estabelecido na passagem


anterior, a falta de certeza de como uma regra universal deve ser aplicada no
domínio prático, disto não se segue que o julgamento em casos particulares não
possa ser infalivelmente correto.

Isto quer dizer que, apesar da incerteza no domínio da aplicação das


regras práticas universais e de sua imprecisão na aplicação a casos singulares,
existe sempre uma única forma adequada de realizar o bem e que, ao contrário, o
mal provém de vários defeitos particulares.

Assim, Tomás conclui que existe sempre um modo adequado de


julgamento em nossas ações: esta é a ação que não peca nem pelo excesso nem pela
falta. Ao contrário, ela é um certo « justo meio » e na medida em que ele visa o «
meio » e o realiza, ele é uma ação virtuosa. É necessário, pois, saber o que é o «
justo meio », isto é, através de quais preceitos da razão prática nós somos
SUMÁRIO

Gerson Neves Pinto


CAPÍTULO 8 149
conduzidos ao « justo meio » da virtude (Tomás de Aquino, 2000, lib. 6, 1, 332, 35-
36).

Tomás assinala que a norma da ação é transpassada por considerações


sobre as circunstâncias da ação e ele nos mostra isso através da noção de « justo
meio ». Neste sentido, a norma ética não é nem única e nem a mesma para todos
os casos, mas ela se adapta de maneira essencial às circunstâncias onde se produz
a ação.

Tomás, seguindo Aristóteles, nos mostra a insuficiência deste


conhecimento, isto é, o critério do justo meio como sendo um certo meio entre o
excesso e a falta; se concebido como algo meramente formal e abstrato, ele
significaria simplesmente que agir segundo o « justo meio » é agir como se deve e
isto não nos ajuda em nada no que se refere à realização da ação. Neste caso,
restaria a cada um de nós determinar o seu « justo meio » por si e de forma
totalmente subjetivo. A doutrina do « justo meio », na medida em que ela
estabelece que a ação virtuosa é alguma coisa entre o excesso e a falta, ela seria
incapaz de nos fornecer informações úteis para a ação humana.

O reconhecimento dos limites próprios ao uso da razão prática como


sendo diferente daqueles utilizados pelos princípios tomados de forma
meramente abstrata, parece tornar mais claro que o justo meio não exprime
meramente uma proposição analítica que opera por subsunção, mas, ao contrário,
parece que a doutrina do justo meio vai bem mais longe.

A doutrina do justo meio não exprime somente que, em um caso, se X é


o justo meio entre o excesso e a falta, é necessário fazer X. A doutrina do « justo meio
» estabelece uma restrição à toda norma ética: faça X, se X é o «justo meio» neste
caso particular, todas as demais circunstâncias permanecendo iguais. Em um
outro caso, se o « justo meio » não é mais X, mas Y, faça Y, e assim por diante. Se
alguma coisa é o « justo meio », faça-o, mas ele é o « justo meio » sempre por
relação a um caso determinado, isto é, que ele é bom justamente porque ele se
mantém no meio entre o excesso e a falta, nas circunstâncias precisas de uma ação
particular (Tomás de Aquino, 2000, lib. 6, 1, 332, 65-69).

O justo meio introduz precisamente o caráter relativo: todas as coisas


permanecendo iguais (a cláusula ceteris paribus), é necessário fazer X. X deve ser
feito porque ele é o melhor. Mas o que expressa a doutrina do « justo meio » é que
o melhor é uma medietas que deve sempre ser tomada a partir das circunstâncias
onde se produz a ação.
SUMÁRIO

150 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Para bem compreender a doutrina do justo meio, é necessário ter em


mente que qualquer que seja o meio termo em um caso particular, ele será o
melhor, levando em consideração todas as circunstâncias que fazem parte das
nossas ações. A introdução desta exigência relativa às circunstâncias da ação é
necessária para a verdade do julgamento do justo meio.

Pode-se concluir então que o julgamento da ética das virtudes não é um


julgamento universal através unicamente de princípios, o qual seria
acompanhado de exceções de circunstâncias sob a forma de uma generalização do
tipo “a maior parte dos Xs são Ys”. Ao contrário, o julgamento ético é um
julgamento singular, o qual produz uma tomada de decisão no exame das
circunstâncias da ação hic et nunc. Isto significa que a prudência, que determina o
agir concreto e estabelece qual diretiva devemos adotar num caso concreto, tem
um papel fundamental de coordenar as demais virtudes cardeais na busca pela
descoberta do justo meio.

Considerações finais

O presente trabalho procurou mostrar que o modelo principialista não é


necessariamente rígido. Ao contrário, o peso de cada princípio deverá ser avaliado
em decorrência das diversas situações bioéticas e, portanto, deverá atender o que
é exigido dele a partir do peso das circunstâncias. Assim, podemos imaginar uma
dialética entre os princípios e as circunstâncias, como afirma Daniel Callahan:

“Se o progresso moral em geral consiste em desenvolver e refinar abs-


trações éticas úteis, o bom julgamento moral em particular quase
sempre consistirá em trabalhar para frente e para trás entre nossos
princípios abstratos e as realidades da experiência, o que John Rawls
chamou de processo de ‘equilíbrio reflexivo’" (tradução nossa) (Cal-
lahan, 1996, p. 69-71.)

Conceber os princípios deste modo seria interrogar não exatamente


sobre o seu caráter imperativo, mas acerca dos valores que eles veiculam e sobre
os seus limites. É antes um problema que se refere à introdução no interior mesmo
do princípio de considerações sobre as circunstâncias onde se produz a ação a
título de limite e de determinação desta norma.
SUMÁRIO

Gerson Neves Pinto


CAPÍTULO 8 151
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SUMÁRIO

152 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

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RICCEUR, Paul. Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, 1990.


SUMÁRIO

Capítulo 9

O “MUNDO GRIPADO”
DA COVID-19
da globalização do medo ao
cosmopolitismo de interação

Jânia Maria Lopes Saldanha


SUMÁRIO

154 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

O “MUNDO GRIPADO”¹ DA COVID-19:


da globalização do medo ao cosmopolitismo de interação

Jânia Maria Lopes Saldanha²

« Nous étions redoutablement mal préparés pour faire face à ce


qui est en train d’arriver »
Au temps des catastrophes. Isabelle Stengers

Introdução

No início do livro “A Peste”, de Camus (2017), o narrador afirma que os


flagelos são eventos comuns. Entretanto, é difícil acreditar neles quando se
abatem sobre nós. Segundo ele, houve no mundo tantas pestes quanto guerras.
Contudo, ambas, sempre encontram as pessoas desprevenidas. Mesmo Rieux, um
dos médicos da cidade de Oran onde os fatos tiveram início, estava desprevenido,
assim como o restante dos cidadãos. Essa obra de leitura tão urgente quanto
indispensável, nos ajuda a compreender esse tempo sombrio que nos oprime. De
fato, o mundo em que vivemos é um mundo instável. De um lado, possibilidades
novas deixam-nos entrever prosperidades desiguais e as contradições e tensões
onipresentes apresentam crises sem fim. A crise provocada pela COVID-19 é uma

1 Expressão retirada de KECK, Frédéric. Un monde grippé. Paris: Flamarion, 2010.


2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito e da Escola de Direito da UNISINOS - Universidade do
Vale do Rio dos Sinos. Professora visitante permanente do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos
da Universidad de Medellín-Colômbia. Ex-Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito e do
Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria - RS – Brasil. Professora visitante do IHEAL
- Institut des Hautes Études sur l'Amérique Latine - Catédra Simon Bolívar - anos 2016-2017. Pesquisadora
Associada do IHEJ - Institut des Hautes Études sur la Justice, Paris - ex-bolsista CAPES para pesquisa e estudos
em nível de estágio sênior no IHEJ.
SUMÁRIO

155
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

entre outras que nossa geração experimenta, como a migratória, a econômica, a


social e a ambiental. Porém, ela nos pegou desprevenidos.

Nessa situação onde nos vemos surpreendidos e expostos é


indissociável da condição humana que haja medo. Não é pequena a importância
dessa variável no contexto contemporâneo. O medo pode legitimar a
concentração de poder político e a ruptura dos laços sociais, tanto nas
comunidades nacionais como no espaço internacional. Ou pode ser indicador de
uma necessidade partilhada e, ao ser assim entendida, viabilizadora da
construção de interações que promovam o diálogo e vínculos de solidariedade
entre as instituições e os povos. Pode-se assinalar, assim, que a gestão do medo se
torna estratégia fundamental de adesão às normas sociais, conforme Safatle
(2015), e, nessa condição, torna-se variável determinante para o projeto
civilizatório que se constrói a partir da experiência da atual pandemia.

Desse modo, o presente artigo subdivide-se em duas partes. Na parte


primeira, trataremos do uso político do medo, na condição de uma emoção
humana e suas consequências políticas. Na segunda parte, abordaremos como as
instituições internacionais, que para fins do presente texto são consideradas como
a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Conselho Europeu, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Comissão Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos (CADHP), operacionalizam a partir do direito reações
para o enfrentamento da crise, de forma a primar pelo diálogo institucional e pela
preservação e desenvolvimento dos conteúdos de direitos humanos.

1. Há um cosmopolitismo ou uma globalização do medo? Os usos


políticos de uma emoção

A primeira parte é composta por duas divisões. Na primeira, “os usos


políticos de uma emoção”, pretende-se contextualizar a pandemia da COVID-19
ante os processos de globalização e mundialização. A segunda divisão,
“Cosmopolitismo ou globalização do medo?”, retrata dois grandes projetos
civilizatórios que podem ser concebidos a partir do quadro atual. O primeiro
consiste na globalização do medo, decorrência de uma sociedade ultraliberal. O
segundo projeto, o cosmopolitismo, rompe com o discurso que associa a
imunização individualista à segurança e em seu lugar propõe um exercício de
alteridade.
SUMÁRIO

156 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

1.1 Os usos políticos de uma emoção

Desde a queda das torres gêmeas em Nova York assistimos o discurso e


as medidas securitárias invadirem a agenda política dos Estados. Nos debates
internos de muitos países democráticos, a implantação de um direito
caricaturalmente repressivo foi acontecendo de maneira insidiosa. As medidas
adotadas pelos Estados Unidos a partir de 11 de setembro de 2001, como o Patriot
Act e o uso da prisão de Guantânamo como depósito de seres humanos
encarcerados sem prova da culpabilidade, que se somam, em plena era Trump, às
mais severas e raivosas restrições aos migrantes, emularam as práticas de outros
países. A França, no ano de 2008, conforme Wyvekens (2010), por exemplo,
adotou a chamada retenção de segurança. E a União Europeia, através da Diretiva
do retorno, agravou de forma impressionante a vulnerabilidade dos migrantes
indocumentados (CONSELHO EUROPEU, 2008).

O fato é que ondas globais evidenciam que estamos sujeitos a eventos


aleatórios, com distintas origens como o terrorismo, as guerras, as catástrofes, as
pandemias e epidemias, conforme Carvalho (2020)³. Nessa versão sombria, o
mundo é perigoso e as ameaças para uns constituem ameaças para todos. Elas
nutrem amplas e variadas formas de controle sobre a vida humana adotadas pelos
Estados e por outros atores privados (GUROVITZ, 2019).

Face a perigos reais (como é o caso do coronavírus, causa da COVID-19,


cuja capacidade meteórica de circulação e transmissão já foi reconhecida pela
comunidade científica, OMS), a perigos maximizados e a perigos imaginados/
produzidos artificialmente por fake news, por exemplo, as respostas políticas tanto
podem ser adequadas quanto inadequadas. Se inadequadas, elas podem
ocasionar um novo tipo de perigo, dessa feita real, consistente na perda/
fragilização da democracia ao motivo de defendê-la.

A expressão cunhada por Foessel (2019, p.20), “democracias iliberais”, é


um neologismo capaz de explicar esse fenômeno produzido por governos
autoritários, ou seja, ao mesmo tempo em que eles mantêm as formas de sufrágio
universal, destroem as proteções constitucionais garantidas pelo estado de direito
e pela sociedade civil.

3 CARVALHO, Delton Winter de. A natureza jurídica da pandemia COVID-19 como desastre biológico: um
ponto de partida necessário para o Direito. O artigo foi gentilmente cedido pelo autor, a quem agradecemos.
No prelo.
SUMÁRIO

157
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

Foi justamente no Iraque ocupado pelas tropas americanas a partir de


2003, sob o argumento de “restaurar a democracia” naquele País, que o olhar
arguto de Naomi Klein (2017) desenvolveu a “teoria do choque” para dizer que
cenários catastróficos que reclamam, invariavelmente, políticas/medidas
extraordinárias de suspensão de normas democráticas, são cooptados pelos
interesses de grandes corporações. Nesse sentido, a imposição de interesses
neoliberais fundamentaria as ações governamentais destinadas a convencer as
populações afetadas de que reduzir as proteções sociais seria a condição primeira
para evitar o apocalipse econômico. Essa que é uma típica “tática do choque”
representa, como é fácil perceber, um falso debate. Contudo, na hipótese da
COVID-19, ela tem alimentado discursos populistas de governos, como o do
Presidente do Brasil, de que as medidas de distanciamento social são nocivas para
a economia do País. Mesmo governadores que foram incisivos nas medidas de
proteção à vida, também legitimaram arbítrios quanto a direito fundamentais,
como o uso de dados de deslocamento dos usuários no Estado de São Paulo,
conforme Valente (2020), e detenções no Rio de Janeiro, de acordo com Ferreira
(2020). Portanto, a saúde humana não estaria em primeiro lugar.

Nesse sentido, em tempos de pandemias e de outras catástrofes


anunciadas, os Estados podem ver nelas, por um lado, uma boa oportunidade
para reduzir as liberdades, como o direito de ir e vir, a ter informações, a
liberdade de expressão e, por outro, para fazer do discurso do desenvolvimento
econômico um argumento retórico, reduzindo, com isso, a essencialidade de
direitos humanos como o direito à saúde e à vida. Os governantes no poder, ao
fazer disso uma estratégia autoimunizadora em nome de interesses nacionalistas
retrógrados e de interesses econômicos, podem transformar a excepcionalidade
dos estados de emergência em plataformas políticas graves, cujo resultado é a
violação dos direitos humanos e a fragilização da democracia. Visivelmente, em
casos como esse, os governantes podem fomentar o medo social da derrocada
econômica, habilmente apropriado pelos segmentos conservadores da sociedade,
medo esse que se assume como protagonista nos estados de emergência. Como
ocorreu no Brasil em plena pandemia, essa estratégia tem imposto esforços
redobrados da comunidade científica para mostrar à sociedade, com a cautela
necessária para evitar o pânico, a relevância de suas conclusões, a gravidade da
capacidade de proliferação do vírus e sua letalidade.

É verdade que os mais vulnerabilizados de nossa sociedade, com a


pandemia, experimentam um aumento considerável de sua fragilização. A
SUMÁRIO

158 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

preocupação com a perda de empregos e a falta de alimentação é legítima e deve


ser considerada pelos governos. Mas esses, ao invés de adotarem discursos de
medo e de conteúdo francamente oposto aos das autoridades sanitárias
internacionais e nacionais, devem encontrar alternativas capazes de dar suporte
econômico aos mais necessitados em épocas de crise. Essa não é uma atribuição
que recai somente sobre o ente estatal. Os atores privados, em especial, as
instituições financeiras, porque são as que mais lucram com o modelo de
economia em que vivemos, devem facilitar o acesso dos indivíduos e das
pequenas e médias empresas ao crédito. No Brasil, aliás, foi necessário que o
Poder Judiciário interviesse para determinar aos bancos que se abstivessem de
elevar as taxas de juros durante a crise da COVID-19 (Poder360, 2020). De fato, os
Estados devem saber prever os custos sociais e econômicos que uma pandemia
desta magnitude produzirá. Alternativas criativas para combater a pobreza que se
anuncia podem ser programas de renda mínima e a criação de uma contribuição
social sobre grandes fortunas, como ensina Buffon (2020).

Com efeito, a risco de toda crítica, entendemos ser importante admitir


que a história mais recente das catástrofes, tragédias, crises humanitárias, crises
sanitárias e terrorismo que acontecem em dimensão global, pode ser contada a
partir da politização do medo em nossas sociedades.

Não que esses fenômenos não existam e não devam ser levados a sério.
Entretanto, o que pretendemos demonstrar é que o uso do medo como
instrumento de controle das sociedades contemporâneas é a causa de falsas
demandas por segurança e justificativa para a violação de direitos humanos em
nome dela e, no caso da COVID-19, o peso dos mais de quarenta anos de
neoliberalismo nos faz acreditar que a manutenção das dinâmicas do modelo
econômico é o que nos salvará da crise em que já estamos todos metidos. Nada
mais pertinente, portanto, do que reconhecer que a instrumentalização do medo
pode significar que sua manipulação pode conter verdadeira e falsa informação e
que ambas podem produzir apropriadas ou inapropriadas reações, como referiu
Martha Nussbaun (2019).

Ora, parece ser bastante razoável pensar que os impactos econômicos da


propagação do vírus estão indelevelmente vinculados “às fendas e
vulnerabilidades preexistentes no modelo hegemônico”, como afirmou David
Harvey (2020). Portanto, as demandas por segurança e, no âmbito da emergência
sanitária, pode ser a segurança em garantir o mercado aquecido que, se acredita,
seja a salvação, são efeitos do medo. Nada garante, no entanto, que os meios
SUMÁRIO

159
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

usados pelos Estados, cujos governantes são seduzidos pela “mão invisível do
mercado” para responder às crises, sejam os mais eficazes. Ao contrário. A
debilidade dos sistemas de saúde pública, em vários países, sendo o maior
exemplo os Estados Unidos, indicou o quanto o mundo estava despreparado para
enfrentar a crise provocada pelo coronavírus. O alerta de David Harvey (2020, p.
7) é visceral, ou seja, “mesmo bons indivíduos neoliberais podem ver que há algo
errado com a maneira com que esta pandemia está sendo respondida.”

Então, nessa era das catástrofes em que vivemos e em que a COVID-19


é a grande protagonista, é visível que o medo perdeu a ligação com sua origem
antropológica e assume inapelavelmente seu vínculo com o estado de vigilância e
de controle. Se em Hobbes, de acordo com Foessel (2010, p. 139), o medo “fazia
mundo” porque significava unir forças e aproximar os homens uns dos outros, o
medo produzido pela sociedade de vigilância da atualidade é “sem mundo” por
que exacerba o individualismo e alarga o manto que separa o “nós” dos “outros”.
A adesão mundial ao distanciamento social, cujo espírito é a proteção ao outro
que somos nós mesmos, marca o lugar que a solidariedade involuntária e
transnacional passou a ocupar rapidamente, numa evidente expressão de
resiliência e de responsabilidade. Por outro lado, os discursos políticos e os
movimentos sociais que tomaram a forma de carreatas para dar suporte às
manifestações e ao espírito negacionista do Presidente do Brasil, por exemplo, é o
retrato da tentativa de produzir o medo sem mundo (SALDANHA, 2020).

Claro, a pandemia da COVID-19 permite que vejamos no medo uma


função pedagógica. Foi essa que nos fez ir ao encontro do princípio da precaução,
conforme Jonas (2012), justamente por termos consciência de nossa fragilidade e
de nossa finitude. E é ela que inspira as condutas solidárias nos quatro cantos do
mundo. Assim concebido, é a expressão da nossa angústia frente ao real e à
incerteza. E mesmo que aceitemos as críticas, elaboradas, por exemplo, por
Sunstein (2005), dirigidas ao princípio da precaução, e tomemos o caminho da
heurística do medo, de todo o modo vamos considerar a ignorância como o outro
lado do saber e, com isso, nos comprometemos com os princípios de justiça social
destacados por Abramovay (2016). Por sua vez, Michael Foessel, ao dialogar com
Heidegger, indica ser o medo uma “paixão hermenêutica” que nos conduz ao
futuro. De fato, se para Heidegger (1986) existir é possibilidade, as ameaças que
sofremos nos levam a interpretar o ecossistema em que vivemos e a hierarquizar
essas ameaças. O princípio da precaução deriva, pois, dos nossos esforços para
nos proteger e sobreviver.
SUMÁRIO

160 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Com efeito, se o medo causa como fim a busca por segurança, essa exige
que sejam encontrados meios para alcançá-la. Logo, a relação circular entre o
medo e a razão securitária é perfeita e estimula as mais amplas ações de governos
autoritários, os quais não apenas esperam, mas fomentam de maneira habilidosa
o apoio de indivíduos e de grupos. A cultura individualista liberal fomenta, pois,
os egoísmos por meio dos quais as pessoas interessam-se em proteger seus
próprios interesses assumindo, muitas vezes, comportamentos complacentes com
a violação de direitos dos “outros”.

Assim, as orientações governamentais destinadas a flexibilizar as


medidas de distanciamento social orientadas pela OMS (2019) com base no
Regulamento Sanitário Internacional, a adoção de medidas xenófobas contra
pessoas imigrantes em nome da necessidade de evitar o contágio e a adoção de
medidas extremas para fragilizar as instituições, como as praticadas pelo governo
de Nayibi Bukele em El Salvador, de acordo com Nalvarte (2020) e por Viktor
Orbán, conforme registrado por Rupnik (2020), que, aproveitando-se da crise
pandêmica global, fez o Parlamento da Hungria adotar uma lei que lhe confere
plenos poderes para governar por decretos e revogar leis existentes, não passam
do uso político de uma emoção. Por outra via, a Resolução 1/2020 da CIDH (2020)
é a expressão da preocupação do sistema interamericano de proteção de direitos
humanos, acerca da instrumentalização da crise para a prática de medidas
autoritárias por parte de governos de países das Américas que rompem com o
princípio da proporcionalidade, cujo respeito é exigência mínima para atender
aos interesses das sociedades democráticas.

As medidas de segurança que hoje conhecemos e que, por exemplo,


estabelecem o automatismo das penas de prisão sem reconhecimento prévio da
culpa em muitos países democráticos, evidenciam o desejo de abolição da
contingência em benefício da estandardização das práticas que têm por evidente
objetivo preencher o espaço entre a generalidade da lei e a particularidade do
caso. Assim, banalizado, o medo é instrumento de retórica para as mais variadas
violações de direitos humanos. A ONG Human Rigths Watch (2020) denunciou
Nayibi Bukele, de acordo com Cazarré (2020), pelo uso dessas práticas
autoritárias ao chancelar prisões ilegais em plena pandemia. O Portal Legislação
do Governo do Brasil noticia no momento em que este artigo está sendo redigido⁴

4 Segundo e terceiro trimestre de 2020.


SUMÁRIO

161
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

que o Presidente da República editou aproximadamente 16 Medidas Provisórias


relacionadas à emergência sanitária. Sabemos que, em estados de emergência,
cabe ao direito rapidamente regular medidas necessárias para combater as causas
e minimizar ao máximo os efeitos nocivos das pandemias. Porém, o
funcionamento equilibrado dos poderes é a condição primeira para que os
arroubos arbitrários e sem bússola dos governantes sejam limitados. Por isso, em
24 de abril, o STF suspendeu a eficácia da Medida Provisória 954 por determinar
às empresas de telefonia a disponibilização ao IBGE dos dados dos consumidores
dos serviços telefônicos. Rosa Weber, a relatora, entendeu que dados sensíveis
deveriam ser protegidos (STF, 2020).

Os governantes que instrumentalizam e manipulam o medo adotam


essa estratégia porque ela serve para colocar em prática certas medidas que, fora
dos regimes de emergência, seriam mais difíceis de adotar. Por isso, escolher um
objeto do qual se deva ter medo, definir sua natureza e explicar as razões de sua
periculosidade, é um bom caminho para justificar práticas governamentais
abusivas, como é o caso da vigilância.

Sabemos, em um mundo globalizado, que as clássicas fronteiras não


são mais suficientes – será que um dia foram? – para dar proteção aos medos que
se transnacionalizaram. As pandemias são extremamente reveladoras desse
fenômeno. Os medos contemporâneos são, em virtude disso, socializados. Eles
não apenas são o combustível tanto para atitudes protetivas quanto para atitudes
ilegais nos contextos dos estados de emergência, de exceção ou extraordinários.
Além disso, eles estimulam comportamentos humanos em reação ao que
percebem ou são levados a perceber como perigoso. Portanto, seja para lutar
contra o terrorismo global, evitar catástrofes anunciadas ou adotar medidas
sanitárias em situações de emergências internacionais, o medo pode ser um
“instrumento de mobilização” das pessoas que tanto pode estimular
solidariedades quanto egoísmos (FOESSEL, 2010, p. 138).

Embora os cientistas ainda não identifiquem com certeza a origem de


um vírus e não tenham a cura para a doença que esses seres microscópicos
produzem nos humanos, como ainda é o caso da COVID-19, mesmo assim, os
efeitos invasivos, a capacidade de proliferação do vírus e a sua letalidade são
conhecidos e produzem medo real e plausível. Mas, por outro lado, como
referido, vivemos no tempo da produção difusa do medo derivada de causas
incertas e que, por isso, ao nos fazer vítimas dela própria, nos lança numa sorte
de caos permanente e de desconfiança generalizada.
SUMÁRIO

162 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Então, ainda de acordo com Foessel (2010), os medos de hoje isolam os


indivíduos e os muros, reais ou imaginários, demonstram de modo contundente
que o medo, em geral construído sob argumentos retóricos, não deriva do nosso
desejo de formar comunidade e sim, ao contrário, expressam um desejo de
separar porque o mundo tornou-se inarredável e desesperadamente patogênico.
Qual outra razão levaria os EUA a deportar mais de 10.000 migrantes latino-
americanos em plena pandemia da COVID-19? (FU, 2020).

Associado à aversão, o medo tem destinatários conhecidos, ou seja, os


mais vulnerabilizados das nossas sociedades, que são os negros das favelas, os
indígenas, os imigrantes indocumentados, as mulheres. Mas ele também provoca
a rejeição daqueles cujos comportamentos são considerados reprováveis do ponto
de vista sanitário, como os fumantes, os consumidores de drogas, os alcoólatras e
os próprios profissionais da saúde (R7, 2020). Hoje, no viajante, um possível
hospedeiro do coronavírus, pode ser identificado o ser perigoso que nos produz
medo. Tais indivíduos, conforme Esposito (2010), são o alvo das investidas para
que desapareçam do mundo social, porquanto transformados em vítimas
potenciais do “desejo imunitário”⁵ social de negar a alteridade. Portanto, assim
como ocorreu com o vírus HIV-AIDS, a estigmatização e a representação social do
vírus já foram produzidos, conforme Raupp Rios (2020). Tal desaparecimento é
peculiar à aversão que sentimos por tudo o que nos ameaça e que,
instintivamente, queremos que desapareça pura e simplesmente. Com efeito, esse
é o cenário ideal das fronteiras entre o “normal” e o “outro”.

Com base em tais afirmações e nas lições de Robin (2009), podemos


verificar que o medo pode assumir uma dupla face, isto é, pode ser horizontal e
vertical⁶. Horizontal quando o “inimigo” é exterior. Vertical, quando os
indivíduos considerados em condições subalternas creem que poderão ser
punidos ou ser colocados em situação pior do que aquela em que se encontram.
O uso político extremado da crise pandêmica que vivemos pode conduzir a que
experimentemos essa dupla face. Primeiro, pela forte possibilidade de
etiquetamento e discriminação de populações e lugares reputados como culpados
pelas origens das pandemias. Segundo, porque os grupos mais vulnerabilizados
de nossas sociedades são as maiores vítimas das pandemias, como decorrência da

5 A propósito da gripe H1N1, nessa obra o autor repensa o conceito de comunidade no quadro das novas
definições sobre imunidade.
6 O autor trata dessas duas faces nas posições 1964 e 1965, respectivamente
SUMÁRIO

163
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

hierarquização social. Como afirma Delmas-Marty (2010), a realidade perigosa e


incerta pode nos levar a compreender um fenômeno de dupla face: a
imprevisibilidade dos perigos e a porosidade das respostas jurídicas. As
tecnologias de informação e comunicação são enormemente responsáveis pelo
incremento da imprevisibilidade e pelo aumento do medo dos riscos globais e,
também do “outro”, o que conduz à exclusão e à construção de muros. E a
porosidade das respostas pode ser identificada, segundo a autora, no surgimento
de uma “antropologia guerreira”.

1.2 Cosmopolitismo ou globalização do medo?

O que temos, portanto, é a globalização do medo que está


indelevelmente associada à globalização dos riscos. Em 1986, por ocasião de
publicação do livro Sociedade do risco, Ulrich Beck (2006)⁷ já advertia sobre o
nascimento de um novo paradigma, o da sociedade do risco, provocado pelo
acelerado processo de modernização. E Habermas (2002), na obra em que
homenageia Kant, pergunta se globalização dos riscos poderia dar causa ao
nascimento de um novo tipo de cosmopolitismo fundado numa comunidade
involuntária de destino. Sobre isso, afirma Foessel, a igualdade perante às
ameaças e às exigências em respondê-las constituiriam o último refúgio da fé no
universal. A crise da COVID-19 evidencia essa realidade de que o mundo está
“gripado”, conforme Keck (2010), e no qual as máscaras fazem o grande carnaval
(KECK, 2020). Porém, se é verdade que o vírus não é seletivo, não menos
verdadeiro é que seus efeitos atingem os seres humanos de modos distintos, o que
torna essa comunidade involuntária de destino, também na submissão aos riscos
comuns, mais trágica e mais perversa para uns do que para outros. Seguramente,
como referido, o refugiado, o imigrante, o morador das favelas no Brasil, os
indígenas, os latino-americanos e afrodescendentes que habitam o Bronx e o
Harlem em Nova York, terão suas condições de vulnerabilidade aumentadas em
face das dificuldades de acesso aos serviços de saúde, de acesso à justiça, da
pobreza, da discriminação, da seletividade etc. (REICH, 2020).

7 Beck (2006, 26-36) apontou cinco teses que justificam a teoria da sociedade de risco: a) os riscos avançam na
mesma medida das forças produtivas; b) com a repartição e incremento dos riscos surgem situações sociais de
perigo; c) a lógica dos riscos não rompe com o processo de expansão capitalista; d) pode-se possuir riquezas,
mas, pelos riscos, somos afetados; e) os riscos possuem um conteúdo político.
SUMÁRIO

164 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Em outras palavras, na perspectiva do “outro concreto”, tal como refere


Benhabib (2007), os seres humanos não são iguais frente às ameaças e tampouco
frente aos efeitos das mesmas. Desse modo, face aos riscos globalizados, o que
existe é menos uma comunidade involuntária de destino e mais espaços clivados
onde os mais favorecidos cultural, econômica, política e socialmente podem ter
mais vantagens. Os lugares heterotópicos dos quais falou Foucault, como os
asilos, as prisões, hoje os precários hospitais públicos em muitos países e os
centros de “retenção”, onde são “depositadas” milhares de famílias de migrantes
pelo mundo, são reservados às pessoas que se encontram em “estado de crise”
(FOESSEL, 2010, p. 142).

Então, a proliferação do medo, em nível global e local, repousa sobre


causas, muitas vezes, difusas, isto é, sobre fatos e coisas que nos inquietam sem
que saibamos a razão. Podemos pensar, então, que a globalização não marcou
uma nova comunidade e sim uma generalização de processos de segurança
global. Por isso que o medo do século XXI não “faz mundo” como fazia o medo,
que unia forças, tal como compreendido por Hobbes. De fato, há uma longa
distância entre o medo que nos leva a agir em conjunto, enquanto comunidade, e
esse outro que nos dispersa porque as causas são difusas e os perigos estão em
muitos lugares.

É justamente sobre essa generalização do medo e da insegurança que se


fundam as teorias de segurança global em nome das quais a exceção da legítima
defesa foi transformada em regra em muitos lugares, de acordo com Delmas-
Marty (2010). Então, se no momento em que este texto é escrito temos, ainda, um
motivo real para termos medo e reagirmos solidariamente à sua causa
microscópica, parece ser procedente afirmarmos que o medo angustiado e incerto
que qualifica as nossas sociedades transformou-se em um motivo de mobilização
permanente do sistema global que segue o modelo neoliberal. A sociedade
ultraliberal atual ou, até mesmo, as democracias denominadas de iliberais, tem
submetido os indivíduos a formas de vida e produzido vulnerabilidades
extremas em que o medo angustiado tornou-se um efeito esperado.

Assim, não podemos esperar ter um “cosmopolitismo do medo”. Seria


uma verdadeira contradição porquanto o cosmopolitismo pressupõe instituições
e o mundo como horizonte do possível. Em outras palavras, o cosmopolitismo
manifesta-se, de um lado, contra o desejo contemporâneo de imunização
individualista e da vontade política de se proteger de toda a alteridade e, de
outro, em favor da comunidade. Em tal perspectiva, é preciso dizer, boa parte dos
SUMÁRIO

165
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

medos de hoje são solitários e acósmicos. Seu único horizonte é o da catástrofe e


o da destruição. Não deve existir espanto face à análise e tampouco a mesma pode
ser considerada pessimista. Assim, talvez seja mais pertinente admitirmos a
existência de uma globalização do medo produzida não para proteger, mas para
dominar. Foessel lembra que Merleau-Ponty fez uma distinção certeira entre o
que seja o “homem de Estado” e o “aventureiro”. O primeiro modifica o curso do
mundo, apoiando-se sobre as possibilidades ofertadas pelo seu mundo, enquanto
o segundo tenta fazer o mundo entrar em seu projeto particular. O aventureiro
procura convencer da sua verdade que repousa em sua vontade solitária,
comportamento que é próprio de governantes autoritários (FOESSEL, 2012).

Para renunciar a esse cenário sombrio que se abate sobre nós, é


importante verificar o que podemos aprender com as catástrofes e quais são as
possíveis respostas do direito de um ponto de vista cosmopolítico.

2. O cosmopolitismo de interação na prática da OMS e dos sistemas


regionais de direitos humanos com relação ao direito à saúde

Na segunda parte pretende-se assinalar práticas que contribuem para as


propostas de um cosmopolitismo de interação. Assim, em um primeiro momento,
tem-se a análise da atuação dessa instituição como referência cooperativa na
orientação e organização das medidas a serem adotadas pelos Estados em relação
à pandemia. Na segunda parte, consideram-se as reações das instituições
regionais de direitos humanos do continente europeu, americano e africano, de
forma a evidenciar o arranjo institucional para a construção dos horizontes
jurídicos orientados pelo cosmopolitismo de interação.

2.1. O cosmopolitismo de interação global: a prática da OMS

Como escapar dos efeitos da globalização dos medos? Fechar-se ao


nacional? Abrir-se ao global? De fato, a crise pandêmica global nos faz perguntar
como enfrentar os desafios reais que ela apresenta? Como identificar as causas
concretas que nos produzem medo e angústia? E qual é o papel do direito para
regular os efeitos presentes e futuros dos contextos de emergência.

A COVID-19 trouxe duas questões importantes para o mundo do


direito. A primeira foi despertar a comunidade jurídica global para o fato de que
SUMÁRIO

166 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

as pandemias consistem em um problema jurídico. A segunda foi colocar o direito


à saúde na condição de um direito humano autônomo.

Tratando-se de um problema global que não conhece fronteiras,


passamos a perguntar se o paradigma antropológico que divide o mundo entre
individualismo – ocidental – e holismo – oriental – e as diferenças jurídico-
políticas que colocam os universalistas de um lado e os soberanistas de outro,
ainda poderiam ser uma boa razão para encontrar as respostas que buscamos
diante da crise⁸.

Sabemos que as duplas individualismo-universalismo e holismo-


soberanismo reagrupam, cada uma, culturas e expectativas de vida diferentes.
Entretanto, diante dos riscos-destino comuns da humanidade, a explicação do
mundo pela lógica da separação já demonstrou, à saciedade, não ser o melhor
caminho.

O reducionismo dessas dicotomias não explica a intensa


permeabilidade entre atores, sistemas e fatores que formam a mundialização e,
para a qual, as fronteiras não significam mais do que símbolos ultrapassados. Por
isso, crises como essa que estamos vivendo e os riscos a que estamos
constantemente submetidos, nos convidam a pensar em termos de interação e não
de separação. A solidariedade, o cuidado com o outro e a cooperação constituem-
se nos pilares da prática da interação meio do discurso. Esse é a base do
universalismo de interação⁹, que se trata de uma categoria chave do conceito
desenvolvido por Benhabib (2005) para explicar a perspectiva cosmopolita de
democracia. Logo, a relação entre os três pilares reafirma direitos universalistas
como o direito à saúde e nos convoca a observar como tais direitos são tratados
pelas instituições legais e políticas e pela esfera pública das democracias
contemporâneas, que é composta pela comunidade.

Como refere Mireille Delmas-Marty (2020), nos casos de crises


sanitárias, necessitamos de comunidades nacionais para responsabilizar atores,
por exemplo, vinculados aos sistemas de saúde. Porém, mesmo que o

8 Tais reflexões foram desenvolvidas criticamente por DELSOL, Chantal. Le crépuscule de l’universel. Paris: Les
Éditions du Cerf, 202o, cap. 1.
9 Benhabib (2005, p. 25) diz que: “As interações democráticas são processos complexos de debate, deliberação e
aprendizagem públicos, através dos quais são contextualizadas, invocadas e revogadas as afirmações de
direitos universalistas em conjunto com as instituições legais e políticas, assim como a esfera pública das
democracias liberais.
SUMÁRIO

167
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

enfretamento dos problemas relacionados a pandemias, como a da COVID-19,


ocorra em nível local e é nos espaços geográficos dos Estados que as emergências
são mais visíveis e graves, trata-se de um problema mundial. O que constitui
nossa dignidade moral não é, então, o que nos diferencia e sim o que temos em
comum, na medida em que nossas diferenças não nos separam, mas, ao contrário,
nos complementam. É possível entender que o núcleo duro desse comum sejam
os direitos humanos, isto é, a base para a concepção da justiça global. Logo, os
direitos humanos podem ser considerados a “ideia” cosmopolita por excelência,
cuja substância ética é a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(WHEATLEY, 2005).

Na perspectiva do cosmopolitismo jurídico¹⁰ qualificado pela


interação¹¹, necessitamos da comunidade mundial não apenas para precisar os
objetivos comuns que digam respeito à humanidade como um todo,
independentemente dos vínculos territoriais de cada um de nós, mas também
para determinar as responsabilidades dos atores globais. A ideia de “outro
generalizado” que comanda o universalismo, conforme Benhabib (1992), deve
estar pautada numa ética de princípios comuns a todos. E a visão ética do cuidado
deve comandar o juízo particular concernente ao “outro concreto” que orienta o
pensamento relativista. A pandemia da Covid-19, pois, nos convida a abdicar da
separação entre o universalismo que supervaloriza o “o outro generalizado” e o
relativismo que se preocupa apenas com as particularidades do “self”.

Por essa razão, necessitamos abdicar do cosmopolitismo desencarnado,


então, restrito e abstrato, para ingressar no cosmopolitismo interativo do mundo
real e contextualizado. Isso significa que os atores globais, regionais, nacionais e
locais devem interagir reciprocamente e interagir na comunidade nos interesses
dela. Assim, Benhabib desenvolveu uma moralidade universalista que deve estar
baseada em princípios, de um lado, e, de outro, deve basear-se em juízos
contextualizados.

Nesse sentido, o papel desempenhado pela OMS, ao decretar estado de


emergência global em janeiro de 2020 na gestão da crise, deve ser levado a sério.
Se podemos pensar em um mundo em que o cosmopolitismo possa ser a

10 Nos permitimos citar aqui a obra: SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Cosmopolitismo jurídico. Teorias e práticas
entre globalização e mundialização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.
11 O qual será denominado por nós de cosmopolitismo de interação tomando-se emprestado a expressão de
Benhabid aplicada às interações democráticas. Veja-se: Benhabib (2005, p. 20).
SUMÁRIO

168 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

alternativa teórica e prática às fragilidades dos direitos nacionais e do direito


internacional, devemos reconhecer que um de seus pilares é a existência de
instituições que possam de fato e de direito balizar as questões que digam
respeito a toda a humanidade. Esse cosmopolitismo, portanto, só poderá ser o
cosmopolitismo institucional¹² de interações¹³, ou seja, aquele que intenta
apresentar respostas globais sem desconsiderar as realidades locais. Trata-se da
emergência da unidade na diferença que decorre do processo de transformação
produzido pela mundialização.

Podemos dizer que, no plano global, o Regulamento Sanitário


Internacional, da OMS, vinculativo para 196 países, é o documento normativo
baseado em princípios orientadores de condutas comuns às diferentes sociedades
que sofrem “em comum” o ataque do coronavírus. A regulação global de
questões que dizem respeito à humanidade significa a presença de elementos
normativos de justiça global que atualizam o cosmopolitismo kantiano baseado
na hospitalidade restrita ao direito de visitas ampliando-o para a concepção de
hospitalidade baseada na solidariedade, no cuidado e na cooperação. É
justamente em decorrência da necessidade que temos, no século XXI, de atualizar
o pensamento kantiano, alargando as mentalidades para que o cosmopolitismo
saia do campo da moral e entre no campo jurídico que ele passa a ser comum
diante dos problemas “comuns”. Ele sai do imaginário e entra no mundo da
experiência.

Devemos, pois, acreditar que esse cosmopolitismo de interações


depende de instituições fortes e atuantes. A decisão do então Presidente
americano Donald Trump, que determinou a suspensão da contribuição
americana a OMS, não deve causar surpresa. Desde 2014, durante o governo de
Barak Obama, os Estados Unidos criaram a Agenda de Segurança Global da
Saúde (GHSA, em inglês) em parceria com mais de 50 países e endossada pelo G7.
Essa agenda, ancorada nas percepções de ameaça à segurança nacional e
internacional de doenças infeccionas e que viabiliza investimentos estrangeiros

12 Cujo surgimento encontra justificativa no fim do modelo clássico de Estado, na emergência de riscos globais e
nos efeitos da redução do mundo e cujas características são: a) Novo uso do conceito de soberania; b) a
distinção de diferentes níveis de governança; c) o favorecimento da democratização da tomada de decisão; d)
as reformas institucionais; e) a realização de inovações institucionais e; f) o reconhecimento das vias não
institucionais. LOURME, Louis. Pourquoi le cosmopolitisme institutionnel? POLICAR, Alain (Dir.). Le
cosmopolitisme sauvera-t-il la démocratie? Paris : Classiques Garnier, 2019, p. 99-103.
13 Essa expressão é dos autores.
SUMÁRIO

169
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

de Estados poderosos em países em desenvolvimento, na sua grande maioria


países africanos, tem servido para reforçar a imagem dos Estados Unidos como
potência mundial, mas também para mostrar que os países desenvolvidos estão
mais preocupados em promover sua “blindagem” contra as pandemias. Evidente
a falta de interesse de promover, com os investimentos, a recuperação e/ou a
criação de eficientes serviços públicos de saúde nos países em desenvolvimento.¹⁴

Como a sensibilidade contextualizada é uma exigência da narratividade


das relações globais, no plano regional, instituições dos sistemas de direitos
humanos da Europa, das Américas e da África, preocupadas com as ações dos
Estados que decretaram estados de emergência ou de exceção em razão da
pandemia, manifestaram-se expressamente para orientá-los, baldadas as
restrições de direitos que são pertinentes no contexto das emergências, a manter
os standards regionais de direitos humanos. Respostas coletivas para problemas
comuns são, de fato, o caminho para a consolidação do que se convencionou
denominar de comum universal, reservando-se aos Estados as decisões sobre as
exigências particulares de cada sociedade.

2.2 O cosmopolitismo de interação regional: a prática dos sistemas


regionais de direitos humanos¹⁵

Com o propósito de assinalar processos que servem de exemplificação


do cosmopolitismo de interação para fazer face à pandemia da COVID-19, serão
apresentadas experiências no âmbito das instituições regionais de direitos
humanos da Europa, da América e da África. Em primeiro lugar, cabe mencionar
o Documento de Informação emitido pelo Conselho da Europa em 7 de abril de
2020. Em sua introdução, há ênfase na necessidade de resposta institucional
coletiva e articulada frente ao avanço da pandemia e de suas consequências, com
a advertência que o vírus está destruindo muitas vidas e muito daquilo que é caro
para a sociedade europeia, mas que não se deve permitir que ele também destrua
seus principais valores e as sociedades livres¹⁶. Assim, sustenta-se um diálogo

14 Veja-se: Khan (2016).


15 Não se desconhece que a boa técnica prima pelo equilíbrio entre as divisões estruturais de um texto acadêmico.
Apesar de ter sido observada essa orientação em relação às divisões principais, não foi possível preservar a
mesma simetria quanto às subdivisões da segunda parte, em virtude de seu escopo de análise ser
sensivelmente mais amplo do que o da primeira subdivisão.
16 “The virus is destroying many lives and much else of what is very dear to us. We should not let it destroy our
core values and free societies”. p.2
SUMÁRIO

170 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

entre a articulação institucional e o princípio de moralidade universalista


anteriormente referida.

O documento é organizado em cinco tópicos. O primeiro diz respeito ao


direito de derrogação previsto no art. 15 da Convenção Europeia de Direitos
Humanos (Convenção). Tal dispositivo permite que, em caso de guerra ou perigo
público, os Estados Partes suspendam o cumprimento de obrigações da respectiva
Convenção¹⁷, na proporção que a situação exigir e desde que essa suspensão não
atente contra outras obrigações do Direito Internacional. No entanto, antes do
exercício dessa opção, a posição do Conselho é de ressaltar que a própria
Convenção permite a relativização de alguns direitos, sem a necessidade de
derrogação¹⁸. Se, contudo, as medidas anteriores à derrogação, ainda assim, não
forem suficientes, o Conselho reforça que a hipótese de flexibilização da
Convenção é justamente para permitir a continuidade institucional, mesmo
durante os períodos mais conturbados da história. Percebe-se, assim, um ponto de
confluência entre as circunstâncias emergenciais nacionais e a preservação do
diálogo internacional, nos moldes próprios do cosmopolitismo interativo. Outro
ponto em que a prática cosmopolita fica evidente é no reconhecimento, por parte
do Conselho Europeu, que as autoridades nacionais estão mais legitimadas a
tomarem as decisões que sejam pertinentes à proteção de seu povo, de forma a
lhes conferir uma margem de apreciação nacional para a efetivação das medidas
de enfrentamento da pandemia e da avaliação sobre a derrogação da Convenção
Europeia, desde que, por certo, se observe o procedimento próprio, que inclui a
prestação de informações ao Conselho a respeito das medidas adotadas, suas
fundamentações e o tempo de vigência.

No segundo tópico, o texto sustenta a importância do respeito ao Estado


de Direito e aos princípios democráticos, a partir de quatro subtópicos. No
primeiro, há a defesa de que os Estados ajam sempre com base na legalidade,
ainda que em situações emergenciais. Assim, os atos do Poder Legislativo e os
decretos devem se atentar ao regime constitucional de cada Estado, bem como aos
padrões normativos internacionais. Se houver a delegação de poder do

17 Tal hipótese de derrogação não alcança o art. 2º (direito à vida, salvo em casos de guerra legal); art. 3º (vedação
à tortura e tratamento desumano ou degradante); art. 4º, §1º (proibição da escravidão); art. 7º (vedação de
punição sem lei anterior); e outros fora da Convenção, como os Protocolos n.º 6 e 13, e o art. 4º do Protocolo 7
(que impedem a derrogação da vedação à pena de morte e do direito de ser julgado e punido duas vezes).
18 Os exemplos mencionados no documento são os a) o art. 5º, § 1º, alínea “e” e §2º; arts de 8 a 11, da Convenção;
e o art. 2º, §3º do Protocolo n.º 4.
SUMÁRIO

171
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

Legislativo em favor do Executivo, isso deve ocorrer mediante o consentimento


da maioria e sempre nos termos procedimentais próprios. Em seguida, no
segundo subtópico, há o destaque para a necessidade de duração limitada do
estado de emergência, se for adotado, de forma que, cessadas as circunstâncias
que o originaram, volte-se imediatamente à normalidade. Por sua vez, no terceiro
subtópico, desenvolve-se o princípio da necessidade como referencial para a
legislação de emergência; tal princípio sustenta que as medidas adotadas devem
promover a mínima alteração das regras procedimentais e decisionais da
democracia. Por fim, o quarto subtópico chama a atenção para o equilíbrio entre
os Poderes. Apesar de reconhecer que nessas circunstâncias o Executivo deve
poder tomar decisões de forma mais célere, com eventual concentração de
poderes, inclusive de ordem federativa, tal condição não pode ocorrer à revelia do
controle exercido pelo Parlamento, no sentido tanto de revisar periodicamente a
necessidade de preservação desse arranjo emergencial, como também,
eventualmente, suspender decisões do Executivo que exorbitarem os parâmetros
procedimentais e materiais aqui definidos. A dissolução do parlamento não deve
ocorrer em nenhuma hipótese. Caso necessário, como indicação prática, o
documento destaca que as constituições de vários Estados determinam a
prorrogação dos mandatos em situações como essa.

Já o terceiro tópico aborda os padrões de direitos humanos a serem


observados. Além da dinâmica de conversações constitucionais, no sentido de
Neves (2009), pela interação entre as instâncias nacionais e internacional,
assinalado no primeiro tópico, e do diálogo institucional interno para preservação
do Estado de Direito, conforme desenvolvido no segundo, é possível que se
destaque, neste terceiro, aspecto fundamental para a caracterização do projeto
cosmopolita que se pretende. Isso porque tal projeto não se concretiza sem o
reconhecimento da centralidade e imperatividade do direito, que se torna via de
concretização, por meio do jus cogens, de valores morais, que não admitem
exceção nem em situações como a de uma pandemia¹⁹.

Os conteúdos que o documento considera como intransigíveis são


apresentados pelos quatro subtópicos que compõe a terceira parte do documento.
O primeiro diz respeito ao direito à vida (art. 2º), à proibição à tortura (art. 3º) e o
acesso à saúde (art. 11 da Carta Social Europeia Revista). Em relação aos dois
primeiros itens, reitera-se a impossibilidade de derrogação de seus dispositivos.
Já em relação ao acesso à saúde, deu-se ênfase à necessidade de que este seja
garantido às pessoas com privação de liberdade, em qualquer centro de detenção,
SUMÁRIO

172 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

reclusão, clínicas ou em áreas de quarentena e isolamento social, além da


necessária proteção aos trabalhadores desses locais. Em seguida, alerta-se para a
importância de que o acesso à saúde, como parte da proteção ao direito à vida e
vedação ao tratamento desumano e degradante, seja também assegurado aos
idosos e aos gravemente enfermos. A respeito da prescrição de medicamentos, há
uma importante referência que apresenta como parâmetro de ação os critérios
estabelecidos na Convenção relativa à Elaboração de uma Farmacopeia Europeia,
no sentido de garantir uma base jurídica e científica quanto à qualidade dos
medicamentos e seus componentes²⁰. Por fim, reiterou-se a necessidade de
prestação de informações à população sobre os comportamentos e orientações
para se evitar o contágio. O segundo subtópico diz respeito à liberdade e
segurança (art. 5º) e direito a julgamento justo (art. 6º). Assim, o documento
destaca que o art. 5º, §1º, alínea “e”, da Convenção prevê que é legítima a detenção
preventiva de quem pode espalhar uma doença infecciosa. No entanto, o
Conselho posiciona-se no sentido de que a medida de privação de liberdade
nestes casos deve ser tratada como último recurso. E, caso aconteça, que não haja
o prolongamento da detenção ou mesmo restrição do acesso ao poder judiciário,
sob pena de violação do próprio art. 5º, que fixa a liberdade como regra. Pondera-
se a possibilidade de derrogação de tal dispositivo com base no art. 15, já
mencionado; contudo, mesmo diante de tal hipótese, haveria a obrigação de
manter um processo justo, acesso a advogado e médico, se necessário, com
paridade de armas, presunção de inocência e preservação da imparcialidade
judicial.

19 Observa-se que a internalização de conteúdos morais pelo direito não ocorre como um fenômeno particular das
instituições associadas ao processo de mundialização, mas é possível de constar que esse fenômeno se afirma
como concepção para a caracterização do que significa Estado de Direito substancial, conforme Jacques
Chevallier (2013, p. 83-84): “Doravante, além da hierarquia de normas, o Estado de direito será entendido como
envolvendo a adesão a um conjunto de princípios e de valores que se beneficiarão de uma consagração jurídica
explícita e serão providos de mecanismos de garantia apropriados; assim, a concepção formal se encontra,
portanto, substituída por uma concepção material ou substancial, que engloba e a excede: a hierarquia das
normas se torna, ela mesma, uma das componentes do Estado de Direito substancial”. Assim, vê-se um nítido
itinerário entre os tópicos abordados pelo documento até aqui, uma vez que inicia preservando a conversação
constitucional entre as instâncias internacional e nacionais, seguida pela defesa do Estado de Direito e
equilíbrio dos poderes e, agora, com a defesa dos conteúdos mínimos de direitos fundamentais ante a situação
e crise.
20 A padronização na administração dos medicamentos e protocolos de tratamento é uma importante solução
conjunta que evita decisões inadequadas por parte dos chefes de Estado, como no caso do Brasil, com a
ostensiva orientação de uso por parte do Presidente da República em relação à Cloroquina, conforme registrado
por Libório; Fávero (2020), bem como no caso dos Estados Unidos, com a ingestão de desinfetante ou luz solar
que foram sugeridas pelo Presidente Donald Trump (EL PAÍS, 2020).
SUMÁRIO

173
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

No terceiro subtópico da terceira parte há a referência aos direitos de


privacidade (art. 8º), liberdade de consciência (art. 9, CE), liberdade de expressão
(art. 10) e liberdade de associação (art. 11). Assim, tem-se que,
independentemente se exercida com base na derrogação ou não, tais restrições de
atividades sociais habituais, locais de culto, reuniões públicas, cerimônias de
casamento e funeral devem sempre ocorrer com base nas Constituições de cada
Estado e mediante a legalidade devida, guardando sempre proporcionalidade
com o objetivo pretendido de preservação da saúde coletiva. Também se aborda a
necessidade de preservação de circulação de informações confiáveis à população,
relembrando-se os compromissos éticos dos meios de comunicação social, com a
devida precaução em relação à veiculação de conteúdos sem fundamentação ou
sensacionalistas. As informações públicas devem sofrer restrições somente em
casos de necessidade, sendo a transparência a regra. Também os agentes de
comunicação social devem ter a liberdade necessária, não apenas para informar,
mas também para realizar críticas às ações governamentais. Quanto à privacidade
e proteção dos dados, há o reconhecimento da importância da gestão de dados
para os cenários da emergência. Contudo, a sua coleta deve observar os princípios
estabelecidos pela Convenção 108 do Conselho Europeu, de forma a tomar as
precauções necessárias para que os dados referentes à privacidade, não-
necessários para as tomadas de decisão, sejam devidamente preservados. Por fim,
reitera-se a proibição de discriminação (art. 14, CE; art. 1º do Protocolo n.º 12;
artigo E da Carta Social Europeia). No sentido preconizado pelo documento, a
não-discriminação, além da abstenção de distinções entre as pessoas, converte-se
em uma obrigação positiva em relação ao Estado. Isso porque nas medidas
necessárias para o enfrentamento da crise, eventualmente, será preciso a
observação de políticas públicas que efetivem a igualdade no sentido material,
como o caso do direito à educação, uma vez que as populações em
vulnerabilidade social devem ter preservado o acesso com os meios e materiais
necessários em tempos de confinamento.

O quarto tópico refere-se à proteção da criminalidade e das vítimas de


crimes. Aqui o documento dirige sua atenção ao cometimento dos crimes que têm
sua incidência ampliada em virtude do confinamento social, como os que
envolvem violência doméstica, sexual e de gênero. Para tais casos há indicação de
observância da Convenção de Istambul. Também se sustenta a necessidade de
prover serviços de apoio e proteção às vítimas destes tipos de violência. O
Conselho se propõe a ser um meio de divulgação de boas práticas a respeito da
efetivação de canais alternativos para a realização das denúncias e adaptados à
SUMÁRIO

174 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

realidade das vítimas. Reforça-se, ainda, a importância de se considerar as


vítimas de tráfico humano. Outras práticas delituosas que o Conselho chama a
atenção dos governos são as que envolvem as fraudes online, bem como a
comercialização de medicamentos e testes falsificados para o diagnóstico da
COVID-19.

Por fim, o quinto tópico serve para reafirmar o Conselho como uma
referência para o continente europeu, resgatando sua origem, no pós-guerra,
como instituição para a preservação da paz e que agora serve para catalisar os
esforços de enfrentamento da pandemia pelas vias institucionais. Entre as
orientações finais, o documento destaca que a conjuntura da pandemia conduz à
necessidade de se “iniciar uma ampla reflexão sobre a proteção dos indivíduos e
dos grupos mais vulneráveis em nossas sociedades e sobre os meios de proteger
seus direitos em um modelo de governança mais sustentável e solidário”²¹, o que
é, em outras palavras, a busca pela concretização do cosmopolitismo de interação.

A segunda experiência de um cosmopolitismo de interação que se


pretende destacar é o do continente americano. O conteúdo da Resolução 1/2020
da CIDH, produzida pelas mãos de vários especialistas latino-americanos, é
estruturado em três principais tópicos: a) introdução; b) parte considerativa; c)
parte resolutiva. A primeira parte se revela como uma análise de conjuntura da
realidade jurídica e socioeconômica. A segunda parte do documento corresponde
à parte considerativa, que por sua vez se subdivide em quatro eixos. O primeiro
versa a respeito do acesso à saúde e outros direitos econômicos, sociais, culturais
e ambientais. O segundo eixo aborda a relação do estado de exceção, liberdades
fundamentais e Estado de Direito. O terceiro eixo remete à proteção dos grupos
em situação de vulnerabilidade especial. Por fim, o quarto eixo versa a respeito
da cooperação internacional e o intercâmbio de boas práticas.

A segunda parte apresenta os conteúdos que servirão de referência para


o tratamento com base nas 85 recomendações da parte resolutiva. As três
primeiras dizem respeito à necessidade de observância dos padrões
internacionais de direitos humanos, de forma a impedir que haja a violação por
parte dos Estados em relação a tais padrões e que também não sejam utilizadas
as possibilidades de restrições a direitos humanos como escusas para violações,

21 Among other things, a broad reflection will need to be initiated on the protection of the most vulnerable
individuals and groups in our societies and about the means to safeguard their rights in a more sustainable and
solidary governance model (CONSELHO EUROPEU, 2020. p. 9).
SUMÁRIO

175
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

bem como ao sistema democrático. Como parâmetros balizadores das medidas de


exceção, para que não se incorra em abusos, além da observação das orientações
técnicas da OMS e demais entidades de natureza semelhante, o documento
apresenta a legalidade, necessidade, proporcionalidade e temporalidade, de
forma exemplificativa.

Registra-se, dessa forma, uma preocupação semelhante àquela


constatada pelo Conselho Europeu em sua primeira parte, quando aborda a
possibilidade de revogação parcial e, posteriormente, na terceira parte, quando
apresenta conteúdos fundamentais de direitos humanos que devem ser
preservados mesmo diante da situação de crise e que também será desenvolvida
pelas recomendações de n.º 20 a 37 que serão descritas adiante.

No mesmo sentido se desenvolvem as recomendações de n.º 4 a 19 a


respeito dos Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DESCA).
Assim, pretende-se que as medidas dos Estados incorporem conteúdos básicos de
direitos humanos, como acesso à água potável, alimentação nutritiva, meios de
limpeza, entre outros. Em relação aos trabalhadores vulneráveis, sustenta-se que
recebam a proteção necessária, de forma a assegurar seus meios de subsistência.
Concomitante ao amparo nas evidências científicas, devem ser criados espaços
oportunos para a participação popular, no sentido de avaliação das políticas
adotadas e realização dos ajustes necessários. O documento reforça que o acesso
à saúde deve ocorrer sem discriminação, independentemente da natureza pública
ou privada do serviço. Já em relação ao acesso a medicamentos e tecnologias
sanitárias, recorda-se aos Estados a possibilidade de flexibilização ou exceção de
proteção à propriedade intelectual, de forma a evitar restrições a medicações
genéricas ou prática de preços abusivos, além da necessidade de se manter um
estoque em quantidades suficientes de insumos e equipamentos de proteção. Para
não se descuidar da proteção integral, também importa a manutenção dos
serviços de saúde mental. Já em relação às pesquisas a serem desenvolvidas, há
cuidados bioéticos imprescindíveis, como a proibição da submissão de pessoas a
experimentos científicos sem o seu livre consentimento. Considerando a natureza
prestacional dos direitos aqui mencionados, é recomendado que também haja um
ajuste na política fiscal para viabilizar a tutela efetiva, especialmente do direito de
acesso à saúde. Por outro lado, as medidas adotadas não devem acentuar as
desigualdades existentes na sociedade. Toda restrição aos direitos aqui
mencionados deve ser plena e estritamente justificada, sem prejudicar os
mecanismos de prestação de contas e nem acesso à justiça para o questionamento
SUMÁRIO

176 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

das medidas. Também se orienta a suspensão ou abatimento das dívidas externas


por parte dos Estados credores, bem como das sanções econômicas que podem
arrefecer o poder de reação dos Estados frente à pandemia. Por fim, destaca-se a
determinação para que os Estados fiscalizem as empresas, pretendendo que estas
também respeitem os princípios e regras de direitos humanos aplicáveis às suas
atividades.

Quanto à efetivação dos DESCA, não se perde de vista que há um forte


tensionamento entre o modo de produção capitalista e o regime político
democrático, a ponto de Morais (2008, p. 182) afirmar a sua incompatibilidade:
“Democracia como política e capitalismo como economia não formam um par
perfeito. Pelo contrário, são gêmeos da tradição liberal que trilham caminhos
distintos”. Porém, são justamente as possibilidades de controle e participação
democrática na tomada de decisão a respeito da alocação de recursos e efetivação
de políticas públicas que pode assegurar que a concretização dos direitos
fundamentais siga a métrica própria das necessidades das pessoas envolvidas e
não exclusivamente às urgências de mercado.

O próximo bloco de recomendações versa a respeito do estado de


exceção, restrições a liberdades fundamentais e Estado de Direito, e se desenvolve
entre os números 20 a 37. De forma semelhante ao que ocorreu com os registros
referentes ao sistema europeu, também a principal medida que aparece para
evitar o arbítrio das medidas tomadas durante a situação de emergência é a
observância da legalidade e uma proporcionalidade estrita entre a flexibilização
dos direitos e a finalidade legítima de proteção da saúde. Especificamente a
recomendação n.º 21 apresenta o estabelecimento de quatro requisitos para a
eventualidade da decretação do Estado de exceção: I) que se justifique a existência
de uma excepcionalidade de emergência pela sua gravidade, iminência e
intensidade ante uma ameaça real de independência ou segurança do Estado; II)
a suspensão dos direitos seja limitada estritamente ao tempo que a situação exigir;
III) que as medidas adotadas sejam o único meio de enfrentamento da situação e
que não causem um maior agravamento do que a ameaça que se pretende sanar;
e IV) que as disposições adotadas não entrem em conflito com outras disposições
de direito internacional e nem sejam fundadas em aspectos particulares como
sexo, raça, cor, idioma, religião ou origem social.

Seguindo a descrição da Resolução, em relação aos grupos em situação


de vulnerabilidade, as orientações 38 e 39 orientam para a garantia dos direitos
desses grupos e também ao combate dos estigmas relacionados com as pessoas
SUMÁRIO

177
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

que os compõem. O restante do documento apresenta recomendações específicas


para cada um dos grupos reconhecidos pela condição de vulnerabilidade. Desse
modo, são contempladas as pessoas idosas entre as recomendações de n.º 40 ao 44;
as pessoas privadas de liberdade entre as recomendações de n.º 45 e 48; as
mulheres entre as de n.º 49 a 53; os povos indígenas, pelas de n.º 54 a 57; as pessoas
migrantes, solicitantes de asilo, pessoas refugiadas, apátridas, vítimas de tráfico
de pessoas e deslocados internos entre as recomendações de n.º 58 e 62; as crianças
e adolescentes são abordadas pelas recomendações de n.º 63 e 67; os pertencentes
aos grupos LGBTI entre as recomendações n.º 68 a 71; os afrodescendentes entre
as de n.º 72 a 75; e, por fim, as pessoas com deficiência entre as recomendações de
n.º 76 a 80.

As conversações constitucionais também se fazem presentes, ainda que


sem a formalização de protocolos tão claros como no caso da experiência
europeia, no último tópico, que dialoga com o último eixo da segunda parte, que
diz respeito à cooperação internacional e se desenvolve entre as recomendações
de n.º 81 a 85. Assim, se reconhece que o enfrentamento da COVID-19 ocorre tanto
nas esferas internas quanto externas aos Estados. Para tanto, é imprescindível que
ocorra um intercâmbio técnico e regional para o estabelecimento de protocolos
padronizados em relação ao tratamento de dados e informações sobre a
pandemia. Também que se promovam mecanismos de cooperação como
ferramenta para ações conjuntas dos Estados. E, para finalizar, há o incentivo à
implementação de mecanismos de promoção, proteção e assistência técnica da
Comissão e suas relatorias especiais, como ferramenta de assistência e
fortalecimento dos esforços estatais para fazer frente aos desafios da crise
sanitária.

Em terceiro lugar, a experiência no âmbito do sistema africano de


direitos humanos, a CADHP (2020) orienta para os Estados (a) colocarem seus
serviços sociais e de saúde em alerta máximo, com o propósito de realizarem
ações preventivas baseadas nos direitos humanos; (b) seguirem as orientações
técnicas da OMS para estruturarem medidas preventivas; (c) garantirem que os
provenientes de Estados afetados e as pessoas contaminadas sejam tratados com
dignidade; (d) mobilizarem os recursos adequados para a realização de inspeções
nos pontos de entrada dos Estados, com a finalidade de identificar casos
suspeitos, indicar quarentenas e prestar auxílio para os contaminados; (e)
prestarem informações adequadas às suas populações, nos idiomas locais, com o
envolvimento dos líderes religiosos, comunitários e tradicionais; (f) assegurarem
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178 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

que os esforços de prevenção e contenção da COVID-19 contemplem os grupos


vulneráveis e marginalizados, sejam sensíveis às questões de gênero, e ainda
dispensem consideração especial às crianças e às pessoas com deficiência; (g)
alocarem os recursos necessários para que as equipes de saúde e os demais
envolvidos tenham equipamentos de proteção e suprimentos adequados; (h)
garantirem que as medidas adotadas para o enfrentamento da COVID-19 sejam
legais, proporcionais, necessárias e respeitem os direitos humanos; e (i)
estabelecerem sistemas eficazes e eficientes para monitoramento das medidas
adotadas, realizem correções e investigações nos casos de violações de direitos
humanos. Também o Relator Especial sobre prisões e condições de detenção e
ação policial na África exprimiu sua preocupação diante do uso excessivo da força
e de atos de abuso por parte das forças policiais e de segurança dos Estados
africanos durante os estados de emergência decretados em razão da pandemia
global. Entretanto, percebe-se que a CADHP (2020) tem apresentado orientações
procedentes da comunidade científica internacional para os Estados africanos que
dela são membros.

Portanto, os sistemas protetivos de direitos humanos, ao mesmo tempo


em que são desafiados a cumprir seus mandatos, também podem aproveitar a
crise pandêmica como uma excelente oportunidade para reafirmar a importância
da proteção internacional dos direitos humanos.

A existência de doenças contagiosas já há muitos anos tem estado ao


centro das ações de cooperação internacional, as quais dependem desse novo
desenho da soberania. Assim, o incremento dos deslocamentos humanos no
mundo, as novas fontes de doenças, os padrões de consumo global e os problemas
ambientais têm intensificado enormemente os níveis de interdependência da
saúde mundial. Ainda que organizações internacionais como a OMS tenham um
importante papel para ajudar os Estados a desenvolver suas capacidades de
enfrentar as crises, seria um objetivo demasiadamente pretensioso tentarmos
resolver as emergências sanitárias apenas pela via do universalismo.

Desse modo, não sendo plano o mundo real, toda crise, embora global,
deve ser contextualizada a partir de suas bases culturais, históricas, políticas e
sociais, isto é, a partir de sua extensão e profundidade. Por isso, aos Estados, na
condição de atores globais, deve ser resguardada uma margem nacional de
apreciação para avaliar e decidir sobre o que mais convém à sua comunidade.
Com isso temos, nas palavras de Delmas-Marty (2020), um “comum múltiplo”
que se situa entre uniformidade e pluralidade. E é justamente aqui que se situa a
SUMÁRIO

179
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

ideia de hibridismo²², ou seja, a crise sanitária produzida pelo COVID-19 somente


pode ser entendida e debelada a partir da ideia de rede. Nesse sentido, as notícias
internacionais dos dias em que a crise atingiu seu ápice na China não apenas
mostravam as medidas internas de isolamento social, de interdição de
deslocamentos, de fechamento absoluto da Província de Hubei, quanto
destacavam a morte dos primeiros médicos, a ausência de vacina, o desespero dos
pacientes e o apoio estatal à economia. Quando o vírus se espalhou pelo mundo,
nós vimos a repetição desses acontecimentos, com as variantes adequadas a cada
lugar. Assim, com relação ao COVID-19, a exemplo do que se passou com o vírus
HIV, médicos epidemiologistas, químicos, biólogos, industriais, especialistas de
várias áreas do conhecimento, vítimas e a população em geral, todos, mostraram
estar “engajados numa mesma história incerta”, como referiu Latour (1991, p. 8).
Uma história que começa em rede e que só assim poderá terminar.

Para Delmas-Marty (2020, p. 34), um ponto de saída para as crises em


que nos metemos pode ser delinear um “direito nacional internacionalizado” e
um “direito internacional contextualizado”. Se quisermos avançar para encontrar
respostas mais generosas e eficientes diante dos grandes desafios que nos são
impostos como esse da crise sanitária do coronavírus, talvez seja o caso, sim, de
ousarmos atualizar o pensamento kantiano da “paz perpétua” para encontrarmos
na hospitalidade que anima o cosmopolitismo jurídico não mais um “tolerável”
direito de visita ao estrangeiro, mas fazer dela a razão mais fundamental para
consolidarmos dispositivos de proteção solidária e em rede de bens comuns
mundiais, como a saúde.

Então, se é verdade que não podemos esperar tudo do universalismo,


na hora em que as epidemias acontecem na escala do mundo, em que só vemos
aumentar os riscos ecológicos à dimensão do planeta, em que as migrações só
tendem a aumentar como resposta à miséria, às guerras e à exclusão, buscar
respostas apenas nos círculos de solidariedade nacionais pode também ser
atitude obtusa e insuficiente diante dos riscos globais. Em verdade, as ameaças,
os desastres, as catástrofes e as pandemias têm a potencialidade de engendrar o
surgimento de uma solidariedade mundial e de reforçar a ideia sobre a
necessidade de construção de uma comunidade mundial “interestatal e

22 Toma-se de empréstimo as reflexões de Bruno Latour sobre o fato do hibridismo ser contrário a qualquer
pretensão unificadora. Nele percebe-se a mistura entre natureza e cultura e que se associa à ideia de rede.
LATOUR (1991. p. 10-22).
SUMÁRIO

180 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

interplanetária”, conforme Delmas-Marty (2010, p. 242), uma espécie de “sistema


multisolidário encaixado”, como afirma Paugam (2007, p. 970).

A intensa permeabilidade que caracteriza o padrão existencial deste


início de século e que envolve problemas comuns da humanidade exige que a
esses sejam dadas respostas múltiplas. No plano da economia é urgente que elas
transcendam as exigências do livre-mercado, da concorrência e do lucro a
qualquer preço. No plano político, juntamente com Delmas-Marty (2010),
devemos ter a sabedoria de construir uma forma de governabilidade que
compatibilize o saber científico, o querer da sociedade e o poder das instituições
públicas e privadas. No plano antropológico devemos suplantar o
individualismo e o holismo para ver emergir o hibridismo entre ambos. E no
plano jurídico devemos imaginar que o direito cosmopolítico pode ser a via para
reunir a solidariedade e a hospitalidade, ambas afastadas historicamente, seja
pelo predomínio da concepção de soberania nacional solitária, seja pela
concepção de direito internacional muito limitada aos interesses dos Estados.

Para vencer a COVID-19 e outras doenças pandêmicas que virão,


devemos praticar a utopia reconstrutiva. E, imediatamente, para torná-la real –
que é o destino de toda utopia – promover e praticar os círculos de solidariedade
que têm início na família, no bairro, nas cidades, no País e podem estender-se a
todo o planeta. Então, sim, poderemos pensar em outro mundo possível e não no
fim do mundo.

Considerações finais

O medo como sentimento político foi historicamente operacionalizado


para negligenciar os direitos humanos. Longe de resolver o problema, houve o
desenvolvimento de uma relação viciosa, onde quanto maior a vulnerabilização
da sociedade, mais se legitima o discurso político para a concentração de poder,
rupturas antidemocráticas e desintegração comunitária.

O medo globalizado é estéril de resultados humanitários, justamente


por cultivar apenas reações inspiradas pela disseminação do terror e do arbítrio,
seja nos atentados relatados ou no contexto da atual pandemia. A antítese desse
quadro pode ser estabelecida pelo cosmopolitismo, que longe de se revelar um
ingênuo negacionismo dos problemas concretos, pretende, a partir de ameaças
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181
Jânia Maria Lopes Saldanha
CAPÍTULO 9

globais como a que se estabelece pela disseminação da COVID-19, fazer frutificar


laços de soberania solidária e empática.

Não se tem nessa proposta uma simples abstração ou desejo distante.


Como se evidenciou na segunda parte, é possível encontrar espaços institucionais
que viabilizam uma prática cosmopolita concreta. Assim, destacou-se a atuação
da OMS na organização da cooperação internacional entre os Estados para que
haja sempre a indicação técnica necessária para a tomada de decisão
administrativa e alocação dos recursos pertinentes. Também a reação das
instituições regionais de direitos humanos, como o Conselho Europeu, a CIDH e
a CADHP, apresentaram elementos para guiar a atuação dos Estados Partes, sem
desconstituir a legitimidade das autoridades locais, mas de forma a catalisar
esforços que preservem a efetivação dos direitos humanos e permita o
estreitamento dos laços multisolidários.

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SUMÁRIO

Capítulo 10

“CONSTITUIÇÃO DA
EMERGÊNCIA”
uma proposta de solução para o conflito entre
os poderes na crise da Covid-19

José Rodrigo Rodriguez


SUMÁRIO

188 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

“CONSTITUIÇÃO DA EMERGÊNCIA”:
uma proposta de solução para o conflito entre os
poderes na crise da covid-19

José Rodrigo Rodriguez¹

1. A crise político-jurídica brasileira da covid-19


A atual crise do COVID pôs o Brasil diante de um problema muito grave
e jamais visto: um ocupante da Presidência da República que se põe publicamente
contra as recomendações da OMS, atualmente seguidas por todos os governos ao
redor do mundo, e defende a volta imediata das pessoas ao trabalho, contra as
melhores evidências científicas à nossa disposição, entrando em conflito aberto
com seu Ministro da Saúde e com boa parte de seu governo e com os demais
Poderes da República.

Tais conflitos resultaram na demissão de dois Ministros da Saúde ao


longo de 2021. Em alguns momentos, o atual ocupante da Presidência parece
moderar seu discurso, mas sem deixar de se esquivar da responsabilidade sobre
as medidas de isolamento social. Atribuiu a responsabilidade sobre tais medidas
a Prefeitos e Governadores, enfatizando sua preocupação com uma solução
“global” para o problema que inclua a preservação dos empregos. Em nenhum
momento o Presidente defendeu abertamente o isolamento social e as medidas
econômicas necessárias para sustentá-lo no curto prazo.

Por exemplo, em pronunciamento no dia 08/04/2020, desrespeitando as


regras de isolamento social, diante de seu então Ministro da Saúde, visitou um
hospital e andou por áreas residenciais e comerciais em Goiás (UOL, “Bolsonaro

1 Professor de Direito do PPG da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.


SUMÁRIO

189
José Rodrigo Rodriguez
CAPÍTULO 10

visita hospital em Goiás e tenta reaproximação com Caiado”, 11/04/2020). Como


reação a este comportamento, reiterado desde o começo da crise, o Ministro da
Saúde, parte de seu Ministério, quase todos os Governadores de Estado, o
Presidente da Câmara e Ministros do STF têm declarado abertamente que o
desrespeito às recomendações da OMS não será tolerado (G1, “Ao menos 25 dos
27 governadores manterão restrições contra coronavírus mesmo após Bolsonaro
pedir fim de isolamento”, 25/03/2020; UOL, “Maia: Fim do isolamento é pressão
de quem está 'perdendo dinheiro na Bolsa'”, 25/03/2020). Tal conflito tem se
repetido, quase nos mesmos termos, desde no ano passado.

Luís Roberto Barroso, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF),


concedeu medida cautelar para vedar a produção e circulação, por qualquer
meio, de qualquer campanha que pregue que “O Brasil Não Pode Parar”
divulgada pelo Governo Federal, ou que sugira que a população deve retornar às
suas atividades plenas; ou, ainda, que expresse que a pandemia constitui evento
de diminuta gravidade para a saúde e a vida da população. A decisão foi
proferida no âmbito das arguições de descumprimento de preceito fundamental
(ADPFs) 668 e 669, ajuizadas pela Rede e pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores Metalúrgicos (JOTA, “Barroso veda campanhas que sugiram que
população deve voltar às atividades plenas”, 31/03/2020).

Em uma decisão monocrática, também em pedido cautelar em uma


ação de descumprimento de preceito fundamental, mas proposta pela OAB, o
Ministro Alexandre de Morais do STF afirmou que o Presidente não tem poderes
para suspender as ações de isolamento social propostas por Estados e Municípios,
afirmando que o poder discricionário do Chefe do Executivo Federal é passível de
controle (JOTA, “Moraes: Planalto não pode suspender quarentena determinada
por estados e municípios”, 08/04/2020).

Ainda em 24/03/2020, o ministro Marco Aurélio de Mello do STF deferiu


em parte pedido de liminar do Partido Democrático Trabalhista (PDT) na Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341 para explicitar que as medidas
adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o
enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente, nem
a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo
Distrito Federal e pelos municípios. Na ação, o PDT pediu a suspensão da eficácia
de diversos dispositivos da MP 926/202. No dia 15/04/2020, o plenário do STF
decidiu a ADI 6341 por unanimidade, afirmando que o Presidente não pode
contrariar as decisões de Estados e Municípios a respeito do isolamento social
SUMÁRIO

190 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

(UOL, “STF dá poder a estados para atuar contra covid-19 e impõe revés a
Bolsonaro”, 15/04/2020).

Parece ter se formado uma espécie de “cordão de isolamento político-


jurídico” ao redor do Presidente com a finalidade de impedi-lo de tomar medidas
administrativas contrárias às recomendações da OMS, ainda que ele siga negando
seu apoio pessoal a elas em declarações e comportamentos públicos reiterados. A
CPI instaurada para investigar as políticas de combate ao COVID tem revelado
que o Presidente tem se aconselhado reiteradamente com médicos que defendiam
tratamentos não comprovados cientificamente.

Do ponto de vista da dogmática jurídica, ou seja, dos modelos


decisórios utilizados pelos organismos de poder jurisdicional, como afirmou a
decisão do Ministro Alexandre de Morais, o Presidente não está autorizado a
utilizar de sua discricionaridade administrativa para desrespeitar as
recomendações da OMS, as quais, vale notar, não têm força de lei.

São recomendações sem caráter coercitivo, editados por uma agência


das Nações Unidas. Normas que alguns analistas chamariam de “soft law”, ainda
que tenham sido incorporadas sem divergência às práticas cotidianas de uma
série de agentes públicos e possam ter promovido transformações na estrutura
administrativa do Estado, mesmo sem passar pelo Parlamento (para um estudo
deste fenômeno, ver SHAFFER, 2012).

Diante destes problemas, a tarefa específica da pesquisa em Direito é


refletir sobre possíveis modelos regulatórios capazes de lidar com os problemas
que estamos enfrentando – e podemos voltar a enfrentar em novas pandemias –
para tornar as decisões dos organismos de poder cada vez mais racionais, ou seja,
nos marcos de nossa Constituição, cada vez mais democráticas. No caso da crise
atual, trata-se de perguntar:

a) Ainda que o atual arranjo institucional esteja sendo efetivo


em garantir em parte o cumprimento das recomendações da
OMS pelo Estado brasileiro, ele oferece segurança jurídica
para as pessoas cidadãs brasileiras?
b) Este mesmo arranjo é legítimo, ou seja, ele promove uma
boa relação entre direito e democracia levando em conta a
nossa realidade institucional?
c) Se a resposta às duas perguntas anteriores for negativa,
quais seriam as mudanças necessárias para tornar este arranjo
mais seguro e mais legítimo?
SUMÁRIO

191
José Rodrigo Rodriguez
CAPÍTULO 10

Este modo de encarar o problema considera que o papel da pesquisa em


direito é fiscalizar o poder – público e privado – para evitar sua atuação
autárquica que pervertem o Direito (RODRIGUEZ, 2019), ou seja, em desrespeito
aos princípios do estado democrático de direito, quais sejam, o respeito aos
direitos fundamentais e a possibilidade de participação de todos os cidadãos na
elaboração das regras que regulam a sua vida, seja por meio do voto, seja por meio
de mecanismos consultivos e de participação direta.

Nesse sentido, em face da atual presteza do Congresso Nacional em


aprovar uma série de medidas consideradas importantes para o Brasil no combate
aos efeitos da crise desencadeada pela crise da COVID-19, ao propor uma reflexão
sobre o problema jurídico da emergência, este texto buscará articular também
algumas sugestões de modificação constitucional capazes de dar conta do
problema que estamos enfrentando.

Sugestões que serão feitas sob a forma de alguns parâmetros, algumas


ideias gerais que podem vir a inspirar os agentes sociais e os agentes políticos a
elaborarem um modelo institucional mais seguro e legítimo para lidar com
situações análogas que enfrentemos no futuro, quem sabe uma “constituição da
emergência”, não sem antes analisar com bastante cuidado as características dos
problemas que estamos enfrentando.

2. O problema jurídico da emergência

O problema jurídico da emergência reside na dificuldade de impor


padrões decisórios a organismos de poder que precisam agir com rapidez para
enfrentar situações singulares, impassíveis de padronização. Situações que não
podem ser avaliadas a partir de normas gerais criadas previamente pelas fontes
de direito, reconhecidas como tais por um determinado ordenamento jurídico.
Situações que demandam juízos sensíveis, ou seja, que procurem construir
arranjos decisórios fundamentados em um exame profundo das características
singulares do caso concreto (GÜNTHER, 1993; RODRIGUEZ, 2020).

A combinação da urgência com o caráter singular do problema social a


ser enfrentado parece frustrar, de saída, a possibilidade de regular a emergência
com a utilização de normas gerais de comportamento, instrumentos capazes de
antecipar as alternativas futuras para a atuação dos organismos do poder. Em
SUMÁRIO

192 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

uma palavra, o problema da emergência reside na necessidade paradoxal de


regular a incerteza, ou, como afirmam Carvalho & Damascena, promover a
“racionalização das incertezas” (CARVALHO, DAMASCENA, 2013: posição 639).

Como mostra o amplo estudo de Clement Fatovic, juristas liberais


sempre refletiram sobre o problema da emergência, a começar por John Locke e
pelos pais fundadores da Constituição dos EUA, que reconheciam a necessidade
de atribuir poderes discricionários ao Executivo para lidar com estas situações,
cientes dos riscos de arbítrio que a excessiva concentração de poderes poderia
provocar (FATOVIC, 2009: 4,17).

Em face de situações como as descritas acima, é possível identificar três


estratégias diferentes de regulação, as quais podem ser combinadas de várias
maneiras. A primeira estratégia regulatória diz despeito à autoridade responsável
por tomar decisões em face da situação excepcional e/ou de emergência. É
possível atribuir tal responsabilidade a uma pessoa específica – por exemplo, o
Chefe do Executivo no estado de sítio – ou a um grupo de pessoas – por exemplo,
um órgão do Estado já existente ou um organismo especialmente criado para lidar
com a situação, eventualmente assessorado por um corpo técnico.

A segunda estratégia regulatória diz respeito ao procedimento


decisório. É possível criar regras específicas para lidar com a situação de incerteza
(e/ou emergência), por exemplo, requisitos específicos para a sua identificação,
eventual decretação e duração. Também regras que procurem estabelecer limites
ao comportamento das autoridades em face do problema a ser enfrentado,
atribuindo a elas maior ou menor margem de manobra, por exemplo, na restrição
de direitos fundamentais. Já em outros casos, será possível lidar com a situação
utilizando os procedimentos normais estabelecidos para regular o funcionamento
dos organismos do Estado.

Finalmente, é possível estabelecer objetivos genéricos para a atuação da


autoridade responsável por enfrentar a situação excepcional e/ou urgente,
objetivos fixados em princípios gerais ou em standards de comportamento a
serem seguidos ou, de outra parte, fixar objetivos específicos que possam ser
contabilizados e quantificados a posteriori.

É fácil imaginar e antecipar os riscos envolvidos nas três estratégias de


regulação. Por exemplo, a atribuição de muito poder por tempo indeterminado e
sem restrições procedimentais a uma pessoa ou organismo específico parece
SUMÁRIO

193
José Rodrigo Rodriguez
CAPÍTULO 10

aumentar o risco de arbítrio e, até mesmo, pode criar condições para a


implantação ou para o aprofundamento de regimes autoritários.

Historicamente, a decretação de emergência esteve na origem de golpes


de Estado que promoveram a instituição de regimes autoritários, como ocorreu
na Alemanha de Weimar. O movimento que deu origem ao regime nazista teve
como um de seus momentos cruciais a utilização de poderes excepcionais pelo
chefe de Governo justificado por uma interpretação muito contestada da
Constituição (RODRIGUEZ, 2009).

Durante a pandemia tivemos notícias de movimentos de concentração


de poderes nas mãos do Executivo, por exemplo, na Hungria, país em que há
sinais da implantação de uma ditadura declarada sob o pretexto do combate à
pandemia, aprofundando um processo de destruição da democracia que já estava
se desenrolando (UOL, “Com 'lei do coronavírus', nasce uma ditadura na
Hungria”, 30/03/2020).

Além disso, essa estratégia mostra-se excessivamente dependente das


virtudes dos ocupantes dos cargos de governo – no caso brasileiro, das virtudes
do Presidente da República. Um desenho institucional como este, se
experimentar o mandato de pessoas como o atual ocupante da Presidência da
República, pode colocar muitos obstáculos ao cumprimento de recomendações
técnicas, por exemplo, no campo da saúde, que podem ser preteridas em razão de
estratégias político-eleitorais.

3. Direito, política e ciência

Este texto não considera que o debate técnico-científico deva ser isolado
do debate político, do debate na esfera pública (HABERMAS, 2014; NEUMANN,
2013b, FEENBERG, 1991). A relação entre política, ciência e direito vem sendo
debatida há muito tempo em diversas tradições intelectuais, também no campo
da Teoria Crítica, no qual me situo. Não há espaço para mostrar todos os
desdobramentos do problema neste texto.

No entanto, cabe sustentar aqui que nem sempre os cientistas das mais
diversas áreas formam consensos a respeito dos mais variados assuntos e, além
disso, a sociedade deve ter a possibilidade de fazer escolhas sobre as políticas
públicas que deseja adotar a partir dos marcos estabelecidos pela ciência.
SUMÁRIO

194 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Para uma concepção democrática da ciência e da tecnologia, o


conhecimento nestas áreas não deve ser encarado como uma autoridade com
vontade unívoca que deve ser obedecida sem debate. Ciência e tecnologia
exercem tanto o papel de controle instrumental da sociedade quanto um papel
democrático, desde que sejam racionalizadas, ou seja, submetidas aos interesses
da sociedade e não pensada exclusivamente à luz de sua função na solução de
determinados problemas, como veremos adiante (FEENBERG, 2009: 149).

Para Andrew Feenberg, toda tecnologia possui um código técnico, ou


seja, as normas funcionais que presidem o seu funcionamento e os interesses
sociais que entram em jogo em sua construção e desenvolvimento (FEENBERG,
2002: 76-77). A dimensão subjetiva do código técnico reside, assim, nos interesses
sociais que atuaram na sua constituição e que determinam a sua reprodução.

É isso que explica, por exemplo, que haja várias configurações em seus
dispositivos, que nem sempre haja consenso a respeito de regras técnicas. Isso
também explica as assimetrias de poder no processo de desenvolvimento
tecnológico, por exemplo, as classes dominantes costumam ter mais poder sobre
este processo do que as classes dominadas.

Para os objetivos deste texto, podemos afirmar, portanto, que a ciência


e a tecnologia produzem informações que podem ser testadas racionalmente, mas
que não costumam apontar, por exemplo, para uma determinada política pública
como se ela fosse a única escolha possível. Conflitos e disputas entre os diversos
agentes sociais podem resultar em diferentes configurações dos dispositivos
tecnológicos, os quais podem motivar diferentes políticas públicas; também
podem resultar em mudanças tecnológicas profundas que alterem os dispositivos
de maneira ainda mais radical.

Por isso mesmo, e aqui a reflexão de Feenberg não nos ajuda muito, é
preciso disciplinar tais conflitos sociais com a construção de instituições
democráticas capazes de ouvir os diversos interesses, permitindo que a
configuração dos dispositivos tecnológicos e suas eventuais transformações
levem em conta a racionalidade científica. Para atingir este objetivo, ao que tudo
indica, as eleições majoritárias não são suficientes.

A estratégia institucional adotada em diversos países para atingir este


objetivo tem sido a criação de comitês de especialistas com a finalidade de
aconselhar os organismos decisórios (JOSANOFF, 1994). E esta não é uma
estratégia isenta de críticas. Como aponta Josanoff, a atividade das agências não
SUMÁRIO

195
José Rodrigo Rodriguez
CAPÍTULO 10

é estritamente científica, ela é “uma atividade híbrida que combina elementos de


evidência científica e avaliação racional com grandes doses de juízos sociais e
políticos” (JOSANOFF, 1994: posição 2921).

Na linguagem de Feenberg, trata-se de uma atividade que explicita o


fato de que o código técnico possui uma dimensão objetiva, relacionada à
funcionalidade das políticas públicas, e uma dimensão subjetiva, relacionada aos
interesses sociais envolvidos nas mesmas. A depender do desenho dos Comitês,
portanto, a funcionalidade ou os interesses sociais envolvidos podem ficar em
segundo plano ou não.

4. O Direito brasileiro entre racionalidade e irracionalidade

A situação que estamos enfrentando não parece se enquadrar com


facilidade no tipo de conflito examinado por Feenberg e Josanoff, ou seja,
conflitos entre agentes sociais que aceitam a ciência e a tecnologia como formas
de saber ambíguas, ou seja, tensionadas, de um lado, pela funcionalidade e, por
outro lado, pelos interesses sociais.

O atual ocupante da Presidência da República age e se manifesta


publicamente, negando abertamente as recomendações da OMS e as
recomendações da maior parte dos economistas, que também tem tomado as
recomendações desta agência como ponto de partida inquestionável. Suas
atitudes mostram que ele nega a ciência como esfera autônoma, ou seja, parece
negar a sua funcionalidade específica, procurando submetê-la a uma
racionalidade completamente diferente, uma mistura de fundamentalismo
religioso, fundamentalismo de mercado com referências a uma suposta ciência
alternativa ou pervertida (RODRIGUEZ, 2019).

A tarefa das instituições democráticas neste caso é muito complexa. Não


é possível negar a legitimidade do Presidente para defender a sua agenda política
e, ao mesmo tempo, é claramente inconstitucional deixar de ouvir os agentes
sociais que pensam cientificamente e os organismos técnicos que fazem parte da
estrutura do Estado brasileiro e são responsáveis pela efetivação do direito à
saúde, consagrado nos Arts. 6º e 196º da Constituição Federal.

Não vivemos em uma Monarquia, mas em uma República democrática.


Há toda uma estrutura institucional montada e competente para atuar neste
campo, ao menos desde a promulgação da Constituição em 1988, que tem
SUMÁRIO

196 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

resistido abertamente às atitudes do Presidente, com o apoio aberto dos Poderes


Legislativo, Judiciário e por uma parcela do próprio governo federal.

A concentração de poderes excessivos nas mãos do Governo Federal


para traçar as estratégias de combate à COVID-19, mais especificamente, nas
mãos do atual Presidente da República, tem gerado, a meu ver, conflitos entre a
pauta político-eleitoral, a pauta econômica e a pauta de saúde relacionada ao
problema.

O Presidente tem se recusado a levar em consideração e a suportar o


peso político das decisões relacionadas aos aspectos de saúde do problema,
provavelmente pensando nas próximas eleições e nas promessas que fez ao seu
eleitorado e a seus aliados.

Ele também tem relutado em se identificar com medidas interventivas


do Estado na economia relacionadas à estratégia de isolamento social,
defendendo a volta ao trabalho e da retomada da atividade econômica. Apesar de
ter afirmado que pretende adotar uma visão global do problema, ao confrontar
abertamente as recomendações da OMS, o atual ocupante da Presidência mostra
que, na verdade, põe a questão médica em segundo plano.

Deixando de lado as atitudes pessoais do Presidente e pensando nos


problemas que estamos enfrentando a partir dos modelos de regulação que
elencamos acima, podemos interpretar esta situação como um problema
regulatório que vai além das idiossincrasias do atual ocupante da Presidência.

Suas atitudes ajudam a tornar o problema muito claro e parecem sugerir


medidas que apontem na direção de uma reforma constitucional pontual ou mais
profunda. Até porque, ao que tudo indica, o mesmo problema parece ter se
manifestado nos Estados Unidos e na Inglaterra, lugares em que o Chefe do
Governo, a princípio, não desejava paralisar a atividade econômica e adotar
medidas interventivas e protetivas no campo econômico, ainda que nestes três
casos a radicalidade do chefe do Executivo em defender medidas contra a
racionalidade da ciência tenha sido muito menor.

Seguindo esta ordem de razões, fica evidente que as eleições


majoritárias e proporcionais estão se revelando insuficientes, nestes três casos,
para legitimar e motivar o Chefe de Governo a adotar medidas que andam na
contramão de suas promessas de campanha e contariam os acordos políticos que
promoveram sua eleição e sustentam o seu Governo.
SUMÁRIO

197
José Rodrigo Rodriguez
CAPÍTULO 10

Mesmo que tais medidas sejam defendidas como inquestionáveis e


necessárias para preservar vidas, na visão da maior parte dos especialistas de
todas as áreas, adotá-las e defendê-las abertamente pode significar um suicídio
político-eleitoral para estas figuras políticas, especialmente para o atual
Presidente do Brasil, uma liderança que ascendeu ao poder atacando a razão e a
ciência, defendendo uma versão conservadora e radical do cristianismo e
abraçando uma pauta econômica ultraliberal.

Uma análise fria do impasse exige que se diga que não soa razoável
exigir de um agente político legitimado pelo voto popular em aliança com forças
ultraliberais, mesmo que tenha traços fundamentalistas, que ele corra o risco de
cometer um suicídio político ao adotar uma pauta não religiosa, iluminista e
racional, adotando de bom grado políticas protetivas e de intervenção na
economia. Uma exigência assim não soa institucionalmente razoável, posto que o
Chefe do Executivo venceu uma eleição majoritária em um sistema
Presidencialista.

Além disso, o referido “cordão de isolamento político-jurídico” que


garante que as medidas da OMS sejam respeitadas, em geral parece depender
demais da atual configuração da Câmara e do Supremo Tribunal Federal, uma
corte que decide por maioria de votos e não forma uma jurisprudência racional e
vinculativa, como eu mostrei longamente no meu “Como Decidem as Cortes”
(RODRIGUEZ, 2013). Caso a Câmara tivesse outra composição e maior parte dos
Ministros fosse alinhada com o Presidente, o desfecho de todos esses conflitos
poderia ser bem diferente.

Para evitar que o Brasil corra este mesmo risco no futuro, mesmo em um
futuro próximo, pode ser uma boa ideia refletir sobre a necessidade de criar algo
semelhante a um “estado de emergência médico” com sede constitucional, talvez
como um mero adendo à regulação de emergência já existente, que impusesse
explicitamente o dever constitucional de seguir os conselhos das agências
especializadas nacionais e internacionais em caso de declaração de uma
pandemia em escala mundial.

Outra medida desejável pode ser a criação do dever constitucional de


criar um “comitê especial para gestão de crises”, com forte presença de cientistas
e técnicos do campo da saúde. Um comitê que concentraria temporariamente
parte do poder executivo no enfrentamento da crise; tudo mediante autorização
pela maioria absoluta do Congresso Nacional e por um prazo determinado,
SUMÁRIO

198 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

renovável caso haja necessidade. Este comitê deveria funcionar em articulação


com um “fórum de governadores”, a ser formado na mesma ocasião, reunindo
representantes de todos os governos Estaduais para buscar uma boa articulação
das políticas emergenciais ao redor do país.

O referido comitê poderia ser dotado de competência para propor


projetos de lei ao Congresso Nacional e contar não apenas com membros do
Governo e funcionários do Estado, mas também com especialistas recrutados na
sociedade civil, membros do Governo e representantes do Legislativo e
Judiciário, sob a coordenação direta do Ministério da Saúde, resguardado o poder
de veto do Presidente da República.

Ademais, ele poderia contar com um braço econômico-jurídico,


também formado por representantes do Governo, funcionários especializados do
Estado e representantes da sociedade civil, destinado a propor e a mediar a
repactuação de contratos em todos os setores da economia, atuando ao lado dos
Ministérios responsáveis por adotar medidas econômicas e assistenciais de
proteção às empresas e aos trabalhadores formais e informais.

Não tenho uma visão detalhada de como este organismo poderia ser
desenhado, mas, ainda que descrito em suas feições gerais, ele poderia ser útil
para aliviar o Chefe do Executivo do peso político-eleitoral de decisões que
contrariem abertamente a sua agenda política e frustrem os acordos políticos que
ele foi capaz de articular para ascender e se manter no poder, além de garantir a
funcionalidade das medidas técnicas necessárias para combater a pandemia.

Medidas desta natureza já estão sendo tomadas: foi formado um fórum


de governadores que está debatendo articuladamente as políticas de combate à
Covid-19 e, no nordeste, foi formado um comitê científico para a mesma
finalidade, Comitê Científico do Consórcio Nordeste, que será coordenado pelo
cientista Miguel Nicolelis e pelo físico e ex-ministro de Ciência e Tecnologia,
Sérgio Rezende (G1, “Grupo formado por governadores do Nordeste cria comitê
científico para combate ao coronavírus”, h�ps://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/
2020/03/31/grupo-formado-por-governadores-do-nordeste-cria-comite-
cientifico-para-combate-ao-coronavirus.ghtml, 31/03/2020.) Estas duas
experiências institucionais podem ajudar a refletir sobre a configuração de uma
legislação constitucional a respeito de emergências médicas.
SUMÁRIO

199
José Rodrigo Rodriguez
CAPÍTULO 10

Considerações finais

De acordo com especialistas no assunto, esta é apenas a primeira


experiência de uma pandemia de dimensões globais. Biólogos e médicos
epidemiologistas já nos alertam há muito tempo que eventos como este podem se
suceder nos próximos anos, o que significa que conflitos como os que estamos
vivendo tendem a se repetir em um futuro próximo, colocando em risco a
população brasileira diante da falta de instituições capazes de lidar com esta
espécie de problema.

Evidentemente, para além deste possível mecanismo de gestão da crise


e a previsão de um “estado de emergência médico”, há diversas outras medidas
a serem tomadas para racionalizar a incerteza de acontecimentos como este que
estamos vivenciando. A gestão de um problema como este não pode começar com
a sua eclosão, mas demanda medidas de prevenção com a construção de uma
série de instituições que reúnam e difundam informações por toda a população e
sejam capazes de desenhar previamente planos para lidar com o problema
quando ele ocorrer.

Especialistas brasileiros no assunto, como Carvalho & Damascena, há


muitos anos vem alertando a esfera pública brasileira sobre a necessidade
prevenir futuros desastres com a adoção de uma política consistente de gestão de
risco que inclua ações de prevenção, mitigação, previsão de respostas
emergenciais, compensação e reconstrução (CARVALHO & DAMASCENA, 2013:
posição 2022). Ao se tomar como padrão as medidas citadas como necessárias
pelos especialistas, fica claro que o país, e não este governo específico, ainda não
foi capaz de desenhar e articular uma estratégia minimamente organizada para
lidar com eventos desta magnitude.

Referências

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dos Desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

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John Hopkins University Press, 2009.

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University Press, 1991.
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Technology. Oxford: Blackwell Publishing, 2009.

GÜNTHER, Klaus, The Sense of Appropriateness. Application and Discourses


in Morality and Law. New York: SUNY, 1993.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como “Ideologia”. São Paulo: Unesp,


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JOSANOFF, Sheila. The Fifth Branch. Science Advisers as Policymakers.


Cambridge, MA: Harvard University Press, 1994.

NEUMANN, Franz. O Império do Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2013a.

______. “O Conceito de Liberdade Política”. Cadernos De Filosofia Alemã:


Crítica e Modernidade, v. 22, pp. 107-154, 2013b.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito: Um Ensaio sobre o Direito


Contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009.

_____. Como Decidem as Cortes? Para uma Crítica do Direito (brasileiro). Rio de
Janeiro: FGV, 2013.

_____. Direito das Lutas. Democracia, Diversidade, Multinormatividade. São


Paulo: LiberArs, 2019.

_____. “Multinormatividadecomo Teoria do Direito: Por um Universalismo Sensível”,


In: BRAGATO, Fernanda Frizzo; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo
(Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-
Graduação em Direito da Unisinos. Nº 16. São Leopoldo: Karywa, Unisinos, 2020, pp.

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SCHAFFER, Gregory (ed.). Transnational Legal Ordering and State Change.


Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
SUMÁRIO

Capítulo 11

POSITIVISMO E
LITERALISMO:
o caso do art.45 do Regimento Interno do
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
(CARF) e o “crime de hermenêutica”

Lenio Luiz Streck


SUMÁRIO

202 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

POSITIVISMO E LITERALISMO: o caso do art. 45


do Regimento Interno do Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais (CARF) e o “crime de hermenêutica”

Lenio Luiz Streck¹

1. Às raízes da controvérsia: desmistificando o(s) positivismo(s)

Quando falamos em positivismos e pós-positivismos, torna-se


necessário, já de início, deixar claro sobre “o quê” estamos falando. Com efeito,
de há muito minhas críticas são dirigidas primordialmente ao positivismo pós-
kelseniano, isto é, ao positivismo que admite discricionariedades (ou
decisionismos e protagonismos judiciais).

Isto porque considero, no âmbito destas reflexões e em obras como


Verdade e Consenso², superado o velho positivismo exegético. O que resta é um
textualismo de conveniência, sem critério e sem coerência.

Ou seja, não é (mais) necessário dizer que o “juiz não é a boca da lei”
etc.; enfim, podemos ser poupados, nesta quadra da história, dessas “descobertas
polvolares”. Isto porque essa “descoberta” não pode implicar um império de
decisões solipsistas, das quais são exemplos as posturas caudatárias da
jurisprudência dos valores (que foi “importada” de forma equivocada da
Alemanha), os diversos axiologismos, o realismo jurídico (que não passa de um
“positivismo fático”), a ponderação e suas vulgatas (pelas quais o juiz
literalmente escolhe um dos princípios que ele mesmo elege prima facie), etc. Ou
ao menos assim deveria ser.
1 Doutor em Direito do Estado (UFSC); Pós-Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica (Universidade de
Lisboa); Professor Titular da Unisinos, Rio Grande do Sul, Brasil.
2 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
SUMÁRIO

203
Lenio Luiz Streck
CAPÍTULO 11

Explicando melhor: o positivismo é uma postura científica que se


solidifica de maneira decisiva no século XIX. O “positivo” a que se refere o termo
positivismo é entendido aqui como sendo os fatos (lembremos que o
neopositivismo lógico também teve a denominação de “empirismo lógico”).
Evidentemente, fatos, aqui, correspondem a uma determinada interpretação da
realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir, pesar ou, no
limite, algo que se possa definir por meio de um experimento.

No âmbito do direito, essa mensurabilidade positivista será encontrada


num primeiro momento no produto do parlamento, ou seja, nas leis, mais
especificamente, num determinado tipo de lei: os Códigos. É preciso destacar que
esse legalismo apresenta notas distintas, na medida em que se olha esse
fenômeno numa determinada tradição jurídica (como exemplo, podemos nos
referir: ao positivismo inglês, de cunho utilitarista; ao positivismo francês, em
que predomina um exegetismo da legislação; e ao alemão, no interior do qual é
possível perceber o florescimento do chamado formalismo conceitual que se
encontra na raiz da chamada jurisprudência dos conceitos). No que tange às
experiências francesas e alemãs, isso pode ser debitado à forte influência que o
direito romano exerceu na formação de seus respectivos direitos privados. Não
em virtude do que comumente se pensa – de que os romanos “criaram as leis
escritas” –, mas sim em virtude do modo como o direito romano era estudado e
ensinado. Isso que se chama de exegetismo tem sua origem aí: havia um texto
específico em torno do qual giravam os mais sofisticados estudos sobre o direito.
Este texto era – no período pré-codificação – o Corpus Juris Civilis.

A codificação efetua a seguinte “marcha”: antes dos códigos, havia uma


espécie de função complementar atribuída ao Direito Romano. A idéia era
simples, aquilo que não poderia ser resolvido pelo Direito Comum, seria
resolvido segundo critérios oriundos da autoridade dos estudos sobre o Direito
Romano – dos comentadores ou glosadores. O movimento codificador
incorpora, de alguma forma, todas as discussões romanísticas e acaba “criando”
um novo dado: os Códigos Civis (França, 1804 e Alemanha, 1900).

A partir de então, a função de complementariedade do direito romano


desaparece. Toda argumentação jurídica deve tributar seus méritos aos códigos,
que passam a possuir, a partir de então, a estatura de verdadeiros “textos
sagrados”. Isso porque eles são o dado positivo com o qual deverá lidar a Ciência
do Direito. É claro que, já nesse período, apareceram problemas relativos à
interpretação desse “texto sagrado”.
SUMÁRIO

204 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

De algum modo, perceber-se-á que aquilo que está escrito nos Códigos
não cobre a realidade. Mas, então, como controlar o exercício da interpretação do
direito para que essa obra não seja “destruída”? E, ao mesmo tempo, como excluir
da interpretação do direito os elementos metafísicos que não eram bem quistos
pelo modo positivista de interpretar a realidade? Num primeiro momento, a
resposta será dada a partir de uma análise da própria codificação: a Escola da
Exegese, na França, e a Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha.

Esse primeiro quadro eu menciono, no contexto de minhas pesquisas –


e aqui talvez resida parte do “criptograma do positivismo” –, como positivismo
primevo ou positivismo exegético. Poderia ainda, junto com Castanheira Neves,
nomeá-lo como positivismo legalista. A principal característica desse “primeiro
momento” do positivismo jurídico, no que tange ao problema da interpretação do
direito, será a realização de uma análise que, nos termos propostos por Rudolf
Carnap, poderíamos chamar de sintático. Neste caso, a simples determinação
rigorosa da conexão lógica dos signos que compõem a “obra sagrada” (Código)
seria o suficiente para resolver o problema da interpretação do direito. Assim,
conceitos como o de analogia e princípios gerais do direito devem ser encarados
também nessa perspectiva de construção de um quadro conceitual rigoroso que
representariam as hipóteses – extremamente excepcionais – de inadequação dos
casos às hipóteses legislativas.

Num segundo momento, aparecem propostas de aperfeiçoamento


desse “rigor” lógico do trabalho científico proposto pelo positivismo. É esse
segundo momento que podemos chamar de positivismo normativista. Aqui há uma
modificação significativa com relação ao modo de trabalhar e aos pontos de
partida do “positivo”, do “fato”. Primeiramente, as primeiras décadas do século
XX viram crescer, de um modo avassalador, o poder regulatório do Estado – que
se intensificará nas décadas de 30 e 40 – e a falência dos modelos sintático-
semânticos de interpretação da codificação, os quais se apresentaram
completamente frouxos e desgastados. O problema da indeterminação do sentido
do Direito aparece, então, em primeiro plano.

É nesse ambiente que aparece Hans Kelsen. Por certo, Kelsen não quer
destruir a tradição positivista que foi construída pela jurisprudência dos
conceitos. Pelo contrário, é possível afirmar que seu principal objetivo era
reforçar o método analítico proposto pelos conceitualistas de modo a responder
ao crescente desfalecimento do rigor jurídico que estava sendo propagado pelo
crescimento da Jurisprudência dos Interesses e à Escola do Direito Livre – que
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Lenio Luiz Streck
CAPÍTULO 11

favoreciam, sobremedida, o aparecimento de argumentos psicológicos, políticos


e ideológicos na interpretação do direito. Isso é feito por Kelsen a partir de uma
radical constatação: o problema da interpretação do direito é muito mais
semântico do que sintático. Desse modo, temos aqui uma ênfase na semântica.

Mas, em um ponto específico, Kelsen “se rende” aos seus adversários: a


interpretação do direito é eivada de subjetivismos provenientes de uma razão
prática solipsista. Para o autor austríaco, esse “desvio” é impossível de ser
corrigido. No famoso capítulo VIII de sua Teoria Pura do Direito, Kelsen chega a
falar que as normas jurídicas – entendendo norma no sentido da TPD, que não
equivale, stricto sensu, à lei – são aplicadas no âmbito de sua “moldura
semântica”. O único modo de corrigir essa inevitável indeterminação do sentido
do direito somente poderia ser realizada a partir de uma terapia lógica – da
ordem do a priori – que garantisse que o Direito se movimentasse em um solo
lógico rigoroso. Esse campo seria o lugar da Teoria do Direito ou, em termos
kelsenianos, da Ciência do Direito. E isso possui uma relação direta com os
resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de Viena.

Esse ponto é fundamental para podermos compreender o positivismo


que se desenvolveu no século XX e o modo como encaminho minhas críticas
nessa área da teoria do direito. Sendo mais claro: falo desse positivismo
normativista, não de um exegetismo que, como pôde ser demonstrado, já havia
dado sinais de exaustão no início do século passado. Numa palavra: Kelsen já
havia superado o positivismo exegético, mas abandonou o principal problema do
direito: a interpretação concreta, no nível da “aplicação”. E nisso reside a
“maldição” de sua tese. Não foi bem entendido, quando ainda hoje se pensa que,
para ele, o juiz deve fazer uma interpretação “pura da lei”...!

2. A interpretação do direito: um problema paradigmático

A hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do direito


deita raízes na discussão que levou Gadamer a fazer a crítica ao processo
interpretativo clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma
operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas
applicandi, isto é, primeiro compreendo, depois interpreto, para só então aplicar).

A impossibilidade dessa cisão – tão bem denunciada por Gadamer –


implica a impossibilidade de o intérprete “retirar” do texto “algo que o texto
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206 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

possui-em-si-mesmo”, numa espécie de Auslegung, como se fosse possível


reproduzir sentidos; ao contrário, para Gadamer, fundado na hermenêutica
filosófica, o intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung). Mais ainda, essa
impossibilidade da cisão – que não passa de um dualismo metafísico – afasta
qualquer possibilidade de fazer “ponderações em etapas”, circunstância, aliás,
que coloca a(s) teoria(s) argumentativa(s) como refém(ns) do paradigma do qual
tanto tentam fugir: a filosofia da consciência. O acontecer da interpretação ocorre
a partir de uma fusão de horizontes (Horizontenverschmelzung), porque
compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si
mesmos.

Fundamentalmente, a hermenêutica filosófica vem para romper com a


relação sujeito-objeto, representando, assim, uma verdadeira revolução
copernicana. Em outras palavras, coloca em xeque os modos procedimentais de
acesso ao conhecimento. E isso tem conseqüências. Sérias. E não pode ser
ignorado pelos juristas preocupados com a democracia.

Com efeito, em um universo que calca o conhecimento em um


fundamento último e no qual a “epistemologia” é confundida com o próprio
conhecimento (problemática presente nas diversas teorias do discurso e nas
perspectivas analíticas em geral), não é difícil constatar que a hermenêutica
jurídica dominante no imaginário dos operadores do direito no Brasil (perceptível
a partir do ensino jurídico, da doutrina e das práticas dos tribunais) continua
sendo entendida como um (mero) saber “operacional”. Domina, no âmbito do
campo jurídico, o modelo assentado na idéia de que “o processo/procedimento
interpretativo” possibilita que o sujeito (a partir da certeza-de-si-do- pensamento-
pensante, enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance o sentido que
mais lhe convém, “o real sentido da regra jurídica” etc.

É possível perceber uma certa imbricação – consciente ou inconsciente –


dos paradigmas metafísicos clássico e moderno no interior da doutrina brasileira
(e estrangeira). Trata-se, pois, de um problema paradigmático. Alguns autores
colocam na consciência do sujeito-juiz o locus da atribuição de sentido (solipsista).
Nesse contexto, “filosofia da consciência” e “discricionariedade judicial” são faces
da mesma moeda. Há ainda juristas filiados às antigas teses formalistas,
propalando que a interpretação deve buscar a vontade da lei, desconsiderando de
quem a fez – sic – e que a lei “terminada” independe de seu passado, importando
apenas o que está contido em seus preceitos (o texto teria um sentido “em si”). De
todo modo, mesmo hoje, em plena era da tão festejada invasão da filosofia pela
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Lenio Luiz Streck
CAPÍTULO 11

linguagem, de um modo ou de outro, continua-se a reproduzir o velho debate


“formalismo-realismo”. Mais ainda, e na medida em que o direito trata de
relações de poder, tem-se, na verdade, em muitos casos, uma mixagem entre
posturas “formalistas” e “realistas”, isto é, por vezes, a “vontade da lei” e a
“essência da lei” devem ser buscadas com todo vigor; em outras, há uma ferrenha
procura pela solipsista “vontade do legislador”; finalmente, quando nenhuma
das duas orientações é “suficiente”, põe-se no topo a “vontade do intérprete”,
colocando-se em segundo plano os limites hermenêuticos do texto dados, em
alguma medida, pelos seus contornos semânticos, fazendo soçobrar até mesmo a
Constituição. O resultado disso é que aquilo que começa com (um)a
subjetividade “criadora” de sentidos (afinal, quem pode controlar a “vontade do
intérprete”?, perguntariam os juristas), acaba em decisionismos e arbitrariedades
interpretativas, isto é, em um “mundo jurídico” em que cada um interpreta como
(melhor) lhe convém...! Enfim, o triunfo do sujeito solipsista, o Selbstsüchtiger.

Mas há que se ficar atento: no plano do sentido comum teórico, existe


um “algo mais” do que a filosofia da consciência. Falo do misto de objetivismos,
juntando o paradigma metafísico aristotélico-tomista com o empirismo, de cunho
dedutivista, ambos consubstanciando as práticas argumentativas dos operadores
jurídicos. Assim, na medida em que o processo de formação dos juristas tem
permanecido associado a tais práticas, tem-se uma espécie de junção de dois
paradigmas inconciliáveis: o poder de alguém “por” o direito e, depois, a
necessidade (política) de preservação desse produto, por meio de descrições.
Observemos: as Súmulas e/ou as teses de Repercussão Geral são “postos” sempre
com pressão de resolver casos no futuro, pretendendo fornecer respostas antes
das perguntas. Nada mais, nada menos do que uma espécie de positivismo
jurisprudencial (como bem assinala Mathias Jestaedt). Só que, na sequência, a
pretensão é de que o juiz de piso e o intérprete lato senso apenas descreva esses
enunciados.

3. A (nova) hermenêutica no estado democrático de direito: um novo


paradigma fundado na autonomia do direito e de como a morte do
sujeito do esquema sujeito-objeto não significou a morte do sujeito da
relação de objeto

O direito que exsurge do paradigma do Estado Democrático de Direito


(Estado Constitucional forjado a partir do segundo pós-guerra) deve ser
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208 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

compreendido no contexto de uma crescente autonomização do direito, alcançada


diante dos fracassos da falta de controle da e sobre a política. A Constituição
passa a ser a manifestação desse grau de autonomia do direito, isto é, deve ser
entendido como a sua dimensão autônoma face às outras dimensões com ele
intercambiáveis, como, por exemplo, a política, a economia e a moral. Essa
autonomização dá-se no contexto histórico do século XX, tendo atingido o seu
auge com a elaboração das Constituições sociais, compromissórias e dirigentes do
segundo pós-guerra.

Trata-se de uma autonomia entendida como ordem de validade,


representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e
que institucionaliza (ess)as outras dimensões com ele intercambiáveis. Em outras
palavras, sustentado no paradigma do Estado Democrático Constitucional
(compromissório e dirigente), o direito, para não ser solapado pela economia, pela
política e pela moral (para ficar nessas três dimensões), adquire uma autonomia
que, antes de tudo, funciona como uma blindagem contra as próprias dimensões
que o engendra(ra)m. Ou seja, a sua autonomia passa a ser a sua própria condição
de possibilidade.

Se foi diminuída a liberdade de conformação do legislador, por meio de


textos constitucionais cada vez mais analíticos e com ampla previsão de acesso à
jurisdição constitucional, portanto, de amplo controle de constitucionalidade, o
que não pode ocorrer é que essa diminuição do “poder” da legislação venha a
representar um apequenamento da democracia, questão central do próprio
Estado Democrático de Direito.

Dito de outro modo, se houve a diminuição do espaço de poder da


vontade geral e se aumenta o espaço da jurisdição (contramajoritarismo), parece
evidente que, para a preservação dessa autonomização do direito, torna-se
necessário implementar mecanismos de controle daquilo que é o repositório do
deslocamento do pólo de tensão da legislação para a jurisdição: as decisões
judiciais. E isso implica discutir o cerne da teoria do direito, isto é, o problema da
discricionariedade na interpretação, é dizer, das decisões dos juízes e tribunais.

É o que o presente texto procurou trabalhar até aqui: autonomia do


direito não pode implicar indeterminabilidade desse mesmo direito construído
democraticamente. Se assim se pensar, a autonomia será substituída – e esse
perigo ronda a democracia a todo tempo – exatamente por aquilo que a gerou: o
pragmatismo político nos seus mais diversos aspectos, que vem colocando
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Lenio Luiz Streck
CAPÍTULO 11

historicamente o direito em permanente “estado de exceção”, o que, ao fim e ao


cabo, representa o próprio declínio do “império do direito” (alguém tem dúvida
de que essa questão é retroalimentada permanentemente, mormente nos países de
modernidade tardia como o Brasil?).

Paradoxalmente, depois dessa revolução copernicana representada pelo


acentuado grau de autonomia do direito conquistado no Estado Democrático de
Direito, está-se diante de uma crescente perda da sua autonomia, que pode ser
interpretada simbolicamente, nestes tempos duros de pós-positivismo, a partir
das diversas teses que apostam na análise econômica do direito, no interior das
quais as regras e os princípios jurídico-constitucionais só têm sentido
funcionalmente (essa questão vem conquistando terreno no direito tributário, por
exemplo). Ou seja, dentro de uma dimensão absolutamente pragmática, o direito
não tem DNA. Para as diversas posturas pragmático- axiologistas, também não
faz sentido ligar o direito à tradição. Por isso, não se fala em perspectiva interna.
Compreendido exogenamente, o direito deve apenas servir para “satisfazer”, de
forma utilitária, às necessidades “sociais”.

É por isso que o direito é visto essencialmente indeterminado, no que –


e essa questão assume relevância no contexto da inefetividade da Constituição
brasileira – tais posturas se aproximam, perigosamente, dos diversos matizes
positivistas, que continuam a apostar em elevados graus de discricionariedade na
interpretação do direito. Trata-se de lidar com a maximização do poder: o
princípio que gere as relações institucionais entre a política e o direito é o poder
de o dizer em última ratio. Em síntese, a velha “vontade do poder” (Wille zur
Macht) de Nie�sche.

Dito de outro modo, o direito do Estado Democrático de Direito está sob


constante ameaça. Isso porque, de um lado, corre o risco de perder a autonomia
(duramente conquistada) em virtude dos ataques dos predadores externos (da
política, do discurso corretivo advindo da moral e da análise econômica do
direito) e, de outro, torna-se cada vez mais frágil em suas bases internas, em face
da discricionariedade/arbitrariedade das decisões judiciais e do consequente
decisionismo que disso exsurge inexoravelmente.

É nesse sentido que proponho a resistência por meio da hermenêutica,


apostando na Constituição (direito produzido democraticamente) como instância
da autonomia do direito para limitar a transformação das relações jurídico-
institucionais em um constante estado de exceção. Disso tudo é possível dizer
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210 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

que, tanto o velho discricionarismo positivista, quanto o pragmatismo fundado


no declínio do direito, têm algo em comum: o déficit democrático. Isto porque, se
a grande conquista do século XX foi o alcance de um direito transformador das
relações sociais, será (é?) um retrocesso reforçar/acentuar formas de exercício de
poder fundados na possibilidade de atribuição de sentidos de forma
discricionária, que leva, inexoravelmente, a arbitrariedades, soçobrando, com
isso, a própria Constituição. Ou seja, se a autonomia do direito aposta na
determinabilidade dos sentidos como uma das condições para a garantia da
própria democracia e de seu futuro, as posturas axiologistas e pragmatistas –
assim como os diversos positivismos stricto sensu – apostam na
indeterminabilidade. É por tais caminhos e condicionantes que passa a tese da
resposta correta em direito.

Numa palavra, a superação do positivismo implica a incompatibilidade


da hermenêutica com a tese das múltiplas ou variadas respostas. Afinal, a
possibilidade da existência de mais de uma resposta coloca essa “escolha” no
âmbito da discricionariedade judicial, o que é antitético ao Estado Democrático
de Direito. Ou seja, a partir da Crítica Hermenêutica do Direito, é perfeitamente
possível alcançar uma resposta hermeneuticamente adequada à Constituição ou,
se se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada – espécie de resposta
hermeneuticamente correta – a partir do exame de cada caso³.

Com efeito, entendo ser possível encontrar uma resposta


constitucionalmente adequada para cada problema jurídico (como explicito em
meu Verdade e Consenso desde a primeira edição). Hermenêutica é aplicação. Não
há respostas, a priori, que exsurjam de procedimentos (métodos ou fórmulas de
resolução de conflitos). Em outras palavras, definitivamente, não percebemos
primeiro o texto para depois acoplar-lhe o sentido (a norma). Ou seja, na medida
em que o ato de interpretar – que é sempre compreensivo – é unitário, o texto não
está – e não nos aparece – desnudo, à nossa disposição.

Negar a possibilidade de que possa existir uma resposta correta, pode


vir a se constituir – sob o ponto da Crítica Hermenêutica do Direito – em uma
profissão de fé no positivismo e, portanto, na discricionariedade judicial, uma
vez que o caráter marcadamente não-relativista da hermenêutica é incompatível

3 Ver o verbete Resposta Adequada à Constituição (resposta correta), do Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes
fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Editora
Letramento, 2020.
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Lenio Luiz Streck
CAPÍTULO 11

com a existência de múltiplas respostas. Corre-se o risco de conceder ao juiz uma


excessiva discricionariedade (excesso de liberdade na atribuição dos sentidos),
acreditando, ademais, que o direito é (apenas) um conjunto de normas (regras).

Não esqueçamos que texto e norma, fato e direito, não estão separados
e, tampouco, um “carrega” o outro; texto e norma, fato e direito, são (apenas e
fundamentalmente) diferentes. Por isto, o texto não existe sem a norma; o texto
não existe em sua “textitude”; a norma não pode ser vista; ela apenas é (existe) no
(sentido do) texto.

A tese da resposta hermeneuticamente adequada é, assim, corolária da


superação do positivismo – que é discricionário, abrindo espaço para várias
respostas e a consequente livre escolha do juiz – pelo constitucionalismo
contemporâneo, sustentado em discursos de aplicação, intersubjetivos, em que os
princípios têm o condão de recuperar a realidade que sempre sobra no
positivismo.

Nesse sentido, e uma vez mais visando a evitar mal-entendidos, é


preciso compreender que – do mesmo modo que Gadamer, em seu Wahrheit und
Methode – Dworkin não defende qualquer forma de solipsismo (a resposta correta
que defende não é produto de uma atitude de um Selbstsüchtiger): Dworkin
superou – e de forma decisiva – a filosofia da consciência. Melhor dizendo, o juiz
“Hércules” é apenas uma metáfora para demonstrar que a superação do
paradigma representacional (morte do sujeito solipsista da modernidade) não
significou a morte do sujeito que sempre está presente em qualquer relação de
objeto.

Uma leitura apressada de Dworkin (e isso também ocorre com quem lê


Gadamer como um filólogo, fato que ocorre não raras vezes no direito) dá a falsa
impressão de que Hércules representa o portador de uma “subjetividade
assujeitadora”. Ora, como já referido, enquanto as múltiplas teorias que
pretendem justificar o conhecimento buscam “superar” o sujeito do esquema
sujeito-objeto, eliminando-o ou substituindo-o por estruturas comunicacionais,
redes ou sistemas e, algumas de forma mais radical, até mesmo por um
pragmatismo fundado na Wille zur Macht (por todas, vale referir as teorias
desconstrutivistas e o realismo dos Critical Legal Studies), Dworkin e Gadamer, cada
um ao seu modo, procuram controlar esse subjetivismo e essa subjetividade
solipsista a partir da tradição, do não-relativismo, do círculo hermenêutico, da
diferença ontológica, do respeito à integridade e da coerência do direito, de
SUMÁRIO

212 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

maneira que, fundamentalmente, ambas as teorias são antimetafísicas, porque


rejeitam, peremptoriamente, os diversos dualismos que a tradição (metafísica)
nos legou desde Platão (a principal delas é a incindibilidade entre interpretação e
aplicação, pregadas tanto por Dworkin como por Gadamer).

Por tudo isso, é preciso ter claro que o estabelecimento das bases para a
construção de discursos críticos é uma tarefa extremamente complexa e que não
se faz sem ranhuras. Afinal, mais do que um imaginário a sustentar o modo-
positivista-de-fazer/interpretar-direito, há, no Brasil, uma verdadeira “indústria
cultural” assentada em uma produção jurídica que tem nos manuais (a maioria
de baixa densidade científico-reflexiva) a sua principal fonte de sustentação,
retroalimentada pelas escolas de direito, cursos de preparação para concursos e
exame de ordem, além da própria operacionalidade do direito, que continua – em
pleno século XXI – a ter no dedutivismo a sua forma de aplicar o direito. Por isto, não
é temerário (re)afirmar que o positivismo jurídico – entendido a partir da
dogmática jurídica que o instrumentaliza – é uma trincheira que resiste (teimosa-
mente) a essa viragem hermenêutico- ontológica.

Cabe perguntar: o que são normas? E o que são “normas legais” (sic)?
Elas se confundem com as leis ou com o texto das leis? Pergunto: os princípios
constitucionais não possuem caráter normativo? É possível perceber como a
processualística brasileira ainda não conseguiu ir além dos problemas
metodológicos que foram instituídos no final do século XIX e no início do século
XX. Escopos processuais? Instrumentalismo? Deixar tudo para os juízes? Ora, isso
Kelsen já havia deixado como herança maldita para os juristas. E as
conseqüências disso todos conhecemos. Depois nos queixamos das súmulas
vinculantes...! Primeiro, incentivamos atitudes ativistas-protagonistas; depois,
quando tudo parece incontrolável, apelamos aos enunciados metafísico-
sumulares...! A pergunta que fica é: quando é que os juristas se darão conta disso
tudo?

4. Um caso emblemático: o problema do literalismo; o art. 45 do


Regimento Interno do CARF que desnuda os sintomas denunciados –
afinal, quem cumpre a “letra da lei” é positivista? e quem “passa por
cima da lei” é pós-positivista?

É preciso estar alerta. Em tempos de (alegada) indeterminação do


direito e de proliferação de teses que se advogam pós-positivistas, corremos o
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Lenio Luiz Streck
CAPÍTULO 11

risco de fragilizar a autonomia do direito (ou seu acentuado grau de autonomia


conquistado nesta quadra da história). É preciso estar atento porque, no mais das
vezes, o discurso que se afigura com a aparência do novo, carrega consigo o
código genético do velho, reafirmando, no fundo, aquilo que alhures nomeei de
“vitória de Pirro” do positivismo jurídico.

Por certo, a principal preocupação da teoria do direito deve ser o


controle da interpretação, problemática agravada pelo crescimento da jurisdição
em relação à legislação. Nesse sentido, não se pode olvidar que o novo texto
constitucional estabeleceu um novo paradigma. Vejamos como todo o contexto
apresentado acaba manifestando sintomas muito claros na práxis institucional do
direito brasileiro.

Em 1897, houve um interessante caso jurídico que chegou ao Supremo


Tribunal Federal. O Juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima foi condenado por
fazer controle difuso de constitucionalidade de uma lei sobre o júri. Ele decidiu
“contra a letra da lei” que foi editada no governo de Júlio de Castilhos (RS).
Mendonça Lima foi suspenso por 9 meses pelo Superior Tribunal de Justiça do
RS (assim se chamava o Tribunal do Estado à época). O juiz recorreu ao STF e Rui
Barbosa foi seu advogado, sustentando a tese da impossibilidade de, na
interpretação da lei, existir “o crime de hermenêutica”.

Ainda que de há muito Rui Barbosa tenha feito sua tese triunfar no STF,
com espanto o leitor desavisado haverá de receber a seguinte notícia: o “crime de
hermenêutica”, ainda que em estado de “relíquia” permenece existindo na
ordem jurídica vigente, sintoma, como antecipado anteriormente, das voltas que
a prática e teoria do direito em terrae brasilis permanece dando com o esquema
maniqueísta “formalismo-realismo”.

Refiro-me, aqui, ao CARF (Conselho Administrativo de Recursos


Fiscais), o qual abriga, em seu Regimento Interno, um dispositivo que estabelece
algo similar ao "crime de hermenêutica" denunciado pelo grande Rui, na
especificidade do artigo 45, aprovado pela Portaria MF 343/2015 (já se pode ver
que uma Portaria no Brasil pode valer mais do que a Constituição), verbis:
“[p]erderá o mandato o conselheiro que: VI - deixar de observar enunciado de súmula ou
de resolução do Pleno da CSRF, bem como o disposto no artigo 62”.

O mais interessante é que as súmulas são vinculantes (como não


poderiam deixar de ser, afinal, se pretendem corretivas e não integradoras). Não
sou contra as súmulas, muito embora critique a maneira como esse instituto se
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214 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

manifesta em nosso ordenamento jurídico e na prática da interpretação judicial.


Quem conhece minha obra, sabe bem disso. Um hermeneuta jamais seria contra
qualquer texto, exatamente por ser hermeneuta. As súmulas são (ou deveriam
ser) uma consolidação de precedentes jurisprudenciais e podem constituir
importantes selos de garantia institucional da aplicação do Direito. Porém, há que
ir devagar.

O STF possui súmulas vinculantes porque houve uma emenda


constitucional para isso. E vejo que, no âmbito do Carf, é uma portaria que
estabelece esse efeito. Aqui já temos um problema inicial que indica,
sobremaneira, o grau de fragilidade da própria autonomia do direito e de
qualquer coisa que se poderia denominar de “resposta constitucionalmente
adequada”, ou “hermenêutica do estado democrático de direito”, nos termos em
que propus anteriormente.

Em meados de abril de 2020, houve uma discussão acirrada durante um


julgamento no Carf, com ameaças de processo contra um Conselheiro que estava
tentando fazer um distinguishing de uma súmula vinculante – ou seja, na visão de
parte do Carf, ou você cumpre a súmula de forma textualista (pensemos no
positivismo do século 19) ou você tenta dela desviar, distinguindo. Mas,
pergunto: não haveria outras vias para enfrentar imbróglios hermenêuticos?
Afinal, o “juiz boca-da-lei” morreu de há muito, não? Ou teria ele apenas dado
espaço ao “Conselheiro boca-da-súmula”? E mais: como se dá o distinguishing de
uma súmula? Como diferenciar um caso de vários casos que ensejaram a criação
da súmula — quando se defende, do outro lado, que a aplicação da súmula seja à
moda textualista?

Tais questionamentos que coloco denunciam, de pronto, o que venho


apresentando ao longo da presente análise: vemos, hoje, na paisagem
institucional, uma verdadeira intercambiação quase constante entre posturas, ora
formalistas e literalistas, ora relativistas e “vanguardistas”. Nesse ponto, após os
esclarecimentos de ordem conceitual e mesmo históricas acerca do “como viemos
parar aqui”, socorro-me da própria literatura. Lembro sempre de Shakespeare, da
peça Medida por Medida. Substituam a lei que punia com pena de morte a quem
fornicasse antes do casamento pela palavra “súmula”. Dá no mesmo. Ângelo vai
do "escravo da súmula" ao "proprietário dos sentidos da mesma súmula", quando
deseja tomar nos braços a irmã do réu. Nenhum dos dois Ângelos me serve. E não
é bom para a teoria do direito. Deve haver um Ângelo "do meio". O que lamento
é, exatamente, que, hoje em dia, cada vez mais a literalidade e a não literalidade
SUMÁRIO

215
Lenio Luiz Streck
CAPÍTULO 11

se transformaram em argumentos ideológicos e estratégicos. Um dia o texto é


tudo; no outro, o texto é nada. Limites hermenêuticos são sobrepostos pelos
limites das “quatro linhas” do preceito sumulado.

De todo modo, digo que, na democracia, não é inadequado aplicar


aquilo que a lei estabelece. Tenho dito isto ad nauseam. Não nos envergonhemos
de aplicar a lei. Sinonímias epistêmicas são desejáveis na democracia, desde que
— atenção — o texto legal infraconstitucional seja conforme a Constituição. Caso
contrário, deve ser expungido ou relido a partir de uma interpretação conforme
ou nulidade parcial sem redução de texto. Ou isso ou voltamos ao século XIX.

Por outro lado, cumprir a “letra da lei” não quer dizer subsunção ou
“escravidão à lei” ou coisas desse gênero, que povoa(ra)m o imaginário dos
juristas do século XIX e início do século XX (até o advento das teorias voluntaristas
— embora esse fantasma ainda arraste as correntes nas salas de aula das boas
casas do ramo). O literalista é aquele que, diante da regra “Proibido cães na
plataforma”, proíbe o cão guia. E deixa entrar o urso. O voluntarista, por outro
lado, é aquele que deixa entrar o poodle porque acha bonitinho. O literalista
proíbe o cão e deixa entrar o urso⁴.

As súmulas têm um grande poder de violência simbólica, como já


escrevi há 30 anos. Mas, fundamentalmente, súmulas nada mais são do que
tentativas de respostas antes das perguntas. A súmula antecipa a resposta antes
mesmo do caso concreto. Como, então, se pretende realizar um distinguishing? E
esse é o ponto fundamental para a discussão. Súmulas são uma repristinação dos
assentos da Casa de Suplicação. Os portugueses abandonaram os assentos há
anos. Porque inconstitucionais. Porque a autoridade não é "do precedente", mas
da lei à que se refere o precedente, da norma legal que ensejou a decisão que veio
a se tornar precedente. Já o distinguishing, o nome já diz, é a distinção entre casos
para verificar em quais um precedente é ou não aplicável. Aliás, isso está no CPC.
Que parece valer só em parte no Carf.

Nesse sentido, é preciso reforçar aquilo que Rui Barbosa tentou legar
como ensinamento: não pode ser proibido divergir de súmulas — mas não por
uma questão de "distinguishing", e muito menos por "livre convencimento". Não

4 Também no meu Dicionário de Hermenêutica, há um verbete intitulado “Literalidade”, em que explico com
maior profundidade esse exemplo do cão e do urso e da própria questão relacionada ao literalismo/
textualismo: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito
à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2020.
SUMÁRIO

216 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

deve ser proibido divergir de súmula ou até deixar de a aplicar, porque, numa
súmula, o que é dotado de autoridade não é a súmula "em si mesma", mas as leis,
as diretrizes, os princípios legais que embasam a súmula e aos quais ela responde.
Há sempre uma história institucional a ser revolvida e reconstruída. Porque
súmula é texto. Como qualquer lei. E textos são eventos. Há um chão linguístico
em que isso tudo está assentando.

Textos de leis, de súmulas, de precedentes, só têm sentido quando


interpretados à luz da tradição em que inseridos. Em todo seu conjunto. É aí que
o papel do intérprete é o de fit, um ajuste institucional entre caso concreto, lei
aplicável, precedentes, à toda a ordem legal que antecede tudo isso e que tem
como condição de possibilidade a moral compartilhada e filtrada pelo fenômeno
jurídico.

Precedentes, súmulas, não importa: a autoridade é do Direito, como


deixo claro no meu recente Precedentes Judiciais e Hermenêutica⁵. Importante
também lembrar: precedentes não nascem precedentes. São precedentes, ora. Não
são decisões que já nascem pra vincular, pensando no futuro.

Numa palavra: textos são eventos, reitero. Basta ver que, nos EUA —
pego de exemplo onde pelo menos as correntes interpretativas são declaradas de
forma mais clara, as cartas são postas à mesa —, originalistas e literalistas
produzem resultados diferentes. No Brasil, a "literalidade" serviu para justificar e
para afastar a presunção da inocência. O problema não é de súmula, mas, por
outro lado, a solução jamais será o "livre convencimento".

A solução — que está nesse "Ângelo do meio" (para lembrar Medida por
Medida) — é decidir com critérios. O que tento aqui apresentar na análise desse
“sintoma” é que o Direito pode apresentar respostas coerentes e íntegras (artigo
926 do CPC, que está no Código por minha iniciativa). Decisões devem dialogar
com a ordem legal em todo seu conjunto. Distinguishing não é contraponto lógico
de súmula, mas também pode ser. Súmula pode ser derrotada. De novo, a questão
é a do ajuste (fit). O que derruba/derrota a súmula são as exigências do próprio
Direito, sempre superior. Não a conveniência, não a ocasião. Súmulas e textos
legais (súmula é um texto legal) devem ser analisados a partir do Direito positivo,
com toda a lógica que o sustenta, todas suas premissas de princípio — inseridas

5 STRECK, L. L. Precedentes Judiciais e Hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 2. ed. Salvador:


Editora JusPodivm, 2019.
SUMÁRIO

217
Lenio Luiz Streck
CAPÍTULO 11

num paradigma constitucional —, e em respeito às circunstâncias dos casos


concretos que nos são apresentados (daí porque não há respostas antes das
perguntas). Daí porque não pode haver livre convencimento em uma República.

Qual é o direito que se aplica no Brasil? Jurisprudencialismo? Se no


cotidiano do direito é comum se ouvir dizer que "ah, doutrina não vale nada, o
que vale é a jurisprudência, as súmulas e quejandos" (até os professores dizem
isso para os alunos), no CARF parece que vigora a máxima “o direito é o que as
súmulas do CARF dizem que é". Não me parece que seja a melhor forma à luz do
cenário que apresentei.

Os limites interpretativos (e suas usurpações ou ausência de limites) de


que fala Bernd Rüthers (um adepto do racionalismo crítico que muito bem
colocou a questão sobre a conexão entre interpretações não constrangidas e o
problema do autoritarismo, na obra Die unbegrenzte Auslegung — uma
interpretação não-constrangida) não deve ser lido sob a falsa dicotomia
"literalismo-textualismo" — "métodos teleológicos-objetivos-espirituais" ou
coisas desse jaez (ou a dicotomia Auslegung [reprodução de sentidos] —
Sinngebung [atribuição de sentidos], como alertava bem Gadamer).

Interpretar e aplicar em uma democracia exige muito mais. E essa é a


tarefa de uma hermenêutica adequada ao Estado Democrático de Direito:
controle, limitação, accountabillity e critérios (teoria da decisão). Eis a fórmula
para termos coerência e integridade. No final, a questão fulcral é sempre essa: o
que é isto — o direito? Enquanto não exigirmos coerência na resposta de quem o
interpreta e aplica, teremos textualismos e literalidades e voluntarismos. Só que
sem epistemologia.

Referências

ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica. Madrid: CEC, 1989.

DWORKIN, Ronald. A Ma�er of Principle. Cambridge: Mass. Harvard University, 1985.

DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Mass. Harvard University, 1986.

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Mass. Harvard Universiy,


1978.

GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen


Hermeneutik. I. Tübingen: Mohr, 1990.
SUMÁRIO

218 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Vol. I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997. HART, Herbert. O conceito de Direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1994. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 2007;

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia


contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001.

RÜTERS, Bernd. Die Unbegrenzte Auslegung: Zum Wandel Der Privatrechtsordnung Im


Nationalsozialismus.8 ed. Mohr Siebrek Ek, 2017.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.

STRECK, L. L. Precedentes Judiciais e Hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/


2015. 2. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

STRECK, L. L. Verdade e Consenso. 3 ed. Rio de Janeiro, 2009.


SUMÁRIO

Capítulo 12

CONSTITUIÇÃO,
AUTOPOIESE E
ACOPLAMENTO
ESTRUTURAL:
propostas e desafios do constitucionalismo
social em LUHMANN e TEUBNER

Leonel Severo Rocha


SUMÁRIO

220 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

CONSTITUIÇÃO, AUTOPOIESE E ACOPLAMENTO ESTRUTURAL:


propostas e desafios do constitucionalismo
social em LUHMANN e TEUBNER¹

Leonel Severo Rocha²

Introdução

Em um cenário de ordem global funcionalmente diferenciada, o que


Luhmann³ classifica como sociedade mundial, fazem-se necessárias novas leituras
da teoria constitucional, desde pressupostos sociais que permitam observar
inovações no acoplamento entre a política e o Direito operacionalizado pela
Constituição. Nesse sentido, a proposta elaborada por Teubner em sua
redefinição do conceito de autopoiese como componente da ideia de Constituição
é extremamente interessante⁴. O exame das propostas de Luhmann e Teubner é o
objetivo deste texto.

Frente ao papel insuficiente da teoria tradicional do constitucionalismo


moderno para a constatação da existência de novos atores no contexto mundial,
bem como para o deslocamento dos centros de tomada de decisão do âmbito
limitado dos Estados Nacionais, é de suma importância o trabalho de autores que
se dedicam ao estudo da sociologia das constituições, ramo de intersecção entre
sociologia sistêmica e teoria constitucional.

1 Este texto faz parte do Projeto de Pesquisa Constitucionalismo Digital em um Sistema Social Global (CNPq); e
Teoria do Direito e Diferenciação Social na América Latina (Unisinos).
2 Doutor em Direito pela École des hautes études en sciences sociales de Paris, com estudos de Pós-doutorado
em Sociologia do Direito pela Università degli Studi di Lecce. Professor Titular do programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Mestrado e Doutorado, CAPES 6). Leonel@unisinos.br.
Pesquisador de Produtividade 1 CNPq. Advogado.
3 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
4 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
SUMÁRIO

221
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

Nessa transição, necessário se faz atentar para as diferentes matrizes da


teoria jurídica, pontos de partida para observar a teoria do Direito. Na
classificação (proposta por Rocha⁵), já revisitada e atualizada⁶, podem ser
observadas as três diferentes correntes epistemológicas que predominam na
observação do fenômeno jurídico, sendo elas: a analítica, a hermenêutica e a
pragmático-sistêmica.

Em termos de Direito Constitucional, as observações diferenciadas,


baseadas em cada uma das matrizes citadas acima, formam o que denominamos
de “As 03 fases do constitucionalismo”⁷, que, nesta ordem, representariam:
separação dos poderes (analítica), garantia de direitos (hermenêutica) e
constitucionalismo social (pragmático-sistêmica).

As necessárias transições históricas entre as matrizes epistemológicas


para observação do Direito são também destacadas por outros autores, a exemplo
do trabalho de Bobbio⁸, que evidencia a transição da estrutura à função na teoria
do Direito. Referida trajetória teórica passa a ser o ponto de partida de autores
que vêm desenvolvendo os principais aspectos da sociologia do
constitucionalismo⁹. No Direito Constitucional em específico, Canotilho¹⁰
sustenta a necessária observação por meio da matriz pragmático-sistêmica no
fenômeno que denomina de “interconstitucionalidade”.

5 ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2005.
6 ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica: revisitando as três matrizes. Revista de Estudos
Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). São Leopoldo, RS, v.5, n.2, jul./dez, 2013.
Disponível em:< h�p://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/rechtd.2013.52.06>. Acesso em: 18
jul. 2017.
7 COSTA, Bernardo Leandro Carvalho.; ROCHA, Leonel Severo. O Constitucionalismo Social como terceira fase
do Direito Constitucional. In: XI Congresso Internacional da ABraSD: trabalhos completos SOCIOLOGIA
JURÍDICA HOJE: cidades inteligentes, crise sanitária e desigualdade social, 2020, Porto Alegre. Anais do XI
Congresso Internacional da ABraSD: trabalhos completos SOCIOLOGIA JURÍDICA HOJE: cidades
inteligentes, crise sanitária e desigualdade social. Porto Alegre: Associação Brasileira de Pesquisadores em
Sociologia do Direito, 2020. v. 1. p. 894-903.
8 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaria
Versiani. São Paulo: Manole, 2007.
9 Nesse sentido: TORNHILL, Chris. A Sociology of Constitutions. Constitutions and State Legitimacy in
Historical-Sociological Perspective. New York: Cambridge University Press, 2011. FEBBRAJO, Alberto.
Sociologia do constitucionalismo: Constituição e teoria dos sistemas. Tradução de Sandra Regina Martini.
Curitiba: Juruá, 2017.
10 CANOTILHO, J. J. Gomes. 'Brancosos' e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a
historicidade constitucional. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2008.
SUMÁRIO

222 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Levando em conta essa necessária transição também no âmbito da teoria


constitucional, o presente trabalho, partindo de uma análise a partir da matriz
pragmático-sistêmica da teoria jurídica contemporânea e da sociologia das
constituições, tem por objetivo apresentar cenários atuais do constitucionalismo
social (3ª fase do Direito Constitucional), centrando-se na explicitação sobre os
elementos necessários para a compreensão da concepção de Constituição nas
teorias de Luhmann e Teubner.

Para tal, far-se-á uma apresentação dos principais elementos que


formam a base da terceira fase do Direito Constitucional, baseada na matriz
pragmático-sistêmica, cujo autor referência é Luhmann¹¹. Neste ponto, será
destacada a concepção de Constituição na Teoria dos Sistemas Sociais como a
representante inicial de uma observação sociológico-sistêmica do
constitucionalismo, enfatizando-se a definição de autopoiese, oriunda das teorias
de Maturana e Varela¹², como condição necessária para a compreensão das
observações subsequentes do constitucionalismo social.

Em sequência, serão explorados os estudos de Teubner¹³ acerca de


problemas que envolvem o atual cenário do constitucionalismo em um contexto
global. Com vinculação direta à concepção de autopoiese na teoria de Luhmann,
será demonstrado o que Teubner¹⁴ concebe por fragmentação constitucional,
elencando os problemas e alternativas destacadas nesta proposta.

O problema a ser explorado no presente artigo é a fragmentação


constitucional e a insuficiência teórica de se pensar o Direito Constitucional como
ramo atrelado somente à separação dos poderes e garantia de direitos, sem
conceber o modo como o fenômeno da globalização impacta diretamente as
relações entre Direito e Política, não estando mais restritas aos territórios dos
Estados nacionais.

Como proposta de superação a essa limitação, serão apresentados os


elementos que fundam o que denominamos de constitucionalismo social: uma

11 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016.


12 MATURANA ROMESÓN, Humberto.; VARELA GARCIA, Francisco J. El arbol del conocimiento: las bases
biologicas del conocimiento humano. Madrid: Debate, 1996.
13 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016.
14 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016.
SUMÁRIO

223
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

teoria constitucional apta a observar e buscar alternativas de solução aos


problemas constitucionais globais.

Na linha de frente, como ponto de partida para essa observação, serão


discutidos os elementos imprescindíveis para a compreensão da Teoria dos
Sistemas Sociais de Luhmann¹⁵, como a origem dos conceitos estudados no
constitucionalismo social, especialmente suas concepções de autopoiese social e
acoplamento estrutural, cuja origem é baseada em uma metáfora organicista da
sociedade, inspirada nos trabalhos de dois autores latino-americanos: Maturana
e Varela¹⁶.

A sequência do estudo traz a aplicação prática dessa conceituação,


destacada na construção teórica de Teubner¹⁷, mormente sua concepção de
fragmentação constitucional. Utilizando-se da concepção de autopoiese em
Luhmann, Teubner descreve o modo contínuo de autonomia e autorreprodução
das constituições civis no ambiente da globalização, demonstrando como a
constitucionalização ocorre atualmente em um cenário diferente do ocorrido em
termos de autonomia dos sistemas sociais do Direito e da Política descritos por
Luhmann.

Trata-se, portanto, de um estudo que traz para discussão um autor que


fornece a base conceitual para observação do Direito Constitucional por meio de
uma nova perspectiva: Luhmann; e uma proposta de aplicação prática desse
referencial teórico ofertada por Teubner. São dois autores considerados
fundamentais para a compreensão do constitucionalismo social, conforme
demonstra-se a seguir.

1. Autopoiese e acoplamento estrutural: pressupostos metodológicos do


constitucionalismo social em Luhmann

A Teoria Constitucional tem sido aprimorada por importantes autores.


Desde a França e as importantes considerações de Carré de Malberg¹⁸, os

15 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016.


16 MATURANA ROMESÍN, Humberto; VARELA GARCIA, Francisco J. De máquinas de seres vivos. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 91.
17 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016.
18 MALBERG, R. Carré De. Contribution a la théorie générale de l'État. 1. ed. Paris: Recueil Sirey, 1920. 2 v.
SUMÁRIO

224 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

portugueses Canotilho¹⁹ e Jorge Miranda²⁰, as contribuições de Peter Häberle²¹ na


Alemanha ou os estudos de Ackerman²² e Sunstein²³ nos Estados Unidos, entre
outros, o constitucionalismo é tema central em estudos jurídicos.

Ao passar do tempo, o cenário de observação do Direito Constitucional


foi abrindo espaço ao Direito Internacional, tema que Kelsen²⁴ dedica boa parte
de uma de suas principais obras.

Na sequência, a partir do fenômeno da globalização²⁵, alterações


substanciais passaram a ser constatadas nas relações entre Direito e Política e nas
clássicas concepções de nação, soberania nacional e poder constituinte²⁶.

Partindo dessas alterações, uma série de autores têm se debruçado


acerca de estudos ligados à sociologia do constitucionalismo. Em tal proposta,
parte-se de uma análise com fulcro na matriz pragmático-sistêmica da teoria
jurídica para observar a teoria constitucional por meio das relações entre os
diferentes sistemas no âmbito do sistema social. Nessa linha de pensamento, o
fundo metodológico é a Teoria dos Sistemas Sociais de Luhmann²⁷.

Essa proposta, diferenciando-se das perspectivas anteriores,


denominadas de normativistas ou hermenêuticas, considera o constitucionalismo
social como uma terceira fase do Direito Constitucional²⁸. A posição inicial é

19 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
20 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito constitucional: Tomo IV: Direitos fundamentais. Coimbra Editora, 1999.
21 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta. Madrid:
Tecnos, c2002.
22 ACKERMAN, Bruce A. Nós, o povo soberano: fundamentos do direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
2006.
23 SUNSTEIN, CASS. The partial constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1994.
24 KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. Cambridge: Harvard University Press, 1945.
25 ZOLO, Danilo. Globalização: um mapa dos problemas. São José, SC: Conceito Editorial, 2010.
26 THORNHILL, Chris. 2016, The Sociological Origins of Global Constitutional Law. in A Febbrajo & G Corsi
(eds), Sociology of Constitutions: A Paradoxical Perspective. Routledge, Abingdon, p. 99-124.
27 LUHMANN, Niklas. El derecho de La sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México, 2002
p. 40.
28 COSTA, Bernardo Leandro Carvalho.; ROCHA, Leonel Severo. O Constitucionalismo Social como terceira fase
do Direito Constitucional. In: XI Congresso Internacional da ABraSD: trabalhos completos SOCIOLOGIA
JURÍDICA HOJE: cidades inteligentes, crise sanitária e desigualdade social, 2020, Porto Alegre. Anais do XI
Congresso Internacional da ABraSD: trabalhos completos SOCIOLOGIA JURÍDICA HOJE: cidades
inteligentes, crise sanitária e desigualdade social. Porto Alegre: Associação Brasileira de Pesquisadores em
Sociologia do Direito, 2020. v. 1. p. 894-903.
SUMÁRIO

225
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

fornecida pelo conceito de sistema social de Luhmann²⁹, considerando-se a


sociedade como um amplo sistema que abrange toda a comunicação possível no
mundo.

A partir dessa consideração, parte-se para a concepção de diferenciação


funcional da sociedade, por meio de seus diferentes sistemas sociais. Nesta
observação, são destacados os sistemas do Direito e da Política, que, a partir de
uma ponte de ligação que os conecta (acoplamento estrutural), possibilitam a
observação da Constituição na teoria sistêmica³⁰.

Nesta perspectiva, as relações entre os sistemas da Política e do Direito


– entre outras – realizadas no âmbito da sociedade mundial são o objeto de
análise das primeiras perspectivas do constitucionalismo social, cuja
compreensão da concepção de Constituição em Luhmann é imprescindível³¹.

Para Luhmann, dois conceitos fundamentais oriundos de uma teoria


organicista da sociedade são imprescindíveis para compreensão da dinâmica de
formação e evolução dos sistemas sociais: autopoiese e acoplamento estrutural.

Nos campos da biologia e da medicina, o processo de autopoiese


(autorreprodução dos seres vivos) com base na seleção própria de elementos
externos à célula a partir de uma codificação que lhes é própria, capaz de excluir
os demais elementos do entorno na autorreprodução, representa uma teoria
revolucionária encampada pelos cientistas latino-americanos Maturana e Varela.
Assim: “Autopoiese implica subordinação de toda troca no sistema autopoiético
à manutenção de sua organização autopoiética e, como esta organização o define
como unidade, subordinação de toda fenomenologia do sistema à conservação de
sua unidade.”³²

Em termos de teoria social, Luhmann utiliza-se dessa concepção para


descrever o modo como os sistemas sociais se autorreproduzem a partir de
processos que envolvem a seleção da comunicação que faz parte do seu entorno
com base no código binário que lhe é próprio. Assim, o Sistema do Direito é um

29 LUHMANN, Niklas. El derecho de La sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México, 2002
p. 40.
30 LUHMANN, Niklas. El derecho de La sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México, 2002.
31 LUHMANN, Niklas. El derecho de La sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México, 2002
p. 40.
32 MATURANA ROMESÍN, Humberto; VARELA GARCIA, Francisco J. De máquinas de seres vivos. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 91.
SUMÁRIO

226 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

sistema autopoiético na medida em que, de todas as comunicações possíveis da


sociedade, ele é capaz de selecionar apenas o que é comunicação jurídica com
base no seu código binário direito/não direito.

Há, por vezes nessa seleção, a inclusão de elementos comunicativos do


entorno que passam a integrar o Sistema do Direito nesse processo, passando – o
que não eram antes – a fazerem parte da comunicação jurídica. A esse processo,
Luhmann chama de evolução. Esse movimento, por ser provocado por irritações
do entorno, a exemplo de manifestações sociais reivindicativas de direitos, é
reconhecido principalmente por meio das comunicações tematizadas, como
decisões, oriundas dos tribunais, organizações que representam o centro do
Sistema do Direito.

A evolução, todavia, assim como a autorreprodução, mencionada na


concepção de autopoiese, é realizada com base na conservação da unidade do
próprio sistema em seu processo de autopoiese. O Direito, portanto, ainda que
agregue constantemente elementos comunicativos que antes não eram jurídicos
por meio de seleções, nunca deixa de ser um sistema baseado na codificação
binária direito/não direito.

Há um ponto de observação própria, portanto, que permite que o


Sistema do Direito seja baseado apenas nessa racionalidade que lhe é específica,
observando as comunicações sociais como jurídicas ou não jurídicas. Esse tipo de
racionalidade (de observação dos fatos com base no critério jurídico) é
característica tanto dos sociais atores que se comunicam por meio do Sistema do
Direito (quotidiano), quando pergunto “tenho direito a algo?” ou “exijo meu
direito”, quanto dos atores que estão no âmbito da comunicação organizacional.

Assim, juízes que decidem e comunicam o que é e o que não é direito;


e advogados, que diariamente pleiteiam respostas sobre direito/não direito e
irritam constantemente o Sistema para a inclusão de novas categorias jurídicas no
entorno do Direito por meio de suas atuações nos tribunais, são representações
desse processo de evolução jurídica. Nessa seleção, todavia, o direito nunca
perde sua unidade; afinal, o processo de autorreprodução (autopoiese) é baseado
sempre no código binário direito/não direito.

Por essas circunstâncias, Luhmann cunhou a expressão, também com


influência em Maturana e Varela, de que “o fechamento é a condição da
abertura”³³. Assim, para que o Direito evolua, precisa-se saber o que é e o que não
SUMÁRIO

227
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

é direito agora. É preciso fazer, sobretudo, um processo de distinção entre os


sistemas sociais.

Do mesmo modo, o Sistema da Política, cuja comunicação específica é


baseada no código binário governo/oposição, tendo como função a tomada de
decisões coletivamente vinculantes no âmbito de sua organização, o Estado, é um
sistema autopoiético e diferenciado em relação ao Direito. Todos os processos de
seleção no Sistema da Política são realizados, de igual modo, por meio de um
padrão que mantém a unidade do Sistema.

Uma vez delimitadas e diferenciadas as estruturas internas de cada


sistema social, caracterizando seus processos de seleção e autorreprodução com
base em elementos próprios que mantêm a unidade do sistema, é possível
observar, de igual modo, a existência de pontos de contato contínuos entre as
estruturas dos referidos sistemas sociais. Esse ponto de observação, conceituado
por Maturana e Varela, da dinâmica dos seres vivos e utilizado por Luhmann em
teoria social é denominado de acoplamento estrutural: “O acoplamento surge
como resultado das modificações mútuas que as unidades interatuantes sofrem,
sem perder sua identidade, no decurso de suas interações.”³⁴

Esses pontos de contato contínuos (acoplamentos estruturais) surgem


quando um sistema social utiliza simultaneamente seus pressupostos
comunicativos e os elementos de outro sistema no momento da comunicação. No
caso do Sistema da Política, a partir de determinado momento da história,
mormente em eventos ao longo dos séculos XII e XIII, cada decisão da
organização do Sistema da Política que se formava (mais tarde passando a ser o
Estado) necessitava de uma fundamentação jurídica para a sua legitimidade³⁵.

Referido acoplamento contínuo de estruturas (acoplamento estrutural)


entre Política e Direito representa o que Luhmann denomina de Constituição.
Assim, toda vez que o Estado decide, ainda que com base na lógica governo/
oposição, com o intuito de aplicar seu poder coletivamente vinculante, essa
decisão precisa estar fundamentada em um elemento jurídico, sob pena de
controle pelos tribunais (organização do Sistema do Direito).

33 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 102.
34 MATURANA ROMESÍN, Humbert; VARELA GARCIA, Francisco J. De máquinas de seres vivos. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1997. p. 91.
35 THORNHILL, Chris. A Sociology of Constitutions: Constitutions and State Legitimacy in Historical-
Sociological Perspective. New York: Cambridge University Press, 2011. p. 43.
SUMÁRIO

228 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

A Constituição em Luhmann, portanto, forma-se pelo acoplamento


estrutural entre Direito e Política. Tal concepção passa a ser a base para os estudos
do constitucionalismo social, a exemplo do próprio trabalho de Thornhill, que
descreve historicamente esse processo de consolidação das constituições,
diferenciando as teorias anteriores de observação do Direito Constitucional em
relação à teoria sistêmica:

A análise normativa concentra-se no aspecto generalizado da


legitimidade. Observa, geralmente, a legitimidade como um
atributo do sistema político apto a providenciar justificativas
gerais e racionais para o referido sistema, a partir da descri-
ção de documentos escritos, seja por meio da análise de cons-
tituições, direitos constitucionais ou demais atos legislativos.
A análise histórico-sociológica foca no aspecto fático da legi-
timidade. Sustenta que o sistema político mantém legitimida-
de por meio do monopólio objetivo do poder, observando a
legitimidade (e o poder) como objetos simbólicos, generaliza-
dos pelo sistema da política, não por causa de seu conteúdo
substancial, mas em referência aos padrões sociais de deter-
minada sociedade.³⁶ (tradução livre).

Essa leitura da Constituição, enquanto acoplamento estrutural entre


Direito e Política, pode ser observada como uma referência não apenas no
trabalho de Thornhill³⁷, cujo objeto principal é a disseminação do meio “poder”
nas relações sociais ao longo da história, mas também nos recentes trabalhos de
Febbrajo³⁸ e sua distinção entre constituição formal e material.

36 “Normative analysis concentrates on the generalized aspect of legitimacy. It sees legitimacy as the a�ribute of
a political system able to provide nationally generalized justifications for itself and to reflect such justifications,
usually by means of a constitution and constitutional rights, in all irs legislative acts. Historical-sociological
analysis focuses on the factual aspect of legitimacy. It argues either that a political system maintains legitimacy
through its objective monopoly of social power, or it sees legitimacy as a symbolic commodity, which a political
system generalizes, not because of its substantive content, but through reference to the belief pa�erns or the
social structure of a given society.” TORNHILL, Chris. Towards a historical sociology of constitutional
legitimacy. Theory and Society. [S.l.]. V. 37, n. 2, p. 164.
37 THORNHILL, Chris. A Sociology of Constitutions: Constitutions and State Legitimacy in Historical-
Sociological Perspective. New York: Cambridge University Press, 2011. p. 43.
38 FEBBRAJO, Alberto. Sociologia do constitucionalismo: Constituição e teoria dos sistemas. Tradução de Sandra
Regina Martini. Curitiba: Juruá, 2017
SUMÁRIO

229
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

Para a perspectiva de Teubner³⁹, todavia, a ideia de fragmentação


constitucional parece muito mais vinculada à concepção de autopoiese em
Luhmann. Nesse sentido, o processo de autonomia das constituições civis
descritas no ambiente da globalização aproxima-se da ideia sistêmica de
autorreprodução dos sistemas sociais com base em elementos próprios e com
vistas à manutenção de sua unidade.

O maior desafio para Teubner, nesse sentido, é pensar mecanismos de


acoplamento estrutural entre esses novos fragmentos de constituição e uma
comunicação constitucional capaz de limitar os processos de avanço desenfreado
desses novos âmbitos parciais, a exemplo do que a Constituição tem feito ao
longo da história na concepção de Luhmann, conforme se demonstra a seguir.

2. Fragmentação constitucional: a perspectiva de Teubner sobre o


constitucionalismo social

A proposta de Teubner⁴⁰ para descrever o atual cenário da teoria


constitucional é fortemente influenciada pela sociologia sistêmica de Luhmann⁴¹.
Nesse sentido, seu trabalho se enquadra em uma leitura feita a partir da matriz
pragmático-sistêmica da teoria jurídica contemporânea⁴².

Da influência sistêmica, Teubner⁴³ utiliza fortemente um dos conceitos


fundamentais da teoria de Luhmann⁴⁴: o de sociedade mundial.

Considerando a sociedade não mais como um conjunto de indivíduos,


mas como espaço de comunicação, Luhmann⁴⁵ descreve a sociedade mundial
como o ambiente que abarca toda a comunicação possível no mundo; ponto a

39 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:


Saraiva, 2016.
40 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016.
41 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
42 ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2005.
43 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016.
44 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
45 LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Introducción e traducción de Ignacio
Izuzquiza. Barcelona: Paidós, 1990.
SUMÁRIO

230 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

partir do qual, quando se fala de sociedade em Luhmann⁴⁶, se está considerando


o mundo como um todo, sem destacar, em um primeiro momento, as diferenças
regionais. Essa perspectiva é exemplificada, na descrição de Nafarrate⁴⁷, como
galáxia da comunicação.

Perspectiva diversa a partir da teoria de Luhmann⁴⁸ é explorada por


Marcelo Neves⁴⁹ (em trabalho anterior) e Aldo Mascareño⁵⁰, com destaque para as
diferenças regionais no âmbito da Teoria dos Sistemas Sociais⁵¹.

A partir da sociedade mundial, Teubner⁵², na sequência de trabalhos


anteriores⁵³, delimita o foco (amplo foco) em que fará sua análise de um dos
pontos atuais do constitucionalismo: a fragmentação constitucional. Falando de
comunicação, e não mais de indivíduos enquanto contexto social, portanto,
Teubner⁵⁴, a exemplo de Luhmann⁵⁵, justifica sua proposta fundada em uma
matriz “[...] complexa, não naturalizada e pós-ontológica da sociedade e de suas
normas.”

Ao lado da concepção de sociedade mundial, que por vezes chama de


sociedade global, o conceito luhmanniano de diferenciação funcional é de suma
importância para a teorização de Teubner⁵⁶, especialmente para caracterizar o que
concebe por globalização.

Para Luhmann⁵⁷, há uma evolução social histórica demonstrando que, a


partir de determinado momento (final do século XVIII na Europa), a comunicação

46 LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Introducción e traducción de Ignacio


Izuzquiza. Barcelona: Paidós, 1990.
47 NAFARRATE, Javier Torres. Galáxias de comunicação: o legado teórico de Luhmann. Lua Nova, n. 51, p.
144-161, 2000.
48 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
49 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994.
50 MASCAREÑO, Aldo. Diferenciación y contingencia en América Latina. Ediciones Universidad Alberto
Hurtado: Santiago de Chile, 2010.
51 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
52 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016.
53 TEUBNER, Günther. Direito, Sistema e Policontexturalidade: Piracicaba: UNIMEP, 2005.
54 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 28.
55 LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Introducción e traducción de Ignacio
Izuzquiza. Barcelona: Paidós, 1990.
56 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016.
57 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
SUMÁRIO

231
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

que caracteriza a sociedade passa a ser organizada por meio de diferentes


sistemas, cada qual encarregado de selecionar um tipo de comunicação específica
(Direito, Política, Religião, Economia, entre outros). Já em Teubner⁵⁸, a
globalização se desenvolve em concomitância ao processo de diferenciação
funcional que, iniciada na Europa e na América do Norte, passou, a partir da
globalização, a ser observável em uma perspectiva mundial.

Para Teubner⁵⁹, “A diferenciação funcional da sociedade não é uma


questão de decisão política fundamental, mas sim um processo evolutivo
complicado, no qual distinções diretivas fundamentais se cristalizam
gradualmente e instituições especializadas se formam de acordo com sua lógica
própria.”

Nesse cenário de globalização (diferenciação funcional espalhada por


todo o globo terrestre), Teubner⁶⁰ afirma que alguns dos sistemas mencionados
por Luhmann⁶¹ (Religião, Ciência e Economia) estabeleceram-se facilmente em
nível mundial. Por outro lado, os sistemas da Política e do Direito – pontos
centrais em sua análise – permanecem como esferas a serem observadas no
contexto dos Estados Nacionais.

A partir dessa consideração, surge a problemática abordada por


Teubner⁶²: “[...] como os sistemas parciais podem adquirir maior grau de
autonomia no plano global, caso não haja instituições político-jurídicas que
apoiem esse processo?”

Na teoria sociológica de Luhmann⁶³, base para a proposta de Teubner,


os sistemas sociais caracterizam-se, no seu âmbito de individualidade, além da
seleção de um tipo de comunicação específica, por dois tipos de função: uma
função comum e outra específica. A função comum dos sistemas sociais é reduzir
complexidade no contexto da sociedade mundial. A função específica varia de

58 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:


Saraiva, 2016. p. 91.
59 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 70.
60 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 91.
61 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Barcelona: Anthropos, 1998.
62 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 92.
63 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes: 2016. p. 545-588.
SUMÁRIO

232 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

sistema a sistema. A do Sistema Direito é estabilizar expectativas em relação a


decepções possíveis; a do Sistema da Política é tomar decisões coletivamente
vinculantes⁶⁴.

Levando-se em conta a função específica de cada sistema e da


capacidade de selecionar os elementos (comunicação) que formam o seu interior,
Luhmann⁶⁵ considera que os diferentes sistemas sociais são autopoiéticos, ou seja,
capazes de produzir/selecionar os elementos que o compõem por meio da
autonomia que lhes é própria.

Nesse cenário é possível elucidar a problemática proposta por


Teubner⁶⁶. Se, por um lado, os sistemas sociais com maior capacidade de
reprodução a nível mundial são dotados de autonomia (Religião, Ciência e
Economia) e, portanto, capazes de selecionar seus próprios elementos e exercem
sua função específica a nível global, por outro lado, sistemas como Direito e
Política encontram-se majoritariamente limitados ao âmbito de atuação dos
Estados Nacionais, fato que lhes impede o exercício pleno das funções que os
caracterizam.

Assim, uma vez que o Sistema da Política, cuja função é tomar decisões
coletivamente vinculantes utilizando-se de um meio de comunicação
simbolicamente generalizado (poder)⁶⁷, e o Direito, encarregado de estabilizar
expectativas em relação a decepções possíveis, estão limitados ao âmbito dos
Estados Nacionais, os demais sistemas citados por Teubner⁶⁸ (Religião, Ciência e
Economia) possuem maior capacidade de expansão. Esse é o ponto central da
problemática de Teubner⁶⁹.

Baseado nesses fatos, Teubner⁷⁰ destaca que, com o surgimento de


regimes transnacionais, os processos políticos de poder (código de Sistema da

64 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes: 2016. p. 545-588.
65 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
66 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016.
67 LUHMANN, Niklas. Poder. Tradução de Martine Creuset de Rezende Martins. 2. ed. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1992.
68 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016.
69 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016.
70 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 25-26.
SUMÁRIO

233
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

Política) deslocaram-se para as mãos de atores coletivos privados. Assim, o


contexto de análise constitucional não pode mais ser calcado na centralidade de
Estado e Política. Tal perspectiva justifica o âmbito de estudos da sociologia das
constituições⁷¹.

O Sistema da Economia é um dos exemplos utilizados por Teubner⁷²


para caracterizar a tendência expansionista de determinados sistemas sociais ante
a ausência da forte presença dos sistemas da Política e do Direito no cenário
global. Caracterizado pelo código binário lucro/não lucro e utilizando-se do meio
de comunicação simbolicamente generalizado do dinheiro, o Sistema da
Economia, como sistema autopoiético, representa um dos sistemas com
inclinações expansionistas na sociedade mundial, formando o que Teubner⁷³
denomina de constituição econômica autônoma:

Propriedade, contrato, concorrência, instituições monetárias –


essas instituições fundamentais formam, no ordoliberalismo,
a constituição econômica autônoma, que não se esgota nas
normas do direito constitucional estatal, mas sim resulta de
uma interação entre autorregulação econômica, conhecimento
das ciências econômicas e normatização jurídico-política.

Inicialmente, a conceituação de constituição utilizada por Teubner⁷⁴


está diretamente ligada ao conceito de autopoiese explorado por Luhmann⁷⁵, a
partir da influência dos estudos biológicos desenvolvidos por Maturana e
Varela⁷⁶.

71 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 27.
72 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 27.
73 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 74.
74 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 112.
75 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
76 MATURANA ROMESÍN, Humberto; VARELA GARCIA, Francisco J. El arbol Del conocimiento: Las bases
biológicas del conocimiento humano. Madrid: Debate, 1996.
SUMÁRIO

234 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Se, por um lado, Luhmann⁷⁷ descreve as possibilidades de observação


da consolidação histórica dos sistemas sociais na sociedade mundial, cada qual
com seu tipo de comunicação e funções específicas, determinando seus limites
face ao entorno e suas possibilidades de evolução por meio de um processo
autônomo comparado à autopoiese dos sistemas vivos e psíquicos (Autopoiese);
por outro, Teubner⁷⁸ vale-se dessa concepção para observar o modo como os
regimes privados (de modo autopoiético) dotam-se de autonomia no âmbito da
sociedade mundial, reproduzindo comunicação jurídica e com o poder de
vincular e limitar atos de comunicação de outros sistemas na ordem global,
formando verdadeiras constituições para além dos tradicionais sistemas do
Direito e da Política.

Portanto, o que Luhmann observa como autopoiese dos sistemas


sociais, Teubner descreve como a formação de constituições parciais na sociedade
mundial.

Além da concepção de autopoiese, outro conceito fundamental da


Teoria do Direito explica a terminologia adotada por Teubner em sua teoria: a
ideia de sanção jurídica em Kelsen. Característica fortemente explorada por
Kelsen⁷⁹, um dos maiores representantes da corrente normativista, a sanção
jurídica parece a possibilidade efetiva que o Estado tem, enquanto sistema social
dotado de poder, de oferecer uma resposta ao descumprimento dos preceitos
destacados na ordem jurídica. Assim pode, o Estado, nos termos da estática
jurídica de Kelsen, aplicar uma sanção (vincular o poder de decisão do outro em
Luhmann) face à violação das normas.

Na globalização, todavia, como a formação de constituições autônomas


descrita por Teubner não está mais vinculada aos tradicionais sistemas do Direito
e da Política, não é mais possível observar as possibilidades de atuação do Estado
em casos de descumprimento dessas normas autônomas encontradas no cenário
global de comunicação jurídica.

Sendo assim, a sanção jurídica, emanada tradicionalmente do Sistema


do Direito, a partir de um acoplamento estrutural com o Sistema da Política, passa

77 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
78 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016
79 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
SUMÁRIO

235
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

a não mais exercer um papel fundamental para o processo de aprendizado


sistêmico⁸⁰.

Nesse contexto, a partir da constatação de que existe um ambiente de


normatividade com a ausência de um dos pontos fundamentais para o
normativismo (a sanção), retoma-se a ideia de não mais normas, mas
fragmentos⁸¹. Fragmentos, na teoria de Kelsen e nas suas observações feitas por
Hart⁸², descrevem justamente a ideia de normas que não possuem sanções, ou
seja, as normas existem, a exemplo do próprio Direito Internacional, mas cujo
descumprimento não pode ser reprimido pela utilização da força do Estado.

Formam-se, portanto, âmbitos autônomos, com comunicação jurídica


própria na sociedade mundial: o que Luhmann descreveria como autopoiese dos
sistemas sociais e Teubner denomina de Constituições. São esferas, todavia, que
possuem normatividade fragmentada, na medida em que a violação de suas
disposições não pode ser reprimida por meio da utilização da força do Estado.
Há, portanto, fragmentos de normas nas constituições parciais.

Dessa união entre a formação de constituições parciais (autopoiese) e a


existência interna de fragmentação normativa em seu interior dá guarida para o
que Teubner descreve como fragmentos constitucionais.

Ao lado das constituições econômicas descritas por Teubner⁸³, outras


esferas também se autonomizam no cenário global, elucidando suas pretensões
de expansão. São as constituições: “[...] da seguridade social, da imprensa, do
sistema de saúde e, em alguma medida, também da ciência e da religião.” A
tendência expansionista de referidos sistemas, levando-se em conta a
desvinculação territorial entre esses e a Constituição (acoplamento estrutural
entre Direito e Política), forma o que Teubner⁸⁴ denomina de tensão latente.

80 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:


Saraiva, 2016. p. 178.
81 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 178.
82 HART, Herbet. The concept f Law. London: Oxford, 1994. p. 35.
83 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 93.
84 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 27.
SUMÁRIO

236 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Todavia, na constituição econômica está a maior insistência de


Teubner⁸⁵ para considerar a tendência expansionista de alguns dos sistemas
sociais no cenário global. Entre os fatores que determinam a tendência
expansionista do Sistema da Economia encontra-se a emancipação constitucional
da Organização Mundial do Comércio (OMC). Segundo Teubner⁸⁶, referida
entidade passou por um processo próprio de constitucionalização caracterizado
pelas seguintes direções: “[...] a juridificação da resolução de conflitos, a adoção
do princípio da nação mais favorecida, a prevalência das normas comerciais
sobre o processo político e a opção da eficácia direta.”

Paralelamente ao Sistema da Economia, com forte tendência


expansionista, outros sistemas dotados de autonomia própria desenvolvem o que
Teubner⁸⁷, em um momento inicial, denomina de constituições. Um dos exemplos
é a constituição da internet, elaborada a partir da elaboração de normas da
ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), que recorre a
legislações de vários países para propor normas de direitos fundamentais com
vinculação transnacionais. Baseados nas peculiaridades do mundo da internet,
surge o que Teubner⁸⁸ denomina de direitos fundamentais da internet⁸⁹.

De igual modo, diversos outros âmbitos autônomos da sociedade


mundial podem ser observados até mesmo como referências para a atuação dos
sistemas do Direito e da Política no contexto atual. Nesse sentido, a Organização
Mundial da Saúde (OMS), cuja formação conta com uma autodenominada
constituição própria, emana suas diretrizes para o tratamento de casos de saúde
de nível global, mormente atos de controle a pandemias, e essas recomendações
são diretamente executadas por diferentes Estados (organizações do Sistema da
Política) e influenciam diretamente no controle de atos da Política realizados pelo

85 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:


Saraiva, 2016. p. 112.
86 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 112.
87 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 112.
88 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 114.
89 ROCHA, Leonel Severo; MOURA, Ariel Augusto Lira de. Epistemologia das redes e a governança digital da
Icann: teoria e práxis do direito na cultura das redes. In. ROCHA, Leonel Severo; COSTA, Bernardo Leandro
Carvalho. Atualidade da Constituição: o constitucionalismo em Luhmann, Febbrajo, Teubner e Vesting. Porto
Alegre: FI, 2020. p. 504-539.
SUMÁRIO

237
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

poder judiciário (Sistema do Direito) de cada Estado a partir de decisões dos


tribunais⁹⁰.

Esse movimento contribui para uma releitura do próprio texto


constitucional de cada país (perspectiva normativa tradicional) por meio de sua
compatibilização, cumprimento e interação com as diretrizes de uma autoridade
constitucional autônoma na ordem global. Envolve, portanto, um verdadeiro
movimento de transnacionalidade.

Portanto, o arcabouço destacado em Teubner nos oferece uma série de


observações e soluções aos problemas atuais da ordem global. Além da já
destacada relevância da Organização Mundial da Saúde (OMS) na releitura atual
acerca do Direito Constitucional tradicional, envolvendo, no Brasil, o próprio
Direito à Saúde previsto na Constituição Federal Brasileira de 1988, é possível
descrever e propor outras relevantes articulações entre os sistemas tradicionais do
Direito e da Política de cada Estado e atores autônomos da ordem global.

Nesse sentido, por meio do estímulo de pontos comuns de observações


desses sistemas sociais tradicionais (Direito e Política) de cada país e os atores
emergentes da ordem global, é possível elencar os “atratores” que possibilitariam
uma governança global para a solução de novos problemas constitucionais⁹¹.

Por meio desse método, é possível descrever como o Brasil apurou


efetivamente crimes transnacionais ao longo dos últimos anos, contando com o
auxílio de outros países e de organizações internacionais autônomas para a
realização de troca de informações suspeitas envolvendo lavagem de dinheiro.
Trata-se de crime cuja apuração interessa diferentes Estados (Sistema da Política)
e atores da ordem global, principalmente organizações do Sistema da Economia
(instituições bancárias), cuja articulação para resolução está diretamente
vinculada à formação de um projeto de governança estabelecido com a formação

90 ROCHA, Leonel Severo; COSTA, Bernardo Leandro Carvalho. A transnacionalidade do Direito Constitucional
no tratamento da Covid-19: as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a formação de uma
terceira fase do Direito Constitucional. In: Wilson Engelmann. (Org.). Sistema do Direito, Novas Tecnologias,
globalização e o constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas. 1ed. São Leopoldo: Casa Leiria,
2020, v. 1, p. 117-140.
91 COSTA, Bernardo Leandro Carvalho.; ROCHA, Leonel Severo. A crônica de uma morte anunciada em Gunther
Teubner e o papel dos atratores na articulação do direito regulatório na globalização. In: Vicente de Paulo
Barre�o; Sara Alacoque Guerra Zaghlout; Paulo Thiago Fernandes Dias. (Org.). Sentir o Direito: pesquisa e
cultura jurídicas na interação com cinema e literatura. 1ed. Porto Alegre: Fi, 2020, v. 1, p. 21-36.
SUMÁRIO

238 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

do Grupo de Ação Financeira Internacional⁹², que agrega representantes dessas


diferentes esferas. A troca constante de informações entre países e instituições
bancárias sobre a remessa de dinheiro suspeito ao exterior, bem como a aplicação
de legislação⁹³ baseada em recomendações do Grupo de Ação Financeira
Internacional⁹⁴ foram traços marcantes da Operação Lava Jato no Brasil⁹⁵.

Após a constatação da formação de diversas ordens jurídicas com


características de uma constituição, desenvolvidas a partir de processos de “[...]
autoconstitucionalização de ordens globais sem Estado”, Teubner⁹⁶ conclui que
ante a diferença em termos de adaptabilidade à diferenciação funcional em escala
global (sociedade mundial) dos sistemas com facilidade e tendências para a
expansão, a exemplo da economia, e dos Sistemas da Política e do Direito, que
permanecem fortemente ligados ao âmbito nacional, a tradição do
constitucionalismo moderno é rompida, apresentando-se um novo contexto no
constitucionalismo: o de fragmentação constitucional⁹⁷.

A Constituição como acoplamento estrutural entre os sistemas da


Política e do Direito – tese de Luhmann para o Estado Nacional – não encontra
correspondência no âmbito da sociedade mundial. O que há são “fragmentos de
um common law”⁹⁸. Partindo da ordem global e comparando o atual momento
com a perspectiva tradicional do constitucionalismo, Teubner⁹⁹ afirma que “No
mar da globalidade, formam-se apenas ilhas de constitucionalidade.”

92 FINANCIAL ACTION TASK FORCE (FATF). Who We Are. Disponível em: h�p://www.fatf-gafi.org/about/ >.
Acesso em: 03. jun. 2021
93 BRASIL. Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012. Altera a Lei no 9.613, de 03 de março de 1998, para tornar mais
eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro. Disponível em: < h�p://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12683.htm#art2>. Acesso em: 03. jun. 2021
94 FINANCIAL ACTION TASK FORCE (FATF). 40 Recommendations. Disponível em: < h�p://www.fatf-gafi.org/
media/fatf/documents/recommendations/pdfs/FATF_Recommendations.pdf>. Acesso em: 03. jun. 2021.
95 ROCHA, Leonel Severo; COSTA, Bernardo Leandro Carvalho. Direito Constitucional Transnacional:
Observações sobre os atratores sistêmicos entre Direito, Economia e Política na articulação transnacional para
a apuração da Lavagem de Dinheiro. Revista de Direito Mackenzie, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 1-22, 2020.
96 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 107-109.
97 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 107.
98 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 107.
99 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 107.
SUMÁRIO

239
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

Nesse contexto, fundam-se autonomamente (autopoiese em


Luhmann¹⁰⁰) diversos sistemas com características de constituições na ordem
mundial. Todavia, carecem do suporte dos sistemas do Direito e da Política¹⁰¹.

Assim, na seara constitucional – principal ponto explorado –, regimes


transnacionais especializados concorrem, na condição de sujeitos constitucionais,
com os Estados Nacionais¹⁰².

Após a constatação do problema que impulsiona seus estudos em


sociologia do constitucionalismo (o atual ambiente de fragmentação
constitucional que predomina na ordem mundial), Teubner¹⁰³ lança algumas
hipóteses para expressar sua contribuição às problemáticas atuais. Inicialmente,
questiona se as constituições, baseando-se novamente no acoplamento estrutural
entre Direito e Política em Luhmann¹⁰⁴, ainda poderiam limitar as tendências
expansionistas dos demais sistemas que formam constituições autônomas na
ordem mundial. Essa seria a proposta de um constitucionalismo social, expressão
que dá nome ao subtítulo de sua obra, a partir da proposta de integração entre as
diferentes ordens¹⁰⁵.

Como hipótese a uma tentativa de constitucionalismo social, em


resposta à fragmentação constitucional, uma das propostas de Teubner¹⁰⁶ é a
existência de uma constitucionalização híbrida:

Requer-se, aqui, uma “constitucionalização híbrida”; que for-


ças sociais externas, ou seja, normatizações jurídicas e contra-
poder da “sociedade civil” que se constituem paralelamente
aos meios de poder estatal e advém de outros contextos – dos
meios de comunicação em massa, das discussões públicas,

100 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
101 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 108.
102 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 267.
103 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 163.
104 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes: 2016. p. 545-588.
105 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 28.
106 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 161.
SUMÁRIO

240 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

dos protestos espontâneos, dos intelectuais, movimentos soci-


ais, ONGS, sindicatos, profissões e suas organizações –, ge-
rem uma pressão tão massiva sobre os sistemas funcionais ex-
pansionistas, que são criadas autolimitações internas que re-
almente funcionam.

Tal proposta de Teubner¹⁰⁷ leva em conta a possibilidade de evolução


sistêmica a partir da consideração do que envolve o ambiente de cada um dos
sistemas sociais. Assim, para possibilitar intervenções externas em sistemas com
tendências expansionistas, deve-se levar em consideração a possibilidade de
tradução do que passa no entorno (ambiente do sistema), possibilitando, assim,
uma automodificação. O objetivo, na proposta de Teubner¹⁰⁸, é fazer com que
impulsos externos (políticos, jurídicos e sociais) culminem em mudanças na
constituição interna dos diferentes sistemas; algo próximo do que Luhmann
concebe por irritação.

A partir de “pressões por aprendizagem” (irritação), segundo


Teubner¹⁰⁹, são possíveis os processos de tradução que “[...] transpõem as
fronteiras sistêmicas; emerge uma circulação de perturbação recíproca entre atos
jurídicos, pressões de poder político e social, [...].”

Após elencar uma das possibilidades do constitucionalismo social,


Teubner¹¹⁰ retoma as definições de Constituição que tomam parte de sua obra.

Inicialmente, cabe destacar que o conceito de Constituição trabalhado


por Teubner¹¹¹, em um primeiro momento, aproxima-se do conceito de
autopoiese na Teoria dos Sistemas Sociais de Luhmann¹¹². A partir dessa

107 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 163.
108 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 163.
109 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 163.
110 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 163.
111 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016
112 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
SUMÁRIO

241
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

concepção, é baseada a afirmação de que existem diversas constituições


independentes dos sistemas da Política e do Direito na ordem global.

Avançando, colocam-se algumas condições para a adequada formação


de constituições globais. São elementos essenciais para que se possa falar, nos
sentidos jurídico-sociológico e jurídico-técnico de “[...] uma constituição política
global, de uma constituição econômica global, de uma constituição global do
sistema da ciência e da educação, ou de uma constituição digital da internet.”¹¹³

Todavia, ao expressar o que entende por Constituição, avançando para


além do conceito de autopoiese de Luhmann¹¹⁴, Teubner¹¹⁵ afirma que um dos
pressupostos para a existência de uma Constituição em sentido estrito é a
produção de instituições de ligação (acoplamento estrutural) entre a
normatização produzida em cada um dos diferentes sistemas que ambicionam a
formação de uma Constituição e o âmbito social:

Deve-se apenas falar em constituição em sentido estrito


quando a reflexividade sistêmico-específica de um sistema
social – seja da política, da economia ou de outros setores – é
apoiada pelo direito – ou, mais precisamente, pela reflexivi-
dade do direito. Constituições surgem somente quando
emergem fenômenos de dupla reflexividade – reflexividade
do sistema social que se autoconstitui e reflexividade do di-
reito que apoia tal processo de autofundação constitutiva.¹¹⁶

A partir dessa proposta, formar-se-iam mecanismos reflexivos com a


presença de normatizações secundárias capazes de descrever “[...] como deve
ocorrer a identificação, a criação, as mudanças e o regulamento de competências
para admitir e para delegar normas primárias.”¹¹⁷

113 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 197.
114 LUHMANN, Niklas. La sociedad de La sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.
115 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 193.
116 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 193.
117 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 195.
SUMÁRIO

242 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

A saída, para Teubner¹¹⁸, portanto, é retomar o conceito de Constituição


desenvolvido a partir do acoplamento estrutural entre Direito e Política na Teoria
dos Sistemas Sociais de Luhmann¹¹⁹. Tal processo, em sua proposta, é capaz de
contribuir para uma construção de identidade e autonomização da política na
ordem mundial a partir de uma reflexividade que possibilitaria a formação de um
metacódigo híbrido (normas secundárias)¹²⁰ que conduziriam à formação de
constituições globais.¹²¹

Considerações finais

Como se viu ao longo do trabalho, para apresentar cenários atuais da


teoria constitucional, ambos os autores trabalhados (Luhmann e Teubner¹²²) são
capazes de apontar elementos diferentes para a observação do Direito
Constitucional, aptos a superarem a insuficiência das teorias tradicionais do
constitucionalismo para o enfrentamento dos novos problemas da ordem
mundial.

Para constatar o deslocamento dos centros de tomada de decisão dos


Estados Nacionais para a mão de atores privados e organizações que atuam no
plano global faz-se de suma importância os estudos voltados ao
constitucionalismo social.

Viu-se, desse modo, como Luhmann apresenta a concepção de


autopoiese, vinculada à metáfora organicista da sociedade inspirada nas teorias
de Maturana e Varela para descrever o modo autônomo dos sistemas sociais de
autorreprodução no sistema social.

A diferenciação entre os sistemas sociais permite que a evolução


sistêmica ocorra sem que o sistema social perca sua unidade. Por essa razão,
Luhmann afirma que “o fechamento é a condição de abertura”, ou seja, para dizer

118 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 198.
119 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes: 2016. p. 545-588.
120 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 195.
121 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 198.
122 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016.
SUMÁRIO

243
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

que o Sistema do Direito passou a agregar comunicação que antes não era
jurídica, precisa-se, de plano, descrever o que é Direito e o que não é. É necessário,
portanto, diferenciar. Trata-se, desde já, de uma observação sistêmica.

Por meio desse processo de fechamento como condição de abertura, é


possível que os sistemas sociais estabeleçam pontos contínuos de contato,
estando-se acoplados em seus pontos de sua estrutura. Essa concepção, também
baseada nas teorias de Maturana e Varela, é apresentada por meio da definição de
acoplamento estrutural, que representam pontes de conexão comunicativa entre
sistemas sociais.

Nessa perspectiva, é possível observar o modo como as Constituições


representam um ponto de contato contínuo (acoplamento estrutural) entre os
sistemas sociais do Direito e da Política, de modo que toda a decisão do Estado
(organização do Sistema da Política) prescinde de um fundamento jurídico, sob
pena de controle pela sua organização própria (tribunais como organizações do
Sistema do Direito). Esse ponto de contato (acoplamento estrutural entre Direito
e Política) forma o que Luhmann denomina de Constituição.

Teubner¹²³, por sua vez, utiliza o conceito de autopoiese de Luhmann


para descrever a formação de subsistemas autopoiéticos em escala global,
formando, a partir de uma racionalidade própria, o que denomina de
constituições. Nesse cenário, que envolve o surgimento de novos atores na
sociedade mundial, passa-se de um contexto anterior de normativismo galgado
na figura do Estado Nacional para uma perspectiva de fragmentação
constitucional, em que a teoria anterior, com ênfase na Política e Direito como
sistemas centrais na tomada de decisões, perde seu valor tradicional.

O que Teubner descreve como constituições, portanto, é muito próximo


da conceituação de autopoiese em Luhmann.

Como resposta ao problema, propõe a formação de um


constitucionalismo híbrido, não ignorando a formação de constituições
autônomas baseadas em atores privados, mas apostando em uma possível
irritação advinda de meios de comunicação de massa, discussões públicas,
movimentos de protestos, de intelectuais, movimentos sociais, ONGs, sindicatos
e organizações profissionais; forças capazes de gerar um aprendizado recíproco

123 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016.
SUMÁRIO

244 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

entre sistemas a partir de uma possível tradução de impulsos externos em


incentivos internos no âmbito de cada constituição civil¹²⁴.

O acoplamento estrutural histórico entre Política e Direito descrito por


Luhmann é o grande desafio a ser proposto por Teubner como enfrentamento ao
atual cenário de fragmentação constitucional. Em uma perspectiva ideal, cada
fragmento constitucional deveria estar limitado (acoplado) a uma base mínima de
condição de juridicidade de seus atos, a exemplo da concepção de Constituição
em Luhmann.

Ao mesmo tempo, portanto, Teubner¹²⁵ retoma a concepção de


Constituição a partir de um acoplamento estrutural possibilitado entre os
sistemas da Política e do Direito, fundamental para a possível formação de um
metacódigo capaz de conduzir a formação de constituições globais por meio de
normas secundárias.

Como se viu, portanto, a observação de uma nova fase do


constitucionalismo está diretamente vinculada às concepções de Luhmann sobre
autopoiese e acoplamento estrutural, que, conectadas à metáfora organicista da
sociedade inspirada em Maturana e Varela, formam a base para o seu conceito de
Constituição, que atrela historicamente a vinculação do Sistema da Política ao
Sistema do Direito, ainda vinculados às bases de Estados nacionais.

Partindo dessa conceituação, Teubner descreve como constituições os


movimentos de autonomia dos fragmentos constitucionais na globalização, ou
seja, para além dos limites territoriais tradicionais, sendo seu maior desafio e
proposta a retomada de um possível acoplamento estrutural entre essas
estruturas e os pressupostos do Sistema do Direito.

Tratam-se, atualmente, de bases imprescindíveis para compreender e


aplicar o constitucionalismo social como uma terceira fase do Direito
Constitucional.

124 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 161.
125 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 195.
SUMÁRIO

245
Leonel Severo Rocha
CAPÍTULO 12

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SUMÁRIO

Capítulo 13

AS DIRETRIZES DAS
NAÇÕES UNIDAS DE
PROTEÇÃO AO
CONSUMIDOR E A SUA
IMPLEMENTAÇÃO NO
MERCOSUL
o direito à informação como ferramenta
para o fomento do consumo
sustentável nos Estados Partes

Luciane Klein Vieira


SUMÁRIO

250 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

AS DIRETRIZES DAS NAÇÕES UNIDAS DE PROTEÇÃO AO


CONSUMIDOR E A SUA IMPLEMENTAÇÃO NO MERCOSUL:
o direito à informação como ferramenta para o fomento do consumo
sustentável nos Estados Partes¹

Luciane Klein Vieira²

Introdução

A sustentabilidade³ e a sua correlata preocupação com as gerações


atuais e futuras tem sido uma saída para a proteção do meio ambiente,
permitindo o uso consciente dos recursos naturais, mas requerendo, em
contrapartida, a sua preservação.

Diante deste contexto, adquire especial relevo o papel do consumidor


como agente da sustentabilidade, na medida em que também é responsável, por

1 Os resultados apresentados neste artigo estão vinculados aos seguintes Projetos de Pesquisa coordenados pela
Prof.ª Dr.ª Luciane Klein Vieira: “Coexistência, cooperação e solidariedade: o diálogo entre o Tribunal
Permanente de Revisão e os tribunais constitucionais nacionais para a uniformização da interpretação e
aplicação do Direito Ambiental e do Direito do Consumidor, no MERCOSUL” (UNISINOS) e “A
implementação das Diretrizes das Nações Unidas de Proteção ao Consumidor, de 2015, em matéria de
consumo sustentável, no Direito brasileiro” (FAPERGS – Edital ARD nº 4/2019).
2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Doutora em Direito (área: internacional) e Mestre em Direito Internacional Privado, Universidad de Buenos
Aires - UBA. Mestre em Direito da Integração Econômica, Universidad del Salvador – USAL e Universitè Paris
I – Panthéon Sorbonne. Diretora para o MERCOSUL do BRASILCON (Instituto Brasileiro de Política e Direito
do Consumidor) – Gestão 2020-2022. Ex-Consultora internacional contratada pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura – UNESCO. E-mail: lucianevieira@unisinos.br
3 O termo “sustentabilidade” foi cunhado durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
Humano (United Nations Conference on the Human Environment - UNCHE), realizada em Estocolmo, na
Suécia, em 1972.
SUMÁRIO

251
Luciane Klein Vieira
CAPÍTULO 13

meio de suas escolhas, pelo impacto causado pelo consumo de produtos e


serviços no meio ambiente. Em outras palavras, o consumidor consciente é capaz
de promover o equilíbrio entre a satisfação de suas necessidades e a
sustentabilidade do produto ou serviço, demonstrando uma mudança no
processo de reflexão para fins de consumo, que deixa de ser individual e passa a
buscar resultados coletivos (NORAT; BARROS, 2019, p. 110).

Levando em consideração a necessidade de preservação ambiental, as


Nações Unidas (ONU), por meio das Diretrizes de Proteção ao Consumidor,
revisadas em 2015, e também em atenção aos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (ODS), previstos na Agenda 2030⁴, têm lançado algumas orientações
para os Estados, no sentido de direcioná-los à adoção de legislação, bem como de
políticas públicas que promovam tanto a produção quanto o consumo
sustentáveis, o que demonstra um evidente entrelaçamento entre o direito do
consumidor e o direito ambiental, como produtos do que se denomina “novos
direitos”. Entre essas orientações, encontra-se, portanto, a necessidade de brindar
informação ao consumidor, de modo a substituir a lógica do consumo pela lógica
ecológica⁵ (FRANZOLIN, 2018, p. 139-140) e, assim, implementar práticas de
consumo sustentável.

4 Para mais detalhes sobre o histórico da construção dos ODS’s, bem como sobre as metas contidas na agenda
global e nacional, ver: BARBIERI, 2020, p. 128-195.
5 Conforme a doutrina, “a lógica do consumo é distinta da lógica ecológica. A lógica do consumo: i. é movida
pelo interesse do mercado; ii. é imediatista e decorrente da ‘cultura agorista’; iii. é baseada na relação homem-
objeto e natureza-objeto; iv. é de natureza social e cultural, isto é, consumo é a ‘vida cotidiana’; v. é materialista;
vi. é baseada em necessidades ilimitadas; vii. é estabelecida na conexão entre bem-estar dos consumidores e
seus bens de consumo; viii. é relacionada à abundância e satisfação imediata; ix. é estimulada a
descartabilidade de bens de consumo; x. é reconhecida a prescritibilidade dos danos aos consumidores. Já a
lógica ecológica: i. é baseada em valores distintos do mercado; ii. é relacionada aos interesses e situações
futuras; iii. é amparada na completude e no vínculo homem-natureza, sem a redução de um ao outro; iv. é
baseada em bens incorpóreos e imateriais; v. é não materialista; vi. é amparada na limitabilidade dos recursos
naturais; vii. é avaliada a partir da conexão entre bem-estar dos indivíduos e bens ambientais; viii. é
relacionada na necessidade de preservação do direito ao acesso dos bens ambientais pelas futuras gerações; ix.
é baseada na não descartabilidade de bens ambientais; x. é defendida a imprescritibilidade de ações civis
relacionadas aos danos ambientais. Todavia, embora haja diversidades entre interesses do consumo em relação
aos ecológicos, é possível reconhecer entre eles pontos de intersecção, os quais podem contribuir para o
intérprete esverdear o direito do consumidor e juridicizar a construção do consumo sustentável, quais sejam:
i. representam novos direitos o direito do consumidor e o direito ambiental; ii. envolvem riscos não só
presentes, mas, também, futuros, ainda que incertos; iii. integram os direitos humanos; iv. demandam proteção
do Estado, quanto ao direito ao consumo e o direito ao meio ambiente, seja sob a perspectiva da dimensão
subjetiva individual, seja sob a perspectiva da dimensão coletiva e indeterminada; v. incorporam novos
desafios ao intérprete para a construção de deveres de natureza ambiental aos fornecedores.” (FRANZOLIN,
2018, p .140-142).
SUMÁRIO

252 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Partindo dessa referência, este artigo, tendo por base as orientações


contidas nas Diretrizes das Nações Unidas de Proteção ao Consumidor, bem
como levando em consideração a trajetória do Mercado Comum do Sul
(MERCOSUL), que em 2021 celebra seus 30 anos de existência, pretende
responder ao seguinte problema de pesquisa: os avanços registrados no
MERCOSUL, desde 1991 até a presente data, em torno à implementação de
práticas voltadas ao consumo sustentável, tanto no que se refere ao direito
produzido quanto aos temas vinculados à agenda atual do bloco, preocupam-se
em implementar as orientações onusianas, sobretudo no que tange ao dever de
informação ao consumidor, apresentado como ferramenta para o alcance da
sustentabilidade? Para responder ao problema de pesquisa proposto, utilizar-se-á
os métodos de análise normativo-descritivo e comparativo, valendo-se de
pesquisa de cunho bibliográfico e documental.

1. As Diretrizes das Nações Unidas de Proteção ao Consumidor, o dever


de informação e o consumo sustentável

A adoção de práticas sustentáveis, desde a ótica tanto da produção


quanto do consumo, tem sido uma preocupação constante nas Diretrizes das
Nações Unidas de Proteção ao Consumidor (CIPRIANO, 2020, p. 153-156), desde
a sua primeira revisão, ocorrida em 1999, resultado da clara influência exercida
pela ECO 92 (MARQUES, 2016, p. 88-89).

No mesmo sentido, o texto revisado em 2015, coloca a promoção do


consumo sustentável como um dos objetivos a serem perseguidos pelos Estados
(item I.1.h), sendo a promoção de modalidades de consumo sustentáveis (item
III.5.i), o acesso do consumidor a uma informação⁶ adequada que lhe permita
fazer escolhas bem fundadas (item III.5.e) e a educação do consumidor sobre as
consequências ambientais derivadas de suas escolhas (item III.5.f), princípios
gerais buscados pelo documento internacional em análise (UNCTAD, 2016, p. 7).

Tal como já se adiantou em outra oportunidade, uma das causas da


assimetria na relação de consumo está relacionada ao fato de que o fornecedor

6 A Convenção sobre o Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de Tomada de Decisão e


Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente, de 1998, conhecida como Convenção de Aarhus, foi o documento
que finalmente consagrou, no plano internacional, o direito de acesso à informação ambiental (LEITÃO, 2012,
p. 40).
SUMÁRIO

253
Luciane Klein Vieira
CAPÍTULO 13

não só detém o poder econômico, mas também é quem conhece a natureza, as


características do produto ou serviço, é quem está de posse da informação a
respeito do que produz, como produz, que métodos são empregados para a
obtenção do produto final (MADRID MARTÍNEZ; VIEIRA, 2017, p. 180). Essa
informação o consumidor não possui e isto gera uma das várias facetas de sua
vulnerabilidade, conhecida como vulnerabilidade informacional⁷. Logo, o dever
de informar, que recai sobre o fornecedor, busca reduzir tal debilidade e é reflexo
dos princípios da transparência e da boa-fé (MARQUES, 2014, p. 840 e 842).
Portanto, quando se impõe ao fornecedor o dever de informar, busca-se
compensar o desequilíbrio contratual pré-existente, próprio da relação de
consumo, o que justifica a preocupação das Diretrizes das Nações Unidas com a
informação ao consumidor como ferramenta de proteção.

Especificamente com relação à informação ambiental, as Diretrizes, no


item V.C.29, estabelecem que os consumidores devem ter acesso a uma
informação exata sobre os efeitos dos produtos ou serviços consumidos no meio
ambiente, devendo o fornecedor recorrer a meios como a elaboração de perfis dos
produtos, a apresentação de relatórios ambientais, a criação de centros de
informação para os consumidores, a execução de programas voluntários e
transparentes sobre a rotulagem ecológica e serviços de consulta telefônica direta
sobre os produtos (UNCTAD, 2016, p. 13). No mesmo sentido, no item
subsequente (V.C.30), as Diretrizes orientam os Estados a que, em colaboração
com os fornecedores e demais setores da sociedade civil, incluídas aqui as
organizações de defesa do consumidor, adotem medidas contra a informação
enganosa em relação ao meio ambiente nas atividades de publicidade e outros
meios de comercialização. Ainda, devem fomentar a elaboração de normas e
códigos de publicidade adequados para regulamentar e verificar a veracidade das
afirmações que são feitas com relação ao meio ambiente (UNCTAD, 2016, p. 13).

A respeito da informação enganosa em matéria ambiental, é importante


destacar que se valendo do despertar da consciência ambiental, o marketing

7 Via de regra, a doutrina classifica a vulnerabilidade do consumidor em quatro modalidades distintas, a saber:
a) a vulnerabilidade técnica, representada pela falta de conhecimento específico sobre o produto ou serviço, o
que expõe o consumidor a riscos e enganos; b) a vulnerabilidade jurídica, que se refere à carência de
conhecimentos legais frente às técnicas de contratação em massa; c) a vulnerabilidade fática ou socioeconômica,
caracterizada pela posição de superioridade do fornecedor, com relação ao consumidor; e d) a vulnerabilidade
informativa, representada pela falta ou déficit de informação ou de dados a respeito do que se adquire frente a
um fornecedor especializado (MARQUES, 2014, p. 320-357).
SUMÁRIO

254 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

passou a explorar as qualidades ambientais dos produtos e serviços para


persuadir as pessoas a adquiri-los (MÉO, 2019, p. 63). Nessa toada, o marketing
verde pretende fazer com que as preocupações ambientais dos consumidores se
convertam num comportamento pró meio ambiente (MÉO, 2019, p. 64) que se
revela pela preferência por produtos e serviços que empreguem em sua produção
ações sustentáveis que reduzam, por conseguinte, o impacto ambiental. Não
obstante, essa preocupação também tem dado vazão ao aparecimento de uma
conduta conhecida como greenwashing ou maquiagem verde, por meio da qual o
fornecedor engana o consumidor a respeito da adoção de ações vinculadas à
preservação ambiental na produção do produto ou serviço, brindando
informações falsas ou inverídicas. Desse modo:

“O resultado da colocação dessa roupagem verde em práticas


pouco sustentáveis é a lesão difusa ao poder de escolha dos
consumidores sobre os produtos ou os serviços a serem ad-
quiridos, obstaculizando a sua tomada de atitude em confor-
midade com uma ética que englobe a vida e o bem-estar das
presentes e futuras gerações. O fenômeno do greenwashing re-
vela-se, portanto, duplamente lesivo, uma vez que atinge o di-
reito do consumidor e o direito intergeracional ao meio ambi-
ente saudável e equilibrado. Isso, sem contar que pode se re-
velar, igualmente, numa violação ao direito empresarial, na
medida em que se constitui numa prática de concorrência des-
leal.” (VIEIRA; BEN, 2020, p. 336)

Ainda sobre o consumo sustentável, as Nações Unidas estimulam os


Estados a formularem programas gerais de educação e informação ao
consumidor, incluída aqui, no item V.G.42, “a informação sobre os efeitos no meio
ambiente das decisões e do comportamento dos consumidores e as
consequências, incluídos custos e benefícios, que possa ter a modificação das
modalidades de consumo”⁸ (UNCTAD, 2016, p. 16). Isso porque:

“(...) somente instruindo e informando os consumidores sobre


seus direitos, especialmente sobre o direito de acesso à infor-
mação ambiental, a um ambiente seguro e sustentável, será

8 Tradução nossa.
SUMÁRIO

255
Luciane Klein Vieira
CAPÍTULO 13

possível mitigar os danos ambientais e tentar reduzir os efei-


tos causados pelo consumo desenfreado e sem critérios. Os
consumidores devem ser informados para que possam conhe-
cer o impacto ambiental de suas escolhas e tomar decisões in-
formadas direcionadas à criação de novos hábitos e padrões
de consumo, agora pautados na sustentabilidade.” (VIEIRA;
CIPRIANO, 2020, p. 606)

Na sessão “H”, sob o título “Promoção do desenvolvimento


sustentável”, as Diretrizes traçam as principais orientações referentes ao tema
objeto deste artigo, começando pela definição do consumo sustentável⁹, contida
no item nº 49, conforme o qual o mesmo “compreende satisfazer as necessidades
de bens e serviços das gerações presentes e futuras para que sejam satisfeitas de
modo tal que possam sustentar-se desde o ponto de vista econômico, social e
ambiental.”¹⁰ (UNCTAD, 2016, p. 17)

Sob essa perspectiva, no item nº 50, as Diretrizes ainda destacam que a


responsabilidade pelo consumo sustentável é compartilhada por todos os atores
da sociedade internacional, estando aqui incluídos os consumidores informados a
quem corresponde a “função essencial de promover modalidades de consumo
que sejam sustentáveis do ponto de vista econômico, social e ambiental, em
particular influenciando os produtores com as suas decisões”¹¹ (UNCTAD, 2016,
p. 17-18). Nesta toada, instam os Estados, em associação com as empresas na
condição de fornecedoras, a promoverem programas de informação para
sensibilizar o consumidor sobre as repercussões das modalidades de consumo
(item nº 51), sem deixar de promoverem pesquisas relativas ao comportamento do
consumidor e aos danos ambientais conexos, com o escopo de alcançar
modalidades de consumo mais sustentáveis (item nº 62), entre outras medidas
(UNCTAD, 2016, p. 18-19).

Essas e outras orientações, em conjunto com a Agenda 2030,


especificamente com o ODS nº 12, que se refere à produção e ao consumo
responsáveis, servem de guia para estimular os Estados a implementarem

9 Este conceito foi estabelecido por primeira vez pelo Relatório Brundtland, em 1987, conforme o qual trata-se de
um “desenvolvimento capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das
futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades, não esgotando os recursos para o futuro”
(COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 46).
10 Tradução nossa.
11 Tradução nossa.
SUMÁRIO

256 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

medidas, regras e políticas públicas, no âmbito interno, de forma a alcançar os


objetivos propostos em âmbito global. Do mesmo modo, os Estados que
participam de processos de integração regional, devem valer-se dessas regras de
soft law como fios condutores da agenda e das normas a serem adotadas na região
integrada, em prol da sustentabilidade.

Tomando como base os lineamentos expostos pelas Nações Unidas, a


seguir, veremos se o MERCOSUL perfaz o caminho traçado pelas Diretrizes e pela
Agenda 2030 em matéria de consumo sustentável e, aqui, especificamente, se
fomenta a informação ao consumidor como medida a ser seguida pelos Estados
Partes e pelos fornecedores que atuam na região.

2. O MERCOSUL e o consumo sustentável

O MERCOSUL, bloco instituído em 26 de março de 1991, integrado por


Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai,¹² tem sido um foro permanente de
produção normativa nos mais diversos âmbitos, em atenção ao mandamento
contido no art. 1º do Tratado de Assunção, no que se refere à harmonização das
legislações nacionais nas áreas pertinentes (MERCOSUL, 1991).

Apesar de ter sido criado com uma preocupação eminentemente de


cunho econômico-comercial, o bloco tem abordado, ao longo dos seus 30 anos, as
demais dimensões da integração, entre as quais se insere a social e a ambiental, o
que o coloca no âmbito do movimento denominado “novo” regionalismo,
abarcado por processos de integração, sobretudo na América Latina, criados após
a década de 90, que, além da liberalização comercial e integração de mercados,
incluem matérias diferentes às comerciais, como as condições de trabalho e a
proteção do meio ambiente (CZAR DE ZALDUENDO, 2018, p. 22-23).

Sob esta perspectiva, o Tratado de Assunção, apesar de não ter


abordado a sustentabilidade em suas normas, coloca no seu Preâmbulo que a
aceleração do processo de desenvolvimento econômico, com justiça social,
somente poderá ser alcançada mediante o mais eficaz aproveitamento dos
recursos disponíveis (MERCOSUL, 1991), o que nos indica, ainda que

12 A Venezuela, que ingressou ao MERCOSUL em 2012, encontra-se atualmente suspensa, desde 2017, por
aplicação do Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático.
SUMÁRIO

257
Luciane Klein Vieira
CAPÍTULO 13

indiretamente, uma preocupação com a finitude dos recursos naturais e a


correlata necessidade de preservação ambiental.

À luz dessa orientação, nos primeiros anos de existência do


MERCOSUL, pouco foi feito para implementar práticas, na região, que se
ocupassem efetivamente da sustentabilidade e do meio ambiente, nem mesmo
pós 1995, quando se deu a criação do Comitê Técnico nº 7 (CT nº 7) – que se ocupa
da harmonização de legislações em matéria de defesa do consumidor, que
transversalmente aborda o impacto causado pelas escolhas do consumidor no
meio ambiente –, bem como do Subgrupo de Trabalho nº 6 (SGT nº 6) –
responsável pela harmonização de legislações em matéria ambiental. Como
veremos à continuação, a sustentabilidade passou a integrar efetivamente a
agenda e as normas do MERCOSUL a partir dos anos 2000, quando se deu a
conhecer o Acordo Quadro sobre Meio Ambiente¹³, o qual será analisado a seguir,
juntamente com as demais iniciativas que envolvem o tema central deste estudo.

2.1. O Direito do MERCOSUL, a sustentabilidade e a informação ao


consumidor

Tal como referido anteriormente, a norma que inaugura a preocupação


com a construção de um Direito Ambiental mercosulino (D’ISEP, 2017, p. 283-293)
e, consequentemente, com o desenvolvimento sustentável, na região, foi o Acordo
Quadro sobre Meio Ambiente, aprovado em 2001 (MERCOSUL, 2001)¹⁴.

Criado para servir de cláusula geral para a adoção de novas normas,


medidas e políticas públicas sobre o tema, no seu art. 3º determina que os Estados,
para alcançarem os objetivos propostos, deverão promover o desenvolvimento
sustentável por meio do apoio recíproco entre os setores ambientais e econômicos,
mas, em contrapartida, deverão evitar a adoção de medidas que restrinjam a livre
circulação de bens e serviços, objetivos do Tratado de Assunção, de forma

13 Pese ao exposto, é importante referir que, em 1994, em Buenos Aires, foram aprovadas as Diretrizes Básicas em
Matéria de Política Ambiental, pela Resolução nº 10/94, conforme as quais, além de se assegurar a
harmonização de legislações em matéria ambiental nos Estados Partes, o bloco deveria priorizar práticas não
degradantes do meio ambiente, bem como que contemplem o aproveitamento dos recursos naturais renováveis
de forma sustentável (MERCOSUL, 1994). A Resolução em referência não foi internalizada por nenhum dos
Estados Partes (MERCOSUL, 1994).
14 Tratado vigente nos quatro Estados Partes do MERCOSUL (MERCOSUL, 2001).
SUMÁRIO

258 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

arbitrária ou injustificada. Apesar de demonstrar uma preocupação quiçá mais


com a faceta comercial do que com a ambiental propriamente dita, no artigo
subsequente (art. 4º), deixa em evidência que o objetivo do tratado é o
“desenvolvimento sustentável e a proteção do meio ambiente mediante a
articulação entre as dimensões econômica, social e ambiental, contribuindo para
uma melhor qualidade do meio ambiente e de vida das populações”
(MERCOSUL, 2001).

Em virtude do texto referido, por primeira vez, no MERCOSUL, a


variável ambiental, ainda que carregada de uma forte matriz econômica, é
elevada à categoria de princípio, na região, com especial destaque ao
desenvolvimento sustentável.

O Acordo Quadro, cumprindo com seu desiderato, vem influenciando


a adoção de regras no espaço integrado, sobretudo voltadas para a produção e o
consumo sustentáveis, a exemplo da aprovação, pela Decisão nº 26/2007, da
Política de Promoção e Cooperação em Produção e Consumo Sustentáveis no
MERCOSUL¹⁵, que no seu art. 1º, “c” qualifica o que vem a ser o consumo
sustentável, deixando claro tratar-se do uso de bens e serviços que respondam às
necessidades do ser humano e lhe proporcionem uma melhor qualidade de vida,
sem colocar em risco as necessidades das gerações futuras, ao mesmo tempo em
que se deve procurar minimizar o uso dos recursos naturais, de materiais
perigosos e a geração de desperdícios e de poluição ambiental (MERCOSUL,
2007). A Decisão em referência, ao traçar os lineamentos estratégicos, presentes
no seu art. 6º, determina ser necessário o fortalecimento da educação formal e
informal sobre padrões de produção e consumo sustentáveis, bem como a
facilitação do acesso à informação ambiental¹⁶ à sociedade, como ferramentas
para a consecução da sustentabilidade (MERCOSUL, 2007).

15 Internalizada somente pela Argentina (Decreto nº 1289, de 09/09/2010) e pelo Uruguai (Decreto nº 40, de
27/01/2015) (MERCOSUL, 2007).
16 Sobre o tema: “a tutela da informação ambiental como um bem jurídico tem respaldo no poder de persuasão
que essa informação exerce sobre os indivíduos, influenciando a capacidade de discernimento e o
comportamento humano. A imposição de limites que protejam o direito de informação e, consequentemente, o
seu receptor, tem por escopo garantir a capacidade de reflexão do ser humano para que esteja apto a decidir
após a compreensão da realidade, de forma objetiva, afastando vícios e deturpações sobre essa reflexão, para
impedir que os dados fáticos reais se transformem em ilusão. Aponta-se para o fato de, no âmbito da rotulagem
ecológica, a mesma lógica dever ser aplicada, já que apenas o fornecedor tem pleno poder sobre os dados
referentes ao desempenho ambiental do seu produto” (LEITÃO, 2012, p. 51).
SUMÁRIO

259
Luciane Klein Vieira
CAPÍTULO 13

Seguindo a linha cronológica de aprovação de normas de hard law, no


MERCOSUL, vinculadas ao tema objeto de análise, em 2011, foi lançada a
Resolução nº 34 sobre Defesa do Consumidor – Conceitos Básicos,¹⁷ a qual
contempla uma série de qualificações relativas a consumidor, fornecedor, relação
de consumo, entre outras. No que nos interessa, retrata, no seu item “f”, o “dever
de informação”¹⁸ que recai sobre o fornecedor, devendo este último brindar ao
consumidor, de forma certa, clara e detalhada, toda a informação relacionada às
características, funções, natureza, composição, prazo de validade e condições de
comercialização dos produtos ou serviços, bem como sobre os riscos aos quais
esteja exposto o consumidor (MERCOSUL, 2011), com a finalidade de que este
possa realizar uma escolha informada e consciente, que derive na utilização
adequada do objeto da relação de consumo.

Portanto, o escopo da normativa em comento têm vínculo com o fato de


que a informação ao consumidor permite que se constate a existência de uma
aproximação entre consumo consciente e consumo sustentável, que é percebida,
justamente, no momento da escolha do produto ou serviço pelo consumidor
informado. Sendo assim:

“Valores ligados à consciência de preservação ambiental, à


consideração de sua proveniência e à forma como o produto
ou serviço se apresenta ao mercado (se há a utilização de tra-
balho escravo, se ocorre desmatamento de florestas ou sacrifí-
cio de animais) são alguns aspectos levados em consideração
para a tomada de decisão perante o consumo.” (AYROZA;
BORGES, 2018, p. 391)

Sobre o tema, finalmente, em 2019, por meio da Resolução nº 36 sobre


Defesa do Consumidor – Princípios Fundamentais,¹⁹ o bloco reconheceu a

17 Esta norma foi internalizada somente pelo Brasil, mas não chegou a entrar em vigência (MERCOSUL, 2011).
18 Cabe referir que já no final da década de 90, quando se tentou aprovar o Protocolo de Defesa do Consumidor
do MERCOSUL, se havia projetado que a informação suficiente, clara, oportuna, adequada e veraz, no idioma
do país de consumo, constituía-se ao mesmo tempo em direito do consumidor e obrigação do fornecedor
(SAHIÁN, 2018, p. 326).
19 Esta norma foi internalizada pela Argentina (Resolução da Secretaría de Comercio Interior del Ministerio de
Desarrollo Productivo nº 310, de 10/09/2020) e pelo Paraguai (Decreto nº 3.370, de 18/02/2020) (MERCOSUL,
2019a).
SUMÁRIO

260 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

vulnerabilidade estrutural dos consumidores, criando uma lista de princípios que


compõem o Sistema MERCOSUL de Proteção do Consumidor, considerado como
sistema de ordem pública regional. Entre estes princípios estão o consumo
sustentável e a informação ao consumidor, nos seguintes termos:

Princípio do consumo sustentável. O sistema de proteção ao


consumidor impulsiona o consumo e a produção sustentá-
veis, em função das necessidades das gerações presentes e fu-
turas. Para isso, entre outras medidas, favorece a minimização
do uso de matérias primas e energias não renováveis, bem
como a geração de menor quantidade de resíduos e o aumen-
to do uso de energias ou matérias primas renováveis ou pro-
duto de reciclagem;
(...)
Princípio de Informação. Os fornecedores devem prestar aos
consumidores informação clara, verídica e suficiente que lhes
permita fazer escolhas adequadas aos seus desejos e necessi-
dades (MERCOSUL, 2019a).

Deste modo, dando destaque à variável ambiental, somada às variáveis


social e econômica, a Resolução nº 36/2019 resgata a qualificação de consumo
sustentável contida na Decisão nº 26/2007, já referida, e eleva o consumo
sustentável (VIEIRA, 2020, p. 243-257), bem como o dever de informação, à
categoria de princípios orientadores do agir tanto dos Estados quanto dos
consumidores e fornecedores, na região integrada, em atenção às orientações
contidas nas Diretrizes das Nações Unidas de Proteção ao Consumidor, bem
como na Agenda 2030, inaugurando um novo período na história do
MERCOSUL. Não obstante, cabe destacar que o segundo princípio referido,
vinculado, portanto, à informação ao consumidor como instrumento de
empoderamento, não pode ser lido ou interpretado de forma desvinculada do
primeiro, que lança luzes a todos os demais princípios²⁰ reconhecidos no sistema

20 A Resolução nº 36/2019 reconheceu 14 princípios de proteção ao consumidor, no MERCOSUL. Sendo assim,


além dos já referidos, foram elevados à categoria de princípios regionais os seguintes: a) princípio da
progressividade e da não regressão na efetividade dos direitos dos consumidores; b) princípio da ordem
pública de proteção; c) princípio de acesso ao consumo; d) princípio da transparência dos mercados; e) princípio
da proteção especial para consumidores em situação vulnerável e de desvantagem; f) princípio do respeito à
dignidade da pessoa humana; g) princípio da prevenção dos riscos; h) princípio antidiscriminatório; i) princípio
da boa-fé; j) princípio da harmonização dos interesses dos consumidores com o desenvolvimento econômico e
tecnológico; l) princípio da reparação integral; e m) princípio da equiparação de direitos (MERCOSUL, 2019a).
SUMÁRIO

261
Luciane Klein Vieira
CAPÍTULO 13

mercosulino, e que devem ser seguidas e observadas a fim de dar cumprimento à


norma aprovada.

No mesmo ano, a Resolução nº 37 sobre Defesa do Consumidor –


Proteção ao Consumidor no Comércio Eletrônico,²¹ trouxe à baila a informação ao
consumidor tanto como direito deste último quanto como dever do fornecedor.
Ao determinar que deve ser garantido ao consumidor o fácil acesso à uma
informação clara, precisa e suficiente sobre o fornecedor, o produto e a transação
realizada por meios eletrônicos, indica uma série de dados, no seu art. 2º, que
devem ser disponibilizados ao consumidor, destacando que entre eles deve se dar
a conhecer qualquer condição ou característica relevante do produto ou serviço
(MERCOSUL, 2019b). Não obstante o exposto, em nenhum momento, a Resolução
vincula o fornecedor à necessidade de brindar esclarecimentos em torno do
emprego de práticas sustentáveis para a produção do produto ou serviço que está
sendo adquirido pelo consumidor, ponto débil da norma em referência e que não
leva em consideração o princípio do consumo sustentável, reconhecido pela
Resolução nº 36/2019.

Também em 2019, segundo semestre, durante a Presidência Pro Tempore


brasileira, foi adotada, em Bento Gonçalves, a Declaração Presidencial sobre
Desenvolvimento Sustentável (MERCOSUL, 2019c), importante instrumento de
soft law que, entre outras linhas gerais, destaca que o comércio regional deve
contribuir para o desenvolvimento sustentável,²² reforçando as dimensões
econômica, social e ambiental que perfazem a noção de sustentabilidade, bem
como a preocupação com as gerações futuras. Igualmente, reiterou-se a ressalva
constante no Acordo Quadro sobre Meio Ambiente, no sentido de que as questões
ambientais não podem servir de escusa para a adoção de medidas de
protecionismo comercial (MERCOSUL, 2019c). Especificamente sobre o consumo
sustentável e o dever de informar ao consumidor sobre o impacto de suas escolhas
no meio ambiente, nada se disse a respeito, havendo-se perdido uma

21 Esta norma foi internalizada pela Argentina (Resolução da Secretaría de Comercio Interior del Ministerio de
Desarrollo Productivo nº 270, de 04/09/2020), pelo Brasil (Decreto nº 10.271, de 06/03/2020) e pelo Paraguai
(Decreto nº 4053, de 15/09/2020) (MERCOSUL, 2019b).
22 Sobre a temática do comércio regional sustentável aplicada especificamente ao setor de alimentos, no
MERCOSUL, é importante referir que tem crescido, no bloco, a preocupação com a produção de produtos
orgânicos, produzidos sem o uso de pesticidas ou medicamentos, em atenção à responsabilidade social
empresarial, ao comércio justo, à certificação ambiental e de qualidade. Nesse sentido, as orientações que são
seguidas, no MERCOSUL, para a produção de alimentos orgânicos tanto de origem animal, quanto vegetal,
podem ser consultadas em: NEGRO, 2020, p. 102-104.
SUMÁRIO

262 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

oportunidade ímpar para se resgatar a importância do papel do consumidor na


preservação do meio ambiente, sobretudo em termos de responsabilidade pós-
consumo, em atenção ao princípio do consumo sustentável, reconhecido neste
mesmo ano como valor fundamental do bloco.

Mais recentemente, por ocasião da celebração dos 30 anos do


MERCOSUL, em 26 de março de 2021, foi aprovado o Estatuto da Cidadania²³
(MERCOSUL, 2021a), em cumprimento ao Plano de Ação contido na Decisão nº
64/2010²⁴ (MERCOSUL, 2010). O Estatuto contempla dez eixos temáticos que
abordam questões desde a circulação de pessoas, trabalho e emprego, seguridade
social, educação, direitos políticos, cooperação judicial etc. até o direito do
consumidor. Com relação a este último, ao trazer à colação os direitos dos
consumidores, previstos nas normas vigentes no bloco, destaca: o direito à
educação e divulgação sobre o consumo adequado de produtos e serviços, como
forma de se garantir a liberdade de escolha e o tratamento igualitário ao
consumidor, sem prejuízo do direito à informação suficiente e veraz sobre os
distintos produtos e serviços (MERCOSUL, 2021a). Não obstante, o Estatuto,
apesar de se preocupar com a dimensão social do MERCOSUL, olvidou-se do
meio ambiente e, com isso, do consumo sustentável, ainda que se tenha acordado,
no âmbito da LXXXIX Reunião ordinária do CT nº 7 (MERCOSUL, 2019d), que o
princípio do consumo sustentável, aprovado pela Resolução nº 36/2019, faria
parte do Estatuto e este, por sua vez, nos termos da Decisão nº 64/2010, integraria
o próprio Tratado de Assunção (MERCOSUL, 2010).

2.2. A agenda atual do MERCOSUL e as propostas de efetivação do


consumo sustentável

Como se pôde verificar a partir do item anterior, que trouxe à colação as


principais iniciativas legais existentes na região integrada em matéria de direito à
informação ao consumidor aliado ao consumo sustentável, muito ainda precisa
ser feito, a fim de se implementar integralmente as orientações das Nações
Unidas. Apesar de existirem normas no MERCOSUL sobre o tema, muitas delas
não estão em vigência nos quatro Estados Partes, o que impede a adoção

23 Para mais detalhes sobre o tema, ver: MOURA, 2018, p. 135-153.


24 Esta Decisão não precisa ser incorporada ao direito interno dos Estados Partes, por regulamentar aspectos da
organização ou do funcionamento do MERCOSUL, nos termos do que determina a Decisão nº 23/2000
(MERCOSUL, 2000).
SUMÁRIO

263
Luciane Klein Vieira
CAPÍTULO 13

uniforme de regras e políticas públicas vinculadas à preocupação com o meio


ambiente e ao papel do consumidor na redução de práticas não sustentáveis,
justamente a partir do exercício do seu direito de escolha – uma escolha
consciente, voltada à diminuição dos impactos prejudiciais, no meio ambiente,
decorrentes do consumo desenfreado e sem limites.

Pese ao exposto, a partir da análise dos planos de trabalho de 2019, 2020


e 2021 de dois órgãos do MERCOSUL, dependentes respectivamente, da
Comissão de Comércio do MERCOSUL (CCM) e do Grupo do Mercado Comum
(GMC), verifica-se que algumas propostas em termos de implementação das
orientações das Nações Unidas contidas tanto nas Diretrizes de Proteção ao
Consumidor, quanto na Agenda 2030, existem e se fazem presentes na agenda
tanto do CT nº 7 quanto do SGT nº 6, responsáveis, como já se referiu, pela
harmonização das legislações nacionais em matéria de defesa do consumidor e
meio ambiente.

Deste modo, com relação à agenda atual do CT nº 7, cabe referir que se


encontra em fase final de redação o Manual de Boas Práticas Comerciais e
Sustentabilidade de Produtos (MERCOSUR, 2021b), de iniciativa do Paraguai,
que, entre outras medidas, busca proporcionar informação sobre a adoção de
práticas sustentáveis no processo de produção dos produtos oferecidos aos
consumidores, pautada nos princípios de boas práticas comerciais das Diretrizes
(MADRID MARTÍNEZ; VIEIRA, 2017, p. 177-189), tomando como base o dever
de divulgação e transparência, bem como de educação e conscientização ao
consumidor.

Já por iniciativa da delegação argentina, em termos de adoção de


política pública regional, se encontra em negociação, desde junho de 2019, uma
campanha para conscientizar o consumidor para evitar o desperdício e o descarte
de alimentos (MERCOSUL, 2019e), como forma de se dar cumprimento à meta nº
3 do ODS nº 12, que pretende reduzir pela metade o desperdício de alimentos per
capita mundial até 2030, diminuindo, assim, as perdas de alimentos tanto na
produção e fornecimento quanto na etapa posterior à colheita. Também por
iniciativa argentina, encontra-se em elaboração o Manual de Boas Práticas sobre
Consumo Sustentável (MERCOSUL, 2021c), o qual será colocado à consideração
pelos demais Estados Partes nas próximas reuniões ordinárias, para fins de
aprovação.
SUMÁRIO

264 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Por sua vez, com relação à agenda do SGT nº 6, cabe destacar a


iniciativa de elaboração de estratégias nacionais e políticas públicas em matéria
de transporte limpo e sustentável, por meio da identificação de ações para a
promoção da cooperação e intercâmbio de conhecimento entre os Estados,
vinculada à mobilidade sustentável e à qualidade do ar (MERCOSUR, 2019e). A
fim de dar sequência a esse projeto, atualmente, a agenda está focada na criação
de um documento de trabalho sobre qualidade ambiental urbana (MERCOSUR,
2020a), que deve auxiliar na implementação de um sistema de intercâmbio de
informações, experiências e iniciativas exitosas dos Estados Partes em matéria de
cidades sustentáveis. Nesse sentido, nas reuniões realizadas ao longo de 2020,
trabalhou-se com a perspectiva de inclusão de políticas de qualidade urbana nos
respectivos programas nacionais de meio ambiente dos Estados Partes (iniciativa
brasileira) e também com cooperação a fim de se obter práticas sustentáveis nas
cidades fronteiriças (iniciativa argentina). Também sobre o tema, o Paraguai
apresentou um projeto denominado “Assunção, Cidade Verde das Américas,
Vias para a Sustentabilidade” (MERCOSUR, 2020b).

Ainda, por ocasião da primeira reunião do SGT nº 6, realizada em 2021,


os Estados Partes incluíram em sua agenda de trabalho do ano em curso a
elaboração da Etiqueta Ambiental do MERCOSUL, uma interessante iniciativa
que resgata o trabalho que teve início em 1996 (DEVIA, 1998, p. 34). Ainda, os
Estados, na reunião em comento, deram a conhecer as diferentes iniciativas
nacionais existentes para o incentivo de práticas sustentáveis, tais como: o Prêmio
Melhores Práticas para a Sustentabilidade na Administração Pública – Prêmio
A3P e a premiação de empresas do setor privado que adotem práticas
sustentáveis (ambos referentes ao Brasil); o Projeto de criação da Etiqueta Verde,
com foco no setor produtivo, especialmente no agrícola (Paraguai); e as
premiações direcionadas tanto às universidades, organizações não
governamentais, empresas, sociedade civil e instituições públicas relativas à
adoção de práticas vinculadas ao tratamento de resíduos e adoção de agenda
ambiental (Uruguai) (MERCOSUR, 2021d). O objetivo perseguido pelos Estados,
a partir das iniciativas em referência, é o de se criar uma ferramenta, no
MERCOSUL, que reconheça práticas, programas e soluções sustentáveis e
inovadoras (MERCOSUR, 2021d).
SUMÁRIO

265
Luciane Klein Vieira
CAPÍTULO 13

Considerações finais

Não está demais começar a traçar as conclusões finais deste artigo a


partir das reflexões de Leonardo Boff relativas ao tema que nos convoca. Nesse
sentido, para o autor em referência:

“a sustentabilidade não acontece mecanicamente. Ela é fruto


de um processo de educação pelo qual o ser humano redefine
o feixe de relações que entretém com o universo, com a Terra,
com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo dentro dos
critérios assinalados de equilíbrio ecológico, de respeito e
amor à Terra e à comunidade de vida, de solidariedade para
com as gerações futuras e da construção de uma democracia
socioecológica.” (2016, p. 171)

A educação é a base de tudo, sempre o foi e aqui, aliada à informação,


constitui-se na ferramenta adequada para a conscientização do consumidor a
respeito da necessidade de mudança dos seus hábitos de consumo, em prol da
proteção do meio ambiente e da coletividade, permitindo-lhe uma avaliação
constante das suas reais necessidades de consumo em detrimento dos desejos
supérfluos, do imediatismo e de práticas insustentáveis.

Desse modo, respondendo ao problema de pesquisa que guiou a


elaboração do presente artigo, percebe-se que os avanços registrados nestes 30
anos de existência do MERCOSUL, em torno ao fomento de práticas voltadas ao
consumo sustentável, têm sido bastante tímidos. Não obstante isso, é de se
destacar que desde a adoção do Acordo Quadro sobre o Meio Ambiente, em 2001,
que inseriu na região integrada o princípio do desenvolvimento sustentável,
houve, efetivamente, um incremento na aprovação posterior de instrumentos
normativos buscando a sustentabilidade sob a ótica da produção e do consumo,
sendo o mais importante a Resolução nº 36/2019 que elevou o consumo
sustentável e o direito à informação à categoria de princípios do Direito do
MERCOSUL.

Como se pode observar, o MERCOSUL, por meio de normas, políticas


públicas (entre as quais a elaboração dos manuais ou códigos de conduta) e de
ações em sua agenda, está buscando implementar práticas de consumo
sustentável e, entre elas, principalmente, o direito de acesso à informação ao
SUMÁRIO

266 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

consumidor, em atenção às orientações contidas nas Diretrizes das Nações


Unidas de Proteção ao Consumidor (revisões de 1999 e 2015) e também na
Agenda 2030, ainda que muitos dos esforços realizados até então esbarrem na
falta de vontade política de alguns Estados que deixam de internalizar as
normativas, impedindo-lhes a entrada em vigência.

Em que pese o exposto, muito ainda há por ser feito, a fim de


transformar o consumidor num agente da sustentabilidade através da integração
regional. O caminho é longo e o percurso não é fácil, mas é possível. Em primeiro
lugar, o consumidor deve tomar consciência do seu papel na preservação do meio
ambiente e, para isso, a informação e a educação são ferramentas imprescindíveis;
em segundo lugar, deve compreender que é corresponsável pelos impactos
causados por suas escolhas no meio ambiente, compreensão à qual pode chegar
somente com acesso à informação ambiental; e, finalmente, em terceiro lugar, por
meio de suas escolhas, deve entender que é capaz de influenciar o fornecedor no
processo de tomada de decisões, a fim de que se incline a produzir produtos ou
serviços que empreguem tecnologia verde, que se preocupem com minimizar o
impacto produzido no meio ambiente e que descartem a utilização de práticas
não sustentáveis.

Desse modo, algumas sugestões para a agenda do MERCOSUL


poderiam estar vinculadas à necessidade de que os Estados Partes deem uma
maior atenção à criação de um centro regional de informação ambiental para os
consumidores e de programas ou ações de capacitação regional vinculados à
informação ambiental, à educação ao consumidor e à rotulagem ecológica, sem
desmedro da adoção de iniciativas destinadas a regulamentar o fornecimento de
informação enganosa sobre a qualidade ambiental do produto ou serviço a ser
consumido, num esforço de implementação integral das orientações onusianas
em referência que têm como norte a preservação de dois bens coletivos: o direito
do consumidor e o direito a um meio ambiente sadio e equilibrado.

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SUMÁRIO

Capítulo 14

A TRIBUTAÇÃO E A
DESIGUALDADE DE
RENDA E RIQUEZA
Marciano Buffon
SUMÁRIO

272 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

A TRIBUTAÇÃO E A DESIGUALDADE DE RENDA E RIQUEZA

Marciano Buffon¹

Introdução

Quando se produz um trabalho desta natureza, obviamente já se fez


uma escolha acerca da “linha de chegada”, mesmo antes dos passos iniciais de sua
construção. Ou seja, por mais que pretenda ter um rótulo de científico, parte-se
sempre de pressupostos conceituais e também ideológicos que perpassam todo
texto e desnudam o modo de pensar de quem está a produzi-lo.

Esta advertência inicial faz-se necessária, pois o que será aqui exposto
possui um inequívoco e transparente ponto de partida: a desigualdade de renda
e riqueza é algo social e economicamente indesejável. Há de se olvidar esforços,
os mais significativos possíveis, para que ela arrefeça, sobretudo naqueles espaços
geográficos, nos quais a desigualdade encontrou um formidável e seguro leito de
acomodação: América Latina em especial.

Uma vez que se advoga que a desigualdade precisa ser oposta, seria
possível imaginar que isso pudesse acontecer de uma forma alheia à ação do
Estado? A resposta que Pike�y (uma das bases teóricas que mais fortemente
alicerçam este trabalho) vai dar é “sim”, embora isso dependa da concomitante
presença de fatores de difícil combinação.

1 Pós-Doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – UNISINOS. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado/Doutorado) e da
graduação na UNISINOS. Advogado na área tributária.
SUMÁRIO

273
Marciano Buffon
CAPÍTULO 14

Em que pese o economista francês tenha estudado a desigualdade mais


sob o enfoque da riqueza, sua assertiva está condicionada a que o crescimento
econômico seja superior à remuneração do capital, pois, segundo ele (essa é a tese
central de sua obra), quando o crescimento econômico for inferior à remuneração
do capital (em média 5% ano), haverá uma natural tendência de acumulação de
riqueza por parte de quem já detém o capital e, portanto, são movidas forças no
sentido da desigualdade de renda.

Por isso mesmo, há de se admitir que o combate à desigualdade (pelo


menos em seu formato mais exacerbado) não pode prescindir de ações estatais
voltadas a esse fim. Para tanto, o Estado dispõe de políticas públicas, as quais
tanto podem atuar no gasto público, como no campo da tributação. É certo que
um gasto público inclusivo é mais eficaz do que um sistema tributário
progressivo e proporcional à capacidade econômica para este intento. Porém, não
há como olvidar que a face arrecadatória tem um potencial não desprezível no
processo de construção de sociedades menos desiguais.

Em vista disso, na parte final deste trabalho, examinam-se algumas


propostas apresentadas no plano internacional, sobretudo mediante estudos do
economista francês Thomas Pike�y, que seriam tendencialmente úteis para o
enfrentamento de um dos problemas mais crucias da atualidade e,
provavelmente, determinante do futuro que se avizinha, especialmente depois de
ser superada a terrível Pandemia que ainda assola ao mundo.

1. O crescimento econômico como redutor da desigualdade

Cabe esclarecer, inicialmente, que não se ignora, nem se rejeita a tese,


segundo a qual, o crescimento econômico trata-se de um motor capaz de
movimentar os mecanismos que engendram sociedades menos desiguais e,
portanto, mais harmoniosas e coesas, sem que haja uma participação direta do
Estado nesse processo. No entanto, para que isso ocorra, há a necessidade de uma
improvável fundição de elementos, com vistas à materialização dessa reação
espontânea.

Explica Pike�y que, “de um ponto de vista estritamente lógico, a única


força compensatória “natural” – ou seja, fora do âmbito de qualquer intervenção
pública – é, mais uma vez, o crescimento” (Pike�y, 2014, 545). Disso decorre que
“quanto maior o crescimento mundial, mais o salto dos grandes patrimônios
SUMÁRIO

274 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

permanecerá moderado em termos relativos, no sentido de que suas taxas de


progressão não serão desmedidamente mais altas do que o crescimento médio das
rendas e das riquezas” (Carabaña, 2016. p. 172).

Uma vez que o crescimento econômico mundial ficou na ordem de 3,5%


ao ano, no período de 1990 a 2012 – ritmo que poderia se prolongar de 2012 a 2030
–, “a decolagem das maiores fortunas mundiais decerto será um fenômeno
visível”, mesmo que menor do que seria com um crescimento mundial de 1% ou
2% ao ano” (Pike�y, 2014, 545). Em vista disso, o autor alertou que a manutenção
de um crescimento econômico médio (por muitos anos) abaixo da efetiva
remuneração do capital poderia levar a níveis de desigualdade, que, quando
verificados no passado, foram seguidos de brutais conflitos e guerras, os quais –
ao seu cabo – haviam forçosamente reduzido a desigualdade, especialmente pela
destruição de patrimônio e propriedades privadas acumuladas ao tempo do
descompasso entre crescimento e remuneração do capital.

O questionamento que ora se impõe é se está a viver o tempo de


retrocesso rumo aos níveis de desigualdade existentes na Europa previamente à
Primeira Guerra? De fato, estar-se-ia a testemunhar, como afirma Pike�y, “um
capitalismo enlouquecido, a tal ponto que a concentração da riqueza atinge os
valores de 1900-1910 e até mesmo os impostos sobre o capital que governaram o
século XIX nem sequer são aplicados” (Pike�y, 2014, contracapa).

Pode-se dizer que a primeira grande crise do capitalismo globalizado do


século XXI, desencadeada por volta do ano 2008, “mostrou que o patrimônio
privado aumentou sem controle, enquanto os salários e a produção mal cresceram
nos últimos trinta anos”. Além disso, conclui o autor, “por razões de ideologia ou
incompetência, muitos Estados aumentam a carga tributária sobre o trabalho e
subsidiam uma casta de rentistas” (Pike�y, 2015, contracapa).

É certo que um crescimento econômico robusto teve um efeito positivo


no combate à pobreza extrema, como se pode constatar na China, Índia e também
no Brasil, durante quase uma década e meia neste século, embora em relação ao
último haja outros fatores apontados como efetivos neste processo (programa de
renda mínima, elevação do salário-mínimo acima da inflação etc.). Como adverte
Carabaña, porém, o “crescimento econômico tende a reduzir a pobreza, mas
geralmente não reduz a desigualdade, já que a renda de todas as classes
geralmente aumenta na mesma proporção”. Seria necessário, para reduzir a
SUMÁRIO

275
Marciano Buffon
CAPÍTULO 14

desigualdade, “um crescimento assimétrico, diferenciado em favor dos mais


pobres” (Carabaña, 2016. p. 172).

Ao contrário, o que se verifica em muitos casos, é que ciclos de


crescimento têm resultado no aumento da desigualdade, pois geralmente os mais
pobres não têm sido “capazes” de assegurar para si os maiores ganhos
propiciados pelo crescimento. Aliás, vale referir que a melhora na distribuição
global de renda se deve, essencialmente, ao progresso dos países asiáticos,
especialmente a China, nos últimos anos. As altas taxas de crescimento
permitiram que centenas de milhões de camponeses saíssem da pobreza mais
extrema. Isso é verdade; porém, as desigualdades, dentro desses países,
aumentaram consideravelmente. Na realidade, o que ocorre é um crescimento das
classes médias dessas sociedades, diferente do que acontece nos países mais
avançados (Leal, 2016).

É certo que, num primeiro momento, uma redução mais abrupta da


pobreza produz efeitos mais visíveis sobre a desigualdade; porém, esses efeitos
vão “minguando” com o tempo, pois as condições necessárias para uma efetiva e
permanente redução da desigualdade acabam por não se concretizarem. Mesmo
que haja, portanto, um crescimento econômico que ultrapasse a barreira da
remuneração média do capital (5% ao ano), é improvável que, apenas em face
dele, aconteça uma mudança robusta e duradoura na questão da desigualdade.

Disso tudo decorre que, dificilmente, ocorrem processos de


recrudescimento da desigualdade sem que haja ação estatal, a qual se dá sob o
enfoque da arrecadação ou do gasto público. Isto é, a estrutura que compõe a
arrecadação compreende, de um lado, o que será feito com os recursos
arrecadados e, de outro, o de quem serão cobrados os tributos que compõem o
montante da arrecadação.

2. O papel do Estado no combate à desigualdade

Para o bem ou para o mal, afirma-se que na questão da desigualdade há


um inegável papel a ser desempenhado pelo Estado, seja no sentido de cumprir a
sua clássica função (minimizá-la), seja ao contrário. É certo que formalmente os
Estados, em regra, assumem o compromisso de minimizar a desigualdade, que é
fruto natural do predominante modelo capitalista de produção. Porém, muitas
SUMÁRIO

276 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

das ações estatais acabam por resultar maior desigualdade, eis que privilegiam
atores politicamente mais bem situados.

Em vista disso, Stigli� é enfático ao fazer uma analogia: “poderíamos


querer que a velocidade da luz fosse mais rápida, mas não há nada que possamos
fazer quanto a isso”. Nesse viés, “a desigualdade é, em grande parte, o resultado
das políticas governamentais que moldam e dirigem as forças da tecnologia e do
mercado, assim como outras forças sociais mais amplas”. Como consequência,
segundo ele, pode-se alternar esperança ou desespero: “esperança porque isso
significa que esta desigualdade não é inevitável, e que ao mudarmos as políticas
podemos conseguir uma sociedade mais eficiente e igualitária; desespero porque
os processos políticos que moldam essas políticas são tão difíceis de mudar”
(Stigli�, 2013. p. 150).

É por isso que Atkinson afirma que “crucialmente, não aceito que o
aumento da desigualdade seja inevitável – ela não é um mero produto de forças
alheias ao nosso controle”. Segundo ele, “há medidas que podem ser tomadas
pelos governos, atuando individual ou coletivamente, por empresas, por
sindicatos e por organizações do consumidor” e, além disso, “também por nós,
como indivíduos, para reduzir os atuais níveis de desigualdade” (Atkinson, 2015.
p. 360).

O capitalismo, mesmo globalizado, não consegue prescindir do Estado.


As crises lhes são comuns, sobretudo quando ele se apresenta sob o formato da
“quase suicida” face neoliberal. A Grande Crise de 2008 foi o exemplo mais
incontestável desta dependência, embora pareça ter produzido pouco
aprendizado, pois se é comum ver a história longínqua de uma maneira mais
distorcida; há pouca explicação para se esquecer daquilo que ainda está ao alcance
do retrovisor.

Ao extremo, pode-se afirmar que a face radical do neoliberalismo é


francamente anticapitalista, pela singela razão que seus efeitos mais visíveis são
tendencialmente letais ao próprio capitalismo, tanto que atores importantes têm
“levado a sério” os riscos apontados e propugnado soluções que possam
minimizar a própria desigualdade aqui abordada ou o aquecimento global, pois
consideram ser os dois riscos sistêmicos ao capitalismo.

Em todas as propostas, há a participação do Estado; porém, não aquele


modelo nacionalista presente no Século XX, que o extremismo saudosista imagina
possa ser revivido. Num mundo globalizado, qualquer solução propugnada há de
SUMÁRIO

277
Marciano Buffon
CAPÍTULO 14

passar por um crivo amplo e coletivo. Em que pese haja espaço de decisão local,
as escolhas serão mais eficientes se estiverem conectadas com outras em nível
internacional.

Parece ser inequívoco que “aumentar a renda dos mais pobres tem
efeitos positivos imediatos sobre todos os tipos de pobreza, ao mesmo tempo que
reduzem a desigualdade” (Carabaña, 2016. p. 106). Aliás, isso foi
inequivocamente demonstrado no Brasil, mediante a adoção, no início dos anos
2000, de um amplo programa de renda mínima (bolsa-família) e com aumentos
reais sobre o salário mínimo. Indiscutivelmente, tais medidas tiveram impacto
decisivo na melhora do índice de Gini ocorrida até 2014. Em vários outros países
da América Latina isso pode também ser constatado.

Porém, vale frisar que a redução da desigualdade, em decorrência da


redução da pobreza extrema, tem efeito temporário. Tanto no Brasil como na
América Latina isso também se comprovou. No primeiro momento, a política
voltada à redução da pobreza produz um imediato efeito na desigualdade;
porém, este efeito tende a neutralizar-se no tempo, pois as políticas
redistributivas estão limitadas, inclusive, por questões orçamentárias.

É óbvio que a desigualdade de renda seria fortemente reduzida na


América Latina, e especificamente no Brasil, se os governos pudessem propiciar
um programa de renda mínima que assegurasse a todos um nível de renda diária
superior àquilo que a ONU coloca como nível de pobreza, por exemplo, o
equivalente à renda per capita diária de $5,50. Porém, há de se perquirir acerca da
existência de recursos suficientes para fazer frente a tão significativa brecha
social, construída ao longo da história, em um país de mais de 200 milhões de
habitantes.

Isso não significa que, entre as prioridades, o combate à pobreza


extrema não deva ocupar um espaço de centralidade, tampouco que todas as
ações possíveis para tal intento já foram implementadas, sobretudo no caso do
Brasil, em que estudo do IBGE de 2019 apontou a existência de 55 milhões de
pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, e calculou que fossem necessários 10
bilhões de reais ao mês para suplantar esta condição de “hiato da pobreza”.²

2 Síntese de indicadores sociais 2018: uma análise das condições de vida da população brasileira. Instituto
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com_mediaibge/arquivos/ce915924b20133cf3f9ec2d45c2542b0.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2019.
SUMÁRIO

278 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Para além dessa inequivocamente necessária ação estatal, há de se


examinar se a tributação possui o condão de minimizar a desigualdade de renda
e riqueza. Esta é a abordagem a partir desse momento.

3. A possibilidade e o formato de uma tributação que reduza a


desigualdade

Como se pode constatar na análise precedente, há relativa maioria que


sustenta a possibilidade de que o Estado possa adotar políticas públicas
potencialmente úteis, com vistas à redução da desigualdade, tanto para via do
ingresso como pela via do gasto público. É inegável que a via do gasto é mais
efetiva no intento igualitário; no entanto, isso não significa que a capacidade
redistributiva da arrecadação possa ser desprezada, ou que não haja legitimidade
para implementá-la.

Embora a tributação possa ser entendida como um instrumento


tendencialmente útil para fins de reduzir a desigualdade de renda e riqueza,
típico fruto de uma sociedade capitalista, não há como imaginar que, apenas
mediante a cobrança de tributos e o emprego republicano e redistributivo dos
recursos, possa-se construir sociedades com reduzidos níveis de desigualdade,
como, por exemplo, apresentam-se hoje aquelas erigidas no Norte da Europa.

Com as considerações expostas, volta-se a examinar como o Estado


pode, mediante a tributação, influenciar na questão da desigualdade de tal forma
que essa possa ser minimizada, sobretudo em relação a regiões ou países em que
ela se manifesta incisiva e refratariamente a ações que objetivam enfrentá-la.

No que tange exclusivamente à América Latina, região mais desigual do


mundo, estudos baseados em dados de Estados membros da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que os impostos
diretos e transferências de dinheiro seriam mecanismos eficazes para reduzir a
desigualdade. No entanto, em alguns países as políticas fiscais têm um efeito
limitado sobre a desigualdade de renda. O efeito redistributivo do imposto de
renda de indivíduos é próximo de zero na América Latina, onde é observada uma

3 Desigualdad y redistribución: impuestos y transferências. Centro Internacional de Políticas para el Crecimiento


Inclusivo (IPC-IG). Disponível em: <h�ps://ipcig.org/pub/esp/OP342SP _Desigualdad_y_redistribucion
_impuestos_y_transferencias.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2019. p. 1.
SUMÁRIO

279
Marciano Buffon
CAPÍTULO 14

redução insignificante no índice de Gini e uma taxa média efetiva de imposto


baixa, o que seria um reflexo das fraquezas estruturais dos sistemas fiscais da
região, segundo estudos do Centro Internacional de Políticas para el Crecimiento
Inclusivo (IPC-IG).

Com relação à região, estudo recente do Banco Mundial questiona: “até


que ponto é possível reduzir a desigualdade e a pobreza, mediante impostos e
transferências na América Latina?” Em uma abrangente análise da incidência
tributária das áreas urbanas da Argentina, onde vivem três quartos da população
do país, assim como da Bolívia, Brasil, Peru e Uruguai, o estudo concluiu que os
impostos pessoais geram poucos resultados positivos em termos de
redistribuição; enquanto que os impostos indiretos, quando levados em conta a
renda líquida dos pobres e das pessoas que estão em uma situação próxima à
pobreza, podem gerar efeitos menores do que transferências em dinheiro⁴.

Este estudo está em perfeita consonância com outros, como a CEPAL, o


BID, o IBGE e IPEA (esses dois últimos especificamente em relação ao Brasil), que
constatam que, embora os tributos possam desempenhar um papel positivo para
fins de redução de desigualdade, os contornos vigentes em relação a impostos
incidentes sobre a renda e sobre o patrimônio estão traçados num sentido oposto
ao referido objetivo. Não bastasse isso, a imposição dos tributos indiretos sobre o
consumo tem correspondido a um fator de indução à desigualdade, em face do
forte caráter regressivo.

Com o olhar especificamente voltado para a União Europeia


(principalmente Espanha), Carabaña sustenta que as transferências estatais
reduzem a pobreza e a desigualdade. No que tange à progressividade na
arrecadação, “ou seja, qual a classe que paga a conta daquilo que é transferido
para os pobres”, sustenta que “há influência na desigualdade, mas não na
pobreza”. Segundo ele, para alcançar o duplo intento, no sentido de reduzir a
pobreza e a desigualdade aos níveis mínimos da história, “seria suficiente
aumentar os impostos em dois pontos da renda total, algo que foi feito sem muita
dificuldade nos últimos seis anos, e redistribuir o produto entre os pobres, algo
que não foi feito” (Carabaña, 2016. p. 173).

No contexto europeu, ainda se comparando com a América Latina, a


taxa de imposto de renda média efetiva dos estados membros da União Europeia

4 La desigualdad bajo la lupa. Banco Mundial. Disponível em: <h�p://documents.worldbank .org/curated/pt/


578841468160521995/pdf/714000BRI0SPAN0Box0379795B00PUBLIC0.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2019.
SUMÁRIO

280 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

é consideravelmente maior, o que se traduz em melhores resultados em termos de


redução de desigualdades⁵. Nesse viés, o estudo do Centro Internacional de Políticas
para el Crecimiento Inclusivo – IPC-IG reconhece o potencial redistributivo do
principal imposto incidente sobre o acréscimo patrimonial, desde que suas
alíquotas sejam suficientemente progressivas e atinjam o universo das rendas.

De qualquer forma, há de se reconhecer que o fato de os países europeus


estarem colocados em patamares muito próximos no que tange à questão da
desigualdade, reduz o impacto de medidas redistributivas que possam ser
pensadas no âmbito de um Estado componente da União Europeia. As escalas de
tributação nestes países são bastante semelhantes e não parecem ir muito além
das seções atuais. Isso, porém, não impede que os efeitos redistributivos alcancem
o grau de considerável importância. Como informa José Luís Leal, na “Espanha,
a diferença entre o índice de Gini antes e depois de impostos e transferências é de
0,18 pontos (na França de 0,21)” (Leal, 2016).

Como tenta esquematizar Carabaña, pode-se considerar que as políticas


públicas propostas para reduzir a pobreza e a desigualdade apresentam-se de
duas formas. “Algumas consistem na intensificação das políticas distributivas, em
razão das quais é necessário aumentar os impostos com progressividade”. De
outra parte, são adotadas políticas voltadas a aumentar o “crescimento econômico
e melhorar a educação, começando com a infantil, como em geral, todos aqueles
que escolhem ensinar os pobres a pescar em vez de dar o peixe”. Todavia, deixa
claro o pesquisador espanhol, que "não há razão para pensar que, em geral, os
dois tipos de políticas sejam excludentes, quando na verdade podem ser
complementares” (Carabaña, 2016. p. 105).

Há uma série de outros fatores que colaboram decisivamente na


complexa jornada de construção de sociedades mais igualitárias. Vale sempre
repisar: o que se está a defender neste trabalho não é a utopia de viver em uma
sociedade cujo índice de Gini fosse próximo a zero, pois isso muito
provavelmente implicaria produzir uma “igualdade à fórceps”, coisa que
somente regimes totalitários conseguiriam fazer e, totalitarismos, sejam de
esquerda ou de direita, são uma daquelas poucas obras do homem, em relação as
quais já deveria existir uma unânime e sólida reprovação.

5 Desigualdad y redistribución: impuestos y transferências. Centro Internacional de Políticas para el Crecimiento


Inclusivo (IPC-IG). Disponível em: <h�ps://ipcig.org/pub/esp/OP342SP _Desigualdad_y_redistribuc
ion_impuestos_y_transferencias.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2019. p. 1.
SUMÁRIO

281
Marciano Buffon
CAPÍTULO 14

De outro lado, e merecendo mesma veemência, também não é aceitável


que se possa viver em sociedades com índices de Gini que ultrapassam 0,60 ou
que a riqueza somada de 1% da população seja maior que a soma das riquezas do
restante (99%). Sociedades com tais configurações são também indiscutivelmente
indesejáveis; suas economias disfuncionais não alcançam crescimento e
“coincidentemente” apresentam níveis elevados de violência e criminalidade.

No caso da América Latina, como um todo, ou o Brasil, em especial,


parece-se muito difícil, neste momento, alcançar o topo da escala dos países mais
democraticamente igualitários (com índices Gini em torno de 0,25); é possível
mirar o olhar para aquelas sociedades que estão num plano intermediário, como
ocorre já há algum tempo com os países da Europa Ocidental, cujo índice de Gini
mantém-se próximo a 0,30.

No plano internacional, o problema da desigualdade crescente pareceu


mais recentemente percebido como tal. Tanto é verdade que reconhecidos atores
do capitalismo têm manifestado suas preocupações publicamente e convocado a
todos para adotarem medidas que possam ser eficazes no sentido de impedir o
avanço da desigualdade, pois, tudo indica que tenham levado a sério os estudos
– especialmente de Pike�y – que demonstram que níveis de desigualdade muito
elevados foram sucedidos de grandes conflitos no passado. Por todos, é
paradigmática a preocupação revelada, nesse sentido, nos últimos encontros em
Davos.

Há infindáveis propostas que surgem com vistas a fazer da tributação


um efetivo instrumento de redução da desigualdade. O trabalho não teria
condições de examinar a todas, razão pela qual optou-se por apresentar aqui a
ideia contida no “Capital no Século XXI”, de Pike�y, bem como algumas
proposições apresentadas na última obra do referido autor (Capital e Ideologia).

4. Algumas ideias propugnadas por Pike�y para reduzir a desigualda-de


via tributação.

É de autoria do economista francês a mais polêmica proposta no sentido


de reduzir a desigualdade no plano internacional. Trata-se, pois, da tributação da
riqueza mundial, mediante a instituição de um Imposto Mundial sobre a
Riqueza⁶. É certo que essa alternativa parece estar em um horizonte tão distante
que talvez esteja mais para uma verdadeira “obra de ficção”, pois, como o autor
SUMÁRIO

282 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

reconhece, “seria difícil acreditar que as nações do mundo pudessem concordar


com essa ideia, estabelecer um cálculo de tributação para ser aplicado a todas as
fortunas do mundo e depois redistribuir harmoniosamente essas receitas entre os
países” (Pike�y 2014, p. 613).

Se a ideia de instituir um Imposto Mundial sobre a Riqueza, cujos


recursos arrecadados possam ser utilizados para reduzir a desigualdade, parece
ser algo impossível, por que discuti-la? Segundo Pike�y, a instituição do referido
imposto está na condição de uma “utopia útil”. Assim, mesmo que não se torne
realidade, deve-se “tê-la como ponto de referência, a fim de avaliar melhor o que
as soluções alternativas oferecem ou deixam de oferecer”. Ou seja, em
consonância com Galeano, as utopias servem para que se continue a andar,
mesmo que os objetivos visados pareçam se afastar a cada passo que se dê em sua
direção;⁷ nesse sentido, vale sim, pensar no Imposto Mundial sobre a Riqueza, já
que ele permitirá caminhar na direção da equidade.

Segundo o propugnado por Pike�y, o importante é que imposto sobre o


capital seja um imposto progressivo e anual sobre o patrimônio global: tributa-se
mais os patrimônios maiores e leva-se em consideração o total dos ativos, quer
sejam imobiliários, financeiros ou corporativos, sem exceção” (Pike�y 2014, p.
503).

Não se ignora, pois, que impostos dessa natureza já existem em alguns


países. Porém, tais impostos não têm sido eficazes no combate à concentração de
riqueza. Isso ocorre porque, nesses países, vários ativos são isentos ou avaliados
através de valores cadastrais, sem relação com os valores de mercado (Pike�y
2014, p. 504). O que se pretende evitar é que ocorra algo semelhante à tributação
da renda na América Latina, em que a renda proveniente do capital tem tido um
tratamento privilegiado em detrimento da renda oriunda do trabalho.

6 O estudo de Pike�y, não está voltado ao enfrentamento específico da desigualdade de renda, mas sim da
desigualdade de riqueza. De qualquer forma, optou-se por trazer aqui sua proposta, pois ao visar à redução da
desigualdade de riqueza, indiretamente e a médio prazo há um inequívoco efeito na desigualdade de renda,
além de o próprio autor propugnar que este imposto não prescinde dos clássicos impostos progressivos sobre
a renda.
7 Como afirma textualmente Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se
afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” In: GALEANO,
Eduardo. Las palabras andantes. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1993.
SUMÁRIO

283
Marciano Buffon
CAPÍTULO 14

O imposto sobre o capital complementaria o imposto sobre a renda em


casos em que “as pessoas possuam uma renda fiscal claramente insuficiente em
comparação ao seu patrimônio”. Além disso, apenas uma tributação direta sobre
o capital permitiria captar da forma correta a capacidade contributiva dos
titulares de fortunas importantes (Pike�y 2014, p. 648), as quais, muitas vezes, não
foram atingidas pela tributação da renda, em razão da simples evasão ou por ter
encontrado um caminho legal de elisão.

Como defende Pike�y, a fim de garantir contornos mais redistributivos,


faz-se necessária a adoção de soluções menos ortodoxas. A taxação das grandes
fortunas, mediante um imposto mundial que regule a migração dos capitais,
implica a necessidade de extinção dos denominados paraísos fiscais, os quais
personalizam uma distorção do capitalismo contemporâneo, em que a renda não
é tributada e vive-se uma espécie de “utopia às avessas”, alimentada por uma
ficção. De fato, paraíso fiscal é lugar para esconder capitais/dinheiro obtidos
ilicitamente e, na melhor da melhor das hipóteses, sonegado da tributação.

Para que o imposto global sobre o capital atinja o objetivo de regular o


capitalismo e, com isso, diminuir as taxas de pobreza e desigualdade, é necessário
que haja mais “transparência democrática e financeira sobre os patrimônios e os
ativos detidos pelos indivíduos em escala internacional” (Pike�y 2014, p. 504).
Com isso, todos os Estados poderiam ter acesso a um banco de dados públicos,
abastecido com informações confiáveis, produzidas pelos governos mundiais,
entidades e institutos internacionais sobre os patrimônios e as fortunas presentes
em seu território nacional. Ou seja, há a necessidade de uma ampla e geral troca
de informações num plano internacional, parecido, por exemplo, como acontece
hoje com a implementação do Foreign Account Tax Compliance Act (FACTA)⁸.

Para que este contexto seja factível, seria necessário que tais patrimônios
fossem declarados pelo contribuinte, como ocorre, em muitos países, com a
tributação sobre a renda. O cidadão indica seus ativos e passivos, mediante uma
declaração pré-preenchida, enviada pela administração fiscal. Os valores de seus

8 Trata-se de um acordo celebrado entre o Brasil e os Estados Unidos, em 23 de setembro de 2014, através do qual
os dois países se comprometeram a criar juntos uma infraestrutura eficaz para o envio automático de
informações sobre contas mantidas em instituições financeiras localizadas nos seus territórios. O acordo foi
aprovado pelo Congresso Nacional em 25 de junho de 2015, por meio do Decreto Legislativo nº 146, de 25 de
junho de 2015, e promulgado pela presidência da República por meio do Decreto nº 8.506, de 24 de agosto de
2015, tendo entrando em vigor em 25 de agosto de 2015.
SUMÁRIO

284 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

bens terão como base os valores de mercado, os quais permitirão contestação,


caso o contribuinte consiga justificar que o valor efetivo difere daquele constante
na declaração pré-preenchida (Pike�y 2014, p. 506).

Ademais, para se atingir a finalidade de transparência financeira é


importante que sejam incluídos nas declarações pré-preenchidas os ativos
detidos, bem como as transmissões bancárias realizadas em bancos nacionais e
internacionais. Assim, põe-se fim aos paraísos fiscais ou, pelo menos, minimiza-se
o poder desses (Pike�y 2014, p. 509), pelas razões antes expostas.

A fim de reconhecer a quase intransponível dificuldade de instituição


de um Imposto Mundial sobre a Riqueza, Pike�y sugere que haja uma instituição
escalonada do imposto, em que, inicialmente, seria colocado em prática numa
escala continental ou regional, organizando a necessária cooperação internacional
mediante acordos regionais (Pike�y 2014, p. 638). Isso se impõe, uma vez que no
futuro pouco espaço haverá para ações desconectadas do entorno; os
nacionalismos serão forçosamente condenados ao ostracismo e a “cooperação
entre os povos para o progresso da humanidade” (art. 4, inciso IX da Constituição
Brasileira) será a “utopia” da qual a aproximação sobrevirá mais factível.

Traçando um esboço do imposto sobre a riqueza em uma etapa


regional, Pike�y sugere que suas alíquotas, em uma experiência no contexto
europeu, deveriam incidir sobre o montante do patrimônio, preconizando a
adoção dos seguintes percentuais: a) 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de
euros; b) 1% para patrimônios entre 1 e 5 milhões de euros; e c) 2% para
patrimônios acima de 5 milhões de euros, esses, frisando, para o contexto europeu
(Pike�y 2014, p. 514).

Como se percebe, as alíquotas sugeridas são relativamente moderadas,


não obstante terem o condão de gerarem receitas bastante significativas, inclusive
poder-se-ia utilizá-las para fins de minimização da dívida pública, a qual, hoje,
constitui entrave de especial importância na realização dos objetivos do Estado de
Bem-Estar Social (Pike�y 2014, p. 528). Ou seja, para além de financiarem ações
estatais que possam minimizar a desigualdade remanescente dentro do bloco
europeu, cujo índice médio de Gini gira em torno de 0,30, o imposto sobre a
riqueza teria, neste contexto, uma função profilática de controle da dívida
pública, evitando-se, assim, os indesejáveis efeitos recentemente suportados por
vários países do bloco.
SUMÁRIO

285
Marciano Buffon
CAPÍTULO 14

De qualquer forma, as propostas defendidas na vasta obra de Pike�y


não se esgotam no acima descrito. Em livro mais recentemente publicado
(Capital e Ideologia), o autor francês reitera e aprofunda a defesa de uma
fiscalidade progressiva sobre a propriedade e circulação de capital (Pike�y, 2019,
p. 1155), bem como sustenta que em nível local deva haver a exigência de três
impostos progressivos quais sejam: sobre a renda, patrimônio e herança (Pike�y,
2019, p. 1162).

Conforme defende o economista francês, para evitar uma concentração


excessiva de capital, os impostos progressivos sobre as heranças e renda devem
seguir desempenhando no futuro o papel que desempenharam durante o Século
XX, com taxas que durante décadas alcançaram e superaram 70 a 90 por cento nas
faixas mais elevadas da renda e riqueza, sobretudo nos Estados Unidos e no
Reino Unido (Pike�y, 2019, p. 1156).

Não obstante o exposto, a experiência histórica indica que estes


impostos não são suficientes, devendo, portanto, serem complementados com
um imposto progressivo sobre o patrimônio, justamente por ser uma ferramenta
central para garantir uma verdadeira circulação de capital (Pike�y, 2019, p. 1157).
Isso ocorre, segundo o autor, porque comparativamente ao imposto sobre a
renda, o imposto sobre o patrimônio é menos sonegável, especialmente no caso
das grandes fortunas, cuja renda tributável objetiva representam, em regra, uma
fração pouco significativa. Em vista disso, se a progressividade for aplicada
apenas em relação à tributação da renda, de forma quase automática, os grandes
patrimônios submeter-se-ão a impostos poucos expressivos em relação ao
montante da riqueza acumulada (Pike�y, 2019, p. 1157).

Relativamente aos impostos sobre as heranças, Pike�y também


sustenta que a tributação do patrimônio seria mais efetiva no intento de
minimizar a desigualdade. Isso ocorre porque a tributação do patrimônio adapta-
se mais rapidamente à evolução da riqueza e à capacidade econômica do
contribuinte. Conforme exemplifica, “não vamos esperar que Mark Zuckerberg e
Jeff Bezos cheguem a noventa anos e transfiram suas riquezas para começar a
cobrar-lhes impostos”. Ou seja, os impostos sobre as heranças não seriam um
bom instrumento para submeter à tributação grandes fortunas construídas mais
recentemente, razão pela qual um imposto anual sobre o patrimônio atingiria
melhor esta finalidade, sobretudo em um tempo em que a expectativa de vida
aumenta consideravelmente.
SUMÁRIO

286 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Considerações finais

Como se pode perceber, este trabalho não se ocupou com o assunto mais
indiscutivelmente relevante na atualidade: a Pandemia. Pode-se pedir, inclusive,
as devidas escusas aos leitores que chegaram até aqui por não abordar tal tema,
até porque é razoável dizer que pós-pandemia quase será necessário reescrever os
estudos anteriores a ela, dado sua incontestável e trágica grandiosidade.

Optou-se, porém, em não tratar da Pandemia porque não se pode dizer


que tenha sido superada, sobretudo em países como o Brasil, que adotaram um
verdadeiro “script cinematográfico macabro”, capaz de acentuar enormemente a
tragédia inconclusa. A história está sendo produzida e será contada mais adiante,
sendo que as ações criminosas haverão de ser punidas exemplarmente, em
especial pelo fato de que boa parte delas foram perpetradas, incrivelmente, pelos
próprios governantes.

De qualquer forma, se antes da Covid-19 a adoção de políticas públicas


voltadas a minimizar as desigualdades faziam-se necessárias, isso tornou-se, na
atualidade, mais premente e inadiável. Tal ocorre porque, entre tantas
consequências socialmente indesejáveis, o processo de aceleração da pobreza e da
desigualdade torna-se quase incontrolável na América Latina e no país que mais
patrocinou ações em prol do alastramento do vírus.

Portanto, discutir-se mecanismos tributários que estejam voltados a


minimizar o processo de exclusão, que possam ser um “dique de contenção” à
degradação social e à ruptura democrática que dela possa decorrer, constitui um
dos temas mais atuais e necessários de serem pensados, nesse trágico tempo. O
que estamos ora fazendo, mais do que nunca, determinará o futuro e parece que
o peso desta responsabilidade, ao mesmo tempo que possa assustar, nos permite
cultivar a esperança de que podemos, sim, construir desses escombros uma
sociedade mais fraterna, harmoniosa e coesa.

Referências

ATKINSON, Antony B. Desigualdade: o que pode ser feito? São Paulo: LeYa, 2015.

CARABANÃ, Julio. Ricos y Pobres: la desigualdad económica en España. Madrid:


Editora Catarata, 2016.
SUMÁRIO

287
Marciano Buffon
CAPÍTULO 14

Desigualdad y redistribución: impuestos y transferências. Centro Internacional de


Políticas para el Crecimiento Inclusivo (IPC-IG). Disponível em: <h�ps://ipcig.org/pub/
esp/OP342SP _Desigualdad_y_redistribucion_impuestos_y_transferencias.pdf>. Acesso
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STIGLITZ, Joseph E. O preço da Desigualdade. Lisboa: Bertrand Editora, 2013.

PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

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PIKETTY, Thomas. La crisis del capital em el siglo XXI: crónicas de los años em que el
capitalismo se volvió loco. Barcelona: Ed. Anagrama, 2015.

PIKETTY, Thomas. Capital e Ideologia. Barcelona: Planeta, 2019.


SUMÁRIO
SUMÁRIO

Capítulo 15

O STANDARD DE PROVA
“PARA ALÉM DE TODA A
DÚVIDA RAZOÁVEL”
NO PROCESSO
PENAL – BARD –
Miguel Tedesco Wedy
SUMÁRIO

290 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

O STANDARD DE PROVA “PARA ALÉM DE TODA A DÚVIDA


RAZOÁVEL” NO PROCESSO PENAL – BARD –

Miguel Tedesco Wedy¹

Introdução

Seria o realismo jurídico uma prática invencível? A ideia de que o direito


é o que os tribunais dizem que é está correta? Em que pese essa ideia seja corrente
na jurisprudência, ela configura uma solução adequada para os problemas
jurídico-criminais? Por certo que, no futuro, a inteligência artificial vai impactar
fortemente os processos decisórios, pois permitirá uma otimização do tempo, da
pesquisa, uma forma mais célere de captação de standards e, portanto, uma menor
divergência nas decisões de um mesmo julgador. Porém, não há garantias de que
os standards colocados ao dispor do juiz não serão o reflexo de um direito
altamente punitivo, eivado de um subjetivismo judicial que está consolidado na
jurisprudência. Um subjetivismo que não responde o que é “ordem pública”,
“gravidade concreta do delito”, “periculosidade”, “não ocorrência de prejuízo em
material de nulidades” ou que “há prova para além da dúvida razoável”. Assim,
aceitar a natureza pessoal e humana do ato decisório não significa dizer que ele é
puramente discricionário. Muito pelo contrário. Há todo um arcabouço
principiológico, uma estrutura prévia e um itinerário processual a ser percorrido,
cujos objetivos deveriam orientar a decisão do juiz.

1 Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, Professor e Decano da Escola de Direito da Unisinos e
Advogado Criminalista.
SUMÁRIO

291
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

Como bem ensina Gustavo Henrique Badaró, ao comentar a alusão


crítica de Françóis Rabelais: o juiz não pode jogar os dados para decidir²! Isto é, o
juiz não pode decidir sobre o futuro de uma vida humana por meio da sorte, da
aleatoriedade ou do casuísmo. A decisão e o próprio processo possuem
compromissos com a verdade e é esse o escopo epistemológico que norteia a
ciência jurídica. Diferentemente das concepções céticas, o direito possui um
compromisso com a verdade e com a justiça (de acordo com a lei e a Constituição)
e justamente em razão disso é que se deve estabelecer limites à subjetividade do
juiz no ato decisório.

No âmbito do processo penal, além do dever de motivação ou


fundamentação³, um dos principais limites à subjetividade do juiz é o direito à
prova. Ou seja, o juiz só poderá condenar se houver provas suficientes ao ponto
de dissiparem suas dúvidas no caso concreto. O grande problema, todavia, é dizer
o que são provas suficientes e demonstrar no caso concreto quando tais provas são
suficientes ou insuficientes. Com o intuito de superar esse problema, surgiu na
common law os standards de prova que, em linhas gerais, visam estabelecer o
“quanto” de prova é necessário para o juiz decidir⁴.

2 Segundo a alusão de Rabelais, o juiz Bidoyer julgava de acordo com o resultado dos dados, por mais de
quarenta anos, sem jamais ter qualquer julgamento considerado equivocado. Então, chega o momento dele
próprio ser a parte a ser julgada. Em face disso, o velho magistrado confessa que sempre decidia os processos
lançando dados, sem nunca cometer erros, a não ser naquela última sentença que, por isso mesmo, foi objeto
de apelação. Mesmo assim, o magistrado mantinha inabalável a convicção no seu método aleatório. Atribuiu,
portanto, o erro do julgamento não aos dados ou à sorte, mas ao fato de que já não enxergava bem, e podia ter
se equivocado ao tentar distinguir os números dos dados, tendo tomado um quatro por um cinco e, por isso,
ter sentenciado errado (BADARÓ, Gustavo Henrique. Editorial Dossiê: Prova penal: fundamentos
epistemológicos e jurídicos. Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v. 4. n. 1. 2018. p. 44. Disponível em
h�p://www.ibraspp.com.br/revista/index.php/RBDPP/article/view/138. Acessado em 30/08/2020).
3 Alguns diriam que a motivação é o que confere racionalidade à decisão jurídica; porém, apenas isso não é
suficiente. Como ensina Marcela Nardelli, ao citar Piero Calamandrei, a motivação pode se traduzir como uma
“hipocrisia formal”, uma vez que apenas confere um disfarce aos verdadeiros fundamentos subjetivos do ato
decisório (NARDELLI, Marcela. Presunção de Inocência, Standards de Prova e Racionalidade das Decisões
sobre os Fatos no Processo Penal. p. 3).
4 Frisa-se, de imediato, que para além do standard da “prova além da dúvida razoável” (beyond a reasonable
doubt), ainda há os standards da “prova clara e convincente” (clear and convincing evidence), da “prova mais
provável que sua negação” (more probable than not) e da “preponderância da prova” (preponderance of the
evidence) (LOPES JR., Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Sobre o uso do standard probatório no processo
penal. Revista Consultor Jurídico. Publicado em 26/07/2019. Disponível em h�ps://www.conjur.com.br/2019-
jul-26/limite-penal-uso-standard-probatorio-processo-penal. Acessado em 30/08/2020).
SUMÁRIO

292 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Dentre tais standards, destinou-se ao processo penal o standard beyond


any reasonable doubt (BARD, a partir de agora), intitulado no Brasil de standard de
prova “para além da dúvida razoável”. É verdade que esse standard é alvo de
duras críticas, seja no Brasil, seja em outros países. No Brasil, especialmente,
critica-se o BARD e afirma-se que ele produz um efeito de anti standard, uma vez
que aumenta a margem de subjetividade do ato decisório. A questão, entretanto,
é saber se, de fato, o BARD é incapaz de controlar a subjetividade do juiz no ato
decisório ou se o problema está no seu transplante acrítico e na sua aplicação
enviesada no processo penal brasileiro.

Em face disso, o artigo, além de enfrentar os paradigmáticos problemas


da renhida relação entre verdade e processo penal, bem como elucidar as fases
que integram o direito à prova (admissão, produção, apreciação e decisão),
também analisa o uso do BARD como um mecanismo de mitigação da
subjetividade do juiz na sentença penal. É necessário conceituar de um modo
crítico e objetivo esse standard, sob pena do seu uso ser inócuo ou quiçá redundar
no aumento da subjetividade no ato decisório. Portanto, impõe-se uma legítima
compreensão e, então, uma conceituação objetiva do BARD no Brasil.

1. Prova e verdade

Em devidas proporções, o operador do direito desempenha uma tarefa


no decorrer do processo muito semelhante a do historiador, visto que se busca a
verdade de um acontecimento pretérito por meio de uma reconstrução histórica
dos fatos. Com efeito, tem-se que a busca da verdade no mundo jurídico também
utiliza o procedimento analógico.

Luigi Ferrajoli é um crítico da crença na verdade real e indubitável no


âmbito do processo penal. A propósito, Ferrajoli sustenta sua crítica mediante
uma problematização alegórica que é oportuno referirmos: Semprônio é
encontrado morto com golpes de faca. No decorrer do processo, a testemunha
Tício é a única prova de autoria do homicídio. Em sua inquirição, Tício alega que
viu Caio, munido com um punhal ensanguentado, saindo da casa de Semprônio.
Em face disso, deduz-se, no mínimo, três hipóteses factíveis: a) Tício pode estar
mentindo para acobertar as investigações e se auto proteger ou proteger terceiro,
b) Tício pode ter confundindo Caio com Mévio, outro sujeito cuja aparência é
semelhante a Caio e c) Caio pode ter adentrado na casa de Semprônio para
perseguir o assassino.⁵ Além destas hipóteses, outras poderiam ser elencadas;
SUMÁRIO

293
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

porém, o fito de Ferrajoli é apenas demonstrar a gama de possibilidades fáticas


que surgem do testemunho de Tício. Com isso, Ferrajoli desconstrói a existência
de uma “verdade real” na reconstrução do passado.

Nesse sentido, ao passo que crer na “verdade real”, absoluta e


inquestionável, denote determinada ingenuidade científica, também parece
temerário ser cético ao ponto de desacreditar na verdade. Ou seja, de suprimir a
verdade processualmente válida como um dos fins do processo penal. Tal posição
cética rememora a posição de Francesco Carnelu�i e incorpora um ceticismo
extremado. O autor, na expectativa de superar o problema da verdade no
processo, propõe o abandono da verdade em nome de um novo conceito, qual
seja, a certeza.⁶

Embora seja louvável a tentativa de Carnelu�i que almejava superar o


problema da verdade no direito processual penal, importante dizer que o
conceito de certeza também traz consigo um conjunto de limitações. Sobretudo
pressupondo que o avanço científico, especialmente após as contribuições de
Albert Einstein mediante sua teoria da relatividade, substituiu o princípio da
certeza pelo princípio da incerteza⁷. No fundo, na medida em que não se quer
entrar num terreno de absurdo relativismo científico, também é temerário
instituir certezas científicas absolutas, visto que o conhecimento é dotado de
validade. Inclusive o próprio Carnelu�i tinha conhecimento dos problemas que
permeavam o conceito de certeza e, então, disse que se buscava por meio do
processo uma “certeza jurídica”.⁸

Tendo em vista que tanto o conceito de “verdade real” como o de


“certeza” são insuficientes para explicar a relação entre a verdade e o direito
processual, cumpre-se encontrar um meio termo. Nessa tarefa, observa-se que a

5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2º ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006. p. 125-126.
6 LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 14º ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 375. Aury Lopes Jr. disserta sobre
as contribuições de Francesco Carnelu�i com base em uma revista italiana que esmiúça o conceito de certeza
jurídica (CARNELUTTI, Francesco. Verità, Dubbio e Certezza. Rivista di Dirito Processuale, v. XX II serie, 1965.
P. 4-9).
7 LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5º ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 80-82.
8 CARNELUTTI, Francesco. Verità, Dubbio e Certezza. Rivista di Dirito Processuale, v. XX II serie, 1965. p. 4-9.
E também em LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 14º ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 375.
SUMÁRIO

294 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

“certeza jurídica” de Carnelu�i é muito semelhante àquilo que alguns autores


intitulam de “verdade formal”, ou seja, a verdade que é construída dentro dos
limites processuais. Desse modo, conclui-se que um processo que não possui
compromisso com a verdade processualmente válida é vazio e meramente
simbólico. É claro que o processo é um filtro contra o abuso de poder, um dique
contra o poder punitivo, para que ele não seja arbitrário. É claro que o processo
deve ser uma garantia, mas uma garantia que não despreze uma ideia de
reconstituição histórica que seja processualmente válida. Prova disso é a
possibilidade de uma prova ilícita em favor do réu. Não é essa circunstância um
elemento contundente de que o processo não quer abdicar de uma certa ideia de
uma verdade processualmente válida? Parece-nos que sim. Do mesmo modo, um
processo que vislumbra a verdade como um valor supremo e absoluto expressa
determinada ingenuidade científica e acaba, muitas vezes, produzindo injustiça e
legitimando medidas autoritárias, como a tortura e provas ilícitas e ilegítimas em
desfavor do acusado.

A ciência jurídica não pode ser fruto da íntima subjetividade do


indivíduo. Isso porque decidir não é sinônimo de escolher livremente. Muito pelo
contrário. Há uma estrutura prévia. Um arcabouço de regras e princípios
intitulados direito e cuja pretensão é justamente restringir ao máximo a atividade
subjetiva do magistrado.⁹ Em face disso, o direito processual, sendo fragmento da
ciência jurídica, não pode ser caudatário da subjetividade do indivíduo. Portanto,
para além da substituição da “verdade material” pela “verdade formal”, também
é imperativa a substituição da natureza persuasiva pela natureza racionalista no
âmbito do direito processual penal.

Sob esse aspecto, aliás, pode-se dizer que a natureza racionalista dialoga
perfeitamente com aquilo que se intitulou anteriormente de “verdade
processualmente válida”. Afinal, não se nega o caráter epistêmico e,
simultaneamente, impõe-se limites à busca da verdade. Além disso, importante
frisar que, em uma perspectiva racionalista, uma reconstrução processualmente
válida do fato histórico está umbilicalmente interligada às provas admitidas e
produzidas em juízo. Uma vez que o juiz no exercício da cognição terá acesso aos
elementos de prova e, então, convencer-se-á de qual hipótese fática é verdadeira.
Dessa maneira, tem-se que a prova é a mola propulsora da epistemologia no

9 STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. O que é isto: as garantias processuais penais. 2º ed. rev., atual.
e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. p. 22-23.
SUMÁRIO

295
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

processo penal. E, obviamente, produzir provas não é sinônimo de um vale tudo


processual. Há limites na atividade probatória. Tais limites decorrem dos fins
políticos e epistêmicos que regem o direito à prova e que serão elucidados no
próximo ponto.

2. O direito à prova: dos fins epistêmicos aos fins políticos

O processo penal brasileiro ainda deve avançar muito nas discussões


que englobam o direito à prova. Talvez em razão de ainda estarmos amarrados ao
berço autoritário do nosso Código de Processo Penal. Em virtude disso, o
contexto em que a nossa legislação processual penal foi germinada era
profundamente autoritário e inquisitorial. Os exemplos são abundantes: poderes
instrutórios do juiz, a livre apreciação da prova, a crença na “verdade real”, o
princípio do prejuízo etc.¹⁰

Como se vê, o maior problema de tudo isso é que os exemplos que


simbolizam o nosso passado autoritário e inquisitorial ainda vigoram. Ou seja,
fomos incapazes de diagnosticar o berço autoritário da nossa legislação
processual penal e, então, constitucionalizá-la. Um dos resultados disso é que
pouco se discute sobre o direito à prova no Brasil. Ao mesmo tempo que o
processo penal pátrio continua preso aos conceitos obsoletos de 1941, o aparelho
estatal modernizou-se e, consequentemente, aprofundou sua capacidade de obter
provas. Basta mensurar o grau de intromissão dos mecanismos previstos no
ordenamento pátrio (infiltração de agentes, infiltração eletrônica, escuta
ambiental e telefônica, quebra de sigilo bancário, telefônico e telemático, ação
controlada, colaboração premiada, busca e apreensão etc.).

É verdade que a criminalidade, mormente a organizada, também


aperfeiçoou seus métodos; porém, ainda pouco se discute sobre os limites do
exercício da busca pela prova. Todavia, um ponto fora da curva desse apego ao
passado foi a recente promulgação da Lei nº 13.964/2019 – “Lei Anticrime”. Com
o advento da Lei Anticrime, para além da introdução da cadeia de custódia da
prova, iniciou-se um debate no Brasil sobre as fases que envolvem o direito à
prova. Ou seja, a respeito da trajetória que abrange da coleta da prova até o seu
uso pelo juiz na motivação do ato decisório. Em resumo, salvo pontuais

10 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no
processo penal brasileiro. 1º ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 130-136.
SUMÁRIO

296 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

divergências doutrinárias, o direito à prova divide-se em admissão, produção,


apreciação e decisão.

De certo modo, na oportunidade em que se discutem as fases do direito


à prova, afasta-se o processo penal do seu passado obsoleto e aproxima-o da
epistemologia. E convém dizer que o processo penal, como qualquer outra área,
não pode prescindir da teoria do conhecimento, sobretudo no tocante à relação
entre prova e ato decisório, uma vez que aquela fase na qual o ato decisório era
discricionário e fruto da subjetividade do juiz já fora superada. Afinal, como fora
apontado anteriormente, a existência de provas suficientes é conditio sine qua non
para se falar em verdade no âmbito do processo penal. Todavia, em que pese os
fins epistêmicos sejam fundamentais, estes também não são absolutos. Ou seja, há
outros valores que norteiam o processo penal para além da epistemologia.

Além disso, é transcendental que se trabalhe também com princípios


fundamentais como o princípio da presunção de inocência, o subprincípio do in
dubio pro reo e o ônus da prova como incumbência da acusação¹¹. Além disso,
pode-se dizer que também é sob o manto desse terceiro valor que se justificaria o
BARD.

De modo semelhante, Gustavo Henrique Badaró, ao citar Antônio de


Magalhães Filho, apresenta limites no direito à prova que possuem justificativas
políticas ou epistêmicas.¹²

Nesse momento, surge o problema central do artigo. O que são provas


suficientes? Na prática, o juiz responde essa questão na fase de decisão. Caso haja
provas suficientes ele condena, caso não haja, ele deve absolver. O núcleo do
problema, porém, situa-se em fazer com que esse juízo suficiente/insuficiente não
seja fruto da mera subjetividade do juiz. Afinal, se a fase de decisão for
estritamente subjetiva, não há motivo para se falar em racionalismo e
epistemologia no direito à prova.¹³ Sob esse aspecto, no próximo ponto o artigo
abordará os mecanismos que surgiram na common law e cujo objetivo é justamente
apresentar limites à subjetividade do juiz em seu veredicto.

11 Ibidem. p. 97-98.
12 BADARÓ, Gustavo Henrique. Editorial Dossiê: Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos. Revista
Brasileira de Direito Processual Penal. v. 4. n. 1. 2018. p. 59. Disponível em h�p://www.ibraspp.com.br/revista/
index.php/RBDPP/article/view/138. Acessado em 30/08/2020).
SUMÁRIO

297
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

3. A fase de decisão do direito à prova e os standards

a) Introduzindo os standards de prova: PoE, CCE e BARD

Não há como se falar dos standards de prova sem retomar a discussão da


fase de apreciação da prova. Afinal, em que pese os standards se localizem na fase
de decisão, as suas razões de existência são provenientes do princípio do livre
convencimento, o qual abrange tanto a fase de apreciação como a de decisão do
direito à prova. Sob esse aspecto, é cediço que o princípio do livre convencimento
representou determinado avanço, uma vez que por meio desse diploma superou-
se o antigo e problemático sistema de provas tarifadas.

Inobstante, na medida em que o sistema do livre convencimento


simbolizou um avanço, também trouxe consigo alguns efeitos colaterais. Uma vez
que se atribuiu, ao juiz, liberdade no exercício do seu convencimento, transmitiu-
se uma ideia absurda na qual este não teria mais amarra nenhuma em sua
decisão. Assim sendo, estar-se-ia diante de um sistema de mera persuasão, cujo
convencimento do juiz seria fruto exclusivo de sua subjetividade.

Entretanto, já nos ensinava Jorge de Figueiredo Dias sobre o princípio


do livre convencimento: “o princípio não pode de modo algum querer apontar
para uma apreciação imotivável e incontrolável – e, portanto, arbitrária – da
prova produzida”¹⁴. Isso porque, como já assinalado anteriormente, o processo
penal racionalista e epistêmico pressupõe uma inevitável compatibilização entre
convencimento e prova. Em outras palavras, o ato decisório só é legítimo se
calcado em elementos de prova.

Nesse sentido, a propósito, posiciona-se Geraldo Prado. Para este autor,


a refutação do direito penal do autor em nome do direito penal do fato exige que
o juiz julgue na sua decisão tão somente a hipótese fática descrita na exordial

13 Importante referir que a livre apreciação da prova (art. 155, caput, do CPP) é um desdobramento específico na
fase de apreciação do princípio do livre convencimento.
14 Embora Figueiredo Dias vislumbrasse a “verdade material” – aquela que fora superada por esse mesmo artigo
anteriormente – como o principal mecanismo de controle do livre convencimento, percebe-se que já se tinha
acordo de que o livre convencimento não é um campo aberto para o juiz se convencer a bel prazer
(FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Reimpressão da 1º ed. de 1974. Coimbra/Portugal:
Coimbra Editora, 2004. p. 202).
SUMÁRIO

298 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

acusatória (denúncia ou queixa-crime).¹⁵ Ou seja, veda-se que o juiz fundamente


o ato decisório à luz dos predicados pessoais do acusado. Portanto, o juízo de
probabilidade da veracidade da hipótese fática descrita na exordial deve
inevitavelmente ser corroborado por provas, sob pena de ser ilegítimo. Eis o
núcleo do problema e que já fora anunciado de modo preliminar no ponto
anterior. Qual a quantidade de prova que permite ao juiz conceber a hipótese
fática acusatória como verdadeira? Foi no afã de responder esse problema que
surgiram na common law os standards de prova.

Segundo Antônio Vieira e Janaína Matida, tanto as regras jurídicas como


os standards de prova são estratégias normativas. Porém, ao passo que as regras
jurídicas são específicas, os standards são genéricos. As regras jurídicas descrevem
a própria conduta e, portanto, evitam que o operador teça considerações político-
morais na sua aplicação. Os standards, por seu turno, usam termos vagos e,
portanto, convidam o operador para refletir sobre sua aplicação. Para melhor
compreensão, os autores citam o exemplo das placas de trânsito que vale a pena
reproduzir. Imagine-se duas placas. Na primeira está escrito que é proibido
dirigir acima de 80 km/h e na segunda consta que se deve dirigir prudentemente.
Frisa-se que em ambas as situações aplica-se multa pelo descumprimento do
disposto na placa. Supõe-se que um piloto de Fórmula 1 (condutor profissional e
acostumado com alta velocidade) dirigiu nesse local às 4h (ou seja, sem tráfego
algum de veículos ou pessoas) na velocidade de 95 km/h. De acordo com a
primeira placa o condutor de fórmula 1 será multado, já que ultrapassou o limite
estabelecido. Por outro lado, nos termos da segunda placa, a aplicação da multa
será no mínimo discutível, pois as circunstâncias (piloto profissional e ausência de
tráfego) aproximam a conduta do piloto da prudência. Na verdade, na medida
que a primeira placa é uma regra, a segunda é um standard.¹⁶

15 PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia da prova
obtida por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 40. Apud. VIEIRA, Antônio; MATIDA, Janaína.
Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova “para além de toda dúvida razoável”
no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 156. Ano 27. p. 224-226. Disponível
em: h�ps://www.academia.edu/40069531/Para_al%C3%A9m_do_BARD_uma_cr%C3%ADtica_%C3%A0_cres
cente_ado%C3%A7%C3%A3o_do_standard_de_prova_para_al%C3%A9m_de_toda_a_d%C3%BAvida_razo%
C3%A1vel_no_processo_penal_brasileiro. Acessado em: 04/10/2020.
16 VIEIRA, Antônio; MATIDA, Janaína. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova
“para além de toda dúvida razoável” no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.
156. Ano 27. p. 224-226. Disponível em: h�ps://www.academia.edu/40069531/Para_al%C3%A9m_do_BAR
D_uma_cr%C3%ADtica_%C3%A0_crescente_ado%C3%A7%C3%A3o_do_standard_de_prova_para_al%C3%
A9m_de_toda_a_d%C3%BAvida_razo%C3%A1vel_no_processo_penal_brasileiro. Acessado em: 04/10/2020.
SUMÁRIO

299
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

É notório o uso de três standards pela jurisprudência e pela doutrina


anglo-saxã. São eles: o preponderance of evidence (PoE), o clear and convincing
evidence (CCE) e o beyond any reasonable doubt (BARD). Tendo em vista que seria
uma ingenuidade científica asseverar que determinada hipótese fática está 100%
comprovada, tais standards partem da premissa de que é necessário estabelecer
percentuais para conceber a veracidade das hipóteses fáticas. Nesse aspecto, o
percentual de probabilidade que torna a hipótese fática como verdadeira é
estabelecido de acordo com as consequências da decisão que reconhece essa
veracidade. Ou seja, pressupondo que no âmbito cível a decisão não impactará ou
impactará de modo menos contundente sob a liberdade do indivíduo, exige-se
um percentual menor de probabilidade. Desse modo, os standards PoE e CCE
exigem percentuais respectivos de 50% e 75% e, em virtude disso, são utilizados
na justiça cível. Utiliza-se dois standards na justiça cível, pois eventualmente a
decisão será mais contundente, como uma interdição ou a própria perda de
direitos sucessórios. O BARD, por sua vez, exigiria um percentual de 95% e é
utilizado na justiça criminal. Note-se que no sistema americano, por exemplo, nos
casos de Júri, há exigência de unanimidade de votos dos jurados para a
condenação do réu (com exceção de dois estados, que permitem um voto
divergente). Ou seja, o grau de certeza chega a 100%. No Brasil, por sua vez,
bastam quatro votos condenatórios, do total de sete jurados (isto é, o réu pode ser
condenado com 57% dos votos). Ou seja, é muito mais fácil condenar no Brasil do
que nos Estados Unidos, quando se trata de Tribunal do Júri. Na América do
Norte, o BARD torna mais densa a necessidade probatória. Poderia ele ser
aplicado no Brasil, sem que isso acarretasse um aumento do subjetivismo?

b) O BARD, o seu suposto uso no Brasil e as suas controvérsias

Como se vê, o BARD é o standard mais rigoroso e justamente em razão


disso é que é utilizado no âmbito da justiça criminal. Com o objetivo de conceituá-
lo mais precisamente, importante trazer os ensinamentos de Aury Lopes Jr. e
Alexandre Morais da Rosa:

Podemos definir como os critérios para aferir a suficiência


probatória, o "quanto" de prova é necessário para proferir
uma decisão, o grau de confirmação da hipótese acusatória. É
o preenchimento desse critério de suficiência que legitima a
SUMÁRIO

300 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

decisão. O standard é preenchido, atingido, quando o grau de


confirmação alcança o padrão adotado.¹⁷

De modo semelhante, Alexandre Morais da Rosa e Janaína Matida


conceituam-no por meio de uma metáfora, qual seja, comparando-o com o
esporte do salto com vara. Em resumo, o esporte de salto com vara consiste em
um saltador que deverá saltar mais alto que um sarrafo, observando para isso
alguns limites na corrida e outros na queda. Nessa metáfora, a hipótese
acusatória (saltador) precisa superar o standard (saltar mais alto que o sarrafo)
com a observância de limites pré-determinados (não há vale tudo probatório).¹⁸

Dito isso, em que pese o aprofundamento teórico do BARD seja um


fenômeno razoavelmente recente no Brasil, ele já vem sendo citado pela
jurisprudência há mais de duas décadas. O precursor fora o ministro Celso de
Mello em um Acórdão no Habeas Corpus nº 73.338 julgado pela 1ª Turma do STF
em 1996. Entretanto, ainda que os indícios de transplante do BARD remetam ao
final do século XX, observa-se que tal standard entrou em voga a partir da Ação
Penal 470, vulgo Caso Mensalão. Após isso, vulgarizou-se o uso da expressão
“além da dúvida razoável” ou “acima da dúvida razoável” pela jurisprudência
brasileira. Na Lava Jato, tanto o ex-juiz Sérgio Moro, como o procurador Deltan
Dallagnol e os desembargadores do TRF-4 utilizavam com certa frequência o
BARD, sem contornos claros dos seus limites.¹⁹

A questão que surge, todavia, é se, de fato, a jurisprudência utiliza o


BARD como um standard racional que restringe a subjetividade do juiz no seu ato

17 MORAIS DA ROSA, Alexandre; LOPES JR.; Aury. Sobre o uso do standard probatório no processo penal.
Revista Consultor Jurídico. Coluna Limite Penal. Data de publicação: 19/07/2020. p. 1. Disponível em h�ps://
www.conjur.com.br/2019-jul-26/limite-penal-uso-standard-probatorio-processo-penal. Acessado em
30/08/2020.
18 MORAIS DA ROSA, Alexandre; MATIDA, Janaína. Para entender standards probatórios a partir do salto com
vara. Revista Consultor Jurídico. Coluna Limite Penal. Data de publicação: 20/03/2020. p. 2. Disponível em:
h�ps://www.conjur.com.br/2020-mar-20/limite-penal-entender-standards-probatorios-partir-salto-vara.
Acessado em: 04/10/2020.
19 VIEIRA, Antônio; MATIDA, Janaína. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova
“para além de toda dúvida razoável” no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais.
Vol. 156. Ano 27. p. 233-237. Disponível em: h�ps://www.academia.edu/40069531/Para_al%C3%A9m_d
o_BARD_uma_cr%C3%ADtica_%C3%A0_crescente_ado%C3%A7%C3%A3o_do_standard_de_prova_para_a
l%C3%A9m_de_toda_a_d%C3%BAvida_razo%C3%A1vel_no_processo_penal_brasileiro. Acessado em:
04/10/2020.
SUMÁRIO

301
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

decisório ou se utiliza-o tão somente como um argumento retórico para justificar


decisões estapafúrdias. Ora, no parágrafo anterior se utilizou o termo
“vulgarizou” não à toa, uma vez que o transplante do BARD para o processo
penal brasileiro dera-se de modo acrítico e enviesado, motivo pelo qual parte da
doutrina vislumbra os efeitos do BARD no Brasil como equivalentes a um anti
standard.²⁰

Em certo sentido, esse ceticismo crítico de parte da doutrina nacional


reflete algumas preocupações que foram apontadas em outros países a partir da
aplicação do BARD. Michele Taruffo na Itália e Jordi Ferrer Beltrán na Espanha
eram céticos em relação às capacidades do BARD. Em grande medida, a crítica
dos autores aponta o excesso de subjetividade que abrange o BARD e sua
aplicação. No Brasil, como já apontado, tal crítica doutrinária é feita
substancialmente por Antônio Vieira e Janaína Matida, os quais além de criticar
o uso acrítico do BARD no processo penal brasileiro, sugerem sua supressão e
substituição por outro standard.²²

De fato, a crítica feita pelos autores é legítima e no Brasil traduz a


realidade, qual seja, de que atualmente o BARD é incapaz de mitigar a
subjetividade do juiz no ato decisório e, portanto, de aproximar a fase de decisão
de um sistema racionalista e epistêmico. No entanto, surgem algumas questões:
se está aplicando, de fato, o BARD no Brasil? Ou a expressão “além da dúvida
razoável” é utilizada como um mero argumento retórico? Essa incapacidade é
inerente ao BARD ou ela advém do transplante acrítico desse standard? É possível
tornar o BARD um standard que controle a subjetividade do juiz e, então,
contribua com o processo de racionalização do ato decisório?

20 O termo é utilizado corriqueiramente por Janaína Matida.


21 Para um aprofundamento das críticas: LAUDAN, Larry. Por qué un estándar de prueba subjetivo y ambiguo
no és un estándar. Universitat d’Alacant – Universidade de Alicante. Revistes Científiques. n. 28; FERRER
BELTRÁN, Jordi. Los estándares de prueba en el proceso penal español. Cuadernos Eletrónicos de Filosofia del
Derecho. V. 15, 2007; TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. Vitor de
Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.
22 Embora essa sugestão de supressão não seja expressa, deduz-se isso claramente da conclusão que os autores
fazem (VIEIRA, Antônio; MATIDA, Janaína. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard
de prova “para além de toda dúvida razoável” no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. Vol. 156. Ano 27. p. 245. Disponível em: h�ps://www.academia.edu/40069531/
Para_al%C3%A9m_do_BARD_uma_cr%C3%ADtica_%C3%A0_crescente_ado%C3%A7%C3%A3o_do_standa
rd_de_prova_para_al%C3%A9m_de_toda_a_d%C3%BAvida_razo%C3%A1vel_no_processo_penal_brasileiro
. Acessado em: 04/10/2020.
SUMÁRIO

302 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

4. O BARD como um mecanismo de mitigação da subjetividade do juiz


na sentença penal?

a) É necessário compreender a expressão “dúvida razoável” como


proveniente de um standard

De acordo com Laudan, o BARD é pautado por dois discursos, sendo


um qualitativo e outro quantitativo. O discurso qualitativo diria respeito à
expressão “acima ou além da dúvida razoável” e o quantitativo, por sua vez,
representaria o percentual de probabilidade exigido para se dizer que não há mais
dúvidas razoáveis. Diante disso, Laudan constata que, embora os acadêmicos
apresentem essas duas faces do BARD (qualitativa ou quantitativa), os operadores
do direito utilizam tão somente a face qualitativa.²³ Ou seja, canalizam todo o
conteúdo do BARD pela expressão “acima ou além da dúvida razoável”.

O diagnóstico de Laudan traduz com precisão a realidade brasileira.


Isso porque a jurisprudência faz menção ao termo “dúvida razoável” (face
qualitativa), mas sequer se refere ao percentual de 95% de veracidade exigido pelo
BARD (face quantitativa). Mais ainda no caso do Júri, no qual há condenações
com apenas 57% dos jurados, enquanto nos EUA, com padrões mais elevados, há
uma exigência maior, o que implica, por certo, uma prova mais densa para o
convencimento desses mesmos jurados. Em razão disso, o BARD é esvaziado e
acaba se tornando um argumento meramente retórico. Em nossa opinião, eis um
dos principais fatores que tornam a aplicação do BARD enviesada e, por
conseguinte, um anti standard.²⁴

Além disso, é perceptível um processo de banalização da expressão


“dúvida razoável” no Brasil. Até o processo civil – diametralmente oposto ao
processo penal – utiliza a expressão “dúvida razoável”. Um exemplo disso é o art.
311, IV do Código de Processo Civil, o qual dispõe sobre os requisitos de
concessão da tutela de evidência. Ora, se a “dúvida razoável” é parâmetro para o
juiz conceder uma tutela de evidência no âmbito do processo civil, deduz-se que
a mesma “dúvida razoável” não poderá ser parâmetro para a sentença penal, haja
vista as nítidas diferenças entre o processo civil e o processo penal.²⁵ Então, há

23 LAUDAN, Larry. Por qué un estándar de prueba subjetivo y ambiguo no és un estándar. Universitat d’Alacant
– Universidade de Alicante. Revistes Científiques. n. 28 p. 98-99. Disponível em h�ps://doxa.ua.es/article/view/
2005-n28-por-que-un-estandar-de-prueba-subjetivo-y-ambiguo-no-es-un-estandar. Acessado em 04/10/2020.
24 Para utilizar o termo referido por Antônio Vieira e Janaína Matida.
SUMÁRIO

303
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

dois tipos de “dúvida razoável”? Na verdade, o que há é uma banalização da


expressão “dúvida razoável”, razão pela qual atualmente o BARD, além de ser
incapaz de mitigar a subjetividade do juiz, acaba produzindo efeitos indesejados.

Em face disso, parece-nos que é difícil se falar em BARD se não forem


estabelecidos, nos casos possíveis, como no Júri e nas decisões colegiadas, um
maior grau de exigência do ponto de vista quantitativo. Por exemplo, é aceitável
que um jurado seja condenado com apenas quatro votos desfavoráveis, sendo
sete os jurados? Esse não é um sinal premente de dúvida? Parece claro que sim. O
mesmo nos julgamentos colegiados, quando há decisões condenatórias não
unânimes, não há aí a evidência da ausência do BARD? Ou seja, parece essencial
que critérios quantitativos e objetivos sejam levados em conta, caso se queira
lançar mão do BARD, com segurança, no direito brasileiro. Nesse aspecto,
cumpre-se asseverar que somente se ultrapassa o percentual de 95% com provas
abundantes, uma vez que o juiz não pode utilizar meras suposições ou achismos
para dissipar as dúvidas processuais. A partir disso, faz-se necessário superar a
instrumentalização que é feita da expressão “dúvida razoável” no Brasil. No
fundo, a doutrina, a legislação e a jurisprudência brasileira precisam ressignificar
o termo “dúvida razoável”, compreendendo-o tão somente como um standard
cuja aplicação destina-se exclusivamente à sentença condenatória no processo
penal.²⁶

b) É possível apostar na utilização do BARD como um mecanismo


de mitigação da subjetividade do juiz na sentença penal?

Após se concluir acerca da necessária ressignificação do termo “dúvida


razoável” no Brasil com o objetivo de amarrar essa expressão ao BARD,
importante refletir sobre a capacidade do BARD de mitigar a subjetividade no ato
decisório. Nesse sentido, via de regra, as críticas ao BARD apontam a sua vagueza
e indeterminação. O problema é que parte da doutrina que critica essa vagueza e
indeterminação também admite que tais predicados integram o conceito de

25 Jacinto Nelson de Miranda Coutinho aborda com precisão as diferenças entre o processo civil e o processo
penal. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá,
1998.
26 Deve-se adotar outros standards menos rigorosos no âmbito do processo penal. Por exemplo, para a recepção
da denúncia, para a decretação de medidas cautelares e para a decisão de pronúncia.
SUMÁRIO

304 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

standard.²⁷ Inobstante, é necessário ponderar que qualquer standard jamais


conseguirá suprimir a subjetividade do ato decisório. Até o obsoleto sistema de
prova tarifada trazia consigo determinada subjetividade, visto que o ato decisório
também era proferido por um humano e a subjetividade é inerente ao ser
humano.

No entanto, reconhecer que a subjetividade é indissociável ao ato


decisório do juiz, não significa dizer que não seja possível diminuir o nível de
subjetividade da decisão. Diante disso, questiona-se se seria possível tornar o
BARD mais objetivo e, então, utilizá-lo como um parâmetro para a sentença
condenatória no Brasil. Como referido anteriormente, parece-nos que os mesmos
critérios usados no direito americano devem ser trabalhados no Brasil. Isto é,
onde for possível trabalhar com dados quantitativos, deveremos trabalhar com
dados quantitativos, como no Júri e nas decisões colegiadas. Carecemos, ainda, de
uma definição mais clara acerca do aspecto qualitativo. E esse ponto deve-se
explorar a partir de agora, para que o BARD seja apenas um argumento retórico,
como tem sido no Brasil, até aqui.

Ademais, cumpre-se observar que parte da crítica à subjetividade do


BARD nos EUA decorre da dificuldade do juiz leigo ao compreender conceitos e
postulados jurídicos, como o princípio da presunção de inocência, o subprincípio
do in dubio pro reo e, inclusive, o próprio BARD. Aliás, um forte crítico do BARD
nos EUA, Larry Laudan, reconhece que a sua crítica ao BARD não é universal.²⁸
Disso deduz-se que o BARD pode ser um standard útil em outros sistemas.

O principal desafio ainda é tornar o BARD mais objetivo do ponto de


vista qualitativo. Para tanto, impõe-se uma conceituação do que é dúvida

27 Conforme os autores, os standards são estratégias normativas mais genéricas e que convidam o operador do
direito para a reflexão (VIEIRA, Antônio; MATIDA, Janaína. Para além do BARD: uma crítica à crescente
adoção do standard de prova “para além de toda dúvida razoável” no processo penal brasileiro. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 156. Ano 27. p. 225-226. Disponível em: h�ps://www.academia.edu/
40069531/Para_al%C3%A9m_do_BARD_uma_cr%C3%ADtica_%C3%A0_crescente_ado%C3%A7%C3
%A3o_do_standard_de_prova_para_al%C3%A9m_de_toda_a_d%C3%BAvida_razo%C3%A1vel_no_process
o_penal_brasileiro. Acessado em: 04/10/2020. Ora, aquilo que é genérico e que convida o operador para a
reflexão também pode ser considerado como vago e indeterminado.
28 Segundo o autor, “si la crítica que ofreceré puede ser aplicada en otras partes es algo que no estoy, por ahora,
dispuesto a afirmar”. (LAUDAN, Larry. Por qué un estándar de prueba subjetivo y ambiguo no és un estándar.
Universitat d’Alacant – Universidade de Alicante. Revistes Científiques. n. 28 p. 98 Disponível em h�ps://
doxa.ua.es/article/view/2005-n28-por-que-un-estandar-de-prueba-subjetivo-y-ambiguo-no-es-un-estandar.
Acessado em 04/10/2020.
SUMÁRIO

305
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

razoável, mas também a construção de um método pelo qual o juiz estará apto
para concluir acerca da existência ou não de dúvida razoável. O conceito
elaborado por Vinicius Gomes de Vasconcellos parece relevante, embora, por
óbvio, deva ser tensionado:

Assim, pode-se definir dúvida razoável como a hipótese alter-


nativa à tese incriminatória, que se mostre logicamente possí-
vel e amparada pelo lastro probatório do processo.²⁹

Isso em razão de que tal afirmação não repele o subjetivismo. O que é


uma tese “logicamente possível” e “amparada pelo lastro probatório do
processo”? Qual a intensidade desse lastro probatório? Ou quando ela não é
logicamente possível? Talvez, o mais preciso, fosse o estabelecimento normativo
de um conceito de prova para além da dúvida razoável. Assim, talvez, poder-se-ia
diminuir o subjetivismo do conceito. É claro, do ponto de vista objetivo, para que
se chegue em um método de verificação da dúvida razoável, é necessário que se
aborde a fase de apreciação da prova. Nessa fase, o juiz irá avaliar cada elemento
hipotético aventado pela acusação na exordial acusatória. Logo, cada afirmativa
da acusação em relação à materialidade, à autoria, às qualificadoras, às causas de
aumento de pena e aos demais detalhes narrados na denúncia ou na queixa-crime
deverão estar devidamente corroborados com elementos de prova. Há provas que
via de regra possuirão um valor probante maior, como perícias e algumas provas
digitais (interceptações, vídeos), outras possuirão um grau menor, como
testemunhas. Não obstante, em cada caso, a prova possuirá suas especificidades
e, portanto, deve ser analisada minuciosamente pelo juiz. No que tange aos
elementos produzidos no decorrer da investigação preliminar, eles não deveriam
ser usados no processo, exceto em situações excecionais, no caso de provas
irrepetíveis, desde que assegurada a participação defensiva na construção dessa
prova.³⁰

Após apreciar as afirmativas da acusação, o juiz debruçar-se-á sobre as


razões fáticas e jurídicas apresentadas pela defesa. Cumpre-se observar que não

29 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Standard probatório para condenação e dúvida razoável no processo
penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento brasileiro. Revista Direito GV. V. 16 N. 2, 2020. p. 18.
Disponível em: h�ps://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322020000200203&script=sci_abstract&tlng=pt.
Acessado em: 04/10/2020.
30 O art. 3-C, § 3º do CPP inovou e previu que os autos da investigação preliminar, salvo exceções expressas nesse
artigo, não serão apensados ao processo.
SUMÁRIO

306 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

se está a dizer que a defesa deve provar suas alegações³¹, mas a partir dessas
alegações defensivas o juiz conseguirá confrontá-las com o que fora alegado fática
e juridicamente pela acusação. Concluída a fase de apreciação da prova – frise-se
que o objetivo não é exaurir a discussão sobre a fase de apreciação, mas apenas
introduzi-la –, encontrar-se-á o juiz em uma posição de aptidão para julgar o feito.
Nesse momento, inicia a fase de decisão e, então, aplica-se o BARD como
parâmetro para que o juiz considere as alegações da acusação verdadeiras ao
ponto de proferir uma sentença condenatória.

Como demonstrado, a dúvida razoável é uma hipótese alternativa à tese


incriminatória e que se mostra logicamente possível e amparada pelo lastro
probatório do processo. Nesse diapasão, ressalta-se que a superação da dúvida
razoável prevê que a hipótese acusatória esteja corroborada com provas que
demonstrem um grau de veracidade de 95% ou mais. E aí se perguntaria, sim: do
ponto de vista quantitativo isso pode ser medido nos casos de Júri e decisões
colegiadas, mas e nos demais casos, como se afere esse percentual de 95%? Aí é
que se coloca a ideia que estamos a revolver. Quando for possível estabelecer
critérios quantitativos, como no Júri e decisões colegiadas, que se faça! Nos
demais casos, em decisões proferidas por juízes singulares, aí haveria de se lançar
mão de critérios qualitativos normativos, de modo a diminuir a subjetividade.

Considerações finais

Afirmar um processo penal democrático em um país de tradição


autoritária não é uma tarefa fácil. É uma obra cotidiana, intermitente e que impõe
o constante rever de conceitos. Por isso o cuidado que devemos ter ao tratar do
BARD. A sua infiltração no nosso sistema deve estar calcada nas mesmas fortes
exigências que ele tem no contexto anglo-saxão, ou então ele será apenas um jogo
retórico para solapar a presunção de inocência e o in dubio pro reo.

Por isso, a sugestão que fazemos, e que deverá ser aprofundada, de que
o BARD possa ser implementado em seus critérios quantitativos nos julgamentos
colegiados e no Tribunal do Júri. E, nos julgamentos por juízes singulares, que ele
seja definido, normativamente, para se diminuir o subjetivismo, tão próprio da
nossa realidade pretoriana.

31 Em nossa opinião, o ônus da prova no processo penal é exclusivamente da acusação.


SUMÁRIO

307
Miguel Tedesco Wedy
CAPÍTULO 15

Referências

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publicação: 20/03/2020.
SUMÁRIO

308 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

NARDELLI, Marcella Alves Mascarenhas. Presunção de inocência, standards de prova e


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PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de


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STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. O que é isto: as garantias processuais
penais. 2. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019.

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razoável no processo penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento
brasileiro. Revista Direito GV. V. 16 N. 2, 2020.

VIEIRA, Antônio; MATIDA, Janaína. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção
do standard de prova “para além de toda dúvida razoável” no processo penal brasileiro.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 156. Ano 27.
SUMÁRIO

Capítulo 16

A AGENDA 2030
DA ONU E O DIREITO:
as possibilidades transdisciplinares
para a avaliação da produção e
do consumo sustentáveis a partir da
ferramenta do Safe by Design

Raquel Von Hohendorff


SUMÁRIO

310 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

A AGENDA 2030 DA ONU E O DIREITO: as possibilidades


transdisciplinares para a avaliação da produção e do consumo
sustentáveis a partir da ferramenta do Safe by Design¹

Raquel Von Hohendorff²

Introdução

A Quarta Revolução Industrial, que já está em curso, desde a virada do


século, trata de inovações tecnológicas como a inteligência artificial, a robótica, a
internet das coisas, veículos autônomos, impressões em 3D, nanotecnologias,
biotecnologias, armazenamento de energia e computação quântica.

O desenvolvimento destas novas tecnologias, sejam produtos ou


serviços, gera impactos éticos, legais e sociais importantes, relacionados também
ao princípio da precaução e informação, bem como reflexos nas relações de
trabalho e no meio ambiente. Não há como se imaginar avanços científicos e
tecnológicos, além de econômicos, alicerçados sobre retrocesso social em termos
de saúde e de proteção. Para que o Direito consiga dar conta dos desafios trazidos
pelos avanços promovidos pela Quarta Revolução Industrial, deverá abrir-se para
dois caminhos: perpassar outras áreas do conhecimento que poderão ajudá-lo a
compreender a complexidade das realidades que estas inovações viabilizarão e

1 Resultado parcial das investigações desenvolvidas pela autora no âmbito do Projeto Transdisciplinaridade e
Direito: construindo alternativas jurídicas para os desafios trazidos pelas novas tecnologias com apoio
financeiro concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS Edital
04/2019 Auxílio Recém Doutor.
2 Doutora e Mestra em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS/RS/Brasil. E-mail: rhohendorff@unisinos.br
SUMÁRIO

Raquel Von Hohendorff


CAPÍTULO 16 311
deixar ingressar as ideias vindas de outras áreas e saberes. Esta será a condição de
possibilidade para a inovação no/do jurídico na Era de Inovação.

O sistema do Direito e a Quarta Revolução Industrial precisam de uma


abordagem a partir da transdisciplinaridade, de modo a contribuir para a
concretização dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU, em um
cenário atual permeado pelas características BANI (sigla de bri�le, anxious,
nonlinear e incomprehensible, traduzido como frágil, ansioso, não linear e
incompreensível), em substituição ao mundo VUCA (volatilidade, incerteza,
complexidade e ambiguidade). Lembrando sempre que essas características
sofreram essa modificação desde 2020, muito em função da pandemia de
coronavírus, com mudanças globais e sistêmicas.

Desta forma, importante é a discussão acerca de novos padrões de


produção e consumo, como definido nos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável, mais especificamente no ODS 12 e seus reflexos ambientais, éticos,
sociais e legais. E este é o objetivo principal deste artigo desenvolvido a partir da
perspectiva metodológica sistêmico-construtivista que considera a realidade
como uma construção de um observador, analisando todas as peculiaridades
implicadas na observação, tratando-se de uma forma de reflexão jurídica sobre as
próprias condições de produção de sentido, bem como as possibilidades de
compreensão das múltiplas dinâmicas comunicativas diferenciadas em um
ambiente complexo, como o atual, consoante Luhmann (2007).

Essa abordagem pressupõe a compreensão do Direito enquanto um


sistema social autopoiético, cujas operações são comunicativas, desenvolvidas
através de processos de tomada de decisões elaborados no interior de certa
organização jurídica. Um sistema que se constitui como uma parcela do ambiente
da sociedade, também compreendida aqui como um sistema autopoiético. É na
perspectiva sistêmico-funcionalista que se pretende estabelecer este elo de ligação
entre o problema e uma solução a ser construída.

1. Aspectos da Quarta Revolução Industrial e a necessária produção e


consumo sustentáveis

O avanço das tecnologias num conjunto crescente de aplicações começa


a integrar o cotidiano da sociedade brasileira e mundial. Por outro lado, as
pesquisas e os produtos, que advirão desta intervenção humana nas forças
SUMÁRIO

312 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

naturais, exigirão a atuação dos diferentes sistemas, com a avaliação dos impactos
sociais, éticos e regulatórios emergentes, suportados por um modelo de inovação
que deverá ser responsável e sustentável, pois há incerteza quanto aos riscos
dessas novas tecnologias.

O que distingue a Quarta Revolução Industrial das três anteriores é a


velocidade, a amplitude e a profundidade, além da fusão de tecnologias e a
interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos, gerando mudanças de
paradigma sem precedentes não apenas na economia, mas também na sociedade
e nos indivíduos. Ainda, envolve a transformação de sistemas inteiros entre
países e dentro deles, em organizações, indústrias e em toda sociedade
(SCHWAB, 2016).

De acordo com Bauman (2011, p. 65), “vivemos hoje numa sociedade


global de consumidores, e os padrões de comportamento de consumo afetam
todos os aspectos da nossa vida [...]”, inclusive no trabalho e na família. A
proteção da saúde ambiental como um todo deve permear as atitudes de todos os
envolvidos no processo produtivo, tendo sempre como objetivo a prevenção de
novos incidentes e a busca de uma maior qualidade de vida para todos.

A globalização e a busca de padrões de consumo sustentáveis são


aspectos interligados e, por isso, um consumo sustentável exige que se integrem
nos padrões de produção e de consumo as restrições do desenvolvimento
sustentável (Bourgoignie, 2017).

Sabe-se que muitos consumidores já fazem escolhas mais sustentáveis,


mesmo que elas exijam um dispêndio maior de valores, mas ainda há um longo e
árduo caminho a ser percorrido para o desenvolvimento de uma cultura de
consumo sustentável, o que deve passar também por evolução nas políticas e
práticas de consumo e produção sustentáveis. Pode-se dizer que, em uma
perspectiva de futuro, a conservação do planeta vai exigir muito mais do que
conhecimento dos inúmeros e diferentes sistemas sociais, tecnologia inovadora e
métodos de redução de desperdício: exigirá, além de atenção a todos esses
aspectos, uma mudança de padrões de comportamento de todos, quer sejam
produtores, quer sejam consumidores.

Nesse sentido, o princípio do desenvolvimento sustentável, expresso no


texto constitucional brasileiro, deve guiar a concretização dos objetivos e do
direito ao desenvolvimento, aliado à conservação e manutenção do meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
SUMÁRIO

Raquel Von Hohendorff


CAPÍTULO 16 313
O princípio do desenvolvimento sustentável é conhecido como
princípio do eco desenvolvimento ou desenvolvimento durável ou, ainda,
sustentabilidade.

O conceito de sustentabilidade foi definitivamente incorporado como


um princípio durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, a Cúpula da Terra de 1992 – Eco-92, no Rio de Janeiro.
Buscando o equilíbrio entre proteção ambiental e desenvolvimento econômico,
serviu como base para a formulação da Agenda 21, com a qual mais de 170 países
se comprometeram, por ocasião da Conferência.

Trata-se de um abrangente conjunto de metas para a criação de um


mundo, enfim, equilibrado. A Declaração de Política de 2002 da Cúpula Mundial
sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em Johanesburgo, afirma que o
Desenvolvimento Sustentável é construído sobre três pilares interdependentes e
mutuamente sustentadores – desenvolvimento econômico, desenvolvimento social
e proteção ambiental. O Projeto de Implementação Internacional (PII) apresenta
quatro elementos principais do Desenvolvimento Sustentável – sociedade,
ambiente, economia e cultura.

A sustentabilidade é um princípio constitucional sistêmico, não apenas


vinculado ao direito ambiental, conforme destacam Coelho e Araújo (2011, p.
261):

Compreender a sustentabilidade como um princípio constitu-


cional não somente ambiental, mas interdisciplinar, notada-
mente social, empresarial e econômico, constitui uma tarefa
da teoria jurídica contemporânea, em busca da efetividade
das ideias que gravitam no entorno do Estado Democrático de
Direito.

Nesse sentido, busca-se evidenciar a sustentabilidade em seu caráter


sistêmico-constitucional, o que implica uma compreensão interdisciplinar desse
princípio basilar não somente no viés ambiental, mas também na perspectiva
econômica e social, numa visão que se quer integrada a esses âmbitos, quando
alçados ao plano constitucional (COSTA, 2012).

A Agenda 2030 é um plano de ação para as pessoas, para o planeta e


para a prosperidade, que busca fortalecer a paz universal com mais liberdade,
SUMÁRIO

314 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

reconhecendo que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões,


incluindo a extrema, é o maior desafio global e um requisito indispensável para o
desenvolvimento sustentável. Governos, organizações internacionais, setor
empresarial e outros atores não estatais e indivíduos devem contribuir para a
mudança de consumo e produção não sustentáveis, inclusive via mobilização de
todas as fontes, de assistência financeira e técnica para fortalecer as capacidades
científicas, tecnológicas e de inovação dos países em desenvolvimento para
avançar rumo a padrões mais sustentáveis de consumo e produção.

Desta forma, os ODS definem as prioridades e aspirações de


desenvolvimento sustentável global para 2030 e buscam mobilizar os esforços
globais ao redor de uma série comum de objetivos e metas. Os ODS exigem uma
ação mundial entre os governos, as organizações e a sociedade civil para acabar
com a pobreza e criar uma vida com dignidade e oportunidades para todos
considerando os limites do planeta.

Os ODS são essenciais para efetuar mudanças fundamentais na maneira


como nossa sociedade produz e consome bens e serviços, especialmente o ODS
12. Cada dia fica mais claro que é preciso que todos contribuam para modificar os
atuais modos pouco sustentáveis de consumo e produção, e que sejam
promovidas ações de modo a incrementar a capacidade científica, tecnológica e
de inovação, em busca da sustentabilidade (HOHENDORFF; ENGELMANN,
2020).

O ODS 12 tem como nomenclatura Assegurar padrões de produção e de


consumo sustentáveis e, entre as 8 principais metas, estão a de, até 2030, reduzir
substancialmente a geração de resíduos por meio da prevenção, redução,
reciclagem e reuso; incentivar as empresas, especialmente as grandes e
transnacionais, a adotar práticas sustentáveis e a integrar informações de
sustentabilidade em seu ciclo de relatórios; promover práticas de compras
públicas sustentáveis, de acordo com as políticas e prioridades nacionais e
garantir que as pessoas em todos os lugares tenham informação relevante e
conscientização para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida em
harmonia com a natureza (ONU, 2019).

Todos e todas, consumidores e fornecedores com interesses comuns,


devem contribuir para modificar os atuais modos pouco sustentáveis de consumo
e produção, e adotar medidas para fortalecer a capacidade científica, tecnológica
e de inovação, com o objetivo de avançar para modos mais sustentáveis. Quanto
SUMÁRIO

Raquel Von Hohendorff


CAPÍTULO 16 315
às empresas, elas “podem utilizar os ODS como um quadro global para moldar,
conduzir, comunicar e relatar as suas estratégias, objetivos e atividades,
permitindo que essas tirem proveito de uma escala de benefícios” (GUIA DOS
ODS, 2015, p. 5).

Entre os benefícios, pode-se citar: a) identificação de oportunidades de


negócios futuros; b) valorização da sustentabilidade corporativa; c)
fortalecimento das relações com as partes interessadas e manutenção do ritmo
com os desenvolvimentos da política; e d) investir em um ambiente propício aos
negócios e utilização de uma linguagem comum e de uma finalidade
compartilhada (SDG COMPASS, 2016). Aqui se observa que o cumprimento dos
ODS não inibe o desenvolvimento econômico das organizações e do próprio país.

E todas essas ações, necessárias aos consumidores, aos fornecedores e


aos diferentes sistemas sociais, de modo que possamos concretizar os ODS, entre
eles o ODS 12, passam, necessariamente, pela transdisciplinaridade e pelo
desenvolvimento de soft skills que permitam a adaptabilidade em um mundo
BANI.

2. A necessária transdisciplinaridade no mundo atual

As mudanças nos padrões de consumo demandam produtos


socialmente justos e ambientalmente controlados, o que faz com que as empresas
devam buscar se adequar aos novos padrões.

A pandemia mostrou que não se pode mais tentar dividir o mundo em


“caixinhas” e que a interdependência é uma das lógicas que regem o novo
mundo. Aqui entra a transdisciplinaridade, envolvendo, necessária e
impreterivelmente, diferentes áreas do conhecimento, sempre guiadas pelos
princípios constitucionais, colocando a saúde humana e ambiental como
prioridades.

A expressão transdisciplinaridade sempre gera questionamentos e atrai


a atenção. Como traduzir em poucas palavras algo tão complexo e completo?
Afinal, trata-se de uma nova abordagem científica e cultural, uma nova forma de
compreender os acontecimentos do mundo atual. É um modo de compreensão de
processos, uma nova atitude frente ao saber, necessária ao mundo complexo em
que vivemos.
SUMÁRIO

316 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Assim, pode-se conceituar transdisciplinaridade como uma forma de


entendimento da complexidade da realidade por meio de suas inter-relações
sistêmicas, o que causa a quebra da barreira disciplinar e do reducionismo. Edgar
Morin (2010, p. 138) afirma que a complexidade está apta a reunir, contextualizar,
mas também a reconhecer o singular, o individual e o concreto. Menciona, ainda,
que para promover uma nova transdisciplinaridade, precisa-se de um paradigma
que permita dividir relativamente os domínios científicos, mas fazendo-os se
comunicarem, sem que se opere a redução.

Apenas através da transdisciplinaridade pode-se promover uma


mentalidade construtiva e de aprendizagem, objetivando a adaptabilidade, a
flexibilidade e a capacidade de lidar com a incerteza e os riscos (todas soft skills
necessárias ao mundo atual).

A transdisciplinaridade pode ser compreendida como sendo um


diálogo entre um ou mais campos de saber com vários outros campos. É o
movimento, um fluxo de ideias, uma proposta nova de ver e atuar no mundo
complexo atual, onde nenhum saber é mais importante que outro, e sim todos são
igualmente importantes.

Uma possibilidade de aplicar a transdisciplinaridade é relacionar


Direito, tecnologia e inovação na busca pela realização dos ODS, especialmente o
12, por meio de novos modelos de riscos, como o safe by design. Assim, o Direito e
suas fontes podem inserir-se no cenário da inovação tecnológica, propondo novos
modelos acerca dos riscos, entre eles o safe by design, viabilizando a juridicização
dos fatos tecnológicos e os desafios trazidos por eles em um cenário atual.

3. A estratégia do safe by design como forma de aplicação da


transdisciplinaridade

O objetivo do safe by design é reduzir os riscos em um estágio inicial do


processo de inovação, usando o conhecimento científico atual para orientar o
design de novos produtos da Quarta Revolução Industrial.

O safe by design é uma abordagem que incorpora os aspectos de


segurança e saúde ambiental em um estágio inicial do processo de inovação dos
novos materiais para garantir a segurança dos seres humanos e do meio ambiente
(EUROPEAN COMISSION, 2017).
SUMÁRIO

Raquel Von Hohendorff


CAPÍTULO 16 317
O conceito já vem sendo utilizado pela indústria há alguns anos e
pretende detectar incertezas e riscos potenciais o mais cedo possível durante um
projeto de inovação, bem como identificar medidas para reduzir ou eliminar essas
incertezas e riscos. Não é um conceito autônomo, mas projetado para ser
integrado aos processos de inovação atuais, envolvendo não apenas aspectos
transdisciplinares como também as soft skills. Ainda, o desenvolvimento de novas
formas e padrões de produção, atendendo ao ODS 12, passa necessariamente pela
observação transdisciplinar.

As abordagens de safe by design pretendem o re-design e o refinamento de


rotinas e/ou de produção de materiais inovadores visando à mitigação de seus
potenciais riscos, mantendo as propriedades desejadas que os tornam atraentes
para vários fins, considerando todo o ciclo de vida dos novos produtos, desde o
berço até o túmulo. Portanto, quanto maior o limiar do impacto dos riscos ou
estimativa do potencial perigoso na junção com a probabilidade de dano, muito
mais atenção deve ser dada às várias fases do ciclo de vida. Os registros de
eventos, reações em cada etapa devem ser anotados, gerando informações. Além
disso, um ponto fundamental é a última etapa, quando se deve responder à
pergunta: fim da vida ou início de um novo ciclo da vida de um material
(Engelmann; HUPFFER; HOHENDORFF, 2020).

O safe by design envolve: a) identificação da(s) característica(s) que


torna(m) os produtos/serviços inovadores potencialmente arriscados; b) avaliação
das propriedades desejadas e como elas estão correlacionadas com os recursos
dos materiais identificados; e c) re-design das estratégias de produção, seja de
materiais ou de serviços (STONE et al., 2017).

O uso de estratégias de design tem a possibilidade real de mapear e


controlar a exposição a potenciais riscos, atenuando inclusive o risco ocupacional,
além dos riscos aos consumidores. E, aqui, quando se fala em riscos, pensa-se em
todos aqueles que possam prejudicar os mais diferentes aspectos da
sustentabilidade dos produtos/serviços.

A partir deste ponto de vista, o safe by design é mais uma abordagem de


gerenciamento de riscos do que uma abordagem de avaliação de risco. Ainda,
espera-se através do safe by design reduzir o risco e a exposição através do projeto
a um nível de risco aceitável sem afetar o desempenho do material e orientar o
desenvolvimento de produtos e serviços mais seguros em diferentes estágios.
SUMÁRIO

318 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

O impacto esperado é que o safe by design seja utilizado desde a fase


inicial dos processos de desenvolvimento de novos produtos/serviços; que os
locais de trabalho melhorem de qualidade e garantam o máximo de desempenho
econômico em linha com níveis de risco aceitáveis; que ocorra o controle e
mitigação da exposição ao nível de risco aceitável; e que sejam desenvolvidas e
validadas técnicas de baixo custo para a realização de uma avaliação integrada de
riscos orientada para exposição e o design associado do monitoramento de pós-
uso necessário, seja de produtos ou de serviços (KATALAGARIANAKIS, 2017).

Os possíveis principais benefícios para um empresário que se utiliza


desta ferramenta podem ser assim caracterizados: a redução do tempo necessário
para a pesquisa e desenvolvimento de produtos/serviços, pois considera a
segurança desde o início, a questão econômica, de custo efetivo da inovação, a
maior velocidade de elaboração do produto/serviço a ser lançado ao mercado, eis
que ao longo de todo o desenvolvimento do produto os aspectos de segurança
foram considerados, a elaboração de produtos/serviços mais seguros e mais
sustentáveis, portanto mais aceitos pelo mercado consumidor, bem como a
preparação para futuros desafios regulatórios, pois usou-se a melhor técnica
disponível (SKENTELBERY, 2017). A aceitação por parte do consumidor de
diferentes aplicações das novas tecnologias provavelmente será um determinante
chave que influenciará seu futuro desenvolvimento e trajetória de
implementação.

A figura 1 demonstra algumas das vantagens da ferramenta do safe by


design através da ótica de diferentes observadores de variados sistemas (exemplo
prático de aplicação da transdisciplinaridade).

Figura 1: Benefícios da aplicação do safe by design

Fonte: Suarez-Merino, Schlo�er e Höhener.


SUMÁRIO

Raquel Von Hohendorff


CAPÍTULO 16 319

Observa-se que as vantagens vão desde questões econômicas, de


balanço entre custo, funcionalidade e segurança, passando pelas questões dos
riscos e das informações, a questão da transparência, dos aspectos mais voltados
ao empresário que adotar esta ferramenta, até chegar à sustentabilidade, através
do desenvolvimento e da redução do impacto ao meio ambiente. Percebe-se que
se trata de um ambiente transdisciplinar, com espaço para as diferentes áreas do
conhecimento (inclusive o Direito) atuarem ativamente em busca da
concretização do ODS 12.

Para o Direito cabe um movimento inicial, ainda não bem resolvido:


perceber que a Quarta Revolução Industrial já iniciou, onde as novidades
emergem com velocidade e ineditismo sem precedentes e com probabilidade
quase zero de que as estruturas jurídicas atuais possam dar conta de um modo
adequado e célere.

Assim, o Direito precisa passar a ter contato com inovação e


empreendedorismo, através de aportes transdisciplinares, objetivando o
desenvolvimento de habilidades necessárias a todos na atual realidade permeada
pelas características BANI.

Os potenciais benefícios econômicos e sociais das tecnologias podem


não ser realizados se as respostas sociais à sua aplicação não forem
adequadamente abordadas no início do processo de desenvolvimento de
produtos. As preferências e prioridades do consumidor quanto à implementação
da regulamentação destinada a aperfeiçoar a proteção do consumidor e do meio
ambiente e as características potenciais dos produtos de consumo devem ser
devidamente avaliadas ao formular regulamentos, políticas e questões de design
relacionadas às novas tecnologias, influenciando assim padrões de consumo e
produção mais sustentáveis.

A título de considerações finais

O Sistema do Direito e a sua dificuldade de internalizar a noção de risco,


cada vez mais presente nas relações sociais da sociedade contemporânea, é um
ótimo ponto de observação das relações ocorridas na sociedade.
SUMÁRIO

320 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Desta forma, objetivou-se analisar as possibilidades da contribuição da


ferramenta do safe by design em empresas como uma forma de acoplamento entre o
Sistema do Direito e o Sistema da Ciência, visando à sustentabilidade, em seus
diferentes aspectos, aplicada à inovação, no contexto dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável, projetados pela Organização das Nações Unidas
(ONU) até 2030 (especialmente o ODS 12 – consumo e produção sustentáveis).

O desenvolvimento socioeconômico que ocorrerá com o advento e


implementação das novas tecnologias nos mais diversos processos produtivos
não pode deixar de considerar os aspectos éticos legais e sociais, bem como a
sustentabilidade, promovendo sempre os ideais de uma responsabilidade
planetária e de um não retrocesso ambiental.

Percebe-se que, frente aos inúmeros novos desafios surgidos com a


Quarta Revolução Industrial, uma vez que o Direito é uma ciência social aplicada,
a produção de seu conhecimento deve ser sempre contextualizada a partir de
situações problematizadas na sociedade e não apenas ficar restrita a divagações
teóricas sem qualquer vínculo com o mundo fático.

É preciso voltar os olhos para pesquisar o que o Direito precisa mudar,


a fim de preparar os seus profissionais para lidar com as características BANI, que
traduzem as condições do mundo atual, pois, como bem mencionava Pontes de
Miranda, em 1922 (p.19), “quem percorre, de um lado, os progressos e conquistas
das ciências físicas e, de outro, os das ciências sociais, não pode deixar de
entristecer-se. O direito continua a ser elaborado e explicado segundo os métodos
dos tempos romanos e da idade média.”

Nos documentos que versam sobre os ODS, o desenvolvimento


sustentável é definido como o desenvolvimento que procura satisfazer as
necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade das futuras
gerações de satisfazer as próprias necessidades. Assim, demanda um esforço
conjunto para a construção de um futuro inclusivo, resiliente e sustentável para
todas as pessoas e todo o planeta, e, para que seja alcançado, é preciso que se
harmonizem três elementos centrais: crescimento econômico, inclusão social e
proteção ao meio ambiente. Trata-se de elementos interligados e fundamentais
para o bem-estar dos indivíduos e das sociedades.

Dessa forma, o Direito precisa ter contato com inovação e


empreendedorismo, através de aportes transdisciplinares, objetivando o
desenvolvimento de habilidades necessárias a todos na atual realidade e
SUMÁRIO

Raquel Von Hohendorff


CAPÍTULO 16 321
buscando atingir os objetivos ambientais, sociais e governamentais e concretizar
os ODS.

A manutenção da existência humana na Terra – até hoje o único Planeta


habitável do nosso sistema solar – exige mudanças de padrões comportamentais
e de consumo de todos os habitantes. Uma forma educativa e bastante envolvente
de pensarmos acerca de nossas atitudes como moradores de Gaia é a
demonstração do impacto ecológico dos produtos e serviços que utilizamos,
através do cálculo da chamada pegada ecológica. Alguma vez você já parou para
pensar e calcular a sua pegada ecológica³, o impacto das suas escolhas de
consumo para a saúde do planeta? A hora é agora, a mudança de seus padrões de
consumo impactará na sua qualidade de vida e no direito das atuais e futuras
gerações.

Referências

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SUMÁRIO

322 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

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SUMÁRIO

Raquel Von Hohendorff


CAPÍTULO 16 323
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SUMÁRIO
SUMÁRIO

Capítulo 17

TRAMAS E
INTERCONEXÕES NO
SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL:
antidiscriminação, gênero e sexualidade

Roger Raupp Rios


SUMÁRIO

326 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

TRAMAS E INTERCONEXÕES NO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL: antidiscriminação, gênero e sexualidade

Roger Raupp Rios¹

Introdução

O direito constitucional brasileiro e o direito internacional dos direitos


humanos têm, dentre seus conteúdos fundamentais, a afirmação do direito de
igualdade. Inicialmente compreendido como proibição de distinções, sua
compreensão evoluiu rumo à proibição de discriminação. Formulado e
compreendido, na arena internacional, a partir das violações perpetradas pelos
regimes totalitários, assim como, na ordem interna, respondendo à violência
praticada pela ditadura militar que se estabeleceu no período da Guerra Fria, a
proibição de discriminação ordenada pelo direito de igualdade, no direito
brasileiro e no direito internacional, almeja afastar toda e qualquer diferenciação
injusta, em especial práticas e regimes de subordinação contra indivíduos e
grupos histórica e socialmente injustiçados e vítimas de preconceito e
discriminação.

Sem ignorar, muito menos menosprezar o rico e intenso debate em


diversos campos (político, social, filosófico, histórico etc.), é de se salientar que
este esforço de efetivação do mandamento antidiscriminatório resultou, na esfera
jurídica, na formulação de legislação e jurisprudência específicas. A litigância, a
sistematização e a pesquisa acadêmica nestes campos acabaram por demarcar

1 Professor de Direito do PPG da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.


SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 327
domínios do conhecimento e da prática jurídicos, conhecidos como “direito da
antidiscriminação”. Assim designado, tal campo surge a partir da experiência
jurídica estadunidense (McCRUDDEN, 1991), com os avanços do movimento de
direitos civis pós II Guerra Mundial (POLE, 1993, p. 311), tendo como marco
jurisprudencial indisputável a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no
célebre caso “Brown vs. Board of Education”, de 1954 (SCHWARTZ, 1993, p. 286;
RUTHERGLEN, 2001), passando a exercer uma influência seminal no continente
europeu, tanto nos direitos nacionais (BURCA, 2011), como no direito
comunitário europeu (COUNCIL OF EUROPE, 2011).

Enquanto a compreensão tradicional do princípio da igualdade expõe o


conteúdo e a extensão dessa cláusula constitucional de modo estático, por meio
da enunciação de suas respectivas dimensões formal e material arbitrárias
(FREDMAN, 2002, p. 7; RIOS, 2002, p. 33; MOREIRA, 2017, p. 17), o conceito de
discriminação aponta para a reprovação jurídica das violações do princípio
isonômico. Passa-se a atentar para os prejuízos injustos suportados pelos
destinatários de tratamentos desiguais, objetivando enfrentar situações de
estigma e subordinação experimentadas por grupos discriminados (RIOS, 2008,
p. 36; MOREIRA, 2017, p. 67; SOLANKE, 2017). A discriminação enfrentada pelo
direito da antidiscriminação é, portanto, tomada por uma perspectiva mais
substantiva que formal: importa enfrentar a desigualdade prejudicial e
injusta, pois nem sempre a adoção de tratamentos distintos se revela maléfica,
sendo mesmo tantas vezes exigida, como alerta à dimensão material do princípio
da igualdade (o de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na
medida de suas desigualdades).

As injustiças e as reivindicações na esfera do gênero e da sexualidade


têm posto à prova o direito da antidiscriminação, ao mesmo tempo que o
desafiam e que propiciam seu desenvolvimento; tal tarefa, por sua vez, que exige
uma postura metodológica jurídico-científica, marcada pela inquietação teórica
diante da compreensão das categorias jurídicas existentes e sua relação com
gênero e sexualidade, atitude diversa de uma abordagem jurídico-instrumental,
que se restringe à pergunta sobre a adequação da norma ao caso concreto, sem
problematizar o direito enquanto área do conhecimento da realidade (XIMENES,
2018). Para tanto, procedeu-se à exposição, ainda que sucinta, das categorias
fundamentais do direito da antidiscriminação e sua presença, explícita ou
implícita, em decisões do Supremo Tribunal Federal envolvendo gênero e
sexualidade, selecionadas pela temática, impacto e potencial analítico,
SUMÁRIO

328 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

possibilitando problematizar o “duplo fazer do gênero e do Estado”, em que


interconexões entre manifestações institucionais estatais e suas categorias
jurídicas não só atuam buscando instituir, por meio de instituições e medidas
estatais, estabilização e regramento diante do gênero, como são produzidas na
“...trama de sentidos, possibilidades de ação e formas de interdição feitas de e por
dinâmicas de gênero” (VIANNA e LOWENKRON, 2017a, p. 5). Trata-se de, longe
de oferecer respostas acabadas, suscitar questões e possibilidades para
investigações sobre a dinâmica constitutiva entre o direito, enquanto
manifestação estatal judicial, e as dinâmicas de gênero.

Com o objetivo de examinar esta equação, este artigo divide-se em duas


partes. Na primeira parte, procede à exposição panorâmica dos elementos
fundamentais do direito da antidiscriminação, em particular do conceito jurídico
de discriminação e das modalidades discriminatórias direta e indireta. A seguir,
na segunda parte, toma alguns julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF)
envolvendo gênero e sexualidade, deles destacando o tratamento específico
empregado a conteúdos jurídicos antidiscriminatórios, buscando aperceber-se
das contribuições, desafios e limites ali presentes.

Há, de fato, valioso material nos pronunciamentos do tribunal sobre


criminalização da homofobia como “racismo social”, proibição de doação de
sangue por homens que tiveram sexo com homens e registro civil de pessoas
transexuais, permitindo avançar na reflexão sobre a relação e os resultados desta
trajetória em que demandas tão graves, complexas e polêmicas, como as de
gênero e sexualidade, exigem e desafiam respostas jurídicas antidiscriminatórias,
ao mesmo tempo em que as dinâmicas de gênero e sexualidade atuam de forma
produtiva na constituição e na formulação das instituições e práticas estatais.

1. Elementos fundamentais do direito da antidiscriminação

Os elementos fundamentais no direito da antidiscriminação são o


conceito jurídico de discriminação, as modalidades de discriminação, os critérios
proibidos de discriminação, as perspectivas da antidiferenciação e da
antissubordinação e as respostas jurídicas disponíveis (de cunho legislativo,
políticas públicas e ações afirmativas) (RIOS, 2008). Neste estudo, serão
considerados o conceito jurídico de discriminação, suas modalidades, os critérios
proibidos de discriminação e as perspectivas da antidiferenciação e da
SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 329
antissubordinação, tomando como casos exemplares discriminações por gênero e
sexualidade.

1.1 Conceito jurídico de discriminação

O conceito de discriminação merece algumas considerações no sentido


de tornar mais clara sua compreensão e de facilitar sua concretização no campo
jurídico e nas políticas públicas. Diferentemente do preconceito, que designa
percepções mentais e internas negativas em desfavor de indivíduos e grupos
socialmente inferiorizados, discriminação é a materialização de atitudes
arbitrárias, acarretando violações de direitos. O termo preconceito é utilizado de
maneira mais frequente nos domínios da psicologia e das ciências sociais,
enquanto o termo discriminação é mais difundido no vocabulário jurídico.

Neste sentido, a partir da análise conjunta da Convenção Internacional


sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial² e da Convenção
sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher³, o
conceito jurídico de discriminação é “qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o
reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e
liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou qualquer
campo da vida pública” (RIOS, 2008, p. 20). Saliente-se que tal conceito jurídico
de discriminação acabou por ser incorporado, com estatura constitucional, no
direito interno brasileiro, em virtude da recepção da Convenção Internacional
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência⁴.

2 Aprovada pelas Nações Unidas em 21.12.1965 e ratificada pelo Brasil em 27.03.1968. Reza seu artigo 1º, I:
“Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional
ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé
de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural
ou em qualquer outro campo da vida pública”.
3 Aprovada pelas Nações Unidas em 18.12.1979 e ratificada pelo Brasil em 21.03.1981. Diz seu art. 1º, ao definir
discriminação: “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independente de seu estado civil, com
base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos
político, econômico, social e civil ou em qualquer outro campo”.
4 Internalizada pelo Brasil por intermédio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.
SUMÁRIO

330 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

A Convenção Interamericana contra toda forma de Discriminação e


Intolerância⁵ foi no mesmo sentido, definindo discriminação como “qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou
privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo
ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e
liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis
aos Estados Partes.” Note-se que a inserção do fragmento “em qualquer área da
vida pública ou privada” alargou a amplitude conceitual da discriminação,
censurando sua ocorrência em qualquer âmbito da vida social.

A discriminação em nada se confunde com a adoção de medidas de


diferenciação positiva, visto que estas possuem caráter positivo, objetivando a
efetivação dos direitos, sem, portanto, a ilicitude que caracteriza comportamentos
discriminatórios. Nas medidas de diferenciação positiva, encontramos não
somente as ações afirmativas, mas também a adoção de medidas de tratamentos
especiais requeridos por uma especificidade de um indivíduo ou grupo (RIOS,
2008, p. 22).

1.2 Modalidades de discriminação

No direito da antidiscriminação, discriminação direta e indireta são as


categorias jurídicas que designam as modalidades de discriminação enfrentadas
(SCHIEK; WADDINGTON; BELL, 2007; BAMFORTH; MALIK; O’CINNEIDE,
2008; FREDMAN, 2002; RIOS, 2008; MOREIRA, 2017). Ocorre discriminação
direta, quando se dá de modo intencional e consciente; já discriminação indireta,
mediante atitudes aparentemente neutras, com impacto prejudicial, ainda que
sem intencionalidade. O elemento distintivo é, como se vê, a intencionalidade da
discriminação.

A discriminação direta varia de acordo com o instrumento utilizado,


podendo o elemento discriminador estar expresso em lei (discriminação
explícita), estar presente na aplicação da norma, mesmo que inexistente de forma
expressa na legislação (discriminação na aplicação do direito) e na presença
intencional de caracteres aparentemente neutros, mas intencionalmente inseridos
visando a causar prejuízos (discriminação na concepção).

5 Aprovada pela Organização dos Estados Americanos em 06.06.2013, ainda pendente de ratificação pelo Brasil.
SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 331
A discriminação indireta ocorre quando, mesmo desprovida de
intenção, uma medida aparentemente neutra impacta, de modo diferenciado e
prejudicial, indivíduos e grupos discriminados. Ela pode decorrer desde uma
motivação inconsciente – a denominada discriminação indireta inconsciente – até
alastrar-se pelas estruturas organizacionais formais e informais, como acontece
na discriminação institucional, na reprodução de privilégios invisibilizados ou
naturalizados (RIOS, 2008, p. 117-153), abrangendo as situações de discriminação
estrutural e sistêmica (FRIEDMAN, 1975).

1.3 Critérios proibidos de discriminação

Dentre os elementos centrais do direito da antidiscriminação, a


enumeração dos critérios proibidos de discriminação tem especial importância.
Com efeito, a experiência revela que a mera interdição abstrata de arbitrariedade
nas distinções, presente nos conceitos jurídicos de igualdade formal e igualdade
material, é insuficiente para responder a discriminações perpetradas contra
grupos subordinados (RIOS, 2008; MOREIRA, 2017). O enfrentamento dessas
situações exige, a cada momento histórico, a definição dos critérios protegidos,
pelo direito da antidiscriminação, de diferenciações prejudiciais no
reconhecimento, gozo e exercício de direitos. Longe de um procedimento
meramente técnico-jurídico, a definição dos grupos protegidos, que serão
incorporados no ordenamento jurídico na forma de critérios proibidos de
discriminação, revela a repercussão jurídico-institucional de disputas sociais, nas
quais grupos politicamente marginalizados lutam por proteção
antidiscriminatória (GERSTMANN, 1999, p. 34). Os critérios proibidos de
discriminação funcionam, pois, como mandamentos negativos que determinam
que, como base em certo critério, alguém não seja discriminado. Ao reprovarem
condutas e efeitos discriminatórios, protegem de tratamento prejudicial
indivíduos e grupos que se enquadrem no critério protegido.

Os ordenamentos jurídicos adotam técnicas diversas quanto à definição


de tais critérios proibidos de discriminação. Uns enumeram os critérios de forma
taxativa por meio de legislação específica; outros contam apenas com previsões
genéricas e abstratas. Um terceiro grupo, por sua vez, adota um modelo misto,
por meio da enumeração exemplificativa dos critérios proibidos de
discriminação. No primeiro grupo, a decisão sobre tais critérios é exclusivamente
legislativa; nos demais, compete à legislação e aos tribunais enumerá-los ou
SUMÁRIO

332 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

adicionar critérios aos já previstos. Nesses, o acréscimo de novos grupos


protegidos, seja mediante a compreensão ampliada de critérios já existentes, seja
pela inclusão de um critério antes não-previsto, considera: (a) se o grupo é
historicamente perseguido; (b) se é estigmatizado; (c) se recebe tratamento
desigual prejudicial; (c) se sofre preconceito, estereótipos negativos e
hostilidades; (d) se constitui minoria politicamente em desvantagem; (e) se a
característica distintiva do grupo, constitutiva de sua identidade, é imutável ou
modificável somente a alto e inexigível custo e (f) se tal característica
desencadeadora da discriminação em nada impede a participação positiva do
grupo na sociedade (WINTEMUTE, 1995).

Um sem-número de questões se coloca na aplicação dos critérios de


proibição, independentemente do grupo a que pertence cada ordenamento
jurídico. O direito brasileiro demonstra essa realidade. A primeira dessas
questões, que toma a atenção de imediato, diz respeito à enumeração
exemplificativa contida no artigo 3º, inciso IV, da Constituição de 1988, que
possibilita a inclusão de novos critérios proibidos de discriminação; outra
questão, muito relevante, concerne à interpretação de cada um dos critérios
enumerados. No campo do gênero e da sexualidade, as disputas hermenêuticas
são particularmente polêmicas, dada a extensão que se pode verificar na
compreensão da enumeração do “sexo” como critério proibido de discriminação,
bem com o influxo das dinâmicas sociais de gênero e sexualidade nesses
processos.

2. Direito da Antidiscriminação, gênero e sexualidade na jurisprudência


do Supremo Tribunal Federal

Dentre as perspectivas possíveis na investigação dos marcos


jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal, as categorias do direito da
antidiscriminação revelam-se úteis e mutuamente imbricadas com as tramas e
linguagens de gênero e sexualidade, operando no sentido da “relacionalidade
profunda entre os jogos de generificação do Estado e estatização do gênero”
(VIANNA; LOWENKRON, 2017a). Elas indicam dimensões importantes para o
desenho, a execução e o monitoramento das políticas públicas e iniciativas sociais,
sem falar em seu papel na conformação das estruturas de dominação social.

Ao perquirir acerca dessa relacionalidade, tomam-se as manifestações


judiciais sobre homotransfobia como discriminação inconstitucional e sua
SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 333
compreensão como racismo social, bem como a proibição do uso de banheiros
públicos por transgêneros e a doação de sangue por homossexuais. Estas serão
referidas às modalidades de discriminação direta e indireta, ao passo que aquelas
ao conceito jurídico de discriminação e aos critérios proibidos de discriminação.

2.1 Homofobia e “homoafetividade” nas tramas do direito e do gênero

O Supremo Tribunal Federal considerou a homofobia espécie de


discriminação por motivo de sexo (Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 132 – BRASIL, 2011), expondo sua compreensão acerca desse
critério de proibição de discriminação. Neste julgado, pode-se indagar a conexão
entre as manifestações estatais sobre o gênero e da sexualidade e o impregnar, na
argumentação jurídica, das dinâmicas do gênero e sexualidade.

Dada a relevância deste marco jurisprudencial, quanto à compreensão


do critério proibido de discriminação, bem como os pressupostos de gênero e
sexualidade ali presentes, transcreve-se parte emblemática do voto do relator:

(...) é tão proibido discriminar as pessoas em razão da sua es-


pécie masculina ou feminina quanto em função da respectiva
preferência sexual. Numa frase: há um direito constitucional
líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a) de não
sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta confor-
mação anátomofisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso
da respectiva sexualidade; c) de, nas situações de uso empar-
ceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mes-
mo sexo, ou não; quer dizer, assim como não assiste ao es-
pécime masculino o direito de não ser juridicamente equipa-
rado ao espécime feminino − tirante suas diferenças biológi-
cas −, também não assiste às pessoas heteroafetivas o direito
de se contrapor à sua equivalência jurídica perante sujeitos
homoafetivos. O que existe é precisamente o contrário: o di-
reito da mulher a tratamento igualitário com os homens, as-
sim como o direito dos homoafetivos a tratamento isonômico
com os heteroafetivos; (BRASIL, 2011, p. 24).

Como deflui claramente do texto, os termos, expressões e estrutura


argumentativa reproduzem e reforçam hierarquias das dinâmicas hegemônicas
do gênero e da sexualidade. Afirma-se, por exemplo, sobre o “espécime
masculino” não ter “o direito de não ser juridicamente equiparado ao espécime
SUMÁRIO

334 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

feminino”, o que se estende “às pessoas heteroafetivas” não terem o direito de “se
contrapor à equivalência jurídica perante sujeitos homoafetivos”.

De modo interconectado, estas hierarquias de gênero e de sexualidade


posicionam, na formulação jurídica, homens e “heteroafetivos” como paradigmas
do sujeito de direito, a quem se devem contrastar mulheres e “homoafetivos”,
sujeitos fora da norma que reclamam equiparação. Esta estrutura argumentativa
correlaciona práticas jurídicas estatais e dinâmicas de gênero e sexualidade, seja
nas dinâmicas de gênero e de sexualidade, ao posicionar homens e
“heteroafetivos” como privilegiados nas relações de dominação, seja na lógica
jurídica, elegendo-os como termos de comparação por excelência nos juízos de
igualdade (GAVARA DE CARA, 2005), produzindo um bias masculino e
heterossexista inerente à ordem jurídica (BAMFORTH; MALIK; O’CINNEIDE,
2008, p. 276).

Por sua vez, a designação dos grupos comparados a partir da


“afetividade”, e não da sexualidade pela qual são discriminados (RIOS, 2011),
realizada no julgamento, e antes mesmo, a própria circunscrição da questão no
âmbito do direito de família, apontam para uma “...tecnologia política e cultural
que opera a constituição de indivíduos e a atribuição de estatutos (tais como
‘sujeito’, ‘cidadão’, ‘profissional’, ‘criminoso’ etc.)”, onde se apresenta uma
dimensão relacional que envolve atos de deslegitimação e que delimita o grau de
adequação e de desejo para determinada projeção ou ideia de Estado” (AGUIÃO,
2017). Ênfase afetivista que revela este duplo fazer do gênero e do Estado, tanto
na manifestação judicial, que institucionaliza as relações de dominação, como na
perspectiva de indivíduos e setores do movimento social, que a mobilizam
(COSTA; NARDI, 2015).

Esta relacionalidade das dinâmicas de gênero e sexualidade sobre as


manifestações estatais e destas sobre aquelas também se desvela no
assimilacionismo familista. Nele conjugam-se o assimilacionismo (onde membros
de grupos subordinados ou tidos como inferiores adotam padrões dos grupos
dominantes, em seu próprio detrimento) e o familismo (proposição que
subordina o reconhecimento de direitos sexuais à adaptação a padrões familiares
e conjugais institucionalizados pela heterossexualidade compulsória) (MELLO,
2006).

Nos direitos sexuais, o assimilacionismo familista conforma a aceitação


estatal da homossexualidade ao pressuposto da inclinação afetiva-familiar, ainda
SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 335
que potencial. Nesta operação, admitem-se as diferenças de gênero e de
sexualidade desde que não coloquem em xeque a heterossexualidade
compulsória, anulando-se qualquer nota de originalidade, transformação ou
subversão do padrão heteronormativo (RIOS, 2018). Essas dinâmicas de
dominação na esfera do gênero e da sexualidade, em sua interconexão com os
fazeres estatais judiciais, exprimem-se, na linguagem dos direitos, na referida
“homoafetividade”, substantivo cuja carga assimilacionista familista atua como
mecanismo “purificador” e “higienizador” de práticas e identidades sexuais
subordinadas e indesejáveis, cujo desvalor é contrabalanceado pela “pureza dos
sentimentos”. A sexualidade heterossexual, desse modo, é tomada como
referência para nomear o indivíduo “naturalmente” detentor de direitos (o
heterossexual, cuja sexualidade não necessita a afetividade purgativa para ser
reconhecida), ao passo que a sexualidade homossexual é submetida ao mata-
borrão da afetividade.

Trata-se, com efeito, da corporificação de certas ‘identidades’ por certos


‘direitos’ e vice-versa (AGUIÃO, 2017), resultantes das estratégias efetivamente
empregadas em busca da “promoção da igualdade de direitos”. Nas dinâmicas de
gênero e sexualidade e sua relação com a manifestação estatal, a aludida ADPF nº
32 engendrou juridicamente e, por sua vez, reproduziu, social e culturalmente,
uma hierarquia dos arranjos familiares, reservando à “união homoafetiva” uma
inclusão de terceira classe, abaixo do casamento e da união estável heterossexuais,
de primeira e segunda classes, respectivamente. Um atuar no sentido da
naturalização do modelo de família heterossexual, procedendo a uma
“domesticação heterossexista” de todas as formas de sexualidade diversas deste
modelo (RIOS, 2018).

2.2 Da homofobia à homotransfobia: “racismo social” e a inter-relação


dos critérios proibidos de discriminação

Nas decisões do Supremo Tribunal Federal, a relacionalidade entre as


dinâmicas de gênero e sexualidade e as manifestações estatais também se
exteriorizam no alargamento da proteção de discriminação por motivo de sexo
(ÁVILA; RIOS, 2016), cujo prolongamento estendeu-se da homofobia para a
homotransfobia (BRASIL, 2019a).

Diante da mora legislativa parlamentar, o Supremo Tribunal Federal


subsumiu a homotransfobia na Lei nº 7.716/89 (que trata basicamente de crimes
SUMÁRIO

336 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

de racismo), por considerar a homotransfobia uma espécie do gênero “racismo


social”. Fundamentou a decisão na “...existência de múltiplas expressões
semiológicas propiciadas pelo conteúdo normativo da ideia de ‘raça’”,
compreendendo “raça” como “...uma arbitrária construção social, desenvolvida
em determinado momento histórico, objetivando criar mecanismos destinados a
justificar a desigualdade, com a instituição de hierarquias artificialmente
apoiadas na hegemonia de determinado grupo de pessoas sobre os demais
estratos que existem em uma particular formação social...” (BRASIL, 2019a, p. 97),
assim concluindo por uma “essencial correspondência que reúne, sob a mesma
lógica discriminatória, todas as formas de preconceito e intolerância contra
grupos sociais” (BRASIL, 2019a, p. 81).

No direito da antidiscriminação, as consequências das decisões sobre


quais são os critérios proibidos de discriminação e a compreensão de seu
conteúdo vão além da enumeração das proteções jurídicas disponíveis.
Vocacionadas ao enfrentamento de situações discriminatórias as mais variadas,
conclusões sobre determinado critério proibido de discriminação (sexo/
orientação sexual/identidade de gênero) podem repercutir diretamente em outro
critério proibido de discriminação (raça), como a demonstra a compreensão da
homotransfobia como “racismo social”. Em sua elaboração, evidencia-se o
entrelaçamento entre os diversos critérios proibidos de discriminação, mormente
a dinâmica inter-relacional na concretização do direito da antidiscriminação. São
fecundas, pois, as repercussões da compreensão de determinado critério proibido
de discriminação para a eficácia de outro critério proibido, uma vez que a
compreensão da proibição constitucional da discriminação por motivo de raça
apoiou conteúdo decisivo para a proteção em benefício de outro critério proibido
de discriminação (homotransfobia).

Sem avançar no debate mais pormenorizado quanto à consideração da


homotransfobia como “racismo social”, não há dúvida quanto aos propósitos
inspiradores desta proposição. Com efeito, a cada momento em que os diversos
critérios proibidos de discriminação são explicitados e adicionados (SCHIEK;
WADDINGTON; BELL, 2007, p. 33), o que transparece é a luta por
reconhecimento daqueles cujas opressões não eram percebidas (FRASER;
HONNETH, 2003) ou, ainda mais grave, contra quem deliberadamente se quis
excluir da proteção antidiscriminatória (DEHESA, 2010).

Não há como negar a magnitude e a urgência do direito constitucional


a não discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, dadas a
SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 337
intensidade de sua violação e as consequências deletérias da mora legislativa. Por
outro lado, há que se evitar efeitos colaterais indesejáveis, cuja atenção não faltou
ao voto do relator, quanto à fragilização da garantia da legalidade estrita na
tipificação penal, essencial no regime democrático.

Tais efeitos colaterais indesejados, no entanto, não se resumem às


garantias constitucionais penais, segundo as quais não pode haver
criminalização, muito menos pena, sem a existência de lei prévia incriminadora.
Do ponto de vista do “duplo fazer do gênero e do Estado”, pode-se perscrutar a
dinâmica crescente que o diferencialismo (PIERUCCI, 1999) e a
interseccionalidade (CRENSHAW, 2004) apresentam no gênero e na sexualidade,
em contraste com a conceituação abrangente e universalizante do “racismo
social” como indicador da “essencial correspondência que reúne, sob a mesma
lógica discriminatória, todas as formas de preconceito e intolerância contra
grupos sociais” (BRASIL, 2019a, p. 81).

Com efeito, ao passo que a produtividade social do gênero e da


sexualidade, sempre atenta às diversas opressões e suas interseccionalidades,
provoca desdobramentos das “diferenças na diferença”, da manifestação judicial
podem derivar-se esmaecimentos para o enfrentamento dos racismos. Não
bastasse a especificidade entre as diversas espécies de discriminação, sem
confundi-las com a compreensão do fenômeno discriminatório em si e
considerado amplamente (ALLPORT, 1979; DOVIDIO, HEWSTONE, GLICK;
ESSES, 2013), os marcadores sociais da diferença entre racismo e sexismo são
distintos. Enquanto sexismo e homofobia reportam-se à imputação sexuada dos
indivíduos e grupos (BORRILLO, 2010, p. 34), racismo e a raça dizem respeito à
ascendência étnica (BETHENCOURT, 2018) e a características físicas (SANTOS,
2012), conceitos articulados de variadas formas (POUTIGNAT; STREIFF-
FERNART, 1995), que instituem “uma forma de organização e de exclusão
baseada na suposta existência de raças superiores e inferiores, de raças
valorizadas e de raças depreciadas” (D`ADESKY, 2001, p. 36), resultante de
processos sociais de racialização de indivíduos e grupos humanos (GUIMARÃES,
1999; ALENCASTRO, 1985).

Ao enunciar a proibição da homotransfobia como modalidade de


racismo social, propõe uma compreensão jurídica inter-relacionada de critérios
juridicamente protegidos de discriminação (raça, orientação sexual e identidade
de gênero) num sentido problemático diante das esferas do gênero e da
sexualidade. Isso porque, ao definir o “racismo social” de modo universalizante e
SUMÁRIO

338 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

abrangente de todas as formas de discriminação, discrepa da percepção das


“diferenças na diferença”, desnudadas pela sensibilidade das dinâmicas de
gênero e sexualidade à interseccionalidade.

2.3 Identidade de gênero e critérios proibidos de discriminação: “direito


dos banheiros” e registro civil

Examinados conjuntamente, os pronunciamentos do Supremo Tribunal


Federal envolvendo identidade de gênero aqui destacados podem ser lidos como
indicadores de um amadurecimento na compreensão da identidade de gênero, ao
mesmo tempo que também são reveladores de um avanço jurisprudencial em
termos antidiscriminatórios. Trata-se do julgamento, ainda em curso, sobre a
utilização de banheiros públicos conforme a identidade de gênero autodesignada,
contrastado com a decisão plenária definitiva sobre o registro civil de pessoas
transexuais.

No primeiro caso, a discussão jurídica acerca do banheiro adequado


para as pessoas travestis e transexuais foi levada ao STF por meio do Recurso
Extraordinário 845.779 (BRASIL, 2015), que trata de transexual proibida de
utilizar o banheiro feminino de um shopping center, que, abalada com a situação,
acabou urinando nas próprias roupas. Em primeiro grau, o estabelecimento foi
condenado ao pagamento de indenização por danos morais. A sentença foi
reformada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ/SC), sob o argumento de
que tal episódio configura mero dissabor, não tendo condições de lesionar
sentimentos ou causar dor.

O julgamento iniciou-se pelo provimento do recurso, com os votos dos


Ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, em 19 de novembro de 2015. O
Ministro Luiz Fux interrompeu o julgamento ao pedir vista do processo,
invocando a necessidade de consultar a sociedade, referindo que há mulheres e
crianças que se sentem constrangidas e vulneráveis quando se deparam com
travestis e transexuais no banheiro feminino. No entanto, ao lançar mão de
preocupação pretensamente democrática, acaba, “a pretexto de proteger a
privacidade de certas usuárias, expor transexuais femininas à ameaça de lesão e
danos graves, concretos e comprovados de violência” (RIOS; RESADORI, 2015, p.
216).
SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 339
Em seu voto, o Relator Ministro Barroso destacou que o preconceito
decorre da ignorância e, por isso, frisou a importância de se distinguir os
conceitos de sexo, gênero e sexualidade, bem como de compreender o que é a
transexualidade. Apesar de reconhecer que há disputa na definição do conceito
de sexo, lançou mão de definições binárias e essencialistas, que ignoram as
discussões sobre o caráter sócio-histórico do sexo (BUNCHAFT, 2016) e
naturalizam um modelo de sujeito inteligível e heteronormativo (BUTLER, 2003),
ao qual as transexuais e travestis não correspondem. Em tal lógica, a
transexualidade é caracterizada como a condição imutável de pessoas que não se
identificam com o gênero atribuído ao seu sexo biológico e que buscam corrigir
esta inadequação, alterando seus corpos para que correspondam ao gênero pelo
qual se identificam. Em que pese o esforço em tratar a transexualidade como uma
condição pessoal, e não como patologia, acaba-se reproduzindo a compreensão
de que as identidades são fixas, imutáveis, e também a de que há necessidade de
conformação ao modelo de sexo e gênero estabelecido como normal.

Ao mesmo tempo que o direito à igualdade é invocado para sustentar a


tese de que as pessoas trans devem ser tratadas de acordo com a sua identidade
de gênero, inclusive no que tange à escolha de banheiros públicos, mantêm-se os
binarismos homem/mulher, feminino/masculino. Esta compreensão,
aparentemente neutra, é nutrida por percepções distantes da experiência
existencial e do estado da arte do debate sobre sexo e sexualidade, resultando, na
prática, na distinção de uma terceira e estigmatizada classe de usuários dos
banheiros (RIOS; RESADORI, 2015, p. 217).

Por sua vez, o provimento final sobre o registro civil de pessoas


transgêneras, assegurando o direito à substituição de prenome e sexo diretamente
no registro civil, independentemente de procedimentos médicos ou referendo
judicial, tomou caminho substancialmente diverso. Nos termos do relator,
Ministro Edson Fachin, a decisão na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.275
(BRASIL, 2019b) não só abre espaço para uma compreensão despregada do
essencialismo e do binarismo de gênero, como também explicita conteúdos
importantes.

Nos campos do gênero e da sexualidade, destacam-se a referência


expressa à identidade de gênero conforme os Princípios de Yogyakarta, bem
como a abertura do voto do relator à perspectiva não-essencialista.
SUMÁRIO

340 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Sobre esse ponto, deve-se recordar que a identidade de gêne-


ro foi definida nesta opinião como a vivência interna e indi-
vidual do gênero tal como cada pessoa o sente, o qual pode
ou não corresponder com o sexo assinalado no momento do
nascimento. (...) o reconhecimento da identidade de gênero
encontra-se ligada necessariamente à ideia segundo a qual o
sexo e o gênero devem ser percebidos como parte de uma
construção identitária que resulta da decisão livre e autôno-
ma de cada pessoa, sem que se deve estar sujeita à sua geni-
tália.
Dessa forma, o sexo, assim como as identidades, as funções e
os atributos construídos socialmente que se atribuem a dife-
renças biológicas em todo o sexo assinalado ao nascer, longe
de constituir-se em componentes objetivos e imutáveis do
estado civil que individualiza uma pessoa, por ser um fato
da natureza física ou biológica, terminam sendo traços que
dependem da apreciação subjetiva de quem o detenha ou re-
sidam em construção da identidade de gênero autopercebida
relacionada com o livre desenvolvimento da personalidade,
a autodeterminação sexual e o direito à vida privada” (par.
93- 95). (BRASIL, 2019b, p. 11, grifei).

A decisão na ADI n. 4275 (BRASIL, 2019b) também se mostra marcante


na relação entre o direito da antidiscriminação e as dinâmicas de gênero e
sexualidade. Nota-se o caminho argumentativo empreendido pelo relator, que
desde o início ressaltou o “diálogo necessário” entre a proibição de discriminação
por motivo de sexo e outras cláusulas protetivas, em especial os artigos 2º, al. 1, e
26, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o artigo 1º do Pacto de
São José da Costa Rica. Aqueles, ao proibirem qualquer forma de discriminação e
garantirem a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer tipo de
discriminação; este, ao afastar qualquer tipo de discriminação, seja por motivo de
raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza,
origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social.

As referências normativas expostas exemplificam a aludida inter-relação


entre os diversos critérios proibidos de discriminação e reafirmam o caráter aberto
e exemplificativo da lista de critérios protegidos. Mais ainda: o julgamento
manifesta-se de modo claro e definitivo sobre a inclusão das proibições de
discriminação por motivo de identidade e de expressão de gênero no direito
antidiscriminatório, mediante o diálogo com o direito interamericano dos direitos
humanos.
SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 341
Nas palavras do relator, que expressam sua interpretação de trecho, que
transcreve em seu voto, de sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos:

Da forma como redigido, o dispositivo da Convenção Ameri-


cana necessariamente abarca os transgêneros. É nesse sentido
que a Corte Interamericana firmou em sua opinião consultiva:
‘(...) a Corte Interamericana deixa estabelecido que a orienta-
ção sexual e a identidade de gênero, assim como a expressão
de gênero, são categorias protegidas pela Convenção. Por isso
está proibida pela Convenção qualquer norma, ato ou prática
discriminatória baseada na orientação sexual, identidade de
gênero ou expressão de gênero da pessoa. Em consequência,
nenhuma norma, decisão ou prática do direito interno, seja
por parte das autoridades estatais ou por particulares, podem
diminuir ou restringir, de modo algum, os direitos de pessoas
à sua orientação sexual, sua identidade de gênero e/ ou sua
expressão de gênero’. (par. 78). (BRASIL, 2019b, p. 10).

Comparando-se tais manifestações sobre identidade de gênero,


contrastam-se compreensões sobre a identidade de gênero como categoria
juridicamente protegida de discriminação, reveladoras das dificuldades na
incorporação de categorias além do binarismo de gênero e do dimorfismo sexual
(AGUIÃO, 2017). No primeiro caso (dos banheiros), ainda pendente de
julgamento, o relator acaba por atrelar-se ao binarismo de gênero, enquanto no
segundo (do registro civil), já concluído, afirma-se um paradigma
autodeterminativo e não-essencialista quanto à identidade de gênero (SUIAMA,
2011). Neste terreno, também se nota a relacionalidade entre a prática estatal e as
dinâmicas políticas e os debates teóricos do gênero e da sexualidade, pois o
esforço na conceituação judicial do critério proibido de discriminação deles recebe
influxo, ao mesmo tempo em que suas conclusões produzem efeitos na
constituição dos sujeitos e na administração das populações.

Esta trajetória sugere que, na compreensão do tribunal quanto à


identidade de gênero como critério proibido de discriminação, há efetivamente
interfaces entre a elaboração institucional estatal e os debates teóricos e políticos
presentes no campo do gênero, expressando o deslocamento que se verifica das
políticas de gênero, gestadas nos movimentos sociais LGBT e feminista, para loci
estatais institucionalizados (VIANNA; LOWENKRON, 2017b).
SUMÁRIO

342 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

2.4 Doação de sangue por homens que tiveram sexo com homens (HSH):
critérios proibidos de discriminação e modalidades de discriminação
direta e indireta

Em outubro de 2017, o STF iniciou o julgamento da Ação Direta de


Inconstitucionalidade n. 5543 (BRASIL, 2017), que trata da inconstitucionalidade
do art. 64, IV, da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde, e do art. 25, XXX,
“d”, da Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 34/2014 da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), que proíbem a doação de sangue por homens que
mantiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses.

O julgamento, em curso, iniciou-se com o voto do Ministro Relator


Edson Fachin pela inconstitucionalidade por afronta à dignidade humana, aos
direitos da personalidade, à igualdade e à liberdade de pessoas homossexuais,
sendo acompanhado por Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber. Salientou
que, apesar de os dispositivos não proibirem terminantemente a doação de
sangue por homossexuais, o lapso temporal torna tal proibição definitiva,
violando a forma de ser e de existir dessas pessoas; referiu que a limitação atinge
um grupo pelo simples fato de serem como são, não por atuarem de maneira
arriscada, enquanto que a (in)aptidão para doar sangue deve ser definida pela
conduta e não pela orientação sexual. Daí concluiu por discriminação indireta,
pois tal restrição promove limitação desproporcional, mesmo que não
intencional, aos homossexuais (BRUNETTO, 2017). O Ministro Alexandre de
Moraes, por sua vez, votou pela parcial procedência, entendendo pela
possibilidade de doação de sangue por homossexuais, desde que este seja usado
depois da realização de testes, que devem respeitar o período da janela
imunológica.

A manifestação do relator, acompanhada por outros ministros, por si só,


propõe questões de inegável valor analítico. Em sua trama, ela se ocupa de
critérios proibidos de discriminação, da distinção entre a proteção
antidiscriminatória de identidades e de práticas e das modalidades
discriminatórias direta e indireta.

Particularmente quanto aos critérios protegidos de discriminação e sua


bifurcação em identidades e práticas, o relator pondera que o prazo inabilitador
de 12 meses sem relações sexuais entre homens (= prática + tempo) importa em
discriminação voltada contra o grupo e, nessa medida, contra “os modos de ser e
de existir” (BRASIL, 2017, p. 11) de homossexuais (= identidade). Mais ainda,
SUMÁRIO

Roger Raupp Rios


CAPÍTULO 17 343
segundo a ética da alteridade adotada no voto (“somos aquilo que respondemos
ao apelo do Outro” – p. 5 – em apud do filósofo Emmanuel Levinas), a proibição
resulta na “negação definitiva de qualquer possibilidade do exercício desse ato
maior de alteridade, por qualquer homem homossexual ou bissexual e/ou suas
parceiras que possuam vida sexual minimamente ativa” (BRASIL, 2017, p. 11),
prejudicando inclusive a solidariedade intragrupo (p. 26).

A seu juízo, é inválida a restrição “...fundada no grupo de risco,


estabelecido pela orientação sexual dessas pessoas, e não pelas suas condutas que
poderiam expô-las ao risco. Ao assim disporem, essas normas estabelecem
limitação fundada na orientação sexual das pessoas, e não em suas práticas e
comportamentos” (BRASIL, 2017, p. 23). Tal desenvolvimento argumentativo,
atento à identidade e à conduta, não só distinguiu e relacionou essas modalidades
distintas de proteção, como também as articulou, buscando desatar a armadilha
discriminatória que cria identidades a partir de diferenças criadas por processos
sociais que miram nas práticas sexuais (SCOTT, 1998).

No duplo fazer do gênero e do Estado, ao avançar no manejo jurídico


das categorias antidiscriminatórias (identidades e práticas protegidas), o voto
espelha e irradia o acirrado debate que se verifica nas dinâmicas de gênero e
sexualidade quanto às categorias empregadas, de um lado, pelas abordagens
biomédicas e epidemiológicas, e, de outro, pelas ciências sociais e pela sociedade
civil organizada (ABRASCO, 2017), indicando um campo de disputa de
hegemonia (EFREM FILHO, 2018).

Com efeito, a literatura especializada no campo das ciências sociais


(PARKER; AGGLETON; PEREZ-BRUMER, 2016) não só salienta a insuficiência
da categoria HSH (“homens que fazem sexo com homens”) para a compreensão
da diversidade sexual e de gênero, comprometendo os resultados das políticas
públicas de saúde e direitos humanos, como também adverte para
estigmatizações (BOELLSTORFF, 2011; YOUNG; MEYER, 2005) e dicotomias
morais (MORA; BRIGEIRO; MONTEIRO, 2018; PECHENY, 2012) dela
decorrentes.

Desse modo, a dinâmica interconectada do gênero e da sexualidade e


dos fazeres institucionais estatais, reveladas nesse julgamento ainda em curso,
aponta não só para o influxo dos estudos e do ativismo em gênero e sexualidade
no debate jurídico, como também para os impactos do direito da
antidiscriminação nas dinâmicas sociais, culturais e políticas, dado que a
SUMÁRIO

344 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

perspectiva identitária, em vez de substituída pela categoria biomédica “HSH”,


foi decisiva no desenvolvimento do voto do relator, já acompanhado com outros
ministros (Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber).

Considerações finais

Dentre os diversos âmbitos da realidade social e política, gênero e


sexualidade, assim como a experiência jurídica, são dimensões constitutivas da
sociabilidade, da individualidade e da trajetória política das coletividades
nacionais, locais e globais. No breve período em que a sociedade brasileira, desde
a promulgação da Constituição de 1988 até meados do segundo decênio deste
século, experimentou a emergência de reivindicações sociais, culturais e políticas,
combinada com expansão de direitos e ideais democráticos, é possível vislumbrar
a sinergia, ainda que imperfeita, e a relacionalidade entre as demandas por justiça
de gênero e justiça sexual e o desenvolvimento do direito da antidiscriminação.

Nesta trajetória, a justiça nas relações de gênero e na sexualidade


reclamam o manejo de categorias antidiscriminatórias aptas não só a descrever,
como a colaborar na constituição de políticas públicas e iniciativas sociais
igualitárias e equitativas. Essa construção hermenêutica atua no aludido duplo
fazer do gênero e do Estado, onde tanto as construções teóricas jurídicas, como a
constituição das identidades sexuais e gênero e as relações onde elas se
produzem, interconectam-se e se relacionam.

Neste duplo movimento, criam-se condições para a melhor


compreensão e a melhor concretização das categorias do direito da
antidiscriminação, ao mesmo tempo que seus limites e potenciais epistemológicos
são desafiados. Que essa espiral produtiva entre reivindicações por justiça sexual
e de gênero se revele mais e mais apta a enfrentar e fortalecer-se diante dos
momentos sombrios que a democracia e os direitos humanos, especialmente nas
esferas do gênero e da sexualidade, atravessam nos dias de hoje.

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SUMÁRIO

Capítulo 18

A LEI DE ACESSO
À INFORMAÇÃO
PÚBLICA (LAI) E A LEI
GERAL DE PROTEÇÃO
DE DADOS (LGPD):
a busca da interpretação adequada
constitucionalmente, em prol da
concretização dos direitos do cidadão

Têmis Limberger
SUMÁRIO

352 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

A LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO PÚBLICA (LAI) E


A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD):
a busca da interpretação adequada constitucionalmente, em prol da
concretização dos direitos do cidadão

Têmis Limberger¹

Introdução

La incesante innovación científica y tecnológica modifica el mundo que nos


rodea y, com él, cambian los límites mismos de la vida. (...) así el derecho ha de estar al
servicio de la libertad y dignidad de las personas (RODOTÀ, 2010). A sociedade em
rede, pela qual se caracteriza o século XXI, é uma estrutura ao redor da rede de
comunicação digital (CASTELLS, 2009). É abolida a centralidade da difusão da
informação e cada sujeito comunicante transforma-se em emissor e receptor de
mensagem, rompendo com a barreira passiva, que até então existia. Esta é a
dinâmica da sociedade em que vivemos, onde se retoma a ideia de que
informação é poder (NORA; MINC, 1982, p. 18). A economia informacional é
global (CASTELLS, 2011, p. 123-124). Uma economia global é uma realidade
diferente de uma economia mundial (que é uma experiência que no ocidente
existe desde o século XVI, como sendo uma experiência de acumulação de capital
que avança pelo mundo).

A sociedade em rede já estava em franca evolução quando se operou a


pandemia da Covid-19, fazendo com que as relações virtuais crescessem em

1 Doutora em Direito Público pela Universidade Pompeu Fabra - UPF de Barcelona. Pós-doutora em Direito pela
Universidade de Sevilha. Professora do Programa de Pós-graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
- UNISINOS. Advogada. Procuradora de Justiça do MP/RS (aposentada).
SUMÁRIO

Têmis Limberger
CAPÍTULO 18 353
escala exponencial. Como revelou a revista The Economist (2017): os dados são a
nova riqueza do século XXI, suplantando formas até então tradicionais como, por
exemplo, o petróleo. Assim, pode não haver uma prestação pecuniária típica, mas
os dados possuem valor e são o objeto de troca na sociedade de consumo e podem
trazer impactos nos regimes democráticos (REVISTA ISTO É, ZUCKERBERG,
2018).

Neste contexto, a administração pública não poderia ficar imune ao


fenômeno informático e legislações foram editadas, visando acompanhar este
movimento. A tentativa é difícil, pois a legislação tem uma perspectiva mais
morosa em termos de procedimento (PÉREZ LUÑO, 1993) e o fenômeno
informático evolui muito rapidamente, fazendo com que a lei, quando entre em
vigor, corra o risco de já não dar conta dos fatos a que pretende regular. Há um
evidente descompasso.

Portanto, estudar-se a Lei de Acesso à Informação – LAI e a Lei Geral de


Proteção de Dados – LGPD, visando verificar se são compatíveis no ordenamento
jurídico brasileiro, propondo-se, ao final, uma hermenêutica que assegure o
desiderato constitucional, que concretize os direitos do cidadão.

1. Administração Pública em rede

Inicialmente é importante conceituar “rede” e, também, o que é uma


“sociedade em rede” (LIMBERGER e SANTANNA 2021). Castells (2015, p. 67) vai
elucidar que redes “são estruturas complexas de comunicação construídas em
torno de um conjunto de metas que simultaneamente garantem a unidade de
propósito e a flexibilidade de execução em virtude de sua adaptabilidade ao
ambiente operacional”. Ensina o autor que são programas autoconfiguráveis por
atores sociais, cuja estrutura, ao mesmo tempo em que evolui, autoconfigura-se
“em uma busca permanente por combinações de redes mais eficientes”
(CASTELLS, 2015, p. 67).

As redes sociais, portanto, são estruturas comunicativas nas quais


atores sociais promovem seus valores e interagem (CASTELLS, 2015, p. 67).
Assim, não é correto associar que rede é somente a rede de computadores. Na
verdade, a rede de computadores é um (ou o) local em que interagem os atores
sociais e em que as mensagens da rede social se processam, não sendo possível
SUMÁRIO

354 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

afirmar que, antes do século XXI, não existiam redes, pois “onde quer que exista
vida, existem redes” (CASTELLS, 2015, p. 67).

Existem redes verticais/hierarquizadas, como a organização da


Administração Pública, por exemplo, e redes mais modernas, horizontalizadas
(LOUREIRO, 2015, p. 33-84). Explica Castells (2015, p. 67) que, como as redes são
flexíveis, permitem introduzir novos atores e conteúdos, bem como adaptar-se a
novas realidades, como as mudanças tecnológicas de comunicação. Ora, mesmo
no tempo das ferrovias e do telégrafo, já existiam “redes de comunicação”, é claro,
muito mais rudimentares que nos tempos modernos. Naquela época (Primeira e
Segunda Revolução Industrial), as organizações eram estruturadas verticalmente
e extremamente hierarquizadas. Não se pode imaginar, contudo, em pleno século
XXI, na quarta Revolução Industrial (SCHWAB, 2016), que as estruturas sejam
ainda organizadas da mesma maneira.

Uma “sociedade em rede” é, por sua vez, “uma sociedade cuja estrutura
social é construída em torno de redes ativadas por tecnologias de comunicação e
de informação processadas digitalmente e baseadas na microeletrônica”
(CASTELLS, 2015, p. 70). Como a rede digital está mundialmente espalhada, é
possível que a sociedade interaja de forma global, ou seja, além das fronteiras
territoriais, podendo-se denominar de “sociedade em rede global” (CASTELLS,
2015, p. 70). A partir dessa visão horizontalizada de sociedade, podem-se extrair
adequadamente os escritos de Moreira Neto (2008, p. 53), quando colocou a
expressão “da pirâmide à rede”. Para o autor, a “rede informacional” impede que
os processos sociais fluam de forma hierarquizada, “transmitida sob a forma de
pirâmide” típica das sociedades estamentais, em que os detentores de poder
ocupavam as altas posições dentro deste cenário piramidal (MOREIRA NETO,
2008, p. 53). Na nova configuração social, não existiria mais um centro unitário de
poder (o Estado), mas um emaranhado de órgãos e entidades, governamentais ou
não, capazes de exercer poder e tomar decisões, em uma perspectiva pluralista,
em que existem múltiplos centros de comando”, passando da ideia de
“subordinação” para a “colaboração” (MOREIRA NETO, 2008, p. 53). Constata-
se, portanto, que o poder não é mais limitado ao Estado, mas, de certa forma,
compartilhado com ele. Com essas premissas estabelecidas, é possível
compreender o que seria uma Administração Pública em rede, como sendo uma
Administração dialógica, horizontal, que as constrói de forma democrática com a
atuação de outros atores.
SUMÁRIO

Têmis Limberger
CAPÍTULO 18 355
2. Das previsões normativas brasileiras com temática conexa

No Brasil, os direitos à intimidade e à privacidade estão referidos no


artigo 5º, X, da Constituição Federal – CF (BRASIL, 1988), agasalhando a distinção
proveniente da doutrina e jurisprudência alemãs, da teoria das esferas ou dos
círculos concêntricos (HENKEL apud COSTA JR., 1973, p. 31). As esferas da vida
privada comportam o grau de interferência que o indivíduo suporta com relação
a terceiros. Para tal, leva-se em consideração o grau de reserva do menor para o
maior. Assim, no círculo exterior está a privacidade; no intermediário, a
intimidade; e, no interior desta, o sigilo. Logo, a proteção legal torna-se mais
intensa à medida que se adentra no interior da última esfera. Em sentido
contrário: DONEDA (2019, p. 105), que não reconhece as distinções entre
privacidade e intimidade. Porém, se a Constituição Federal colocou a distinção, é
importante o intérprete buscar o conteúdo de cada direito constitucional.

No espectro de proteção aos dados pessoais, algumas leis são


referências como: o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), que em seu artigo
3º, III, já previu a proteção dos dados pessoais, na forma da lei, sendo que
somente agora, a lei foi editada (BRASIL, 2014). O Marco Civil prevê o
consentimento na coleta dos dados (artigo 7º, IX) e o agir de maneira transparente
(artigo 9º, §2º, II), tal qual acontece na normativa (BRASIL, 2014).

Devido ao comando do artigo 5º, XXXIII, da CF, que dispõe que todos
têm direito ao acesso à informação contida nos órgãos públicos, sendo o interesse
particular ou coletivo (BRASIL, 1988), foi promulgada a Lei de Acesso à
Informação Pública (Lei nº 12.527/2011). Esta lei prevê que os órgãos públicos
disponibilizem informação referente a despesas públicas realizadas com
vencimentos ou licitações, em que a regra é a publicidade e o sigilo, a exceção
(BRASIL, 2011). A lei inverteu a orientação que até então existia, quando os
princípios tinham aplicação contrária. Atualmente, aquele que requer a
informação tem de se identificar, pois receberá informação dos órgãos públicos e,
pela utilização desta, ficará responsável. Antecedente importante foi a Lei de
Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101/2000, com as alterações da Lei
Complementar nº 131/2009, que nos artigos 48/9 determinaram a publicação dos
gastos públicos pela rede mundial de computadores (BRASIL, 2000). Outra
vantagem da informação em rede é a possibilidade do compartilhamento de uma
maneira crítica e com baixo custo. Em razão do artigo 5º, XXXII, da CF, que dispôs
a respeito da proteção ao consumidor, foi o Código de Defesa do Consumidor
SUMÁRIO

356 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

(Lei nº 8.078/1990) legislação pioneira editada para proteção aos bancos de dados.
Em seus artigos 43-44, tutela os bancos de dados de consumidores, prevendo
situações de acesso, retificação e cancelamento das informações negativas,
operando-se o prazo prescricional, que não podem ficar por mais de cinco anos
registradas (BRASIL, 1990). Posteriormente, foi editada a lei dos cadastros
positivos, Lei nº 12.414/2011, com a promessa de diminuir as taxas de juros aos
tomadores de financiamento, dos denominados “bons pagadores”, que são os
consumidores que realizam o adimplemento de suas obrigações pontualmente
(BRASIL, 2011).

Estatuída pelo comando constitucional do artigo 5º, LXXII, que visou


assegurar o conhecimento das informações em nome do cidadão constantes em
banco de dados de entidades governamentais ou de caráter público, bem como a
possibilidade de retificá-las (BRASIL, 1988). Para tanto foi editada a Lei que
disciplinou o habeas data (Lei nº 9.507/1997). Esta lei possui uma particularidade,
que é a necessidade de esgotamento da via administrativa, antes do ingresso na
via judicial (BRASIL, 1997). Isso é uma peculiaridade, pois no Brasil há a unidade
de jurisdição como expressão do artigo 5º, XXXV, da CF, em que nenhuma lesão
a direito pode deixar de ser examinada pelo Poder Judiciário (BRASIL, 1988).

A Lei de Acesso à Informação Pública (Lei nº 12.527/2011) no Brasil


surge em um contexto em que mais de 70 países já a possuíam e a Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) chega após cinco décadas de
vigência normativa em outros países. Este movimento denota uma tendência
globalizada da legislação nos Estados. A proteção de dados pessoais está sendo
debatida no Congresso Nacional com a PEC 17/2019, que pretende erigi-la à
condição de um direito fundamental, tal como já existe no artigo 8º da Carta de
Direitos da União Europeia (2000). O que se pode apontar como distinto, desde
logo, é que os países primeiro tiveram uma legislação protetiva dos dados e
somente depois é que tornaram acessível a informação pública. A experiência
brasileira foi no sentido inverso.

Diante da leitura, principalmente, dos dois estatutos normativos: da


LAI que determina a abertura da informação e da LGPD que pretende proteger
os dados, em um primeiro momento, podem parecer divergentes, mas é função
do intérprete buscar a atribuição de um sentido no texto que expresse a essência
da Constituição (STRECK, 2014, p. 320), a fim de concretizar os direitos do
cidadão.
SUMÁRIO

Têmis Limberger
CAPÍTULO 18 357
Deste modo, busca-se realizar uma interpretação da LGPD e da LAI.
Assim, uma das primeiras questões postas é no sentido de como conjugá-los, uma
vez que uma lei determina a proteção dos dados pessoais e outra a publicidade
das informações de caráter público. A primeira impressão pode ser no sentido de
contradição, mas esta é apenas aparente. O ordenamento jurídico deve ser
interpretado de forma sistemática.

O direito comparado aponta no sentido da compatibilidade: menciona-


se a legislação espanhola, onde existe a Lei nº 19/2013 de transparência, acesso à
informação pública e bom governo e a Lei nº 3/2018 de proteção de dados
pessoais e garantia de direitos digitais em consonância com o RGPD. No Brasil, a
LGPD, em seu artigo 23, também faz um diálogo com a LAI, demonstrando que
o intérprete deve buscar a interpretação sistemática de maneira harmoniosa
(LIMBERGER, 2021).

3. A transparência e a Administração Pública


A transparência administrativa é um elemento essencial na estratégia
de restabelecer a confiança no sistema democrático e de salvaguardar o Estado de
Direito em uma realidade sempre mais complexa, no entendimento de Karl Peter
Sommermann (2010, p. 25). Por isto, é importante resgatar e atualizar o brocardo
romano: Res publica, salus publica.

3.1. Ampliação da transparência e desenvolvimento humano global

É possível relacionar a ampliação da transparência à diminuição da


corrupção e à concretização dos direitos sociais, a partir de estudos estatísticos
realizados. Veja-se a pesquisa internacionalmente produzida no ano de 2020 por
organismo conhecido como Transparency International - OIT, onde os
denominados países escandinavos possuem o menor índice de corrupção no
mundo. Foram analisados 180 países. Os países são classificados numa escala de
zero a dez. Quanto menor a nota recebida, maior é o índice de corrupção. Desta
forma, Nova Zelândia e Dinamarca figuraram entre os primeiros lugares,
respectivamente, com uma pontuação de 8,8 (TRANSPARENCY, 2020). Estes
países possuem um Índice de Desenvolvimento Humano – IDH bastante elevado
(Ranking IDH 2020 – Dinamarca 0,94; Nova Zelândia 0,93) (PNUD, 2020). Dentre
os países latino-americanos, Uruguai 0,81 e Chile 0,85 apresentaram a melhor
SUMÁRIO

358 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

colocação em desenvolvimento humano) e a 21ª e 25ª colocação com nota 7,1 e 6,7,
respectivamente. O Brasil, a 94ª colocação, com nota 3,8, sendo que o IDH
brasileiro apresentou o índice de 0,76.

Naqueles países escandinavos, muita informação está disponível na


internet. Até mesmo os dados fiscais não são considerados privados, mas de
interesse público. Assim, é possível a consulta dos dados por todos os cidadãos
(SAARENPÄ, 2004). Saliente-se que isto é possível nas sociedades Neozelandesa
e Dinamarquesa, pois existe grande homogeneidade cultural e econômica, sendo
que a exposição desta informação não gera risco aos cidadãos. Com relação ao
vizinho da América do Sul, sabe-se da diferença geográfica tendo o Uruguai um
território pequeno se comparado às dimensões continentais do Brasil. Mas deve-
se trabalhar estes números para buscar melhores níveis de transparência que se
traduzem em melhor concretização dos direitos sociais.

3.2. Cibertransparência: a construção de um conceito

O termo cibertransparência serve para designar as novas relações que se


travam em rede, denominadas ciber, aglutinadas à ideia de transparência. O
fenômeno tecnológico pode servir para potencializar a informação pública.

A expressão ciber encontra origem nos trabalhos de Cass Sustein –


República.com e de Pérez Luño – Ciberciudadania o ciudadania.com., daí o objetivo de
cunhar uma expressão que traduza esta nova forma de a administração
disponibilizar a informação em rede para com os administrados, que não é
somente a utilização da ferramenta tecnológica, mas uma nova forma de
gerenciamento público e das relações democráticas com a sociedade, que daí
advenham.

A transparência é uma composição decorrente do princípio da


publicidade, do direito à informação, relacionada ao princípio democrático. É a
administração agindo em conformidade com o seu dever de tornar público seus
atos e o cidadão se informando dos atos praticados pela administração – tudo isto
fortalece a cultura democrática.

Nos estados democráticos, a livre discussão é um componente jurídico


prévio à tomada de decisão que afeta à coletividade e é imprescindível para sua
legitimação. Por isso, para Ignácio Villaverde Menéndez (1994, p. 33-35), no
Estado Democrático, a informação é credora de uma atenção particular por sua
SUMÁRIO

Têmis Limberger
CAPÍTULO 18 359
importância na participação do cidadão no controle e na crítica dos assuntos
públicos. Não se protege somente a difusão, como sucedia no Estado Liberal, mas
se assegura a própria informação, porque o processo de comunicação é essencial
à democracia. O ordenamento jurídico no Estado Democrático assenta-se no
princípio geral da publicidade, devendo o sigilo ser excepcional e justificado.
Esse preceito é extraído com base no princípio da publicidade e do direito a ser
informado do cidadão.

Norberto Bobbio (2000, p. 103), ao tratar das relações da democracia


com o poder invisível, estatui que a publicidade é entendida como uma categoria
tipicamente iluminista na medida em que representa um dos aspectos da batalha
de quem se considera chamado a derrotar o reino das trevas. Utiliza-se, por isso,
a metáfora da luz, do clareamento para contrastar o poder visível do invisível. A
visibilidade vai fornecer a acessibilidade e a possibilidade de controle dos atos
públicos. Daí se origina a polêmica do iluminismo contra o Estado absoluto, a
exigência da publicidade com relação aos atos do monarca fundados no poder
divino. O triunfo dos iluministas tem como resultado o art. 15 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (RIALS, 1995, p. 5), que prevê o direito da
sociedade de pedir contas a todo o agente público incumbido da administração.
Deste modo, a revolução tecnológica (...) visa propiciar uma administração mais
eficiente e eficaz, mais próxima ao cidadão, mais moderna, mais rápida, que
permita oferecer ao cidadão um serviço muito melhor.

Exige-se, portanto, uma administração mais transparente, democrática,


mais controlada, mais acessível, mais respeitosa com a privacidade (PIÑAR
MAÑAS, 2011, p. 30).

A esta assertiva poder-se-ia acrescentar: os direitos humanos, de uma


maneira ampla. Nesse sentido, vale referir que quando o poder estatal faz uso das
novas tecnologias para tornar disponível a informação pública na internet,
permite a participação do cidadão nos assuntos públicos, propicia o controle
social e, consequentemente, a fiscalização do gasto estatal – a isto se denomina
cibertransparência (LIMBERGER, 2016). A Lei nº 12.527/2011, conhecida como Lei
de Acesso à informação pública – LAI, que busca difundir a Informação Pública
na Internet, é um espectro importante, pois significa um avanço em matéria de
transparência (BRASIL, 2011), porém suscita algumas questões para reflexão.
Impõe o dever dos entes da administração de tornarem públicos dados, que se
forem colocados efetivamente em rede e tiverem uma correta utilização, podem
contribuir ao debate democrático e ao controle social.
SUMÁRIO

360 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Buscando-se a etimologia da palavra informação, tem-se o compromisso


com a formação da cidadania, assim visando a contribuir ao debate na esfera
pública (HABERMAS, 2014). Não é qualquer comunicação na rede que tem este
compromisso, pois, em época de grande circulação de conteúdo (LLOSA, 2013;
DEBORD, 1997), em que qualquer indivíduo pode produzir e colocar materiais na
rede, perde-se em qualidade, e nem tudo é veraz. Por isso, a informação
proveniente do poder público deve ter esta qualificação, no sentido de
incrementar a cidadania na esfera pública e contribuir à democracia.

A informação pública deve ser disponibilizada de uma maneira


padronizada, sempre que possível. Imagine-se um país com as dimensões
continentais do Brasil: se cada um dos 5.570 municípios e dos 26 estados da
Federação lançar o dado de uma maneira: dificultará em muito o acesso pelo
cidadão. Os portais de transparência com informações facilitadas auxiliam a
acessibilidade daqueles que buscam os dados. No Brasil, por ora, o debate ainda
está restrito, por vezes, à informação dos vencimentos dos servidores públicos
(LIMBERGER, 2016, p.54-58), sem que se tenha conferido a atenção necessária às
licitações e outros repasses estatais a grupos privados. Sabe-se que há
constitucionalização do privado e a privatização do público (CANOTILHO, 2001,
p. 108-115), mas, nesta análise, sopesa-se (LIMBERGER, 2007, p. 127-137) a
predominância do público (agente público, recursos públicos, interesse público)
ou do privado (relativos aos direitos fundamentais) na divulgação da informação.
Transparência e proteção de dados são valores básicos do Estado Democrático de
Direito e há que se buscar o equilíbrio, a partir da construção de critérios
jurisprudenciais.

Importante consagração em prol da transparência foi conferido pelo


julgamento no Supremo Tribunal Federal da ADPF nº 690/DF (PARTIDOS, 2020),
constituindo-se em um marco importante.

4. Proteção dos dados pessoais

A mais recente novidade na Europa é o Regulamento Geral de Proteção


de Dados – RGPD nº 679/2016, que surge após 5 décadas de evolução legislativa
em três fases de evolução: a) primeiras leis na Alemanha em 1970 (Land de Hesse),
b) França – instituiu a Agência de Proteção de Dados em 1978, c) Legislação
Unificada com a DC 46/95 (antes já existia o Convênio 108/81 – que já previa a livre
circulação dos dados com a devida proteção legal), que após evolução normativa
SUMÁRIO

Têmis Limberger
CAPÍTULO 18 361
vai culminar com a previsão de um direito autônomo na Carta Europeia e,
posteriormente, com o Regulamento Europeu 2016/679 que unifica ainda mais as
regras em matéria de proteção de dados. O Regulamento traz novidades (PIÑAR
MAÑAS, 2016, p. 19) ao tratar do consentimento, do direito ao esquecimento, do
direito à portabilidade, o princípio de accountability ou responsabilidade proativa,
imposição de pesadas multas etc.

Ao tratar sobre a natureza jurídica da proteção de dados pessoais no


ordenamento da EU, é possível deparar-se com a Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia (CDFUE), que, em seu Artigo 8º, 1, preconiza que "todas as
pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam
respeito". A Carta esclarece, ainda, que os dados pessoais podem ser objeto de
tratamento desde que a atividade seja orientada a um "objetivo leal, para fins
específicos e com consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento
legítimo previsto em lei" (artigo 8º, 2).

Diante do cenário de crise sanitária, provocado pela COVID-19, o direito


à proteção de dados pessoais e o direito à saúde entraram em conflito, no Brasil,
em virtude da Medida Provisória – MP nº 954, de 17 de abril de 2020, que dispôs
sobre o “compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações
prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado e de Serviço Móvel Pessoal com
a Fundação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, para fins de
suporte à produção estatística oficial, durante a situação de emergência de saúde
pública de importância internacional decorrente da Covid-19, de que trata a Lei nº
13.979, de 6 de fevereiro de 2020” (BRASIL, 2020).

O Supremo Tribunal Federal (ADI 6387, ADI 6388, ADI 6389, ADI 6390
e ADI 6393), em julgamento plenário, suspendeu a eficácia da Medida Provisória
nº 954/2020, que prevê o compartilhamento de dados dos usuários de
telecomunicações com o IBGE para a produção de estatística oficial durante a
pandemia da Covid-19. Assim, firmou o entendimento de que o
compartilhamento de dados previsto na Medida Provisória viola o direito
constitucional à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados. Reconhecida,
assim, a importância do direito à proteção dos dados pessoais. Neste cenário, é
fundamental esclarecer que a Administração Pública em rede é uma via de mão
dupla, pois ao mesmo tempo em que capta dados dos cidadãos, respeitando
direitos fundamentais, reverte-se em transparência. Portanto, a falta de
transparência, por si só, já se apresenta como uma barreira ao acesso aos dados dos
cidadãos, como aponta a decisão. A pouca, ou nenhuma, cooperação entre os
SUMÁRIO

362 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

órgãos públicos e entre estes e a iniciativa privada, bem como a falta de


interoperabilidade são mais dois elementos que apontam para o desrespeito do
Estado/Administração à proteção de dados, uma vez que muitos dos dados
possivelmente requeridos pelo IBGE certamente já estão de posse do Estado, mas
de forma desestruturada, fragmentada.

Em caso recente, por exemplo, o STF discutiu sobre o reconhecimento


da existência de repercussão geral em um caso que trata da responsabilidade civil
por disponibilização na internet de informações processuais publicadas nos
órgãos oficiais do Poder Judiciário, sem restrição de segredo de justiça ou
obrigação jurídica de remoção, que ainda deverá ter desdobramentos vinculados
à da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e suscitar discussões sobre o direito
à informação. O respectivo caso teve início com uma ação ajuizada por uma
pessoa contra os sites de busca Google e Escavador, em razão da divulgação de
informações sobre uma reclamação trabalhista apresentada por ela. Sua alegação
era de que a publicidade dada ao processo poderia estar inibindo empregadores
de contratá-la, por medo de se tornarem réus em possível futura demanda
trabalhista. Pedia, por isso, a condenação dos sites ao pagamento de indenização
por dano moral e à exclusão das informações (Recurso Extraordinário com
Agravo (ARE) 1.307.386) (GOES, 2021).

A Lei nº 13.709/2018 versa a respeito da proteção dos dados pessoais


com a vigência ocorrida em agosto de 2020. Existe o projeto que visa tornar a
proteção de dados pessoais um direito fundamental pelo Projeto de Emenda
Constitucional nº 17/2019, acrescentando ao artigo 5º da Constituição Federal o
inciso XII-A e ao artigo 22 o inciso XXX, tornando competência privativa da União
legislar sobre a matéria, tal como existe na Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia (UNIÃO EUROPEIA, 2000), que prevê o direito fundamental à
proteção dos dados pessoais (art. 8º) como um direito distinto da privacidade (art.
7º), acabando com a discussão por muitos anos travada (LIMBERGER, 2007, p.
103-115) no sentido de ser autônomo ou simples faceta do direito à privacidade.
A Legislação Brasileira nasce com uma debilidade ao não prever uma Agência de
Proteção de Dados Pessoais de maneira independente ou autônoma. Pela
arquitetura criada pela lei, a Agência incumbida de velar pelos dados ficará
dentro da seara do Poder Executivo (Lei nº 13.853/2019 e Decreto nº 10.474/2020)
(BRASIL, 2018). Porém, isso ocorre com as demais Agências Reguladoras do
modelo brasileiro, que são autarquias em regime especial. Os dados pessoais
sempre merecem uma proteção, mas, em se tratando de dados sensíveis, há que
SUMÁRIO

Têmis Limberger
CAPÍTULO 18 363
se aumentar este cuidado, visto que podem causar uma situação de
discriminação, caso sejam de conhecimento ou manipulados por outrem, que não
o destinatário ao qual se consentiu a guarda do dado, com uma finalidade
específica, comprometendo o princípio constitucional da igualdade
(LIMBERGER, 2007, p. 60-62). Daí a importância da interoperabilidade e da
cooperação entre os entes, como forma de garantia de mínima intervenção aos
dados sensíveis.

Os dados sensíveis ficam mais sujeitos a que se processem


discriminações algorítmicas (MENDES; MATIUZZO, 2019), fazendo-se
necessárias a transparência e a fiscalização, bem como a incidência de valores que
orientam o ordenamento jurídico. Daí porque a diminuição da privacidade
somente se justifica com o aumento da transparência da administração
(RODOTÁ, 2008). Assim como o Tribunal Constitucional Alemão proclamou o
direito à proteção dos dados pessoais em 15/12/1983, no Boletim de
Jurisprudência Constitucional n. 33, consolidando a existência de um “direito à
autodeterminação informativa” (informationelle selbstestimmung), que consistia
no direito de um indivíduo controlar a obtenção, a titularidade, o tratamento e a
transmissão de dados relativos à sua pessoa, por considerar indevidas as
intromissões causadas pela lei do censo, com fundamento no livre
desenvolvimento, artigo 2.1 e da dignidade da pessoa humana, artigo 1.1, ambos
da Lei fundamental; no Brasil, o STF proclamou a proteção dos dados pessoais,
em geral, e dos sensíveis como da saúde, em particular, neste episódio da Covid-
19 relativo aos dados que seriam repassados pelas empresas de telefonia ao IBGE,
uma vez que não tinham o cuidado adequado a respeito do fluxo dos dados, já
que ainda era inexistente a Agência de Proteção de Dados. Por isso, Ingo Sarlet
(2021, p. 35) proclama: o direito à proteção de dados pessoais como direito
fundamental implícito na Constituição Federal Brasileira.

No cenário jurídico brasileiro, revelam-se alguns “aparentes


paradoxos” (DONEDA, 2020, p. 325) a partir de um marco jurídico estruturado a
partir da privacidade, tornando-se necessário promover a transparência, que
ganha cada vez mais protagonismo. Deste modo, uma nova leitura se impõe. A
LGPD em seus artigos 23 a 30, dispõe a respeito da proteção de dados no âmbito
do poder público e determina expressamente que haverá a incidência da LAI,
com o objetivo de atender o interesse público e seus desdobramentos (BRASIL,
2018). Assim, é necessário promover-se uma hermenêutica adequada
constitucionalmente.
SUMÁRIO

364 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Vale, por isso, referir a decisão do TJUE, quando decidiu: el derecho a la


protección de los datos de carácter personal no constituye una prerrogativa absoluta, sino
que debe ser considerado en relación com su función en la sociedade (PIÑAR MAÑAS;
RECIO GAYO, 2018, p. 29). Daí se pode extrair a lição de que os direitos
fundamentais podem ser submetidos a restrições da esfera pública (HABERMAS,
2014) e privada, e o direito à proteção de dados pessoais não pode fugir a este
postulado.

Considerações finais

A legislação brasileira de proteção de dados pessoais surge após a lei de


acesso à informação pública e inverte a sistemática de entrada em vigor, existente
no direito comparado. A lei protetiva dos dados pessoais surge no cenário
brasileiro clamando que se instaure uma cultura de ‘valor aos dados’, que foi
construída nos países europeus ao longo de cinco décadas.

Diante deste contexto, volta-se à questão inicialmente formulada de


apontar se é possível promover um diálogo entre a LGPD e a LAI. O STF realizou
julgamentos importantes em prol da proteção de dados e da transparência (ADPF
nº 690/DF e ADI 6387 e outros). No direito comparado, especificamente na
Espanha, tem-se a demonstração de que é possível a interpretação sistemática no
sentido de proteger-se os dados dos cidadãos e tornar acessível a informação em
harmonia com a legislação nacional e comunitária RGPD. Apesar de parecer que
há uma contradição, quando a última pretende a proteção dos dados e a outra a
informação, ambas dialogam em uma ação coordenada pelos valores
constitucionais (princípio da publicidade, direito à informação e proteção de
dados pessoais).

Quando a administração opera de forma transparente, concretiza-se o


princípio da publicidade e o direito a ser informado do cidadão; porém, há de se
proteger o cidadão e o servidor público no que concerne aos seus dados pessoais
lançados, que dizem respeito a questões privadas.

Assim, disponibilizam-se os vencimentos do servidor público, mas há


de se proteger as informações referentes ao desconto de pensão alimentícia, plano
médico, prestação imobiliária, por exemplo.

A informação em rede possui a vantagem de possibilidade do


compartilhamento de uma maneira crítica e com baixo custo. A informação
SUMÁRIO

Têmis Limberger
CAPÍTULO 18 365
pública visa contribuir ao debate democrático e promover a formação da
cidadania, estimulando-a a participar nos assuntos da esfera pública e realizar o
controle social dos atos administrativos ou provocar as Instituições públicas que
podem fazê-lo, tais como Tribunal de Contas e Ministério Público. A
transparência contribui para a concretização dos direitos sociais.

O poder público tem um compromisso maior com a divulgação da


informação (principalmente em tempos de fake news) já que lhe incumbe o
cumprimento do binômio constitucional: divulgação da informação pública em
rede com transparência e a proteção de dados pessoais, que são de interpretação
compatível, na maioria das vezes. Tal postulado visa contribuir ao debate
democrático e concretizar os direitos dos cidadãos.

Referências

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 7ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF suspende compartilhamento de dados


de usuários de telefônicas com IBGE. 07/05/2020. Disponível em: <h�p://
www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442902#:~:text=O
%20Plen%C3%A1rio%20do%20Supremo%20Tribunal,a%20pandemia%20do%20
novo%20coronav%C3%ADrus.>. Aceso em: 25 set. 2020. Anteriormente,
registre-se a importante decisão favorável à proteção dos dados pessoais do
cidadão proferida pelo então Min. Ruy Rosado de Aguiar, Recurso Especial nº
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Capítulo 19

AS NANOTECNOLOGIAS E
SUAS APLICAÇÕES NO
MEIO AMBIENTE:
entre os riscos e a autorregulação

Wilson Engelmann
SUMÁRIO

372 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

AS NANOTECNOLOGIAS E SUAS
APLICAÇÕES NO MEIO AMBIENTE:
entre os riscos e a autorregulação¹

Wilson Engelmann²

Introdução

Em julho de 2017, quando o projeto que ora se está fazendo o Relatório


final, se tinha 6.890 produtos à base de nanopartículas, produzidos por 1.338
empresas, situadas em 52 países. Em março de 2021, ao se encerrar o referido
projeto, referente à Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, se tem: 8.980
produtos à base de nanopartículas, produzidas por 2.519 empresas, situadas em
63 países, segundo dados coletados na página do StatNano (2021). Isso revela um

1 Relatório final do projeto pesquisa aprovado no âmbito da Chamada CNPq n. 12/2017 - Bolsas de
Produtividade em Pesquisa - PQ, projeto intitulado: “As nanotecnologias e suas aplicações no meio ambiente:
entre os riscos e a autorregulação”. Os resultados aqui apresentados também estão vinculados às pesquisas
realizadas no contexto do Gracious Consortium, “Grouping, read-across, characterisation and classification
framework for regulatory risk assessment of manufactured nanomaterials and safer design of nano-enabled
products”, com recursos financeiros do Eurpean Union’s Horizon 2020 research and innovation programme
under Grant Agrement n. 760840, Disponível em: www.h2020gracious.eu; e à pesquisa realizada pelo autor no
CEDIS – Centro de I & D sobre Direito e Sociedade, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa,
Portugal, e da investigação desenvolvida pelo autor junto ao Instituto Jurídico Portucalense, da Universidade
Portucalense, Porto, Portugal.
2 Pós-Doutor em Direito Público-Direitos Humanos, Universidade de Santiago de Compostela, Espanha; Doutor
e Mestre em Direito Público, Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
– UNISINOS, Brasil; Coordenador Executivo do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios
da UNISINOS; Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado -
da UNISINOS; Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq; e-mail: wengelmann@unisinos.br; ORCID:
h�ps://orcid.org/0000-0002-0012-3559
SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 373
crescimento considerável de produtos disponíveis no mercado consumidor
global, que poderá ser acessado por diversos caminhos, especialmente por meio
da tecnologia digital, usando a ferramenta do e-commerce, onde os produtos
chegam de qualquer país por meios dos Correios, dificultando a fiscalização. Essa
cadeia de consumo impacta diretamente na questão relativa aos riscos, pois os
produtos são elaborados em determinado país, comprados, consumidos, com o
descarte das sobras dos produtos e da embalagem em um meio ambiente, sem
que se tenha o menor controle sobre essa parte do ciclo de vida do nanomaterial.

Especificamente no âmbito do projeto de pesquisa encerrado, no item


relativo às aplicações ambientais, também se observou um aumento: em julho de
2017 se tinham 442 produtos, desenvolvidos por 158 empresas, situadas em 27
países. Já em março de 2021 se encontraram na página do StatNano: 551 produtos
à base de nanopartículas, desenvolvidos em 158 países, situados em 27 países
(STATNANO, 2021). Chama a atenção que os números de indústrias e os seus
respectivos países de localização não sofreu nenhuma alteração. No entanto,
essas indústrias aumentaram a produção de itens aplicáveis na remediação
ambiental, seja do ar, do solo ou da água. Esse, portanto, é um achado positivo
relativo à categoria de aplicações ambientais.

A partir desses dados coletados durante a pesquisa³, o problema que o


projeto pretendeu enfrentar estava assim proposto: “quais são os elementos
estruturantes de um ambiente regulatório, fundado em modelos de
autorregulação regulada, para a composição do direito dos riscos acoplado ao
direito dos danos futuros de nanotecnologias aplicadas ao meio ambiente?”. Esse
problema levanta um elemento importante para o Direito: o papel do tempo no
desvelar de possíveis danos gerados pelas nanopartículas, ou seja, no momento
presente, ainda não se tem nenhuma notícia de algum dano pessoal ou ambiental
gerado pela ação das nanopartículas. Entretanto, e isso vem das Áreas Exatas,
existe uma “probabilidade” da configuração de danos no futuro. As
nanopartículas são extremamente pequenas, pois uma nanopartícula equivale à
bilionésima parte de um metro (COMPARATIVE COMPILATION, 2021), ou seja,
ao se dividir cada milímetro em um milhão de partes se terá um nanômetro (1

3 Também existem informações quantitativas sobre nanomateriais em outras bases de dados, como: KRUG et al,
2018.
SUMÁRIO

374 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

nm)⁴. Portanto, a dimensão do tamanho carrega consigo a potencialidade físico-


química de gerar efeitos que são diversos dos mesmos materiais em escala macro.
Tal aspecto é destacado por pesquisas publicadas pelos investigadores das Áreas
Exatas⁵.

Enquanto se elaborava este relatório final, ou seja, no dia 04 de março de


2021, a ANSES (French Agency for Food, Environmental and Occupational Health and
Safety) publicou uma recomendação sobre o limite de exposição ao “dióxido de
titânio em nanopartícula”, podendo causar inflamação pulmonar aos
trabalhadores quando o trabalho em contato com essa partícula exceder 8horas
diárias, além de, em casos graves, gerar um processo de formação de câncer
(carcinogênese)⁶. Portanto, os riscos efetivamente estão no horizonte de
possibilidades. Aqui, portanto, um ponto importante que a pesquisa analisou. Em
publicação que está no prelo, contando com a participação do pesquisador da
bolsa de produtividade em pesquisa que se está fazendo o relatório final, se
realizou uma pesquisa bibliográfica sistemática sobre as várias noções e
dimensões dos riscos de diversas nanopartículas (HOHENDORFF,
ENGELMANN, LEAL, 2021). Os achados dessa revisão sistemática da literatura,
a partir dos artigos publicados e disponibilizados no Portal de Periódicos da
CAPES, evidenciam que as áreas Exatas estão apontando a existência de riscos e
a necessidade de sua mensuração. A pesquisa sinaliza uma variada conjunção de
diversas características das nanopartículas, o que amplia a possibilidade de
efeitos adversos. E mais. A maioria desses efeitos ainda não são bem conhecidos
pelas Ciências Exatas. A variada conjuntura de efeitos, que está ligada a um
imenso número de nanopartículas que já foram desenvolvidas pela ação do ser

4 “Esses micropedaços de materiais como ouro, zinco e prata são utilizados em ações microscópicas.
Nanopartículas de prata, por exemplo, formam tecidos mais resistentes e à prova de micróbios – ajudando,
assim, a indústria têxtil a ganhar valor. O lado ruim disso tudo é que essa tecnologia raramente é limpa –
materiais químicos pesados são usados na quebra dessas partículas”. Para fazer frente a essa situação de risco
para o trabalhador e o meio ambiente, “[...] surgem propostas de geração de nanopartículas sustentáveis ao
utilizar um laser que dispensa o uso de solventes químicos. Essa é a proposta da Nanogreen, uma empresa de
Joinville, Santa Catarina, que está criando nanopartículas com menos material do que no sistema
convencional” (50 Startups que mudam o Brasil, 2021).
5 Exemplificativamente se citam: KÜHNEL et al, 2014; SIMEONE et al, 2019; PAVLICEK et al, 2021; ZEB et al,
2021; BERTI, PORTO, 2016; GRACIOUS Consortium, 2021; JIMÉNEZ et al, 2020; LARSSON, JANSSON,
BOHOLM, 2019; VAN WEZEL et al, 2018.
SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 375
humano também desafia a regulação. Se poderia dizer que, para cada partícula
em nano escala, se deveria ter uma regulação específica. Tais aspectos sublinham
as dificuldades de se normatizar essa tecnologia e destaca a dificuldade da criação
legislativa para essa regulação.

O que significa, no contexto da pesquisa finalizada, a noção de “risco”?


É a probabilidade de que um efeito adverso ocorra com as condições específicas
de exposição a certa substância. Já perigo refere-se a uma propriedade inerente a
uma substância capaz de provocar um efeito adverso. A situação trazida pela
grande quantidade de nanopartículas instala esse “risco”. Com isso, se inaugura
uma noção que é estranha ao Direito e à regulação: a “probabilidade”. Até esse
momento, o Direito sempre operou por meio de categorias como: certeza,
previsibilidade, levando à “segurança jurídica”. Com a incorporação da categoria
dos “riscos”, necessariamente o jurídico deverá se abrir a novos contornos,
especialmente a “probabilidade” e os “danos futuros”. No quadro a seguir, se
pode observar a “fórmula” que sustenta os elementos estruturantes da categoria
do “risco”:

6 “Com 17.000 toneladas produzidas ou importadas a cada ano na França, o dióxido de titânio na forma de
nanopartículas ou TiO2-NP é um dos nanomateriais mais usados em vários setores industriais. É, portanto,
uma importante fonte de exposição potencial no local de trabalho. Dando continuidade ao trabalho realizado
para a população em geral, a ANSES passou a recomendar limites de exposição ocupacional (OELs) para
fortalecer a prevenção de riscos para os trabalhadores. TiO2-NP: usado desde a década de 1990 por suas
propriedades anti-UV e fotocatalíticas. O dióxido de titânio na forma de nanopartículas ou TiO2-NP tem sido
usado nos últimos trinta anos principalmente por sua absorção de radiação ultravioleta e propriedades
fotocatalíticas, que degradam certos poluentes por decomposição química e são usados, por exemplo, em vidros
‘autolimpantes’. Em pessoas expostas pela via respiratória, pode causar inflamação pulmonar, que em alguns
casos pode levar à carcinogênese. Diversas características físico-químicas do TiO2-NP - tamanho, formato,
revestimento superficial ou não, cristalinidade - podem influenciar sua toxicidade, tornando-o uma substância
altamente complexa. Um OEL baseado na prevenção da inflamação pulmonar. Na sequência da perícia
realizada para definir um valor de referência de toxicidade (TRV) para a população em geral, a ANSES passa a
recomendar um limite de exposição ocupacional (8h-OEL) de 0,80 micrograma por metro cúbico. A
conformidade com este valor deve ajudar a prevenir a inflamação pulmonar, um efeito que ocorre nas
concentrações de exposição mais baixas. Além disso, devido à falta de dados disponíveis sobre os efeitos
imediatos ou de curto prazo do TiO2-NP e de acordo com seu guia metodológico, a ANSES também recomenda
não exceder a concentração de 4 microgramas por metro cúbico em um período de 15 minutos. A conformidade
com este valor deve ajudar a limitar o tamanho e o número de picos de exposição durante o dia de trabalho.
Uma avaliação de especialistas sobre a avaliação de métodos de medição de TiO2-NP no ar está em andamento.
Isso determinará quais métodos usar para medir as concentrações de TiO2-NP no ar de acordo com os OELs
recomendados pela Agência. Além disso, os estudos solicitados pela ANSES ao avaliar o TiO2 nos termos do
Regulamento REACH devem permitir que esses valores sejam mais refinados”. Disponível em: h�ps://
www.anses.fr/en/content/recommended-occupational-exposure-limits-titanium-dioxide-nanoparticles. Acesso
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SUMÁRIO

376 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Figura 1: Fórmula para calcular o risco:

Fonte: BERTI, PORTO, 2016, p. 147.

No caso do nanomaterial, o risco poderá ser controlado limitando-se a


exposição; um nanomaterial pode apresentar o mesmo perigo em todas as
situações, dadas as suas propriedades físico-químicas e biológicas inatas, agindo
em células e tecidos dos organismos vivos (BERTI, PORTO, 2016, p. 147). Nessa
mesma linha de fundamentação, Niklas Luhmann também realiza a distinção
entre o risco e perigo, destacando que existe uma incerteza em relação a danos
futuros. Pode-se considerar que o potencial é uma consequência da decisão, e,
então se fala de risco e, mais precisamente, do risco da decisão. Ou bem se
entende que o potencial dano é causado externamente, ou seja, é atribuído ao
meio ambiente, e, neste caso, se fala de perigo (2006, p. 67). Desse modo, o risco
está associado à decisão, expectativa, probabilidade de coisas que ocorrerão no
futuro, é uma comunicação voltada ao futuro. Já perigo é a perspectiva da vítima,
de quem não tinha o poder de decisão (de quem recebe a carga de risco sem
decidir sobre aquilo). Menciona ainda que acredita que os riscos são atribuídos às
decisões, enquanto que os perigos estão sujeitos à atribuição externa e que
quando se trata de perigo, a sociedade é exposta a um problema que não foi
causado pela pessoa que recebe o dano.

Segundo Niklas Luhmann:


SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 377
[...] la distinción entre riesgo y peligro se haga depender de
atribuciones no significa de ninguna manera que queda al ar-
bítrio del observador classificar algo como riesgo o como peli-
gro. Ya hemos mencionado algunos casos limite, sobre tod el
de que no hay al presente ningún critério reconcoble para una
decisión diferenciable o, por lo menos, no hay critérios que
tengan que ver con uma probabilidad diversa de ventajas y
posibles daños (2006, p. 71-72).

Mas adiante, e a partir desse contexto, Luhmann enfatiza: “[...]


solamente podemos hablar de una atribución a decisiones cuando es posible
imaginar una elección entre alternativas y esa elección se presenta como algo
razanoble, independiente de que quien tome la decisión se percate o no del riesgo
y de la alternativa” (2006, p. 72). É uma tomada de decisão o que define se a
situação representa risco ou perigo, ou seja, toda decisão gera algum tipo de risco,
em menor ou maior grau, bem como todas as demais adversidades que ocorrem
e não oriundos de uma tomada de decisão são considerados perigo. O risco
sempre decorre de uma tomada de decisão e o perigo decorre das perspectivas do
agente passivo, ou seja, de alguém que não faz nada para que aquilo aconteça, que
não tem ação, do ambiente e não há forma de evitar. Ao longo do período deste
projeto de pesquisa, se finalizou a orientação de uma tese de doutorado
(HOHENDORFF, 2017) que abordou amplamente as questões relativas ao risco e
perigo em Luhmann. Logo no início do período desta bolsa de produtividade em
pesquisa, também se finalizou a orientação de uma Dissertação de Mestrado em
Direito, onde os conceitos de risco e perigo foram estudados e caracterizados a
partir de Niklas Luhmann e Ulrich Beck (LEAL, 2017). Os achados dessa
Dissertação de Mestrado em Direito serviu para se realizar as demais etapas de
pesquisa do projeto ora relatado.

Na última obra de Ulrich Beck, “A metamorfose do mundo” (2018), se


encontra uma constatação interessante: “o risco produzido”, pois, segundo o
autor, o risco é produzido e constatado pelas mesmas pessoas ou categorias
(MIRANDA, 2020). O cenário do risco acima caracterizado evidencia a
metamorfose do mundo, que deverá atingir também o Direito: Ao invés de mudança,
metamorfose, que desestabiliza as certezas da sociedade moderna, os eventos e
processos que provocam um choque fundamental; A metamorfose significa que o
que foi impensável ontem é real e possível hoje (BECK, 2018, p. 11-12). A
metamorfose implica uma transformação muito mais radical, em que as velhas
certezas da sociedade moderna estão desaparecendo e algo inteiramente novo
SUMÁRIO

378 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

emerge. Nosso conhecimento dos riscos globais é altamente dependente da


ciência e dos especialistas. Por exemplo: indústrias e especialistas nucleares
ocupam uma posição dupla: são ao mesmo tempo criadores e avaliadores de
risco. Isso mina sua posição de poder baseada em relações de definição de risco.
A metamorfose está ligada à ideia de desconhecimento, o que gera um paradoxo:
por um lado, enfatiza as limitações inerentes ao conhecimento, em particular a
realidade de que algum conhecimento é cognoscível ou não atrai uma disposição
para saber, de que nanotecnologia, bioengenharia e outros tipos de tecnologia
emergente contêm não somente riscos cognoscíveis, mas também riscos que ainda
não se pode conhecer, fornecendo uma janela de limitações fundamentais para a
capacidade de a sociedade perceber e governar os riscos (BECK, 2018, p. 15 e 137).
O panorama delineado por Ulrich Beck se aplica ao mundo nanotecnológico, pois
todas as características de Beck e Luhmann cruzadas estão marcadas e
identificados no manejo, produção e descarte de materiais com nanopartículas.

Aqui surgem as condições para o “direito dos danos”, acompanhado de


um estudo mais detalhado sobre os impactos que a “probabilidade” da ocorrência
dos riscos poderão impactar a produção do jurídico no contexto das
nanotecnologias. Se busca antecipar a caracterização dos riscos futuros e
prováveis, a fim de se evitar a geração de danos, dados os efeitos econômicos que
eles geram e a dificuldade se recompor o “status quo ante” da situação atingida
(PAPAYANNIS, 2009; PAPYANNIS, 2019). Isso gera uma “opacidade tecnológica”
(MARTÍNEZ MERCADAL, 2018) na medida em que não se conhece, com
precisão científica, os riscos que as nanopartículas poderão gerar em relação à
saúde das pessoas e as interações que promoverá no meio ambiente. Esse o ponto
central que a precaução deverá dar conta. Por isso, a responsabilidade civil, em
um cenário de “opacidade tecnológica”, deverá converter-se em uma abordagem
precaucional, antecipando os cuidados, a fim de evitar os danos (GARCÍA
AMADO, 2019).

Essa é uma movimentação temporal que também é nova no Direito.


Tradicionalmente o Direito decide desde o passado. Um fato pretérito é
juridicizado no presente, confirmando os efeitos jurídicos que já se projetaram
quando o evento ocorreu, mas que deve ser chancelado, por uma decisão judicial,
por exemplo, no tempo presente. As nanotecnologias têm muito pouco no
passado, embora as nanopartículas já sejam conhecidas nas Áreas Exatas há
vários anos. Entretanto, juridicamente, elas se desvelam no presente e “poderão”
(aí a probabilidade) gerar efeitos – danos – no futuro. Essa temporalidade deverá
SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 379
ser incorporada em novas estruturas normativas, geradas pela chamada
“autorregulação” ou “autorregulação regulada”. Esse movimento temporal da
regulação foi estudado pelo bolsista de produtividade em seu estágio pós-
doutoral realizado no primeiro semestre de 2018, no Centro de Estudos de
Seguridad, da Faculdade de Direito, da Universidade de Santiago de
Compostela, na Espanha (ENGELMANN, 2018).

A caracterização dos riscos das nanopartículas deverá ser observado a


partir de níveis de verificação dos seus elementos estruturantes, onde se destaca
a “incerteza” para se delinear a probabilidade da ocorrência do dano e da sua
intensidade. Por isso, uma efetiva abordagem precaucional deverá buscar
informações científicas fora do Direito, nas Áreas Exatas que estudam as
nanopartículas, buscando se saber se é o caso de “indeterminação”, de
“ambiguidade” ou de “ignorância” (WICKSON, GILLUND, MYHR, 2010). Aqui
se desenha uma abertura para uma necessária interdisciplinaridade do estudo do
“Direito dos Riscos”, dada a dificuldade dessa determinação mais precisa, pois
cada uma dessas categorias exigirá tomada de decisões diferenciadas
(ENGELMANN, LEAL, 2021).

A figura a seguir apresentada representa alguns indicativos


metodológicos que deverão nortear a aplicação da chamada “abordagem
precaucional”

Figura 2: Elementos estruturantes da abordagem precaucional

Fonte: elaborado pelo autor a partir de ARAGÃO, 2008.


SUMÁRIO

380 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

Na estruturação do “direito de danos”, que esteja acoplado ao “direito


dos riscos”, se terá as várias possibilidades inseridas no panorama da precaução
(BEM, ENGELMANN, 2021). A figura acima pretende destacar quatro problemas
centrais que os riscos das nanotecnologias poderão trazer e que deverão ser
resolvidos em conjunto pela formulação jurídica que o projeto desenvolveu,
conforme se verá a seguir: 1) a escala dos riscos: dados os movimentos
viabilizados pelas tecnologias digitais em um mundo globalizado, os riscos
poderão gerar efeitos em qualquer lugar e em uma magnitude desconhecida,
dada a escala em que as nanopartículas se encontram; 2) o tempo dos riscos: como
já mencionado neste relatório, até o momento não se tem notícias de acidentes ou
contaminações. Isso não quer dizer ausência de riscos, mas de que eles poderão
ocorrer no futuro. Portanto, o Direito precisará mirar o futuro, criando
instrumentos que possam assegurar algum grau de segurança para as empresas
que estão inovando nesse setor; 3) a questão relativa aos custos de se tentar uma
remediação, quando algum risco ocorrer. Os efeitos humano, social e econômico,
para citar apenas alguns, se deverão levar em consideração na gestão da
segurança das nanotecnologias; 4) existe a possibilidade de se ter uma
irreversibilidade desses efeitos. Talvez se tenha dificuldade, ou haja
impossibilidade de se retornar ao estado anterior. Por conta disso, uma gestão
jurídica séria dos riscos deverá levar em consideração o estado atual do Direito,
mas abrindo projeções para danos futuros, componentes do risco de danos
(CNPEM, 2019). Ao longo do desenvolvimento do projeto também se trabalhou
com outros princípios, buscando substancializar as possibilidades da precaução.
Se aprofundou os estudos nos princípios para a supervisão de nanotecnologias e
nanomateriais, que foram destacados pelo NanoAction, do International Center for
Technology Assessment (2007). A partir desses princípios se elaborou, em conjunto
com os pesquisadores do Grupo de Pesquisa JUSNANO, uma Cartilha
informativa, dirigida aos empresários e consumidores, com explicações e
exemplos desses princípios no Direito Brasileiro (LEAL et al, 2020).

Os princípios sublinhados pelo NanoAction são: Princípio da precaução;


Princípio sobre a Regulamentação Mandatória Nanoespecífica; Princípio da
proteção à saúde e segurança para o público e trabalhadores; Princípio da
sustentabilidade ambiental; Princípio da transparência; Princípio da participação
do público; Princípio da inclusão de amplos impactos e Princípio da
responsabilidade do produtor (2007). Se observa que a precaução (HANSSON,
2020) é o primeiro dos princípios e que se constitui a partir de um conjunto
SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 381
transversal e complementar com os demais. Cada um desses princípios encontra
o seu similar no Ordenamento Jurídico Brasileiro (ENGELMANN,
HOHENDORFF, LEAL, 2021). Por isso, no caso das nanotecnologias, se tem uma
estrutura jurídico-normativo muito rica no Brasil e que deverá orientar todas as
etapas do ciclo do nanomaterial. Apenas não se desenvolveu o “Princípio da
Regulamentação Mandatória Nanoespecífica”, pois ele dependerá da iniciativa
do Poder Legislativo.

Desde o ano de 2005, o Brasil vem tentando regular legislativamente


essa área da tecnologia sem obter êxito (ENGELMANN, 2015; LEAL,
ENGELMANN, 2018). Atualmente, estão em tramitação, junto ao Senado Federal,
dois projetos de lei:

1) Projeto de lei do Senado n. 880, 2019, de autoria do Senador Jorginho


Mello, que institui o Marco Legal da Nanotecnologia e Materiais Avançados;
dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação
científica e tecnológica e à inovação nanotecnológica; altera as Leis nº 10.973, de 2
de dezembro de 2004, e nº 8.666, de 21 de junho de 1993; e dá outras providências.
Segundo a última movimentação, do dia 19 de fevereiro de 2020, o projeto foi
votado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, onde foi aprovado um
projeto/parecer substitutivo. Na sequência, o texto prosseguiu para a Comissão
de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, onde está
aguardando a designação de relator (BRASIL, 2021);

2) Projeto de Lei Complementar n. 23, de 2019, de autoria do Senador


Jorginho Mello, que altera a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006
a fim de incentivar a pesquisa e desenvolvimento da Nanotecnologia no Brasil, ou
seja, permite a inclusão no Simples Nacional de empresas cuja atividade seja
suporte, análises técnicas e tecnológicas, pesquisa e desenvolvimento de
nanotecnologia. Segundo a última movimentação, do dia 13 de março de 2019, o
projeto está na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e
Informática (Secretaria de Apoio à Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação,
Comunicação e Informática), tendo sido designado, como Relator, o Senador
Plínio Valério (BRASIL, 2021a).

Se observa a lenta tramitação dos dois projetos de lei. Se tem, portanto,


um indicativo claro da dificuldade que o processo legislativo convencional para
regular uma tecnologia que está em rápido desenvolvimento. Vale dizer: há um
descompasso entre o “tempo do Direito” e o “tempo da tecnologia”. Por isso, se
SUMÁRIO

382 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

tem evidências que não será esse o caminho para a regulação dos avanços gerados
a partir da escala nano. Portanto, se confirma a hipótese do projeto ora relatado,
no sentido de se fazer a inovação chegar à produção do jurídico, abrindo-se
espaço para os modelos e estruturas autorregulatórias, como os propostos na
pesquisa.

Ao longo da pesquisa se elaborou um quadro onde se apresentam as


equivalências brasileiras com os princípios destacados pelo trabalho do
NANOACTION (ENGELMANN, HOHENDORFF, LEAL, 2021). Com isso, a
pesquisa evidencia um panorama de regras e princípios do Direito Brasileiro que
poderão regular todas as etapas do ciclo de vida dos nanomateriais (SOM, 2010;
SALIERI et al, 2019). Embora não se encontre expressamente a palavra
“nanotecnologias” ou “nanomaterial” ou “nanopartículas”, não se poderá aceitar
a ideia de ausência regulatória. A regulação existe, a prova são as normas
jurídicas acima apresentadas, e deverão orientar o processo de inovação
nanotecnológica. Por isso, a importância de se construir cenários
autorregulatórios, com a inserção deste conjunto normativo.

Um estudo publicado em 2019, apresentou cinco recomendações para a


regulação de nanomateriais. Além das limitações instrumentais, a relação custo-
benefício é um grande obstáculo à aplicação prática dos requisitos regulatórios
relacionados aos nanomateriais. Apesar das recomendações, a aplicabilidade
prática da estrutura regulatória não é garantida, assim como as consequências
jurídicas. Um entendimento limitado da redação exata das definições e de suas
possíveis interpretações pode ser prejudicial ao desenvolvimento eficiente de
métodos e ferramentas analíticas adequados. A avaliação contínua e o
desenvolvimento futuro são certamente necessários, tanto no aspecto jurídico
quanto no prático. As recomendações para a regulamentação de nanomateriais
são direcionadas ao Direito Europeu, mas também podem servir para a estrutura
jurídica de outros países como é o caso do Brasil. As recomendações são: 1) as
definições de nanomateriais devem ser esclarecidas, evitando termos mal
definidos e incluindo limiares claros, por motivos de segurança jurídica e
exequibilidade dos regulamentos; 2) regulamentos nanoespecíficos que não são
viáveis na prática, não podem cumprir sua função, ou seja, proteger os seres
humanos e o meio ambiente e, portanto, precisam ser adaptados; 3) as cláusulas
de adaptação devem ser harmonizadas e incluir uma distinção mais clara entre os
aspectos técnicos/científicos a serem adaptados pela Comissão Europeia e os
aspectos políticos/de gerenciamento de riscos que devem permanecer sob a
SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 383
responsabilidade do regulador; 4) os fabricantes de produtos devem arcar o ônus
da prova pela origem dos nanomateriais; 5) o limiar de 50% em número deve ser
substituído por um limiar de 1% em peso para tornar as definições viáveis com os
métodos atuais de análise de partículas e, assim, contribuir para uma relação
custo-benefício mais equilibrada no nano-quadro regulamentar e sua aplicação
(MIERNICKI et al, 2019).

Ao longo do período do projeto, o pesquisador finalizou a orientação da


Tese de Doutorado que construiu um framework, com as fontes jurídicas
disponíveis no Direito Brasileiro e também do Direito Estrangeiro: o tema tese é
a observação dos elementos estruturantes do Sistema do Direito Ambiental
Brasileiro para a composição do framework de gestão dos riscos ambientais das
nanotecnologias com base no estudo de caso a partir de empresas fabricantes de
produtos com nanotecnologias na região Sul do Brasil (BERWIG, 2019).

Quando se apresentam as categorias do “risco” e da “probabilidade” da


ocorrência de algum dano ao Direito, os juristas (aqui considerados como todos
aqueles que trabalham com o Direito) são desafiados a trazer a inovação para a
identificação e reconhecimento das fontes do Direito. Com isso, se abrem
possibilidades para o trabalho com os princípios, que ganharam força normativa
a partir das pesquisas de Robert Alexy e, no Brasil, especialmente a partir da
Constituição do Brasil. Portanto, as regras (a lei, por exemplo) e os princípios são
catalogados como categorias de normas jurídicas. Portanto, ambas as categorias
apresentam traços de “dever ser”, o que obriga o seu cumprimento. Ainda é
comum a defesa da necessidade de que a norma tenha uma sanção para o seu
descumprimento. Os princípios não têm essa característica estruturantes, mas
como eles se encontram vinculados ao Sistema Jurídico como um todo, também
poderão expressar consequências para o seu incumprimento (ENGELMANN,
2001). Esse modo de se vislumbrar o caráter dos princípios, especialmente na sua
utilização por meio da ponderação e que permite ao juiz a criação do Direito é
reconhecida por Manuel Atienza (2020). Aqui se poderia avançar esse
pensamento, considerando que o jurista em geral, a partir das necessidades
geradas pela inovação tecnológica – como o caso das nanotecnologias – deveria
fazer uso da ponderação e dos princípios a fim de projetar modelos regulatórios.

Esse trabalho projetual do normativo configura o “ambiente


regulatório” (BROWNSWORD, 2019), onde se vislumbra uma pluralidade
autores regulatórios – públicos e privados – trabalhando em conjunto e
SUMÁRIO

384 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

orientados pelos elementos estruturantes da “regulação do amanhã”, ou


“regulação do futuro”, que são: 1) intervenção regulatória orientada por dados; 2)
abordagem baseada em princípios; 3) desenvolvimento e validação de testes
regulatórios (teste de conformidade regulamentar) (FENWICK, KAAL,
VERMEULEN, 2017). Os dados são gerados rotineiramente a partir da pesquisa
científica, como a revisão sistemática da literatura, no plano acadêmico, e no
registro e memória de todas as etapas e acontecimentos gerados a partir da
produção dos objetos a partir das nanoformas⁸, no plano da indústria, comércio e
todos os demais meios de reutilização ou incineração de embalagens e sobras da
produção. Assim, se terá informações e evidências muito importantes para
orientar a criação de modelos normativos a partir dos princípios.

Uma linha que o modelo regulatório deverá perceber é a Abordagem


Segura da Inovação - Safe Innovation Approach – SAI (OECD, 2020), que se organiza
a partir dos seguintes elementos: a) consciência da segurança desde um estágio
inicial de inovação, b) interação entre a indústria e os reguladores, e c) estratégias
regulatórias proativas ou esquemas de segurança para abordar a inovação
(SHANDILYA et al, 2020). Aqui se observa que a inovação – aqui considerado o
desenvolvimento das nanotecnologias aplicadas ao meio ambiente – precisa estar
estruturada em esquemas de segurança, gerados pelo diálogo entre todos os
atores envolvidos no desenvolvimento de qualquer produto inovador que chegue
até o mercado consumidor. Portanto, qualquer modelo regulatório que se possa
projetar também deverá estar conectado com esses elementos e a partir da
orientação do chamado Safe-by-Design (SbD) e a “preparação regulatória”
(Regulatory Preparedness). O Safe-by-Design se liga umbilicalmente à preparação de
modelos normativos a partir dos princípios, pois a segurança vai sendo
desenhada gradativamente ao longo do processo e com adaptação a cada nova
nanoforma e tem dois objetivos centrais: a) lidar com as incertezas relativas aos
riscos humanos e ambientais, gerando garantias de segurança ao longo de todo o

8 Aqui se destaca uma definição que foi desenvolvida pelo órgão europeu de registro e fiscalização de produtos
químicos (REACH), que sinaliza: com base na recomendação da Comissão Europeia de 18 de outubro de 2011,
que foi modificada em 2018, uma “nanoforma” é uma forma de substância natural ou manufaturada que
contém partículas, no estado não agregado ou como um agregado ou como um aglomerado e onde, para 50%
ou mais das partículas na distribuição de tamanho de número, uma ou mais dimensões externas estão na faixa
de tamanho 1 nm-100 nm, incluindo também por derrogação fulerenos, flocos de grafeno e nanotubos de
carbono de parede única com uma ou mais dimensões externas abaixo de 1 nm (COMMISSION REGULATION
(EU) 2018/1881).
SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 385
processo de desenvolvimento de algum produto com a utilização de nanoformas;
b) projetar os efeitos indesejáveis, potencialmente identificados nos respectivos
materiais ou produtos ou em seus processos de produção, a fim de garantir o
desenvolvimento sustentável. A redução dos riscos está relacionada à inclusão das
considerações relevantes para a segurança nos processos de inovação o mais cedo
possível, levando em consideração todo o ciclo de vida de um produto
(SHANDILYA et al, 2020; DEKKERS et al, 2020). Na literatura revisada sobre o
Safe-by-Design se encontraram diversas perguntas norteadores para se saber sobre
a segurança de uma nanoforma, seja em relação ao ser humano, seja em relação ao
meio ambiente (DEKKERS et al, 2020; JIMÉNEZ et al, 2020).

A “preparação regulatória” busca coletar informações ao longo do ciclo


de vida de uma nanoforma e se estrutura a partir dos seguintes elementos
constitutivos: a antecipação de qualquer efeito indesejável, a interação entre os
atores regulatórios de forma transparente e buscando a harmonização das
variadas iniciativas regulatórias sobre semelhante nanoforma, o
compartilhamento do conhecimento, buscando facilitar e dar suporte à
implementação do modelo regulatório desenvolvido, assegurando uma
“regulação flexível” e que possa gerar um ambiente confiável (SOETEMAN-
HERNÁNDEZ et al, 2019; SOETEMAN-HERNÁNDEZ et al, 2021). Aqui se
identificam diversos elementos que traduzem as normas jurídicas que se deverá
produzir, a fim de se dar conta dos desafios trazidos pelas nanotecnologias. Vale
dizer: esses elementos estruturantes estarão na organização da abordagem
precaucional, direcionado ao enquadramento do fato nanotecnológico no
cruzamento do “direito dos danos” e do “direito dos riscos”. Esses aspectos
orientarão a inovação “no” Direito - no estudo da Teoria Geral das Fontes e na
ressignificação das diversas fontes que já estão incorporadas ao Sistema Jurídico.
Além disso, também guiarão a inovação “do” Direito - no seu espectro externo,
pautando a necessária interação com outras áreas do conhecimento,
especialmente diversas áreas de conhecimento situadas no contexto das Ciências
Exatas, que fornecerão subsídios para a calibragem dos modelos regulatórios que
se precisará desenvolver.

Os modelos normativos não estatais muitas vezes são criticados por


terem uma forte participação de atores privados. No entanto, o modelo
regulatório que pretende representar a chamada “regulação flexível” também
deverá ser orientado pelo foco no interesse público a partir da incorporação de
sete guias (drivers) de confiança na “governança das tecnologias emergentes”, que
SUMÁRIO

386 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

são: intenção efetiva de atender ao interesse público, promovendo a inclusão de


todos os atores que serão atingidos pelos efeitos positivos e negativos das
nanoformas, por meio da acessibilidade de informações (a transparência),
atendendo aos princípios da justiça, da integridade, do respeito e da competência
dos atores envolvidos (SOETEMAN-HERNÁNDEZ, et al, 2021).

Com esse cenário, se precisará fazer o contato com a realidade viva,


onde as nanotecnologias são pesquisadas, produzidas, comercializadas,
consumidas e descartadas. Para o desenvolvimento de uma “regulação
inteligente” (smart regulation) (ZETZSCHE et al, 2017), que seja flexível e
estruturada a partir de metodologias ágeis (COOPER, SOMMER, 2018), se
encontrou na área da Administração a estrutura do modelo de framework, onde
se poderá vislumbrar os diversos estágios para que a produção e o consumo
sejam sustentáveis, no atendimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável
12 da ONU até 2030. Com o processo legislativo, geralmente, não sabe se a
proposição legal conseguirá interagir positivamente com os fatos sociais, pois
opera em grande parte no mundo abstrato. Isso dificulta ainda mais a regulação
das tecnologias que se encontram no centro da Quarta Revolução Industrial. Em
perspectiva semelhante do ODS 12, se encontra a sigla ESG (Environmental, Social
and corporate Governance), ou seja, uma iniciativa iniciada em 2005, quando o então
Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, convocou um conjunto variado de
investidores, desafiando-os a considerar em suas análises os pilares
socioambientais e de “caráter” das companhias que formam o mercado
(ISIGONIS et al, 2019). Os componentes de cada um desses elementos também
poderão interagir com o framework, sendo mais um reforço para que as
nanotecnologias possam receber esse “selo” que assegura, no fundo, uma
produção sustentável (LIMA, 2021).

O contexto desenhado até o momento evidencia a necessidade crescente


de abordagens interdisciplinares e conjugadas, contendo informações de várias
áreas de conhecimento (OECD, 2016). Para tanto, são desenvolvidas ferramentas
de gerenciamento de portfólio, com estágios a serem ultrapassadas ao estilo das
perguntas de uma “árvore de decisão”, parte estruturante do framework,
objetivando interromper o processo de inovação se houver comprometimento
inaceitável em (i) rentabilidade, (ii) probabilidade técnica de sucesso, (iii)
probabilidade comercial de sucesso e/ou (iv) riscos ou incertezas quanto aos
riscos. Os achados na pesquisa documental evidenciam a importância da
integração das orientações: uma Abordagem Integrada para Testes e Avaliação
SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 387
(IATA, do inglês: “Integrated Approach to Testing and Assessment”) é uma
abordagem baseada em múltiplas fontes de informação usadas para a
identificação de riscos, caracterização de riscos e/ou avaliação de segurança de
produtos químicos. Um IATA integra e pondera todas as evidências existentes
relevantes e orienta a geração direcionada de novos dados, quando necessário,
para informar a tomada de decisão regulatória em relação ao risco conhecido e/ou
risco potencial. Em um IATA, os dados de várias fontes de informação (ou seja,
propriedades físico-químicas, modelos in silico, abordagens de agrupamento e de
leitura, métodos in vitro, testes in vivo e dados humanos) são avaliados e
integrados para tirar conclusões sobre os riscos de produtos químicos
(GRACIOUS CONSORTIUM). Dentro deste processo, espera-se que a
incorporação de dados gerados com testes e métodos não experimentais
contribua consideravelmente para a redução dos testes em animais. O resultado
de um IATA é uma conclusão que, junto com outras considerações, informa a
tomada de decisão regulatória (OECD, 2016). Esse conjunto, ainda estranho ao
Direito e aos juristas, deverá integrar o processo de arquitetura dos modelos
regulatórios para as nanotecnologias. A pesquisa desenvolvida pelo pesquisador
ao longo do período viabilizou sua a participação no Consórcio internacional de
pesquisadores de diversos países, denominado Gracious Project, que conta com
apoio financeiro da União Europeia.

Ao longo da pesquisa, se prospectou as bases de um “ambiente


regulatório”, onde foram destacados quatro pontos fundamentais: a comunicação
dos riscos para todas as partes envolvidas com as nanotecnologias, incluindo os
consumidores. Esse é um aspecto fundamental, pois se encontrou uma publicação
alertando sobre a importância de se ter um bom canal de comunicação com o
mercado e o consumidor, a fim de evitar boicotes a determinados produtos,
quando as informações vêm à tona tardiamente (WEZEL et al, 2018); a
importância desse primeiro elemento, gera a estrutura de outro que se relaciona
ao modo como os riscos podem ser percebidos pelos consumidores. Para tanto, a
comunicação e o efetivo exercício do direito à informação são fundamentais; os
fatores organizacionais e o contexto de produção: aqui entra a importância da
valorização do meio ambiente do trabalho e uma correta e transparente gestão dos
riscos no meio ambiente do trabalho e a inserção dessas preocupações em códigos
de conduta internos das organizações à base de nanoprodutos; por fim, a
importância de se ter canais de escuta para que todas as partes interessadas, sejam
diretas ou indiretas, possam opinar e esclarecer dúvidas sobre os variados
SUMÁRIO

388 Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, no 17, Ano 2021

aspectos que envolvem o desenvolvimento de uma nova tecnologias, como o caso


das nanotecnologias (ECHA, 2020).

A partir desse “ambiente regulatório” se projetou o framework, com um


fluxo de elementos estruturantes e regulatórios para se desenvolver o referido
ambiente, sem a necessidade de se depender da atuação direta do Poder
Legislativo, mas com a participação indireta do Estado, por meio de fiscalização
e controle, exigindo, por exemplo, o respeito aos direitos humanos:

Figura 3: Framework projetado em um ambiente regulatório

Knowledge published in the


referred databases should
be adequate to propose
regulatory structures, such
as those of the EU (Table
1), in this way
acknowledging concerns
about the risks of
regulatory authorities.

The starting point


of the Framework Knowledge published in the
referred databases is still
insufficient for a broader
understanding of the risks of
nanoparticles present in
nanofoods or medical
devices.

Knowledge is still sparse


and vague due to few
EU Regulations;
studies published in the few
US Regulations;
research sources found in
OECD Rules and Regulations
databases. Furthermore,
these studies report
contradictory findings.
Equivalence between NanoAction
Principles and the Principles of
Brazilian Law (Table 1)

Legal principles presented in the


documents (Table 1)

Guidelines for the specific framework – nanofoods


and/or medical products – taking into consideration what
is already known about risks, based on the literature
made available in databases such as the Portal de
Periódicos da CAPES, Web of Science and Google
Scholar

Fonte: Adaptado pelo autor a partir de HARTMANN et al, 2017


e MOERMOND et al, 2016.

Esse framework incorporou uma figura, onde se pode verificar a


interdependência de três fatores para a construção da regulação: quanto maior for
a relevância do tema, dos riscos, por exemplo, alinhado com um bom nível de
SUMÁRIO

Wilson Engelmann
CAPÍTULO 19 389
confiança nas pesquisas já desenvolvidas sobre a nanopartícula, maior será a
probabilidade de se acertar na estruturação regulatória. Se observa a importância
das pesquisas e publicações inseridas em bases de dados acreditadas
cientificamente, como o Portal de Periódicos da CAPES, a Web of Science e o
Google Acadêmico, que também foram as bases de dados utilizadas para grande
parte da revisão da literatura desenvolvida no projeto de pesquisa que se está
fazendo este relatório final. Portanto, a importância do framework acima
apresentado se encontra na caminhada para uma regulação mais precisa.
Portanto, aqui se destaca um ponto central para a regulação, inclusive a
autorregulatória: se deverá ter um bom nível de confiabilidade nas investigações
científicas, publicadas em fontes sérias, a fim de se ter evidências científicas para
suportar as decisões regulatórias. Enquanto não se tiver um bom nível de
“relevância” e “confiabilidade” nos resultados científicos, o caminho estruturado
no framework se mostra uma alternativa normativa adequada e suficiente para
orientar o desenvolvimento dos nano produtos na indústria, a sua
comercialização e o consumo, além do descarte das sobras e dos resíduos que são
gerados ao longo do ciclo de vida. Portanto, essa a contribuição final deste projeto
de pesquisa, que se oferece para toda a sociedade, procurou contribuir com esse
momento de esclarecimento e desenvolvimento do cenário nanotecnológico,
servindo de um instrumento válido para se ter uma conjunção de elementos
normativos dispersos em variadas fontes.

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50 STARTUPS QUE MUDAM O BRASIL. Revista Exame, edição 1226, ano 55, n. 2,
fevereiro de 2021.
ARTE-FINAL E DIAGRAMAÇÃO:

Novo Hamburgo - RS - E-mail: imagine@arklom.com


www.arklom.com
O Anuário do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Unisinos, Constituição, Sistemas Sociais
e Hermenêutica, chega a sua décima sétima edição,
reafirmando o propósito de apresentar à comunidade
acadêmica brasileira a produção científica de suas
linhas de pesquisa e de fomentar reflexões e
práticas jurídicas inovadoras e afinadas com as
transformações e problemas sociais para os quais o
Direito precisa encontrar respostas justas e
adequadas, marcando sua tradição de excelência na
pesquisa.

O trabalho que aqui se apresenta se insere em


uma trajetória marcada pelo esforço de um grupo de
professores que, no ano de 1997, criou um Programa
de Pós-Graduação com a pretensão de se tornar um
polo irradiador de práticas e pensadores inovadores
na área do Direito, abrigados em uma Universidade
de forte orientação humanista.

Passados 24 anos, esse Programa consolidou-se


com a contribuição de inúmeros outros
pesquisadores que se somaram a essa iniciativa e
que, juntos, vêm produzindo trabalhos de altíssima
qualidade teórica e de repercussão nacional e
internacional, refletido na consolidação de sua nota
6 nas duas últimas avaliações da CAPES.

CONSTITUIÇÃO,
SISTEMAS SOCIAIS
E HERMENÊUTICA

ANUÁRIO DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM
DIREITO DA UNISINOS

MESTRADO E DOUTORADO - N.17

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