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Relatório RIO:

violência policial e insegurança pública


Relatório RIO:
violência policial e insegurança pública

Rio de Janeiro, Outubro de 2004


Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Organização: Diogo Azevedo Lyra, Marcelo Freixo, Marie-Eve Sylvestre e Renata Verônica Côrtes de Lira

Edição e Revisão: Andressa Caldas e Sandra Carvalho

Equipe de Pesquisa: Diogo Azevedo Lyra, Carlos Eduardo Gaio, Fannie Lafontaine, Juliana Neves Barros,
Lincoln Ellis, Mahine Dorea, Marcelo Freixo, Marie-Eve Sylvestre, Renata Verônica Côrtes de Lira, Susanne
Pack, Autumn François e Jaclyn Shull

Tradução: Lincoln Ellis, Fannie Lafontaine, Autumn François, Jaclyn Shull, Lindsay Lang, Alcinoo Giandinoto,
Julia Figueira-McDonough, Kathleen McArthur, James Ahlers e Chrissy Monta

Revisão da tradução: Carlos Eduardo Gaio e Emily Schaffer

Capa: Fotos Carlos Moraes, cedidas pelo Jornal O Dia, Rio de Janeiro

Projeto Gráfico: Sandra Luiz Alves

Diagramação: Cláudio Gonzalez

Fotolito e Impressão: Raiz

Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)


R321
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública / organi-
zação: Diogo Azevedo Lyra... [et al.] ; tradução: Lincoln Ellis...
[et al.] — Rio de Janeiro : Justiça Global, 2004.
74 p. ; 18x25cm.
Publicado com: RIO Report: police violence and public security

ISBN- 85-98414-03-4

1. Direitos humanos - Rio de Janeiro (Estado) 2. Segurança pública


- Rio de Janeiro (Estado) 3. Abuso de autoridade - Rio de Janeiro
(Estado) I. Lyra, Diogo de Azevedo. II. Ellis, Lincoln. III. Centro de
Justiça Global.

CDD 363.220981

Centro de Justiça Global


www.global.org.br
Av. N. Sra. de Copacabana, no 540/402
Copacabana
CEP 22020-000
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Agradecimentos
Este relatório é resultado do esforço conjunto da
equipe de pesquisa do Centro de Justiça Global.
Agradecemos a todos aqueles que forneceram
informações para este relatório e responderam a
nossas solicitações de entrevista, em especial às
organizações parceiras no Rio de Janeiro.

Em especial, agradecemos a Alessandro Molon,


Andréa Alves da Penha, Chico Alencar, Cleunice
Pitombo, Dalva Correia, Dílson Madeira, Elizabete
Maria de Souza, Elizabeth Medina Paulino,
Geraldo Prado, Ignácio Cano, Joaquim Domingos
de Almeida Neto, JoãoGustavo Vieira Velloso, João
Luiz Duboc Pinaud, José David, Julita Lemgruber,
Leandro Ríspoli, Márcia Batista de Melo, Márcia
Jacintho, Marcos Aurélio Marques de Freitas,
Marcos Diniz, Maria Fernanda Duarte Faustino,
Maria Lucia Karam, Mauricio Zanoide de Moraes,
Paulo Baía, Pedro Roberto da Silva, Roberto Kant
de Lima, Siley Muniz Paulino, Silvia Ramos, Tânia
Kolker.

Agradecemos de forma especial ao repórter


fotográfico Carlos Moraes e ao Jornal O Dia, que
gentilmente cederam as fotos que ilustram a capa
do relatório.

O Centro de Justiça Global também gostaria de


agradecer e expressar seu apreço à Fundação Ford
pelo apoio a essa publicação.
Colaboração e Fonte de Pesquisa
u Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – Universidade Cândido Mendes/RJ
u Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro
u Conselho da Comunidade da Comarca do Rio de Janeiro
u Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
u Corregedoria Geral Unificada das Polícias Civil, Militar e do Corpo de Bombeiros Militar
do Estado do Rio de Janeiro
u Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH)
u Fundação São Martinho
u Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ)
u Instituto de Segurança Pública da Secretaria de Segurança Pública/RJ
u Laboratório de Análise da Violência da UERJ
u Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas - NUFEP- Universidade Federal Fluminense
u Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Rio de Janeiro
Sumário

APRESENTAÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 9

CAPÍTULO I
Aspectos da violência no Rio de Janeiro:
entre vítimas e algozes ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 11

CAPÍTULO II
Casos emblemáticos de violência policial em 2004 ○ ○ ○ ○ ○ 37

CAPÍTULO III
Morosidade na investigação: uma amostra da
impunidade no Rio de Janeiro ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 61

RECOMENDAÇÕES ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 71
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

8
Apresentação

despeito das diferentes visões em Nesse sentido, a apropriação do dis-


relação ao entendimento sobre curso da violência no campo político deve
quem e como se produz a violência no vir acompanhada de amplos debates pú-
Rio de Janeiro, sua sistematicidade e blicos, na medida em que as decisões to-
banalização ensejam ao menos um senti- madas pelas autoridades desdobram seus
mento em comum, contido justamente no efeitos para todo o círculo social, poden-
repúdio a sua manifestação como rotina do atingir seus resultados ou, do contrá-
diária, perpetuadora da insegurança. rio, contribuir ainda mais para o agrava-
Porém, ainda que a faticidade da vio- mento de uma situação de caos.
lência seja percebida por todos como algo Esse relatório do Centro de Justiça
cuja necessidade de resolução é impera- Global busca contribuir para um debate
tiva, as diferentes perspectivas sobre sua mais profundo sobre a questão da violên-
manifestação possibilitam diferentes es- cia e da segurança pública no estado do
tratégias de ação, geradoras, por vezes, Rio de Janeiro. Dessa forma, partindo do
de efeitos diametralmente opostos. pressuposto de que é na reflexão sobre a
Dessa forma, podemos dizer que, na produção da violência que encontramos
maioria das vezes, é o entendimento so- o pilar central das estratégias e da legiti-
bre como a violência se produz o fator midade concedidas à sua supressão, op-
determinante tanto da implementação de tou-se por elaborar um relatório que pu-
políticas públicas específicas que visem desse oferecer uma reflexão à forma pela
superá-la, quanto da legitimação ou não qual as autoridades públicas fluminenses
destas políticas pelo corpo da sociedade têm definido suas estratégias na área da
civil, construídas a partir dos efeitos que segurança pública.
produzem cotidianamente. Assim, enten- Assim, a partir de um trabalho de pes-
der as causas e conseqüências da violên- quisa jurídica, acadêmica e jornalística –
cia implica também em entender as estra- além de entrevistas com as vítimas e visi-
tégias oficiais que são implementadas para tas in loco nas áreas atingidas pela violên-
tentar combatê-la, averbando ou contes- cia do Estado - o Centro de Justiça Global
tando-as de acordo com os resultados que obteve as fontes necessárias para a com-
venham a consolidar. posição deste Relatório, cujo objeto refe-

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Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

re-se justamente à crescente deterioração ampliar seu horizonte, atingindo também


dos direitos humanos no Rio de Janeiro, membros da classe média fluminense.
em especial daqueles que, oriundos das O terceiro capítulo do relatório, Moro-
camadas populares, constituem as princi- sidade na investigação: uma amostra da
pais vítimas da violência policial, con- impunidade no Rio de Janeiro, traz uma
duzida, muitas vezes, pela criminalização relação de casos acompanhados pelo Cen-
da pobreza neste estado. tro de Justiça Global durante os últimos
O primeiro capítulo do relatório, As- anos, revelando o descaso e cumplicidade
pectos da violência no Rio de Janeiro: das autoridades em relação aos agentes
entre vítimas e algozes, traça uma crítica públicos perpetradores da violência.
reflexiva sobre a escalada da violência do Ao final, nas Recomendações são
estado nos últimos 5 anos, centrada nas apresentadas uma série de sugestões re-
ações e omissões do poder público no que lativas às formas de contenção da violên-
tange à condução das políticas de segu- cia estatal, no intuito de tentar apontar no-
rança, seu sistema de justificativas e sua vos caminhos para a segurança pública
relação hierarquizada com as classes so- no Rio de Janeiro.
ciais. Esperamos sinceramente que este re-
No segundo capítulo, Casos emble- latório possa contribuir de alguma forma
máticos de violência policial em 2004, para ampliar o debate em torno da vio-
são relatadas algumas das violações de lência e, principalmente, ensejar mudan-
direitos humanos ocorridas no Rio de Ja- ças tanto objetivas quanto subjetivas a res-
neiro apenas neste ano. É importante fri- peito da concepção e condução da políti-
sar que tais violações, ainda que maciça- ca de segurança pública neste estado, que
mente dirigidas aos grupos marginaliza- deve ser dirigida a todos os cidadãos flu-
dos da sociedade —como os moradores minenses e estar fundada no respeito má-
de comunidades carentes—, começam a ximo aos direitos humanos.

TTT

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Capítulo I
Aspectos da violência no Rio de Janeiro:
entre vítimas e algozes

Atualizando o passado: o Rio de Janeiro autoritário

ano de 2004 marca o aniversário de peça figurativa a serviço dos interesses do


40 anos do golpe militar, responsá- pequeno grupo dominante formalmente
vel pelo mergulho do país em um regime chamado de “governo”.
ditatorial que teve duração de pouco mais O sufocamento da sociedade civil por
de vinte anos. Esse período foi caracteri- meio tanto da violência propriamente dita
zado pela arbitrariedade do poder executi- quanto da edição de documentos sem le-
1
vo, cujo primado da violência rapidamen- gitimidade alguma, como o AI-5 por
te se estabeleceu como norma de resolu- exemplo, também foi elemento decisivo
ção de conflitos. A justificativa residia na para a paulatina supressão das garantias
“apreensão” das autoridades militares quan- individuais no Brasil, abarcando não só
to à rápida disseminação de ideais comu- os grupos “alvo” como também todo o
nistas, que, segundo eles, punham em risco restante da população.
a direção e a segurança nacional do país. O que antes parecia ser apenas uma
Atribuíam, em certa medida, o endu- luta pela hegemonia do poder político e,
recimento de seu comportamento à ação assim sendo, restrita ao confronto entre
dos ditos grupos subversivos, causadores as forças do Estado e os grupos subversi-
de instabilidade política e de conflitos vos, expandiu-se para toda a sociedade,
que, segundo os militares, impunham um que se viu atingida, de forma contunden-
ritmo ainda mais drástico no uso “legíti- te e direta, pelos impulsos autoritários e
mo” da violência pelo Estado. restritivos dos militares.
As torturas e execuções empreendi- As marcas impressas na estruturação
das nesse período apresentavam viés da sociedade brasileira por esse período
investigativo e punitivo, a serviço da “se- foram determinantes para a construção de
gurança nacional”, mas também represen- uma falsa percepção da cidadania, inscri-
tavam uma demonstração, mais do que tas, a princípio, no comportamento institu-
simbólica, de que o primado do Estado cional, mas que se transpuseram fortemen-
de Direito no país não era mais que uma te para o senso comum da sociedade em

1
O AI-5, ou Ato Institucional n.º 5, foi um documento editado pelo governo militar, no auge do endurecimento do regime ditatorial,
quando então o poder do Estado centralizado, personificado pelo Executivo, foi ampliado à custa da restrição de uma série de garantias e
liberdades civis, como a censura e a proibição de associações, por exemplo.

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Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

geral, de modo que, não raro, manifesta- vis e do aumento de violações de direitos
ções de cunho social, ainda hoje, podem humanos por parte dos agentes públicos.
ser associadas a atos de desordem ou amea- Assim, é no intuito de demonstrar a
ça à segurança. arbitrariedade e o (des) controle pela força
Com o fim da ditadura e a promulga- impostos pela apropriação e confisco da
ção da Carta Constitucional de 1988, en- ordem democrática no estado do Rio de
fim delineou-se todo um conjunto de ins- Janeiro, que trataremos de estabelecer uma
tituições democráticas que, não obstante análise conjuntural dos principais fatores
sua profundidade jurídica, na prática ain- que têm contribuído para as constantes - e
da estavam muito afastadas do cotidiano cada vez mais inaceitáveis – violações dos
da maioria da população. direitos fundamentais e para a crise da se-
As relações entre o poder público e a gurança pública neste estado.
sociedade civil foram lentamente se res- No entanto, é bom ressaltar que a con-
tabelecendo e, ainda que permanentemen- tribuição do regime militar para a atual
te desiguais, muitos traços de melhora situação, ainda que bastante significativa,
puderam ser percebidos. Nesse sentido, não compreende a causa em si, e tão pou-
uma das conseqüências mais visíveis des- co a sustentação da degradante condição
sa nova correlação de poderes foi a emer- dos direitos humanos e da segurança pú-
gência dos movimentos sociais, em espe- blica no Rio de Janeiro. É preciso dizer
cial, dos movimentos de luta pelos direi- que por maiores que sejam as conexões
tos humanos, que enfocavam a defesa com os artifícios políticos e jurídicos usa-
direta do cidadão contra as arbitrarieda- dos durante a ditadura militar nas déca-
des do Estado. O estado do Rio de Janei- das de 60 e 70, o modelo atual obedece a
ro ocupa um dos lugares de destaque nes- princípios bastante contemporâneos de
sa história, tanto como palco de resistên- controle e regulação social, pautados, prin-
cia passada - na medida em que estabele- cipalmente, nas mudanças macro estru-
ceu forte efervescência contestatória em turais propiciadas pela introdução do
relação ao poder militar – quanto de arti- modelo econômico neoliberal, a partir da
2
culações presentes, exibindo um dos mais década de 80.
complexos e intricados eixos de luta pela A criminalização da pobreza é uma
proteção dos direitos humanos no Brasil. conseqüência direta da exclusão social
É, porém, no reviver nada romântico proveniente desta nova ótica neoliberal,
desse conflito entre um Estado autoritá- cujo paradoxo consiste justamente na pro-
rio e violento e a sociedade civil, que pre- dução – junto aos grandes lucros – de um
tendemos situar atualmente o Rio de Ja- número cada vez maior de miseráveis,
neiro, apontando o agravamento do pro- inaptos, e, portanto, condenados ao os-
cesso de deterioração das liberdades ci- tracismo ou eliminação do corpo social.

2
Esta realidade neoliberal que se introduz com força total no Brasil a partir da década de 80 se traduz numas maiores desigualdades socio-
econômicas internas do mundo com 1% dos fazendeiros possuindo 46% das terras férteis do país e com 36,3% das pessoas de 10 anos ou
mais de idade, ocupadas, com rendimento de trabalho igual ou inferior ao salário mínimo por oposição ao 1,4% dessas pessoas ganhando
mais de 20 salários mínimos. Dados do IBGE: http://www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/tabelas/trabalho_tabela02.htm

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Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

A segmentação social inimigo obedece a critérios geográficos e


no Rio de Janeiro sociais, que impõe às camadas mais mise-
ráveis da população a triste generalização
Um governo democrático deve pau- entre pobreza e crime.
tar-se no respeito universal de todos os Esta perigosa divisão resulta ainda
seus cidadãos, na medida em que, pelo mais danosa em terras fluminenses, na
sufrágio universal, são eles os detentores, medida em que as áreas marginalizadas
3
igualmente, da legitimidade do poder. encontram-se geograficamente misturadas
A despeito da dificuldade em se en- às zonas médias e ricas de todo o estado
quadrar qualquer país no modelo acima do Rio. Com isso, ao etiquetar o suposto
descrito, é possível estabelecer como mar- inimigo, dentro deste contexto, cria-se um
co conceitual, a democracia como um pro- forte clima de medo e desconfiança que,
cesso em que há a livre escolha dos diri- potencializados por uma intensa campa-
gentes e o tratamento paritário dos cida- nha de mídia, acabam por dominar os sen-
dãos. Assim, ainda que haja variação en- timentos de boa parte da sociedade.
tre os diversos modelos democráticos en- A crescente desigualdade social aca-
contrados e as diversas teorias a respeito ba por fornecer elementos suficientes para
da abrangência do conceito de democra- que muitos optem por atividades ilícitas
cia, podemos localizar, dentro de cada con- como meio de vida, sendo identificada
texto, a existência de um minimum demo- não como uma das causas da criminali-
crático. dade, mas como uma característica do
Nesse sentido, a questão da violência criminoso, levando à associação e gene-
4
no Rio de Janeiro e a reação das autorida- ralização entre pobreza e crime. Nas pa-
des públicas constitui-se em caso lavras de Zigmunt Bauman “a pobreza
emblemático de tratamento desigual entre não é mais um exército de reserva de mão
os cidadãos, pois suscita problemas gerais, de obra, tornou-se uma pobreza sem des-
cujo processo de resolução diferencia-se tino, precisando ser isolada, neutraliza-
5
de acordo com o cidadão afetado. Essa vio- da e destituída de poder”.
lência, por sinal, estaria tão enraizada no As teorias criminais, antes enraizadas
cotidiano fluminense que sua situação foi na plena concepção de que comportamen-
caracterizada como uma guerra civil, deri- tos desviantes deveriam ensejar uma
vada da existência de um “poder parale- reestruturação do indivíduo, de modo a
lo”, impositor do terror e da desordem. No torná-lo apto para a vida em sociedade,
entanto, nesta “guerra”, a identificação do mudaram seu enfoque, admitindo a parti-

3
A democracia, como forma de governo, finca suas raízes em Aristóteles, filósofo grego, que a definiu como “o governo de todos os cidadãos”.
Esta concepção alçou grande status no período medieval, quando se consagrou a máxima “todo poder emana do povo”. Atualmente, as
democracias encontradas ao redor do globo obedecem a uma combinação deste preceito com a divisão dos três poderes – executivo, legislativo
e judiciário - sugerida por Montesquieu, originando o entendimento de república, em latim, res publica, que quer dizer coisa pública.
4
A falta de oportunidade e mobilidade faz do jovem um exemplo claro desta afirmação. Suas necessidades materiais são geralmente frustradas pela
impossibilidade de emprego e qualificação, construindo um quadro descritivo em que, contextualizado com o forte apelo consumista dentro
desta faixa etária, o impele à busca de meios outros para satisfazer suas necessidades. O Rio de Janeiro apresenta o maior índice de homicídios
de jovens em todo o Brasil (118,9 por 100.000 habitantes), além de exibir também uma forte mudança em seu perfil carcerário, cada dia mais jovem.
Ver: Mapa da Violência IV – UNESCO, 2004. A base de dados deste último mapa da violência é de 2002. Ver também “Jovens Vítimas”. O
Globo, 8 de junho de 2004.
5
Bauman, Zigmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.

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Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

cular visão de que o criminoso escolhe seu Esta ótica vingativa responde não às
destino, opta pelo crime, naturalizando-o necessidades do corpo social em si, mas
e redefinindo as respostas à esse com- dizem respeito à dissimulação do poder
portamento. público ao não assumir sua incapacidade
Ocorre então, em um primeiro momen- de modificar a situação a curto prazo. As-
to, a aceitação do criminoso como um sim, a profusão nos rádios, jornais e tele-
membro qualquer da sociedade, apto às visão da exploração sensacionalista da vi-
escolhas e soluções levadas por qualquer olência, quase sempre em consonância
cidadão. Em um segundo momento, como com o já citado preceito do “entender me-
que adentrando um portal, o criminoso tor- nos e punir mais”, dirige o corpo social a
na-se alguém apoiado no crime pela ga- um falso clamor por “justiça”, que é habi-
6
nância, vingança ou revolta. Com isso, este lidosa e demagogicamente manipulado
viés optativo transfere toda a culpa ao de- pelo Estado na perpetração da violência,
linqüente, que passa a ser um inimigo do travestida como “resposta” à criminalidade
corpo social, sujeito, portanto, ao tratamento - mas que diz respeito, em última instân-
dispensado aos inimigos: a eliminação. cia, ao etiquetamento penal de suas cama-
Assim, ante o estímulo de se “enten- das mais miseráveis.
der menos e punir mais”, a cidade situa Além disso, em um estado como o Rio
sua esfera pública naqueles que não opta- de Janeiro, onde a miséria se apresenta
ram pelo crime, que se constituem, por- geograficamente distribuída, mesmo nos
tanto, nas verdadeiras vítimas. No entan- bairros nobres, a tensão propiciada por
to, deve-se ressaltar que não só a ativida- essa situação serve de pretensa justificati-
de criminosa funciona como parâmetro va para um maior controle social, desme-
nesse contexto, mas, principalmente, a dido justamente pela averbação tácita que
“potencialidade” para o crime. Com isso, a sociedade, geralmente apavorada, con-
a identidade estabelecida entre pobreza e cede às ações que culminam em violência
criminalidade funciona de modo a incluir por parte dos agentes de Estado.
as camadas miseráveis da população no Porém, seria um olhar reducionista
rol de não portadores de direitos - a des- aquele que se propusesse avaliar as condi-
peito de serem estas populações as que mais ções de agravamento da violência estatal
sofrem os efeitos da violência. como se estivesse restrito a uma resposta
Assim, as violações aos direitos huma- conjugada no crime e mídia. De fato, tan-
nos ocorridas nestas comunidades respon- to a exclusão social – e o agravamento da
dem à apreensão da pobreza como peri- criminalidade – quanto o sensacionalismo
go, motivo pelo qual tanto os criminosos midiático constituem pilares dessa situação,
quanto os moradores destas localidades são mas esta não seria possível sem um cuida-
encarados como iguais. A oposição entre doso “jogo de xadrez” empreendido pelo
cidadão e criminoso passa a ser sutilmen- poder público, de modo a subsumir paula-
te entendida como a oposição entre cida- tinamente a participação da sociedade ci-
dão e favelado, constituindo assim os dois vil no Rio de Janeiro, além de ridicularizar
lados da “guerra”. e desacreditar suas demandas.

6
Garland, David: “As Contradições da Sociedade Punitiva”, Revista de Sociologia e Política, No. 13, Novembro de 1999, p. 59.

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Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

É nesse sentido que a situação de vio- (PT) de Benedita da Silva chegou ao po-
lações de direitos humanos reinante no Rio der com a promessa de “reabilitar” a po-
de Janeiro não pode ser avaliada somen- lícia, contando para tanto com Luiz Eduar-
te tendo em vista o incremento da crimi- do Soares, sociólogo especialista em vio-
nalidade e o tratamento dispensado a esse lência, trabalhando junto à pasta da Se-
aumento pela mídia. Deve-se levar em cretaria Estadual de Segurança Pública,
8
consideração, principalmente, as ações como Coordenador.
promovidas pelo aparato do Estado, no A então chamada “banda podre” da
intuito de minar a luta pelo respeito à ci- polícia deveria ser suprimida, através de
dadania e equanimidade no trato social. uma série de medidas, que incluíam o ri-
Assim, além de uma política objetivamen- gor nas investigações, o combate aos ca-
te mais violenta, outras ações mais sutis sos de corporativismo, a resposta imedia-
das autoridades estaduais foram essenci- ta das autoridades quando da ocorrência
ais para possibilitar um crescente frenesi de uma violação, o estudo de mecanis-
9
de execuções, torturas, desaparecimentos, mos de controle externo, entre outras.
detenções ilegais e confissões forçadas, Como resultado direto deste início de
sem abrir espaço para maiores cobranças reformulação, o balanço do primeiro ano
da sociedade civil. foi a redução em 40% do número de civis
mortos pela polícia, bem como a redução
Uma pequena trajetória do número de policiais mortos, além de
da violência estatal uma apreensão record de armas em po-
10
der dos criminosos: 9 mil.
Ainda vivendo as conseqüências de um
período em que se recompensava cada 2000
policial com um incremento salarial que A chegada do novo ano, como qual-
variava de 50 a 150 % de seu salário -sem- quer marco simbólico, trazia em seu bojo
pre que fosse feita uma vítima letal - as a esperança de mudanças radicais no coti-
cobranças por uma nova política de segu- diano violento do Rio de Janeiro. Pela pri-
rança, bem como por uma nova polícia, meira vez em muito tempo havia-se cons-
foram as principais vedetes da campanha tatado decréscimo no número de mortos
7
eleitoral de 1998 no Rio de Janeiro. em razão da ação policial, bem como es-
Uma composição entre o Partido De- forços nítidos de combate à corrupção den-
mocrático Trabalhista (PDT) de Anthony tro da corporação policial, como observa-
11
Garotinho e o Partido dos Trabalhadores dos nos índices do ano anterior.

7
Soares, Luiz Eduardo. Meu Casaco de General. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
8
A importância da questão da violência na campanha eleitoral para o governo do estado do Rio de Janeiro fica evidente com o lançamento
do livro Violência e Criminalidade no Estado do Rio de Janeiro, publicação “conjunta” de Garotinho e Luiz Eduardo Soares – além de
outros especialistas em criminalidade que, posteriormente, ocuparam pastas na área de segurança. Garotinho, Anthony: Violência e
Criminalidade no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Hama Editora, 1998.
9
Idem.
10
http://www.luizeduardosoares.com.br/docs/sergio_adorno_entrevista_les.doc, Sérgio Adorno entrevista Luiz Eduardo Soares.
11
Como, por exemplo, a redução em 40% do número de civis mortos pela polícia, bem como a redução do número de policiais mortos, além de
uma apreensão record de 9 mil armas em poder dos criminosos. http://www.luizeduardosoares.com.br/docs/
sergio_adorno_entrevista_les.doc, Sérgio Adorno entrevista Luiz Eduardo Soares.

15
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Porém, com a exoneração de Luiz trangulado por policiais militares dentro


16
Eduardo Soares da Secretaria de Seguran- da viatura , encontrou finalmente o des-
ça Pública, o que se observou foi o retor- tino que lhe era reservado, e tal qual ocor-
no das velhas políticas de enfrentamento rido com seu mito fundador – a chacina –
impostas por seu sucessor, nas quais ob- morreu sem que os assassinos tivessem
teve-se como resultado um número mui- que pagar pelo crime que cometeram.
to maior de mortos em intervenções poli-
12
ciais: 427. Neste ano, foram mortos 106 2001
policiais. Em menos de dois anos, a população
O ano 2000 também foi o palco de fluminense viu o número de mortos em
uma grande tragédia, reflexo incontido do intervenções policiais praticamente dobrar
desprezo e despreparo do Estado: o se- (de 289 civis mortos em 1999, o número
qüestro do ônibus 174, com a morte de mortos aumentou para 592 em 2001)
subsequente da refém, Geísa, e a execu- fato que, segundo a própria ótica punitiva
13
ção de seu algoz, Sandro Nascimento. e repressora desenhada ao longo desses
Não podemos nos furtar a duas con- mesmos dois anos, mereceu ser premiado:
siderações: a primeira, referente ao fato o então Secretário de Segurança Pública
17
propriamente dito, revela a total incapa- do Rio, Cel. Josias Quintal , recebe a
cidade policial em lidar com situações on- “Medalha Pedro Ernesto”, prêmio maior
18
de se exige mais que a mera truculência. concedido pela cidade do Rio de Janeiro.
14
Sem tática ou equipamento , sem coman- De fato, as mudanças de perspectivas
do e responsabilidade, a derradeira ação no governo estadual do Rio de Janeiro
policial resultou em mais crimes que o que puderam exibir suas marcas de forma bas-
tencionava evitar. Por outro lado, o histó- tante contundente, cujo resultado pode ser
rico de Sandro, sobrevivente da Chacina melhor transcrito numérica que qualitati-
15
da Candelária , revela a responsabilida- vamente: nada mais que 592 pessoas
de do Estado na produção dos crimino- mortas pela polícia, contra 91 policiais
19
sos que propagam combater. O vilão, es- mortos durante este ano.

12
Contra 289 homicídios perpetrados por policiais em 1999. Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, Instituto
de Segurança Pública (ISP). Dados disponíveis em : www.ssp.rj.gov.br.
13
Relatório Execuções Sumárias no Brasil – 1997/2003, p. 36, do Centro de Justiça Global; Ver também neste relatório, no capítulo
“Morosidade na investigação: uma mostra da impunidade no Rio de Janeiro”, um resumo sobre o referido caso.
14
Os inúmeros vídeos, realizados durante o “espetáculo”, mostram policiais se comunicando oralmente e também através de sinais. A falta
de rádio transmissores, equipamento básico para situações de risco, denotam a precariedade com que as forças policiais têm de trabalhar,
pondo em risco não só suas próprias vidas, mas também as daqueles que deveriam proteger.
15
Massacre executado pela Policia Militar do Rio de Janeiro, que abriu fogo contra um grupo de mais de 50 crianças de rua que dormiam ao
relento, perto da Igreja de Candelária no centro do Rio, deixando sete meninos e um jovem adulto mortos na manhã do dia 23 de julho de 1993.
16
Ver detalhes da absolvição no Relatório sobre Execuções Sumárias no Brasil: 1997-2003, do Centro de Justiça Global.
17
De acordo com o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Josias Quintal foi membro do DOI-CODI - antigo órgão de investigação e
repressão da ditadura militar.
18
Quem lhe homenageia é o então vereador Jerônimo Guimarães Filho, do PMDB, policial civil que respondia a uma sindicância por
envolvimento em um grupo de extermínio da Zona Oeste do Rio de Janeiro Denúncia veiculada pelo Grupo Tortura Nunca Mais em 01/03/03.
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/Noticias.asp?Codigo=75
19
Lemgruber, Julita. “Violência, omissão e insegurança pública: o pão nosso de cada dia”. Fonte: www.cesec.ucam.edu.br/publicacoes/zip/
Julita

16
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

2002 Neste mesmo ano, Carlos Minc, pre-


Sem dúvidas um dos grandes marcos sidente da Comissão Contra a Impunida-
deste ano deu-se em virtude da execução de da Assembléia Legislativa do Estado
do jornalista Tim Lopes, após intensa tor- do Rio de Janeiro (ALERJ), recebia uma
tura imposta por traficantes supostamente fita cassete na qual um oficial da Polícia
ligados ao bando de Elias Maluco – o jor- Militar ensinava seus alunos a transfor-
nalista foi capturado quando realizava mar uma “morte acidental” em “auto de
21
uma reportagem a respeito da movimenta- resistência”.
ção do tráfico de drogas e exploração se- Apesar de nenhuma investigação sé-
xual em bailes dentro da favela. Este fato ria das denúncias ter sido empreendida,
ensejou uma verdadeira caçada aos mem- não seria exagero afirmar que são omis-
20
bros do bando , que um a um foram apa- sões desse tipo que levaram o ano de 2002
recendo mortos em circunstâncias bastan- ao número inédito de 900 mortes durante
te duvidosas – o que acaba por expressar operações policiais. Também neste ano
o caráter de eliminação contido na ação verificou-se um acréscimo no número de
policial. policiais mortos, que atingiu a marca de
22
O Judiciário estadual, pressionado 170.
pela opinião pública e pelo ano eleitoral,
no intuito de prender o traficante, expe- 2003
diu um “mandado de busca e apreensão Este foi um ano bastante emblemático
itinerante ou genérico” contra a comuni- no que diz respeito à violência policial,
dade em que Elias vivia. Conforme será pois além de atingir uma marca de quase
analisado posteriormente, este instrumen- 100 civis mortos em ações policiais por
to, a despeito de sua ilegalidade, tornou- mês - como veremos mais a frente - pu-
se de extrema popularidade nas ações demos constatar os seguintes fatos:
policiais subsequentes, onde a necessida- n 10 de janeiro de 2003 - operação
de legal do mandado – pela lei, individu- policial nas favelas do Rebu e Coréia, em
al e específico – foi arbitrariamente su- Senador Camará, contando para tanto com
primida em nome de critérios preconcei- cerca de 250 policiais civis e militares. O
tuosos que tratavam os moradores das saldo da operação foi de 14 mortos, sem
favelas todos como suspeitos. É preciso que o fato tenha obtido maior destaque na
23
informar que, à época, o governo do Es- mídia ou na opinião pública.
tado do Rio de Janeiro encontrava-se sob n 17 de abril de 2003 - Uma nova
a administração de Benedita da Silva, do chacina, dessa vez de quatro trabalha-
Partido dos Trabalhadores. dores assassinados em uma tocaia na co-

20
Tim Lopes era jornalista da Rede Globo e foi assassinado em 02 de junho de 2002 por traficantes, quando realizava uma reportagem
investigativa no Complexo do Alemão, favela do Rio de Janeiro. Direitos Humanos no Brasil 2002, Relatório Anual do Centro de Justiça
Global, p.54.
21
Escola de Oficiais da PM estaria ensinando a praticar crimes. GloboNews.com, 12 de março de 2002.
22
Lemgruber, Julita. “Violência, omissão e insegurança pública: o pão nosso de cada dia”. Fonte: www.cesec.ucam.edu.br/publicacoes/zip/
Julita
23
Extra, 30/01/03.

17
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

munidade do Borel chama a atenção da to em moradores da favela Cidade de


sociedade civil após uma série de denún- Deus, no local que ficou conhecido pos-
28
cias, sem, no entanto, punição dos res- teriormente como “muro da vergonha”.
24
ponsáveis até hoje. O ano de 2003 foi também o ano desta
n 04 de setembro de 2003 - Um co- declaração do então Secretário de Segu-
merciante chinês é levado à carceragem rança Pública Josias Quintal: “nosso bloco
da Polícia Federal – pois tentava embar- está na rua e, se tiver que ter conflito ar-
car para os Estados Unidos sem decla- mado, que tenha. Se alguém tiver que
rar os dólares que trazia consigo. Foi tor- morrer por isso, que morra. Nós vamos
25 29
turado até a morte. partir pra dentro”. A declaração veio por
n 05 de novembro de 2003 - Dupla conta da implementação da “Operação Rio
exoneração do Corregedor da Polícia Seguro” e parece ter surtido efeito:
Unificada e Secretário Estadual de Direi- Anthony Garotinho, sucessor de Josias
tos Humanos, João Luís Duboc Pinaud, Quintal na Secretaria de Segurança Públi-
que procurava levar as investigações so- ca, comemorava em todos os jornais a
26
bre a tortura no caso Chang ao limite. morte de mais de 100 pessoas (supostos
n 05 de novembro de 2003 - A Secre- “bandidos”) em menos de 15 dias no car-
30
taria Estadual de Direitos Humanos pas- go. Este ano registrou um número de
sa às mãos de um coronel da Polícia Mi- 1.195 civis mortos em decorrência da ação
27 31
litar. policial, contra 45 policiais.
n 11 de maio de 2003 - O novo Se-
32
cretário Estadual de Segurança Pública, 2004
Anthony Garotinho, nomeia o tenente- O presente ano, sortido de violações,
coronel Álvaro Rodrigues Garcia para o ficou marcado, principalmente, pela comu-
comando do 22º Batalhão da Polícia Mi- nhão da violência junto às camadas soci-
litar, em Benfica. Vale lembrar que Álva- ais antes “alheias” a seus efeitos. Na ver-
ro, em 1997 – quando ainda era major – dade, o que anteriormente encontrava-se
foi flagrado por um cinegrafista amador submerso no oceano invisível e miserável
comandando uma sessão de espancamen- das comunidades carentes, das favelas e

24
O Globo, 09/05/03.
25
O chinês Chan Kim Chang foi preso por policiais federais no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, quando tentava embarcar para os
Estados Unidos sem declarar os dólares que levava. Por conta disso, foi levado à carceragem da Polícia Federal no presídio Ary Franco,
onde sofreu severos espancamentos que resultaram na sua morte. A versão oficial atribuía a morte ao próprio Chan, que, segundo eles, teria
se auto lesionado.
26
“Secretário do Rio acusa ex-colega por suborno”. O Estado de S. Paulo, caderno Cidades, 06/11/2003.
27
“Briga entre secretários no Rio vai para a Justiça”. O Estado de S. Paulo, caderno Cidades, 06/11/2003.
28
“Tortura no Brasil: Implementação das Recomendações do Relator da ONU”, CEJIL, Rio de Janeiro, 2004; “Policiais morrem, favela é
ocupada e Rio troca comandantes da PM”. Guia Expresso O Portal Vale!, 11/05/2003.
29
O Globo, 27/02/03.
30
O Globo, 11/05/03.
31
Direitos Humanos no Brasil 2003: Relatório Anual do Centro de Justiça Global. Rio de Janeiro: Justiça Global, 2004.
32
O ano de 2004 será analisado com maior relevo no capítulo seguinte, onde alguns casos emblemáticos de violações serão descritos. Porém, a
despeito desta análise mais acurada, procuraremos aqui tratar os acontecimentos do presente ano, englobando não só as violações, mas também
alguns aspectos importantes contidos nas mesmas e também nas diligências do governo do Estado no sentido de contê-las e/ou ampliá-las.

18
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

subúrbios, assim como seus “alvos” - pro- Em Cabo Frio, cidade litorânea do Rio
venientes destes mesmos espaços – veio a de Janeiro, Rômulo Batista de Melo, um
transbordar para os bairros nobres, provo- jovem universitário de 23 anos, de status
cando um verdadeiro pânico no seio das social relativamente alto, foi vítima fatal
classes média e alta do Rio de Janeiro. da brutalidade policial. Torturado duran-
Um exemplo já emblemático, dado te dias consecutivos, enquanto sofria de
seus desdobramentos, foi o ocorrido na co- sérios problemas mentais, veio a falecer
munidade da Rocinha. O terror empreen- durante sua remoção para um hospital,
dido por traficantes e policiais nestas áre- sofrendo os familiares as mesmas desven-
as, cujos resultados encontravam-se sem- turas relegadas aos moradores de favelas
pre circunscritos ao ambiente favelizado, que, antes de qualquer averiguação, são
literalmente desceu o morro para surtir taxados indiscriminadamente pelo poder
seus efeitos no “asfalto”. A reação oficial, público como “traficantes” - rotineira-
no lugar de procurar levar algum tipo de mente assassinados nas incursões polici-
34
proteção e dignidade aos moradores da- ais. O mesmo veio a ocorrer com Cristia-
quela comunidade, resultou em uma das no Ríspoli Barros, outro jovem universi-
mais vergonhosas propostas de contenção: tário, assassinado por policiais militares.
a construção de um muro cercando toda A justificativa da autoridade policial resi-
33
favela. Ainda que não tenha saído vitori- dia na alegação de resistência e posse de
osa, tal proposta cria um novo paradigma uma arma pela vítima – ou seja, a mesma
na condução da segurança pública pelo alegação utilizada quando da morte de um
35
Estado, pois este opta pelo isolamento e cidadão morador de alguma favela.
exclusão de uma área problemática em Na macabra dança da repressão e im-
detrimento de sua obrigação em solucio- punidade comandadas pelo Estado, cons-
nar o problema. tatou-se logo no início deste ano a reinte-
Outro exemplo claro consiste no perfil gração ao serviço de 65 policiais milita-
emergente das novas vítimas, antes exclu- res afastados por crimes como tortura, ex-
sivas dos morros cariocas e agora também torsão, homicídio, entre outros. Cabe res-
de outras camadas sociais. A sociedade, saltar que entre os afastados havia polici-
que por muito tempo relegou ao ostracis- ais com participação em crimes altamen-
mo as incontáveis vítimas do abuso policial te notórios, como a chacina de Vigário
e do descaso estatal, naturalizando suas tra- Geral, onde 21 trabalhadores foram exe-
gédias a partir da desumanização das mes- cutados por policiais que ainda gozam de
36
mas, nesse momento vê-se refém da vio- liberdade.
lência que alimentou com sua indiferença. Finalmente, mesmo sem a participa-

33
O Globo, 12/04/04.
34
Depoimento prestado aos pesquisadores no escritório do Centro de Justiça Global em 06/07/04 pela mãe de Rômulo, Márcia Batista de
Melo.
35
Ver um resumo das execuções de Rômulo Batista de Melo e de Cristiano Ríspoli Barros, no capitulo deste relatório referente aos casos
emblemáticos ocorridos no ano de 2004.
36
De acordo com a matéria publicada pelo jornal “O Globo” nos dias 12 e 13 de janeiro de 2004 e os boletins emitidos pela própria polícia
militar, foram reintegrados 65 militares policiais à corporação, a maioria deles afastada e respondendo judicialmente por crimes como
homicídio, tortura, roubo, lesões corporais, estelionato, entre outros.

19
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

ção direta das autoridades, tragédias como oficiais a respeito do ocorrido causou
o massacre de Benfica – onde 30 inter- grande surpresa: Astério Pereira, Secretá-
nos e um agente penitenciário vieram a rio de Assuntos Penitenciários, declarou
morrer durante uma rebelião – também que (os jornalistas) deveriam “passar por
se enquadram neste cenário de descaso e um episódio como aquele de novo do Tim
mesmo de contribuição à violência. Me- Lopes” - repórter executado em junho de
ses antes do ocorrido, diversas organiza- 2002 por traficantes no Rio de Janeiro –
ções de direitos humanos, além do Con- pois, em seu entendimento, a atuação de
selho da Comunidade – órgão instituído alguns deles contribuiriam para o fortale-
pela Lei de Execuções Penais para cimento das facções criminosas no esta-
monitoramento do sistema penitenciário do, em uma verdadeira apologia ao cri-
39
– alertaram que a mistura de facções cri- me.
minosas em um mesmo complexo peni- Também em 2004, pela primeira vez
tenciário ensejaria um verdadeiro banho na história da Comissão de Direitos Hu-
de sangue, sendo ignorados pelas autori- manos da ALERJ, ocorre uma troca arbi-
37
dades. A justificativa das autoridades trária de presidência, passando a direção
estatais residia no fato de que, misturan- da mesma – antes com o deputado esta-
do as ditas facções, minaria-se o poder dual Alessandro Molon, do Partido dos
das mesmas. Porém, o que dizer em rela- Trabalhadores – para a base governista,
ção a tal afirmação se é o próprio Estado em uma clara demonstração de força da
quem faz a separação dos presos em vir- cúpula executiva. A troca veio a ser efe-
38
tude da facção a que pertencem ? tuada em meio às crescentes pressões
O triste evento tem caminhado sem a exercidas por esta Comissão em relação
apuração das responsabilidades, sem a à apuração de várias denúncias de vio-
punição dos culpados e, após cobranças lência policial, em especial, a tortura se-
da sociedade civil organizada, em Audi- guida de morte do comerciante chinês
ência Pública realizada na Assembléia Chan Kim Chang - perpetrada por agen-
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro tes penitenciários do presídio Ary Fran-
40
(ALERJ), uma das poucas declarações co.

TTT

37
Declarações obtidas com o presidente do Conselho da Comunidade da Comarca do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo. Marcelo conta que o
alerta foi feito no dia 06/05/04, em uma reunião no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Dela, participaram o presidente do
Tribunal de Justiça, Miguel Pachá e o juiz da Vara de Execuções Penais, Carlos Augusto Borges.
38
Mesmo aqueles que não pertencem à facção alguma, cujo crime nada tem a ver com o tráfico de drogas, quando ingressam em uma delegacia
ou no sistema penitenciário necessariamente são obrigados pelas próprias autoridades publicas a declararem sua suposta filiação à um ou
outro grupo criminoso, de modo a serem classificados e enviados para os presídios do respectivo grupo.
39
Para o Secretário, a ação da imprensa muitas vezes contribuiria de forma negativa para o agravamento da violência no Rio em razão da
“notoriedade” dada às facções criminosas por alguns jornais, declarando que “alguns jornais já estão adotando essa linha de não fazer
apologia de facções. E me parece que alguns estão precisando passar por um episódio como aquele de novo do Tim Lopes”. Associação
Brasileira de Imprensa, http://www.abi.org.br/primeirapagina.asp?id=680, 17/06/04.
40
“Mudança na Comissão de Direitos Humanos”. O Globo, 04/05/04.

20
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

A criminalização da Cabe aqui nossa primeira reflexão a


pobreza no Rio de Janeiro respeito do crescimento da violência co-
metida por agentes do estado, que está
A situação dos direitos humanos no Rio manifesta no discurso da mídia, bem
de Janeiro, assim como em todo o Brasil, como no das autoridades vigentes: o con-
tem sido motivo de grande preocupação ceito de guerra.
por parte de todos aqueles que compreen- Não causa surpresa para nenhum ci-
dem seu valor universal, sua importância dadão do Rio de Janeiro deparar-se com
como instrumento coletivo de fortalecimen- manchetes jornalísticas e mesmo discur-
to da sociedade civil frente ao Estado. Po- sos oficiais em que se caracteriza a atual
rém, ainda que se situe em uma luta de to- situação referente à criminalidade – e seu
dos, a questão não encontra eco universal, suposto combate – como uma situação de
muito, mais em virtude do que se entende “guerra”. Este termo, em sentido amplo,
42
por produção dos resultados, que pela fal- de acordo com o dicionário , significa
ta de solidariedade propriamente dita. No “luta armada entre nações ou partidos”,
que diz respeito à temática da segurança “combate, peleja, luta, conflito”.
pública, os “resultados”, se assim podemos Dessa forma, o sentimento incutido por
chamar, dizem respeito a uma vinculação detrás desta palavra contém uma oposição
passional da noção de letalidade policial necessária entre dois grupos, que lutam por
apresentada como eficiência na “guerra um território e/ou uma causa específica,
contra o crime”. motivo do combate em questão. A “guer-
Mas como se produz tal vínculo e, mais ra” no Rio de Janeiro não possui conteúdo
além, como torná-lo um fenômeno isola- diferente – ao menos no que tange à sua
do do restante da população? De que definição – e implica justamente em um
maneira uma escala crescente de homicí- enfrentamento armado que visa a destrui-
dios praticados por policiais pode ser ção do “inimigo”. O suposto “inimigo”, no
reproduzida e superada ano a ano sem caso, seriam os criminosos e “suspeitos”,
despertar maiores cobranças dentro da cuja violência atingiria drasticamente os
sociedade? “cidadãos honestos” e, por isso mesmo,
Antes de tentar levantar respostas, faz- ensejaria um rigoroso combate. Porém, ain-
se necessário recordar os dados a respei- da que tal ponto de vista fosse razoável
to dos “autos de resistência” - documen- inferir, como localizá-lo e vencê-lo?
to utilizado pela polícia para classificar as Precisamente é neste ponto que se
mortes ocorridas sob sua tutela – em pers- desenrola a retórica oficial a respeito da
pectiva comparada com o número de po- criminalidade, pois de acordo com a prá-
liciais assassinados, em serviço, no mes- tica das autoridades policiais, este inimi-
mo período: 1998 (397 x 99); 1999 (289 go interno residiria nas favelas, possuiria
x 92); 2000 (427 x 106); 2001 (592 x 91); cor e aparência definidas, assim como sua
41
2002 (900 x 170); 2003 (1.195 x 45). descartabilidade seria assegurada frente ao

41
Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Segurança Pública (ISP).
42
Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, 2ª edição, Ed. Nova Fronteira.

21
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

corpo social, especialmente no senso co- des negam-se a assumir sua impotência
mum das classes média e alta. A associa- na obtenção de resultados de curto pra-
43
ção entre pobreza e violência é a justifi- zo , adotando então um posicionamento
cativa máxima do extermínio legitimado pautado em discursos e ações que procu-
há anos na história urbana fluminense, e ram segmentar em dois pólos distintos,
que define quem são as vítimas e quem como numa guerra, aqueles a quem go-
44
são os algozes. vernam.
Ante o entendimento de “guerra”, Nessa situação de transtorno, em que
muda o comportamento esperado em re- qualquer modificação implica em investi-
lação à ação policial, pois esta, se presa mentos de longo prazo, sem retorno polí-
às suas atribuições legais, deveria antes tico imediato e com uma alta carga de co-
de tudo ter como objetivo a resolução/pre- brança, resta à maioria dos dirigentes um
venção dos crimes sempre em consonân- posicionamento pautado em um “populis-
cia com a proteção da vida. Nessa ótica, mo criminal” – no qual o “sentimento po-
uma ação que resulte em morte não é uma pular” se confunde com os instrumentos
ação satisfatória, pois o bem máximo – a institucionais de segurança pública. Cons-
vida – não teria sido protegido com su- ciente de sua incapacidade em responder
cesso. Na guerra, onde o caráter da ação de forma rápida e responsável às inevitá-
é militar, há um objetivo maior a ser atin- veis cobranças e pressões, a maioria dos
gido, e a perda de uma vida não constitui políticos capitaliza a dor particular das ví-
mais que uma baixa, resultado se não le- timas de violência adequando-as a discur-
gítimo, pelo menos aceitável da operação. sos que prometem “mais repressão”, “mais
A atividade policial, pautada em uma rigor” com os criminosos, “penas mais
ótica militarizada, de enfrentamento, cons- duras”, entre outras centenas de promes-
titui um problema generalizado das políci- sas do mesmo tipo.
as militares de todo o Brasil, em que os Passamos então à nossa segunda refle-
despojos de “guerra” – as armas, a morte xão a respeito do tema, que consiste justa-
do inimigo, o território – encontram-se mente na demonização do “outro”, cuja
muito acima, como supostos resultados, da construção implica em dois movimentos
proteção da vida. Esta aplicação, no en- distintos: o primeiro se atém às circunstân-
tanto, parece imperar e prevalecer dentro cias que o levaram a ser o “outro”. Nesse
do ponto de vista da segurança pública sentido, não é possível enquadrá-lo de an-
fluminense, operando de uma forma bas- temão em uma oposição. É preciso que o
tante disseminada no cotidiano dos des- potencial delinqüente ocupe um lugar em
favorecidos em todo estado. comum, no qual a vida criminosa não pos-
Diante do aumento da criminalidade sa ser justificada por causas outras que não
e da organização do crime, as autorida- a opção. A ganância, a vingança, vício ou

43
Garland, David. “As Contradições da Sociedade Punitiva”. Revista de Sociologia e Política, No. 13, Novembro de 1999, p. 59.
44
Nas palavras de Loïc Wacquant, sociólogo francês, pretende-se “remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos
Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do
Primeiro como do Segundo Mundo. Ele reafirma a onipotência do Leviatã no domínio restrito da manutenção da ordem pública –
simbolizada pela luta contra a delinqüência de rua – no momento em que este é incapaz de conter a decomposição do trabalho assalariado e
de refrear a hipermobilidade do capital, as quais, capturando-a como tenazes, desestabilizam a sociedade inteira”. Wacquant, Loïc: As
Prisões da Miséria, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001, p. 7.

22
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

rebeldia passam a explicar o crime, que migos e legitima as ações que visem
encarados sob este ponto de vista, criam “derrotá-lo”. Essa perigosa associação
uma falsa noção de afronta deliberada à impulsiona à vala comum da margina-
“vida civilizada” e “honesta”. lidade os moradores das comunidades
Em um segundo momento, o crimino- pobres, tornando-os alvos fáceis e justifi-
so deve ser entendido como um monstro, cáveis no tratamento desumano a que se
sem vínculos com a sociedade em questão vêem expostos todos os dias.
e apresentado como um perigo para a se- Cabe nesse momento uma terceira
gurança de todos aqueles que dela fazem consideração reflexiva a respeito do que
parte. Visto como uma ameaça – imagem entendemos por “criminalização da po-
cuidadosamente cultivada por certos veí- breza”, referente a um terceiro momento,
culos de comunicação e também em parte complementar à noção de “guerra” e de
dos discursos políticos – em um contexto “outro”: a “letalidade”.
de pânico, obtém-se em relação ao crimi- A letalidade como indicador de resul-
noso uma espécie de “carta branca soci- tados positivos não seria possível sem o
al”, um aval no qual se admite qualquer apoio da construção das noções de “guer-
ação que “detenha” o perigo iminente. ra” e do “outro”, pois estas implicam taci-
Como parte final deste novo arranjo tamente na destruição como forma de vi-
temos a inserção do problema do tráfico tória. E essa letalidade, a despeito de ser
de drogas, que além de estar associado à posta em prática, em última instância, pela
diversos outros tipos de crimes, também força policial, obedece necessariamente aos
traz embutido uma questão moral, que vem ditames e prerrogativas das políticas im-
a incendiar tanto os discursos quanto as postas pelo poder dirigente, ainda que este,
reações de boa parte da população. A fa- quando alvo de pressões sociais, classifi-
vela, como centro varejista, é imediatamen- que como individuais, esparsas e pontuais
te identificada com o tráfico e o crime or- as violações que por ventura extrapolem o
ganizado - que por sua vez se vale da total aceitável e/ou cheguem ao conhecimento
ausência do Estado nestas localidades para do público. A seguir, dois exemplos desta
assumir o controle e impor suas regras aos lógica, extraídos de jornais do Rio de Ja-
moradores, em sua grande maioria traba- neiro:
lhadores honestos. Acontece que, com tal “Com apenas um ano e meio de expe-
associação, o conceito de “criminoso” aca- riência na polícia, a inspetora Elisete Abreu
ba por dilatar-se, estendendo sua aplica- Santos, de 39 anos, lotada na 6ª DP (Cida-
ção à todos os integrantes das camadas de Nova), vai ser promovida por bravura.
desfavorecidas, constituindo uma verdadei- E não é para menos: na manhã do último
ra criminalização da pobreza, através de sábado, a policial enfrentou um grupo de
sua determinação geográfica. traficantes armados que fugiam da opera-
Dessa forma, ao estigmatizar a favela ção que estava sendo realizada em quatro
como centro de excelência do crime or- morros – São Carlos, da Mineira, Zinco e
ganizado, obtém-se um estereótipo tanto Querosene – em busca do traficante
humano quanto geográfico de periculo- Irapuan Davi Lopes, o Gangan. Dos cinco
sidade, que transposto para um clima de bandidos mortos durante a operação, qua-
guerra, enseja o enfrentamento dos ini- tro foram atingidos pelos tiros disparados

23
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

pela inspetora, que descarregou dois pen- fuzil, além de fazer vários disparos com
tes (carga de munição) de seu fuzil, além uma pistola” – sem contar os disparos
de fazer vários disparos com uma pistola. efetuados por outros policiais – é que
Sete bandidos foram presos e dois polici- houve algum tipo de preocupação com
ais ficaram levemente feridos”. Elisete es- os inocentes que por ali transitavam.
tava com outros policiais na Rua Itapiru, Em contraste, a notícia sobre Catiane
no Catumbi, quando viu o grupo de trafi- demonstra não o reconhecimento e recom-
cantes descendo a escadaria. A troca de ti- pensa da instituição em relação a um fun-
ros foi intensa. No final, os policiais co- cionário que cumpriu exemplarmente seu
memoraram o fato de nenhuma pessoa ino- dever – no caso, impedir o crime sem per-
45
cente ter sido ferida”. das de vida – mas sim o apoio e reconhe-
Vejamos agora a segunda notícia: cimento dos populares, bem como de seus
“Um ato de bravura bastou para que a colegas de trabalho. A ação de Catiane
tenente do 23º BPM (Leblon) Catiane Ma- deve ser analisada no contexto de uma ou-
rinho Ferreira, 25 anos, virasse celebrida- tra notícia de jornal, veiculada uma semana
de (...) quarta feira, quando Catiane, de- após o episódio que a tornou famosa.
sarmada, fez com que três bandidos se ren- Trata-se de uma reportagem realizada
dessem após assalto ao prédio número 177 logo após uma ação violenta do Batalhão
da Rua Desembargador Alfredo Russel, no de Operações Especiais (Bope) na comu-
Leblon, sem disparar um único tiro, dei- nidade da Rocinha:
xou de ser aspirante ao sucesso e saiu do “Inconformados com as últimas incur-
edifício aplaudida pelos moradores. On- sões do Batalhão de Operações Especiais
tem, entre telefonemas de parabéns e men- (Bope) na Rocinha, que classificam como
sagens por rádio de colegas de farda, violentas, líderes comunitários querem
Catiane provou ainda mais o gostinho da que as ações policiais lá sejam comanda-
fama. Bastou colocar o pé fora do bata- das pela tenente Catiane Marinho Ferreira,
lhão para ouvir: “aí Catiane, você é muito 25 anos. A oficial do 23º BPM (Leblon)
46
corajosa”, gritou o passageiro do ônibus”. ficou famosa ao prender três bandidos e
No primeiro caso – da policial que frustrar um assalto a residência no Leblon
matou quatro dos cinco traficantes – a no- sem disparar um só tiro, há uma semana”.
tícia já vem veiculada junto à informação Esta terceira reportagem sugere sutil-
sobre sua promoção por “bravura”. Há, mente a fragilidade das noções de “guer-
além disso, a comemoração dos policiais, ra”, da demonização do “outro” e da “leta-
que a posteriori, felicitam-se pelo fato de lidade”. Nela podemos observar o sentimen-
“nenhuma pessoa inocente ter sido ferida”. to reinante no seio destas comunidades, que
A noção de letalidade como resulta- ao contrário do que se supõe –oposição à
do positivo está manifestamente expres- lei e conivência com o crim – consiste jus-
sa no teor desta reportagem, tanto no que tamente na necessidade de um policiamen-
tange à promoção da oficial, quanto no to executado nos limites da lei, com respei-
fato de que somente após descarregar to e valor à vida. A polícia, em tese não
“dois pentes (carga de munição) de seu seria inimiga, mas sim a má polícia.

45
“De salto alto e boa de tiro”, O Globo, 22/06/04, RIO, p. 14.

24
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

Há ainda uma sugestão mais sutil, mas Além disso, ao atentar para as péssi-
de fácil percepção: na primeira reporta- mas condições que cercam a formação da
gem a inspetora Elisete, autora dos polícia - que incluem desde a falta de trei-
disparos, aparece em uma fotografia onde namento à falta de equipamento - fica cla-
procura-se impedir seu reconhecimento ro o descaso do poder público em relação
por meio de uma sombra. Somente sua à segurança do policial, que muitas vezes
silhueta é identificada, restando o anoni- acaba vitimado pela instabilidade de sua
mato em relação à sua pessoa – talvez por vida profissional.
questões de segurança. Na reportagem Ainda que partindo de um ponto de
sobre Catiane, esta aparece completamen- vista interpretativo, cremos que o contras-
te nítida aos olhos do leitor, de forma que te exibido nas duas ações qualificam a aná-
qualquer um pudesse identificá-la. Sua lise proposta, pois demonstram a verdadei-
vida não correria perigo. ra oposição contida na crescente violência
Esse contraste torna-se um ponto in- do Rio: de um lado o discurso oficial, que
teressante na medida em que toca na ques- se faz passar como a vontade geral e que
tão da violência perpetrada contra o poli- sugere a noção da “guerra”, da demoniza-
cial. Aqui é importante reafirmar que “ao ção do “outro” e da “letalidade” como vi-
aumento das soluções violentas, muitos tória e, de outro, o reconhecimento do que
bandidos responderam com mais violên- é um bom policiamento e uma boa políti-
cia. A desvalorização da vida humana, ca de segurança, pautada, acima de tudo,
implícita nessas idéias, contribuiu sem no respeito à vida e à integridade do cida-
dúvida alguma para essa espiral de vio- dão, desejo da maioria – ambas geradoras
lência que também atinge cada vez mais de conseqüências diametralmente opostas.
policiais – foram 160 os que morreram No entanto, no primeiro caso, houve o
assassinados apenas no ano passado reconhecimento e recompensa institucio-
47
(2003) no Estado do Rio de Janeiro”. nal, enquanto que no outro, o reconheci-
Além disso, mais que a reação violenta mento e satisfação popular não ensejaram
propriamente dita, cabe ressaltar o fato de nenhuma reação. Dessa forma, deve-se
que cerca de 70% desses policiais vieram questionar a respeito de quais estímulos a
a falecer fora do horário de serviço, na corporação policial recebe em sua ativida-
complementação salarial usual do segun- de e se este estímulo corresponde às ne-
48
do emprego – o bico. Ou seja, é o Esta- cessidades do corpo social, ou seja, é pre-
do duplamente culpado pela violência que ciso questionar se nossos policiais estão
também atinge o policial, seja em relação sendo estimulados ao enfrentamento e à
à sua remuneração insuficiente, seja em letalidade ou se esta é apenas circunstan-
função do estímulo à resolução violenta, cial frente à real situação de “guerra” pro-
cuja reação só a ele pode ser dirigida. posta pelas autoridades.

46
“Palmas para Catiane”, O Globo, 04/02/04.
47
Misse, Michel. Como desarmar a violência policial? Desarme: Notícias/Opinião. Rio de Janeiro, 04 de março de 2004. Disponível em

http://www.desarme.org/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=3139&tpl=printerview&sid=16
48
Lemgruber, Julita. “Violência, omissão e insegurança pública: o pão nosso de cada dia”. Fonte: www.cesec.ucam.edu.br/publicacoes/zip/
Julita

25
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

De fato, a letalidade da polícia flumi- principais funções dos órgãos de monito-


nense estaria sendo indiretamente incen- ramento são: a prevenção, a proteção di-
tivada por aqueles que as comandam e reta das vítimas, a documentação dos ca-
oferecidas à sociedade como sinônimo de sos e o diálogo com as autoridades na co-
eficiência. O Secretário de Segurança Pú- brança das soluções. Sendo assim, órgãos
blica do Rio de Janeiro, Antony Garoti- como a Secretaria Estadual de Direitos
nho, tem repetidas vezes declarado pu- Humanos, a Comissão de Direitos Huma-
blicamente que a polícia tem que ser enér- nos e Cidadania da Assembléia Legislativa,
gica no combate ao crime, que não pode o Conselho da Comunidade, o Ministério
49
ser “banana”. Público, a Defensoria Pública e inúmeras
outras formas de organização do poder
O cerceamento das público e da sociedade civil, são funda-
atribuições dos órgãos de mentais para monitorar as ações do gover-
fiscalização do Executivo no na área da segurança pública.
Neste quadro, a atual situação do Rio
A política de segurança pública no Rio de Janeiro também se agravou. Órgãos que
de Janeiro tem como principal caracterís- exercem o seu papel de monitoramento
tica a manutenção da ordem pública, com vêm sofrendo forte perseguição por parte
rígido controle social sobre as populações do poder executivo. Quanto maior o nú-
pobres da cidade. Sendo assim, por mui- mero de violações de direitos apuradas jun-
tas vezes, as conseqüências desta política to às populações pobres, mais implacável
resultam em violações de direitos huma- se torna a postura do governo do estado
nos cometidos pelos próprios agentes do diante dos órgãos fiscalizadores. Vejamos
Estado. A falta de transparência que per- alguns exemplos concretos.
meia as ações públicas na área de segu- No início do atual governo, em 2003,
rança e a ausência de órgãos de monitora- João Luiz Duboc Pinaud assumiu o car-
mento que atuem com independência e go de Secretário Estadual de Direitos Hu-
autonomia contribuem para o atual qua- manos, tendo sob seu controle a Correge-
dro de permanente receio e descrédito jun- doria Geral Unificada das Polícias Civil,
to às ações do governo no combate a vio- Militar e do Corpo de Bombeiros Militar
50
lência. Hoje, a polícia do Rio de Janeiro do Estado do Rio de Janeiro.
não transmite segurança e sim medo. Em 25 de agosto de 2003, nas depen-
Os órgãos de monitoramento do po- dências da unidade penal Ari Franco, o
51
der público devem efetuar visitas nas áre- chinês Chang Kim Chang foi cruelmen-
as de conflito, onde as denúncias de abu- te torturado por agentes do sistema peni-
sos e irregularidades possam ganhar visi- tenciário, vindo a falecer alguns dias de-
bilidade e provocar a resposta dos respon- pois, Pinaud foi contatado pelo Ministro
sáveis pelas ações governamentais. As Nilmário Miranda, Secretaria Especial de

49
“A polícia não vai fazer papel de banana”. O Globo. 24/04/2004
50
Entrevista concedida por João Luiz Duboc Pinaud, por telefone, ao Centro de Justiça Global em 5/10/2004.
51
Ofício JG/RJ n° 33/04 encaminhado pelo Centro de Justiça Global ao Relator da ONU sobre Tortura em setembro de 2003.

26
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

Direitos Humanos da Presidência da Re- legislativo da fiscalização do executivo, o


pública, no dia 30 de agosto e imediata- deputado atuou de forma destacada sobre
mente se dirigiu para o Hospital Souza os principais casos de violações de direi-
Aguiar, onde Chang se encontrava em es- tos humanos. No início de 2004, três ca-
tado gravíssimo. Ao verificar o quadro dra- sos ganharam grande visibilidade nesta
mático em que se encontrava a vítima e área. No dia 27 de janeiro de 2004, o estu-
tendo conhecimento que a versão defen- dante Rômulo Batista de Melo foi preso e
dida pelo governo, até aquele momento torturado nas dependências da 126a. De-
indicava auto-flagelo, Pinaud registrou legacia de Polícia, em Cabo Frio, posteri-
com sua máquina fotográfica todas as le- ormente vindo a falecer a caminho do Rio
54
sões sofridas e disponibilizou as fotos para de Janeiro. No dia 16 de fevereiro, 15
o Ministério Público, a fim que este pu- policiais militares torturaram barbaramen-
52
desse utiliza-las como provas de tortura. te Nélis Souza dentro de sua residência no
55
Tais imagens foram fundamentais para morro da Coroa. No dia 22 de fevereiro,
que o Ministério Público, no dia oito de três jovens foram executados por policiais
setembro de 2003, oferecesse denúncia do Batalhão de Operações Especiais na
contra os agentes penitenciários envolvi- favela da Rocinha. Em todos estes casos,
dos no caso. Nesta mesma semana Pinaud o deputado Alessandro Molon esteve pre-
sofreu uma isquemia cerebral, ficando in- sente nos locais dos crimes, entrevistou
ternado até o dia 17 de outubro. No mes- parentes e testemunhas e concedeu inúme-
56
mo dia, a governadora Rosinha Garotinho ras entrevistas.
anunciou que a Corregedoria Geral Unifi- Logo após esses episódios, e contrari-
cada não estaria mais vinculada à Secreta- ando a história da ALERJ, onde os depu-
ria Estadual de Direitos Humanos e no dia tados nunca se interessam em disputar a
05 de novembro de 2003, depois de muita Presidência da Comissão de Direitos Hu-
pressão, foi exonerado do cargo de Secre- manos, o presidente da Assembléia
53
tário. Legislativa anunciou que haveria mudan-
Outro fato importante a ser destacado ças nas presidências de algumas comissões.
refere-se às mudanças ocorridas na Comis- Neste momento, o deputado Alessandro
são de Direitos Humanos e Cidadania da Molon foi substituído pelo deputado Ge-
Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. raldo Moreira, que pertence a base de apoio
A referida Comissão foi presidida, no ano do governo, em uma clara demonstração
de 2003, pelo deputado estadual Ales- de que a linha de ação da Comissão de
57
sandro Molon. Sempre cumprindo o papel Direitos Humanos seria alterada.

52
Entrevista concedida por João Luiz Duboc Pinaud, por telefone, ao Centro de Justiça Global em 5/10/2004.
53
Idem.
54
Ofício JG/RJ n° 33/04 encaminhado Centro de Justiça Global ao Relator da ONU sobre Tortura em 13 de fevereiro de 2004.
55
Ofício JG/RJ n° 47/04 encaminhado pelo Centro de Justiça Global ao Relator da ONU sobre Tortura em 8 de março de 2004.
56
Correspondência eletrônica encaminhada pela assessoria do Deputado Alessandro Molon ao Centro de Justiça Global em 4/10/2004.
57
Idem.

27
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Também o núcleo de atendimento do da Comunidade e a Defensoria Pública fo-


sistema penitenciário da Defensoria Pú- ram impedidos de acompanhar a revista
blica do Rio de Janeiro se consolidou co- policial dentro da unidade. Tanto o presi-
mo um órgão fundamental na garantia dos dente do Conselho da Comunidade quanto
direitos humanos e referência ética do o Coordenador da Defensoria deram inú-
poder público dentro das prisões nos últi- meras entrevistas criticando a conduta da
mos anos. Tanto a Defensoria quanto o negociação e o cerceamento do acesso dos
59
Conselho da Comunidade foram solicita- órgãos públicos ao local da rebelião. No
dos inúmeras vezes, pelos órgãos públi- mês seguinte à rebelião Eduardo Gomes foi
cos, para contribuir em negociações de substituído na coordenação do núcleo do
rebeliões com reféns dentro das prisões. sistema penitenciário.
Em todos os episódios que estes órgãos No dia 10 de julho de 2003, a direção
60
atuaram como negociadores junto aos res- geral do DEGASE emitiu circular inter-
ponsáveis do BOPE ( Batalão de Opera- na com o seguinte conteúdo: “Por deter-
ções Especiais ), nunca houve um caso minação expressa do Exmo. Sr. Secretário
de necessidade de invasão ou registro de de Estado de Justiça, Dr. Sérgio Sveiter,
óbitos durante as negociações. Entre os informa aos diretores (...) que está vedada
dias 29 a 31 de maio de 2004, ocorreu a a entrada de qualquer autoridade, a qual-
rebelião de Benfica, uma casa de custó- quer hora do dia ou da noite, sem o co-
dia recentemente inaugurada em que o nhecimento ou autorização expressa ou
governo misturava facções criminosas ri- presença do Exmo. Sr. Secretário de Justi-
58
vais dentro da mesma unidade. ça ou autoridade designada por ele.” Tal
Tanto a Defensoria quanto o Conselho circular foi enviada após visita surpresa do
da Comunidade já haviam se posicionado Ministério Público na Escola Padre Seve-
contrários a esta política do governo do es- rino, unidade de internação de adolescen-
tado. Nesta rebelião, os negociadores do tes em conflito com a lei. Em 2004, a co-
BOPE, mais uma vez, solicitaram a presen- ordenadora de infância e adolescência do
ça do coordenador do núcleo de atendimen- Ministério Público, Agnes Mussliner, res-
to do sistema penitenciário, o Defensor Pú- ponsável pela referida visita ao Padre
61
blico Eduardo Gomes e do presidente do Severino, foi afastada do cargo.
Conselho da Comunidade, Marcelo Freixo. Também o Sindicato dos Agentes Pe-
Após o grave desfecho (a rebelião chegou nitenciários do Rio de Janeiro, que tem
ao seu final, com um saldo de 30 presos e 1 denunciado com freqüência as péssimas
agente penitenciários mortos), em que os condições de trabalho dos agentes dentro
negociadores foram afastados durante a re- das prisões, tem sofrido tentativas de cer-
belião e a ação passou a ser conduzida por ceamento de suas atividades. A última elei-
um pastor evangélico enviado diretamente ção para a direção do sindicato deu a vi-
pelo secretário de Segurança, o Conselho tória ao grupo da oposição, que imedia-

58
Boletim Eletrônico No 10 do Centro de Justiça Global, de 2 de junho de 2004.
59
Idem.
60
Sistema Estadual de Atendimento de Adolescentes em Conflito com a Lei.
61
Correspondência eletrônica encaminhada pela assessoria do Deputado Alessandro Molon ao Centro de Justiça Global em 4/10/2004.

28
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

tamente tornou pública a defasagem de tem como finalidade mobilizar a socieda-


agentes dentro das prisões, a falta de equi- de civil na fiscalização do cumprimento da
pamento e a péssima qualidade da escola pena.
de formação penitenciária. No início de Na cidade do Rio de Janeiro, o Conse-
2004, a nova direção aprovou em assem- lho foi criado pelo Juiz da Vara de Execu-
bléia uma paralisação da categoria, que ção Penal (VEP) em 1992, já contando,
acabou não ocorrendo em função de uma desde sua origem, com 27 organizações.
ação judicial da Secretaria de Administra- Recentemente, o Conselho agregou novas
ção Penitenciária (SEAP). Recentemente, entidades e se consolidou como um dos
o poder executivo enviou para a Assem- órgãos de execução penal mais atuantes
bléia Legislativa um projeto de lei com- junto aos apenados. Garantindo três visi-
plementar (PL n°. 14/2004) que cria o re- tas, em média, por mês, nas unidades pe-
gulamento disciplinar dos servidores efe- nais e sempre elaborando relatórios e en-
tivos da SEAP. Dois artigos chamam a caminhando-os para o Juiz da VEP, o Con-
atenção. O artigo 55 do projeto proíbe o selho se tornou um instrumento fundamen-
servidor de divulgar ou propalar, através tal nas denúncias de violações de direitos
da mídia, fatos, serviços ou tarefas em de- humanos dentro das prisões. Tanto os de-
senvolvimento ocorridas na repartição ou tentos e seus familiares quanto a mídia pas-
realizadas em quaisquer órgãos do siste- saram a ter no Conselho da Comunidade
ma penitenciário, ou contribuir para que uma referência ética e atuante para as ques-
sejam divulgadas, ou ainda concedidas tões referentes ao sistema penitenciário.
entrevistas sobre tais órgãos, sem autori- Em julho de 2004, o Secretário de Ad-
zação da autoridade competente. O arti- ministração Penitenciária, Dr. Astério Pe-
62
go 56 impede o servidor de promover ma- reira dos Santos, encaminhou um ofício
nifestações contra atos da administração para o Juiz da Vara de Execuções Penais,
ou movimentos de apreço ou desapreço criticando o excesso de entrevistas conce-
a quaisquer autoridades, bem como coa- didas pelo presidente do Conselho e ques-
gir ou aliciar servidores com o objetivo tionando, também, sua legitimidade frente
de impedir ou perturbar o desenvolvimen- ao Conselho da Comunidade, por se tratar
to normal do expediente do sistema peni- de um residente de outro município que
tenciário, ou reunir-se ou concentrar-se em não a cidade do Rio de Janeiro. Na essên-
locais próximos às unidades prisionais cia do ofício, o governo do estado solicita
com o mesmo objetivo. Este projeto de expressamente que o Juiz desfaça o atual
Lei já foi aprovado pela Comissão de Conselho e que nomeie uma nova direção
Constituição e Justiça da Assembléia Le- que possa dar ao Conselho um papel mais
gislativa e segue tramitando. assistencialista, buscando fornecer mate-
Por fim, cabe fazer destaque especial riais de higiene e colchões para os presos
aos atos de perseguição e coação que vem que não os possuem.
sofrendo mais recentemente o Conselho da O artigo 37 da Constituição determi-
Comunidade da Comarca do Rio de Janei- na que “a administração Pública direta e
ro, que é um órgão da execução penal e indireta de qualquer dos poderes da

62
Ofício encaminhado ao Juiz Titular da Vara de Execuções Penais, Carlos Augusto Borges, no dia 23 de julho de 2004.

29
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

União, dos Estados, do Distrito Federal e tos jurídico-legais, em especial, têm sido
dos Municípios, obedecerá aos princípi- flagrantemente distorcidos no estado do
os de legalidade, impessoalidade, morali- Rio de Janeiro, e merecem destaque, quais
dade, publicidade e eficiência”. sejam os autos de resistência, o crime de
O princípio da publicidade diz respei- associação ao tráfico e o mandado de bus-
to ao conhecimento acerca dos atos da ad- ca e apreensão itinerante.
ministração pública, de forma que possam Cabe, nesse momento, uma análise
todos os interessados participar das deci- mais acurada dessas três distorções legais:
sões políticas. Sendo assim, é fundamen-
tal que os órgãos de monitoramento pos- l Os Autos de Resistência
sam atuar de forma autônoma e indepen-
dente, fazendo com que o poder público O documento policial denominado
possa ser fiscalizado sistematicamente, o “auto de resistência” - formulário cujo
que vai garantir a melhoria da qualidade propósito seria o de registrar eventos de
do serviço prestado e o reforço da prática resistência armada no decorrer de sua ati-
63
da democracia. vidade legal - consiste, na prática, na
maneira pela qual muitas autoridades po-
Em busca de uma aparência liciais vêm utilizando para mascarar as
de legalidade: distorção execuções sumárias decorrentes de abu-
de instrumentos jurídicos sos no exercício de suas funções.
Para uma visão mais crítica deve-se
A questão da criminalização da pobre- considerar diferentes aspectos referentes a
za também obedece a movimentações no este documento, uma vez que são diver-
âmbito jurídico-legal, no qual determina- sos os fatores que evidenciam sua nocivi-
das “barreiras” são transpostas para aten- dade. O primeiro deles consiste na dis-
der a lógica das políticas de segurança em torção de seu emprego, alargada ao limite
questão, maximizando a “guerra”, o “ou- pela autoridade policial. Sendo o formulá-
tro” e a “letalidade”. rio destinado ao registro das ocorrências
Pode-se afirmar, nesse contexto, a ma- com resistência armada, os “autos de re-
nipulação dos instrumentos legais por parte sistência” têm cumprido um outro papel,
das autoridades, visando, essencialmente, na medida em que acabam sendo utiliza-
melhores resultados em ações cada vez dos para o registro de qualquer morte –
mais “duras”, sem abrir espaço, no entan- fruto ou não de resistência – praticada por
to, a cobranças que venham a contestar sua um policial.
legalidade. E nesse sentido, o Poder Judi- Dessa forma, além de subjugar à vala
ciário muitas vezes tem se prestado a balizar comum de um único documento todas as
tal manipulação. mortes perpetradas por agentes da polí-
Dentro desta perspectiva, em que se cia – impedindo uma visualização, clas-
pretende transfigurar o desrespeito à lei em sificação e controle de suas atividades que
ação juridicamente correta, três instrumen- resultem em vítimas fatais -, este docu-

63
Procedimento inicialmente regulamentado durante a ditadura militar pela Ordem de Serviço n.º 803, de 02/10/1969 e publicado no
Boletim de Serviço do dia 21/11/1969.

30
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

mento contribui de maneira definitiva para detalhe dentro do relato sobre um roubo,
66
descaracterizar o homicídio policial – na por exemplo. Nesse caso o problema da
medida em que “tais mortes não são clas- falta de transparência enseja reflexões tan-
sificadas como crime, mas como resulta- to mais preocupantes, se considerarmos
64
do de operações legais de segurança”. a quantidade de pessoas mortas anualmen-
Um outro fator de vital importância te pela polícia e levando em conta que
relaciona-se com a questão da caracteri- este registro abarca tão somente os ditos
zação da vítima, no caso, sempre o poli- “autos”, desconsiderando-se assim os ou-
cial. Isso quer dizer que em todos os ca- tros registros e também as mortes não re-
sos relatados nos “autos de resistência” gistradas.
temos o policial figurando como vítima Por tudo isso, os “autos de resistência”
de tentativa de homicídio. Isso ocorre ain- constituem um mecanismo que há anos
da que o documento seja utilizado para vem sendo utilizado tanto para encobrir os
registrar as vítimas da atividade policial, crimes cometidos por policiais, quanto para
e ainda que de fato tenha sido ela a víti- livrar os mesmos de sua responsabilidade
67
ma fatal. Assim, concluímos que a aceita- penal , dificultando uma atuação mais
ção e perpetuação deste documento con- democrática – na medida em que impede
siste em um assentimento dissimulado da a transparência – e contribuindo para uma
autoridade policial hierarquicamente su- relação opressora e abusiva entre cidadão
perior para com seus pares de rua, bem e Estado.
como o mesmo em relação às demais au- Os “autos de resistência”, da forma
toridades do Estado. como vem sendo empregados, devem ser
Vale ressaltar que um estudo realizado revistos ou substituídos por documentos
por Ignácio Cano sobre a letalidade da de maior clareza e precisão, possibilitan-
polícia indicou que em aproximadamente do, dessa forma, que qualquer morte de-
50% dos casos por ele pesquisado, as víti- corrente da prática policial seja devida-
mas apresentavam quatro ou mais perfu- mente apurada e penalizada quando for o
rações à bala, com tiros pelas costas ou na caso – mas que nunca represente um en-
cabeça, indicando claramente execuções trave para a aplicação da justiça.
65
sumárias.
Além disso, outro problema merece l O crime de Associação ao Tráfico
atenção: nem todas as mortes são regis-
tradas como “autos de resistência”, pois Dentre as últimas ações do governo
muitas delas encontram-se referidas em do Rio de Janeiro visando estabelecer um
registros de ocorrência que versam sobre maior controle frente às comunidades
outros crimes - onde a morte é apenas um marginalizadas, não há como não ressal-

64
Misse, Michel. Como desarmar a violência policial? Desarme: Notícias/Opinião. Rio de Janeiro, 04/03/2004.

http://www.desarme.org/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=3139&tpl=printerview&sid=16
65
Cano, Ignacio: Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro, ISER, 1997, Rio de Janeiro.
66
Cano, Ignacio: Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro, ISER, 1997, Rio de Janeiro.
67
O jurista Sérgio Verani é o autor de um livro que analisa os autos de resistência nas décadas de 70 e 80, constatando, já naquela época, os
mesmos efeitos nocivos que abordamos atualmente. Ver: Assassinatos em nome da Lei.

31
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

tar a arbitrariedade com que tem sido uti- criminalidade, ao identificar todas as ma-
lizado indiscriminadamente o artigo 14 da nifestações como manifestações de soli-
lei 6368/76, que versa sobre o tipo penal dariedade e cumplicidade dos moradores
de associação ao tráfico: em relação aos grupos do tráfico local.
Art. 14. Associarem-se 2 (duas) ou Ainda que muitas dessas manifesta-
mais pessoas para o fim de praticar, ções possuam de fato ligações com o cri-
reiteradamente ou não, qualquer dos cri- me organizado, não seria razoável tratá-
mes previstos nos artigos 12 ou 13 desta las da mesma forma – ainda mais quando
Lei: Pena - Reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) estas geralmente resultam da dor e revol-
anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a ta de moradores com incursões da polícia
360 (trezentos e sessenta) dias-multa. – que não raro resultam em execuções
Por determinação do Governo do Es- sumárias.
69
tado , as manifestações de moradores das Está implícita também nessa determi-
favelas que muitas vezes seguem às ações nação, uma intenção deliberada em se
da polícia nas comunidades, geralmente desmobilizar e desacreditar os atos públi-
marcadas por depredação de ônibus e in- cos de denúncia e os grupos organizados
terrupção de avenidas e túneis, devem ser na luta por uma reparação legal, taxan-
enquadradas penalmente como crime de do-os indiscriminadamente de “bader-
associação ao tráfico. Este, além de cominar neiros” associados ao tráfico. Desde a
uma penalidade muito maior que o implementação desta prática, a elasticida-
enquadramento legal que se utilizava an- de com que o referido artigo é amplamen-
teriormente –crime de depredação do te aplicado pela autoridade policial, e mui-
patrimônio privado–, também é inafian- tas vezes reforçado por juízes e promoto-
çável, ou seja, determina que o acusado res, não deixa dúvidas de suas intenções,
deve aguardar a sentença em reclusão. levando à prisão indiscriminada de mães
Mais uma vez uma determinação do desesperadas a líderes comunitários que
governo do Rio de Janeiro generaliza si- denunciam abusos da polícia em suas co-
tuações e acaba associando pobreza e munidades.

68
Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que
gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo
substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar; Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.§
1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente: I - importa ou exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda ou
oferece, fornece ainda que gratuitamente, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima destinada a preparação de
substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica;II - semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas à
preparação de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica.
§ 2º Nas mesmas penas incorre, ainda, quem:
I - induz, instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica;
II - utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que
gratuitamente, para uso indevido ou tráfico ilícito de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica.
III - contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância entorpecente ou que
determine dependência física ou psíquica.
Art. 13. Fabricar, adquirir, vender, fornecer ainda que gratuitamente, possuir ou guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer
objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de substância entorpecente ou que determine dependência física
ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - Reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e
pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.
69
No dia 1° de março de 2004, por determinação do Secretário de Segurança Pública, Anthony Garotinho, os delegados titulares das
delegacias distritais passaram a enquadrar todas as pessoas presas acusadas de apedrejar e incendiar ônibus por crime de associação ao
tráfico, tipo penal inafiançável. Antes, os presos eram autuados por danos ao patrimônio, pagavam fiança e respondiam o crime em liberdade.
Fonte: Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. http://www.policiacivil.rj.gov.br/noticia.asp?id=1088

32
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

Não é preciso dizer que esta nova in- tendente ao rótulo, mesmo entre os opera-
terpretação do artigo 14 da lei 6368/76 dores jurídicos, os quais dispensam pouca
confere ao poder público um fortíssimo ou nenhuma credulidade à integridade
instrumento de ameaça e coação, pois passa moral de um morador da favela.
a ser utilizado para regular a vida privada
dos moradores dessas comunidades – l O Mandado de Busca e
como no caso em que moradores que par- Apreensão Itinerante ou Genérico
ticipam de velórios e enterros de trafican-
tes, são acusados com base na lei de asso- A extrapolação do direito processual
ciação ao tráfico, como ocorrido após a brasileiro, com vistas ao controle e crimi-
morte (pelo Batalhão de Operações Espe- nalização da pobreza, contida nesta recém
ciais da PM) do traficante Lulu da Rocinha, criada distorção jurídica - documento de-
em que a Secretaria de Segurança Pública nominado “mandado de busca e apreen-
71
do Rio montou um esquema especial de são genérico” , consiste, sem dúvida al-
segurança para acompanhar o cortejo e guma, na mais impressionante materiali-
enterro, onde 100 policiais militares foram zação do etiquetamento penal.
destacados para o policiamento ostensivo O mandado de busca e apreensão
enquanto agentes da polícia civil foram itinerante, genérico ou coletivo consiste em
70
infiltrados no meio dos moradores. mais uma distorção da lei de processo pe-
Este alargamento do dispositivo jurí- nal pela polícia com o apoio do poder ju-
dico referente ao crime de associação ao diciário e o silêncio cúmplice do governo
tráfico se consome em total ilegalidade, estadual do Rio. Esse mandado de busca e
pois no sistema jurídico brasileiro uma apreensão é formulado em termos tão ge-
norma penal não pode ser interpretada de rais ou genéricos que permite à polícia in-
forma mais ampla que seu entendimento vadir qualquer residência e fazer qualquer
sugere, prejudicando seu destinatário. E é revista de morador sem individualização e
exatamente isso que tem acontecido especificade, antes mesmo de se ter inicia-
freqüentemente, pois o artigo 14 tem sua do um inquérito policial.
abrangência ampliada a partir de uma de- O ordenamento jurídico brasileiro, em
terminação arbitrária do poder executivo, sua parte processual, determina que o
ensejada por sua nova interpretação. mandado de busca e apreensão, de acor-
Porém, não cabe ao poder executivo do com os artigos 240 e 243 do Código
interpretar a lei e tampouco influir em uma de Processo Penal, compreenda uma bus-
72
nova aplicação, como não cabe ao Mi- ca “domiciliar ou pessoal” , além de de-
nistério Público, fiscal da lei, e ao judici- ver o documento indicar “o mais precisa-
ário, seu aplicador, o silêncio ou compro- mente possível a casa em que será reali-
metimento com tal atitude. zada a diligência e o nome do respectivo
O que podemos inferir desse contexto proprietário ou morador, ou no caso de
é a existência de uma visão preconceituosa, busca pessoal, o nome da pessoa que terá
70
Tensão e aplausos marcam enterro de traficante no Rio. Folha de S.Paulo, 15/04/2004.
71
Também chamado de “mandado de busca e apreensão itinerante”.
72
Código de Processo Penal Brasileiro, art. 240.

33
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

de sofrê-la ou os sinais que a identifi- de todas as casas, sem excepção, situadas


73
quem”, além de, obviamente, “mencio- em uma vila, com um portão de ferro, pró-
74
nar os motivos e os fins da diligência”. ximo à Ass. de Moradores do Complexo
Porém, através de uma ficção legal, o do Alemão, um salão, um bar, e um portão
75
preceito estabelecido pela lei – qual seja, a de madeira pintada de azul”.
especificidade e determinação do manda- A seguir, outro trecho da decisão que
do - é desfigurado por meio de referências merece destaque:
genéricas e, geralmente, impetrado contra “Frise-se, por derradeiro, que a medi-
toda uma comunidade – resultando no fato da excepcional está calcada em diversas
de que, dessa forma, qualquer morador, denúncias semelhantes (fls. 02/35 dos au-
bem como qualquer residência, estão con- tos em apenso), provavelmente endereçadas
templados nos limites “genéricos” ou por cidadãos humildes e honestos da co-
“itinerantes” desses mandados. munidade local que, certamente indigna-
Os mandados genéricos só são solici- dos com os desmandos do Elias Maluco e
tados e expedidos em decorrência do sua gangue, bem como o triste envolvimento
etiquetamento penal, da construção do de parca parcela de policiais corruptos com
outro, averbada na criminalização da po- estes elementos espúrios, busca o único
breza. Caso contrário, como deixar de ima- meio de reagir à impunidade crescente nes-
ginar tais mandados sendo aplicados em te país; ou seja, denunciar as escuras!
luxuosos condomínios, em especial os da Destarte, este grito de socorro e justi-
Barra da Tijuca, local onde prolifera um ça promovido pelo povo deve ser atendi-
interessante –embora não novo– fenôme- do COM URGÊNCIA e RIGOR, não só
no - justamente o tráfico de drogas pesa- pelos policiais honestos, mais também e,
das por integrantes dos círculos médios e principalmente pelo Poder judiciário, que
altos da sociedade? ciente e consciente das dificuldades in-
Ainda que os fatos falem por si, nada vestigatórias dos incorruptíveis policiais
mais justo do recorrer à justificativa, publi- e da fragilidade dos cidadãos que se aven-
camente expressa pelo juiz Alexandre turam em “denunciar” o lixo genético que
Abrahão Dias Teixeira – hoje, juiz de direito lhes amedronta, cala e mata, não pode
da Auditoria Militar -, que emitiu o primeiro simplesmente encastelar-se de forma ali-
mandado desse tipo a partir de uma denún- enada para discutir meras filigranas ju-
cia anônima do “Disque-Denúncia”, contra rídicas.
a Comunidade da Grota, na tentativa de pren- Em suma, é a hora do Judiciário ex-
der o traficante Elias Maluco, suspeito do por sintonia e empenho na luta pela rees-
assassinato do jornalista Tim Lopes. truturação social, demonstrando total sen-
O juiz emitiu o mandado, determinan- sibilidade pelos anseios sociais, o que se
do a busca e apreensão da “Associação de dará apenas e tão somente através de uma
Moradores de Grota, de duas casas de cor atuação eficaz, condigna e célere a por
76
verde na favela com especificades locais, termo neste descalabro público”.
73
Código de Processo Penal Brasileiro, art. 243, inciso I.
74
Código de Processo Penal Brasileiro, art. 243, inciso III.
75
Decisão no processo 2002.001.084808-6 contra Elias Maluco, do I Tribunal do Júri da Comarca da Capital, tomada pelo juiz Alexandre
Abrahão Dias Teixeira, em 28 de agosto de 2002.

34
Aspectos da violência no Rio de Janeiro: entre vítimas e algozes

É interessante perceber como a coni- Infelizmente, muitos juizes não con-


vência do poder judiciário em relação aos cordam com essa opinião e têm contribu-
desmandos ocorridos nas comunidades ído, através da emissão de tais mandados
carentes advém, principalmente, de uma itinerantes ou genéricos, com essa políti-
percepção distorcida a respeito de seus ca de maquiagem legal para as operações
moradores – que, não raro, lhes custa a policiais nas favelas.
vida, saúde ou dignidade. Além da ilegalidade, o que é mais gra-
Porém, como todas as medidas excep- ve no caso do uso distorcido deste instru-
cionais adotadas num momento de crise mento, é o apoio direito e cúmplice de vá-
ou por causa de uma suposta “guerra ci- rios membros do poder judiciário na re-
vil”, os mandados foram se generalizan- pressão que ocorre nas favelas e comuni-
do e acabaram fazendo parte do arsenal dades mais carentes do Rio de Janeiro.
regular utilizado pela Polícia do Rio de Em permitindo ou apoiando a emis-
Janeiro, com o aval do Judiciário. são desse tipo de ordens, esses juízes aca-
Não resta dúvida de que tais manda- bam conferindo uma autorização oficial
dos não encontram respaldo na Consti- de invadir qualquer residência da favela
tuição Federal brasileira (artigo 5°) ou na ou permitir qualquer revista de morador
nossa Lei processual penal (art. 240 a 250 ou cidadão sem qualquer individualização
do Código de Processo Penal). e especificidade e, portanto, deveriam as-
Para demonstrar a arbitrariedade e ile- sumir a responsabilidade pelos danos e
galidade da decisão judicial acima men- pelas violações de direitos ocorridas no
cionada, trazemos à tona outra decisão contexto da operação, inclusive a destrui-
judicial, proferida pelo Juiz Joaquim Do- ção de propriedades, os feridos e as mor-
mingos de Almeida Neto, da 29ª. Vara tes. Assim, além dos feridos, das mortes e
Criminal do Rio de Janeiro, em que fica das violações de privacidade e de domi-
evidentemente clara a distorção do pro- cílio ocorridas durante a operação polici-
cesso penal e do instrumento jurídico do al, o mandado pode permitir condenações
mandado de apreensão: de pessoas com base em provas ilegais e
“Há uma inversão da ordem processu- inconstitucionais.
al. Ao invés de se investigar e depois re- Não é preciso dizer que, quando esse
querer a medida constritiva extrema pre- tipo de mandado eventualmente atinge
tende o requerente partir de apreensão para alguns membros das classes mais privile-
justificar o inquérito, o que não é possível. giadas de nossa sociedade, a reação é forte
Não se pode outorgar uma carta branca e imediata. Em 03 de outubro de 2003, a
(Mandado genérico) ao investigador, ain- Ordem dos Advogados do Brasil – Seção
da mais quando se trata com garantias Rio de Janeiro divulgou nota à imprensa
constitucionais. Toda a prova daí derivada repudiando o mandado de busca e apre-
77
seria nula”. ensão genérico expedido contra um “es-
76
Decisão no processo 2002.001.084808-6 contra Elias Maluco, do I Tribunal do Júri da Comarca da Capital, tomada pelo juiz Alexandre
Abrahão Dias Teixeira, em 28 de agosto de 2002.
77
Exposição dos motivos para a negação do pedido de um mandado genérico efetuado pelo Ministério Público no processo n.º
2003.001.090811-5, proferido pelo juiz Joaquim Domingos de Almeida Neto, juiz de direito da 29ª Vara Criminal, 06/08/03. O juiz
Joaquim qualificou o suporte probatório do Ministério Público de mínimo e de tão genérico quanto o pedido formulado, o qual não tinha
embasamento, não apontava a existência de crime e nem precisava quem eram os investigados.

35
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

79
critório de advocacia de grande porte elevada: 44,5 por cem mil. Portanto, o
onde trabalham inúmeros advogados e do número crescente de autos de resistência
qual são clientes centenas de pessoas fí- não tem nenhum impacto nas taxas de ho-
78
sicas e jurídicas”. Neste caso, a OAB- micídios registradas no Rio, que também
RJ expressou sua indignação pelo fato de continuam crescendo.
que a ordem judicial “faz tábula rasa da Enquanto as violações de direitos hu-
presunção de inocência e, sem formação manos ocorridas no seio das comunidades
de culpa, impõe à sociedade de advoga- carentes continuarem a ser encaradas como
dos, às procuradorias e a todos seus inte- decorrências naturais de uma outra reali-
grantes, sócios ou empregados, constran- dade, e por isso mesmo não geradora de
gimentos inauditos, que, em tese, só de- efeitos universais, não há como resolver o
veriam ser suportados por quem, de fato, problema. Este reside justamente na liber-
estivesse envolvido na prática de algum dade dada à força policial para sua atuação
ilícito” e até mencionou estar estudando que, desprovida da necessidade de obe-
a possibilidade de uma representação con- diência à lei, extravasa aos poucos em dire-
tra o juiz da justiça federal que determi- ção aos outros setores de nossa sociedade.
nou a busca e apreensão. A ditadura militar, que há 40 anos mas-
TTT sacrou a sociedade brasileira, hoje é moti-
O Estado se utiliza em larga escala da vo de vergonha e revolta que - a despeito
violência direta como forma de controle da estranha recusa por parte do governo
social e combate à criminalidade, mas tam- federal em se apurar as responsabilidades
bém se vale da manipulação de determi- - no novo horizonte democrático, assume
nados instrumentos jurídicos para o cum- um compromisso de reparo, pautado em
primento de seus intentos. As distorções indenizações às suas vítimas.
legais, impostas arbitrariamente à popula- Ainda assim, com todo rechaço social
ção, traduzem a necessidade de legitimação direcionado às práticas autoritárias impos-
das ações do governo, que não encontram tas pelo governo militar – satanização das
respaldo nem na lei, nem no bom senso e vítimas, uso indiscriminado da violência e
explicitam a ausência de políticas de se- edição de documentos sem o devido am-
gurança pública eficazes. paro legal -, parece razoável inferir a re-
Especialistas assinalam que a política produção deste sistema de justificativas na
de confronto desenhada pela polícia do realidade atual do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro não tem nenhum impacto Nesse sentido, como aqueles que vi-
na redução das taxas de homicídios, por ram na solução autoritária a saída para a
exemplo. Em 199 foram registrados 289 “situação insustentável” do Brasil naquele
autos de resistência no Estado e a taxa de período – e que se viram posteriormente
homicídios foi de 42,9 por 100.000 habi- vitimados pelos mesmos efeitos danosos
tantes. Em 2003, a polícia matou 1.195 – hoje também há uma forte tendência na
pessoas e a taxa de homicídios foi mais crença de uma solução pela força.

78
Expresso da Notícia, 9 de outubro de 2003: “OAB repudia busca e apreensão em escritório de advocacia” http://www.expressodanoticia.
com.br/conteudo.asp?”Codigo=2093
79
Lemgruber, Julita. “Violência, omissão e insegurança pública: o pão nosso de cada dia”. Fonte: www.cesec.ucam.edu.br/publicacoes/zip/
Julita

36
Capítulo II
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

Fotos de Carlos Moraes, cedidas pelo Jornal O Dia, Rio de Janeiro


onferir status de “emblemático” a
um caso de violação de direitos hu-
manos constitui, geralmente, um proble-
ma – tendo em vista, principalmente, que
a dor das vítimas não pode ser medida ou
qualificada dentro de qualquer quadro hi-
erárquico. Nesse sentido, a simples men-
ção de tal qualificação incorreria de for-
ma derradeira na descaracterização das ví-
timas como iguais, contribuindo para uma
compreensão distorcida sobre a produção
da violência. Operação policial no Morro da Providência,
No entanto, o conceito de “emblemá- Rio de Janeiro, 27/09/04
tico” aqui utilizado diz respeito não à uma
ordem de importância prévia e arbitraria- Além disso, alguns casos foram sele-
mente estabelecida mas, dado o caráter sis- cionados também porque representam
temático com que tais violações se apre- aqueles que, de uma maneira ou de ou-
sentam no cotidiano do Rio de Janeiro, são tra, obtiveram grande repercussão nos
representativos de certos padrões de ação canais de mídia e frente ao poder público
policial, vindo a fornecer uma interessan- e à sociedade civil.
te fonte sobre as discussões realizadas no Finalmente, o período contemplado
primeiro capítulo deste relatório. Para tan- neste capítulo - de janeiro a setembro de
to, foram utilizados documentos e estatís- 2004 -, além de possibilitar uma discus-
ticas oficiais, reportagens jornalísticas, são centrada em fatos concretos e presen-
acompanhamentos processuais, além de tes, também corresponde a uma atualiza-
um farto material obtido nas entrevistas rea- ção das violações neste estado, na medi-
lizadas pela equipe do Centro de Justiça da em que outros casos de execução, tor-
Global junto às vítimas, familiares e mora- tura e demais formas de violência já se
dores das principais áreas atingidas pela encontram descritos em outros relatórios
80
violência do Estado durante o ano. de nossa organização.

80
Para um quadro completo ver os relatórios anuais do Centro de Justiça Global. Direitos Humanos no Brasil 2000; Direitos Humanos no
Brasil 2002; Direitos Humanos no Brasil 2003; e o relatório temático Relatório sobre Execuções Sumárias no Brasil 97-2003, 2003.

37
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Casos emblemáticos de violência policial em 2004


n W. D. G. M., J. C. P. J., Flávio Moraes Na manhã do dia 07 de janeiro, três
de Andrade, E. M. A. e José Manoel dos cinco corpos foram encontrados em
da Silva – Caju, Rio de Janeiro um lamaçal que fica localizado na própria
comunidade, atrás da garagem de uma
Na noite do dia 06 de janeiro de 2004, empresa de ônibus. Trata-se de um local
os jovens W. D. G. M., 13 anos, J. C. P. J., ermo, onde certamente ninguém poderia
16 anos, Flávio Moraes de Andrade, 19 presenciar o momento em que os corpos
anos, E. M. A., 17 anos e José Manoel da foram deixados e, principalmente, por
Silva, 26 anos estavam reunidos jogando quem foram deixados. Os outros dois cor-
dominó, próximo a um mercado do Com- pos foram levados ao Hospital Souza
plexo do Parque da Alegria, na comuni- Aguiar e identificados pelos policiais como
dade do Caju, Rio de Janeiro, quando dois supostos traficantes que teriam morrido em
85
policiais militares chegaram repentina- troca de tiros com a polícia.
mente atirando contra os rapazes, sem que Os corpos das vítimas que foram dei-
81
eles pudessem reagir. xados no lamaçal ficaram horas expostos
82
Segundo informações dos familiares, no local antes que fossem recolhidos ao
as testemunhas contam que os rapazes ain- IML – Instituto Médico Legal. Durante esse
da tentaram se identificar, solicitando que período, os familiares esperaram ao lado
fossem levados até suas casas para que dos corpos dos seus filhos e presenciaram
pudessem mostrar seus documentos, mas a chegada de policiais que pareciam estar
não foram atendidos. Indícios provam que ali para vigiá-los. Sem respeito à dor das
a execução foi realizada ali mesmo, onde famíllias um dos policiais disse: “Menos
83 86
os rapazes estavam reunidos. um porco para a gente prender”.
Houve ainda uma sexta vítima que so- A ocorrência foi registrada e, segun-
breviveu: William Borges dos Reis tam- do familiares, os policiais militares envol-
bém foi atingido pelos disparos dos poli- vidos na execução continuam trabalhan-
ciais, mas conseguiu fugir e ser socorrido do na comunidade e teriam sido apenas
84 87
por vizinhos. alocados em batalhões diferentes.

81
De acordo com Elizabete Maria de Souza, irmã de W., onze policiais militares se envolveram na ação daquela noite no morro do Caju.
Informações fornecidas, pessoalmente, em entrevista concedida ao Centro de Justiça Global em 31/05/04.
82
Informações fornecidas por Elizabete Maria de Souza, irmã de W., pessoalmente, em entrevista concedida ao Centro de Justiça Global em
31/05/04.
83
“… em frente ao mercado Ribeiro… muito sangue espalhado no chão e pedaços de cérebro e cabelo no local… paredes sujas de
sangue…” Informações fornecidas por Elizabete Maria de Souza, em declaração prestada na 17ª Delegacia de Polícia, em 15/04/04.
Procedimento no. 017-00092/2004.
84
Informações fornecidas por Elizabete Maria de Souza, irmã de W., em declaração prestada na 17ª Delegacia de Polícia, em 15/04/04.
Procedimento no. 017-00092/2004.
85
Informações fornecidas por Elizabete Maria de Souza, irmã de W., pessoalmente, em entrevista concedida ao Centro de Justiça Global em
31/05/04.
86
Informações fornecidas por Elizabete Maria de Souza, pessoalmente, em entrevista concedida à equipe do Centro de Justiça Global em
31/05/04.
87
Idem

38
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

Após o crime, alguns policiais milita- três meses depois do assassinato, durante
res do 4° Batalhão da Polícia Militar visi- uma passeata organizada pelas mães das
taram a associação de moradores do bair- vítimas, policiais do 4° Batalhão da Polí-
88
ro, onde Elisabete trabalhava. Antes das cia Militar, onde trabalham os envolvidos
execuções, policiais nunca haviam visita- na execução dos garotos, tentaram atrapa-
do a associação, o que leva a crer que essa lhar a manifestação. Eles ameaçavam os
foi mais uma forma de amedrontar Elisa- vizinhos para que estes não aderissem à
bete para que ela desistisse de denunciar passeata e arrancavam os cartazes afixa-
91
os policiais. Atualmente, ela não trabalha dos nos postes pelos manifestantes.
mais na associação, preferindo proteger O inquérito policial foi iniciado na 17ª
92
seus colegas de trabalho, que justificada- Delegacia Policial , mas foi transferido
93
mente também se sentiam ameaçados pela para a Delegacia de Homicídios , onde,
situação. até o fechamento do presente relatório, se
O sobrevivente William prestou depo- encontrava em processo de investigação.
imento logo após o ocorrido. Inicialmen- Tramita ainda, na Corregedoria Geral Uni-
te ele alegou ter sido atingido por uma ficada das Polícias Civil e Militar e do Cor-
89
“bala perdida” , mas depois, a pedido das po de Bombeiros, inquérito administrati-
94
famílias das vítimas fatais, voltou à 17ª vo que se encontra em fase investigatória.
Delegacia de Polícia e contou o que real- Os familiares dos demais jovens executa-
mente lhe havia acontecido, ou seja, que dos continuam a morar na comunidade do
havia sobrevivido a uma execução reali- Caju, convivendo com os policiais milita-
zada por policiais militares. Logo após seu res que executaram seus filhos, sem que o
segundo depoimento, Willam e toda sua Estado tenha garantido qualquer proteção
95
família se mudaram da comunidade. Eles às suas vidas e integridades pessoais.
disseram que temiam a presença dos po- Em 20 de julho de 2004, o Centro de
liciais. Na última vez que Willian foi vis- Justiça Global enviou um informe (ofício
to, em fevereiro de 2004, foi possível notar JG/RJ n° 192/04) sobre o caso acima nar-
que ele ainda mancava em função do tiro rado para a Relatoria Especial da ONU so-
90
que havia levado na noite da execução. bre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou
Elisabete, irmã da vítima W., conta que Arbitrárias.

88
Informações fornecidas por Elizabete Maria de Souza, pessoalmente, em entrevista concedida à equipe do Centro de Justiça Global no dia
31/05/04.
89
William fez o Exame de corpo delito, logo nesta primeira vez em que esteve na delegacia. Informações fornecidas pela senhora Aldeci
Andrade, mãe de E. e Flávio Moraes de Andrade, ao Centro de Justiça Global, em encontro na Secretaria Estadual de Direitos Humanos,
em 08/07/2004.
90
William foi atingido em uma das pernas. Informações fornecidas pela senhora Aldeci Andrade, mãe de E. e Flávio Moraes de Andrade,
ao Centro de Justiça Global, em encontro na Secretaria Estadual de Direitos Humanos, em 08/07/2004.
91
Informações fornecidas por Elizabete Maria de Souza, , pessoalmente, em entrevista concedida à equipe do Centro de Justiça Global
em 31/05/04.
92
Inquérito Policial n° 0092/20004.
93
Inquérito Policial n° 027/20004.
94
Inquérito Militar N° E-32/0674/0006/2004. Informações fornecidas pela Corregedoria Geral Unificada / Secretaria de Estado de
Direitos Humanos, do estado do Rio de Janeiro, protocolo n°E-32/3281/0006/04.
95
Informações fornecidas por Elizabete Maria de Souza à equipe do Centro de Justiça Global em 31/05/04.( Conforme anteriores).

39
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

n Romulo Batista de Melo – Município mãe, Márcia Batista de Melo, ele tinha um
de Cabo Frio, Rio de Janeiro. corte na testa, escoriações pelo corpo e
arranhões no joelho e entorno dos pul-
100
No dia 21 de janeiro de 2004, o estu- sos.
dante de fisioterapia, Rômulo Batista de Da última vez que foi visto por seu
Melo, 21 anos, foi preso pelo 25° batalhão advogado, Rômulo estava deitado no chão
da polícia militar, após se envolver num no corredor da carceragem, inconsciente.
acidente de carro, em Cabo Frio, municí- O advogado questionou sobre as condi-
pio da região dos lagos do estado do Rio ções em que seu cliente se encontrava, ao
de Janeiro. No dia 27 de janeiro de 2004 que os policiais responderam que Rômulo
ao ser transferido da 126ª Delegacia de estava sob efeito de forte medicação e ne-
101
Polícia para o Rio de Janeiro, Rômulo cessitava um local mais ventilado.
96
morreu. No mesmo dia 27 de janeiro de 2004,
Após o incidente em Cabo Frio, Rômulo e outro detento, Paulo Cesár
Rômulo foi preso em São Pedro da Aldeia, Fernandes de Souza, foram transferidos
município vizinho. Ele estava muito ner- para o Hospital Psiquiátrico Heitor Carri-
voso, se jogava na frente dos carros, numa lho, no Rio de Janeiro. Juntamente com
97
tentativa de se matar. O policial militar eles, na mesma viatura era também trans-
que tentou prendê-lo precisou pedir ajuda ferida uma detenta, Renata da Silva Car-
aos bombeiros para conseguir deter reiro, para a 124ª Delegacia de Polícia,
Rômulo, pois ele estava muito perturba- Delegacia de Saquarema. Durante a via-
98
do , necessitando de tratamento especial. gem, os detentos ficaram no fundo da via-
Os policiais resolveram então levá-lo para tura, algemados, e a detenta no banco tra-
102
o Hospital Municipal de São Pedro da Al- seiro da viatura.
99
deia , onde Rômulo foi medicado com for- Renata conta que o policial dirigia a vi-
tes sedativos. atura em alta velocidade, inclusive quando
Mais tarde, Rômulo foi levado para a passava por quebra-molas e lombadas, o
126ª Delegacia de Polícia, em Cabo Frio, que provocou intenso sofrimento físico a
sob acusação de roubo de carro. Os fami- Rômulo e a Paulo, que encontravam-se no
liares somente conseguiram vê-lo dois dias compartimento traseiro sem ter como se
após sua prisão. Rômulo estava visivelmen- apoiarem. Segundo ela, Rômulo gritava e
te abatido, como se estivesse drogado, e gemia, parecia que ele estava “tendo uma
103
machucado. Segundo informações de sua crise”. Os policiais corriam tanto que foi

96
Informações colhidas do Inquérito Policial n° 027/2004.
97
Policial militar, José Carlos S. de Andrade, R.G. 43.111.
98
R.O. 000520/0126/2004, 126ª Delegacia de Polícia, Cabo Frio-RJ.
99
Hospital Municipal de São Pedro da Aldeia, ocorrência n° 173, 21/01/04, 20:45.
100
Informações fornecidas pela mãe de Rômulo, sra. Márcia Batista de Melo, em entrevista cedida, pessoalmente, à equipe do Centro de
Justiça Global, dia 06/07/2004.
101
Idem
102
Informações colhidas do Inquérito Policial n° 027/2004.
103
Laudo n° 218/04. Informações colhidas do Inquérito Policial n° 027/2004.

40
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

possível localizar multas por excesso de tramitava na Vara Criminal da Comarca de


velocidade entre o trajeto de Cabo Frio até Cabo Frio. Os policiais estão presos desde
108
Saquarema. O policial Jayro Alexandre Ser- o dia 17 de setembro de 2004.
rado Brito, que estava ao volante, dizia que Em 13 de fevereiro de 2004, o Centro
desta forma iria dar “um jeito” nos gemidos de Justiça Global enviou um informe (ofí-
104
de Rômulo. cio JG/RJ n° 33/04) sobre o caso acima
Segundo relato dos policiais, após a narrado para a Relatoria Especial da ONU
parada para o almoço, eles perceberam que sobre Tortura.
Rômulo estava febril e alegava tontura. A
partir deste momento, Rômulo passou a n Nélis Nelson dos Santos - Morro da
viajar no banco traseiro da viatura e não Coroa, Rio de Janeiro.
mais no fundo do carro. Verificando que o
detento não apresentava melhoras, os po- No dia 16 de fevereiro de 2004, apro-
liciais resolveram levá-lo ao hospital mais ximadamente às 7h30, motivados pela vin-
próximo. Desviaram para o município pró- gança do assassinato de um policial do 1º
ximo de Maricá e o levaram ao Hospital Batalhão da Polícia Militar, um grupo de
Conde Modesto Leal. Rômulo deu entra- 11 policiais militares do mesmo batalhão
da no Hospital já em coma, sofreu duas acompanhados de um informante encapu-
105
paradas cardíacas e acabou falecendo. zado, deram início a uma operação na fa-
O laudo médico atestou que a causa vela Morro da Coroa, no Rio de Janeiro.
da morte de Rômulo foi traumatismo crâ- Por volta das 9h30, os policiais invadi-
nio-encefálico com hemorragia intracra- ram a casa de Nélis dos Santos a fim de ob-
niana, provavelmente, proveniente do ter informações sobre a localização dos pos-
somatório de fatores metabólicios, como síveis autores do assassinato do policial.
a febre e a desidratação, fatores ambien- Nélis dormia no segundo andar de sua
tais, como a alta temperatura e as conse- residência, local para onde se dirigiram
quentes projeções do corpo de Rômulo quatro policiais e o informante encapuza-
106
nas paredes do veículo. Este fato de- do, permanecendo o sargento Jorge e os
monstra um total descaso pela integrida- familiares de Nelis no andar térreo, en-
de física dos detentos que estavam sendo quanto os demais policiais aguardavam
transportados sob a responsabilidade dos do lado de fora da casa. Como Nélis era
policiais militares. viciado em drogas, os policiais acredita-
Os policiais Jayro Brito, Francisco vam que ele poderia fornecer as pistas que
Mauricio e Guilherme Casemiro foram de- procuravam sobre a morte do colega, pois
107
nunciados por tortura. Até o fechamen- acreditavam que o policial havia sido as-
to do presente relatório, o processo ainda sassinado por traficantes locais.

104
IP n° 027/2004, Ofício n° 000194/2004-DRV-DETRAN/RJ.
105
Informações colhidas do Inquérito Policial n° 027/2004.
106
Idem.
107
Processo n. 2004011022760
108
Informações fornecidas pela mãe de Rômulo, sra. Márcia Batista de Melo, em entrevista cedida, por telefone, à equipe do Centro de
Justiça Global, dia 02/10/2004.

41
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

O grupo de policiais que abordou Né- jeito” em Nélis. O irmão argumentou que
lis contava então com dois oficias carac- estavam providenciando uma clínica de
terizados um 1º tenente e um 2º tenente, recuperação para ele, mas que Nélis não
um sargento, identificado por familiares queria se internar. Diante desta resposta,
como sargento Jorge P2, que permane- retrucou dizendo que “agora ele (Nélis)
ceu conversando com o irmão de Nélis, vai querer ir para a clínica”.
um outro oficial cuja patente não se pôde Quando os policiais se retiraram, os
determinar e um homem trajando vesti- familiares dirigiram-se até o quarto onde
menta semelhante a do exército (camufla- ocorreu a tortura e encontraram Nélis de-
da), que portava uma arma de grosso ca- sacordado no chão, sangrando muito, en-
109
libre. O informante acompanhou os po- rolado em um lençol. Ao recuperar os sen-
liciais que dirigiram-se ao segundo andar. tidos, contou que foi brutalmente espan-
De acordo com o relato dos familia- cado pelos policiais, tendo estes lhe
res, o sargento Jorge os havia tranqüili- pisoteado os órgãos genitais, aplicado-lhe
zado, afirmando que “só queriam conver- eletrochoques, enforcamento, inserido um
sar” com Nélis - inclusive surpreenden- cabo de vassoura em seu ânus, furado sua
do o irmão da vítima ao demonstrar co- língua, dedos e nariz com um alicate, além
nhecer seu grau de parentesco, bem como de desferir-lhe um golpe na cabeça com
110
a igreja que este freqüentava. uma pesada balança de ferro. A sessão
Seguiu-se uma conversa entre o irmão de tortura durou aproximadamente três
de Nélis e o sargento quando, do andar de horas e resultou, além dos ferimentos por
cima, ouviu-se um forte barulho seguido todo o corpo, na destruição da bexiga e
de gritos da vítima. Seu irmão pediu então do canal retal de Nélis, reconstituídos pos-
que não o espancassem mais, pois toda a teriormente pela equipe de médicos do
111
família estava presente, incluindo uma cri- Hospital Miguel Couto.
ança de cinco anos de idade. O Centro de Justiça Global reuniu-se
O sargento subiu ao cômodo onde se com membros da Secretaria de Seguran-
encontrava Nélis e os outros quatro poli- ça Pública do Estado do Rio de Janeiro
ciais, além do informante. Pouco tempo que afirmaram sobre a suspensão das in-
depois, os policiais foram descendo um a cursões policiais naquela comunidade, a
um, advertindo os familiares de que de- transferência da investigação para a Corre-
veriam ir embora dali para não “serem gedoria Interna de Polícia e a proteção da
prejudicados”. vítima e de seus familiares pela Coordena-
Por fim, desceu o 1º tenente, ofegan- doria de Recursos Especiais da Polícia
do bastante, dirigindo-se diretamente ao Civil (CORE).
irmão da vítima, pedindo “para dar um A vítima reconheceu 5 policiais envol-

109
Informações obtidas durante o testemunho de um dos familiares de Nélis, em Audiência Pública promovida pela Comissão de Direitos
Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), acompanhada pelo Centro de Justiça Global, no dia 20/02/04.
110
Alguns instrumentos utilizados na tortura de Nélis foram apresentados aos participantes da Audiência Pública na ALERJ, no dia 20/
02/04, incluindo a balança de ferro, que encontrava-se amassada devido ao impacto.
111
Estas informações constam no depoimento dado por familiares de Nelis no dia da Audiência Pública na ALERJ, acompanhada pelo Centro
de Justiça Global e no jornal O GLOBO de 19/02/04, em matéria “Horror em Santa Teresa”.

42
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

vidos na tortura, por meio de um álbum de foram indiciados por crime de Tortura. Até
fotografias da Polícia Militar do Rio de Ja- o fechamento do presente relatório os
114
neiro. O auto de reconhecimento foi feito policiais encontravam-se detidos.
no hospital onde Nélis estava internado e Em 08 de março de 2004, o Centro
foi anexado ao inquérito que apura a res- de Justiça Global enviou um informe (ofí-
ponsabilidade dos policiais agressores. cio JG/RJ n° 47/04) sobre o caso acima
Também foi anexado o depoimento da ví- narrado para a Relatoria Especial da ONU
tima, prestado no hospital, sob autoriza- sobre Tortura.
ção de Nélis, onde este confirma as três
horas de tortura sob o poder dos policiais n L F. M., L. S. S. e J. A. C. - Rocinha,
do 1º Batalhão da Polícia Militar. Rio de Janeiro.
Nélis também foi submetido a exame
de corpo de delito, feito pela perita Regi- Na madrugada do dia 22 de fevereiro
na D’Onofre, do Instituto de Criminalís- de 2004, os jovens L. F. M., de 17 anos,
tica Carlos Éboli. De acordo com o laudo L.S. S., de 16 anos, J. A .C., de 13 anos e
da perita, ficou constatada a caracteriza- M. R. S., de 16 anos, voltavam de um
ção de maus tratos, com ferimentos com- baile funk, na Via Ápia, na comunidade
112
patíveis à tortura. da Rocinha, quando foram abordados por
Embora a delegada responsável pelas policias militares do BOPE (Batalhão de
investigações,Valquíria Lucas, da 6ª De- Operações Especiais da Polícia Militar)
legacia de Polícia, tenha solicitado a pri- que faziam operação na área. Segundo o
são preventiva dos 11 policiais, o Tribu- padrasto de J. A., Edílson Ferreira, os po-
nal de Justiça do Estado do Rio de Janei- liciais colocaram um saco plástico na ca-
ro negou o pedido sob alegação de “falta beça de L. e obrigaram todos os garotos a
de provas”, mesmo tendo o Inquérito Po- descer dizendo que “Iam matar um”. Os
licial Militar, instaurado por determinação adolesentes foram levados então para a
do 1º BPM, concluído que os 11 policiais Travessa Gregório, próximo a um valão e
tiveram participação direta ou indireta na baleados. L. F.M e L.S. morreram na hora
tortura de Nélis. e os outros dois foram levados para o hos-
Ainda assim, conforme notícia publi- pital Miguel Couto, onde somente o ado-
cada pela imprensa, a delegada afirmou lescente M. R. S.conseguiu sobreviver. M.,
que reiterará o pedido de prisão quando única testemunha do caso, ficou interna-
113
tiver fatos novos a acrescentar . do em estado grave sob vigilância diária
115
Segundo informações fornecidas pelo de dois policiais militares.
Sub-Secretário, Paulo Baia, foi decretada Segundo moradores, cerca de 15 agen-
a Prisão Preventiva dos policiais envolvi- tes do BOPE, alguns deles usando toucas-
dos no fato acima narrado. Os policiais ninja e outros com rostos pintados, parti-

112
Vítima reconhece PMs como seus torturadores.O GLOBO, 28/02/04.
113
Idem.
114
Informações fornecidas pelo Sub-Secretário da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Baía , em entrevista à equipe do Centro de
Justiça Global, em 02/10/04.
115
“PM sobe a Rocinha e 3 adolescentes são mortos”. O Globo, 23/02/2004.

43
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

ciparam da operação, chegando à favela de apenas 13 anos, estudava na 3a série,


de madrugada, por volta das 4 ho- tomava conta das três irmãs menores e tra-
ras.Conforme depoimento do Presidente da balhava na feira no fim-de-semana. L.F.M.
Associação de Moradores da Rocinha, estudava informática e não tinha motivo
William de Oliveira, a Associação espera- algum para se envolver com o tráfico, re-
va que o BOPE reforçasse o policiamento latou o seu pai, o garçom Dílson Madeira.
119
de modo preventivo, apenas para garantir L. estudava mecânica.
a tranquilidade dos festejos, mas que não Em manifestação pública de protesto
fariam qualquer operação mais ofensiva pelo assassinato dos jovens, os morado-
contra os moradores do local, tanto que res da Rocinha levaram os corpos de
nem cancelaram o baile funk e o baile de L.F.M. e L.S.S para a entrada da favela.
carnaval. Cerca de cinco mil pessoas cir- Após umas cinco horas de manifestação,
culavam pela favela quando os policiais os corpos foram retirados do local. Du-
116
chegaram e mataram os três adolesentes. rante todo o tempo que lá estiveram, fo-
120
Na versão contada por moradores, os ram velados pelos moradores.
policiais militares do BOPE (Batalhão de Segundo o delegado Paulo Souto, ape-
Operações Especiais da Polícia Militar), sar da proibição expressa da Secretaria de
após balearem os rapazes, tentaram com Segurança Pública do Rio de Janeiro de
uma faca retirar um projétil da perna de qualquer incursão do BOPE na Rocinha
um dos adolescentes para evitar que fi- durante o carnaval, a operação relâmpa-
casse uma prova no corpo. Além disso, go teria sido motivada pelo recebimento
os rádios e celulares encontrados ao lado de um grande número de denúncias de
dos corpos foram colocados pelos própri- que traficantes aproveitariam o desfile de
os policiais para incriminar os adolescen- carnaval para invadir e tomar as “bocas-
117 121
tes mortos. Nenhuma arma foi encon- de-fumo” na favela. Afirmou ainda, que
trada com as vítimas, que também não ti- policiais do BOPE entraram para resguar-
118
nham antecedentes criminais. dar o acesso à favela pela mata, enquanto
Familiares dos jovens negam veemen- outros policiais, de batalhões do Leblon,
temente que eles tivessem qualquer envol- Copacabana, Praça da República, da Ban-
vimento com o tráfico. Segundo os mes- deira e do Grupamento Especial Tático
mos, no momento em que foram aborda- Móvel (GETAM), guardavam outros aces-
dos, os jovens estavam simplesmente vol- sos e que o BOPE só reagiu porque teria
122
tando pra casa pra ir dormir um pouco an- sido recebido com tiros .
tes de trabalharem numa feira no Jardim No dia 26 de fevereiro de 2004, mora-
Botânico. Contou o pai de J. que o filho, dores e familiares das vítimas reuniram-se

116
Idem.
117
“Rocinha: deputados ouvem parentes”. O Globo, 28/02/2004.
118
“Rocinha: deputados ouvem parentes”. O Globo, 28/02/2004.
119
“PM sobe a Rocinha e 3 adolescentes são mortos”. O Globo, 23/02/2004.
120
Idem.
121
Pontos de venda de drogas.
122
Ibidem.

44
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

com o secretário de segurança pública, policiais, que sustentavam que os jovens


Anthony Garotinho, que novamente proi- seriam traficantes e teriam morrido numa
biu quaisquer ações da tropa de elite troca de tiros. Para o secretário, o fato de
(BOPE) na Rocinha por 60 dias. Garoti- os moradores terem retirado os corpos do
nho justificou a decisão devido à visível lugar para exíbi-los em protesto na pista
animosidade da comunidade com o BOPE. seria uma suspeita de que não queriam
124
Afirmou o secretário que já tinha determi- deixar fazer o exame do local intacto.
nado ao comandante-geral da Polícia Mi- As investigações estão sendo realiza-
125
litar à época, coronel Renato Hottz, que das pelo 15a Delegacia de Polícia. Em
não houvesse ações do BOPE durante o resposta a um ofício enviado pelo Centro
126
carnaval e que a ordem foi descumprida. de Justiça Global à Corregedoria Geral
A versão do comandante do BOPE, Fer- Unificada sobre procedimentos investiga-
nando Príncipe, é de que tinha sido solici- tórios instaurados para apurar a morte das
tado pelo coronel Jorge Braga, do 23o vítimas, foi informada a abertura de sin-
Batalhão da Polícia Militar, para fornecer dicância contra os policiais envolvidos na
127
reforço devido à presença de traficantes no operação. O Corregedor-auxiliar da Po-
local e que os três rapazes mortos seriam lícia Militar do Rio, Luís Carlos Castanheda,
123
traficantes. informou os nomes dos policiais que par-
Já no dia 27 de fevereiro de 2004, um ticiparam da incursão na Rocinha e cuja
128
dia após se reunir com os familiares dos conduta está sendo apurada. Em 24 de
jovens assassinados e prometer uma in- março de 2004, o procedimento instaura-
vestigação isenta do caso, o secretário de- do pelo registro de ocorrência nº 466 da
a
fendeu a polícia. Disse que não iria punir 15 . Delegacia de Polícia para apurar o fato
o coronel Carlos Guedes, chefe do Esta- foi remetido à 1ª Central de Inquéritos, na
do Maior da Polícia Militar que ordenou pendência da oitiva dos policiais militares
a entrada do BOPE (Batalhão de Opera- e juntada de peças técnicas. Em 15 de abril
ções Especiais da Polícia Militar), e levan- de 2004, o procedimento retornou à 15ª
tou a suspeita de que a cena do crime te- Delegacia de Polícia para cumprir forma-
129
nha sido modificada para incriminar os lidades no prazo de 90 dias.

123
“BOPE proibido de pisar na Rocinha”. O Dia on line, 27/02/2004, http://odia.ig.com.br/policia/pl270201.htm. Também: “ Estado
faz acordo com Rocinha”. JB on line http://jbonline.terra.com.br .
124
“Garotinho não irá demitir coronel que ordenou operação na Rocinha”. Folha de S. Paulo, 28/02/2004.
125
“Polícia insiste que jovens mortos eram bandidos”. O Globo, 24/02/2004.
126
Ofício JG/RJ 170/04, de 06 de julho de 2004.
127
Processo n E-32/0612/0006/2004, de 26 de fevereiro de 2004, em apuração na corregedoria geral unificada.
128
Informação referente ao processo e-32/0612/0006/2004, da Corregedoria auxiliar –PMERJ para a Corregedoria Geral Unificada, em 07
de julho de 2004. Policiais militares do Bope que participaram da incursão na Rocinha: Major PM Fábio Almeida de Souza; 1o Ten PM Alex
Bevenudo Santos, 1 o Tem Pm Álvaro Marques de Andrade Neto, 2o Sgt PM Joaquim de Souza Filho; 3o Sgt PM Hélio Nascimento da Silva,
Cb Pm Jorge Luiz Pedro; Sd Pm Jailton de Matos Fernandes; Sd Pm Marco Aurélio Pires de Carvalho; Sd Pm Alexandre da Silva Souza;
Sd Pm Renato Nunes de Almeida; Sd Pm William Gomes Amado Ramos; Sd PM Flávio Flau Matos da Silva; Sd PM Peri da Silva; Sd Pm
Carlos Alberto de R. Cerqueira; Sd PM Hermes Marques da Silva Cordeiro; Sd PM Fabiano santso de Jesus; sd PM André Ricardo dos
Santos; Sd Pm Marcelo Sampaio de Menezes; Sd Pm Jean Fábio Passos dos Anjos; Sd PM Gilberto de Souza Mouzinho Filho; Sd PM
Antônio Maria Bezerra; Sd Pm Adriano José de Souza Santos.
129
Idem.

45
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Concluindo, informou ainda a Corre- drogas ali são controlados pela facção
gedoria que “até a presente data os poli- criminosa Comando Vermelho (CV) - e
ciais militares que participaram da incur- por uma atuação truculenta da polícia.
são policial na favela da Rocinha perma- Já em maio de 2000 - quando uma
necem no desempenho de suas ativida- operação policial na comunidade resultou
130
des normais”. Ou seja, apesar das for- na execução de 5 jovens e desencadeou a
tes evidências de conduta criminosa, até revolta de milhares de moradores que des-
o fechamento deste relatório, os policiais ceram o morro para protestar no asfalto de
continuavam impunes e não foram afas- Copacabana, causando impacto entre a
tados de suas funções no decorrer das in- classe média e alta da cidade - o governo
vestigações, que seguem morosas. do Rio de Janeiro foi levado a anunciar a
Em 24 de setembro de 2004, o Cen- realização de uma experiência-piloto no
tro de Justiça Global enviou um informe Pavão Pavãozinho, que descartasse o mo-
(ofício JG/RJ n° 234/04) sobre o caso aci- delo das incursões “relâmpago” dos poli-
ma narrado para a Relatoria Especial da ciais e fornecesse um policiamento perma-
ONU sobre Execuções Extrajudiciais, nente e comunitário aos moradores dessas
Sumárias ou Arbitrárias. comunidades: o Grupo de Policiamento em
132
Áreas Especiais (GPAE).
n Alexandre Firmino Souza, André da Idealizado pelo ex-secretário estadual
Conceição Oliveira e E. L. M. - Pavão- da Segurança Pública, Luís Eduardo Soa-
Pavãozinho, Rio de Janeiro res, e coordenado à época pelo sociólogo
e major da Polícia Militar Antônio Carlos
O Morro do Pavão-Pavãozinho loca- Carballo, o GPAE foi implantado na co-
liza-se em uma das áreas mais nobres da munidade Pavão-Pavãozinho e Cantagalo
cidade do Rio de Janeiro, entre os bairros em setembro de 2000. A ação original do
de Copacabana, Ipanema e a Lagoa Grupamento foi baseada no esforço contí-
Rodrigo de Freitas, apresentando uma nuo de aplicação de novas estratégias de
população estimada entre 17 e 20 mil ha- prevenção e repressão qualificada do deli-
bitantes e uma média total de 4000 mora- to, a partir da filosofia da Polícia Comuni-
131 133
dias. Como a grande maioria dos mor- tária. Essencialmente preventiva e, ape-
ros cariocas, sempre foi uma área pobre, nas eventualmente, repressiva, contou com
marcada pela extrema ausência de políti- a integração dos serviços e com a mobili-
cas públicas urbanas, pelo domínio do trá- zação de instituições, líderes comunitários
fico de drogas - os pontos-de-venda de e outros parceiros que pudessem contribuir
134
para o desenvolvimento social.
130
Ibidem.
131
http://www.policiamilitar.rj.gov.br/gpae/historico.htm
132
Texto “O Descaso dos Governantes” , do Professor Ignácio Cano. Publicado em:.http://patricia.cad.fiocruz.br/
mural_msg.asp?tema=4&assunto=1
133
http://www.policiamilitar.rj.gov.br/gpae/doutrina.htm
134
Reportagem “Um novo cotidiano para as favelas cariocas”, publicada na página http://www.comciencia.br/reportagens/violencia/
vio03.htm. Na mesma reportagem:’Cumprindo o papel de articular e integrar esses diferentes atores socais em torno de um objetivo
comum, inseriu-se no projeto do GPAE o Conselho de Entidades e Lideranças Comunitárias, composto por organizações
governamentais, como polícia, escola, Secretarias de Governo e outras e, por entidades não governamentais, como Igrejas, Associações
de Moradores, Escola de Samba, e ONGs”.

46
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

Nos primeiros anos da experiência, o Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, Maria


comprometimento dos primeiros coman- Alzira Barros do Amaral, em fevereiro de
dantes do GPAE fez o projeto alcançar 2004 foi entregue à Secretaria de Segu-
resultados significativos. Durante alguns rança Pública do Estado do Rio de Janei-
meses, os tiroteios e as vítimas fatais pra- ro um documento com queixas contra a
ticamente não existiam, chegando a re- atuação da polícia militar na comunidade
duzir a zero o número de homicídios e e nenhuma providência foi tomada no
135
ocorrências de “bala perdida”. Cerca de sentido de inibir as práticas ilegais denun-
137
50 policiais foram afastados por existirem ciadas ou repreender os maus policiais.
fortes evidências de comprometimento de O desfecho mais trágico dessa atua-
suas idoneidade moral, profissional e de ção desvirtuada do GPAE não tardou a
suas ações policiais perpetradas contra acontecer. No dia 03 de março de 2004,
civis, caracterizadas por maus tratos, vio- policiais do GPAE foram acusados por
lência arbitrária, uso excessivo da força e moradores de desencadear um tiroteio e
136
abuso de poder. executar três jovens no morro Pavão-
138
Entretanto, com o decorrer do tempo, Pavãozinho.
o descaso do poder público e as primei- Segundo a secretária da Associação de
ras mudanças de comando do grupamento Moradores do Pavão Pavãozinho, Maria
139
contribuíram para o declínio da iniciati- Fernanda Duarte Faustino , tudo come-
va. Os tiroteios voltaram e moradores pas- çou por volta das 19 horas do dia 03 de
saram a denunciar o cometimento de abu- março de 2004, momento em que os mo-
sos por parte de policiais do GPAE, tais radores ouviram os primeiros fogos de ar-
140
como invasão de domicílios, falta de iden- tifício. Dois minutos depois, policiais do
tificação e não uso do fardamento pelos GPAE apareceram já efetuando disparos.
policiais militares, uso de “toucas ninja”, Eles estavam sem farda, com rostos pinta-
camisas pretas, armamento pesado, práti- dos, camisas pretas, toucas, boinas e for-
ca de extorsão e maus-tratos contra os temente armados. A justificativa para a
moradores, entre outros. Segundo a Pre- ação, apresentada pelo major Marco Au-
sidente da Associação de Moradores do rélio dos Santos e não confirmada pelos

135
Ibidem. Só no período de janeiro a setembro de 2000, haviam sido registrados 10 homicídios na localidade.

136
http://www.comciencia.br/reportagens/violencia/vio03.htm. Segundo o Major Carballo, através do GPAE, com o encaminhamento de
demandas e expectativas da comunidade e a interlocução entre a comunidade e outros órgãos públicos, houve efetivamente a redução do
medo da polícia e uma série de benefícios foram trazidos para a comunidade como: presença regular e interativa da polícia ostensiva; redução
da presença ostensiva de armas de fogo no interior das comunidades; redução do número de crianças envolvidas em práticas criminosas;
redução do número de casos envolvendo policiais em ações de maus tratos, violência arbitrária ou abuso do poder; inclusão de mais de 100
famílias no Programa de Segurança Alimentar do Governo do Estado (Programa Cheque-cidadão); cadastramento e matrícula de 180 jovens,
na faixa etária de 16 a 24 anos, em Programas de Aumento de Escolaridade e Capacitação Profissional (Programa Todos pela Paz); implantação
e construção do Espaço Criança Esperança, de iniciativa da Unicef, em parceria com o Gpae, Secretaria de Estado de Ação Social e Viva Rio.
137
“Entidade fez queixas há duas semanas”. Folha de S. Paulo, 05/03/2004.
138
“Tiroteio deixa três mortos em Copacabana”.Folha de S. Paulo, seção Cotidiano, 04/03/2004.
139
Depoimento de Maria Fernanda Duarte Faustino ao Centro de Justiça Global no dia 05 de agosto de 2004, na Associação de
Moradores do Pavão- Pavãozinho e Cantagalo.
140
Nos morros cariocas, soltar fogos é sinal de alerta usado pelos traficantes para avisar que policiais estão subindo o morro e as
drogas devem ser recolhidas. Pelas ameaças de tiroteio e balas perdidas, serve também como sinal para outros moradores, não
envolvidos com o tráfico, evacuarem as ruas.

47
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

moradores, foi de que quando os policiais levou um tiro, os policiais botaram um saco
chegaram a uma localidade conhecida plástico preto na cabeça dele e começa-
a 14
como 5 Estação, teriam sido cercados por ram a dar pauladas”. Alexandre tinha 27
traficantes armados com fuzis, revólveres anos, trabalhava como faxineiro em um
141
e pistolas. prédio em Copacabana e deixou dois fi-
145
Logo após, somando-se aos policias do lhos pequenos.
o o
GPAE, policiais do 19 e 2 Batalhão da André Conceição de Oliveira, 26 anos,
Polícia Militar e do Grupamento Especial foi executado em frente a uma boca-de-
146
Tático Móvel (GETAM) começaram a su- fumo. Era um ex-gari comunitário, pai de
bir o morro. Nesse momento, muitos poli- cinco filhos com idade entre 01 a 09 anos
ciais chegaram a ser impedidos de subir e procurava emprego naquela época. E. L.
por moradores (entre eles havia muitas M., 17 anos, foi baleado em um local co-
a
mulheres e crianças) que, temerosos de que nhecido por 5 Estação. Segundo sua mãe,
acontecesse uma tragédia de maiores pro- a artesã Josinete Araújo, ele trabalhava aju-
porções como outras já vivenciadas, des- dando os pais na Feira de Ipanema e dei-
ceram o morro e fizeram uma trincheira xou uma namorada grávida de seis me-
147
na entrada da comunidade, no bairro de ses. Segundo testemunhas, não houve
142
Copacabana. nenhuma reação por parte das vítimas que
148
Na operação morreram os jovens Ale- motivasse a truculenta ação policial.
xandre Firmino de Souza, E. L. M. e André Depois do tiroteio, os policiais desce-
da Conceição Oliveira. Segundo relato dos ram carregando as três vítimas, já mortas,
149
moradores, Alexandre foi atingido quan- para o Hospital Miguel Couto.
do tomava cerveja em um bar. Os policiais Na versão relatada pelos integrantes do
chegaram mandando todo mundo correr e GPAE, eles alegam que houve reação por
ordenando que somente o mesmo perma- parte das vítimas. O Comandante do GPAE
necesse. Atiraram contra Alexandre, po- à época, Major Marco Aurélio, afirmou que
rém, como ele não morreu no mesmo ins- os três jovens eram traficantes e que com
tante, levaram seu corpo para dentro do eles teriam sido apreendidas duas pistolas
mato, onde o torturaram e depois o execu- e um revólver. Entretanto, nenhum deles
143
taram. Outro morador afirmou que tinha passagem pela polícia, sendo que
Firmino foi morto a pauladas: “Depois que Alexandre Firmino não tinha o menor

141
“Oito Pm´s presos por mortes em Copacabana”l. O Globo, 06/03/2004
142
“Terror em Copacabana”. O Dia, 04/03/2004
143
Depoimento de Maria Fernanda Faustino ao Centro de Justiça Global no dia 05 de agosto de 2004, na Associação de Moradores do
Pavão-Pavãozinho.
144
“Terror em Copacabana”. O Dia, 04/03/2004
145
“Oito Pm´s presos por mortes em Copacabana”. O Globo, 06/03/2004
146
Ponto de venda de drogas.
147
“Oito Pm´s presos por mortes em Copacabana”. O Globo, 06/03/2004
148
Depoimento de Maria Fernanda Faustino ao Centro de Justiça Global no dia 05 de agosto de 2004, na Associação de Moradores do
Pavão-Pavãozinho.
149
Idem.

48
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

envolvimento com o tráfico, o que inclusi- Nesse dia, o Comandante da Polícia Mili-
ve foi admitido publicamente pelo Secre- tar à época, Coronel Renato Hottz, orde-
tário de Segurança Pública do Rio de Ja- nou a prisão administrativa de oito polici-
150
neiro, Anthony Garotinho. ais do GPAE por terem sido encontrados
No dia seguinte, 04 de março de 2004, em seus armários toucas ninja e camisas
cerca de 300 pessoas participaram de uma pretas que não fazem parte do uniforme
153
manifestação contra a violência, fechando padrão da polícia militar. Houve acare-
a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. ação na Associação de Moradores e todos
Nesse mesmo dia, uma comissão de mora- os oito PM’s foram reconhecidos pelos
154
dores reuniu-se com o Secretário de Segu- moradores.
rança Pública, Anthony Garotinho, e o Sub- Em resposta ao ofício do Centro de
Secretário de Segurança Pública, Marcelo Justiça Global pedindo informações sobre
Itagiba, por volta das 16 horas, para narrar as investigações e o andamento do inqué-
151 155
os fatos e pedir providências imediatas. rito , a Corregedoria Unificada informou,
Em relação aos protestos dos morado- em documento enviado no dia 07 de julho
res contra a operação policial e a morte dos de 2004, que “em consulta ao boletim de
três jovens, a resposta da Secretaria de Se- ocorrência da PMERJ nº 19, de 08/03/04,
gurança só reforçou o discurso estigmati- verificou-se a punição dos policiais mili-
o
zado contra os favelados. Ao invés de se tares 1 TEN PM RG 63402 Antônio
solidarizar com os moradores e familiares Ludogero da Silva Neto, SD PM RG 68181
das vítimas, comprometendo-se com a ado- Arnaldo Damião Cavalcanti, SD PM
ção das medidas urgentes necessárias, a 60339, Marco Aurélio Régis, SD PM RG
declaração de Anthony Garotinho na im- 74527, Rogério do Carmo Vieira, SD PM
prensa foi a de que os manifestantes, iden- RG 79127, Vinícius Fernandes da Cunha
tificados através de imagens de TV, iriam Braga, Sd PM RG 79155, Wallace Simas
ser indiciados por crime de associação ao das Neves, SD PM 68128, Marcelo
152
tráfico. Rolemberg da Costa, Sd PM RG 77833,
No dia seguinte, 05 de março de 2004, Carlos Felipe Jacobs, Sd PM RG 78402,
o Inspetor Chefe da Polícia Militar, Coro- Kleicy Layangle de Castro Maia, SD PM
nel João Carlos Ferreira, esteve no morro RG 64021, Bruno César Pinheiro Caldei-
para fazer uma inspeção e ouvir testemu- ra, SD PM RG 65500, Maurício Ramos de
nhos das pessoas e familiares das vítimas. Oliveira e SD PM RG 78746, Carlos

150
“Morto em tiroteio era inocente, diz Garotinho”. Folha de S. Paulo, 05/03/2004
151
“Moradores descem Morro para protestar”. Folha de S. Paulo, 15 de março de 2004. Depoimento de Maria Fernanda Faustino ao
Centro de Justiça Global no dia 05 de agosto de 2004, na Associação de Moradores do Pavão-Pavãozinho.
152
“Oito Pm´s presos por mortes em Copacabana”. O Globo, 06/03/2004.

Informação do Corregedor Auxiliar PMERJ Sérgio Antunes Barbosa à Corregedoria Geral unificada, 13 de julho de 2004. Instaurada
investigação através da Portaria 140/2538-04, para apurar o tumulto ocorrido nas ruas do bairro de Copacabana, promovido por
moradores do Morro Pavão Pavãozinho. Ambas as sindicâncias estão em curso.
153
idem.
154
Depoimento de Maria Fernanda Duarte Faustino ao Centro de Justiça Global no dia 05 de agosto de 2004, na Associação de
Moradores do Pavão- Pavãozinho e Cantagalo.
155
Ofício JG/RJ 189/2004 para a Corregedoria Geral Unificada das Polícias Civil, Militar e do Corpo de Bombeiros Militar

49
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Alberto Peixoto Filho, todos do GPAE, pelo Pavãozinho. No dia 23 de agosto de 2004,
fato de, sem qualquer autorização, esta- policiais do GPAE executaram um jovem
rem de posse de material desqualificado de 16 anos, gerando muita revolta e pro-
159
para o uso da preservação da ordem pú- testos entre os moradores , e evidencian-
blica, culminando o evento noticiado pelo do o quanto os atuais resultados do proje-
Jornal O Dia, ocorrido no bairro de Copa- to de policiamento na comunidade (GPAE)
cabana em 03/03/04”. estão distantes dos pilares que o origina-
a
Sobre o inquérito instaurado pela 13 ram, sendo necessária a implementação de
Delegacia de Polícia, chefiada pelo Dele- uma política de resgate e revitalização dos
gado Ivo Raposo, não foram fornecidas mesmos urgentemente.
156
maiores informações. No dia 04 de setembro de 2004, nova
Ocorre que, segundo depoimento de incursão da polícia militar atormentou os
um dos moradores, menos de um mês após moradores do Pavãozinho. A operação co-
as execuções, os policiais punidos admi- meçou por volta das 4h e só terminou às
nistrativamente já estavam em plena atua- 7h. Escolas e creches foram fechadas nes-
ção na própria comunidade, transitando te dia. Tiroteios seguidos de explosões de
157
livremente entre os moradores. Se por granada deixaram em pânico a população.
um lado o Major Marco Aurélio do GEPAE Acessos a diversas ruas foram interrompi-
foi afastado por suas ações arbitrárias, dos. Em torno de 466 policiais militares
quem assumiu interinamente o posto foi o foram mobilizados. Nisso tudo, mais estar-
tenente Antônio Ludogero da Silva Neto, recedora foi a forma como a mídia e o go-
policial responsável pela operação polici- verno construíram a legitimidade da ação.
158
al do dia 03 de março último. O foco principal era a proteção da vida dos
Em 10 de setembro de 2004, o Centro moradores de classe média alta dos bair-
de Justiça Global enviou um informe (ofí- ros que o Pavãozinho entorna. Para evitar
cio JG/RJ n° 224/04) sobre o caso acima que balas perdidas cruzassem novamente
narrado para a Relatoria Especial da ONU o asfalto de Copacabana, Ipanema,
sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias Leblon, balas foram disparadas a esmo no
ou Arbitrárias. morro, expondo ao perigo assim todos os
Nesse contexto, outra operação trági- moradores da comunidade de Pavão-Pa-
ca não tardou a acontecer no Morro do vãozinho – como se a necessidade de pre-

156
Informação do Corregedor Auxiliar PMERJ Sérgio Antunes Barbosa à Corregedoria Geral unificada, 13 de julho de 2004: 2.1 –
averiguação instaurada pela portaria e-09/096/2558/04, que apurou os dados obtidos através da supervisão efetivada pela inspetoria
geral/SSP, na sede do GPAE, que resultou na observação de irregularidades praticadas por policiais daquele grupamento, culminando
na punição de nove policiais militares e instauração de IPM para aprofundamento nas investigações relacionadas aos indícios de crime
militar coletados; 2.2 – foram instauradas duas sindicâncias, a saber: através da portaria 139/2538-04, para apurar o confronto armado
no Morro do Pavão Pavãozinho, sendo esta a de maior interesse para o tema trazido pela organização Justiça Global; pela Portaria 140/
2538-04, para apurar o tumulto ocorrido nas ruas do bairro de Copacabana, promovido por moradores do Morro Pavão Pavãozinho.
Ambas as sindicâncias estão em curso; 2.3 – por fim, foi instaurado IMP, pela portaria 0178/2538/2004, para apurar crime militar(…).
Este ainda em curso.
157
Depoimento de Maria Fernanda Duarte Faustino ao Centro de Justiça Global no dia 05 de agosto de 2004, na Associação de
Moradores do Pavão- Pavãozinho e Cantagalo.
158
idem
159
“Tiroteio em favela tumultua Copacabana”. O Globo, 24 de agosto de 2004. Nome do jovem não divulgado pela imprensa.
160
“A Guerra do Rio - Zona Sul, campo de batalha – Confronta da PM com tráfico apavora Ipanema e Copacabana. Balas atingem
prédios”. O Globo, 04/09/04

50
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

160
servação da vida desses fosse menor. e mais três carros da polícia, que vinham
164
Até a conclusão do presente relatório, logo atrás. Um dos policiais se aproxi-
ainda estavam em curso as investigações mou de E. e atirou sem que o mesmo pu-
para apurar os fatos que levaram a morte desse ao menos saber o que estava acon-
de Alexandre Firmino Souza, André da tecendo. Foram três tiros, um em cada bra-
161
Conceição Oliveira e E. L. M. Não nos ço e um no peito. Seu irmão, W. E. M., 09
foi enviada mais nenhuma informação a anos, não resistiu à cena que presenciou e
respeito do caso pela Secretaria de Estado desmaiou, despertando somente algumas
165
de Direitos Humanos. horas depois.
Neste momento, Ricardo, que também
n E.A. M. e Ricardo Marques de Freitas estava no campo de futebol “Coreia” sol-
– Manguinhos, Rio de Janeiro tando pipa com seu irmão M. A., 08 anos,
presenciou a chegada dos policiais e a exe-
No dia 04 de junho de 2004, aproxi- cução de E.. Ele ficou assustado com a ce-
madamente às 12h, E. A. M., na compa- na e correu. A partir de então foi persegui-
nhia de seu irmão, W. E. A. M., de 09 anos, do pelos mesmos policiais à paisana que
alimentava seu cavalo em um campo de atiraram em E., que encurralaram-no em
futebol conhecido como “Coreia”, nas um beco. Eles ordenaram que Ricardo fi-
162
proximidades de sua casa. casse de joelhos. Uma moradora, que as-
A Sra. Ana Cristina, tia de E., que mora sistia a tudo da porta da sua casa, foi amea-
próximo ao campo de futebol, estava em çada para que entrasse e não contasse a
166
casa quando ouviu um forte barulho de ninguém o que estava presenciando.
moto e saiu para ver o que estava aconte- Marcos, irmão de Ricardo, que estava
cendo, uma vez que da laje da sua casa voltando do trabalho, assistiu a cena do seu
pode-se ver todo a extensão do campo de irmão que, de joelhos e de costas para os
163
futebol. policiais, pedia para que não o matassem.
Ela relatou para a família que avistou Sem dar ouvidos ao que Ricardo falava,
uma moto entrando no campo em alta ve- os policiais desferiram dois tiros nas suas
167
locidade com dois homens, não fardados, costas.

161
Vide nota 70.
162
As informações foram fornecidas pela senhora Andrea Alves da Penha, irmã de E. M. e pelo senhor Marcos Aurélio Marques de
Freitas, irmão de Ricardo Marques de Freitas, à equipe do Centro de Justiça Global no dia 08 de julho de 2004 no CCAP – Centro de
Cooperação e Atividades Populares, comunidade de Manguinhos.
163
As informações foram fornecidas pela senhora Andrea Alves da Penha, irmã de E. A. M. à equipe do Centro de Justiça Global no dia
08 de julho de 2004 no CCAP – Centro de Cooperação e Atividades Populares, comunidade de Manguinhos.
164
Os familiares das vítimas acreditam que estes homens seriam policiais à paisana porque estes estavam durante todo o tempo
conversando com os policiais militares fardados.
165
As informações foram fornecidas pela senhora Andrea Alves da Penha, irmã de E. A. M. à equipe do Centro de Justiça Global no dia
08 de julho de 2004 no CCAP – Centro de Cooperação e Atividades Populares, comunidade de Manguinhos.
166
As informações foram fornecidas pelo senhor Marcos Aurélio Marques de Freitas, irmão de Ricardo Marques de Freitas, à equipe do
Centro de Justiça Global no dia 08 de julho de 2004 no CCAP – Centro de Cooperação e Atividades Populares, comunidade de
Manguinhos.
167
As informações foram fornecidas pelo senhor Marcos Aurélio Marques de Freitas, irmão de Ricardo Marques de Freitas, à equipe do
Centro de Justiça Global em 08 de julho de 2004 no CCAP – Centro de Cooperação e Atividades Populares, comunidade de
Manguinhos.

51
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Diante do irmão da vítima, os policiais entraram dois policiais militares que o amea-
vestiram luvas cirúrgicas e colocaram uma çaram. Ao sair da sala, Marcos queixou-se
arma na mão de Ricardo já morto, e amea- ao delegado sobre a ameaça que havia re-
çaram Marcos dizendo que se contasse cebido dos policiais, ao que o delegado
172
algo do que estava vendo seria o próximo apenas afirmou: “…É assim mesmo!”.
168
da família a morrer. E. A.. M. e Ricardo Marques de Freitas
Depois de ouvir os tiros, a família de já chegaram sem vida ao hospital. Andréa,
E. correu para ver o que tinha ocorrido. irmã de E., conta que foi até o hospital,
Muitas pessoas e também a mãe da vítima porque acreditava que o irmão ainda pu-
169
começaram a chamar os policiais de as- desse sobreviver. No hospital, ela reco-
sassinos. Um deles se aproximou da mãe nheceu os policiais que haviam levado seu
de E. colocou uma arma próxima a sua irmão e disse que ouviu quando eles co-
cabeça e efetou vários disparos para o alto, mentaram que haviam matado a pessoa
tentando desta forma assustá-la. Após o errada. Segundo Andréa, seu irmão esta-
tumulto, os policiais levaram os corpos va usando um corte e uma cor de cabelo
para o hospital de Bonsucesso, zona norte que muitos rapazes na comunidade tam-
do Rio de Janeiro. bém costumavam usar, fato que teria con-
Marcos seguiu para a 21ª Delegacia de fundido os policiais, mas que certamente
170
Polícia . No caminho, ele viu o carro da nunca justificaria a abordagem utilizada
173
polícia em que estavam os corpos, e acre- por eles e a execução sumária efetuada.
dita que os policiais estavam se certifican- Marcos foi até à Coordenadoria de Re-
do se os rapazes estavam realmente mor- cursos Especiais da Polícia Civil (CORE) e
tos, pois notou marcas no rosto do irmão, fez o retrato falado dos policiais. Depois de
que não eram visíveis no momento dos efetivar a identificação, o depoente conta
disparos. Com medo, Marcos não se apro- que policiais que estavam presentes no dia
ximou do carro, mas afirma que este ficou do assassinato do seu irmão, têm ido cons-
171 174
pelo menos 20 minutos parado na rua. tantemente até seu trabalho na Fundação
Na delegacia ele contou tudo o que viu Oswald Cruz, e ficam rondando o local
para o delegado, este tomou seu depoimen- como se o estivessem vigiando. Andréa, que
to e depois o colocou em uma sala para trabalha no mesmo local, afirmou que tam-
175
aguardar alguns procedimentos. Nessa sala bém está sendo vigiada pelos policiais.

168
Idem.
169
Neste momento estavam juntos os policiais militares fardados e os policiais militares à paisana.
170
A 21ª Delegacia de Polícia é a delegacia que atende a comunidade de Manguinhos.
171
As informações foram fornecidas pelo senhor Marcos Aurélio Marques de Freitas, irmão de Ricardo Marques de Freitas, à equipe do Cen-
tro de Justiça Global no dia 08 de julho de 2004 no CCAP – Centro de Cooperação e Atividades Populares, comunidade de Manguinhos.
172
Idem.
173
As informações foram fornecidas pela senhora Andrea Alves da Penha, irmã de E. A..M. ao time do Centro de Justiça Global em 08 de
julho de 2004 no CCAP – Centro de Cooperação e Atividades Populares, comunidade de Manguinhos.
174
Segundo Marcos Aurélio, a última vez que os policiais militares estiveram em seu trabalho, foi na manhã do dia 03/08/04.
Informações fornecidas à equipe do Centro de Justiça Global, pelo telefone, no dia 03/08/04.
175
As informações foram fornecidas pela senhora Andrea Alves da Penha, irmã de E. A .M. e pelo senhor Marcos Aurélio Marques de
Freitas, irmão de Ricardo Marques de Freitas, à equipe do Centro de Justiça Global no dia 08 de julho de 2004 no CCAP – Centro de
Cooperação e Atividades Populares, comunidade de Manguinhos.

52
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

E. tinha apenas 16 anos, morava com fechamento deste relatório, que estas duas
a irmã há 04 anos, havia estudado até a 1ª pessoas na motocicleta eram policiais à
série do ensino médio, e fazia trabalhos paisana e estavam acompanhadas de ou-
informais para ajudar a família. Ricardo tros policiais fardados em viaturas.
tinha 26 anos, trabalhava como gari co- Em 11 de agosto de 2004, o Centro
munitário, no momento em que foi exe- de Justiça Global enviou um informe (ofí-
cutado estava uniformizado, deixou dois cio JG/RJ n° 202/04) sobre o caso acima
filhos, um de 03 meses e um de 07 anos, narrado para a Relatoria Especial da ONU
do seu primeiro casamento. A sua atual sobre Execuções Extrajudiciais, Sumári-
esposa tem sustentado seu filho com o as ou Arbitrárias.
176
aluguel da casa em que eles moravam.
A ocorrência foi registrada na 21ª De- n Cristiano Ríspoli Barros – Engenho
legacia de Polícia no mesmo dia, 04 de Novo, Rio de Janeiro
junho de 2004, por ambas as famílias, po-
rém, até a conclusão do presente relatório, Na noite de sábado, 05 de junho 2004,
Andréa e outras testemunhas, assim como Cristiano Ríspoli Barros, 25 anos, recém-
os familiares da segunda vítima, não fo- formado em informática e fazendo pós-
ram chamados a delegacia para prestar graduação na Pontifícia Universidade
depoimento ou qualquer esclarecimento Católica - PUC, voltava de uma festa na
177
sobre a morte dos dois rapazes. casa de um amigo. Ele dirigia seu automó-
Segundo informações fornecidas pelo vel ao lado de sua namorada e levava no
delegado de polícia, Dr. Flávio Lourei- banco traseiro uma amiga, Kátia Freitas
178 179
ro , existe um inquérito policial, IP n° Moreira.
021/04 132/2004, em andamento e algu- Por volta das 21 horas, após ter dei-
mas pessoas já foram chamadas para pres- xado sua namorada em um ponto de ôni-
tar depoimento. Entretanto, as informa- bus, Cristiano entrou com seu carro na rua
ções fornecidas acerca do conteúdo do Alan Kardec, no bairro de Engenho Novo,
180
inquérito policial descrevem fatos muito Rio de Janeiro. No mesmo momento,
diversos dos que foram descritos pelos seu carro deu um solavanco e logo em
familiares das vítimas. Contrariando os seguida houve pelo menos três disparos
depoimentos de moradores da comunida- efetuados por dois policiais militares do
de, a linha de investigação parte da idéia 3° Batalhão de Polícia Militar (BPM)
de que duas pessoas teriam roubado uma (Méier). Um dos tiros atingiu Cristiano na
moto e entrado na comunidade para ma- cabeça e o carro dele bateu contra um mu-
tar os rapazes, não reconhecendo até o ro. Ele morreu na hora devido a um tiro

176
Idem
177
As informações foram fornecidas pela senhora Andrea Alves da Penha, irmã de E. A . M., por telefone, à equipe do Centro de Justiça
Global no dia 02/10/2004.
178
O Dr. Flávio Loureiro é um dos delegados que realizam plantões na 21° Delegacia de Polícia. As informações foram fornecidas à
equipe do Centro de Justiça Global, por telefone, no dia 28 de julho de 2004.
179
“PM mata rapaz com um tiro de fuzil na nuca”. O Globo, 7 de junho de 2004
180
“PM mata rapaz com um tiro de fuzil na nuca”. O Globo, 7 de junho de 2004 e “Morte de analista de sistemas é investigada” Folha
de S. Paulo, 7 de junho 2004.

53
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

de fuzil 7,62 que entrou pela testa, um Roger Ancillotti, comprovou que não ha-
em cima do olho esquerdo, que saiu pela via vestígios de pólvora nas mãos de
181
nuca, fraturando todos os ossos. Cristiano. Além disso, segundo Ancilotti,
A amiga , que tinha ficado no banco a janela de Cristiano estava aberta e se-
de trás, saltou do carro com as mãos para gundo a família, Cristiano era fumante e
cima e foi abordada por um policial com não dirigia com os vidros do carro fecha-
um fuzil. Segundo seu depoimento, o dos, o que contraria a versão dos polici-
policial perguntou se havia armas no car- ais que alegaram não terem visto o interi-
186
ro e diante da resposta negativa levou a or do carro.
182
jovem para longe do local. No dia 29 de junho de 2004, o Minis-
Os dois policiais militares do 3° BPM, tério Público ofereceu denúncia contra os
Cléber Adriano de Oliviera e Anderson do policiais militares Anderson do Nascimen-
Nascimento Seixas, relataram que havi- to Seixas e Cléber Adriano Porta de Oli-
am estacionado no local e teriam se apro- veira, identificados na investigação poli-
ximado do veículo logo após o acidente. cial como os autores do assassinato de
187
Conforme a versão deles, nesse momen- Cristiano Rispoli. No documento apre-
to, o carro teria arrancado e sem enxergar sentado pelo Ministério Público, o promo-
quem estava no interior do automóvel tor de justiça relata que, segundo o apu-
devido aos vidros escuros, os policiais rado, o crime de homicídio foi praticado
teriam ouvido um barulho semelhante a porque a vítima, ao ingressar na rua Alan
um tiro e se assustado. Eles dispararam e Kardec, conduzindo seu veículo
183
um dos tiros matou Cristiano. automotor, invadiu a calçada e colidiu de
Depois do acontecimento a perícia foi raspão com um muro em frente ao local
ao local e encontrou dentro do carro um onde se encontravam os policiais milita-
projétil de fuzil e um revólver calibre 38, res denunciados, evidenciando a motiva-
que segundo um dos dois policiais teria ção fútil para o crime e a impossibilidade
184 188
sido usado por Cristiano. Contudo, to- de defesa da vítima.
dos os amigos e familiares de Cristiano O promotor de justiça esclarece ainda
afirmaram que ele jamais usou armas. que os policiais militares denunciados
Testemunhas que estavam no local afir- mantinham sob sua posse, sem a devida
maram que a arma teria sido colocada no autorização e em desacordo com determi-
185
veículo pelos próprios policiais. nação legal ou regulamentar, um revólver
O laudo do Instituto Médico Legal marca Taurus, calibre 38, com numeração
(IML) divulgado pelo diretor do órgão, de série raspada e que, após constatarem

181
“Amiga de jovem assassinado desmente PMs”. O Globo, 9 de junho 2004.
182
“Amiga de jovem assassinado desmente PMs”. O Globo, 9 de junho 2004.
183
“PM mata rapaz com um tiro de fuzil na nuca”. O Globo, 7 de junho de 2004.
184
“PM mata rapaz com um tiro de fuzil na nuca”. O Globo, 7 de junho de 2004.
185
“Amiga de jovem assassinado desmente PMs” . O Globo, 9 de junho 2004.
186
“Amiga de jovem assassinado desmente PMs” . O Globo, 9 de junho 2004.
187
Inquérito Policial n.º 2391/2004 – 25ª Delegacia de Polícia - Legal
188
Processo Penal n.º 2004.001.079475 – Denúncia.

54
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

as lesões fatais na vítima, os PM’s adulte- JG/RJ n° 186/04) sobre o caso acima nar-
raram o local do crime, simulando a arre- rado para a Relatoria Especial da ONU
cadação, no interior do veículo, da refe- sobre Execuções Extrajudiciais, Sumári-
rida arma de fogo que levavam ilegalmen- as ou Arbitrárias.
te consigo, a fim de induzir a erro o juiz ou
perito sobre a ilicitude do fato que resul- n T. S. M.., L. C. R.e Vladir Borges Furta-
tou a morte de Cristiano Rispoli, procuran- do Barbosa – Morro do Fogueteiro, Rio
do criar uma falsa noção de que teriam de Janeiro.
189
agido de forma legítima.
No dia 30 de Junho o juiz da 1ª Vara Na noite de sábado, 12 de junho 2004,
criminal do Tribunal de Justiça, Fabio os jovens T. S. M. O., 15 anos, estudante
Uchôa Pinto de Miranda Montenegro, de- da 6ª serie do colégio Municipal Francis-
cretou a prisão preventiva dos dois polici- co Cabrito, L. C. R.s, 16 anos e Vladir
190
as, que foram presos no mesmo dia. Borges Furtado Barbosa, 19 anos – todos
Segundo a família, os policiais respon- moradores do Morro do Fogueteiro - vi-
sáveis pela morte de Cristiano já respondi- nham de uma festa popular na Rua Barão
am a inquérito militar no 9° Batalhão de de Petrópolis, no bairro do Catumbi.
Polícia Militar (Rocha Miranda), do qual Segundo o delegado adjunto da 6ª
faziam parte anteriormente. Infelizmente Delegacia de Polícia, Dr. Leandro Gontijo,
este procedimento tem se tornado uma re- na mesma noite houve um assalto a um
gra, policiais militares que cometem deli- bar próximo àquela rua, que teria sido pra-
tos, são transferidos de seus batalhões ori- ticado por três homens. Gontijo relatou que
ginais para outros batalhões, quando na após o roubo houve um tumulto e os mo-
verdade deveriam ser suspensos de suas radores chamaram a polícia. Naquela noi-
atividades externas, evitando que cometes- te havia duas equipes do GETAM (Grupa-
191
sem novos delitos. mento Especial Tático-Móvel da Polícia
Até o fechamento do presente relató- Militar) na área do 1° Batalhão da Polícia
rio a família não soube informar se os Militar (Estácio), contabilizando cerca de
193
policiais militares acusados ainda estavam 12 homens.
aquartelados, segundo Leandro Ríspoli, Testemunhas relataram que os polici-
irmão de Cristiano, a advogada da famí- ais que chegaram ao local haviam passa-
lia tem sentido dificuldade em obter in- do pela Rua Barão de Petrópolis atirando,
192
formações sobre o caso. em busca dos possíveis assaltantes. Os três
Em 20 de julho de 2004, o Centro de jovens se assustaram e se esconderam de-
Justiça Global enviou um informe (ofício baixo de um carro. Lá eles foram localiza-

189
Idem
190
“Decretada a prisão de PM’s acusados de matar analista” . O Globo, 1 de Julho 2004 e “Presos soldados que fuzilaram
universitário”. O DIAonline, 1 de Julho de 2004
191
Informações fornecidas pela família de Cristiano Rispolli Barros, em entrevista à equipe do Centro de Justiça Global, no dia 22.07.04
192
Informações fornecidas pelo irmão de Cristiano, Leandro Ríspoli, em entrevista, por telefone, à equipe do Centro de Justiça Global,
no dia 02.10.04.
193
“Testemunhas acusam PM’s”. O GLOBO, 15 de Junho 2004

55
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

dos pelos policiais militares e foram domi- horas. Todos os acusados negaram que es-
nados e espancados ainda no local. Uma tivessem fazendo patrulhamento na Rua
testemunha viu o grupo de policiais, ao Barão de Petropólis naquela noite de sá-
lado de dois veículos modelo Blazer e um bado. Eles alegaram estar naquela hora fa-
199
modelo Gol com identificação da GETAM, zendo uma ronda na Rua do Riachuelo.
dando socos e pontapés nas três vítimas. É de extrema importância que o Go-
Um deles teria, inclusive, sido arrastado verno do Estado do Rio de Janeiro invista
pelos cabelos pelos PMs, que depois joga- em equipamentos que possibilitem saber
194
ram os três jovens dentro dos carros do com exatidão a localização das viaturas e
Grupamento Especial Tático-Movel não invista tão somente na recuperação da
195 200
(GETAM) e os levaram. sua frota ou na compra de novas viaturas.
Na manhã de domingo, 13 de junho Os veículos oficiais têm que ter o GPS (Sis-
201
de 2004, os corpos dos três rapazes fo- tema de Posicionamento Global) . Se os
ram encontrados na rua Dona Emília, no carros do GETAM envolvidos no referido
196
bairro de Inhaúma , com marcas de 13 caso possuissem este aparelho, os depoi-
disparos de armas de fogo, a maioria na mentos dos policiais seriam facilmente
197
cabeça. Os atestados de óbito compro- contraditados, pois seria possível indicar a
varam que a causa das mortes foram es- localização exata das viaturas no momen-
ses disparos. O diretor de Instituto Médi- to em que ocorreu o crime.
co-Legal, Roger Ancilotti, informou que No dia 21 de junho de 2004, todos
foram encontrados nos corpos cinco pro- eles foram colocados em liberdade. Se-
jéteis e um fragmento de bala de révolver gundo informações do advogado da fa-
calibre 38 e de pistola 380 e que os tiros mília eles estão fazendo trabalhos admi-
foram dados de uma distância de dois a nistrativos, realizando apenas serviços
198 202
três metros. burocráticos no quartel.
Dois dias depois da morte dos jovens, As testemunhas que haviam visto os
26 policiais militares do Grupamento Es- policiais batendo e dando socos nas víti-
pecial Tático-Móvel, suspeitos do crime, mas estão com medo de prestar depoimen-
ficaram presos administrativamente por 72 to, negando-se em realizar o reconheci-

194
Prisão para policiais suspeitos. O DIA online, 16 de junho, 2004
195
“Testemunhas acusam PM’s”. O GLOBO, 15 de Junho 2004
196
“Policiais são acusados de seqüestrar e matar três jovens no Rio de Janeiro”, Folha de S. Paulo, 15 de Junho 2004 e “Testemunhas
acusam PM’s”. O GLOBO, 15 de Junho 2004
197
“PMs do Getam são presos”. O GLOBO, 16 de Junho 2004.
198
Idem.
199
“PMs entregam armas particulares”. O GLOBO 17 de junho de 2004
200
“O Governo do Estado do Rio de Janeiro investiu no ano de 2003 R$ 1 milhão 248 mil 909 na recuperação de 800 viaturas da
Polícia Militar que ficaram paradas no governo anterior. O dinheiro foi aplicado na compra de peças (R$ 599 mil 909) e pneus e baterias
(R$ 649 mil).”. Polícia Civil website, 23 de dezembro de 2003, disponível em http://www. policiacivil.rj.gov.br/noticia.html
201
“GPS significa Global Positioning System. É um sistema de navegação com base em satélites artificiais que emitem sinais rádio com
informação sobre uma posição tridimensional, velocidade e tempo numa base de 24 horas.”. Disponível em http://www.ancruzeiros.pt/
anci-gps.html
202
Informação fornecida em entrevista ao Centro de Justiça Global pelo advogado dos familiares das vítimas, Dr. Marcos Diniz, no dia
08 de Julho 2004, e “Policiais suspeitos de matar jovens são soltos”. O Globo, 22 de Junho 2004.

56
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

mento dos policiais que estiveram no lo- Em 20 de julho de 2004, o Centro de


cal do crime naquela noite. A testemunha Justiça Global enviou um informe (ofício
principal do crime foi ameaçada por poli- JG/RJ n° 187/04) sobre o caso acima nar-
ciais militares, que o intimidaram ameaçan- rado para a Relatoria Especial da ONU
do que se testemunhasse sobre os fatos sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias
iria morrer. Por conseguinte, o reconheci- ou Arbitrárias.
203
mento dos policiais ficou inviabilizado.
O resultado dos testes de balística que n W. S., Morro da Pedreira , Rio de Janeiro.
foram realizados a fim de saber se os pro-
jéteis retirados dos corpos das vítimas fo- Na noite de sábado, 26 de junho 2004,
ram disparados pelas armas dos policiais W. S. estava a caminho de uma festa junina
204
suspeitos do crime, foi negativo. (festas populares tradicionais realizadas no
Nas sete patrulhas, usadas pelos poli- mês de junho) com sua prima M., 15 anos,
ciais responsáveis pela operação, foram quando foi assassinado por policiais mili-
retiradas aproximadamente 70 amostras de tares que entraram na favela atirando.
material compatível com sangue, que fo- Segundo moradores do Morro da Pe-
ram enviadas para um laboratório particu- dreira, seis policiais participaram da ope-
lar. Com estas amostras será realizado um ração que resultou na morte de W.. Eles
exame de DNA, para saber se o sangue pertencem ao 9º Batalhão da Polícia Mili-
205 209
pertence a algumas das vítimas. tar (Rocha Miranda). De acordo com a
Até a finalização deste relatório, o caso irmã de W., Doralice, de 19 anos, um poli-
estava sob responsabilidade da Delegacia cial gritou: “eu vou matar um hoje”,
206 210
Homicídios do Rio de Janeiro e não ha- olhou para W. e atirou. O jovem rece-
207
via sido realizado o exame de DNA. Os beu um tiro que entrou na sua nuca e atra-
familiares das vítimas e testemunhas do cri- vessou o rosto. O tiro que matou o rapaz
me se sentem amendrontados, preferindo foi transfixiante, entrou pelo lado esquer-
não falar sobre o caso, pois os policiais en- do da nuca e saiu entre o nariz e lábio
208 211
volvidos encontram-sem em liberdade. superior, destruindo os ossos da face.

203
Informação fornecida em entrevista ao Centro de Justiça Global pelo advogado dos familiares das vítimas, Dr. Marcos Diniz, no dia
08 de Julho 2004.
204
Vale ressaltar que o exame pericial foi realizado nas armas oficiais apresentadas pelos suspeitos, porém a maioria dos assassinatos
cometidos por policias, percebe-se a utilização de armas ilegais, muitas vezes apreendidas pelos mesmos durante operações, com
numeração raspada, e que não são encaminhadas como fruto de apreensão ao quartel, como seria o correto.
205
“Libertados integrantes do Getam suspeitos de participação na morte de rapazes”. O Dia online, 22 de Junho 2004 e Informação
fornecida numa entrevista do Centro de Justiça Global com advogado dos familiares Marcos Diniz no dia 8 de Julho 2004.
206
O Inquerito sob n° 030 do dia 17.06.04. Delegado Dr. Carlos Henrique.
207
Informação fornecida em entrevista ao Centro de Justiça Global pelo advogado dos familiares das vítimas, Dr. Marcos Diniz, no dia
09 de agosto 2004, por telefone.
208
“Ouvidor pedirá que a morte de 3 jovens seja investigada pela corregedoria”. O Globo, 23 de Junho 2004.
209
PM’s presos após operação ilegal. O Globo, 28 de junho de 2004.
210
Policiais suspeitos de crimes, O Dia Online, 28 de junho de 2004.
211
Segundo o diretor de Polícia Técnica e diretor do Instituto Médico Legal Roger Ancillotti, pelos estragos feitos pelo projétil pode
ter se tratado de um tiro de fuzil. Como não foram encontrados no corpo de W. fragmentos da bala, o trabalho da polícia para saber de que
arma partiu o tiro poderá ser inconclusivo. Tiro que matou rapaz da favela da Pedreira pode ser sido de fuzil, O Globo Online, 28 de
junho de 2004.

57
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Segundo o coronel Murilo Leite, co- mento global por satélite) que os seis poli-
mandante do batalhão ao qual pertencem ciais acusados da morte de W. estavam na
os policiais militares envolvidos na execu- favela na hora do crime. O aparelho acu-
ção, os suspeitos são de duas guarnições e sou que os dois veículos modelo Blazer
estavam no local do crime sem autoriza- usados pelos policiais estavam parados em
212
ção da Central de Operações. um posto de gasolina da Avenida Martin
216
Os seis policiais militares foram pre- Luther King, no acesso ao morro.
sos administrativamente por 72 horas na Essa informação coincide com a ver-
mesma noite do crime. Segundo o inspe- são de uma das quatro testemunhas que
tor-geral de Polícia do Rio de Janeiro, após reconheceram três policiais militares
esse prazo os acusados deverão fazer tra- como sendo os homens que andavam pela
balhos internos na corporação, até a con- comunidade no dia do crime. Esta teste-
clusão do inquérito, que será encaminha- munha contou que descia de uma passa-
213
do à Corregedoria de Polícia. rela na altura do número 11.503 da Ave-
Segundo o Corregedor Auxiliar, Coro- nida Martin Luther King, quando dois po-
nel Jocimar da Silva Valeriano, o crime foi liciais, que seriam os motoristas das pa-
apurado pela 1ª Delegacia de Polícia Judi- trulhas, a seguraram pelo braço e avisa-
ciária Militar, através da averiguação su- ram para não entrar na favela para “não
mária de portaria E-09/284/2558/2004, ser atingida por bala perdida”. Em se-
concluída e enviada para a Corregedoria guida, ela teria avistado outros quatro
Interna/PMERJ (CGIPM 15.260/2004). policiais militares passando pelo local.
Este procedimento está atualmente com o Outros moradores viram os agentes revis-
217
Relator para ser solucionado e publicado tando moradores.
214
em Boletim. O caso foi registrado na 39º Essa testemunha contou ter visto W.
Delegacia de Polícia da Pavuna sob o n.º levar uma rasteira e cair. O disparo que o
003953/0039/2004. matou teria sido feito quando o adolescente
218
Os policiais militares suspeitos infor- ainda estava no chão. Após atirar, um
maram em depoimento que no momento dos policiais teria dito: “Ih, era um mora-
219
em que W. foi baleado estavam fazendo dor. Era uma criança!”. Um pastor en-
215
um patrulhamento em outra localidade. tregou à polícia dois projéteis que disse ter
No entanto, a polícia confirmou, através encontrado junto ao corpo de W..
de monitoramento via GPS (posiciona- Após a morte de W., na mesma noite,

212
Policiais suspeitos de crime. O Dia Online, 28 de junho de 2004.
213
Reconhecidos policiais que estiveram em favela, O Globo Online, 26 de junho de 2004.
214
Ofício enviado pelo Corregedor Auxiliar Cel. Jocinar da Silva Valeriano ao Corregedor Geral em 12 de julho de 2004.
215
Rastreamento incrimina PMs em homicídio,O Globo, 2 de julho de 2004.
216
Idem e Rastreador usado em patrulha confirma que PMs estiveram no local onde estudante foi assassinado, O Dia Online, 2 de julho
de 2004.
217
Rastreador usado em patrulha confirma que PMs estiveram no local onde estudante foi assassinado, O Dia Online, 2 de julho de
2004.
218
Rastreamento incrimina PMs em homicídio.O Globo, 2 de julho de 2004.
219
Rastreador usado em patrulha confirma que PMs estiveram no local onde estudante foi assassinado, O Dia Online, 2 de julho de 2004.

58
Casos emblemáticos de violência policial em 2004

moradores do Morro da Pedreira fecha- nal do Rio de Janeiro de circulação diá-


ram a Avenida Martin Luther King Júnior, ria), que estavam realizando uma matéria
222
em protesto contra a morte do estudante. sobre operações policiais aéreas.
A manifestação durou várias horas e du- Os policiais do helicóptero que foi ata-
rante seu transcorrer outro adolescente foi cado a tiros passaram um rádio para a uni-
220
baleado e um ônibus incendiado. dade terrestre do CORE solicitando apoio
Ao interditarem a avenida, os manifes- e fornecendo instruções para que os ofici-
tantes protestaram e atacaram alguns ôni- ais que estavam em terra tentassem encon-
bus que passavam pelo local com pedras e trar os agressores. Em seguida, informa-
paus. Eles ainda atearam fogo em pneus e ram sobre a localização de dois jovens que
223
pedaços de madeira formando verdadei- adentravam uma residência.
ras barricadas. Pouco depois, várias viatu- Os policiais do CORE invadiram a re-
ras da polícia militar chegaram ao local e ferida casa, encontraram Luciano e C. M.
teriam usado bombas de efeito moral e fi- S. e os trouxeram para fora, em uma vie-
224
zeram disparos para o alto. Um tiroteio se la. O fotógrafo que estava no helicópte-
seguiu à confusão e um adolescente de 12 ro policial, Carlos Moraes, conseguiu re-
221
anos foi baleado na cabeça. gistrar fotograficamente os eventos que se
225
sucederam. De acordo com o irmão de
n C. M. S. e Luciano Custódio Sales, Luciano, ao ouvirem tiros, Luciano e C.
Morro da Providência, Rio de Janeiro M. S. se esconderam em uma casa da co-
munidade para se protegerem, com medo
226
No dia 27 de setembro de 2004, os que fossem atingidos.
227
oficiais da Coordenadoria de Recursos A primeira foto de uma seqüência
Especiais – CORE, grupamento de elite registrada pelo jornal O Dia em sua edição
da Polícia Civil do Estado do Rio de Ja- de 28 de setembro de 2004, mostra que
neiro, ingressaram na comunidade do Luciano e C.M.S. foram imobilizados pe-
Morro da Providência para ajudar outra los policiais do CORE que os fizeram dei-
unidade do CORE que estava em opera- tar com suas mãos na cabeça. A foto se-
ção a bordo de um helicóptero que so- guinte da série mostra um policial em pé,
brevoava a favela em direção à zona nor- com uma arma automática apontada para
te da cidade, quando foi alvejado por ti- os jovens imobilizados, indicando que os
ros. Os policiais a bordo do helicóptero dois suspeitos tinham sido capturados pe-
estavam acompanhados por um jornalis- los policiais do CORE e não mais consti-
ta e um fotógrafo do jornal O DIA, (jor- tuíam uma ameaça. A próxima foto mos-

220
Protesto violento fecha avenida em Acari. O Globo, 27 de junho de 2004.
221
Idem.
222
“Ataque a helicóptero: reação, fuga, e execução”. O Dia, 28 de setembro de 2004, p. 1.
223
Idem
224
Idem
225
Ibid.
226
Ibid
227
As fotos foram doadas pelo Jornal O Dia ao Centro de Justiça Global e compõem a capa desse relatório.

59
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

tra policiais do CORE carregando os cor- O clima foi de revolta entre os parentes dos
pos dos dois suspeitos, que aparentemen- rapazes e também dos vizinhos que, di-
te tinham sido alvejados várias vezes. Os zem ter ouvido os apelos dos jovens para
jovens foram levados para o Hospital Sou- que continuassem vivos. Um morador do
za Aguiar, onde foram declarados mortos Morro da Providência, que preferiu não se
228
ao darem entrada no hospital. identificar, afirmou que Luciano e C. M.
A série de fotos sugere com fortes evi- S. foram torturados antes de serem execu-
dências que a polícia executou sumaria- tados “os policiais cortaram o Luciano no
231
mente C. M. S. e Luciano, que encontra- rosto e o C. M. S. no peito, até a virilha”.
vam-se detidos e imobilizados no solo e O laudo preliminar do Instituto Médi-
sob controle policial antes de terem sido co Legal (IML), indica que C. M. S. e
aparentemente alvejados. Luciano foram mortos com tiros dispara-
O Secretário em exercício de Seguran- dos a curta distância, de cima para baixo,
ça Pública do Estado do Rio de Janeiro, aproximadamente a um metro das vítimas.
Marcelo Itagiba, encarregou a Correge- Apesar dos policiais insistirem na versão
doria da Polícia Civil e a Inspetoria da Se- de que os garotos teriam sido atingidos em
cretaria de Segurança de apurar as circuns- uma troca de tiros, a constatação dos legis-
tâncias que levaram às mortes de Luciano tas reforça a suspeita de execução dos dois
232
e C. M. S.. Além da determinação, Itagiba rapazes.
afastou os policiais envolvidos no caso: Em 29 de setembro de 2004, o Cen-
Roberto Macedo da Cunha, Rogério Bas- tro de Justiça Global enviou um informe
tos da Costa, Jair Pereira Freire Junior, (ofício JG/RJ n° 239/04) sobre o caso aci-
Rodrigo José F. Rodrigues e Marcos Antô- ma narrado para a Relatoria Especial da
nio Agapito Teles de Matos, bem como o ONU sobre Execuções Extrajudiciais,
delegado Gláucio Santos, titular da CORE, Sumárias ou Arbitrárias.
229
que estava no helicóptero. Até o fechamento do presente relató-
Aproximadamente duzentas pessoas rio, os policiais encontravam-se suspensos
acompanharam, no dia 28 de setembro de de suas atividades até que as investigações
230 233
2004, os enterros de Luciano e C. M. S. . fossem finalizadas.

228
Ibid.
229
“Delegado da CORE é exonerado após ação no Morro da Providência”. O Dia Online, 28 de setembro de 2004,
ver: http://ultimosegundo.ig.com.br/materias/odia ; “Seis policiais civis afastados”. O Dia, 29 de setembro de 2004, p.16.
230
C. e Luciano foram mortos com tiros disparados a curta distância, aproximadamente a um metro das vítimas. “Tiros disparados a curta
distância”. O Dia, 29 de setembro de 2004, p.17.
231
“Revolta e emoção de parentes e amigos durante o enterro dos jovens, no Caju.”, O Dia, 29 de setembro de 2004, p.17.
232
“Sintomas de execução”. O Dia, 01 de outubro de 2004, p. 14.
233
“Sintomas de execução”. O Dia, 01 de outubro de 2004, p. 14.

60
Capítulo III
Morosidade na investigação: uma amostra da
impunidade no Rio de Janeiro

entre as causas que contribuem para Longe de representar um conjunto de


o incremento da violência no Rio de princípios metafísicos, de caráter difuso e
Janeiro, não há como negar a relevância distante, os direitos humanos necessitam
que adquire a questão da impunidade nes- de averbação política e social, sendo, por-
se contexto. Nas discussões públicas, esse tanto, imperativo que suas violações sejam
problema se apresenta quase sempre ape- punidas conforme os princípios jurídicos
nas sob o aspecto da falta de punição de estabelecidos na constituição e nas demais
criminosos, quando estes são civis. Tal en- leis infraconstitucionais.
tendimento é utilizado inclusive para in- Em relação à situação do estado do
centivar os discursos que se apóiam no Rio de Janeiro, em que a complexidade
endurecimento de penas e ações repres- da violência urbana aponta para algo pró-
sivas. ximo de uma cisão social, perpetuada em
No entanto, ainda que a morosidade nome do pânico e sacramentada na po-
do sistema judiciário e todas as falhas que breza, os excessos cometidos por agen-
circundam o sistema de persecução penal tes incumbidos da manutenção da ordem
como um todo representem, em última ins- representam um forte entrave para a ex-
tância, uma enorme dificuldade para a pansão – e mesmo o exercício – da cidada-
implementação da justiça, a impunidade de nia, na medida em que não há a respon-
“civis” (entendidos aqui como cidadãos sabilização do Estado quando este se des-
que não estão investidos de função públi- via dos limites legais que constituem seu
ca) encontra-se muito aquém - em termos mito fundacional, caracterizando a falta
de custos sociais diretos – que seu corres- de equanimidade na efetivação dos direi-
pondente público. Em outras palavras, a tos e garantias individuais.
questão da impunidade, quando encarada O problema central dos casos apresen-
sob a perspectiva das transgressões come- tados a seguir está na morosidade e na
tidas por agentes públicos, adquire preocu- qualidade das investigações realizadas pela
pante conotação, essencialmente se tais própria Polícia. Em alguns casos, como o
transgressões materializam-se em violações assassinato de Wallace de Almeida em
dos direitos humanos. 1998, o inquérito policial pode levar anos

61
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

para ser concluído. Em outros, como no soldado do exército e que ele precisava ser
caso de um garoto de onze anos assassi- imediatamente levado para o hospital.
nado na Lapa, os policiais aguardam o pro- Apesar de se mostrarem preocupados
cesso investigatório em liberdade, muitas com a informação de que a vítima era um
vezes intimidando testemunhas. soldado, os policiais sentiram-se à vonta-
Dentro deste contexto, o Centro de de para forjar a cena do crime colocando
Justiça Global exibe neste capítulo uma uma arma na mão de Wallace, como se ele
pequena amostra da impunidade que cer- tivesse participado de uma suposta troca
234
ca os casos de violência policial, a partir de tiros. Os oficiais resistiram tanto em
de 11 casos concretos de violação acom- socorrer Wallace que, quando resolveram
panhados ao longo dos últimos anos. É fazê-lo, já era tarde demais. Ele acabou
preciso reiterar que, longe de pretender morrendo no Hospital Miguel Couto por
esgotar quantitativamente os exemplos de hemorragia externa, provavelmente pela
235
impunidade, este capítulo tem por objeti- demora da assistência médica.
vo fornecer um panorama qualitativo des- Em 20 de dezembro de 2001, o Cen-
ta situação, que acaba sendo um dos fato- tro de Justiça Global, o Núcleo de Estudos
res propulsores do aumento da violência. Negros e familiares da vítima apresenta-
ram petição à Comissão Interamericana de
Wallace de Almeida, Direitos Humanos da OEA (Ofício JG/RJ
Morro da Babilônia, Rio de Janeiro. 231/01) sobre a execução de Wallace, em
virtude da extrema morosidade das autori-
Wallace de Almeida, jovem, negro, 18 dades brasileiras na apuração, investigação
anos, soldado do Exército, foi assassina- e responsabilização dos criminosos.
do por policiais militares em 13 de setem- Passados mais de seis anos do assassi-
bro de 1998, no morro da Babilônia, fa- nato de Wallace e até o fechamento deste
vela situada na Zona Sul do Rio de Janei- relatório, o inquérito policial ainda não
ro, em operação realizada de forma arbi- havia sido concluído, apresentando uma
trária e com uso excessivo de violência série de irregularidades. Os autos vêm sen-
por parte dos policiais do 19° Batalhão do enviados da central de inquéritos para
da Polícia Militar. a delegacia e vice-versa, sem que nenhu-
No dia do crime Wallace subia o mor- ma diligência efetiva seja realizada para
ro, quando foi atingido pelos policiais já apuração dos fatos. O descaso e a negli-
quase na porta de sua casa. Sua mãe e pri- gência na identificação, julgamento e con-
mo assistiram a tudo, viram que Wallace denação dos policiais que participaram da
agonizava no quintal de casa, avisaram aos ação que deu causa à morte de Wallace de
policiais militares que haviam atingido um Almeida permanecem.

234
Assim se monta muitas vezes a farsa dos autos de resistência.
235
Certidão de óbito de 17 de setembro de 1998.

62
Morosidade na investigação: uma amostra da impunidade no Rio de Janeiro

Robson Franco dos Santos, Bangu III, ter sido rendido. Sandro havia tentado
Rio de Janeiro. roubar o ônibus da linha 174, mas aca-
bou encurralado pela polícia em uma das
Em 02 de maio de 2000, aproximada- ruas do Jardim Botânico, Zona Sul do Rio
mente às 10h30, guardas da Penitenciária de Janeiro.
de Bangu III flagaram o detento Robson Depois de horas de tensão, em que o
Franco dos Santos tentando escapar, escon- assaltante manteve vários passageiros
dendo-se no lixo que deveria ser retirado como reféns, Sandro resolveu se entregar.
do presídio. Após terem-no apreendido, Saiu do ônibus com a professora Geísa
vários guardas espancaram-no severamen- Gonçalves, de 21 anos, uma das reféns.
te, provocando ferimentos graves. No momento em que um policial militar
Horas depois, dois defensores públi- lhe deu um tiro e errou, Sandro atirou na
cos encontraram Robson e testemunha- refém, sendo preso em seguida, com
237
ram sua deplorável condição física, com vida. No entanto, morreu na viatura da
ferimentos em todo o corpo, incluindo polícia, por sufocamento, a caminho do
rosto, testa, ombros e costas. Tinha tam- Hospital Souza Aguiar, no centro da ci-
bém um braço quebrado, sangramentos e dade. Todo o episódio foi transmitido ao
dentes quebrados. Os defensores públi- vivo pela imprensa nacional.
cos encontraram Robson agachado no Em 11 de dezembro de 2002, o IV Tri-
chão e cercado de uma grande poça de bunal de Júri do Rio de Janeiro absolveu,
sangue. O detento somente recebeu aten- por quatro votos a três, os policias milita-
dimento médico após às 17h30, depois res Ricardo de Souza Soares, Flávio do Val
de muita insistência dos defensores. Dias e Márcio de Araújo David, acusados
Até a conclusão do presente relatório, de terem assassinado Sandro. A decisão
não foi possível identificar que procedimen- confirmou a tese de que Sandro teria se
tos foram adotados para apuração da cul- asfixiado sozinho no interior da viatura,
pa dos referidos agentes penitenciários. apesar do laudo cadavérico, n. 4151/00,
informar que a causa morte foi “asfixia
Sandro Nascimento, Rio de Janeiro. mecânica por contricção (aperto) do pes-
238
coço”, por “estrangulamento”. Em 13
Sandro Nascimento, 21 anos, ex-me- de dezembro de 2002, o Ministério Públi-
nino de rua, sobrevivente da chacina da co manifestou sua intenção em recorrer da
236 239
Igreja da Candelária , em 1993, morreu decisão . Em 19 de setembro de 2003, a
em 12 de junho de 2000, sufocado den- 8ª Câmara Criminal negou provimento ao
240
tro de uma viatura da Polícia Militar após recurso em decisão unânime.

236
No dia 23 de julho de 1993 um grupo de policiais encapuzados abriu fogo contra mais de 50 meninos que dormiam ao relento perto
da igreja, resultando na morte de sete crianças e um jovem adulto.
237
“Depois do ônibus”, Folha online, 18 de junho de 2000. Renata Lo Prete. “Ele ainda saiu vivo do local”.
238
IP n º 165/2000 – 15a. DP , Sentença, fl. 1865, do processo criminal judicial n. 2000.001.092042-0.
239
“Promotores anunciam que pedirão novo julgamento dos PMs do 174”. Tribuna da Imprensa online, 13 de dezembro de 2002
240
Apelação interposta pelo Ministério Público n. 200305000664, fls. 1876-1896, disponível em: www.tj.rj.gov.br.

63
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

Alexandre Mandado Pascoal, Casa de sua internação. Segundo relato do detento,


Detenção Provisória Muniz Sodré, Comple- os agentes carcerários que o acom-
xo Penitenciário de Bangu, Rio de Janeiro. panhavam, não permitiram sua internação.
Não lhe foi receitado nenhum tipo de me-
No dia 30 de agosto de 2000, o Relator dicamento, nem mesmo um analgésico.
Especial da ONU sobre Tortura, Nigel Alexandre foi levado para o IML – Insti-
Rodley, visitou a Casa de Custódia Muniz tuto Médico Legal, onde seus ferimentos
Sodré, um dos centros de detenção provi- foram registrados. Entretanto, o detento
sória do Complexo Penitenciário de Bangu, conta que não mencionou sobre o espan-
Rio de Janeiro. Lá alguns detentos lhe con- camento, pois temia represálias por parte
taram que, após terem feito queixa sobre dos agentes que o acompanhavam em
243
desaparecimeto de objetos pessoais de todos os momentos.
suas celas, depois de uma revista de agen- No dia da entrevista com o Relator
tes penitenciários, foram levados para o Especial, o detento apresentava dois gran-
pátio, onde foram severamente espanca- des hematomas na parte inferior das cos-
dos durante cinco ou seis horas por cerca tas e um grande inchaço na parte posteri-
de 50 agentes carcerários do estabeleci- or da cabeça, impossibilidade de mover a
mento e também por integrantes dos des- perna direita e o braço esquerdo, cortes
tacamentos especiais da polícia com nos lábios, escoriações em todo corpo, so-
cacetetes e barras de ferro, algumas enro- bretudo na testa e alguns dedos da mão
241
ladas em arame. esquerda aparentemente fraturados. Ale-
Alexandre Mandado Pascoal foi o xandre estava vomitando sangue. Com
detento que sofreu os ferimentos mais ajuda do oficial, Vieira Ferreira Neto, Ale-
graves. Além do espancamento, que cons- xandre foi levado em seguida, de maca,
ta ter feito Alexandre desmaiar quatro ao posto médico mais próximo, onde foi
vezes, os detentos informaram ao Relator determinada sua transferência para um
244
Especial que o chefe de segurança mor- hospital.
242
deu as nádegas do detento. Informados da situação pelo Secretá-
No dia 30 de agosto de 2000, Alexan- rio de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
dre foi levado perante um magistrado que, o Subsecretário de Direitos Humanos e o
segundo informações contidas no relató- Chefe de Segurança do Sistema Penitenci-
rio da Anistia Internacional, recusou-se a ário acompanharam o relator e registraram
ouví-lo, designando sua imediata trans- o depoimento de Alexandre Pascoal. Ga-
ferência para sala de atendimento de emer- rantiram-lhe que receberia tratamento mé-
gência. O detento foi então transferido para dico adequado e seria protegido de possí-
245
um hospital, onde um médico determinou veis represálias.

241
Informações fornecidas pelo Relatório „Tortura e Maus-Tratos No Brasil” lançado pela Anistia Internacional em outubro de 2001, p.
9 e 10.
242
Idem
243
Idem
244
Idem
245
Idem

64
Morosidade na investigação: uma amostra da impunidade no Rio de Janeiro

O diretor do Presídio Muniz Sodré e o temente no dia em que iria prestar seu
chefe de segurança do estabelecimento depoimento na 34ª Delegacia de Polícia
foram afastados pelo Secretário de Justiça do Rio de Janeiro.
até que as investigações fossem concluidas. Até a conclusão do presente relató-
O guarda do presídio, supostamente res- rio, não foi possível identificar que pro-
ponsável pela liderança da sessão de tor- cedimentos foram adotados para apura-
tura também foi temporariamente afasta- ção da culpa dos referidos agentes peni-
do do serviço ativo, embora conste que foi tenciários.
designado, mais tarde, para a Tropa de
246
Choque do Sistema Penitenciário. Gil Alves Soares e Erivelton Pereira de
Até a conclusão do presente relatório, Lima, Favela do Rebu e Coréia, Senador
não foi possível identificar que procedimen- Camará, Rio de Janeiro.
tos foram adotados para apuração da cul-
pa dos referidos agentes penitenciários. Em 10 de janeiro de 2003, foi realiza-
da uma operação policial nas favelas do
Edson Roque e Alexandre Farias Lima, Rebu e da Coréia, no bairro Senador Ca-
Hospital Psiquiátrico Penal Roberto de mará, Rio de Janeiro. A operação contou
Medeiros, Rio de Janeiro. com a participação de 250 policiais civis
e militares da 34ª Delegacia de Polícia,
Edson Roque, interno do Hospital Psi- Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas
quiátrico Penal Roberto de Medeiros, Rio (DRFC) e do 14° Batalhão da Polícia Mi-
de Janeiro, foi espancado e baleado por litar, do Rio de Janeiro, respectivamente,
agentes de segurança penitenciária em 16 além de dois helicópteros.
de novembro de 2002, vindo a falecer no O objetivo da operação era prender
247
dia seguinte. Ele teria tentado defender quatro traficantes e estaria irregularmen-
outro interno, Wellington Chagas Braga, te amparada por um “mandado de busca
de ser espancado pelo agente penitenciá- e apreensão itinerante”, documento juri-
rio, Odnei Fernado da Silva. dicamente contestável, que permitia a re-
Alexandre Farias também teria tenta- vista de qualquer morador ou residência
248
do auxiliar Wellington a esquivar-se do do local.
espancamento. Após o acontecido, Ale- Gil e Erivelton foram retirados de casa
xandre estava sendo constantemente ame- e levados ao carro da DRFC, embora não
açado, por isso foi transferido em 13 de tenha sido encontrado com eles nem ar-
dezembro de 2002 para o DESIPE – De- mas, nem drogas. Moradores afirmam que
partamento do Sistema Penitenciário. En- ambos apanharam bastante dos policiais
tretanto, no final do mês de janeiro, Ale- antes de serem colocados na viatura, onde
xandre foi encontrado morto, coinciden- foram deixados por quatro horas, sob um

246
Idem
247
Laudo No. 7589/02, Instituto Médico Legal. Edson faleceu em virtude do disparo efetuado contra ele na cabeça. Edson também
sofreu um disparo na barriga. Além dos tiros, o corpo de Edson também apresentava marcas de espancamento.
248
Tal mandado não encontra respaldo na lei processual brasileira, uma vez que atenta ao disposto nos art.240 e 243 do Código de
Processo Penal Brasileiro. Sobre o uso destes mandados “itinerantes ou genéricos” ver I Capítulo deste relatório.

65
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

249
calor externo de quase 40 graus. A po- estavam indo comprar leite quando per-
lícia notificou o falecimento de ambos, ceberam que estavam sendo seguidos por
251
afirmando que os mesmos teriam passa- dois policiais militares.
do mal na viatura e morrido em virtude Na altura da Catedral (Av. Chile), um
de uma overdose de cocaína, no Hospital dos policiais disparou dois tiros contra os
Getúlio Vargas, embora não tenha sido jovens, tendo um deles atingido W.. Logo
encontrada nenhuma substância ilícita após o ocorrido o policial Diogo comuni-
com os rapazes. cou por rádio que o garoto havia sido atin-
Não foram realizados exames nos cor- gido por criminosos em um carro, mode-
pos por que o Instituto Médico Legal ale- lo Gol de cor branca, e que estes teriam
gou não possuir os reagentes necessários fugido.
a execução do procedimento que consta- A farsa planejada pelo policial logo
taria a presença da substância ilícita nas foi descoberta por policias militares do 13°
vítimas. Foi instaurado Inquérito Policial Batalhão de Polícia Militar, que chegaram
na 34ª Delegacia de Polícia e depois trans- ao local e tomaram depoimento de várias
ferido para a Delegacia de Roubos e Fur- testemunhas que haviam presenciado o
tos de Cargas. crime. Diogo foi preso em flagrante e con-
Até a conclusão do presente relatório duzido à 5ª Delegacia de Polícia.
não nos foi enviada nenhuma informação Até a conclusão do presente relatório,
acerca dos procedimentos adotados para a o processo n.20030010101499 permane-
apuração dos fatos acima narrados pela da cia na 4 ª Vara Criminal para conclusão da
252
Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Juíza , e o policial Diogo da Silva Cunha
253
encontrava-se em liberdade.

W. C. P. ,11 anos, Lapa, Rio de Janeiro H. S. G. S., 16 anos, morro da Nossa Se-
nhora da Guia, Rio de Janeiro
No dia 21 de janeiro de 2003, aproxi-
madamente às 17h, W.C.P., 11 anos, foi No dia 21 de janeiro de 2003, o ado-
assassinado com um tiro pelas costas que lescente H. S. G. S., 16 anos, foi executa-
250 254
atingiu seu pulmão e coração , desferi- do com um tiro no coração por policiais
do pelo policial militar Diogo da Silva da 23ª Delegacia de Polícia e do 3° Bata-
Cunha, na Lapa, Rio de Janeiro. De acor- lhão de Polícia Militar. H. era estudante,
do com os depoimentos colhidos na 5ª recentemente chegado do estado de Mi-
Delegacia de Polícia, W. e o amigo, T.S.S., nas Gerais para morar com sua mãe. Tes-

249
Entrevista concedida pelo pai de Erivelton à Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro(ALERJ),
em 12/02/03.
250
Laudo do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto – IML – n. 523/03.
251
Auto de prisão em flagrante, protocolo n. 004054-1005/2003, procedimento n. 005-00352/2003, 22/01/03. Testemunhas: Marco
Antônio Santos de Melo, policial militar, 13 BPM; David Nunes Ferreira, soldado da Polícia Militar em serviço com Diogo Cunha.
252
Informação disponível no site: www.tj.rj.gov.br.
253
Informações fornecidas por Pedro Roberto da Silva, coordenador de Projetos da Fundação São Martinho, que acompanha o caso
junto ao Ministério Público, em entrevista à equipe do Centro de Justiça Global, por telefone, no dia 04/10/2004.
254
Certidão de óbito n. 74473.

66
Morosidade na investigação: uma amostra da impunidade no Rio de Janeiro

temunhas contam que o rapaz foi aborda- Carlos Magno de Oliveira Nascimento,
do pela polícia e conduzido até a viatura, Tiago da Costa Correia, Carlos Alberto
onde já havia outro homem preso. Rela- da Silva Ferreira e Everson Gonçalves
tam ainda que os policiais simularam a sa- Silote, morro do Borel, Rio de Janeiro.
ída da favela, mas na verdade deram a volta
no morro e dirigiram-se ao seu cume, onde Em 17 de abril de 2003, entre 18h00
os rapazes foram assassinados. e 19h00, uma operação que contou com
A polícia informou que H. tinha a participação de 16 policiais do 6º Bata-
morrido em uma troca de tiros com polici- lhão da Polícia Militar (BPM), na comu-
ais, pois tinha envolvimento com o tráfico nidade do Borel, no Rio de Janeiro, re-
local. A mãe do jovem, Márcia Jacitho, sultou na morte de quatro moradores.
registrou queixa de homicídio contra os Embora a versão oficial da polícia tenha
policiais na 25ª Delegacia de Polícia. sido a de que os mortos eram traficantes
Segundo informações fornecidas pela locais e que estariam trocando tiros com
mãe do adolescente, Marcia Jacintho, por os policiais nenhum dos quatro tinha an-
telefone, à equipe da Justiça Global no tecedentes criminais, três deles trabalha-
257
dia 08 de setembro de 2004, o inquérito vam e um era estudante.
(IP n. 5332) está em fase de finalização, Carlos Magno de Oliveira Nascimen-
258
os policiais já foram ouvidos, restando to tinha 18 anos de idade e residia na
somente uma testemunha, que está resi- Suíça, onde estudava. Ele encontrava-se
dindo em outro estado, para que a fase no Brasil passando férias com a avó. No
investigatória seja finalizada e o Ministé- final da tarde do dia 17, dirigiu-se a uma
255
rio Público possa oferecer a denúncia. barbearia onde foi cortar o cabelo com o
Até o fechamento do presente relató- amigo de infância Tiago da Costa Cor-
259
rio, os policiais militares responsáveis reia , 19 anos, técnico em manutenção
pela morte de H., estavam em liberdade e de máquinas a vácuo.
continuam a trabalhar nas ruas. Vizinhos Na saída da barbearia, Magno e Tiago
informaram a mãe da vítima que os mes- não tiveram sequer tempo de entender o
256
mos policiais já mataram outros rapazes. que ocorria. Eles foram avistados por po-

255
Informações fornecidas pela senhora Márcia Jacintho, por telefone, à equipe da Justiça Global no dia 08 de setembro de 2004.
256
Informações fornecidas pela senhora Márcia Jacintho, por telefone, à equipe da Justiça Global no dia 08 de setembro de 2004.
257
“PMs acusados de matar 4 no Borel”, O Globo, 09/05/03. O subcomandante do 6º BPM, tenente-coronel José Luiz Nepomuceno,
informou à imprensa que os mortos faziam parte de uma quadrilha de traficantes, e que teria sido apreendido com eles drogas, armas e
munição.
258
Carlos Magno morreu com seis tiros, dentre os quais três pelas costas (cabeça, braço direito e região escapular esquerda), três tiros
pela frente (ombro esquerdo, bacia, clavícula). Laudo cadavérico 26258/2003 – IML.
259
Tiago levou cinco tiros, quatro pela frente e um pelas costas (região dorsal direita). Laudo cadavérico n.º 2659/2003 – IML. O laudo
ainda atesta uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis, o que demonstra que alguns dos disparos foram efetuados à “queima
roupa”. Tiago não morreu instantaneamente. Agonizou por cerca de meia hora, tendo os policiais impedido seu socorro. O fato pôde ser
confirmado pela testemunha Pedro da Silva Rodrigues, uma vez que o mesmo encontrava-se baleado, escondido e ciente do que se
passava a sua volta. Pedro contou que ouviu Tiago clamar por socorro médico, no que foi respondido por um dos policiais que o mesmo
era “bandido” e que iria morrer. Ver “Sobrevivente vira testemunha”, O Dia, 19/05/03.

67
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

liciais militares que se encontravam em Corregedoria Geral Unificada, pois já en-


cima de uma casa e foram instantanea- contra-se em investigação na PMERJ ( Po-
263
mente alvejados. Magno morreu na hora. lícia Militar do Estado do Rio de Janeiro).
Tiago, porém, agonizava no chão, aos Até o fechamento deste relatório, se-
gritos alertando que era trabalhador e ne- gundo informações fornecidas à sra. Dalva
cessitava de atendimento médico. Os po- Correia, mãe de Tiago Correia, pelo Nú-
liciais mantiveram-se alheios ao seu pe- cleo de Direitos Humanos da Defensoria
260
dido até que morresse. Pública, os policiais envolvidos na opera-
261
Carlos Alberto da Silva Ferreira , 21 ção encontram-se presos e indiciados por
264
anos, tinha três empregos: era pintor, pe- Tortura, ainda aguardando julgamento.
dreiro e, em épocas de carnaval, fazia ar-
mação de carros alegóricos. No dia 17, Jeferson Ricardo da Paz, favela Mandela
encontrava-se de folga e jogava futebol II - Manguinhos, Rio de Janeiro
em um campo da comunidade. Na volta,
resolveu passar na barbearia, quando se Jeferson Ricardo da Paz, 22 anos, en-
deparou com o tiroteio e correu. Uma bala contrava-se na porta de sua casa, no dia
de fuzil acertou em cheio sua cabeça. 29 de abril de 2003, quando foi atingido
Everson Gonçalves Silote, 26 anos, era por um tiro que perfurou seu coração, dis-
taxista e havia passado todo o dia nas uni- parado por policiais civis que efetuavam
265
dades do DETRAN da Tijuca e São Cristo- uma operação no local. Policiais da De-
vão a fim de regularizar seu automóvel. legacia de Capturas do Norte chegaram ao
Na volta estacionou seu carro em uma das local num caminhão-baú e ao saírem do
ruas próximas, pois o acesso estava fecha- veículo começaram a efetuar disparos,
do pela polícia. Ele voltava à pé quando causando grande tumulto e correria.
foi abordado, tentou se identificar, mas re- Os policiais foram informados por
cebeu um golpe que quebrou seu braço moradores que eles haviam atingido um
direito. Ele foi executado antes mesmo que rapaz trabalhador, mas os policiais recu-
262
pudesse mostrar seus documentos. saram-se a prestar socorro a Jeferson, o
Segundo informações fornecidas pela que foi feito pelos vizinhos. Jeferson já
Secretaria de Estado de Direitos Humanos chegou morto ao Hospital de Bonsucesso.
do Rio de Janeiro, o caso foi arquivado na A polícia alegou que o rapaz era um trafi-

260
“Encontro com a morte”, O Dia, 18/05/03.
261
Carlos Alberto sofreu 12 disparos, 7 deles pelas costas, além de fratura no antebraço e no fêmur. É importante salientar que cinco dos
disparos atingiram seu braço direito e mãos direita e esquerda – o que demonstra que Carlos tentava se defender dos tiros efetuados
contra ele. O laudo também aponta para uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis, o que confirma a tese dos disparos a curta
distância. Laudo cadavérico n.º 2657/2003, IML.
262
Everson levou cinco tiros, um pelas costas(próximo à coluna cervical), 4 pela frente(dois em regiões vitais: cabeça e coração). Laudo
IML n. 2660/2003.
263
Informações fornecidas pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos ao Centro de Justiça Global em Ofício SEDH No 197/0004/
2004, em 11 de agosto de 2004.
264
Informação fornecida pela senhora Dalva Correia, mãe de Tiago Correia, em entrevista, por telefone, à equipe do Centro de Justiça
Global, em 02/10/04.
265
Certidão de óbito n. 24947, fl. 205, livro n. 1SC-0055.

68
Morosidade na investigação: uma amostra da impunidade no Rio de Janeiro

cante que fazia a segurança do líder do No dia 05 de dezembro de 2003, os


tráfico local no momento da operação e amigos foram juntos a um show na casa
que os policiais teriam encontrado uma 9 noturna “Via Show” na Baixada Flumi-
mm na mão de Jeferson. nense. Na madrugada do dia 06 de de-
Não foi realizada perícia para consta- zembro, os rapazes foram vistos pela úl-
tar a presença de pólvora nas mãos de tima vez por um amigo, Wallace Lima,
Jeferson, assim como na arma, suposta- que também estava na casa de shows. Ele
mente, encontrada com a vítima. afirmou tê-los visto por volta das 04h40
267
Até a conclusão do presente relatório no estacionamento do local. Depois
não nos foi enviada nenhuma informação desse momento, os rapazes não foram
acerca dos procedimentos adotados para a mais vistos com vida.
apuração dos fatos acima narrados pela da Uma denúncia anônima ajudou a po-
Secretaria de Estado de Direitos Humanos. lícia a encontrar, na madrugada do dia 09
de dezembro, os corpos dos quatro garo-
Geraldo Sant’anna de Azevedo Júnior, tos que estavam desaparecidos desde a
21 anos, Bruno Muniz Paulino, 20 anos madrugada do sábado, dia 06 de dezem-
e dos irmãos Rafael Medina Paulino, 18 bro, quando saíam do “Via Show”. Os
anos, e R. M. P., 13 anos, São João de corpos estavam dentro de um poço, em
Meriti, Rio de Janeiro. uma fazenda abandonada, conhecida
como Morambi, na localidade de Imbariê,
Rafael Medina Paulino e R.M. P., Bru- distrito de Duque de Caxias, na Baixada
268
no Muniz Paulino e Geraldo Sant’anna Fluminense.
moravam no Jardim Santo Antônio, no Segundo o delegado Renato Soares
bairro de Guadalupe, no estado do Rio Vieira, da 62ª Delegacia Policial, as víti-
de Janeiro. Eram amigos de infância. Bru- mas apresentavam marcas de tiro, princi-
no, filho único, era universitário, cursava palmente na cabeça, pelo menos três tiros
Matemática. Seus primos Rafael e Renan cada um, o que revela um forte indício de
ainda estavam na escola. A noite de 05 que os rapazes tenham sido vítimas de uma
269
de dezembro de 2003 foi a primeira vez execução sumária. Pelo avançado esta-
que a família permitiu que o mais novo, do de decomposição dos corpos, foi pos-
R., de 13 anos, saísse à noite com o ir- sível constatar que os jovens haviam sido
mão mais velho. Geraldo Sant’anna era mortos há pelo menos dois dias antes de
soldado do exército e exercia a função de serem encontrados. Havia sinais de tortu-
motorista do Comandante do 2° Batalhão ra e as cabeças dos rapazes estavam des-
270
de Infantaria e, nas horas vagas, animava truídas por tiros de fuzil.
266
festas infantis no bairro em que morava. O caso foi transferido para a Delega-

266
“Os rapazes eram amigos de infância”. O Globo, 06/12/03.
267
“Policiais suspeitos de matança”. O Dia, 10/12/2003.
268
“Amiga de jovens mortos suspeita de seguranças de casa de show”, Tribuna da Imprensa online, 10/12/2003.
269
Idem.
270
“Policiais suspeitos de matança”. O Dia, 10/12/2003.

69
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

cia de Homicídios, ficando sob responsa- tro, dos nove policiais presos, trabalha-
bilidade do delegado Herold Spíndola Fi- vam como segurança da casa noturna Via
271
lho. A linha de investigação seguida pela Show e os outros cinco estavam de servi-
275
polícia afirma que uma das vítimas, o sol- ço, próximo ao local. Entretanto, em 15
dado do exército Geraldo Sant’anna, teria de abril de 2004, o Tribunal de Justiça do
272
furtado o carro de um dos policiais que Estado do Rio de Janeiro revogou as pri-
fazia a segurança na casa de shows e, por sões temporárias de todos, concedendo
isso, teria sido abordado pelos seguranças aos acusados o direito de responder ao
276
que pediram reforços a outros policiais que processo em liberdade.
273
estavam de serviço. Em 31 de julho de 2004 a promotora,
274
Segundo a família , Geraldo teria Márcia Colonose, do Ministério Público
tentado se identificar e apontou para os de Duque de Caxias, ofereceu a denún-
outros três rapazes, afirmando que teria cia ao Juiz da 4a Vara Criminal de Caxias,
ido ao “Via Show” com os amigos ape- Paulo César Vieira de Carvalho, que aca-
nas para se divertir. Os policiais então te- tou o pedido. Os policiais denunciados
riam capturado os quatro jovens e, ao in- são: o capitão Ronald Paulo Alves, os sol-
vés de conduzi-los à delegacia para ave- dados Gilberto Ferreira de Paiva, Luiz
riguações, teriam levado os rapazes para Carlos de Almeida, Vagner Luís da Silva
a fazenda Morambi, onde os mesmos fo- Victorino, Henrique Vitor de Oliveira
ram executados. Vieira, Fábio de Guimaraes Vasconcelos,
Em 02 de março de 2004, oito solda- Paulo César Manoel da Conceição e
277
dos e um sargento da Polícia Militar tive- Eduardo Neves dos Santos.
ram a prisão temporária decretada por Até o fechamento do presente relató-
suspeita de envolvimento na morte dos rio os policiais denunciados aguardavam
278
quatro rapazes. Foi confirmado que qua- o julgamento em liberdade.

TTT

271
Inquérito policial, IP n° 77/03. Informação fornecida pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos à equipe do Centro de Justiça
Global, no dia 08/07/04.
272
Um veículo modelo Kadett, cor vinho, que pertencia ao soldado Henrique Vitor Oliveira do 15° Batalhão da Polícia Militar, “PMs
são acusados de morte na Baixada”. Extra, 03/03/04.
273
Os policiais militares que estavam de serviço eram do 21° Batalhão da Polícia Militar.
274
Informação fornecida por Siley Muniz Paulino, mãe de Bruno Muniz Paulino, e Elizabeth Medina Paulino, mãe de Rafael e R. M. P.,
em entrevista à equipe do Centro de Justiça Global, em 23/06/04.
275
“PMs são acusados de mortes na Baixada”. Extra, 03/03/04.
276
Habeas Corpus de n° 2004.059.01278; 2004.05901185; 2004.059.01342. Informação fornecida pela Secretaria de Estado de
Direitos Humanos à equipe do Centro de Justiça Global, no dia 08/07/04.
277
“Divulgadas fotos de policiais suspeitos de mortes”. O Dia, 14/09/2004, p.14.
278
Idem

70
Recomendações

u Aprovação do Projeto de Lei que prevê ampliação da com-


petência da justiça comum na elucidação e no julgamento dos
crimes praticados por policiais militares em suas atividades de
policiamento, de modo a incluir homicídio culposo, lesão corpo-
ral e tortura.
u Plena autonomia e independência das Corregedorias e
Ouvidorias de Polícia, além de dotação de recursos suficientes
para sua capacitação e desempenho competente das funções. Os
ouvidores devem ser autorizados a examinar integralmente cada
queixa, assim como submeter propostas de representação aos
promotores. Além disso, os ouvidores devem ter o poder de re-
quisitar judicialmente pessoas e documentos (ou seja, ter o po-
der de tomar testemunhos sob pena de perjúrio e requerer docu-
mentos sob pena de omissão de provas). Finalmente, as autori-
dades devem garantir a integridade física e a segurança dos
ouvidores e suas equipes.
u Termo de Cooperação entre as Ouvidorias da Polícia e as
Procuradorias Gerais do Estado, que permita que as Ouvidorias
encaminharem às Procuradorias, para efeitos de indenização ci-
vil, os casos os casos relacionados a violência policial.
u Efetivação do Controle Externo da Atividade Policial pelo
Ministério Público e criação de órgãos de investigação inde-
pendentes - As autoridades brasileiras devem elaborar e regula-
mentar a criação de órgão de investigação dentro dos Ministérios
Públicos estaduais e federais. Estes órgãos devem estar autoriza-
dos a requerer judicialmente documentos, intimar testemunhas e
investigar repartições públicas, inclusive delegacias e outros cen-
tros de detenção, para conduzir investigações completas e inde-
pendentes.
u Independência e Controle Social dos Institutos de Medicina
Legal, bem como ampliação e modernização de sua estrutura e
desvinculação dos setores periciais da área de Secretaria da Segu-
rança Pública.

71
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

u Garantia de acesso por parte das entidades sociais de


monitoramento policial e outras entidades de direitos humanos
aos resultados produzidos pelos Institutos de Medicina Legal.
u Valorização do enfoque preventivo, ampliando a capacidade
do sistema de justiça e segurança pública de evitar a ocorrência
de danos, ao invés de investir simplesmente na repressão aos
crimes já ocorridos.
u A adoção por parte das autoridades da segurança pública do
Estado de um plano semestral de redução de homicídios, através
da utlização de policiamento preventivo, comunitário e perma-
nente que vise a redução de danos, da punição dos policias infra-
tores e responsáveis, e do controle e fiscalização de armas;
u Extensão do modelo da polícia comunitária,
u Criação de programas que retirem das ruas policiais que se
envolverem em eventos com resultado de morte, até que se in-
vestigue as motivações e proceda a necessária avaliação psico-
lógica do envolvido.
u Elaboração de rigoroso estatuto sobre abordagem de sus-
peitos, a fim de reduzir o número de vítimas fatais durante
esses procedimentos. ·Unificação progressiva das Academias
e Escolas de Formação, e estabelecimento de convênios com as
Universidades para formação do corpo policial.
u Melhoria na remuneração dos policiais e busca de alternati-
vas como o pagamento de horas-extras para evitar os “bicos”
dos policiais.
u Treinamento para todos os policiais no emprego de técnicas
não letais nas operações policiais (tiro defensivo, forma de
abordagem, etc)
u Modificação dos regulamentos policiais para que agentes que
sofram atentados ou que de alguma forma estejam envolvidos
com o episódio não continuem participando das investigações,
para diminuir ações vingativas.
u Premiação para policiais que resolverem situações difíceis
sem o emprego da força e para Batalhões, delegacias, equipes,
que diminuírem o número de autos de resistência, sem diminuí-
rem sua eficiência.
u Campanhas públicas sobre a prática policial correta e am-
pla divulgação dos canais de denúncia dos abusos praticados
por policiais.

72
Recomendações

u Inclusão de metas de redução da violência policial para os


Estados, vinculadas ao recebimento de verbas federais do pro-
grama de segurança pública.
u Não utilização de armas de fogo em operações como reinte-
grações de posse, estádios de futebol, greves e outros eventos
com multidões.
u Implementação de um programa eficaz de proteção à teste-
munhas e vítimas da violência, assim como garantia de investi-
gações isentas e apuração de todos os casos de ameaça à vida e
integridade pessoal denunciados por testemunhas.
u Indenização das Vítimas e familiares de vítimas de Violência
Policial.
u Facilitação dos relatos de abuso - Todos aqueles que defen-
dem os direitos humanos, assim como todos os que tiveram di-
reitos humanos violados, devem ter acesso a um procedimento
efetivo para apresentação das queixas sem medo de represálias.
Tais queixas deveriam ser automaticamente levadas às divisões
de direitos humanos dos Ministérios Públicos estaduais e fede-
rais (a ser criado onde ainda não existe).
u Desativação das carceragens localizadas nas dependências
policiais e construção de centros de detenção para presos provi-
sórios.
u Garantia da investigação policial e da comunicação obriga-
tória ao Ministério Público para qualquer caso de execução den-
tro as prisões.
u Adoção de um discurso de respeito aos direitos humanos e
ao cumprimento da lei por parte das autoridades competentes
na área de segurança e sistema penitenciário e
responsabilização daquelas autoridades que fazem apologia à vi-
olência e à humilhação de suspeitos e detentos.
u Transferência do ônus da prova para a promotoria nos ca-
sos em que as denúncias de tortura ou outras formas de maus
tratos forem levantadas por um réu durante o julgamento, para
que esta prove, além de um nível de dúvida razoável, que a con-
fissão não foi obtida por meios ilícitos, inclusive tortura ou maus
tratos semelhantes.
u Ampliação da capacidade investigativa da Polícia Civil, com
modernização e capacitação da polícia técnica e científica; cria-
ção imediata dos sistemas de rastreamento de armas e de veícu-

73
Relatório RIO: violência policial e insegurança pública

los, inclusive os oficiais usados pela polícia através da amplia-


ção do uso de sistemas como o GPS, identificação balística, iden-
tificação de impressão digital e identificação fotográfica.
u Criação de um único órgão de informação e inteligência,
sob controle do Executivo e com Regimento Interno único,
com objetivo exclusivo de combater o crime organizado, preve-
nir e inibir a prática de delitos cometidos por agentes do Estado,
e subsidiar o planejamento estratégico da ação policial.
u Investigação e repreensão das situações de participação de
policiais, de forma direta ou indireta, em empresas de segurança
privada.
u Priorização do combate aos homicídios dolosos com policia-
mento investigativo e preventivo e repressão sistemática aos
grupos de extermínio.
u Federalização dos crimes de direitos humanos - Aprovação
pelo governo brasileiro de legislação garantindo a competência
de autoridades federais (polícia, promotores e o judiciário) sobre
abusos de direitos humanos.
u Afastamento imediato do agente penitenciário ou policial acu-
sado de tortura, homicídio ou corrupção, durante a fase de inves-
tigação.
u Participação de grupos externos (Defensoria Pública e/ou
Conselho da Comunidade, Organizações de Defesa dos Direitos
Humanos, Pastorais Sociais) nas revistas periódicas dentro das
unidades prisionais, tendo por objetivo a inibição de ações vio-
lentas contra os detentos.
u Abertura de um registro de custódia em separado para cada
pessoa presa, indicando-se a hora e as razões da prisão, a iden-
tidade dos policiais que efetuaram a prisão, a hora e as razões
de quaisquer transferências subseqüentes, particularmente trans-
ferências para um tribunal ou para um Instituto Médico Legal,
bem como informação sobre quando a pessoa foi solta ou
transferida para um estabelecimento de prisão provisória. O re-
gistro ou uma cópia do registro deverá acompanhar a pessoa
detida se ela for transferida para outra delegacia de polícia ou
para um estabelecimento de prisão provisória.

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