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Módulo I – Violência e criminalidade: conceitos, classificações e reflexões

Apresentação do Módulo

Neste módulo você terá contato com diferentes conceitos de violência e criminalidade
e com as classificações atualmente utilizadas para possibilitar uma compreensão mais ampla
dos dois fenômenos, de forma a orientar o desenvolvimento de políticas públicas que visem a
redução de seus coeficientes e possibilitem o desenvolvimento do país em todos os âmbitos de
sua sociedade.

Foram tomadas como referenciais teóricos a definição de violência e a taxonomia


utilizada pela Organização Mundial da Saúde, por se entender que elas oferecem o arcabouço
teórico-prático e a amplitude necessários para a compreensão do problema da violência no
mundo e no Brasil, bem como indica possibilidades de minimização dos efeitos da violência a
partir da implementação de medidas já consagradas como boas práticas em diferentes
realidades.

Foi utilizado como documento de referência o Relatório Mundial sobre Violência e


Saúde, edição de 2002, publicado pela Organização Mundial da Saúde, que continua sendo o
referencial para políticas públicas e ações de governo que tenham como foco a prevenção de
epidemias que afetam a saúde pública, incluindo-se aí, a violência e o crime.

Objetivos do Módulo

1. Apreender as principais características do cenário recente e atual da violência e do


crime no Brasil;
2. Explicar as potenciais causas da violência e do crime no Brasil;
3. Conhecer diferentes conceitos de violência;
4. Conhecer o conceito de violência adotado pela Organização Mundial da Saúde e
suas implicações para as políticas e ações no âmbito da segurança pública;
5. Explicar os diferentes tipos de violência segundo a Organização Mundial da
Saúde;
6. Entender os custos da violência e do crime no Brasil e seus impactos na economia
e no desenvolvimento nacional;
7. Analisar o papel da mídia no processo de prevenção e controle da violência e do
crime.

Estrutura do Módulo

Este módulo está estruturado em 7 aulas:

Aula 1 – Evolução da violência e criminalidade no Brasil

Aula 2 – Manifestações e causas potenciais da violência e do crime

Aula 3 – Violência: por uma definição e suas implicações

Aula 4 – Violência na visão da Organização Mundial da Saúde (OMS)

Aula 5 – Os tipos de violência

Aula 6 – Os custos da violência

Aula 7 – Mídia e segurança pública

Aula 1 – Evolução da violência e criminalidade no Brasil

Na apresentação deste curso, afirmamos que os dados sobre violência e criminalidade


no Brasil são alarmantes, particularmente pelo contínuo e crescente aumento dos coeficientes
de crimes violentos que vêm sendo ostentados nas últimas décadas, colocando-nos, como já
vimos, em posições avançadas no ranking dos países mais violentos do mundo.

A questão toma uma forma mais complexa ao verificar-se que, diferente do que o
senso comum nos leva a crer, a violência tem se deslocado de forma significativa para o
interior do país, concentrando-se de maneira especial em certas regiões. Isso tem sido nítido
em relação às regiões Norte e Nordeste, as quais experimentaram taxas de aumento próximas
ou até superiores a 200% ao longo da década considerada.

Tabela 1 - Taxas de homicídios por 100.000 habitantes por UF, Brasil - 1998/2008.

Fonte: Mapa da Violência 2011.

Apesar de tal situação não mudar de maneira significativa a percepção que se tem do
Brasil no cenário internacional, em função da constante manifestação da mídia sobre os
diferentes problemas de crime e violência que com frequência vêm ocupando os noticiários
aqui e fora, ela agrega algumas questões que urgem ser compreendidas e que se referem ao
que vem sendo chamado de “interiorização do crime e da violência”, fenômeno que desafia de
forma acentuada os governos em todos os níveis, particularmente por que tal deslocamento
tem se evidenciado em municípios que, sabidamente, detêm recursos insuficientes para fazer
frente a tal mudança de cenário. Por outro lado, o fenômeno da “interiorização” vem sendo
ladeado por outro que também merece explicação: a queda contínua dos coeficientes de
homicídios nas grandes capitais brasileiras, o que, mais uma vez, parece desafiar a percepção
do senso comum.

Tabela 2 - Evolução das taxas de homicídios na população total segundo área geográfica.
Brasil, 1998-2008.

Fonte: Mapa da Violência 2011.

Segundo a intepretação do Mapa da Violência de 20111, uma possível explicação é o


aumento considerável de investimentos, consequência do alcance das metas de
desenvolvimento econômico do país em municípios do interior dos estados, fato que os vem
tornando polos atrativos tanto para migrações em busca de emprego e renda como para a
criminalidade, sendo esta função dos limitados recursos de proteção disponíveis em tais
municípios. Em relação às capitais, uma explicação possível foi o volume de investimentos
em segurança pública iniciados em 1999, com o Plano Nacional de Segurança Pública, em
2001, com a institucionalização do Fundo Nacional de Segurança Pública e, mais
recentemente, com os investimentos decorrentes do Programa Nacional de Segurança Pública
com Cidadania, PRONASCI.

Bem, até aqui estivemos falando de homicídios, e por uma razão bastante lógica:
dentre os crimes tipificados nas diferentes sociedades, é o que mais denuncia o grau de

1 WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2011: os jovens do Brasil. Ministério da Justiça: Brasília, DF, 2011
violência a que está submetido um país. Por isso que, infelizmente, ainda não se tem outra
alternativa a não ser considerar o Brasil como um país violento e, por tal, carente de contínuas
medidas de prevenção e controle.

Mas, se formos em busca de maior representatividade da violência na sociedade


brasileira, veremos que, ao tomar as agregações utilizadas pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública no que tange aos crimes violentos não letais contra a pessoa2 e crimes
violentos contra o patrimônio3 no período de 2004 e 2005, os números continuam apontando
para altas taxas de violência e criminalidade.

Tabela 3 - Crimes violentos não letais contra a pessoa e crimes violentos contra o
patrimônio por 100.000 habitantes. Brasil, 2004 a 2009.

2004 2005 2008 2009


crimes violentos não letais contra
34,5 35,2 32,94 34,31
a pessoa
crimes violentos contra o
516,9 519,6 492,87 525,40
patrimônio
Fonte: Composição dos dados do Mapa do Crime 2004 (SENASP/MJ), Anuário Estatístico do
FBSP/2010 e Projeção da população brasileira até o ano 2050, IBGE, 27/11/2008.

Como se pode ver, a violência expressa-se de diferentes formas, que vão além dos
crimes letais, como no caso do homicídio, e isso nos deixa clara a necessidade de intervir e
criar as condições adequadas para tais números. Para isso, entretanto, é necessário que se
conheça mais profundamente o problema da violência e do crime.

2
Indicador composto pela soma do número de ocorrências dos seguintes delitos: atentado violento ao pudor,
estupro, tentativa de homicídio (cf. Mapa do Crime 2004, SENASP/MJ)
3
Indicador composto pela soma do número de ocorrências dos seguintes delitos: extorsão mediante sequestro,
roubo de veículo, roubo de carga, roubo a ou de veículo de transporte de valores (carro-forte), roubo a instituição
financeira, roubo a transeunte, roubo em transporte coletivo, roubo em estabelecimento comercial ou de serviços,
roubo em residência, roubo com restrição de liberdade da vítima e outros roubos (cf. Mapa do Crime 2004,
SENASP/MJ)
Aula 2 – Manifestações e causas potenciais da violência e do crime

A violência é um fenômeno complexo, à qual diversos fatores estão associados e que


se manifesta de diferentes maneiras e intensidades. Desse modo, identificar ou apontar quais
desses fatores são mais ou menos importantes para explicá-la não é tarefa fácil, porque, quase
sempre, tais fatores estão agindo conjuntamente para produzir o fenômeno. Apesar disso, a
compreensão do fenômeno em suas diferentes vertentes e possíveis interpretações é essencial
para que se possa desenhar respostas e intervenções adequadas aos diferentes problemas de
violência com os que nos defrontamos na atualidade.

É sob essa ótica multifacetada que as propostas interpretativas do Relatório Mundial


sobre a Violência e a Saúde da Organização Mundial da Saúde parecem ser um instrumento
importante tanto na identificação como na compreensão dos fatores que estão associados à
violência. É do relatório a afirmação de que nenhum fator pode, sozinho, explicar porque
alguns indivíduos têm comportamentos violentos para com outros indivíduos e, tampouco,
porque a violência é mais presente em algumas comunidades do que em outras. A violência,
conforme enfatizado no relatório da OMS, é o resultado da ação recíproca e complexa de
fatores individuais, relacionais, sociais, culturais e ambientais.

O caso brasileiro de escalada da violência a partir dos anos 80 pode ser explicado a
partir da conjunção desses inúmeros fatores. Nesse sentido, parece oportuno concluir essa
seção com a entrevista concedida por Daniel Cerqueira4 a Túlio Khan, em 02 de junho de
2011, na qual, ao fazer uma síntese de sua tese de doutorado, apresenta uma retrospectiva
histórico-causal dos problemas de violência e crime no Brasil.

Saiba mais...

Leia a entrevista5 contida na tese.

Aula 3 – Violência: por uma definição e suas implicações

4
Disponível em http://tuliokahn.blogspot.com/2011/06/causas-e-consequencias-do-crime-no.html.
5
Arquivo em anexo: Causas e conseqüências do crime no Brasil
A violência como fenômeno multifacético e sensível a diferentes variáveis (sociais,
econômicas, políticas, jurídicas, culturais) pode assumir diferentes conceitos, segundo seja o
universo no qual está sendo tratado. Michaud (1989), por exemplo, explora a questão da
definição de violência de diferentes pontos. Uma compreensão inicial do fenômeno, segundo
ele, pode se dar a partir do que se denomina “definição de dicionário”. Sob esse tipo de
definição, violência pode ser definida como: “a) o fato de agir sobre alguém ou de fazê-lo agir
contra sua vontade empregando a força ou a intimidação; b) o ato através do qual se exerce a
violência; c) uma disposição natural para a expressão brutal dos sentimentos; d) a força
irresistível de uma coisa; e) o caráter brutal de uma ação”.

Como destaca Michaud (1989) a definição de dicionário traz consigo duas orientações:
designa fatos e ações, ou seja, apresenta uma dinâmica própria e específica e, introduz
elementos de sentimento e natureza que a caracterizam como algo que ultrapassa as regras e
se assenta na força brutal.

Outra abordagem proposta por Michaud (1989) caminha no sentido da compreensão


etimológica. Como explica o autor, violência tem origem no latim violentia, vis e no verbo
violare. Em todos os casos a palavra está referida ao uso da força física, transgredir, agir com
vigor, potência, incluindo o sentido de quantidade e abundância. A translação para o grego
manteve o sentido agregando-lhe a ideia de força vital, do corpo, coação pela força.

Michaud (1989) nos adverte, portanto, que o termo violência traz consigo, em sua
origem, a ideia do uso da força, de forma violenta, contra alguma coisa ou alguém. Lembra,
entretanto, que o caráter violento próprio do uso da força no sentido da origem, não é
necessariamente suscetível a julgamentos de valor, já que é natural e próprio do ser. A
configuração em violência, no modo que o senso comum e o uso corrente a traduzem, se dá a
partir do momento em que a ação violenta ultrapassa medidas aceitáveis ou perturba uma
ordem6. É nesse sentido que Michaud (1989) esclarece que a violência, antes de tudo, refere-
se a “agressões e maus-tratos”. Entretanto, o uso da força só assumirá a condição de violência
na medida em que normas assim a definam. Por isso, afirma, existem diferentes tipos de

6
Do ponto de vista jurídico, a violência traduzida no uso consentido da força é objetivado em códigos penais e
tendem a regular as ações violentas dos representantes do Estado quando, de forma fundada, ela se fizer
necessária para fazer cumprir a lei.
violência segundo as normas que as descrevem e regulam.

Consciente dessa diversidade de possibilidades interpretativas do fenômeno, Michaud


(1989) busca desenvolver uma definição que seja abrangente o suficiente para abarcar tanto as
expressões físicas da violência quanto suas manifestações não objetivas, ou seja, daquilo que
ele chama de atos e estados de violência. Para Michaud (1989), então, define-se que:

Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários


atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa,
causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em
sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses,
ou em suas participações simbólicas e culturais.

Para Michaud (1989), a definição parece dar conta do que ele entende que sejam os
componentes essenciais da violência:

a) a complexidade das interações, que podem incluir vários e diferentes atores e


máquinas administrativas;

b) os diversos modos de produção da violência, orientados pelos diferentes


instrumentos disponíveis;

c) a distribuição temporal da violência, a qual pode ser, segundo ele, maciça ou


distribuída ao longo do tempo (e, neste caso, com uma possibilidade do uso simbólico da
violência);

d) os diferentes danos que podem ser impostos com o uso da violência, podendo ser
físicos, psíquicos, morais, aos bens, aos próximos ou aos laços culturais.

Ainda que tenha oferecido uma definição de violência, Michaud (1989) alerta para
quatro questões que não podem deixar de estar presentes quando da análise do fenômeno. A
primeira diz respeito a que, apesar da utilidade das definições objetivas de violência, elas não
estão isentas de pressupostos (e, nesse caso, são influenciados pelas diferentes variáveis
presentes no contexto de que utiliza a definição) e, tampouco, são capazes de apreender todos
os fenômenos da violência.

Segundo, sempre haverá componentes subjetivos na formulação conceitual e na


compreensão do fenômeno violência, orientados por diferentes critérios: jurídicos,
institucionais, culturais, valóricos de grupos ou subgrupos, entre outros.

Terceiro, os diferentes pontos de vista orientados pelos critérios de compreensão não


estão em equilíbrio. A passagem de um pelo outro se dá, então, pela mudança de perspectiva,
ou seja, pelo câmbio do critério.

Por fim, será preciso reconhecer, afirma Michaud (1989), que não existe “discurso
nem saber universal sobre a violência”. Ela é própria de cada sociedade, segundo seus
critérios e trata seus problemas de violência a seu modo, obtendo maior ou menor sucesso.

Aula 4 – Violência na visão da Organização Mundial da Saúde (OMS)

Na percepção da OMS, é possível que a convivência com a violência seja,


historicamente, parte da convivência humana. Encontrada sob diversas formas em
praticamente todos os lugares, consubstanciada nos milhares de vidas que são perdidas e por
outro tanto de lesões sofridas, resultantes dos tipos de interações que se estabelecem entre as
pessoas, podendo tais perdas, a exceção no caso de mortes, serem de natureza objetiva,
subjetiva ou ambas. Essa violência tem sido observada com uma incidência no mundo todo,
sendo a causa de morte da maioria das pessoas entre 15 e 44 anos, com uma incidência
crescente entre a faixa etária de 15 a 24 anos, como mostra o caso brasileiro em relação ao
homicídio de jovens nessa faixa de idade.
Gráfico 1 - Número de homicídios por idade. Brasil, 2008.

Fonte: Mapa da Violência 2011.

Gráfico 2 – Índice de vitimização juvenil (15 a 24 anos). Brasil, 1998/2008.

Fonte: Mapa da Violência 2011.

A organização reconhece que os impactos econômicos da violência no mundo são


imensuráveis, particularmente se agregarmos a eles os resultados físicos, tangíveis da
violência, aqueles que, traduzindo em dor e sofrimento, produzem perdas de alto custo nos
níveis psicológico e social, por exemplo. É essa invisibilidade, à qual se refere a OMS e que,
em muito, não pode ser mensurada por ocorrer intramuros e à distância dos olhos, que
poderiam ajudar a torná-la transparente e, como consequência, proteger sua vítimas.
Tal como já propunha Michaud (1989), apresentado na seção anterior, a violência, tal
como seus impactos, tem causas que podem ser percebidas e outras não. Segundo a OMS,
ainda que fatores biológicos e individuais possam ser explicativos da violência, o mais
comum é que a explicação se dê por sua associação com outros, tais como: familiares,
comunitários, culturais que, em conjunto criam condições adequadas a manifestações
violentas, físicas ou simbólicas.

A abordagem da OMS, amplamente adotada pelas Nações Unidas como um todo, tem
se tornado um marco referencial em diferentes áreas para a criação e implementação de
políticas públicas que visem prevenir e controlar os níveis de violência e crime presentes nas
sociedades. Importante destacar que a abordagem de saúde pública é de natureza conceitual,
sistêmica e de processos. Não se trata do atendimento individual, de natureza médico-
hospitalar, visando tratar de enfermidades na acepção da palavra. Ao contrário, como o
enfoque é de saúde pública, o objetivo é lidar com tudo que pode ser classificado como
doença, condições e problemas que possam afetar a saúde. A violência e o crime estão nesse
campo.

É com base nessa percepção que a OMS afirma que: “Os fatores que contribuem para
respostas violentas – sejam eles de atitude e comportamento ou relacionados a condições mais
abrangentes sociais, econômicas, políticas e culturais – podem ser mudados.” A violência,
afirma a OMS no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde de 2002, pode ser evitada, e não
é uma questão de fé, mas de evidências.

Para a OMS, a abordagem da saúde pública pode contribuir para a prevenção e o


controle do crime por características que lhe são peculiares: é interdisciplinar e com bases
científicas. Além disso, coloca ênfase na ação coletiva, entendendo que a cooperação entre
vários setores é essencial para o tratamento de problemas epidêmicos7. Quando tratando do
fenômeno da violência, essa abordagem apresenta 4 etapas básicas:

1. Explicitação de todo o conhecimento disponível a respeito do problema em


questão – no caso, a violência – incluindo dados sobre magnitude, alcance,

7
O conceito de epidemia é aqui utilizado como fenômeno que ataca simultaneamente grande número de
indivíduos em uma determinada localidade; aumento do número de casos de um fenômeno anormal;
generalização rápida de um fenômeno (Houaiss, 2009)
características e implicações em todos os setores da atividade humana.

2. Pesquisa das razões da ocorrência do fenômeno, suas causas, fatores relacionados,


fatores interferentes nos níveis de risco e fatores que podem ser modificados por
intervenções.

3. Identificação de formas de prevenção e controle da violência.

4. Implementar intervenções que indiquem possibilidades de sucesso em diferentes


cenários, divulgando resultados, estabelecendo avaliações de efetividade/custo.

4.1. O conceito de violência para a OMS: amplitude e implicações

Reiterando a percepção de Michaud (1989), a escolha de uma definição para um


determinado fenômeno será acorde com as perspectivas de utilização. No caso da violência, a
definição deve buscar em sua amplitude, buscar alcançar o máximo de casos possíveis que
tragam consigo as diferentes formas de manifestação da violência, objetiva e subjetiva. Para a
Organização Mundial da Saúde, violência é:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça,


contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma
comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em
lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou
privação.

Algumas explicações para o emprego do conceito são dadas pela própria OMS em seu
relatório de 2002. A primeira refere-se à associação da intencionalidade ao ato de violência.
Para a OMS, a intencionalidade é essencial na definição de um ato violento. É possível
depreender, a partir do relatório, que a OMS faz uma distinção entre violência (atos
deliberados com intenção de causar dano) e eventos não intencionais que resultam em lesões.
Tal diferença se estabelece a partir do argumento de que a intenção de usar a força não
implica, necessariamente, a intenção de causar dano, ou seja, pode haver uma grande
diferença entre o comportamento pretendido e a consequência pretendida. Assim, segundo
informa o relatório, os incidentes não intencionais estariam excluídos da definição.
Aqui, em boa medida, o conceito parece estar aquém do que a sociedade brasileira
parece entender por violência ou ato violento. Isso fica demonstrado, por exemplo, no âmbito
do direito, em que a utilização de determinados níveis de força e poder trazem implícita a
possibilidade do resultado. É assim quando um condutor embriagado insiste em conduzir seu
veículo e acaba por produzir acidente com resultado lesão ou morte. Embora não quisesse tal
resultado, o simples ato de ingerir álcool e conduzir o veículo impunha-lhe assumir o risco de
produzir o resultado obtido.

Também no âmbito da Segurança Pública, o exemplo é o atual Sistema Nacional de


Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal (SNESPJC), o qual, com fins de
produção de conhecimento para a gestão, agrega aos fenômenos violentos intencionais
(crimes violentos letais intencionais), todos aqueles eventos que resultem em lesão ou morte,
como é o caso dos crimes agregados sob a rubrica de “crimes violentos não letais contra a
pessoa” e de “crimes violentos contra o patrimônio”.

Em relação ao “uso da força física ou poder”, a OMS alerta que estão incluídos aí
todos os tipos de abusos físicos, sexuais ou psicológicos, imputado a outros ou autoimputado,
como no caso dos suicídios, bem como a negligência, na medida em que é a disponibilidade
do poder ou da força que determinará a possibilidade deliberada do abuso.

A definição tem por objetivo cobrir a máxima amplitude possível do que venha a ser
violência, incluindo mesmo, como foi visto, aquela que não resulta em lesão ou morte, mas
que produz danos psicológicos, oprime pessoas, grupos ou comunidades. Ao definir a
“violência em relação à saúde das pessoas” inclui comportamentos que, mesmo aceitáveis sob
determinadas culturas, são considerados violentos e, por isso, dignos de atenção. Finalmente,
a OMS considera que a definição adotada inclui ainda todos os demais atos de violência,
sejam públicos ou privados”, sejam reativos ou proativos, sejam atos criminosos ou não.

Como foi visto, é possível identificar elementos comuns nas duas definições
apresentadas. Em ambos os casos, o que parece ser mais importante é a amplitude de alcance
da definição. Estão incluídos todos os tipos de violência, objetivas e subjetivas, que, de algum
modo produzam danos físicos, psicológicos ou psíquicos e morais de toda ordem, temporários
ou permanentes, naqueles que venham a ser vítimas do exercício da força ou poder.
Essa visão tem sido consubstanciada a partir do final dos anos 90 e, mais
enfaticamente, nos últimos 5 anos, com a intensificação de programas integrados de
prevenção da violência e do crime. A exemplo disso, o desenvolvimento conceitual e a
implementação gradativa do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), à semelhança do
Sistema Único de Saúde (SUS), do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Programa
Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI), com focos essenciais na prevenção
(sem olvidar, evidentemente, dos mecanismos de repressão qualificada e de fortalecimento
das instituições), têm sido vetores relevantes de mudança do cenário nacional, através da
implementação de programas e projetos que visam alterar a qualidade das relações
interpessoais e intergrupais nas comunidades brasileiras, pelos inúmeros processos de
inclusão e valorização das pessoas e dos lugares onde vivem, ofertando novas possibilidades
melhoria da qualidade de vida da população.

Aula 5 – Os tipos de violência

A tipologia da violência em uso na OMS é resultante de demanda apresentada em


1996 durante a Assembleia Mundial da Saúde, diante do fato da pouca disponibilidade de
tipologias e, entre essas, das que atendessem de forma abrangente os diferentes tipos de
violência manifestados na realidade e a conexão entre eles.

A classificação resultante divide a violência em três categorias que se pretendem


abrangentes da maioria das manifestações do fenômeno, e está referenciada, segundo a OMS,
às “características de quem comete o ato de violência”. Assim, as categorias são:

1. Violência autoinflingida (dirigida a si mesmo).

2. Violência interpessoal.

3. Violência coletiva.

Violência autoinflingida

É aquela em que a pessoa que comete a violência, comete contra si mesma. Está
dividida em dois subtipos: (i) o suicídio, no qual se incluem desde os pensamentos suicidas
até as tentativas e os suicídios consumados; e, (ii) o autoabuso, que inclui atos de
automutilação.

Violência interpessoal

Nesta categoria estão incluídos todos os tipos de violência cometidos por uma pessoa
ou por um grupo de pessoas a outras pessoas ou grupos. Segundo a OMS, a violência
interpessoal pode ser dividida em dois subgrupos: (i) violência intrafamiliar (ou da família) e
parceiros íntimos. Incluem-se aqui, as violências ocorridas tanto no interior das residências
quanto fora delas. Neste grupo estão incluídos os abusos infantis, violência contra o parceiro
íntimo ou contra idosos; (ii) violência comunitária, que incluem as interações violentas entre
pessoas que não tenham laços de parentesco, podendo ou não se conhecerem. Esse tipo de
violência geralmente se dá fora das residências. Neste grupo incluem-se a violência contra
jovens, estupros e ataques sexuais, violência contra escolas, empresas, prisões e outras
instituições.

Violência coletiva

A violência coletiva constitui-se de três subcategorias de acordo com o relatório da


OMS: social, política e econômica. O relatório informa que nessa categoria, as divisões que a
compõem parecem sugerir a existência de razões específicas para a violência cometida por
grandes grupos de indivíduos ou pelo Estado, como se fizessem parte de uma agenda social
prévia e legítima, pelo menos na percepção de tais grupos, como são, por exemplo, os casos
de crimes de ódio cometido por certos grupos e os atos terroristas.

No âmbito da violência política estão incluídas as guerras e as violências cometidas


pelos Estados ou por grandes grupos. A violência econômica é resultante da ação de grandes
grupos motivados pelo possível ganho econômico. Neste âmbito encontram-se ataques que
buscam interromper a atividade econômica, negar ou impedir acesso a serviços considerados
essenciais ou, ainda, estabelecer segmentações ou fragmentações econômicas.

5.2. Atos violentos e sua natureza

Segundo a classificação adotada pela OMS, os atos violentos podem ser de diferentes
naturezas, as quais interagem com as categorias e subcategorias tipológicas da violência.
Assim, os atos violentos podem ser de natureza física, sexual, psicológica e/ou de privação ou
negligência. A violência interpessoal, por exemplo, poderá estar se caracterizar por atos que
tenham natureza física, sexual e psicológica, como nos casos de abusos contra crianças
integrantes da família. Também pode estar presente aí a negligência, tanto com crianças
quanto com idosos. A violência comunitária pode estar traduzida, por exemplo, em agressões
entre jovens de diferentes grupos na comunidade, ou assédio sexual no trabalho. A violência
política, enfim, pode se configurar em abusos físicos e sexuais contra pessoas durante
conflitos entre países.

A OMS alerta que a tipologia por ela adotada não pretende ser universal posto que, tal
como outras, não consegue incluir a totalidade dos casos e atos de violência, cujos padrões
variam segundo diferentes variáveis. Mais que isso, a tipologia é muito mais um esquema
teórico para a complexidade do fenômeno e a compreensão de suas possíveis manifestações, o
que permite daí, desenhar cenários e propor medidas de prevenção e controle. Na realidade,
entretanto, nem sempre as divisões tipológicas são tão claras e/ou perceptíveis, obrigando ao
pesquisador, ao decisor político e ao gestor público, aprofundar-se de modo contínuo no
estudo do problema.

O quadro abaixo apresenta um diagrama tipológico das categorias e naturezas dos atos
violentos e suas respectivas interações.

Figura 1 - Tipologia da violência


Fonte: Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. OMS, 2002.

5.3. Fatores geradores de violência

Como já vimos anteriormente, a violência é um fenômeno complexo que, por sua vez,
tem origem em diferentes fatores também complexos, os quais, uma vez conhecidos,
possibilitam aos gestores públicos e aos operadores da segurança pública elaborar alternativas
para enfrentar de forma adequada as diversas formas de manifestação da violência. Uma
classificação dos fatores que contribuem para a ocorrência da violência pode ser encontrada
em Chesnais (1996), para quem o fenômeno tem origem em:

a. Fatores socioeconômicos como a pobreza, as desigualdades e as heranças dos


períodos de recessão econômica.

b. Fatores institucionais relacionados à insuficiência do Estado em atender às


demandas sociais; crise no modelo familiar e a perda do poder de influência do
setor religioso.

c. Fatores culturais como os relacionados à integração (ou falta dela) racial e a


desordem moral (declínio dos valores morais na sociedade).

d. Demografia urbana incapaz de suportar em termos de infraestrutura, o crescimento


da taxa de natalidade, a migração e ocupação desordenada do solo urbano e o
surgimento, como consequência, de aglomerados urbanos desprovidos de
condições minimamente adequadas às demandas das pessoas.

e. A mídia e sua influência na produção do “medo do crime” e da “sensação de


insegurança” na sociedade, função da ênfase em crimes violentos.

f. A globalização mundial e a transnacionalização das relações ente países e regiões,


incluindo o crime organizado.

Segundo Chesnais, tais fatores, em sua maioria, têm suas origens na própria sociedade
e na qualidade das interações em todos os níveis que nela se estabelecem, o que cobra do
Estado e dessa mesma sociedade participação ativa na busca de soluções que alterem de
forma satisfatória o quadro de violência e insegurança a que a população se vê submetida.
Aula 6 – Os custos da violência

Esta seção está fundamenta em recentes estudos realizados por Cerqueira et al. (2007)
e Cerqueira (2010), nos quais são apresentadas discussões bastante atuais sobre os custos da
violência e criminalidade no Brasil.

Cerqueira (2007) argumenta que a violência e criminalidade, para além das perdas
tangíveis e intangíveis impostas às vítimas e suas famílias, também impõe gastos adicionais
ao Estado pela necessidade de, a cada evento de violência ou crime, acionar os sistemas
envolvidos na administração do fenômeno: saúde, justiça e previdência social.

Soma-se ao anterior, um volume considerável de capital não acumulado, resultante das


expectativas de violência e crime, as quais, além de demandarem investimentos em setores
não produtivos (segurança pública e privada), ainda provocam alterações significativas na
dinâmica social, alterando rotinas, hábitos, inibindo o turismo e reduzindo, assim, o consumo
por bens e serviços. Porém, mais grave ainda, alerta Cerqueira (2007), é a perda do capital
humano resultante da violência ou de sua expectativa.

Em consequência desse quadro, o autor considera plenamente justificada a


necessidade de se calcular os custos da violência e da criminalidade, os quais, segundo
Bourguignon e Morrison (apud Cerqueira, 2007), atendem a três propósitos específicos: (i)
caracterizar a violência como uma questão de política social; (ii) orientar a alocação de
recursos para problemas sociais em estreita conexão com a questão da segurança pública; e,
(iii) orientar, de forma eficiente, as políticas públicas, para a alocação de recursos públicos
para programas especificamente voltados para a questão da segurança pública. Além disso,
ainda interessa aos elaboradores de políticas públicas e operadores da segurança e justiça,
conhecer de forma mais específica os danos causados pelos diferentes tipos de crime, já que,
para cada tipo criminal, os danos podem ser diferentes e requerer tratamento diferenciado em
relação aos danos causados.

Para além de tais demandas, informa Cerqueira (2007), a escolha por políticas públicas
estará pautada pela análise de benefício e custo de programas de prevenção e controle da
violência e do crime, a qual responderá pela permanência ou não do investimento nos
programas examinados.

6.1. Tipos de custos

Cerqueira (1997, 2010) informa que existem duas abordagens em relação aos tipos de
custos. A primeira trata da classificação utilizada em análises de benefícios e custos de
programas sociais. Nesta classificação surgem os conceitos de custos sociais e custos
externos. O primeiro, segundo Cohen (apud Cerqueira, 2007), são os custos que reduzem o
bem-estar da sociedade. O segundo, são os “custos impostos a uma pessoa por outras, de
forma não voluntária e que acarrete consequências negativas para aquela primeira”.

Outra classificação pretende possibilitar a análise dos custos da violência em certos


países. Nesse caso, entretanto, três abordagens diferentes têm sido evidenciadas nos estudos
que pretendem fazer tal medição. Na perspectiva de Bourguignon e Morrison, os custos da
violência e do crime estão divididos em três grandes grupos:

1. “os custos dos fatores pertencentes à função de produção do crime (onde constam
os custos para os criminosos dos recursos utilizados e decorrentes das ações criminais, além
dos recursos públicos e privados para a prevenção ao crime, incluindo custos judiciais e do
sistema penitenciário”;

2. “os custos das vítimas”; e

3. “os custos das externalidades sociais, associados à diminuição das taxas de


investimento, poupança e acumulação de capital e ao aumento das taxas de desemprego.”

Noutra vertente, Glaeser, Levitt e Scheinkman (apud Cerqueira, 2007) consideram a


seguinte taxonomia: (i) custos de autoproteção; (ii) custos da polícia e do sistema prisional;
(iii) perdas de vidas, de propriedade e associadas a sofrimento e morbidade; (iv) perdas de
receitas de turismo; (v) desestímulo aos investimentos; e (vi) custo de oportunidade dos
tempos dos criminosos.

Cerqueira (2007), por outro lado, entende que os custos da violência e do crime devam
ser classificados segundo os atores que arcam com esses custos. No quadro a seguir estão
identificadas as despesas por ator segundo a classificação adotada por ele.

Tabela 4 - Custos da violência e criminalidade

I - Custos arcados pelo Estado


1. Saúde
1.1 Internação
1.2 Procedimentos hospitalares
1.3 Tratamentos terapêuticos
2. Seguridade social
2.1 Pensões
2.2 Dias de trabalho perdidos
3. Segurança pública
3.1 Guarda municipal
3.2 Defesa Civil municipal
3.3 Polícia Militar
3.4 Polícia Civil
3.5 Corpo de Bombeiros
3.6 Polícia Rodoviária Federal
3.7 Polícia Federal
4. Ministério Público Criminal
5. Justiça Criminal
6. Sistema de Execução Penal
6.1 Sistemas prisionais
6.2 Sistemas de penas alternativas
7. Sistema socioeducativo para menores
8. Programas de prevenção ao crime
9. Despesas com autoproteção e segurança privada dos ativos do
Estado
10. Despesas com seguros
II - Custos arcados pelo setor privado
1. Das vítimas
1.1. Perdas materiais
1.2. Custas com processos judiciais
1.3. Serviços médicos e terapêuticos
1.4. Perda de rendimentos com dias não trabalhados
1.5. Perda de capital humano;
1.5.1. Mortalidade
1.5.2. Morbidade
1.5.3. Traumas psicológicos
1.6. Dor, sofrimento e perda de qualidade de vida
2. Dos criminosos
2.1. Custo de oportunidade dos detentos
2.2. Recursos utilizados pelos criminosos
2.3. (-) transferência de valores roubados
3. Da sociedade
3.1. Perda patrimonial no setor imobiliário
3.2. Despesas com autoproteção (grades, alarmes, blindados, etc.)
3.3. Despesas com segurança privada especializada
3.4. Despesas com seguros
3.5. Perda de bem-estar no mercado de bens e serviços
3.6. Medo do crime
Fonte: Cerqueira (2007).

6.2. Algumas estimativas de custos da violência e do crime

Em um levantamento dos estudos que objetivaram estimar os custos da violência e do


crime em diferentes países, Cerqueira (2007) encontrou os seguintes dados: Em 1999, o custo
bruto do crime e da violência alcançava 11,8% do PIB americano, ou seja, cerca de US$ 1,1
trilhão. Na Inglaterra e Wales, em 1999, tal custo alcançou a cifra de US$ 60 bilhões de libras.
Na Austrália, em 2001, os custos chegaram a cerca de US$ 21,7 bilhões. Em seis países da
América Latina, no ano 2000, um estudo conduzido por Lodoño, Gaviria e Guerrero (apud
Cerqueira, 2007), concluiu que os custos da violência e do crime alcançavam as seguintes
proporções relativas ao PIB de cada país: El Salvador 24,9%; Colômbia 24,7%; Venezuela
11,8%, Brasil 10,5%; Peru 5,1%; e México 12,3%.

Outro estudo realizado por Soares (2003, apud Cerqueira, 2007), concluiu que os
custos da violência e do crime (ou a perda de bem-estar) em 73 países em 1995 era
correspondente a 15%, em média, do PIB nacional. Tais perdas, inclusive, eram mais
acentuadas nos países da América Latina e Caribe (27%), seguidos por países do leste
europeu – ex-comunistas – (15%), países do oeste do Pacífico (9%), países norte-americanos
(8%) e países do oeste europeu (5%).

No Brasil, os estudos sobre os custos do crime, como informa Cerqueira, são recentes
e pouco se sabe ainda, sobre suas reais dimensões. Entretanto, três estudos referenciais podem
ser tomados como forma de se ter uma dimensão de tais custos em relação ao PIB de três
importantes municípios brasileiros: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Em estudo
realizado por Coutollene et al. (2000), o custo do crime e da violência no Rio de Janeiro
representava 4,88% do PIB do município. Em São Paulo, no ano de 1998, tal custo alcançou a
proporção de 3% do PIB municipal (KHAN, 1999) e, no ano 2000, os custos totais da
violência e do crime em Belo Horizonte equivaleram a 3,86% do PIB daquele município.

Seguindo a classificação que adota, Cerqueira demonstra, a partir de seus estudos


sobre informações da Secretaria do Tesouro Nacional, que os gastos do Brasil com o custo da
violência no ano de 2004 alcançou a proporção de 5,09% do PIB nacional, com uma cifra
correspondente a R$ 92,2 bilhões de reais, valor que ainda não incluía vários fatores de custo
da violência como os custos do sistema de justiça, perdas com desvio do turismo, perdas por
retração de mercados de bens e serviços e, particularmente, os custos intangíveis decorrentes
da dor, do sofrimento e do medo gerados pela violência ou por sua expectativa, bem como as
perdas de produtividade resultantes dos traumas e da morbidade.

Finalmente, Cerqueira (2007) alerta que tais números e proporções devem servir como
um alerta para a sociedade brasileira sobre a magnitude do problema da violência no Brasil,
bem como serem vistos como um primeiro passo para trazer a questão dos custos da violência
para o debate racional de forma a possibilitar uma melhor organização da segurança pública
no país, conferindo-lhe eficácia e eficiência.

Aula 7 – Mídia e segurança pública

Muito se tem discutido a respeito dos efeitos produzidos pela mídia no campo da
segurança pública. O Guia para Prevenção do Crime e da Violência nos Municípios
(GUIAMJ), editado em 2005 pelo Ministério da Justiça, reconhece que, cotidianamente os
órgãos de imprensa, ao divulgarem notícias sobre crime e violência, geralmente selecionando
os mais graves, passam a provocar diferentes reações nas pessoas e, não raramente, fazendo-
as acreditar que aqueles crimes mais graves, retratados nos meios de comunicação, são os que
mais ocorrem. Os dados contrariam tal percepção.

Khan, 2001 (apud GUIAMJ, 2005), em estudo realizado em dois veículos de


informação do estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Jornal do Brasil, nos anos de 1997
e 1998, apurou que o maior número de casos noticiados pela mídia não correspondia aos
casos de maior quantidade registrados pela polícia, conforme demonstra a tabela a seguir.

Tabela 5 - Crimes divulgados pela Folha de São Paulo e Jornal do Brasil e crimes
registrados pela polícia. São Paulo, 1997/1998.

Fonte: Guia para Prevenção do Crime e da Violência nos Municípios, 2005.


Observe, a partir da tabela, que a maior quantidade de crimes registrados em São
Paulo foi de furto seguido por lesão corporal e roubos. A atenção da mídia, nesse caso, esteve,
nos dois anos examinados, voltadas de forma consistente para os homicídios, que
representaram, em termos de registros, 1,7% do total de crimes registrados, seguido pelos
roubos e pelo tráfico de drogas. Somente nos casos de roubos se pôde identificar alguma
convergência entre os valores apresentados na tabela.

Tal situação também é afirmada por Calderinha e Albernaz (2009) em artigo publicado
no caderno temático “Mídia e Segurança Pública” da 1ª Conferência Nacional de Segurança
Pública (CONSEG), na qual ressaltam que se pode perceber uma diferença entre o que as
estatísticas demonstram e o que é selecionado como notícia nos veículos de informação.

A informação anterior demonstra, como ressalta o GUIAMJ (2005), uma preferência


da mídia pelo que se convencionou chamar de “fato jornalístico” e que retrata tão somente
algo que, por suas caraterísticas, chama a atenção e que provoca sensações e emoções
desejados pela mídia por diferentes razões, particularmente as comerciais.

Ao selecionar deliberadamente os crimes mais violentos como pauta e desenvolver na


população uma percepção de que são os mais frequentes, as pessoas começam a imaginar que
estão muito mais expostas a um processo de vitimização por tais crimes, do que na realidade
estão. Tal fenômeno é denominado “medo do crime”, ou seja, as pessoas passam a viver com
medo porque imaginam que podem ser vítimas de um crime violento. Isso gera uma série de
consequências, inclusive já analisadas na seção anterior. As pessoas se prendem em suas
residências, deixam de realizar as coisas que gostam de fazer, aumentam seus níveis de
estresse, somatizam através de diferentes manifestações biopsíquicas, gastam menos tempo e
dinheiro com lazer, investem em mecanismos de proteção e segurança pessoal e residencial,
enfim, reduzem sua qualidade de vida a níveis drásticos e passam a viver sob o domínio da
sensação de insegurança.

Apesar disso, há uma concordância bastante acentuada de que a mídia ainda constitui
o principal meio de denúncia dos problemas sociais que afetam a sociedade brasileira. No
dizer de Ramos e Paiva (apud CONSEG, 2009), a mídia brasileira tem mudado e desempenha
um papel fundamental no debate público sobre temas relevantes para a sociedade, com a
violência e o crime, inclusive, influenciando a opinião das pessoas, motivando-as e induzindo-
as na fiscalização da implantação das políticas de Estado. Segundo as autoras, ainda que
persistam deficiências no modo como a mídia trata as questões relacionadas à violência e ao
crime, o papel dela tem sido decisivo para influenciar o modo como os governos e a própria
sociedade responde aos problemas da segurança pública.

Finalizando...

Neste módulo, você estudou que...

O conceito de violência proposto a partir de Ives Michaud, numa vertente sociológica,


busca alcançar a abrangência necessária para uma interpretação inclusiva da violência,
compreendendo-a como um fenômeno que se manifesta tanto de forma objetiva como
de forma subjetiva e, nesse segundo caso, explorando os espaços invisíveis das
relações de dominação entres os indivíduos;

O conceito proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) traz o tratamento do


fenômeno da violência para o campo da saúde pública, entendendo-o como um
aspecto de alto impacto na qualidade de vida das populações e por isso, afetando o
bem-estar e provocando diferentes manifestações que irão desaguar em uma série de
demandas que oneram o Estado e, por sua vez, a própria sociedade;

De acordo com enfoque proposto pela OMS, os fatores que dão origem à violência e
os impactos econômicos da violência e do crime demonstram perdas possíveis em um
ambiente de alta violência e os custos socioeconômicos que acabam por ser impostos à
sociedade;

Um dos mais importantes vetores de criação de uma percepção indesejável em relação


à violência e o crime é representado pela mídia, que, com sua seletividade na escolha
dos eventos a noticiar, tem privilegiado, historicamente, os crimes violentos por sua
capacidade de gerar emoção. Isso, contudo, tem se transformado em um importante
gerador de medo do crime e de sensação de insegurança, dada a ideia de que todos os
indivíduos passam a estar igualmente vulneráveis e que certas medidas de proteção e
isolamento passam a ser necessárias, do que resulta o enfraquecimento do tecido social
e, por consequência, da capacidade de autoproteção das comunidades.

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