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e Controle Social
ISSN: 1983-5922
revistadilemas.editor@gmail.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil
Werneck, Alexandre
O ornitorrinco de criminalização: A construção social moral do miliciano a partir dos
personagens da ‘violência urbana’ do Rio de Janeiro
Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 8, núm. 3, julio-
septiembre, 2015, pp. 429-454
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil
Alexandre Werneck
Professor da UFRJ
O objetivo deste artigo é analisar o papel The aim of the article The Criminalization Platypus: The
desempenhado pelo miliciano na mecânica Social, Moral Construction of The Militia Member
de efetivação da “violência urbana” do Rio de Based on Characters of Urban Violence in Rio de Ja-
Janeiro como representação social. Para tanto, neiro is to analyse the role played by the militia member
foi feita uma observação dos procedimentos in the mechanics of effectuating Rio de Janeiro’s “urban vio-
de interpretação desse personagem em dois lence” as social representation. To this end the procedures
corpora institucionais relacionados: o relatório for interpreting such a character were observed in two insti-
e as notas das reuniões produzidos pela CPI das tutionally related bodies: the report and minutes produced
Milícias fluminense e o processo de produção by the Parliamentary Enquiry (CPI) meetings into the Rio de
da lei que criminaliza a formação desses grupos. Janeiro militias and the process of producing the law that
O estudo mostra como a construção moral criminalizes the formation of such groups. The study shows
do miliciano depende da coordenação de how the moral construction of the militia member de-
três outras representações, características da pends on the coordination of three other representations,
“linguagem da violência urbana”: o traficante, o characteristics of the “language of urban violence”: the drug
policial corrupto e o matador. dealer, the corrupt police officer and the killer.
Palavras-chave: miliciano, traficante, matador, Keywords: militia member, drug dealer, killer, orrupt
policial corrupto, sistema actancial police officer, actantial system
N
ossa análise começa com uma retratação: em 3 de ju- Recebido em: 17/11/2014
Aprovado em: 04/12/2014
lho de 2008, o delegado titular da 35a Delegacia Poli-
cial do Rio de Janeiro, Marcus Antonio Neves Pereira, 1 Sintetizo aqui conclusões de
depõe na segunda reunião ordinária da CPI das Milícias2, pro- minha pesquisa de pós-douto-
rado (2009-2011), na UFRJ, sob
movida pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janei- supervisão de Michel Misse e
ro (Alerj) entre junho e novembro daquele ano. Em sua fala, financiada pela Fundação Car-
los Chagas Filho de Amparo
ele faz um comentário sobre sua leitura do objeto da comissão: à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro (Faperj). Agradeço
a Misse pela interlocução na
Eu confesso aos senhores que, algum tempo atrás, quan- montagem deste argumento.
do essa questão das milícias começou a vir à tona, eu E a Cesar Teixeira, Daniel Hirata
e Gabriel Feltran, por suges-
pensava comigo, como policial, que seria uma solução – tões em seu desenvolvimento.
ou um mal menor – para a questão do tráfico de drogas Gostaria ainda de agradecer ao
pesquisador Vittorio da Gam-
do Rio de Janeiro. E hoje verifico que é um mal muito ma Talone pela contribuição.
maior que o tráfico de drogas. 2 Formalmente, Comissão
Parlamentar de Inquérito Des-
tinada a Investigar a Ação de
Diante do discurso, o deputado relator, Gilberto Palma- Milícias no Âmbito do Estado
res (PT), lança sobre o policial uma admoestação, dizendo do Rio de Janeiro, que chama-
rei desse modo simplificado
querer “fazer um registro”: ou simplesmente de CPI.
DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social -Vol. 8 - no 3 - JUL/AGO/SET 2015 - pp. 429-454 429
[E]u estranho, acho forte, acho sério, um policial, que descreveu
sua posição, mesmo em algum momento de sua história como
policial – e isso acho importante como registro, embora ache
um registro problemático, talvez seja até importante para discu-
tir porque alguns grupos ficaram tão importantes –, um policial
testemunhar que ele próprio, já houve um momento de sua his-
tória como policial [em que] considerou que a milícia era um mal
menor do que o tráfico. E também na minha leitura, esse tipo de
entendimento por agentes importantes do Estado, pessoas que
ocupam cargos, até profissionais da área de segurança especia-
lizados como o delegado, ajuda a proliferar a milícia. Quando al-
guém que exerce uma função importante como agente do Esta-
do, como delegado, chegou a imaginar que milícia fosse um mal
menor, para mim, é pouco para explicar, mas já é alguma coisa
que explica a facilidade com que as milícias cresceram.
Civis 330
Policiais Civis 18
Bombeiros 11
Agentes penitenciários 3
Militares 3
Fonte: SSI/Seseg
330
Fora do Estado
Estado 191
60
50
40
30 26
20
10 6
1 1
0
Civis PMs Policiais Agentes Militares
Civis penitenciários
Fonte: SSI/Seseg
Forma privilegiada de
Armamento ostensivo Credenciais do cargo Cenas de crime
apresentação da força
Finalidade da mobilização
Defesa territorial Extorsão Execução
da força desproporcional
- Mando absoluto
- Controle disciplinar
Forma de relação com a
- Cordialidade de vizinhan- Exploração Trocas
população local
ça e familiar
- Ameaça - Covardia
Forma de relação com a
- Trocas comerciais - Mal necessário Mal necessário 23 Evidentemente, todos
população em geral
esses personagens podem
Facilitação, pontual ou
Contrapartida local “Substituição do Estado”
sistemática
“Limpeza” tomar/tomam emprestado
para si as características dos
- Embate - Invisibilidade
Forma de relação com - Trocas utilitárias Uso da máquina estatal a - Eventual uso da máquina
outros. Por exemplo, um tra-
o Estado - Substituição serviço próprio estatal a serviço próprio ficante ameaça seus domi-
- Substituição
nados com a morte, assim
Serviços públicos que pres-
- Justiça “alternativa” - Quaisquer serviços do - Anulação de indivíduos como o agente público cor-
- Mediação de conflito Estado que privatize e indesejáveis
ta no lugar do Estado
- “Segurança” torne mais “fáceis” - Segurança
rupto muitas vezes domina
espacialmente um ponto de
- Fornecimento de água
- Fornecimento de gás
atuação. Essa tipologia tem
- Eventual exploração de
Serviços que presta no - Fornecimento de TV por
mercadorias econômicas - Segurança privada
a ver com as características
lugar da economia formal assinatura
- Fornecimento de internet
ilegais definidoras de suas repre-
sentações e especialmente
- Imposição por meio dos traços determinantes
Forma de efetivação da - Imposição pelo poder do monopólio legítimo - Imposição pela compe- de sua actância.
força desproporcional de fogo da força ilegitimamente tência executora
mobilizada
24 Para uma exploração
Forma formal de mobiliza-
- “Disposição” - Malandragem - Frieza mais extensiva e detalhada
ção da força
desse quadro, o que, nos
Caracterização como
- Tirano - Achacador - Ameaçador limites deste artigo seria im-
actante
possível, ver Werneck (2013).
O MILICIANO A PARTIR DOS ACTANTES DA VIOLÊNCIA URBANA OU O QUE ELE TEM DE...
Forma privilegiada de
Armamento ostensivo Credenciais do cargo Cenas de crime
apresentação da força
- Mando absoluto
- Controle de forma des-
Forma de relação com a territorializada (atividades Trocas tornadas obrigató-
Exploração intensiva
população local de controle pontuais rias pelo monopólio
sem imposição de regras
disciplinares morais)
Facilitação sistemática
“Substituição do Estado”
de operações ilegais
Contrapartida local no que diz respeito à “Limpeza”
exploradas por si próprio
segurança pública
ou por “permissionários”
- Invisibilidade
- Do ponto de vista
- Uso da máquina estatal a circunstancial, no plano de
histórico, passagem
serviço próprio alguns acordos específicos
de uma relação de
- Ampliação da escala de que permitem não se
coexistência e mesmo
corrupção para níveis mais perceber o controle de
Forma de relação com cooperação para uma
altos da hierarquia, em algumas milícias sobre
o Estado relação de embate (mas
especial no legislativo, com algumas atividades, em
não armado e sim no plano
eleição de representantes especial
legal, pela perseguição
dos milicianos às casas - Eventual uso da máquina
legal dos milicianos
legislativas estatal a serviço próprio
- Substituição
- Substituição
- Fornecimento de água
- Fornecimento de gás
- Fornecimento de TV por
assinatura
- Eventual exploração de
Serviços que presta no - Fornecimento de internet
mercadorias econômicas - Segurança privada
lugar da economia formal - Transporte alternativo
ilegais
- Consultoria imobiliária
- Construções
- Agiotagem
- Jogo
Forma formal de
- Disposição - Malandragem - Frieza
mobilização da força