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Resumo – Neste artigo, analisam-se as perícias realizadas pelo Posto de Polícia Técnica de
Campo Grande, no município do Rio de Janeiro, de setembro de 1999 a junho de 2002,
com detalhamento no período de julho de 2001 a junho de 2002. O número de solicitações
de ocorrências foi sempre superior a duzentas perícias mensais. O primeiro semestre de
2002 apresentou um aumento de 16% em relação ao ano anterior. Os homicídios contribuí-
ram acentuadamente para esse crescimento. A 35ª Delegacia Policial foi a que mais de-
mandou serviços de perícia. As principais categorias de ocorrência foram homicídios (35,1%)
e acidentes de trânsito (23,8%). A desvalorização da informação gerada na polícia técnica
pode estar relacionada a dispositivos de exclusão social. Maior refinamento das estatísticas
possibilitaria tomadas de decisões administrativas mais adequadas.
Palavras-chave: Rio de Janeiro; violência; perícia criminal; homicídio; acidente de trânsito;
arrombamento.
*
Os autores agradecem a Reinaldo Russo, chefe do Posto de Polícia Técnica da Zona Oeste, pelo apoio a este trabalho.
**
Mestre do Instituto de Criminalística Carlos Éboli. E-mail: agio@ioc.fiocruz.br.
***
Doutora do Centro Latino-americano de Estudos de Violência e Saúde da ENSP/FIOCRUZ. E-mail: edinilsa@claves.fiocruz.br.
legais e outra à perícia criminal. Na unidade digitais, foram agrupadas na categoria “outros”.
funcionam basicamente três serviços: (1) o de Atualmente a perícia de locais do PPT atende
exames médicos em vítimas de ações violentas as seguintes delegacias: 30ª DP (Marechal
ou acidentes (denominados “corpo de deli- Hermes), 33ª DP (Realengo), 34ª DP (Bangu),
to”), subordinado à direção do IML Afrânio 35ª DP (Campo Grande), 36ª DP (Santa Cruz) e
Peixoto; (2) o de exames em locais de crimes 39ª DP (Pavuna). A área de abrangência do PPT
(“perícia de locais”); e (3) o de exames em corresponde a quase todos os bairros da Zona
objetos, armas e entorpecentes (“exames in- Oeste, exceto Jacarepaguá e Barra da Tijuca, além
ternos”), esses dois últimos subordinados à dos bairros de Deodoro, Costa Barros e Barros
direção do Instituto de Criminalística Carlos Filho. O presente estudo analisou os dados gera-
Éboli. Os dados utilizados neste trabalho são os dos a partir das solicitações das delegacias
referentes às solicitações de perícias de local. supracitadas. Além delas, o PPT atende às dele-
Foi realizada uma análise do total das ocor- gacias de Atendimento à Mulher (Deam-Oeste),
rências atendidas pelo PPT de setembro de de Roubos e Furtos (DRF) e de Roubos e Furtos
1999 a junho de 2002. Para o período de julho de Cargas (DRFC). Entretanto, como são raras
de 2001 a junho de 2002, foi realizada uma as solicitações dessas últimas delegacias, elas não
análise mais detalhada, na qual as ocorrências foram consideradas nesta análise.
foram especificadas por categorias. Os dados da Secretaria de Estado de Segu-
As informações referentes ao dia da semana, rança Pública disponíveis na internet1 referentes
tipo de ocorrência e da delegacia solicitante da ao total de vítimas por homicídio doloso,
perícia foram coligidas de um livro de registro infanticídio, latrocínio, encontro de cadáver e
interno. As ocorrências foram classificadas em encontro de ossada foram utilizados para com-
três categorias principais: (1) mortes violentas paração com o número de perícias de homicídios
por homicídios – incluídos os registros com os feitas pelo PPT, no período de julho de 2001 a
títulos de homicídios e encontros de cadáver; junho de 2002. Os dados da Secretaria de Esta-
(2) acidentes de trânsito – incluídos os títulos do de Segurança Pública são agrupados por
de colisões, choques, abalroamentos e atropela- Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs).
mentos; e (3) arrombamentos – incluídos os Ao presente estudo, interessam as 14ª, 27ª e 31ª
títulos de arrombamento e furto em residência AISPs, as quais correspondem as áreas atendi-
ou empresa. Outras ocorrências, tais como da- das pelas 30ª, 33ª e 34ª DPs (14ª AISP), 35ª DP
nos (a veículos, residências e patrimônio públi- (31ª AISP) e 36ª DP (27ª AISP). A 39ª DP faz
co), constatação de impacto de projétil, exame parte de uma área integrada onde participam
geral em local, furto de energia, morte suspeita e outras delegacias fora da área de atuação do
súbita, suicídio, incêndio e coleta de impressões PPT e por isso foi deixada fora da análise.
Figura 1
350
300
Número dedeocorrências
250
acorrências
2000
200 2001
150 2002
número
100
50
0
Jan Fev Mar Abr Mai Jun
Nos primeiro semestres de 2000 e 2001, e abril de 2002 (329 ocorrências). Em agos-
foram realizadas 1.548 e 1.562 solicitações to de 2000 (227), julho de 2001 (234) e
de perícias, respectivamente. Já no primeiro fevereiro de 2002 (284) foram meses com
semestre de 2002, houve 1.871, o que equi- menor número de ocorrências.
vale a um aumento de cerca de 16% em rela- Os principais tipos de ocorrências atendidas
ção ao ano anterior. pelo PPT de Campo Grande de julho de 2001 a
A análise mensal da freqüência de solicita- junho de 2002 foram os homicídios (1.186 períci-
ções demonstra que os meses com maior nú- as, o equivalente a 35,1% do total). Acidentes de
mero de solicitações nos anos de 2000, 2001 e trânsito e arrombamentos também tiveram partici-
2002 foram: dezembro de 2000 (282 ocor- pação elevada nas solicitações de perícias. Foram,
rências); novembro de 2001 (286 ocorrências) respectivamente, 803 perícias (23,8%) e 444 (13,1%).
Outros tipos responderam por 28% do total (homicídios, acidentes de trânsito e arromba-
de solicitações (945 perícias). Dessas últimas, mentos) apresentou poucas alterações ao lon-
cerca da metade refere-se a solicitações de pe- go do tempo. Os homicídios predominaram em
rícias para exame em veículos (envolvidos em quase todo o período analisado, exceto em ju-
acidentes, verificação de impacto de projétil e lho de 2001, quando o número de solicitações
incêndio). de perícia para acidentes de trânsito na área foi
A Figura 2 mostra a tendência temporal dos maior do que o de solicitações de perícias de
principais tipos de ocorrência de julho de 2001 homicídios. No primeiro semestre de 2002, esse
a junho de 2002. Neste período também houve número envolvendo homicídios foi de 679 so-
uma tendência geral no aumento total de solici- licitações, o que equivale a um aumento de cer-
tações de perícias; entretanto, a freqüência rela- ca de 34% em relação ao ano anterior (507
tiva das três principais categorias de ocorrências solicitações).
Figura 2
Tabela 1
Distribuição das perícias por delegacias, segundo principais categorias de ocorrências
atendidas pelo PPT de Campo Grande - De julho de 2001 a junho de 2002
Delegacias
Categorias de
ocorrências Total
30ª 33ª 34ª 35ª 36ª 39ª
%
Homicídios 8,4 10,0 18,4 28,5 17,1 17,6 100,0
Acidentes de trânsito 5,2 8,1 12,1 53,3 16,8 4,5 100,0
Figura 3
500
400
número de ocorrências
300 SSP
PERÍCIA
200
100
0
14ª AISP 27ª AISP 31ª AISP
(*) AISP = Área Integrada de Segurança Pública
Isso significa que o deslocamento da viatura de A grande demanda por perícias de homicí-
perícia será maior no caso de atendimentos das dios na área atendida pelo PPT deveria ser um
solicitações de perícias de homicídios, já que a indicador para se repensar o treinamento e a
distribuição espacial dos casos é mais dispersa. atualização dos peritos alocados no PPT de
No caso dos acidentes de tráfego, estão mais con- Campo Grande. Seria desejável que fossem mi-
centrados na região da 35ª DP. Isso irá reverter- nistrados cursos voltados para exame de locais
se em um maior ou menor intervalo de tempo de homicídios, além de aquisição de material
para o atendimento dos diferentes tipos de perí- adequado a esse tipo de exame.
cias solicitadas. Dessa forma, o simples delineamento das
Por sua vez, o elevado número de perícias principais características das demandas do
por dia aumenta o tempo gasto com desloca- PPT pode servir para uma série de análises no
mento das viaturas. Em última análise, longas que diz respeito à alocação mais adequada de
distâncias a percorrer implicam menor eficiên- recursos materiais e humanos, contribuindo para
cia do exame pericial, uma vez que os peritos um programa eficiente e integrado de comba-
permanecem mais tempo deslocando-se de um te à violência. Alterações na estrutura de aten-
bairro a outro do que examinando o local. dimento sem fundamentar-se em informações
analisadas e sistematizadas podem, inclusive,
Se a tendência de aumento do número de
gerar distorções e entraves na melhoria dos
ocorrências persistir, conforme sugerem os
serviços.
dados, a situação irá se agravar ainda mais, caso
não sejam acompanhadas de mudanças no Finalmente, os dados gerados pela perícia
contingente de pessoal e na estrutura de aten- criminal podem servir para confrontar dados
dimento dos casos. Em outras palavras, faz-se gerados por outras instituições, principalmen-
mister a alocação racional de pessoal para aten- te pela Secretaria de Estado de Segurança Pú-
dimento adequado às demandas crescentes. blica do Rio de Janeiro.
Ademais, o grande deslocamento provoca um É importante ressaltar, no entanto, que os
desgaste natural das viaturas, exigindo uma revi- dados aqui analisados apresentam algumas li-
são periódica dos veículos que pode basear-se no mitações. Uma delas é a falta de padronização
deslocamento médio mensal. A demanda de perí- para determinadas categorias lançadas no li-
cias também pode servir como importante infor- vro de registro interno. Por exemplo, os aci-
mação para a reposição regular de material con- dentes de trânsito e os atropelamentos são clas-
sumido, tais como: luvas, disquetes para fotografia sificados ora separadamente, ora na mesma
digital, pós-reveladores (de impressão digital), categoria (acidentes de trânsito). Da mesma
material para impressão de laudos periciais, além forma, às vezes explicita-se no livro a ocorrên-
de peças para manutenção das viaturas. cia de acidente de trânsito com vítima fatal e
outras vezes essa informação é omitida ou não é em torno da parcela preponderante das víti-
repassada pela delegacia. Por essas razões, op- mas da violência; (c) precária formação dos
tou-se, neste estudo, pelo agrupamento de algu- profissionais que lidam com os registros e uma
mas categorias, como os acidentes de trânsito e desconexão desta tarefa com o fluxo geral de
os atropelamentos. Da mesma forma, as catego- informação.
rias encontro de cadáver e homicídios não pu- Quanto à desvalorização cultural do regis-
deram ser analisadas separadamente. Assim, se- tro de informação, quais seriam as vantagens
ria importante que os funcionários responsáveis de tal procedimento? Esta desvalorização es-
por estas anotações tivessem um treinamento taria vinculada a um dispositivo de poder, en-
prévio, a fim de padronizar as informações. tendido segundo a concepção de Foucault?
Outra limitação é em relação ao pequeno Portanto, busca-se analisar a questão por meio
poder de detalhamento desses dados. Uma aná- de uma ótica de microfísica da violência,
lise mais aprofundada exigiria a sistematização expressão criada por Santos (2002), que se
de informações extraídas diretamente dos lau- baseia na idéia de Foucault em Microfísica
dos periciais. Nesse caso, além do maior deta- do poder (1995).
lhamento, outras informações seriam levanta- Quando se buscam respostas para essas
das, inclusive de importância criminalística tais indagações na própria origem da Polícia, ins-
como a localização espacial das ocorrências tituição à qual a polícia técnica está estrita-
de homicídios, encontros de cadáver, aciden- mente vinculada, percebe-se que a ineficiên-
tes de trânsito e arrombamentos, além da cor- cia é histórica, bastando citar duas declara-
relação de características das vias com os tipos ções de ministros da Justiça há mais de cem
de ocorrência. anos. A primeira foi proferida por Honório
O descaso no tratamento das informações da Hermeto, em 1833:
polícia técnica fica patente na perícia criminal, A Polícia, objeto de tanta importân-
em que a sistematização das mesmas é ainda cia em tempos de perturbações, pode-
ineficiente ou até mesmo inexistente. se dizer que não existe hoje no Impé-
Para entender a desvalorização existente rio... No tempo de minha vida públi-
em nossa sociedade em torno dos sistemas de ca, sempre a conheci limitada à ad-
informação sobre violência, o trabalho de ministração de obras públicas, e à
Njaine (1997) ajuda a lançar luz sobre al- apreensão de ladrões e malfeitores, de
guns pontos. Nele, as autoras relacionam a objetos roubados ou furtados, e de
(des)informação a três fatores: (a) desvalori- escravos fugidos. Estas mesmas atri-
zação cultural do registro de informação nas buições eram mal exercidas por defi-
instituições públicas; (b) essa desvalorização ciências de meios(...). (Apud Barreto
estaria relacionada ao estigma social criado Filho & Lima, 1943).
A segunda foi proferida por Gustavo Adolfo sistema macro-político e está relacionado ao
de Aguilar Pantoja, em 1837: “(...) e não é exa- segundo item descrito por Njaine (1997), que
gerado o que se vos disse na passada sessão, é o estigma social. Sem informação empírica,
que entre nós não existe nem simulacro da sem fundamentações pautadas em fatos con-
Polícia”. (Id.ib.) cretos, o caminho está livre para apropriações
No nível capilar de poder, quer dizer, aque- ideológicas geradoras e consolidadoras de pre-
le pertinente aos dirigentes e chefes de seção conceitos. Esses, por sua vez, legitimariam de-
das instituições ligadas à polícia técnica, pode- terminadas práticas, notadamente a garantia da
se ressaltar que quando se tem uma estrutura exclusão social e dominação de uma classe
administrativa e hierárquica pautada em alian- sobre outra, por meio de mecanismos
ças políticas e de relacionamentos pessoais, disciplinadores. Nessas circunstâncias, as es-
esses poderes instituídos e institucionalizados truturas sociais e hierárquicas presentes nos
ganham uma dimensão autoritária; portanto,
níveis capilares de poder (instituições da polí-
não são contestáveis. Assim, as decisões admi-
cia técnica, por exemplo) tornam-se econômi-
nistrativas prescindem do critério de eficiência
ca e politicamente úteis, dentro de uma estrutu-
e são colocadas segundo uma dinâmica de tro-
ra maior de poder, sendo anexadas e sustenta-
cas de favores estabelecidos de acordo com
das por esses mecanismos globais do estado.
ganhos pessoais.
Dessa forma, diversas instituições funciona-
Posto dessa forma, a sistematização da infor-
riam integradamente, de maneira a manter um
mação viria a exercer um controle sobre este po-
sistema de exclusão social que tem na violência
der autoritário que, embora muito mais simbólico
do que real, criaria uma possibilidade de con- um importante mecanismo de sustentação.
testação deste poder, uma vez que haveria a Dentro dessa lógica, há de se considerar a forte
expectativa de que as decisões fossem tomadas associação existente entre a distribuição espa-
com base nos parâmetros racionais e objetivos cial da violência e a distribuição espacial das
existentes. Esse seria o primeiro nível de con- classes menos favorecidas. Em trabalho reali-
testação. Em um segundo nível, essas técnicas e zado na cidade de São Paulo (Cardia & Schiffer,
parâmetros já estariam incorporados ao siste- 2002), constatou-se que os homicídios con-
ma hierárquico e administrativo e, portanto, centram-se em certas áreas da cidade que coin-
haveria dispositivos de veto a atitudes arbitrárias cidem com locais onde há uma superposição
e a possibilidade de destituição de poder, ou de carências. Os autores afirmam que “violên-
seja, algo que se aproximaria teoricamente de cia e insegurança caminham juntas com pouca
um sistema democrático de poder. qualidade de vida, com a ausência de política
O tipo de organização da polícia técnica atual habitacional e implementação deficitária de ser-
(e por extensão da Polícia) também serve a um viços”. Beato Filho (2001) também conclui que
os conglomerados com maiores taxas de ho- violência e de sujeitos violentos que a sociedade
micídio da cidade de Belo Horizonte estão rela- hegemonicamente retém em seu imaginário”
cionados “a bairros e favelas em que parece (Njaine, 1997).
prevalecer o tráfico de drogas”. As principais A (des)informação acaba tendo, pois, o
vítimas da violência estão concentradas em de- duplo papel de: a) tornar menos importante a
terminadas áreas e correspondem a “pessoas morte de vítimas de violência das classes me-
consideradas indesejáveis, cujo perfil coincide nos favorecidas; e b) permitir o rótulo dessas
com o daquelas pertencentes às classes popu- classes, associando-as diretamente ao crimino-
lares” (Minayo & Souza, 1999). so, tornando-as indesejáveis do ponto de vista
Além disso, a violência serve como um po- social. A (des)informação permite a perpetua-
deroso mecanismo de controle da organiza- ção de preconceitos que legitimam a violência
ção civil da parcela da população menos direcionada a certas classes. Esta mesma vio-
favorecida, principalmente aquela parte da so- lência tem o papel de controlar e delimitar es-
ciedade submetida ao poder ditatorial de gru- pacialmente as populações desfavorecidas eco-
pos de narcotraficantes que impõem pelo ter- nômica e socialmente.
ror seu poder (Minayo & Souza, 1999). Neste Quanto à perícia, os casos de homicídios
último caso, encontram-se as favelas cariocas, são percebidos por muitos peritos como “eli-
onde a desarticulação da sociedade civil tem minação de bandidos”, principalmente naque-
origem devida à atuação repressiva do estado les classificados como auto de resistência. No
nessas comunidades, quer de forma sub- entanto, estudos mostram que a maioria dos
reptícia, quer por meio da violência policial. jovens assassinados não tem antecedentes cri-
Tal atuação provocou o desmantelamento das minais (Minayo & Souza, 1999).
associações de moradores e o desaparecimen- Outro preconceito muito comum é o que
to de líderes comunitários, inibindo a organi- tem relação com o ambiente onde o crime
zação social que começava a despontar (Zaluar ocorreu, em local caracteristicamente pobre,
& Alvito, 1999). A partir do processo de demo- quando a vítima de homicídio, por uma in-
cratização da sociedade brasileira, o estado versão simbólica, passa a ser considerada
deixou de intervir de forma direta nesses lo- um bandido que foi eliminado por um justi-
cais, iniciando-se a implantação de poderes ceiro ou como conseqüência de briga entre
oriundos do tráfico de drogas e armas, os quais traficantes. Quando o crime ocorre em local
substituíram o estado no papel de desarticulador caracteristicamente abastado, a vítima per-
dessas comunidades. manece nesse papel, considerando-se que
Por conseguinte, a produção de des(informação) ocorreu um crime praticado por um fora-
torna-se adequada “à concepção dominante de da-lei. O rótulo dado às vítimas de violência
tem uma forte conotação espacial e de classe macabro também têm como protagonistas des-
social no imaginário popular. sas histórias pessoas das classes menos favore-
No entanto, é interessante que esse olhar não cidas, principalmente aquelas que vivem
é apenas da Polícia, mas também da mídia e da segre-gadas em determinados espaços urba-
própria sociedade. Esse discurso apresenta tal nos, tais como a Baixada Fluminense. Desse
clareza facilmente percebida pelos segmentos modo, espetacularização da violência tem pa-
sociais atingidos conforme a opinião de estu- pel significativo na legitimação do poder de
dantes que expressaram a visão dos meios de polícia. Segundo Foucault (1995), é impor-
comunicação e reafirmaram as divisões e a ex- tante que os crimes sejam explicitados, disse-
clusão social: “morreu de uma bala perdida por- cados e expostos ao público. É necessário cri-
que é vagabundo ....”; “morreu porque era do ar uma comoção pública, principalmente en-
tráfico” (Apud Minayo et al., 1999). tre as classes pobres (principais vítimas da
A desinformação também permite explo- violência), as quais devem ser controladas,
ração e apropriação do tema pela mídia, que esquadrinhadas e monitoradas. Uma das ins-
pode moldar a informação da maneira mais tituições criadas com essa função disciplina-
adequada aos seus objetivos mercadológicos, dora é a da Polícia, com seus métodos de re-
pois transforma a violência em espetáculo, pressão individuais e coletivos.
cujos principais atores são angariados das Dentro desta contextualização geral,
classes menos favorecidas. pode-se destacar a especificidade da mídia
A mídia tem um duplo papel no processo na perícia criminal. Em um primeiro nível,
de desinformação. O primeiro é passivo e está há uma influência direta e pessoal dos meios
relacionado à geração de notícia. Os meios de de comunicação no reforço de preconceitos
comunicação se beneficiam da ausência de in- existentes na população e, por extensão, nos
formações de qualidade para fabricar conteú- peritos. A persistência da mídia em certos
dos e reinventar fatos e dados da forma que temas e a forma de abordagem tenderiam a
melhor se aadapte a seus interesses de lucro criar “verdades”, com poucas possibilida-
imediato. Surge daí a espetacularização da no- des de contestação. O segundo nível passa
tícia. Por outro lado, a mídia tem papel ativo na pela questão institucional, em que a perícia
criação da (des)informação, já que perpetua criminal sofre pressões diretamente da mídia
preonceitos e tem grande poder de convenci- a fim de apresentar respostas a algum evento
mento, influenciando a tomada de decisões da que tenha causado comoção pública. A mídia
população, de dirigentes e de políticos. irá eleger casos que devem ser resolvidos e
Ressalta-se que jornais que têm como prin- pressionará a instituição responsável pela
cipal tema a morte violenta e o espetáculo ação. Em uma análise superficial, se poderia
afirmar que este seria um papel positivo da econômicos e sociais complementares, em-
mídia. No entanto, um outro lado nefasto é o bora com objetivos diferentes.
fato de a mídia “preferir” aqueles casos em Nesse contexto, a violência funciona
que a vítima tem uma posição social abasta- como um dispositivo de poder preservado
da; há aí uma segregação sutil, em que a pres- por diversos mecanismos culturais e institu-
são por soluções é mais freqüente quando cionais. Por este sistema perpassa uma lógi-
envolve a classe privilegiada. ca de exclusão social e de garantia de privi-
O terceiro item abordado por Njaine légios de uma classe sobre outra, em que a
(1997) refere-se à precária formação dos vida humana apresenta valor secundário. É
profissionais que lidam com o registro e a justamente a valorização da vida que pode
desconexão desta tarefa com o fluxo geral subverter tal sistema, ou como afirma Santos
(2002): “Contra a barbárie anunciada pela
de informação. No primeiro caso, se há inte-
violência, a difusão de uma ética da solidari-
resse em perpetuar a ausência de informa-
edade, cuja base seja o respeito ao outro,
ção, pelos motivos anteriormente expostos,
pode compor uma linha de fratura no dispo-
não há sentido, dentro dessa lógica, em for-
sitivo da violência”.
mar pessoal capacitado para organizar tal
informação. A partir dessas questões, também trata-
das em trabalho anterior por Giovanelli
Para que haja um fluxo de informação
(2002), percebe-se a necessidade de maior
desconectado é necessário haver desarticu-
eficiência na geração, sistematização e dis-
lação inter e intra-institucional. Isso serve
seminação de dados do IML e da perícia cri-
para manter a sociedade desinformada e
minal. Sugere-se que mudanças nesse
beneficia tanto o sistema hierárquico autori-
porcedimento informacional da polícia téc-
tário de suas instituições quanto o sistema nica deveriam estar vinculadas a uma série
macro-político e cultural de segregação e de modificações na estrutura administrativa
controle de populações marginalizadas. e hierárquica das Instituições que formam o
Como se vê, a qualidade da informação corpo técnico da Polícia. Em um primeiro
gerada pela polícia técnica pode ser vista como momento, no entanto, deveria ser feito um
uma das vertentes de um sistema praticamen- levantamento prospectivo das demandas de
te fechado, no qual diversas instituições atendimentos periciais nas diferentes regi-
interagem entre si e se retro-alimentam, de ões do Rio de Janeiro. Neste ponto, a perícia
maneira que as práticas de uma reforçam as criminal encontra-se em um estado crítico,
estruturas de organização da outra, contribu- pois como salientado anteriormente, muito
indo, assim, para manter sistemas políticos, pouco tem sido feito neste sentido.
Resumen – En este artículo se plantean las pesquisas forenses realizadas por la Unidad
de Policía Forense - Posto de Polícia Técnica (PPT) - de Campo Grande, en la ciudad
de Río de Janeiro, para el período de septiembre de 1999 a junio de 2002, con
destaque para el período de julio de 2001 a junio de 2002. El número de demandas
policiales fue siempre superior a 200 pesquisas mensuales. El primer semestre de
2002 presentó un aumento del 16% comparado al ano anterior. Los homicidios
contribuyeron acentuadamente para ese crecimiento. La 35ª Jefatura de Policía
(35ª DP) fue la comisaría que más demandó peritaje. Los principales tipos de
ocurrencia policíacas fueron los homicidios (35,1%) y accidentes de tránsito (23,8%).
La degradación de la información generada en la policía técnica pode relacionarse
a dispositivos de exclusión social. Aumento de eficacia de las estadísticas permitiría
tomas de decisiones administrativas más adecuadas de la propia Policía.
Palabras-clave: Río de Janeiro; violencia; pesquisa criminal; homicidio; accidente de
tránsito; invasiones a casas.
Nota
1
Cf. http:// www.novapolicia.rj.gov.br.