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Janeiro concentra-se a maioria dos pontos fixos do varejo de algumas drogas ilícitas (maconha e cocaína,
principalmente), as “bocas”. Sendo uma atividade ilegal, porém altamente lucrativa, seu funcionamento
é garantido através da defesa armada de suas áreas de atuação. Por outro lado, a secular brutalidade
policial no tratamento das camadas populares é estimulada pela violência criminal, de modo que há
décadas os moradores estão espremidos entre dois fogos, a violência criminal e a violência policial.
Dessa população (entre 15 e 20% dos habitantes da cidade, que somam cerca de 6 milhões de pessoas),
os jovens compõem o segmento mais diretamente afetado, tanto por constituírem a grande maioria dos
traficantes quanto por serem o foco central da ação repressiva da polícia.
Em fins de 2008, alegadamente visando por um freio na letalidade dos confrontos entre
traficantes e entre estes e a polícia, começou a ser implantado um novo programa de policiamento nas
favelas, denominado UPP – Unidades de Polícia Pacificadora, que se transformou no polêmico centro do
debate público em torno da manutenção da ordem e do controle social rotineiro.
Baseado em pesquisa empírica de inspiração etnográfica (observação in locu, grupos focais,
entrevistas, etc.) com jovens até 29 anos, o texto propõe-se a discutir as avaliações do estrato social
mais imediatamente envolvido nas práticas que concretizam, nas diferentes localidades, esta nova
modalidade de policiamento ostensivo. O pressuposto da análise a ser desenvolvida é que, dado o
conflitivo padrão de relacionamento acima esquematizado, as tendências das generalizações
construídas pelos jovens através da combinação entre sua percepção dos acontecimentos e os
respectivos julgamentos morais serão decisivas para o sucesso do programa recém implantado.
Observação inicial
Para iniciar este pequeno comentário, gostaria de fazer duas observações: a
primeira se refere aos termos mais amplos de meu interesse nas questões que
abordarei, e a segunda, quanto ao material empírico de referência. O foco geral do
argumento é a produção da sociabilidade ou, mais especificamente, a regulação do
processo interativo, da qual me aproximo desde uma perspectiva situacionalista que
evita o individualismo metodológico, mas considera que os agentes são atores
competentes. É como parte deste horizonte que discutirei uma das dificuldades do
processo de democratização no Rio de Janeiro, a política de segurança.
O material empírico a sustentar a argumentação é proveniente de duas
pesquisas coletivas em andamento1, ambas com financiamento da FAPERJ. Uma delas,
que constituirá o centro da atenção deste texto, é uma ampla avaliação socio-
antropológica das UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora, modalidade de
policiamento comunitário que vem sendo implantada nas favelas cariocas pelo
governo estadual desde 2008. A outra propõe analisar a circulação de jovens pela
cidade, com especial atenção à existência, percepção e maneiras de lidar com
eventuais barreiras à sua movimentação. Trata-se de pesquisas independentes, apesar
da óbvia complementaridade entre elas.
importância na linguagem dos direitos, qual seja o controle das relações interpessoais
indispensáveis à continuidade das rotinas cotidianas. Penso que ela constitui a
compreensão de uma característica vista como central na vida nas cidades
contemporâneas, a “violência urbana”, explicada como decorrente da existência de
novas formas de vida, e não mais como simples práticas intersticiais, atomizadas e
desviantes, do lumpen. No caso do Rio de Janeiro, os agentes dessa “sociabilidade
violenta” costumam ser associados aos traficantes surgidos com a expansão do
comércio a retalho de cocaína em pontos fixos localizados nos territórios da pobreza,
cujo exemplo mais típico no imaginário popular são as favelas2. Mas se generaliza e se
torna dominante na configuração do debate público com a hiper-politização da
questão da segurança provocada por medidas tomadas ainda no começo do primeiro
governo Brizola (1983-86), que foram consideradas por parcela significativa das
camadas médias como proteção de criminosos comuns. Essas medidas consolidaram o
clima de polarização político-eleitoral que sempre marcou as ações do governador e
constituíram a pá de cal no já enfraquecido (por vários outros processos que não cabe
aqui analisar) consenso tácito que associava proteção social e direito(s) – um resultado
completamente diferente do almejado pelo governador e seu grupo político. A partir
daquele momento, a linguagem dos direitos cede espaço, no tratamento da questão
da segurança pública, à linguagem da violência urbana, uma gramática cujos
repertórios expressam o abandono do universalismo que sustentava o debate sobre os
direitos, em favor do afastamento a qualquer preço de agentes que são definidos
como ameaçando a continuidade das rotinas cotidianas3.
Em resumo, no início dos anos 1980 constitui-se no Rio de Janeiro uma espécie
de “enclave de significado” que separa da linguagem dos direitos as questões relativas
à manutenção da ordem pública. Esta passa a ser compreendida de uma forma
restritiva e repressiva, como afastamento das ameaças à integridade física e
patrimonial embutidas nas práticas do dia-a-dia. A relação entre proteção social e
direitos não desaparece, mas na gramática da violência urbana passa a ser
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Evidentemente, estas observações não são consensuais. Proponho-as como uma tomada de posição
em um campo de debate constituído por uma literatura que não para de crescer, cujo tratamento,
entretanto, não cabe nos limites de artigo. Tenho escrito vários artigos a respeito da relação entre a
“linguagem da violência urbana” e a “sociabilidade violenta”; a fim de poupar o leitor, cito apenas os
textos em Machado da Silva (2008). Grillo (2008) e Rafael (1998), por exemplo, oferecem análises
etnográficas sobre o comércio ambulante de drogas ilícitas, que indicam práticas muito diferentes em
relação à venda em pontos fixos.
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Sobre o impacto da política de segurança do governo Brizola na constituição da linguagem da violência
urbana, cfr. Machado da Silva (2010). Ver também, entre os vários trabalhos a respeito da atuação desse
político, a discussão de sua política de segurança, a partir de outro enquadramento analítico, em
Buarque de Holanda (2005). É útil explicitar que não considero que a linguagem da violência urbana
limita-se à cidade do Rio de Janeiro e nem mesmo às fronteiras nacionais. Mas acho que os repertórios
que a constituem conservam especificidades que devem ser levadas em conta, de modo que só um
trabalho comparativo que ainda não foi feito será capaz de propor generalizações empiricamente
sustentadas que ultrapassem os casos particulares como o que é aqui tratado.
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Esta não é a primeira tentativa de implantar o policiamento de proximidade no Rio de Janeiro, mas a
experiência anterior não passou de um projeto-piloto que não obteve apoio político interno e, assim,
não se consolidou. É interessante lembrar que a inspiração para uma nova experiência esteja ligada à
Colômbia, justamente quando o sucesso desta modalidade de policiamento dá mostras de estar
declinando.
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conjunto das favelas cariocas. As repercussões de sua implantação, bem como suas
tendências de desenvolvimento no curto prazo, são o objeto da próxima seção.
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Parte dos comentários desta seção e da próxima está baseada em minha interpretação pessoal das
informações contidas em Soares et allii (2011). Gostaria de deixar explícito que a responsabilidade pelo
uso que faço deste documento é estritamente minha.
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Os repertórios de aprovação e crítica às UPPs constituem-se por referência a uma compreensão
abstrata-geral destes dispositivos, de modo que o debate relativo a cada unidade remete aos critérios
totalizadores da linguagem da violência urbana. Esta “desindexação” das UPPs, que compreende cada
caso como simples exemplar de uma política pública homogênea, confere consistência e continuidade
às relações sociais que se constituem por seu intermédio. Por outro lado, entretanto, empobrece a
reflexão sobre o alcance e os respectivos limites das inovações que, em sua diversidade, as UPPs
produzem concretamente. A variedade de organização concreta, de funcionamento, de resultados, a
intensidade de aprovação ou repúdio local, as diferenças na visibilidade pública das ações de cada
unidade, são de tal ordem que me levam a insistir na necessidade de evitar a polarização e a
generalidade das tomadas de posição correntes, o que não significa negar a existência de algumas (em
geral vagas) orientações comuns. Creio que a reflexão que proponho pode ser qualificada como um
pequeno conjunto de anotações sobre tendências dominantes diferencialmente distribuídas entre as
favelas onde foram implantadas UPPs até o presente (outubro de 2011).
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A vocação “civilizatória” das idéias sobre a reforma da(s) polícia(s) contém, como sub-texto poucas
vezes explicitado na fala dos próprios policiais, o reconhecimento da necessidade de coibir a corrupção
entre os agentes. O esforço de moralização das atividades das UPPs se expressa nos concursos que
recrutam os novos agentes que vão atuar nelas, em uma tentativa de evitar ao máximo o deslocamento
de pessoal, que “contaminaria” as unidades com velhos métodos de atuação, bem como no curso
especialmente criado para os novos quadros. Internamente, os defensores das UPPs lamentam que o
curso seja curto demais para criar o “novo homem” da polícia, como eles gostariam, devido à urgência
de expansão das unidades.
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Um ponto forte contido no horizonte dessas idéias genéricas é a moderação – note-se bem, não o
abandono – da conhecida e muito discutida ideologia oficial de “guerra às drogas” (entendida como
combate ao tráfico, isto é, aos agentes individuais e coletivos de produção e comercialização de
produtos definidos como ilícitos) representada por uma nova ênfase na redução da letalidade, a qual
tem se demonstrado inerente às práticas que tal ideologia origina.
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É claro que na base destas inovações estão tentativas de reformular as práticas policiais, de modo que
os processos internos à instituição são muito importantes. Quero reiterar, entretanto, que meu foco não
é propriamente a polícia, mas os resultados de sua atuação na configuração da sociabilidade no Rio de
Janeiro. Neste sentido, meus comentários concentram-se nas relações dos agentes com a população
ordinária, especialmente no que diz respeito ao feedback entre as interações concretas e o debate
público que elas suscitam. A aposta teórica é que esta interdependência é decisiva, pois é neste espaço
de indeterminação que os repertórios constitutivos de uma linguagem reproduzem-na e/ou a
transformam.
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Um bom exemplo destas dificuldades encontra-se na reportagem de Elio Gaspari, um dos mais
reputados jornalistas cariocas, intitulada “Pacificaram as estatísticas da morte no Rio” e publicada n’O
Globo, o jornal de maior circulação no Rio de Janeiro. (Disponível em
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=412853&ch=n. Acessada em outubro de 2011.
Agradeço a Susana Durão esta referência.) A matéria constitui uma interpretação pessoal do autor sobre
o significado dos dados contidos em trabalho de Daniel Cerqueira (IPEA/Ministério do
Planejamento), "Mortes violentas não esclarecidas e impunidade no Rio de Janeiro". O texto publicado
n’O Globo, além de um duro questionamento das estatísticas que indicam a redução da letalidade com a
implantação das UPPs, pode ser tomado como indicação de que as críticas a elas começam a receber
mais atenção da grande mídia e a ser feitas em tom mais agressivo.
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Considerações finais
O presente texto dedica-se a comentar em que medida a experiência das UPPs
afeta a constituição da sociabilidade no Rio de Janeiro. Trata-se, portanto, de uma
abordagem “para fora” (cfr. nota 9) das práticas policiais, em que são privilegiadas as
relações dos agentes com a população ordinária. Os inúmeros aspectos que
constituem as práticas organizacionais – os conflitos de interesse, os jogos de poder, as
regras técnico-administrativas, econômico-financeiras, de gestão de pessoal, jurídicas,
etc. – que são a retaguarda dos procedimentos policiais que afetam as pessoas
comuns, apesar de obviamente muito relevantes, foram deixados em segundo plano
em benefício da concisão, da simplicidade e da clareza do argumento central.
No entanto, há um tópico ligado às questões que não foram aqui tratadas que
considero indispensável mencionar, ainda que esquemática e superficialmente, pois
sua compreensão mais abrangente é indissociável de uma análise específica do
funcionamento interno da instituição. Trata-se do grau de envolvimento dos policiais
nas atividades relativas às UPPs. Reconheço que estarei apresentando uma pequena
radiografia do momento presente de uma experiência que é processual e tem pouco
tempo de existência. Mas a adesão ativa e/ou o repúdio dos policiais expressam o
“espírito” da iniciativa que constitui o dispositivo e, portanto, são decisivos para as
características que ele vier a assumir. Não creio que seja possível falar do impacto das
UPPs, presente ou tendencial, sem considerar a natureza do engajamento dos policiais
envolvidos.
Esquematicamente, os agentes se distribuem por três posições:
a) A grande maioria do oficialato não ligado às UPPs é descrente quanto à sua
eficiência como aparatos de controle social. Independente de interesses
particulares que a proposta das UPPs, ou qualquer outra mudança nos
procedimentos policiais, pode ameaçar, este grupo continua a achar que “bandido
bom é bandido morto” e que a população dos territórios da pobreza é criminosa ou
conivente com a criminalidade. Talvez seja possível acrescentar que este
contingente é o que melhor encarna o ethos corporativo. A propósito, uma questão
que mereceria pesquisa específica é em que medida o ethos policial contem uma
inversão do princípio de que ninguém pode ser culpado sem prova. O operador
dessa inversão seria a crença, tácita mas quase canônica, de que um agente cuja
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Candidamente, um policial alocado em uma UPP comentou, com certeza pensando estar falando
sobre o cumprimento do dever: “Agora que a gente não pode mais bater nas pessoas, fica difícil ser
respeitado e manter a ordem”. Este é um pequeno exemplo, relevante por causa da clareza. Menos
explícitos, porém mais indicativos das dificuldades de produzir internamente um envolvimento positivo
dos agentes com a orientação geral que os responsáveis querem imprimir às UPPs, são os frequentes
comentários sobre a substituição dos casos reportados como “auto de resistência” (mortes produzidas
por policiais alegadamente em legítima defesa) por casos apresentados como “desacato à autoridade”
(para justificar agressões e prisões arbitrárias). A letalidade diminuiu, mas as demais formas de violência
policial não seguem o mesmo caminho, ao menos na opinião de uma parte da população da cidade.
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A necessidade de estabelecer relações, mesmo esporádicas, com uma forma de vida intrinsecamente
violenta aumenta o risco pessoal envolvido nas práticas dos militantes das associações de moradores.
Têm sido comuns os casos de diretores mortos, expulsos da localidade, etc., o que contribui para o
afastamento dos moradores.
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