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DOSSIÊ CIDADANIA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 13: 115-124 NOV. 1999


E VIOLÊNCIA

CRIMINALIDADE VIOLENTA:
POR UMA NOVA PERSPECTIVA DE ANÁLISE

Luís Antonio Machado da Silva


Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/
Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO
O artigo aborda o problema da criminalidade violenta urbana no Brasil após a década de setenta,
procurando apresentar uma nova perspectiva de análise. Seu argumento é que as interpretações correntes,
que vinculam o aumento da criminalidade, especialmente a organizada, à crise institucional são
inadequadas, pois não consideram a especificidade do problema, tanto do ponto de vista teórico como, e
principalmente, do ponto de vista prático. A criminalidade organizada é uma realidade social com lógica
própria, até agora não estudada, e que funciona com certa independência em relação a outros problemas
e fenômenos sociais, como a “crise do Estado”.
PALAVRAS-CHAVE: violência urbana; criminalidade organizada; manutenção da ordem pública; exclusão
social.

I. APRESENTAÇÃO experiência social da insegurança individual, física


e patrimonial.
Nas últimas décadas, as mais variadas manifes-
tações de violência física têm-se colocado na per- De fato, há bastante tempo a unidade cons-
cepção social, com crescente intensidade, como truída por aquele tripé — violência, criminalidade
um dos principais problemas da vida nas grandes comum, narcotráfico — tem sido intensamente
cidades, gerando muitas explicações, tanto no vivida como um problema cotidiano, afetando
plano da existência cotidiana, quanto no da inter- diversos aspectos das condutas rotineiras das
pretação sociológica. Consideradas globalmente, populações urbanas no Brasil. Em um primeiro
elas apresentam uma notável homogeneidade, não momento, o debate público tratou a questão de
obstante, como seria de esperar, a ampla variedade uma forma limitada, concentrando-se sobre as
de nuances, ênfases temáticas, graus de sofisti- dificuldades técnicas, jurídicas e financeiras que
cação analítica, base empírica etc. De uma maneira incidiam sobre os procedimentos policiais e de
geral, esse variado conjunto de explicações constrói administração da justiça, favorecendo a expansão
uma complexa, mas unívoca, representação da da criminalidade. Isto pode ser visto, por exemplo,
criminalidade violenta no Brasil que se irradia a no tratamento conferido pela mídia que, salvo em
partir de um núcleo consensual básico: a ameaça casos excepcionais e durante curtos períodos, con-
à integridade física e à propriedade privada, repre- tinuava circunscrevendo a cobertura da crimina-
sentada pelo crescimento conjugado do crime lidade às páginas policiais, ao mesmo tempo em
comum e do tráfico de drogas, visto este último que aprimorava a qualidade e aumentava a extensão
como a atividade concreta que, direta ou indire- delas. É verdade que, nadando na contracorrente
tamente, seria a responsável pela crescente orga- desta óptica dominante, certos enfoques privile-
nização da criminalidade urbana. Mesmo que este giavam a crítica à violência policial, politizando o
entendimento não corresponda à realidade (ponto tratamento da questão. Que este não era o ponto
que não vem ao caso discutir aqui), trata-se de de vista dominante fica claro, por exemplo, no
uma convicção suficientemente arraigada e difun- insucesso das tentativas de introduzir o problema
dida para colocar na agenda das discussões sobre da cidadania no tratamento dos problemas de ro-
a conjuntura o tema da ordem pública. É funda- tina do sistema prisional e na maneira de conduzir
mental ressaltar que o que lhe confere especi- a atividade repressiva contra a criminalidade co-
ficidade histórica é sua abordagem a partir da mum durante o primeiro governo Brizola (1983-

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 13, p. 115-124, nov. 1999


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1986), para citar o exemplo do Rio de Janeiro. nismos institucionais (e não apenas dos recursos
Este período pode ser visto como um exemplo da técnicos e financeiros) de controle social, redu-
muito difundida recusa — neste caso, ativa e não zindo o caráter unilateral das críticas à arbitrarie-
meramente implícita — de politização deste pro- dade, violência e corrupção dos policiais e abrin-
blema1. De qualquer forma, deve-se notar que, do espaço a propostas de colaboração de outros
ao basearem o argumento no caráter de classe atores na manutenção da ordem.
dos aparelhos de Estado, os críticos da violência
Os movimentos de policiais civis e militares
policial mantinham a ênfase nas disfunções do
reivindicando melhores salários e, em certos
aparelho repressivo e, além do mais, tornavam-
casos, também melhores condições de trabalho
nas conseqüências necessárias, previsíveis e, por-
que se espalharam por todo o Brasil a partir de
tanto, insuperáveis, da existência mesma destas
Belo Horizonte, vieram reforçar esta tendência de
instituições.
politização do tema. Pondo em questão as condi-
Nos últimos anos, o problema da criminalidade ções de vida de um segmento do funcionalismo
violenta parece vir aos poucos se aproximando de público, eles conduziram a atenção para a asso-
um debate menos limitado, que situa o tema da ciação entre o “desmonte” do Estado, o esgar-
manutenção da ordem pública como parte da çamento da ordem pública, a expansão da crimi-
questão mais ampla da democracia brasileira. Creio nalidade e a generalização do recurso à violência.
que um marco provável para esta inflexão foi a
Estes rápidos comentários têm apenas a inten-
influência dos aspectos policiais da crise que
ção de introduzir o pressuposto básico do presente
desembocou no fim do governo de Fernando
texto: nas últimas décadas, a partir de uma dra-
Collor. De qualquer forma, mesmo que este não
mática intensificação da experiência de insegurança
seja o caso, é certo que a dimensão política da
pessoal, vem se consolidando uma compreensão
questão assomou à percepção social com inques-
muito particular dos problemas de manutenção da
tionável intensidade nos últimos anos, a partir de
ordem pública. Sua característica básica é a ênfase
uma série de dramáticos incidentes que expuseram,
nos inúmeros aspectos que configuram a fragili-
seja o envolvimento de policiais com grupos de
dade das agências de controle e repressão ao cri-
extermínio e com o tráfico de drogas (o “massacre
me. Porém, não se trata mais de um simples “caso
da Candelária”, a “chacina de Vigário Geral” etc.),
de polícia”, isto é, estritamente ligado às práticas
seja a crueldade dos métodos oficiais de atuação
da corporação, nem de um mero problema de
da polícia (o “massacre de Carandiru”, por exem-
eficiência dos aparelhos repressivos, passando a
plo). Acontecimentos como estes não podiam ficar
envolver cada vez mais o debate sobre a expansão
restritos, como antes, às explicações limitadas às
da cidadania. O foco do debate se amplia, de modo
dificuldades de administrar procedimentos rotinei-
a incorporar de maneira mais direta a relação entre
ros de vigilância e controle, ou às referências gené-
democratização — mais especificamente, garantia
ricas ao caráter intrinsecamente autoritário e vio-
universal de direitos civis — e eficácia policial.
lento do próprio funcionamento das agências esta-
tais. As críticas à moralidade vigente entre os Entretanto, ao mesmo tempo em que faz avan-
membros das forças policiais e à violência inscrita çar o debate sobre uma série de questões relacio-
na própria cultura organizacional dos órgãos de nadas à segurança das populações urbanas, esta
repressão, suscitadas por aqueles episódios, passa- perspectiva continua inviabilizando o entendimento
ram a fazer parte da agenda de debate sobre a das condutas dos próprios criminosos, os agentes
extensão da cidadania e a democratização das ativos da experiência de insegurança pessoal. Na
relações sociais. Assim ampliado, o entendimento realidade, na medida em que o crime — e, mais
do problema da criminalidade incorporou, ainda especificamente, o crime violento organizado —
que de uma forma tímida, a limitação dos meca- aparece como resultado da ineficácia da ação
repressiva, ainda que no quadro ampliado que
acabo de mencionar, segue-se como conseqüência
1 Cumpre mencionar, de passagem, que este trabalho está lógica o suposto de que ele poderia ser cancelado,
marcado por minha experiência de vida no Rio de Janeiro.
inviabilizado ou pelo menos reduzido a proporções
Apesar disso, como esta cidade pode ser considerada um toleráveis pela manipulação de variáveis contex-
caso exemplar ou “típico” dos fenômenos aqui tratados, tuais. Uma vez que a construção de suas ações
creio que a reflexão desenvolvida pode ser generalizada, pelos próprios criminosos deixa de ser considera-
pelo menos para o conjunto das metrópoles brasileiras. da, o problema da criminalidade desaparece,

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convertendo-se numa questão de institution condição universal e necessária da sociabilidade.


building que envolve as agências da ordem, suas E preliminar, pois se o conhecimento empírico da
relações com a sociedade civil e a formulação de criminalidade violenta produzido desde a pers-
políticas democráticas de segurança pública. pectiva dominante é reconhecidamente superficial
e fragmentar, ele é ainda mais incipiente do ponto
Dito de outra forma, a lógica do mundo da
de vista aqui proposto – situação que, sem dúvida,
ordem logra uma nova vitória de Pirro: a compre-
só pode ser alterada pela sua explicitação, debate
ensão de seu funcionamento se expande, incor-
e eventual incorporação à pesquisa sociológica2.
porando novos aspectos antes desconsiderados,
na exata medida em que a desordem é negada e II. A EXPLICAÇÃO DOMINANTE: UMA CRÍ-
reduzida à mera ausência da ordem. TICA
O presente trabalho contém um comentário A questão da criminalidade violenta nas grandes
metodológico que procura lidar com esta dificul- cidades é um dos eixos centrais de um quadro de
dade específica da explicação dominante, sem referência que opõe dois momentos, em uma
pretender substituí-la ou negar que ela versa sobre periodização cujo marco é quase sempre a virada
questões de importância fundamental. Trata-se, para os anos 70. Ela se baseia na percepção da
antes, de um diálogo que objetiva apenas argu- diferença entre o passado, quando o crime era
mentar a favor da plausibilidade e relevância de vivido como um problema menos angustiante, e o
um ponto de vista sobre a organização social da presente, período em que a criminalidade se torna
violência contemporânea nas grandes cidades progressivamente mais violenta e organizada. Ou
brasileiras que toma como ponto de partida a seja, produz-se um corte temporal em que o
criminalidade comum violenta. passado se caracterizaria, não pela ausência de
condutas criminosas, mas por seu encapsulamento
Não desejo, portanto, ultrapassar a menciona-
enquanto ações isoladas e intersticiais, e o presente
da experiência de insegurança — até porque, sem
corresponderia a um momento em que essas
levá-la muito a sério, não é possível compreender
práticas se organizam em empreendimentos
o que se passa na vida urbana contemporânea —,
coletivos e permanentes, evidenciando dificuldades
nem apresentar uma interpretação “melhor” para
inusitadas de manutenção da ordem pública que
os problemas de manutenção da ordem pública
tornam dramaticamente insegura a vida cotidiana.
ou da violência urbana. Penso apenas que a pers-
Pode-se dizer, portanto, que o núcleo da percepção
pectiva que sugiro é capaz de revelar e pôr em
social destas questões é o crime comum organi-
discussão uma tendência que a explicação domi-
zado. É evidente que a existência da criminalidade
nante não tem condições de perceber: a transfor-
difusa não deixa de ser reconhecida; mas a
mação da violência, de meio socialmente regulado
diferença é que agora o crime passa a ter uma
e minimizado de obtenção de interesses, no cen-
“cara” — uma estrutura, um agente responsável.
tro de um padrão de sociabilidade em formação.
Dada a relevância do problema, considero urgen- As populações urbanas parecem considerar que
te que seu desconhecimento dê lugar a um debate a delinqüência tradicional correspondia a atividades
aberto e direto, pois trata-se justamente daquilo criminais realizadas por “pessoas comuns” que
que confere especificidade histórica à violência cometiam deslizes de gravidade variável. Neste
contemporânea nas grandes cidades, tornando-a sentido, ela se distingue do crime organizado como
um objeto sociológico singular e um problema empreendimento permanente e baseado na ameaça
social muito mais complexo e profundo do que de violência física, que dependeria de princípios
sua apreensão atual faz crer. de orientação da conduta radicalmente diferentes.
Ou seja, organizados, os criminosos destacam-se
É necessário enfatizar que a reflexão aqui de-
da coletividade.
senvolvida é preliminar e incompleta. Incompleta,
porque não tenho condições pessoais de resolver Estou sugerindo que a percepção social difusa
os enormes problemas que aponto adiante. Para
que se possa aquilatar seu escopo, basta men-
cionar que, como se verá a seguir, eles incidem 2 Considero que o texto mais rico e abrangente sobre o

sobre o significado cultural do individualismo mundo da criminalidade comum é uma obra de ficção: LINS,
contemporâneo e, em última instância, conduzem 1997; o que pode servir de ilustração sobre a carência de
estudos sociológicos que discutam a formação da ação dos
ao questionamento da relação de alteridade como criminosos.

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possui sensibilidade suficiente para dar-se conta e superficial, não pretende captar a riqueza e vari-
de uma inflexão, marcada pelo surgimento de um edade das análises, mas apenas expor seu centro
novo ator coletivo que altera as condições de re- nevrálgico no que diz respeito à concepção domi-
produção da ordem pública. Entretanto, sua nante sobre a criminalidade nas grandes cidades.
expressão cognitiva consciente, tal como surge A intenção é identificar o que considero como o
no debate público e na maioria das análises acadê- nexo causal básico da interpretação da relação entre
micas, não tem sido capaz de captar esta profunda ordem pública e criminalidade violenta na
transformação qualitativa — ou, na melhor das atualidade: de um lado, como variável indepen-
hipóteses, só o faz de maneira indireta. dente, uma profunda crise de autoridade, provo-
cando a ineficiência das agências estatais e o
Assim é que, neste plano, a explicação do de-
encolhimento do Estado; de outro, a variável de-
senvolvimento do crime organizado põe em ques-
pendente a ser explicada: o crescimento do crime
tão, nos termos mais imediatos, a relação entre
organizado nos espaços em que a atividade regula-
dois agentes: de um lado, os próprios criminosos
tória e as políticas substantivas do Estado não
e, de outro, os policiais enquanto encarregados
conseguem preencher3.
diretos da atividade institucional de controle e
repressão. Entretanto, não parece exagero sugerir Incidentalmente, podem ser notadas importa-
que, já neste nível mais concreto, praticamente ntes mudanças nas imagens da pobreza decorrentes
todo o peso da lógica explicativa que tenta apreen- desta explicação. Os pobres transformam-se em
der esta relação recai sobre as condições e o modo vítimas, deserdados dos benefícios materiais da
de funcionamento do aparelho repressivo. Come- cidadania e membros periféricos de uma sociedade
çando com a análise da polícia, mas raramente que o Estado não abarca inteiramente. Nem “classe
restringindo-se a ela, a explicação enfatiza a crise perigosa” (papel que passa a ser reservado ao cri-
moral e de autoridade das instituições responsá- me organizado) nem “sujeito” de sua própria
veis pelo controle social e administração da Justi- história: simplesmente vítimas de uma ausência, a
ça, causa de uma incapacidade radical de cumpri- do Estado. A este respeito, é ocioso lembrar as
mento de suas atribuições, a qual se manifesta sob inúmeras variantes conceptuais que convergem
as mais variadas formas de impunidade, corrup- para a idéia básica de “ausência do Estado”.
ção e tratamento discriminatório das populações
Estas observações não podem ser aprofunda-
mais pobres. O resultado final é a “criminalização”
das no presente texto, mas vale salientar que elas
da própria polícia, a desproteção das camadas
apontam para o aspecto espacial da explicação
populares e o estímulo ao desenvolvimento do
mencionada: a ineficiência do Estado é percebida
crime organizado.
como não apenas social, mas também territorial-
De passagem, note-se que este é o nível mais mente seletiva, afetando de maneira mais intensa
concreto e tópico de uma explicação cujo sentido as áreas pobres das cidades, locais privilegiados
profundo é extraído do reconhecimento de que do crime organizado. É claro que não se alteram
ela trata da expressão localizada de uma crise as tradicionais avaliações sobre a forma urbana,
institucional que é antes política que econômica. agora sustentadas em novas bases: as favelas, que
De fato, embora seja recorrente a menção à penúria tipificam na percepção social as áreas degradadas,
das agências governamentais, em uma linha de
raciocínio cada vez mais generalizadora que a
remete à crise fiscal e à reconversão da economia,
estas causas de natureza econômico-financeira 3 Dentre a miríade de possíveis ilustrações concretas desta
têm antes o estatuto de variáveis intervenientes na lógica explicativa, destaco matéria publicada na revista Veja
explicação. Sua característica mais abrangente — de 08/09/93, a propósito do episódio conhecido como a
“chacina de Vigário Geral”, que me parece paradigmática
que pode perfeitamente passar como descrição
em extensão — 13 páginas, vários autores — e proximidade
típica da “estrutura da conjuntura” atual — é a das análises acadêmicas. Recheada de referências à “falência
incapacidade generalizada de atuação do conjunto do Estado”, “ausência do Estado”, “apodrecimento da polí-
das agências do Estado: a ineficiência e a cia” etc., como conclusões sobre a ineficiência dos órgãos
desmoralização interna do aparelho policial seriam públicos (inclusive, mas não apenas da polícia) e seu descaso
parte de uma crise política que afeta toda a estru- para com as regiões de moradia da pobreza urbana, a mencio-
nada relação causal ali aparece de forma sintética e explícita:
tura do Estado e sua relação com a sociedade.
“A ordem desertou a favela [sic][...]. A debandada dos serviços
Esta descrição, obviamente muito esquemática básicos rendeu Vigário Geral aos traficantes” (p. 29).

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continuam tão ameaçadoras quanto antes. Mas ponto do paradigma explicativo é eticamente de-
turvam-se as fronteiras de classe dessa percep- fensável e intelectualmente sensato, além de
ção, pois agora elas são perigosas também para corresponder aos elementos mais gerais de um
os po-bres. Tudo isso expõe uma característica consenso mínimo, capaz de fundamentar um diá-
essencial do problema, tal como ele está logo fértil entre as muitas posições diferentes que
construído na atualidade: trata-se de uma questão admite.
sistêmica geral, cujo sentido não se esgota nos
A segunda idéia é a de que, no longo prazo,
conflitos de classe.
este processo de construção democrática é
A esta altura deve estar claro que a estrutura condição suficiente para restaurar a ordem pública,
do argumento é semelhante ao clássico modelo fazendo retornar a condições aceitáveis a margem
durkheimiano. Assim, tanto a ineficiência das agên- de insegurança presente no curso da vida cotidiana.
cias estatais, quanto a organização da criminalidade Ao contrário do anterior, este é um dos pontos
violenta são descritas e interpretadas segundo o que me parecem mais problemáticos na estrutura
conhecido padrão ordem-desvio, que corresponde da explicação dominante. Ele se baseia na idéia de
ao quadro geral de todo o raciocínio. Em seu nú- que, sob condições mais democráticas, melhoraria
cleo está uma concepção unificada da lógica da o desempenho, pelas agências estatais, de suas
vida social e seu corolário, a idéia de que a patolo- funções de controle social que, ademais, seriam
gia, quando existe, encontra-se nas características facilitadas devido ao impacto das tendências demo-
do sistema. Se este modelo tem a vantagem de cratizantes sobre a reprodução social, reduzindo
não tratar o comportamento desviante como uma as pressões econômicas que favorecem a adoção
aberração incompreensível, por outro lado apre- de práticas criminosas. Ou seja, reduzido o espaço
senta a desvantagem de não permitir considerar de organização da criminalidade, aumentaria o
os cursos de ação desviantes, segundo o quadro custo de escolher condutas criminosas até o ponto
normativo considerado, como qualitativamente em que estas alternativas seriam descartadas por
distintos dos demais (pois o desvio é definido como agentes racionais.
uma desproporção quantitativa, e não um atributo
Esta estrutura lógica parece-me duplamente
qualitativo).
inconsistente. Em primeiro lugar porque, basean-
Mesmo nas versões que preservam a autono- do-se no postulado implícito de que a adaptação
mia dos agentes e pretendem concentrar-se nos ao novo contexto é a atitude mais racional, nega a
cursos de ação construídos por eles, o esquema intenção de reter como base da explicação a
explicativo muda pouco. Resumidamente, elas autonomia de decisão dos agentes: normas institu-
propõem a recomposição da ordem pública através cionalmente garantidas determinariam as escolhas
de uma variedade de negociações visando a subjetivas, tal como na primeira versão comentada
expansão da cidadania, isto é, incorporando as acima. E, em segundo lugar, porque adota dois
demandas de segmentos cada vez mais amplos pesos e duas medidas: enquanto os criminosos se
das populações urbanas, e tornando as práticas regeriam sempre e apenas pela lógica instrumental,
das agências estatais social, política e territorial- o restante das populações urbanas pode funda-
mente mais abrangentes. Aqui, há duas idéias mentar suas ações em princípios éticos e morais
subjacentes que vale a pena mencionar. (os valores ligados à construção da democracia)
mesmo sob condições que não os recomendariam
A primeira delas é a de que a restauração da
como as “melhores escolhas” de curto prazo.
ordem pública depende do fortalecimento do
Estado mas, ao mesmo tempo, isto só vai ocorrer Esta sumária exposição da estrutura lógica da
quando o funcionamento de suas agências for explicação dominante visou demonstrar que,
social e espacialmente mais homogêneo e paradoxalmente, o desenvolvimento do crime
universalista. Ao contrário de interpretações mais organizado acaba se tornando uma questão secun-
antigas, não se trata nem de opor Estado e dária. As formas recentes da criminalidade são
sociedade, nem de apagar esta diferença. Trata- reduzidas a uma expressão da crise institucional e
se, antes, de reaproximar um do outro, de modo a se transformam em meros indicadores de sua
eliminar o padrão anti (ou pouco) democrático da extensão e profundidade. Ou seja, o emprego
interação entre eles que, em última instância, é crescente da violência e a transformação das
tido como o responsável pela fratura que ocasiona condutas criminosas em empreendimentos perma-
a dissolução da ordem pública. Considero que este nentes são fenômenos apreendidos como meros

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efeitos, simples sintomas da incapacidade das agên- crime violento e sua importância fundamental no
cias de controle social de cumprir satisfato- quadro da vida urbana contemporânea. Como é
riamente suas funções. Assim, embora se localize óbvio, a condição para um ponto de vista como
na organização da criminalidade violenta o princi- este é deslocar a atenção do que chamei acima de
pal problema de manutenção da ordem pública, a processos endógenos de dissolução da ordem.
atenção volta, em uma espécie de “efeito Deve ficar claro, entretanto, que esta providência
boomerang”, a concentrar-se não na formação da não significa negar a existência deles nem a
conduta dos criminosos, mas antes nos processos necessidade premente de intervenções que visem
endógenos de dissolução da ordem. restabelecer e aprimorar as formas de controle
social e a legitimidade da autoridade estatal.
Não é demais repetir: estamos diante de uma
concepção unitária e homogeneizante da vida social. No fundo dos comentários que se seguem está
Talvez seja esta perspectiva geral que não deixa uma concepção (muito embrionária, diga-se de pas-
perceber que, do ponto de vista de seus conteúdos sagem) sobre os processos de “desconcentração”
concretos, a explicação dominante é um pressu- da violência física. Como procurei demonstrar, a
posto, mais que uma análise propriamente dita. criminalidade violenta tem sido entendida como
uma espécie de caso-limite, derivado do acúmulo
Assim, seria absurdo negar que a conjuntura
de problemas de regulação e controle que, em
atual das cidades brasileiras se distingue por uma
última instância, remetem à ilegitimidade do Esta-
profunda crise institucional e que a organização
do. Pressionada pela premência de intervenções
da criminalidade violenta torna-se cada vez mais
práticas sobre o aparato institucional, a explicação
ameaçadora. Mas não me parece plausível
dominante tende a concentrar a atenção sobre o
estabelecer uma relação de dependência causal
que chamei acima de processos endógenos de
entre estes dois processos. De fato, mesmo o mais
dissolução da ordem.
superficial olhar sobre a formação do Estado
brasileiro e a constituição da cidadania em nosso Considero que, embora relevante, esta é uma
país é suficiente para perceber que a ordem pública perspectiva limitada. Quando abordada desde um
nas cidades brasileiras jamais foi um modelo de ponto de vista mais abrangente, é pelo menos
firmeza dos controles sociais ou de seu caráter plausível levantar a hipótese de que a criminalidade
democrático. E, no entanto, até por volta dos anos violenta organizada pode ser vista como a ponta
70 não há evidências de que o processo de de um iceberg. Ela indicaria transformações cultu-
organização da criminalidade fosse socialmente rais imensamente profundas e a formação de uma
significativo. Logo, muito embora as dificuldades sociabilidade radicalmente nova que a teoria social
institucionais possam ser tomadas como uma tem muita dificuldade de apreender, na medida em
condição necessária, elas não são suficientes para que aponta para uma visão de mundo que lhe é
explicar a organização da criminalidade violenta. exterior. Evidentemente, não proponho uma refle-
xão deste teor, mas apenas uma abordagem mais
Estou sugerindo que a explicação dominante
direta e atenta para as tendências de organização
— por elaboradas que sejam algumas de suas
da criminalidade violenta, sugerindo que, até o
muitas versões concretas —, não é capaz de pro-
momento, sua compreensão tem sido muito parcial.
duzir uma compreensão intelectualmente adequada
da criminalidade comum violenta pois, por assim III. UMA NOVA FORMA DE SOCIABILIDADE
dizer, no meio do caminho a atenção se desvia do
No final da seção anterior foi mencionada a
objeto. Como procurei demonstrar, a raiz desta
“desconcentração” da violência física. Vale a pena
dificuldade está no fato de serem reunidos em uma
começar indicando brevemente o sentido e as
relação de causa e efeito dois processos que são
implicações desta referência do ponto de vista do
independentes, pelo menos em parte.
argumento que vem sendo desenvolvido.
Na próxima seção, retomo estes comentários
A organização extra-estatal da violência costu-
procurando explorar, ainda de uma forma muito
ma ser considerada dentro de uma classificação
embrionária e com intenções simplesmente ilustra-
que tem como limites, de um lado, a “sobrevivên-
tivas, as possibilidades analíticas da separação entre
cia” de formas pré-modernas de dominação (quan-
crise institucional e organização da criminalidade.
do a violência privada é legítima) e, de outro, situa-
Como venho sugerindo, trata-se de postura
ções em que várias formas de organização da
indispensável para apreender a singularidade do
violência ilegítima desembocam em conflitos que

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vão desde seu uso institucionalizado pelo próprio constitutivas das empresas do crime organizado,
Estado até a guerra civil, revoltas de grupos ou seja nas relações destas com suas vítimas e com
categorias sociais específicas, bolsões territoriais os grupos sociais dominados6.
de resistência etc. A base lógica desta classifica-
Neste momento, já deve ter ficado claro que
ção — que, apesar de todas as divergências teóri-
venho repetindo o termo “organização” e suas
cas, é consensual —encontra-se na idéia de um
variantes praticamente desde o início do raciocí-
proces-so unívoco de concentração-
nio. Isto é proposital, pois quero insistir no fato
desconcentração, em que este segundo momento
de que estamos diante de fenômenos que dizem
(a desconcentração) corresponde a alguma trans-
respeito a uma forma de vida social organizada,
formação de fundo na estrutura do Estado4. Para
isto é, a um complexo de condutas para cuja for-
o presente trabalho, importa considerar uma im-
mação a ordem pública não entra como referên-
plicação: a violência “desconcentrada” (privada/
cia. Como já salientei, isto significa dizer que,
ilegítima) continua orientada para o Estado, mes-
contemporaneamente, a atividade criminal não
mo que o objetivo — que pode estar apenas im-
pode ser reduzida a priori à mera adaptação ao
plícito — seja transformar sua estrutura ou assu-
contexto, pois os criminosos não violam nem se
mir seu controle.
rebelam contra o ordenamento estatal: este sim-
É difícil admitir que esta mesma estrutura ló- plesmente não é elemento significativo do
gica possa ser aplicada à organização da violên- comportamento destes atores. Embora seja difícil
cia operada pela criminalidade urbana. Assim, as falar em uma esfera ética no caso de relações
conhecidas referências ao “poder paralelo” ou ao sociais fundadas na violência, este é exatamente o
“Estado dentro do Estado” usadas para indicar o desafio que se coloca para uma compreensão me-
domínio de certas áreas pelo crime organizado não nos parcial do fenômeno: descobrir como os agen-
passam de simples metáforas para significar a tes do crime violento formulam as justificativas
gravidade do problema e indicar o “descaso” das de seu comportamento e quais os significados
agências estatais. Além do mais, tudo leva a crer culturais que elas expressam.
que mesmo os setores mais radicais há muito
Observada deste ponto de vista, apesar das
abandonaram as idéias sobre o caráter revolucio-
informações serem muito esparsas e de qualidade
nário das organizações criminosas5. E, no entanto,
duvidosa, creio ser possível sugerir como hipótese
parece indubitável, primeiro, que se vive na
que a criminalidade comum nas áreas urbanas
atualidade um momento de desconcentração da
parece ter passado a organizar-se de uma forma
violência; segundo, que este processo não corres-
muito diferente daquela que a caracterizava até o
ponde apenas à sua pulverização como meio de
final dos anos 60.
conduta de indivíduos isolados movidos pela cer-
teza de impunidade, nem é um simples caso de Até aquele momento, o exemplo mais típico
cristalização de condutas desviantes; e, finalmente, de organização das condutas ilegais era o jogo do
que o ordenamento das relações sociais operado bicho, em relação ao qual a questão da violência
pelos criminosos não pode ser equiparado às for- se colocava como um problema secundário ou
mas tradicionais de dominação, seja nas hierarquias pelo menos limitado. Assim, parece que tanto sua
estrutura empresarial quanto sua inserção política
seguiram a tradicional lógica familística de
4 Um bom exemplo encontra-se em Weber, que situa a formação de clientela. Não há dúvida que, durante
tipologia das cidades como “dominação não legítima” e ao o processo de formação do controle unificado do
mesmo tempo formula uma definição típico-ideal da cidade jogo do bicho, tal como o conhecemos atualmente,
ocidental que permitiria lê-la como uma etapa na formação
do Estado moderno. (Isto, é claro, na suposição de que os
as disputas por áreas de atuação freqüentemente
responsáveis pela edição de Economia e sociedade tenham sido envolviam o emprego de meios violentos. Entre-
fieis às intenções do autor.) Cf. WEBER, 1964. tanto, tudo indica que se tratava de um recurso
5 No caso de outros países latino-americanos, nos quais a
inserção política e econômica do narcotráfico é diferente, a organização do crime, não como uma descrição de sua
esta questão não pode ser descartada com a mesma forma de organização. A máfia se estrutura segundo o modelo
simplicidade. Meus comentários restringem-se ao Brasil. de lealdade familística, inteiramente ausente do crime violento
organizado no Brasil contemporâneo, como será sugerido
6 É por isso que referências às “máfias do crime organizado”
adiante. Cf. SCHIRAY & SALAMA, 1994, p.87-93; ver
também devem ser vistas como metáforas que apontam para também IANNI, 1972.

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CRIMINALIDADE VIOLENTA

tópico, seletivo e restrito a lutas internas de poder consolidam com um formato, conteúdo e senti-
conduzidas com um certo cuidado, a fim de evitar do sócio-cultural marcadamente diferentes7. Seu
atritos maiores com as demais instituições e gru- traço mais básico e rotineiro é o recurso universal
pos sociais . à violência. Não me refiro aqui a uma eventual
“militarização”, analogia que poderia ser aventada
É também útil lembrar que o jogo do bicho só
em razão da rigidez das hierarquias e do uso
foi “criminalizado” em 1946, muito depois de sua
generalizado de armas. Penso nos próprios modos
disseminação, e mesmo assim através de uma
de interação entre os membros, também fundados
medida que não visava a atingi-lo, mas aos cassi-
na violência física, que impedem a analogia com
nos. A expansão de seu poder político e econômico
as corporações militares. As organizações crimino-
deu-se na fase de ilegalidade, mas alimentou-se
sas atuais, embora sejam empreendimentos econô-
do profundo enraizamento deste tipo de aposta na
micos altamente lucrativos — no momento, prio-
cultura popular.
ritariamente organizados em torno do tráfico de
Além do mais, há claros indícios de que o forta- drogas, que entretanto não é uma atividade exclu-
lecimento dessas empresas como agentes econô- siva, nem parece ter estado presente nos momen-
micos e políticos — que, por sinal, foi um pro- tos iniciais —, não são empresas, no sentido de
cesso lento, se comparado à expansão dos em- serem compostas de uma hierarquia orientada para
preendimentos do crime violento na atualidade — fins coletivos. Elas também estão baseadas inter-
sempre dependeu de um processo de negociação namente nos mesmo princípios de subjugação pela
pacífica com os diferentes agentes do ordena- força, constituindo-se em uma espécie de amálga-
mento legal. Finalmente, cumpre notar que o jogo ma de interesses estritamente individuais, com um
do bicho desenvolveu uma cultura organizacional sistema hierárquico e códigos de conduta que po-
paternalista e assistencialista, com hierarquias dem ser sintetizados pela metáfora da “paz arma-
baseadas em laços pessoais de lealdade, e que da”: todos obedecem porque e enquanto sabem
orientações dessa mesma natureza cimentaram a serem mais fracos, a desobediência implicando
formação de clientelas externas em cujo tamanho necessariamente retaliação física. No limite, pode-
e coesão baseava-se a capacidade de negociação se dizer que não há “fins coletivos” nem “subor-
no jogo político. dinação”; todas as formas de colaboração tornam-
se estritamente técnicas, e só se tornam possíveis
O jogo do bicho parece, por todas estas razões,
pela subjugação que elimina a vontade dos demais
ser típico da natureza ambígua e estruturalmente
participantes como elemento significativo da
intersticial da organização das atividades ilegais que
formação das condutas. Pouco se sabe sobre a
envolviam o recurso sistemático à violência privada
natureza desse processo, mas cabe a metáfora da
até a virada para os anos 70. Isso já aparece, como
guerra de todos contra todos – com a ressalva de
é óbvio, no próprio estatuto formal da atividade,
que falta qualquer movimento para minimizá-la.
uma simples contravenção. Mas o caráter ambíguo
pode ser melhor percebido quando se atenta para A experiência demonstra que, apesar de toda a
o fato de que, juntamente com as escolas de instabilidade, esse modo de organização pode ser
samba, o jogo do bicho foi um dos mais impor- permanente e racionalizado como “técnica” indivi-
tantes canais de incorporação política e cultural dualmente controlada, não sendo, portanto, apesar
das massas populares urbanas — porém, ao mes- de toda a sua fluidez, incompatível com a acumula-
mo tempo, também foi um dos instrumentos de ção de poder e bens materiais.
manutenção de sua subalternidade ao participar
Sendo estas hipóteses aceitáveis8, pode-se di-
ativamente da manutenção do sistema de controle
clientelístico (CHINELLI e SILVA, 1993).
apenas ilustrativa e exploratória destes comentários. Só é
A partir dos anos 70, criminosos comuns pas-
possível dizer que há informações sobre vários conflitos
sam a organizar-se em empreendimentos que se (alguns armados, outros negociados) em torno do controle
de espaços (clientelas e territórios) e sobre “fusões” entre
7 É claro que isto não significou o fim do jogo do bicho empresas de jogo do bicho e empresas ligadas a outras
atividades, como o tráfico de drogas.
como atividade, nem alterou de uma hora para outra seu
modo de organização. Em que medida ela foi “contaminada” 8 Penso que a pesquisa empírica disponível, embora se oriente
ou está sendo absorvida pela criminalidade violenta por considerações muito distintas, permite tomar estes
organizada é algo difícil de determinar mesmo na forma comentários como mais do que pura especulação abstrata.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 13: 115-124 NOV. 1999

zer que a organização contemporânea da crimi- e relevante. Se isto for aceitável, abre-se um
nalidade corresponde à implantação da violência imenso campo de trabalho. Sem ter a pretensão
generalizada como base de um novo ordenamento de esgotá-lo, desejo apenas indicar duas ordens
social, para cujo entendimento os instrumentos de questões que precisariam ser resolvidas.
conceptuais disponíveis são inadequados. Pessoal-
Pelo menos como tendência, o ordenamento
mente, considero que um fértil ponto de partida
social produzido pela criminalidade organizada
seria retomar a conhecida idéia de um capitalismo
cancela a relação de alteridade que tem sido
aventureiro, repensada pela introdução de dois ele-
pensada como o fundamento da vida coletiva. De
mentos: a) os participantes não estão colaborando
fato, se a pesquisa confirmar o acerto dos breves
em um empreendimento coletivo: a lógica do crime
comentários acima apresentados, a interação entre
organizado é a da subjugação pela violência, não a
os criminosos e entre estes e suas vítimas ou gru-
da agregação de interesses ou da solidariedade
pos subordinados baseia-se na negação do outro
comunitária; b) não há incompatibilidade com o
como igual, reduzindo-o à condição de objeto.
cálculo de longo prazo, embora no momento sejam
Além dos problemas filosóficos que pode significar
inteiramente desconhecidos os fundamentos de
uma vida social sem intersubjetividade, em termos
valor de uma racionalização da violência física
mais concretos isto põe em questão as formas
oposta a seu controle e minimização.
assumidas pelo individualismo contemporâneo e
IV. COMENTÁRIOS FINAIS os quadros de referência que têm sido elaborados
para sua análise.
Da maneira mais direta ao meu alcance,
procurei destacar uma tendência presente na A segunda ordem de questões subjacentes que
conjuntura atual, tomando como ponto de partida precisariam ser enfrentadas diz respeito à neces-
e quadro geral de referência a forma pela qual ela sidade de aceitar com mais firmeza do que é con-
está construída na percepção social. Acreditei que, vencional as tendências de fragmentação da vida
para poder chegar a discuti-la, era preciso iniciar social, renunciando aos raciocínios totalizadores.
o tratamento do tema indicando o descompasso Todo o argumento aqui desenvolvido está centrado
entre o sentimento de que estamos diante de um na independência entre os problemas endógenos
complexo de condutas radicalmente novo e uma de manutenção da ordem pública e a organização
formulação intelectual que minimiza este caráter da criminalidade violenta. Aceito, ele significa que,
inusitado do fundamento de nossa vivência de ao lado das idéias de competição e luta — de valo-
insegurança pessoal. res, de grupos, de padrões institucionalizados de
relação social —, é preciso colocar a idéia de con-
Obviamente, não pretendi resumir toda a
tiguidade, ou de um desenvolvimento divergente
riqueza das discussões, teóricas e práticas, que
entre fenômenos que não se combinam.
as relações entre a organização da criminalidade
violenta e a ordem pública tem suscitado. Minha A conseqüência prática de tudo isto, para as
intenção foi esquematizar brevemente a estrutura forças sociais envolvidas com o processo de
lógica que articula todo o debate, para indicar os democratização, é que a institucionalização da
aspectos que julgo responsáveis por aquele violência privada é um problema adicional e
descompasso. Neste sentido, tentei desenvolver paralelo ao da crise endógena das relações entre
um argumento dirigido à reconstrução do objeto Estado e sociedade no Brasil. O processo de
desde uma perspectiva que esteja mais orientada democratização, o debate público de articulação
para focalizar, de maneira autônoma, a dimensão dos interesses dos diferentes segmentos sociais
sócio-cultural da criminalidade. A hipótese geral etc. — em suma, a expansão da cidadania — não
de que as organizações criminosas sejam porta- garante o controle, cancelamento ou superação
doras de uma visão de mundo em formação, que da criminalidade violenta. Mesmo no cenário mais
abala os mais caros valores da civilização ocidental, positivo de aprimoramento do quadro político-
pode ser assustadora, mas isto não a torna menos econômico seremos obrigados a presenciar a
plausível. institucionalização da criminalidade violenta, pelo
menos até que as referências culturais responsáveis
O escopo de presente texto é, portanto, muito
pela formação dessas condutas sejam efetivamente
limitado (embora desafie um dos fantasmas
compreendidas.
maiores de toda a Ciência Social, o etnocentrismo):
apenas sugerir que esse ponto de vista é plausível Recebido para publicação em maio de 1999.

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CRIMINALIDADE VIOLENTA

Luís Antonio Machado da Silva (lmachado@nitnet.com.br/lmachado@iuperj.br) é Professor do Instituto


Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHINELLI, F. e MACHADO DA SILVA, L.A. LINS, P. 1997. Cidade de Deus. São Paulo : Com-
1993. O vazio da ordem: relações políticas e panhia das Letras.
organizacionais entre as escolas de samba e o
SCHIRAY, M. & SALAMA, P. (orgs.). 1994.
jogo do bicho. Revista do Rio de Janeiro, nº
Pensar as drogas. Rio de Janeiro : Fórum de
1, p. 42-52, 1º sem.
Ciência e Cultura-UFRJ/Association Descartes.
IANNI, F. A. 1972. A Family Business. Kinship
WEBER, M. 1964. Economia y Sociedad. Mexico/
and Social Control in Organized Crime. New
Buenos Aires : Fondo de Cultura Económica.
York : Russel Sage Foundation.
Vol. II.

OUTRAS FONTES

Revista Veja, 8 de setembro de 1993.

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