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O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A ANULAÇÃO DAS GARANTIAS

PROCESSUAIS DO INDIVÍDUO NOS CASOS DE LINCHAMENTO


THE DEMOCRATIC STATE OF LAW AND THE CANCELLATION OF THE
INDIVIDUAL'S PROCEDURAL GUARANTEES IN LYNCHING CASES

Solon Pessoa Godinho Neto1

RESUMO: O presente trabalho destina-se à análise da prática do linchamento pela perspectiva


dos princípios do Estado Democrático de Direito e as possíveis ofensas das garantias
processuais dos indivíduos que são vítimas desta forma de autotutela. O linchamento deve ser
compreendido enquanto um ato de um grande grupo de pessoas, os quais se juntam para punir
um ou mais indivíduos que foram considerados culpados, podendo este levar à morte ou não.
Neste sentido, o estabelecimento desta prática é um patente conflito ao processo constitucional
penal, uma vez que os indivíduos que a desenvolvem tem a intenção de “fazer justiça” e
contrariam um dos preceitos do Estado moderno, qual seja o monopólio legítimo da violência.
O estudo foi realizado através de revisão bibliográfico com o objetivo de analisar quais
possíveis princípios do Direito Penal e Constitucional o linchamento viola; analisar os conceitos
de linchamento, bem como como estes violam as garantias processuais dos indivíduos.
PALAVRAS - CHAVE: Linchamento. Punição. Justiça.

ABSTRACT: This work aims to analyze the practice of lynching from the perspective of the
principles of the Democratic State of Law and the possible offenses of procedural guarantees
of individuals who are victims of this form of “self-defence”. Lynching should be understood
as an act of a large group of people, who come together to punish one or more individuals who
were found guilty that can lead to death or not. In this sense, the establishment of this practice
is a clear conflict with the criminal constitutional process, since the individuals who develop it
intend to “do justice” and contradict one of the precepts of the modern State, which is the
legitimate monopoly of violence. The study was carried out through a bibliographic review with
the aim of analyzing which possible principles of Criminal and Constitutional Law does the
lynching violate; analyze lynching concepts, as well as how they violate the procedural
guarantees of individuals.
KEYWORDS: Lynching. Punishment. Justice

INTRODUÇÃO

O número de casos de linchamento ocorridos nas cidades e no campo tem crescido a


cada ano. Para se demonstrar o alargamento desses números, de 1980 a 2006 foram registrados
1.179 linchamentos no Brasil, dados coletados pelo Núcleo de Estudos de Violência da
Universidade de São Paulo (NEVUSP, 2016).

1
Pós-Graduando em Sociologia pela Universidade Federal do Amazonas. Especialista em Direito Penal e
Criminologia – ICPC. Professor de Direito na Universidade Estácio do Amazonas. Bacharel em Direito.
Em 2018, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas (SSP/AM)
divulgou dados respectivos a linchamentos resultantes em morte, dos quais 60 ocorreram na
capital e 1 no interior do estado. Em um dos casos, foram mais de quarenta pessoas linchando
com paus e pedras e muitas filmando todo o ocorrido, encerrando o grotesco ao incendiar o
corpo da vítima.
Os linchamentos, mais do que o infligir dor em um ou mais indivíduos, perpetrado por
uma turba que surge de forma expontânea em determinada situação, são manifestações
estruturantes dentro de determinados espaços da urbe. Como prática de “fazer justiça”, que em
certa medida cria coesão social na catarse da violência, os linchamentos revelam aspectos
significativos da violência urbana contemporânea.
O linchamento indica que alem de uma “justiça de mãos próprias” diante de um suposto
criminoso, é uma prática que também se contrapõe ás instituições do Estado, seja por não
confiança na politica criminal do Estado, seja por desconfiança na instituição policial, ou ainda
por achar que deve deter o direito de punir para si.
Neste sentido, o Estado Democrático de Direito e seus princípios e garantias processais,
bem como o monopólio legítimo da violência são apenas conceitos quanto postos em realidades
onde o poder público não chega e apenas a criminalidade se faz presente. Neste interim, o
trabalho se desenvolverá no debate às violações aos preceitos do Estado Democrático de Direito
perpetrado pela prática do linchamento e como se desenvolve o jogo de poderes entre os atores
envolvidos.
Essa prática ignora completamente a presunção de inocência, o devido processo legal,
a ampla defesa e o contraditório, além da proibição da auto-tutela, dado que apenas o Estado é
o detentor legítimo do poder punitivo. Teve como objetivos a analise das maneiras as quais a
prática do linchamento fere os princípios basilares da Constituição, analisar os conceitos de
linchamento, bem como, analisar as violações perpetradas em decorrência da prática do
linchamento.
No primeiro momento, faz-se necessária a introdução aos conceitos sobre linchamento
e seu contexto brasileiro, e no segundo momento, o debate dos conceitos trazidos na
Constituição Federal do Brasil bem como em suas leis penais relacionados ao fenômeno do
linchamento. A pesquisa foi realizada com embasamento em livros, artigos científicos em
periódicos especializados, bem como em noticiais de jornais e revistas acerca do tema proposto.
Será utilizado, também, a doutrina e a legislação como arcabouço argumentativo.
1 OS ESTUDOS SOBRE LINCHAMENTO NO BRASIL

Os estudos sobre linchamento no Brasil começam a surgir apenas ao final dos anos
1970, período de declínio da ditadura militar e transição para a democracia. Momentos de
transição política e econômica são apontados por estudiosos dos linchamentos como cenários
que favorecem o acontecimento destas manifestações.
Benevides (1982) foi pioneira nos estudos sobre linchamento no Brasil. A autora
compreende o linchamento como “ação violenta coletiva para a punição sumária de indivíduos
suposta ou efetivamente acusados de um crime” (BENEVIDES, 1982, p.96). Em sua pesquisa,
é levantado que o linchamento, ademais de uma pretensa “justiça”, este tem uma caráter de
vingança que geralmente acompanha métodos de tortura, a despeito de qualquer norma legal.
Em seu trabalho, propõe uma tipologia na qual divide o fenômeno em dois tipos
distintos: anônimos e comunitários. Os de tipo anônimo contariam com a participação de
terceiros que não aqueles atingidos pelas ações do suposto delinquente, sendo este tipo de maior
ocorrência em ruas centrais de bairros de classe média.
Os linchamentos comunitários seriam característicos de cidades menores e áreas
periféricas das grandes cidades, onde existe um grupo identificável por trás do acontecimento
e que se sente diretamente afetada pelas ações do suposto criminoso, sendo este já conhecido
naquela região.
Benevides e Ferreira (1984) relacionam os casos de linchamento ao funcionamento das
instituições estatais, ligando as experiências sociais com estas instâncias às desigualdades,
opressões e limitações civis impostas pelo regime militar, além dos sentimento intermitente de
insegurança e vulnerabilidade ante a violência. “o linchamento é considerado um fenômeno
explosivo e esponeísta, associado á ‘patologia das multidões’. Na linguagem popular o
linchamento é o ‘ato de fazer justiça com as próprias mãos’”. (BENEVIDES E FERREIRA,
1984, p. 230)
Meandro e Souza (1991) propõe que os linchamentos podem ser pensados como eventos
de protesto, como situações de rompimento com as regras estabelecidas e confronto com as
autoridades. Partindo de 533 casos coletados por meio de levantamento de jornais, os autores
fornecem dados como perfil das vítimas, local de ocorrência, motivação, nível de organização
e o ano do fato. Ainda que o estudo cubra uma faixa de 100 anos, os pesquisadores não fizeram
considerações a respeito de mudanças entre diferentes localidades e contextos ao longo do
tempo.
José de Souza Martins (1996) apresentou o fenômeno do linchamento como um tipo de
comportamento coletivo que poderia classificado como expressão de indignação popular.
Entretanto, ainda que esta forma de manifestação, no Brasil, tenha surgido concomitante a
outras formas de manifestações de movimentos sociais organizados nas décadas de 1970 e
1980, para este autor, o linchamento não tinha uma orientação politizada e um objetivo racional,
pelo contrário, estes aconteciam de maneira irracional, emocional, de orientação egoísta e anti-
social.
Ainda que praticados em nome de valores sociais de manutenção da ordem, os
linchamentos estariam em conflito com as próprias conquistas da civilização e as concepções
iluministas e positivistas a respeito da constituição do homem, quais sejam, direito à vida,
direito à liberdade, direito aos procedimentos legais modernos, racionalização da pena etc., na
medida em que são oriundos de processos de decisão súbitos, baseados em julgamentos
carregados de emoção como ódio, medo etc.
“Os linchamentos expressam uma crise de desagregação social. São,
nesse sentido, muito mais do que um ato a mais de violência dentre
tantos e cada vez mais frequentes episódios de violência entre nós.
Expressam o tumultuado emprenho da sociedade em “restabelecer” a
ordem onde ela foi rompida por modalidades socialmente corrosivas de
conduta social.” (SOUZA, 2015, p.11)

Para Jacqueline Sinhoretto (2001), para uma alternativa do pensamento de que os


linchamentos são orientados por impulsos irracionais, esta afirma que o desafio do trabalho
sociológico é justamente o de compreender sua prática como resultado de ações coletivas que
fazem parte de um universo cultural, os quais são resultado de operações de sentido, de uma
racionalidade, intensão e mensagem.
A autora retoma Benevides ao propor que os linchamentos são o estalar de uma
indignação aguda com determinada situação de opressão, estando associada ao descredito e
frustração da população com as instituições públicas e policiais. Sinhoretto levanta a hipótese
de que a ocorrência de linchamentos ganha legitimidade no seio dos grupos sociais, à medida
em que a justiça constituída não se mostra eficiente para solucionar e propor resoluções
satisfatórias para os conflitos que surgem no dia a dia desta população que esta em constante
tensão.
Sinhoretto (2009) explicita que os linchamentos se tornaram uma forma de resolução de
conflitos que se dá por meio da violência coletiva. A prática do linchamento, então, surge como
uma alternativa para o sistema estatal de justiça e segurança, os quais a população não vê como
confiáveis. Por meio de uma ação coletiva, as responsabilidades penais são diluídas na medida
que o cidadão toma para si a tarefa de praticar a justiça com as próprias mãos.
“[…] para além de uma reação instintiva de vingança imediata diante
do crime, o linchamento é uma maneira de punição que se contrapõe às
instituições do Estado, seja porque existe uma desconfiança com
relação a eficiência da polícia e da justiça em conter a criminalidade,
seja pela reivindicação de outras formas de fazer justiça.”
(SINHORETTO, 2009, p.79)

Para Adorno e Pasinato (2010), os linchamentos são classificados como uma grave
violação dos Direitos Humanos, na medida em que por parte do Estado ocorre a omissão nas
tarefas de proteção dos direitos e garantias individuais, inclusive o direito à segurança, sem a
qual todo o ciclo de aplicação de justiça imediata, isto é, sem mediação do Estado, acontece.
Partindo da interpretação dos conceitos dos autores supra mencionados, os linchamentos
serão compreendidos, neste trabalho, como uma ação coletiva de caráter privado, e, portanto,
ilegal, sendo o grupo linchador sobrepujando em grande escala o número de linchados, e a
violência física sendo aplicada ao indivíduo ou aos indivíduos por práticas a eles imputadas,
podendo ou não provocar a morte dos mesmos.
Ao analisar detidamente o conceito de linchamento, pode-se aduzir:

A) Ação coletiva: Compreende um ato realizado por uma turba que se distancia de suas
identidades individuais. A prática do linchamento adere a uma diluição da face do
perpetrador através da multidão, que de modo geral tem uma organização no momento do
ato e que depois se dissipa. A intensão da turba é que, em si mantendo em grupo, além de
ser mais difícil identificar quem chega às vias de fato, o senso de ato de comunidade
permanece.
B) De caráter privado: O ato é realizado por indivíduos que não detém autorização de nenhum
órgão estatal para realizar qualquer tipo de incursão punitiva, logo, sua prática é contra a
legalidade estabelecida pelo Estado, dado que apenas do Estado é o monopólio legítimo da
coação física.
C) Violência sendo aplicada em resposta a práticas imputadas à vitima: Os linchamentos
aparecem como uma reação punitiva a uma ação que ofendeu a uma comunidade ou ao
grupo. Como uma resposta, em sua maioria, expontânea, não existe para estes atos
ofensivos uma outra forma de reparação, dado que o lapso temporal entre o cometimento
do suposto delito e a aplicação da pena é tão curto que não há espaço para uma mediação
do conflito que não acabe por ser coação física.
D) Podendo ou não provocar a morte: A prática de linchar nem sempre se destina a matar,
sendo muitas vezes utilizada como uma forma de “lição” ao indivíduo que sofre a
penalidade. Os linchamentos podem ser interrompidos por diversas razões, por exemplo,
pela polícia, pela fuga do indivíduo, por outras pessoas que intervém na situação, entre
outras situações. Entretanto, o linchamento tem como característica fundamental a aflição
de um castigo físico severo à vítima.

2 DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS

O Estado moderno, Constitucional, é fruto da evolução do exercício do poder popular e


das liberdades individuais ao longo de todo o processo de existência das formas de Estado. O
Estado Constitucional pode ser compreendido pela união de duas partes fundamentais, quais
sejam: O Estado de Direito e o Estado Democrático.
O Estado Democrático é a defesa de um Estado que tem o compromisso de afastar as
tentativas concentração de poder através da participação popular nas decisões. Neste sentido,
“o princípio democrático exprime fundamentalmente a exigência da integral participação de
todos e de cada uma das pessoas na vida política do país e fim de garantir o respeito à soberania
popular.” (Moraes, 2013, p.15)
O Estado de Direito, como assevera Moraes (2013), tem como características a primazia
das leis; a segurança jurídica; legalidade dos atos da administração pública; separação dos
poderes; reconhecimento da personalidade jurídica do Estado; controle de constitucionalidade
das leis; e o reconhecimento e composição das garantia dos direitos fundamentais estabelecidas
na constituição.
Neste sentido, podemos compreender que:
“O Estado de direito democrático resulta da confluência do Estado de
Direito e da democracia política, econômica, social e cultural. Envolve
a supremacia da Constituição, assente não apenas na legalidade, mas
sobretudo na legitimidade democrática; exige respeito aos direitos,
liberdades e garantias do cidadão e dos trabalhadores […]” (DOTTI,
1998, p. 137)

O Brasil tem, em sua Constituição Federal de 1988, um texto normativo que visa
proteger um amplo rol de direitos e garantias. O constituinte estabeleceu já no artigo 1º como
princípio fundamental da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana (art.1º,
III, CRFB/88), bem como traz em seu capítulo I, estabelece dos direitos e deveres individuais
e coletivos. No art.5º, LIV, da Constituição Federal tem-se que “ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.(BRASIL, 1988)
Nesta seara, o Direito e o Processo Penal tem sua parte neste processo de equidade, no
tocante a salvaguarda da aplicação das normas. A regulação dos conflitos sociais, por mais
severos que sejam, dependem do respeito aos vários direitos e garantias essenciais, que em
equilíbrio favorecem uma repostas penal justa diante dos pressupostos do Estado Democrático
de Direito.
O devido processo legal traz em seu cerne a primazia de que o indivíduo apenas poderá
ser processado e punido se houver lei penal anterior que defina determinada conduta como
crime, bem como, na modernidade do processo penal, os princípios constitucionais entrelaçados
com o direito penal tornam um processo criminal mais regular.
Os Princípios Constitucionais que são explícitos no Processo Penal e que notoriamente
são feridos em casos de linchamento:

2.1 Princípio da presunção de inocência

Também conhecido como princípio do estado de inocência, significa que o individuo é


presumidamente inocente até que seja declarado culpado por sentença condenatória, com
transito em julgado, como conta no art.5º, LVII da Constituição Federal do brasil. “somos
presumidamente inocentes, cabendo à acusação o ônus probatório desta demonstração”
(TAVORA, 2014, p.61) e “As pessoas nascem inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão
penal qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com
provas suficientes, ao Estado-juiz, a culpa do réu.” (NUCCI, 2013, p.90)
Nos linchamentos, por contrário deste princípio, a vítima de antemão é culpada, partindo
da decisão sumária dos participantes da turba que não verificaram a situação e refletiram sobre
a veracidade dos fatos. Nestes casos, o preconceito social contribui para a rotulação dos
indivíduos que “parecem” bandidos.
Pobres, negros, pessoas em situação de rua, ex presidiários e usuários de drogas
aparecem na literatura especializada sobre violência como tendo o estigma de indesejáveis.
Quando uma situação de linchamento surge, são estes os indivíduos com uma maior chance de
serem apontados como possíveis infratores e sofrerem as sanções ilegais.

2.2 Princípio da ampla defesa e contraditório


Encontra fundamento no art.5º, LV da Constituição Brasileira. A ampla defesa versa
sobre o direito de o réu se valer de uma ampla gama de métodos de defesa sobre a imputação
feita a ele pela acusação. O Estado é sempre a parte mais forte das relações, dado que possui
todo o seu aparato para obter dados e informações. Nesse sentido, para trazer possibilidades ao
réu, a ele é defeso o direito de exercer suas faculdades e poderes processuais e ao Estado o
dever de ser correto no exercício da jurisdição.
Quanto ao contraditório, “toda alegação tática ou apresentação de prova, feita no
processo põe uma das partes, tem o adversário o direito de se manifestar, havendo um perfeito
equilíbrio na relação estabelecida […]”. (NUCCI, 2013, p.94)
O contraditório deve ser exercitado quando houver uma alegação de direito, neste
sentido, avaliando a demanda, e deve provocar a oitava das partes contrárias e podendo até
findar o processo, com a extinção do processo ou da punibilidade, assim “O objetivo principal
do devido processo legal e do contraditório é propiciar ao cidadão a ampla defesa, ensejando a
possibilidade de exaurimento de todos os meios de prova nos momentos processuais que foram
colocados a sua disposição (AGRA, 2014, p. 221).
Nos casos de linchamento, a turba não se importa com a veracidade dos fatos, não ouve
ou argumenta, apenas julga o delito que julgou ter sido cometido e que merece uma retribuição
imediata. “O julgamento da vítima de linchamento é definitivo e sem apelo. É produto da
emoção e não da razão” (MARTINS, 2015, p. 50).

2.3 Vedação das penas desumanas ou degradantes

De acordo com o art.5º, III da Constituição Federal: “Ninguém será submetido a tortura
nem a tratamento desumano ou degradante” (BRASIL, 1988). Seguindo o caminho dos tratados
internacionais como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Declaração Universal
de Direitos Humanos, bem como a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas
cruéis, desumanos ou degradantes, o Brasil se comprometeu a seguir o fundamento da
dignidade da pessoa humana na pedra angular do seu sistema de governo, o que protege os
indivíduos desta forma de ofensa.
O termo “tortura”, para a Assembleia Geral das Nações Unidas, significa qualquer ato
pelo qual sofrimentos físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa, a fim
de castigá-la por ato que ela ou outrem tenha cometido ou seja suspeita. Entram nesse rol ainda
para intimidar ou coagir, por discriminação, para obter confissão.
Ainda que não exista qualquer legitimidade no ato dos linchadores em suas práticas, o
modo como é desenvolvido o ato e a conduta policial e judicial após o ocorrido tem deixado
uma imagem de “justiça popular”. Não existe nenhum comunicado por parte do Estado
corroborando as condutas, no entanto, poucos são os casos em que os linchadores são
investigados e punidos.
A utilização de paus, pedras, objetos perfurantes, agua, fogo, e quaisquer outros meios
que possam ser usados como forma de gerar for e que sejam degradantes à vítima do
linchamento são usados. São práticas de tortura realizados nas cidades brasileiras diariamente,
sem o devido tratamento por parte do Estado.

2.4 A proibição da autotutela

A punição de crimes realizada por particulares, é conhecida como vingança privada,


dado que ao invés de ter em mediação um terceiro imparcial, quem seja, o Estado, as partes
tomam para si o exercício de resolução conflitiva. Neste sentido, a base para as decisões destes
conflitos não garante parcialidade ou desinteresse. Esta forma de findar conflitos denomina-se
autotutela, pois um indivíduo ou um coletivo impõe sobre o opositor a solução que lhe é mais
aprazível por intermédio da força.
Destarte, sobre resolução do conflito era essencialmente privada:
“a ausência de um juiz, distinto das partes litigantes, e a imposição da
decisão de uma das partes a outra. A esse tempo, não havia nenhum
critério a nortear a resolução dos conflitos; se algum critério existia, era
a ‘razão do sujeito mais forte” (ALVIM, 2007, p. 13)

No Estado moderno, a resolução de conflitos cabe ao Estado, sendo ele o único detentor
do monopólio legitimo da coação física, como disserta Cintra, Grinover e Dinamarca:
“Hoje, se entre duas pessoas há um conflito, [...] em princípio o direito
impõe que, se se quiser pôr fim a essa situação, seja chamado o Estado-
juiz, o qual virá dizer qual a vontade do ordenamento jurídico para o
caso concreto (declaração) e, se for o caso, fazer com que as coisas se
disponham, na realidade prática, conforme essa vontade (execução).”
(CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2006, p.28)

Portanto, no Estado Democrático de Direito, o cidadão cede ao Estado parte de sua


liberdade, inclusive a de resolução privada de litígios, em troca da construção do bem comum,
democrático, e de um Estado que supra as necessidades deste indivíduo, como proteção, saúde,
emprego, lazer etc.
Quando o Estado chama para si aplicar o Direito aos casos concretos que tem a
necessidade de punição, mas que a resposta penal não corresponde à medida de satisfação
punitiva dos indivíduos que se sentiram vitimados pelas lesões ocorridas, o sentimento de
impunidade é escalonado. Como disserta o autor os linchamentos “[...] são a proclamação da
vontade de justiça, de não ser vítima inerte do roubo, do estupro, do assassinato e do pouco
caso”. (MARTINS, 2015, p. 51)
Neste sentido, este sentimento de violência generalizado e impunidade, somado com
contextos de pobreza e descontentamento com o tratamento dado pela justiça aos conflitos
surgidos em ambientes em constante tensão, propiciam que ocorra a objetificação destes
problemas no indivíduo que supostamente cometeu o delito. Vingar-se contra o suposto infrator
é um ato de catarse, revertido pela vingança em favor do indivíduo que sofreu o dano de
imediato.
O linchamento é composto por uma turba que se forma no momento, por pessoas que
estão perto do ocorrido, e que podem ou não conhecer o fato. A literatura sobre linchamentos
relata casos em que a própria vítima do furto ou roubo pediu para que o grupo linchador parasse
de espancar o indivíduo, mas não foi ouvida.
O Estado moderno não pode tolerar a justiça privada, onde a vontade dos mais fortes se
sobressai sobre o mais fraco. O estabelecimento do Estado e a retenção do monopólio legitimo
da coação física, da resolução de conflitos como terceiro imparcial, este Estado chamou para si
a responsabilidade de findar com este tipo de prática. O linchamento absorve o papel de juiz,
de acusador e jure, de sistema punitivo sem nenhuma forma de justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resta estabelecido que a Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, fixou os


pontos necessários para que a sociedade brasileira viva e consiga ter seus direitos assegurados.
Ela é a pedra angular da organizando o Estado, criando e modificando os direitos e garantias,
estabelecendo as leis infraconstitucionais que servem como instrumentos para o funcionamento
do Estado. Tudo para o bom funcionamento de uma sociedade em um Estado Democrático de
Direito.
Entretanto, os princípios conquistados pelo moderno Estado Democrático de Direito e
seu devido processo legal são dissolvidos nestes contextos de multidões enfurecidas, onde
ocorre o cumprimento da autotutela, vingança privada, reação imediata ao delito que se crê
cometido. Neste sentido, a vítima do linchamento está completamente desamparada dos
mecanismos jurídicos, dado que os princípios se mostram apenas de maneira formal, mas não
no contexto material.
A garantia processual de ampla defesa, contraditório, pena não degradante ou desumana
também são violados, no sentido em que o caráter de retribuição imediata do linchamento
violenta diretamente o corpo do indivíduo, e a muito as penas que infligiam dor no corpo do
indivíduo deixaram de ser utilizadas como compensação penal. A legislação brasileira possui
instrumentos para proteger seus cidadãos, entretanto não tem sido efetiva em aplicar essa
proteção.
Conclui-se que, quanto mais se lincha, maior a violência, maior é o discurso punitivista
e mais são violados os direitos individuais. Tal fenômeno sem demonstra completamente
incompatível com o Estado democrático de Direito e fere a toda a sociedade em seus mais
basilares fundamentos, de liberdade, igualdade e fraternidade.

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