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Revista da faculdade de direito

da UFPR - v. 46 2007

Os contornos do Estado Punitivo no Brasil

Debora Regina Pastana*

RESUMO: Este artigo reporta análises e RÉSUMÉ: This article reports the analyses
conclusões formuladas a partir de observações and conclusions based on observations about
sobre a Justiça Penal brasileira e que deram the Brazilian Criminal Court, which originated
origem a tese intitulada “Justiça Penal the thesis under the title Criminal Court in
no Brasil Atual: Discurso democrático – Brazil Nowadays: Democratic Discourse –
prática autoritária”. O objetivo desta Authoritarian Practice. The aim of this
pesquisa foi refletir sobre a política criminal research is to reflect on the contemporary
contemporânea, voltada à ampliação da criminal policy, focussing on the increase
repressão e ao uso contínuo do encarceramento. in repression and the recurrent sentences to
Tal política, implementada no Brasil logo imprisonment. Such policy, implemented in
após a abertura política ocorrida em 1985, Brazil in 1985, in the new era of democracy
ajusta-se ao projeto liberal também em after a long period of dictatorship, is adjusted
curso no país e em praticamente todo o to the current liberal project in Brazil and in
Ocidente capitalista. practically all the capitalist Occident.

1 ESTADO PUNITIVO a figura do “Estado Punitivo” também


no Brasil.
O tema central deste artigo é o investimento Inserido nas recentes reflexões sociológicas
crescente no combate ao crime pelos atuais de Loïc Wacquant (2001), David Garland
governos democráticos, que ao elegerem (1995, 1999 e 2001), Nils Christie (2002)
o sistema penal como a forma principal e Zygmunt Bauman (1999 e 2003) , entre
de controle social, contribuem para consolidar outros, esse tema é ainda desprezado pela
comunidade acadêmica nacional. De fato,
a expansão do controle penal brasileiro,
* Bacharel em Direito pela Faculdade de História, nesse período democrático, carece de
Direito e Serviço Social da Universidade Estadual análises críticas associadas ao projeto liberal
Paulista – UNESP. Bacharel em Direito e Doutora
em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista
implementado atualmente em praticamente
(UNESP). todo o ocidente capitalista.

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Nas duas últimas décadas do século XX A insegurança social observada atualmente
as pesquisas em torno da criminalidade e do está cada vez mais ligada à violência criminal
controle penal assumiram uma importância que, por sua vez, promove a base e o
significativa perante as Universidades fortalecimento de uma cultura do medo. Essas
brasileiras. Essa importância se traduz na questões – insegurança, violência, medo –
criação de inúmeros centros de estudos ganharam destaque no cotidiano das pessoas,
direcionados como, por exemplo, o Núcleo na imprensa e mesmo nas Universidades
de Estudos da Violência (NEV) vinculado à em virtude da maior sensibilidade a elas e
Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade da aparente falta de controle por parte dos
de São Paulo e o Centro de Estudos órgãos públicos.
de Segurança e Cidadania (CESEC) da Nesse novo cenário caracterizado
Universidade Candido Mendes. pela cultura do medo (PASTANA, 2003) ,
As linhas de pesquisa desses centros todo ato autoritário associado à segurança
pública passa a ser visto como circunstancial
buscam compreender as causas da
e necessário. Assim, a dominação se dá
criminalidade, além de realizarem projetos
diluindo a opressão em contextos instáveis
interdisciplinares visando ao aprimoramento
e convencendo o oprimido de que ele está
da segurança pública no país. Também
nessa situação não porque existem outros que
trabalham com a consolidação democrática
o oprimem, mas porque vive em um ambiente
nacional e com a efetivação dos direitos
hostil, onde o preço de sua segurança é a
humanos no Brasil. Suas análises são
arbitrariedade e o autoritarismo.
variadas, contribuindo sobremaneira para a
Recentemente parte considerável da
compreensão da criminalidade violenta no
humanidade se vê inserida nessa tendência
Brasil e para a ampliação do debate nacional
homogênea de obsessão securitária. O atual
sobre o controle social.
arranjo capitalista, de fato, generaliza-se
Contudo, apesar da relativa abundância
quase que instantaneamente, atrelando o
de pesquisas retratando a violência criminal sucesso dos empreendimentos econômicos
e seus temas correlatos, não se destaca no a nova face da política criminal.
Brasil, como objeto específico de reflexão, o Nesse novo arranjo político, o alarme
real significado das atuais posturas políticas social que se cria em torno da criminalidade
sobre a punição. Os trabalhos relativos à acaba por provocar um generalizado desejo de
segurança pública produzidos atualmente punição, uma intensa busca de repressão e uma
preocupam-se em discutir a eficácia, ou obsessão por segurança, ainda que simbólica.
na maioria das vezes, a ineficácia, das O controle penal passa a ser a “tábua de
instituições de controle. No entanto, mostra- salvação” da sociedade e quanto maior for a
se oportuno, nesse momento obsessivo por sua dureza, mais satisfeita ela estará.
segurança, questionar o que há de simbólico Esse controle absoluto é justamente o
nas políticas penais atuais, para em grande objeto central desta análise. Ao observarmos
medida associá-las ao projeto liberal em a atuação severa de nossas instituições de
curso no país. controle, particularmente a Justiça Penal,

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evidenciando o investimento cada vez maior atestam, ao mesmo tempo, seu caráter
do Estado brasileiro em ações repressivas inequivocamente punitivo.
e severas, podemos identificar os nítidos Isso significa dizer que também no
contornos de um “Estado Punitivo” que Brasil o “Estado Providência” sucumbe ante
se ajustam às transformações econômicas, o “Estado Punitivo”, no qual a assistência
sociais e culturais já em curso nos últimos social dá lugar à atuação policial e carcerária.
trinta anos nos países alinhados com o novo Esse novo paradigma altera a imagem das
modelo capitalista de desenvolvimento. classes populares carentes de políticas
É justamente essa associação que irá sociais e os configura como inaptos, quando
determinar um novo enfoque nas reflexões não simples parasitas do Estado. (SALLAS;
sobre o controle social nacional. De fato, GAUTO; ALVAREZ, 2006, p. 334). Segundo
é essencial poder identificar posturas Wacquant (1999), essa transição entre o
ordinariamente punitivas que caracterizam o que ele denomina de “Estado Providência
Estado policial e a conseqüente criminalização para o Estado-Penitência” destina-se “aos
da miséria. miseráveis, aos inúteis e aos insubordinados
Mas o que torna uma política criminal à ordem econômica e étnica que se segue
unicamente “punitiva”? Para sermos mais ao abandono do compromisso fordista-
exatos, e utilizando a perspectiva de Garland keynesiano e à crise do gueto”.
(1999) , o que é que poderia justificar a
Volta-se para aqueles que compõem o sub-
descrição de uma trajetória da sociedade proletariado negro das grandes cidades, as
como “punitiva”? frações desqualificadas da classe operária,
aos que recusam o trabalho mal remunerado
A resposta é mais complexa do que parece. A
e se voltam para a economia informal da
‘punitividade’, de fato, em parte é um juízo
rua, cujo carro-chefe é o tráfico de drogas.
comparativo acerca da “severidade” das penas
(WACQUANT, 1999).
com relação às medidas penais precedentes, em
parte depende dos objetivos e das justificativas Ainda de acordo com o autor, propaga-se
das medidas penais, assim como também da
na Europa:
maneira pela qual a medida é apresentada ao
público. As novas medidas que aumentam (...) um novo senso comum penal neoliberal –
o nível das penas, reduzem os tratamentos sobre o qual vimos precedentemente como
penitenciários, ou impõem condições mais atravessou o Atlântico – pelo viés de uma rede
restritivas aos delinqüentes colocados em de ‘geradores de idéias’ neoconservadoras
liberdade condicional ou vigiada (...) podem e de seus aliados nos campos burocrático,
ser consideradas ‘punitivas’, pois aumentam jor­nalístico e acadêmico –, articulado em
com relação a um ponto de referência anterior. torno da maior repressão dos delitos menores
(GARLAND, 1999, p. 60) e das simples infrações (com o slogan, tão
sonoro como oco, da ‘tolerância zero’),
Assim, a maior parte das medidas penais o agravamento das penas, a erosão da
recentes, engajadas em um modo de ação que especificidade do tratamento da delinqüência
expressa a necessidade constante de punição juvenil, a vigilância em cima das populações
e dos territórios considerados ‘de risco’,
severa, traduzindo o sentimento público de
a desregulamentação da administração
intranqüilidade e insegurança e insistindo penitenciária e a redefinição da divisão do
nos objetivos punitivos ou denunciadores; trabalho entre público e privado, em perfeita

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harmonia com o senso comum neoliberal em É manifesta, desde o século XIX, a
matéria econômica e social, que ele completa conveniência da visão durkeimiana de
e conforta desdenhando qualquer consideração
controle para os interesses liberais. Sob
de ordem política e cívica para estender a linha
de raciocínio economicista, o imperativo da essa ótica, o delito seria um enfrentamento
responsabilidade individual – cujo avesso é direto entre indivíduo e coletividade e a
a irresponsabilidade coletiva – e o dogma da punição, teria, portanto, a função de educar
eficiência do mercado ao domínio do crime e
e reeducar para assegurar a coesão social.
do castigo (sic) (WACQUANT, 2001, p. 136).
Atualmente, entretanto, tal serventia já não
Nesse sentido ficam cada vez mais se sustenta. Mesmo o modelo disciplinar de
evidentes as posturas autoritárias que, Foucault (1987), que atribuiu à punição um
atreladas ao liberalismo contemporâneo, vêm caráter estratégico de dominação, assente
sendo incorporadas pelo Estado brasileiro no domínio da alma e na produção da
e articuladas, também, pela Justiça Penal. docilidade e da domesticação, foi, de certa
Isso significa dizer que o sistema penal forma, suplantado.
brasileiro caminha atualmente menos para Essa, aliás, é também uma faceta
a consolidação democrática, e muito mais perversa da política criminal em curso,
para a atuação simbólica, traduzida em ou seja, o abandono do discurso jurídico
aumento desproporcional de penas, maior ressocializador1 da pena permitindo, cada
encarceramento, supressão de direitos vez mais, a consideração da punição como
e garantias processuais, endurecimento simples “instrumento de encerramento de
da execução penal entre outras medidas uma população considerada tanto desviante
igualmente severas. Tal sistema opera no e perigosa como supérflua, no plano
sentido do “excesso de ordem”, único capaz econômico” (WACQUANT, 2001, p. 98).
de tranqüilizar nossa atual sociedade de Durante uma boa parte do século XX,
consumo hedonista e individualista. a expressão abertamente confessada do
sentimento de vingança foi virtualmente
tabu, pelo menos da parte dos representantes
2 A J U S T I Ç A P E N A L C O M O do Estado, mas, nesses últimos anos,
INSTRUMENTO SIMBÓLICO DE tentativas explícitas de expressar a cólera e
DOMINAÇÃO o ressentimento do público tornaram-se um
tema recorrente da retórica que acompanha a
legislação penal e a tomada de decisões. Os
Realmente, o controle do crime nas
sentimentos da vítima, ou da família da vítima,
democracias liberais do Ocidente pretende- ou um público temeroso, ultrajado, são agora
se absoluto nos dias atuais. Para tanto, os constantemente invocados em apoio a novas
Estados, com “punho de ferro”, organizam, de leis e políticas penais. O castigo – no sentido
de uma sanção significativa que apela para
maneira autoritária e simbólica, as políticas
o sentimento do público – é uma vez mais
penais implementadas para reforçar a função um objetivo penal respeitável, abertamente
essencial do Estado burguês: “a garantia do reivindicado (GARLAND, 1999, p. 62).
sono tranqüilo do proprietário de Adam Smith
e a redução do risco da morte violenta que
1
Figura criada no contexto iluminista para ilustrar
atemorizava Thomas Hobbes” (PAIXÃO e
a regeneração do infrator amansado pelo sistema
BEATO, 1997, p. 2). jurídico burguês.

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Sobre esse aspecto, Garland (2001) a exteriorização de uma ordem simbólica
também destaca que ao contrário da política marcadamente liberal.
criminal dos anos 50 ou 70, “que tinha como No Brasil, tal modelo político,
concepção básica a reforma e a intervenção centralizado na atuação punitiva, evidencia-
social para prevenir e combater o crime”, se na recorrência cada vez maior ao Direito
a atual forma de conceber as políticas Penal como solução em prima ratio de
de combate à criminalidade abandona a praticamente todos os conflitos sociais. Sua
perspectiva humanista de reinserção do função, eminentemente simbólica, é atuar
criminoso para focalizar a simples imposição como mecanismo tranqüilizador da opinião
de mecanismos de controle. pública que, hegemonicamente, busca
O crime e seu controle ingressam na agenda
proteção ao invés de cidadania.
política e fortalecem o que se denomina Esse processo, apelidado também de
de populismo, com as soluções fáceis, mas “judicialização das relações sociais”, impõe,
estimulando os receios e as inquietações da
a partir da desconfiança, uma constante
população. Como conclusão, o crime passou
a ser visto não mais dentro de uma agenda de culpabilização das relações sociais. O Direito
solidariedade e direitos, mas como quebra da Penal, sob essa ótica, deve necessariamente
ordem (SALLA; GAUTO; ALVAREZ, 2006). prever e controlar toda e qualquer conduta
Nessa nova ordem mundial “testemunhamos social. “Se a Justiça é o novo palco da
o retorno de práticas criminais centradas na democracia, seu novo sentido, o Direito
figura do Estado Punitivo, caracterizado por Penal, passa a ser a nova leitura das relações
práticas penais violentas e discriminatórias” entre as pessoas cada vez mais estranhas umas
(SOUZA, 2003).
às outras” (GARAPON, 2001, p.153).
De fato, como descreve Garapon (2001,
Nesse contexto, a compaixão para com os
delinqüentes é cada vez mais suplantada por p. 27-28):
uma preocupação mais exclusiva com as (...) a invocação indiscriminada do Direito
vítimas, e os políticos de todos os partidos e dos direitos tem por efeito submeter ao
vêem-se encorajados a tomar medidas firmes, controle do juiz aspectos inteiros da vida
não desprovidas de conotações populistas privada, antes fora de qualquer controle
(GARLAND, 1999, p. 60). público. Pior, essa ‘judicialização’ acaba por
impor uma versão penal a qualquer relação –
Enfim, nas palavras de Garland (1999,
política, administrativa, comercial, social,
p. 62), “a segregação punitiva – penas de familiar, até mesmo amorosa –, a partir de
longa duração em prisões ‘sem frescuras’ agora decifrada sob o ângulo binário e redutor
e uma existência estigmatizada, controlada da relação vítima/agressor.

de perto, para aqueles que são, finalmente, Tal onipresença penal demanda reformas
libertados – é cada vez mais a escolha que institucionais apresentadas como tentativas
se impõe”. de dar conta do suposto aumento da
Esse controle social marcado pela criminalidade violenta e do sentimento de
violência punitiva contra as classes populares insegurança que se verifica no âmago da
começa a despontar no Brasil nas duas sociedade civil. A pressão da opinião pública,
últimas décadas do século XX, representando amplificada pelos meios de comunicação de

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massa, aponta para o aumento do controle Assim, o que se observa é que essa maior
penal, tendo como paradigma preferencial o intervenção penal ocorre pelo interesse
fortalecimento e a severidade no trato com de perpetuar uma forma de dominação
o crime e o encarceramento em massa das autoritária que só subsiste com a degradação
classes populares. da sociabilidade e a diminuição do exercício
Conforme destaca Luis Antônio de cívico. Verifica-se que o atual Estado burguês,
Souza (2003): para manter legítimo o uso da força, aperfeiçoa
(...) nos últimos trinta anos, houve profundas sua dominação simbolicamente, vale dizer,
mudanças na forma como compreendemos o através da consolidação de uma cultura
crime e a justiça criminal. O crime tornou-se
aterrorizante.
um evento simbólico, um verdadeiro teste para
a ordem social e para as políticas governamentais, Conforme destacamos, no Brasil, as
um desafio para a sociedade civil, para a respostas à criminalidade consistem, em
democracia e para os direitos humanos. sua grande maioria, em penas severas,
De fato, no Brasil, essa hegemonia do traduzidas na ausência do respeito às
Estado Punitivo, embora revestida da aura garantias constitucionais e no recurso amplo
democrática, representa, ao contrário, uma ao encarceramento. Nessa linha, nossos
violência institucional ilegítima, diluída na governos democráticos contemporâneos
banalização da desigualdade e reforçada freqüentemente adotam uma posição punitiva
na seletividade da punição e conseqüente que visa reafirmar a aptidão do Estado em
aniquilação do transgressor. punir e controlar a criminalidade.
Atualmente pode-se dizer, sem receio, que Como exemplo, podemos citar a
vivemos sob a mais violenta intervenção do política de encarceramento no Brasil que,

Estado na vida dos cidadãos, materializada aumentando vertiginosamente nos últimos


anos, ultrapassou, no ano de 2006, a marca
através de uma dominação simbólica
dos 401.000 presos. O sistema penitenciário
articulada pelo medo e por uma democracia
brasileiro, por sua vez, ocupa de acordo
fraturada, assente apenas no plano formal.
com dados do Departamento Penitenciário
“Por não sabermos mais distinguir a violência
Nacional,2 1051 estabelecimentos com um
legítima da ilegítima, somos incapazes de
total de 236.088 vagas (homens: 223.164 e
determi­nar a dívida, quer dizer, o preço do
mulheres: 12.924), e, portanto, déficit de mais
ingresso na vida em comum” (GARAPON,
de 166.000 vagas.
2001, p.53).
Tal aumento, dada à sua característica
Essa ordem estrategicamente confusa
liberal, é, de fato, uma realidade em muitos
é acompanhada de uma potencialidade
países ocidentais. Loïc Wacquant (2001b),
paradoxal. A violência institucional pretende
ao analisar o inchaço das penitenciárias
ser sua própria negação, conduzindo a uma
norte-americanas, comentou que “se
ideologia da “tranqüilização da vida social”.
No entanto, dada sua potencialidade, essa
violência pede certo grau de legitimação só
2
Dados disponibilizados em dezembro de 2006.
Disponível em http://www.mj.gov.br/depen. Acessado
alcançável através do pânico. em 20 de julho de 2007.

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fosse uma cidade, o sistema penitenciário meios, a amplitude e a intensidade da
americano seria a quarta metrópole do intervenção do aparelho policial e judiciário”.
país”. Esse encarceramento em massa A esse respeito, Bauman (1998, p. 53) adverte
reflete, na realidade, uma estrutura de que nesse novo contexto, marcado pela
dominação contemporânea que mascara uma intensificação das relações de consumo, “as
exclusão capitalista ainda mais perversa, o classes perigosas são assim redefinidas como
isolamento e a neutralização dos miseráveis classes de criminosos.”
em praticamente todo o globo. Segundo estudos realizados pelo Ilanud
De fato, como bem assevera Nils Christie (JACOBS, 2004), “o perfil para o presidiário
(2002, p. 93), “são as decisões político-culturais brasileiro é de alguém majoritariamente
que determinam a estatística carcerária e pobre, do sexo masculino, de até 35 anos,
não o nível ou evolução da criminalidade”. com baixa escolaridade e baixa capacidade
O maior encarceramento não tem, portanto, de inserção no mercado de trabalho”. Isso
relação direta com o aumento das práticas demonstra claramente que também no Brasil
criminosas, mas sim com o aumento dos se opera a criminalização da miséria apontada
miseráveis, totalmente excluídos do universo por Wacquant, na Europa.
do trabalho. Aqui no Brasil tal fato já havia sido
O fato é que o Estado brasileiro descobriu abordado por Ruben Oliven no começo dos
que criminalizar é expediente fácil para garantir anos oitenta. No artigo Chame o ladrão:
o sucesso das políticas liberais adotadas. As vítimas da violência no Brasil, alertava
Diante do medo hegemônico crescente, para o fato de que os grupos dominados
muitas vezes amplificado pelos meios de eram, freqüentemente, muito mais vítimas
comunicação de massa, o Judiciário cumpre que responsáveis pela violência criminal
sua função orgânica de proteger a elite, agindo em nossas cidades, no entanto eram os mais
com rigor no combate ao crime proveniente perseguidos pela Justiça Penal e o que mais
das classes populares. Em um ciclo vicioso, recebiam punição (OLIVEN, 1981, p. 28).
o campo jurídico passa a associar a eficiência Mesmo Bauman (1999) atenta para o
à repressão. A legitimidade, portanto, está na fato de que a punição para as ações mais
atuação autoritária. prováveis de serem cometidas por pessoas
excluídas da ordem atual, pelos “pobres
3 CRIMINALIZAÇÃO DA MISÉRIA diabos tiranizados”, tem a melhor chance de
aparecer no código criminal.
Essa penalização liberal, denominada
Roubar os recursos de nações inteiras é chama­
por Wacquant (2001a, p. 10) “ditadura sobre os do de ‘promoção do livre comércio’; roubar
pobres”, procura reprimir com severidade “as famílias e comuni­dades inteiras de seu meio
desordens suscitadas pela desregulamentação de subsistência é chamado ‘enxuga­mento’
ou simplesmente ‘racionalização’. Nenhum
da economia, pela dessocialização do
desses fei­tos jamais foi incluído entre os
trabalho assalariado e pela pauperização atos criminosos passíveis de punição. (...)
relativa e absoluta de amplos contingentes Só em casos raros e extremos os ‘crimes
do proletariado urbano, aumentando os empresariais’ são levados aos tribunais e

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aos olhos do público. Fraudadores do fisco e Fazer o melhor policial possível é a melhor
autores de desfalques têm uma oportunidade coisa (talvez a única) que o Estado possa
infinitamen­t e maior de acordo fora dos fazer para atrair o capital nômade a investir no
tribunais do que os batedores de carteira ou bem-estar dos seus súditos; e assim o caminho
assaltantes (BAUMAN, 1999, p 131-132). mais curto para a prosperidade econômica da
nação e, supõe-se, para a sensação de ‘bem-
“É provável que um só golpe sofisticado, estar’ dos eleitores, é a da pública exibição
arquitetado por criminosos de ‘colarinho de competência policial e destreza do Estado
(BAUMAN 1999, p. 129).
branco’, renda prejuízo maior para a
sociedade e para o Estado do que a soma Como não poderia deixar de ser, os
de todos os roubos e furtos cometidos valores expressos nessa lógica liberal
pelos miseráveis que se embrutecem nos delimitam o âmbito de atuação da nossa
cárceres” (ATHAYDE, [et.al.], 2005, p. 188). Justiça Penal por meio de demandas sobre
Entretanto, os focos usuais da nossa Justiça o sistema que devem absurdamente articular
Penal ainda são os flagrantes do estigma dois planos: de um lado, a atividade se dá num
social, aqueles que põem em risco a ordem contexto democrático; de outro, sua eficiência
classista e o distanciamento seguro. é julgada pelo grau de arbitrariedade e
Todos esses fatores considerados em severidade com que responde ao delito.
conjunto convergem para a compreensão Nosso próprio ordenamento penal está
impregnado de valores burgueses que refletem
burguesa que identifica a prática do crime
exatamente essa dominação autoritária e
somente pelos “desclassificados”, o que
excludente. Há em nossas leis profundos
resulta praticamente na criminalização da
ataques aos princípios democráticos e
pobreza (BAUMAN, 1999, p. 134).
que representam formas de desrespeito à
Essa massa excluída do trabalho e,
cidadania e à dignidade humana. Composto,
conseqüentemente, do consumo, fica
em sua maioria, por penas que importam
submetida a um gigantesco sistema penal
encarceramentos longos e degradantes,
responsável não mais por disciplinar os
inclusive para menores, e que são associados
desviantes, mas sim por conter o refugo social
em grande medida aos crimes tradicionais,
produzido pelo recente contexto liberal.
nosso corpo de leis está longe de representar
Ironicamente Wacquant (ap. BATISTA, 2003a) um Estado democrático. Ainda assim, é
considera tal fenômeno como “uma espécie de considerado pelo próprio “operador do
único programa público habitacional do Direito” como inócuo, pois ainda não aniquila
capitalismo tardio”. totalmente o infrator.
Reforçando essa tese, Bauman (1999, Segundo o promotor de justiça Carlos
p. 128-129) assevera que atualmente, “os Edurado Fonseca Da Matta, 3 defensor
governos detêm pouco mais que o papel de desta tese:
distritos policiais super-dimensionados”,
varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões 3
Promotor da 3ª Procuradoria de Justiça do
das ruas, e garantindo, com a firmeza dos muros Ministério Público de São Paulo, em entrevista para a
Revista Super Interessante de abril de 2002, p. 45, edição
das prisões, a “confiança dos investidores”.
especial com tema segurança.

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No direito penal realmente científico, o por seus atos e tragédias” (SOUZA, 2003).
importante é conter o criminoso. A idéia de As classes populares também seriam livres
reabilitação é uma falácia. O papel do Direito
para fazer suas escolhas, e dentro dessa
Penal é proteger a sociedade e, por isso,
latrocidas, estupradores e seqüestradores têm perspectiva, o crime também é visto como
que ficar presos por um longo período para que uma escolha racional. Essa é inclusive a
não possam cometer novos crimes. opinião externada pelo juiz Luiz Ambra do
Isso explica, em parte, o desinteresse de TACRIM4 de São Paulo:
muitos juristas em saber o que acontece no Continuo entendendo o que sempre entendi,
interior das prisões brasileiras, como se os quando da passagem do fechado para o semi-
muros das unidades prisionais conseguissem aberto: não há vaga? O criminoso que se dane.
(...) Simples aplicação da teoria do ‘risco
estancar, definitivamente, a perversidade do
profissional’, bem exposta pelo eminente juiz
controle social empregado. Ao se eximir da Corrêa de Moraes, desta Câmara. Ao adotar
responsabilidade de fiscalizar as condições o crime como profissão, em outras palavras,
carcerárias e mantendo a cultura de só punir como em qualquer atividade sujeita-se o
com a cadeia, o Judiciário implementa, com delinqüente a riscos que lhe são inerentes. Dela
o encarceramento desenfreado e cruel, as fazem parte, em algumas das ‘empreitas’ não
ser bem sucedido, levar um tiro e morrer, ser
bases para a consolidação do Estado Punitivo
preso, na cadeia não receber o tratamento ‘à
no Brasil. altura’ de que se julgar merecedor, passar à
Tal violência institucional conduzida promiscuidade com outros detentos, por eles
por essa ideologia de “tranqüilização da ser seviciado e estar sujeito a abusos sexuais
vida social” é, efetivamente, o estratagema (TACRIM/SP – HC nº. 402.314/6 – Capital –
Voto n.º 9388).
encontrado por uma classe para camuflar a
desigualdade e sufocar os anseios daqueles Tal premissa permite aumentar a atuação
que contrastam com seus interesses. da Justiça Penal e a severidade das punições
Para piorar, a sobrevivência da frase aplicadas, camuflando a seletividade do
getulista: “aos amigos tudo e aos inimigos o sistema nas tão conhecidas ficções liberais
peso da lei”, continua a revelar a desigualdade de igualdade de oportunidade e liberdade
e, principalmente, o uso arbitrário da norma. de escolha.
A lei, portanto, é muitas vezes usada apenas
Acreditar que o crime é uma decisão, dá
contra as classes populares, para garantir a apoio à ficção necessária da economia de
dominação perpetrada. mercado segundo a qual a prosperidade e
Nesse momento, é importante observar a pobreza são conquistas de indivíduos,
que a ética liberal ainda insiste na velha não são condicionantes de raças, classes
ou gêneros, bem como nenhuma pessoa é
máxima de que todos nós somos seres livres
responsável pela dificuldade de outras ou
e racionais, tomando nossas decisões a partir obrigada a confrontar deficiências estruturais
de um amplo espectro de opções. “Para no sistema. (SOUZA, 2003).
pequena e ampla burguesia isso significa
Ideologia mais do que consolidada, essa
dedicação ao trabalho, ao lazer, às compras
postura liberal perante o delito, além de
e à prosperidade, sem culpa, pois estão
liberadas pela crença de que os indivíduos são
livres e independentes, cada qual responsável 4
Tribunal de Alçada Criminal.

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radicalizar o controle penal, intensificando de emergência, entendida como um momento
a atuação dos órgãos de controle, também excepcional a exigir “uma resposta pronta e
restringe a liberdade e o exercício cívico das imediata, que deve durar enquanto o estado
classes populares. emergencial perdure.” (BECK, 2004, p. 95).
Nas palavras de Nilo Batista (2003a): Essa noção de emergência, alimentada pelo
(...) o empreendimento neoliberal, capaz medo social constante e estrategicamente
de destruir parques industriais nacionais introjetado, transforma os conflitos em
inteiros, com conseqüentes taxas alarmantes
ameaças e torna fácil desviar o cerne dos
de desemprego; capaz de ‘flexibilizar’
direitos trabalhistas, com a inevitável criação problemas, que não é de natureza conjuntural,
de subempregos; capaz de, tomando a mas social. Sob essa lógica, o Estado Punitivo
insegurança econômica como princípio busca sua legitimidade exatamente lançando
doutrinário, restringir aposentadoria e auxílios
previdenciários (...); esse empreendimento
mão dos mecanismos de punição capazes de
neoliberal precisa de um poder punitivo gerenciar a pobreza e disseminar o medo.
onipresente e capilarizado, para o controle
penal dos contingentes humanos que ele
4 DEMOCRACIA AUTORITÁRIA:
mesmo marginaliza. (sic)
TA M B ÉM UM PA R A D O X O
Certamente, a essa altura não cabe mais NACIONAL
a ingenuidade de supor que o fortalecimento
dessa postura penal não passa pela conjuntura Aderindo a esse projeto, o Brasil adotou

econômica e política que vivenciamos. Ao o que Lamounier e Souza (2006, p. 48)


denominaram “democracia tutelada”.
contrário, em tempos de Estado Mínimo,
Para orquestrar o desmanche estatal
parece que “a única política pública que
sem contestações políticas capazes de
verdadeiramente se manteve é a política
reverter o processo, o Estado “testa até o
criminal” (BATISTA, 2003a).
limite o regime democrático, mas não o
Bem próximo ao dogma da pena encontramos
suprime em termos estritamente legais”
o dogma da criminalização provedora. Agora,
na forma de uma deusa alada onipresente, (LAMOUNIER e SOUZA, 2006, p. 48). Além
vemos uma criminalização que resolve disso, todos os problemas resultantes dessa
problemas, que influencia a alma dos desregulamentação, como a precarização
seres humanos para que eles pratiquem
certas ações e se abstenham de outras (...).
das relações de trabalho, o desemprego e a
A criminalização, assim entendida, é mais do dificuldade de acesso aos serviços essenciais,
que um ato de governo do príncipe no Estado que levam invariavelmente ao aumento da
mínimo: é muitas vezes o único ato de governo
criminalidade, não são solucionados, apenas
do qual dispõe ele para administrar, da maneira
mais drástica, os próprios conflitos que criou. a conseqüência se torna questão emergencial.
Prover mediante criminalização é quase a Assim, observa-se o endurecimento das
única medida de que o governante neoliberal medidas repressivas “justificado pela retórica
dispõe. (sic) (BATISTA, 2003b, p. 4)
de ‘defesa interna e externa’ da nação”, para
Enfim, em tempos liberais como o atual, silenciar os críticos (LAMOUNIER e SOUZA
o que caracteriza a atuação penal é a noção 2006, p. 48).

216
Travestida de pilar da democracia, que ele incentiva a desconfiança, desqualifica
sustenta a liberdade e a propriedade privada, qualquer solução que não seja a jurídica e
a Justiça Penal brasileira articula sua nova apresenta seu único remédio: mais segregação
gramática convivendo sempre, e cada vez mais e restrição de liberdade. Esse modelo tem como
intensamente, com o perpétuo sentimento de conseqüência imediata aumentar o número
impunidade. A punição exemplar e severa, de detentos em proporções inquietantes,
simbolizada no longo encarceramento, une-se fenômeno percebido não só no Brasil mas em
às exigências liberais traduzidas no binômio: várias democracias contemporâneas.
democracia – liberdade individual. Confirmando tal reflexão, um balanço
Para piorar os meios de comunicação realizado pela CENAPA,5 órgão vinculado ao
de massa reforçam cotidianamente a Ministério da Justiça, atestou, no ano de 2003,
necessidade da maior intervenção penal. que as penas alternativas,6 recomendadas
Ao explorarem economicamente o problema para crimes de pequena e média gravidade,
da violência criminal acabam por legitimar o beneficiavam apenas 8,7% dos infratores do
país.7 Em alguns Estados, no entanto, não se
recrudescimento penal autoritário responsável
chegava nem a esse percentual: em São Paulo,
por expandir o quadro de exclusão social
por exemplo, as penas beneficiavam apenas
atual. Sobre o tema Vera Batista (2001, p. 04)
1,3% dos infratores.
destaca que as campanhas maciças de pânico
Não existia, na época, (e não existe ainda
social veiculada na imprensa, permitiram um
hoje), um estudo mostrando quantos presos
avanço sem precedentes na internalização do
poderiam estar fora do cárcere cumprindo
autoritarismo. Segundo a socióloga, pode-se
essas penas, no entanto, segundo Maria Eli
afirmar sem medo de errar “que a ideologia
Bruno,8 coordenadora do CENAPA paulista,
do extermínio é hoje muito mais massiva e
cerca de 10% dos presos de São Paulo
introjetada do que nos anos imediatamente
posteriores ao fim da ditadura”.
Em virtude desse viés altamente 5
Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às
Penas e Medidas Alternativas.
controlador, no que se refere aos conflitos
sociais, cria-se um circulo vicioso que produz
6
Uma mudança na legislação, feita em 1998 pela Lei
n.º 9.714/98, passou a permitir que os condenados a até
um aumento exponencial da insegurança da quatro anos de prisão, cujo crime não tenha envolvido
população frente à violência e que legitima violência, tenham a pena de prisão convertida para uma
punição alternativa. Entre elas estão as restritivas de
o aumento da repressão ainda que de forma
direitos, as de prestação de serviços à comunidade e
autoritária. Sem alterar os ritos democráticos as pecuniárias.
o controle se expande mediante a edição 7
De acordo com o juiz Ali Mazloum, na época
interminável de leis penais incriminando lotado na 7ª vara federal criminal em São Paulo, cerca
de 50% das ações penais na esfera federal permitiam que
novas condutas e do tratamento cada vez mais fossem aplicadas as penas alternativas. O juiz estimava
severo destinado ao infrator. também que, na esfera estadual, esse percentual poderia
chegar a 60%. In. Jornal Folha de São Paulo. Edição
Esse controle violento e discriminatório, de
de 16/08/2003.
forma ambígua, passa a ser simultaneamente 8
In: Jornal Folha de São Paulo. Edição de
bombeiro e incendiário. No mesmo movimento 16/08/2003.

217
poderiam, no ano de 2003, estar cumprindo Com referência à progressão de regime, o
outro tipo de pena. primeiro resultado obtido indica que 22,1% de
presos obtiveram a progressão de regime (com
Dados9 da Secretaria de Administração margem de erro 4%). Deste modo, apenas uma
Penitenciária de São Paulo atestavam pequena parte da população carcerária logra
também, em 2004, que muitos criminosos cumprir sua pena de modo progressivo, muito
embora a progressividade seja o modelo geral
eram condenados pelos juízes a regimes adotado pela LEP e pela Constituição Federal
mais severos de cumprimento de pena do (...). Outra informação reveladora é que 72,5%
que os previstos na lei. Naquele momento, das pessoas que obtiveram a progressão
haviam cumprido mais de um terço da pena.
de cada dez presos condenados por roubo no Por esse dado infere-se que, da pequena parte
Estado, sete deles teriam que cumprir penas dos presos que obtém a progressão de regime,
fixadas próximas ao mínimo legal e seriam a maioria só a alcança com o cumprimento
do prazo muito acima do legal (um sexto),
réus primários. Em tese, portanto, atendiam o que demonstra que este não é balizador
às primeiras exigências impostas para a das decisões dos juízes. (...) Em relação ao
concessão do regime semi-aberto. Na prática, livramento condicional, observou-se que 8%
de presos obtiveram este benefício (margem
contudo, os números eram bem diferentes.
de erro 3%). (...) Esse dado aponta para uma
A análise identificava 24.619 condenados por parcela muito pouco significativa da massa
roubo cumprindo pena em regime fechado no carcerária que realmente chega a alcançar o
benefício. Note-se que seu percentual é ainda
Estado (23,56% do total de 104.488 presos,
inferior ao dos que obtêm a progressão de
para 79.629 vagas). Roubo, que não é crime regime. (TEIXEIRA & BORDINI, 2004)
hediondo, não exige, portanto, a condenação
Pelo que se observa, a Justiça Penal,
direta ao regime fechado, no entanto, só 4.519
mesmo durante a execução da pena, opera de
(18%) estavam em semi-aberto.
forma autoritária e excludente, ao suprimir ao
Esses índices mostram que nossa Justiça
máximo os direitos previstos em lei para os
Penal está impregnada da idéia de encarcerar,
mesmo que isso não tenha reflexos na condenados, adotando uma postura altamente
diminuição da criminalidade. Ao contrário, repressiva, revelada pelos ínfimos percentuais
nosso sistema prisional, tradicionalmente de benefícios10 concedidos. Orientado pela via
degradante e estigmatizante, serve mais como
ponto de reunião, organização e difusão da 10
Entre os benefícios prisionais estão as progressões
criminalidade em larga escala. de regime, o livramento condicional, a autorização de
Durante a execução da pena o endurecimento saída temporária, entre outros, todos previstos na Lei
de Execução Penal. (Lei n.º 7210/84). A legislação
também se manifesta, ainda que em dissonância penal determina diferentes regimes de cumprimento das
com a legislação. Essa foi a constatação da penas: fechado, semi-aberto e aberto. Nos dois últimos,
admite-se a possibilidade de o preso trabalhar fora dos
pesquisa realizada pela Fundação Seade, no
muros e visitar a família regularmente. O regime inicial
ano de 2002, no universo dos processos de de cumprimento de pena é determinado pelo tempo de
execução criminal na Vara das Execuções condenação e pela reincidência ou não do condenado.
Ao longo de sua pena o preso pode ser beneficiado com
Criminais da capital paulista. Segundo
a mudança de um regime para outro, considerando-se,
a pesquisa: para tanto, o tempo de pena já cumprido e a situação
disciplinar. Ainda de acordo com a legislação, o regime
fechado deve ser cumprido em Penitenciárias, o regime
9
Veiculados no Jornal Folha de São Paulo. Edição semi-aberto em Colônias agrícolas ou industriais e o
de 01/09/2004. regime aberto em Casas de Albergado. O livramento

218
da segregação penal, está assumindo nosso também o retrato da adesão às premissas
Judiciário a tese hegemônica que conclama liberais refletidas no excessivo, desumano e
a maior punição como meio legítimo de desigual tratamento penal.
controle social. Agindo assim, nossos juízes Assim, é necessário aprofundar essa
não só promovem o confinamento violento discussão explicitando os atuais contornos
das classes populares como contribuem do Estado Punitivo no Brasil, ou seja,
para o “reforço de atitudes de cinismo e demarcando as políticas penais brasileiras
descrença frente à competência de modelos (as implementadas e as idealizadas) que se
democráticos de resolução de conflitos” ajustam as amplas transformações econômicas
(PAIXÃO & BEATO, 1997, p. 2). e sociais que marcam o nosso momento
Como se observa, são nítidos os efeitos político contemporâneo.
simbólicos, promocionais e excessivamente Medidas de endurecimento punitivo já
intervencionistas da política penal brasileira introduzidas em nosso ordenamento como
nesse momento atual. Fundamentada na difusão a lei dos crimes hediondos (Lei n.º 8072/90)
do medo e na promessa de tranqüilidade social e, mais recentemente, a lei Maria da Penha
a qualquer custo, o Estado brasileiro adota, (Lei n.º 11340/06); e mesmo medidas de
explicitamente, medidas repressivas severas, recrudescimento na execução penal como
ilegais e desumanas. o Regime Disciplinar Diferenciado – RDD
Entre nós, portanto, também é correta (instituído pela Lei n.º 10. 792/03) refletem
a afirmação de que as políticas penais o modo como a política atual contribui para
adotadas recentemente caminham para a criminalizar os problemas sociais causados
consolidação do Estado Punitivo, uma vez pelo sistema econômico em vigor.
que estão voltadas para a defesa da lei e da É nesse contexto que também proliferam
ordem liberal, materializadas na violência os projetos de lei que visam à ampliação
institucional contra as classes populares. do Estado Punitivo no Brasil. Apelidado de
Nesse sentido, nossa política criminal é “Pacotão do Pânico”, o conjunto de projetos
sobre o endurecimento penal em tramitação
no Congresso Nacional prevê, entre outras
condicional é a antecipação provisória da liberdade do
condenado pelo juiz da Vara das Execuções Criminais, medidas, a inclusão de vários crimes na
quando presentes determinados requisitos legais. categoria dos hediondos com o conseqüente
O sentenciado fica sujeito a certas obrigações. Entre os
aumento de pena e redução dos benefícios
requisitos indispensáveis, está o cumprimento de mais de
1/3 da pena se o condenado não for reincidente em crime penais; o aumento do período máximo
doloso e antecedentes favoráveis. As saídas temporárias de prisão que atualmente é de 30 anos; o
consistem em permissões judiciais para presos de boa
conduta carcerária que cumprem pena em regime semi-
aumento de pena para infratores adultos que
aberto O próprio Diretor geral do Presídio encaminha cometerem delitos com o auxílio de menores;
ao juiz a relação dos presos que têm direito à saída a redução de prazos prescricionais para
temporária. A Lei de Execução prevê saída temporária
para visitar a família, que pode ser concedida cinco vezes determinados delitos e a alteração no tempo
ao ano. Cada saída poderá durar até sete dias corridos. máximo de internação de menores infratores
As saídas são regulamentadas e concedidas nas seguintes
dos três anos atuais para um prazo maior que
datas: Natal/Ano Novo; Páscoa; Dia das Mães; Dia dos
Pais e Finados. poderia chegar a 20 anos.

219
Nessa linha, de todos os projetos em mais legitimidade e, de forma paradoxal,
tramitação o mais evidente, no momento, associa-se à defesa da democracia.
é, sem dúvida, o projeto de emenda Merece, portanto, extrema atenção por
constitucional que trata da redução da idade parte da ciência a adoção, pelos recentes
penal. O modo sensacionalista com o qual governos democráticos brasileiros, de uma
os meios de comunicação noticiaram o política penal de exceção contrária às noções
assassinato do menino carioca João Hélio de democracia e cidadania e que coloca
acabou por ressuscitar a discussão sobre a novamente a questão social como um caso
redução da idade penal no país. Mesmo a de polícia.
intelectualidade, representada pelo filósofo Refletir criticamente sobre o assunto
Renato Janine Ribeiro,11 passou a clamar por é essencial para o aprimoramento de uma
“suplícios medievais” e pena de morte como sociedade civil crítica, participativa e capaz
punição para os criminosos. Alguns meses de exercer sua cidadania de forma coerente.
depois, a Comissão de Constituição e Justiça É justamente essa competência cívica que o
do Senado12 aprovou a redução da maioridade
Estado Punitivo atual procura evitar.
penal de 18 para 16 anos.13
Como se observa, incorporada ao tema
Referências
da manutenção da democracia, a questão
do combate ao crime ganha positividade ATHAYDE, Celso. [et. al.]. Cabeça de Porco.
como peça do grande consenso presente Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

na uniformização dos valores políticos, BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-


morais e sociais da sociedade brasileira modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

atual. Mesmo a realidade demonstrando que BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as


conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
maior repressão não diminui a criminalidade
Zahar, 1999.
(ao contrário, abarrota as penitenciárias
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca
permitindo a proliferação de organizações
por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro:
criminosas), esse discurso ganha cada vez Jorge Zahar, 2003.
BATISTA, Nilo. Novas tendências do direito
penal. Palestra proferida no Centro de Estudos
11
Em matéria veiculada no Jornal Folha de São
Judiciários em 8 de maio de 2003a.
Paulo. Edição do dia 18/02/2007.
BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no
12
A Comissão aprovou no dia 26/04/2007, por 12
votos a 10, a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) Capitalismo Tardio. In: Revista Brasileira de
que reduz de 18 para 16 anos a maioridade penal no país. Ciências Criminais. (número especial). Ano 11,
O texto, do senador Demóstenes Torres (DEM-GO), N.º 42, Janeiro/Março, 2003b.
propõe a redução, mas estabelece o regime prisional BATISTA, Nilo. Prezada Senhora Viégas: o
somente para jovens menores de 18 anos e maiores
anteprojeto de reforma no sistema de penas.
de 16 que cometerem crimes hediondos. In: Folha de
In: Discursos sediciosos. Crime, direito e
São Paulo – Caderno Cotidiano – Edição on line do
sociedade. Rio de Janeiro, Ano 5, n.º 9 e 10,
dia 26/04/2007.
2000, p. 107.
13
Ressalta-se que por se tratar de emenda à
Constituição, para virar lei, a proposta ainda deverá BATISTA, Vera Malaguti. Autoritarismo e
ser discutida amplamente e votada nas duas casas do controle social no Brasil - Memória e medo. In:
Congresso Nacional. Revista Sem Terra. n.º 10, 2001.

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