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CRIMINOLOGIA

Autora: Ivone Fernandes Morcilo Lixa

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Dr. Malcon Tafner

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Norberto Siegel

Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Profa. Hiandra B. Götzinger Montibeller
Profa. Izilene Conceição Amaro Ewald
Profa. Jociane Stolf

Revisão de Conteúdo: Rodrigo Koenig França

Revisão Gramatical: Profa. Camila Thaíse Alves

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci

Copyright © Editora Grupo UNIASSELVI 2012


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial. UNIASSELVI – Indaial.

364
L788c Lixa, Ivone Fernandes Morcilo
Criminologia /Ivone Fernandes Morcilo Lixa. Indaial :
Uniasselvi, 2012.
140 p. : il

ISBN 978-85-7830- 561-1

1. Criminologia.
I. Centro Universitário Leonardo da Vinci
II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título
Ivone Fernandes Morcilo Lixa

Doutora em Direito Público pela Universidad


Pablo de Olavide (UPO - SEVILLA) e Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC - Santa Catarina),
Mestre em Teoria do Direito pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC - Santa Catarina), Especialista
em Direito Civil pela Universidade Regional de Blumenau
(FURB - Blumenau); Bacharel em Direito pela Universidade
Regional de Blumenau (FURB - Blumenau); Bacharel em
Ciências Geográficas pela Universidade de São Paulo
(USP - São Paulo).
Professora de Graduação e Pós-graduação nos
Cursos de Direito da Universidade Regional de
Blumenau (FURB) e Centro Universitário Católica de
Santa Catarina (PUCSC).
Pesquisadora e Autora de obras e diversos
artigos nas áreas de Direitos Humanos, Novos
Direitos e Hermenêutica Jurídica.
Sumário

APRESENTAÇÃO��������������������������������������������������������������������������� 7

CAPÍTULO 1
Criminologia(s): Delimitação Conceitual���������������������������������� 9

CAPÍTULO 2
A Construção do Pensamento Criminológico Moderno:
Funções, Dimensões e Teorias������������������������������������������������� 39

CAPÍTULO 3
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno e a
Emergência do Pensamento Crítico ��������������������������������������� 75

CAPÍTULO 4
Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos �������������� 109
APRESENTAÇÃO
Caro(a) pós-graduando(a):

Caro pós graduando, estamos chegando a última disciplina do curso de Direito


Penal, então iremos iniciar os nosso estudos a cerca da criminologia. De forma
geral, podemos afirmar que está área do Direito Penal refere-se é um conjunto de
conhecimentos que se ocupa do crime, da criminalidade e suas causas, da vítima,
do controle social do ato criminoso, bem como da personalidade do criminoso e
da maneira de ressocializá-lo. Etmologicamente o termo deriva do latim crimino
(crime) e do grego logos (tratado ou estudo), seria portanto o “estudo do crime”.

É uma ciência empírica e interdisciplinar. É empírica, pois baseia-se na


experiência da observação, nos fatos e na prática, mais que em opiniões e
argumentos. É interdisciplinar e portanto formada pelo diálogo de uma série de
ciências e disciplinas, tais como a biologia, a psicopatologia, a sociologia, política,
a antropologia, o direito, a criminalística, a filosofia e outros.

Este caderno de estudos está dividido em quatro capítulos: No primeiro


capítulo iremos compreender o(s) sentido(s) e a função da(s) criminologia(s) e
suas interrelações com demais campos do conhecimento, além de diferenciar e
delimitar a criminologia em relação ao sistema punitivo, política criminal e direito
penal. Para finalizar as discussões neste capítulo iremos individualizar e delimitar
teórica e instrumentalmente os distintos campos político e jurídico do sistema
punitivo.

No capítulo seguinte, compreender o paradigma criminológico dominante


como produto sócio-cultural da modernidade, diferenciar os distintos discursos
históricos criminológicos europeus e sua expansão no pensamento científico
moderno, e identificar as funções das teorias criminológicas modernas, seus
postulados e legados para a dogmática penal contemporânea.

No terceiro capítulo, identificaremos os elementos sociais, jurídicos e políticos


que apontam o esgotamento do paradigma punitivo moderno, compreenderemos
a centralidade do conhecimento criminológico na prática jurídica penal e os limites
da concepção causal explicativa do fenômeno da incriminação e criminalização.

E, no último capítulo, iremos estudar os horizontes criminológicos


contemporâneos, então compreenderemos o contexto econômico, político, social
e cultural contemporâneo e sua relação com a formação da chamada “nova”
violência. Além de, identificar as políticas criminais de controle dominantes
bem como seus limites e possibilidades na perspectiva da ordem democrática
brasileira. E por fim, relacionar de forma crítica o processo da globalização em
marcha com a “cultura do medo” predominante.

O material está aqui, é hora de se inteirar do seu conteúdo e aprofundar a


pesquisa sobre a área da Criminologia!

Bons estudos!
C APÍTULO 1
Criminologia(s): Delimitação
Conceitual

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Compreender o(s) sentido(s) e a função da(s) criminologia(s) e suas


interrelações com demais campos do conhecimento.

99 Diferenciar e delimitar a criminologia em relação ao sistema punitivo, política


criminal e direito penal.

99 Individualizar e delimitar teórica e instrumentalmente os distintos campos


político e jurídico do sistema punitivo.
Criminologia

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Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

Contextualização O final da primeira


década do
século XXI no
O final da primeira década do século XXI no Brasil é marcado
Brasil é marcado
pela cotidiana convivência com o vertiginoso crescimento da violência pela cotidiana
e seus efeitos devastadores que destrói as formas de solidariedade convivência com
social e fragiliza as tradicionais formas institucionais de controle. o vertiginoso
crescimento
Uma breve análise nas estatísticas disponibilizadas pelo Ministério da violência e
seus efeitos
da Justiça brasileira permite constatar um panorama, nada animador.
devastadores que
Em 1997 o Brasil contava com pouco mais de 170.000 presos (108,6 destrói as formas
presos por 100.000 habitantes). Dez anos depois se atingia a cifra de de solidariedade
420.000 presos (233,3 presos por 100.000 habitantes), o que significa social e fragiliza as
um aumento de 247% em apenas dez anos. Desde 2003 o número de tradicionais formas
encarcerados foi crescendo uma média de 10% ao ano, atingindo em institucionais de
controle.
2010 a sinistra marca de 496.251encarcerados (BRASIL 2011).

Apontando na mesma direção, em fevereiro de 2011 ao ser publicado o


Mapa da Violência do Brasil, constatou-se que, enquanto na década de 80 os
jovens tinham suas vidas ameaçadas por epidemias e doenças infecciosas,
atualmente essas causas foram substituídas pelas chamadas “causas externas”
representadas principalmente por acidentes de trânsito e homicídios. O
documento demonstra que no período 1998/2008 enquanto 1,8% das mortes
entre adultos foram causadas por homicídios, no grupo jovem a taxa chegou a
39,7% (WAISELFISZ, 2011).

É neste cenário que, sobretudo para profissionais da área jurídica movidos


pelo desejo de ir além do mero pragmatismo, se coloca o desafio de compreender
e refletir acerca da “questão criminal” tendo em vista a possibilidade de encontrar
elementos unificadores e pacificadores capazes de refundar novas formas de
cidadania e convivência social.
A “questão criminal”
A “questão criminal” é um fenômeno sócio-político e cultural é um fenômeno
complexo que não pode ser analisada sem considerar o sistema punitivo sócio-político e
cultural complexo
construído e reproduzido pela ordem social dominante em determinado
que não pode
momento histórico. É exatamente na tentativa de compreender, sob ser analisada
uma perspectiva crítica, o sistema punitivo contemporâneo e as práticas sem considerar o
decorrentes que o estudo da Criminologia ganha relevância. A tarefa sistema punitivo
inicial é a de definir o sentido conceitual de Criminologia, enquanto construído e
campo de saber relacionado à “questão criminal” bem como sua função reproduzido pela
ordem social
específica nas formas de controle social instituídas e definidas numa
dominante em
ordem política e jurídica constitucionalmente democrática. determinado
momento histórico.

11
Criminologia

Em 24 de Fevereiro de 2011 ao ser publicado o Mapa da Violência


no Brasil de 2011 o Blog oficial do Palácio do Planalto fez comentava:

“MAPA DA VIOLÊNCIA 2011” APONTA CAUSAS DE


HOMICÍDIOS ENTRE JOVENS NO BRASIL

A violência entre jovens na faixa etária de 15 anos aos 24 anos


cresceu no período 1998/2008. Nesta década, enquanto 1,8% das
mortes entre adultos foram causadas por homicídios, no grupo
jovem a taxa chegou a 39,7%. Este é apenas uma das informações
contidas na pesquisa “Mapa da Violência 2011 – Os jovens do Brasil”,
elaborado pelo Instituto Sangari, em parceria com o Ministério da
Justiça. O estudo traz um diagnóstico sobre como a violência tem
levado à morte brasileiros, especialmente os jovens, nos grandes
centros urbanos e também no interior do país.

O estudo coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz


servirá de subsídio a políticas públicas de enfrentamento à
violência. Esta pesquisa, que tem como fonte os dados do Sistema
de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde,
aponta o crescimento das mortes de jovens por homicídio, acidentes
de trânsito e suicídio.

Trata-se de uma minuciosa radiografia da evolução da


mortalidade no Brasil com parâmetros estabelecidos pelas
Organizações Pan-Americana de Saúde (OPS) e Mundial de Saúde
(OMS). A pesquisa apurou informações no âmbito nacional e também
aponta o cenário que inclui as grandes regiões, os 27 estados, 10
regiões metropolitanas, 27 capitais e 5.564 municípios.

Os resultados do “Mapa da Violência 2011″ são debatidos


seminário “Juventude, Prevenção da Violência e Territórios da Paz”,
aberto nesta quinta-feira (24/2), em Brasília, pelo ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo. O evento termina amanhã (25/2) e resulta de
iniciativa do governo brasileiro, por meio do Ministério da Justiça em
parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Este projeto, que incluiu diferentes levantamentos, foi realizado


pelo FBSP no período de janeiro de 2009 a fevereiro de 2011 com
recursos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(Pronasci). A iniciativa do governo federal oferece subsídios para a

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Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

formulação de políticas públicas de prevenção da criminalidade entre


adolescentes e jovens, além de construir referenciais metodológicos
para auxiliar nas intervenções do poder público em territórios com
elevados níveis de violência.

O mapa da violência

Segundo a pesquisa, a proporção de jovens no Brasil já foi


maior há algumas décadas: “para o ano de 2008 o país contava
com um contingente de 34,6 milhões de jovens na faixa dos 15
aos 24 anos de idade. Esse quantitativo representa 18,3% do total
dos 189,6 milhões de habitantes que a instituição projetava para o
país. A proporção já foi maior. Em 1980, existia menor quantidade
absoluta de jovens: 25,1 milhões mas, no total dos 118,7 milhões de
habitantes, representavam 21,1%”

O documento relata ainda que os jovens da década de 80 tinham


as epidemias e doenças infecciosas como as principais ameaças
às suas vidas. Atualmente, essas causas foram substituídas pelas
chamadas “causas externas” representadas, principalmente, pelos
acidentes de trânsito e homicídios. Esses fatores externos têm
números alarmantes se ligados à população jovem:

Em 1980, as ‘causas externas’ já eram responsáveis por


aproximadamente a metade (52,9%) do total de mortes dos
jovens do país. Vinte e oito anos depois, em 2008, dos 46.154
óbitos juvenis registrados no SIM/SVS/MS, 33.770 tiveram sua
origem em causas externas, pelo que esse percentual elevou-
se de forma drástica: em 2004, quase ¾ de nossos jovens
(72,1%) morreram por causas externas.

O estudo informa ainda que 62,8% das mortes de jovens em


todo o país ocorreram por homicídios, acidentes de transportes e
suicídios. O mesmo documento aponta que, em 2004, foi detectada
queda expressiva, por dois anos consecutivos, nos índices de
homicídios e atribui essa baixa significativa ao “Estatuto e à
Campanha do Desarmamento” lançados naquele ano.

Alguns estados também têm reduzido a média de homicídios


nas respectivas regiões, com tendência a diminuir seus índices, como
São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, enquanto Pará, Alagoas
e Goiás praticamente dobraram os seus números. A pesquisa sugere
que essa inversão nos índices dos estados possa ter sido provocada
pelo Plano Nacional de Segurança Pública e pelo Fundo Nacional

13
Criminologia

de Segurança que canalizaram seus recursos para o aparelhamento


das regiões de maior incidência, o que dificultou a ação e provocou
a migração para locais de menor risco, provocando o aumento de
homicídios na região.

Alguns acontecimentos observados em pesquisas anteriores


continuam intactos como a quase totalidade das vítimas de homicídios
ser do sexo masculino e ainda os elevados níveis de vítimas de cor
preta nesses casos, morrendo mais que o dobro de cor branca.

Fonte: BRASIL. Blog do Planalto. “Mapa da Violência 2011” aponta causas de homicídios
entre jovens no Brasil Disponível em: <http://blog.planalto.gov.br/mapa-da-violencia-
2011-aponta-causas-de-homicidios-entre-jovens-no-brasil/>. Acesso em: 24 ago. 2011.

O referido estudo define violência da seguinte forma:

há violência quando, em uma situação de interação, um ou


vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça
ou esparsa, causando danos a uma ou a mais pessoas em
graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua
integridade moral, em suas posses, ou em suas participações
simbólicas e culturais (BRASIL, 2011a).

Atividade de Estudos:

1) No espaço abaixo faça uma breve síntese acerca do chamado


novo perfil da violência brasileira buscando esclarecer por que a
“questão” criminal é uma complexa problemática social, política,
cultural e econômica.
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Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

Conceito(S) de Criminologia
O termo “Criminologia” é uma combinação etimológica greco-latina utilizada
de forma inédita pelo antropólogo francês Paul Topinard (1830-1911) no ano
de 1879. Entretanto, internacionalmente a palavra “Criminologia” passou a
ser aceita como campo específico de conhecimento no ano de 1885 com a
publicação da obra Criminologia de autoria de Raffaele Garofalo (1851-1934),
representante da Escola Positivista. Portanto, é uma criação conceitual europeia
específica do século XIX.
Matriz formal-
positivista, a
Há que se chamar atenção para a predominância de distintas Criminologia possui
concepções segundo os pressupostos teóricos e políticos que norteiam como objeto o
o sentido do que se define como “Criminologia”. Por outras palavras, fenômeno do crime
são múltiplos os discursos, muitos que se excluem e se anulam que investiga suas
causas tendo como
mutuamente, que estão a demonstrar divergências e descontinuidades
objetivo conferir
acerca da “questão criminal’. O conhecimento criminológico, em que fundamento à
pese diferenças; descontinuidades conceituais e metodológicas; Política Criminal
expressa a face de uma civilização: sua cultura punitiva, formas de a qual cabe
racionalização e de legitimação. transformá-lo
em opções e/ou
orientações para
Como ciência causal-explicativa, de matriz formal-positivista, a
o legislador e
Criminologia possui como objeto o fenômeno do crime – definido e poderes públicos
delimitado juridicamente pelo Direito Penal – que investiga suas causas implementarem
tendo como objetivo conferir fundamento à Política Criminal a qual cabe estratégias para
transformá-lo em opções e/ou orientações para o legislador e poderes prevenção e
públicos implementarem estratégias para prevenção e repressão do crime. repressão do crime.

Conforme se verá adiante, essa é uma concepção etiológica A partir da década


segundo a qual a criminalidade é produto de fatores individuais e/ou de 60, outras
sociais que vão construindo nos sujeitos maiores ou menores potenciais correntes passaram
de anti-sociabilidade e de tendências a delinquir. Em tal perspectiva, a a adotar uma
Criminologia possui um caráter residual ou auxiliar. Partindo de distintos metodologia que
investiga não
pressupostos teóricos, a partir da década de 60, outras correntes
as causas da
passaram a adotar uma metodologia que investiga não as causas da criminalidade,
criminalidade, mas as condições de criminalização produzidas pelo mas as condições
sistema penal e seus mecanismos formais e institucionais de controle em de criminalização
interação com o controle social representado pela família, escola, religião, produzidas pelo
mídia, moral, etc. funcionalmente articulado com as estruturas de poder. sistema penal.

Portanto, não é possível encontrar um conceito uniforme, mas diversos


discursos criminológicos que expõem mazelas civilizatórias transformadas em
violência e racionalmente sistematizadas.

15
Criminologia

É partindo desta premissa que podem ser consideras as distintas definições


(rotulações) de Criminologia.

Na leitura de Antonio Garcia-Pablos de Molina, a

Criminologia é uma ciência empírica e interdisciplinar que tem


por objeto o crime, o delinqüente, a vítima e o controle social
como comportamento delitivo; e que permite a elaboração
de informações válidas e confiáveis acerca das origens,
da dinâmica e das variáveis do crime – fenômeno individual
e também problemática social – de forma a contribuir na
prevenção e elaboração de estratégias de reação, bem como
técnicas de controle de intervenção. (MOLINA, 1997, p. 40).

Em tal perspectiva, o saber criminológico, contraposto ao senso comum,


possibilita um conhecimento efetivo da “questão criminal” na medida em que
fornece dados e informações acerca da eficiência do sistema punitivo. Além
de que se ocupa de analisar tendências dos delitos; estudos comparativos e
estatísticos auxiliando agentes públicos, legisladores e juristas em intervenções
prudentes na realidade social.

Para Molina e Gomes (1997) as principais características da Criminologia são:

• O crime é um “problema” humano e doloroso;


• A vítima é parte da “questão criminal”;
• Seu objeto é o controle social;
• O saber criminológico possui um caráter prevencionista e não obsessivamente
repressivo;
• Produz um conhecimento cujo objetivo é a “intervenção” na realidade criminal
(considerada em sua complexidade, dinâmica e pluridimensionalidade –
relacionando Criminologia com Vitimologia);
• Não se deve renunciar a uma análise etiológica do delito no marco do
ordenamento jurídico.

Em outra direção teórica Lola Aniyar de Castro, autora que representa


correntes de reação ou críticas ao positivismo criminológico, define a Criminologia
como um saber que vai mais além da mera organização sistemática de
conhecimentos e técnicas orientadas para o fortalecimento e manutenção do
controle social.

[...] nossa definição não estaria tanto em afirmar que a


criminologia é esse conjunto de conhecimentos e técnicas
aplicadas ao controle social, mas sim em entender esse
controle social do modo como expresso no quadro apresentado,
em que o controle social é algo mais que o sistema penal é um
instrumento reprodutor. (CASTRO, 2005, p. 55).

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Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

A Criminologia, nesta ótica, tem como objeto o estudo do controle social,


entendido como conjunto de sistemas normativos (ética, religião, costumes...)
cujos portadores (processo de criminalização e estratégias de socialização)
estabelecem “redes de contenção” que garantem a fidelidade das massas aos
valores do sistema de dominação.

E reafirma a autora acerca do conceito de Criminologia:

[...] é a atividade intelectual que estuda os processos de


criação das normas penais e das normas sociais que estão
relacionadas com o comportamento desviante; os processos
de infração e de desvio destas normas; e a reação social,
formalizada ou não, que aquelas infrações ou desvios tenham
provocado: o seu processo de criação, a sua forma e conteúdo
e os seus efeitos. (CASTRO, 1983, p. 52).

Em síntese, ao se iniciar o estudo da Criminologia, em que pese a não


uniformidade conceitual, é importante reconhecer que as distintas concepções
convergem para a elaboração de um conhecimento interdisciplinar acerca de um
complexo fenômeno social (“questão criminal”) que não pode ser compreendido
sem situá-lo a partir de um sistema punitivo específico definido por instâncias
sociais e institucionais de controle.

Para melhor compreendermos o sentido do estudo de


Criminologia (e de qual Criminologia falamos) vamos ler o texto da
Dra. Vera Regina Pereira de Andrade.

POR QUE A CRIMINOLOGIA (E QUAL CRIMINOLOGIA)


É IMPORTANTE NO ENSINO JURÍDICO?

Tendo sido responsável pela criação da disciplina Criminologia


nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina,  e ministrando-as, juntamente
com outros  colegas, há quase quinze anos, sinto-me à vontade  para
falar da importância da disciplina nos Cursos Jurídicos brasileiros -
precisamente a importância na qual apostamos - razão deste escrito à
comunidade jurídica. Imperioso, pois, registrar que, apesar do Ensino
Jurídico brasileiro de graduação e, sobretudo, de pós-graduação,
contar com  excelentes e consagradas cátedras de Criminologia,  duas
evidências  (empiricamente verificáveis) são ainda marcantes: uma, é
a da ausência ou do lugar residual, periférico, que a disciplina ocupa
na grade curricular,  regra geral, optativa. A outra, é a de que, quando
presente , são as Criminologia críticas que ocupam nela um lugar

17
Criminologia

residual, cabendo a centralidade à Criminologia positivista. Trabalho,


portanto, com uma dupla hipótese: a disciplina Criminologia ocupa
pouco espaço no Ensino Jurídico e as Criminologias críticas pouco
espaço na Criminologia. O Direito Penal, a contrario sensu, ensinado à
luz da Dogmática Penal e, portanto, o Direito Penal dogmático, ocupa
um lugar central e espaçoso ( I, II, III, IV, V).

Mas, qual é a relação existente entre Direito Penal (dogmático)


e Criminologia ? Qual a importância da Criminologia no Ensino
do Direito? Mas, de que Criminologia estamos falando, se “a”
Criminologia no singular não existe?

Tais interrogantes, colocados aqui no início do século XXI,


soariam familiares na Europa de finais do século XIX e transição
para o XX, entre nomes célebres como Franz Von Liszt, Enrico Ferri,
Arturo Rocco, pois foi precisamente o debate sobre as relações
entre Direito Penal e Criminologia e a performance que deveriam
assumir no marco de um “modelo integrado de Ciências Penais”  a
musa daquele tempo, e cujo modelo, então  consolidado e ainda
dominante , nos ajuda a compreender  aquele estatuto “ausente-
periférico” da Criminologia.. É que no modelo oficial que então se
consolidou (a favor da “Gesamte Strafrechtswissenschaf” de Liszt
e contra o modelo de Ferri ), e  cujos três pilares, reciprocamente
interdependentes,  serão o Direito Penal , a Criminologia e a Política
Criminal, haverá uma  divisão metodológica , cabendo à Criminologia
desempenhar uma “função auxiliar”, tanto do Direito Penal como
da Política Criminal oficial, inteiramente abrigada no marco da
dicotomia  dever-ser/ser. Com efeito, enquanto a Dogmática do
Direito Penal, definida como “Ciência”  normativa, terá por objeto as
normas penais e por método o técnico-jurídico, de natureza lógico-
abstrata,  interpretando  e sistematizando o Direito Penal positivo
(mundo do DEVER-SER) para instrumentalizar   sua aplicação com “
segurança jurídica “,   a Criminologia, definida como Ciência causal-
explicativa, terá por objeto o fenômeno da criminalidade (legalmente
definido e delimitado pelo Direito Penal) investigando suas causas 
segundo o método experimental (mundo do SER) e  subministrando 
os conhecimentos antropólogicos e sociológicos necessários para
dar um fundamento “científico” à Política Criminal , a quem caberá,
a sua vez,  transforma-los em “opções” e “estratégias” concretas
assimiláveis pelo legislador ( na própria criação da lei penal ) e os
poderes públicos,  para prevenção e repressão do crime .

Estrutura-se, neste momento, uma Criminologia de corte


positivista, com pretensões de cientificidade , conformadora do 

18
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

chamado  paradigma “etiológico” , e segundo a qual a criminalidade é o


atributo de uma minoria de sujeitos perigosos na sociedade, que, seja
pela incidência de fatores individuais , físicos e/ou sociais, apresenta
um maior potencial de anti-sociabilidade e uma maior tendência a
delinqüir Identifica-se, assim, criminalidade com violência individual.

O modelo integrado caracteriza-se, portanto, por uma divisão


metodológica do trabalho, associada a uma unidade funcional, na luta,
então declara-se, cientificamente fundamentada contra a criminalidade
Neste modelo, o Direito Penal, pelo seu escopo prático e pela promessa
de segurança, recebeu  a coroa e a faixa de rainha,  reinando com
absoluta soberania, enquanto a Criminologia e a Política Criminal  se
consolariam, e bem, com  faixas de segunda e terceira princesas. E
é com este título que a Criminologia atravessa o século XX , quando
um outro concurso  vem mudar a sua historia: nele, a Criminologia 
não desfila nem concorre com o Direito Penal dogmático, ela senta-
se à mesa de jurados, mas com nova roupagem,  para julgar o Direito
Penal, e sua própria roupagem anterior. Refiro-me à mudança do
paradigma etiológico para o  paradigma da reação social , processada
desde  a década de 60 do século XX,  que deu origem a  outra
tradição criminológica crítica ( Criminologia da reação social, Nova
Criminologia, Criminologia radical, Criminologia crítica stricto sensu,
Criminologia feminista),   segundo a qual a Criminologia não mais se
define como uma ciência que investiga as causas da criminalidade,
mas as condições da criminalização, ou seja, como o sistema penal,
mecanismo de controle social formal (Legislativo- Lei penal-Polícia-
Ministério Público-Judiciário- Prisão- ciências criminais-sistema de
segurança pública,etc. ) constrói a criminalidade e os criminosos em
interação com o controle social informal ( família-escola-universidade-
mídia-religião-moral-mercado de trabalho-hospitais-manicômios-),
fucionalmente relacionados às estruturas sociais.

A criminalidade não “é” ( não existe em si e per si),  ela  “é”


socialmente  construída. Neste movimento, a Criminologia converte
o sistema penal como um todo e, conseqüentemente, a Lei Penal e
as Ciências Criminais, (dimensões integrantes dele), em seu objeto, e
problematiza a função de controle e dominação por ele exercida.

No centro desta problematização estão os resultados sobre a


secular seletividade estigmatizante ( a criminalização da pobreza e
da criminalidade de rua x imunização da riqueza e da criminalidade
de gabinete) e  a violência institucional  do sistema penal, sobretudo
da prisão,  a inversão de suas promessas, a incapacidade de dar

19
Criminologia

respostas satisfatórias às vítimas e suas famílias, e a própria


Criminologia etiológica e o Direito Penal dogmático são denunciados
em sua função instrumentalizadora e legitimadora da seletividade,
nascendo daí uma nova problemática para a Política Criminal: quais
são as alternativas à prisão e ao sistema penal? 

Com esta revolução opera-se a passagem de uma Criminologia


comportamental e da violência individual (positivista),que nos doutrina
a “ver o crime no criminoso” ( Ferri), para uma Criminologia da
violência institucional, que   nos ensina que não se pode compreender
o crime, a criminalidade e os criminosos  sem compreender o
controle social e penal  que os constrói como tais , e esta culmina
numa Criminologia da violência estrutural, que nos ensina a
compreendê-los  não apenas  a partir da mecânica do controle, mas
funcionalmente relacionada às estruturas sociais ( o capitalismo, o
patriarcado, o racismo..). A seletividade do sistema penal é revelada,
assim, como classista, sexista e racista, que expressa e reproduz as
desigualdades, opressões e assimetrias sociais.

Desta forma,  a mudança de paradigmas desloca e redefine


a Criminologia  de um saber auxiliar do Direito Penal e interno ao
modelo integrado ( que o cientificiza), para  um saber crítico e externo
sobre ele ( que o problematiza e politiza) convertido em “objeto” 
criminológico, ao ponto da obra de Criminologia mais importante do
século XX, de autoria de Alessandro Baratta, ter sido denominada 
“ Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: : introdução à
Sociologia Jurídico-Penal”.

É a vez da Criminologia julgar o Direito Penal e sua própria


história para concluir que a perda do reinado naquele concurso
jurídico  não equivaleu, para a Criminologia etiológica,  à perda do
reinado na história do controle penal moderno.

Ora, a historicidade da disciplina  opera decisivamente a favor


da compreensão  do estatuto ausente-periférico da Criminologia: a
auxiliaridade de ontem se reflete na residualidade pedagógica de
hoje ( o mesmo se diga, e com mais razão , em relação à 2ª princesa,
a Política Criminal) de um Ensino, ademais, centrado na abstração
do normativismo tecnicista, cujo modelo reforça aquele estatuto.  Por
outro lado, as Criminologias baseadas no paradigma da reação social
não apenas não obedecem a esta lógica , mas a problematiza. Vê-
se, neste rapidíssimo escorço, que  as relações entre Criminologia
e Direito Penal estão sujeitas, historicamente, a (des)encontros

20
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

e, dado que não existe “a” Criminologia no singular,  a resposta


àqueles interrogantes depende  do paradigma e da Criminologia que
orienta nossa visão e discurso. Ora, tanto a inserção ( se estudar)
e o espaço ( quanto estudar) da Criminologia no Ensino do Direito,
quanto a definição do  seu conteúdo(  o que estudar ) , com que
método  e para que, envolve um conjunto de definições, a um só
tempo, paradigmáticas e políticas,  que  transferem suas marcas ao
Ensino, que  têm impacto na construção de sujeitos ( subjetividades), 
cuja palavra e ação tem impacto, a sua vez, na vida social. Defendo,
pois,  uma inclusão criminológica  capaz de romper com ambas as
hipóteses aqui alinhavadas, a saber, resgatar tanto o espaço da
Criminologia no Ensino Jurídico, quanto das Criminologia críticas
no Ensino da Criminologia, superando seu estatuto periférico-
ausente, sem abortar, por outro lado, a Criminologia tradicional,
resgatando, ao máximo, a historicidade da  Criminologia, sem a qual
não se compreende como se exerce o poder punitivo (  como somos
dominados), o discurso oficial ( com que seduções legitimadoras) e
o senso comum ( como somos produzidos e produzimos  o “outro”
)criminais. Não basta, tampouco, contar a história da Criminologia
européia, ou norte-americana, temos que mergulhar na Criminologia
latino-americana e brasileira, em busca de nossa identidade, sem
olvidar, em derradeiro, que se a Criminologia enquanto pretensão
disciplinar e científica parece ser um invento da modernidade
ocidental,  uma escavação arqueológica ( Foucault) nos revela que,
em busca de uma discussão sobre crime e pena, o céu é o limite.

A Criminologia têm, portanto, uma importância decisiva  para o


Ensino do Direito, desde que não reduzida a uma rubrica excludente
que, mais do que valorizar a disciplina e auxiliar na compreensão
do poder e do controle social e penal  ( crime, criminalidade, pena,
criminalização, vitimação, impunidade, etc), do poder-espaço dos
operadores jurídicos nesta mecânica ,concorra para infantilizar o
imaginário acadêmico, com a visão positivista da boa “ciência” para
o combate exitoso da criminalidade. A Criminologia, ao contrário de
todas as suas promessas, não nasceu para isso e não pode fazê-
lo. Ensinar Criminologias, nesta perspectiva , é concorrer para a
formação  de uma consciência jurídica crítica e responsável, capaz
de transgredir as fronteiras, sempre generosas, do sono dogmático
, da zona de conforto do penalismo adormecido na labuta técnico-
jurídica; capaz de inventar novos caminhos para o enfrentamento
das violências ( individual, institucional e estrutural) e este talvez
seja o melhor tributo que  possam prestar ao Ensino e à formação
profissional-cidadã.

21
Criminologia

Jornal Carta Forense, terça-feira, 18 de março de 2008.

Fonte: Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/


Materia.aspx?id=1168>. Acesso em: 15 set. 2011.

Atividade de Estudos:

1) Tendo como referência o conteúdo estudado e A leitura do


texto acima é possível compreender o caráter subsidiário da
Criminologia? Por que?
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2) Afirma a Dra. Vera Regina: “A criminalidade não “é” (não existe


em si e per si),  ela  “é” socialmente  construída”. Tal perspectiva
é relacionada com qual conceito de Criminologia? Por que?
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Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

O(s) Método(s) e a Natureza


Interdisciplinar da Criminologia
A autonomia e status científico da Criminologia foram conquistados
essencialmente quando, a partir do século XIX graças ao positivismo comtiano,
foi generalizado o uso do método empírico para o estudo dos fenômenos sociais.
Isto é, “quando a análise, a observação e a indução substituíram a especulação e
o silogismo, superando o método abstrato formal e dedutivo do mundo clássico”.
(MOLINA; GOMES, p. 46).

Positivismo comtiano: Positivismo de Augusto Comte (1798-


1857) encontrou na observação o método privilegiado para o
estudo dos fenômenos sociais, considerando a especificidade de
cada fenômeno em sua particularidade. No caso da Criminologia
as concepções e métodos positivistas serão discutidos com mais
profundidade no Capítulo II.

Para a grande maioria dos estudiosos a especificidade da Para a grande


Criminologia está em constituir-se num tipo de saber que se situa no maioria dos
campo das chamadas ciências empíricas, pressupondo a observação e estudiosos a
análise da realidade, predominando o método indutivo. especificidade
da Criminologia
Molina e Gomes (1997) entendem que a natureza empírica da está em constituir-
se num tipo de
Criminologia se caracteriza:
saber que se
situa no campo
• Por ser seu objeto (delito, delinqüente, vítima e controle social) das chamadas
inserido num mundo real, verificável e mensurável, ciências empíricas,
• Porque se baseia mais em fatos do que opiniões, pressupondo
• Por privilegiar a observação, a observação
• Por considerar que os fatos prevalecem sobre os argumentos de e análise da
realidade,
autoridade,
predominando o
• Conhece a realidade antes de explicá-la. método indutivo.

Mas apesar de ser predominante o método empírico na


Criminologia não é o único. Mas apesar de ser
predominante o
Embora o método empírico tenha sido útil para a origem e método empírico na
individualização da Criminologia como ciência na medida em que o Criminologia não é
o único.
objetivo era o de individualizar as causas e fatores que determinariam

23
Criminologia

o comportamento criminoso a fim de eliminá-los através de práticas


Considerando a
“questão criminal” eficientes para modificar/corrigir o delinqüente, não se pode deixar de
fato/fenômeno considerar o(s) método(s) defendido(s) pelas concepções críticas.
social não há como
compreendê-la Considerando a “questão criminal” fato/fenômeno social não há
isoladamente, como compreendê-la isoladamente, ignorando os múltiplos fatores/
ignorando os
determinantes (históricos, culturais, econômicos, ideológicos,...) que
múltiplos fatores/
determinantes atuam como forças – em não raras vezes antagônicas – que configuram
(históricos, o crime e a subjetividade de seus atores.
culturais,
econômicos, Assim, história, contradição, totalidade e dialética do real
ideológicos,...) são os principais elementos metodológicos para descobrir a
que atuam como verdade e, portanto, para desmontar a ideologia que apresenta
forças – em aos olhos do pesquisador uma aparência ocultadora da
essência. (CASTRO 2005, p. 59).
não raras vezes
antagônicas – que
configuram o crime Isto significa dizer que ao se estudar tão somente o delinqüente
e a subjetividade de ou dados estatísticos sem analisar a totalidade do universo no qual se
seus atores. inserem corre-se o risco de produzir uma verdade parcial e incapaz de
discutir os limites e impossibilidades do sistema e/ou ordem punitiva.

Seguramente por força de uma lógica instrumental que presidiu a ciência


moderna cuja preocupação é a solução técnica dos problemas sociais acabou-
se por se absorver a metodologia das ciências naturais em todos os campos do
conhecimento. O resultado do divórcio entre a esfera humana e a técnica nas
ciências sociais é o opressivo decisionismo.

O método crítico (histórico/dialético) que permite uma compreensão ampla


e complexa da realidade criminal, entre outros procedimentos, deverá (CASTRO,
2005, p. 59):

• Ser qualitativa e não somente/necessariamente quantitativa;


• Ser de compreensão de propósito e significado mais do que causal-explicativa;
• Reconhecer os fenômenos como histórica e culturalmente únicos;
• Fazer uma análise integradora e auto-reflexiva;
• Não perder de vista um compromisso transformador da realidade.

Partindo da concepção de que o crime é a manifestação de um complexo


fenômeno social sua compreensão exige uma atitude intelectual investigativa
aberta, capaz de perceber suas múltiplas dimensões e interações, sob pena de
uma análise parcial, incorreta e inútil do sentido e significados da conduta delituosa.

Embora o crime seja objeto de inúmeras disciplinas tais como a Biologia,


Psicologia, Antropologia e Sociologia, cada qual como seus respectivos métodos

24
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

e preocupações, uma análise mais precisa exige uma integração e coordenação


do fenômeno do crime; um saber que “elimine possíveis contradições internas e
instrumentalize um genuíno sistema de ‘retroalimentação’, conforme o qual cada
conclusão particular é corrigida e enriquecida ao ser contrastada com as obtidas em
outros âmbitos e disciplinas” (MOLINA e GOMES, 1997, p.49). A tarefa de síntese dos
saberes e múltiplas experiências é o que simultaneamente define a criminologia e lhe
confere um caráter interdisciplinar.

A interdisciplinaridade é uma concepção introduzida no


Brasil por Hilton Japiassú a partir do ano de 1976 como resultado
das inovações de idéias a partir do famoso Congresso de Nice de
1969. Para o referido autor interdisciplinaridade é caracterizada pela
presença de uma problemática comum a um grupo de disciplinas
conexas e definida no nível hierárquico imediatamente superior, o
que introduz a noção de finalidade. Portanto, para sua viabilização
é necessária a presença de profissionais de várias áreas para o
desenvolvimento de um conhecimento. Ainda, lembra Japiassú
que faz-se mister a intercomunicação entre as disciplinas, de
modo que resulte uma modificação entre elas, através de diálogo
compreensível, uma vez que a simples troca de informações entre
organizações disciplinares não constitui um método interdisciplinar.

Figura 1 – A criminologia

A
interdisciplinaridade
é uma exigência
estrutural da
Criminologia já que
Fonte: A autora. possui um caráter
sintetizador não
A interdisciplinaridade é uma exigência estrutural da Criminologia sendo compatível,
já que possui um caráter sintetizador não sendo compatível, portanto, portanto, com uma
atitude investigativa
com uma atitude investigativa excludente, mas que, por outro lado, não
excludente, mas
se perca de vista a individualização de seu objeto. que, por outro
lado, não se
Um estudo mais cuidadoso da construção do pensamento perca de vista a
criminológico demonstra que a interdisciplinaridade esteve presente ao individualização de
longo de sua trajetória e que sua emancipação científica foi conquistada seu objeto.

25
Criminologia

quando ocorreu a consciência de sua individualidade e superioridade hierárquica


em relação aos demais saberes. A pluralidade e complexidade subjacente que
constrói o substrato científico da Criminologia e garante sua individualidade
científica é uma problemática a ser enfrentada para ser estabelecida sua
identidade correndo-se o permanente risco de comprometer autonomia, já que as
diversas disciplinas conexas possuem campos de investigação comuns.

A adequada compreensão da “questão criminal” pela Criminologia implica, além


da articulação de saberes uma atitude investigativa de respeito as especificidades
de cada campo científico como forma de otimizar a qualidade social e política dos
resultados obtidos. Mas se essa é uma condição mínima é também um obstáculo a
ser enfrentado. Não é raro os profissionais que trabalham diretamente com o crime
possuírem resistências pessoais e corporativas para uma atitude interdisciplinar.

Neste sentido, lembra Salo de Carvalho que:

a condição mínima para que se possam realizar estudos


interdisciplinares é a de dotar os sujeitos interlocutores de
condições similares de fala, ou seja, abdicar da idéia de estar
um saber a serviço do outro. Significa, sobretudo, respeito às
diferenças inerentes aos saberes (CARVALHO, 2007 p. 21-
22).

O mesmo autor adverte ainda que “o modelo oficial de ciências


criminais coloca os demais saberes como servis, secundários e tão
Não é, portanto, somente complementares ao Direito Penal, esta sim uma disciplina
inútil reafirmar que mestra”.
interdisciplinaridade
não é um monólogo Esta atitude intelectual arrogante do Direito Penal, aliada à
de especialistas,
subserviência dos demais campos do saber, conduz a reafirmação do
mas uma atitude
intelectual hermenético dogmatismo, do isolamento científico e afastamento da
de diálogo, realidade social.
cooperação e
interação no Não é, portanto, inútil reafirmar que interdisciplinaridade não é
sentido de ampliar um monólogo de especialistas, mas uma atitude intelectual de diálogo,
o horizonte crítico.
cooperação e interação no sentido de ampliar o horizonte crítico.

As Funções do Saber Criminológico


Enquanto conhecimento interdisciplinar construído a partir de um fenômeno
social, político, ideológico e cultural, a Criminologia, além de possibilitar uma
compreensão acerca do crime e seus atores no sentido de servir para uma
adequada intervenção, convém assinalar, também como importante instrumento

26
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

de controle social, nasceu e foi idealizada no marco científico do século Também como
XIX adquirindo originalmente uma função legitimadora, validando importante
e autorizando a promoção de ações específicas e orientadas para instrumento de
manutenção do modelo punitivo dominante, centrado no que Max controle social,
Weber denominou de “dominação legal”. nasceu e foi
idealizada no marco
científico do século
XIX adquirindo
originalmente
Max Weber (1864-1920) define a uma função
dominação como obediência a um determinado legitimadora,
mandato que cria sujetios prontos a obedecer, validando e
autorizando a
depende diretamente de uma constelação de
promoção de
interesses, ou seja, de considerações utilitárias ações específicas
de vantagens por parte daquele que obedece. e orientadas para
Pode fundar-se no mero “costume”, cego hábito manutenção do
herdado e reafirmado pela tradição, ou na mera inclinação à modelo punitivo
obediência dos súditos. A dominação, pressupondo um poder dominante.
entre os “desiguais”, possui para Weber três tipos puros: legal,
carismático e tradicional.

A legitimação do poder punitivo estabelecida pelas relações de poder na


modernidade conferida essencialmente pela base jurídica (legal) é o que justifica
o caráter subsidiário e “científico” da Criminologia, cuja função foi essencialmente
o de servir como conhecimento instrumental subsidiário, verdadeiro e seguro
acerca do delinqüente e dos fatores desviantes.

Ao lado da qualificação e classificação científica do delito como


realidade normativa pelo saber dogmático compete a este novo
saber qualificar e classificar cientificamente o delito
enquanto ato, mas principalmente o “delinqüente”
como pessoa. (ANDRADE, 1997, p. 250). Caracterizou a
moderna etiologia
Esta atitude foi o que caracterizou a moderna etiologia criminal criminal cuja única
cuja única perspectiva de controle pelo poder disciplinar foi a o do perspectiva de
aprisionamento como regra punitiva hegemônica, para tanto, legitimada controle pelo poder
disciplinar foi a o
e apoiada num saber criminológico indiscutível.
do aprisionamento
como regra punitiva
No entender de Vera Regina P. de Andrade (1997, p. 252), a função hegemônica, para
legitimadora cientificamente elaborada pelo criminólogo juntamente com tanto, legitimada
psiquiatras, educadores e psiquiatras vêm a disputar o monopólio do e apoiada num
poder penal detido pelos juízes e juristas, fazendo com que o sistema saber criminológico
indiscutível.
penal seja dominado pela especialização científica e a profissionalização.

27
Criminologia

Superando uma Desde então, conclui Vera, o homem criminoso é resignificado sendo
perspectiva dominado ao mesmo tempo pela prisão e pelo cientificismo.
causal-explicativa
do fenômeno da É necessário esclarecer que, embora o conhecimento
criminalidade criminológico produzido a partir do século XIX não tenha assumido, nem
– legalmente tampouco declarado, a função legitimadora do sistema punitivo, o certo
definido pelo Direito
é que acabou por produzir sua legitimação isto porque as investigações
Penal – na qual a
função do saber tradicionalmente assentaram-se no “homem delinqüente” limitando-se
criminológico é o de a considerar a conduta delitiva justificada por si só pelo livre arbítrio
subsidiar e legitimar legitimando a punição estatal legal, transformando-se numa espécie de
a Política Criminal teoria de profilaxia do crime.
que orienta ações
de prevenção e Em outra direção, parece ser mais prudente, tomar o saber
repressão ao crime,
criminológico além de um aglomerado de dados e informações
adotar um horizonte
mais amplo e desconexas acerca do delinqüente, já que, as informações não são um
crítico permite fim em si.
compreender as
condições de Indo mais além não é difícil concluir que a Criminologia não é uma
criminalização ciência exata, nem tampouco uma “central de informações” acerca do
engrendradas a crime, no dizer de Molina e Gomes:
partir do sistema
punitivo e seus
A Criminologia, como ciência, é uma ciência prática,
mecanismos preocupada com os problemas e conflitos concretos, históricos
de controle e – pelos problemas sociais – e comprometida com a busca de
dominação. critérios e pautas de solução dos mesmos. Seu objeto é a
própria realidade, nasce da análise dela e a ela deve retornar,
para transformá-la. Por isso, junto com a reflexão teórica
sobre princípios básicos, ganha maior interesse e cada dia a
Tomando por objeto investigação criminológica orientada às demandas práticas.
o sistema punitivo (MOLINA e GOMES, 1997 p. 110).
é necessário que
se identifique e
Superando o saber tradicional, sem perder de vista seu objeto de
individualize os
elementos que investigação, parece evidente que a função central da Criminologia é
o compõem de maior que o caráter secundário e subsidiário que lhe é tradicionalmente
forma a construir reservado.
e a propor novas
concepções Superando uma perspectiva causal-explicativa do fenômeno da
acerca da violência criminalidade – legalmente definido pelo Direito Penal – na qual a função
(individual,
do saber criminológico é o de subsidiar e legitimar a Política Criminal que
institucional e
estrutural), indo orienta ações de prevenção e repressão ao crime, adotar um horizonte
além da perspectiva mais amplo e crítico permite compreender as condições de criminalização
unitária tradicional engrendradas a partir do sistema punitivo e seus mecanismos de controle
e reducionista e dominação. Desta forma, é conferida a Criminologia uma função mais
(inter-pessoal: adequada, qual seja, a de problematizar este sistema como parte de um
criminoso, vítima, conjunto sócio-político articulado de exercício de poder, rompendo-se,
pena, punição..).
assim, o limite periférico e residual do saber criminológico.

28
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

Assim, a função da Criminologia, bem como dos criminólogos, compreendida


no conjunto da engrenagem da engenharia social na qual o conhecimento torna-
se instrumento para ações públicas de prevenção geral (ações de bem estar
social e individual, reorientação do sistema de educação, planejamento urbano e
habitacional, etc.) e sociais, tomando por objeto o sistema punitivo é necessário
que se identifique e individualize os elementos que o compõem de forma a
construir e a propor novas concepções acerca da violência (individual, institucional
e estrutural), indo além da perspectiva unitária tradicional e reducionista (inter-
pessoal: criminoso, vítima, pena, punição..).

Sistema Punitivo e Criminologia


Retomando o conceito de sistema punitivo como parte integrante do
O sistema de
amplo sistema de controle social é evidente que conhecimentos e técnicas controle a partir da
de controle apesar das distintas origens e metodologias orientam-se para compreensão do
ou para fortalecer o sistema ou compreendê-lo e problematizá-lo. É nesta conjunto do sistema
última perspectiva que se pode visualizar o sistema de controle a partir normativo.
da compreensão do conjunto do sistema normativo.

Figura 2 – Sistema de Controle

Fonte: A autora.

O estudo e revisão do sistema social de controle, dentro do qual é necessário


individualizar a Criminologia, prescinde breve compreensão dos múltiplos
elementos, bem como as inter-relações desta complexa estrutura sócio-política.

29
Criminologia

Segundo a definição de Lola Anyar de Castro controle social


é definido como o conjunto de sistemas normativos (religião, ética,
costumes, usos, terapêutica e direito – este último entendido em
todos os seus ramos, na medida em que exercem esse controle
reprodutor, mas especialmente no campo penal; em seus conteúdos
e não-conteúdos) cujos portadores, através de processos seletivos
(estereotipia e criminalização) e estratégias de socialização (primária
e secundária ou substitutiva), estabelecem uma rede de contenções
que garantem a fidelidade (ou, no fracasso dela, a submissão)
A distinção entre das massas aos valores do sistema de dominação; o que, por
Direito Penal e
motivos inerentes aos potenciais tipos de conduta dissonante,
Sistema Penal
inicialmente pode se faz sobre destinatários sociais diferencialmente controlados
ser feita quando segundo a classe a que pertencem. ( CASTRO, 2005, p.53-55).
se compreende
o primeiro como
“conjunto de normas
jurídicas que
A distinção entre Direito Penal e Sistema Penal inicialmente pode
prevêem os crimes
e lhes cominam ser feita quando se compreende o primeiro como “conjunto de normas
sacões, bem como jurídicas que prevêem os crimes e lhes cominam sacões, bem como
disciplinam a disciplinam a incidência e validade de tais normas, a estrutura geral do
incidência e validade crime, e a aplicação e execução das sanções cominadas”. (BATISTA,
de tais normas, a 1990, p.24). Portanto, Direito Penal cuida de delimitar formalmente o
estrutura geral do
delito é entendido como parte da Ciência Jurídica (ciência do “dever
crime, e a aplicação
e execução das ser”), que tem como objeto a norma legal. Trata-se de um paradigma
sanções cominadas”. científico (Dogmática Jurídica- Penal), edificado na modernidade – no
(BATISTA, 1990, contexto europeu a partir do século XIV – que possui uma finalidade
p.24). essencialmente prática: função instrumental racionalizadora e
garantidora que se anuncia como capaz de limitar a violência e garantir
a segurança jurídica e social.
Portanto, a
Dogmática Penal
(fundamento e O Direito Penal, como parte da Dogmática, funciona como um
justificativa técnica sistema (teórico e conceitual) coerente, uniforme e previsível, que
racional do Direito aparentemente teria a capacidade de evitar a arbitrariedade do Estado
Penal) serve de contra o cidadão, garantindo a segurança jurídica (elemento essencial
instrumento punitivo,
do discurso justificador do Direito Moderno).
que divorciado
da Criminologia
transforma-se num É neste sentido que a Dogmática Penal constrói uma legitimidade
mero decisionismo técnica racional para imputar a responsabilidade penal; ou seja, possui
arrogante despojado o condão de “vincular as decisões à lei e à conduta do autor de um
de vínculo com a fato-crime, objetiva e subjetivamente considerada em relação a este
realidade.
o exorcizar, por esta via, a submissão do imputado à arbitrariedade

30
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

judicial”. (ANDRADE, 1997, p.27). Portanto, a Dogmática Penal


A ação orientada
(fundamento e justificativa técnica racional do Direito Penal) serve de e sucessiva
instrumento punitivo, que divorciado da Criminologia transforma-se num das distintas
mero decisionismo arrogante despojado de vínculo com a realidade. instituições (desde
a Polícia Judiciária
Entretanto, o Direito Penal exerce sua função de controle através com função
investigativa até o
de um subconjunto de normas articuladas institucionalmente: Direito
“estabelecimento”
Processual Penal, Organização Judiciária, Execução Penal, etc. A prisional), cada
ação orientada e sucessiva das distintas instituições (desde a Polícia qual obedecendo
Judiciária com função investigativa até o “estabelecimento” prisional), a limites e funções
cada qual obedecendo a limites e funções previamente definidas previamente
(legislações específicas) compõem o Sistema Penal. Trata-se de uma definidas
(legislações
institucionalização do controle punitivo.
específicas)
compõem o
Chama a atenção Juarez Cirino dos Santos que o Sistema Penal, Sistema Penal.
constituído por três aparelhos – policial, judicial e prisional – operando
nos limites das matrizes legais, pretende afirmar-se e manter-se como
sistema garantidor de um ordem social justa, mas o cotidiano de seu desempenho
real contradiz este discurso aparentemente justificador. (SANTOS, 1981).

Somente analisando brevemente as rebeliões ocorridas nos presídios do


Estado de São Paulo em 2006 (“Salve Geral”) e simultaneamente os ataques
comandados por facções criminosas (PCC), é inegável a fragilidade e ineficiência
do Sistema Penal que contabilizou apenas neste episódio um saldo de 152 mortos.

Segundo o Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção


do Delito e Tratamento do Delinqüente (IIanud) 70% dos detentos reincidem.
Sem dúvida, o Sistema internamente violenta e despersonifica, e externamente
(representado pelos demais mecanismos sociais de controle) exclui e estigmatiza
produzindo um perverso e interminável ciclo.

No entender de Zaffaroni (1991, p. 26) o sistema penal É:


O Sistema,
afirma Zaffaroni,
um verdadeiro embuste: pretende dispor de um
poder que não possui; ocultando o verdadeiro
é violentador em
poder que exerce. Além do mais, se o sistema diversos níveis em
penal tivesse o poder criminalizante programado, que opera.
provocaria uma catástrofe social”.

O sistema é seletivo, naturalmente dirigido contra os mais vulneráveis (função


exercida pelo Direito Penal que trata de tipificar condutas e impor penas), e para
tanto conta com o legislativo que inflaciona as tipificações sob o pretexto de maior
eficiência no controle.

31
Criminologia

O Sistema, afirma Zaffaroni, é violentador em diversos níveis em que opera.


Basta lembrar o violento exercício do poder à margem de qualquer legalidade:
violação de Direitos Fundamentais e Humanos, seqüestros, torturas, corrupção
cometida pelas agências executivas do Sistema Penal ou seus agentes.

E conclui (1991, p.29):

• A legalidade não proporciona a legitimidade, por ficar pendente de um vazio


que só a ficção pode preencher;
• O principal e mais importante exercício de poder do sistema penal se realiza
dentro de um modelo de arbitrariedade concedida pela própria lei;
• O exercício de poder menos importante do sistema penal serve de pretexto
para o exercício de poder principal, não respeitando também, e nem podendo
respeitar, a legalidade;
• Além de o exercício de poder do sistema penal não respeitar, nem poder
respeitar a legalidade, na operacionalidade social de nossos sistemas penais, a
legalidade é violada de forma aberta e extrema, pelo altíssimo número de fatos
violentos e de corrupção praticados pelos próprios órgãos do sistema penal.

Não há como desprezar esta realidade e nos mantermos presos a


idealidade do discurso normativo, ignorando a trama que envolve as instituições
e disfuncionalidades do Sistema Penal, ou seja, sem a Criminologia tomar como
objeto de estudo o Sistema e suas conseqüências corre-se o sério risco de
distorção e descompromisso moral.

Ainda, se a Criminologia reúne saberes acerca da realidade


O papel de dar
operacionalidade criminal o papel de dar operacionalidade às informações e estudos
às informações e cabe à Política Criminal, transformando saberes em estratégias e
estudos cabe à ações concretas através do legislador e agentes do poder público. O
Política Criminal. Direito Penal convertendo, ou devendo converter, o saber criminológico
em proposições jurídicas (“dever ser”), tem na Política Criminal o elo
(ponte estratégica) com a Criminologia.

• Corresponde à Política Criminal transformar essa informação sobre a


realidade criminal, de base empírica, em opções, alternativas e programas
científicos, a partir de uma ótica valorativa (momento decisivo): é a ponte
entre a experiência empírica e as decisões normativas.
• O Direito Penal concretiza as opções previamente adotadas (a oferta político-
criminal de base criminológica) em forma de norma ou proposições jurídicas
gerais e obrigatórias (momento instrumental operativo). (MOLINA; GOMES,
1997, p.127).

32
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

Portanto, se a Criminologia possui a função e capacidade de


Se a Criminologia
compreender a realidade criminal, a Política Criminal possui a de possui a função
modificá-la. e capacidade de
compreender a
Os princípios e indicações para a redefinição da legislação penal realidade criminal,
e seus órgãos de aplicação são estabelecidos pela Política Criminal. a Política Criminal
possui a de
O campo da Política Criminal não é o de tão somente de cuidar do
modificá-la.
criminoso (como lembra Nilo Batista, uma espécie de “prima pobre”
da Política Social), reformadora e com pequena dose de humanismo,
mas deve propor e coordenar ações públicas de transformação em direção a
um sociedade efetivamente justa, contraindo ao máximo o sistema punitivo e
ampliando ao máximo os sistemas sócio políticos de garantias e cidadania, como
sugere Alessandro Baratta:

A função natural do sistema penal é conservar e reproduzir a


realidade social existente. Uma política de transformação desta
realidade, uma estratégia alternativa baseada na afirmação
de valores e de garantias constitucionais, um projeto político
alternativo e autônomo dos setores populares, não pode,
todavia, considerar o direito penal como um frente avançada,
como um instrumento propulsor. Pelo contrário, o direito penal
fica, em um tríplice sentido reduzido a uma atitude de defesa.
[...]
De todas as formas, a idéia reguladora de uma política criminal
alternativa implica na superação do sistema penal. (BARATTA,
1999, p. 221-222).

Neste sentido, uma profunda reforma no processo e organização do


Sistema Punitivo Institucional, lembra o sociólogo italiano, deve ser travada
como uma batalha ideológica e cultural em favor de uma consciência acerca das
condutas criminosas (ou incriminadas) tendo na Criminologia o instrumento de
orientação e reorientação.

Sugere-se assistir ao Filme: “Salve Geral – O dia em que São


Paulo parou”, do cineasta Sérgio Rezende, buscando identificar os
elementos que compõem o Sistema Punitivo bem como seus limites
e disfuncionalidades estruturais.

Ainda é indicado o Filme: “Abril Despedaçado” de Walter


Salles, buscando compreender como o trabalho coloca à mostra
a existência precária do poder estatal (a estória se desenvolve no
sertão) o que “autoriza” a existência de uma “justiça local” e suas
conseqüências.

33
Criminologia

No dia 11 de abril (sexta-feira) de 2011 era noticiado:

RIO ENTERRA CRIANÇAS MORTAS


NO MASSACRE DE REALENGO

As vítimas do assassino que nesta quinta-feira matou 12


crianças e adolescentes em uma escola em Realengo, no Rio de
Janeiro, antes de se suicidar, foram enterradas nesta sexta-feira, em
meio à angústia e indignação de um país que procura entender o que
motivou esse ataque sem precedentes.

Uma multidão se reuniu no cemitério de Morundu, próximo


a Realengo, subúrbio do oeste de Rio onde se localiza a escola
primária em que ocorreu a tragédia.

Um helicóptero da Polícia Militar do Rio jogou pétalas de rosas


sobre o cemitério e as pessoas presentes aos enterros olharam para
o ar surpreendidas e emocionadas.

“Por que ela, por que ela?”, gritava, desconsolada, uma avó que
enterrava sua neta, enquanto algumas pessoas a seguravam para
que não caísse.

Dez meninas e dois meninos perderam a vida quando Wellington


Menezes de Oliveira, de 23 anos, que era um ex-aluno da instituição,
invadiu o colégio e disparou contra eles. Outros 11 crianças
permanecem hospitalizados em diferentes hospitais e alguns estão
em estado grave.

O ataque ocorreu na manhã de quinta-feira, na hora da entrada


dos estudantes da escola primária municipal Tasso da Silveira, que
permanecerá fechada por uma semana. Na medida em que as horas
passavam, começaram a ser divulgados detalhes do ataque e do
jovem agressor.

Dois vídeos - um do circuito interno de câmeras da escola e


outro de uma testemunha que publicou no site YouTube - mostram
cenas de pânico nas quais os adolescentes tentam escapar do
atirador, correndo desesperados pelos corredores da escola e saindo
ensanguentados do local.

34
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

O homem fez ao menos 60 disparos contra os menores,


principalmente no rosto e no peito, com duas pistolas que foram
apresentadas pela polícia. “Segundo testemunhas, ele usava duas
pistolas ao mesmo tempo”, disse o diretor da divisão de homicídios,
Felipe Ettore.

Onze dos estudantes morreram no local e outro horas mais


tarde em um hospital.

O papa Bento XVI enviou uma mensagem de solidariedade


às famílias das crianças assassinadas, na qual disse estar
“profundamente desolado por esse dramático atentado realizado
contra crianças indefesas” e expressa “sua solidariedade e seu apoio
espiritual às famílias”.

Ex-companheiros de trabalho descreveram Wellington como


uma pessoa calada e sem amigos, ao mesmo tempo em que seus
ex-colegas de escola recordaram que ele era vítima de bullying e era
desdenhado pelas meninas do grupo.

“Sinceramente, não sei por que ele fez isso”, declarou Bruno
Linhares, de 23 anos, ex-colega de turma.

O coronel Evandro Bezerra, relações públicas do Corpo de


Bombeiros, disse que Wellington cometeu um ato premeditado. “Ele
veio à escola preparado para fazer isso”, declarou.

Uma carta com uma mensagem incoerente, cheia de mensagens


religiosas e que a polícia encontrou entre suas roupas, parece
confirmar isso.

“Deverão saber que os impuros não poderão me tocar sem


luvas, apenas os castos ou os que perderam suas castidades depois
do casamento e não se envolveram em adultério poderão me tocar
sem luvas”, disse o texto.

A polícia está investigando a origem das armas utilizadas pelo


atacante, que conseguiu carregá-las diversas vezes antes de ser
baleado por um policial e se suicidar.

Fonte: SCORZA, Antonio. Rio enterra crianças mortas no massacre de


Realengo. Yahoo! Notícias, Rio de Janeiro, 8 abr. 2011. Disponível em:
<http://br.noticias.yahoo.com/rio-enterra-crian%C3%A7as-mortas-massacre-
realengo-20110408-161943-297.html>. Acesso em: 16 set. 2011.

35
Criminologia

Algumas Considerações
O texto acima nos remete a dramática experiência do episódio que acabou
conhecido como o “Massacre do Realengo”, ocorrido em abril de 2011. O fato
evidenciou que estamos a viver uma multiplicidade de espaços de violência –
criminalizados ou não – que nos obriga a convivência cotidiana como o medo.

Portanto, o tempo presente é marcado pela presença de um medo constante.


Um medo difuso alimentado pelos alarmantes índices de crescimento da
violência. Violência Doméstica. Violência Escolar. Violência Urbana. Violência
Institucionalizada...

Neste cenário somos instigados a pensar: como compreender este


fenômeno? A violência está relacionada como a questão da criminalidade? Afinal,
é possível construir um conhecimento que possibilite a descrição, explicação e
prevenção da violência e sua face visível o crime? O Direito Penal decididamente
não é suficiente para o controle e superação da insuportável presença do crime
em nosso dia-a-dia. O Sistema Punitivo como um todo anuncia seu esgotamento.

Restaria ainda algo a ser estudado como forma de encontrar novas


possibilidades de convivência democrática e segura?

Em meio a tais preocupações é que ganha relevância o estudo da


Criminologia.

Definida como um saber interdisciplinar e metodologicamente crítico, mais


do que tão somente conhecimento causal-explicativo acerca da questão criminal
aponta novos rumos para a Política Criminal.

Entretanto, ainda resta em aberto o reconhecimento do saber criminológico


além de mero “apêndice” da dogmática penal e direito penal identificando outros
campos de saber e práticas que instrumentalize o profissional do Direito para uma
atuação efetiva e responsável.

Referências
ANDRADE, Vera Regina de. A Ilusão da Segurança Jurídica: do controle da
violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal:


introdução à sociologia do direito penal. Tradução e Prefácio de Juarez Cirino dos
Santos. 3ª Ed., Rio de Janeiro: Revan, 1999.

36
Capítulo 1 Criminologia(s): Delimitação Conceitual

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro:


Revan, 1990.

BRASIL. Blog do Planalto. “Mapa da Violência 2011” aponta causas de


homicídios entre jovens no Brasil Disponível em: <http://blog.planalto.gov.br/
mapa-da-violencia-2011-aponta-causas-de-homicidios-entre-jovens-no-brasil/>.
Acesso em: 24 ago. 2011a.

BRASIL. Ministério da Justiça do Brasil. Disponível em: <www.mj.gov.br>. Acesso


em: 15 jul. 2011.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen


Juris, 2007.

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Revan,


2005.

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Reação Social. Rio de Janeiro: Ed.
Forense, 1983.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical.Rio de Janeiro:


Forense, 1981.

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de


Janeiro:Imago, 1976.

MOLINA, Antonio García-Pablos de. Tratado de Criminologia. 2 ed., Valência:


Tirant lo Blanch, 1999.

MOLINA, Antonio García-Pablos; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: Introdução


a seus fundamentos teóricos. 2 ed. São Paulo: RT, 1997.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2011. Os Jovens do Brasil.


Brasília, Ministério da Justiça, Instituto Sangari, 2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de


legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia romano Pedrosa e Amir Lopes
da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

37
Criminologia

38
C APÍTULO 2
A Construção do Pensamento
Criminológico Moderno:
Funções, Dimensões e Teorias

A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Compreender o paradigma criminológico dominante como produto sócio-


cultural da modernidade.

99 Diferenciar os distintos discursos históricos criminológicos europeus e sua


expansão no pensamento científico moderno.

99 Identificar as funções das teorias criminológicas modernas, seus postulados e


legados para a dogmática penal contemporânea.
Criminologia

40
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

Contextualização Somente na
segunda metade
do século XIX,
Embora a “questão criminal” tenha sido uma permanente
com a publicação
inquietação intelectual, social e política para as distintas civilizações da obra L´ Uomo
ao longo da história, sendo elaboradas concepções, representações e Delinqüente em
tentativas de respostas, o certo é que enquanto saber científico, isto 1876 por Cesare
é, construído a partir de rigor metodológico e base empírica, é uma Lombroso (1835-
criação recente. 1909), é que
academicamente
o termo
Somente na segunda metade do século XIX, com a publicação da “Criminologia”
obra L´ Uomo Delinqüente em 1876 por Cesare Lombroso (1835-1909), passa a ser
é que academicamente o termo “Criminologia” passa a ser utilizado utilizado para
para designar um conhecimento pretende compreender o fenômeno do designar um
delito a partir de uma lógica causal explicativa segundo critérios válidos, conhecimento
pretende
ou seja, como Ciência.
compreender
o fenômeno do
Os nomes relacionados à generalização da Criminologia, delito a partir de
principalmente os de Enrico Ferri (1856-1929) e Raffaele Garófalo uma lógica causal
(1852-1934), além de Lombroso, e suas concepções teóricas, são explicativa segundo
vinculados a denominada Escola Positiva (Scuola Positiva) Italiana, critérios válidos, ou
seja, como Ciência.
cujos estudos representam um importante marco na construção do
pensamento criminológico atual, aquele que, definitivamente, buscou
superar as concepções e representações elaboradas a partir das Escola Positiva
experiências cotidianas e/ou do senso comum. (Scuola Positiva)
Italiana, cujos
Em síntese, o que atualmente chamamos de “Criminologia” é um estudos
representam um
produto científico moderno partilhado e reproduzido como confiável e
importante marco
válido, e paulatinamente firmado como disciplina autônoma. na construção
do pensamento
Resgatando e refletindo acerca do processo histórico de elaboração criminológico atual.
da “Ciência”, e em particular a criminológica moderna, não é difícil
perceber que “Ciência” pode ser definida como um modelo partilhado
consensualmente por uma comunidade cujos membros se identificam e Em síntese, o
que atualmente
se comprometem com os procedimentos de pesquisa, conceitos, regras
chamamos de
e linguagem cuja finalidade é resolver problemas e exteriorizar soluções “Criminologia” é um
segundo pressupostos e finalidades socialmente definidos. produto científico
moderno partilhado
É sob tal perspectiva que se vai a seguir compreender a e reproduzido como
Criminologia, indagando-se: quais os pressupostos teóricos, técnicos confiável e válido,
e paulatinamente
e sociais que orientaram tal saber? Qual sua(s) finalidade(s)? Qual(is)
firmado como
seu(s) discurso(s) legitimadores? disciplina
autônoma.

41
Criminologia

Os Antecedentes da Criminologia:
o Racismo e a Fisiognomia
Ainda que se reconheça que as origens do racismo sejam anteriores, a
exemplo do colonialismo europeu do século XV, apenas no século XIX é que toma
ares de afirmação científica a concepção de inferioridade física e moral dos que
não pertenciam à civilização européia.

Neste mesmo século houve o grande debate acerca da origem do homem


com a publicação da obra de Charles Darwin (1809-1882) A origem das espécies
em 1859 e A ascendência do homem em 1871, sendo nesta última afirmada a
existência de uma hierarquia de raças. Fazendo frente a esta teoria o criacionismo
religioso na época discutia se a humanidade se originava de Adão e Eva ou se
haveria alguma diferente para os distintos povos, já que a Bíblia apenas fazia
menção ao homem branco.

Não faltavam os que afirmavam que haviam seres humanos que pertenciam
a diferentes espécies e que, a princípio, não poderiam “cruzarem-se” entre si,
porque esta hibridação certamente produziria uma raça degenerada, como se
poderia verificar na América Latina.

Em suma, o saber “científico” da época se esforçava em demonstrar que os


não europeus brancos estavam fora do conceito de humanidade e não haveria
por que não tratá-los como animais.

Em meio a estas discussões “científicas” ganha destaque o nome do


médico Franz Joseph Gall (1758-1828) que daria início ao estudo da frenologia
e chegou a “comprovação” da superioridade da “raça branca” a qual pertencia a
burguesia européia.

Gall “mapeou” um total de 27 faculdades nos crânios dos europeus e concluiu


que segundo o tamanho e o desenvolvimento de determinada parte do cérebro era
possível identificar o caráter predominante de cada sujeito (CALDAS, 1999, p.53).

Os frenólogos se interessavam particularmente pelos crânios dos criminosos,


pois neles as faculdades se revelavam de forma extrema e através da autópsia
nos condenados haveria a possibilidade de demonstração das hipóteses por eles
defendidas. Ao mesmo tempo também se comprovaria cientificamente que há uma
desigualdade natural entre os brancos e não brancos, o que, nesta perspectiva,
explicaria o avanço civilizatório europeu e a necessidade de medidas médico-
científicas para controlar os mestiços, negros e índios.

42
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

Gall defendeu que bastariam os métodos “craniológicos’ para identificar


os criminosos incorrigíveis cabendo a legislação penal e a justiça utilizarem tão
somente os critérios técnicos frenológicos para prevenir os delitos e proteger a
sociedade (CALDAS, 1999, p. 80 e segs)..

As “verdades fisiológicas e racistas” serviram para a manutenção da


exploração de seres humanos, sobretudo nas colônias americanas e para
proliferação de charlatismos de toda espécie. No século XIX não faltavam
“especialistas” em cabeças que “adivinhavam” as características da personalidade
das pessoas pelo aspecto físico.

Como será adiante considerado, não tardou para que Lombroso e Ferri
reinventassem estas ideias e inclusive utilizassem termos frenológicos em suas
teorias, tais como “delinqüente ocasional” e “réu por sugestão”. Os próprios
seguidores de Gall afirmavam a existência do “criminoso nato”, uma vítima de
conformação defeituosa de cérebro e crânio e por isso facilmente reconhecido.

O texto apresentado na sequênciaé uma breve referência


das ideias de Gall. Ideias que ainda no século XXI despertam
curiosidades e povoam imaginário de muitos e que serviram como
“ponto de partida” para a ciência criminal moderna.

FRENOLOGIA: A HISTÓRIA DA LOCALIZAÇÃO CEREBRAL

Renato M.E. Sabbatini, PhD

Atualmente, até mesmo um


estudante de escola secundária menos
informado sabe que muitas funções
do cérebro são desempenhadas por
determinadas estruturas e não por
outras. Por exemplo, a parte externa do
cérebro, chamada córtex, tem regiões
que são responsáveis por diferentes
funções, tais como a percepção da
visão, o controle do movimento e da
fala, assim como as faculdades mentais superiores (cognição,
visão, planejamento, raciocínio, etc). Esta doutrina, que tem sido
comprovada muitas vezes na era moderna por equipamentos,
apoiados por computadores, que possibilitam a visualização precisa
de uma determinada função quando ela está sendo realizada pelo

43
Criminologia

cérebro, é chamada de localizacionismo cerebral. Mas isto não


era assim nos anos finais do século XVIII, o século do iluminismo.
O conhecimento a respeito do cérebro era pequeno e dominado
por especulações não científicas. A experimentação objetiva com
animais ainda era rara e um dos mais poderosos métodos para
inferir a função cerebral que é a observação de pessoas com danos
neurológicos devido a lesões localizadas do cérebro, tais como
tumores, ainda estava em seus estágios iniciais.

A fonte principal de conhecimento sobre o cérebro eram as


dissecções feitas em cadáveres de animais e seres humanos. A
localização da função no cérebro podia somente ser imaginada a
partir do fato de que existiam muitas estruturas anatômicas de formato
diferente, de modo que talvez elas pudessem ser responsáveis por
diferentes faculdades mentais.

Em meio a este cenário desencorajador, surge o médico


austríaco Franz Joseph Gall (1758-1828), que foi o pioneiro da noção
de que diferentes funções mentais são realmente localizadas em
diferentes partes do cérebro.

Isto aconteceu há exatamente 200 anos atrás, em 1796. Como


nós veremos, ele estava certo nesta noção, mas totalmente errado
na maneira como isso é conseguido pelo cérebro. Como resultado,
ele produziu a frenologia (de phrenos = mente e logos = estudo),
a primeira teoria completa de localizacionismo cerebral. Esta foi
certamente uma grande vitória. Entretanto a frenologia mais tarde foi
descartada e punida pelo estabelecimento científico como uma forma
crua de charlatanismo e pseudociência, mas a sua importância histórica
permanece, e esta é a razão para o presente artigo.

A Teoria por trás da Frenologia

Gall, em seu notável trabalho “A


anatomia e Fisiologia do Sistema Nervoso
em Geral e do Cérebro em Particular”,
colocou os princípios no qual ele baseava
a sua doutrina de frenologia.

Primeiro, ele acreditava que


as faculdades morais e intelectuais
do homem são inatas e que sua
manifestação depende da organização do cérebro, o qual ele

44
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

considerava ser o órgão responsável por todas as propensões,


sentimento e faculdades.

Segundo, Gall propôs que o cérebro é composto de muitos


sub-órgãos particulares, cada um deles relacionado ou responsável
por uma determinada faculdade mental. Ele propôs também que o
desenvolvimento relativo das faculdades mentais em um indivíduo
levaria a um crescimento ou desenvolvimento maior de sub-órgãos
responsáveis por eles.

Finalmente, Gall propôs que a forma externa do crânio reflete a


forma interna do cérebro e que o desenvolvimento relativo de seus
órgãos causa mudanças na forma do crânio, que então, poderia ser
usadas para diagnosticar faculdades mentais particulares de um
dado indivíduo, ao se fazer a análise adequada.

De fato, a teoria de Gall foi construída ao revés do que


afirmamos acima. Ele primeiro realizou observações numerosas
e cuidadosas e fez muitas medidas experimentais em crânios
de seus parentes, amigos e estudantes. Posteriormente, com a
ajuda de seus associados, ele fez a mesma coisa com muitas
pessoas com diferentes caracteristicas de personalidade. Gall
pensava que ele conseguia correlacionar certas faculdades mentais
particulares a elevações e depressões na superfície do crânio,
suas formas exteriores e dimensões relativas. Ele ponderou então,
sobre a possibilidade de que essas marcas externas poderiam
ser causadas pelo crescimento de estruturas cerebrais internas e
que este crescimento estaria relacionado ao desenvolvimento de
faculdades mentais associadas. Assim, ele conseguiu produzir uma
teoria completa e extensa para apoiar o seu trabalho e para usá-lo
para aplicações práticas nas ciências mentais, por meio de mapas
topológicos detalhados.

O colaborador mais importante de Gall foi Johann Spurzheim


(1776-1832), que mais tarde o ajudou a ampliar o assim chamado
modelo frenológico e disseminá-lo na Europa e EUA.

Fonte: SABBATINI, R. M. E. Frenologia: A História da Localização


Cerebral. Disponível em: <http://www.cerebromente.org.br/n01/
frenolog/frenologia_port.htm>. Acesso em: 28 out. 2011.

45
Criminologia

A Racionalidade Científica Moderna


“Modernidade” é a designação genérica de um complexo conjunto
“Modernidade”
é a designação de transformações ocorridas a partir dos séculos XIV e XV que acabou
genérica de um por transformar o modo de vida de então e suas formas tradicionais de
complexo conjunto racionalização.
de transformações
ocorridas a partir Naquele momento histórico, a realidade parecia se transformar
dos séculos XIV e num ritmo alucinante.
XV que acabou por
transformar o modo
de vida de então Copérnico no século XVI, com a teoria heliocêntrica e a órbita
e suas formas planetária, havia iniciado um movimento antidogmático seguido por Tycho
tradicionais de Brahe, Kepler e Galileu, entre outros, que viria a abalar o princípio de
racionalização. autoridade, até então, base do poder papal. Isaac Newton no século XVII
dá um passo definitivo para a criação de uma teoria geral da dinâmica.
Em meados do mesmo século Huygens elaborou a teoria ondulatória
da luz. Em 1628 são publicadas as descobertas de Harvey sobre a circulação do
sangue. Robert Boyle em 1661 supera definitivamente os alquimistas no campo
da química e retoma a teoria dos átomos de Demócrito. Giordano Bruno em 1660
é queimado na fogueira por divulgar a teoria heliocêntrica e por suas convicções
teológicas serem consideradas heréticas. Acreditava que a Sagrada Escritura
deveria ser obedecia como ensinamento moral e não como astronômico.

A revolução da ciência abria possibilidade para a certeza epistemológica


e consenso objetivo e, ao mesmo tempo, a lógica da previsão experimental e
metodológica científica ia assumindo-se como redentora social, e assim, o mundo
ia se tornando secular e mutante.

O modelo de Com a teoria darwiniana demonstrava-se que a transformação


racionalidade era o estado permanente da natureza lutando para o desenvolvimento
que foi sendo e supremacia dos mais fortes e não fruto benevolente de um plano
construída desde transcendental. E assim, a ciência ia tornando a realidade neutra.
o Renascimento
chega ao auge no
século XIX quando De forma definitiva eram rompidos os vínculos com o passado
adquire o status medieval e inaugurada uma era em moldes absolutamente novos
de modelo global anunciando o alvorecer de um progresso humano infinito.
de racionalidade
científica que se O modelo de racionalidade que foi sendo construída desde o
alastrando para os Renascimento chega ao auge no século XIX quando adquire o status
diversos campos do
de modelo global de racionalidade científica que se alastrando para os
conhecimento. Tal
modelo é melhor diversos campos do conhecimento. Tal modelo é melhor representado
representado pelo pelo positivismo.
positivismo

46
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

A palavra positivismo foi empregada pela primeira vez pelo


filósofo francês Claude Saint-Simon (1760-1825) para designar
o método exato das ciências e a possibilidade de sua extensão à
filosofia. Mais tarde Auguste Comte (1798-1857) utilizou a expressão
para designar a sua filosofia, que teve grande expressão no mundo
ocidental durante a segunda metade do século 19 (estendendo-se no
Brasil à primeira metade do século 20).

A característica essencial ao positivismo, tal qual o concebeu Comte, é a


devoção à ciência, vista como único guia da vida individual e social, única moral e
única religião possível.

A obra fundamental de Comte é o livro “Curso de Filosofia Positiva”, escrito


entre 1830 e 1842, a partir de 60 aulas dadas publicamente pelo filósofo, a partir
de 1826. É na primeira delas que Comte formulou a “lei dos três estados” da
evolução humana:

• estado teológico, em que a humanidade vê o mundo e se organiza a partir dos


mitos e das crenças religiosas;
• estado metafísico, baseado na descrença em um Deus todo-poderoso, mas
também em conhecimentos sem fundamentação científica;
• estado positivo, marcado pelo triunfo da ciência, que seria capaz de
compreender toda e qualquer manifestação natural e humana.

O positivismo se caracteriza pela crença que somente é válido e confiável


o conhecimento acerca dos fatos observados e estudados através do método
próprio das ciências experimentais (observação, quantificação e experimentação),
pressupõe que o espírito e os métodos científicos experimentais devem se estender-
se a todos os domínios da vida intelectual, política e moral.

A Criminologia Positivista
A etapa científica
Como já considerado, a etapa científica criminológica tem início no
criminológica tem
século XIX com o chamado positivismo criminológico caracterizado por início no século XIX
um conjunto de teorias criminais (discursos legitimadores) inspiradas na com o chamado
filosofia positivista de matriz comtiana que possuíam como preocupação positivismo
o estudo do delinqüente - suas características físicas, morfologia e criminológico.

47
Criminologia

peculiaridades psicológicas – objetivando formular teorias patológicas acerca da


criminalidade, teorias estas elaboradas a partir de rigor metodológico e de certo
grau de generalização.

Por outras palavras, em sua origem a Criminologia possui a


A etapa científica função de conhecer, individualizar e descrever as causas (fatores)
criminológica tem
que determinam o comportamento criminoso a fim de combatê-lo com
início no século XIX
com o chamado ações práticas com o objetivo de modificar o delinquente.
positivismo
criminológico. Pode-se afirmar que o modelo positivista da Criminologia constitui
um paradigma (modelo partilhado e reproduzido pela comunidade
científica) etiológico (aitía – “causa” + logos - “capacidade de
racionalização”), que “estuda as causas ou dos fatores da criminalidade para
individualizar as medidas adequadas a fim de removê-los e para tanto, agindo
diretamente no sujeito criminoso com o propósito essencialmente correcionista”
(BARATTA, 2002, p. 30).

O paradigma criminológico positivista, de forma bastante sintética, pode ser


compreendido como distintos discursos acerca do “homem delinqüente”, porém em
todos eles o criminoso é considerado um ser diferenciado dos demais “normais”.

Estas inovadoras justificativas científicas para a “anormalidade” criminal


criadas em fins do século XIX foram indiferentes em relação às forças políticas e
sociais às quais os indivíduos estão sujeitos, relativizando-as ao elegerem como
objeto o comportamento individual, singular e desviado cuja causa explicativa é
assentada tão somente em uma base patológica.

Lançando um breve olhar no pensamento dominante no século XIX é


evidente a influência racista nos postulados do positivismo criminológico.

De acordo com as construções teóricas da época quando se rotulava alguém


como diferente também se estava a afirmar que não era vítima de possessão
demoníaca, era pior: um ser inferior.

Vale assinalar, contudo, a novidade dessa construção, as


inumeráveis continuidades que existem entre seres “inferiores”
– negros, doentes mentais, e, para a criminologia, delinqüentes
– a aqueles que, durante o Antigo Regime, eram destacados
pela possessão demoníaca. (ANITUA, 2008, p. 297-298).

As idéias criminais positivistas descreveram o “novo” diante das velhas


teorias morais e/ou religiosas para as quais o livre arbítrio era um elemento
secundário. Nesta inédita perspectiva o “mal” finalmente tornara-se visível.

48
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

Os Discursos Positivistas
Modernos: As Escolas Criminais
A etapa positivista da Criminologia, comprometida claramente A etapa positivista
com a concepção científica moderna, representa um grande esforço da Criminologia,
de superação das teorias criminais anteriores que, desde fins da comprometida
Idade Média, vinham buscando legitimar racional e cientificamente o claramente com
direito de punir. a concepção
científica moderna,
representa um
A tradição inquisitorial, sustentada por mentes paranóicas e
grande esforço
policialescas e alimentada durante séculos pelo signo da intolerância, de superação das
tem seu início no século XII com os Concílios de Verona (1184) e de teorias criminais
Latrão (1215) e apenas no século XIX os procedimentos inquisitoriais anteriores que,
foram erradicados. Portanto, foram 700 anos de brutalidade em nome desde fins da
da salvação. Idade Média,
vinham buscando
legitimar racional
Os Tribunais do Santo Ofício apenas são abolidos por último em
e cientificamente o
Portugal (1821) e na Espanha (1834) quando uma elite intelectual e direito de punir.
científica desconstrói as verdades eclesiásticas. Com a recepção do
discurso médico de negativa da causalidade demoníaca em inúmeros
diagnósticos de enfermidade, o saber jurídico passará a desconfiar Elite intelectual
da generalização das imputações do crime de heresia, impulsionando e científica
movimento de ruptura com o sistema penal do medievo. (CARVALHO, desconstrói
2011, p. 71). as verdades
eclesiásticas.

Na Europa, em geral, as possessão demoníaca tipificadas no


Malleus Maleficarum – texto escrito pelos inquisitores Kramer e Sprenger em
1484 que serviu como manual prático punitivo – a partir do século XVII cada
vez mais eram revistas e consideradas enfermidades. Robert Mandrou na obra
Magistrados e Feticeiras na França do Século XVII narra inúmeros casos em que
há uma transferência do controle punitivo-inquisitorial para o médico à exemplo do
caso tratado diretamente pelo médico de Henrique III, Pierre Pigray e descrito em
seu livro Repertório Universal de Jurisprudência do século XVIII no capítulo das
Enfermidades onde há paixão de espírito:

O Parlamento de Paris reunido em Tours, em 1589,


requer que Pigray e de três médicos de Henrique III (Leroi,
Falaiseau e Renard) que examinem quatorze homens
condenados por feitiçaria que apresentam recurso diante
dele. Os quatro médicos não reconheceram senão pobres
miseráveis “depravados em sua imaginação” que nem mesmo
apresentam as “marcas” de insensibilidade assinaladas pelos
juízes da primeira instância, e concluem pela absolvição (com
o que a corte concorda). “Nosso conselho foi de antes dar-lhes

49
Criminologia

o heléboro para purgá-los de que outro remédio para puni-los”


(MANDROU, 1979, p. 132).

Assim, paulatinamente entram em declínio as persecuções penais


pelo crime de heresia, apesar de permanecer vivo por décadas o
Com o
florescimento do doente fascínio pela “caça” às bruxas e aos hereges.
humanismo, do
racionalismo e força Com o florescimento do humanismo, do racionalismo e força o
o ideário iluminista, ideário iluminista, a identificação de crime com pecado e de criminoso
a identificação de com pecador tornou-se constrangedora e intolerável fazendo com que
crime com pecado
a convivência com generalizados castigos e indiscriminadas torturas
e de criminoso com
levasse mentes mais bem esclarecidas a rever os conceitos de
pecador tornou-se
constrangedora penalização e sua finalidade.
e intolerável
fazendo com que Neste cenário, vão convergindo saberes, métodos e convicções
a convivência com que irão compor o paradigma criminológico moderno composto por
generalizados discursos legitimadores que irão se autodenominar como Escolas
castigos e
Criminais, cada qual discutindo o fundamento político e jurídico do
indiscriminadas
direito de punir, a natureza do delito e a finalidade da pena.
torturas levasse
mentes mais bem
esclarecidas a
rever os conceitos a) Escola Clássica
de penalização e
sua finalidade. Em fins do século XVIII reafirmando os princípios humanistas e
racionalistas do moderno liberalismo ganha relevância o pensamento de
juspenalistas e filósofos que viam o Estado Liberal, em contraposição ao
Neste sentido, por Estado Absolutista vigente, como único ente legítimo a deter o monopólio
“Escola Clássica”
do direito de punir.
se compreende
o pensamento
criminológico e A expressão “Escola Clássica” foi cunhada pelo sociólogo
penal liberal que criminal Enrico Ferri e adotada pelos positivistas no século XIX com
antecede a “Escola sentido pejorativo, querendo qualificar seus precursores como antigos
Positivista”. e ultrapassados. Neste sentido, por “Escola Clássica” se compreende
o pensamento criminológico e penal liberal que antecede a “Escola
Positivista”.
Na esteira deste
pensamento, o
Na perspectiva criminológica liberal o livre arbítrio é considerado
crime é entendido
um verdadeiro dogma já que o criminoso, indivíduo dotado de vontade
como ato de
vontade e a pena livre e consciente (dotado pela capacidade de optar), escolhe delinqüir.
um mal justo que se Portanto, a ação criminosa é imoral, já que o indivíduo podendo
contrapõe a um mal escolher elege infringir a lei do Estado.
injusto de caráter
essencialmente Na esteira deste pensamento, o crime é entendido como ato de
retributivo. vontade e a pena um mal justo que se contrapõe a um mal injusto de
caráter essencialmente retributivo.
50
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

Baratta, (2002), assim sintetiza o pensamento da Escola Liberal:

Como comportamento, o delito surgia da livre vontade do


indivíduo, não de causa patológicas, e por isso, do ponto de
vista da liberdade e da responsabilidade moral pelas próprias
ações, o delinqüente não era diferente, segundo a Escola
clássica, do indivíduo moral. Em conseqüência, o direito
penal e a pena eram considerados pela Escola clássica não
tanto como meio para intervir sobre o sujeito delinqüente,
modificando-o, mas sobretudo como instrumento legal
para defender a sociedade do crime, criando, onde fosse
necessário, um dissuasivo, ou seja, uma contramotivação
em face do crime. Os limites da cominação e da aplicação da
sanção penal, assim como as modalidades de exercício de
poder punitivo do Estado, eram assinalados pela necessidade
ou utilidade da pena e pelo princípio da legalidade. (BARATTA,
2002, p.31, grifos no original)

O principal expoente da luta contra o absolutismo é César O principal


Bonesana, o Marquês de Beccaria (1738-1794), que em 1764 ao expoente da
publicar Dei Delitti e Delle Pene (Dos Delitos e Das Penas) redefine o luta contra o
sistema punitivo dominante. absolutismo é
César Bonesana,
o Marquês de
O impacto do manifesto de Beccaria se deve pela capacidade de
Beccaria (1738-
expressar as convicções do pensamento iluminista, constituindo um 1794), que em
marco do pensamento liberal que encontra no contrato social o novo 1764 ao publicar
fundamento e legitimidade para o direito de punir. Dei Delitti e Delle
Pene (Dos Delitos
É sob tal perspectiva que justifica Beccaria a origem das penas: e Das Penas)
redefine o sistema
punitivo dominante.
As leis são condições sob as quais homens
independentes e isolados se uniram em sociedade,
cansados de viver em contínuo estado de guerra
e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza Esses motivos
de sua conservação. Parte desta liberdade foi por sensíveis
eles sacrificada para poderem gozar o restante
são as penas
com segurança e tranqüilidade. A soma dessas
porções de liberdade sacrificada ao bem comum
estabelecidas
forma a soberania de uma nação e o soberano contra os infratores
é o seu legítimo depositário e administrador. da lei. (BECCARIA,
Mas não bastava constituir esse depósito, havia 1996, p.41. grifo
que defendê-lo das usurpações privadas de nosso).
cada homem particular, o qual sempre tenta não
apenas retirar do depósito a porção que lhe cabe,
mas também apoderar-se daquela dos outros. Faziam-se
necessários motivos sensíveis suficientes para dissuadir o
espírito despótico de cada homem de novamente mergulhar
as leis da sociedade no antigo caos. Esses motivos sensíveis
são as penas estabelecidas contra os infratores da lei.
(BECCARIA, 1996, p.41. grifo nosso)

51
Criminologia

Incomodado por um ambiente de generalização de castigos constrangedores,


torturas e violência indiscriminada Beccaria (1996) é um porta-voz da defesa da
condição humana clamando por leis claras, justas e precisas.

Invocando a razão e o sentimento de humanidade denuncia a arbitrariedade


dos julgamentos secretos, das penas infamantes e da atrocidade dos suplícios.
Defende o direito de punir a partir de sua utilidade social declarando inútil a pena
de morte, sobretudo, postulando o princípio de proporcionalidade das penas em
relação aos delitos. É famosa sua frase: “Para que uma pena seja justa, deve ter
apenas o grau de rigor para desviar os homens do crime”.

Do conjunto de idéias da obra de Beccaria (1966) pode-se destacar:

• Apenas as leis (elaboradas pelo legislador) podem fixar as penas aplicadas


aos delitos;
• A lei deve ser abstrata e genérica e que a um terceiro órgão, cabe a análise da
subsunção do fato a norma;
• Absoluta impossibilidade de que a lei seja interpretada;
• Combate a pena de morte por três razões: ilegitimidade, inutilidade e
desnecessidade;
• A pena poderia unicamente atingir direitos renunciáveis, dos quais não faz
parte a vida;
• Hipóteses excepcionais em que a pena de morte é aceitável:

Quando o condenado mesmo punido, privado de sua liberdade, permanece


com relações, ameaçando o poder constituído, tornem necessária a execução;

Quando se predomina a anarquia, em detrimento das leis e a morte seja o único


freio a inibir a prática dos delitos;

• Proporção entre os crimes e as penas;


• Preconiza a necessidade de que a pena não passe da pessoa do condenado;
• Também desaprova a pena de confisco, por atingir  inocentes quais sejam os
familiares do condenado, levando-os a prática de novos delitos;
• Nenhuma lei que não tenha força suficiente para vigorar, tornando-se
insubsistente, deverá ser promulgada, devendo-se evitar as leis inúteis;
• O freio inibitório da criminalidade não é a crueldade da pena, mas a certeza de
sua aplicação;
• Em relação a tortura sustenta que o sofrimento imposto não é o caminho
para a busca da verdade, mas apenas se comprova a resistência física do
atormentado;
52
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

• A tortura é o meio seguro para absolver os delinqüentes de constituição


resistente e condenar aos inocentes fracos e debilitados;
• O alto valor atribuído à confissão deve-se à confusão abusiva com preceito
religioso, consistente na confissão dos pecados.

Entretanto, não apenas Beccaria adota as idéias iluministas.


Entretanto, não
apenas Beccaria
Na Itália Gian Domenico Romagnosi ao publicar Genesi del diritto adota as idéias
penale (1791) e Filosofia del diritto (1825) concebe o Direito Penal (leis iluministas.
sociais) como conjunto de leis naturais conhecidas pelo homem através
da razão e anterior às convenções humanas. O princípio essencial do
direito natural, para Romagnosi, é a conservação da espécie humana e a obtenção
da máxima utilidade do qual derivam três relações ético jurídicas fundamentais: o
direito e dever de cada um de conservar a própria existência, o dever recíproco
dos homens de não atentar contra sua própria existência e o direito de cada um
de não ser ofendido por outro.

De forma semelhante a Beccaria entende que o fim da pena é a defesa social já


que funcionaria como um contra-estímulo em relação ao impulso do criminoso para
impedir os crimes. Esta convicção é afirmada nas famosas palavras de Romagnosi:
Se depois do primeiro delito existisse uma certeza moral de que não ocorreria
nenhum outro, a sociedade não teria direito algum de punir um delinqüente.

Na Inglaterra Jeremias Bentham considerava que a pena se justificava


por sua utilidade: impedir que o réu cometa novos crimes, emendá-lo, intimidá-
lo, protegendo, assim a coletividade. Já na Alemanha Anselmo Von Feuerbach
opinava que o fim do Estado é a convivência dos homens conforme as leis jurídicas.
A pena, segundo ele, coagiria física e psicologicamente para punir e evitar o crime.

Mas, sem dúvida, a síntese dos princípios iluministas, racionalistas A síntese dos
e jusnaturalistas da Escola Clássica é levada a termo por Francesco princípios
Carrara, quando em 1859 publica o primeiro volume da densa obra iluministas,
Programma Del corso di diritto criminale. Diferentemente de Beccaria racionalistas e
(1996), que não possuía prática forense, Carrara foi destacado advogado jusnaturalistas da
e professor universitário o que acabou por conduzir seu trabalho a uma Escola Clássica é
levada a termo por
análise jurídica do crime, indo, portanto, além da crítica política. Para
Francesco Carrara.
Carrara o delito é um ente jurídico e não um ente de fato porque defendia
que em sua essência deve consistir necessariamente na violação de um
direito. Para Carrara o delito não é propriamente uma ação, mas sim,
uma infração, a violação a um direito que a lei protege através de uma proibição.

Nas palavras de Baratta (2002) é em Carrara que o direito penal italiano do


iluminismo encontra uma síntese logicamente harmônica. (BARATTA, 2002, p. 35).
Embora buscando uma concepção rigorosamente jurídica do delito seu conceito
53
Criminologia

não pode ser compreendido independente do fundamento filosófico que confere ao


direito. Ao falar em direito Carrara não se refere às leis positivas mutáveis, mas a
uma lei absoluta, porque constituída pela única ordem possível para a humanidade,
segundo as previsões e a vontade do Criador (BARATTA, 2002, p. 36), cabendo
a razão científica descobrir os princípios imutáveis e universais (verdade
transcendental e divina) a serem complementados pelos direitos constitutivos.

O resultado é a absoluta separação entre a esfera jurídica e a


Punir é o meio
de eliminar o esfera moral, compreendendo-se, a partir desta perspectiva, a função
perigo social que da pena como de defesa social, ou seja, punir é o meio de eliminar o
poderia advir da perigo social que poderia advir da impunidade, sendo a ressocialização
impunidade, sendo ou ressocialização um resultado desejável, porém acessório.
a ressocialização
ou ressocialização O notável trabalho de Carrara movido por convicções liberais
um resultado
é considerado um marco do penalismo ilustrado reconhecido pelos
desejável, porém
acessório. positivistas como representante privilegiado da tradição iluminista, que,
embora heterogênea e discutível a rotulação de “Escola”, o certo é que
se destaca como matriz jurídica, política e filosófica para a reflexão
criminológica que segue até os dias atuais.

Na segunda b) A Escola Positiva


metade do século
XIX no mundo Na segunda metade do século XIX no mundo europeu uma
europeu uma soma de fatores enfraquece os ideais da Escola Clássica criando
soma de fatores
os pilares teóricos que irão sustentar a Escola Positiva. As doutrinas
enfraquece os
ideais da Escola evolucionistas defendidas por Charles Darwin e Jean-Baptiste de
Clássica criando Lamarck, as teorias sociológicas de A. Comte e seus seguidores, a
os pilares teóricos frenológica de Franz Joseph Gall, dentre outras inovações teóricas, iam
que irão sustentar a criando um verdadeiro frenesi científico e afastando de vez a idéia do
Escola Positiva. livre arbítrio como causa do delito.

Por outro lado, o Estado é redefinido politicamente. O absolutismo


O Estado é
é substituído pelo intervencionismo. Neste novo momento histórico o
redefinido
politicamente. discurso teórico já não era mais o de defesa do cidadão frente ao arbítrio
opressor do Estado, mas sim encontrar instrumentos adequados para
enfrentar os crescentes problemas sociais que iam se transmutando
O momento em criminalidade.
apontava para uma
solução “científica” O momento apontava para uma solução “científica” a ser indicada
a ser indicada por por “especialistas” e não tardou para que o cientificismo dominante
“especialistas”.
servisse de justificativa e legitimação para ações políticas.

54
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

É em meio a este cenário que o Positivismo Criminológico encontra um


terreno fértil.

Os estudos iniciais se voltam para a compreensão do criminoso e as razões


que o impulsionariam ao delito. O foco de análise não era mais o Estado, as leis
ou o meio social, mas sim a especificidade e particularidade do comportamento
delitivo, que seguramente, deveria ter uma causa cientifica e biologicamente
explicável e, portanto, o crime seria uma doença curável.

O desafio de conhecer o delito sob um rigor positivista é assumido


O desafio de
inicialmente por Cesare Lombroso (1836-1909) e continuado por Enrico conhecer o
Ferri e Raffaele Garofalo que irão dar uma nova direção às teorias delito sob um
criminológicas e apontando novas soluções para a “questão criminal”. rigor positivista
é assumido
O elemento identificador dos representantes da Escola Positiva inicialmente por
é o procedimento lógico-indutivo como método confiável (observação Cesare Lombroso
(1836-1909) e
dos fatos sistematização de informações e conclusão), capaz de
continuado por
produzir resultados seguros e eficientes para encontrar um “tratamento” Enrico Ferri e
correto para as “doenças” sociais, dentre as quais a mais grave Raffaele Garofalo
seria a delinqüência. É a partir deste pressuposto que podem ser que irão dar uma
compreendidos os marcos teóricos da criminologia positivista que nova direção
inaugura uma nova concepção de delinqüência: a anormalidade. às teorias
criminológicas e
apontando novas
Neste novo paradigma científico o crime não é produto do livre
soluções para a
arbítrio, mas de forças naturais (genéticas e fisiológicas) incontroláveis “questão criminal”.
diretamente relacionadas ao grau de desenvolvimento na escala da
evolução natural, reduzindo, desta forma, o crime a uma consequência
de patologia individual, afastando qualquer fator social, político e
econômico como fator criminológico.

A efetiva inovação vem com a publicação do livro L´Uomo A efetiva inovação


Delinquente de Lombroso em 1871 pelo médico psiquiatra, antropólogo vem com a
e político Cesare Lombroso. A base de sua teoria, posteriormente publicação do
desacreditada e contestada por seus próprios seguidores, foi a crença livro L´Uomo
na existência da pré disposição delitiva individual como resultado da Delinquente
relação das características físicas e mentais com a antropologia. de Lombroso
em 1871 pelo
médico psiquiatra,
Partindo de uma concepção própria de evolucionismo, Lombroso antropólogo e
tenta demonstrar que o crime é uma constante entre as plantas e político Cesare
animais – as plantas carnívoras matam insetos, a fêmea do crocodilo Lombroso.
mata os filhotes que não aprendem a nadar; as raposas de devoram
entre si – e entre os “selvagens” ou “povos primitivos” a incidência do
crime é generalizada (canibalismo, rapto, adultério, assassinatos, ....) . A partir
desta perspectiva define o criminoso como um subtipo humano (os que não

55
Criminologia

chegaram ao nível superior do homo sapiens) que, por uma regressão atávica a
uma etapa primitiva da evolução humana nasceria criminoso, assim como outros
nasceriam loucos.

Portanto, a causa do delito seria uma herança atávica, – reaparição de


características existentes em ascendentes distantes – uma reminiscência de
estágios mais primitivos da evolução humana. Tais anomalias ou estigmas
degenerativos, de acordo com Lombroso, seriam os indicativos da enfermidade
da qual o criminoso seria portador.

Em 1807 eu realizava umas investigações sobre cadáveres


e seres humanos vivos nas prisões e asilos de anciãos na
cidade de Pavia. Desejava fixar as diferenças entre loucos e
delinqüentes, mas não estava conseguindo. Repentinamente,
na manhã de um dia de dezembro, fui surpreendido por um
crânio de um bandido que continha anomalias atávicas, entre
as quais sobressaíam uma grande fosseta média e uma
hipertrofia do cerebelo em sua região central. Essasanomalias
são as que encontramos nos vertebrados inferiores.
(LOMBROSO,1906, p. 665)

A partir de seus pressupostos passou a estabelecer a seguinte tipologia:

• O delinquente epiléptico: sofre de epilepsia e em geral comete crimes


violentos utilizando armas brancas. Golpeia a vítima em distintos ângulos;
• O delinquente habitual:é a pessoa que possui um modo de vida delitivo
levado ao extremo chegando a desenvolver uma permanente personalidade
criminal ;
• O delinquente louco: é aquele que é acometido por uma anomalía mental.
Nestes casos o delito não é mais do que um episódio de sua anormalidade
psíquica. Nesta clase estão o alienado, o alcoólatra e o histérico (que ataca
mais as mulheres);
• O louco moral: é o que desenvolve um estado psicopatológico que impede ou
perturba a valoração das condutas sob o ponto de vista moral, porém mantém
sua capacidade cognoscitiva e volitiva;
• O delinquente nato ou atávico: pessoa determinada a cometer delitos por
causas hereditárias. Apresenta como traços característicos como: uma cabeça
sui generis, com pronunciada assimetria craniana, fronte baixa e fugídia,
orelhas em forma de asa, zigomas, lóbulos occipitais e arcadas superciliares
salientes, maxilares proeminentes (prognatismo), face longa e larga, apesar
do crânio pequeno, cabelos abundantes, mas barba escassa, rosto pálido.
• O delinquente ocasional: é um criminoso primário, pouco ou nada perigoso,
porém susceptível de converter-se em habitual. Não possui freíos inibitórios

56
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

e não pode frear seus impulsos. Subdivide-se nos seguintes subtipos:


pseudocriminal (as circunstancias o impelem ao crime), o criminalóide (o que
está iniciando no crime por sugestões ambientais), o delinqüente passsional
(o que comete um delito tempestuosamente, como um “furacão psíquico”;
• O delinquente profissional: o que elege o crime como modo de vida
desenvolvendo uma cultura criminal aperfeiçoada;

O cientificismo biológico de Lombroso é constituido por uma tipología a partir


dos estudos realizados nas prisões que eram “frequentadas” pelos “perigosos”,
ou seja, pelas classes populares consideradas ameaçadoras à burguesía
em ascenção. As massas populares eram “feias e fora do padrão” e a ordem
burguesa exigia uma nova visão e controle do mundo para ser possível garantir e
gerenciar seus intereses.

Etiquetar e encarcerar o “anormal”, o “indesejável” o “outro” era uma boas


forma de frear as “massas” que certamente colocariam em risco a “nova” e “boa”
ordem social.

Portanto, não é difícil compreender por que as idéias de Lombroso foram


recepcionadas com entusiasmo no Congresso Internacional de Antropologia
Criminal em Roma no ano de 1885, apesar de rapidamente – quatro anos depois
– ter sido refutada e caído em descrédito.

Entretanto, em que pese as contradições e equívocos da teoria lombrosiana,


algumas idéias sobreviveram na antropología criminal até os días de hoje sob o
amparo do imaginário social e teorias de matriz determinista.

Enrico Ferri (1856-1929), destacado penalista e político italiano, Enrico Ferri (1856-
é outro nome que não pode ser dissociado da Escola Positiva. Autor 1929), destacado
da famosa obra Sociologia Criminal (1900) inovou o pensamento penalista e político
criminológico de sua época incluindo na formação do criminoso outro italiano, é outro
elemento além do antropológico: o sociológico. nome que não pode
ser dissociado da
Escola Positiva.
Sem discordar de Lombroso considerava que sua teoria estava
incompleta já que o delinquente não poderia ser compreendido fora de
seu ambiente social que exercia, no seu entender, influencia direta na
pré-disposição delitiva.

Em sua obra defende que o indivíduo não tem condições de controlar


seu impulso delitivo e por conta disto não poderia ser punido, mas afastado do
convívio social devendo ser aplicada medida de segurança. Por conta desta
concepção entendia que um código de defesa social deveria substituir um código
penal, sendo a pena um instrumento de proteção social a ser aplicada em caráter
preventivo e repressivo.
57
Criminologia

Conforme explica Álvaro Mayrink Costa, Ferri reduziu os


Ferri reduziu os
pressupostos pressupostos dos delitos a três classes fundamentais:
dos delitos a
três classes a) fatores antropológicos; b) fatores físicos; e c) fatores
fundamentais: sociais. Os primeiros são inerentes a pessoa do delinquente
e catalogam inicialmente a constituição orgânica, o
a) fatores
segundos logo se situam na constituição psíquica (anomalia
antropológicos; da inteligência ou dos sentimentos) e os últimos nas
b) fatores físicos; e características pessoais (v.g. Raça, idade, sexo, condição
c) fatores sociais. biológico-social: estados civil, profissão, domicílio, classe
social, instrução e educação) (COSTA,1980, p. 222).

Ferri é conhecido por sua equilibrada teoria da criminalidade, por seu


ambicioso programa político-criminal e tipologia criminal, que é assumida pela
Escola Positiva (MOLINA e GOMES, 1997, p. 154).

O passo a frente em relação a tese antropológica de Lombroso é dado por


Ferri ao compreender o delito para além da patologia individual, mas resultado de
uma combinação de fatores: individuais, físicos e sociais.

Em suma, entende a criminalidade como fenômeno social regido por uma


dinâmica própria, cabendo ao cientista antecipar o número exato de delitos e a
classe deles, em uma determinada sociedade e em um momento concreto, se
contasse com todos os fatores individuais, físicos e sociais antes citados e fosse
capaz de quantificar a incidência de cada um deles. (MOLINA e GOMES, p.
155). A face política de Ferri é nítida quando afirma que se as penas não forem
acompanhadas ou precedidas de reformas econômicas e sociais serão ineficazes.

O terceiro nome O terceiro nome que complementa a Escola Positiva é o de Raffaele


que complementa Garófalo (1852-1934). Professor, magistrado e senador italiano soma-
a Escola Positiva se aos demais representantes do positivismo criminológico, por sua
é o de Raffaele particular condição de jurista, estabeleceu os fundamentos da moderna
Garófalo (1852- criminologia.
1934).
Destaca-se em seu pensamento a preocupação em analisar o
homem atávico no campo jurídico-legal, que, em seu entender, deveria
Preocupação em
analisar o homem ter sua ação delituosa compreendida e mensurada através da gravidade
atávico no campo do ato praticado cominada com a sua particular periculosidade.
jurídico-legal.
A marca de Garófalo é a sistematização jurídica da Escola
Positiva. Estabelece a periculosidade como base da responsabilidade;
A marca de a prevenção especial como finalidade da pena e a noção de delito-
Garófalo é a obstáculo como elemento preventivo. (PRADO, 2008, p. 81-82).
sistematização
jurídica da Escola
Indo na mesma direção que os positivistas, Garófalo vislumbra
Positiva.
no direito um instrumento de defesa social. Ao violar as normas de

58
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

convivência o delinqüente deve ser privado da vida social, uma vez que representa
uma ameaça ao equilíbrio social. Entretanto, demonstra que a intenção é a de
tão somente reparar o dano causado devendo ser oportunizado ao criminoso o
retorno à vida social, porém de forma monitorizada.

A grande contribuição de Garófalo foi sua filosofia do castigo, dos fins da


pena e sua fundamentação, assim como das medidas de prevenção e repressão
da criminalidade. (MOLINA e GOMES, p. 159-160).

No pensamento deste autor, assim como a natureza elimina a espécie que não
adaptada ao meio, deve também o Estado eliminar aquele que não se adapta à
sociedade. Levado por esta idéia de defesa social diz ser aceitável a pena de morte
em algumas hipóteses, assim como penas com particular severidade que formariam
parte de um sistema punitivo racional, como, por exemplo, o envio do criminoso por
tempo indefinido para colônias agrícolas. (MOLINA e GOMES, p. 160).

Em síntese, seja privilegiando o enfoque biológico seja destacando fatores


sociais, o certo é que o positivismo criminológico parte do pressuposto de
que o crime é um ente de existência autônoma e subordinado ao direito penal
positivo, portanto, independente da perversa teia política e jurídica seletiva e
estigmatizadora.

Como chama a atenção Muñoz Conde e Hassemer:

Tanto Lombroso como seus precursores e seguidores haviam


encontrado precisamente o que buscaram: o delinqüente
como fenômeno isolado, objeto de consideração científica,
como um produto imóvel debaixo da lente do microscópio
dos fiéis à lei. Com ele, se colocaram em plena contradição
com a concepção de delito que logo começou a dominar a
Criminologia Científica e que culmina com as atuais teorias
de definição ou do etiquetamento: o delito não é produto da
“atribuição” do “status” de criminoso por parte das instâncias
do controle social formal, como a polícia, o ministério público
ou tribunais. (MUÑOZ CONDE e HASSEMER, 2011, p. 32).

Embora atualmente seja indiscutível a fragilidade das teorias defendidas pela


Escola Positiva o certo é que o falacioso discurso punitivo moderno é fortemente
marcado pela crença de que o responsável pelo crime é a natureza – seja física
ou social – cabendo as instituições (o bom poder) administrarem e controlarem a
delinqüência, porém sem condições de modificá-la.

Estabelecendo uma breve diferenciação entre a Escola Clássica e a Positiva


pode-se concluir que:

59
Criminologia

• Para os positivistas não há livre-arbítrio, nem tampouco responsabilidade


social. Para a harmonia social o controle deve ser exercido pelo direito penal;
• A Escola Positiva defende que o crime é resultado de uma ação combinada
de vários fatores – biológicos, físicos, psíquicos e sociais, portanto possui uma
origem complexa com inseparável relação entre fatores endógenos e exógenos;
• O criminoso é uma classe especial de seres humanos de difícil adaptação
social por suas próprias anormalidades. O criminoso é a resultado da
degeneração da espécie humana.
• O positivismo criminal defendeu a proporcionalidade da pena em relação à
periculosidade – física ou/e social – que não pode ser entendida como castigo
(por não haver livre-arbítrio). A punição é o meio jurídico necessário para a
sociedade lutar contra o crime. Não é uma “cura moral”, mas uma profilaxia
necessária.

A ideologia da Defesa Social


como Produto Jurídico Penal do
Positivismo Criminológico.
Não obstante o questionamento às teorias defendidas tanto pela
Ambas escolas
acabam por Escola Clássica como pela Positivista ambas compreendem as causas
desenvolver uma do delito restritas ao indivíduo criminoso, delegando como tarefa
lógica que articula ao Direito penal a defesa da sociedade do “outro”, do “deformado”.
direito penal, Portanto, ambas escolas acabam por desenvolver uma lógica que
sociedade e ser articula direito penal, sociedade e ser humano, cujo “elo” é a ideologia
humano, cujo “elo” da defesa social. É exatamente sob os fundamentos legitimadores da
é a ideologia da
defesa social que ao direito penal vai ser conferido um papel técnico
defesa social.
dogmático justificador e racionalizador do controle social.

A ideologia da defesa social – ou de justificativa final do sistema punitivo-,


nasceu contemporaneamente à revolução burguesa que teve na moderna
codificação penal o elemento condensador.

Sinteticamente Alessandro Baratta (1999, p. 42) o conteúdo da ideologia da


defesa social pode ser resumido nos seguintes princípios:

• Princípio de Legitimidade: O Estado como expressão social, é legítimo para


reprimir a criminalidade através de instituições oficiais de controle (legislação
penal, polícia, magistratura, instituição penitenciária,..) como enfrentamento
aos sujeitos responsáveis pelo crime (o criminoso);

60
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

• Princípio do bem e do mal: O delito é um dano social e o criminoso é um


elemento negativo para a correta funcionalidade do sistema social. Portanto, o
crime é um desvio (um mal) da sociedade (um bem);
• Princípio de Culpabilidade: O delito é a expressão de uma atitude interior
reprovável, porque é contrária aos valores e às normas sociais recepcionadas
e sancionadas pelo legislador;
• Princípio da Finalidade ou da Prevenção: A pena possui como finalidade
prevenir o crime e não somente caráter retributivo. Sua função é servir como
contramotivação ao comportamento delitivo que também ressocializa;
• Princípio da Igualdade: O crime é uma violação à lei e como tal é um
comportamento adotado por uma minoria desviada. A pena é igual para todos
e a reação penal se aplica de modo igual a todos autores dos delitos;
• Princípio do Interesse Social e do Delito Natural: O núcleo central dos
delitos definidos nos códigos penais representa uma ofensa aos interesses
fundamentais, às condições essenciais para a vida em sociedade. Os
interesses protegidos pelo direito penal são interesses gerais e comuns a
todos os cidadãos.

A ideologia de defesa social encontra na ciência e dogmática penal Mais que um


moderna a expressão de seus princípios ideais. Como chama a atenção elemento técnico
o próprio Alessandro Baratta (1999, p. 43) mais que um elemento legislativo ou
técnico legislativo ou dogmático, o conceito de defesa social possui dogmático, o
uma função justificante daqueles. É um conceito que foi produzido conceito de defesa
historicamente e absorvido pelo discurso jurídico moderno. social possui uma
função justificante
daqueles.
As idéias da Escola Positivista e o discurso da defesa social
fascinaram os penalistas modernos. Eram encantadoras as idéias
científicas sobre o crime em fins do século XIX e deveriam ser Eram encantadoras
absorvidas pela ciência penal. Tal empreendimento intelectual foi as idéias científicas
levado a cabo pelo penalista alemão Franz Von Liszt (1851-1919) sobre o crime em
que compreendia a ciência do direito penal como composta por três fins do século XIX
partes: a dogmática – estritamente jurídica teria a função de proteger e deveriam ser
absorvidas pela
o cidadão contra o arbítrio do Estado (uma autêntica “Magna Carta”
ciência penal.
do delinqüente); a científica ou criminológica – caberia o estudo das
causas do delito e efeitos da pena sob os fundamentos das ciências
naturais; e a político-cultural – estabeleceria as linhas de ação do sistema punitivo.
Liszt desenvolve um programa – conhecido como “Programa de Marburgo” - em
1882 que define as bases do que viria a ser o Direito Penal Moderno.

Embora havendo resistência por parte dos penalistas positivistas da época que
defendiam o fortalecimento da lei escrita, identificando-se assim o justo com o lícito,
as idéias de Liszt tiveram grande repercussão no direito penal ocidental em geral.

61
Criminologia

Portanto, os fundamentos do direito de punir restritos ao Estado e dirigidos


contra o que cientifica e legalmente é definido como “perigoso” (modelos de
periculosidade individual e social) são elaborados sob a matriz do positivismo
criminológico e jurídico permitindo compreender o funcionamento e a legitimidade
do sistema punitivo moderno. O direito de punir é restrito política e tecnicamente
ao Estado que também assume a tarefa de garantir condições formais e materiais
através de ações públicas para que os cidadãos não cometam crimes.

Neste sentido, portanto, o discurso dominante é o de que a sanção estatal


(através do sistema punitivo que inclui direito penal, dogmática penal, sistema
penitenciário e política criminal) é justificável e legítima porque é “bondosa” ao
promover não apenas a coação aos não desviados, mas os meios para que o
criminoso (desviado social) não volte a delinqüir e seja integrado no meio social.

“Vai-se assim sendo desenvolvida e sustentada nas instituições e seus


operadores uma absolutização dos interesses e valores dos órgãos punitivos
através da certeza de que eles são detentores do direito aos quais os cidadãos
devem se submeter, predominando os valores e interesses do Príncipe (interesse
público ou de Estado) sobre os dos súditos (cidadãos)”. (CARVALHO, 2011, p.113).

O Positivismo Criminológico na
América Latina e no Pensamento
Político-Jurídico Brasileiro.
O sistema punitivo O sistema punitivo latino americano há que ser compreendido
latino americano como parte integrante de um modelo construído na Europa, porém
há que ser expandido fora dela através do poder colonialista a partir do século
compreendido XIV. O colonialismo foi exercido e prosperou sob a forma de extermínio
como parte genocida, eliminando a maior parte da população americana, sufocando
integrante de um as organizações sociais e políticas locais, reduzindo, assim, os poucos
modelo construído
sobreviventes à condição de escravos e servos.
na Europa, porém
expandido fora dela
através do poder Lembra Zaffaroni (2007) que desde a primeira etapa da ocupação
colonialista a partirda América o poder real sempre considerou como inimigo, indesejável,
do século XIV. os que se manifestassem de forma “indisciplinada”. Portanto, não é
de causar estranheza que em distintas épocas tenha ocorrido uma
repressão penal específica: para os autores de delitos graves a pena era a
eliminação física, os indesejáveis eram neutralizados e os ocasionais tratados
de forma semelhante àqueles que detinham o poder ou seus aliados – os erros
(considerados passageiros) cometidos mereciam certa benevolência e raramente
eram submetidos ao poder punitivo.

62
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

E conclui Zaffaroni (2007, 37):


Desde a primeira
etapa da ocupação
Os iguais mereceram especial consideração, tendo
da América o
em conta a altíssima seletividade do poder punitivo
poder real sempre
da época, que quase nunca os atingia. Como
estranhos ou inimigos, eram também considerados considerou
autores de delitos graves ou dissidentes políticos. como inimigo,
Com relação a pena de morte pública era indesejável, os que
prodigamente distribuída como espetáculo festivo se manifestassem
nas praças. Essa prática, sem dúvida, reafirmava de forma
a vigência das normas de modo mais concreto que “indisciplinada”.
simbólico e, ao mesmo tempo, cumpria a função de
contenção, dado que o executado era neutralizado
por toda eternidade.

O sistema punitivo
O sistema punitivo latino americano é definido a partir de uma latino americano
herança colonizadora marcada por uma justiça exercida segundo os é definido a partir
interesses das elites estrangeiras e seus representantes locais com de uma herança
práticas arbitrárias de toda espécie – assassinatos, degolas, torturas, colonizadora
extermínios, recrutamentos forçados, etc. Enfim, com alto grau de marcada por
uma justiça
seletividade e discriminação.
exercida segundo
os interesses
No século XIX, quando está sendo construída a ciência criminal das elites
moderna na Europa, a América Latina vivia um período de transformação estrangeiras e seus
política com a implantação de governos autônomos que, em geral eram representantes
construídos a partir dos interesses das oligarquias locais. locais com práticas
arbitrárias de
toda espécie –
É neste contexto que vai sendo elaborado o aparato jurídico legal assassinatos,
– constituições e códigos - que reproduziu tanto o conservadorismo degolas, torturas,
legalista europeu como absorveu o positivismo cientificista que acabou extermínios,
por dominar a cultura ocidental. recrutamentos
forçados, etc.
Enfim, com alto
Na época eram inspiradores os ideais do iluminismo ilustrado e do
grau de seletividade
positivismo como ideologia que eram propagados nos diversos campos e discriminação.
da vida social, política e intelectual na América.

No ano de 1897, Francisco de Veyga (1866-1948), professor de medicina


legal da Universidade de Buenos Aires cria a disciplina de Antropologia e
Sociologia Social, publicando no mesmo ano Anarquismo e anarquistas: estudo de
antropologia criminal, trabalho que vinha ao encontro da prática política da época
que reprimia violentamente movimentos políticos de resistência considerando
doentes mentais seus militantes e transferindo-os para manicômios. As aulas de
Veyga eram ministradas na central de polícia e no hospício, criado neste último o
Serviço de Observação dos Alinados.

63
Criminologia

Veyga estudou minuciosamente os considerados “pequenos” delinqüentes


publicando em 1910 o resultado que concluía serem estes tipos de criminosos
naturalmente “estúpidos” com disfunções orgânicas, destacadamente
sexuais, defendendo a partir de então a criminalização da “inversão sexual” –
homosexualidade – como forma de solução para este “problema social”.

O auge de seu pensamento conservador e intolerante apoiado em princípios


positivistas é a publicação do livro Degeneração e degenerados em 1938.
Repetindo os ideais nazistas defende que o valor de um povo está em sua força,
saúde e raça, devendo a política Argentina superar o obstáculo “nocivo” da sua
complexidade étnica criando instituições competentes para aniquilar e combater
este “problema”.

Como reconhecimento por suas idéias racistas e fascistas e prática repressiva


transvestidas em ciência sob o álibi do positivismo é agraciado com a patente de
tenente-geral do Exército argentino.

No Brasil o positivismo igualmente impregna a política e a ciência.


No Brasil o
positivismo No campo criminológico e penal a publicação da obra Ensaios sobre a
igualmente estatística criminal e A nova escola penal em 1894 de Augusto Viveiros
impregna a política de Castro marca o início da preocupação científica para a compreensão
e a ciência. e combate ao crime. Foi defensor do fim do crime de bruxaria, na época
o delito do “espiritismo” que era praticado por pessoas “inferiores
descendestes de escravos” na ótica dos penalistas de então. Para Viveiros de
Castro a repressão a práticas religiosas era inconstitucional.

Sem dúvida na época era grande o esforço em demonstrar


Sem dúvida
na época era que a raça era um importante fator para o desenvolvimento de uma
grande o esforço personalidade criminosa. Sob esta ótica é o trabalho de Clóvis
em demonstrar Bevilacqua que em 1896 publica a obra Criminologia e direito e também
que a raça era o do temido chefe de polícia Aureliano Leal intitulado Germes do
um importante Crime. No ano de 1897 o famoso médico legista, professor, escritor e
fator para o
político Júlio Afrânio Peixoto defende a tese doutoral Epilepsia e delito
desenvolvimento de
uma personalidade despertando interesse nos meios científicos e políticos da época.
criminosa.
Os lombrosianos brasileiros dedicavam-se a tarefa de pesquisar a
relação entre o delito com as doenças, sobretudo aquelas relacionadas
a falta de higiene e ao contágio sexual.
Raimundo Nina
Rodrigues (1862- Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), “pai” da criminologia
1906), “pai” da brasileira, propunha a avaliação antropométrica e psiquiátrica dos
criminologia
criminosos para determinar cientificamente o melhor tratamento penal
brasileira.
a ser aplicado. A população negra, recém saída da escravidão, era

64
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

considerada pelo professor de medicina legal da Bahia incapaz mentalmente para


adaptar-se à civilização européia. No livro As raças humanas e a responsabilidade
penal no Brasil lançada em 1894 torna público e evidente o positivismo criminológico
racista de Nina Rodrigues para quem o castigo punitivo era útil para reprimir os
jovens mestiços que representavam um perigo e risco ao desenvolvimento urbano
que estava se iniciando.

Um estudo em particular de Nina Rodrigues chama a atenção e demonstra


a forte influência dos postulados lombrosianos.No ano de 1897 chegava ao fim
a Guerra de Canudos com o massacre dos revoltosos liderados por Antonio
Conselheiro. Com o objetivo de estudar o crânio de Conselheiro a fim de verificar
se suas características evidenciavam indícios que pudessem comprovar ser ele
um criminoso nato, Nina Rodrigues requisita a cabeça do líder do movimento.
Entretanto, suas expectativas são frustradas porque não foram encontrados os
sinais que eram apontados por Lombroso como próprios dos loucos ou atávicos.
(MACHADO, 2005, p.83-84).

Apesar de muitos serem os nomes relacionados ao positivismo criminológico no


Brasil a grande maioria tão somente desenvolveu estudos e publicações com o
objetivo de demonstrar a validade das idéias e princípios do novo conhecimento
criminal, sobretudo para o direito penal, o que é contemplado com a promulgação
do Código Penal de 1940.
É inegável a
É inegável a presença do positivismo antropológico no Código presença do
Penal de 40. Diversos institutos, tais como a necessidade de ser positivismo
considerada a personalidade e periculosidade do agente para a antropológico no
determinação do quantum punitivo e a vedação de cumulação de aplicação Código Penal de
de pena com medida de segurança. 40.

Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli o Código Penal brasileiro de 1940 é


definido como:

um código rigoroso, rígido, autoritário no seu cunho ideológico,


impregnado de “medidas de segurança” pós-delituosas, que
operavam através do sistema “duplo-binário” ou da “dupla
via”. Através deste sistema de “medidas” e da supressão de
toda norma reguladora da pena no concurso real, chegava-
se a burlar, dessa forma, a proibição constitucional da pena
perpétua. Seu texto corresponde a um “tecnismo jurídico”
autoritário que, com a combinação de penas retributivas e
medidas de segurança indeterminadas (própria do Código
Rocco), desemboca numa clara deterioração da segurança
jurídica e converte-se num instrumento de neutralização
de “indesejáveis”, pelas simples deterioração provocada
pela institucionalização demasiadamente prolongada
(PIERANGELI e ZAFFARONI, 2006, p. 194).

65
Criminologia

Em nome da defesa social os legisladores brasileiros encontram no


positivismo criminal a legitimação para uma prática incriminadora seletiva
orientada segundo estereótipos e equivocado determinismo que serve a políticas
criminais autoritárias segregadoras.

As teorias criminológicas positivistas, que marcam o senso comum até a


atualidade, foram usadas, reproduzidas e alimentadas ideologicamente de várias
maneiras. As obras literárias, em particular, manifestam valores, crenças e o
imaginário de um grupo social e, como tal, é marcante a presença daquelas teorias
nos clássicos romances policiais à exemplo do personagem Usulutlán, criado pelo
escritor nicaraguense Sergio Ramírez na novela Castigo Divino baseada em um
fato real ocorrido na cidade de Léon em 1933, que descreve o culpado de um
horrendo crime com base no determinismo biológico (elemento externo, objetivo
e inquestionável). Na estória, pelo tipo de crime, o criminoso teria as seguintes
características:

...estatura mediana, branco, barba e bigode raspados; rosto


ovalado, com pronunciamento na base do maxilar inferior,
cabelo preto e liso, olhar pacífico e vago por detrás das
lentes, boca pequena e lábios finos, seios frontais separados,
fronte mediana, base nariz também separada, nariz reto.
Um conjunto fisionômico que revela determinação, astúcia e
cálculo e no qual os criminalistas poderiam checar, com base
na mediação do crânio e na correta determinação dos traços e
proporções morfológicas, suas tão sonhadas teses da herança
e da predeterminação ao delito. (http://www.sergioramirez.org.ni/
monografias/castigo%20divino-tesis.htm).

Também Sir Arthur Conan Doyle (1859 – 1930), médico e escritor britânico,
mundialmente famoso por suas estórias consideradas inovadoras na literatura
criminal, através do personagem Sherlock Holmes reproduz o imaginário
positivista. Na estória Um estudo em Vermelho um famoso criminoso, Jefferson
Hope, mata dois homens após persegui-los por vários anos por inúmeros países.
O Sr. Hope é descrito como um criminoso passional.

A sala de estar estava cheia de ouvintes: havia, por exemplo,


alguns homens da Scotland Yard que buscavam fama e
respeito dos londrinos que diriam “quão bem eles haviam
investigado o caso”. Subitamente dois garotos entram na sala
acompanhados de um velho. “Deixe-me apresentá-los ao
assassino!”, gritou Sherlock Holmes apontando o velho, que
era um dos poucos proprietários de carruagem de Londres.
A longa e misteriosa estória estava pronta para iniciar. O
velho, Sr Jeferson Hope, não tinha nada a dizer pois era
incapaz de esconder qualquer detalhe de Sherlock Holmes.
Vingança, velhos ódios e ressentimentos tinham um papel
muito importante a desempenharem na estória. O caso tinha
se iniciado a muito tempo atrás longe da Inglaterra, mas as

66
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

consequências deste passado não morreram até Jeferson


Hope estar apto a vingar o que seus inimigos haviam feito a
sua amada e ao pai dela. O Sr Hope não era um prisioneiro
típico que chora, tenta lutar e recusa-se a admitir que o
jogo esta terminado. Ele era um velho moribundo que
não se importava com o que lhe aconteceria no futuro.O
fato de seus inimigos terem pago, através de suas mãos,
pelos trágicos acontecimentos do passado era suficiente.
(http://pt.shvoong.com/books/mystery-and-thriller/117125-um-
estudo-em-vermelho/#ixzz1bQv6ZShU).

Conan Doyle descreve um assassino movido por inveja, ciúmes e vingança.


Repetindo as teorias positivistas, a estória fala das causas do crime relacionadas
diretamente com a personalidade do criminoso.

Ambos romances policiais consagram a teoria de que a ação humana é


determinada por fatores (físicos, sociais, antropológicos,....) que, somados
constroem um delinqüente, como se verá, por exemplo nas teorias de Lombroso
e Ferri.

Atividade de Estudos:

1) Quais elementos do positivismo criminológico estão presentes nos


romances policiais mencionados? Em sua opinião atualmente
despertariam interesse? Por quê?
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Criminologia

Ciência Normal, Paradigma e


Revolução Científica
Thomas S. Kuhn é um cientista e filósofo que nasceu em 18 de julho de 1922,
em Cincinnati, no estado de Ohio, Estados Unidos, e faleceu em 1996. No ano de
1940 ingressou na Universidade de Harvard para estudar Física, doutorando-se
em 1949. Seus estudos o conduziram a buscar outro direcionamento intelectual
dedicando-se ao estudo da história e filosofia da ciência.

Em 1956, mudou-se para o Departamento de Filosofia da Universidade


da Califórnia, em Berkeley, onde permaneceu até 1964 e juntamente com Paul
Forman e John Heilbron, desenvolveu um projeto de documentação da história da
mecânica quântica, até que em 1964 transferiu-se, já como professor de Filosofia,
para a Universidade de Princeton, lá permanecendo até 1979, quando então se
tornou professor em Harvard. (MENDONÇA, A. L. de O; VIDEIRA, A. A. P. 2002,
p. 77-79)

Com o lançamento da obra The structure of scientific revolutions (A estrutura das


revoluções científicas), no ano de 1962 promove uma autentica “dessacralização”
da ciência. A partir de uma perspectiva histórica demonstra que não é possível
sustentar uma “Ciência” como atividade única em todos os momentos históricos
nas distintas sociedades, uma vez que, para Khun, o que é um saber científico é um
certo consenso e/ou cumplicidades teóricas de uma comunidade auto-denominada
“científica”. Neste sentido, cientista é o indivíduo que partilha e se compromete
com o modelo defendido e reproduzido pela comunidade científica, construindo-se
assim, a tradição de pesquisa e teorias científicas.

Descreve como paradigma uma tradição sustentada como modelo de


estudos e metodologias utilizadas para investigação de uma “Ciência” particular.

Entretanto, para além da pretensa univocidade científica, segundo o referido


autor, existem duas outras práticas científicas: a “ciência normal” e a “ciência
extraordinária”.

A primeira é aquela que realiza estudos e investigação aperfeiçoando o


paradigma consagrado buscando continuamente resolver as questões e/ou
problemas definidos como científicos a partir da solução metodológica apontada
por tal modelo.

Este modelo de cientista é, como ele afirma, um “solucionador de quebra-


cabeça” portador de uma personalidade científica conservadora em relação ao
paradigma que sustenta considerando-o a única forma possível e natural de
“fazer” ciência.

68
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

A “ciência extraordinária” é a prática investigativa que se desenvolve quando


o paradigma começa a dar sinais de esgotamento, de crise, isto é, quando o
modelo dominante não é mais capaz de solucionar os problemas a que se propõe
resolver. Do acúmulo de “déficits” científicos o paradigma vigente começa a
mostrar-se irreversivelmente superado impondo-se, assim, a necessidade de ser
substituído por outro novo paradigma mais eficiente ocorrendo, desta forma, a
“revolução científica”.

O cientista “extraordinário” é o transgressor em relação ao paradigma


tradicional, portador de uma sensibilidade que permite perceber e identificar as
impossibilidades e limites do modelo dominante buscando novo e mais eficiente
instrumental. Portanto, o pressuposto da prática científica extraordinária á a
atitude de questionamento e permanente dúvida em relação ao tradicional.

O breve texto a seguir aponta algumas características centrais


do pensamento científico khuniano:

Thomas Khun e a Ciência como Prática.

Khun demonstra, através da sua perspectiva historicista, que


apesar de as pesquisas científicas terem por base a lógica e a
racionalidade, elas também são regidas pela subjetividade. Segundo
Kuhn, a crença em um paradigma – conceito que veremos logo
adiante – não depende necessariamente da razão, mas sim da fé do
pesquisador.

Traz uma nova concepção de paradigma, o qual pode


ser interpretado como um modelo referencial, um conjunto
de conhecimentos que já está estabelecido na comunidade
científica. Entretanto, com o surgimento de novos fenômenos,
alguns paradigmas não conseguem explicar ou responder aos
questionamentos que tais fenômenos produzem, o que leva ao
surgimento de uma anomalia e, conseqüentemente, à emergência de
uma crise científica.

O paradigma inicial, antes de entrar em uma crise, encontrava-


se na denominada ciência normal. Esta, a qual não objetiva trazer
inovações, representa o estudo dentro do próprio paradigma, a
fim de demonstrar cada vez mais a solidez do mesmo. Diante da
aparição de uma crise, existem três possibilidades de solução: a
ciência normal conseguiria solucionar a anomalia; o problema seria

69
Criminologia

rotulado e encaminhado às gerações futuras, para que estas, com


uma melhor aparelhagem, pudessem resolvê-lo; ou tal anomalia
levaria ao surgimento de um novo paradigma, o qual não anularia
necessariamente o anterior.

Com o surgimento de um novo paradigma, a ciência daria um


salto, avançaria. Isto é, ocorreria uma revolução científica através
da denomidada ciência extraordinária, a qual representa o tempo da
emergência de novos paradigmas e a competição deles entre si. Tal
competição tem como causa a escolha de qual paradigma possuirá
o enfoque mais adequado, em relação a resolver as deficiências do
paradigma anterior. Com o estabelecimento do novo paradigma,
reiniciam-se os processos e o desenvolvimento científico se efetiva.

Kuhn demonstra que, muitas vezes, a escolha ou defesa de um


paradigma baseiam-se em questões subjetivas, pessoais, mesmo
que já exista um novo paradigma racionalmente mais eficiente que o
anterior. O objetivo nem sempre é provar racionalmente a veracidade
de um paradigma. Para o cientista decidir se é a favor ou contra a
um paradigma, ele deve decidir se acredita nele ou não, se tem fé no
mesmo ou não.

CICLO: Surgimento de um PARADIGMA à CIÊNCIA


NORMAL à surgimento de anomalias à CRISE à CIÊNCIA
EXTRAORDINÁRIA à REVOLUÇÃO CIENTÍFICA à Surgimento de
um NOVO PARADIGMA

Fonte: Disponível em: <http://seminariosemsaude.blogspot.com/2010/10/


thomas-kuhn-e-ciencia-como-pratica.html>. Acesso em: 10 fev. 2012.

Atividade de Estudos:

1) A criminologia positivista foi um paradigma dominante?


Quais fatores relacionados a isso?
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A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

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2) Em algum momento histórico a criminologia positivista foi uma


“ciência extraordinária” no sentido explicado por T. Khun?
Justifique sua afirmação.
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Criminologia

3) Pode-se afirmar que há atualmente uma crise de paradigma na


ciência criminal? Por que?
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Algumas Considerações
Caro pós-graduando, neste segundo capítulo compreendemos o paradigma
criminológico dominante como produto sócio-cultural da modernidade. Além disso,
foi possível diferenciar os distintos discursos históricos criminológicos europeus
e sua expansão no pensamento científico moderno. E por fim, identificamos as
funções das teorias criminológicas modernas, seus postulados e legados para a
dogmática penal contemporânea.

No próximo capítulo, estudaremos o acaso do pensamento criminológico


moderno e a emergência do pensamento crítico. Então, para compreender esse
universo, é preciso identificar elementos sócio-jurídicos e políticos que apontam
o esgotamento do paradigma punitivo moderno, individualizar as distintas
correntes críticas criminológicas, compreender a centralidade do conhecimento
criminológico na prática jurídica penal e os limites da concepção causal explicativa
do fenômeno da incriminação e criminalização.

72
A Construção do Pensamento Criminológico
Capítulo 2 Moderno: Funções, Dimensões e Teorias

Referências.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Tradução de Sérgio Lamarão. Histórias do
pensamento criminológicos.Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2008.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica ao direito penal. 3ª


ed.trad. Juarez Cirino dos Santos,Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2002.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.

CALDAS, Alexandre Castro. A herança de Franz Joseph Gall – O cérebro ao


serviço do comportamento humano. Lisboa: Almedina, 1999.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 4ª Ed. Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2011.

COSTA, Álvaro Mayrink de. Criminologia. v.I, 2ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio,
1980.

LOMBROSO, Cesare. O homem criminoso. Tradução de Maria Carlota


Carvalho Gomes, Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1983.

MACHADO, Maíra Rocha. A pessoa objeto da intervenção penal: primeiras


notas sobre a recepção da criminologia positivista no Brasil. Revista Direito GV,
São Paulo, v.1, n.1, abril/jun.2005.

MANDROU, Robert. Magistrados e Feiticeiros na França do século XVII –


uma análise da psicologia histórica, São Paulo: Perspectiva, 1979.

MENDONÇA, A. L. de O; VIDEIRA, A. A. P. A revolução de Kuhn. Revista


Ciência Hoje, v. 32, n. 189, dez. 2002.

MOLINA, Antonio García-Pablos; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: Introdução


a seus fundamentos teóricos. 2 ed. São Paulo: RT, 1997.
MUÑOZ CONDE, Francisco e HASSEMER, Winfried. Introdução à
Criminologia. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011.

PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de Direito


Penal Brasileiro: Parte Geral. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

73
Criminologia

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São
Paulo:Revista dos Tribunais, 2008.

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo do direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão,


Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007.

74
C APÍTULO 3
O Ocaso do Pensamento
Criminológico Moderno e a
Emergência do Pensamento Crítico

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Identificar elementos sociais, jurídicos e políticos que apontam o esgotamento


do paradigma punitivo moderno.

99 Individualizar as distintas correntes críticas criminológicas.

99 Compreender a centralidade do conhecimento criminológico na prática jurídica


penal.

99 Compreender os limites da concepção causal explicativa do fenômeno da


incriminação e criminalização.

Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo,


não se transforme também em monstro. E se tu
olhares, durante muito tempo, para um abismo,
o abismo também olha para dentro de ti.
(Friedrich Nietzsche )
Criminologia

76
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

Contextualização
No capítulo anterior foram descritas as teorias tradicionais que dominaram
o pensamento criminológico até a segunda metade do século XX. Não se pode
afirmar que tais teorias estão atualmente superadas. Entretanto, o que se tem
constatado é a emergência cada vez mais marcante de o que se tem chamado
de pensamento crítico, tanto na Criminologia como nos demais saberes direta ou
indiretamente a ela relacionados, a exemplo do próprio Direito.

Como já estudado, as teorias de matriz positivista, apesar das distintas


proposições e pressupostos, possuem em comum o fato de centrarem a
preocupação na “questão criminal” como fenômeno em si, pretendendo conhecer
suas causas e solução independente do sistema punitivo e do modelo social –
considerado imutável e “bom” por sua natureza – no qual tal problemática se
constrói e se reproduz.

Portanto, o ponto de convergência dos modelos teóricos positivistas é a não


preocupação em problematizar o modelo social, jurídico e político que fabrica e
alimenta uma perversa rede de dominação que define os tipos de condutas a
serem seletivamente criminalizadas e os sujeitos a serem “etiquetados” como
criminosos e também isenta de qualquer “etiquetamento” sujeitos que, por suas
condutas delituosas, produzem danos sociais de grandes proporções e são
sujeitos considerados “acima de qualquer suspeita”.

Por outras palavras, a tradicional criminologia não discute a forma desigual e


perversa com que o sistema pune.

É exatamente observando o caráter seletivo e desigual do sistema punitivo que


nos anos 60 vai-se construindo uma crítica às teorias tradicionais. Influenciados
pelo espírito inovador e os “ventos” revolucionários da época, criminólogos norte-
americanos (Leert, Erickson, Shur e Bercher), europeus (os ingleses Taylor,
Walton e Young), alemães (Sack), italianos (Baratta) e espanhóis (Bergalli), bem
como latino-americanos (Rosa Del Olmo e Lola Aniyar) fazem a opção por se
dedicarem à crítica ao sistema social e aos processos de criminalização por ele
produzidos.

Em síntese, nos anos 60 há uma autêntica “virada” na história do pensamento


criminológico moderno, constituindo-se em importante troca de paradigma, como
a seguir será estudado.

77
Criminologia

Palavra Iniciais
Há na sociedade brasileira um discurso difuso e permanente de que
determinados segmentos sociais cometem delitos específicos que envolvem relações
de poder e raramente são descobertos e, quando são, raramente são punidos.

Este imaginário social encontra sua concretização nos chamados “crimes de


colarinho branco”. Crimes cometidos por sujeitos considerados “respeitáveis” e
“acima de qualquer suspeita” que desfrutam de prestígio social e profissional. São
delinquentes que em geral não são descobertos ou condenados.

A expressão “white collar crimes” – popularizada na década de 40 nos


Estados Unidos da América – rotula um tipo de crime difícil de ser tipificado –
envolve várias condutas, tais como peculato, fraudes de todo tipo, uso de
informações privilegiadas etc. – em geral cometido sem uso de violência e com
uso de métodos sofisticados que dificultam investigações.

Este fato torna inegável a existência de uma seletividade no sistema punitivo,


além de atestar sua impotência para investigar, julgar e punir certos crimes, o que vai
aumentando a desconfiança no Estado em sua função de garantir a ordem social.

No dia 04 de Junho de 2011, o Jornal “O Globo”


do Rio de Janeiro trazia a seguinte notícia:

“RIO - A corrupção no Rio já tem sentença: impunidade. Um


levantamento feito pelo GLOBO, a partir de uma amostra com 378
ações de improbidade administrativa da capital, abertas no período
de 1994 a 2011, mostra que os processos de crimes do colarinho
branco giram sem solução no moinho do Judiciário fluminense. Há
raríssimos casos julgados. Do total de processos analisados, foram
encontradas pouco mais de 40 sentenças, algumas de absolvição e
muitas decisões de primeira instância, o que significa que podem ser
modificadas na batalha judicial travada em casos de corrupção que
envolve fraudes complexas e dificuldades de produção de provas. Na
amostra, foram achadas somente quatro condenações mantidas em
segunda instância, ou 1% do total.

[...]
Há casos exemplares que ilustram as dificuldades de se
punirem servidores públicos acusados de desvio de dinheiro. Um
deles é o propinoduto, um dos maiores escândalos já ocorridos no

78
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

Rio. Passados oito anos, o processo está longe de um desfecho.


Personagem emblemático do caso, o fiscal de renda Rodrigo
Silveirinha - acusado de participar de uma quadrilha que desviou US$
33 milhões do Fisco fluminense - foi localizado pelo GLOBO levando
uma vida anônima. Ele vive no mesmo condomínio de luxo no
Recreio dos Bandeirantes e, com todo o seu patrimônio bloqueado, é
apontado como zeloso dono de um posto de gasolina da Zona Norte.

[...]

Nos processos aos quais “O GLOBO” teve acesso, os valores


envolvidos atingem um montante de pelo menos R$ 530 milhões. E
pode ser muito mais. A projeção foi feita com base naquelas ações
em que o Ministério Público, ao apresentar a denúncia, já faz uma
estimativa do suposto desvio ou prejuízo, ou ainda em notícias
divulgadas sobre valores envolvidos nas disputas judiciais, sejam
compras superfaturadas ou despesas geradas por concursos
públicos cancelados em razão de fraudes.

As ações dizem respeito a cerca de 1.600 réus - entre servidores


do Executivo, do Legislativo e do Judiciário e representantes de
empresas citadas denúncias, além de ONGs e outras entidades.
Ex-governadores e prefeitos estão bem colocados no ranking da
improbidade, mas o grande volume se refere a servidores comuns
acusados de irregularidades nas mais diversas áreas, da segurança
à educação. Do total de réus, 72% são pessoas físicas; 12%, órgãos
do governo; 12%, empresas privadas; e 4%, ONGs e associações.

Dos quatro casos em que os réus foram condenados, sem mais


chance de recurso no tribunal do Rio, um é muito antigo. E foi um
processo arrastado. O TJ levou 16 anos para julgar em definitivo
o ex-inspetor Hélcio Andrade. Depois de comprar um carro zero,
ele acabou denunciado em 1995. Uma perícia chegou a uma
movimentação bancária dele e de sua mulher de cerca de US$ 5
milhões. Hélcio foi condenado em 2005, dez anos depois. Mais
cinco anos para julgar o recurso, que confirmou a sentença no fim
do ano passado. Tanta demora permitiu que ele se aposentasse,
impossibilitando uma das punições: a perda da função pública. Aos
72 anos, e muito doente, ele não quer falar do passado. Anos e anos
de idas e vindas, e o condenado ainda pode tentar reverter a decisão
do Rio nos tribunais superiores em Brasília.[...]”.

Fonte: Disponível em: < http://oglobo.globo.com/rio/crime-do-colarinho-


branco-fica-sem-punicao-no-rio-2761382>. Acesso: 10 de fev. de 2012.

79
Criminologia

Atividade de Estudos:

A partir do texto extraído do site do Globo, leia atentamente as


questões abaixo e responda-as:

1) Quais os limites das bases metodológicas da Criminologia


positivista para compreender e apresentar formas de
enfrentamento deste tipo de crime?
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2) Haveria então uma grande possibilidade de existência de crimes


que não são punidos por ausência de critérios técnicos legais e
jurídicos?
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3) Quais os fatores que poderiam explicar a seletividade do sistema


punitivo?
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O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

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A Deslegitimação do Sistema
Punitivo Dominante
No século XX, as certezas que construíram o discurso criminológico No século XX,
moderno foram desfeitas. Somando-se a redefinição dos conceitos as certezas que
científicos relacionados à questão criminal, como aos da Psicologia, construíram
Sociologia e do Direito, cresce uma inquietude intelectual e política na o discurso
própria delimitação do objeto da Criminologia, questionando-se, assim, criminológico
moderno foram
seus próprios fundamentos.
desfeitas.

Uma das problemáticas centrais é o reconhecimento da existência


das chamadas “cifras negras” ou “zonas escuras de criminalidade”. São Uma das
os crimes ignorados ou desconhecidos envolvendo criminosos que, em problemáticas
geral, vivem impunemente. centrais é o
reconhecimento
Basta um breve olhar nos noticiários diários. da existência
das chamadas
“cifras negras” ou
A constatação de que efetivamente há uma alta criminalidade não “zonas escuras de
contabilizada, e impossível de ser enfrentada pelo modelo dominante, criminalidade”. São
esvazia os argumentos e proposições das teorias que se baseiam em os crimes ignorados
estatísticas que tão somente consideram uma parte da realidade. ou desconhecidos
envolvendo
criminosos que,
O que se verifica é que não há uma forma simples de distinguir
em geral, vivem
criminosos de não criminosos e que a criminalidade é um elemento impunemente.
da vida cotidiana, que os muros da prisão separam dois mundos que
de fato não se podem separar e que não existe uma particularidade ou
característica que diferencia os delinquentes dos que não o são (MUÑOZ CONDE e
HASSEMER, 2011, p. 96).

81
Criminologia

Frente a esta realidade, as teorias tradicionais perdem sua legitimidade e


tornam-se eticamente insustentáveis. A constatação de que o criminoso é um
sujeito ao qual é imputado um delito e que a fronteira entre o “bem” e o “mal” é
mais tênue do que se pode imaginar fragiliza discurso positivista.

Além das Além das estatísticas oficiais não refletirem com exatidão a
estatísticas oficiais realidade, as aceleradas mudanças sociais e econômicas aliadas à
não refletirem pressão dos meios de comunicação – alguns menos escrupulosos que
com exatidão diariamente “vendem” seu “sangue show” – transformam os crimes
a realidade, em mercadorias “de ocasião” sem que necessariamente ocorra um
as aceleradas
aumento, uma maior frequência.
mudanças sociais
e econômicas
aliadas à pressão Para verificar a realidade, basta perguntar a um pequeno grupo
dos meios de – de trabalho ou de amigos, por exemplo - se alguma vez algum deles
comunicação – cometeu um delito ou se já foi vítima de algum crime e não denunciou.
alguns menos A resposta poderá ser surpreendente. Nem todos os delitos são
escrupulosos
perceptíveis, isto é, nem todos os crimes são “vistos” em nosso dia-
que diariamente
“vendem” seu a-dia, como, por exemplo, os “golpes” nos cofres públicos, os crimes
“sangue show” ambientais, o crime de “lavagem” etc.
– transformam
os crimes em Crimes são praticados e não há punição ou porque se desconhece
mercadorias “de o autor ou porque é de tamanha complexidade que se torna impossível
ocasião” sem que
a investigação ou porque sequer há uma vítima em particular.
necessariamente
ocorra um
aumento, uma Também boa parte dos delitos não é denunciada. Especialistas
maior frequência. afirmam que metade dos crimes não chega ao conhecimento das
autoridades. Inúmeros fatores explicam a tendência à não denúncia:
nível de prejuízo provocado, relação autor-vítima (sobretudo quando
As condições há relação afetiva ou familiar), desconhecimento ou impotência em
de organização relação as instituições oficiais (porque e como proceder em casos de
e estrutura violência), medo de denunciar e depois ficar à mercê do denunciado
operacional
por inoperância do sistema punitivo etc. Além disso, as condições de
da segurança
pública são, em organização e estrutura operacional da segurança pública são, em
geral, precárias geral, precárias e não existem recursos humanos e instrumentais
e não existem adequados para garantir investigações eficientes.
recursos humanos
e instrumentais Segundo Muñoz Conde e Hassemer (2011, p. 98):
adequados
para garantir
investigações • a criminalidade real é aproximadamente o dobro da registrada;
eficientes. • a cifra negra diverge segundo o tipo de delito;
• a cifra negra é superior no âmbito da criminalidade menos grave
do que no âmbito da criminalidade mais grave;

82
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

• as condutas delitivas são dotadas de ubiquidade e podem dar-se em todas as


camadas sociais e realizar-se por qualquer pessoa;
• as carreiras criminais não são, todavia, dotadas de ubiquidade, quer dizer,
não estão distribuídas de forma igualitária entre todas as camadas sociais e
por todas as pessoas, e dependem da cota sancionatória;
• é na delinquência juvenil que se dá uma maior porcentagem de delinquência
com uma cota sancionatória relativamente menor;
• a possibilidade de permanecer na cifra oculta depende da classe social a que
pertence o delinquente.

Em síntese, o paradigma etiológico – as teorias sobre as causas da


criminalidade – é insuficiente para solucionar a questão do crime, pois existem
fatores e variáveis relevantes que o comprometem.

Haveria uma “teoria do crime” ou uma “teoria sobre o que se considera


crime”? Haveria um criminoso ou o que existe são sujeitos convenientemente
incriminados? Quais crimes saem da zona obscura e por que outros tantos
permanecem ocultos?

A busca de respostas para estas e muitas outras questões na segunda


metade do século XX provocaram uma autêntica ruptura paradigmática na
Criminologia, redefinindo conceitos, como se verá a seguir.

3.2. O labeling approach – a teoria do etiquetamento – uma mudança


paradigmática.

A teoria do etiquetamento (tradução do termo labeling approach) A teoria do


surgiu nos anos 60 no pensamento criminológico norte-americano. etiquetamento
Tal teoria foi formada por distintas correntes e elaborada por autores (tradução do termo
como Erving Goffman, M. Lemert e Howard Becker, que defendiam a labeling approach)
proposição de que criminalidade não é a qualidade de uma conduta, surgiu nos anos
60 no pensamento
mas sim o processo de qualificação de uma conduta.
criminológico norte-
americano.
Por outras palavras, é um processo de estigmatização que se dá
tanto na esfera formal, pelos agentes da segurança pública, do judiciário
e do Direito, como na informal, pela família, escola e amigos. Assim, Criminalidade não
vão sendo construídos sujeitos estigmatizados – “criança problema”, é a qualidade de
“indisciplinada”, “desobediente”, depois jovem “rebelde”, “problemático” uma conduta, mas
sim o processo de
e mais tarde o cidadão “desajustado”, “marginal”. Há, portanto, uma
qualificação de uma
construção reforçada e aprofundada pelas inúmeras formas de controle conduta.
sociais e políticas que acabam por elaborar a subjetividade e a história
do “delinquente”.

83
Criminologia

A teoria do labeling approach parte de questões como: quem define quem?


Quem é definido como criminoso? Quais efeitos decorrem desta definição?

Como lembra Alessandro Baratta (2002, p. 89), as respostas a estas


perguntas levaram a duas direções:

• primeira: ao estudo da formação da “identidade” desviante e aos efeitos da


aplicação da etiqueta de “criminoso” (ou também de “doente mental”);
• segunda: ao problema da definição, da constituição do desvio como qualidade
atribuída a comportamentos e a indivíduos, para o estudo do poder de
“definição”, ou seja, para o estudo das agências de controle social.

A primeira direção, preocupada com a “identidade” e/ou “carreiras” desviantes,


se centrou nos efeitos da estigmatização e na formação do status social de
desviante. Na época, os estudos de H. Becker realizados com os fumantes de
maconha nos Estados Unidos mostraram a consequência da aplicação de sanção
como fator relevante para a mudança de identidade social do sujeito.

Estudos apontaram que, em geral, ocorre uma transformação na identidade


social do indivíduo após a primeira punição, produzindo-se, a partir de então, uma
estigmatização que tende a ser assumida pelo sujeito rotulado, fenômeno esse
que acaba se transformando em um processo de sucessivos comportamentos
desviados.

Tais pesquisas colocaram em questão a finalidade da pena, seja preventiva ou


reeducativa. Na verdade, esses resultados mostram que a intervenção do sistema
penal, especialmente as penas detentivas, antes de terem o fito reeducativo
sobre o delinquente, determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da
identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria
carreira criminosa (BARATTA, 2002).

A teoria do etiquetamento, em que pese representar uma novo paradigma


e gênese da Criminologia Crítica e buscar superar o modelo etiológico, ainda
se mantém presa a questão da “causa” do delito (em relação à conduta e ao
criminoso), porém não se pode afirmar que ambos se identificam.

Para Baratta (2002, p. 91-92), o paradigma etiológico em relação às “causas”


do crime entende que:

• há um sistema prévio de normas objetivas que definem o que é crime e o que


não é crime;
• há duas categorias de sujeitos e comportamentos: os normais e os desviados;

84
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

• pretende elaborar procedimentos técnicos, a fim de intervir nos


comportamentos e nos sujeitos anormais, para modificá-los.

Já a teoria do etiquetamento (paradigma do controle social) pretende


compreender o significado da rotulação (da definição) para o sujeito estigmatizado
e suas consequências em seu comportamento, bem como discutir a validade do
poder (social e institucional) que define o “mal”.

As transformações provocadas por este novo paradigma acabam por deslocar


o objeto da Criminologia para um campo específico: os processos de interação
(definição e seleção) e reação social. O interesse de investigação é deslocado do
criminoso para o grupo social e instituições que o definem como tal, analisando
os mecanismos de controle social e/ou os elementos subjacentes à tipificação
legal de determinadas condutas como criminosas e não os déficits e carências
do sujeito incriminado. No entender de Molina (2006, p. 283),” o criminoso não é
outra coisa senão vítima dos processos de seleção e definição, de acordo com
determinados paradigmas de controle”.

Sem dúvida, o labeling approach evidenciou o poder de Labeling approach


criminalização existente nas relações sociais, bem como desvelou as evidenciou o poder
contradições que servem de “combustível” ao perverso processo de de criminalização
estigmatização. E assim, as justificativas não são mais buscadas nos existente nas
controlados, mas nos controladores (MUÑOZ CONDE e HASSEMER, relações sociais,
bem como desvelou
2011, p. 115).
as contradições
que servem de
As etiquetas negativas são como corredores que
“combustível” ao
induzem e iniciam uma carreira desviante e como
prisões que constrangem a uma pessoa dentro do perverso processo
papel desviante. Para a referida autora, a rotulação de estigmatização.
seria o processo pelo qual um papel desviante se
cria e se mantém através da imposição dos rótulos
delitivos (LOLA ANIYAR DE CASTRO 1983, p. 103).

Por fim, em que pese a seriedade e contribuições do novo paradigma do


controle, há que se observar que nesta perspectiva ainda se corre o risco de uma
análise descritiva de seleção e estigmatização sem que se coloque em discussão
os antagonismos econômicos e políticos que estão na base de todo processo,
como se fosse possível isentar a ordem econômica e política da criminalização.

85
Criminologia

As Teorias Criminológicas Críticas


Os anos 60 foram marcados por grandes e irreversíveis rupturas
Os anos 60
foram marcados culturais. Também foram os anos em que os “movimentos sociais”
por grandes e entraram no cenário político e social em todo mundo.
irreversíveis
rupturas culturais. Novas ideias foram construindo um novo arsenal teórico para
Também foram lutas de grupos até então à margem dos partidos políticos, sindicatos
os anos em que
e preocupações acadêmicas. Estes movimentos tornaram visíveis
os “movimentos
sociais” entraram sujeitos coletivos portadores de uma inédita identidade: estudantes,
no cenário político afro-americanos, imigrantes, homossexuais, mulheres, pacifistas,
e social em todo ecologistas etc.
mundo.
O ano de 1968 foi marcado por um movimento que se inicia
dentro do movimento estudantil e se transforma em uma revolucionária greve
geral na França que superou barreiras étnicas e políticas, ficando mundialmente
conhecido como o mais importante movimento político ocidental da segunda
metade do século XX. Naquele momento, as identidades foram redefinidas e
social e politicamente assumidas.

Entretanto, não tardou para que estes movimentos fossem criminalizados.

Nos Estados Unidos da América, a sociedade civil reagia contra a invasão


do Vietnã e se posicionava em defesa dos direitos civis dos negros e minorias.
Ao mesmo tempo, no interior das prisões, grupos negros impuseram uma nova
consciência e dignidade aos encarcerados e logo começam a refletir sobre as
reais razões de seu encarceramento.

A frase “todo preso é político”, para os detentos, tornou-se um lema


de luta pela garantia de direitos em uma Nação onde havia a prática da pena
indeterminada para certos delitos. Este foi o caso de George Jackson (1941-
1971), que transforma em livro sua vida na prisão, que se inicia quando tinha
16 anos por ter roubado 70 dólares e lá permanece até o fim de sua existência
devido à pena indeterminada que lhe foi imposta por ter, num confronto, matado
um agente da segurança.

Pacifistas e revolucionários como Martin Luther King, “Che” Guevara, Mao e


Mahatma Gandhi tornavam-se ícones dos movimentos de contestação. Em 1974,
Jessica Mitford (1917-1996), militante política, enfrenta o duro macarthismo e
se torna porta voz das condições de vida dos presos americanos, sobretudo se
posiciona criticamente em relação aos sangrentos motins nos presídios de Folsom,
Attica e MacAlester, que acabam por demonstrar a crise do sistema penitenciário.

86
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

Denuncia o uso da pena de morte como uma forma de vida ocidental e seu livro O
negócio-prisão norte-americano torna-se leitura obrigatória.

Em todo mundo se espalham movimentos envolvendo presos e seus Em todo mundo


se espalham
familiares, bem como intelectuais que defendem reformas “positivas” do
movimentos
sistema, ou seja, melhores condições de vida para os encarcerados e envolvendo
garantia de direitos. presos e seus
familiares, bem
Na Grã Bretanha, na década de 70, surge o RAP (Radical como intelectuais
Alternatives to Prison) – movimento alternativo à prisão, e o PROP que defendem
reformas “positivas”
(Preservation of the Rights of Prisoners) – movimento que organizou
do sistema, ou seja,
várias rebeliões algumas com adesão de cinco mil detentos. Ambos melhores condições
reivindicavam desde revisão de penas e processos até melhoria nas de vida para os
condições de vida no cárcere. encarcerados e
garantia de direitos
Na França, no mesmo período, já havia o CAP (Comité d´Action
des Prisionniers), que era um grupo com participação de detentos e
intelectuais que deu origem ao pensamento criminológico crítico francês.

Na mesma direção caminhavam os detentos na Espanha, que também


estava a viver o fim do regime fascista franquista. Os presos eram divididos entre
os presos políticos e os sociais (comuns). Os políticos, com o fim do regime,
conquistaram anistia, que não foi estendida aos demais, dando origem a diversas
organizações que “lembravam” à nova democracia a existência de um
sistema prisional retrógrado e violento. Na América
Latina, apesar
Na América Latina, apesar da truculência e expansão dos regimes da truculência e
ditatoriais, os movimentos nos presídios tiveram um importante papel expansão dos
regimes ditatoriais,
na luta pela anistia política na década de 70.
os movimentos nos
presídios tiveram
Enfim, inúmeros foram os movimentos e reações a partir da década um importante
de 60 que deixaram à mostra os limites e insuficiências do sistema papel na luta pela
punitivo e que foram se aglutinando sob o genérico rótulo de “Criminologia anistia política na
Crítica”, expressão inspirada na tradição da Teoria Crítica. década de 70.

“Teoria Crítica” é a nominação de um movimento de intelectuais


vinculados à Escola de Frankfurt que tem origem em 1937, quando
Max Horkheimer utiliza a expressão em um escrito (Teoria Tradicional
e Teoria Crítica) para indicar um ideário contraposto ao modelo de
ciência dominante.

87
Criminologia

A Teoria Crítica busca chamar a atenção para o papel do intelectual


Como agente de
transformação, como agente de transformação, eliminando o pressuposto metodológico
eliminando o da ciência tradicional, que é a separação entre indivíduo e sociedade.
pressuposto A intenção do comportamento crítico é ultrapassar o da práxis social
metodológico da dominante. Sua oposição ao conceito tradicional de teoria não surge
ciência tradicional, nem da diversidade dos objetos nem da diversidade dos sujeitos. Para
que é a separação
os representantes deste comportamento, os fatos, tais como surgem
entre indivíduo e
sociedade. na sociedade, frutos do trabalho, não são exteriores no mesmo sentido
em que o são para o pesquisador ou profissional de outros ramos, que
se imagina a si mesmo como pequeno cientista (HORKHEIMER, Max.
Teoria Tradicional e Teoria Crítica. 1983, p. 45).

O projeto da O projeto da Teoria Crítica não desejava ser messiânico no sentido


Teoria Crítica de propor um novo modelo político, mas o de desalienação como
não desejava ser possibilidade de emancipação. E é exatamente aí que o conhecimento
messiânico no encontra seu lugar: o de admitir como pressuposto de racionalidade a
sentido de propor permanente dinâmica social, articulando, assim, a reflexão teórica com
um novo modelo
o processo histórico-social.
político, mas o de
desalienação como
possibilidade de Por outras palavras, o objeto privilegiado da Teoria Crítica é a
emancipação. investigação acerca da articulação dialética entre os processos de
conhecimento e transformação social. A pretensa isenção defendida
pela Teoria Tradicional mostrava-se insustentável e deveria ser
repudiada pelas consequências contra os humilhados da história. Havia servido de
perverso instrumento de legitimação de formas alienantes e alienadas de formas
de vida humana, legitimando racionalmente o enigma da “servidão voluntária”.

Desde o ensaio de Horkheimer “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, a


expressão “Teoria Crítica” foi adotada pelos teóricos da Escola de Frankfurt. No
início dos anos 30, a “teoria” foi encarada com entusiasmo. Era uma designação
que lembrava o dever imposto a todos os membros do grupo: a obrigação de
construir uma teoria da totalidade social que deveria ter como objeto os seres
humanos como produtores de sua história e de suas formas alienadas de vida.
Embora esta tenha sido uma promessa não cumprida, ela não foi traída. Manteve-
se viva. Seguramente, este é o elemento que torna a “Escola de Frankfurt” algo
sempre atual.

Os desdobramentos da “Escola de Frankfurt” e da “Teoria Crítica” são tão


vastos que é uma tarefa quase impossível estabelecer uma unidade teórica. Talvez
o mais apropriado seja considerar as tendências progressivamente estabelecidas
e mantidas graças à perseverança do “espírito crítico” que ultrapassou distintos
momentos do século XX e transformou concepções tais como as que dominavam
o pensamento criminológico.

88
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

Destacadas Correntes
Criminológicas Críticas

Criminologia Crítica é uma expressão que unifica distintas


concepções que possuem em comum o questionamento e
problematização do fenômeno da incriminação, bem como os fatores
e variáveis subjacentes ao delito.

Indo em outra direção da lógica criminológica tradicional, questiona


Questiona a
a legitimidade, as relações de poder e as instâncias de controle da
legitimidade, as
ordem social e econômica. relações de poder
e as instâncias de
Considerando os elementos identificadores do pensamento controle da ordem
criminológico crítico, apesar das diversidades, pode-se destacar social e econômica.
algumas vertentes da Criminologia Crítica, dentre as quais:

a) Criminologia Radical
O objetivo,
portanto, deve ser
Trata-se de uma corrente desenvolvida a partir dos anos 70, a transformação
nos Estados Unidos, Inglaterra, Itália e Espanha, que entende ser do sistema social,
impossível uma solução para a “questão criminal” em uma sociedade econômico e
capitalista. O objetivo, portanto, deve ser a transformação do sistema político como
social, econômico e político como um todo e, por consequência, vê na um todo e, por
consequência,
lei penal um instrumento de garantia das classes dominantes e não um
vê na lei penal
consenso social. um instrumento
de garantia das
A sustentação teórica da Criminologia Radical é a Sociologia classes dominantes
do Conflito, que nega o princípio do interesse social e delito natural e não um consenso
(BARATTA, 2002, p. 119-120), já que: social.

• os interesses que estão na base da formação e aplicação do Direito Penal são


os dos grupos com poder de influência no processo de criminalização, cujos
interesses são garantidos através da lei penal, portanto, seus interesses não
são os interesses comuns a todos os cidadãos;
• a criminalidade é uma realidade social criada através do processo de
criminalização, portanto, é sempre um produto político.

89
Criminologia

Nesta perspectiva, não há que se falar em ressocialização do incriminado,


mas sim em transformação radical da sociedade, uma vez que não se propõe
em analisar o crime em si, como resultado de circunstâncias próprias, mas sim
criticar o ordenamento e buscar respostas para uma criminalidade tão crescente,
de níveis altíssimos (VALOIS,1991).

Juarez Cirino dos Santos (2006, p. 10-1), destacado criminólogo e


representante da Criminologia Radical no Brasil, explica o porquê de serem
questionáveis as estatísticas oficiais como ponto de partida para os estudos
criminológicos:

a) os crimes da classe trabalhadora desorganizada (...), integrantes da


“criminalidade de rua” (de natureza essencialmente econômica e violenta) são
super-representados nas estatísticas criminais porque apresentam (em um
primeiro nível de análise) os seguintes caracteres: constituem uma ameaça
generalizada ao conjunto da população, são produzidos pelas camadas mais
vulneráveis da sociedade e apresentam a maior transparência ou visibilidade,
com repercussões e consequências mais poderosas na imprensa, na ação da
polícia, do judiciário etc.;

b) os crimes da classe trabalhadora organizada, integrada no mercado de


trabalho (a chamada criminalidade de fábrica, como apropriações indébitas,
furtos, danos etc.), não aparecem nas estatísticas criminais pelas obstruções
dos processos criminais sobre os processos produtivos;

c) a criminalidade da pequena burguesia (profissionais, burocratas,


administradores etc.), geralmente danosa ao conjunto da sociedade (a
dimensão inferior da criminalidade de “colarinho branco”), raramente aparece
nas estatísticas criminais, e a grande criminalidade das classes dominantes
(as burguesias financeira, industrial e comercial), definida como “abuso de
poder” (econômico e político), a típica criminalidade de “colarinho branco”
(especialmente das corporações transnacionais), produtora do mais intenso
dano à vida e à saúde da coletividade, e ao patrimônio social e estatal, está
excluída das estatísticas criminais.

Portanto, as políticas criminais construídas a partir das estatísticas


tradicionais são parciais e estigmatizantes, devendo, assim, ser implementada
uma transformação política dos códigos penais, já que são elaborados a partir de
uma ética discutível, defendendo valores arbitrariamente selecionados que não
representam um consenso geral.

Roberto Lyra Filho condensa o fundamento e legitimidade da Criminologia


Radical afirmando:

90
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

Dadas as relações de produção, o modo de produção,


representando a infraestrutura social; e as classes, nele
divididas; dada a dominação de uma classe, a Ideologia
e as instituições, com seus aparelhos; dada a articulação
das Instituições, o Estado; dado o Estado, o “Direito”, que
exprime e resguarda os interesses e privilégios da classe
dominante; dado o “Direito”, como síntese de “tradição, família
e propriedade” (sobretudo a última, é claro), o Direito Criminal;
dado o Direito Criminal, o processo e Julgamento e, no
capitalismo, a prisão, a que praticamente só chegam as classes
dominadas; dada a prisão, como um espelho do universo
social da estrutura capitalista, uma espécie de imitação
interna das relações de classe, com os mitos da reeducação e
defesa social, em última análise disfarçando o castigo, que cai
sobre o espoliado; dada tal situação Institucional, a cobertura
ideológica, em que todas as criminologias, salvo a Radical,
constituem reforço e disfarce (consciente ou não) do mesmo
processo de dominação. (http://danielafeli.dominiotemporario.
com/doc/tratado_lyra_filho2.pdf).

Embora elaborada em meio a um contexto político específico Embora elaborada


nas décadas de 70 e 80, o regime ditatorial no Brasil, a Criminologia em meio a um
Radical permanece atual e relevante para os que buscam ir além das contexto político
verdades dogmáticas. O compromisso com os menos favorecidos, os específico nas
humilhados da história e a defesa de claros objetivos de mudança não décadas de 70
apenas metodológica ou teórica, mas de modelo de sociedade, é algo e 80, o regime
ditatorial no Brasil,
que sempre deve ser levado em conta para os mais atentos.
a Criminologia
Radical permanece
atual e relevante
b) As correntes abolicionistas para os que
buscam ir além
Não há uma única Criminologia Abolicionista, mas várias versões das verdades
sobre o abolicionismo penal. Algumas correntes defendem a abolição dogmáticas.
da pena (de prisão e de morte), outras, a justiça criminal se dividindo
entre abolicionistas propriamente ditos e minimalistas (defesa de um direito
penal mínimo).

O movimento abolicionista, como outros da corrente crítica criminal, surgem


como vertentes da Nova Criminologia ou Criminologia Crítica nas décadas de 60
e 70, na tentativa de uma ruptura com o modelo tradicional se contrapondo ao
paradigma etiológico.

O ponto em comum das distintas correntes abolicionistas é a constatação da


ilegitimidade dos mecanismos sociais de controle, dentre os quais o sistema penal.
A proposta é a substituição do modelo dominante por medidas preventivas e formas
de resolução dos conflitos por metodologias fundadas na lógica da pacificação e
solidariedade social, através de estratégias especificas, a exemplo da Justiça
Restaurativa, que é uma prática de solução de conflitos onde a vítima e o agressor,

91
Criminologia

após um processo de restauração pessoal e emocional com ajuda de profissionais


de várias áreas, são colocados frente a frente para uma autocomposição.

A tônica também comum dos abolicionistas é, a partir de premissas


humanizadoras, a necessidade de substituição do sistema punitivo por outro mais
efetivo, uma vez que o modelo atual, antes de ressocializar e restaurar o criminoso,
serve mais como uma “fábrica” rotineira de mais violência, estigmatizando a
personalidade do incriminado e, como consequência, criando e reproduzindo
delinquência. Além de que, no atual modelo, a vítima é um mero apêndice, quando
muito “informante”. A ela não é dada, por parte do poder público e da sociedade,
uma resposta satisfatória, o que alimenta mais ódio e desejo de vingança.

Portanto, há uma preocupação tanto com o aquele que viola


Há uma
preocupação tanto direitos como com o que é violado. Propõe uma nova cultura jurídica,
com o aquele social e política pautada na tolerância e respeito humano.
que viola direitos
como com o que é Ao lado dos nomes de Thomas Mathiesen e Nils Christie, é
violado. relevante o de Louk Hulsman (1923-2009). Penalista, criminólogo e
professor da Universidade de Rotterdam (Holanda), é um dos ícones
do pensamento abolicionista. O livro “Penas Perdidas – o sistema penal em
questão”, escrito em coautoria com Jacqueline Bernat de Celis, publicado em
1982, influenciou toda uma geração de penalistas críticos.

Hulsman frisava que, além da dúvida em relação à eficácia da


O sistema punitivo
nunca funcionará prisão, o sistema punitivo nunca funcionará de acordo com o discurso
de acordo com e princípios que tentam legitimá-lo, a não ser de forma excepcional.
o discurso e Como libertário, ao pensar em justiça criminal, o que coloca em questão
princípios que é todo um imaginário e projeção cultural e social que deve ser abolido.
tentam legitimá-lo, Resgatando criticamente a herança cristã medieval maniqueísta,
a não ser de forma que divide os seres humanos entre bons e maus, “culpa”, “expiação”
excepcional.
e “juízo final”, demonstra que “crime” é uma construção sociocultural
individualizada, a qual o Estado deve responder com repressão.

Isso conclui que o sistema punitivo é, portanto, um forte e grande aparato


burocrático que retira da vítima sua relevância no ocorrido e subdivide a atuação
em fragmentos aparentemente desconexos.

Nas palavras do autor:

a justiça criminal consiste, por um lado, nas atividades de


certas agências, sendo elas o fruto da organização cultural
e social descrita previamente e, por outro lado, na recepção
e legitimação dessas atividades nos diferentes segmentos
da ‘sociedade’. A abolição dirige-se a ambas as áreas: as
atividades das organizações e sua recepção na ‘sociedade’
(HOULSMAN, 1997, p. 201).

92
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

A abolição do sistema punitivo, na concepção de Hulsman, é


Uma tarefa que se
uma tarefa que se impõe ao conjunto da sociedade que, sem abolir impõe ao conjunto
a punição, seja capaz, a partir da deslegitimação do sistema, de criar da sociedade
novos mecanismos e procedimentos que não reproduzam a lógica que, sem abolir
autoritária e possam efetivamente responsabilizar os realmente a punição, seja
envolvidos em um conflito. capaz, a partir da
deslegitimação
do sistema,
Desta forma, sem pretender eliminar as responsabilizações, de criar novos
quer individuais, quer coletivas, e as necessárias correções e mecanismos e
recomposições, idealiza novas formas de relações que passariam a procedimentos que
ser horizontais e solidárias a partir de uma perspectiva de futuro. Isto não reproduzam a
é, obter uma solução punitiva legítima a partir da autocomposição do lógica autoritária
e possam
conflito construída pelos diretamente envolvidos nele.
efetivamente
responsabilizar
Abandonando uma perspectiva retributiva – a que norteia o os realmente
sistema – Hulsman (1997, p. 210) propõe não apenas o desmonte do envolvidos em um
sistema, mas também o das palavras que o legitimam e sustentam. conflito.
Com o objetivo de projetar novas alternativas culturais e ideológicas,
substitui termos como:

• situações de conflito ao invés de comportamento;


• natureza problemática ao invés de natureza ilegal criminosa;
• a entrada em cena do agressor quando a vítima define o ocorrido de forma a
torná-lo irrelevante;
• perspectiva de futuro (restauradora);
• “o que pode ser feito?” para recompor agressor e vítima.

Figura 3 – Louk Hulsman

Fonte: Disponível em: <http://www.loukhulsman.org/>.


Acesso: 10 de fev. de 2012.

Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o


sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de

93
Criminologia

cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o


desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num
convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma
nova justiça.
(Louk Hulsman)

Portanto, Hulsman via o conflito a partir da própria realidade e não a partir


da máquina estatal e, por adotar este horizonte, pode ser considerado um dos
pensadores mais coerentes e corajosos da Criminologia Crítica que faz uma clara
opção pela força política da organização comunitária. Como professor de Direito,
vai além dos dogmas acadêmicos para criar alternativas otimistas e humanizadoras.

c) As Correntes Minimalistas ou Garantistas

Na Europa, em meio ao confronto contra um Direito Penal


Na Europa, em
meio ao confronto autoritário herdado de regimes ditatoriais e a necessidade de
contra um Direito mecanismos jurídicos e legais eficientes contra o terrorismo, surge, em
Penal autoritário fins da década de 70, o pensamento minimalista ou garantista.
herdado de
regimes ditatoriais Como tentativa de manter uma tradição penal ilustrada e humanista
e a necessidade
frente à ameaça de retorno ao Estado com poderes ilimitados, juristas
de mecanismos
jurídicos e legais politicamente definidos passam a militar em favor de um constitucionalismo
eficientes contra e ordem jurídica democrática através da defesa das garantias resguardadas
o terrorismo, pelo Estado de Direito.
surge, em fins da
década de 70, Definindo a lei penal como a lei do mais fraco, do débil, Ferrajoli
o pensamento
(2010) define “Garantismo” como:
minimalista ou
garantista.
[...] a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja
satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o
objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos
cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições,
a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos,
a dignidade da pessoa do imputado, e, consequentemente,
a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito
à verdade. É precisamente a garantia destes direitos
fundamentais que torna aceitável por todos, inclusive pela
minoria formada pelos réus e pelos imputados, o direito penal e
o próprio princípio majoritário (FERRAJOLI, 2010, p. 312).

Enquanto perspectiva teórica, coexistem distintos minimalismos que possuem


como ponto de convergência a crítica, não somente ao Direito Penal, mas ao
sistema punitivo que o institucionaliza, incluindo tanto a cultura política e jurídica
punitiva quanto a máquina estatal que o efetiva. Nesta perspectiva, destacam-se
os pensadores Alessandro Baratta e Luigi Ferrajoli.

Filósofo do direito e “cidadão do mundo”, como gostava de ser chamado,


94
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

Alessandro Baratta (1933 – 2002) reivindicava, através da aproximação


Alessandro Baratta
entre o direito penal e a Criminologia, uma política criminal alternativa (1933 – 2002)
transformadora da ordem social e política. Sintetizando o pensamento reivindicava,
crítico criminal e jurídico, a obra Criminologia crítica e crítica ao direito através da
penal, publicada em 1982, formula uma nova ciência penal e criminal a aproximação entre
partir de valores humanistas. o direito penal e
a Criminologia,
uma política
No artigo “Princípios do Direito Penal Mínimo – para uma teoria
criminal alternativa
dos direitos humanos como objeto e limites da lei penal”, publicado transformadora
em 1980, Baratta resume as fragilidades e limites do sistema punitivo da ordem social e
tradicional nos seguintes pontos: política.

• a pena, em suas manifestações mais drásticas, que tem por objeto


a esfera da liberdade pessoal e da incolumidade física dos indivíduos, é
violência institucional;
• os órgãos que atuam nos distintos níveis de organização da justiça penal
(legislador, polícia, ministério público, juízes, órgãos de execução) não
representam nem tutelam interesses comuns a todos os membros da
sociedade senão, prevalentemente, os interesses de grupos minoritários
dominantes e socialmente privilegiados;
• o funcionamento da justiça penal é altamente seletivo, seja no que diz respeito
à proteção outorgada aos bens e aos interesses, seja no que concerne ao
processo de criminalização e ao recrutamento da clientela do sistema. Todo
ele está dirigido contra as classes populares e, em particular, a grupos sociais
mais débeis;
• o sistema punitivo produz mais problemas do que pretende resolver;
• o sistema punitivo, por sua estrutura organizativa e pelo modo em que funciona,
é absolutamente inadequado para desenvolver as funções socialmente úteis
declaradas em seu discurso social.

Propõe uma
A partir destas constatações, enumera um conjunto de princípios
nova disciplina
relativos a critérios metodológicos e políticos para a descriminalização integradora e um
e para a solução dos conflitos e problemas sociais de forma alternativa. novo discurso sobre
Ao final, propõe uma nova disciplina integradora e um novo discurso a política. Uma
sobre a política. Uma nova concepção de democracia, uma “refundação nova concepção
do Estado e do Direito”, baseada no princípio da inclusão das vítimas de democracia,
e dos que mais sofrem. Uma nova cidadania cosmopolita global uma “refundação
do Estado e do
construída a partir de um novo contrato social que possa incluir os
Direito”, baseada
antes excluídos. no princípio da
inclusão das
Conclui Baratta que uma política criminal alternativa deve ser vítimas e dos que
dirigida para a perspectiva de uma máxima contração, no limite de mais sofrem.

95
Criminologia

supressão, do sistema penal – aí reside a característica minimista – superando a


pena sem que, entretanto, se abandone o direito.

Em suas palavras:

Seria muito perigoso para a democracia e para o movimento


operário cair na patranha, que atualmente lhe é armada, e cessar
de defender o regime das garantias legais e constitucionais
que regulam o exercício da função penal no Estado de direito.
Nenhum compromisso deve ser feito sobre este ponto, com
aquelas forças da burguesia que, por motivos estruturais bem
precisos, estão interessadas em fazer “concessões” ou recuar
em matéria de conquistas do direito burguês e do Estado
burguês de direito (BARATTA, 2002, p. 206).

Figura 4 – Alessandro Baratta

Fonte: Disponível em: <http://cleciolemos.blogspot.com.br/2011/02/seminario-


internacional-francasp.html>. Acesso em: 10 de fev. de 2012.

Nós sabemos que substituir o direito penal por qualquer coisa


melhor somente poderá acontecer quando substituirmos a
nossa sociedade por uma sociedade melhor.

(Alessandro Baratta)

Luigi Ferrajoli (1940) é um pensador contemporâneo cujo esforço


Luigi Ferrajoli é o de resgatar o papel limitador do Direito Penal às arbitrariedades
(1940) é um do Estado, a exemplo dos iluministas, que buscaram estabelecer
pensador limitações ao poder absolutista. Acreditando na manutenção do Estado
contemporâneo e do Direito, lança, em 1986, o artigo “O direito penal mínimo”, em
cujo esforço é que sustenta e justifica a permanência do sistema penal e da pena no
o de resgatar o
Estado democrático através de um direito penal mínimo, que deveria
papel limitador do
Direito Penal às ser denominado direito garantista, tese que desenvolve na magistral
arbitrariedades do obra “Direito e Razão”, publicada em 1989.
Estado, a exemplo
dos iluministas, Na perspectiva garantista, não se vislumbra a possibilidade de fim
que buscaram de Estado e do sistema punitivo, já que a supressão não apenas do
estabelecer direito penal, mas da própria pena, levaria a sociedade a uma anarquia
limitações ao poder
punitiva, a “utopias regressivas”, como chama as respostas estatais ou
absolutista.
sociais que poderiam surgir com o fim do sistema punitivo.

96
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

Resgatando, historicamente, a partir desta ótica, o papel “civilizador” do sistema


penal, idealiza um modelo que sujeita o direito positivo ao Estado constitucional de
direito, no qual as normas jurídicas passam a ser legitimadas tanto na dimensão
formal (o caráter positivo das normas) como no substancial (valores).

O modelo normativo de direito, estruturado a partir do princípio da legalidade,


assume um papel de garantia em relação ao ilegítimo em relação a vários fatores.

Em relação à pena:

1) nulla poena sine crimine - emprego do princípio da retributividade - o Estado


somente pode punir se houver prática da infração penal;

2) nullum crimen sine lege - é o princípio da legalidade, que preconiza quatro


preceitos: a) o princípio da anterioridade penal; b) a lei penal deve ser escrita,
vedando desta forma o costume incriminador; c) a lei penal deve também
ser estrita, evitando a analogia incriminadora; d) a lei penal deve ser certa,
ou seja, de fácil entendimento; decorre daí o princípio da taxatividade ou da
certeza ou da determinação;

3) nulla lex penales sine necessitate ou princípio da necessidade, ou como


modernamente é denominado, princípio da intervenção mínima - não há lei
penal sem necessidade. O direito penal deve ser tratado como a derradeira
opção sancionatória no enfrentamento aos comportamentos humanos
indesejados.

Em relação ao delito:

1) nulla necessitas sine injuria ou princípio da lesividade ou ofensividade - não


há necessidade se não há também uma relevante e concreta lesão ou perigo
de lesão a um bem jurídico tutelado;

2) nulla injuria sine actione ou princípio da exterioridade da ação, que proíbe a


criação de tipos penais que punam o modo de pensar, o estilo de vida. Há
somente a punição pela ação ou omissão do homem, pois o direito penal é do
fato e não do autor;

3) nulla actio sine culpa ou princípio da culpabilidade - deve-se apurar o grau


de culpa (dolo ou culpa stricto senso) para então dosimetrar a punição pela
prática humana.

Em relação ao processo:

1) nulla culpa sine judicio ou princípio da jurisdicionariedade - não há


reconhecimento de culpa sem que o órgão jurisdicional a reconheça;

97
Criminologia

2) nullum judicium sine acusationes ou princípio acusatório - o poder judiciário


não afirma o direito de ofício, devendo ser provocado; referido poder é inerte
(princípio da inércia);

3) nulla acusation sine probatione ou princípio do ônus da prova - não há


acusação sem a existência de prova ou suficiente indício de autoria;

4) nulla probation sine defensione ou princípio da ampla defesa e do contraditório.

Desta proposição, Ferrajoli entende que ficam asseguradas as garantias


para a imputação da responsabilidade penal e consequente aplicação de sanção.
Esclarece que o modelo é idealizado a partir e uma lógica sistêmica normativa
aberta, isto é, suscetível de inclusão de novas garantias.

O fundamento O fundamento do direito penal mínimo ou garantista não


do direito penal seria o bem estar ou interesses dos governantes, mas os dos
mínimo ou governados, sendo este o fundamento justificador da punição, embora
garantista não reconhecendo que, apesar de limitado pelas garantias, o direito penal
seria o bem estar sempre conserva uma brutalidade intrínseca, o que torna incerta e
ou interesses dos frágil sua legitimidade política.
governantes, mas
os dos governados.
Figura 5 – Luigi Ferrajoli

Fonte: Disponível em: <http://republicainacabada.blogspot.com.br/2009/03/


ferrajoli-principia-iuris.html>. Acesso em: 10 de fev. de 2012.

O “garantismo” não tem nada a ver com mero legalismo, ou formalismo ou


processualismo. Aquele consiste sim na satisfação de direitos fundamentais: aos
quais – da vida à liberdade pessoal, da liberdade civil e política às expectativas
sociais de subsistência, dos direitos individuais aos coletivos – representam os
valores, os bens e os interesses, materiais e pré-políticos, que fundam e justificam
a existência daqueles “artifícios” – como chamou Hobbes – que são o direito e o
Estado, e cujo gozo por todos forma a base substancial da democracia. (L. Ferrajoli)

98
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

A Crítica Criminalista na América Latina


Compreender a lógica punitiva latino-americana implica
Compreender a
necessariamente retornar ao século XV quando, como resultado lógica punitiva
da ampliação do poder e interesses de uma classe de comerciantes latino-americana
europeus enriquecidos, se instaura uma ordem colonialista mantida implica
através de violentos instrumentos de controle. Reproduzindo e necessariamente
especializando, segundo a necessidade colonialista, a concepção retornar ao século
punitiva das metrópoles europeias, foi imposta uma férrea estrutura XV quando,
como resultado
de dominação que se exerceu sob a forma de autêntico genocídio,
da ampliação do
destruindo as tradicionais formas de organização social pré-existentes poder e interesses
e reduzindo a população local à condição de escravos. de uma classe
de comerciantes
Como lembra E. Zaffaroni: europeus
enriquecidos, se
Fora da Europa, o poder colonialista legitimado instaura uma ordem
por estes discursos exerceu-se sob a forma de colonialista mantida
genocídio, eliminando a maior parte da população através de violentos
americana, desbaratando suas organizações sociais instrumentos de
e políticas e reduzindo os sobreviventes à condição
controle.
de servidão e escravidão. A exigência de mão-
de-obra extrativa determinou o tráfico escravista
africano, levado a cabo por comerciantes ingleses, franceses e
holandeses, que compravam prisioneiros e inimigos dos régulos
da costa da África, provocando, deste modo, a destruição das
culturas pré-coloniais dos dois continentes (ZAFFARONI, E.
Raúl. O inimigo do direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão.
Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007, p. 34-35).

O colonialismo europeu exerceu o poder punitivo de forma duramente


O colonialismo
seletiva. Aos “iguais”, o tratamento, apesar de diferenciado, raramente europeu exerceu o
os atingia. Porém ao “estranho” ou “inimigo”, considerado sempre um poder punitivo de
“problema”, sua “indesejável” existência era eliminada ou em massa ou forma duramente
de forma indiscriminada, “neutralizando-o” assim por toda eternidade. seletiva.

A eliminação era o “remédio” preventivo aos que desafiavam


a ordem e os distinguia como inferiores, já que eram destinados tão A eliminação
somente à exploração (ZAFFARONI, 2007, p. 37). era o “remédio”
preventivo aos
que desafiavam
Nas palavras de Stuart Schwartz, no Brasil Colonial, a
a ordem e os
incompetência e inoperância judicial contribuíram para a prática de distinguia como
excessos e ilegalidades de toda espécie. A lei portuguesa vigente na inferiores, já que
colônia dizia respeito somente aos europeus, praticamente inexistindo eram destinados
proteção jurídica para as relações entre os europeus e os indígenas. tão somente
à exploração
Tal situação é descrita por Schwartz ao se referir ao episódio em que (ZAFFARONI,
2007, p. 37).
o missionário jesuíta Manoel da Nóbrega descreve a punição imposta a
99
Criminologia

um índio que havia assassinado um português: foi colocado na boca de um canhão


e literalmente feito em pedaços (SCHWARTZ, 1979, p. 26). Esta prática punitiva
rapidamente “ensinava” aos nativos para qual lado pendia a balança da justiça e
deixava claro que não havia limites para o abuso e arbítrio dos colonizadores.

Entretanto, mesmo após a independência, o exercício do poder


Entretanto,
mesmo após a punitivo na América colonial permaneceu sem muitas mudanças.
independência,
o exercício do A autonomia política não significou conquista de cidadania para a
poder punitivo na grande massa populacional. Foi um processo que serviu de ascensão
América colonial política e econômica das oligarquias locais. A administração da justiça
permaneceu sem permaneceu nas mãos dos latifundiários, com sua prática de pena de
muitas mudanças.
morte privada, arbitrariedades e conivência política dos frequentes
Estados de exceção corruptos, que fizeram parte permanente da
história da América Latina.

Sempre com alto grau de seletividade e discriminação, no século XIX, ao


ser elaborada a legislação local – dentre a qual a penal – apesar da tentativa
de incorporação do Liberalismo europeu com seus princípios humanizadores, os
códigos foram feitos de modo a servir aos interesses das elites.

No Brasil, por exemplo, o Código Criminal de 1830 é muito revelador sobre


a mentalidade etnocêntrica e autoritária dominante. Os negros, destituídos de
direitos civis, encontraram na legislação penal seu lugar. Em relação aos escravos,
era prevista a substituição de pena de morte por açoite, para que não
houvesse prejuízo a seu dono. Claramente a norma pretende garantir o
No pós-guerra direito de propriedade do senhor e não servir de garantia ao incriminado.
mundial, uma Além de que as penas mais duras eram destinadas sempre aos escravos.
soma de fatores
internos e externos
O fim das velhas oligarquias coloniais é marcado na América
nos países
Latina com o surgimento dos chamados regimes populistas no século
latino-americanos
acaba por gerar, a XX e o sistema punitivo assume uma face paternalista. O populismo
pretexto de conter o abriu espaço político para setores sociais até então marginalizados e
“perigo vermelho”, excluídos, desafiando os interesses e ideologias mais conservadoras.
a ingerência dos
Estados Unidos No pós-guerra mundial, uma soma de fatores internos e externos
nas políticas locais, nos países latino-americanos acaba por gerar, a pretexto de conter
apoiando golpes
o “perigo vermelho”, a ingerência dos Estados Unidos nas políticas
que instalaram
regimes ditatoriais locais, apoiando golpes que instalaram regimes ditatoriais militarizados
militarizados mantidos através de toda forma de terrorismo de Estado e violência.
mantidos através
de toda forma As ditaduras de “segurança nacional” latino-americanas, a exemplo
de terrorismo de da Argentina, Chile e Brasil, não só praticaram o extermínio em nome
Estado e violência. da “ordem” e “segurança” como também não mediram esforços em

100
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

eliminar e combater declarada, e em não raras vezes extralegalmente, com


execuções, qualquer tentativa de mudança.

Como lembra Zaffaroni (2007, p. 51), nestes países o sistema punitivo se


desdobrou em um “sistema penal paralelo” – que eliminava mediante detenções
administrativas ilimitadas (invocando estados de sítio, de emergência, de
guerra que duraram anos) – e o “sistema penal subterrâneo” – que exterminava
diretamente por morte e desaparecimento forçado sem nenhum processo legal.

Através do sistema “subterrâneo” foram cometidos milhares de homicídios,


torturas, suplícios de toda natureza, crimes sexuais, roubos, sequestros, crianças
retiradas de seus pais presos políticos e entregues à adoção, enfim, toda uma
gama de crueldades e violência sem qualquer preocupação com a legalidade.

Nos anos 60 e 70, quando ganhou força a teoria crítica, a América Latina
vivia um momento de luta política contra a dominação das velhas oligarquias que
haviam se aliado aos Estados Unidos para a manutenção dos regimes de exceção.
Era tempo de buscar superar o subdesenvolvimento e as profundas diferenças
sociais e, ao mesmo tempo, de “libertação”, e sob este lema os movimentos
sociais, a juventude e intelectuais progressistas começam a se mobilizar e reagir
contra o regime político e as classes dirigentes.

A resposta foi a implementação de políticas genocidas e terrorismo de


Estado, que contava com o apoio dos tradicionais instrumentos burocráticos de
violência legitimados por uma lógica punitiva legalista e formal que levava a cabo
a repressão sanguinária.

Neste momento, a vida de muitas pessoas tornou-se dramática e foi impossível


negar o compromisso político e intelectual de denunciar e romper com o modelo
instaurado. Sob estas é construído o pensamento crítico latino-americano.

O marco é o ano de 1974, quando se realiza na Venezuela um congresso


de criminologia que centralizou a discussão em torno da violência institucional
e das ideias alternativas à “velha” criminologia. Críticos europeus se reúnem a
corajosos intelectuais como Lola Aniyar de Castro e Rosa del Olmo para refletir
contra o imperialismo violento e o modelo de Criminologia que o sustentava.

Na ocasião, Franco Basaglia (1924-1980), psiquiatra que revolucionou o


sistema de saúde mental na Itália, declarava que em Maracaibo a velha criminologia
morria e uma nova ciência alternativa abria passagem para uma visão mais humana.

A partir de então iniciaram estudos sobre a influência do positivismo


criminológico no sistema punitivo local e as distorções teóricas e práticas
geradas. Em outras palavras, a questão passava a ser a discussão acerca

101
Criminologia

dos efeitos da dependência do saber criminológico eurocêntrico


A partir de então
iniciaram estudos conservador na organização do sistema punitivo e repressivo latino-
sobre a influência americano.
do positivismo
criminológico Além dos críticos venezuelanos na Colômbia, Panamá, Costa Rica
no sistema e México, no final da década de 70 era ampliada e redimensionada a
punitivo local e as reflexão criminológica, criando-se institutos de pesquisa – a exemplo
distorções teóricas
do ILANUD (Instituto Interamericano de Direitos Humanos da OEA) –
e práticas geradas.
Em outras palavras, e grupos de pesquisa articulada que passaram a investigar questões
a questão passava relativas à violência, aos crimes de colarinho branco, à corrupção, ao
a ser a discussão terrorismo de Estado etc.
acerca dos efeitos
da dependência do O resultado foi mais além do que a redefinição teórica da
saber criminológico Criminologia. Ganhou espaço a denúncia de um sistema repressivo
eurocêntrico
fundado em uma “Criminologia do Terror”, como foi definida por Emilio
conservador na
organização do Garcia Méndez a prática argentina feita nos “subterrâneos” conivente
sistema punitivo e com as atrocidades cometidas pelo Estado.
repressivo latino-
americano. Especial destaque merece Eugenio Raúl Zaffaroni, que na Argentina
ditatorial estudou e assumiu compromisso intelectual com o penalismo
crítico, o que batizaria com o nome de “realismo marginal” a defesa de um
pensamento penal a partir da “margem” latino-americana. A “marginalidade punitiva”
confere, para o pensador argentino, características próprias ao sistema punitivo da
periferia do capitalismo mundial, constituindo-se como parte de uma estrutura de
poder que não pode ser modificada sem a supressão do próprio sistema penal.

Destacado militante de Direitos Humanos, seus trabalhos realizados no


Instituto Interamericano de Direitos Humanos na década de 80 constituem o
estudo mais completo sobre o sistema punitivo latino-americano.

Na clássica obra “Em busca das penas perdidas”, publicada em 89, afirmava
que na América Latina o discurso penal é falso. A dor e a morte que nossos
sistemas penais semeiam estão tão perdidas que o discurso jurídico-penal não
pode ocultar seu desbaratamento, valendo-se de seu antiquado arsenal de
racionalizações reiterativas: achamo-nos, em verdade, frente a um discurso que
se desarma ao mais leve toque com a realidade.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas – a


perda de legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia Romano
Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1991.

102
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

A obra apresentada no Léo demonstra que o sistema penal latino-americano


é absolutamente incapaz de conter a violência e é mantido não por má fé nem
mera conivência, mas pela incapacidade de ser substituído por outro exatamente
pela necessidade de serem defendidos, pelo sistema penal, os direitos de certos
indivíduos em detrimento de outros.

Neste sentido, Zaffaroni afirma que:

A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições


para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada,
a concentração de poder, a verticalização social e a destruição
das relações horizontais ou comunitárias não são características
conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os
sistemas penais (ZAFFARONI, 1991, p. 15).

Conclui que o termo “crise” não é o adequado para rotular o fenômeno de


contradição entre o discurso jurídico-penal e a realidade operacional do sistema
punitivo. O sentido da “crise”, como lembra, é a aceleração do descrédito do
discurso jurídico-penal. “Crise é o momento em que a falsidade do discurso jurídico-
penal alcança tal magnitude de evidência, que este desaba, desconcertando o
penalismo na região” (ZAFFARONI, 1991, p. 16).

Segundo seu entendimento, o sistema penal latino-americano é de uma


operacionalidade social extremamente violenta e à margem de qualquer
legalidade, bastando lançar um breve olhar às informações dos relatórios e
informes internacionais de direitos humanos. Estas violações, aliadas aos altos
índices de corrupção e o “benefício” recebido por agentes públicos direta ou
indiretamente do crime, são elementos que por si só deslegitimam o sistema
penal e punitivo na América Latina. De fato, diz, há um verdadeiro “genocídio em
marcha” (ZAFFARONI, 1991, p. 439).

E pior, denuncia Zaffaroni (1991): o sistema não apenas viola O sistema não
direitos. É deslegitimo e deteriora seus operadores sem que estes apenas viola
percebam. Refletindo sobre a regressão humana que acaba por gerar direitos. É
falsas identidades e papéis sociais negativos aos que manejam – ou deslegitimo e
acreditam manejar – o sistema, afirma: deteriora seus
operadores
O processo de treinamento a que é submetido é sem que estes
igualmente deteriorante da identidade e realiza- percebam.
se mediante uma paciente internalização de
sinais de falso poder: solenidades, tratamentos monárquicos,
placas especiais ou automóveis com insígnias, saudações
militarizadas do pessoal de tropa de outras agências etc.
(ZAFFARONI, 1991, p. 141).

E conclui:

103
Criminologia

Contemplando a policialização, a burocratização e a


criminalização, o sistema penal é um complexo aparelho de
deteriorização regressiva humana que condiciona falsas
identidades e papéis negativos (ZAFFARONI, 1991, p.143).

Sua proposta é de uma resposta “marginal” que deslegitima o modelo


imposto a partir de uma perspectiva otimista, capaz de diminuir a violência em
detrimento da valorização exclusiva do sistema.

Indo nesta direção, propõe como estratégia uma intervenção penal


Propõe como
estratégia uma mínima e humanização política e social máxima.
intervenção
penal mínima No Brasil, em meio ao regime ditatorial, instala-se um imaginário
e humanização penal mais radical, que instiga a libertação das representações e
política e social idealizações tradicionais e, paulatinamente, intelectuais engajados
máxima.
politicamente assumem um discurso crítico, ampliando espaços de
discussão.

Nomes como os de Heleno Cláudio Fragoso, Ester Kosovski, Juarez Cirino


dos Santos – autor das importantes obras “Criminologia da Repressão” (1979)
e “Criminologia Radical” (1891) – e Vera Regina de Andrade, não podem deixar
de serem lembrados pelas relevantes contribuições na elaboração de uma
Criminologia crítica no Brasil.

Em síntese, refletindo sobre as contribuições do pensamento crítico para a


Criminologia, em particular para a América Latina, parece importante lembrar que
cumpriu o papel de tornar explícito o limite, as falácias e as impossibilidades da
teoria tradicional. A busca de um controle técnico e científico pautado no modelo
de racionalidade construída pela Modernidade nos levou a negligenciar ou não
perceber os elementos que estão subjacentes a todo seu discurso.

Usando de metáfora, pode-se afirmar que a “dormência” intelectual


Usando de
metáfora, pode- não é boa companheira. Gera “monstros” nem sempre domáveis, tal
se afirmar que como a gravura de Francisco Goya (1746-1828) “O Sonho da Razão
a “dormência” Produz Monstros”, abaixo reproduzida.
intelectual não é
boa companheira. Assim como a imagem de Goya, a Criminologia crítica visibilizou
os monstros criados e alimentados pela razão moderna, que acreditou
e legitimou delírios enquanto dormia.

104
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

Figura 6 – O sonho da razão produz monstros

Fonte: Disponível em: <http://tecituras.wordpress.com/


tag/goya/>. Acesso: 14 de fev. de 2012.

Atividade de Estudos:

Em fins de 2011 chegava às livrarias a obra “Justiça – pensando


alto sobre violência, crime e castigo” de autoria de Luiz Eduardo
Soares, lançada pela Editora Nova Fronteira. Soares é antropólogo,
cientista político e escritor, considerado ainda um dos maiores
especialistas em Segurança Pública no Brasil, razão pela qual foi
Secretário de Segurança Pública no Rio de Janeiro – governo de A.
Garotinho – e participou da Secretaria Nacional de Segurança Pública
durante o governo Lula. Entretanto, é mais conhecido pela publicação
dos livros “Elite da Tropa” e “Elite da Tropa 2”, que serviram de roteiro
para filmes que abordaram a problemática questão que envolve os
trabalhadores da Segurança Pública no Rio de Janeiro.

O livro “Justiça” pretende ser uma reflexão acessível ao público


em geral sobre as principais problemáticas relacionadas à questão
da violência urbana e seus atores. Analisa criticamente o modelo
punitivo e repressivo dominante rotulado de justiça, demonstrando as
fragilidades e impotências da política de Segurança Pública brasileira
e seus agentes, bem como as dificuldades de mudança e o perverso
papel da inércia e conivência.

Vamos ler uma pequena parte do livro quando se refere à


dificuldade e ausência de coragem em aceitar mudanças e, a seguir,
responder as questões propostas.
105
Criminologia

[...] para domesticar o medo do desconhecido e do incontrolável


(que a própria ideia de futuro encerra), precisamos acreditar
piamente na grande ilusão da continuidade. É o mito da repetição
por inércia, segundo o qual o passado é fiador do futuro. A fidelidade
à rotina, o apego ao que fomos e acumulamos, ao que fizemos e
construímos, seriam suficientes para nos garantir sua sequência.
Ou seja, bastariam como garantias de previsibilidade e controle,
reduzindo a angústia e a insegurança.

Ao contrário da concepção predominante, custo mais conservar


e repetir do que mudar, também por outro motivo: é a mudança – e
não a preservação – que corresponde ao fluxo natural da existência
dos seres e das coisas. Por isso, as instituições e seus representantes
se enrijecem tanto, se armam tanto para proteger a continuidade,
mantendo o status quo, qualquer que ele seja, em todos os domínios
da experiência humana, individual e coletiva, familiar e social.

Quando uma jovem ou um jovem vê-se embaraçado na


prisão de um adjetivo, uma acusação, uma classificação jurídica
ou um diagnóstico moral/psicológico (o atrapalhado, a rebelde, o
problemático, a desequilibrada, o violento, a devassa, o criminoso),
deve aprender esta lição: a sociedade, as instituições e seus agentes –
família, escola, comunidade, rede de colegas, justiça, polícia, quando
não profissionais da medicina e do mundo psi – tendem a trabalhar
com enorme energia para bloquear o turbilhão vital das mudanças.
Isso porque a estabilidade psicológica e a fé desses agentes – nas
coisas como elas são e na continuidade e na previsibilidade de
mundo – dependem das amarras desse jovem à sua sentença, ao seu
diagnóstico, ao seu problema ou ao seu destino.

Abrir-se à naturalidade da mudança é o desafio que se coloca


aos que preferem apostar no desconhecido e aceitam conviver com
a angústia do descontrole. Talvez eles sejam motivados por uma fé
oposta àquela que ancora o mito da continuidade: a fé no potencial
do ser humano para um convívio mais amoroso, mediado por valores
e instituições mais generosas.

Fonte: SOARES, Luiz Eduardo. Justiça – pensando alto sobre violência,


crime e castigo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira Participações S.A., 2011, p. 161-162.

1) Há relação entre o considerado pelo autor no texto e a atitude


intelectual que é proposta pelo pensamento crítico?
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106
O Ocaso do Pensamento Criminológico Moderno
Capítulo 3 e a Emergência do Pensamento Crítico

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2) Você se lembra do que afirmou Zaffaroni acerca da deteriorização


que sofrem os agentes do sistema punitivo dominante? Qual seria?
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3) No texto há menção acerca da teoria do “etiquetamento”? De


que forma?
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Algumas Considerações
Neste terceiro capítulo, estudamos os elementos sociais, jurídicos e políticos
que apontam o esgotamento do paradigma punitivo moderno. Além disso,
aprendemos sobre as distintas correntes críticas criminológicas. Ainda neste

107
Criminologia

capítulo, compreendemos a centralidade do conhecimento criminológico na


prática jurídica penal e os limites da concepção causal explicativa do fenômeno
da incriminação e criminalização.

No quarto e último capítulo, vamos compreender o contexto econômico,


político, social e cultural contemporâneo e sua relação com a formação da
chamada “nova” violência. Identificar as políticas criminais de controle dominantes
bem como seus limites e possibilidades na perspectiva da ordem democrática
brasileira e relacionar de forma crítica o processo da globalização em marcha com
a “cultura do medo” predominante serão nossos objetivos.

Referências
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica ao direito penal. 3ª
ed.trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2002.

DE CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro:


Forense, 1983.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. Tradução de


Ana Paula Zomer Sica e outros. 3ª Ed. São Paulo: Ed. RT, 2010.

HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Textos Escolhidos.


São Paulo: Abril Cultural, 1983.

HULSMAN, Louk. Temas e conceitos numa abordagem abolicionista da Justiça


Criminal. In:Conversações Abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da
sociedade punitiva. PASSETI, Edson;SILVA, Roberto Baptista Dias da (orgs.).
São Paulo: IBCCrim, 1997b.

MOLINA, Antonio García-Pablos de. Criminologia: introdução e seus


fundamentos teóricos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

MUÑOZ CONDE e HASSEMER. Introdução à criminologia. Tradução de Cíntia


Toledo Miranda Chaves, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2. ed. Curitiba: ICPC


Lúmen Júris, 2006.

SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo:


Perspectiva, 1979.

VALOIS, Luis Carlos. Criminologia Radical. Página Jurídica, 1991. Disponível


em:http://www.internext.com.br/valois/crimradi.htm.

108
C APÍTULO 4
Os Horizontes Criminológicos
Contemporâneos

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Compreender o contexto econômico, político, social e cultural contemporâneo


e sua relação com a formação da chamada “nova” violência.

99 Identificar as políticas criminais de controle dominantes bem como seus limites


e possibilidades na perspectiva da ordem democrática brasileira.

99 Relacionar de forma crítica o processo da globalização em marcha com a


“cultura do medo” predominante.
Criminologia

110
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

Contextualização
Se a entrada para o século XX foi triunfal e otimista para a ciência, seu final
se fez sem motivos para comemorações. As três últimas décadas do século
passado foram marcadas por uma autêntica “virada histórica” que carregou em
si profundas transformações na vida social e econômica, acarretando impactos
significativos que não podem ser desprezados pelos estudos criminológicos.

Em que pese as especificidades políticas e culturais das distintas Nações,


as mudanças vivenciadas a partir dos anos 70 implicaram em um realinhamento
político e econômico que trouxe à tona os limites e impossibilidades do Estado de
Bem Estar Social. Desde então vem sendo definida uma nova ordem civilizatória
que tem aliado neoliberalismo com conservadorismo social e político. Este
modelo atingiu o auge nos EUA durante os governos Regan e Bush (1981-1992)
e na Grã-Bretanha durante a gestão Thatcher (1979-1992), sofrendo processo
de continuidade e redefinição ao longo da administração Clinton (1993-2000), de
John Major (1992-1997) e Tony Blair (1997 em diante).

O impacto deste processo modificou substancialmente as condições de vida


da população mundial sobre as quais, até então, se assentavam as tradicionais
formas de controle da violência, o que vem provocando a deslegitimação e perda de
efetividade e eficiência das tradicionais instituições políticas e sociais de controle.

Esta nova fase é marcada pela destruição das tradicionais formas de


solidariedade social e um cotidiano que parece mergulhar na barbárie e, assim, a
fraternidade, o grande projeto adiado da modernidade, vai sendo definitivamente
esquecido.

Seguramente por tais razões as instituições e convicções tradicionalmente


defendidas tornaram-se frágeis e debilitadas.

Partidos políticos e antigas convicções ideológicas cedem espaço a


movimentos sociais inéditos, que vão se identificando coletivamente e organizando-
se virtualmente, a exemplo do recente fenômeno político genericamente chamado
de “primavera árabe”, que acabou por colocar por terra regimes políticos que até
então pareciam sólidos e inabaláveis.

Da mesma forma, as “sólidas” redes de interações sociais modernas cedem


espaço ao multi (multiétnico e multicultural). Os referenciais de identificação não
são mais elementos de uma cidadania individualizada, mas sim coletiva e global,
e esta fragmentação vai justificando a predominância do discurso do “mundo
único”. Assim, o global e o local tornam-se visceralmente associados sob o lema
“pense global, aja local”.

111
Criminologia

Porém são tempos de um capitalismo de versão inédita, e talvez mais


perversa, que rearticula as condições sociais e políticas, cujo resultado é uma
nova condição humana, novas técnicas e redefinição de relações de poder.

Em meio a este novo cenário, batizado por alguns como pós-modernidade, o


medo e indignação tornou-se um fértil terreno para serem semeadas novas formas
de controle, em sua maioria retrógadas e inúteis, que vão assumindo distintos
rótulos, como “política lei e ordem”, “tolerância zero”, “direito penal do inimigo”,
“polícia de pacificação” etc.

É em tal perspectiva que a seguir será estudada e problematizada a “questão


do crime”, bem como as respostas políticas e jurídicas que estão sendo delineadas.

A Globalização do Crime: uma avaliação sobre a ameaça


do crime organizado transnacional

Em junho de 2010 o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas


e Crimes (UNODC) lançou um relatório com o título A Globalização
do Crime: uma avaliação sobre a ameaça do crime organizado
transnacional. O relatório foi iniciado a partir das preocupações
expressas dos países membros da ONU, do Conselho de Segurança,
do G8 e inúmeras organizações internacionais preocupadas com
a nova face do crime e as possíveis formas de enfrentamento. A
conclusão é dramática: o crime organizado se globalizou e é uma
ameaça à segurança.

Para Antonio Maria Costa, então diretor executivo do UNODC,


os fluxos ilícitos estão no mundo todo. “Hoje, o mercado alcança a
todo planeta: as mercadorias ilícitas são originárias de um continente,
traficadas por meio de um outro e comercializadas em um terceiro”,
disse Costa. “O crime transnacional tem se tornado uma ameaça para
a paz, para o desenvolvimento e até mesmo para a soberania das
nações”, advertiu o chefe do UNODC. “Os criminosos usam armas
e violência, mas também dinheiro e suborno para comprar eleições,
políticos e poder - até mesmo militares”, afirma Costa. Enfim, é uma
ameaça à governabilidade e à estabilidade política e econômica das
Nações.

O relatório apresenta mapas e gráficos que ilustram os fluxos


ilícitos e seus mercados e pode ser encontrado na página da ONU
“Negócios ilícitos envolvem as principais nações do mundo: o G8,

112
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

os países BRIC e as potências regionais. Uma vez que as maiores


economias do mundo são também os maiores mercados para o
comércio ilícito, peço a seus líderes que ajudem as Nações Unidas
a combater o crime organizado de uma forma mais eficaz. No
momento, há uma negligência benigna para um problema que está
prejudicando a todos, em especial aos países pobres que não são
capazes de se defender”, completa Costa.

As principais constatações do relatório são:

• Há uma estimativa de 140 mil vítimas de tráfico humano para


fins de exploração sexual apenas na Europa, gerando uma
renda bruta anual de US$ 3 bilhões para os exploradores.

• Os dois fluxos mais importantes para o contrabando de migrantes


são provenientes de África para a Europa e da América Latina
para os Estados Unidos. Entre 2,5 e 3 milhões de migrantes são
contrabandeados da América Latina para os Estados Unidos
a cada ano, gerando uma receita de US$ 6,6 bilhões para os
traficantes.

• O mercado regional de heroína na Europa é o mais valioso do


mundo (US$ 20 bilhões), sendo a Rússia, hoje, o maior país
consumidor de heroína no mundo (70 toneladas). Os narcóticos
matam entre 30 a 40 mil jovens russos por ano, o que equivale
ao dobro do número de soldados do Exército Vermelho mortos
durante a invasão do Afeganistão na década de 80.

• O mercado de cocaína da América do Norte está diminuindo,


devido à menor procura e a uma maior aplicação da lei. Isso
gerou uma guerra de territórios entre as gangues do tráfico,
especialmente no México, e novas rotas de tráfico.

• Os países que possuem as maiores plantações ilícitas no mundo,


como Afeganistão (ópio) e Colômbia (coca), são os que mais
chamam atenção e são os alvos da maior parte das críticas. No
entanto, a maior parte dos lucros é feita no destino - os países
ricos. Por exemplo, no contexto de um mercado da heroína
afegã, estimado em algo como 55 bilhões de dólares, apenas
cerca de 5% (US$ 2,3 bilhões) são revertidos para os agricultores,
comerciantes e insurgentes afegãos. Do mercado de US$ 72 bilhões
da cocaína na América do Norte e na Europa, cerca de 70% dos
lucros acabam nas mãos de traficantes intermediários dos países
consumidores - e não na região dos Andes.

113
Criminologia

• O mercado mundial de armas de fogo ilícitas é estimado em US$


170 a 320 milhões por ano - o que representa algo entre 10% a
20% do mercado legal. Embora o contrabando de armas tenda
a ser episódico (isto é, relacionados a conflitos específicos), os
montantes são tão grandes que podem matar tantas pessoas
quanto algumas pandemias.

• A exploração ilegal de recursos naturais e o tráfico de animais


selvagens da África e do Sudeste Asiático estão destruindo frágeis
ecossistemas e levando várias espécies à extinção. O UNODC
estima que os produtos de madeira ilegal importados da Ásia para
a União Europeia e para China somaram aproximadamente US$
2,5 bilhões em 2009.

• O número de produtos falsificados apreendidos nas fronteiras


europeias aumentou dez vezes na última década, chegando a
um valor anual de mais de US$ 10 bilhões. Pelo menos metade
dos medicamentos testados na África e no Sudeste Asiático é
falsificada ou adulterada - aumentando, ao invés de reduzir, os
riscos de doenças.

• O número de ataques de piratas ao longo do Corno da África


duplicou no ano passado (de 111, em 2008, para 217, em 2009)
e ainda está crescendo. Piratas de um dos países mais pobres
do mundo (Somália) estão mantendo reféns navios de alguns dos
países mais ricos, apesar do patrulhamento feito pelas marinhas
mais poderosas do mundo. Do total de mais de US$ 100 milhões
da renda anual gerada pelos resgates, apenas um quarto vai para
os piratas - o resto vai para o crime organizado.

• Mais de 1,5 milhão de pessoas por ano tem sua identidade


roubada pela internet - gerando um prejuízo estimado em US$
1 bilhão. O cibercrime está colocando em risco a segurança das
nações, com invasões a redes de energia, de controle aéreo e a
instalações nucleares.

Fonte: Texto integral do relatório A Globalização do Crime: uma


Avaliação sobre a Ameaça do Crime Organizado Transnacional.
Disponível em: <www. unodc.org>. Acesso em: 12 de fev. de 2012.

114
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

Atividade de Estudos:

Considerando as informações obtidas no relatório “A


globalização do Crime: uma Avaliação sobre a Ameaça do Crime
Organizado Transnacional”, responda as seguintes questões:

1) Por que as tradicionais instituições de controle sociais (família,


escola, religião etc.) e políticas (sistema estatal punitivo) são
ineficazes frente à nova face global da criminalização?
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2) O que há de inédito no atual fenômeno da criminalidade?


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3) Em sua comunidade, é possível identificar a intervenção deste


fenômeno na vida cotidiana? Como?
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Criminologia

Globalização e Sociedade do Medo


“Globalização”, a “Globalização”, a partir da década de 80, passou a ser a palavra da
partir da década de
moda. É utilizada para designar um processo de mudança econômica,
80, passou a ser a
palavra da moda. social e política que, em síntese, possui as seguintes características:

• a vida social, econômica e política não se limita às fronteiras nacionais, portanto,


acontecimentos ou decisões locais acabam por produzir efeitos mundiais;

• o atual sistema-mundo é formado por uma ativa rede que vai criando padrões
entre os Estados e sociedades mundiais;

• confunde-se cada vez mais o local com o nacional e mundial, tornando tênue
a linha divisória entre as distintas instâncias políticas e econômicas;

• vive-se em “tempo real” as transformações e problemáticas mundiais,


constituindo uma espécie de “teia” entre as instituições internacionais, os
Estados, as corporações econômicas, movimentos sociais e organizações de
todo tipo de interesse e identidade.

Estas transformações acabaram por fragilizar os tradicionais conceitos de


Estado Nação, sobretudo no que diz respeito às ideias de soberania e território,
uma vez que o Estado não pode mais ser considerado como o núcleo central e
autônomo de poder.

Ao mesmo tempo, a ordem econômica global desregula e destrói a vida social


e torna precário o “mundo do trabalho”, gerando uma massa de desempregados e
“novos miseráveis” que agora são globais.

Em setembro de 2011, o número de pessoas sem emprego na Zona do Euro


atingiu nível recorde, de acordo com a agência oficial de estatísticas do bloco, a
Eurostat. Foram contabilizados 16,198 milhões de desempregados, o que equivale
a 10,2% da população, sendo a maior taxa na Espanha, com um índice de 22,6%.

Quando os dados são contabilizados por faixa etária, a situação torna-se


mais preocupante. Mais de 20% de jovens entre 19 e 24 anos estão sem emprego.
Na Espanha, entre os jovens, o desemprego em novembro de 2011 foi de 49,6%;
na França, 23,8%; na Itália, 30,1% e em Portugal, 30,7%.

Para os jovens isto significa uma redução na capacidade de empreender esforços


em prol de interesses individuais e coletivos por absoluta ausência de perspectiva de
futuro. Por esta razão, não é de causar surpresa o aparecimento e crescimento de
movimentos como a “Primavera Árabe, “Ocupe Wall Street” ou mesmo as recentes
reações urbanas violentas na Grécia, Inglaterra e França.

116
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

Seria coincidência que, neste mesmo ano de 2011, o mundo fosse informado
de que o mercado recebia uma nova droga alternativa à heroína, mais barata e
mais mortal, a krokodil (“crocodilo” em russo), que causa necrose no local onde é
aplicada, deixando à mostra ossos e músculos?

Ao que tudo indica, está a se viver uma perversidade sistêmica


Ao que tudo indica,
provocada pela universalização neoliberal, que impõe uma dupla tirania: está a se viver
a do dinheiro e da informação. Assim, vai-se criando a base ideológica uma perversidade
das ações do novo totalitarismo, facilmente aceito por seres humanos sistêmica
fragilizados e desamparados (SANTOS, 2000). provocada pela
universalização
neoliberal, que
Ao contrário das fases anteriores, que igualmente produziam a
impõe uma
pobreza, neste novo momento, a miséria é estruturalmente globalizada. dupla tirania: a
do dinheiro e da
Nessa última fase, os pobres não são incluídos informação.
nem marginais, eles são excluídos. A divisão do
trabalho era, até recentemente, algo mais ou
menos espontâneo. Agora não. Hoje, ela obedece a
cânones científicos – por isso a consideramos uma Ao contrário das
divisão do trabalho administrada – e é movida por fases anteriores,
um mecanismo que traz consigo a produção das que igualmente
dívidas sociais e a disseminação da pobreza numa produziam a
escala global. Saímos de uma pobreza para entrar pobreza, neste
em outra. Deixa-se de ser pobre em um lugar para novo momento,
ser pobre em outro. Nas condições atuais, é uma a miséria é
pobreza quase sem remédio, trazida não apenas
estruturalmente
pela expansão do emprego, como também pela
redução do valor do trabalho (SANTOS, 2000, p. 73). globalizada

O individualismo domina para além da vida econômica e invade a ordem política


e os espaços territoriais. Para Milton Santos (2000), vão sendo implantados novos
valores aos objetos e aos seres humanos, que tomam como parâmetro uma
suposta contabilidade global que mercantiliza todos os subsistemas da vida
social, rompendo solidariedades numa batalha sem quartel.
Por imposição
do mercado, o
Por imposição do mercado, o consumismo move a vida pública e consumismo move
privada. Um novo fundamentalismo emagrece moral e intelectualmente a vida pública e
as pessoas, reduzindo a visão de mundo e fazendo esquecer qualquer privada. Um novo
relação entre o consumidor e o ser humano. fundamentalismo
emagrece moral e
intelectualmente as
Neste cenário, as pressões do mercado sobre os Estados impõem
pessoas, reduzindo
um novo modelo de desenvolvimento que atenda aos interesses a visão de mundo e
globais de acumulação. Para o neoliberalismo, o alinhamento implica a fazendo esquecer
destruição institucional e normativa do Estado para além da economia, qualquer relação
portanto, reinventando a forma tradicional de dominação. entre o consumidor
e o ser humano.

117
Criminologia

Os novos donos do poder são empresas transnacionais de capital


A palavra de ordem
passa a ser a privado, que pressionam os Estados nacionais para promoverem
reforma do Estado reformas que permitam alinhamento jurídico e político que favoreçam
Nação. as novas forças internacionalmente alinhadas. A palavra de ordem
passa a ser a reforma do Estado Nação.

São múltiplas e de distintas naturezas as pressões para reestruturação do


Estado no sentido de desestatizar e desregular as empresas produtivas e os
sistemas de educação, saúde e assistência social. Além de que são facilitadas as
negociações e as associações das corporações transnacionais com as nacionais
e inúmeras conquistas sociais são flexibilizadas ou mesmo eliminadas.

Para Octávio Ianni (1999), “a nação se transforma em mera província do


capitalismo mundial, sem condições de realizar sua soberania e, simultaneamente,
sem que os setores sociais subalternos possam almejar a construção de
hegemonias alternativas”.

A partir de então, as Nações são transformadas em “províncias


As Nações são
transformadas do capitalismo internacional”, subtraídas as condições de realização
em “províncias de soberania e sufocados os setores sociais subalternos para
do capitalismo vislumbrarem saídas alternativas. Trata-se de uma nova crise imposta
internacional”, pelo jogo das forças produtivas globais.
subtraídas as
condições de
Neste novo palco da história, os projetos de vida individuais não
realização de
soberania e podem mais encontrar um terreno estável para acomodar uma âncora
sufocados os (BAUMAN, 1998, p. 32). Todo esforço acaba por fracassar, produzindo
setores sociais um sentimento de destruição da solidez e continuidade do próprio
subalternos para edifício da modernidade.
vislumbrarem
saídas alternativas.
Em finais da primeira década do século XXI, a novidade é a
sensação de naufrágio, não apenas dos projetos individuais, mas de
incertezas acerca do futuro coletivo, da possibilidade de uma forma
correta de partilhar a existência e dos critérios de compreensão acerca
Este momento é dos acertos e erros da experiência humana.
marcado por um
discurso difuso Para Bauman, o que também é novo acerca da incerteza é que ela
e complexo não é vista apenas como um “mero inconveniente temporário” capaz de
que denuncia o
ser superado ou abrandado. A única certeza é a da convivência com a
irreversível fim
do modo de vida permanente e irredutível condição de incerteza (BAUMAN, 1998, p. 32).
moderno e seus
fundamentos Este momento é marcado por um discurso difuso e complexo
políticos e que denuncia o irreversível fim do modo de vida moderno e seus
científicos. fundamentos políticos e científicos.

118
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

São tempos de angústia intelectual. O esvaziamento das imagens e


discursos representativos da racionalidade moderna vai criando um complexo
debate no qual se criam novas rotulações.

a) Tempos dos “pós”

Termos novos são criados como tentativas de demonstrar situações às


quais ou se defende, e se tenta promover, ou se rechaça. Mas apesar disto, há
um ponto de convergência: o esgotamento das categorias técnicas e científicas
da modernidade, bem como das grandes utopias que serviram para construir o
horizonte de futuro moderno, sendo, portanto, a crítica à modernidade um início
para sua própria superação.
Vive-se, enfim,
Vive-se, enfim, tempos de incertezas que parecem imobilizar tempos de
as instituições tradicionais e seus atores. O naufrágio do projeto da incertezas que
modernidade faz ressurgir o medo em suas múltiplas versões. parecem imobilizar
as instituições
tradicionais e seus
b) Um novo medo sem raiz atores.

Medos difusos e invisíveis de fortes e devastadores efeitos que se alimentam


mutuamente.

Há os trabalhos instáveis; as constantes mudanças nos


estágios de vida; a fragilidade das parcerias; o reconhecimento
social dado só “até segunda ordem” e sujeito a ser retirado
sem aviso prévio; as ameaças tóxicas, a comida venenosa
com possíveis elementos cancerígenos; a possibilidade de
falhar num mercado competitivo por causa de um momento
de fraqueza ou de uma temporária falta de atenção; o risco
que as pessoas correm nas ruas; a constante possibilidade de
perda de bens materiais etc. (BAUMAN, 2010, p. 73-74).

Definitivamente instaura-se a “sociedade do medo” e a tarefa diária é de


administrar esta nova inconveniente e insuportável companhia, e assim vai-se
declarando uma nova cruzada e viver passa a ser lutar contra provavelmente o
impossível.

Uma busca contínua e uma perpétua checagem de


estratagemas e expedientes que nos permitem afastar, mesmo
que temporariamente, a eminência dos perigos – ou melhor ainda,
deslocar a preocupação com eles para o incinerador lateral onde
possam, ao que se espera, fenecer ou permanecer esquecidos
durante nossa duração (BAUMAN, 2008, p. 15).

Na sociedade do medo, as urgências, lembra Tomás Hirsch, nos fazem


esquecer de que

119
Criminologia

vamos junto com os outros em uma viagem para algum lugar


O inédito nesta e imaginamos o amanhã como a repetição do hoje... deixamos
“encruzilhada da de nos preocupar com o destino conjunto e nos encerramos
história” é que a em nossa cela de abelha, cumprindo com maior ou menor
tarefa, além de brilhantismo o papel que as circunstâncias nos atribuíram no
urgente, deve interior da colméia (2008, p. 25 e ss.).
ser assumida
coletivamente, mas E conclui:
a questão agora
não é apenas [...] não há um destino particular independente do coletivo.
sobre o poder de É como se fôssemos em um trem que se dirige para um
dominação política precipício – não evitaremos o acidente por mudar os assentos
e econômica, de lugar no interior dos vagões. Para isso teríamos que frear o
mas sobre a comboio ou mudar sua direção (2008, p. 25 e ss.).
capacidade de o
coletivo gerar uma O inédito nesta “encruzilhada da história” é que a tarefa, além de
concepção nova urgente, deve ser assumida coletivamente, mas a questão agora não é
de mundo a partir apenas sobre o poder de dominação política e econômica, mas sobre a
de si mesmo, de capacidade de o coletivo gerar uma concepção nova de mundo a partir
suas experiências
de si mesmo, de suas experiências históricas, do desejo de partilhar
históricas, do
desejo de partilhar uma perspectiva emancipadora e um futuro mais generoso.
uma perspectiva
emancipadora e A urgente tarefa é definir um ponto de mirada a partir do presente,
um futuro mais que permita visualizar um horizonte mais pródigo.
generoso.
Um projeto que torne possível ir e ver “mais longe” do que o
atual momento que coletivamente se está a vivenciar, marcado por dolorosas e
frustrantes experiências, que não leve a desistir da condição de humanos.

Mas o esforço implica retomar conceitos e representações sociais que


serviram para fundar o discurso legitimador da modernidade, dentro do qual o
sistema punitivo dominante foi um dos protagonistas principais.

Atualmente há uma distância que separa os direitos formalmente


concedidos das práticas sociais que impunemente os violam, e,
O risco é a simultaneamente, “as vítimas de tais práticas, longe de se limitarem
desistência e a chorar na exclusão, cada vez mais reclamam, individual e
mergulhar-se coletivamente, serem ouvidas e organizam-se para resistir contra a
definitivamente na impunidade” (SOUSA SANTOS, 2007b).
barbárie.
O risco é a desistência e mergulhar-se definitivamente na barbárie.

Expressões como “pós-modernidade”, “modernidade tardia”,


“modernidade líquida” em fins do século XX passaram a ser

120
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

utilizadas para rotular este novo momento civilizatório no qual são


redefinidos conceitos e modos de vida.

A seguir, podemos estudar a leitura de um dos mais destacados intelectuais


de nosso tempo: Zygmunt Bauman, o teórico da modernidade líquida.

Em 2008, ao ser lançada a obra Medo Líquido, Bauman concedeu uma


histórica entrevista em que, com extrema lucidez e capacidade intelectual, faz
uma leitura incomparável acerca do atual estágio da condição humana.

Leia alguns trechos da referida entrevista feita pelo jornal italiano Il ManifestoI
(tradução de Benno Dischinger), que recebeu como título “A sociedade do medo
renuncia à liberdade”, em que Bauman descreve o que é a “sociedade do medo”.

A sociedade do medo renuncia à liberdade

O difuso e impalpável medo [ou pavor] que satura o presente é


usado por muitos líderes políticos como mercadoria a capitalizar no
mercado político. Comportam-se como comerciantes que anunciam
as mercadorias e os serviços que vendem como formidáveis remédios
para o abominável sentimento de incerteza e para prevenir inomináveis
e indefiníveis ameaças. Ou seja: os movimentos e os políticos
populistas estão recolhendo os frutos envenenados que floresceram
com a debilitação e, em alguns casos, com o desaparecimento do
estado social. Estão, portanto, interessados em fazer aumentar o medo.

Mas, somente aquele medo que podem manipular para depois


aparecer na TV como os únicos protetores da nação. O resultado
é que a raiz da incerteza e da insegurança social, que são as
verdadeiras causas da epidemia de medo que atingiu as modernas
sociedades capitalistas, permanece intacta e se fortalece cada vez
mais. Se a vida nas periferias de Roma, Milão e Nápoles é realmente
terrível e perigosa, como normalmente se afirma, não é porque os
habitantes são obrigados a viver em condições terríveis e porque
estão expostos aos perigos derivados do fato de terem a pele com
uma pigmentação diferente ou porque vão à igreja ou ao templo em
dias diferentes da semana. Nos quarteirões periféricos italianos,
como nos subúrbios de Paris ou Marselha, ou nos guetos urbanos
de Chicago e Washington, a vida é terrível e perigosa porque foram
projetados como lixeiras para os rejeitados, para os refugos humanos
exilados da “grande sociedade”.
121
Criminologia

Homens e mulheres que compartilham da mesma sorte, mas


que os leva a se agredirem ao invés de se unirem. Sejam quais forem
os sentimentos que experimentam e as humilhações sofridas, são
homens e mulheres que não nutrem muito respeito pelos próprios
vizinhos, outros refugos humanos, aos quais, como a eles, foi
negada qualquer dignidade e direito a um tratamento humano. Seria,
no entanto, desonesto qualificar o problema dos migrantes somente
como um problema de “condição social”. Os antigos remédios dos
rejeitados – os desocupados ou os miseráveis de Honoré Balzac
– contemplavam a revolta ou a revolução. Hoje ninguém pensa
realmente que a resistência às atuais injustiças sociais possa vir das
periferias. Somente os mendicantes, os traficantes, os assaltantes,
os bandos juvenis esperam que isso possa acontecer.

A grande maioria dos eleitores está muito atenta ao comportamento


dos líderes políticos e julga-os com base na severidade que
manifestam em suas declarações públicas em torno da “segurança”. E
os líderes políticos competem entre si no afã de prometer serem duros
e inflexíveis contra os “rejeitos humanos”, considerados os culpados
pela insegurança que atormenta a sociedade contemporânea. Na
Itália, partidos como Força Itália e Liga Norte venceram as eleições
prometendo, entre outras coisas, defender os sadios e robustos
trabalhadores setentrionais de quem pode roubar-lhes aquele
trabalho, e garantir que não haverá mais a possibilidade, para os
novos chegados, de insidiarem o fruto de seu trabalho, defendendo-
os dos vagabundos, mendigos, assaltantes. Para estes partidos, a
possibilidade de haver uma vida digna e decente emergirá somente
depois que todos os homens e mulheres qualificados como refugos
humanos sejam registrados e postos sob controle.

No seu livro sobre a Europa, você escreve que o velho continente


está condenado a ser cosmopolita, independentemente da vontade de
cada um dos estados nacionais. No entanto, em muitos países europeus
os partidos populistas ou nacionalistas aumentam suas adesões…

Existe uma ideologia da globalização e há ideologias contra


ela. Pois existe um ponto de vista que agora é chamado de
alteromundista, porque prefigura outro modelo de globalização.
Mas, não devemos esquecer-nos que também existem os processos
reais de globalização que ressecam toda soberania nacional e
que se contrapõem a toda possibilidade de desenvolvimento
sustentável e autossuficiente. São processos que tecem uma densa
tela que envolve a terra, definindo desta forma férreos critérios de
interdependência entre os países do planeta. É uma interdependência

122
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

que assumiu uma forma capitalista e se impôs quando o mercado se


tornou a regra dominante. Assim, enquanto a circulação dos capitais
não conhecia limitações, gradualmente, mas com inflexibilidade, têm
sido eliminadas todas as formas econômicas não capitalistas. Um
processo que poderia ser liquidado como mera invenção ideológica.
Ou então, podemos ignorar a globalização, mas somente em nosso
risco – e no do planeta. Seria um erro dramático, porque, assim
agindo, não enfrentaríamos uma das maiores prioridades do século
XXI: repor sob controle as forças econômicas “liberadas” da forma
democrática de regulação a que estavam submetidas. A tendência,
em ato no mundo, pode ser sintetizada como a passagem de um
mundo de estados-nação ao mundo da diáspora. A era da paradoxal
aliança entre Estado, Nação e Território parece, de fato, encerrada,
enquanto as bússolas da história estão voltadas ao passado. Alguns
países podem tentar resistir à redução de sua autonomia econômica,
política, militar e cultural. Mas, é sempre mais difícil que o consigam.

E o entanto, o neoliberalismo está em crise. Sua representação


mais dramática está na falência de muitas instituições de crédito
estadunidenses. Muitos estudiosos falam expressamente sobre
a necessidade de um retorno do Estado como regulador da vida
econômica. Porém, mais do que um retorno ao keynesianismo,
parece ser a desesperada tentativa de salvar o neoliberalismo…

Convido-o a notar uma coisa. O governo estadunidense entrou em


ação somente quando a tendência suicida da globalização, a desregular
completamente os mercados financeiros globais, chegou ao seu auge.
E peço-lhe, além disso, notar que todas as medidas que repentinamente
foram tomadas, assinalando uma contradição com os precedentes atos
de fé feitos pelas autoridades federais, estão animadas pela vontade
de salvar da catástrofe somente os “fortes e poderosos”. Isto é, são
medidas que protegem as elites econômicas, salvam os tubarões e
não os peixinhos dos quais os tubarões se nutrem. Deste modo, todos
os tubarões se fortalecem, não correm mais perigo e podem voltar a
mover-se livremente no grande mar que é a globalização neoliberal.
Num florido editorial do Financial Times de 20 ou 21 de setembro, não
recordo bem, se podia ler que “os mercados globais aprovam” as ações
estadunidenses para enfrentar a crise financeira. Ao mesmo tempo,
eram relatadas sobriamente algumas estimativas sobre a possibilidade
que tinham os “bancos e as instituições de crédito de recuperarem as
perdas, de se recapitalizarem e voltarem a fazer negócios”.

Nenhuma palavra era dita sobre os motivos que haviam


provocado as perdas econômicas, nem havia acenos sobre porque

123
Criminologia

os mecanismos de mercado, considerados até agora infalíveis,


haviam negado fogo. Uma tese confiável que circula nestas semanas
é que as medidas do governo americano poderiam pôr em risco
as centenas de bilhões de dólares dos contribuintes americanos
somente para salvar as instituições de crédito. Aceitemos esta tese,
mas eu me ponho algumas perguntas: quem são estes contribuintes?
Em primeiro lugar, seja dito que os americanos estão atolados em
dívidas até as orelhas, que eles estão apavorados porque o valor
das empresas em que trabalham declina sempre mais, com a
possibilidade de uma bancarrota e consequente perda do trabalho.
Não se diz, portanto, vista a situação, que o governo estadunidense
possa aceder a estas centenas de milhões de dólares. Além disso,
sempre aquele mesmo governo destinou outros tantos milhões de
dólares em despesas militares para sustentar a guerra no Afeganistão
e no Iraque, cortando ao mesmo tempo os impostos para os ricos,
enriquecendo-os sempre mais. Poderíamos dizer que os Estados
Unidos se comportaram como milhões de cidadãos americanos, que
se endividaram para continuar a viver.

Agora, o Estado norte-americano está debilitado e vive graças


somente àquela instituição que é o crédito ao consumo. Não pode
mais continuar indo em frente desta forma e agora pede à Europa,
ou melhor, espera que a Europa possa temporariamente ajudá-lo a
superar a crise. O mesmo se pode dizer da ajuda que espera possa
chegar, de alguma forma, da China e dos países árabes ricos em
petróleo. Em outras palavras, é um Estado insolvente que está fazendo
novas dívidas para pagar aquelas já acumuladas, postergando assim
o dia no qual o oficial de justiça passará a solicitar o pagamento da
conta. Segundo as últimas indiscrições da imprensa, o ministro inglês
da chancelaria, Alistair Darling, declarou que “precisamente como
um governo não pode combater por si só o terrorismo global ou as
alterações climáticas, assim não pode fazer frente às consequências
negativas da globalização”. Gostaria, porém, de acrescentar a esta
declaração que “é a própria globalização que torna vã a ação de um
governo, porque torna impossível a um único governo resolver a crise
do país”. Dito em outros termos, a globalização tem consequências
globais que só podem ser enfrentadas globalmente.

Fonte: Disponível em: <www.EcoDebate.com.br>. Acesso em: 06 de out.


de 2008. Entrevista publicada pelo IHU on-line 05 out. 2008. [IHU On-
line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

124
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

Violência no Brasil: uma Tragédia


Anunciada
Os impactos da nova ordem global a partir dos anos 90 imprimiram Os impactos da
mudanças significativas no Brasil, provocando alta instabilidade social nova ordem global
e econômica, precarizando o trabalho e contribuído para o surgimento a partir dos anos
da chamada “nova pobreza” urbana. 90 imprimiram
mudanças
significativas no
Apesar de melhoria nos índices relacionados ao “mundo do
Brasil, provocando
trabalho”, a partir do ano 2000 os avanços não têm sido suficientes alta instabilidade
para reverter a deterioração na década anterior. Em 2006, a cada social e econômica,
10 empregos novos criados, 9 pagavam até dois salários mínimos. precarizando
De acordo com o IBGE, a informalidade e a desigualdade de renda o trabalho e
cresceram entre os anos 90 e 2000, sofrendo uma sensível melhora contribuído para
o surgimento da
entre os anos de 2003 a 2009.
chamada “nova
pobreza” urbana.
Estudos recentes apontam que na vida dos brasileiros, 2/3
da população (111 milhões) dispõe de uma renda familiar até dois
salários mínimos e destes, 34 milhões com renda inferior a ½ salário mínimo.
Por outro lado, 1% da população concentra fortuna equivalente ao rendimento
de 50% da população. São, portanto, mais de 30 milhões de brasileiros que
vivem na chamada “linha” da pobreza e outros milhares que são verdadeiros
indigentes. Os que vivem na “linha” da pobreza são os que conseguem satisfazer
as necessidades alimentares minimamente, enquanto que os indigentes são
famintos que “perambulam” pela vida.

Considerando a realidade brasileira em fins do século XX e Considerando a


início do século XXI, é fácil perceber porque o discurso jurídico penal realidade brasileira
tradicional não é mais sustentável e porque se tornou falacioso. Apesar em fins do século
de algumas vitórias, chega o momento de reconhecer a impotência do XX e início do
século XXI, é
exercício do poder em “nome da lei e da ordem”.
fácil perceber
porque o discurso
Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2003 (RDH) jurídico penal
do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), tradicional não é
o Brasil é um paradigma de iniquidades, sobretudo no que refere mais sustentável e
à distribuição de renda. Embora tenha tido avanços em relação ao porque se tornou
falacioso.
combate à AIDS, à fome e miséria, utilizando os coeficientes de Gini
mundial, o Brasil possui 0,61, superado apenas por países da África
subsaariana como Namíbia, Botswana, República Centro Africana e Suazilândia.
Segundo o referido Relatório, os 10% dos domicílios mais ricos têm uma renda 70
vezes maior do que a dos 10% mais pobres.

125
Criminologia

Gini é uma medida da desigualdade de renda na qual o valor


“0” corresponde à igualdade perfeita e o valor “1” à desigualdade
absoluta.

Ainda no campo Ainda no campo das desigualdades internas, o Brasil aparece


das desigualdades como um dos países onde há grande diferença nas taxas de
internas, o Brasil mortalidade infantil. Ao lado da Bolívia, Colômbia, Uganda e Indonésia,
aparece como um é um exemplo de país que conseguiu reduzir a taxa nacional, mas
dos países onde há viu aumentar a desigualdade da taxa de mortalidade infantil entre as
grande diferença
crianças ricas e pobres ao longo dos anos 80 e 90.
nas taxas de
mortalidade infantil.
O mesmo Relatório apontou que em 23 Unidades da Federação, o
índice de Gini foi pior em 2000 do que era em 1991.

Egressa do regime autoritário, mesmo que passadas quase três décadas, a


sociedade brasileira vem experimentando quatro tendências violentas e brutais:

• o crescimento da delinquência urbana, em especial dos crimes contra o


patrimônio e de homicídios dolosos;
• a emergência da criminalidade organizada, em particular em torno do tráfico
internacional de drogas, o que modifica os perfis e modelos convencionais de
delinquência urbana, construindo novos problemas para o direito penal e o
sistema judiciário;
• graves violações de direitos humanos, o que compromete a consolidação da
ordem política democrática;
• explosão de conflitos nas relações intersubjetivas que tendem a convergir
para desfechos fatais.

Os dados estatísticos que serão apresentados nos parágrafos


seguintes foram fornecidos pelo Núcleo de Estudos da Violência –
Universidade de São Paulo – USP.

Os dados disponíveis acerca do crime e da violência urbana dizem respeito

126
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

à mortalidade por causa externa, extraídos dos registros oficiais de óbito de


responsabilidade do Ministério da Saúde. Com base nessas informações, é de
se observar que os homicídios evoluíram de 21,04/ 100.000 habitantes em 1991
para 25,33/100.000 em 1997. É de se destacar que, enquanto o Brasil atingia a
cifra de 23,83/100.000 habitantes em 1995, nos EUA a taxa era de 8,22; Grã-
Bretanha, 2,43; Itália, 4,90; Bélgica, 4,11; Portugal, 3,99; França, 4,11. Na década
de 1980, enquanto o número de óbitos cresceu 20% no total, os óbitos motivados
por causas violentas cresceram 60%.

Nem todas as mortes violentas estão relacionadas com a Nem todas


delinquência, já que compreendem também resultados fatais provocados as mortes
pelo narcotráfico, de violação a direitos humanos – mortes praticadas por violentas estão
policiais em situação de abuso de uso de força física, morte provocada relacionadas com
por justiceiros e grupos de extermínio e mortes por linchamento – bem a delinquência, já
que compreendem
como aquelas produzidas por conflitos de relações intersubjetivas.
também resultados
fatais provocados
Em todo o País, o alvo principal são adolescentes e jovens adultos pelo narcotráfico,
masculinos e pobres. No município de São Paulo, no período de 35 anos de violação a
– entre 1960 a 1995 – o coeficiente de homicídios para adolescentes do direitos humanos –
sexo masculino na faixa de 15-19 anos passou de 9,6 para 186,7/100.000 mortes praticadas
por policiais em
habitantes, o que equivale a um aumento na ordem de 1.800%.
situação de abuso
de uso de força
No domínio dos direitos humanos, o cenário da violência é cruel. física, morte
provocada por
O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo justiceiros e grupos
concluiu que, no período de 1983 a 1987, mais de 3.900 pessoas foram de extermínio
e mortes por
mortas, entre policiais e não policiais, com mais de 5.500 feridos em
linchamento – bem
situações de confronto. O número de mortos atingiu a média diária de como aquelas
1,2 por dia. produzidas
por conflitos
Nas décadas seguintes, os números não foram diferentes. de relações
intersubjetivas.
No ano de 1992, a Polícia Militar de São Paulo atingiu o ápice,
matando 1.470 indivíduos, incluindo os 111 mortos no massacre da Casa de
Detenção em São Paulo.

Este fenômeno não é isolado em São Paulo.

No Rio de Janeiro são frequentes as invasões em áreas de concentração de


habitação popular com a intenção de conter o tráfico de drogas, fazendo vítimas
também entre moradores ou transeuntes não envolvidos em atividades criminosas.
Embora oscilando, a violência envolvendo confronto entre policiais e criminosos
não parou de crescer, atingindo cada vez mais vítimas. Em janeiro do ano de

127
Criminologia

2007, no Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública registrou 31 casos de


vítimas de “balas perdidas”, ou seja, uma por dia, atingindo um em cada 33.000
habitantes (VEJA RIO, 2007).

Nos últimos Nos últimos cinquenta anos, o Brasil experimentou uma aceleração
cinquenta anos, o de mudanças até então desconhecidas.
Brasil experimentou
uma aceleração Foram criadas novas formas de acumulação de capital e de
de mudanças concentração industrial, com mutações substanciais nos processos
até então de recrutamento, alocação, distribuição e utilização da força de
desconhecidas.
trabalho com significativas repercussões nos padrões tradicionais de
mobilização e organização sindical, que vão além das tradicionais
fronteiras do Estado-Nação.

Segundo Sérgio Adorno, especialista em estudos sobre violência urbana,


as consequências são transformações também nos padrões tradicionais de
delinquência que, em fases anteriores, se concentravam nos crimes contra o
patrimônio, via de regra, cometidos por indivíduos isolados, ou, quando muito,
em pequenos bandos. Atualmente, o crime se organiza em moldes empresariais
e com bases transnacionais, que vão colonizando e conectando novas formas de
criminalidade.

Seus sintomas mais visíveis compreendem emprego de


violência excessiva mediante uso de potentes armas de
fogo, [...] corrupção de agentes do poder público, acentuados
desarranjos no tecido social, desorganização das formas
convencionais de controle social. Na mesma direção, agrava-
se o cenário das graves violações de direitos humanos
(ADORNO, 2002, p. 101).

Ao lado deste quadro desolador, não são poucos os estudos que estão a
demonstrar a incapacidade do judiciário de conter a violência nos marcos do
Estado Democrático de Direito. “Embora a violência tenha aumentado material
e substancialmente, o sistema punitivo age como agia no início do século XX,
acentuando, como consequência, a distância entre a evolução da criminalidade e da
violência e a capacidade do Estado de impor lei e ordem” (ADORNO, 2002, p. 102).

Os sintomas visíveis desta incapacidade do sistema punitivo estatal de cumprir


a tarefa constitucional de deter o monopólio da violência são as sucessivas rebeliões
no sistema prisional, que em sua maioria são orquestradas pelo crime organizado,
a exemplo do que ocorreu em janeiro de 2001, quando simultaneamente foram
levados a cabo motins em 29 das grandes prisões no Estado de São Paulo.

Este cenário torna-se mais dramático com a incompatibilidade entre a justiça


criminal e o controle institucional democrático imposto pela ordem democrática.

128
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

São inúmeras as tentativas de reformas legislativas penais sem


São inúmeras
que sejam acompanhadas de investimentos na segurança pública. as tentativas
de reformas
O desmonte do aparelho repressivo, que se seguiu à legislativas penais
democratização no País, e a tentativa de controle do abuso de poder sem que sejam
cometido por agentes do poder público tornaram demorada a ação de acompanhadas de
controle eficaz sobre os novos problemas da violência urbana. investimentos na
segurança pública.
A impunidade tornou-se então uma marca registrada do
sistema judiciário penal. Embora sem muitos estudos acerca do tema, ao que
tudo indica, os índices de impunidade são mais elevados para certos tipos de
delitos, tais como: homicídios praticados pela polícia, por grupos de extermínio,
em casos que envolvem trabalhadores rurais e lideranças sindicais. Sem deixar
de lado a impunidade dos chamados “crimes de colarinho branco”, cometidos
preferencialmente por cidadãos pertencentes às classes sociais mais favorecidas.

Uma das graves consequências do processo que se desencadeia da ineficácia


do sistema judiciário, aliada à forte exclusão social, é a absoluta descrença da
população nas instituições que deveriam promover a justiça no País.

Os que dispõem de recursos recorrem ao crescente mercado da segurança


privada e, em não raras vezes, à corrupção. Em contrapartida, a grande maioria
da população desprotegida e descrente apoia-se perversamente na “proteção”
de traficantes locais, mais recentemente milícias particulares, ou apela para a
autotutela. Em ambos os casos, os resultados contribuem cada vez mais para o
enfraquecimento do sistema judicial e a solução pela via legal.

Uma pesquisa realizada no ano de 1990 (IBGE-PNAD) demonstrou um


comportamento social preocupante em relação ao judiciário brasileiro. Os dados
revelaram que entre outubro de 1983 a setembro de 1988, 55,20% das pessoas
pesquisadas envolvidas em conflitos que demandariam tutela jurisdicional
não recorreram ao judiciário para solução de seus problemas. De forma
preponderante, o motivo para tal comportamento foi que “resolveu o conflito por
conta própria”, ou seja, preferiu a autotutela- 42,69% dos motivos apresentados
para este comportamento são classificados nesta ordem de justificativa. E o mais
surpreendente é que 23,77% dos entrevistados afirmam não confiar no judiciário

Passada mais de uma década, o quadro não se alterou.

Dados publicados pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio


Vargas (DIREITO GV) em março de 2011 indicam, por meio de uma investigação
feita com 1570 de pessoas, entrevistadas entre outubro e dezembro de 2010, que:

• Para 90% dos entrevistados, o Judiciário resolve os casos de forma lenta ou


muito lenta;
129
Criminologia

• 53% afirma que o Judiciário não tem competência ou é pouco competente


para resolver conflitos;
• 78% considera o custo para entrar com uma causa do Judiciário muito caro,
e essa proporção é mais forte entre os respondentes menos favorecidos
socialmente;
• 64% afirma que a Justiça é pouco ou nada honesta;
• 59% crê que o Judiciário é influenciado pela política ou os demais poderes
estatais.

Quanto à confiabilidade:

O percentual de confiabilidade no Judiciário é de 33%, enquanto que nas


Forças Armadas é de 60%; na Igreja Católica, 56%; na Polícia, 40% e nos Partidos
Políticos, 37%.

A leitura destes preocupantes dados torna claro que há uma generalizada


sensação social de absoluta incapacidade do Estado em controlar, disciplinar e
regular, com seus instrumentos, a vida social.

No entender de Alexandre Morais da Rosa, há uma latente e estrutural


tensão entre o Direito e o Processo Penal herdados da Modernidade, que obriga
a religar antigos saberes e práticas punitivas (Direito e Processo Penal) aos novos
(Criminologia Crítica):

As categorias e os traços específicos de cada campo do saber,


antes tidos como universais, precisam, agora, de acomodações
em face do sistema cultural em que são aplicados, em dois
níveis. No nível coletivo/social, mediante o reconhecimento
da alteração no modo de produção contemporâneo, a saber,
pela superação do dilema liberalismo “versus” socialismo, em
nome do “pensamento único” Neoliberal. No nível individual,
a categoria sujeito, antes tida como universal, também
precisa de modulações, daí decorrendo todo o debate da
“culpabilidade”, por exemplo (MORAIS DA ROSA; FABRES
DE CARVALHO, 2010, p. 7-8).

Apesar da dificuldade da tarefa de avaliar a situação presente, sobretudo


quando percebida de maneira ainda confusa, e a partir do atual contexto
vislumbrar possibilidades e alternativas, ao menos é possível, examinando
retrospectivamente o modelo punitivo dominante, refletir sobre sua trajetória,
identificando suas contradições e déficit, na tentativa de buscar pontos de
partida para novas possibilidades de sustentar uma vida social viável e
minimamente civilizada.

130
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

Sistema Punitivo Brasileiro


Contemporâneo: Desafios e Paradoxos
Figura 7 - A violência Brasileira

Fonte: a autora.

O conturbado momento que se está vivenciando é permeado por discursos


e práticas paradoxais. Ao mesmo tempo em que se busca fortalecer e garantir os
princípios basilares da ordem democrática, o sistema punitivo é cada vez mais
segregador, autoritário, antidemocrático e estigmatizante.

Na grande maioria dos países ocidentais, e no Brasil, por modismo, conivência


ou convicção, são endurecidas as formas de punição: severas condenações,
prisões de segurança máxima, política “tolerância zero”, aprisionamento
sumário... enfim, práticas vingativas orquestradas sob o lema “lei e ordem” sem
que produzam os resultados anunciados.Talvez por esta razão é que, na busca
por uma obsessiva segurança, vai-se sacrificando os princípios da democracia e
os direitos fundamentais.

O que se observa é uma Política de Segurança Pública “de ocasião”, que se


centraliza mais nos efeitos do que nas causas estruturais da questão da violência.

Mas há outras possibilidades para responder ao aumento da criminalidade e


suas novas e cada vez mais sofisticadas formas de atuação?

Para Katie Argüello (2011, p. 2) o fenômeno da violência brasileira e suas


particularidades deve ser compreendido como resultado das tensões inerentes à
estrutura social, política e econômica dominante, que vem enfrentando inúmeras
crises, dentre as quais se destacam crise socioeconômica, crise política e crise
existencial.

131
Criminologia

A forma atual de reprodução e acumulação do capital, orquestrada pela


globalização e emprego de novas tecnologias, inclusive intensificando a
comunicação e diminuindo distâncias espaciais, vem dando alta mobilidade
aos centros produtivos e formas mais agressivas de exploração do trabalho, se
criando uma nova fórmula para acumulação: flexibilização e precarização do
trabalho, endividamento, especulação e altas taxas de juros. Desta forma, lembra
Katie, o trabalho vivo torna-se cada vez mais desnecessário.

Chega-se ao ponto de afirmar que, seguindo a perspectiva atual, no século


XXI bastaria 20% da população ativa do planeta para manter a economia global.
Portanto, a estratégia econômica da hora é criar condições favoráveis para os
investidores internacionais, o que ironicamente se traduz na propagação da ideia
que é necessário abandonar as conquistas sociais para atrair investimentos e, por
consequência, condições de sobrevivência.

Seguindo esta lógica, ao Estado cabe o papel de desconstruir os mecanismos


de proteção social, flexibilizar o mercado de trabalho e reduzir impostos e taxas,
criando, assim, condições locais de investimento de um capital sem fronteira.
O resultado é de simples compreensão: os resultados financeiros se vão e os
problemas ficam. Liberdade de ir para onde os pastos são verdes, deixando o lixo
espalhado em volta do último acampamento para os moradores locais limparem
(ARGÜELLO, 2011, p. 3 e 4).

Assim, vai sendo construída a permanente e estrutural crise econômica e


social, que é visceralmente vinculada à crise política e existencial que, como
facilmente se pode concluir, alimenta as novas formas de violência e criminalidade.

Pela absoluta incapacidade de gerenciar e solucionar os problemas


decorrentes do modelo de desenvolvimento adotado, não há como as elites
políticas garantirem segurança pública à sociedade. A única saída vai sendo a
afirmação de “remédios” de controle cujos componentes exclusivos são o ódio, a
intolerância e a vingança.

O ”inimigo” visível é o “outro”, em geral personificado no migrante, no


desocupado, no doente mental, no dependente químico, enfim, no “desajustado”,
no que foi posto à margem, e assim se dissemina a defesa de alternativas
fascistas de extermínio inúteis que mais servem para aumentar a violência do que
para solucioná-la.

A sensação de ausência de futuro, principalmente entre os jovens, faz com


que sejam perdidos valores de autoconfiança e solidariedade social, e assim tudo
se torna efêmero e insignificante. Compaixão, piedade, honra e respeito passaram
a ser princípios humanos relativos, que não podem mais ser reconhecidos para
todos, sobretudo para os “inimigos”.

132
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

A insegurança e o vazio de futuro têm conduzido a população brasileira a


pressionar os governantes a, de forma urgente, implantarem políticas públicas de
segurança. Isso tem feito com que o Estado brasileiro corra o risco de tornar-
se o que Loïc Wacquant chama de “Estado Centauro” (cabeça liberal montada
em um corpo autoritário), aplicando a doutrina do laissez-faire et leissez-passer a
montante, em relação às desigualdades sociais, aos mecanismos que as geram
(o livre jogo do capital, desrespeito do direito do trabalho e desregulamentação
do emprego, retração ou remoção das proteções coletivas), mas brutalmente
paternalista e punitivo a jusante, quando se trata de administrar suas
consequências no nível cotidiano (WACQUANT, 2007, p. 88-89).

Trata-se de um modelo de política estatal exportado a diversos países, inclusive


na América Latina, que em meio à pressão da sociedade civil tem preenchido o
vazio e silêncio dos responsáveis pelo poder público. A tônica é a implantação
de práticas punitivas duras, ampliação das penas e aumento do aprisionamento.
Fórmulas fracassadas, entretanto úteis em alguns momentos políticos para angariar
votos e vender ilusões, tais como as políticas “Lei e Ordem” e “Direito Penal do
Inimigo”, cujo breve estudo é sugerido como encerramento da disciplina.

1. “Movimento Lei e Ordem” / “Tolerância Zero”.

O “Movimento de Lei e Ordem” é uma política criminal que tem


como finalidade transformar conhecimentos empíricos sobre o crime,
propondo alternativas e programas a partir se sua perspectiva. O
alemão Ralf Dahrendorf foi um dos criadores deste movimento. Na
década de 70 (setenta), nos Estados Unidos, ganhou amplitude até
hodiernamente, com a ideia de repressão máxima e alargamento de
leis incriminadoras. A pena, a prisão, a punição e a penalização de
grande quantidade de condutas ilícitas são seus objetivos. Um dos
princípios do “Movimento de Lei e Ordem” separa a sociedade em
dois grupos: o primeiro, composto de pessoas de bem, merecedoras
de proteção legal; o segundo, de homens maus, os delinquentes, aos
quais se endereça toda a rudeza e severidade da lei penal. Adotando
essas regras, o Projeto Alternativo alemão de 1966 dizia que a pena
criminal era “uma amarga necessidade numa comunidade de seres
imperfeitos”. É o que está acontecendo no Brasil. Cristalizou-se o
pensamento de que o Direito Penal pode resolver todos os males
que afligem os homens bons, exigindo-se a definição de novos
delitos e o agravamento das penas cominadas aos já descritos,
tendo como destinatários os homens maus (criminosos). Para tanto,
os meios de comunicação tiveram grande influência (Raul Cervini,

133
Criminologia

Incidencia de la “mass media” en la expansión del control penal en


Latinoamerica, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo,
Editora Revista dos Tribunais, 1994, 5: 36), dando enorme valor aos
delitos de maior gravidade, como assaltos, latrocínios, sequestros,
homicídios, estupros etc. A insistência do noticiário desses crimes
criou a síndrome da vitimização.

A população passou a crer que a qualquer momento o cidadão


poderia ser vítima de um ataque criminoso, gerando a ideia da
urgente necessidade da agravação das penas e da definição de
novos tipos penais, garantindo-lhe a tranquilidade.

Definitivamente, questiona a distinção entre o direito e política


socioeconômica. Vê no direito a exata noção da lei, em que concilia
comportamentos aceitos ou não pela sociedade, não sendo aceitos se
aplicada de forma máxima e absoluta a lei. Não podendo ser arguido
este inadequamento social devido à política socioeconômica do
governo que gerou essa pobreza, desemprego etc., posto que nenhum
tribunal é competente para abolir tais mazelas, o que irá implicar é se
houve atos ou conjunto de ações que deturparão ou não a lei.

Os adeptos do Movimento de Lei e Ordem vêm neste a única


solução para diminuir crimes como os terrorismos, homicídios,
torturas, tráfico de drogas etc., é com o endurecimento das penas, e
a melhor das penas para eles é a de morte e a prisão perpétua. Pois
assim, além de estar tirando do meio do convivo social das “pessoas
de bem”, estará também fazendo justiça à vítima.

Essa doutrina sofreu uma ramificação, em meados de 1991, e


ficou conhecida também como “Tolerância Zero”. Originou-se em Nova
York, no governo do então prefeito Rudolph Giuliani, e assim como o
“Movimento de Lei e Ordem”, é também político-criminal. Na obra de
Manhattan Institute fica bem claro qual a verdadeira faceta ideológica
da Política de “Tolerância Zero”, em que há uma vulgarização a “teoria
da vidraça quebrada”, que se baseou no ditado popular: “quem rouba
um ovo, rouba um boi”. Essa teoria incita a punição de qualquer
conduta, mesmo as mais leves, como a de pular por cima da catraca
do ônibus, para apresentar exemplos e sensação de autoridade.

Na realidade, a política de tolerância zero surgiu não com


o intuito primordial de diminuir a criminalidade, mas de refrear a
insegurança das classes altas e médias da sociedade, tirando os
“excrementos humanos” de suas vistas, recriminando severamente
delitos menores, tais como a embriaguez, a jogatina, a mendicância.

134
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

Com a adoção da política de tolerância zero, que virou febre nos


Estados Unidos e na Europa, “o momento histórico tem reafirmado
a gravidade do problema da punição. Atualmente, os EUA contam
com uma das maiores taxas de encarceramento do mundo (680 por
100.000 habitantes). Para se ter uma ideia do que isso representa,
comparada com a taxa brasileira, que já é considerada altíssima (168
por 100.000), corresponde a quase sete vezes mais. Em termos de
número total de encarcerados o contraste é mais gritante: mais de 2
milhões de pessoas presas, contra 380.000 no Brasil.”

Loïc Wacquant tem feito inúmeras críticas ao alastramento


dessa política, explanando sua preocupação ao chamar essa de
“tendência de Ventos Punitivos vindo do outro lado do Atlântico”, que
está ameaçando até mesmo a Europa.

Em suma, percebemos que este movimento desabrochou devido


às classes mais favorecidas da sociedade clamarem por segurança,
mas na realidade se pretende a dizimação dos pobres das ruas das
grandes cidade, colocando todos atrás das grades, longe da vista da
sociedade para que o Estado os tranque e “jogue a chave fora”. Pois
em decorrência de pequenos delitos são adotadas penas de crimes
hediondos, para dar exemplo e demonstrar sensação de segurança a
esta pequena parte da sociedade.

Fonte: Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/


artigos/7938.pdf> . Acesso em: 12 de fev. de 2012.

2. “Direito Penal do Inimigo”

Texto de Luiz Flávio Gomes

Günter Jakobs, tido como um dos mais brilhantes discípulos de


Welzel, foi o criador do funcionalismo sistêmico (radical) que sustenta
que o Direito Penal tem a função primordial de proteger a norma (e
só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais). No
seu mais recente livro (Derecho penal del enemigo, Jakobs, Günter e
Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003), abandonou claramente
sua postura descritiva do denominado Direito Penal do inimigo (postura
essa divulgada primeiramente em 1985, na Revista de Ciência Penal
- ZStW, n. 97,1985, p. 753 e ss.), passando a empunhar (desde 1999,
mas inequivocamente a partir de 2003) a tese afirmativa, legitimadora
e justificadora (p. 47) dessa linha de pensamento.

135
Criminologia

Resumidamente, dos seus escritos podemos extrair o seguinte:

Quem são os inimigos?: criminosos econômicos, terroristas,


delinquentes organizados, autores de delitos sexuais e outras
infrações penais perigosas (JAKOBS, ob. cit., p. 39). Em poucas
palavras, é inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito
e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma.
O autor cita o fatídico 11 de setembro de 2001 como manifestação
inequívoca de um ato típico de inimigo.

Como devem ser tratados os inimigos?: o indivíduo que não


admite ingressar no estado de cidadania, não pode participar dos
benefícios do conceito de pessoa. O inimigo, por conseguinte,
não é um sujeito processual, logo, não pode contar com direitos
processuais, como por exemplo o de se comunicar com seu advogado
constituído. Cabe ao Estado não reconhecer seus direitos, “ainda
que de modo juridicamente ordenado – p. 45” (sic). Contra ele não
se justifica um procedimento penal (legal), mas sim um procedimento
de guerra. Quem não oferece segurança cognitiva suficiente de um
comportamento pessoal, não só não deve esperar ser tratado como
pessoa, senão que o Estado não deve tratá-lo como pessoa (pois do
contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas).

Fundamentos (filosóficos) do Direito Penal do inimigo: (a)


o inimigo, ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do
Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal
(Rousseau); (b) quem abandona o contrato do cidadão perde
todos os seus direitos (Fichte); (c) em casos de alta traição contra
o Estado, o criminoso não deve ser castigado como súdito, senão
como inimigo (Hobbes); (d) quem ameaça constantemente a
sociedade e o Estado, quem não aceita o “estado comunitário-
legal”, deve ser tratado como inimigo (Kant).

Características do Direito Penal do inimigo: (a) o inimigo não


pode ser punido com pena, mas sim com medida de segurança;
(b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão
consoante sua periculosidade; (c) as medidas contra o inimigo não
olham prioritariamente o passado (o que ele fez), mas sim o futuro
(o que ele representa de perigo futuro); (d) não é um Direito Penal
retrospectivo, mas sim prospectivo; (e) o inimigo não é um sujeito
de direito, mas sim objeto de coação; (f) o cidadão, mesmo depois
de delinquir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde
esse status (importante só sua periculosidade); (g) o Direito Penal

136
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

do cidadão mantém a vigência da norma; o Direito Penal do inimigo


combate preponderantemente perigos; (h) o Direito Penal do inimigo
deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da
tutela penal), para alcançar os atos preparatórios; (i) mesmo que
a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a
antecipação da proteção penal; (j) quanto ao cidadão (autor de um
homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para
que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em
relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado
prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade.

Dois Direitos Penais: de acordo com a tese de Jakobs, o


Estado pode proceder de dois modos contra os delinquentes:
pode vê-los como pessoas que delinquem ou como indivíduos que
apresentam perigo para o próprio Estado. Dois, portanto, seriam
os Direitos Penais: um é o do cidadão, que deve ser respeitado e
contar com todas as garantias penais e processuais; para ele vale
na integralidade o devido processo legal; o outro é o Direito Penal do
inimigo. Este deve ser tratado como fonte de perigo e, portanto, como
meio para intimidar outras pessoas. O Direito Penal do cidadão é um
Direito Penal de todos; o Direito Penal do inimigo é contra aqueles
que atentam permanentemente contra o Estado: é coação física, até
chegar à guerra. Cidadão é quem, mesmo depois do crime, oferece
garantias de que se conduzirá como pessoa que atua com fidelidade
ao Direito. Inimigo é quem não oferece essa garantia.

A pena de prisão tem duplo significado, um simbólico e outro


físico: (a) o fato (criminoso) de uma pessoa racional significa uma
desautorização da norma, um ataque à sua vigência; a pena, por
seu turno, simbolicamente, diz que é irrelevante ter praticado essa
conduta (para o efeito de se destruir o ordenamento jurídico); a norma
segue vigente e válida para a configuração da sociedade, mesmo
depois de violada; (b) a pena não se dirige ao criminoso, mas sim ao
cidadão que atua com fidelidade ao Direito; tem função preventiva
integradora ou reafirmadora da norma; (c) A função da pena no
Direito Penal do cidadão é contrafática (contrariedade à sua violação,
leia-se a pena reafirma contrafaticamente a norma); (d) no Direito
Penal do inimigo procura predominantemente a eliminação de um
perigo, que deve ser eliminado pelo maior tempo possível; (e) quanto
ao significado físico, a pena impede que o sujeito pratique crimes
fora do cárcere. Enquanto ele está preso, há prevenção do delito (em
relação a delitos que poderiam ser cometidos fora do presídio).

137
Criminologia

Bandeiras do Direito Penal de inimigo: o Direito Penal do inimigo,


como se vê, (a) necessita da eleição de um inimigo e (b) caracteriza-
se ademais pela oposição que faz ao Direito Penal do cidadão (onde
vigoram todos os princípios limitadores do poder punitivo estatal).

Suas principais bandeiras são: (a) flexibilização do princípio da


legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas); (b) inobservância
de princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização
do fato, da imputação objetiva etc.; (c) aumento desproporcional
de penas; (d) criação artificial de novos delitos (delitos sem bens
jurídicos definidos); (e) endurecimento sem causa da execução
penal; (f) exagerada antecipação da tutela penal; (g) corte de
direitos e garantias processuais fundamentais; (h) concessão de
prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito (delação premiada,
colaboração premiada etc.); (i) flexibilização da prisão em flagrante
(ação controlada); (j) infiltração de agentes policiais; (l) uso e abuso
de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem
justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei);
(m) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita
(bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros etc.).

Fonte: Disponível em: <http://www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/


arquivos/ArquivoID_47.pdf>.Acesso em: 12 de fev. de 2012.

Atividade de Estudos:

Com base nos dois textos apresentados e no que foi estudado


nesta disciplina, responda as seguintes questões:

1) Ambas as propostas possuem elementos comuns? Enumere e


identifique cada um e faça uma análise comparativa.
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138
Capítulo 4 Os Horizontes Criminológicos Contemporâneos

2) Relembrando o estudo acerca das Escolas Criminais, qual crítica


pode ser feita às propostas?
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3) Você consegue identificar, através de notícias da mídia, ações


por parte dos agentes da segurança pública norteadas por uma
das propostas? Por quê?
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Algumas Considerações
Caro pós-graduando, nesta disciplina estudamos a teoria geral do crime e da
ação, e compreendemos a criminologia etiológica. Além disso, foram apresentada
as causas de exclusão de ilicitude e da culpabilidade.

Posterior a esses conceitos, depreendemos a estrutura do crime culposo e


as diferenças entre os crimes omissivos. Por último, apresentamos os objetos,
sujeitos e a classificação dos crimes.

Esperamos que com esta disciplina você tenha aprofundado os seus estudos
acerca da criminologia e desejamos sucesso na sua atuação profissional.

139
Criminologia

Referências
ADORNO, Sergio. Exclusão socioeconômica e violência urbana. Revista
Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n. 8, jun./dez. 2002.

ARGÜELLO, Katie. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso


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BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário e outros temas contemporâneos.


Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010

_____. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia


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HIRSCH, Tomás. O fim da pré-história – um caminho para a liberdade. São


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IANNI, Octávio. O Estado-Nação na época da globalização. Revista da Pós-


graduação da Universidade Federal Fluminense. CPGEconomia, v. 1 n. 1,
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MORAIS DA ROSA, Alexandre; FABRES DE CARVALHO, Thiago. Processo


Penal Eficiente & Ética da Vingança: em busca de uma criminologia da não
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SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para uma revolução democrática da justiça.


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WACQUANT, Loïc. Punir os pobres – a nova gestão da miséria nos Estados


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