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A escalada do crime organizado


e o esfacelamento do Estado

por George Felipe de Lima Dantas*


http://www.analisefinanceira.com.br/artigos/crime_estado.htm

A segurança pública do Brasil passa por uma crise sem precedentes. As


cidades do Rio de Janeiro e São Paulo são a "vitrine" disso. Nelas, a
criminalidade hoje abertamente "em enfrentamento contra o Estado", dá
mostras de uma situação sem precedentes na história do país: guerra aberta
contra o poder constituído, processo que inclui até mesmo a execução de
policiais e ataques contra instalações físicas dos órgãos de segurança pública.

Juliet Berg, em dissertação apresentada em 1998 perante o Instituto de


Criminologia da Universidade de Cape Town, África do Sul, cita a definição de
crime organizado de Sydney Mufamadi, Ministro de Segurança Pública
daquele país: "o crime organizado passou a ser, individualmente, a maior
ameaça global desde o final da Guerra Fria".

Vale ressaltar que o Brasil, juntamente com a África do Sul, está hoje entre
os países mais violentos do mundo, segundo estatísticas recentemente
publicadas pela ONU em seu "Sexto Relatório Global sobre Crime e Justiça"...

Também é Berg que aponta que o crime organizado, dado sua natureza
complexa e o fato de ser, nos moldes atuais, fenômeno social ainda
relativamente novo, carece de ser melhor entendido por organizações dentro
e fora do aparato estatal (instituições acadêmicas, de análise política e da
sociedade civil em geral). Parece semelhante ao que se passa hoje no Brasil o
cenário retratado pela pesquisadora citada, quando afirma, referindo a
situação atual sul-africana, que a polícia tenha um papel importante no
fenômeno, principalmente em sua eventual participação nas empreitadas de
organizações criminosas, ou mesmo passividade com que as tolera. Segundo
Berg, isso possibilita que o crime organizado passe a atuar num ambiente
livre de riscos, demonstrando pouco ou nenhum receio de ser infiltrado e
conseqüentemente reprimido pelas forças policiais.

Parece que não seja necessário um "comprometimento moral majoritário" dos


prepostos policiais do Estado para que o crime organizado adquira maior
significação, da mesma forma que a corrupção em geral pode contaminar o
"espírito nacional" a partir de alguns poucos casos seguidos de corrupção de
representantes dos Poderes da República, sem que com isso possa ser feita
"tábula rasa" da integridade da maioria dos membros dos três poderes
constituídos...

Uma das dificuldades conceituais apontadas por Berg no trato do fenômeno


do crime organizado, é o fato de que não existam ainda definições universais
do seu preciso significado. A maioria das definições estariam baseadas em
determinações estruturais de natureza específica, não sendo possível,
portanto, definir genericamente o caráter "corporativo" de que o crime se
reveste em diferentes países. Por isso mesmo, Juliet recorre ao que a
Unidade de Crime Organizado da Interpol estabeleceu como definição do
crime organizado:
"É qualquer grupo de criminosos que, tendo estrutura corporativa, estabeleça como
objetivo básico a obtenção de recursos financeiros e poder através de atividades ilegais,
freqüentemente recorrendo, para tanto, ao medo e intimidação de terceiros."

Na situação brasileira, especificamente, parece que o sistema policial da


mostras de uma dupla vulnerabilidade, talvez não exatamente o caso da
África do Sul. No Brasil, a par da existência histórica de uma "banda podre"
no aparato policial do Estado, cuja expressão mais crônica poderia ser
caracterizada no convívio, politicamente induzido, senão mesmo imposto, de
polícias com a ilicitude, caso clássico do Estado do Rio de Janeiro no que se
refere à contravenção do chamado "jogo do bicho", some-se a isso a
profunda desmoralização e conseqüente frustração, de uma claramente
majoritária "banda não-podre". Isso acontece na medida em que policiais
reconhecidamente íntegros passaram a ser sistematicamente execrados por
representantes do Poder Público que instrumentalizam sua ação política
conjuntural tergiversando quanto à legitimidade da ação policial realizada
dentro dos limites estritos da lei. Exemplos recentes disso seguem ecoando
do Rio Grande do Sul, tanto no que tange a polícia judiciária quanto sua
homóloga ostensiva, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul.

No Estado de São Paulo, especificamente, é digna de nota a atitude dos


governos estadual e federal, convocando os trabalhos do Departamento de
Polícia Federal quando da investigação do seqüestro seguido de morte do
Prefeito Celso Daniel de Santo André, medida política que desgasta a Polícia
Civil do Estado de São Paulo e potencializa a arrogância da criminalidade
local.

É dentro desse quadro de verdadeira "anomia na gestão da segurança


pública", hoje instalada no Brasil tanto ao nível federal quanto estadual, a
primeira optando por investir apenas em recursos materiais (mais do de
sempre...), ao invés de liderar o setor num salto qualitativo de natureza
técnico-científica, enquanto a segunda pela prática já habitual de buscar fazer
uma "política policial oportunista", que talvez seja interessante revisitar o
texto de Juliet Berg. A autora mapeia a escalada do crime organizado e o
conseqüente esfacelamento progressivo do Estado, situação hoje claramente
instalada em um dos países vizinhos ao Brasil e para qual o Brasil parece
marchar perigosamente.

Em um primeiro estágio, o Estado passaria por uma situação de


"confrontação" em relação ao crime organizado, empregando métodos
policiais para destruí-lo, numa tentativa de total erradicação das ilicitudes por
ele praticadas.

Já num estágio seguinte, rotulado por Berg como sendo de "aquiescência


relutante", face a incapacidade de adoção de uma estratégia de confrontação
bem sucedida com o crime organizado, o Estado seria forçado a aceitar a
prevalência de atividades ilegais daquelas organizações em seu território
nacional.
Em um terceiro momento, apontado pela autora como de "conivência tácita",
já estaria instalado um processo de conluio dos sindicatos do crime com
estruturas formais do Estado, a despeito da existência, ainda, de algum poder
de confrontação e repressão. Nesse estágio, seria eleita pelo Estado a opção
de tirar proveito das operações ilícitas dos sindicatos do crime, na medida em
que beneficiassem a economia, a sociedade, ou mesmo os funcionários da
segurança pública eles próprios. Políticas de segurança pública, em países
adotando tal abordagem, incluiriam uma "denunciação simbólica" do crime
organizado, em lugar da adoção de medidas concretas do seu combate e
erradicação, mascarando a passividade do seu sistema de justiça criminal
(polícias, Ministério Público e Judiciário).

O quarto estágio seria o de "encorajamento ativo", circunstância em que altos


membros do Estado, beneficiários diretos das atividades ilícitas do crime
organizado, passariam a prevenir, ou mesmo sabotar, estratégias de
contenção, já que as mesmas iriam de encontro aos benefícios por eles
auferidos. Tal situação está relacionada a um grau específico de corrupção
interna das estruturas estatais, fruto de esforços especialmente
desenvolvidos nesse sentido por verdadeiros "lobistas" do crime organizado.

Num momento final, dar-se-ia o conluio, grau mais alto de envolvimento do


Estado com o crime organizado. Em tal estágio, o Estado estaria
completamente envolvido com grupos criminosos, numa verdadeira relação
simbiótica. A estrutura estatal passaria a ter total parceria nas atividades do
crime organizado, com seus representantes trabalhando diretamente com os
sindicatos do crime. Segundo Berg, o conluio será tão mais aberto quanto
maior seja o grau de subdesenvolvimento do país, já que Estados
industrializados ou pós-industrializados costumam ser menos abertos em
eventual conluio com o crime organizado, vis-à-vis países pobres que
dependem mais intensamente da exportação de mercadorias ilegais.

Interessante notar, nesse texto tão contemporâneo de Juliet Berg, a


observação de que o nível de intensidade do crime organizado envolve
necessariamente uma conexão contínua e simbiótica, não só entre os
sindicatos do crime organizado e policiais, mas também, de maneira
específica, com representantes da classe política nacional.

George Felipe de Lima Dantas é PhD ("The George Washington


University" / Washington,D.C. / EUA), de volta ao Brasil depois de quase dez
anos trabalhando nos EUA e atuando como consultor em organizações
internacionas (República Dominicana, México e Nigéria), atualmente é
consultor e palestrante em assuntos de segurança pública. Trabalha
correntemente na Câmara Legislativa Federal, já tendo atuado no Ministério
da Justiça e Secretaria de Segurança do Distrito Federal. Paralelamente,
exerce atividades docentes em metodologia da pesquisa e sociologia do crime
na Escola de Governo do Distrito Federal. (Contribui para a Rede CTA desde
2000) Email: dantasf@hotmail.com

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