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Cidades- Comunidades e Territórios

Dez. 2003, n.0 7, pp. 37-57

Violência e Insegurança Urbana:


um Fenómeno em Crescimento ou em Transformação?
O Caso da Área Metropolitana de Lisboa

Eduardo Viegas Ferreira *

Resumo: Neste artigo é discutida e analisada, de forma necessariamente sucinta, a


relação existente entre a violência urbana e a insegurança revelada nas grandes áreas
metropolitanas, tendo em consideração os principais factores que parecem estar
subjacentes a essa relação. Tendo como referência alguns dados empíricos disponí­
veis sobre a área metropolitana de Lisboa, é ainda analisada a evolução recente destes
dois fenómenos, bem como um conjunto de estratégias de prevenção que têm vindo a
ser desenvolvidas ou que poderão vir a ser accionadas num futuro próximo por forma
a atenuar a insegurança que é revelada por um elevado número de actores urbanos.

Palavras-chave: violência e insegurança urbanas; áreas metropolitanas; estratégias de


prevenção

Sobra a Cidade como Espaço de


Segurança desprotegidos de um ponto de vista institucional,
tenha desaparecido. Essa violência, ou o seu po­
As cidades modernas construíram-se e tencial, continuou presente nas sociedades
estruturaram-se, em parte, como o resultado de uma europeias, como na portuguesa (M.Vaz, 1998), pelo
crescente necessidade de protecção e segurança que parece mais apropriado referirmo-nos a um
dos corpos e dos bens daqueles que nelas conse­ direito quase universal. Mas sabe-se que pelo me­
guiam ser acolhidos e ser reconhecidos como cida­ nos desde os séculos XVII e XVIII registou-se um
dãos. Os próprios Estados modernos, tal como os contínuo decréscimo da violência, como o demons­
conhecemos e concebemos, desenvolveram-se traram, entre outros, Lodhi e Tilly (1973: 297-318).
como uma forma de resposta à problemática da Hoffer e Hull (1981) e Beattie (1986), também
violência e da insegurança com ela relacionada. mostraram que os processos de emergência e de
A sua consolidação, em larga medida tornada pos­ consolidação dos Estados modernos foram acom­
sível e legítima pela monopolização do direito ao panhados por menores volumes de crimes violen­
exercício da violência, exterior e interna, como tos contra as pessoas, uma tendência que, aliás,
autores como Max Weber (1983) ou Tilly (1985) ainda hoje parece manter-se (LaFree e Kick, 1986:
analisaram e discutiram de forma mais aprofun­ 213-236). Saliente-se, no entanto, que esta lenta
dada, parece ter tido, como um dos seus corolários, diminuição da violência não foi acompanhada por
quer uma significativa redução dos crimes violen­ uma diminuição dos designados crimes contra bens
tos, quer a conquista do direito universal à pro­ patrimoniais. Pelo contrário, e como salientou
tecção e à segurança de pessoas e bens. Foucault (1977: 70-71), desde o fim do século XVII
O culminar do processo civilizacional, tal que a diminuição dos crimes mais violentos, como
como Elias o descreveu (1989), não significou, no os homicídios e as agressões, parece ter sido acom­
entanto, que a violência passível de ser exercida panhada por um aumento dos crimes contra a pro­
sobre alguns actores, em especial aqueles mais priedade.

• Licenciado e Mestre em Sociologia. Assistente no Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais. Contacto: eduardo.ferreira@pj.pt

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Alguns autores como Johnson, E. e Monk- quentemente, dificilmente geradora de uma eleva-
konen (1996) têm defendido que uma análise ob- da insegurança.
jectiva da evolução histórica da criminalidade es- O desenvolvimento, nos Estados Unidos, dos
barra, invariavelmente, com elementos que são tudo conceitos de violence, de civil desobedience e de
menos objectivos. Estatísticas oficiais, documen- domestic turmoil visou precisamente descrever e
tos dos tribunais ou das prisões, em todos se pode explicar esses fenómenos, então entendidos como
colocar a marca da subjectividade oficial1. Apesar a manifestação de uma revolta colectiva porque,
destas limitações, parece evidente que a cidade se na sua essência, possuíam uma função expressiva
tornou menos violenta que os meios rurais, e que e política e dificilmente podiam ser entendidos
entre os séculos XVI e XIX a Europa assistiu a sig- como sendo motivados pelo lucro, pela vingança
nificativas mudanças na estrutura da criminalidade, ou por paixões individuais (Lagrange Zauberman,
de um predomínio de crimes violentos para um pre- 1991: 235). As manifestações desta violência co-
domínio de crimes contra a propriedade. Além dis- lectiva, de que as cidades foram, e ainda são, o
so, os elementos disponíveis também indiciam que palco privilegiado, foram por isso compreendidas,
as tendências criminais de longo prazo em muitos e não raras vezes desculpadas e apoiadas pela
países europeus têm sido, efectivamente, de de- maioria dos actores urbanos, porque eram uma for-
créscimo, e não de aumento, dos crimes mais vio- ma de ultrapassar os riscos associados à crescente
lentos. Apesar da existência de alguns dados aleatoriedade e imprevisibilidade das estruturas e
empíricos contraditórios, o constante declínio da dos movimentos económicos e sociais e, não me-
criminalidade mais violenta, que durante milénios nos importante, a aparente incapacidade do Esta-
ameaçou os corpos e os domicílios, parece ter efec- do, e da maioria das instituições tradicionais, para
tivamente diminuído significativamente nas socie- explicar, prever e, por isso, controlar, todos os no-
dades ocidentais e, em particular, nas suas cida- vos riscos que ameaçavam a maioria dos actores
des (P. Spierenberg, 1996). Nesta sequência, du- urbanos.
rante a maior parte do século XX a questão da vio-
lência interpessoal acabaria por ser relegada para Violência, Crime e Insegurança
um lugar secundário enquanto preocupação primor- Urbana
dial ou estruturante da maioria dos actores urba-
nos. Tal parece ter ocorrido porque o longo proces- A insegurança relacionada com o receio do
so de pacificação dos medos, que culminou na con- crime violento só voltaria a assumir-se como uma
quista do direito quase universal à segurança de questão central na maioria dos países ocidentais
pessoas e bens também induziu, num primeiro na década de 90. A criminalidade começou a ser
momento, o recentramento das preocupações nos detectada, na maioria das sondagens à opinião pú-
riscos de guerras entre Estados e, num segundo blica (Esteves, 1999), como um dos problemas mais
momento e sobretudo no final dos anos 60, nas graves e com consequências mais negativas para a
ameaças colocadas pela estagnação ou recessão qualidade de vida nas cidades. O caso dos Estados
económica. Apesar de, nos anos 70, a insegurança Unidos torna-se paradigmático quando se constata
económica, derivada da ameaça de desemprego ou (Garofalo, 1981), logo no início dos anos 80, que o
de subemprego, ter motivado inúmeras manifesta- receio do crime estava presente no quotidiano de
ções de violência2, esta foi invariavelmente enten- uma elevada percentagem de actores urbanos, in-
dida como a expressão mais visível de uma frus- fluenciando as suas relações interpessoais, os seus
tração ou de uma resposta colectiva às injustiças hábitos e as suas próprias decisões em termos, por
sociais acentuadas pela crise económica (Lagrange exemplo, de mobilidade laboral ou residencial3.
e Zauberman, 1991: 243). E, por esse motivo, com- A maioria dos actores urbanos americanos parecia
preensível, relativamente desculpável e, conse- viver sob a permanente ameaça de ser vítima de

1
É exactamente devido às insuficiências e distorções que são introduzidas pelos números oficiais da criminalidade que optámos invariavelmente
pelo recurso aos resultados obtidos por inquéritos de vitimação. Ver, a este propósito e por exemplo, Robert, P. et al. (1999), “Mesurer le crime.
Entre statistiques de police et enquêtes de victimation”, Revue Française de Sociologie, n.° XL (2)
2
A radicalização, no início dos anos 70 e em países como a Alemanha, a Itália, a Grã-Bretanha e, em certa medida, a Espanha, das violências
terroristas, invariavelmente direccionada a alvos políticos, constituiu uma manifestação extrema deste processo.
3
Fenómeno que levou vários autores a considerar que grande parte da intensa mobilidade americana se podia reconduzir, em grande parte, a uma
mobilidade motivada pelo receio do crime - cf. Dias e Andrade (1984) e Davis (1998).

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Violência e Insegurança Urbana

criminosos e essa ameaça era, aparentemente, de vitimação, como um dos três problemas mais
estruturante da sua vida quotidiana e, não raras graves existentes (Gráfico n.º 1). Comparativamente
vezes, estruturante da própria cidade. a outros riscos, como o desemprego, a diminuição
Embora com manifestações menos extensas e do poder de compra, a doença ou a inexistência de
profundas, este fenómeno também começou a reformas ou pensões de velhice, o receio de
reemergir na generalidade dos outros países oci- vitimação criminal parece ter voltado a assumir um
dentais. No caso português, e em particular na área lugar cada vez mais preponderante4 e, aparente-
metropolitana de Lisboa, a criminalidade começou mente, estruturante das formas de sentir e viver a
a ser crescentemente referenciada, em inquéritos cidade5.

Gráfico n.º 1 – Preocupação com a criminalidade e a insegurança revelada na área metropolitana de Lisboa

Fontes: Inquéritos de Vitimação realizados pelo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça em 1989, 1992 e 1994, e
Inquérito de Vitimação realizado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima em 2001, no âmbito do Projecto Cíbele – Estudo sobre
Prevenção do Crime e Vitimação Urbana.

Correlativamente, os mesmos inquéritos de policiais em números que não se verificavam pelo


vitimação começaram a revelar a existência menos desde o fim da Segunda Guerra Mundial
de uma elevada insegurança, sugerindo a exis- (Lagrange e Zauberman, 1991:247-248). Este au-
tência de uma relação entre esta e a preocupação mento, que também se fez sentir em Portugal, em-
com a criminalidade, ou seja, com o receio do cri- bora de forma mais acentuada apenas nos anos 90
me. No caso da área metropolitana de Lisboa, esta (Ferreira, 1998), obrigou a uma inversão dos dis-
relação começou a ser evidente nos anos 90, quan- cursos explicativos da insegurança urbana, dada a
do quase metade da respectiva população ou, pelo dificuldade em continuar a sustentar que a mesma
menos, dos actores que foram sendo inquiridos, co- se podia reconduzir quase exclusivamente a mani-
meçou a revelar, cumulativamente, uma crescente pulações político ideológicas (Lagrange e
preocupação com a criminalidade e uma crescente Zauberman, 1991).
insegurança. O aumento do número de actores que referi-
A partir de meados dos anos 80 a relação en- am sentir receio do crime e uma elevada insegu-
tre insegurança e receio do crime deixou de poder rança relacionada com esse mesmo receio come-
ser dissociada, como até então havia sido, da çou a evoluir, grosso modo, a par com o aumento
criminalidade. Na maioria dos países europeus, os dos crimes registados pelas autoridades policiais
crimes contra o património, como os furtos, e al- ou judiciais. As relações existentes entre os dois
guns crimes violentos, como os roubos ou os assal- fenómenos começaram a ser impossíveis de igno-
tos, começaram a ser participados às autoridades rar ou de descartar como meras relações espúrias.

4
Exactamente como havia acontecido ao longo de praticamente todo o século XIX e início do século XX.
5
Em parte porque aqueles que se sentem mais inseguros tendem, de acordo com os resultados obtidos em vários inquéritos de vitimação, a
reduzir a frequência e a intensidade dos contactos com a cidade e a adoptar estratégias e medidas de protecção que os isolam cada vez mais
dessa mesma cidade.

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CIDADES Comunidades e Territórios

No caso português, por exemplo, as autoridades dessa mesma prevalência, mas sobretudo, ou ape-
policiais registaram, entre 1993 e 2000, um au- nas, nos casos dos crimes de dano e de furtos de ou
mento global de 55 969 crimes (+18,2%), em que em veículos (Gráfico n.º 2).
se destacam, entre outros, os crimes de furto, com Tendo como referência os dados que iam sen-
mais 31 362 crimes registados (+23,6%), os cri- do disponibilizados, a maioria dos estudos então
mes contra as pessoas, com mais 14 376 crimes efectuados (Ferreira, 1998) confirmaram não ser
registados (+20,9%) e os roubos, com mais 5237 possível ignorar a existência de uma relação entre
crimes registados (+43,9%)6. Os inquéritos de receio do crime, probabilidades de vitimação e in-
vitimação que foram sendo realizados na área me- segurança. Nesta sequência, o receio do crime co-
tropolitana de Lisboa também começaram a reve- meçou a confirmar-se como um receio que não se
lar, não só uma elevada prevalência de crimes con- podia configurar apenas como algo de irrealista ou
tra bens pessoais e familiares, na maior parte dos manipulado, porque resultava de uma percepção,
casos, e como era expectável, bem superior à reve- razoavelmente objectiva, das elevadas e crescen-
lada pelas estatísticas oficiais, como um aumento tes probabilidades de vitimação existentes.
Gráfico n.º 2 – Crimes contra bens patrimoniais registados na área metropolitana de Lisboa,
por 100 habitantes ou agregados familiares

Fontes: Inquéritos de Vitimação realizados pelo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça em 1989, 1992 e 1994, e
Inquérito de Vitimação realizado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima em 2001, no âmbito do Projecto Cíbele – Estudo sobre
Prevenção do Crime e Vitimação Urbana

Sendo o efeito das relativamente elevadas pro- tos de vitimação, iam revelando era, na realidade,
babilidades de vitimação contra bens patrimoniais que a criminalidade mais violenta, em particular
sobre a construção de uma insegurança sentida ou aquela concretizada em homicídios, tinha estabili-
revelada e de novas formas de sentir e de viver a zado ou estava a diminuir (Gráfico n.º 3). Mesmo
cidade compreensível e explicável, já o mesmo não no caso dos pequenos crimes contra a integridade
se podia dizer relativamente aos crimes mais vio- física ou a honra, o que se ia constatando era que a
lentos. O que os dados existentes, quer aqueles prevalência dos mesmos era reduzida e se manti-
relativos aos registos efectuados pelas autoridades nha, apesar de algumas oscilações e de uma única
policiais, quer aqueles obtidos através de inquéri- excepção7, notavelmente estável (Gráfico n.º 4).

6
De acordo com as Estatísticas da Justiça, compiladas e publicadas pelo antigo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.
7
Caso das injúrias.

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Violência e Insegurança Urbana

A crescente preocupação com a criminalidade bana, aparentemente geradora de elevados níveis


e a insegurança com ela relacionada parecia, neste de insegurança e de novas formas de sentir e viver a
sentido, estar ancorada numa contradição insolú- cidade, parecia reconduzir-se, na maior parte dos
vel. Ela estava aparentemente relacionada com uma casos, mais a uma relativa saturação de danos
relativa saturação de crimes, mas esses crimes eram patrimoniais e de incivilidades do que propriamen-
cada vez menos violentos. Ou seja, a violência ur- te de crimes excepcionalmente violentos.

Gráfico n.º 3 – Homicídios registados em Lisboa e noutras capitais europeias, por 100 000 habitantes

Fonte: U.K. Home Office, in www.homeoffice.gov.uk/rds/pdfs/400data.xls

Gráfico n.º 4 – Crimes contra as pessoas registados na área metropolitana de Lisboa, por 100 habitantes

Fontes: Inquéritos de Vitimação realizados pelo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça em 1989, 1992 e 1994, e
Inquérito de Vitimação realizado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima em 2001, no âmbito do Projecto Cíbele – Estudo sobre
Prevenção do Crime e Vitimação Urbana.

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Violência e insegurança urbana ou tribuído o facto, como defendeu Touraine (1991:


crise de identidade? 7-13), de as diferenças sociais e económicas se te-
rem acentuado de forma brutal nas últimas déca-
A existência de uma cidade cada vez menos das do século XX. O contínuo mais ou menos gra-
violenta mas cada vez mais insegura pode, numa dual em que se inscreviam as diferenças entre as
primeira análise, ser compreendida e explicada em classes laboriosas e as classes perigosas, nos
função do que poderemos designar por uma crise primórdios das sociedades industrializadas, foi
de identidade urbana. Esta identidade, que emer- destruído e a deu lugar a uma nova e forte clivagem,
gia quase naturalmente entre os proprietários e os entre a classe trabalhadora e diferentes subclasses,
não proprietários até meados do século XX, foi sendo que começaram, por efeito dos fortes movimentos
gradualmente substituída por uma identidade mais imigratórios que haviam ocorrido em muitas das
difusa, porque construída em função de outra or- sociedades europeias no pós-guerra, e mais recen-
dem de diferenças, em particular as existentes en- temente em Portugal (Gráfico n.º 5), a ser consti-
tre os que ameaçam e os que defendem a ordem e a tuídas, na sua maioria, por minorias, étnicas, cul-
estabilidade citadina. Para esta alteração terá con- turais ou religiosas.

Gráfico n.º 5 – Residentes estrangeiros (legalizados) em Portugal

Fonte: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

A crise económica que se instalou a partir dos dos anos 70 só poderia ter como corolário uma cres-
anos 70, e que apenas teve um interregno nos anos cente insegurança.
90, parece ter reforçado este processo de clivagem Num contexto de aparente desagregação de
e de exclusão social, processo que fez emergir um uma identidade baseada em laços e solidariedades
número significativo de conflitos, étnicos e cultu- sociais tradicionais, a suposta violência de alguns
rais, sobretudo em meios urbanos. Compreende- grupos minoritários, que anteriormente era atribu-
-se, neste sentido, o motivo pelo qual, em espaços to do operariado e representada como legítima, ou
urbanos relativamente vastos e sobrepovoados, a pelo menos compreensível, face às desigualdades
procura de uma nova segurança identitária, por e injustiças sociais, começou, como o salientaram
oposição a uma multiplicidade de identidades Lagrange e Zauberman (1991), a ser representada
minoritárias, se tornou fulcral. Por outro lado, em como um risco para a ordem e estabilidade social
sociedades que antes haviam sido caracterizadas e, consequentemente, por se transformar num im-
pela abundância, e pela segurança decorrente dessa portante factor de insegurança. As respostas vio-
mesma abundância, em que, como salientou Ulrich lentas accionadas por grupos estruturados em tor-
Beck (1992), a energia nuclear ocupava um lugar no de identidades minoritárias deixaram, aparen-
simbolicamente central como um dos poucos ris- temente, de ser percepcionadas em função de uma
cos possíveis e prováveis, a desordem económica, qualquer dimensão de protesto colectivo e, ao per-
social e cultural que emergiu a partir de meados derem a sua legitimidade expressiva, passaram ra-

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Violência e Insegurança Urbana

pidamente do domínio político para o domínio do pelos resultados de um inquérito (Santos, 1996),
direito comum. Ou seja, do direito penal. que mostraram que os conflitos de vizinhança, e
Os responsáveis pelas novas formas de vio- não os conflitos laborais ou os conflitos étnicos,
lência, algumas vezes consubstanciadas no vanda- tendiam a ocorrer mais frequentemente e a ser mais
lismo de bens colectivos ou privados, deixaram de perturbadores para o actor convencional. Estes
ser representados como actores colectivos, dota- conflitos de vizinhança tinham, invariavelmente, a
dos de uma estratégia de poder legitimada pela sua génese nos ruídos e nos lixos e maus cheiros,
injustiça decorrente da dominação e da exploração ou seja, nas incivilidades e na falta de respeito dos
do capitalismo, e passaram a ser representados outros. As incivilidades, sobretudo as decorrentes
como verdadeiros criminosos, cujas estratégias in- dos valores, atitudes ou comportamentos públicos
dividuais e egoístas colocavam em causa a segu- supostamente característicos de determinadas mi-
rança da maioria dos actores urbanos. As formas norias, étnicas ou nacionais, começaram assim a
através das quais a violência accionada por alguns emergir como um forte argumento, de natureza
actores, maioritariamente concentrados nas gran- explicativa, da insegurança sentida ou revelada nas
des cidades, começou a ser representada, marcou grandes metrópoles, num processo que, não raras
um ponto de viragem na problemática da violência vezes, mais não parecia do que camuflar uma forte
urbana e da insegurança com ela relacionada, por- xenofobia.
que acabou por remeter, como era quase inevitá- A lógica subjacente passou a ser linear e uni-
vel, para a questão da (não) integração social des- forme. Raramente nos discursos capturados se ar-
ses actores. Quer para a sua não integração deli- risca discriminar e estigmatizar as minorias ou os
berada, porque decorrente de processos conflituais estrangeiros, mas apenas aqueles que não sabem
de afirmação de identidades minoritárias, quer para respeitar as leis e as regras básicas de vivência em
a sua não integração originada pela recusa de todo sociedade. Ou seja, aqueles que, pela sua falta de
um conjunto de valores, de atitudes ou de compor- educação e de civilidade, começaram a colocar em
tamentos representados como sendo socialmente causa os direitos e a segurança da maioria dos ac-
inaceitáveis ou intoleráveis. tores e que, por esse motivo, não são dignos de ace-
Neste processo, em que causas e efeitos se der à cidadania plena. O argumento da diferença
começaram a interligar e a influenciar de forma de valores, de tradições e de costumes, e das inci-
evidente, depressa emergiu a questão das incivili- vilidades relacionadas com essa diferença, dificil-
dades (Roché, 1991, e Peralva, 1997). Ou seja, das mente poderia sustentar, no entanto e por si só, quer
incivilidades associadas aos estilos de vida de al- a limitação do direito à nacionalidade e à cidada-
guns grupos minoritários, aos barulhos, aos chei- nia, quer a insegurança sentida ou revelada.
ros e aos comportamentos públicos que deveriam A ameaça da diversidade identitária teve, obriga-
ser privados e que, por não o serem, incomodam e toriamente, de se reflectir em algo de qualitativa-
perturbam o actor convencional. A questão funda- mente mais grave. Como, por exemplo, os compor-
mental passou a ser, não a diferença física, assunto tamentos criminosos. A crescente associação entre
quase tabu na modernidade, mas sim os comporta- crime e actores minoritários foi, como tudo o
mentos diferentes ou, mais especificamente, indicia, um dos fundamentos da emergência da
incivilizados, porque não respeitadores das normas nova preocupação com a segurança e de novas for-
mais básicas da vida comunitária, das minorias. mas de sentir e de pensar a cidade.
Num primeiro momento parece ter sido, de facto,
sobretudo a incivilidade de minorias e de estran- Violência das classes desfavorecidas e
geiros aquilo que mais perturbou o actor cuja iden- insegurança
tidade colectiva se encontrava em crise, e não a
diversidade sociocultural. Os processos de exclusão urbana de imigran-
Paradigmático desta profunda alteração foi o tes e outras minorias acabaram, paradoxalmente,
facto de os principais conflitos sociais terem dei- por contribuir para despoletar fenómenos reactivos
xado de ocorrer num plano estrutural, quer no mun- de afirmação de identidades étnicas ou culturais
do económico, quer no mundo político, passando e, correlativamente, de novas formas de violência,
para um plano mais local, em particular o da vizi- já não apenas socioeconómica ou política mas, so-
nhança. Em Portugal, esta alteração foi ilustrada bretudo, étnico-cultural. Estas novas formas de

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CIDADES Comunidades e Territórios

violência emergiram nos espaços mais degradados falar, a seu propósito, de subcultura, não de
e marginalizados das grandes cidades europeias, subcultura de violência”. Como podemos falar
que eram precisamente aqueles mais frequente- de subcultura no caso de outras expressões de uma
mente representados como locais onde a delinquên- identidade alternativa, como o são os graffities,
cia se constituía como um fenómeno normal, qua- porque se assumem como uma forma de expressão
se um modo de vida. No entanto, a violência que aí artística, invariavelmente transgressiva, mas não
começou a emergir dificilmente poderia ser, pelo necessariamente criminosa ou violenta. A insegu-
menos num primeiro momento, encarada como rança associada à emergência e à afirmação destas
mera manifestação de uma delinquência indivi- novas identidades urbanas parece ter decorrido, por
dual. isso, mais do facto de a sua dimensão social e cul-
O que ressaltou, aos poucos, foi mais um con- tural raras vezes ser conhecida e reconhecida.
junto de movimentos sociais, através dos quais se A representação de que os jovens, sobretudo do
começaram a afirmar diferentes subculturas, inva- género masculino, oriundos de famílias e de áreas
riavelmente desviantes em alguns dos seus traços urbanas de classe baixa são, cultural e quase ine-
mais visíveis, mas não necessariamente crimino- vitavelmente, criminosos violentos foi, na verda-
sas. Como o salientaram Lagrange e Zauberman de, sustentada e imposta pela sociologia america-
(1991), estas subculturas desviantes emergiram e na8. Hoje sabemos que grande parte dos fundamen-
estruturaram-se muitas vezes em torno de bandos tos teóricos e empíricos das pesquisas desenvolvi-
juvenis, que não se organizaram ordinariamente em das estavam errados9, mas tal não impediu que
torno de um projecto criminoso. Sendo inques- deles tivesse emergido, não só a convicção de
tionável que alguns grupos ou movimentos colecti- que grande parte dos jovens oriundos das minorias
vos juvenis começaram a recorrer a práticas delin- dos subúrbios são potenciais criminosos, como re-
quentes, por vezes manifestamente violentas, por acções colectivas de medo e insegurança à delin-
vezes apenas simbolicamente violentas, o que se quência juvenil das classes baixas e das minorias.
tem vindo a constatar é que não são essas práticas Curiosamente, a maioria das análises marxis-
aquilo que melhor os caracteriza e distingue. tas e estruturalistas desenvolvidas posteriormente
A característica mais marcante dos grupos que tanta viriam a contribuir para a sustentação científica
insegurança parecem ter começado a gerar nos ac- desta representação, ao procurar demonstrar a in-
tores urbanos mais convencionais parece residir fluência determinante de factores estruturais,
mais nas diferentes formas de expressão de uma designadamente económicos e políticos, sobre o
identidade colectiva alternativa do que numa vio- desenvolvimento de comportamentos criminosos e,
lência, seja ela inata ou reactiva. em particular, sobre a alegada, porque nesta pers-
Como salientaram Lagrange e Zauberman pectiva facilmente explicável e compreensível,
(1991), “(…) o rap, o break dance, o movimento maior frequência de comportamentos criminosos
hip hop são reivindicações culturais que não exis- nas classes sociais mais baixas10. Todo o conjunto
tiam enquanto tal no início dos anos 80. Podemos de teorizações sobre a maior prevalência de com-

8
Por exemplo, Shaw, C. (1930), The Jack-Roller: A Delinquent Boy’s Own Story, Chicago, Chicago University Press, Shaw, C. (1931), The
Natural History of a Delinquency Career, Chicago, Chicago University Press, Shaw, C. (1938), Brothers in Crime, Chicago, University of
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(1958), “Lower Class Culture as a Generating Milieu of Gang Delinquency”, Journal of Social Issues, 14 (3), pp. 5-19.
9
Por exemplo, England, R. (1960), “A Theory of Middle Class Juvenile Delinquency”, Journal of Criminal Law, Criminology and Police
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10
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portamentos criminosos entre os jovens do prole- lidar com as diferenças identitárias e a opor-se mais
tariado, acabou, paradoxalmente, por contribuir veementemente a todo o tipo de processos, como a
para consolidar a representação de que um dos imigração, que possam contribuir para acentuar
principais riscos que ameaçam as cidades moder- essas diferenças. Este mesmo tipo de actores ten-
nas reside nos comportamentos, já não apenas de, ainda, a estimular ou a envolver-se em estraté-
transgressivos nem político-ideológicos, mas essen- gias relativamente violentas de redução dos riscos
cialmente criminosos, dos membros das classes de vitimação, ou seja, em movimentos sociais mais
mais baixas. ou menos radicais e xenófobos.
Numa cidade cada vez menos violenta, a in-
segurança, sentida a um nível mais individual que Espaços Perigosos e Insegurança
colectivo e tendo como objecto privilegiado, não
as desigualdades e as injustiças socioeconómicas, A compreensão da paradoxal relação que está
mas a ameaça colocada pelas classes marginais11 subjacente à maior insegurança sentida ou revela-
pode, neste sentido, ser entendida como um dos da em cidades cada vez menos violentas não pode
resultados da interligação e interacção entre os di- ignorar que uma relativa saturação de incivilida-
ferentes factores que contribuíram para a selecção des, de pequenos furtos e de actos de vandalismo,
dos crimes cometidos pelas classes baixas ou, mais mais do que crimes excepcionalmente violentos,
genericamente, pelas minorias, como um dos prin- está a ocorrer num contexto de forte pulverização e
cipais factores de insegurança. A persistente difi- incomunicabilidade identitária. Esta incomunica-
culdade em destrinçar entre práticas de procura e bilidade parece explicar, por sua vez, todo um con-
de afirmação de uma identidade colectiva, mesmo junto de representações sobre a perigosidade de
que transgressiva ou quase delinquente, e compor- determinados espaços urbanos e dos seus residen-
tamentos criminosos, invariavelmente violentos, foi tes ou frequentadores. As relações que têm sido
instrumental para a sustentação de todo um con- encontradas entre as representações que são acci-
junto de medos e de inseguranças que, não raras onadas sobre espaços urbanos de elevado risco e,
vezes, iludiram, e ainda iludem, a verdadeira rea- por isso, perigosos, e maiores ou menores níveis
lidade dos espaços urbanos que são qualificados de insegurança têm mostrado, em particular, que a
como perigosos. avaliação e a selecção do crime violento como ris-
Salientamos, no entanto, que se todo este con- co primordial se insere num plano em que por ve-
junto de teorizações encontrou, e ainda encontra, zes intervém mais uma incomunicabilidade
tão elevado eco na opinião pública é porque uma identitária que propriamente elementos racionais
maior dificuldade em lidar com uma elevada e lógicos.
heterogeneidade identitária está invariavelmente Os sentimentos de insegurança aparecem sis-
relacionada com um maior receio do crime e uma tematicamente associados a uma percepção de bai-
maior insegurança. Pesquisas com a realizada por xo domínio e de controlo de alguns espaços e esta
Lane e Meeker (2000: 497-521) revelaram, a este percepção parece ser, por sua vez, influenciada,
propósito, a existência de uma relação quase di- quer pelas características dos respectivos habitan-
recta e linear entre preocupações com a diversida- tes, quer pelas características arquitectónicas de
de étnica, e com os gangs associados a determina- edifícios, ruas e outros espaços públicos. A maio-
das etnias, e o receio do crime. A intensidade dos ria das pesquisas realizadas nos Estados Unidos
preconceitos étnicos parece, por sua vez, depen- tem revelado que os espaços representados como
der da conjugação de uma multiplicidade de fac- sendo mais perigosos são aqueles habitados ou fre-
tores (Katz e Hass, 1988: 893-905). Uma pesqui- quentados por actores estranhos (Cf. por exemplo,
sa efectuada por Palmer (1996) revelou, por exem- Warr, 1990), enquanto que as pesquisas realiza-
plo, que os actores mais directamente afectados por das em França têm revelado que os espaços repre-
fenómenos como o desemprego ou a criminalidade, sentados como mais perigosos são constituídos por
ou residentes em áreas mais marcadas por estes locais habitados ou frequentados por imigrantes ou
fenómenos, tendem a revelar maior dificuldade em actores pertencentes a minorias étnicas (Rico e

11
Ou seja, classes muito semelhantes às classes perigosas que, ao longo do século XIX, haviam contribuído para legitimar o monopólio da
violência legítima conquistado pelos Estados modernos.

45
CIDADES Comunidades e Territórios

Salas, 1988). Ou seja, por actores possuidores de de que alguns espaços urbanos são perigosos, por-
características identitárias quase totalmente que são habitados, controlados e dominados por
dissemelhantes às da maioria da população e, por criminosos enquadrados em gangs, mais ou menos
isso, potencialmente ameaçadoras porque sistema- organizados e violentos. Gangs que, por sua vez,
ticamente associadas à delinquência juvenil e ao transportam, não raras vezes, a sua violência para
crime violento. Os bairros degradados, ou de ha- o resto da cidade sempre que podem ou lhes per-
bitação social, constituem, a este nível e como sa- mitem, confirmando, desta forma, a objectividade
lientou Fernandes (1994:11-27), referências e a justeza das representações que são accionadas
incontornáveis, porque são invariavelmente repre- sobre os seus espaços de origem.
sentados como lugares onde se geram todos os cri- Os espaços colectivamente representados
minosos e todos os riscos e inseguranças daí deri- como perigosos tendem, assim, a ser evitados e,
vadas12. porque são evitados e porque neles se desinveste
Mas não são apenas as características afectiva e materialmente, num processo em que o
identitárias dos habitantes ou frequentadores de desejo de que não existissem parece ser dominan-
determinados espaços urbanos aquilo que parece te, tendem a fechar-se progressivamente sobre si
contribuir para a construção das representações mesmos, tornando-se também menos conhecidos,
que os qualificam como perigosos. As próprias ca- mais hostis e mais geradores de receio, num ciclo
racterísticas arquitectónicas também parecem con- vicioso de incomunicabilidade social e de insegu-
tribuir, de forma acentuada, para a diminuição dos rança derivada dessa incomunicabilidade. O de-
sentimentos de domínio e de controlo sobre alguns sejo de fazer desaparecer os espaços de perigo e
espaços urbanos e, consequentemente, para a con- de medo tem, por isso e aparentemente, decorrido
solidação das representações sobre a sua mais do receio do crime, e da insegurança que ele
perigosidade. A existência de recantos mal frequen- gera, do que propriamente da vontade de reduzir,
tados, de ruas ou praças mal iluminadas, de habi- através de projectos potenciadores da inclusão
tações ou estabelecimentos degradados ou sujos, socioeconómica, cultural e política dos seus habi-
tem sido, por exemplo, frequentemente tantes, a sua pobreza, degradação e miséria desu-
referenciada como geradora de maiores receios de mana.
vitimação e de insegurança (Bannister, 1993:
69-83). O que parece estar subjacente, neste caso, A Cidade Violenta dos Meios de
é que as características físicas de determinados Comunicação Social
espaços contribuem para a redução dos níveis de
controlo sobre os riscos existentes. As relações que Um terceiro factor que pode contribuir para a
são estabelecidas, relativamente aos espaços ur- compreensão da relativa dissociação entre violên-
banos desconhecidos e perigosos, entre as suas ca- cia e insegurança reside no facto de a matriz de
racterísticas identitárias e físicas tendem, neste conhecimentos disponíveis sobre a realidade cri-
sentido, a gerar uma espécie de poderosa topogra- minal ser em parte estruturada em função da reali-
fia do receio (Fernandes, 1994) que, podendo ser dade que é construída e transmitida pelos diferen-
tributária de uma saturação de incivilidades e de tes meios de comunicação social. Estes e, em par-
crimes, é também relativamente independente das ticular, a televisão, constituem hoje, como é unani-
probabilidades reais de vitimação. memente reconhecido, um poderoso instrumento
Estas representações colectivas parecem, as- de difusão de valores e de atitudes junto de actores
sim, conjugar duas dimensões fundamentais. Por e de classes sociais que não se esgotam, nem mui-
um lado aquela que decorre da não familiaridade tas vezes se afiliam, em comunidades que possam
com um elevado número de espaços urbanos mais exercer uma função confirmatória, ou contextua-
ou menos periféricos, e marginais, às dinâmicas lizadora, do que é veiculado pelos meios de comu-
socioeconómicas e funcionais convencionais das nicação social. A dependência, de um número mais
grandes cidades. Por outro lado, a dimensão que ou menos vasto de actores, da informação, e dos
decorre, quer do desconhecimento associado a essa valores e atitudes, que são veiculados pelos meios
não familiaridade, quer da persistente concepção de comunicação social pode explicar, como tem sido

12
Designados, de forma exemplarmente ilustrativa, de “îlots d’insécurité” por Rémy e Voyé (1981).

46
Violência e Insegurança Urbana

defendido, os crescentes níveis de receio do cri- to confirmatório, ou não, de fontes de informação


me, e de insegurança. A insegurança revelada, aparentemente mais credíveis, como os familia-
numa cidade cada vez menos violenta, seria, nesta res ou a vizinhança (Williams e Dickinson, 1993,
perspectiva, indissociável das histórias que os 33-56).
meios de comunicação social contam sobre a vio- Para além das diferenças derivadas das pró-
lência existente, sobre os criminosos, sobre as víti- prias características dos meios de comunicação
mas e sobre os contextos e as circunstâncias em social, e da forma como os eventos criminais neles
que ocorrem os crimes mais violentos (Monteiro, são relatados, este tipo de relação ainda parece ser
1999: 321-339). fortemente influenciada por variáveis como a ida-
As abordagens mais deterministas têm defen- de, o género ou a classe social de pertença. Ou
dido que actores que sejam espectadores assíduos seja, tudo indicia que os efeitos da exposição aos
da televisão, ou ouvintes ou leitores de outros mei- meios de comunicação social tendem a variar em
os de comunicação social, tendem a alterar a per- função de múltiplos outros factores, entre os quais
cepção que têm da realidade social em que estão se tem destacado a maior ou menor afinidade
inseridos, podendo confundi-la com a realidade socioeconómica, demográfica ou identitária com as
ficcional (Cf. Gerbner, 1972 e Gerbner e Gross, vítimas dos eventos criminais mais frequentemen-
1976) que é caracterizada, na maioria dos casos, te relatados (Rico e Salas, 1988). Esta afinidade
por um quotidiano de crime e de violência pode contribuir para explicar, por exemplo, a apa-
(Milavsky, 1982). Da alteração induzida pelos mei- rente relação existente entre o elevado número de
os de comunicação social tenderia a resultar, por notícias relativas a vitimações, invariavelmente
exemplo, aquilo que Wober (1978: 315-321) des- violentas, de mulheres, e os maiores níveis de re-
creveu como uma percepção paranóide do mundo, ceio do crime que as mulheres, em geral, revelam
ou que Signorielli (1990) descreveu como uma na maioria dos estudos até agora efectuados (Cf.
síndroma do mundo mau. Estas percepções Chiricos, T. et al., 1997 e Winkel e Vrij, 1990).
distorcidas da realidade tenderiam, por sua vez, a A relativa ausência de relações consistentes
alterar os diferentes tipos de interacção com os entre a exposição à realidade criminal tornada aces-
outros, a induzir medidas desproporcionadas de sível pelos meios de comunicação social e a inse-
defesa contra o crime e, estas, um maior isolamen- gurança parece poder ser explicada por duas or-
to e uma maior insegurança. Neste sentido, os meios dens de factores. Em primeiro lugar, tudo indicia
de comunicação social tenderiam a constituir-se, que a maioria dos actores reconhece que os even-
em simultâneo, como uma causa e como um efeito tos criminais que mais são relatados nos meios de
do receio do crime e da insegurança. comunicação social não são os mais frequentes,
No entanto, as pesquisas empíricas que têm nem os mais representativos da realidade crimi-
sido realizadas sobre os efeitos da exposição à rea- nal, mas antes os que maior probabilidade apre-
lidade ficcional dos meios de comunicação social sentam de atrair as atenções e, consequentemente,
são, não apenas escassas, como produziram resul- de garantir maiores audiências. Em segundo lugar,
tados pouco consistentes, porque muitas vezes con- a maioria dos actores também parece ignorar mui-
traditórios (Monteiro, 1999). Uma mais elevada ex- tos desses mesmos relatos, na medida em que os
posição a notícias televisivas ou radiofónicas rela- mesmos tendem a situar a criminalidade numa es-
tivas a eventos criminais tem surgido com poden- fera afastada da sua comunidade e da sua vida
do estar significativamente associada a níveis, tam- quotidiana e, por isso, pouco provável e pouco re-
bém eles mais elevados, de receio do crime, mas a levante em termos de riscos e da necessidade de
mesma relação parece já não ser tão evidente nem adopção de estratégias de redução desses riscos
linear quando se trata de eventos criminais descri- (Tyler, 1984: 27-38).
tos, com bastante detalhe, em jornais ou em revis- A distorção ou, numa perspectiva mais radi-
tas. Nestes casos, tem-se constatado que os efei- cal, a manipulação que é operada pelos meios de
tos, em termos de receio do crime, da exposição à comunicação social tem, apesar de tudo, sido con-
realidade criminal que é descrita nos diferentes firmada por inúmeras pesquisas. Uma delas reve-
tipos de meios de comunicação social escrita ten- lou, por exemplo, que a maioria dos eventos crimi-
dem a ser mediados por um significativo número nais relatados na imprensa escrita da Grã-Bretanha
de outros factores, entre os quais se destaca o efei- (Mawby e Brown, 1984: 82-94) dizem respeito a

47
CIDADES Comunidades e Territórios

homicídios e a roubos que envolvem, sobretudo, apontam para uma relação não directa nem linear,
vítimas jovens, do género feminino e pertencentes que parece ser ainda influenciada por experiênci-
à classe social média e média alta. O problema é as directas ou indirectas de vitimação e por outras
que este tipo de eventos, e de vítimas, represen- fontes de informação, como os vizinhos, amigos ou
tam, de acordo com as estatísticas policiais e judi- familiares. Talvez seja por este motivo que, como
ciais disponíveis, apenas uma pequena parte da já o havia salientado Roché (1991), se tem revela-
verdadeira realidade criminal. Esta distorção, ou do quase sempre improdutivo fazer da opinião pú-
evidente manipulação, da realidade criminal pode, blica, tal como a mesma se estrutura e se transmite
neste sentido e por exemplo, explicar parte dos mais nos meios de comunicação social, uma das mais
elevados níveis de receio do crime e de inseguran- importantes variáveis a explicar, ou variáveis
ça que são revelados pelas mulheres na maior par- explicativas, do receio do crime e da insegurança
te das sociedades ocidentais. urbana.
A distorção da realidade criminal operada
pelos meios de comunicação social também pare-
ce ser frequente quando estão em causa as carac- Violência e Insegurança, ou Descon-
terísticas dos agressores. Não raras vezes (Welch, fiança no Sistema de Justiça?
2002: 3-30), os eventos criminais mais frequente-
mente relatados, e aos quais é dada maior cobertu- Um quarto e talvez mais importante factor
ra e destaque, são aqueles em que os criminosos explicativo para a crescente insegurança sentida
mais correspondem a estereótipos clássicos, como, ou revelada parece residir nas representações exis-
por exemplo, jovens do género masculino perten- tentes sobre a ineficácia do sistema de justiça pe-
centes a minorias étnicas. Pelo contrário, os even- nal. Este tipo de representações parece traduzir-
tos que envolvem criminosos oriundos da classe -se, entre outras consequências, em maiores níveis
média parecem ser frequentemente ignorados ou, de receio do crime e de insegurança, no crescente
pelo menos, minimizados em termos de destaque e recurso a estratégias de autoprotecção e, mais re-
de espaço ocupado (Baer e Chambliss 1997: centemente, no recurso a organizações não gover-
87-107). namentais de segurança (Esteves, 1999). O tipo, a
Até que ponto a distorção que é operada pe- intensidade e a qualidade das respostas, reais ou
los meios de comunicação social, que visa mais o representadas, que são accionadas pelo sistema de
entretenimento do que a informação, tende a con- justiça penal parecem estar relacionadas com ní-
tribuir, ou não, para significativas alterações da for- veis mais elevados de receio do crime e de insegu-
ma como a realidade criminal é percepcionada e rança, sobretudo em contextos de elevada satura-
sentida continua, no entanto, a constituir-se como ção criminal e esta relação parece decorrer do fac-
uma questão carente de maior sustentabilidade to de o sistema de justiça penal ser representado,
empírica. Os únicos dados consistentes apenas por uma elevada percentagem de actores, como
indiciam que uma maior exposição aos diferentes incapaz de assegurar um eficaz combate ao crime.
meios de comunicação social não produz efeitos A antecipação da incapacidade ou do desinteresse
directos e lineares sobre os níveis de receio do cri- das autoridades policiais, bem como a antecipa-
me e de insegurança. Algumas pesquisas (Williams ção da morosidade e do custo de qualquer proce-
e Dickinson, 1993) encontraram mesmo aquilo que dimento criminal, têm sido, por exemplo, frequen-
parece ser um efeito bidireccional, na medida em temente identificadas como um dos principais mo-
que os actores que mais procuram notícias sobre tivos que levam um elevado número de vítimas,
crimes tendem a ser aqueles que, à partida, reve- quase seis em cada dez no caso da área metropoli-
lam níveis mais elevados de receio do crime. Nes- tana de Lisboa (Gráfico n.º 6), a não participar os
te sentido, todos os resultados até agora obtidos crimes de que são alvo.

48
Violência e Insegurança Urbana

Gráfico n.º 6 – Crimes participados (em % do total de crimes ocorridos) às autoridades policiais ou judiciais
e insatisfação com estas autoridades (em % das vítimas que participaram) na área metropolitana de Lisboa.

Fontes: Inquéritos de Vitimação realizados pelo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça em 1989, 1992 e 1994, e
Inquérito de Vitimação realizado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima em 2001, no âmbito do Projecto Cíbele – Estudo sobre
Prevenção do Crime e Vitimação Urbana.

Para além da representação, que aparente- como os elevados níveis de insatisfação relativa-
mente se encontra em regressão, sobre a relativa mente à organização e ao funcionamento da polí-
incapacidade de resposta da polícia ou do sistema cia e do sistema de justiça penal, têm vindo a ser
de justiça, tem-se ainda vindo a constatar a exis- referenciados como podendo explicar parte dos ele-
tência de elevados índices de insatisfação nas, pou- vados níveis de receio do crime e de insegurança
cas, vítimas de crimes que optam pela participa- existentes (Rico e Salas, 1988), em parte porque
ção. No caso particular da área metropolitana de coincidiram, historicamente, com o desaparecimen-
Lisboa, quase metade das mesmas tem admitido to, ou com uma crescente ineficácia, de uma
ter ficado pouco satisfeita ou nada satisfeita, no- multiplicidade de mecanismos comunitários de
meadamente por as autoridades policiais ou judi- controlo do crime e, correlativamente, com uma
ciárias se terem revelado pouco interessadas, por crescente dependência, sobretudo em comunida-
não terem apanhado os autores dos crimes, por não des urbanas, de organizações formais e especia-
terem recuperado nenhum bem, por não terem dado lizadas de prevenção e de repressão do crime.
ou demorado muito a dar informações, por terem O próprio aparecimento das organizações poli-
sido pouco delicadas ou desagradáveis ou ainda ciais, tal como as conhecemos hoje, coincidiu, his-
por não terem comparecido ou terem demorado toricamente, e como o salientaram Dias e Andrade
muito a responder ao pedido de auxílio. (1984), com o das modernas sociedades industria-
Estes elevados índices de insatisfação, que lizadas e urbanizadas, constituindo-se como estru-
parecem ser comuns, embora nem sempre de for- turas burocráticas e profissionalizadas que, para
ma tão acentuada, à maioria das sociedades oci- todos os efeitos, substituíram, pela força e graças
dentais (Rico e Salas, 1988), parecem, ainda, cons- ao monopólio da violência legítima conquistado
tituir um reflexo do próprio desenvolvimento pro- pelos Estados modernos, os mecanismos informais
cessual da maioria dos crimes que são anualmente de controlo social que operavam a um nível comu-
participados às autoridades policiais. No caso por- nitário.
tuguês (Almeida e Alão, 1995: 97), mais de meta- A crescente dependência do sistema formal
de das participações efectuadas em 1994 foram ar- de justiça penal, que não pode ser dissociada
quivadas, cerca de uma em cada três tinha dado da transferência para o Estado desse monopólio da
origem a um processo-crime, que ainda seguia a violência, parece ter produzido, no entanto, um efei-
respectiva tramitação processual em 1995, enquan- to paradoxal. É que, como também o salientaram
to que apenas 5% das mesmas tinham resultado Dias e Andrade (1984), embora as organizações
num julgamento. formais e especializadas de prevenção e de repres-
O conjunto de representações sobre a inefi- são do crime, em que se destacam as polícias, o
cácia das autoridades policiais e judiciárias, bem ministério público, os tribunais e os serviços

49
CIDADES Comunidades e Territórios

prisionais, se tenham profissionalizado e burocra- O que parece ter ocorrido não foi apenas, como o
tizado de forma muito acentuada nas últimas déca- salientaram autores como Cusson (1983), um cres-
das, não parecem ter conseguido resistir à avalan- cimento, sem precedentes nas sociedades ociden-
che resultante da massificação do direito à tais e, em particular, europeias, de bens
regulação formal de inúmeros conflitos sociais e patrimoniais com um elevado valor material e sim-
interpessoais. E, não menos importante, do direito bólico e facilmente furtáveis e transaccionáveis nos
universal à protecção e à segurança contra o crime mercados paralelos. Ou seja, um aumento das opor-
e os criminosos. tunidades criminais existentes que se teria tradu-
Os dados relativos à realidade portuguesa zido, quase directamente, num volume, nunca an-
mostram, por exemplo, que nas últimas décadas tes verificado, de furtos e de roubos. Para este au-
do século XX o número de processos entrados nos mento terão contribuído, também, alterações qua-
tribunais judiciais portugueses passou de 318 677, litativas ao nível da própria necessidade de parti-
em 1974, para 727 952, em 200013. O número de cipação.
magistrados judiciais também aumentou muito sig- A generalização de seguros, que cobrem rou-
nificativamente, passando de 292, em 1974, para bos, furtos ou danos que têm como alvo residênci-
1624, em 2000, bem como o número de magistra- as, veículos automóveis e uma multiplicidade de
dos do ministério público, de 441 para 1180, e o outros bens patrimoniais, a generalização do uso
número de outros funcionários judiciais, de 2695 de cheques e de cartões bancários e a generaliza-
ção de documentos de identificação, sem os quais
para 9040. Este significativo aumento de magis-
se torna virtualmente impossível sobreviver no
trados e de funcionários não impediu, no entanto,
dia-a-dia, parecem também ter contribuído, de for-
que o número de processos, quer penais, quer cíveis
ma decisiva, para o crescimento de participações,
ou laborais, se fosse acumulando nos tribunais.
motivadas assim por constrangimentos de ordem
Exemplo disso é o facto de, em 1985, poucos pro-
legal ou administrativa e que, na ausência desses
cessos penais serem resolvidos num período infe-
mesmos constrangimentos, provavelmente nunca
rior a doze meses, considerando a data de ocorrên-
seriam antes formalizadas. Acresce, ainda, o facto
cia do crime e uma decisão judicial final, em pri- de, aparentemente, a resolução de um significati-
meira instância. Este período de tempo aumentou vo número de conflitos interpessoais, familiares,
mesmo, em 2000, para 17 meses. As estatísticas de vizinhança, de trabalho ou derivados de dívi-
da justiça portuguesas mostram ainda que, nos úl- das, quer a instituições, quer a particulares, ter
timos anos, o número de ocorrências anualmente começado a ser formal e legalmente regulada ou a
participadas às autoridades policiais e judiciais exigir o recurso à mediação do sistema de justiça.
passou de cerca de 223 000, em 1985, para Exemplo disso é, mais uma vez no caso português,
363 297, em 2000. Ou seja, registou-se um aumen- a evolução que tem ocorrido ao nível da participa-
to de mais de 140 000 ocorrências anuais no espa- ção, às autoridades policiais, de ofensas simples à
ço de apenas dezasseis anos14. Para este aumento integridade física ou de difamações, calúnias ou
terão contribuído, sobretudo, os pequenos crimes injúrias que passam, apenas entre 1993 e 2000,
contra bens patrimoniais, nomeadamente os fur- de 38 184 participações anuais para 47 55715.
tos, num processo que, de resto, parece ter ocorri- O recurso à participação formal a uma auto-
do, em termos de volume e de evolução, em prati- ridade judicial, que durante muito tempo se cons-
camente todas as sociedades ocidentais (Lagrange tituiu como um procedimento absolutamente ex-
e Zauberman, 1991). cepcional para a esmagadora maioria dos actores,
A crescente procura do sistema de justiça parece ter-se transformado, aos poucos, num pro-
penal parece ter sido motivada por um complexo cedimento, também ele absolutamente normal, de
conjunto de factores, em que o aumento real da resolução de uma multiplicidade de conflitos e de
criminalidade talvez não tenha sido o mais decisivo. ocorrências criminais. Na sequência do que até aqui

13
De acordo com as já referidas Estatísticas da Justiça, compiladas e publicadas pelo antigo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério
da Justiça.
14
Idem.
15
De acordo com as já referidas Estatísticas da Justiça.

50
Violência e Insegurança Urbana

foi explanado, este efeito era praticamente inevi- dos valores. Este ponto de vista geral é importante,
tável e acabaria, quase só por si, por contribuir mesmo que delicado, porque sabemos como o sen-
para o estrangulamento e para o bloqueio do siste- timento de insegurança não se apoia apenas sobre
ma de justiça penal. Exemplo disso foi a redução o crime para se exprimir, fazendo também apelo às
drástica das taxas de esclarecimento das ocorrên- mutações da organização social”. O problema é que
cias participadas às autoridades policiais, em par- estas profundas mutações ocorreram em simultâ-
ticular as dos furtos (Lagrange e Zauberman, 1991), neo com uma incapacidade dos sistemas de justiça
que constituem a esmagadora maioria dessas mes- penal “(...) para responder à multiplicação de de-
mas ocorrências. Os tempos de instrução e de jul- litos (e ainda mais dos actos de incivilidade pouco
gamento dos milhares de processos acabaram tam- relevantes para o direito, mas essenciais para os
bém por aumentar de forma muito significativa e, protagonistas) através de penas apropriadas, pro-
não menos importante, as próprias taxas de con- vocando a sobrelotação das prisões e tentativas
denação acabaram por diminuir16. caóticas do Estado para responder” (Roché,
A divulgação de todo este conjunto de indi- 1991:14) às solicitações que lhe são efectuadas.
cadores de relativa ineficácia das autoridades po- A representação sobre a ineficácia do siste-
liciais e judiciais, e dos tribunais, não poderia dei- ma de justiça penal para investigar e julgar todo
xar de começar a ser representada, pelos actores um conjunto de incivilidades e de pequenos e gran-
em geral, como uma confirmação da quase total des crimes e, consequentemente, para assegurar a
incapacidade do Estado para garantir a protecção protecção e a segurança das pessoas e dos bens,
e a segurança dos corpos e dos bens patrimoniais parece ainda ter sido reforçada pela representação
da maioria dos seus cidadãos17. O problema, neste de que, à ineficácia do sistema de justiça para pre-
caso, é que os Estados modernos haviam garanti- venir, investigar e julgar, se tem vindo a juntar uma
do parte da sua legitimidade precisamente em fun- quase total incapacidade para punir exemplarmente
ção dessa capacidade. Como estas representações os criminosos. Esta representação, que parece ter
se acentuaram num momento em que a maioria dos na sua base uma profunda desconfiança relativa-
actores se havia habituado a ver no Estado o prin- mente à forma como o próprio sistema de justiça
cipal recurso para a resolução de todos os seus pro- está estruturado e funciona, tem vindo a ser detec-
blemas, criminais ou não, e em que a maioria das tada na maioria das sociedades ocidentais
comunidades, sobretudo as urbanas se viu inca- (Lagrange e Zauberman, 1991). No caso portu-
paz, senão mesmo formalmente impedida, de as- guês, um estudo realizado em 1996 (Santos, 1996)
segurar alguma forma de protecção e de seguran- revelou, por exemplo, que cerca de 71% dos in-
ça de pessoas e de bens, compreende-se o motivo quiridos estavam convictos de que um culpado pela
pelo qual as mesmas começaram a surgir sistema- prática de um delito não seria necessariamente con-
ticamente relacionadas com níveis mais elevados denado em tribunal.
de receio do crime e de insegurança. Esta representação tornou-se particularmen-
Esta relação carece, ainda, de ser inserida te delicada a partir do momento em que voltaram a
num contexto mais geral, em que não releva ape- reemergir duas questões problemáticas: a da de-
nas o aumento, em quase todos os países europeus, linquência juvenil e, em parte a ela associada, a
das ocorrências criminais que são anualmente par- convicção de que a maioria dos criminosos não é
ticipadas. Ou seja, uma relativa saturação de inci- detectada, nem julgada, nem eficazmente punida
vilidades e de crimes. Este aumento foi, como o pelo sistema formal de justiça penal. No caso da
referiu Roché (1991:14), “(...) acompanhado pela delinquência juvenil, o direito, que havia sido con-
urbanização, pelo crescimento económico que per- quistado no início do século XX 18 , de não
mite adquirir bens de consumo (…) como nunca penalização exemplar, nomeadamente através de
antes tinha ocorrido na história e pela modifica- castigos corporais ou de pena de prisão, de todo e
ção dos estilos de vida e, mais acentuadamente, qualquer acto delituoso cometido por um menor,

16
Que, no caso português, terá atingido um dos mínimos históricos em 1991, ano em que apenas foram condenados 32% dos arguidos, de acordo
com as já citadas Estatísticas da Justiça.
17
Como também o referiu Robert, P. (1990).
18
No caso português, a Lei de Protecção à Infância de 27 de Maio de 1911 subtraiu os menores de 16 anos à tutela penal, e à prisão. Em França,
os menores de 13 anos foram excluídos da tutela penal em 1912, o mesmo tendo ocorrido em 1920 em Espanha e em 1922 e 1923 na Alemanha.

51
CIDADES Comunidades e Territórios

começou recentemente a ser representado como um que a representação de que a maioria dos crimino-
direito insustentável e intolerável, na medida em sos, menores ou não, não é exemplarmente punida,
que a maioria das incivilidades, dos danos, dos se associe a uma outra, que se baseia na convic-
furtos, dos roubos ou das agressões, estaria, preci- ção, aparentemente crescente num número mais
samente, a ser cometida por menores19. Ignorando, ou menos vasto de actores, de que apenas podem
em larga medida, a constatação, cientificamente contar consigo mesmos para garantir a protecção e
sustentada, de que todo e qualquer jovem só é a segurança dos seus corpos e bens. Salientamos,
cognitivamente capaz de efectuar uma avaliação no entanto, que a representação de que só uma pu-
objectiva e consciente de todas as possíveis nição exemplar do criminoso permite restituir al-
consequências de um suposto acto ilícito a partir guma tranquilidade e segurança a uma vítima, ou
dos catorze ou dezasseis anos, depressa se genera- a uma comunidade, nem sempre tem encontrado a
lizou a convicção de que muitos menores, por sa- necessária sustentação empírica. Pelo contrário,
berem não poderem ser detidos nem condenados a tem-se vindo a verificar que as vítimas de crimes
uma pena de prisão, estariam a aproveitar nem sempre exigem, como forma de reparação ou
deliberadamente este direito para cometer uma de compensação pelos danos causados, uma puni-
série infindável de crimes e, consequentemente, a ção exemplar do infractor ou agressor, invariavel-
gerar elevados níveis de receio e de insegurança mente traduzida numa pena de prisão efectiva.
na sociedade. Um elevado número de pesquisas20 tem mos-
Embora dificilmente sustentável, esta repre- trado, por exemplo, que as vítimas não tendem a
sentação, bem com a de que os menores deveriam ser mais punitivas que as não vítimas. Pelo contrá-
voltar a ser sujeitos a medidas punitivas mais du- rio, muitas vezes sugerem espontaneamente san-
ras e eficazes, tem-se generalizado em sociedades ções não punitivas, como uma compensação direc-
em que a população apresenta níveis etários cada ta pelos danos causados, ou como o trabalho, não
vez mais elevados e em que a maior parte dos com- remunerado, a favor da comunidade. Outras pes-
portamentos criminosos são percepcionados como quisas (Lee, 1994: 4-8, ou Roberts, 1992: 99-180)
sendo cometidos por gangs de jovens pertencentes têm também mostrado que, embora se detecte uma
a minorias problemáticas. Num contexto em que preferência, em sondagens genéricas à opinião pú-
se conjugam factores etários e identitários, uma vez blica, por punições severas dos criminosos, essas
que os jovens pertencentes a minorias identitárias mesmas punições tendem a ser substituídas por
começam a constituir uma significativa percenta- formas de reparação ou de compensação directa,
gem de todos os jovens, por efeito do significativo sempre que estão em causa casos concretos. Isto é,
envelhecimento da população de acolhimento, a re- sempre que os inquiridos foram, eles próprios, ví-
presentação de que os menores têm de ser punidos timas do crime em análise, ou sempre que é
exemplarmente tem dado origem a todo um con- fornecida informação detalhada sobre o autor do
junto de respostas, ainda não penais, que vão da crime ou sobre as circunstâncias em que o mesmo
responsabilização, penal ou cível, dos pais, pas- ocorreu.
sando por programas de recolher obrigatório de Nesta sequência, tudo indica que a aparente
menores à noite, de inculcação de boas maneiras e preferência por punições muito severas para os cri-
de uma maior civilidade nas escolas, e mesmo de minosos, como a pena de prisão perpétua ou mes-
criação de unidades policiais especializadas em mo a pena de morte, tende a decorrer de uma ne-
menores (Fenech, 2001). cessidade difusa de segurança, necessidade que
A relutância em voltar a criminalizar e punir deixa de produzir efeitos sempre que os crimino-
exemplarmente, como se de adultos se tratassem, sos, em geral, dão lugar a seres humanos, reais, e a
actos criminosos cometidos por menores, sendo crimes, também eles reais. A exigência de que o
ética e cientificamente inatacável, tem permitido sistema de justiça puna exemplarmente os crimi-

19
Cerca de um em cada três autores de delitos são, na maioria das sociedades ocidentais, menores, de acordo com os dados referidos por Adler,
F. et al. (1995).
20
Cf. Boers, K. e Sessar, K. (1991), “Do People Really Want Punishment? On The Relation Between Acceptance Of Restitution, Needs for
Punishment, and Fear of Crime”, in Sessar, K. e Kerner, H. (Eds.), Development In Crime and Crime Control Research, New York, Verlag, ou
Hough, M. e Moxon, D. (1985), “Dealing With Offenders: Popular Opinion and the Views of Victims in England and Wales”, in Walker, N. e
Hough, M. (Eds.), Public Attitudes to Sentencing: Surveys From Five Countries, Aldershot, Gower Publishing Co.

52
Violência e Insegurança Urbana

nosos só parece ocorrer, na verdade, quando estão gamento dos criminosos e a punição destes em fun-
em causa crimes ou criminosos particularmente ção dos danos causados.
violentos. Quando estão em causa pequenos deli- Nesta sequência, não surpreende que a maio-
tos, como os cometidos por jovens, ou a generali- ria dos inquiridos na área metropolitana de Lisboa
dade dos crimes contra o património, a maioria dos refira sistematicamente que se sente insegura por
actores tem-se mostrado favorável ao recurso a for- existir pouco policiamento e por residir na
mas directas de reparação ou compensação dos imediação de espaços perigosos22 (Quadro n.º 1).
danos causados. Quer seja através de pagamentos E que sugira, como principais e quase únicas me-
directos à vítima, quer seja através da prestação didas para reduzir a criminalidade e a inseguran-
de serviços à comunidade em geral21. Na maioria ça revelada, mais policiamento e medidas judici-
dos casos analisados, a prestação de serviços não ais mais severas, ou a desarticulação dos referidos
remunerados à comunidade tem sido apontada, por espaços perigosos através de programas de redu-
exemplo, como a mais adequada forma de repara- ção da exclusão social, da toxicodependência ou
ção ou de compensação, mesmo quando estão em do desemprego (Quadro n.º 2).
causa crimes cometidos por autores reincidentes
(Cf. Van Dijk, J., 1992).
Quadro n.º 1 – Motivos da insegurança revelada na
área de residência (em %)23
Que Estratégias de Prevenção Crimi-
nal e de Redução da Insegurança?

Uma parte significativa da insegurança reve-


lada em meios urbanos parece poder ser
reconduzida, de acordo com o que até aqui referi-
mos, não a uma elevada ou crescente prevalência
de comportamentos interpessoais violentos, mas a
uma relativa saturação de incivilidades e de pe-
quenos crimes. Ela parece ainda poder ser
reconduzida, neste contexto de relativa saturação,
a representações que colocam a génese da violên-
cia e do crime na existência de espaços urbanos
perigosos, porque ocupados maioritariamente por
actores quase inevitavelmente criminosos, e na re-
lativa incapacidade do Estado para assegurar a Fonte: Inquérito de Vitimação realizado pela Associação Portuguesa
de Apoio à Vítima em 2001, no âmbito do Projecto Cíbele – Estudo
protecção de pessoas e de bens, a detecção e o jul- sobre Prevenção do Crime e Vitimação Urbana.

21
Cf. Hough, M. e Mayhew, P. (1985), Taking Account of Crime: Key Findings from the Second British Crime Survey (Home Office Research Study
n.º 85), London, Her Majesty’s Stationary Office, London, Knowles, J. (1987), Ohio Citizens Attitudes Concerning Crime and Criminal Justice,
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Publishers, pp. 291-307, Umbreit (1994), ou Lee, A. (1994), Ob. cit.
22
Relativamente aos quais, curiosa mas teórica e empiricamente expectável, são evitadas referências directas a minorias sociais, culturais ou
étnicas, referências essas apenas efectuadas por 0,6% dos inquiridos.
23
Os totais e as respectivas percentagens são determinados individualmente por problema, dado tratar-se de um pergunta de escolha múltipla.

53
CIDADES Comunidades e Territórios

Quadro n.º 2 – Medidas sugeridas para reduzir a como uma das poucas estratégias institucionais
criminalidade na área metropolitana de Lisboa (em %) de prevenção criminal que apresenta resultados po-
sitivos, quer ao nível da redução de eventos, de
vítimas ou de danos, quer ao nível da insegurança
revelada. Em termos históricos, ou pelo menos des-
de o século XIX, detecta-se uma relação entre o
aumento de efectivos policiais, e a sua maior pre-
paração e competência, e a diminuição de crimes
violentos, enquanto que as relações entre a evolu-
ção dos efectivos, a redução drástica dos mesmos
em momentos específicos, a sua ausência em pe-
ríodos de greve e os eventos criminais registados,
mostram que estes tendem a ser mais reduzidos
quando o número de efectivos é superior, sendo tal
Fonte: Inquérito de Vitimação realizado pela Associação Portuguesa
de Apoio à Vítima em 2001, no âmbito do Projecto Cíbele – Estudo
particularmente evidente em meios urbanos26.
sobre Prevenção do Crime e Vitimação Urbana. Menos eficaz, entre as medidas que remetem
para uma actuação mais intensa e eficaz das auto-
ridades policiais e judiciais e pelo menos de acor-
do com as avaliações que têm sido efectuadas
A elevada dependência da maioria dos acto- (Cf., entre outros, Byrne, Lurigio e Petersilia (s/d)),
res urbanos relativamente à protecção e à seguran- tem-se vindo a revelar o conjunto daquelas que re-
ça que é garantida pela polícia pode explicar os mete para respostas punitivas clássicas, como a
dois eixos em torno dos quais se estruturam as pena de prisão27. Com excepção do caso dos cri-
medidas, sugeridas pelos próprios inquiridos, para mes mais violentos, cuja regressão tem sido rela-
reduzir a criminalidade e, consequentemente, a in- cionada com uma crescente intolerância relativa-
segurança revelada. No caso do primeiro eixo, que mente à violência e com uma crescente opção pela
remete para uma actuação mais intensa e eficaz detenção efectiva, e por períodos mais prolonga-
das autoridades policiais e judiciais, o que parece dos, dos agressores, as medidas que têm revelado
estar subjacente é o reconhecimento de que, após resultados mais eficazes em termos de redução das
o longo processo civilizacional que colocou nas incivilidades e da pequena criminalidade patri-
mãos do Estado o monopólio da violência legítima, monial são aquelas que remetem para o accio-
à maioria dos actores urbanos pouco mais resta do namento de uma justiça restaurativa, como já o
que apelar à polícia e ao sistema de justiça penal salientámos anteriormente, ou para estratégias de
para que cumpram mais eficazmente a sua função prevenção situacional28. O facto de nenhuma des-
securitária. tas medidas, invariavelmente bem sucedidas em
Este apelo, que tem sido não raras vezes cri- termos de redução de eventos e de danos, bem como
ticado como sendo disparatado24, não é, curiosa- da insegurança relacionada com a relativa satura-
mente, tão irracional ou ilógico como se poderia ção de incivilidades e de pequenos crimes, ser
supor. A existência de um mais intenso e eficaz po- referenciada por percentagens significativas dos
liciamento25 tem vindo a ser apontado, na verdade, actores, como se confirma no caso da área metro-

24
No caso português, os comentários efectuados por um especialista aos resultados de uma sondagem à opinião pública são exemplares e
ilustrativos: “(...) os resultados desta sondagem provam, mais uma vez, que as pessoas andam cheias de medo e, por isso, não estão a responder,
como convém, com a cabeça fria. (…) O sentimento de segurança ou insegurança não é o resultado directo da criminalidade existente, de maior
ou menor policiamento. (…)” in Diário de Notícias, 4 de Outubro de 1996, p. 31.
25
Porque direccionado para as áreas mais problemáticas e parcialmente aleatório em termos temporais.
26
Cf., entre outros, Marvell, T. e Moody, C. (1996), “Specification Problems, Police Levels and Crime Rates”, Criminoogy (34), pp. 609-646,
Tonry, M. e Farrington, D. (Eds.), Building a Safer Society: Strategic Approaches to Crime Prevention. Crime and Justice (Vol. 19), Chicago,
Universit of Chicago Press, Tonry, M. e Morris, N. (Eds.), Modern Policing. Crime and Justice (Vol. 15), Chicago, University of Chicago Press ou
Monjardet, D., “Réinventer la police urbaine, Le travail policier à la question des quartiers”, Les annales de la recherche urbaine, n.° 83-84.
27
Sendo mesmo particularmente problemáticas, como já o referimos, no caso da delinquência juvenil.
28
Sobre os fundamentos teóricos e alguns exemplos destas estratégias, bem como sobre os seus efeitos ver, por exemplo, Clarke, R. (Ed.),
Situational crime prevention: successful case studies, Albany, Harrow and Heston.

54
Violência e Insegurança Urbana

politana de Lisboa, pode ser explicado pela cir- Uma Nota Final
cunstância de serem quase totalmente contraditó-
rias com o monopólio securitário e protector assu- A insegurança que é hoje revelada por uma
mido e imposto pelo Estado29. importante percentagem dos actores urbanos da
Quanto ao segundo eixo em torno do qual se maioria das sociedades ocidentais e, em particu-
estruturam as medidas, sugeridas pelos próprios lar, da área metropolitana de Lisboa, que tem sido
inquiridos, para reduzir a criminalidade e, inquirida em vários estudos de vitimação, reconduz-
consequentemente, a insegurança revelada, medi- -se a um complexo conjunto de factores em que
das essas que remetem para a prevenção das cau- ressalta uma relativa saturação de incivilidades e
sas mais prováveis da criminalidade, o que se tem de pequenos crimes contra bens patrimoniais. In-
vindo a verificar é que as mesmas têm produzido, dependentemente dos outros factores envolvidos,
com poucas excepções, resultados decepcionantes esta relativa saturação pode ser atenuada por algu-
em termos de prevenção criminal ou de redução mas medidas de prevenção que não passam, ne-
da insegurança revelada. As avaliações dos cessariamente, pelas tradicionais respostas repres-
impactes de projectos que visam reduzir a sivas e punitivas do Estado. Quer a justiça
prevalência de situações de desemprego ou de restaurativa, quer algumas estratégias de preven-
subemprego, de dependências de estupefacientes ção situacional, têm-se revelado particularmente
e de uma multiplicidade de outros factores de operativas a este nível, com a vantagem, não
marginalização ou de exclusão social têm obtido negligenciável no actual contexto socioeconómico
resultados muito semelhantes, verificando-se que e político, de evitarem uma ainda maior marginali-
os mesmos contribuem efectivamente para uma zação e estigmatização de actores urbanos já sufi-
reorganização social das áreas urbanas extrema- cientemente marginalizados e estigmatizados.
mente problemáticas, com significativos efeitos ao O problema, no entanto, reside no facto de estas
nível das oportunidades de educação, de formação medidas de prevenção ainda carecerem, em Portu-
e de emprego dos actores envolvidos e, conse- gal, de estudos de avaliação sistemáticos. Esta
quentemente, dos níveis de exclusão e de mar- ausência tem impedido um debate público mais
ginalização social. No entanto, também se tem ve- aprofundado e objectivo sobre a sua operatividade
rificado que este tipo de projectos tem impactes para a redução dos actuais níveis de insegurança
muito pouco significativos sobre a redução da urbana e esperamos que este artigo tenha contri-
prevalência de comportamentos incivilizados ou buído, quer para um maior conhecimento desta
criminosos e, consequentemente, sobre a insegu- problemática, quer para chamar a atenção para a
rança urbana em geral (Cf. entre outros, Adler, F. necessidade urgente de estudos e debates mais
et al., 1995 ou Tonry e Farrington, ( s/d). aprofundados sobre a mesma.

29
Quer a justiça restaurativa, quer as estratégias de prevenção situacional, pressupõem que cabe à comunidade uma parte importante na preven-
ção, na reparação dos danos causados ou na punição dos criminosos, pressuposto que choca frontalmente com aquilo que supostamente seria
o culminar do processo civilizacional no campo da justiça penal.

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CIDADES Comunidades e Territórios

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