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abrangido por direitos autorais. Ele foi disponibilizado com a finalidade exclusiva de ser
debatido em reunião do grupo de estudos em Criminologia Crítica da UFSC.
Como citar:
BÖHM, María Laura. O delito de mau desenvolvimento. In: BUDÓ, Marília de Nardin;
RODRÍGUES-GOYES, David; NATALI, Lorenzo; SOLLUND, Ragnhild; BRISMAN,
Avi (orgs.). Introdução à criminologia verde: perspectivas críticas, decoloniais e do
Sul, 2021. No prelo.
I. INTRODUÇÃO
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O presente trabalho apresenta as ideias centrais do livro The Crime of Maldevelopment: Economic
Deregulation and Violence in the Global South (London/New York: Routledge, 2019), e é uma versão do
texto originalmente escrito para publicação na Revista electrónica En Letra Penal (Buenos Aires). A
tradução para o português foi feita por Júlia de David Chelotti, e revisado por Carolina Schmitt Albino e
Marília de Nardin Budó.
1
O delito do mau desenvolvimento é o conjunto de inter-relações e
atividades no contexto de políticas e empreendimentos econômicos
internacionais, transnacionais, regionais e nacionais que geram ou
concretizam o risco de obstacularizar a satisfação de necessidades
básicas coletivas e, assim, contribuir de forma direta ou indireta à
produção de violência cultural, estrutural ou física que impede o
desenvolvimento sustentável e integral de uma população em termos de
paz econômica, cultural e legal.
2
relacionados a ela, portanto, requerem investigação criminológica (DAVIES; FRANCIS;
WYATT, 2014).
Dito isso, o objeto deste artigo será facilmente entendido, uma vez que aborda a
relação causal entre a desregulamentação dos interesses econômicos internacionais e as
formas de violência que predominam em grandes áreas do sul global. Mais
especificamente, explica, a partir de estudos de caso, como empresas transnacionais que
se beneficiam da crescente desregulamentação de seus interesses econômicos
internacionais geram danos severos e provocam violações de direitos humanos nas
populações locais e, assim, contribuem para o mau desenvolvimento da América Latina.
Isso se aplica a toda a América Latina, em geral e, especialmente, ao aprofundamento das
condições violentas nas quais populações empobrecidas encontram-se em nível local, e,
no contexto deste trabalho coletivo, às violações de direitos humanos diretamente ligadas
ao impacto sobre o meio ambiente2.
Em um trabalho prévio (BÖHM, 2016), foi explicado que os países latino-
americanos apresentam profundas brechas sociais. De um lado, existem elites políticas e
econômicas que, historicamente, estiveram em proximidade e consonância com atores
estrangeiros. Essas elites oferecem condições flexíveis e protetoras aos interesses dos
atores econômicos, inclusive quando essas condições vão contra a proteção de direitos e
interesses da população local. Por outro lado, uma quantidade significativa de pessoas se
encontra sem acesso suficiente a direitos fundamentais como alimento, água, condições
dignas de vida, educação, trabalho ou atividades de lazer. As bases estruturais e históricas
da desigualdade se encontram, com variações, em todos os países da América Latina.
Nesse contexto, a presença de empresas transnacionais e o desenvolvimento de suas
atividades são de particular relevância e impacto, tendo em vista que essas empresas
geralmente gozam de prestígio e apoio em nível internacional, ao passo que suas
atividades têm um impacto negativo direto sobre populações marginalizadas. O espectro
de violações de direitos humanos causados por atividades comerciais e industriais inclui
o deslocamento de populações de maneira forçada, involuntária, ou por meios
fraudulentos, a contaminação da água e do ar, o extermínio da flora e da fauna, a supressão
de direitos trabalhistas, a expropriação de terras de povos tradicionais indígenas e o
2
Estudadas no campo da criminologia verde, por exemplo, em relação à ideia de ecocídio. Ver Johnson,
South e Walters (2017).
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financiamento de grupos armados envolvidos em crimes internacionais, entre muitas
outras formas.
Geralmente, os atores econômicos e de poder não são percebidos como infratores
quando o dano causado é entendido como o resultado do curso “normal” de atividades
comerciais ou industriais. Quando esses atores também são internacionais, como é o caso
de empresas transnacionais parceiras do país anfitrião em que essas atividades são
realizadas, é comum que o impacto negativo da atividade desempenhada pela empresa
seja relativizado, ou percebido como menos grave. Por essa razão, retomamos aqui a ideia
já antes exposta (BÖHM, 2016; BÖHM, 2019) de que os conceitos de crime de colarinho
branco, criminalidade dos poderosos e macrocriminalidade, deveriam ser considerados
para além do nível nacional, mas especialmente no plano dos negócios transnacionais. O
poder de influência de atores transnacionais no âmbito internacional, no que toca às
instâncias de tomadas de decisões sobre políticas corporativas, é igual ou inclusive maior
que em nível local e, portanto, o impacto de consequências negativas decorrentes de
atividades industriais transnacionais na América Latina acaba reproduzindo formas mais
acentuadas de violência estrutural. Em nível nacional e internacional, alguns setores da
população parecem ser ignorados ou vistos como supérfluos, de tal forma que nem os
atores e políticos locais, tampouco os atores internacionais respeitam seus direitos.
Somado à prévia situação de marginalização, esses setores populacionais geralmente não
têm a possibilidade de reivindicar plenamente os seus direitos. As vítimas, portanto, em
sua invisibilidade e diante da falta de acessos e de voz, devem ser assim consideradas
tanto no nível nacional, como internacional. Os conceitos de vítimas invisíveis
(SPAPENS, 2014) ou de vítimas socialmente prescindíveis (FATTAH, 2010) possuem
especial relevância nesse contexto.
Seguindo as ideias do trabalho mencionado acima, este capítulo expõe o resultado
da investigação subsequente realizada sobre oito casos de violações de direitos e violência
no contexto de empreendimentos extrativistas realizados por empresas transnacionais, ou
no âmbito de políticas de investimento e intensificação da produção voltada à exportação
(BÖHM, 2019).
Com esses antecedentes e nesse marco, o presente artigo introduz uma nova
categoria conceitual criminológica e explica como as atividades inter-relacionadas com a
economia, política, sociedade e instituições em torno do desenvolvimento também podem
ser consideradas como um crime de mau desenvolvimento. O uso de uma categoria
conceitual em criminologia com o objetivo de descrição e análise pode ser útil para
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estratégias de visibilidade e prestação de contas que possam ser projetadas para alcançar
responsabilidade, reparação e reintegração em casos de conflito, em uma coexistência
construtiva econômica, cultural e institucional.
O "crime", aqui, é pensado como um campo delitual, e não como um tipo penal
(assim como o crime de colarinho branco não é um tipo penal). Esta ideia pode ser
transferida do mesmo modo para os estudos da criminologia verde. Por exemplo, existem
tipos criminosos específicos relacionados a danos ambientais (dumping proibido de
substâncias tóxicas nos canais de água, emissão de gases tóxicos na atmosfera além dos
limites permitidos entre os mais proeminentes) que são crimes em sentido penal estrito.
No entanto, as diferentes práticas a eles ligadas, bem como o contexto de facilitação e o
acúmulo de impactos que geram, vão além da esfera estritamente criminosa e são
estudados como criminalidade ambiental ou dano ambiental pela criminologia verde. Esta
categoria conceitual - delito ambiental - é análoga ao crime de mau desenvolvimento
proposto aqui para abranger crimes, práticas, contexto e impacto específicos dos conflitos
estudados.
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alimentação, energia e saúde. O paralelo com a atualidade da situação dos povos
indígenas e camponeses ao longo da história é impressionante. O resultado é quase
explícito em relação às carências que resultam desse processo, bem como à situação de
dependência que se perpetua.
Assim, o que em algum momento poderia ter sido entendido em termos de conflito
etnopolítico (BAECHLER, 1999) acabou se tornando uma situação de dependência
enraizada. A democratização que teve lugar com o passar do tempo em distintos países
latino-americanos, em distintas ondas de abertura e reconhecimento de direitos, desde os
princípios do século XIX, e mais recentemente nas décadas pós-ditaduras na região, não
se consolidou plenamente, uma vez que não obteve alcance suficiente para integrar toda
a população nos seus mecanismos e práticas institucionais.
Nesse sentido, adverte-se sobre a continuação das tensões entre projetos de
integração e a perspectiva sustentadora das noções de cidadania (KARSTEDT, 2009), o
que põe em crise o conceito de democracia (SILVEIRA GORSKI, 2014), já que grande
parte da população continua alheia à realização de seus direitos (YUNUS, 1999/2003).
As diferenças entre os que estão incluídos e os que são marginalizados em muitos países
latino-americanos continuam aumentando (FAO, 2002; OCDE, 2001, p. 21-45; CIDH
2017).
Os interesses econômicos, por si mesmo, dificilmente redefinirão os termos de sua
atuação. Pensemos em que: “pelo menos nos seus primórdios, a escravidão e o
colonialismo foram atos de indivíduos empreendedores e de empresas; os governos
chegaram mais tarde, muitas vezes com um efeito suavizante” (GALTUNG, 1996, p. 49).
Em muitos casos, ainda hoje, trata-se da obtenção de recursos naturais com interesses
geopolíticos estratégicos, uma vez que tanto a energia como as novas tecnologias que se
desenvolvem em países industrializados dependem deles. Chama-se “acumulação por
desapropriação” (HARVEY, 2004) ou ainda de “necrocapitalismo” (BANERJEE, 2008),
os processos pelos quais a expansão econômica desmedida produz deslocamentos de
titularidade no acesso aos recursos. Assim, reduz-se cada vez mais a dispersão e se
concentra cada vez mais terras e posses na mão de poucos grandes grupos (
ALTVATER, 2011). O investimento econômico, portanto, que deveria promover o
prometido desenvolvimento na região, em muitos casos, produz efeito contrário por
seu impacto negativo e a perpetuação de dependências econômicas que gera. Isso tem
sido estudado com o nome de mau desenvolvimento (ISLAM, 1987).
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Mesmo em épocas políticas em que o nível regional latino-americano procurou o
aumento na realização de direitos e o controle da atividade econômica privada – também
transnacional – a natureza continuou sendo a fonte de geração de recursos econômicos e
públicos por excelência, com a conseguinte desproteção imediata da população local
diretamente vinculada a tais recursos e a tais áreas de exploração, e com o impacto
imediato de aprofundamento de violências estruturais acerca da realização desses direitos.
Isso tem sido chamado por alguns autores de “progressismo marrom” (GUDYNAS,
2015), e está diretamente vinculado às ideias de “financeirização da natureza”
(BRUCKMANN, 2017) ou mercantilização da natureza (SVAMPA; VIALE, 2014) que
já havia sido iniciada em tempos de ditadura na região, a partir de padrões de pensamento
fomentados e perpetrados em muitos casos no Norte Global (HEREDIA, 2013).
Dessa forma, o benefício econômico ou de utilidade da atividade não está em
equilíbrio com o elevado prejuízo que tal atividade acarreta à população da área. Assim
também foi proposto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao explicar a
tensão entre a faculdade (mencionando-o como direito) de cada Estado de definir as
medidas que considere oportunas em termos de desenvolvimento, e os direitos humanos
daqueles que podem se ver afetados por tais medidas:
A relevância fundamental desse direito contrasta com uma realidade na qual grande
parte das atividades extrativas nos países da região - principalmente mineração e
hidrocarbonetos – que se desenvolvem em terras e territórios historicamente ocupados
por povos indígenas e tribos e que costumam coincidir com zonas que abrigam grande
quantidade de recursos naturais. Além disso, segundo a informação ao alcance da
CIDH, com alarmante frequência os planos e projetos para a implementação de
rodovias, canais, represas, hidrelétricas, portos, complexos turísticos, parques eólicos
ou similares acabam afetando as terras e territórios indígenas e tribais. Em algumas
áreas do continente, a apropriação de terras para gado e culturas extensivas ou
monoculturas – como cana de açúcar, soja e palmeiras africanas – afetam
especialmente os povos indígenas e tribais, e suas terras e territórios (CIDH, 2015, p.
153).
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e sócio-sanitários, proeminência de atores corporativos e retração das fronteiras e da
democracia (SVAMPA; VIALE, 2014, p. 102).
3
Por exemplo o Centro Internacional de Arreglo de Diferencias relativas a Inversiones – CIADI – ou a
Comisión de las Naciones Unidas para el Derecho Mercantil Internacional– CNUDMI, o UNCITRAL
sigla em inglês.
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Matza. As populações afetadas veem seus direitos violados já que, devido ao TLC, não
podem contar com o apoio de seu próprio Estado e esse, por sua vez, deverá seguir o
processo em um foro externo. As práticas, instrumentos e políticas econômicas
desreguladoras deixam, assim, cada vez menos responsabilidade nas mãos do Estado e,
ao mesmo tempo, menos responsabilidades nas mãos de atores econômicos privados.
Por outro lado, o desenvolvimento foi promovido a um nível discursivo, mas com
outros nomes, ao menos desde princípios do século XIX, e formulado explicitamente no
século XX (TORTOSA, 2011). Promoveu-se na Europa, nos Estados Unidos e também
nas explicações que, a partir desses âmbitos do Norte Global, ofereceram-se como uma
justificação para a intervenção em outros contextos, como o latino-americano (UNCETA
SATRÚSTEGUI, 2009). Se o Estado não apoia, avança, contribui e regula as áreas
principais relacionadas com suas riquezas naturais e as indústrias a elas vinculadas, nem
as relativas aos serviços públicos e às necessidades básicas (educação, saúde, moradia,
trabalho, meio ambiente e outros), como se pode esperar que se desenvolvam para poder
alcançar a toda a população de acordo com os padrões mínimos para uma vida individual
e social digna?
Nesse sentido, em nível internacional e também em nível nacional, as
dependências definem a falta de desenvolvimento (em um sentido integral). Definem mau
desenvolvimento (TORTOSA, 2011). Portanto, a dependência internacional e doméstica
acaba sendo um fator criminogênico que expõe os indivíduos e as populações a decisões
externas sem ter as ferramentas mais básicas para trata-las. A situação deficitária
socioeconômica estrutural em nível doméstico se vê, assim, aprofundada pelas condições
externas. Se bem, como visto, a situação em si não é nova, devem sim ser revisadas e
renovadas as exigências que devem se dirigir ao Estado a respeito de suas funções de
respeito e proteção, o que leva o estudo, necessariamente, à revisão dos processos e atores
envolvidos, a fim de determinar cursos de atuação e responsabilidades que permitam a
implementação das ordens normativas correspondentes. Para isso, serão estudados dois
casos concretos do âmbito latino-americano.
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Estes dois casos são apresentados, explicados e analisados em profundidade – junto a outros seis casos –
na obra The Crime of Maldevelopment (BÖHM, M. L., 2019), onde também são oferecidos detalhes e mais
referências de forma exaustiva. A apresentação desses casos aqui é de forma ilustrativa e resumida, para a
compreensão do conceito criminológico do delito do mau desenvolvimento.
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Nesta seção apresenta-se sumariamente dois casos de conflitos em contextos de
empreendimentos transnacionais em Estados da América Latina. Esses casos concretizam
as afirmações realizadas na seção anterior, e permitem entender os processos, a inter-
relação de atores, a formação e a continuidade entre os sistemas que obstaculizam a
satisfação de necessidades básicas e a realização de direitos. Esses casos também
permitem definir a vinculação entre a violência invisível da economia e da cultura, com
a violência física. Essa visibilização permitirá logo, por sua vez, pensar na aplicação de
conceitos e ferramentas para o tratamento desses danos complexos.
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que antes não existiam. Desde o começo de novas atividades na área, ou de antigas
modalidades com novas modalidades (mineração a céu aberto, por exemplo), que andam
de mãos dadas com empreendimentos e investimentos econômicos extensivos
territorialmente, mas intensivos em sua dinâmica, as deficiências começaram a se
sobrepor e a se multiplicar.
A atividade de uma mina, assim como a extração de petróleo, a construção de uma
represa ou a promoção da agroexportação, todas baseadas na demanda internacional e nas
supostas conveniências nacionais, marcam modificações tangíveis nas vidas das
diferentes populações e em sua relação com o resto da sociedade, com o Estado e
inclusive com suas autopercepções. Dada a extensão territorial, o volume de
infraestrutura, e o vínculo direto com o interesse do Estado (que implica que este teve
conhecimento sobre a atividade desde o seu início) é impossível argumentar sobre a
inevitabilidade e imprevisibilidade dos resultados danosos, tanto por parte da empresa,
como por parte do Estado. Seja pelo risco inerente à atividade, seja porque a tecnologia
menos danosa está disponível mas não se usa, a capacidade de prevenção está sempre fora
de discussão. É dizer, o dano é evitável. Nenhuma contaminação, fissuras geológicas,
enfermidades ou mortes, nem os deslocamentos da população, nem os deslocamentos
sociais, e muito menos os confrontos de violência física se entenderiam aqui como
atribuíveis aos atores econômicos e políticos envolvidos se tais danos fossem evitáveis.
O simples fato de que os investimentos se estabeleceram em mesas de discussão
que frequentemente definem mudanças na legislação interna para facilitar a chegada
precisa do novo grupo econômico ou o início de uma atividade, evidencia que tudo
poderia ter sido planejado de maneira diferente. As decisões judiciais, do mesmo modo,
constituem o marco estruturalmente obstaculizante à realização dos direitos quando se
invoca sua intervenção. Por outro lado, os agentes de segurança, em princípio, são apenas
o braço armado e visível da lei, encarregados de fazer o trabalho sujo da lei, como dizia
Walter Benjamin, e obedecem a ordens invisíveis não apenas do Estado, mas também, e
em ocasiões fundamentalmente, dos atores econômicos que pagam por sua proteção,
tornando visível a violência invisível. Os investimentos e a renda gerada são cifras de
tantos zeros que são difíceis de escrever ou dizer, e o peso político de quem define esses
fluxos de dinheiro é diretamente proporcional a esses zeros. Assim, o apoio que recebem
de atores nacionais e internacionais de, talvez, um poder econômico ainda maior, converte
cada desculpa sua, invocada quanto à impossibilidade de fazer as coisas diferentes, em
uma confirmação de sua falta de vontade. Nenhuma população rural, nenhuma criança,
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nenhuma camponesa valente ou uma mulher indígena segura de si mesma, por si só, pode
contrariar o peso dessa violência. É por isso que a violência se retroalimenta de forma
permanente e direta, e a violência física aumenta. A essa violência se dedicam os
próximos parágrafos.
Caso Matopiba (Brasil). Matopiba é o acrônimo de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, os quatro
estados considerados conjuntamente como região no processo de extensão da fronteira agrícola
no cerrado brasileiro, a fim de fomentar o desenvolvimento local e regional. Trata-se da
institucionalização (e desinstitucionalização, após a chegada do ex-presidente Michel Temer, em
que se considerou que o Estado não dispunha de recursos para o projeto), de uma área
fundamentalmente geoeconômica. Uma área de setenta e três milhões de hectares, que apresenta
superfície e características de solo e clima ótimas para o cultivo voltado à exportação, o qual
demandou o projeto e a implementação de uma reforma na distribuição de terras, preparação de
infraestrutura e desenvolvimento de tecnologia. O projeto trouxe consigo uma radicalização dos
violentos conflitos de terras entre eventuais novos “proprietários” e os povos tradicionais
habitantes e possuidores dessas terras, de aumento de preço. Tal situação liberalizou inclusive
ações de forças de segurança públicas e privadas na luta pela obtenção de terras na região. Essa
zona tem vivido historicamente a atenção dos latifundiários e violências, desde a revolução verde
dos anos 70, logo com o auge do agronegócio (combinado com agroquímicos, culturas
geneticamente modificadas) sob a promessa de "fome zero" e desenvolvimento. Até hoje, apesar
de ter sido uma área com aumento das exportações agrícolas nas últimas décadas, a população
continua vivendo em condições de marginalidade e sofrendo os maiores índices de violência do
Brasil (cfr. por todos Mathias, 2017).
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Nesse caso, como em muitos outros no continente, a última parte da história
consistiu em violência "tradicional", ou seja, uma situação de violência física visível
direta. Esse caso poderia ser visto fora de contexto e descrito como um caso particular de
policiais inescrupulosos, homens de negócios mafiosos ou soldados acostumados à
violência autoritária. Contudo, qualquer uma dessas explicações, embora possa descrever
“a foto” com certa veracidade, não estaria levando em conta “o filme”, e simplesmente
repetiria o viés com o qual foram estudados habitualmente esses episódios, e a atenção se
reduziria à observação da violência física – e não às relações com as quais está
entrelaçada.
PAREI AQUI
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permanecem invisíveis, e que devem ser igualmente levadas ao campo visual do estudo e
às intervenções estatais.
Se as medidas políticas e econômicas, e em particular a desregulamentação que
tem aumentado pelo impulso transnacional nas últimas décadas, podem conduzir a uma
melhora da economia estatal e do desenvolvimento nacional em geral, isso deve ser
mensurável, não somente com posterioridade, quando os planos não funcionam, mas
preventivamente. O estudo das inter-relações entre violência estrutural, cultural e física
tem o objetivo de facilitar a possibilidade de rastrear enlaces, ir retrocedendo
cuidadosamente na identificação de linhas e trabalhar pacientemente nos emaranhados
das madeixas e fios que tecem relações com impactos de graves danos.
Somente dessa forma o descumprimento das promessas de desenvolvimento,
diretamente relacionadas com a perpetuação da violência, poderá ser visto a partir de uma
nova perspectiva. O ciclo vicioso entre os interesses internacionais e transnacionais na
economia, assim como as deficiências e a violência nas áreas locais, deve ser capaz de
revelar as diferenças entre o filme e a foto, entre o visível e o invisível e, especialmente,
entre o rastreável e o impossível de ser rastreado entre tantas responsabilidades. Para isso,
o véu da exceção, da proteção e dos favores a soberanos que parecem estar fora da lei em
territórios protegidos, requer um novo olhar.
O território foi, uma vez, o fundamento do poder de morte de que falava Foucault.
As lutas soberanas ocorreram nos e por causa dos territórios. A espada quase sempre teve
o objetivo de proteger o poder e o território (ALVATER, 2011). Se, portanto, nas relações
internacionais e nas relações econômicas transnacionais existem sociedades e Estados nos
quais a estratégia governamental é exercida sobre a maioria da população - muitos países
do norte global - não há dúvidas de que esses estados irão empunhar sua espada e exercer
seu poder soberano de morte contra aqueles que representam uma ameaça. Na América
Latina, como continuidade das reflexões e casos apresentados até aqui, é possível dizer
que as lutas territoriais e as diferentes expressões estruturais, culturais e físicas da
violência – no contexto da economia transnacional e das políticas econômicas internas
desreguladoras das formas de proteção para a população local – não apenas desconhecem
as necessidades básicas dessa população, como também se manifestam contra ela com
um poder soberano nunca superado. A divisão social do trabalho em nível internacional
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pode ser explicada de acordo com a internacionalização e a economização da lógica
biopolítica. O território, que é o tabuleiro de jogo para as lutas de tensão biopolítica, segue
sendo, portanto, o problema central na América Latina: o soberano precisa desse território
para o melhoramento da vida e a proteção dos interesses em seu reino, o norte global e as
elites ou coletivos acomodados locais.
Para as pessoas que vivem no território, entretanto, essa demanda representa uma
ameaça diária para sua vida. Não são reconhecidos, diria Agamben, como bios (pessoas
com direitos), e por isso se descuida a realização de suas potencialidades. Para essas
pessoas, o território segue sendo o lugar onde se defende, pelo menos, sua vida nua, onde
encontram-se habitando “zonas de sacrifício” (ARNOLD, 2018). Ali, as relações sociais
se perpetuam em relação com essa tensão e ameaça. Nesse sentido,
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unicamente pelas regras do livre mercado, sem limites ao seu jogo, são considerados
responsáveis. Embora formalmente existem possibilidades de responsabilização, apenas
esporadicamente elas são fortes o suficiente para se converterem em realidade.
A exceção é gerada nessas áreas nas quais tudo é válido para esses soberanos, tudo
está regulado ou desregulado por eles e, portanto, a decisão final sobre quais regras se
aplicam e quais não, quem merece viver e quem não, depende deles mesmos. Isso os
coloca nessa posição tão bem descrita por Foucalt e Agamben, fora dessa ordem que
deveria promover a vida, mas que não recebe sanções quando não apenas não a promove,
senão também a destrói. É a essência do poder soberano. No caso da América Latina,
grande parte da ordem política e econômica parece estar interna e geopoliticamente muito
por fora dos alcances da estratégia governamental, tão bem implementada no Norte
Global. No Sul Global, ainda existem soberanos mostrando a espada. E isso, de alguma
maneira, é o que deve se modificar, colocando a esses soberanos –inicialmente a partir
do analítico e do conceitual – no banco daqueles que devem responder por suas ações.
Eliminar deles o poder de impunidade que sua investidura lhes confere significará, ao
mesmo tempo, destronar o soberano e fortalecer as possibilidades e a realidade da
democracia, e suas possibilidades de satisfazer necessidades e realizar direitos.
Isso requer, entre muitas outras coisas, ferramentas conceituais mais amplas no
campo criminológico para a visualização e explicação desses processos, para o esboço de
possíveis formas de determinação de responsabilidade e, essencialmente, para a
interrupção desse ciclo vicioso, sua prevenção e a reparação dos danos produzidos. O
crime de mau desenvolvimento como uma categoria conceitual criminológica é oferecido
nessas páginas como um passo em direção à formulação de uma resposta a essa
necessidade.
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fundamentais em épocas de violação sistemática de tais direitos, como a mencionada
macrocriminalidade (JÄGER, 1989). Esses conceitos, no âmbito do estudo criminológico
(distintos das ideias clássica, positivista ou a meramente “crítica” da criminologia),
aportam, a meu ver, ferramentas de leitura apropriadas para o estudo das atividades
realizadas por empresas transnacionais. Trata-se de destacar a situação política e
economicamente privilegiada dos atores ofensores que afetam tanto a nível individual
como coletivo direitos fundamentais de grandes grupos populacionais vitimizados por
aquelas atividades; e se trata de advertir que as afetações são denunciadas de forma
falaciosa ou insuficiente pelos meios de comunicação diante da sociedade não
diretamente afetada, o que costuma gerar a indiferença desta em relação a tais atividades
(BÖHM, 2019).
Isso se aplica ao tema deste trabalho, já que o dano social, gerado por atividades
extrativistas transnacionais, está diretamente vinculado com atores políticos e
econômicos que geralmente atuam a partir de fora desse território específico.
Especialmente em relação ao conceito de crime de colarinho branco, eles vêm sendo
estudados como responsáveis no entramado de complexas inter-relações. Diversas
pesquisas no campo da criminologia, entre outras disciplinas, foram realizadas, tanto a
partir do trabalho na América Latina (ANIYAR DE CASTRO, 1969 e 1980; GARCÍA
MENDEZ/GÓMEZ, 1978; ELBERT 2016), como em outros contextos igualmente
destinados ao estudo da inter-relação entre atores de poder nacionais e transnacionais e
danos em larga escala, desde a fome ou o desemprego em massa até a repressão
(WALTERS, 2006; MORRISON; ZAFFARONI; BERGALLI, 2014). Tem sido
desenvolvido, inclusive, a ideia de “crimes da globalização” (FRIEDRICHS; ROTHE,
2015). Todo este caminho, aqui brevemente apresentado, sentou as bases e nutriu em seus
detalhes a proposta que aqui se realiza.
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cultural, estrutural ou física que impede o desenvolvimento sustentável e
integral de uma população em termos de paz econômica, cultural e legal.
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potencialidades na satisfação de necessidades básicas de grupos populacionais urbanos
do Sul Global em favor da intensificação de recursos financeiros, tecnológicos e de
informação no Norte Global.
IX. Glocal: O crime de mau desenvolvimento é de natureza global porque se gera nas
condições globais, mas se desenvolve unicamente em relação com as condições locais,
de modo que os atores são internacionais, transnacionais e locais em suas interconexões
e circunstâncias
XI. Causa dano social: O crime de mau desenvolvimento pode ser medido em termos de
dano social local, nacional e internacional a partir do desequilíbrio gerado entre a
realização da liberdade, da segurança e da igualdade, entendidas de forma integral, pondo
em questão a mesma democracia.
XII. Crimes (tipos penais) individuais podem ser parte do DMD, mas o DMD (categoria
conceitual) vai além dele: O crime de mau desenvolvimento não é tipificável em código
penal tendo em vista que transcende a ordem nacional e atravessa inumeráveis infrações
legais e decisões – práticas e discursivas – legais, transcende a lógica tradicional de crime
(ofensor–vítima e Estado imparcial) e sua realização não é atribuível em termos
tradicionais de direito penal sancionador. Crimes tipificados são partes do delito de mau
desenvolvimento, mas o delito de mau desenvolvimento como categoria conceitual e de
desenho político de prevenção e reparação excede-os.
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