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Não é difícil concluir que os grupos de indivíduos que ocupam as prisões, por
exemplo, em sua grande maioria, sejam constituídos por pessoas pobres e
politicamente inexpressivas. Isso ocorre não porque as pessoas pobres possuem
tendências violentas ou criminosas, mas porque as suas práticas agressoras
contam com maiores chances de virem a ser criminalizadas. Diferentemente dos
atos agressores e nocivos à sociedade praticados pela minoria dominante, são as
camadas vulneráveis da sociedade que acabam ocupando as vagas prisionais e
recebendo a etiqueta de delinquentes ou criminosos.

Com essa visão crítica e relexiva, é possível dedicarmo-nos, agora, a examinar as


diferentes perspectivas de estudo acerca de violência e crime. Nenhuma delas
os explica de forma absoluta ou deinitiva. Tampouco determinada perspectiva
apresenta soluções prontas para os problemas ligados à violência. Contudo, vêm
ocupando importante lugar nos estudos sobre violência e crime e podem ser úteis
para o encaminhamento de problemas especíicos e devidamente delimitados.
Foquemos, inicialmente, as diversas perspectivas de estudos da violência.

Perspectivas de estudos da violência

1. Perspectiva biológica

De acordo com a perspectiva biológica, somos agressivos devido à nossa


ascendência animal, o que seria básico para o estudo da violência humana.
(AMORETTI, 1992).

Como os demais seres vivos, o homem luta para sobreviver, seja com outras
espécies, seja com seus próprios pares. A fragilidade e a vulnerabilidade de alguém
podem ser interessantes para aquele que, com ele, trava disputa. Estas situações
icam evidentes diante das inúmeras situações de competição do dia-a-dia ou
quando alguém se vê ameaçado, por exemplo.

O que tem mudado, ao longo dos tempos, são os tipos de ferramentas e


instrumentos utilizados em guerras e disputas do cotidiano. Se antes as
rudimentares armas exigiam força e capacidade física, passaram, depois, a
requerer destreza e reinamento, como no uso de armas de fogo. Por im, as
armas foram se soisticando e exigindo prioritariamente habilidades mentais,
quando o próprio conhecimento transformou-se em ferramenta de e para
disputas no mundo “civilizado”.

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Na perspectiva biológica, podem também ser considerados outros fatores


no estudo da violência, como o funcionamento endocrinológico, dos
neurotransmissores e receptores, o farmacológico (álcool e outras drogas), a
nutrição, etc. Além disso, as situações de estresse podem aqui ser incluídas, ainda
que provocadas ou intensiicadas por origens diversas.

2. Perspectiva epidemiológica

Tendo como base a epidemiologia médica, os proissionais de segurança buscam,


nesse campo do conhecimento, métodos úteis para a prevenção e a redução de
crimes. Portanto, a prioridade não consiste em saber sobre as razões e variáveis
que possam estar ligadas às origens do comportamento violento. A ênfase está na
identiicação das áreas e fatores de risco, sempre vislumbrando a prevenção
situacional.

Desse modo, a presença de maior ou menor intensidade desses fatores sugere


maior ou menor incidência do fenômeno em foco. As possibilidades de estudos
e pesquisas epidemiológicas são inúmeras. Por exemplo, a diminuição dos
anos de vida das pessoas de uma localidade em função
da violência, a construção de mapas (com técnicas que Pesquisas vitimológicas
contemplam informações geográicas sobre a violência), peril Por pesquisas vitimológicas,
scioeconômico-demográico de vítimas e agressores, além das entendemos a veriicação dos fatos
que efetivamente ocorrem com os
pesquisas vitimológicas em geral. indivíduos de determinada região e
suas características, não se limitando,
portanto, aos registros oiciais.

3. Perspectiva etológica

O campo da etologia icou conhecido como o estudo do comportamento animal.


O termo tem sua origem nas expressões gregas ethos (conduta, costumes) e logos
(estudo, tratado).

Essa área do conhecimento combina pesquisas de laboratório e de campo,


valendo-se também de outras áreas do saber, em uma atuação interdisciplinar.
Incluem-se aí a Neuroanatomia e a Ecologia e Evolução.

A etologia estuda, por exemplo, a agressão e suas implicações como meio de


adaptação dos animais em situações de conlitos e disputas. Dedica-se a pesquisar
o que seria conduta “normal” de adaptação que implique comportamentos
agressivos e, por outro lado, condições ambientais especíicas em que se
manifestam condutas violentas “patológicas”.

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Exemplo
Pesquisas com animais seriam os estudos sobre ratos coninados em
ambientes com elevada densidade populacional (que podem acabar
em canibalismo), bem como as pesquisas sobre as decorrências da
privação de contato físico entre chimpanzés ilhotes e suas mães.

4. Perspectiva econômica

Existem duas grandes correntes teóricas na perspectiva econômica acerca


dos estudos da violência. Uma delas defende que a violência tem origens nas
condições econômicas das classes sociais. Outra corrente de pensamento, dentro
dessa perspectiva, considera que o sujeito realiza uma escolha racional sobre os
seus atos. Acompanhe o que cada uma dessas duas correntes defende.

a) A violência com raízes nas condições econômicas, ou seja, no regime


de produção e na desigual distribuição das riquezas de uma determinada
sociedade histórica. Há classes privilegiadas e prejudicadas, dominantes e
dominadas, etc.

Os grupos e classes sociais que mantêm o domínio em uma sociedade


e que controlam sua economia tudo fazem para mantê-la imutável e
assim garantir a perpetuação e o aumento de sua privilegiada situação de
vantagens. (AMORETTI, 1992).

Para Friedrich Engels, todo poder social e toda violência política em uma
determinada sociedade têm as suas raízes nas condições econômicas que
as determinam, assim como no seu regime histórico de produções e de
trocas. (ENGELS, 1990).

b) Apesar do nome, “perspectiva econômica”, o conteúdo da segunda


corrente de pensamento nada tem a ver com o da primeira. A segunda
corrente apregoa que o sujeito realiza uma escolha racional, fazendo um
cálculo de consequências. Ao se decidir utilitariamente pela prática de
um delito, o indivíduo considera os possíveis riscos, custos e benefícios,
geralmente de ordem inanceira.

Haveria então os fatores indutores, os fatores inibidores do crime, os


castigos e os prêmios. Ao invés de apostar no mundo do trabalho e suas
limitações salariais, por exemplo, o infrator optaria pela transgressão por
acreditar nos resultados que possam vir a ser favoráveis.

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5. Perspectiva antropológica

Segundo esta perspectiva, o comportamento violento seria originado por


razões de ordem cultural, abrangendo normas, costumes, preconceitos, tabus,
símbolos, tradições e valores transmitidos através das gerações. Além disso, o
comportamento violento seria transmitido por grupos que sejam signiicativos, de
alguma forma, para o indivíduo.

O sujeito espelha-se nesses grupos e deles recebe signiicativas inluências.


Diga-se, alguns grupos podem apresentar altas taxas de comportamentos
violentos por pertencerem a subculturas que possuem normas, práticas e
valores com essas características. A Teoria da Subcultura Delinquente – segundo
a qual o comportamento de transgressão é marcado por um subsistema de
conhecimentos, crenças e atitudes que favorecem, permitem ou estabelecem
formas particulares de comportamento transgressor em determinadas situações –
estaria, em boa parte, nessa perspectiva.

6. Perspectiva da Criminologia

A Criminologia contemporânea procura estudar o que seja conhecido como crime


e violência a partir de uma abordagem holística, com especial ênfase às visões
sociopsicológicas. A própria construção do conceito de violência é alvo de análise
da nova criminologia, que busca compreender os diversos fenômenos envolvidos
e suas amplitudes, bem como as deinições e mecanismos de controle por parte
do Estado.

Abordagens mais recentes, principalmente a partir da Criminologia Crítica,


procuram saber também:
• as razões pelas quais um evento é considerado crime;
• quem e de que forma pode efetuar a seleção dos eventos classiicados
como crime; e
• as consequências que a deinição de crime tem para o indivíduo e para a
sociedade.

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Importante
Não há uma única “Criminologia”. O atual período é de múltiplas
visões: há autores envolvidos em vários tipos de estudos, relexões,
teorizações, crenças e posicionamentos ideológicos abrigados sob o
grande “guarda-chuva” criminológico.

Em estreita união com a Vitimologia, a Criminologia congrega


pesquisas a respeito da relação entre o sujeito agressor e a vítima,
sobre o fato em si, as reações sociais e os possíveis encaminhamentos
para a situação.

A Criminologia cada vez mais atua de forma transdisciplinar e vale-se


de métodos cientíicos, especialmente quando voltada para efetivos
estudos e busca de soluções para o problema da criminalidade, bem
como para oportunizar debates e análises políticas e sociais em
relação ao momento histórico em que vivemos.

A consolidação da Criminologia como ciência tem enfrentado grandes diiculdades,


em função de se constituir em uma área na qual as heranças e inluências
ideológicas interferem intensamente em seus possíveis avanços. Todavia,
contemporaneamente, tem assumido tal desaio, principalmente quando o
estudioso ou o proissional está consciente de que há sempre um viés político em
suas deinições e escolhas. A Criminologia, enquanto ciência, interage então com
diversos campos do conhecimento, como Ciência Política, Sociologia, Psicologia e
outros.

7. Perspectiva psicanalítica

Sistematizada por Sigmund Freud, a concepção psicanalítica tem por base a


Biologia. Essa concepção desenvolve conceitos como agressividade, pulsão
de morte, inveja, fantasias destrutivas e desejos hostis (Tânatos) vivenciados
junto com libido sexual ou amor (Eros). A fusão de impulsos sexuais e
agressivos é normal e própria do ser humano. Porém, quando há uma parada no
desenvolvimento da sexualidade e da afetuosidade, ocorre a desfusão. Neste caso,
pode surgir a agressividade, em uma versão pura e destrutiva. (AMORETTI, 1992).

A Psicanálise descreve o psiquismo humano, situando-o entre a Biologia e a


sociedade. Portanto, reconhece as inluências decorrentes da interação indivíduo
e seu ambiente. Na psique, haveria as seguintes instâncias: id, superego e ego
(sinteticamente: impulsos, censuras e decisões pautadas na realidade), que agem
interligadas umas com as outras.

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Segundo Amoretti (1992), conforme foi constituída a estrutura psíquica de


um determinado indivíduo, ele terá diferentes reações diante das situações
enfrentadas. Ou seja, tanto pode submeter-se passivamente à violência, como
dela ser um fomentador.

De acordo com Sá (2010), as razões da violência estão na própria violência


(anteriormente sofrida). Seja como forma de (sobre) viver, seja em disputas
entre iguais, entre subalternos e autoridades, bem como na ambiciosa fantasia
de “igualar-se a Deus” – típica daqueles que já obtiveram muitas conquistas
anteriores – as violências acontecem. Por sua vez, a paz e a maturidade só podem
ser alcançadas com a consciência do que fazemos e com a integração do instinto
de violência ao instinto de vida e às pulsões da libido.

8. Perspectiva psicológica

Esta perspectiva trata-se de uma das formas de análise que mais oscila entre o que
seja conhecimento cientíico e o que seja viés ideológico.

São inúmeras as teorias e visões acerca do fenômeno da violência nessa


perspectiva. Para alguns autores, as explicações psicológicas seriam as que estão
mais próximas de esclarecer sobre o problema. Para outros, as abordagens
psicológicas, bem como as sociológicas, limitam-se a desfocar o problema de onde
efetivamente necessitaria ser analisado: na estrutura da sociedade.

As explicações psicossociais, cujo ápice se deu no período positivista, seriam


reducionistas e estariam a serviço da manutenção do status quo. Desse modo,
um indivíduo que infringe a lei e, dependendo de suas condições sociopolíticas,
recebe o rótulo de delinquente, teria a utilidade de atrair os olhares reprovadores
da sociedade e concentrar em si as mais severas condenações. Com isso,
ganhariam livre trânsito outras formas de agressões à sociedade, muitas vezes
veladas, porém de graus de nocividade muitas vezes maior.

Na perspectiva psicológica, há dois importantes blocos de teorias que buscam


explicar a violência:
• o primeiro consiste nas teorias desenvolvimentistas, segundo as quais
a violência resulta da falta de união e de aconchego afetivo e seguro
na primeira infância de quem a pratica. Pode decorrer também de
experiências abusivas ou excessivamente severas que a pessoa tenha
sofrido, principalmente nessa fase. Além disso, ausência de intervenções
que reconheçam ou fortaleçam amizades e elos afetivos, imprescindíveis
para a convivência social, além de frágeis incentivos aos controles
internos; e

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• o segundo bloco diz respeito às teorias da aprendizagem social,


as quais postulam que o comportamento, inclusive o violento, é
aprendido por meio de imitação, principalmente de pessoas-modelos.
O comportamento poderá ser intensiicado ou reduzido consoante o
conjunto de recompensas e punições que ocorrem nas interações com os
demais, ao longo da vida.

Importante
Cabe ressaltar que essas teorias complementam-se e estão
interligadas com a Teoria do Autocontrole e a Teoria do Aprendizado
Social, as quais fazem parte da Perspectiva Sociológica. Desse modo,
é possível constatar, uma vez mais, a imbricação entre as várias áreas
da ciência, pois nem sempre está claro onde encerra uma e onde
começa outra abordagem.

9. Perspectiva sociológica

Há diversas correntes e teorias que procuram explicar a violência sob a


perspectiva sociológica, conhecida também por Sociologia Criminal. As principais
delas podem ser classiicadas em Teorias do Consenso e Teorias do Conlito,
conforme a descrição de Shecaira (2008).

As Teorias do Consenso recebem esse nome por presumirem uma sociedade com
um perfeito funcionamento de suas instituições. Nesta sociedade, os indivíduos
compartilhariam objetivos comuns a todos os cidadãos, aceitariam as normas e
comungariam das regras sociais dominantes. Um indivíduo que não se adaptasse
ou que praticasse atos fora do previsto ou do estabelecido seria o problema, o
desviado.

O outro conjunto, que surge com a Criminologia Nova ou Crítica, integra as Teorias
do Conlito, segundo as quais a coesão e a ordem da sociedade são obtidas por
meio de algum tipo de força e de coerção, pelo domínio de uns e sujeição de
outros, uma vez que a luta pelo poder é permanente no meio social. Portanto,
seria impossível que as instituições funcionassem com justiça e eicácia para todos
os cidadãos, uma vez que o problema se estabelece na estruturação da sociedade.

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Referências

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Perspectivas de estudo e concepções teóricas sobre violência e crime

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