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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 18, pp.

155 - 168, 2005

TERRITÓRIO DA VIOLÊNCIA: UM OLHAR GEOGRÁFICO SOBRE A


VIOLÊNCIA URBANA
Ignez Costa Barbosa Ferreira*
Nelba Azevedo Penna**

RESUMO:
O trabalho aborda a violência de um ponto de vista geográfico, isto é, espacial. Mas não é a espacialização
do fenômeno da violência, o local onde ela ocorre. É a territorialização, a formação do território da
violência, o que implica em realimentar a violência pela via da inércia espacial e pelo papel do espaço no
processo social. Assim, existiria sempre a possibilidade dessa territorialização na formação do espaço
urbano, dentro da lógica dos processos sociais atuais. De um lado, a extrema valorização do espaço
urbano. De outro a exclusão social de camadas da população e de atividades a ela ligadas. Esse espaço
sem lei torna-se o reduto da ilegalidade, passa a ser o quartel general da ilegalidade e tem na população
pobre o seu exército de reserva. Assim, o espaço vai realimentar a face perversa do processo social
excludente da violência urbana. O trabalho trata da produção do território da violência no Distrito
Federal.
PALAVRAS-CHAVE:
Violência urbana – território da violência – urbanização excludente – violência no Distrito Federal
ABSTRACT:
This assignment deals with the violence from a geographical point of view, that is, space. However, it is
not the spacing of the phenomenon of the violence; it is the place where it occurs. It is the “territoriality”,
the construction of the territory of violence. It implies in feeding the violence from the inertia and from
the importance that the space has in the social process. Therefore, the possibility of this “territoriality”
in the construction of the urban space would always exist, within the logic of the current social processes.
On one hand, the extreme treasured urban space, on the other hand, the exclusion of the population
social layers and their activities. This unlawful space becomes the perfect place for illegality, it becomes
illegality’
s headquarters and the poor population is its reserved army. Thus, the space feeds the perverse
face of the exculpatory social process of the urban violence. The assignment deals with the production
of the territory of violence within the Federal District, Brasilia.
KEY WORDS:
urban violence – territory of violence - excluding urbanization - violence within the Federal District,
Brasilia.

I- Introdução Tradicionalmente a violência abrange as ações


Violência sempre existiu em todas as de natureza criminal como roubos, delinqüência
sociedades e em todos os tempos como forma e homicídios. Atualmente, àquelas vêm se somar
de resolver conflitos entre pessoas, na família, os atos que ferem os direitos humanos, como
na comunidade e entre os países. Atualmente, os de natureza sexual, maus-tratos,
no entanto, convive-se com as formas discriminação de gênero e de raça, englobando
tradicionais de violência e as novas, para as não apenas a agressão física, mas também
quais ainda há uma certa perplexidade. situações de humilhação, exclusão, ameaças,
desrespeito (Waiselfisz, 2000). Tema de grande

*Professora Pesquisadora Associada – Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais – Universidade de Brasília. E-mail: igcosta@terra,com.br
**
Professora Doutora do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília. E-mail:nelba@unb.br
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complexidade e inúmeras facetas, a violência registrado pelo SIM 1 é mais fácil de se obter e
urbana abrange uma multiplicidade de fatores. passível de comparação.
Há muito extrapolou o ambiente policial e se
Inicialmente o trabalho procura justificar
coloca para a sociedade o desafio de decifrar
as implicações do espaço nos processos sociais
os seus códigos.
e como o processo de criação do espaço urbano,
A importância da violência em nossas concentrador de renda e socialmente
cidades não se resume a uma questão excludente, cria áreas vulneráveis à
quantitativa pelo número de pessoas atingidas criminalidade. Busca-se mostrar como se forma
- é a abrangência e a complexidade do o território da violência dentro do espaço
fenômeno, na atualidade, o que mais preocupa. urbano de um modo geral, e como o mesmo
É a nova faceta da criminalidade ligada ao crime contribuiria para realimentar a violência e a
organizado que gera insegurança nos cidadãos, exclusão.
interfere no território e se torna um poder
paralelo ao do Estado.
II- A visão geográfica da violência
A busca de soluções para um dos
problemas que mais aflige os citadinos e absorve A tradição da produção geográfica no
as atenções dos políticos e administradores das assunto se restringe à preocupação com a
cidades demanda um esforço de entendimento, espacialização do fenômeno, isto é, localizar as
que aponte rumos para uma prática eficiente ocorrências criminosas no espaço urbano e
de combate e/ou de prevenção. Faz-se correlacioná-las às condições do local onde
necessário atentar para os diferentes aspectos acontecem. Muitas vezes essas condições, que
da complexidade da violência de nossos dias, favorecem a ocorrência, são confundidas com a
confrontando as diversas abordagens e própria causa das mesmas. A espacialidade é
assimilando novos olhares que complementem uma categoria geográfica usada por todos os
os já existentes. É nesse sentido que se coloca ramos do conhecimento como uma primeira
a presente contribuição à discussão da apreensão do fenômeno na busca de sua
problemática, mostrando como a violência, explicação pelas diferentes especialidades. A
tratada sob diferentes enfoques, se espacialização das ocorrências permite aos
territorializa e o papel do espaço urbano no órgãos de segurança pública vigiar e punir
processo de produção e reprodução desse crimes, mas não é suficiente para combater a
fenômeno. onda de violência que assola nossas cidades
porque não chega às suas raízes. Aqui se
O trabalho enfoca a violência de um
pretende uma outra categoria de análise que é
ponto de vista geográfico, isto é: a
a territorialização da violência no espaço
territorialização; a formação do território da
urbano: a produção do espaço da violência: o
violência, reduto de poder do crime organizado
território da violência.
que daí comanda sua atuação na cidade, seu
exército formado pela população excluída que Pretende-se, com isso, contribuir para
se liga à rede da droga e da contravenção. acrescentar algo mais ao conhecimento do tema
e, assim, apresentar a contribuição da Geografia
Considera-se, no presente estudo, a
ao problema.
violência em todas as suas manifestações e
toma-se como dado o homicídio. Embora nem Entende-se por território: “(...) o espaço
sempre a violência cotidiana termine em morte, concreto em si (com seus atributos naturais e
a morte revela a violência levada ao extremo. socialmente construídos) que é apropriado,
Os homicídios são a parte visível de uma ocupado por um grupo social. A ocupação do
realidade complexa. Por outro lado, o dado de território é vista como algo gerador de raízes e
mortalidade por homicídio, a partir do óbito identidade. Um grupo não pode mais ser
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compreendido sem o seu território, no urbanização que cria os enclaves de pobreza


sentido de que a identidade sócio-cultural e as periferias. A complexidade e o crescimento
das pessoas estaria inarredavelmente ligada da violência nas cidades tem levado a
aos atributos do espaço concreto (natureza, considerá-la como o resultado da junção de
patrimônio arquitetônico, paisagem)” todos esses aspectos, facetas do processo
(SOUZA, 1995:84). social. É no território que esses diferentes
aspectos do processo social se articulam, se
Os diferentes territórios da cidade
interpenetram, se completam e se
não se definem apenas como uma base
contradizem. Admite-se então que a violência
sobre a qual se formam as identidades
também se territorialize.
urbanas, mas operam de forma dinâmica
para a constituição dessas identidades, Os espaços formam pontos de “fixação”
sejam elas a pobreza, a riqueza ou a da história de sua produção. Assim, o espaço
violência. Essa abordagem da realidade tem entendido como um sistema de objetos e um
por base a noção de “produção do espaço sistema de ações, articulados, seria uma
urbano”, na qual o espaço da cidade não é produção histórica. Segundo Santos, “o s
apenas um elemento transitório da e l e m e n t o s f i x o s , f i x a d o s e m c a d a l u g a r,
sociedade, um receptáculo das relações permitem ações que modificam o próprio lugar,
sociais, ou mesmo, um pano de fundo das fluxos novos ou renovados, que recriam as
mesmas. Sob esse ponto de vista, as formas condições ambientais e as condições sociais,
espaciais criadas pelos homens – como as e redefinem cada lugar” (SANTOS, 1996:50)
cidades, bairros, guetos, áreas de Ao se territorializar, a violência fixa no espaço
preservação ambiental, parques – aquelas condições inerentes aos processos
expressam as relações sociais vigentes de que lhe deram origem e, assim, os realimenta.
acordo com a época em que foram As sociedades, como produto de mudanças
produzidas. políticas e econômicas, tornam-se mais
maleáveis às transformações de ordem global
As cidades, transformadas em objetos
do que os territórios construídos e suas infra-
de consumo, ag regam conteúdos sociais às
estruturas. Estes não são tão facilmente
formas construídas que se articulam
reestruturados, modificados e moldáveis com
fortemente para criar territórios urbanos.
a mesma rapidez dos processos sociais: são
Assim, os espaços passam a ser diferenciados
mais permanentes pela própria inércia. E por
por suas “formas-conteúdos”, e não apenas
essa inércia, interferem nos processos sociais
por condições variáveis da natureza e da
realime n t a n d o a q u e l e s q u e l h e s d e r a m
sociedade. As sociedades ao produzirem seu
origem.
espaço valorizam ou desvalorizam certas
porções do território que vão ser apropriadas A visão territorial tem sido esquecida
por diferentes atores sociais. A configuração nos estudos da violência urbana e nas
territorial possui “uma existência material medidas de combate, que atuam igualmente
própria, mas a sua existência social, isto é, em todos os lugares ignorando suas
sua existência real, somente lhe é dada pelas especificidades e as territorialidades criadas
relações sociais” e esse conjunto de relações pela violência. É no território que a pobreza,
e x p r e s s a u m a “c o n f i g u r a ç ã o g e o g r á f i c a ”. a exclusão social, a omissão do estado, a
(SANTOS, 1996:51). violência e as carências tornam-se mais
visíveis, mais presentes e escapam das
Tradicionalmente, a violência costuma
máscaras que as médias e as abordagens
ser relacionada à pobreza, à exclusão social,
setoriais lhes imprimem e minimizam.
à omissão do Estado, ausência de serviços
públicos urbanos e ao próprio processo de
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III- A Produção do espaço da violência: A proximidade física no território confronta as


Território da Violência diferenças sociais em termos de direitos do
indivíduo à sobrevivência, à saúde, ao trabalho
O espaço urbano é produzido pelos
à vida, etc. O enclausuramento do pobre,
agentes sociais de forma excludente, desigual
espacialmente próximo das condições da vida
e injusta, coerente com a lógica capitalista que
moderna urbana e socialmente tão longe dela,
comanda o desenvolvimento das nossas
fruto do inacesso, ou da periferização, que o
cidades. As cidades são “produto, meio e
torna duplamente distante, dificulta a mobilidade
condição”(Carlos, 1994: 84) das lutas e conflitos
social. Cria-se uma barreira espacial que
sociais e espaciais que se formam ao longo da
reproduz a pobreza, como um fator a mais. A
história. Assim, no espaço urbano estão, de um
pobreza segregada fica mais pobre, tornando
lado, os espaços elitizados das classes
mais difícil a mobilidade social e com isso mais
dominantes; de outro, os espaços periféricos
vulnerável às ações criminosas.
das classes populares e as hiperperiferias dos
excluídos. Entre eles forma-se no tecido urbano Espaços de exclusão da lei e da ordem
o espaço da classe média. Esse processo origina social, abrigo da população segregada, reduto
um tecido urbano fragmentado, segmentado e da violência em seus diferentes aspectos, são
contraditório, porém, extremamente articulado. apropriados pelas organizações criminosas e/
ou ilegais que os faz seus espaços de poder. À
Os espaços elitizados das classes
violência estrutural desses territórios vem-se
dominantes caracterizam-se pelo consumo de
articular a violência organizada do crime na
bens e de infra-estruturas com alto padrão de
atualidade. Cria-se, assim, o território da
qualidade e de técnica, financiados pelos
violência, porções do espaço urbano apropriadas
governos. Nos espaços periféricos predomina a
pelas organizações criminosas que exercem seu
cultura da pobreza e sua dinâmica para reduzir
poder sobre eles transformando-os em redutos
os efeitos devastadores do desemprego
de poder do crime organizado que daí comanda
(principalmente por intermédio do comércio
sua atuação na cidade, enfrenta o estado e
informal) e das necessidades habitacionais
manobra o seu exército formado pela população
imediatas. Sem opção no mercado imobiliário,
excluída que habita esses locais.
com pouco ou nenhum financiamento público ou
privado, predomina a informalidade e a A autoridade pública, ao se omitir das
autoconstrução, que não atende às exigências obrigações elementares em decorrência do
mínimas de uma habitação normal. Podemos colapso do Estado no contexto internacional,
dizer que são os espaços-conteúdos da cultura ”entrega as ruas e as favelas ao império da
da subsistência. violência e da lei do mais forte” (Abranches,
1994:128). As comunidades faveladas e mais
Com isso, criam-se, dentro do tecido
pobres são facilmente dominadas pelos grupos
urbano, espaços desvalorizados, onde a
criminosos que nelas se instalam ”porque elas
ausência do Estado e das instituições públicas
são mais vulneráveis e não têm qualquer
faz com que sejam abandonados pela lei e onde
capacidade de resistência. Não conseguem
o contrato social é rompido. São esses locais
segurança pública suficiente para torná-las
que abrigam a população excluída socialmente
infensas à ação do banditismo” (Abranches,
e espacialmente periferizada, redutos de todas
1994:128), que explora as carências sociais e
as formas de violência, desde a discriminação,
materiais da comunidade a seu favor,
ao inacesso, aos direitos do cidadão e à própria
fundamentalmente pela ação armada.
cidadania.
Esses espaços tornados territórios da
A urbanização sem urbanidade, sem
violência são parte ativa no desenvolvimento
justiça social, coloca a distância social entre os
do poder constituído pelo crime organizado e
indivíduos a uma pequena distância territorial.
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pela violência a ele atrelada. E, dessa forma, enquanto nas capitais dos estados a mesma
realimentam os processos sociais responsáveis taxa foi de 45,1 e entre os jovens (faixa etária
pela violência urbana. de 15 a 24 anos) essa taxa foi de 88,8. Nas
capitais dos estados a violência é mais
O pobre é extremamente violentado com
acentuada como causa de mortes,
a vida nas favelas e periferias. A desigualdade
principalmente entre os jovens. Esses dados
social é a raiz disso. São esses locais
expressam uma tendência da violência no país
abandonados pela lei e à margem dos requisitos
ser eminentemente urbana e atingir
da urbanização moderna que abrigam a
principalmente os jovens
população excluída socialmente e espacialmente
periferizada. Essa população adere ao crime Os trabalhos que investigam as várias
organizado como resposta radical à violência abordagens teóricas sobre os determinantes da
que lhe foi imposta pelo sistema legal, e cai em criminalidade mostram, em quase todos os tipos
outra: a ilegal. de abordagem, a presença das variáveis sócio-
espaciais relacionadas ao processo de
Assim, nas cidades definidas como o lugar
urbanização (pobreza, desigualdade,
essencial da pobreza, das desigualdades sociais
concentração de renda, desemprego, entre
crônicas e da anomia, a violência é um dos seus
outras), bem como taxa de urbanização,
aspectos mais visíveis. Juntos esses elementos
adensamento demográfico, presença de vilas,
compõem as manifestações das formas sociais
favelas e bairros pobres na periferia das
produzidas nos últimos anos, e que emergem
cidades. (Cerqueira e Lobão, 2003). Os autores
como a dinâmica mais contundente da relação
citados chamam a atenção para o fato de que,
sociedade-espaço.
embora possa se verificar determinadas
A territorialização da violência implica em regularidades estatísticas que variam conforme
realimentar a violência pela via da inércia a dinâmica regional e criminal, a violência e a
espacial e pelo papel do espaço no processo criminalidade são fenômenos
social. Como já disse o geógrafo francês Yves multidimensionais e multifacetados, portanto
La Coste, “o espaço não é neutro nem não podem ser avaliados a partir de uma
inocente”. Não é neutro porque interfere no variável apenas. Explicações unidimensionais
processo social e não é inocente por ser de fenômenos com essa complexidade se
estratégico. Assim, a persistir a mesma lógica mostrarão equivocadas.
dos processos sociais atuais, existiria sempre
A literatura brasileira vai buscar apoio
a possibilidade dessa territorialização na
para suas pesquisas teóricas e empíricas
formação do espaço urbano propiciando a
principalmente na Teoria da Desorganização
manutenção da violência. Não basta, então,
Social (Cerqueira e Lobão, 2003: 5, 17, 23;
retirar uma favela de um local, desmontar um
A b r a n c h e s , 1 9 9 4 ; Z a l u a r, 1 9 9 4 ) . M u i t o s
território, porque a mesma forma espacial vai
autores encontraram uma correlação positiva
aparecer em outro lugar, desde que os
entre os fatores espaciais e sociais da
processos que lhe deram origem persistam.
urbanização brasileira: favelas, pobreza,
desemprego, desigualdades, etc. Abranches
(1994) procura analisar o macroambiente
IV- O processo de urbanização e a produção
social para encontrar um conjunto de
do espaço da violência: exclusão social,
condições que estimulam o crescimento da
pobreza, periferização, segregação sócio-
violência e da criminalidade associado à tensão
espacial, hiperperiferia
urbana e às condições sociais da convivência
No conjunto da população brasileira metropolitana causadas pela desordem civil e
(tabela1), no ano de 1998, a taxa de óbitos por anomia da ordem pública constituída.
homicídio, em 100.000 habitantes foi 25,9
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Outro fato de fundamental importância consumindo um espaço. Essa interação de


observado por Cerqueira e Lobão (2003), é que processos forma um “constructo” socioespacial
exatamente nos períodos em que foi observada que tem um grande impacto no território devido
uma tendência crescente da taxa de homicídios, à concentração numa mesma área urbana
houve uma deterioração dos indicadores sociais densamente povoada. Nesses territórios, assim
naqueles lugares, com aumento do número de constituídos, grupos criminosos – de menor ou
pobres e indigentes. maior organização e armamentos – apropriam-
se desse espaço, se instalam, dominam a
Segundo Abranches (1994), as raízes da
população e o local, e alí se fortalecem para
violência urbana possuem uma matriz
desenvolver suas ações. A criminalidade se
multifatorial que abrange duas dimensões
impõe porque esses grupos criminosos
diferentes - a social e a moral. Essas dimensões
submetem a comunidade a toda espécie de usos
se manifestam no macro e no microambiente
e abusos, aterrorizando a população,
social e espacial. O plano macro é caracterizado
principalmente os jovens. Nesse contexto não
pela institucionalidade vigente, pela ordem
podemos esquecer, ainda, a ação de grupos de
pública constituída, onde se realiza os processos
policiais corruptos, envolvidos na extorsão dos
gerais da urbanização brasileira. O
lucros obtidos com a atividade criminosa (tráfico
microambiente é dado pela estrutura da
de drogas, seqüestros, assaltos, receptação de
convivência nas comunidades locais, e se realiza
objetos roubados, etc conforme amplamente
produzindo e consumindo um determinado
divulgado pela imprensa).
espaço. No microambiente socioespacial se
articulam as condições locais favoráveis à Portanto, é o conjunto de carências
apropriação desses espaços pelas quadrilhas sociais (e morais) que criam, nas cidades,
criminosas. Tem-se então a formação do territórios propícios ao surgimento de “padrões
território da violência inconformistas de comportamento, de
manifestações violentas de insatisfação e de
(...)“quando sua institucionalidade, isto
transgressões criminosas” (Abranches,
é, as regras e normas de convivência definidas
1994:134) que estão indissoluvelmente
pela comunidade, é distorcida, por inúmeras
articulados às carências materiais da
razões, a ponto de eliminar a barreira moral e
urbanização excludente.
legal entre pessoas honestas e bandido; ela
se torna uma fonte independente de reprodução Um estudo crítico da criminalidade e da
das condições sociais e pessoais para a droga, violência não pode se ater à análise de variáveis,
a violência e o crime” (Abranches, 1994: 130). investigando causas e conseqüências, sem
questionar a que novos fatos levaria o quadro
As teorias da crescente pobreza da
atual da violência urbana, ou que novos
população (sendo a pobreza considerada
processos teriam origem na deterioração
também um fenômeno multidimensional) e da
crescente das condições de existência social e
recessão econômica, por si mesmas, não são
material das populações urbanas.
suficientes para explicar causas e
determinantes da escalada da violência e da Em seus estudos sobre a urbanização
criminalidade nas cidades brasileiras. O que é brasileira, Milton Santos (1993) chama a atenção
importante salientar é que, nesse contexto de para o caráter excludente da nossa urbanização
desorganização socioespacial do crescimento que produziu a cidade, especialmente a grande
urbano, existe uma interação de processos cidade, como pólo de pobreza.
(econômicos, sociais, espaciais, institucionais,
“A cidade em si, como relação social e
políticos e culturais) que contém e estão
como materialidade, torna-se criadora de
contidos no cotidiano da vida urbana, que
pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico de
somente pode se realizar produzindo e
que é o suporte como por sua estrutura física,
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que faz dos habitantes das periferias (e dos ser pensada como forma de obter uma resposta
cortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobreza integrada, na qual se articulam os diversos
não é apenas o fato do modelo socioeconômico segmentos sociais, públicos e privados.
vigente, mas, também, do modelo espacial”
A crise do Estado, representada pelo
(Santos,1993: 10).
enfraquecimento da autoridade pública, tem um
O entendimento dos problemas urbanos, impacto decisivo sobre o padrão de
com tantas necessidades recorrentes e outras desenvolvimento da urbanização, seja pela
emergentes, leva a que uma solução para os omissão e colapso dos serviços públicos de
mesmos deva ser buscada na interpretação infra-estrutura e de segurança, seja pela
abrangente da realidade, ou seja: uma profunda corrupção e deformação que degrada a função
análise dos processos formadores da pública.
urbanização, em seus diversos contextos
Todos esses fatores apontados
históricos, políticos e culturais. Esse
contribuem para deteriorar as condições
entendimento mais amplo deve incluir a análise
materiais e sociais de vida nas cidades,
das diversas modalidades do uso do território
negando a grande parte da população o acesso
para identificar as especificidades do fenômeno
digno às condições espaciais urbanas
da violência e, a partir daí, mensurar sua
relacionadas à habitação, saneamento,
problemática.
transporte, emprego, infra-estruturas entre
A violência urbana, entendida como um outros serviços. O crescimento das carências
processo amplo, que vai além da criminalidade, materiais urbanas, cada vez mais, torna as
“surge e se avoluma à medida que as cidades cidades pólos de pobreza, e é um dos fatores
crescem e se tornam mais complexas, mais de agravamento da crise urbana, pois, ainda
dominadas pela multidão e pela anomia” assim, as cidades possuem capacidade de atrair
(Abranches, 1994:125). A urbanização e manter um grande fluxo de pessoas. Entre
excludente cria um crescimento anárquico que 1986 e 1993, quando houve grande
permite a produção de espaços onde impera “o deterioração das condições sociais no Rio de
mandonismo característico das quadrilhas que Janeiro, o número de pobres cresceu cerca de
tiranizam as periferias urbanas e as favelas, um milhão de pessoas (Cerqueira e Lobão,
exercido fundamentalmente pela violência 2003). Esse dado leva os autores a supor que
armada e pela intimidação física, sem qualquer “ainda que não se observasse maior
resquício de legitimidade – é intrinsecamente deterioração das condições de desigualdade da
criminoso” (Abranches, 1994:127). renda, a sociedade poderia assistir, ainda assim,
a um espiral no crescimento dos homicídios,
A ordem espacial assim resultante é a
influenciado, entre outras coisas, pelo
da urbanização perversa, da cidade excludente,
crescimento populacional”. A diminuição da
na qual essa ordem espacial está sendo
desigualdade sócio-econômica possui um forte
permanentemente recriada, no sentido de sua
impacto negativo sobre o número de homicídios,
própria reprodução, realimentando a violência
o que não significa que se tome o pobre (ou a
e a criminalidade, pela territorialização das
pobreza em si) como o agente da violência.
mesmas. O território da cidade se produz,
produzindo e reproduzindo as formas de Outro fator que tem contribuído para o
violência urbana e criminalidade comandadas agravamento da crise socioespacial urbana é o
pelo conjunto de fatores que se materializam e pouco alcance dos programas sociais dos
se realizam nas cidades. Assim, a luta pelo uso governos federal, estaduais e municipais para
do espaço da cidade coloca a questão da apoiar as populações desfavorecidas e para
criminalidade e da violência como um problema implementar melhorias dos serviços públicos de
coletivo, uma situação que, no mínimo, precisa segurança e de infra-estrutura urbana.
ser regulada e controlada. Por isso começa a
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Durante as décadas de 1960 e 1970, constante. Isso nos leva a questionar o


quando ocorreu a explosão demográfica e enfrentamento da questão da criminalidade e
aceleração da urbanização, com a imigração da violência sem uma articulação direta com as
campo-cidade, não havia nas cidades nem infra- políticas urbana, territorial e regional.
estrutura, nem habitação, nem emprego. As
Estamos diante de novas formas e novos
massas foram jogadas nas cidades com
conteúdos da violência e da criminalidade
absoluta ausência de políticas efetivas de
modernas, nos quais devemos buscar hipóteses
proteção à população e organização urbana.
alternativas, ainda que mais compreensivas,
Esse processo de aprofundamento da para entender e tentar explicar o que está
urbanização excludente ocorreu ainda com a ocorrendo no espaço urbano atual. No cenário
queda contínua do valor dos salários, da da violência urbana surge um novo ator: o crime
deterioração da renda, com a diminuição da organizado.
qualidade dos serviços de educação e saúde.
No âmbito econômico, principalmente a
V- O crime organizado e o espaço urbano
partir dos anos de 1980, é crescente a
dificuldade do país em “recuperar-se das crises Nas últimas décadas, os homicídios no
financeiras, quando o domínio da tecnologia e Brasil aumentaram 223% e são a segunda causa
da informação torna-se mais decisivo para o de mortalidade na população em geral, depois
crescimento e a participação no mercado mundial das doenças cardiovasculares, segundo a
do que a construção de indústrias e infra- FUNASA.
estruturas”. As grandes indústrias investem na
A partir de 1980 passa-se a incorporar,
reengenharia das empresas: geram ganhos
no Brasil a utilização acentuada da cocaína, por
encolhendo, fazendo cortes nos ítens de
ser mais lucrativa que a maconha (tida como
despesas, aumentando a taxa de lucratividade,
droga leve), acarretando um aumento na
mas empregando cada vez menos pessoal.
criminalidade, com o uso de armas mais
Os resultados desse “desenvolvimento” poderosas e defesa de maior lucro.
são desapontadores e se refletem nas
Neste texto considera-se como crime
galopantes estatísticas da criminalidade e da
organizado o tráfico de drogas e de armas,
violência, na longa estagnação econômica, e se
contrabando e formação de quadrilhas. No
traduzem na falta de perspectivas de progresso
quadro da violência urbana da atualidade,
pessoal e ascensão social, principalmente para
homicídios, seqüestros, atentados, assaltos e
os jovens brasileiros – hoje representam o
roubos estão principalmente ligados a esse tipo
“gargalo” da sociedade que seremos no futuro.
de crime. No Rio de Janeiro admite-se que o
Vivemos hoje o agravamento do quadro social
crime organizado seja responsável, direta e
excludente, apoiado no corte do orçamento
indiretamente, por 99% dos homicídios.
social e diminuição dos investimentos públicos.
“Nas cidades estão sendo construídas situações Trata-se da violência organizada, um
explosivas de potencial imprevisível, pois esse novo processo que atua no espaço urbano como
processo é acompanhado da ampliação da um dos agentes da urbanização, valendo-se da
informação sobre os direitos da cidadania, informalidade e da ilegalidade da ocupação, da
aumentando as aspirações e as metas de vida especulação do mercado imobiliário, da ausência
da população urbana” (Zaluar, 1994). do poder público, da impunidade e da
vulnerabilidade da população pobre. O crime
Estes fatos não permitem que se instale
organizado tem como características: a
um processo de melhoria nas condições sociais
ilegalidade, a formação de redes, a
e materiais da vida urbana nas cidades,
movimentação de grandes somas de dinheiro,
aprofundando um ciclo que se repete de forma
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a corrupção de policiais e políticos e a cooptação armazenagem, formando redes que extrapolam


de pessoas. É o “crime negócio” como coloca o local, o regional e se globalizam (Souza, 1996).
Alba Zaluar (1999:67), que considera como um
O caráter de ilicitude supõe a
novo tipo de crime relacionado ao contrabando
clandestinidade, a localização em pontos
de armas e de drogas, redes de escambo entre
estratégicos do território onde possa se
mercadorias roubadas e o tráfico de drogas e,
esconder, de preferência na informalidade dos
baseado na lógica da acumulação capitalista,
lugares onde a omissão do Estado os torna
recrutando jovens pobres para trabalhar nesse
territórios livres para o domínio dessas
negócio (Zaluar, 1999:66). A criminalidade passa
organizações. Na cidade formal, se encobre pelo
a fazer parte de um negócio altamente lucrativo
poder financeiro e político, pela anomia da cidade
que é o tráfico de drogas, mundialmente
e se protege com a impunidade.
importante em termos financeiros, pelas grandes
somas de dinheiro que envolve. Segundo a Pode-se dizer que estamos diante de um
mesma autora “(...) o crime organizado não novo poder dentro da cidade que enfrenta o
pode mais ser desconsiderado como uma força poder público, não respeita o poder privado e
importante, ao lado dos Estados nacionais, submete a população.
partidos políticos, igrejas, empresas
Por suas próprias características, o crime
multinacionais etc” (1999:69).
organizado elege a cidade e, principalmente a
O crime organizado atua em setores cidade grande como seu locus, porque aí se
ricos e pobres da sociedade, participando de apresentam as condições propícias para esse
licitações públicas e investindo nos setores de tipo de atividade se instalar: mercado
transportes e construção civil, onde age para consumidor, canais de comunicação, aeroportos,
arrecadar fundos para patrocinar suas ações, anonimato das multidões que esconde a
especialmente a de compra da droga e as de corrupção e dificulta a visualização dos culpados,
armas e de sustentar seus exércitos, e, também a anomia, a impunidade, e a mão-de-obra
para investir seus lucros escusos - lavagem de constituída pela população pobre
dinheiro. Isso envolve pessoas influentes e desempregada e desamparada pelo poder
políticos. Do outro lado da cadeia organizada público. Quanto mais a cidade cresce, mais se
estão os pobres como mão-de-obra. Dentre os torna o locus desse tipo de ação organizada, e,
atores envolvidos nessa organização quanto mais ela envolve pessoas, mais crimes
encontram-se: os clientes da droga (o mercado ocorrem: queima de arquivo, combate entre as
consumidor formado pelos estratos médios e organizações pelo domínio do mercado, além
altos da sociedade, e também por pobres que, das vítimas inocentes das balas perdidas e dos
para custear o vício aderem ao crime); os seqüestros. Quanto mais cresce o crime
coniventes (políticos e pessoas corruptas) que organizado mais o poder público fica fragilizado
intermediam o tráfico e dão apoio às ações); os e passa a ter menos condições de combatê-lo.
mandantes ; a polícia corrupta ; os O choque entre o poder público e o crime
trabalhadores (mão-de-obra, geralmente organizado gera mais violência.
formada pelos pobres das favelas e periferias
No bojo do processo de urbanização
urbanas que distribui a droga e faz a segurança
excludente, que tem por base as desigualdades
dos pontos de venda).
sociais e econômicas, criam-se os territórios da
A estratégia do crime organizado está segregação e da pobreza, onde a violência se
na organização espacial hierarquizada capaz de manifesta em todos os seus aspectos: omissão
burlar a lei e a ordem, inclusive com o uso de do estado, quebra do contrato social, inacesso
armas. Articula no espaço os pontos de á saúde, à cidadania, à instrução, à formação
produção da droga, os locais de venda no varejo, profissional, ao mercado de trabalho, à
o transporte e pontos de transbordo e segurança e às infra-estruturas urbanas. As
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periferias pobres oferecem, então, o locus diminuir os recursos para investimentos


privilegiado para o estabelecimento do território públicos no setor social e, por conseguinte,
do crime organizado: a ilegalidade, a ausência no combate à pobreza. As cifras da corrupção
de segurança pública, a a u s ê n c i a d a s e do desvio das verbas públicas,
instituições de controle público. O crime freqüentemente mostradas pela mídia, tornam
organizado se apropria desses locais e os facilmente perceptível a forma de resolução de
torna seus territórios, onde se fixa a boa parte das carências das populações
organização da criminalidade, que daí articula pobresno que se refere à saúde, educação,
as ações no espaço urbano. Esses pontos do habitação e segurança.
espaço não são contínuos, nem contíguos, mas
articulados - são os territórios da violência.
Segundo Souza (1996), no Rio de Janeiro as VI- Os fixos e os fluxos do crime organizado
organizações (Comando Vermelho, Terceiro
Comando) disputam o mercado do varejo e Para Souza (1996:422), o crime
constituem sua própria rede. Cada rede organizado tem várias escalas: a da favela e
articula territórios “vinculados a uma mesma a das redes internacionais do tráfico de drogas
organização, costurados por uma mesma e de armas, com diferentes atuações e
relação de poder”. As favelas são os nós da conexões. Na escala nacional o crime
rede. São os fixos que articulam os fluxos. organizado atua na corrupção e no desvio de
verbas públicas. O Crime organizado se articula
Entre esses pontos, outros territórios com a corrupção econômica e política que
se formam, como os bairros legais, etc. “A passa pela polícia. Exagera-se o poder de
territorialização das favelas pelo crime alcance da organização dos traficantes das
organizado é assim, um fator de fragmentação favelas, que operam no varejo, no
sócio-política-espacial do tecido urbano” abastecimento do mercado local. Os grandes
(Souza, 1996:449). traficantes operam com a importação,
Ao se tornarem territórios do crime exportação e no atacado, bem como seus
organizado, a violência aumenta nesses locais. sócios e os por eles corrompidos e cooptados
Em contrapartida a mobilidade social da (Souza, 1996:430). O dinheiro gerado pelo
população fica bloqueada, coptada pela ordem negócio da droga, os “narcodólares”, tem
criminosa. Um verdadeiro desenvolvimento importância no sistema financeiro mundial o
sócio-espacial na escala das favelas é que justifica a dificuldade dos estados em
b l o q u e a d o p e l a “a s f i x i a d e o r g a n i z a ç õ e s coibir a lavagem desse dinheiro em seus
comunitárias, tolhimento da liberdade dos territórios e até mesmo as atividades das
moradores” (Souza, 1996:426), Assim, o crime organizações.
organizado age no sentido de acentuar a O crime em rede extrapola a esfera
exclusão social e impedir o desenvolvimento local, “atravessa fronteiras de classes sociais,
desses enclaves do espaço urbano. A de idades, de gênero e de nações” com
criminalidade se favorece da pobreza que se implicações globais e passa a ter influência na
torna funcional para o crime, e este contribui organização espacial da cidade e não ser
para aumentá-la, inclusive gerando novas apenas o resultado desta (Souza, 1997).
exclusões pela via da inclusão de jovens
pobres no vício e na criminalidade, na coptação Os territórios da violência como “fixos”
das comunidades carentes e no descrédito alimentam dois tipos de fluxos articulados
nas instituições da sociedade organizada. entre si e inerentes ao crime organizado.

Por outro lado, agindo no desvio do No primeiro caso, trata-se da


dinheiro público, via corrupção, contribui para articulação com a corrupção que envolve o
poder e o dinheiro e alimenta fluxos nacionais
Território da violência: um olhar geográfico sobre a violência urbana, pp. 155 - 168 165

e internacionais. A manutenção desse poder e legitimidade, estimulador da ordem


“negócio” gera violência e criminalidade. No ilegal que é o crime organizado” (Souza,
segundo caso, esses fixos articulam fluxos de 1996: 445).
miséria e exclusão. É a população excluída e
periferizada que é atingida e se torna mais Por outro lado, o mesmo processo que
vulnerável. Com isso mais difícil se torna a sua cria a pobreza, cria a riqueza, a
mobilidade social. São alimentadores das novas concentração de renda e de poder e os
exclusões e de mais pobreza por conta das meios de circulação e as infra-estruturas em
mesmas. Os jovens viciados se afastam das pontos seletivos da cidade, acentuando
famílias, das escolas, do emprego e mergulham assim as desigualdades espaciais. Aos
na miséria ou entram no crime para pagar a pobres só resta, então, as periferias e
droga e se expõem à violência do crime hiperperiferias.
organizado, como vítima ou como mão-de-obra. O crime organizado tem como base a
corrupção, o uso do poder, e age na evasão
de recursos do Estado, provocando o
VII- Pobreza e criminalidade esvaziamento dos recursos públicos para o
combate à pobreza. E, por conseguinte,
Comumentemente é feita a associação
acentua a exclusão. Por outro lado, contribui
entre pobreza e criminalidade, como uma relação
para a acumulação pela via da lavagem de
de causa e efeito, atribuindo-se o aumento da
dinheiro. E quanto mais aumenta o poder do
criminalidade ao aumento da pobreza. Muitas
crime, mais criminalidade e mais pobreza..
pesquisas apontam a falácia dessa correlação,
O tráfico de drogas gera a violência para
como Cerqueira e Lobão (2003). Os achados e
defender seu negócio, no varejo e no
as constatações de tais pesquisas
atacado. Arma seus exércitos. Mata-se pela
desmistificam a causalidade: pobreza –
disputa de pontos de venda no varejo. A
criminalidade, mas não chegam ao âmago da
corrupção se amplia para permitir o negócio
questão.
e a c o o p t a ç ã o t o r n a - s e m a i o r. O crime
Trata-se de um processo no qual a organizado atua também na cidade legal, via
urbanização, por seu caráter excludente, corrupção e tráfico de influência, onde se
segrega espacialmente os pobres: oculta atrás do poder.
segregação sócioespacial com periferização.
Com isso o poder público se
Formam-se, assim, os enclaves de mão de
enfraquece, com menos recursos para os
obra submissa - prato cheio para o crime
investimentos sociais, e, daí mais pobreza e
organizado. O tráfico de drogas e outras
mais vulnerabilidade.
atividades criminosas tornam-se a única
alternativa de ganhar a vida para a
população pobre, desempregada e sem A violência organizada cria seus
expectativas; “a pobreza é funcional para o territórios onde traz cativas pessoas excluídas
tráfico de drogas, o qual devora a juventude da cidadania. A população invisível socialmente
das favelas como mão-de-obra barata e por não ter trabalho, nem documentos, não
descartável” (Souza, 1996:439). ser contribuinte, que não tem acesso à justiça,
aos direitos do cidadão, torna-se escrava do
Além do tradicional papel do Estado crime. Ganham poder, prestígio, dinheiro e
na urbanização excludente, está havendo proteção dentro da rede, mas são eliminados
u m a m a i o r d e s o b r i g a ção do mesmo com fisicamente des de que constituam ameaça à
r e l a ç ã o à p o b r e z a u r b a n a , o u s e j a : ”a organização. Por outro lado, o domínio que o
diminuição da pequena presença “social” da crime organizado exerce em seus redutos
ordem capitalista formal”, daí o “vácuo de impede a mobilidade social das pessoas,
asfixia a organização da comu nidade e cria
novas exclusões.
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A violência no Brasil apresenta-se


extremamente concentrada nas grandes seu território: um difuso, representado pelo
capitais do Sudeste, e particularmente ligada espaço formal e elitizado da venda no varejo,
ao crime organizado. Isso justifica que a junto à clientela; o outro, os espaços periféricos,
preocupação nacional em termos de violência potenciais de territórios da violência, onde o
fique então focada no Rio de Janeiro e São Paulo. varejo se volta para a população pobre atingida
Estudos sobre os homicídios no Rio de Janeiro pelo vício da droga barata.
e em São Paulo, comparados com o total no No primeiro caso, trata-se da articulação
Brasil, (Cerqueira e Lobão, 2003): Rio de Janeiro com a corrupção que envolve o poder e o
e São Paulo obtiveram, juntos, uma taxa de dinheiro e alimenta fluxos nacionais e
230%. Esses dois estados (onde se localizam internacionais. A manutenção desse “negócio”
as duas maiores cidades brasileiras: Rio de gera violência e criminalidade. No segundo caso,
Janeiro e São Paulo, respectivamente) é a população excluída e periferizada que é
respondem por quase metade do total de atingida e se torna mais vulnerável. Com isso
homicídios no Brasil. Outro dado importante mais difícil se torna a sua mobilidade social.
apresentado pelos autores é o crescimento dos Esses fixos articulam fluxos de miséria e
homicídios entre jovens de 10 a 29 anos, a exclusão. São alimentadores das novas
maioria homens sem instrução ou com o 1º grau exclusões e de mais pobreza por conta das
(atual ensino fundamental), e a participação da mesmas. Os jovens viciados se afastam das
arma de fogo como instrumento do homicídio2 . famílias, das escolas, do emprego e mergulham
Brasília como ponto de articulação do na miséria ou entram no crime para pagar a
crime organizado supõe dois tipos de “fixos” em droga e se expõem à violência do crime
Território da violência: um olhar geográfico sobre a violência urbana, pp. 155 - 168 167

organizado, como vítima ou como mão-de- ?evitar a formação das áreas de risco ;
obra. Os dois tipos de territórios, apontados
?tornar menos vulneráveis as áreas de
anteriormente são articulados pelos fluxos
risco já existentes.
que são inerentes ao crime organizado.
Ambos fazem parte do espaço da violência No primeiro caso, trata-se de agir via
dentro e fora do DF. gestão do território no sentido de inibir a
formação das áreas periferizadas,
desvalorizadas, abandonadas pela lei, pelas
VIII- Conclusão instituições urbanas, única alternativa de
moradia dos pobres e excluídos. Isso
O olhar geográfico sobre a violência
realimenta a exclusão e a pobreza além de
permite mostrar uma outra dimensão da
oferecer as condições propícias para as
criminali dade, que é a da territorialização da
organizações criminosas fazerem delas o seu
mesma: a formação dos territtórios da violência
território: território da violência.
e como a violência se realimenta pela inércia
espacial. Ao se admitir o papel do espaço urbano No segundo caso, trata-se de atuar nos
no processo de produção e reprodução da territórios de risco já existentes no sentido
violência, pode-se considerar o valor estratégico de torná-los mais resistentes ao domínio das
do mesmo na ação sobre a violência, como mais facções criminosas, à ampliação da pobreza,
uma alternativa no combate à criminalidade. da exclusão e da violência, Isso se daria via
fortalecimento das potencialidades da
O estudo leva a concluir que há
população local, organização das comunidades
necessidade de interferir nos espaços já
e construção do desenvolvimento social dos
criados, potenciais territórios da violência, para
moradores do lugar.
que não se tornem redutos do crime, e que a
atuação no espaço da cidade via gestão do Como foi colocado anteriormente, agir
território poderia ser uma estratégia para coibir sobre o território significa criar oportunidades
a criminalidade. novas ou estratégicas para que os processos
sociais se realizem de forma menos perversa,
Em suma, agir no território pode ser
as mudanças ocorram e os territórios tenham
estratégico para desmobilizar a organização
novas identidades.
criminosa. Essa ação estratégica se daria em
dois sentidos:

Notas

2
73,6% dos homicídio no Brasil no Brasil são
1
Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério decorrentes do uso de arma de fogo, enquanto
da Saúde - DATASUS nos Estados Unidos esse número é de 43%.
Waiselfisz, 2002).
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Trabalho enviado em maio de 2005

Trabalho aceito em setembro de 2005

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