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Revista CORALINA

GENEALOGIA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O CORTIÇO:


A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DISCURSO DA
VIOLÊNCIA NO ESPAÇO DAS FAVELAS
Genealogy of urban violence in O Cortiço: Literary imagination and the discourse of
violence in the slums space

Jucelino de Sales1

RESUMO: Abordaremos nesse artigo relações simbólicas sobre um discurso da violência,


permeado na obra O cortiço, precursora na construção de um imaginário social que
persiste, hoje, nas favelas; obra que norteia no espaço literário a formação sócio-histórica
das primeiras comunidades marginalizadas, no arranjo simbólico do espaço periférico das
metrópoles. Segundo Gilbert Durand (1998), os conteúdos do imaginário nascem no fluxo
temporal, “os quais recebem suas estruturas e seus valores das várias ‘confluências’
sociais” (1998, p. 96). Tomando o espaço do cortiço como análogo ao microespaço das
favelas, a compreensão do discurso da violência a partir do discurso literário presente na
obra pode: 1) esclarecer a relação de ordem conflituosa entre cortiços (ou seja, favelas),
2) elucidar o embate entre força policial (desmedida) e comunidade.

PALAVRAS-CHAVE: O cortiço. Discurso. Violência. Imaginação literária. Imaginário.

ABSTRACT: We will discuss in this article the symbolic relations about a discourse of
violence, permeated in the novel O cortiço, precursor in the construction of a social
imaginary that persists today in the slums; novel that guides the socio-historical formation
of the first marginalised communities in the literary space the socio-historical formation
of the first marginalised communities, in the symbolic arrangement of the peripheral
space of the metropolises. According to Gilbert Durand (1998), the contents of the
imaginary are born in the temporal flow, “os quais recebem suas estruturas e seus valores
das várias ‘confluências’ sociais” (1998, p. 96). Taking the space of the slum as analogous
to the microspace of the favelas, the comprehension of the discourse of violence from the
literary discourse present in the work can: 1) clarify the relationship of conflicting order
between tenements (i.e., favelas), 2) elucidate the clash between police force
(unmeasured) and community.

KEYWORDS: O cortiço. Discourse. Violence. Literary imagination. Imaginary.

1
Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade de Brasília (UnB). Professor da literatura da
Universidade Estadual de Goiás (UEG), Câmpus Formosa. E-mail: disallesart@hotmail.com

Cidade de Goiás, vol. 1, n. 2, p.95-107, jul./2019


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INTRODUÇÃO
Esse artigo é resultado do projeto em que com a Lei Áurea sancionada,
Silêncios, fraturas e interditos na gerará um pudendo contingente
representação de sujeitos da literatura populacional de massa trabalhadora
brasileira: o discurso e sua sombra que desempregada que sofrerá o êxodo rural
realizamos na UEG – Câmpus Formosa. e nas cidades, essa nova massa
Na abordagem, investigamos a presença trabalhadora, será relegada à
arraigada de um discurso – o discurso da marginalização geográfica.
violência – em nosso mundo atual, no Em linhas gerais, o enredo narra a
que tange a realidade brasileira, a partir história do português João Romão
de uma geografia específica – a favela, e entrelaçada a da negra Bertoleza e trata
buscamos compreender como esse da construção de um cortiço e das
discurso, em sua configuração urbana, histórias e vivências humanas que se
foi gestado no espaço literário na obra O enredarão nesse espaço.
cortiço de Aluísio Azevedo, e em que Nosso propósito é observar e analisar
bases sociais e psicológicas sua estrutura presenças da violência em O cortiço e
se constituiu. levar à percepção como essa violência se
A presença, em vigor, da violência na constrói na narrativa literária para
sociedade contemporânea, é fato notório entendermos como um imaginário
e constitutivo. Com isso, a compreensão social, a respeito da economia simbólica
e interpretação dessa relação coetânea da violência que se faz hoje presente no
através do viés literário apresenta-se espaço da favela, encena suas origens no
como um percurso importante na decorrer do longo século XIX e pode ser
tentativa de estabelecer compreensões fruto daquele grande ennui – sentimento
sobre a sociedade atual e, no caso do de tédio sobre o qual o crítico George
Brasil, as comunidades que residem nas Steiner revela sua gramática. Steiner
áreas geográficas conhecidas como denomina este século como o berço da
favelas. modernidade, o qual evoca como “mito
A obra na qual estabelecemos a do século XIX ou jardim imaginado da
abordagem, O cortiço, faz parte da cultural liberal” (STEINER, 1991, p.
chamada estética naturalista e descreve 15). Sua “tese é que certas origens
acontecimentos que se passam na específicas do inumano, das crises de
segunda metade do século XIX; época nosso próprio tempo que obrigam a uma

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redefinição da cultura, devem ser emaranha e que move o sentimento de


encontradas na longa paz do século XIX pertença de seus habitantes é o de uma
e no coração da complexa trama da identidade comunitária que se fixa a esse
civilização” (idem, p. 19). espaço como ambiente de regresso após
Narrativa que historicamente se a labuta diária.
desenvolve neste século supracitado, O O surgimento dos cortiços na cena
cortiço traz em sua trama situações e brasileira se dá sob o signo do infortúnio.
personagens cuja coerência se articula Um ambiente construído sem
em torno da violência. Nesse viés, torna- planejamento prévio, insalubre, que
se fundamental compreender como o dispõe nesse microespaço um
estatuto da violência é instância amontoado de pessoas. A pobreza foi o
instauradora e conservadora de um motivo maior de tal destino dessa
imaginário que marca as condições aglomeração. Com o processo de
sociais das atuais favelas. Visualizar higienização esses seres humanos foram
como a obra revela e desfia, em situações violentamente varridos para a
imaginadas por Aluízio Azevedo, a segregação, para a marginalização. Tal
estrutura discursiva dessa violência, é fato se explica historicamente, visto que,
um dos primeiros passos que, pelo viés conforme dispõe Corbin (1987), com a
dos estudos literários, pode orientar as ascensão da burguesia, a sensibilidade
discussões históricas a respeito do tema olfativa se torna mais aguçada, e com ela
que, em nossos dias, faz-nos viver sob a a necessidade de higienizar, de limpar, de
terrível pressão e o sentimento absurdo se exterminar com a putrefação social.
de uma vigilância total. Nessa lógica capitalista, quanto menos
Realidade histórica brasileira, os cortiços abastado o grupo social, menor era a
surgem como espaços de moradia e probabilidade de adequação às novas
vivência daquele conglomerado de normas de higiene. O que gera uma
pessoas que, de pouca condição explicação ideológica para o fato de os
financeira, lotarão as fileiras do inquilinos do cortiço, massa que compõe
proletariado. Ao mesmo tempo, o espaço a classe trabalhadora e que por força do
imaginado pelos cortiços, a partir do suor do trabalho árduo e da falta de
convívio entre seus moradores, higiene costumeira expeliam fortes
possibilitaram um forte elo de cheiros, serem relegados tanto à
solidariedade, cujo vínculo que marginalização social quanto à

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marginalização geográfica. A posteriori, Enquanto isso, a burguesia se dedica a


tais relações imporão um periférico evitar todas as maneiras de manter o
zoneamento urbano representado pelas contato com a terra imunda, tanto que as
favelas. construções de sobrados asseguram a
O processo de desodorização do espaço distância da terra. Mesmo se formando
urbano é significativo para os cortiços, eles eram cercados, mais
compreendermos as manifestações de uma evidência de que os miasmas
violência social que ele gera, uma vez deveriam estar delimitados, somente lá
que se estabelece fruto dessa lógica dentro estavam os odores ruins.
capitalista no jogo de relações entre Considerando esse violento processo de
burguesia e proletariado. Em Saberes e desodorização do espaço urbano como
odores, Alain Corbin (1987) descreve política agressiva de um regime burguês
como funciona o processo de encobrir, em prol de seus interesses e tomando o
abafar, isolar os miasmas físicos que se espaço do cortiço como análogo ao
tratam de dejetos putrefatos, sobretudo a microespaço das favelas, a compreensão
exclusão provocada por essas ações que do discurso da violência, a partir do
acarretam a emanação dos miasmas discurso literário presente na obra, pode:
sociais, os quais, por sua vez, dão origem 1) esclarecer a relação de ordem
aos cortiços. conflituosa entre cortiços (ou seja,
Por mais que um processo evolutivo favelas); 2) elucidar o embate entre força
tivesse tentado dar conta desse discurso, policial (desmedida) e comunidade, os
em que as ciências a partir de quais potencializaram um imaginário
experiências resultassem numa lógica social presente hoje em nossa realidade
positivista, a “política burguesa” não brasileira.
conseguiu “desenlamear o miserável”,
eliminar as “secreções miseráveis”, A construção de um imaginário da
desodorizar o pobre. Na perspectiva violência presente no imaginário social
apontada, “os progressos da higiene brasileiro
obrigam [tais miasmas sociais] a recuar O imaginário social é composto, pelo
para setores residuais” (CORBIN, 1987. nome é possível perceber, das imagens
p. 202), ou seja, estimulou a formação sociais, do conjunto de representações de
dos cortiços e dos dormitórios coletivos uma sociedade, sendo representações
e insalubres. utópicas e também ideológicas. Como
Gilbert Durant expressa:

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talvez elabore uma nova episteme


os conteúdos imaginários (os
sonhos, desejos, mitos etc.) de uma narrativa de reconceitualizar o sujeito
sociedade nascem durante um
percurso temporal e um fluxo “trata-se de pensar a violência
confuso, porém importante, para criticamente, levando em conta os
finalmente se racionalizarem
numa ‘teatralização’ de usos espaços que superaram as vivências
‘legalizados’, positivos ou
negativos, os quais recebem suas coloniais, o imperialismo ‘empreendido
estruturas e seus valores das várias
‘confluências’ sociais (apoios sob ameaça de morte (NATALI, 2006b,
políticos, econômicos, militares
etc.) perdendo assim sua pp 30-40), que praticou genocídios e
espontaneidade mitogênica em exclusões por séculos” (GINZBURG,
construções filosóficas, ideologias
e codificações” (DURAND, 1998, 2012, p. 8).
p. 96).
Nesse viés, o crítico assume a posição
Uma conjunção de relações simbólicas
em que “a violência é entendida aqui
que expressam a afetividade social e a
como construção material e histórica”,
individualidade emocional de cada
pois “ela é produzida por seres humanos,
indivíduo refletida em conjunto, no
de acordo com suas condições concretas
social.
de existência” (idem, p. 8). Isto é, a
No livro O cortiço, é compreensível
violência participa de um imaginário
analisar esse imaginário por várias
social histórico, com o qual busca
perspectivas, sendo, uma delas, o
fundamentar seu dispositivo simbólico
imaginário criado a partir das favelas,
de atuação e perpetuação. Como
dos cenários marginalizados espalhados
Ginzburg enfatiza, “é necessário, ao
pelo Brasil, onde é evidente a realidade
examinar a questão das configurações da
miserável de quem a compõe. A pobreza
violência, colocar de imediato o
e o convívio a base de interesses e
problema da sua constância, da
ambições são cruciais na obra. Ainda
intensidade de sua presença” (idem, p. 8-
dentro da mesma perspectiva da favela, é
9).
nítida a violência por toda parte,
Uma das instituições responsáveis pela
violência verbal, física, refletida numa
prática do discurso da violência, e que
sociedade de corpos e vozes miúdas.
integra o aparelho ideológico do Estado,
A respeito do regime de discursividade
cuja constância e a intensidade de sua
que sustenta a gramática da violência,
presença se faz oneroso em nosso tempo,
conforme colocado por Jaime Ginzburg,
é o próprio corpo policial.
na ordem desse novo pensamento que

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Vale buscar na obra de Aluízio Azevedo violência policial, no seu modelo


como os moradores do cortiço enfrentam abusivo e exacerbado, o qual
este aparelho para remetermos ao como esclarecemos não condiz com o estatuto
as favelas atuais se relacionam com esta lógico dessa instituição, estava em vigor
instituição punitiva. No capítulo IV, há nas últimas décadas do longo século XIX
um trecho revelador no qual João Romão e, de alguma maneira, os injustiçados
– proprietário do cortiço e, logo, na foram aqueles oprimidos socialmente,
condição de líder dessa comunidade devido às suas insuficientes condições
instaurada no pé do morro – expressa a econômicas.
maneira como este espaço lida com as Louis Althusser ao abordar os aparelhos
questões policiais: “Não há chinfrins ideológicos de estado, e demarcar sua
nesta estalagem; se aparece uma rusga, relação com a burguesia e o proletariado,
eu chego, e tudo acaba logo! Nunca nos fala sobre a condição de certas
entrou cá a polícia, nem nunca a instituições como função repressiva e
deixaremos entrar! [...]” (AZEVEDO, sua relação com o órgão estatal. Diz
2009, p. 40, grifos nosso). Althusser que
Esta declaração enfática, conforme
O aparelho de Estado que define o
sublinhamos, dá-nos uma pista Estado como força de execução e
de intervenção repressiva “a
reveladora a respeito do relacionamento serviço das classes dominantes”,
entre este microespaço – protótipo das na luta de classes da burguesia e
seus aliados contra o proletariado é
atuais favelas – e o corpo de polícia: o Estado, e define perfeitamente a
sua ‘função’ fundamental
trata-se de uma poderosa antipatia: a (ALTHUSSER, 1983, p. 63).

polícia não é bem-vinda e sim má-vista – Segundo o estudioso, a instituição estatal


condição muito semelhante com a se estabelece a partir de uma
situação histórica de nosso tempo. contraposição burguesa em relação ao
Podemos questionar: seria mera corpo proletário. Para tal, o Estado
coincidência a indisposição atual da utiliza da atuação de aparelhos
população favelada para com esta repressivos. Nessa condição, a polícia –
instituição punitiva, aparelho repressivo um destes aparelhos estatais – funciona
do estado? segundo tal lógica como explica ele,
Quando surgiu essa indisposição? A porque “funciona através da violência, –
narrativa de Aluísio Azevedo nos fornece ao menos em situações limites (pois a
um dado literário substancial que nos repressão administrativa, por exemplo,
move para a hipótese de que certa

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pode revestir-se de formas não físicas)” acoito para vagabundos. Seu espírito e
(idem, p. 68). sua atitude burguesa o impele a tratar os
Há, dessa maneira, uma suposta desajustados socialmente com a
idoneidade estabelecida pelo Estado que arrogância de um proprietário –
legitima, por um processo ideológico arrogância esta capitalista, onde não cabe
permissivo, a atuação legítima do corpo o discurso solícito do amparo social, mas
policial em ações que podem equivocar- o desamparo manifesto cuja lógica
se até no uso desnecessário e indevido da terrível é a intervenção policial e não a
violência. intercessão de uma instituição adequada
Na obra, duas situações ocorridas no que neste caso seria a médica clínica
capítulo X, ilustram dois âmbitos dessa psicanalítica: “o soldado saiu e, daí a
relação: por um lado, a vicissitude de coisa de uma hora, Marciana era
acorrer à polícia por força de um pacto carregada para o xadrez, sem o menor
burguês em que esta instituição é protesto e sem interromper o seu
convocada a partir de um estatuto de monólogo de demente. Os carcaréus
benevolência e de concordância com a foram recolhidos ao depósito público por
sua atuação, enquanto que, por outro ordem do inspetor do quarteirão”
lado, seu ingresso no cortiço é negado, (AZEVEDO, 2009, p. 106).
em detrimento de um acordo A moral burguesa aqui que legitima um
comunitário que – ainda que reprimindo discurso de violência contra os
a violência provocada através do próprio desajustados e oprimidos, é logo
argumento da violência – renega a substituída noutro episódio, expresso no
violência policial, intentando resolver mesmo capítulo, que trata de uma briga,
seus problemas humanos e sociais por efervescências sentimentais e
fechando-se, a partir de uma política de amorosas, entre Jerônimo e Firmo,
solidariedade comunitária, no seu moradores do cortiço e envolvidos com a
próprio espaço social. Rita Baiana.
Na primeira situação, João Romão O duelo violento com desferimento de
invoca um soldado que entrara socos e jorro de sangue gerou enorme
encharcado de chuva em sua venda para pancadaria envolvendo outros
retirar dali a moradora Marciana, a qual inquilinos. Tornou-se disputa
aponta como “gira” ou seja, demente, generalizada provocando a chegada da
pois o cortiço, na justificativa dele, não é brigada policial, que desfere pancadas no

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portão da estalagem com o intuito de contemporâneas – suspenso sob o crivo


intervenção. Nisto, João Romão, de uma violência sempre constante e
atravessa o pátio como um general em perene.
perigo, para dar voz àquele pacto de Essa solidariedade coletiva entre aqueles
solidariedade comunitária que abnega e que participam desse espaço parece advir
rejeita a interferência do aparelho de um espírito de consenso entre os
repressivo: “— Não entra a polícia! Não próprios habitantes que [re]unidos pelas
deixa entrar! Aguenta! Aguenta! — Não injustiças sociais encerraram-se, em
entra! — Não entra! repercutiu a alguma medida, nesse espaço contra a
multidão em coro. E todo o cortiço opressão e a violência do aparelho
ferveu que nem uma panela ao fogo. — repressivo: “de cada casulo espipavam
Aguenta! Aguenta!” (AZEVEDO, Op. homens armados de pau, achas de lenha,
Cit., p. 109). varais de ferro. Um empenho coletivo os
João Romão, nessa posição agitava agora, a todos, numa
ambivalente e ao mesmo tempo coerente solidariedade briosa, como se ficassem
– coerência fundada numa ideologia desonrados para sempre se a polícia
capitalista –, como anteriormente entrasse ali pela primeira vez”
observamos, em que se coloca na (AZEVEDO, op. cit., p. 110, grifo
posição de burguês e lustro de um nosso).
espírito individualista e que agora se Solidariedade briosa proveniente de um
desloca enquanto líder comunitário e empenho coletivo com a intenção de não
evocador de um espírito solidário, clama serem desonrados, de não serem violados
para que impeçam o ingresso da polícia em seu próprio leito: é por essa política
no espaço interno do cortiço. Clamor que de resguardamento contra o destino
a multidão repercute num sonoro “Não infausto da injustiça social que os
entra!”. inquilinos do cortiço se fecham para as
Essa ambivalência pode explicar a instituições estatais. Conforme explica o
aversão desse microespaço em relação narrador:
ao desempenho do aparelho repressivo.
a polícia era o grande terror
Ambivalência sustentada sob o regime daquela gente, porque, sempre que
penetrava em qualquer estalagem,
de discursividade da violência. E que, em havia grande estropício; à capa de
alguma medida, tornará o evitar e punir o jogo e a bebedeira,
os urbanos invadiam os quartos,
relacionamento entre corpo policial e tais quebravam o que lá estava,
punham tudo em polvorosa. Era
comunidades – simulacros das favelas

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uma questão de ódio velho” (idem, vingança (AZEVEDO, op. cit., p.


p. 110). 111)

Um ódio antigo, compartilhado por meio A vingança das praças, à qual o narrador
da solidariedade coletiva, move o faz alusão, aponta aquele sentimento de
comportamento dos habitantes do insatisfação e ódio instalado entre estas
cortiço a impelirem contra o aparelho instâncias que gestam seus espaços de
policial, detentor da legitimidade estatal, confluência no ritmo do longo século
e se defenderem contra a maneira XIX: a burguesia e o proletariado. Como
repressiva que este aparelho impõe ao Althusser explica “todos os aparelhos
adentrar esse microespaço. O que ideológicos de Estado concorrem para o
justifica o motivo por que criaram mesmo resultado: a reprodução das
normas internas, uma vez que tinham a relações de produção, isto é, das relações
necessidade de se protegerem da polícia, de exploração capitalista”
porque ela aplicava a lei de maneira (ALTHUSSER, op. cit., p. 31). O
violenta e destruidora. Em contrapartida, filósofo aponta que “cada um deles
a polícia, sabendo dessa aversão que os concorre para esse resultado de uma
moradores do cortiço tinham por eles, maneira que lhe é própria, isto é,
também temia adentrá-lo. submetendo (sujeitando) os indivíduos a
Mas, enfim, o portão cede, e os uma ideologia” (idem, p. 32), onde em
habitantes do cortiço serão violados pela sua sintaxe discursiva “esse concerto é
primeira vez, desonrados na superfície dominado por uma partitura única, a
de seu próprio espaço coletivo de ideologia da classe dominante” (idem, p.
convívio: 32).
Após o massacre do aparelho
fez-se logo
medonha confusão. Cada qual policial, escangalhando e arrasando o
pensou em salvar o que era seu. E
os policiais, aproveitando o terror espaço interno do cortiço, João Romão e
dos adversários, avançaram com
outros inquilinos tiveram de
ímpeto, levando na frente o que
encontravam e penetrando enfim “comparecer à presença do subdelegado
no infernal reduto, a dar
espadeiradas para a direita e para a na secretaria de justiça” (AZEVEDO,
esquerda, como que destroça uma
boiada. A multidão atropelava-se, op. cit., p. 112), para prestar, em
desembestando, num alarido. Uns
fugiam à prisão; outros cuidavam depoimento, os devidos esclarecimentos.
em defender a casa. Mas as praças,
A resistência foi justificada com o
loucas de cólera, metiam dentro as
portas e iam invadindo e clamor de um coro de vozes, apontando
quebrando tudo, sequiosas de

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a repressão policial como motivo de Nesse episódio, a polícia, vez ou outra,


culpa por toda violência e destruição: “os toma partido de uma ou outra facção, o
rolos era sempre a polícia quem os que se aproxima muito da estrutura
levantava com as suas fúrias! Não se corruptiva que rege, em amplo aspecto,
metesse ela na vida de quem vivia relações atuantes desse aparelho
sossegado no seu canto, e não seria tanto repressivo na lógica brasileira atual.
barulho” (idem, p. 113). O narrador Assim, esse episódio, narrado na forma
justifica tal lógica defensiva que se literária, dá pistas importantes da
descriminaliza para incriminar o corpo maneira como no surgimento desse
policial: “como de costume, o espírito de microespaço já existia um discurso de
coletividade, que unia aquela gente em corrupção e violência instalado, através
círculo de ferro, impediu que de pactos de solidariedade entre certos
transpirasse o menor vislumbre de indivíduos da polícia e facções
denúncia” (idem, p. 112). Este espírito é criminosas instaladas nesse espaço
assim ilustrado: geográfico: “nas suas partes policiais
figurava sempre o nome de um deles
lá no cortiço, de portar adentro,
podiam esfaquear-se à vontade, pelo menos, mas entre os próprios
que nenhum deles, e muito menos
a vítima, seria capaz de apontar o polícias havia adeptos de um e de outro
criminoso; tanto que o médico, partido” (idem, p. 130).
que, logo depois da invasão da
polícia, desceu da casa do Miranda Tanto que na briga de gangues que
à estalagem, para socorrer
Jerônimo, não conseguiu arrancar ocorreu no pátio do cortiço, exposta no
deste o menor esclarecimento
sobre o motivo da navalhada capítulo XVI, assim como acontece em
(idem, p. 113).
nosso tempo entre disputa de facções nas
Noutro trecho da narrativa, capítulo XIII, favelas “a polícia não apareceu e não se
é descrito a rixa entre dois cortiços achou com ânimo de entrar, antes de vir
alcunhados de: “Carapicus” – trata-se do um reforço de praças, que um
cortiço de João Romão – e “Cabeça-de- permanente fora buscar a galope” (idem,
Gato” – um cortiço vizinho –, em p. 163).
consequência de disputa de território: o Dessa contenda derivará o homicídio de
que ilustra, de maneira sucinta, a lógica Firmo pelo empenho de Jerônimo – cada
de disputa das facções que surgirão nos qual na posição de líder de sua malta.
complexos de favelas e, amiúde, Esta morte é justificada de maneira atroz,
alimenta a realidade social coetânea um pacto de violência cumprido
desse espaço geográfico.

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internamente pela solidariedade coletiva códigos dos século XVIII e XIX –


um processo global levou os juízes
de seus pares: a julgar coisas bem diversas do que
crimes: foram levados em suas
sentenças a fazer coisas diferentes
a morte de Firmo não vinha nunca de julgar; e o poder de julgar foi,
a toldar-lhes o gozo da vida; quer em parte, transferido a instâncias
ele, quer a amiga, achavam a coisa que não são as do juízes da
muito natural. ‘O facínora matara infração (FOUCAULT, 2014, p.
tanta gente; fizera tanta maldade; 26)
devia, pois, acabar como acabou!
Nada mais justo! Se não fosse
Entre estas instâncias, o corpo policial,
Jerônimo, seria outro! Ele assim o
quis – benfeito!’ (p. 176). na função de aparelho repressivo do
Trata-se de um discurso de legitimação Estado, detém o argumento da punição,
da violência, suposta como justa, uma pois nesta lógica estatal, fez-se “com que
vez que o dito facínora correspondia a o poder de julgar não dependesse mais de
um assassino e, nessa lógica, deveria ser privilégios múltiplos, descontínuos,
tratado da mesma maneira, sendo a contraditórios da soberania às vezes, mas
morte sua punição. de efeitos continuamente distribuídos do
Ginzburg coloca que a lógica de poder público” (idem, p. 81)
legitimação da violência segue a razão de Tal idoneidade jurídica, a partir de uma
um tempo presente em que a sociedade microfísica do poder, em função dos
se engrena no discurso de que precisa interesses do estado burguês, justifica as
mostrar suas forças, seus valores. O ações desmedidas da polícia, conforme
próprio corpo policial se resguarda no visualizamos na última cena narrativa
uso da violência a partir desse discurso: que trazemos para ilustrar a
“raciocínio similar aparece também no representação da lógica capitalista –
campo da ação policial. Violência seria exemplificada na pessoa de João Romão
um útil modo de controle. Agredir – em detrimento do argumento proletário
pessoas, matá-las, essas ações teriam fadado ao fracasso da pobreza:
uma função: mostrar, de acordo com essa
O ‘Cabeça-de-Gato’ estava
perspectiva, que a sociedade está vencido finalmente, vencido para
sempre; já ninguém se animava a
protegida” (GINZBURG, op. cit., p. 83). comparar as duas estalagens. À
medida que a de João Romão
Trata-se de uma constante vigilância e
prosperava daquele modo, a outra
punição. Como Michel Foucault decaía de todo; raro era o dia em
que a polícia não entrava lá e
assevera, baldeava tudo aquilo a espadeirada
de cego. Uma desmoralização
completa! Muitos cabeças-de-gato
desde que funciona o novo sistema viraram casaca, passando-se para
penal – o definido pelos grandes os carapicus, entre os quais um

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homem podia até arranjar a vida, existem socialmente como sistemas


se soubesse trabalhar com jeito em
tempo de eleições (AZEVEDO, simbólicos sancionados” (idem, p. 142).
op. cit., p. 184)
O elemento simbólico que
Mais uma vez, a polícia age com organiza a instituição policial, conforme
violência e agressividade, entretanto, descrito na obra de Aluísio Azevedo,
aqui fica claro o partido que toma. Em desvenda o argumento de um discurso da
prol de uma ética burguesa que violência, exposto em diversos trechos,
desqualifica humanamente os os quais analisados por nós, que
socialmente desfavorecidos, relega-os à demonstram a estrutura repressora dessa
marginalização através do mecanismo instituição, vinculada a uma lógica, a
discursivo da violência. Esse viés, qual estabelece um confronto de
permite-nos asseverar que existe uma ideologias: a burguesa – vencedora – e a
relação de ordem simbólica entre esta proletária – manifesta por meio de ranços
obra e o nosso tempo vivido. de ódio e vingança.
A obra é esclarecedora ao apontar, por
CONCLUSÃO um lado, a espécie de solidariedade
Como o filósofo Cornelius Castoriadis coletiva que se instaura entre os
discute, a noção do simbólico constitui habitantes do cortiço que pelo viés
um dos vetores da instituição: “tudo o histórico se conserva hoje entre boa
que se nos apresenta, no mundo social- parcela dos habitantes das favelas, e por
histórico, está indissociavelmente outro lado, um espírito de ódio e
entrelaçado com o simbólico” violência em vigor entre estes mesmos
(CASTORIADIS, 1982, p. 142). Ainda habitantes que os contrapõem
que tudo que margeia a realidade e faz ideologicamente a este específico
parte da realidade não seja aparelho repressivo de Estado: a
irremediavelmente símbolos, diz instituição policial.
Castoriadis que mesmo nessas condições Tais relações simbólicas sobre um
“uns e outros são impossíveis fora de discurso da violência dispostas na obra,
uma rede simbólica” (idem, p. 142). apontam-na como precursora, dentro do
As instituições estão permeadas pelo espaço literário, na construção de um
simbólico, e isso parte em primeiro imaginário social que persiste, hoje, nas
lugar, da linguagem: “uma organização favelas. É obra que norteia no espaço
dada da economia, um sistema de direito, literário a formação sócio-histórica das
um poder instituído, uma religião primeiras comunidades marginalizadas,

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GENEALOGIA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O CORTIÇO:
A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DISCURSO DA VIOLÊNCIA NO ESPAÇO DAS
FAVELAS

no arranjo simbólico do espaço polícia e os moradores (bandidos,


periférico das metrópoles. delinquentes, vagabundos) das favelas,
É visualizável que nessa narrativa, as vínculo de um discurso de violência que
confluências sociais postas, amalgama ambas as contrapartes. Uma
testemunham um imaginário surgido no investigação aprofundada dessa
tédio deste longo século XIX e que hoje narrativa, por meio das pistas que
se conserva na geografia social das correlacionamos, pode apontar as
favelas: o permanente estado de ódio e origens dessa violência manifesta, a qual
vingança alimentado pelas vicissitudes assombra o nosso momento
de seus modos de agir entre o corpo de contemporâneo.

REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado: notas sobre os aparelhos
ideológicos do estado. Tradução Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de
Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: HARBRA, 2009.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5 ed. Tradução Guy
Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e
dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 9-15; 119-202.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.
Tradução Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete.
42 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas: Autores
Associados, 2012.
STEINER, George. O grande ennui. Em: No castelo do Barba Azul: algumas notas para
a redefinição de cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 11-36.

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