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Jucelino de Sales1
ABSTRACT: We will discuss in this article the symbolic relations about a discourse of
violence, permeated in the novel O cortiço, precursor in the construction of a social
imaginary that persists today in the slums; novel that guides the socio-historical formation
of the first marginalised communities in the literary space the socio-historical formation
of the first marginalised communities, in the symbolic arrangement of the peripheral
space of the metropolises. According to Gilbert Durand (1998), the contents of the
imaginary are born in the temporal flow, “os quais recebem suas estruturas e seus valores
das várias ‘confluências’ sociais” (1998, p. 96). Taking the space of the slum as analogous
to the microspace of the favelas, the comprehension of the discourse of violence from the
literary discourse present in the work can: 1) clarify the relationship of conflicting order
between tenements (i.e., favelas), 2) elucidate the clash between police force
(unmeasured) and community.
1
Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade de Brasília (UnB). Professor da literatura da
Universidade Estadual de Goiás (UEG), Câmpus Formosa. E-mail: disallesart@hotmail.com
INTRODUÇÃO
Esse artigo é resultado do projeto em que com a Lei Áurea sancionada,
Silêncios, fraturas e interditos na gerará um pudendo contingente
representação de sujeitos da literatura populacional de massa trabalhadora
brasileira: o discurso e sua sombra que desempregada que sofrerá o êxodo rural
realizamos na UEG – Câmpus Formosa. e nas cidades, essa nova massa
Na abordagem, investigamos a presença trabalhadora, será relegada à
arraigada de um discurso – o discurso da marginalização geográfica.
violência – em nosso mundo atual, no Em linhas gerais, o enredo narra a
que tange a realidade brasileira, a partir história do português João Romão
de uma geografia específica – a favela, e entrelaçada a da negra Bertoleza e trata
buscamos compreender como esse da construção de um cortiço e das
discurso, em sua configuração urbana, histórias e vivências humanas que se
foi gestado no espaço literário na obra O enredarão nesse espaço.
cortiço de Aluísio Azevedo, e em que Nosso propósito é observar e analisar
bases sociais e psicológicas sua estrutura presenças da violência em O cortiço e
se constituiu. levar à percepção como essa violência se
A presença, em vigor, da violência na constrói na narrativa literária para
sociedade contemporânea, é fato notório entendermos como um imaginário
e constitutivo. Com isso, a compreensão social, a respeito da economia simbólica
e interpretação dessa relação coetânea da violência que se faz hoje presente no
através do viés literário apresenta-se espaço da favela, encena suas origens no
como um percurso importante na decorrer do longo século XIX e pode ser
tentativa de estabelecer compreensões fruto daquele grande ennui – sentimento
sobre a sociedade atual e, no caso do de tédio sobre o qual o crítico George
Brasil, as comunidades que residem nas Steiner revela sua gramática. Steiner
áreas geográficas conhecidas como denomina este século como o berço da
favelas. modernidade, o qual evoca como “mito
A obra na qual estabelecemos a do século XIX ou jardim imaginado da
abordagem, O cortiço, faz parte da cultural liberal” (STEINER, 1991, p.
chamada estética naturalista e descreve 15). Sua “tese é que certas origens
acontecimentos que se passam na específicas do inumano, das crises de
segunda metade do século XIX; época nosso próprio tempo que obrigam a uma
pode revestir-se de formas não físicas)” acoito para vagabundos. Seu espírito e
(idem, p. 68). sua atitude burguesa o impele a tratar os
Há, dessa maneira, uma suposta desajustados socialmente com a
idoneidade estabelecida pelo Estado que arrogância de um proprietário –
legitima, por um processo ideológico arrogância esta capitalista, onde não cabe
permissivo, a atuação legítima do corpo o discurso solícito do amparo social, mas
policial em ações que podem equivocar- o desamparo manifesto cuja lógica
se até no uso desnecessário e indevido da terrível é a intervenção policial e não a
violência. intercessão de uma instituição adequada
Na obra, duas situações ocorridas no que neste caso seria a médica clínica
capítulo X, ilustram dois âmbitos dessa psicanalítica: “o soldado saiu e, daí a
relação: por um lado, a vicissitude de coisa de uma hora, Marciana era
acorrer à polícia por força de um pacto carregada para o xadrez, sem o menor
burguês em que esta instituição é protesto e sem interromper o seu
convocada a partir de um estatuto de monólogo de demente. Os carcaréus
benevolência e de concordância com a foram recolhidos ao depósito público por
sua atuação, enquanto que, por outro ordem do inspetor do quarteirão”
lado, seu ingresso no cortiço é negado, (AZEVEDO, 2009, p. 106).
em detrimento de um acordo A moral burguesa aqui que legitima um
comunitário que – ainda que reprimindo discurso de violência contra os
a violência provocada através do próprio desajustados e oprimidos, é logo
argumento da violência – renega a substituída noutro episódio, expresso no
violência policial, intentando resolver mesmo capítulo, que trata de uma briga,
seus problemas humanos e sociais por efervescências sentimentais e
fechando-se, a partir de uma política de amorosas, entre Jerônimo e Firmo,
solidariedade comunitária, no seu moradores do cortiço e envolvidos com a
próprio espaço social. Rita Baiana.
Na primeira situação, João Romão O duelo violento com desferimento de
invoca um soldado que entrara socos e jorro de sangue gerou enorme
encharcado de chuva em sua venda para pancadaria envolvendo outros
retirar dali a moradora Marciana, a qual inquilinos. Tornou-se disputa
aponta como “gira” ou seja, demente, generalizada provocando a chegada da
pois o cortiço, na justificativa dele, não é brigada policial, que desfere pancadas no
Um ódio antigo, compartilhado por meio A vingança das praças, à qual o narrador
da solidariedade coletiva, move o faz alusão, aponta aquele sentimento de
comportamento dos habitantes do insatisfação e ódio instalado entre estas
cortiço a impelirem contra o aparelho instâncias que gestam seus espaços de
policial, detentor da legitimidade estatal, confluência no ritmo do longo século
e se defenderem contra a maneira XIX: a burguesia e o proletariado. Como
repressiva que este aparelho impõe ao Althusser explica “todos os aparelhos
adentrar esse microespaço. O que ideológicos de Estado concorrem para o
justifica o motivo por que criaram mesmo resultado: a reprodução das
normas internas, uma vez que tinham a relações de produção, isto é, das relações
necessidade de se protegerem da polícia, de exploração capitalista”
porque ela aplicava a lei de maneira (ALTHUSSER, op. cit., p. 31). O
violenta e destruidora. Em contrapartida, filósofo aponta que “cada um deles
a polícia, sabendo dessa aversão que os concorre para esse resultado de uma
moradores do cortiço tinham por eles, maneira que lhe é própria, isto é,
também temia adentrá-lo. submetendo (sujeitando) os indivíduos a
Mas, enfim, o portão cede, e os uma ideologia” (idem, p. 32), onde em
habitantes do cortiço serão violados pela sua sintaxe discursiva “esse concerto é
primeira vez, desonrados na superfície dominado por uma partitura única, a
de seu próprio espaço coletivo de ideologia da classe dominante” (idem, p.
convívio: 32).
Após o massacre do aparelho
fez-se logo
medonha confusão. Cada qual policial, escangalhando e arrasando o
pensou em salvar o que era seu. E
os policiais, aproveitando o terror espaço interno do cortiço, João Romão e
dos adversários, avançaram com
outros inquilinos tiveram de
ímpeto, levando na frente o que
encontravam e penetrando enfim “comparecer à presença do subdelegado
no infernal reduto, a dar
espadeiradas para a direita e para a na secretaria de justiça” (AZEVEDO,
esquerda, como que destroça uma
boiada. A multidão atropelava-se, op. cit., p. 112), para prestar, em
desembestando, num alarido. Uns
fugiam à prisão; outros cuidavam depoimento, os devidos esclarecimentos.
em defender a casa. Mas as praças,
A resistência foi justificada com o
loucas de cólera, metiam dentro as
portas e iam invadindo e clamor de um coro de vozes, apontando
quebrando tudo, sequiosas de
REFERÊNCIAS
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ideológicos do estado. Tradução Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de
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