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41º Encontro Anual da Anpocs

GT34 - Urbanidades possíveis nos múltiplos usos da rua

Direito a cidade e as experiências das mulheres no espaço urbano

Camila Carolina Hildebrand Galetti

Caxambu, 2017.
Introdução

O presente texto busca fazer uma reflexão sobre a insegurança que as mulheres
brasileiras sentem nos espaços urbanos. A maneira de se pensar o espaço público e
consequentemente políticas de segurança pública, não leva em consideração as
necessidades dessas. Pode-se afirmar que as cidades são projetadas tendo como
parâmetro os papéis socialmente construídos: para as mulheres, o espaço doméstico,
privado, reprodutivo; para os homens, o público, produtivo. Assim, ao disfrutar do
espaço público, as mulheres, principalmente as que circulam pelas ruas a pé ou que
dependem de transporte público, se deparam com recorrentes sentimentos de
insegurança, medo de sofrerem assédio ou violência, e tais sentimentos alcançam
principalmente as que estão em situação de pobreza e trabalhadoras que utilizam de
transportes públicos ao se locomoverem.

As estruturas urbanas juntamente com as desigualdades de gênero propiciam


instabilidade, porém, não são as únicas responsáveis por tal realidade. O poder público e
consequentemente as políticas públicas, precisam considerar os fatores sociais que
tornam certos grupos, como as mulheres, vulneráveis à violência. No Brasil, em um
primeiro momento as políticas de segurança pública são associadas ao combate de
violência letal, mais especificamente aos homicídios. Seu controle e redução representa
um desafio pelo qual diversos atores sociais têm se engajado, gestores públicos,
pesquisadores, organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Leis e políticas
específicas no país que tratem da questão da violência contra as mulheres em espaços
públicos ficam em segundo plano no que tange as políticas de segurança pública.

Cabe ressaltar que, as práticas cotidianas das mulheres são produto das relações
de gênero, as discriminações e desigualdades nessas construções resultam da ordem
patriarcal, que separa as esferas públicas e privadas, fazendo com que a vivência da
mulher no espaço urbano seja diferenciada do homem, expressando-se nos sentimentos
de medo e insegurança que fazem com que essas adotem táticas que acabam as
excluindo desses espaços. Com isso, movimentos feministas organizam-se e questionam
a violação de seus direitos no cotidiano.

2
Nos estudos de criminologia e sociologia da violência, segundo Elena Larrauri
(2000) apenas na década de 1980 por meio da criminologia crítica1 houve a aparição da
vítima, mais especificamente a mulher. As mulheres eram vítimas invisíveis, e a entrada
de mulheres no mundo dos homens criminólogos, contribuiu para ampliar o objeto de
estudo da criminologia crítica. Nós não só vivemos numa sociedade capitalista, como
também patriarcal e tal fato não deve ser ignorado nesta seara. Com isso, deu-se uma
perspectiva feminista à criminologia, permitindo compreender a lógica androcêntrica
que define o funcionamento das estruturas de controle punitivo. Ao trazer a perspectiva
das mulheres para o centro dos estudos, a criminologia feminista denunciou as
violências produzidas pelo sistema penal central no ‘homem’ (androcêntrico)
(CAMPOS; CARVALHO, 2014), contribuindo para seja dada visibilidade à violência,
as lacunas na aplicação e execução de leis, dentre outras questões que serão tratadas no
decorrer deste artigo.

Nesse sentido, vale ressaltar o fato de como a violência e o medo social podem
alterar a arquitetura urbana, segregando e discriminando grupos sociais, modificando
significativamente as formas de sociabilidade e o cotidiano de vida das pessoas, bem
como o modo de agir (BAIERL, 2004). No que diz respeito às mulheres, esse medo
social ainda é mais candente, dificultando e limitando as formas de sociabilidades
dessas, pois os medos vividos são diferenciados, a exposição no espaço urbano dessas
proporciona uma vulnerabilidade maior, há o que se pode considerar como um medo
concreto, gerador de insegurança.

Desta forma, busca-se compreender e problematizar a teia de relações tecidas


nos espaços públicos, potencializadas pelo medo – decorrente de casos de estupros,
violências contra mulheres que acontecem com frequência.

1
Estrutura-se originalmente como discurso de denúncia e se consolida posteriormente como
perspectiva político-criminais. A criminologia crítica possibilitou que o foco de análise
criminológico fosse ampliado da visão atomizada no criminoso, próprio da (micro) criminologia
etiológica, para os mecanismos institucionais que definem os processos de criminalização. Com
a crítica criminológica, o próprio sistema de punitividade passa a ser o objeto de investigação,
sobretudo os mecanismos seletivos de definição das condutas puníveis (criminalização
primária), os critérios desiguais de incidência das agências de controle sobre as populações
vulneráveis (criminalização secundária) e os instrumentos perversos que transformam a
execução das penas em fontes de reprodução de estigmas. (CAMPOS; CARVALHO, 2014).

3
Garantir que o espaço urbano seja acessado por homens e mulheres de maneira
igualitária, é um desafio na contemporaneidade. Nas discussões que tangem o direito à
cidade, as práticas cotidianas de apropriação e reapropriação dos espaços, estão em
pauta tais questões, pois nessas relações ocorrem transformações nas práticas, nas
noções de cidadania, e principalmente é dada visibilidade aos direitos coletivos das
mulheres em relação à cidade, esses que são violados cotidianamente em suas vivências.

Tendo em vista os aspectos mencionados, o esforço desse artigo é de


problematizar a relação das mulheres com os espaços públicos, ressalta-se que há
poucas políticas públicas que visibilizem as violências cometidas às mulheres nos
espaços públicos, pois o que existe são mecanismos legais que preveem a punição a atos
que atentem contra a vida, liberdade e igualdade de qualquer cidadão- entendendo que
homens e mulheres são iguais perante o Estado brasileiro. O empenho se consiste em
analisar brevemente tais questões ressaltas acimas, tendo como fio condutor os corpos
feminismos, os espaços urbanos e a criminologia feminista, sabendo que a produção
acadêmica no que tange o assunto com recorte de gênero é escassa no Brasil, e que não
há dados existentes sobre os padrões de mobilidade urbana, principalmente pelo fato de
que há uma leitura de que qualquer melhora na mobilidade serviria igualmente para
homens e mulheres, o que dificulta a luta por políticas específicas para as mulheres,
dentro do contexto social local.

Por meio de análise dos dados mencionados no Mapa da violência de (2015),


Pesquisa Nacional de Vitimização (2013), e da Pesquisa Cidade Segura (2011), será
analisado como se têm caracterizado as violências contra as mulheres nos espaços
públicos e as porcentagens das mesmas, tendo como foco a sensação de insegurança,
amparada na criminologia feminista, teorias feministas e sociologia urbana.

2. Direito à cidade: um direito de todas?

Direto à cidade é um direito coletivo onde os interesses comuns se sobrepõem


aos interesses particulares a fim de que todas/os que nela habitam, usem e possam
usufruir de maneira digna o espaço urbano. O direito inclui não apenas o uso dos
espaços já existentes, mas em definir e criar o que deveria existir conforme as
necessidades vitais humanas com participação democrática do ambiente urbano
(HARVEY, 2003). Segundo Jacobi (1986), “O direito à cidade representa, acima de

4
tudo, pensar uma cidade democrática, uma cidade que rompa as suas amarras com o
passado”, e que seja acessível a todas/os.

Para Harvey (2003), nós moldamos a cidade e a cidade nos molda. A cidade não
é um cenário estático, é um organismo dinâmico que constrói os valores da sociedade.
Conhecer e utilizar o espaço da cidade é o direito de apropriar-se dos espaços públicos,
as práticas cotidianas de apropriação e reapropriação desse espaço transformam-no no
meio através do qual se produz a noção de cidadania. Essa noção é produzida de
maneira desigual na cidade, pois no cotidiano percebe-se que todas as pessoas que
vivem na cidade não podem usufruir dela da mesma maneira. Pedro Jacobi (1986) relata
que:

Todas as pessoas que vivem na cidade são cidadãos? Não é bem


assim. Na verdade, todos têm direito à cidade e têm direito de se
assumirem como cidadãos. Mas, na prática, da maneira como as
modernas cidades crescem e se desenvolvem, o que ocorre é uma
urbanização desurbanizada. [...] Direito à cidade quer dizer direito à
vida urbana, à habitação, à dignidade. É pensar a cidade como um
espaço de usufruto do cotidiano, como um lugar de entro e não
desencontro (p.22).

Jacobi relaciona o direito à cidade a uma questão democrática, em que relações


de poder são desafiadas, e não apenas ao direito a moradia, a casa, mas sim no sentido
de ser cidadão pleno ao circular na cidade, tem direito de maneira democrática. A
cidadania não é uma condição adquirida ou garantida de uma vez por todas e para
todas/os, mas sim “um processo instituído” de forma conflituosa e desigual, que precisa
ser continuamente conquistada e reassegurada (WACQUANT, p.39, 2005).

Apesar dos autores citados não problematizarem a noção de cidadania no que


tange às mulheres, pode-se fazer uma relação de como essas não são contempladas por
tal noção, ocasionando assim questionamentos pela literatura feminista. A noção de
cidadania mostra como as mulheres têm sido discriminadas nos espaços desde o lar
(esfera privada) aos espaços urbanos (esfera pública).

Ao analisar o direito à cidade, questionando a noção liberal de cidadania, é


necessário considerar identidades diferentes que habitam no contexto da cidade. Uma
multiplicidade de corpos, que incluem combinação de identidades sociais, como gênero,
raça, classe social, etnia, religião, orientação sexual, capacidades físicas, e outros fatores

5
que se entrelaçam e podem contribuir para uma vivência desigual que resulta em
discriminação e violência de acordo com o sistema de poder e opressão que as afetam,
principalmente numa desigualdade de gênero, tendo em vista que as mulheres
encontram-se mais vulneráveis a violências no espaço público. Os direitos coletivos das
mulheres em relação à cidade são violados cotidianamente.
A preocupação por parte das mulheres ao risco de violência sexual faz com que
elas evitem usar certos serviços e transitar por lugares que consideram perigosos é
grande, limitando assim sua mobilidade em função desse medo. Essas medidas estão
ligadas, principalmente, à infraestrutura urbana e ao transporte público que não são
pensados na segurança das mulheres que correm risco de violência em locais escuros,
com falta de iluminação adequada nas ruas e parques, além da recorrente redução do
serviço de transportes em determinados horários, aumentando a insegurança à noite.
Segundo a pesquisa “Cidades Segura”, entre as mulheres que estudam 27,5%
afirmam ter sofrido algum tipo de assédio, muitas delas relatam que a distância do
trajeto da casa à escola, a demora do transporte público, estudar no turno da noite e falta
de transporte escolar são fatores importantes para insegurança 80% dessas mulheres
relataram sentir medo de esperar os ônibus sozinhas.
Segundo o relatório As mulheres e a cidade2,

Há uma grande dificuldade de se pensar a violência contra a mulher


em espaços urbanos no Brasil. Apesar da importância do tema ser
reconhecida, há uma forte tendência a associar a questão da violência
de gênero ao âmbito doméstico. Ainda não temos leis e políticas
específicas no país que tratem da questão da violência contra as
mulheres em espaços públicos. O que existe são mecanismos legais
que preveem a punição a atos que atentem contra a vida, liberdade e
igualdade de qualquer cidadão – entendendo que homens e mulheres
são iguais perante o Estado Brasileiro (2011).

Para quase metade das mulheres, o medo está presente dentro do transporte
público, muitas já foram assediadas utilizando este serviço, em geral a precaução que
tomam é evitar sentar nos bancos de trás do ônibus3. O medo da violência nas ruas

2
Como resultado do projeto piloto Cidades Seguras para as Mulheres, a ActionAid
Internacional produziu os relatórios As Mulheres e a Cidade (2011) e As Mulheres e a Cidade
II: examinando o impacto de gênero sobre a violência e urbanização (2012), que estão
disponíveis em: http://www.actionaid.org.br/publicações
3
Fonte: Pesquisa cidade segura para as mulheres, organizada pela ActionAid Brasil e suas
organizações parceiras (2014).
6
levaram essas mulheres, principalmente as pertencentes à classe trabalhadora, a mudar a
forma de se vestir, 40% delas deixaram de usar certos tipos de roupa. Lembrando que,
mesmo dentro dos ônibus e metrôs/trens, as mulheres são assediadas, constrangidas e
violentadas. Em algumas cidades do Brasil, a partir de 2014, lei que destina vagões de
trens e metrôs exclusivos para mulheres entrarem em vigor, as leis surgiram como
respostas a casos de assédio sexual contra mulheres no transporte público. Inicialmente
disponíveis exclusivamente em horários “de pico”, ou seja, ida e volta ao trabalho, logo
após, em algumas cidades como Brasília/DF, os vagões exclusivos para as mulheres
passaram a funcionar tempo integral, o que não acabou totalmente com o problema, pois
as mulheres continuam sofrendo abusos dentro do metrô.
Outra Lei implantada no Distrito Federal e em outras capitais como São Paulo
desse mesmo viés, é a Lei que tem como iniciativa assegurar às mulheres o direito de
descer fora do ponto de ônibus após as 22 horas. A discussão sobre o tema está
principalmente embasada nos dados obtidos pela Organização Mundial de Saúde e do
IBGE, que colocam o Brasil na sétima posição do ranking mundial de assassinato de
mulheres. Tal Lei entrou em vigência em muitas capitais, pois na maioria dos casos é no
trajeto do ponto de ônibus até sua casa que estão os índices de estupros e mortes de
mulheres aumentam.
O recorte de gênero, raça e classe está totalmente imbricado nessa discussão e
realidade, e no que se refere às mulheres negras a violência é mais candente. São muitas
as situações de violência às quais elas são expostas. Segundo o Dossiê Mulheres Negras
– retratos e condições de vida das mulheres negras no Brasil (2013), “multiplicando-se
os riscos de vitimização na experiência das violências originárias tanto da estrutura
patriarcal quanto do racismo brasileiras, localizando as mulheres negras na dicotômica
situação de sofredoras nas suas representações essencializadas atualmente”. As
representações conferidas às mulheres negras deixam-nas expostas a maiores riscos de
violência, seja física, seja sexual. As negras são mais de 60% das vítimas de
feminicídio, exatamente porque não contam com assistência adequada e estão mais
vulneráveis aos abusos das próprias autoridades.
O fato das mulheres negras ocuparem os piores postos de trabalho corrobora
também para que suas jornadas de trabalho sejam mais extensas, as trabalhadoras se
distanciam de seus lares e filhos para que possam prover sustento, consequentemente
em sua maioria utilizam transportes públicos no trajeto de retorno para suas casas em
horários tardios, principalmente em zonas/bairros considerados perigosos.

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Em 10 anos, de acordo com o último Mapa da violência, do governo federal do
Distrito Federal, a vitimização entre as mulheres negras no Brasil cresceu 54,2%,
enquanto o homicídio das brancas caiu 9,8%, e os assassinatos contra as mulheres
negras passaram de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Os dados mostram que a
vulnerabilidade e o feminicídio tem raça.
Tais fatores, limitam a mobilidade da mulher negra, e seus corpos são marcados
como violáveis, sendo vulneráveis a violências sexuais quando circulam nesses espaços
e, além disso, exige uma interpretação mais complexa a respeito da vitimização das
mulheres negras, ao considerar os múltiplos fatores que estão imbricados, e as diferentes
opressões sofridas. Segundo Nadja Monnet (2009, p. 15), o corpo feminino nas cidades
ainda é um “corpo estrangeiro”, apesar de cotidianamente circular. Sua aparição pública
recorrentemente marca a emergência de uma coletividade “estranha” aos modelos
sexistas estabelecidos na vida social – seja pelo “desconforto” causado por sua
presença, seja pela “desconfiança” em relação aos seus interesses políticos. Dessa
perspectiva, as práticas corporais são tratadas como algo a ser observado ou violado
quando ocupa lugares que não são destinados a ele.
Segundo a Pesquisa Nacional de Vitimização (2013), quando enfocado o
sentimento de segurança nas ruas, 54,9% dos homens afirmam se sentir seguros, já as
mulheres, apenas 30,2% se sentem seguras. Outro fator relevante na pesquisa é que
entrevistas/os com mais anos de estudo e os de classe mais elevada tendem sentir mais
segurança. Tais dados demonstram como as desigualdades de gênero se imprimem nas
relações entre mulher e mobilidade urbana, ocasionando em sensações de insegurança
nas diversas circunstâncias: em relação ao bairro onde mora, locomoção via transporte
público, circulação em praças, ruas de dia e principalmente de noite, dentre outros
ambientes.
Assim, percebe-se que as mulheres são impossibilitadas de desfrutarem
plenamente dos espaços urbanos principalmente por medo e insegurança de sofrerem
assédio e violência, a associação com o espaço privado é ainda tão presente que
impossibilita ou dificulta pensar em medidas, leis que assegurem o direito de
transitarem nos espaços urbanos com segurança. Nesse sentido, as dimensões de
privado versus público têm sido ainda mais problematizadas por movimentos de
mulheres ou feministas, no sentido de reivindicar direitos e dar visibilidades às
violências sofridas.

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2.2 Dimensão privado x público

O espaço público não foi dado às mulheres, mas sim conquistado. A partir da
década de 1970, com a articulação de movimentos de mulheres e feministas, a ocupação
desse espaço esteve ainda mais em evidência e a problematização da redução das
mulheres ao espaço privado foi questionada por essas incansavelmente. Hannah Arendt
em A condição humana (1997), afirma que a vida pública é valorizada, pois, pode
significar a expressão máxima de liberdade e como potencialidade de desenvolvimento
coletivo.

Assim, ao ocupar o espaço público as mulheres estão configurando novas formas


de sociabilidade, desenvolvendo-se coletivamente, questionando como se dá a
mobilidade urbana e com isso, trazendo à tona os problemas que estão imbricados ao
ocupar esse espaço, principalmente pelo fato de sempre serem associadas à dimensão
privada.

A polarização patriarcal entre privado e público historicamente foi disseminada


pela burguesia. A cidadania, o domínio público das atividades públicas era aplicadas
apenas aos homens, pois eles estariam aptos para circular em tais espaços, seus
movimentos não eram restritos, além de poder exercer atividades políticas. Segundo a
historiadora Michelle Perrot, “A esfera pública, por oposição à esfera privada, designa o
conjunto, jurídico ou consuetudinário, dos direitos e deveres que delineiam uma
cidadania; mas também os laços que tecem e fazem à opinião pública”, (1998, p.7-8), tal
era a reflexão sobre a construção que permeou a relação das mulheres com o espaço
público e político do início do século XX.

Na explicação de Perrot, o papel da mulher na vida pública sempre foi cheia de


tensões. No mundo ocidental moderno, que construiu a cidadania como um princípio e
um valor supostamente universal, as separações das esferas públicas e privadas
organizaram a divisão racional dos papéis, das tarefas e dos espaços. As mulheres têm
sido vistas como “naturalmente” inadequadas à esfera pública, seus movimentos são
restritos, elas ficam dependentes dos homens e subordinadas à família (OKIN, 2008).

Sofia Aboim (2012) ressalta que

A separação entre público e privado, florescente entre as camadas


burguesas das cidades industriais do século XIX, serviu, de fato, para
afastar homens e mulheres, delimitando-lhes espaços e funções

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sociais. Enquanto as qualidades ontologicamente atribuídas ao privado
permaneceram associadas ao feminino e às suas propriedades
maternais e afetivas, a esfera pública – da produção industrial e da
cidadania política – ficou ligada ao masculino, reproduzindo-lhe a
supremacia e o lugar de chefe de família (Boim, 2012, p.99).

Essa conjuntura mudou de certa forma ao longo do século XX, principalmente


com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, ainda mais candente no período
da Segunda Guerra Mundial, quando os maridos, homens foram à guerra, as mulheres
foram recrutadas às fábricas pelo déficit de mão-de-obra. Porém, ainda no mundo
ocidental, o sistema patriarcal, onde o ideal de família burguesa se reproduzia tão bem,
não tem cessado de sofrer reveses, à medida que mulheres derrubam fronteiras e
alcançam conquistas em espaços que antes, pelo menos idealmente, não lhes eram
destinados. Os direitos sociais das mulheres no século XXI vêm progressivamente
legitimando as mulheres no espaço público, e, além disso, a crítica elaborada pelo
movimento feminista contribuiu largamente para desconstruir visões do público e do
privado como esferas neutras;

Pelo contrário, mostrou que é nessa relação que as desigualdades de


gênero são produzidas. Em segundo lugar, para além de descobrir o
caráter generificado do binómio público–privado, um dos pontos
fortes da argumentação feminista consistiu em chamar a atenção para
a forma como o privado foi desvalorizado na construção política das
sociedades. Por conseguinte, fazer do privado – domínio privilegiado
de uma ordem de género patriarcal que pressupõe como sabemos, a
dominação do masculino sobre o feminino – um assunto público é
tarefa essencial no processo de obtenção de igualdade social (Boim,
2012, p.106).

Nesse sentido, a aplicação do termo “público”, segundo uma perspectiva de


gênero encerra alguns paradoxos interessantes. Ao homem público correspondia a
virtude cidadã; à mulher pública, o estigma da desonra por oposição à mulher privada,
pura e honrada.

Assim, a retomada da discussão a respeito dos espaços públicos e privados, suas


desigualdades de gênero, têm sido feita na contemporaneidade principalmente no
sentido de problematizar como o Estado, a sociedade tem de certa forma reagido com a
ocupação das mulheres em tais espaços, como tem se dado à mobilidade urbana das

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mulheres, e principalmente as violências sofridas. Com isso, percebe-se que as leis e
mecanismos específicos são muito recentes, como por exemplo: a Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/06); a criação de Delegacias Especializadas no Atendimento a Mulheres
(DEAMs) e sua incorporação como política pública; a reforma da legislação com a
inclusão da violência doméstica como circunstância agravante ou qualificadora de
crime, a lei do feminicídio, leis que foram frutos do esforço dos movimentos de
mulheres no Brasil no campo jurídico. Tais alterações foram singulares sem dúvida,
proporcionando maior visibilidade, porém no que tange leis específicas referentes às
mulheres no espaço público, ainda carece de avanços.

Pensar as mulheres como sujeitos, cidadãs aptas para se locomoverem no espaço


público com segurança, levando em consideração a dicotomia privado versus público,
torna-se um desafio, tendo em vista que, verifica-se uma lentidão na incorporação de
recortes de gênero e a problematização de como a cidade é vivenciada nas produções
acadêmicas que tangem a sociologia urbana, sociologia da violência e afins.

Com isso, problematizar a questão da segurança pública e mulheres, a relação


dessas com o medo social, sentimentos constantes de insegurança, poderá ajudar a
compreender algumas das dificuldades enfrentadas ao ocupar o espaço urbano, os
mecanismos que estão sendo pensados e utilizados para inibir violências e
principalmente a resposta por parte de movimentos feministas, coletivos feministas na
contemporaneidade a estas questões, pois tais movimentações têm sido recorrentes
principalmente pelo número exacerbado de estupros, abusos, violências físicas e
assédios morais que ocorrem cotidianamente nos espaços públicos.

3. Sensação de segurança das mulheres

Os estudos de violência urbana têm se debruçado sobre os temas de medo social,


sensação de insegurança e também ao conceito de pânico moral 4, dentre outros aspectos
com a intencionalidade de compreender como tais fenômenos estão presentes nas vidas
dos indivíduos, modificando suas relações sociais.

4
Conceito utilizado pelo sociólogo Stanley Cohen em seu estudo no estudo Folk Devils and
Moral Panics (1972), que designa o papel da mídia hegemônica que distorce contextos sociais,
ou que estão fora de seus padrões criando a imagem de “demônios populares”, o que resulta em
uma reação desproporcional dessa mesma sociedade, ocasionando um pânico moral.
11
No que tange o medo, vale ressaltar que esse é um sentimento constante vivido
pelas pessoas que circulam cotidianamente no espaço urbano e principalmente em
espaços considerados violentos, nos termos utilizados por Wacquant (2005) “regiões-
problemas”, locais onde têm ou se crê que tenham excesso de crimes, violência e
desintegração social, como periferias, guetos, favelas. Nesses lugares há uma ausência
de segurança, rejeição das instituições e do Estado, ocasionando em estigmatização,
abandono onde o recorte de classe e raça se encontra inscrito nesses locais. O pânico
moral nessas “regiões-problemas” pode ser considerado maior devido a inúmeros
fatores como a marginalização econômica, dificuldade de acesso, falta de transporte
público que supra com as necessidades da população, para Wacquant (2005) tais lugares
são considerados desprezados do qual todo mundo quase está tentando escapar.

A violência urbana é um fenômeno sócio histórico complexo e multifacetado,


produto da sociedade desigual que traz em suas estruturas formas de violência
(BAIERL, 2008, p.150), resultando no sentimento de medo social, que não é algo novo,
ele sempre percorreu a vida das pessoas na sociedade. O medo social é produto de uma
sociedade violenta e das formas como se constroem as relações de poder e as formas de
sociabilidade, afetando assim não apenas as pessoas na sua vida pessoal, mas, sobretudo
no seu trabalho, nas suas práticas e circulação dessas.

O medo (individual) é uma emoção de choque, frequentemente


precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um
perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação.
Colocado em estado de alerta, o hipotálamo reage por uma
mobilização global do organismo, que desencadeia diversos tipos de
comportamentos somáticos e provoca, sobretudo, modificações
endócrinas (Delumeau, 1996, p.23).

Não se pretende aqui reduzir o medo a reações puramente físicas e biológicas,


até porque o medo está vinculado fundamentalmente às noções de espaço e tempo
(BAIERL, 2008) e também as desigualdades de gênero, deixando mulheres mais
propensas a sentirem medo, devido ao fato de sempre estarem expostas ao perigo, a
ameaça, e principalmente ao medo de violação de seus corpos, diferenciando assim o
sentimento de medo entre homens e mulheres. Enquanto homens ao circularem nas ruas
possuem medo de serem roubados, mulheres sentem medo de serem violentadas,
estupradas.

12
O medo social se gesta em um contexto em que o Estado, cada vez mais, não
consegue assumir para si seu papel legítimo de garantir e manter o “Estado de Direito”5
(BAIERL, p.26, 2004), ou seja, isso contribui cada vez para que haja isolamento das
pessoas, sentimento de insegurança e segregação das mesmas.

Sobre a questão da vitimização, essa já havia sido tema do suplemento da PNAD


em 1988, (Soares 2006). Em 1988, o IBGE realizou a primeira pesquisa com dados
sobre vitimização, em âmbito nacional, a qual representou, durante muito tempo, a
única referência disponível para os (as) estudiosos (as) da violência, ao lado dos dados
de mortalidade do Sistema de Saúde. Essa pesquisa trouxe alguma luz sobre a violência
interpessoal e permitiu, ainda, que se vislumbrassem certos aspectos da violência contra
a mulher principalmente no âmbito privado, pois os questionários foram aplicados nos
locais de residência das vítimas, com todos os cuidados sobre confidencialidade e a
independência de quem o faz (Dossiê Mulheres Negras, p.134, 2013). A pesquisa não
abrangeu a questão da vitimização e violência das mulheres no âmbito público, e
pesquisas de tal caráter são escassas, pois o foco na maioria das vezes é a violência
contra a mulher no âmbito doméstico.

No que se refere ao espaço público e mulheres, descaremos algumas pesquisas


que nos proporciona dados capazes de problematizar a relação da mulher no espaço
público, vitimização e sensação de insegurança, são elas: o Mapa da violência de
(2015), a Pesquisa Nacional de Vitimização (2013), a Pesquisa Cidade Segura (2014) e
a pesquisa #meninapodetudo, (2015) desenvolvida pela agência-escola de comunicação
Énois Inteligência Jovem em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia
Galvão.

Essa última pesquisa citada, relata que de 2.285 mulheres, com idades entre 14 e
24 anos, 77% afirmou já ter sofrido assédio sexual físico e 90% deixaram de fazer
alguma atividade por medo da violência, como sair à noite, usar certas roupas ou
responder a uma cantada. Ou seja, o medo no caso delas não é só por uma questão de
segurança pública, mas por serem mulheres. Essa pesquisa tinha como objetivo o
recorte de gênero, principalmente como o machismo e a violência afetam as mulheres
de classes C, D e E. Um dado interessante dessa pesquisa é que “Rua” foi a palavra

5
Segundo Vieira (2001), o Estado de direito supõe componentes de ordem normativa (a
moralidade e solidariedade), e componentes de ordem instrumental a coerção e o auto interesse).
13
mais citada nas 2.285 respostas às perguntas "A violência contra a mulher aparece em
seu dia a dia? Como?". O espaço público é visto, pela maior parte das entrevistadas,
como um local em que não há segurança ou respeito pelas mulheres, o que resulta em
sentimento constante de medo.

Já a Pesquisa Nacional de Vitimização (2013), realizada pelo Instituto de


Pesquisa Datafolha feita no Brasil, quantificou e caracterizou doze tipos de ocorrências
passíveis de registro policial no país, revelando a taxa de subnotificação, mapeando
incidências e frequências. Os crimes e ofensas contemplados na pesquisa correspondem
a furto, roubo de automóveis, furto de objetos ou bens, sequestros, fraudes, acidentes de
trânsito, agressões, ofensas sexuais e discriminação. O que nos interessa aqui é o que
tange ofensas sexuais e agressões às mulheres. O fato de não haver distinção de gênero
nos resultados finais das taxas de agressões ou ameaças, dificulta a análise, pois é
apresentado apenas o valor total dos casos registrados, como: 12% das/os entrevistas/os
sofreu alguma agressão ou ameaça nos últimos 12 meses, ofensas sexuais totalizam
0,8%.

Um dado interessante ressaltado nos resultados é de que na caracterização dos


crimes contemplados, a maior parte das ocorrências se dá dentro da casa da/o
entrevistada/o (38%) ou em suas proximidades como a rua onde ela/e mora (33%), o seu
bairro (14.9%) ou na garagem da residência (11,1%).

Os casos mais comuns nas ruas são agressões (34,2% dos casos) e ofensas
sexuais (21,7%). Não é explicitado na pesquisa se nesse montante de 21,7% de ofensas
sexuais foram registrados por mulheres. Porém, o fato de que a maioria dos crimes e
ofensas ocorrerem nas proximidades das casas, ruas das/os entrevistadas/os chama
atenção, pois, a maioria dos casos de estupros contra mulheres acontecem no trajeto do
ponto de ônibus a suas casas. A pesquisa relata também que dos crimes estudados, há
alguns em que as vítimas dizem estar andando na rua quando são atacadas. A descrição
é mais frequente entre os que sofreram roubo de objetos (32,1%) e ofensa sexual
(23,7%). O que nos faz relacionar os registros de ofensas sexuais com o gênero
feminino, tendo em vista os locais de ocorrência, o alto índice de violências contra as
mulheres e a questão da vulnerabilidade, na qual as mulheres sobressaem os homens.

Foi analisado o sentimento de segurança das/os entrevistadas/os sob diversas


circunstâncias. Analisando tal sentimento em andar nas ruas do bairro onde mora

14
durante o dia, verifica-se que os homens sentem-se muito mais seguros (52,4%). No diz
respeito durante o período da noite, observa-se uma redução na sensação de segurança,
homens continuam se sentindo mais seguros que as mulheres (18,7%). Quando o
enfoque da pesquisa é o sentimento de segurança nas ruas do bairro onde trabalha, os
homens (54,9%) afirmam se sentir mais seguros do que as mulheres (30,2%).

A pesquisa conclui no que tange esse aspecto, que a sensação de insegurança é


maior entra as mulheres (50,1%). É interessante ressaltar que pessoas mais
escolarizadas e os que fazem parte das classes mais altas sentem-se mais seguros do que
os menos escolarizados e os que fazem parte das classes menos favorecidas, ou seja, o
recorte de classe é singular na relação de sentimento de segurança.

Para crimes como agressão, ofensa sexual e discriminação, a pesquisa procurou


saber se o agressor era alguém conhecido, e obteve-se o dado de que no caso de ofensa
sexual quase sempre o agressor é desconhecido (49,3%), já nos outros casos, o agressor
na maioria das vezes era conhecido da vítima. Esse dado é interessante, pois demonstra
que a sensação de insegura das mulheres pode ocorrer em relação a qualquer homem
que cruza seu caminho nos espaços públicos, e não apenas com aqueles que convivem.

Além disso, as menores taxas de notificações encontram-se entre as vítimas de


ofensas sexuais (7,5), o que leva a afirmar que nem todas as mulheres denunciam casos
de ofensas, abusos no espaço público. Apesar de tal dado não ter sido analisado na
pesquisa, ou até mesmo problematizado, questionasse: Por que casos de ofensas,
agressões, estupros não são denunciados sendo que a cada 11 minutos uma mulher é
estuprada no Brasil?6

Presumisse que mulheres violentadas não se sentem estimuladas a denunciar,


procurar órgãos públicos e isso ocasiona as menores taxas de notificações, como já
citado acima. Perante essa realidade, em 2006 foi implantado o Núcleo de Gênero Pró-
Mulher que integra a estrutura da Coordenação dos Núcleos de Direitos Humanos,
juntamente com o Núcleo de Enfrentamento à Discriminação e o Núcleo de
Enfrentamento à Violência e à Exploração Sexual contra a Criança e o Adolescente.

De acordo com a Portaria n. 118, de 17 de fevereiro de 2006, o Núcleo de


Gênero atua prioritariamente: “na formulação e implementação de políticas públicas de

6
Segundo dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
15
promoção da igualdade de gênero, na conscientização sobre os efeitos pessoais e sociais
negativos da violência contra a mulher, e no reconhecimento dos seus direitos e
garantias, recebendo representações, notícias de crime e quaisquer outros expedientes
relativos à violência contra mulher, por escrito ou oralmente, reduzindo a termo, se for o
caso, e dando-lhes o encaminhamento devido”7.

A perspectiva de consolidação de políticas institucionais com recorte de gênero,


sem dúvida deve ser pautada na nossa sociedade, pois o impacto de gênero sobre a
violência e urbanização é candente. A naturalização e culpabilização que as mulheres
sofrem pelo assédio que recebem nas ruas, está intimamente relacionada com a cultura
machista e patriarcal que vivem, ocasionando em baixos índices de notificações de tais
casos. No relatório As Mulheres e a Cidade, da ActionAid (2014), embora relatassem se
sentir incomodadas com as abordagens na rua, muitas mulheres encaravam o fato com
naturalidade compreendendo-o como uma experiência comum nas suas vidas. “Esse
processo de naturalização dificulta o enfrentamento do problema uma vez que, mesmo
reconhecendo a questão, muitas mulheres ainda não conseguem enxergá-la como uma
violência, nem mesmo como assédio” (p.29).

Movimentos feministas e coletivos não estão passivos a tal realidade. Cada vez
mais há campanhas principalmente via redes sociais que problematizam a naturalização
da violência, a falta de eficiência de políticas públicas no que diz respeito a mulheres e
espaço público, Campanhas como #meuprimeiroassedio e mobilizaram jovens nas redes
sociais a denunciarem assédios sofridos cotidianamente.

A jornalista brasileira Juliana de Faria, de 30 anos, que está há dois anos à frente
do grupo Think Olga, espaço virtual para discutir questões femininas, impulsionou a
campanha #primeiroassedio e o movimento Chega de Fiu-Fiu, que começou com uma
pesquisa sobre as cantadas que as mulheres ouvem nas ruas. Das 8 mil entrevistadas,
99,6% relataram já ter passado por situações constrangedoras8, por assédios. Têm sido
frequentes campanhas que combatem assédios sexuais, violência contra as mulheres.

7
Dados retirados do Relatório do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios (2015).
8
Dados retirados da Revista Época. Disponível em:
http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/primavera-das-mulheres.html

16
Cada vez mais a internet e as novas tecnologias tem se transformado em ferramentas de
engajamentos espontâneos de adolescentes e mulheres.

Com isso, as formas de participação na política contemporânea vêm sofrendo


modificações, não só no que diz respeito à pluralização dos atores/atrizes políticos, mas
também no que se refere aos espaços onde tais processos são exercidos. As distâncias
não são mais as mesmas, são redefinidas e transpostas, e o alcance de informação se
acelerou principalmente nas pautas relacionadas às mulheres.

Considerações finais

O esforço empreendido neste artigo foi o de problematizar a relação das


estruturas urbanas juntamente com as desigualdades de gênero, essas que propiciam
vulnerabilidade as mulheres que circulam, se locomovem e ocupam o espaço público. A
vulnerabilidade é produto de diversos fatores como os elencados no decorrer do texto,
porém, está enraizada na ordem patriarcal, onde a redução das mulheres ao espaço
privado se consolidou nas construções sociais no decorrer dos séculos.

Ao pontuar o direito à cidade e consequentemente, uma cidade segura, que dê


condições para que mulheres circulem com tranquilidade, desconstrói-se a lógica
patriarcal, dando visibilidade à apropriação dessas ao espaço público. Direito a cidade
não se restringe a reivindicações imediatas por direito a moradia, serviços urbanos
específicos, mas é um conceito muito mais amplo que deve ser pensado com recorte de
gênero. Assim, ocupar a cidade é uma forma de enfrentamento e questionamento das
relações de poder, e também de repensar teorias sociológicas que abrangem as questões
relacionadas à cidade e segurança. Com isso, tem se dado uma perspectiva feminista à
criminologia e a sociologia da violência e dos conflitos, contribuindo para que tenha
visibilidade os assuntos referidos às mulheres e, de certa forma, que seja repensado o
espaço público, a segurança pública no sentido de inibir casos de violências, estupros,
se repense a relação do corpo feminino e a cidade, para que a concepção de “corpo
estrangeiro” atribuído às mulheres seja desconstruído, tendo dimensão também do
recorte de raça e classe, pois as mulheres negras estão mais vulneráveis à violências nos
espaços urbanos.

17
Luzia Baierl (2004) afirma que “O fim do Estado é impedir o medo e possibilitar
a liberdade de pensamento e de corpos”, de fato a finalidade é essa, porém, o que se vê
muitas vezes é que há uma tentativa de reforçar a ideia que o espaço público é um local
perigoso para as mulheres circularem e se locomoverem, reforçando assim o medo e
também que o confinamento ao âmbito privado é mais seguro. Tal saída é um refugo
para não se enfrentar o fato de que o índice de violências, abusos sexuais, como os
apresentados aqui, faz parte do cotidiano e são candentes nas sociedades
contemporâneas, e principalmente ao reforçar a sensação de insegurança, o medo, está
fortalecendo a lógica da dicotomia privado versus público, que alguns indivíduos (do
sexo masculino) estão mais aptos a circularem no nas ruas, do que de outros indivíduos
(do sexo feminino).

Reforçar o medo não irá modificar as estruturas, o que contribui para que a
sensação de insegura diminua é a implementação de leis específicas paras as mulheres
nos espaços públicos, e medidas que inibam casos de violências nas cidades. A Política
de segurança pública engloba vários elementos e segmentos (DEAMs e etc), e somente
através de ações integradoras entre esses segmentos, envolvendo as diversas
organizações da sociedade e as diversas esferas de poder (executivo, legislativo e
judiciário) em articulação permanente com as formas organizadas da sociedade civil que
podem ser vislumbradas estratégias de ação para reduzir índices de violência e a
sensação de medo aumentando a potências das pessoas para agir coletivamente.

As campanhas e manifestações impulsionadas por diversos movimentos e


coletivos de mulheres ou feministas contribui de forma singular para que seja
implementada leis, para que seja repensado o espaço público, questão como iluminação,
transporte público no sentido não de implantar medidas paliativas que reforcem as
diferenças de gênero, mas sim medidas que questionem atitudes machistas,
desconstruam o patriarcado e diminuam a sensação de insegurança embasada nas
diferenças de gênero. Na cidade, o corpo circula, interage e resiste. A experiência
urbana se inscreve nos corpos ao mesmo tempo em que os corpos ficam inscritos nas
cidades. O corpo se circunscreve na cidade, modificando-a e dá novas atribuições,
principalmente o corpo feminino, tendo em vista que o espaço público não é destinado
às mulheres. A cidade é marcada por rupturas, é um lugar privilegiado de análise das
relações dos indivíduos, inseridos em intensos processos de mudanças. Nessa

18
conjuntura, movimentos sociais urbanos cumprem o papel singular, modificando as
relações entre cidade e corpo.

Por fim, tendo em vista os altos índices de violências sofridas pelas mulheres
nos espaços urbanos e todo esforço empreendido em questionar essa realidade, percebe-
se que a tríade corpo, cidade e segurança confluem no sentido de se repensar práticas e,
principalmente, equidade e autonomia das mulheres hoje.

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19
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