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Análise

sintático-semântica

Questão 1

Texto I para responder à questão.

Um povo entre duas tiranias

Pelo alto, a população do leste de Alepo, na Síria, foi castigada por bombas de barril lançadas por
helicópteros e aviões do regime de Bashar Assad e por caças russos. Ao explodirem, esses artefatos
espalham rolamentos, pregos e pedaços de metal ao redor, destruindo prédios e perfurando
pessoas. Na noite de 17 de agosto, o menino Omran Daqneesh, de 4 anos, estava dormindo com os
irmãos de 1, 6 e 10 anos quando uma bomba caiu sobre sua casa. As imagens do vídeo que
mostram Omran coberto de poeira e sangue dentro de uma ambulância chocaram o mundo pelo
contraste entre inocência e brutalidade. Seu irmão mais velho morreu no hospital.

Em terra, os moradores eram acossados pelos grupos extremistas ligados à Al Qaeda, que criaram
tribunais para aplicar a lei islâmica. As mulheres foram obrigadas a usar o véu. Quem reclamava do
fechamento das rádios ou das escolas ou tentava fugir era preso, torturado e até assassinado.

Com a coalizão liderada pelos EUA bombardeando os terroristas do Estado Islâmico em outras
cidades, a Rússia e o Irã ficaram livres para ajudar Assad a retomar territórios ocupados por outros
grupos armados, o que deixou a guerra ainda mais sangrenta. Duzentos mil sírios somaram-se aos
4,5 milhões que já haviam deixado o país nos anos anteriores. O fluxo de refugiados para a Europa
caiu de 1 milhão em 2015 para 300.000 neste ano, em parte devido às barreiras físicas erguidas
nas fronteiras e às restrições para aceitação de asilo. O drama da maioria dos sírios que fogem da
tirania de Assad e dos rebeldes acabou represado nos campos lamacentos da Turquia.

(Veja, 28 de dezembro de 2016.)

Após a leitura do texto, é possível afirmar que

a) as informações apresentadas possuem características alarmantes através de uma linguagem


apelativa e enfática, de acordo com o público a que se destina e seu suporte textual.

b) a redução significativa do número de refugiados é um fator capaz de comprovar que a


implementação de ações humanitárias na região afetada pelos conflitos citados tem sido favorável
às vítimas de tal cenário.

c) a finalidade informativa do texto pode ser identificada através do encadeamento lógico de ideias
revelando fatos com clareza e exatidão; utilizando, predominantemente, a ordem direta, a voz ativa
e os verbos de ação.

d) as tiranias às quais é feita referência no título do texto, apesar de apresentarem níveis diferentes
de ênfase no contexto apresentado, atuam estrategicamente de forma semelhante para alcançar os
objetivos que lhes são propostos.

Questão 2

Trecho do poema “Caso do Vestido”, de Carlos Drummond de Andrade.

Nossa mãe, o que é aquele

vestido, naquele prego?


Minhas filhas, é o vestido

de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?

Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.

Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa

que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo

ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,

está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido

tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai

palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,

vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,

se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,

se fechou, se devorou.

chorou no prato de carne,

bebeu, brigou, me bateu,


me deixou com vosso berço,

foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.

Em vão o pai implorou.

(Trecho do texto “Caso do Vestido” extraído do livro “Nova Reunião – 19 Livros de Poesia”, José Olympio Editora – 1985.)

Através do título do poema é possível reconhecer procedimentos discursivos percebidos apenas


mediante o contexto apresentado, indicando

a) a polissemia do termo “caso”, prescindindo de adjunto adnominal objetivando-lhe maior ênfase.

b) o objeto apresentado como ligação entre espaços e personagens distintos em relação às


sequências temporais apresentadas.

c) valorização do “vestido” como artigo de luxo – “tanta renda” – através do emprego do artigo
definido “o”como seu determinante.

d) a metáfora constituída a partir do emprego do termo “vestido”, constatada diante da analogia


feita com o emprego de “segredo” – “esse vestido/ tanta renda, esse segredo!”.

Questão 3

Violência contra a mulher

A Lei Maria da Penha é tida como severa na esfera criminal e possibilitou a instauração de medidas
mais rigorosas aos agressores. Assim, as violências de gênero não podem mais ser consideradas
como crimes de menor potencial ofensivo, com punições leves (cestas básicas ou serviços
comunitários), conforme estava disposto na Lei 9.099/95. Houve, portanto, um endurecimento da
legislação no âmbito criminal, a fim de que o agressor não permanecesse impune. Assim, as
medidas da Lei Maria da Penha tratam tanto da punição da violência, quanto medidas de proteção
à integridade física e dos direitos da mulher até as medidas preventivas e de educação.

É impossível pensar no combate à violência contra a mulher sem medidas de prevenção. Sem
estratégias para coibir e reduzir a violência doméstica, tão somente a aplicação da lei não é
suficiente. Nesse contexto, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar têm um papel
extremamente relevante, pois proporcionam acesso às mulheres, são uma saída, uma porta para a
superação contra a violência. Contudo, o Judiciário não pode e nem deve ser o único no combate à
violência. As políticas públicas devem ser direcionadas para que haja uma maior integração entre o
judiciário, a polícia, as áreas de saúde, assistência médica e psicológica, ou seja, para que todos os
envolvidos no processo de combate à violência estejam em sintonia, caminhando juntos com o
mesmo objetivo e ideal.

(Adaptado de: RAMALHO, José Ricardo. Lei Maria da Penha e o Feminicídio. Visão Jurídica. Edição
123.)

Lei do Feminicídio completa um ano com condenações ao assassinato de mulheres

[...] a Lei do Feminicídio trouxe a possibilidade de um agressor ser julgado levando em


consideração múltiplos crimes, que elevam bastante a pena, deixando claro que ele será
severamente punido.

Em um dos três crimes ocorridos no Piauí no ano passado, no do espancamento até a morte de uma
menina de 3 anos, o réu, o tio da vítima, foi julgado e condenado a 63 anos. A pena foi decidida com
base em 10 crimes, entre o qual o de homicídio triplamente qualificado e cárcere privado

No estupro coletivo das quatro adolescentes, a pena do adulto que participou do crime junto com
outros três adolescentes pode ultrapassar 100 anos justamente pelo fato de vários crimes terem
sido cometidos simultaneamente.

“A Lei do Feminicídio alterou o Código Penal e ampliou os agravos. Então, o réu será condenado
por violência sexual, pela tortura. Há, nesses casos, vários elementos que fazem a condenação ser
maior”, lembra a secretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.

(Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/03/lei-do-feminicidio-completa-um-ano-com-condenacoes-ao-


assassinatode-mulheres. Acesso em: 01/2017. Adaptado.)

Considerando as ideias e informações referentes aos textos anteriores, assinale a afirmativa


correta.

a) A construção de sentido do segundo texto é estabelecida a partir do diálogo proposto entre o


conteúdo por ele apresentado e o conteúdo do texto primeiro.

b) As diretrizes dos textos, ao expor a ideia defendida ao longo da dissertação, podem ser definidas
através da expressão: a influência das leis no combate à violência de gênero.

c) A transcrição em forma de discurso direto da secretária feita no segundo texto poderia ser
utilizada no primeiro texto como recurso argumentativo para sustentação do expresso no 1º
período do 2º§.

d) Ainda que a referência à violência contra a mulher seja feita através de abordagens distintas, ao
se associarem em uma coletânea hipotética, podem produzir pontos de vista equivalentes.

Questão 4

Magistrado faz Sentença em Linguagem Coloquial para Combater “Juridiquês”

Ao decidir que uma das partes deveria indenizar a outra, João Batista Danda disse que o valor a ser

pago não pode ser “tão pesado que vire um inferno”.

O mundo das leis não precisa ser um universo indecifrável. Para provar isso, um magistrado gaúcho
redigiu uma sentença trocando o tom pomposo do Direito pela linguagem do dia a dia. O resultado
foi um texto de fácil compreensão e uma repercussão maior do que ele imaginava: virou notícia no
meio jurídico — e fora dele.

A ideia surgiu quando João Batista de Matos Danda, então juiz do Tribunal Regional do Trabalho da
4ª Região, viu‐se completamente perdido em uma conversa com a filha. Por mensagem, a jovem
contava sobre um novo emprego, na área do marketing.

— Ela escreveu expressões como “startup”, “incubada”, “transmídia”, “DNA de marca”. Aí, eu
perguntei: “minha filha, o que tu estás falando exatamente? Traduz, por favor” — conta Danda,
ainda achando graça do papo que não lhe fez sentido.

Ao se dar conta de que a linguagem técnica acaba restringindo o entendimento a poucos,


geralmente aqueles que trabalham na mesma área, o juiz, então, se propôs ser mais claro em suas
decisões — desafio que levou com certo exagero em abril passado, quando foi relator no processo
em que o pedreiro Lucas de Oliveira pedia vínculo de emprego e indenização por danos morais,
após sofrer acidente em uma obra particular, de propriedade de Itamar Carboni.

Danda foi direto na explicação do rolo. “Três meses depois de iniciada a obra, o pedreiro caiu da
sacada, um pouco por falta de sorte, outro pouco por falta de cuidado, porque ele não tinha e não
usava equipamento de proteção. Ele, Itamar, ficou com pena e acabou pagando até o serviço que o
operário ainda não tinha terminado”, disse o juiz na sentença.

Lá pelas tantas do acórdão, ao falar do processo de revisão da sentença, o magistrado soltou essa:
“para julgar de novo, vou ler as declarações de todos mais uma vez e olhar os documentos. Pode
ser que me convença do contrário. Mas pode ser que não. Vamos ver”.

É um texto tão coloquial que parece não ter nada de mais, certo? Errado. O próprio juiz conta como
normalmente essa ideia seria escrita, em um processo “normal”:

— Inconformado com a sentença, que julgou improcedente a ação, recorre o reclamante buscando
sua reforma quanto ao vínculo de emprego e indenização por acidente de trabalho. Com
contrarrazões sobem os autos a este tribunal. É o relatório. Passo a decidir.

Na decisão, Danda defendeu que não havia vínculo de emprego na situação, mas que isso não
impedia o trabalhador de receber indenização por danos morais. A reparação, segundo o juiz,
“serve para amenizar um pouco o sofrimento de Lucas, mas também serve para Itamar lembrar que
tem obrigação de cuidar da segurança daqueles que trabalham na sua casa, mesmo quando não são
empregados”.

(Bruna Scirea. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/06/magistrado‐faz‐sentenca‐em‐linguagem‐coloquial‐


para‐combater‐juridiques‐4774852.html. Acesso em: 10/2015.)

“O sentido de temporalidade expresso no discurso refere‐se a uma ocasião arbitrária, reconhecível


pelos interlocutores relativamente a um ponto de referência instituído no próprio discurso.” O
expresso anteriormente pode ser exemplificado através do destacado em:

a) “Para provar isso, um magistrado gaúcho redigiu uma sentença trocando o tom pomposo do
Direito pela linguagem do dia a dia.” (1º§)

b) “A ideia surgiu quando João Batista de Matos Danda, então juiz do Tribunal Regional do
Trabalho da 4ª Região, viu‐se completamente perdido em uma conversa com a filha.” (2º§)

c) “Ao se dar conta de que a linguagem técnica acaba restringindo o entendimento a poucos,
geralmente aqueles que trabalham na mesma área, o juiz, então, se propôs ser mais claro em suas
decisões [...]” (4º§)

d) “A reparação, segundo o juiz, ‘serve para amenizar um pouco o sofrimento de Lucas, mas
também serve para Itamar lembrar que tem obrigação de cuidar da segurança daqueles que
trabalham na sua casa, mesmo quando não são empregados’.” (9º§)

Questão 5

“Três meses depois de iniciada a obra, o pedreiro caiu da sacada, um pouco por falta de sorte,
outro pouco por falta de cuidado, porque ele não tinha e não usava equipamento de proteção. Ele,
Itamar, ficou com pena e acabou pagando até o serviço que o operário ainda não tinha terminado.”
(5º§) O uso do termo em destaque no trecho anterior tem por finalidade:


a) Preceder uma explicação relacionada ao acontecimento anteriormente explicitado.

b) Introduzir uma informação causal tendo em vista o fato mencionado anteriormente.

c) Anteceder a expressão de um fato que o locutor presume já conhecido do interlocutor,


constituindo evidência não sujeita à contestação.

d) Introduzir a continuidade lógica do raciocínio iniciado anteriormente, iniciando um argumento


para uma tese em relação à informação anterior.

Questão 6

Sobre a propaganda anterior, analise as afirmativas.

I. É um enunciado híbrido, pois, utiliza‐se da linguagem verbal e não verbal.

II. Apresenta linguagem coloquial e expressões neológicas, típicas do português contemporâneo.

III. Os conectivos “mas” e “mesmo” possuem o mesmo valor semântico nas estruturas frasais em
que foram empregados.

IV. O uso dos verbos “conhecer” e “ter” na terceira pessoa do plural, nos remete a ideia de inclusão
do enunciador ao discurso.

Estão corretas apenas as afirmativas

a) I e II.

b) I e III.

c) I e IV

d) I, II e III
Questão 7

Ódio ao Semelhante – Sobre a Militância de Tribunal

Ninguém pode negar o conflito como parte fundamental do fenômeno político. Só existe política
porque existem diferenças, discordâncias, visões de mundo que se distanciam, ideologias, lutas por
direitos, por hegemonia. Isso quer dizer que no cerne do fenômeno político está a democracia como
um desejo de participação que implica as tenções próprias à diferença que busca um lugar no
contexto social. [...]

Esse texto não tem por finalidade tratar da importância do conflito ou da crítica, mas analisar um
fenômeno que surgiu, e se potencializou, na era das redes sociais: a “militância de tribunal”. Essa
prática é apresentada como manifestação de ativismo político, mas se reduz ao ato de proferir
julgamentos, todos de natureza condenatória, contra seus adversários e, muitas vezes, em desfavor
dos próprios parceiros de projeto político. São típicos julgamentos de exceção, nos quais a figura do
acusador e do julgador se confundem, não existe uma acusação bem delimitada, nem a
oportunidade do acusado se defender. Nesses julgamentos, que muito revela do “militante de
tribunal”, os eventuais erros do “acusado”, por um lado, são potencializados, sem qualquer
compromisso com a facticidade; por outro, perdem importância para a hipótese previamente
formulada pelo acusador-julgador, a partir de preconceitos, perversões, ressentimentos, inveja e,
sobretudo, ódio.

Ódio direcionado ao inimigo, aquele com o qual o “acusador-julgador” não se identifica e, por essa
razão, nega a possibilidade de dialogar e, o que tem se tornado cada vez mais frequente, o ódio
relacionado ao próximo, aquele que é, ou deveria ser, um aliado nas trincheiras políticas. Ódio que
nasce daquilo que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”. Ódio ao semelhante,
aquele que admiramos, do qual somos “parceiros”, ao qual, contudo, dedicamos nosso ódio sempre
que ele não faz exatamente aquilo que deveria – ou o que nós acreditamos que deveria – fazer.

Exemplos não faltam. Pense-se na militante feminista que gasta mais tempo a “condenar” outras
mulheres, a julgar outros “feminismos”, do que no enfrentamento concreto à dominação masculina.
A Internet está cheia de exemplos de especialistas em julgamento e condenação. A caça por
sucesso naquilo que imaginam ser o “clubinho das feministas” (por muitas que se dizem feministas
enquanto realizam o feminismo como uma mera moral) tem algo da antiga caça às bruxas que
regozija até hoje o machismo estrutural. Nunca se verá a “militante de tribunal feminista” em
atitude isenta elogiando a postura correta, mas sempre espetacularizando a postura “errada”
daquela que deseja condenar. Muitas constroem seus nomes virtuais, seu capital político, aquilo
que imaginam ser um verdadeiro protagonismo feminista, no meio dessas pequenas guerras e
linchamentos virtuais nas quais se consideram vencedoras pela gritaria. Há, infelizmente,
feministas que se perdem, esvaziam o feminismo e servem de espetáculo àqueles que adoram odiar
o feminismo. [...] Apoio mesmo, concreto, às grandes lutas do feminismo, isso não, pois não é tão
fácil nem deve dar tanto prazer quanto a condenação no tribunal virtual montado em sua própria
casa. [...]

(Marcia Tiburi e Rubens Casara. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/01/odio-ao-semelhante-sobre-a-militancia-


detribunal/. Publicado dia: 10/01/2016. Adaptado.)

Considerando as ideias apresentadas no texto, analise as afirmativas a seguir.

I. A negação da existência do conflito é também a negação de que haja um fenômeno político.

II. No 3º§ do texto, a referida possibilidade de diálogo é negada pelos dois interlocutores que
deveriam participar de tal prática.

III. A “militância de tribunal”, virtual, tornou-se um assunto com nível de importância superior às
questões que envolvem debates críticos na atual era das redes sociais.

Está(ão) de acordo com o texto apenas a(s) afirmativa(s)


a) I.

b) III.

c) I e II.

d) II e III.

Questão 8

Eloquência Singular

Fernando Sabino

Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que...

O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia
perfeitamente ser o singular:

— Não sou daqueles que...

Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas
armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caia nelas, e era logo
massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

— ...embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo
nesta Casa, não sou...

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses
casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não
tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

— ...daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

— Não sou daqueles que...

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira
pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a
concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no
plural:

— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que
possamos ser dignos da confiança em nós depositada...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por
esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas
gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:

— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já
estudada e decidida por tudo quanto é gramaticoide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o
verbo ao plural:

— ...não sou daqueles que, conforme afirmava...

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM
daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

— Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura,
disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

— Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

— Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava,
agoniado, um dos deputados mais próximos.

— Eu? Mas eu não disse nada...

— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.

O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador,


aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói
e a agonia da tarde.

— Que é que você acha? — cochichou um.

— Acho que vai para o singular.

— Pois eu não: para o plural, é lógico.

O orador seguia na sua luta:

— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda
ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...

— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar,
quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida
pública...

E entrava por novos desvios:

— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor


Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:

— Senhor Presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:

— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O
orador foi vivamente cumprimentado.

Texto extraído do livro "A companheira de viagem", Ed. do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 139.

Qual a situação problema abordada no texto?

a) A eloquência singular do personagem principal.


b) A armadilha de linguagem em que o deputado se encontra.

c) A falta de amigos para auxiliá-lo.

d) A pressa com a qual o deputado se encontrava.

e) A falta de estudo do deputado.

Questão 9

Eloquência Singular

Fernando Sabino

Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que...

O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia
perfeitamente ser o singular:

— Não sou daqueles que...

Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas
armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caia nelas, e era logo
massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

— ...embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo
nesta Casa, não sou...

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses
casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não
tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

— ...daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

— Não sou daqueles que...

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira
pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a
concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no
plural:

— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que
possamos ser dignos da confiança em nós depositada...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por
esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas
gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:

— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já
estudada e decidida por tudo quanto é gramaticoide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o
verbo ao plural:

— ...não sou daqueles que, conforme afirmava...

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM
daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

— Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura,
disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

— Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

— Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava,
agoniado, um dos deputados mais próximos.

— Eu? Mas eu não disse nada...

— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.

O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador,


aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói
e a agonia da tarde.

— Que é que você acha? — cochichou um.

— Acho que vai para o singular.

— Pois eu não: para o plural, é lógico.

O orador seguia na sua luta:

— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda
ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...

— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar,
quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida
pública...

E entrava por novos desvios:

— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor


Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:

— Senhor Presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:

— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O
orador foi vivamente cumprimentado.

Texto extraído do livro "A companheira de viagem", Ed. do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 139.

As reticências usadas várias vezes no texto servem para:

a) Denotar a impaciência do deputado.

b) Preparar o leitor para a próxima situação problema que foi citada no parágrafo anterior.

c) Demonstrar a incapacidade do deputado em definir a concordância do verbo.


d) Retomar o assunto dito anteriormente.

e) Mostrar a falta de eloquência do deputado.

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