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PARAR O

GENOCÍDIO
2 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

APOIAR E FORTALECER O LE MONDE DIPLOMATIQUE

Um jornal
não alinhado
Da crise financeira de 2008 ao conflito no Oriente Médio,
passando pela crise climática e pela invasão da Ucrânia,
o planeta experimentou nos últimos quinze anos uma
série de abalos que perturbaram as bússolas intelectuais
e geopolíticas. Não a do Le Monde Diplomatique,
que defende, quase sozinho, o não alinhamento
e solicita a seus leitores apoio nesta luta

POR BENOÎT BRÉVILLE E PIERRE RIMBERT*

H
á pouco mais de um ano, em 19 de poder e de perseguir aqueles que discu-
outubro de 2022, a presidenta da tem tais instruções.
Comissão Europeia fez um dis- Na semana seguinte ao ataque do Ha-
curso solene no Parlamento de mas, o governo francês desferiu novos
Bruxelas: “Ataques direcionados contra golpes nas liberdades fundamentais já
infraestruturas civis, com o objetivo restritas pelo confinamento sanitário,
óbvio de privar homens, mulheres e sem que os autoproclamados guardiões
crianças de água, eletricidade, aqueci- da democracia encontrassem nisso um
mento às portas do inverno: esses são problema: proibição de manifestar apoio Apoiadores se manifestam mesmo após proibição de atos pró-Palestina
atos de puro terror e nós devemos ca- à Palestina e circular liberticida envia-
racterizá-los como tais”, explicou Ur- da, em 10 de outubro, pelo ministro da “seria necessário dizer: ‘Um civil em humilhações etc. – equivale a apresentar
sula von der Leyen. No entanto, essa re- Justiça aos procuradores. A mensagem Gaza é a mesma coisa que um civil em sistematicamente Israel como uma víti-
gra deixa de se aplicar quando um proíbe “a divulgação pública de mensa- Israel?’”. É provável que nada lhe pare- ma que se defende. “Israel responde, o
aliado do bloco ocidental comete “ata- gens que incitem as pessoas a emitir um cesse mais estranho do que a resposta governo israelense responde que é uma
ques direcionados”. Após o massacre de julgamento favorável sobre o Hamas ou do chefe do serviço internacional da resposta”, repete o jornalista Benjamin
centenas de civis durante a operação a Jihad Islâmica”, mesmo no caso de tais BBC, criticado por não ter chamado o Duhamel sobre os bombardeios a Gaza
militar liderada pelo Hamas em 7 de ou- observações serem “formuladas no âm- Hamas de “terrorista”: “Nosso trabalho (BFMTV, 13 out. 2023).
tubro (1.400 mortos, incluindo trezen- bito de um debate de interesse geral e é apresentar os fatos ao público e deixar O jornal Le Monde Diplomatique foi
tos soldados), o ministro da Defesa is- como parte de um discurso de natureza que ele forme sua própria opinião”.1 fundado contra esse tipo de apartheid
raelense, Yoav Gallant, anunciou o política”. Diante do documento, a nata Radicalizados pelos atentados de 2015 editorial. Desde sua criação, em 1954,
cerco total a Gaza nos seguintes termos: do contrapoder imediatamente lançou e 2016, os estados-maiores do jornalis- até a década de 1980, ele acompanhou o
“Sem eletricidade, sem comida, sem gás um “debate”. Não sobre a liberdade de mo francês passaram espontaneamente movimento de descolonização, depois
[...]. Estamos lutando contra animais expressão que afirma defender, mas so- a encarar qualquer ponto de vista críti- o dos “não alinhados”, grupo de países
humanos e agimos de acordo” (9 out.). bre a necessidade de perseguir ou dissol- co das políticas dos Estados Unidos, da que se recusou a escolher entre os dois
Dois dias depois, 1.200 cadáveres já ti- ver grupos políticos que justifiquem ou União Europeia ou da França como uma blocos e defendeu sua independência
nham sido retirados dos escombros de procurem explicar uma resistência pa- provocação, até um ilegalismo. Para eles, nacional por meio do desenvolvimento
casas, escolas, hospitais e sedes de veí- lestina classificada desde seu nascimen- informar significa fazer passar os fatos autônomo, muitas vezes sob a bandei-
culos de comunicação bombardeados to como terrorista – uma abordagem, no pela peneira dos valores da Otan. A “co- ra do socialismo. Na época, o periódico
de maneira indiscriminada com a justi- entanto, defendida em sua época por munidade internacional” de que falam é não estava sozinho. Estremecemos em
ficativa – muitas vezes apresentada Charles de Gaulle e Jacques Chirac... uma confraria ocidental. O assassinato retrospecto com a ideia de que veículos
pelo Exército russo, mas em outro con- O lado abraçado pelas direções das de um repórter em Moscou inspira-os a como L’Express, Le Nouvel Observateur
flito – de que estariam abrigando com- redações jornalísticas decorre menos questionar – justificadamente – os regi- e Le Monde pudessem ter demonstrado
batentes. Imperturbável, Von der Leyen de uma intenção dissimulada do que mes autoritários; o de dez colegas pales- compreensão para com os “terroristas”
reafirmou: “A Europa apoia Israel”. Na de uma cegueira sincera. Criticá-las por tinos provoca nada mais que um dar de da Frente de Libertação Nacional da
França, o presidente da Assembleia Na- adotar “dois pesos e duas medidas” se- ombros entristecido. Em 14 de outubro, Argélia e com perpetradores de massa-
cional, Yaël Braun-Pivet, declarou, “em ria apontar o desvio de uma norma – a quase um terço dos jornalistas que mor- cres de civis, e divulgado as campanhas
nome da representação nacional”, da igualdade de tratamento ou da igual- reram no mundo todo em 2023 tinha de seus advogados.3 Desde então, essas
“apoio incondicional” a Israel. dade de dignidade dos seres humanos sido morto por Israel.2 Milhares de arti- três publicações se inclinaram “para
Na mídia francesa, o foco nos crimes – que elas há muito já abandonaram. gos detalham a desinformação russa e a oeste”. E o Sul global que hoje afirma
de guerra cometidos pelos combaten- Ex-apresentador famoso da televisão do Hamas, mas as fake news ucranianas sua existência diante do bloco ociden-
tes do Hamas reformula todo o conflito pública, David Pujadas resumiu o esta- e israelenses são aceitas sem problemas. tal pouco tem a ver com o novo mun-
israelo-palestino em termos de terro- do de espírito de muitos dignitários de A cobertura do conflito Israel-Palestina do que se livrava do jugo colonial meio
rismo islâmico. Quando se realiza esse sua profissão no LCI (11 out.): devería- tem outra constante: o obscurecimento século antes: convertido ao mercado
reenquadramento em um país devas- mos considerar os habitantes de Gaza da história. O assunto só volta aos te- livre, fragmentado, desprovido de uma
tado por múltiplos ataques do tipo, os como cúmplices do Hamas, da mesma lejornais em caso de ataque palestino. utopia emancipatória, ele quer um ree-
meios de comunicação deixam de se de- forma que os russos seriam cúmplices Calar a respeito de tudo aquilo que o quilíbrio das forças internacionais, mas
dicar a informar e assumem o papel de do poder russo, ou, em um esforço lite- precede – colonização, expulsões, assas- para que possa competir de maneira
transmitir as instruções de firmeza do ralmente sobre-humano de empatia..., sinatos, destruição de poços e colheitas, mais eficaz com o Norte em seu próprio
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 3

© Sarah Meyssonnier/Reuters
aos olhos dos investidores do Vale do Si- muito tempo se orgulharam de sua ca- um simples serviço dentro da Société
lício, esse exercício não é apenas obso- pacidade de se afastar do evento para Éditrice du Monde, Ignacio Ramonet e
leto, mas também perigoso. Demorado, poder avaliar suas causas e consequên- Bernard Cassen, que então dirigiam o
exigindo atenção e concentração, ele ex- cias, amparados pela razão. jornal, tiveram a audácia de levantar a
pressa uma soberania pessoal na esco- questão da propriedade, num momen-
lha dos títulos, na gestão do emprego do UM MODELO ECONÔMICO SINGULAR to em que bastava falar no assunto para
tempo e na capacidade de “estar consigo Pode um jornal resistir ao poder do ins- despertar a raiva apoplética dos edito-
mesmo”, aberto à imaginação, ao deva- tantâneo e recusar o caráter emocional rialistas. “Essa tese de que, quando so-
neio, ao afastamento. “Ler?”, retrucam que ele agrega à informação? Se somar- mos possuídos por interesses econômi-
os novos mercadores de tempo cerebral mos à equação as novas gerações co- cos, não somos livres, não para de pé”,
disponível. “Veja as imagens.” nhecidas – às vezes equivocadamente irritou-se Laurent Joffrin no Canal Plus
Desde a aquisição do YouTube pelo – por se informarem apenas pelas redes (11 jun. 1999). “Terrorismo intelectual”
Google em 2006 e a ascensão das redes sociais ou por meio de influenciadores, (Patrick Poivre d’Arvor), “populismo
sociais, o fragmento de vídeo bruto (e o Le Monde Diplomatique está frito. cripto-lepenista” (Franz-Olivier Gies-
muitas vezes brutal) tornou-se a forma Mesmo assim, às portas de completar bert)4 – era um campo minado.
dominante de informação. Filmadas setenta anos (em maio), nosso perió- Vinte e cinco anos depois, o fato de
por um protagonista ou por uma teste- dico mensal continua exigindo de seus “90% dos meios de comunicação per-
munha com seu celular ou por drones e leitores o tempo, a reflexão e a atenção tencerem a nove bilionários” soa quase
câmeras de vigilância, essas sequências que as notícias internacionais e a bata- como uma banalidade, que lamentamos
desvinculadas de qualquer contexto es- lha de ideias exigem. Ao frenesi do mo- com uma revirada de olhos. Contudo,
timulam a emoção – empatia ou ódio –, mento, ele responde com perspectiva não ficamos completamente alheios a
o desejo compulsivo de reagir antes de histórica, reportagem confiada a jorna- isso. O mapa “Médias français, qui pos-
pensar, a viralidade produtora de lucros. listas especializados, exposição engaja- sède quoi” [Mídia francesa, quem é dono
Os ataques e massacres habilmente en- da porém documentada. Sem esconder de quê] está há anos na lista dos artigos
cenados pelo Estado Islâmico em 2015- suas opiniões sob a máscara hipócrita mais consultados do Le Monde Diplo-
2016 se banalizaram: a oferta visual de da objetividade, orgulha-se de ter entre matique. Sua primeira versão, publicada
terror obscurantista abriu caminho nas seu público leitores discordantes, que, em 2007 no periódico bimestral de críti-
telas dos canais de notícias e naque- mesmo quando contestam nossas po- ca de mídia e pesquisas sociais Le Plan
les criados pelos engenheiros da costa sições sobre certos assuntos, apreciam B, era tratada clandestinamente, como
oeste dos Estados Unidos. Reels, stories, encontrar em nossas colunas não ser- um objeto vergonhoso. Os líderes da
shorts, snaps: esses miniformatos que mões, mas fatos com datas e fontes que imprensa apostavam nas cartas de com-
encadeiam um bolo de aniversário a em outros veículos seriam procurados promisso ético, nos pactos de acionistas
uma coreografia de um gol do Mbappé em vão. Essa reivindicada sobriedade, e outras barreiras de papel que deveriam
e a uma cena de assassinato são agora a que beiraria a austeridade sem os praze- manter a distância entre a propriedade e
terreno. Para um jornal como o nosso, grande joia não apenas do Instagram e res da iconografia, é, precisamos admi- o controle. O enquadramento brutal da
portanto, recusar-se a flutuar na bolha do TikTok, mas também de plataformas tir, pouco atraente: nada de debates em I-Télé em 2016 por Vincent Bolloré, com
ocidentalista representa mais do que inicialmente construídas em torno da vídeo, nada de entrevista na poltrona, a transformação desse canal de notícias
nunca um desafio: fora dos períodos palavra escrita, como o X (ex-Twitter). nada de retrato de celebridades, nada de moderno em bastião da extrema direita
de crise aguda, o ambiente apaixonado Sob pressão dessas redes, conjugada à feed de notícias, nenhuma seção de con- sob o nome de CNews, bem como o des-
pelas questões internacionais se retrai. dos canais de notícias 24 horas, a maio- sumo mostrando “as melhores almofa- tino semelhante do Journal du Diman-
E o oxigênio progressista fica cada vez ria dos grandes veículos de imprensa das de viagem”. Nosso site, que foi ao ar che e a aquisição e conversão ideológi-
mais raro à medida que o mundo po- inseriu esses formatos na página inicial em fevereiro de 1995, antes das páginas ca do Twitter por Elon Musk provaram
lítico se alinha com as posições norte- de seus sites, tentando atrair um públi- eletrônicas de todos os nossos colegas, aos ingênuos que a tese abominada por
-americanas. A onda gigante das novas co muito mais jovem que seus leitores, não existe para vender publicidade nem Laurent Joffrin não era, em última análi-
tecnologias da informação não ajuda a frequentemente já em idade de aposen- para revender os dados dos visitantes, se, tão frágil assim. Desde então, escolas
inverter essa tendência geral. tadoria. Do usuário anônimo do X aos mas para que nossos artigos possam ser e instituições de ensino solicitam com
políticos, todo mundo reage às imagens lidos e ouvidos. No entanto, o Le Monde frequência ao Le Monde Diplomatique
A DITADURA DA IMAGEM como se elas fossem o próprio evento: Diplomatique continua existindo: em- autorização (sempre concedida) para
Rolagem: percorremos sequências curtas “Qual foi sua reação ao ver as primeiras bora a crise da imprensa tenha varrido reproduzir livremente esse mapa, que
de vídeo no smartphone. Primeiro aque- imagens?”, perguntou o Libération (13 os jornais, ele manteve sua circulação e ilumina muitas salas de professores.
las relacionadas à informação procura- out.) à secretária nacional dos Verdes: aumentou sua influência. No entanto, seu sucesso mascara um
da, depois outras conexas escolhidas por “As imagens que todos viram mostram Devemos a liberdade de escolher nos- mal-entendido. Ao colocar dessa forma
um algoritmo, por fim outras sem rela- o horror absoluto do ataque terrorista so caminho à singularidade do modelo a questão da propriedade dos principais
ção com o assunto inicial. O polegar toca realizado pelo Hamas”. econômico que constitui a base do Le veículos de comunicação, o Le Monde
a tela mecânica e infinitamente. A cada Não reagir a todos os incessantes no- Monde Diplomatique. Desde 1996, essa Diplomatique propunha uma aborda-
imagem, a consciência a princípio em vos assuntos, sob o choque que eles organização nos garante autonomia e gem estrutural: embora seja um serviço
busca de uma resposta vai impercepti- produzem, passou a ser uma incon- independência: naquele ano, os leito- coletivo essencial, a informação é pro-
velmente sendo substituída pelo torpor. gruência. Pior: seria uma demonstração res do jornal reunidos na Associação duzida como uma mercadoria de baixo
A pulsão escópica, esse desejo incontro- de desumanidade. Jornalista da France dos Amigos do Le Monde Diplomatique custo. Desse modo, é apropriado prote-
lável de ver, cola os olhos na tela e des- Inter e do Libération, Thomas Legrand compraram 25% do capital; já a equipe, gê-la da censura do mercado e da cen-
liga o cérebro. As indústrias digitais fica- teorizou as virtudes da política do im- reunida na Associação Gunter Holz- sura do Estado, socializando-a segundo
riam muito satisfeitas em transformar os pulso ao censurar o partido A França In- mann (batizada em homenagem a um o modelo da Seguridade Social.5 Muitos
usuários da informação num exército de submissa por não ter cedido à emoção generoso doador cujo legado ajudou a críticos do monopólio na mídia não es-
sonâmbulos cambaleando entre fotos de de maneira suficientemente rápida: “A impulsionar o movimento), detém 24% tão interessados em mudar o jogo, ape-
gatos e vídeos de massacres. Sub-repti- verdadeira natureza de um movimento das ações. Juntos, os dois acionistas têm nas em validar a identidade dos jogado-
ciamente, elas impuseram uma profun- político pode ser avaliada na primeira direito de veto sobre decisões cruciais res. Que possamos vender jornais como
da transformação no equilíbrio dos mo- reação que ele tem a um evento dramá- para a vida da empresa. E, acima de um saco de tomates,6 pouco importa,
dos de acesso ao conhecimento: estreita- tico, quando a questão ainda se resume tudo: o diretor é eleito a cada seis anos desde que com a condição expressa de
mento do domínio da leitura; extensão a princípios fundamentais e não se teve por toda a nossa pequena equipe – e não que os novos acionistas saibam se com-
do domínio da imagem. tempo de pesar todos os seus elemen- apenas pelos jornalistas. portar. Bernard Arnault (Le Parisien,
Ler. Devorar um romance, um ensaio, tos” (Libération, 10 out.). Uma inversão Ao organizarem a criação de filiais Les Échos, Radio Classique): sim. Bol-
folhear um jornal, no papel ou na tela: vertiginosa: governantes e políticos por do Le Monde Diplomatique, até então loré (C8, CNews, Europe1, Le Journal
4 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

du Dimanche): não. Assim, a crítica da alimentam um círculo vicioso no qual da inteligência artificial: “Estamos nos cas em vez de buscar a todo custo uma
informação mercantil muitas vezes se a queda no número de compradores afastando de produtos, projetos e for- vitória futura pode irritar ou desanimar
traduz, nos círculos instruídos, em uma leva ao desaparecimento dos pontos de mas de fazer que nunca mais serão lu- aqueles para quem a vontade de acredi-
luta política contra os veículos de co- venda, o que por sua vez torna raras as crativas”, explicou a direção (Challenges, tar supera, com excessiva frequência, as
municação de extrema direita, uma luta oportunidades de ficar cara a cara com 19 jun. 2023). Um software é capaz de razões para duvidar. Esse é o preço da
que, ainda que saísse vitoriosa, manteria uma publicação, observar sua capa, seu fazer correção ortográfica, mas não de- lucidez, uma forma de resistência sem a
o mesmo mecanismo. sumário, comprá-la e se conectar com tecta um número incorreto, uma frase qual uma luta está condenada de ante-
Banalizado, o espantalho dos “nove ela. Assim, os editores passam a apostar ambígua ou um raciocínio incoerente. mão. De resto, qual seria a utilidade de
bilionários” permite ignorar aberrações no digital, multiplicando as ofertas de Isso requer olhos. No Le Monde Diplo- um jornal concebido para lisonjear as
da mídia com graves consequências, assinatura a preços reduzidos (Libéra- matique, cada artigo passa pelos olhos certezas de seus leitores? Às vezes, escre-
mas que não podem em absoluto ser ex- tion: 36 euros por ano por um jornal de dois revisores – uma prática que já foi veu Jean-Paul Sartre, somos obrigados a
plicadas pelo poder do acionista: a ho- diário, oferta patrocinada pelo Google). generalizada e hoje é excepcional. “dimensionar a evidência de uma ideia
mogeneidade do tratamento de certos Esses preços de liquidação permitem Ao longo dos anos, optamos por me- pelo desagrado que ela nos causa”.
assuntos, como o isolamento sanitário aos assinantes abrir links recolhidos nas lhorar a qualidade do papel quando
de 2020 e a guerra na Ucrânia, obser- redes sociais e em grandes plataformas nossos colegas apostavam no desapa- AJUDAR A DIVULGAR O DIPLÔ
vada tanto no âmbito dos veículos pú- que coletam dados: o trabalho já não recimento desse suporte confortável Produzir de maneira artesanal um jornal
blicos (France Télévision, France Inter) é mais construir ao longo das páginas que se tornava caro demais. Há quem internacional: só seu empenho e apoio
como no dos privados (TF1, RTL), tanto uma mensagem organizada em torno diga que o Le Monde Diplomatique se- determinados permitiriam alcançar
nas publicações independentes (Média- de uma espinha dorsal – uma intenção ria para a imprensa o que o vinil é para essa ambição. Todas as vezes que nossa
part) como naquelas ligadas a um grupo editorial –, mas salpicar artigos de notí- a indústria fonográfica: uma ilha à qual publicação passou por uma fase difícil,
econômico (Libération, Le Figaro). cias no grande oceano eletrônico. a vanguarda vai em busca de qualida- seu entusiasmo nos acompanhou, nos
Adornada de todas as virtudes, essa de, em um mundo saturado por ruído inspirou. Estamos aqui para mais uma
O GRANDE OCEANO ELETRÔNICO estratégia pode acabar decepcionando de fundo e sinais degradados. Talvez, vez pedir esse apoio, desta vez apresen-
A radicalização pró-Ocidente das re- seus defensores: cansadas de pagar di- mas não queremos nos encerrar nes- tando o Diplô a um público que ainda
dações jornalísticas, a submersão da reitos autorais à imprensa e de serem se nicho. Publicado no dia 27 de outu- não o conhece e incentivando sua as-
informação em imagens e emoções, a acusadas de agravar as clivagens políti- bro junto com esta edição, nosso novo sinatura. Mobilizar amigos, familiares,
ascensão do jornalismo barato impul- cas (como após a invasão do Capitólio aplicativo oferece uma leitura simples, colegas, camaradas: essa campanha de
sionado pela automatização, o desgaste em janeiro de 2021), várias plataformas elegante e confortável em telas, onde reconquista é realizada em conjunto
da rede de distribuição... Esses fatores modificaram seus algoritmos em des- todos também podem encontrar os ar- pela associação dos Amigos do Le Monde
certamente não favorecem o Le Monde favor dos artigos jornalísticos. O X pri- tigos lidos por atores, além do periódico Diplomatique. Twitter, Facebook e Insta-
Diplomatique. A onda de assinaturas vilegia os influenciadores polêmicos; o bimensal Manière de Voir. gram estão reprogramando seus robôs
favorecida pelo isolamento refluiu dois Facebook favorece as publicações pes- Numa época em que os discursos se em detrimento da imprensa? Isso pouco
anos após o início da epidemia; desde soais e a vida privada. Testes mostraram curvam prontamente à tendência, ao importa se nossas leitoras e leitores for-
o início deste ano, nossas vendas de que a empresa de Marc Zuckerberg po- burburinho e às polêmicas, o Le Monde mam a mais poderosa das redes sociais.
exemplares avulsos diminuíram. Em deria reduzir o tráfego que proporciona Diplomatique cultiva certa constância. Talvez você saiba, melhor que nós, des-
2023, a difusão total paga deverá cair aos sites do The New York Times ou do Assim, não dobramos nossa linha nem crever esta publicação singular. Ao fazer
cerca de 8% em relação ao ano anterior, The Wall Street Journal em 40% a 60%. A abandonamos certas causas alegando isso, certamente vai ouvir com frequên-
estabilizando-se em pouco mais de 160 publicação Mother Jones, revista mensal que elas possam ser cooptadas e dis- cia a seguinte objeção: “Não dá tempo”.
mil exemplares mensais. Nas cartas de esquerda feita nos Estados Unidos torcidas pelas forças que combatemos. Porém, mesmo esse recurso raro, às ve-
recebidas na redação ou no serviço de que trata principalmente de assun- Marine Le Pen e Éric Zemmour criticam zes engolido pela notícia 24 horas e pe-
assinatura, dois motivos se destacam: tos políticos e sociais, viu o tráfego em prontamente a União Europeia, a moeda las plataformas (uma hora por dia, em
tempo e dinheiro. Se o jornal fica sema- sua página no Facebook cair 75% em única, sempre exaltando as virtudes do média, entre os trabalhadores na Fran-
nas na mesinha de centro sem que se 2022.7 O Le Monde Diplomatique não protecionismo; Donald Trump e Viktor ça), pode ser recuperado. “Informar-se é
possa parar para ler, para que comprar? está alheio a essas manipulações. Em- Orban são críticos a certas intervenções cansativo”, observou Ignacio Ramonet.8
E, com a inflação corroendo o poder de bora dependa pouco das redes sociais, da Otan; a “direita alternativa” norte-a- Que seja, mas é condição necessária
compra, vamos incluir entre as neces- elas atraem muitos novos leitores a seu mericana afirma defender a liberdade de para um julgamento pessoal esclarecido,
sidades essenciais uma revista mensal site. Claro que as notícias internacio- expressão contra a censura dos gigantes e é a base da emancipação coletiva.
voltada a questões internacionais? nais dramáticas ainda trazem pessoas da internet... Em vez de abandonar a ba-
Essas dificuldades afetam muitos às nossas colunas. Todavia, nos tempos talha de ideias sob o pretexto de que o *Benoît Bréville e Pierre Rimbert são,
outros jornais. Em agosto de 2023, as atuais, esse assunto se revela mais an- assunto está mal frequentado, o Le Mon- respectivamente, diretor e membro da dire-
vendas de exemplares avulsos de jor- gustiante do que estimulante. de Diplomatique continua a postos e toria do Le Monde Diplomatique.
nais diários nacionais caíram 8,6% em A difusão do Le Monde Diplomatique desmantela a hipocrisia dos novos con-
relação ao ano anterior, enquanto as continua, portanto, muito insuficien- vertidos: a “direita alternativa” defende a 1   J ohn Simpson, “Why the BBC doesn’t call Ha-
dos veículos semanais tiveram baixa de te para popularizar a visão de mundo liberdade de expressão na internet (para mas ‘terrorists’” [Por que a BBC não chama o
10,4%, e as dos mensais, de 12,1%. A im- “não alinhada” que sustentamos contra fazer comentários racistas), mas proíbe Hamas de “terroristas”], 11 out. 2023. Disponí-
vel em: www.bbc.com.
prensa regional também sofre e, desde a corrente da imprensa francesa. Nosso livros escolares ou obras progressistas 2   F onte: Repórteres sem Fronteiras e Comitê
janeiro, aumentou as demissões: de- desejo de dar um passo atrás e colocar e exclui da Comissão de Relações Exte- para a Proteção dos Jornalistas.
zenove cargos eliminados no Sud-Ou- os acontecimentos em perspectiva cor- riores uma deputada democrata, Ilhan 3   L er Gisèle Halimi, “Avec les accusés d’El Halia”
[Com os acusados de El Halia], Le Monde Di-
est, 45 no Midi Libre, 55 no La Voix du responde ao nosso desejo de apresentar Omar, que ousa defender os palestinos. plomatique, ago. 2020.
Nord... Essa hemorragia fragiliza ainda os argumentos de acordo com as regras Na tempestade, para manter o curso 4   N a nova edição ampliada publicada em 2022
mais a rede de veículos de imprensa, da arte: um jornal feito à mão, em papel é preciso deixar o barco balançar. “Fas- pela Raisons d’Agir, há uma divertida compi-
lação de palavras gentis suscitadas pela pu-
cujo número passou de 28.579 em 2011 e on-line. Cada layout, cada título, cada cistas vermelhos”, “conspiracionistas”, blicação, em 1997, do livro de Serge Halimi,
para 20.232 em 2022. Nos últimos de- imagem resulta do trabalho invisível “naufrágio do jornalismo”, “imundície Les Nouveaux chiens de garde [Os novos
zoito meses, os centros das cidades de realizado por diagramadores, revisores, pró-Rússia”, “inimigos do Ocidente”, cães de guarda], que enfatiza particularmen-
te o poder dos acionistas.
Voult-sur-Rhône, Sarrebourg, Lisieux, fotógrafos, iconógrafos, designers grá- “amigos do grupo terrorista Hamas”, 5   Ler “Projet pour une presse libre” [Projeto
Teyran e Pont-Sainte-Maxence perde- ficos. Ofícios tradicionais que nossos “jornal que sempre defendeu o crime”: para uma imprensa livre], Le Monde Diploma-
ram suas bancas de jornal: liquidações “colegas” estão automatizando. Pionei- nas redes sociais, as gentilezas não pa- tique, dez. 2014.
6   Ler “Le Poireau du dimanche” [O tomate do
judiciais, aposentadorias sem que nin- ro na área, o grupo alemão Axel Sprin- ram de brotar, nem sempre adubadas domingo], Le Monde Diplomatique, set. 2023.
guém queira dar continuidade ao negó- ger, proprietário dos jornais de grande por nossos adversários declarados. Ana- 7   T he Wall Street Journal, Nova York, 5 jan. 2023.
cio – quem vai querer trabalhar 60 horas circulação Bild e Die Welt, anunciou em lisar as divisões entre aqueles que po- 8   Ler Serge Halimi, “On n’a plus le temps” [Não
dá mais tempo]; e Ignacio Ramonet, “S’infor-
por semana sem garantia de remune- fevereiro a supressão de centenas de deriam se unir por uma causa comum, mer fatigue” [Informar-se é cansativo], Le Mon-
ração? Esses fechamentos em cascata cargos considerados obsoletos na era tentar compreender as derrotas políti- de Diplomatique, out. 2012 e fev. 1996.
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 5

EDITORIAL

Cortar o mal pela raiz


POR SILVIO CACCIA BAVA

E
stamos chocados, escandaliza- se constituíram para a execução de mi- rio nacional foi favorecida e estimulada E o envolvimento desses policiais mili-
dos, deprimidos com toda a vio- litantes de esquerda, na guerra dos mili- pelo governo de Jair Bolsonaro, e já há tares com as milícias e os traficantes se
lência e desumanidade expressa tares contra o comunismo. uma presença significativa desses gru- apresenta como uma tendência que, se
na guerra entre o Hamas e Israel. Esses esquadrões da morte evoluíram, pos em outros estados, como a Bahia, e não for combatida radicalmente, leva-
Mas, se nos chocamos com a guerra no início dos anos 2000, para a formação mesmo na região amazônica. rá o Brasil a uma situação como a que
entre Hamas e Israel, entre a Ucrânia e das milícias, uma associação entre polí- As milícias tornaram-se um poder ocorre no México e na Colômbia: o con-
a Rússia, com imigrantes africanos ticos locais e ex-policiais, que contam que desafia governos. No Rio de Janeiro trole da política e da sociedade pelos
deixados para morrer no Mediterrâ- com o apoio de policiais e de setores do são elas que controlam de fato os terri- grupos milicianos.
neo, a situação em que nos encontra- Judiciário. Investigações do Ministério tórios da cidade, tornando um lucrativo O senador Tasso Jereissati (PSDB), em
mos no Brasil não comove mais nin- Público de São Paulo identificam seus negócio a espoliação urbana, por meio 2005, propôs a PEC 21, que dá aos gover-
guém; o desastre naturalizou-se, mas objetivos: explorar economicamente os da imposição de suas taxas e regras so- nos dos estados o poder de criar ou re-
não deixa de ser terrível. territórios que ocupam, assumir o con- bre os moradores locais. formar suas polícias. A proposta era es-
A cada dia do ano passado dezessete trole do tráfico de drogas e intimidar po- Uma estimativa ainda grosseira tabelecer uma nova polícia, resultado da
pessoas foram executadas por policiais liciais civis para evitar prisões.4 aponta para cerca de 40 mil paramili- fusão das polícias civil e militar, forman-
aqui no Brasil. Ao todo foram 6.430 em As milícias foram se multiplicando tares integrantes das milícias no Rio do uma única nova corporação. A força
2022. Esses milhares que foram mor- à sombra do poder do Estado, são um de Janeiro, com amplo predomínio de política dos oficiais da PM barrou essa
tos pela polícia, no entanto, são uma fenômeno nacional e tiveram um cres- PMs e ex-PMs. PEC, que contava com o apoio de mais
fração dos 47.500 assassinados neste cimento acelerado nos últimos anos. No A polícia civil do Rio de Janeiro esti- de 90% dos soldados, cabos, sargentos,
ano,1 número que já foi maior em anos Rio de Janeiro cresceram 387% nos últi- ma em 56.520 o número de criminosos subtenentes, tenentes e capitães, segun-
anteriores. O movimento negro e todos mos dezesseis anos.5 A polícia civil iden- portando fuzis e pistolas.7 Somam-se do a Associação dos Militares Auxiliares
os democratas denunciam o genocídio tifica sessenta bairros do Rio de Janeiro aqui milicianos e traficantes. Se os mi- e Especialistas.
dos jovens negros moradores de fave- controlados por milícias, algo como 74% licianos são 70% desses grupos arma- Em 2013, o senador Lindbergh Farias
las, consequência do racismo e da ideo- da área dominada por grupos armados, dos na capital, então eles somam algo (PT-RJ) propôs uma emenda constitu-
logia de confundir pobre com bandido. o que vem a ser um terço da cidade.6 como 39,6 mil. cional, a PEC 51, para a desmilitarização
Em 2019, 74,4% das 39.561 vítimas de O controle da sociedade, do território, O contingente de policiais militares do sistema de segurança pública e do
homicídio eram negros. O índice sobe escapa dos poderes públicos e vai para na ativa no Rio de Janeiro em 2020 era modelo de polícia adotado pelo Brasil.9
para 79,1% quando o autor do assassi- as milícias, com a necessária conivência de 44.336 PMs e 7.309 policiais civis.8 Os A proposta também não prosperou.
nato foi um policial.2 e participação dos órgãos de Estado que PMs aposentados somam cerca de 10 mil
Depois de décadas de construção e deveriam tê-lo em mãos, mas que ao fi- e muitos trabalham como seguranças
1   A
 nuário de Segurança Pública 2023.
embates por uma democracia no país, nal são capturados por elas. privados. Depoimentos de delegados, 2   h
 ttps://www.geledes.org.br/negros-sao-oito-
continua existindo um núcleo duro As milícias são um poder em expan- por exemplo, indicam que são maioria -de-cada-10-mortos-pela-policia-no-brasil-a-
autoritário, que nem mesmo a Consti- são. Cobram taxa de segurança, luz, os PMs e ex-PMs envolvidos com as mi- ponta-relatorio.
3   D
 aniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Re-
tuição de 1988 foi capaz de desfazer: o água, internet, gás, atuam no transporte lícias. Se algo como 70% deles integram nato Dirk, “A ética miliciana e o espírito do ca-
poder policial e o militar. E é uma luta público, na produção de moradias, con- as milícias, chega-se igualmente a cerca pitalismo extrativista”, Le Monde Diplomatique
permanente para preservar nossa insti- trolam o território, fazem justiça. Essas de 38 mil integrantes. Uma força que Brasil, abr. 2022.
4   A
 ndré Caramante, Rogério Pagnan e Afonso
tucionalidade democrática. Há muitos atividades altamente lucrativas unem acua o governador, o prefeito, o Judiciá- Benites, “Grupos de extermínio se unem para
anos os registros são de cerca de 45-55 poder econômico, políticos, policiais e rio e se impõe como poder sobre a cida- formar milícia em SP”, Folha de S.Paulo, 12
mil mortes por ano. As chacinas passa- ex-policiais, elementos do Judiciário. de, sobre a estrutura do Estado. jun. 2010.
5   S
 egundo estudo da Universidade Federal Flu-
ram a ser tratadas como acontecimentos As milícias são integradas por agentes Aqui se coloca uma questão crucial: minense e Instituto Fogo Cruzado.
normais às vistas dos poderes públicos, públicos que se autonomizaram, que em 2021, o Fórum Brasileiro de Segu- 6   h
 ttps://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noti-
especialmente do Judiciário. decidiram se impor pela força e usar rança Pública identificou que, ao todo, cia/2022/09/13/milicias-alcancam-trafico-e-ja-
-ocupam-metade-das-areas-controladas-por-
Nos anos 1970, em plena ditadura, já seu poder para extorquir quem vive no Brasil são 555 mil policiais militares, -grupos-armados-no-rj-diz-estudo.
se registrava a presença de grupos de ou atua nos territórios que controlam. policiais civis e bombeiros na ativa; 386 7   M
 ariana Muniz, “56 mil criminosos portam fuzis
extermínio, entre eles o Esquadrão da Seu núcleo duro é composto de poli- mil são PMs. Um verdadeiro exército. e pistolas no Rio, diz polícia ao STF”, Veja, 25
mar. 2021.
Morte, composto de ex-policiais que, a ciais e ex-policiais militares. Contam As PMs sempre foram um problema 8   h
 ttps://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noti-
mando de comerciantes e políticos lo- com a conivência e a participação de para os governadores, que não conse- cia/2022-07/brasil-tinha-544-mil-policiais-mili-
cais, promoviam, a “limpeza social” do integrantes da polícia civil, bombeiros, guem controlá-las. Os seguidos motins tares-civis-e-bombeiros-em-2020.
9   h
 ttps://www12.senado.leg.br/noticias/mate-
território.3 Em sua origem, esses grupos, parlamentares, membros do Executivo ocorridos em vários estados, nos últi- rias/2014/03/20/lindberg-farias-defende-pro-
amparados por altas patentes militares, e do Judiciário. Sua expansão no territó- mos anos, atestam essa autonomização. posta-de-reformulacao-da-policia.
© Claudius
6 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

MEIO AMBIENTE

© Yndara Vasques

Mudanças climáticas
e direito ao território
Não há como enfrentar a crise climática sem uma política
nacional de regularização fundiária no Brasil

POR TARCILO SANTANA*

T
alvez hoje, após os recentes anos indígenas, a exemplo da Terra Indígena CONTRIBUIÇÃO PARA
de luta incessante dos povos in- Sawré Muybu, no oeste do Pará, condu- A HUMANIDADE
dígenas contra a aprovação, em zida pelo povo Munduruku, e da Soares/ Esses modos de vida acabam por ofe-
especial, do Marco Temporal no Urucurituba, em Autazes, no Amazonas, recer uma contribuição inigualável
Congresso Nacional – vetado parcial- realizada pelo povo Mura. para a humanidade no campo do en-
mente pelo presidente Lula em 20 de As próprias comunidades foram en- frentamento das mudanças climáticas,
outubro –, seja difícil imaginar que o volvidas, não sem enfrentar a resistência pois mantêm o equilíbrio e a vida sau-
mundo já acompanhou o Brasil realizar do governo FHC, especialmente nos pro- dável desses biomas. A terra por si só
a demarcação de Terras Indígenas (TIs) cessos de identificação dos territórios não garante sua autoproteção. As pes-
na Amazônia Legal, em um processo durante a execução do PPTAL. Equipes soas que vivem nesses territórios são
que contou com ampla participação formadas por representação de povos suas guardiãs; comunidades seculares
dos povos originários. Esse processo indígenas foram capacitadas para fazer que se colocam como barreira para o
contribuiu para a regularização fun- um acompanhamento independente do avanço do agronegócio e outros gran-
diária de TIs como a do Vale do Javari, projeto, e isso resultou no aumento da des empreendimentos e põem a vida
localizada majoritariamente em Atalaia qualidade e precisão do trabalho. diante disso. Portanto, é fundamental
do Norte, no leste do Amazonas, e da Os níveis de desmatamento seguem garantir o direito dessas pessoas de
Raposa Serra do Sol, em Roraima. No oscilando ao longo dos últimos anos, permanecerem nesses espaços. Inicia-
total, foram 115 TIs demarcadas. mas TIs eram e continuam sendo territó- tivas como o PPTAL atuam nesse sen-
Todas essas demarcações foram fru- rios preservados no meio de incontáveis tido e são extremamente importantes,
to de um projeto que deu seu primeiro focos de devastação – queimadas, extra- pois oficializam a obrigação do Estado
suspiro de vida em 1990, durante a re- ção ilegal de madeira, criação de grandes de agir para proteger os territórios e os
união do G7, encontro das sete então áreas de pastos para gado, plantação de povos que neles habitam. No entanto,
maiores economias mundiais, quando o extensos monocultivos de soja regados a esse contexto não é uma realidade ex-
governo alemão propôs a criação de um agrotóxicos, grilagem de terras, ação de clusiva da Amazônia Legal: nem a pro-
programa para reduzir o desmatamento garimpeiros e mineradoras, entre outros teção, nem as pessoas, nem os algozes, dígenas no Brasil”, do Conselho Indige-
no Brasil. Alguns meses depois nasceu o megaprojetos e empreendimentos. Mes- tampouco envolve somente povos in- nista Missionário, com dados de 2022,
Programa Piloto para Proteção das Flo- mo diante de tantas violações, menos de dígenas. Por que, então, limitar a um são 588 territórios reivindicados no país
restas Tropicais do Brasil (PPG7), que ti- 2% de todo o desmatamento registrado só bioma e a um só segmento popu- inteiro, dos quais 301 se encontram em
nha como um de seus objetivos atender no Brasil nos últimos trinta anos aconte- lacional uma política de tamanha en- outras regiões. Apenas Mato Grosso do
as populações atingidas pela ocupação ceu dentro de TIs, segundo a plataforma vergadura no campo da regularização Sul entra nessa conta com 117 TIs reivin-
e exploração na Amazônia. E esse foi o MapBiomas. Porém, esse grau de preser- fundiária de territórios tradicionais? dicadas. O estado é, talvez, um dos mais
ponto de partida do Projeto Integrado vação se deve principalmente à resistên- O PPTAL só foi possível graças ao violentos contra povos originários do
de Proteção às Populações e Terras Indí- cia dos povos originários e aos modos de apoio financeiro de países e organiza- Brasil, sendo palco de episódios como
genas da Amazônia Legal (PPTAL), res- vida, costumes e tradições que eles man- ções do Norte global e provavelmente o Massacre de Guapo’y, em 2022, quan-
ponsável pelas demarcações citadas. têm em seus territórios. não teria acontecido se dependesse so- do indígenas do povo Guarani e Kaiowá
O PPTAL tinha por objetivo ampliar Essas e outras comunidades tradicio- mente de governos brasileiros. Entre- foram violentamente atacados por po-
a proteção ambiental no Brasil apoian- nais Brasil adentro são extremamen- tanto, por que parar ali? Por que projetos liciais militares durante uma ação de
do-se em quatro componentes, cujo te importantes para a preservação das como esse não chegaram ao Cerrado? retomada de seus territórios. A ação da
principal era a regularização fundiária águas, das florestas, da biodiversida- Ou à Caatinga? Ao Nordeste? O olhar ra- polícia resultou na morte de Vitor Fer-
de Terras Indígenas. Com apoio do go- de e até mesmo das cidades, uma vez cista desses países – e também dos go- nandes, alvejado quando já estava caído
verno alemão e de outras agências inter- que praticam uma pesca artesanal que vernos que tivemos até aqui – os fez en- ao chão. O mesmo estado em que Nhan-
nacionais de cooperação, o projeto foi não compromete o futuro de espécies, xergar a importância da Amazônia, mas decis e Nhanderus – autoridades religio-
responsável pela demarcação de aproxi- plantam o próprio alimento sem usar somente a partir do momento em que se sas desse mesmo povo – têm suas casas
madamente 44 milhões de hectares em nenhum tipo de agrotóxico, respeitam deram conta de que o que acontecesse de reza incendiadas com alguma fre-
Terras Indígenas na Amazônia – cerca de os tempos de plantio e colheita de cada com ela poderia lhes trazer graves con- quência. Duas dessas lideranças foram
37% da extensão territorial das 771 TIs espécie cultivada em seus roçados, se va- sequências, como as que estamos vendo queimadas vivas recentemente. Outras
que se encontram em diferentes fases lem especialmente daquilo que a nature- hoje, com os eventos extremos provo- 74 TIs reivindicadas estão no Nordeste;
oficiais do processo demarcatório atual- za lhes oferece, criam pequenos animais cados pela crise climática. Contudo, é 75 no Sul; e 35 no Sudeste.
mente em todo o território nacional. sem sobrecarregar ou mesmo matar a esse mesmo racismo que os impede de O advogado indígena Dinamam
Não se pode, é claro, deixar de ressaltar terra, fazem o manejo do fogo conforme enxergar que o Cerrado, a Caatinga, o Tuxá, coordenador jurídico da Articu-
que a atuação dos governos brasileiros seus conhecimentos tradicionais de ma- Pantanal, a Mata Atlântica e os Pampas lação dos Povos e Organizações Indí-
na demarcação desses territórios é mais neira que a queima não se descontrole têm a mesma importância. genas do Nordeste, Minas Gerais e Es-
lembrada por sua morosidade do que ou mesmo a com base em práticas espi- O próprio número de terras reivindi- pírito Santo (Apoinme) e coordenador
pelo contrário. Essa lentidão já foi res- rituais, rituais ligados à água, às árvores e cadas por povos indígenas atualmente executivo da Articulação dos Povos do
pondida, inclusive, com casos de auto- outros elementos desses territórios, que, é maior fora da Amazônia. Segundo o Brasil (Apib), vem chamando a aten-
demarcação executada pelos próprios para esses povos, são sagrados. relatório “Violência contra os Povos In- ção para a necessidade de uma política
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 7

Povos e comunidades tradicionais, como as quebradeiras de babaçu, contribuem no enfrentamento das mudanças climáticas, pois mantêm o equilíbrio dos biomas

direcionada a essas outras regiões não cias hidrográficas, entre as quais oito das a Alimentação e a Agricultura (FAO). O áreas próximas de onde vivem essas co-
somente como estratégia para conter o doze principais do país têm suas nascen- Muxirum – Sistema Agrícola da Baixada munidades, quando não as expulsam,
avanço das mudanças climáticas, mas tes localizadas no bioma. É lá também Pantaneira também está em processo de como uma espécie de efeito colateral.
também para enfrentar o acirramento que estão três dos aquíferos do Brasil: análise para receber o selo, tendo já con- Ele cita o Matopiba como maior exemplo
da onda de conflitos que se instala dia Bambuí, Urucuia e Guarani, sendo este cluído um dossiê técnico-científico, e de dessa migração. Criado pelo governo fe-
pós dia nesses territórios, com pessoas último o maior manancial de água doce elaboração de um plano de conservação deral em 2015, ele estabeleceu uma deli-
morrendo de forma sistêmica, a exem- subterrânea transfronteiriço do mundo, dinâmica. O nome da iniciativa diz res- mitação de áreas de Cerrado que abran-
plo do povo Pataxó, no sul da Bahia. estendendo-se por quatro países: Brasil, peito à prática quilombola da agricultu- ge partes dos estados de Maranhão, To-
Ele defende a criação de um plano de Paraguai, Uruguai e Argentina. ra familiar em mutirão, com o cultivo da cantins, Piauí e Bahia, e tinha por objeti-
demarcação de Terras Indígenas com O bioma é também a casa de uma terra sendo feito coletivamente por to- vo a expansão da fronteira agrícola para
metas a serem alcançadas, previsão de grande diversidade de povos e comu- das as famílias das comunidades e plan- produção e exportação de commodities
quais áreas serão delimitadas, indica- nidades tradicionais, e absolutamente tando tipos diversos de alimento. do agronegócio. Sua área de implanta-
ção de fontes de financiamento, entre todas essas pessoas cumprem, de forma Com base na noção de bem-viver, to- ção corresponde a cerca de 73 milhões
outros critérios. Em sua avaliação, po- muito natural, um papel extremamente dos esses povos inauguram um leque de hectares distribuídos em 337 municí-
rém, essa é uma briga que o governo importante na preservação desses ter- de possibilidades para a construção de pios. O número de conflitos agrários dis-
brasileiro não está disposto a comprar. ritórios: são mulheres quebradeiras de projetos emancipatórios. Trata-se de parou nessas regiões após sua criação,
“Existem terras identificadas e aptas a babaçu, vazanteiros/as, geraizeiros/as, processos que se produzem por meio com o Tocantins registrando aumento de
serem demarcadas nos territórios da indígenas, extrativistas, comunidades de histórias de lutas, resistência e pro- 313% já em 2016, segundo dados levan-
área de abrangência da Apoinme, em de fundo e fecho de pasto, pescadores/ postas de transformação; de uma ideia tados pela Comissão Pastoral da Terra.
alguns casos pacificadas, que contam as artesanais, pequenas famílias agri- que se funda em experiências locais, E não é coincidência que essa ins-
com a sinalização de fundos e recursos cultoras, veredeiros/as, quilombolas e mas também dialoga com contribuições talação aconteça nesses territórios,
para viabilizar sua demarcação, mas tantas outras. É nesse território que es- provenientes de diversas outras regiões pois é justamente onde estão os espa-
não há interesse político em tocar o de- ses povos lutam por sua existência sem e cidades do mundo. Tudo isso configu- ços mais preservados. De acordo com
vido processo”, afirma. comprometer a continuidade da vida rando uma multiplicidade de sujeitos, o Relatório Anual do Desmatamento
existente ali. É no Cerrado do norte de experiências e projetos democráticos de (RAD 2022), produzido pela plataforma
O BERÇO DAS ÁGUAS Minas Gerais que vivem as comunida- construção de sociedades sustentáveis MapBiomas, o agronegócio respondeu
O Cerrado é a savana com maior biodi- des de Apanhadoras de Flores Sempre- em contextos urbanos e rurais. por 95,7% do total da área desmatada
versidade do mundo. Apelidado de “ber- -Vivas, a primeira experiência no Brasil a Para Dinamam, a atenção dada pelo no Brasil em 2022 – 32,1% desse total
ço das águas”, é fundamental para man- receber o selo de reconhecimento de Sis- mundo e pelo governo brasileiro à Ama- aconteceu no Cerrado. Foi também
ter o equilíbrio hidrológico; abriga diver- temas Importantes do Patrimônio Agrí- zônia faz que essas violências migrem no Cerrado que se registrou o segundo
sas nascentes e áreas de recarga que são cola Mundial (Sipam), concedido pela para outros territórios sem nenhum tipo maior aumento de áreas desmatadas
importantes para a alimentação das ba- Organização das Nações Unidas para de constrangimento e se instalem em de 2021 para 2022 – proporcionalmen-
8 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

te, o maior de todos: um incremento de de litros de água por dia para irrigação maticamente parecido: brancos (quase pital, em especial o estrangeiro, e sob
31,2% (156.871 ha). de suas lavouras de soja, segundo repor- 63%) do agronegócio. as bênçãos do Estado.
“A imagem racista – e falsa – de um Cer- tagem da Agência Pública. Tudo outor- Fran faz uma reflexão com base no
rado despovoado e desprovido de vida gado pelo governo estadual baiano. conceito de paz quilombola, de Beatriz RACISMO AMBIENTAL
– aquela caricatura de um solo rachado, O RAD 2022 reforça que as comuni- Nascimento, para pensar sobre quais Dinamam faz uma provocação cirúr-
seco e infértil – ‘justifica’ a atuação vio- dades quilombolas são hoje, ao lado são os desafios de hoje para que essas gica: “Não fossem os povos e as comu-
lenta desses grandes fazendeiros, grilei- das Terras Indígenas, os territórios mais comunidades consigam manter a paz nidades tradicionais que vivem nesses
ros de terra, agentes do hidronegócio e da preservados do país: apenas 0,05% da dentro de seus territórios, com as pes- territórios, hoje já estaríamos falando
mineração contra os povos e comunida- área total desmatada no Brasil em 2022 soas vivendo da melhor forma e tendo em um aumento na média da tempe-
des tradicionais. Passa a ideia de que já se estava dentro dessas comunidades. E o acesso a direitos, inclusive aos seus ter- ratura do planeta muito maior do que
trata de uma terra morta e que, portanto, maior número de comunidades quilom- ritórios. Beatriz dizia que a instituição 1,5 ºC”. Um paradoxo cruel, pois, em-
não há com o que se preocupar”, explica bolas está no Nordeste, especialmente de quilombos no período escravagista bora as mudanças climáticas nos insi-
o advogado. Trata-se de uma narrativa na Bahia e no Maranhão, como compro- foi um momento de liberdade, de orga- ram em uma crise de escala planetária,
que apaga a presença dos povos que vi- vou o Censo Demográfico 2022. Segun- nização política desse povo em um con- seus efeitos não são sentidos da mes-
vem nesses territórios de maneira propo- do os dados da pesquisa, apenas 12,6% texto contra-hegemônico, e que a exis- ma maneira em todos os lugares nem
sital para permitir sua exploração. dos quilombos existentes no país são re- tência daquelas comunidades era mais da mesma maneira por todos os seg-
conhecidos e delimitados pelo governo importante do que a própria guerra tra- mentos da população. Os piores e mais
UM GENOCÍDIO brasileiro e somente 4,3% da população vada durante a economia escravagista. devastadores efeitos da crise climática
Em novembro de 2019, a Campanha quilombola total reside em territórios Essa paz quilombola, por sua vez, amea- – por exemplo, calor extremo, enchen-
Nacional em Defesa do Cerrado de- com processo de regularização fundiá- çava mais o sistema escravocrata, racis- tes e quebras de safra – são sentidos
nunciou o Estado brasileiro junto ao ria concluído e devidamente titulado. ta e colonialista do que a própria guerra. de forma desproporcional por países e
Tribunal Permanente dos Povos (TPP). Fran Paula, quilombola e educadora E, como resposta do sistema a isso, as comunidades do Sul global e, neste, pe-
Na petição, a Campanha apontou que, popular da Fase, destaca como o Censo comunidades quilombolas eram ainda las populações mais vulnerabilizadas
se nada fosse feito para frear a devasta- mostra um retrato do acesso à terra no mais violentadas. Para Fran, o mesmo – uma consequência visceral das pro-
ção, o Cerrado seria extinto e, com ele, Brasil desde a colonização. “Os dados acontece nos dias atuais. fundas desigualdades e do racismo am-
a base material da reprodução social de demonstram o que a gente vem pautan- “Os territórios e seus povos dão mui- biental que permeiam toda essa cadeia.
povos indígenas, comunidades quilom- do como racismo fundiário, que é essa tas contribuições para o país em termos É preciso olhar para além da Ama-
bolas e tradicionais do território, como concentração de terras no país desde de manutenção de cultura, ancestralida- zônia. Ao mesmo tempo que esses ou-
povos culturalmente diferenciados. Ou 1500 que privou do acesso a territórios de, a própria história, trabalho, manejo tros territórios não são vistos como
seja, seu genocídio. Foram denuncia- a população negra escravizada. A pes- da biodiversidade, da agricultura e da alternativa para o enfrentamento das
dos quinze casos graves e bastante re- quisa traz dados muito importantes e preservação de biomas como o Cerrado. mudanças climáticas, apesar de toda
presentativos da atuação, em especial que devem ser incorporados às discus- Isso demonstra quanto esses espaços es- sua riqueza, são apresentados como
do agronegócio, no bioma. sões sobre reparação histórica. A luta tão preservados até hoje e que isso se dá áreas naturalmente degradadas, o que
Um deles é um caso emblemático de pela vida nos quilombos não pode dei- porque tem gente ali, quilombolas cui- faz que sempre paire no ar, de maneira
grilagem de terras de comunidades tra- xar de fora esse aspecto.” dando, protegendo e convivendo com antecipada, um elemento dificultador
dicionais de fundo e fecho de pasto no aquelas terras. O ataque a esses territó- para a elaboração de políticas públicas
oeste da Bahia por empresas nacionais rios e aos direitos desses povos está mui- específicas para sua proteção e preser-
e estrangeiras produtoras e comerciali- “A imagem racista – e to relacionado a isso. Por representarem vação e também de seus povos.
zadoras de grãos e outras especializadas uma ameaça para o modelo de desen- Não é possível enfrentar as mudanças
em compra e venda de terra. No entanto,
falsa – de um Cerrado volvimento predatório vigente, essa paz climáticas sem entender e reconhecer a
além da grilagem, existe o uso predatório despovoado ‘justifica’ a é ameaçada constantemente pela ação importância desses povos, garantindo
das águas por grandes fazendas e empre- atuação violenta desses do agronegócio sobre os territórios, mas seu direito constitucional de permane-
sas do hidronegócio, o que compromete grandes fazendeiros”, também por meio da negação do acesso cer em seu território, tão carregado de
seu uso tradicional pelos povos da região. a bens comuns, à biodiversidade, do ra- ancestralidade, mas também de futuro.
A Fazenda Igarashi, por exemplo, possui
explica o advogado indí- cismo institucional que distancia esses Garantir a demarcação de Terras Indíge-
outorga do órgão ambiental da Bahia gena Dinamam Tuxá povos do acesso a creches, documen- nas e a titulação de comunidades qui-
para a retirada de mais de 106 milhões tação, educação, alimentação e saúde”, lombolas e reconhecer o direito a terra,
de litros diários de água do Rio Arrojado, afirma a quilombola. água e território dessas e de tantas ou-
que já dá sinais de morte, segundo rela- PAZ QUILOMBOLA A cada ano, vemos aumentar a inten- tras comunidades é crucial. É preciso
tos das comunidades locais colhidos pela O que Fran chama de racismo fundiário sidade dos eventos climáticos extre- pressionar o governo para a criação de
Associação dos/as Advogados/as de Tra- pode ser observado de maneira mui- mos, e a exploração predatória desses uma política nacional de regularização
balhadores/as Rurais da Bahia (AATR). to precisa no Centro-Oeste brasileiro, territórios é o principal fator agravan- fundiária que promova uma reparação
Um estudo realizado pelo geógrafo onde há grande concentração de ter- te de seus impactos no mundo. Não histórica para povos historicamente
Yuri Salmona e apresentado na COP 27, ra nas mãos de grandes latifundiários, restam dúvidas quanto a isso e muito marginalizados e seja embasada em um
no Egito, concluiu que os rios do Cerra- produtores de soja, pecuaristas e outros menos acerca de quem são os princi- modelo de desenvolvimento sustentá-
do perderam 15,4% da vazão de água por representantes do agronegócio, majori- pais responsáveis por essa devastação: vel, agroecológico e integrado a outros
causa do desmatamento e das mudan- tariamente brancos. Os três estados da o agronegócio, as grandes empresas direitos, como educação, saúde e ali-
ças climáticas entre 1985 e 2022. Segun- região mais o Distrito Federal figuram multinacionais, a especulação imobi- mentação adequada e saudável. A ga-
do ele, mais da metade dessa redução é entre os cinco com maior concentração liária, as mineradoras, os complexos rantia do território é também a garantia
motivada especialmente pela atuação de terra em propriedade de estabeleci- portuários que invadem territórios tra- da vida dessas populações. Em contra-
do agronegócio, que muda a dinâmica mentos agropecuários que não praticam dicionais pesqueiros, garimpeiros, gri- partida, são elas que vêm garantindo a
do uso dos solos nos entornos dos rios, a agricultura familiar, com Mato Grosso leiros, grandes fazendeiros e empresas vida desses mesmos territórios há tanto
transformando as vegetações nativas do Sul novamente no topo do ranking: é exportadoras de commodities são agen- tempo. E a vida destes é fundamental
em áreas para produção de commodities o caso de 96% da área de todos os esta- tes de um modelo de desenvolvimento para toda a humanidade. Os povos e as
– pouco mais de dois quintos são resul- belecimentos agropecuários do estado, que explora bens comuns da natureza comunidades tradicionais são a conti-
tado das mudanças climáticas no plane- segundo o Censo Agropecuário 2017. de tal forma que coloca sob ameaça de nuidade da vida em suas mais variadas
ta. O Rio Arrojado, citado na denúncia Entre os donos dessas propriedades, extinção não apenas esses territórios, formas. Não há outro caminho.
da Campanha em Defesa do Cerrado ao aproximadamente 68% se autodecla- mas toda forma de vida e organização
TPP, já perdeu 18,2% da vazão, segundo ram brancos. Em números absolutos, social como conhecemos hoje. A ques- *Tarcilo Santana é jornalista pela Universi-
a pesquisa, e esse número deve pratica- Mato Grosso aparece no topo da lista: tão fundiária no Brasil tem como base dade Federal do Recôncavo da Bahia
mente dobrar até 2050. Apenas no oeste são mais de 49 milhões de hectares nas esse modelo, que atende única e exclu- (UFRB) e analista de comunicação da Coor-
baiano, o agronegócio capta 1,8 bilhão mãos de pessoas com um perfil sinto- sivamente aos interesses do grande ca- denadoria Ecumênica de Serviço (Cese).
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 9

REFORMA AGRÁRIA

A financeirização da
natureza não solucionará
as crises ambientais
Não é possível que o próprio modelo que provoca os impactos ambientais e toda a
destruição que vivemos hoje seja o protagonista e promotor das soluções e saídas para
eles. Pelo contrário, as saídas apontadas geram mais contradições e desigualdades

POR BÁRBARA LOUREIRO, CAMILO SANTANA E MATHEUS MENDES*

N
a atual hegemonia do capital fi- Por mais que haja uma ampla parti- científicas que conformam e protegem nos que 52% dos recursos foram desti-
nanceiro, o modelo capitalista cipação dos governos, as COPs foram os ecossistemas durante milênios, fun- nados exclusivamente ao financiamento
cria novas e diferentes engenha- capturadas pelas grandes corporações dadas em uma relação de coexistência das lavouras de soja. A cadeia da soja é
rias para transformar contradi- transnacionais, que pautam as agendas harmônica entre o ser humano e o res- o exemplo de uma longa trajetória de ci-
ções em possibilidades de acúmulo de e negociações climáticas para que os re- tante da natureza, sem ter de destruir clos econômicos com grande concentra-
mais-valia. Na dimensão ambiental, sultados sejam favoráveis a seus interes- desenfreadamente para produzir a vida, ção de renda, enorme impacto ambien-
essas novas formas de acumulação ses. Um exemplo é a próxima COP-28, haja vista que onde ainda há floresta na- tal e injustificáveis privilégios. Por outro
combinam, por exemplo, as formas sediada em Dubai, que terá um espaço tiva em pé é justamente onde vivem os lado, o valor empenhado este ano pelo
clássicas de exploração dos bens co- específico para a Organização dos Países povos tradicionais e camponeses. governo no Programa de Aquisição de
muns com novidades baseadas nas Exportadores de Petróleo (Opep) e a in- Alimentos (PAA) da agricultura familiar
agendas “verdes”, o dito capitalismo dústria petroleira. Ou seja, as principais para todas as modalidades de alimentos
verde, como os projetos de mercado de responsáveis pelas emissões de CO2 pro- foi estimado em R$ 900 milhões, com
carbono, transição energética, minera- veniente do modelo dos combustíveis
O Incra estima que no apenas R$ 220 milhões empenhados até
ção “verde”, entre outros. fósseis se colocam também no debate próximo ano o orçamen- outubro. Já o Instituto Nacional de Colo-
Essas ações são na verdade um con- da transição energética para construir to para a reforma agrária nização e Reforma Agrária (Incra) estima
junto de práticas econômicas que visam novas formas de acumulação em cima será de R$ 567 milhões, que no próximo ano o orçamento para a
inserir elementos da natureza no pro- das contradições que elas mesma cria- reforma agrária será de R$ 567 milhões, o
cesso de financeirização, apresentando- ram e financiaram.
o menor valor em pelo menor valor em pelo menos duas déca-
-se como “soluções para a questão cli- Do mesmo modo, elaboram-se dis- menos duas décadas das. Enquanto isso, mais de meio milhão
mática”. Portanto, a síntese dessa agen- cursos que sugerem que povos, comuni- de pessoas foram afetadas por conflitos
da é o debate das alterações climáticas, dades, grandes corporações e governos agrários somente este ano, de acordo
que, mesmo sendo uma realidade ur- devem sentar juntos para discutir as saí- Visto isso, o tema da reforma agrária com a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
gente, são forçadamente apresentadas das para a crise climática, escamotean- é central para enfrentar uma das prin- Assim, a centralidade para construir
como o único problema ambiental, em do os verdadeiros interesses colocados cipais causas dos problemas da des- reais soluções para os desafios ambien-
detrimento de outros, como a perda de em torno do controle dos bens comuns truição ambiental. No Brasil, a principal tais contemporâneos perpassa uma
biodiversidade, o aumento da poluição da natureza e da terra. Se há um suposto fonte de emissão de gases de efeito es- nova relação entre o que propomos fa-
química, a perda da cobertura dos solos interesse em comum da sociedade sobre tufa é a mudança do uso do solo, com zer e o que realmente estamos fazendo.
e a acidificação dos oceanos. o futuro do planeta, sabemos que nesse queimadas e desmatamento, agenciada Disputar o orçamento público é uma
Sob essa égide, tem-se disseminado barco as condições não são as mesmas. por uma elite agrária reacionária e in- dessas tônicas, assim como é central a
maciçamente que o caminho para a Não é possível que o próprio modelo vestimentos na expansão das frontei- disputa pelo modelo agrícola atual, fo-
solução da crise climática é a mudança que provoca os impactos ambientais e ras agrícolas. No contexto brasileiro e mentando a produção de alimentos
da matriz energética e a venda de cré- toda a destruição que vivemos hoje seja latino-americano, a reforma agrária e a saudáveis por meio da agroecologia, da
ditos que neutralizam a poluição, tendo o protagonista e promotor das soluções demarcação das terras indígenas são os reconstrução da complexidade ecoló-
o mercado financeiro como principal e saídas para eles. Pelo contrário, as primeiros passos para combater a crise gica dos territórios, da soberania ali-
agente, e que, se resolvido isso, “tudo saídas apontadas geram mais contradi- ambiental. As soluções para a crise am- mentar, da defesa dos territórios indí-
estará bem”, transformando o mesmo ções e desigualdades. biental já existem e têm como alicerce a genas, quilombolas e de comunidades
modelo de causadores da crise para os Nessas bancadas de negociação do história e as bandeiras dos movimentos tradicionais e da democratização do
“salvadores da humanidade”. futuro da humanidade não se discutem sociais ao redor do mundo. Contudo, acesso à terra com a reforma agrária. É
Assim, vem se conformando no último temas centrais para a solução do proble- não haverá solução possível enquanto o nos territórios indígenas, quilombolas
período uma governança privada dos ma, que vai muito além de substituir o discurso pró-meio ambiente não for ab- e camponeses que a biodiversidade
bens comuns, no qual as transnacionais petróleo por baterias de lítio. Problemas sorvido na prática da governança global, tem sido zelada por meio de manejos
e o comércio internacional mantêm con- como os da crise ambiental só se resol- sendo necessária gestão e fomento para que respeitam o equilíbrio ambiental,
trole sobre as negociações internacio- vem quando atacamos as causas em vez mudar o curso até aqui. da mesma forma que os saberes e co-
nais e os mecanismos criados sob esse dos sintomas. Portanto, é imprescindí- No Brasil, por exemplo, a soja, princi- nhecimentos seguem sendo acumula-
“guarda-chuva ambiental”. E o principal vel, para a construção de saídas efetivas pal commodity, tem um subsídio públi- dos e compartilhados.
instrumento para essa governança mun- dessa encruzilhada, que se discuta com co de quase R$ 60 bilhões ao ano apenas
dial sobre o clima tem sua agenda cen- seriedade e protagonismo popular a em renúncia fiscal. Dados relativos a *Bárbara Loureiro, Camilo Santana e
tral nas Conferências das Partes (COPs) questão da terra, dos territórios e do do- 2022 fornecidos pelo Banco Central in- Matheus Mendes são membros do Plano
da Convenção-Quadro das Nações Uni- mínio e uso dos bens comuns. Essa dis- dicam que, do total de crédito rural para Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimen-
das sobre Mudanças Climáticas. cussão deve estar baseada em práticas custear as lavouras brasileiras, nada me- tos Saudáveis do MST.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

CAPITALISMO AUTORITÁRIO, DESTRUIÇÃO DE BIOMAS E SAÍDAS ILUSÓRIAS

O Brasil que escolheu as


commodities e esqueceu a vida
O Brasil no singular que conhecemos é um projeto de homogeneização de paisagens, de uniformização de agendas
culturais, de padronização de pacotes alimentares com veneno, de produção em massa de autoritarismo e de destruição
em massa de nossos biomas. Esse país no singular é violento, mas teve sua violência transformada em heroísmo

POR BRUNO MALHEIRO*

A
escolha política de distintos go- frentes da mineração, do agronegó- danças traumáticas nos espaços nos ras capitalistas do Brasil, falando de
vernos na América Latina, no cio... Esse modo de produzir fronteiras quais essas dinâmicas se instalam e um capitalismo autoritário.
início do século XXI, de expor- é um modo de destruir territórios da sem a flexibilização e/ou o desrespeito Não é novidade, portanto, a relação
tar commodities agrícolas e mi- vida, pela transformação de bens co- às leis que assegurem qualquer direito entre a expansão das commodities e o
nerais como caminho único de desen- muns em mercadoria, ou ainda pela aos territórios por elas afetados. A de- autoritarismo, mas talvez não seja
volvimento aprofundou uma forma transformação de uma terra indígena mocracia não vale muito para os arti- muito usual pensar esse movimento
peculiar de expansão de fronteiras ca- em garimpo, de um território quilom- culadores do agro e dos negócios de também como de expansão de racio-
pitalistas, em que a produção de rique- bola em latifúndio, de uma aldeia indí- mercantilização da vida. Basta obser- nalidades e subjetividades marcadas,
za se dá pelo cercamento dos territórios gena em cidade. Da colônia ao Império, varmos o levantamento, feito pelo site sobretudo: por um modo colonial e ra-
da vida de povos, grupos e comunida- dos bandeirantes aos pecuaristas e so- De Olho nos Ruralistas, dos nomes li- cista de tratamento das diferenças, por
des. Essa escolha atravessou governos jeiros do século XXI, a lógica hegemô- gados ao agronegócio na lista dos fi- uma identidade proprietária patriar-
de espectros político-ideológicos dis- nica do capitalismo no Brasil é a ex- nanciadores sugeridos para indicia- cal, por uma noção instrumental da
tintos e, em razão dela, a exportação pansão territorial de negócios que, mento pela relatora da CPMI dos Atos natureza como negócio, por um modo
de bens primários se tornou o motor de para funcionar, precisam produzir Golpistas de 8 de janeiro (CASTILHO; antidemocrático de tomada de deci-
inserção dependente da América Lati- uma guerra encarniçada contra os que FIALHO; BATAIER, 2023). sões, por uma lógica violenta e arma-
na na geoeconomia global. se colocam em seus caminhos. Maria da Conceição Tavares (2000), mentista de defender a propriedade,
No Brasil, já na primeira década do Essa geografia de guerra é renovada no fim da década de 1990, já indicava por um modo de pensar a liberdade co-
século XXI, as exportações de bens pri- quando escolhemos as commodities que, para manter o pacto de domina- mo manutenção de privilégios, por
mários ultrapassaram as de manufatu- como saída de desenvolvimento em ção social férreo entre os donos da ter- uma maneira patrimonialista de trata-
rados e, assim, o país viu crescer a área pleno século XXI. Esses negócios nun- ra, o Estado e os donos do dinheiro no mento dos bens públicos e/ou coleti-
plantada de soja em 166,5% e decres- ca conseguiram conviver bem com a Brasil, sempre se recorreu a golpes, as- vos e por uma forma de pensar a políti-
cer as áreas plantadas de arroz, feijão democracia, pois não se estruturam sim como Otávio Guilherme Velho ca pela produção de inimigos.
e mandioca, em 51,6%, 36,9% e 25,3%, monocultivos, grandes projetos mine- (1979) também já havia nos alertado A sobreposição entre os mapas de ex-
respectivamente, entre 1999 e 2018 rometalúrgicos, usinas hidrelétricas, sobre a imposição de formas específi- pansão das commodities agrícolas e
(IBGE, 1999, 2018). estradas, hidrovias e ferrovias sem mu- cas de dominação política nas frontei- minerais, assim como os do desmata-
Este texto quer falar das muitas catás- mento, e os mapas eleitorais das re-
© Bruno Kelly/Reuters
trofes desse Brasil que escolheu as com- giões em que o candidato de extrema
modities e esqueceu a vida. Em um pri- direita Jair Bolsonaro venceu, seja em
meiro momento, relacionaremos essa 2018, seja em 2022, não são coincidên-
escolha com a difusão de um capitalis- cia, uma vez que não estamos falando
mo autoritário no país. Em um segundo de sobreposição de variáveis, mas de
momento, demonstraremos a expansão racionalidades.
das commodities como uma máquina de É preciso entender que a expansão
destruição de biomas. Na terceira parte espacial das commodities é também
deste texto, interrogaremos algumas saí- de um gosto musical, de um modo de
das “verdes” ilusórias oferecidas pelos comer, de um modo de se vestir e se
mesmos atores que destroem biomas. comportar, de um modo de defender a
Por fim, colocaremos no centro do de- propriedade... Cada um desses modos
bate aqueles que sempre “r-existiram” de pensar e agir estão ancorados em
ao Brasil das commodities. alguns processos: nos circuitos das
festas agropecuárias e do sertanejo
BREVE GENEALOGIA DE universitário, que monopolizam a
UM CAPITALISMO AUTORITÁRIO agenda cultural de diversos municí-
A história do capitalismo no Brasil é pios; na efervescência da abertura de
marcada por uma violenta geografia de clubes de tiro, que se difundem onde
expansão territorial de frentes econô- está o gado, a soja e outros monoculti-
micas que se implantaram país aden- vos, legitimando uma subjetividade
tro ignorando todas as formas de vida armamentista; na difusão de redes
humana e não humana que encontra- atacadistas, que unificam os pacotes
ram no caminho. Assim foram as fren- do agronegócio como formas de ali-
tes do ouro, do gado, dos garimpos, dos mentação barata, levando veneno à
monocultivos, da pecuária, mas tam- mesa; na força política de sindicatos
bém a formação de nossas principais patronais na construção de discursos
cidades. Assim continuam a ser as Fumaça dos incêndios florestais na Amazônia se eleva sobre o porto de Manaus sobre emprego e renda.
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 11

A homogeneização das paisagens pe- SAÍDAS ILUSÓRIAS responsável pelos dois principais cri- do a vida que ele destrói.
las commodities também é das agendas Os clamores diante do colapso ambien- mes ambientais da história do Brasil Mesmo que tenhamos nos esforçado
culturais, da comida, dos comporta- tal que vivemos só se avolumaram após (TAKEDA, 2023). em esquecer, Brasis plurais ainda tei-
mentos e das narrativas hegemônicas quatro anos de um governo que alargou Parece que, além dos grandes proje- mam em resistir pela força de povos e
que circulam. No livro Geografias do bol- essa máquina de destruição ao incenti- tos, teremos de conviver com grandes comunidades, pela memória ancestral
sonarismo, de forma mais aprofundada, var deliberadamente formas brutais de eventos, que nos apresentam saídas de que conduz vidas a antagonizar com
defendemos que o fenômeno de adesão expansão capitalista. Entretanto, embora mercado pela venda do destino de nos- esse Brasil singular. Essas vidas nunca
à extrema direita no Brasil tem bases es- essa pauta esteja ganhando repercussão sos biomas. Essas saídas recorrem a foram tomadas como ponto de partida
paciais concretas de sustentação em três na mídia e mesmo nos atuais represen- quatro ideias estruturantes, cujos limi- para outro projeto nacional que, se as re-
geografias: a geografia de expansão das tantes do Estado, ainda há um enorme tes gostaríamos de demonstrar. A pri- conhecesse, já teria de ser plurinacional.
commodities, do negacionismo e da fé descompasso entre as palavras e as coi- meira é que, por meio da produção in- O colapso metabólico se apresenta a
evangélica (MALHEIRO, 2023). sas. Temos construído bons discursos, tensiva e da inovação tecnológica, todos. No entanto, ele está ancorado
As cadeias de relações que sustentam ao mesmo tempo que nossa opção pelas diminuímos problemas ambientais. Tal em saberes e práticas, em uma raciona-
as commodities no Brasil e a expansão commodities permanece inalterada. concepção ignora que a terra ainda é lidade que normaliza a barragem de
de um capitalismo autoritário serão Estamos acostumados a ver as fronteiras um recurso e um ativo fundamental na um rio por uma hidrelétrica, como um
pensadas, a partir de agora, pela catás- econômicas se expandindo ancoradas em expansão das commodities. A segunda acerto de engenharia, que normaliza a
trofe ambiental que também produzem. grandes projetos financiados pelo Estado. ideia é que é possível pensar a sustenta- destruição de uma montanha inteira
Analisando as ferrovias, hidrovias e estra- bilidade de negócios isolados, como a por um projeto mineralógico, como um
UMA MÁQUINA DE das a serem financiadas pelo novo Progra- soja com carbono zero. Essa leitura es- acerto dos cálculos geológicos. Preci-
DESTRUIR BIOMAS ma de Aceleração do Crescimento, tudo quece que a expansão das commodities samos pensar diferente!
A expansão das commodities no Brasil, parece inalterado. Também já sabemos que se dá por um consórcio entre diversos Restituir ao centro do debate os sabe-
ao adubar o terreno do autoritarismo, a expansão das commodities só é lucrativa negócios, o que chamamos de agro-mi- res produzidos com a vida é conseguir
também destrói relações que fertili- com uma grande drenagem de recursos do nero-hidro-bio-carbono-negócio (MA- sentipensar por outro legado teórico e
zam a vida. Como uma máquina ecoci- Estado. O novo Plano Safra, que distribui R$ LHEIRO; PORTO-GONÇALVES; MICHE- político construído por povos e comu-
da, essa expansão interrompe ciclos vi- 364,22 bilhões para o agronegócio e R$ 77,7 LOTTI, 2021). A terceira ideia é que nidades para os quais a incompletude
tais e os fluxos de matéria e energia que bilhões para a agricultura familiar, parece resolvemos o colapso ambiental pela dos seres em relação ao mundo é a refe-
mantêm a estabilidade ecológica dos demonstrar que isso também permanece legalização de relações ilegais, o que ig- rência para pensar o planeta – não o
biomas. Uma mesma lógica capitalista igual. Mas, afinal, o que mudou? nora que, pelas fronteiras das commodi- antropocentrismo –, para os quais a vi-
que triturou e continua a triturar a Ma- Há um consenso sendo construído há ties, as produções legalizadas também da em abundância é a referência para
ta Atlântica, que destruiu e continua a décadas de que é possível construir um matam e desmatam, e muito facilmente pensar a economia – não a escassez –,
destruir o Pantanal, o Pampa, a Caa- desenvolvimento sustentável econômi- o ilegal se torna legal. E a última é que é para os quais, enfim, a complementari-
tinga, vem, de forma decisiva e alar- ca, social e ambientalmente. Palavras possível mercantilizar bens comuns dade, o cuidado e a reciprocidade dos
mante, alargando sua destrutividade como “sustentabilidade”, “bioecono- sem negar as relações que os constituí- seres são as referências para pensar as
para as últimas fronteiras que ainda mia”, entre outras, começam a circular ram. Essa leitura não considera a subor- relações – não a competitividade.
garantem nosso equilíbrio metabólico: amplamente entre empresas e gover- dinação do tempo de reprodução da vi-
o Cerrado e a Amazônia. Escolhemos nos. Entretanto, é importante lembrar da ao veloz tempo do capital. *Bruno Malheiro é doutor em Geografia,
um modo de produzir que precisa dre- aquilo que Acselrad et al. (2012) cha- Não podemos pensar em saídas para professor do curso de Educação do Campo
nar nossas energias vitais. mam de desigualdade ambiental, para a escolha das commodities pela comodi- da Universidade Federal do Sul e Sudes-
A escolha das commodities produziu compreender que os danos ambientais tização de todas as esferas da vida nem te do Pará (Unifesspa) e do Programa de
um incremento de 27,2 milhões de ca- recaem predominantemente sobre os pela produção de discursos que vestem Pós-Graduação em Geografia da Universi-
beças de gado na região Norte e de 16,7 grupos vulneráveis, em uma distribui- de sustentáveis práticas ecocidas. Preci- dade do Estado do Pará (Uepa). É autor do
milhões no Centro-Oeste entre 1999 e ção desigual dos benefícios e malefícios samos pensar para além dessa racionali- livro Geografias do bolsonarismo: entre a
2019 (IBGE, 1999, 2019). Não esqueça- de uma atividade econômica. Essa desi- dade autoritária, destrutiva e que falseia expansão das commodities, do negacionis-
mos que, como demonstram Salomão gualdade se alarga também ao poder de seus problemas como soluções. mo e da fé evangélica no Brasil, um dos au-
et al. (2021), 75% das áreas desmatadas agência que cada ator envolvido na tores do livro Horizontes amazônicos: para
na Amazônia têm a pecuária como a questão ambiental tem, uma vez que SÃO POSSÍVEIS BRASIS repensar o Brasil e o mundo e corroterista
principal responsável. Essa escolha estamos em um país que ampliou por PARA ALÉM DAS COMMODITIES? do filme Pisar suavemente na Terra .
também fez a área plantada em hecta- séculos o poder decisório e a capacida- O Brasil no singular que conhecemos é
res de soja, entre 1998 e 2019, disparar de política de grandes latifundiários, um projeto de homogeneização de pai- ‘REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
180.500% no Pará, 10.200% no Tocan- empresas agrícolas e grandes corpora- sagens, de uniformização de agendas • ACSELRAD, Henri et al. “Desigualdade ambiental e
tins, 970,3% no Maranhão e 409,2% em ções, ou seja, os principais responsá- culturais, de padronização de pacotes acumulação por espoliação: o que está em jogo na
Mato Grosso (409,2%) (IBGE, 1998, veis por nosso colapso ambiental. alimentares com veneno, de produção questão ambiental?”, E-cadernos CES, n.17, 2012.
• CASTILHO, A. L.; FIALHO, T.; BATAIER, C. “En-
2019). É impossível um crescimento É nesse quadro que bons discursos e em massa de autoritarismo e de des- tre 16 financiadores do golpe denunciados por
dessa magnitude sem violência e deses- boas ideias são manejados por quem truição em massa de nossos biomas. O CPMI, 13 são fazendeiros”, De Olho nos Ruralis-
truturação ambiental. produz crimes e danos ambientais, co- Brasil no singular é o Brasil que esco- tas, 17 out. 2023.
• IBGE. Produção agropecuária no Brasil. Rio de
Não é sem razão que neste exato mo forma de passar um verniz verde lheu as commodities. Janeiro: IBGE, 1998, 1999, 2018, 2019.
momento tantas regiões da Amazônia em suas tradicionais práticas poluen- Esse país no singular é violento, mas • MALHEIRO, B. Geografias do bolsonarismo: en-
estejam sofrendo com a seca, enquan- tes, devastadoras e destrutivas. Isso se teve sua violência transformada em he- tre a expansão das commodities, do negacionis-
mo e da fé evangélica no Brasil. Rio de Janeiro:
to, na região Sul, tantas cidades expe- opera em muitas escalas, basta perce- roísmo. Esse país no singular é genoci- Amazônia Latitude Press, 2023.
rimentem desastres com enchentes. bermos que os principais emissores de da, mas teve sua prática de genocídio • MALHEIRO, B.; PORTO-GONÇALVES, C. W.;
Também não é sem razão que 40% das gases de efeito estufa também são os transformada em triunfo. Esse país no MICHELOTTI, F. Horizontes amazônicos: para re-
pensar o Brasil e o mundo. São Paulo: Expressão
cidades brasileiras tenham decretado principais financiadores das Conferên- singular transformou sua geografia de Popular/Rosa Luxemburgo, 2021.
estado de emergência por eventos cli- cias das Partes (COPs,). Em escala na- expansão territorial em seu modo de • SALOMÃO, C. et al. “Amazônia em chamas 8:
máticos extremos entre 2019 e 2023 cional é visível a centralidade da Con- contar a história e, assim, fomos forma- desmatamento, fogo e pecuária em terras públi-
cas”, Ipam Amazônia, Manaus, 27 out. 2021.
(TAVARES; BUONO, 2023). A expe- federação Nacional da Agricultura dos pela visão dos representantes de • TAKEDA, Brenda. “Vale tudo para maquiar Belém
riência do colapso ambiental já é coti- (CNA), da Vale S.A., da JBS, além de ou- nosso colapso, chamados de pioneiros. para a COP-30?”, Sumaúma, 23 jul. 2023.
diana e não se restringe mais aos de- tras empresas e órgãos ligados às com- Esse Brasil no singular, que resolveu ig- • TAVARES, M. C. “Subdesenvolvimento, domina-
ção e luta de classes”. In: TAVARES, M. C. (org.).
partamentos de universidades nem modities na construção dos estandes norar sua diversidade étnica, ecológica Celso Furtado e o Brasil. São Paulo: Fundação
aos clamores de povos e comunidades do Brasil nas últimas COPs. Não custa e cultural, transformou-se em uma Perseu Abramo, 2000. p.129-154.
que há tempos nos alertam sobre as lembrar que as duas principais obras barreira cognitiva: por ele só consegui- • TAVARES, P.; BUONO, R. “Sete sinais da crise
climática no Brasil”, Revista Piauí, 23 out. 2023.
consequências de nossa escolha das em Belém, sede da COP-30, em 2025, mos pensar em desenvolvimento por • VELHO, O. G. Capitalismo autoritário e campesi-
commodities. são financiadas pela Vale S.A., empresa esse pioneirismo destrutivo, esquecen- nato. Rio de Janeiro: Difel, 1979.
12 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

GOVERNO LULA

Avanços e
contradições nas
políticas socioambientais
O Brasil voltou a ser protagonista na política climática global, um grande alento num cenário mundial
conturbado. Lula assumiu a bandeira da “transição ecológica”, vem reduzindo o desmatamento e ofereceu
Belém para sediar a COP-30. Porém, o governo também é composto de forças conservadoras e
desenvolve políticas que atendem a interesses que podem impactar a agenda socioambiental

POR MÁRCIO SANTILLI E MAURICIO GUETTA*

E
m 2023, o Brasil voltou a ser prota- Medida Provisória n. 1.150 é emblemá- O Congresso votou para reduzir a es- passado, o STF tem sido o destinatário
gonista na política climática glo- tico. Originalmente, a MP tratava ape- trutura do Ministério do Meio Ambiente de contestações dos atos e omissões
bal, após quatro anos de retroces- nas de uma prorrogação de prazo para e para impedir que o Ministério dos Po- do Poder Executivo, por parte de orga-
sos cumulativos, aumento do a inscrição de proprietários no Cadastro vos Indígenas assumisse a função de de- nizações sociais e partidos políticos.
desmatamento e isolamento interna- Ambiental Rural. Setores do governo se cidir sobre os limites de terras indígenas a Quando Lula assumiu a Presidência, já
cional. Lula assumiu a bandeira da opuseram ao Ministério do Meio Am- serem demarcadas. E está fazendo avan- tramitavam dezenas de ações ajuizadas
“transição ecológica”, nomeou lideran- biente e Mudança do Clima e se uniram çar, muito rapidamente, a tramitação do nos últimos quatro anos, como para
ças reconhecidas nos ministérios afe- a parte dos deputados na Câmara para “pacote da destruição”, um conjunto de exigir a desintrusão de terras indígenas
tos às agendas socioambientais, vem aprovar golpes à legislação que prote- proposições legislativas gravíssimas, que invadidas e para cobrar resultados efe-
reduzindo o desmatamento na Amazô- ge o bioma. Mesmo com a tentativa do inclui projetos de lei para liberar agrotó- tivos em relação às metas assumidas
nia e ofereceu a cidade de Belém (PA) Senado de barrar a manobra, a Câmara xicos cancerígenos e sem controle dos pelo Brasil no Acordo de Paris, que têm
para sediar em 2025 a COP-30, confe- teve a palavra final e jogou a bomba no órgãos sanitários e ambientais; destruir força supralegal (acima da lei e abaixo
rência da ONU sobre o clima. colo de Lula. Corretamente, o presiden- o licenciamento ambiental, considerado da Constituição). Já havia até decisões
O reposicionamento do Brasil é um te da República vetou os pontos proble- o mais importante instrumento da polí- liminares determinando providências,
grande alento num cenário mundial máticos. Os vetos devem ser apreciados tica ambiental brasileira; restringir a de- que facilitaram ações do novo governo,
conturbado, politicamente polarizado, pelo Congresso Nacional. marcação das terras indígenas e abri-las como a retirada de garimpeiros ilegais
tensionado por migrações em massa, para atividades de impacto; facilitar o do território yanomami e a retomada de
marcado por acirradas disputas comer- CONGRESSO REACIONÁRIO roubo de terras públicas, prática conhe- políticas e conselhos socioambientais.
ciais e sacudido pela guerra na Ucrânia, Lula venceu a eleição mais polarizada cida como grilagem; retroceder ainda A crescente polarização política agra-
em Israel e em outras partes. É um qua- da história recente, mas a extrema direi- mais no Código Florestal; entre outras. vou as dificuldades do Congresso para
dro que dificulta avanços nas negocia- ta aumentou sua presença no Congres- legislar e para mediar conflitos e diver-
ções multilaterais como um todo, inclu- so, nas assembleias legislativas e nos gências nos processos legislativos. A
sive na questão climática, aumentando governos estaduais, inclusive na região As mudanças climáticas aprovação de leis tem dependido de ro-
as dúvidas sobre o cumprimento, pelos amazônica, reduzindo a representação afetam a todos – sejam los compressores movidos por maiorias
países, das metas de redução das emis- dos partidos supostamente de centro. As países, pessoas ou seg- fisiológicas, incapazes de se aprofundar
sões de gases do efeito estufa assumidas bancadas governistas, por sua vez, são nos conteúdos, resultando na edição de
no Acordo de Paris e sobre o compro- instadas a evitar a polarização e cooptar
mentos econômicos –, normas pouco reconhecidas pela so-
misso dos países mais ricos em financiar apoios à direita para aprovar os projetos mas de forma diferente ciedade e na incidência de inconstitu-
a adaptação dos mais pobres aos impac- de interesse do governo. cionalidades, que, por sua vez, ensejam
tos das mudanças no clima. Essa estratégia permitiu aprovar No entanto, o Congresso, que em 2021 novos questionamentos judiciais.
O protagonismo do Brasil vai além um novo regime fiscal e uma reforma aprovou uma lei para regular o paga- Nesse contexto, o STF tem sido ins-
das agendas climática e socioambiental. tributária parcial, importantes para mento por serviços ambientais, agora tado a mediar conflitos legislativos,
Também ancorado nelas, o país avança a ampliação dos investimentos, bem pode aprovar outra, até o fim deste ano, suprir omissões legais e conter ilegali-
para os acordos entre blocos comerciais, como a retomada de programas sociais para instituir um mercado nacional re- dades, acumulando contradições com
as relações com países africanos e lati- como o Bolsa Família, o Minha Casa, gulado de carbono. Porém, o “pacote da o Congresso, em especial com as ban-
no-americanos, a atuação no G20 e o Minha Vida e o Desenrola Brasil. Com destruição” tem potencial para fomen- cadas de direita. Decisões judiciais so-
exercício da presidência do Conselho de isso, já se projeta um crescimento do tar o desmatamento e impactar a estra- bre a legalização do aborto e do uso de
Segurança da ONU, e amplia suas rela- PIB no patamar de 3% em 2023; o de- tégia climática do governo, inviabilizan- maconha, ainda que em julgamentos
ções econômicas bilaterais. semprego continua caindo, o salário do o cumprimento das metas brasileiras não concluídos, além da demarcação
No entanto, o governo Lula também é mínimo está subindo e há sensação de de redução da emissão de gases, além de terras indígenas, têm suscitado pro-
composto de forças políticas conserva- alívio entre os mais pobres. de abrir novas frentes de conflito com postas de retaliação legislativa no Con-
doras e desenvolve políticas que aten- Entretanto, os apoios que o governo o Executivo, que tem o poder de veto, e gresso, para reduzir o poder decisório
dem a interesses econômicos e regionais conquista para essas medidas não se com o STF, que tende a ser acionado por do STF, alimentando enfrentamentos
que podem impactar a agenda socioam- revertem para as políticas socioambien- ações diretas de inconstitucionalidade entre os poderes.
biental. A retomada do crescimento eco- tais. Na realidade, o governo pode ou não contra essas eventuais novas leis.
nômico inclui investimentos em obras ter maioria no Congresso, a depender da DESMATAMENTO E
públicas, de mineração e petróleo. matéria em votação, e está ciente da falta MEDIAÇÃO DO STF O PROBLEMA DOS ESTADOS
O exemplo da tentativa de impor re- de votos para barrar determinados retro- Desde o retrocesso nas políticas so- O governo federal tem comemorado o
trocessos à Lei da Mata Atlântica na cessos nos direitos socioambientais. cioambientais promovido pelo governo resultado da retomada das políticas con-
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 13

tra o desmatamento na Amazônia, com governo federal e governos estaduais fim de ano e impondo perdas agrícolas, emissões. A curto prazo, alguns perdem
a queda dos índices em 2023. A notícia precisam ser ampliados, envolvendo redução na geração de energia hidrelé- mais e resistem às soluções, inclusive
de fato é boa, mas a redução ainda é in- também atores das cadeias produtivas trica e desafios para o abastecimento disseminando falsas informações.
suficiente, pois os anos anteriores foram que podem causar desmatamento. humano, além dos prejuízos já ocorri- A violência dos eventos climáticos
marcados por seguidos aumentos, fa- dos. Enquanto os poderes se conflitam, extremos choca e conscientiza sobre a
zendo explodir as taxas de desmatamen- VULNERABILIDADES EXPOSTAS o país paga um alto preço. gravidade da crise, que é amplamente
to. É urgente repor a força institucional Enquanto se tensionam as relações en- percebida pela população. No início de
dos órgãos públicos socioambientais, tre os poderes, a população sofre com OPINIÃO PÚBLICA 2023, pesquisa realizada pelo Datafolha
que nos últimos anos perderam grande sucessivos impactos de eventos climá- É no calor da aflição que a população mostrou que nove entre dez brasileiros
quantidade de orçamento, recursos hu- ticos extremos. Apenas entre setembro vai formando o próprio juízo sobre a acham que vão sofrer impactos das mu-
manos e investimentos. e outubro, para citar alguns casos, o Rio aflição do calor. O papel dos cientistas danças climáticas em sua vida pessoal.
Ao mesmo tempo, não se pode esque- Grande do Sul foi devastado por um ci- é primordial, sobretudo na previsão de Mas isso é insuficiente para orientar os
cer dos estados federados e, com isso, clone extratropical, seguido de uma es- catástrofes a tempo de evitar mortes, caminhos da solução. Além dos danos,
do fortalecimento do Sistema Nacional tiagem de gravidade histórica na Ama- mas também para apontar as causas e são decisivas a percepção sobre as opor-
do Meio Ambiente, a estrutura de gestão zônia, somados a grandes enchentes em soluções para a emergência climática. tunidades que a conjuntura pode ofere-
ambiental no Brasil vigente desde 1981, Santa Catarina, com dezenas de mortos, A atuação dos órgãos de comunicação cer e a perspectiva de que a cooperação
formada por órgãos da União, dos esta- milhares de feridos, desabrigados, isola- é fundamental para disseminar infor- poderá, afinal, vencer a barbárie.
dos, dos municípios e do Distrito Fede- dos, desabastecidos e desassistidos. mações e promover o discernimento. As
ral. É que, na distribuição de competên- Em cena, mais uma edição do fenô- organizações sociais podem ajudar na *Márcio Santilli é filósofo e sócio-funda-
cias entre os entes federados, os estados meno natural El Niño, em que o exces- formação de quadros especializados e dor do Instituto Socioambiental (ISA). Au-
têm papel central tanto para autorizar sivo aquecimento das águas do Pacífico na mobilização pelas providências, que tor do livro Subvertendo a gramática e ou-
novos desmatamentos como para fisca- Equatorial produz efeitos nefastos sobre as autoridades consolidam na forma de tras crônicas socioambientais, deputado
lizar o desmatamento ilegal. o clima da América do Sul, agravado leis e de políticas públicas. federal pelo PMDB (1983-1987) e presi-
Muitas unidades da federação, no en- pelo aquecimento global, decorrente da Contudo, a batalha pela opinião pú- dente da Funai de 1995 a 1996; e Mauri-
tanto, parecem não fazer o dever de casa. desmedida emissão de gases do efeito blica não se esgota na racionalidade car- cio Guetta é consultor jurídico do ISA e
No exemplo do Cerrado, diferentemente estufa por meio da queima de combus- tesiana e envolve sentimentos, crenças e professor dos cursos de pós-graduação em
da Amazônia, os índices de desmata- tíveis fósseis e da destruição de florestas. sonhos legítimos. As mudanças climáti- Direito Ambiental da PUC-SP (Cogeae), da
mento em 2023 têm sofrido seguidas Dessa vez, os cientistas preveem um cas afetam a todos – sejam países, pes- PUC-RJ, do Ibmec-DF e do IDPV (CEI). Foi
altas, fruto da expansão do agronegócio, El Niño mais prolongado e intenso, soas ou segmentos econômicos –, mas pesquisador na University of Cape Town
muitas vezes contra o permitido em lei. cujos efeitos devem se estender até o de forma diferente. Há muitos interesses (África do Sul) e na Université Paris 1 Pan-
Daí que o diálogo e as parcerias entre início de 2024, reduzindo as chuvas de contrariados pelos esforços para reduzir théon-Sorbonne/Paris.

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14 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

ISRAEL-PALESTINA: O INCÊNDIO, E DEPOIS?

A França lava as mãos


Visto de longe, tudo parecia calmo. Ou caminhando para a normalização, após os recentes acordos entre Tel Aviv e
vários países árabes (pág. 24 ). No entanto, quando o Hamas lançou seu ataque em 7 de outubro, os canais de notícias
entraram em edição especial (pág. 26 ): para atribuir a operação ao Irã (pág. 21 ) e para focar a natureza do ataque e
impor o adjetivo “terrorista” (pág. 22 ). Enquanto em Israel a raiva cresce contra um poder falho que não conseguiu
evitar o massacre (pág. 20 ), os palestinos contam suas mortes aos milhares (págs. 16 e 18 ). Alinhada com a
dos Estados Unidos, a diplomacia francesa se fecha na impotência voluntária (ler abaixo )

POR BENOÎT BRÉVILLE*

E
m 13 de outubro de 1996, no dia décadas, seus dirigentes não hesitaram frequência Tel Aviv e Washington. Geor- e ter sido o primeiro chefe de Estado a
seguinte a uma altercação que se em denunciar a colonização, a ocupa- ges Pompidou, quando impulsionou as prestar-lhe homenagem após sua morte.
tornaria célebre com a polícia is- ção, as expulsões, as humilhações, todos exportações de armas francesas para os O “não alinhamento” francês se inscre-
raelense em Jerusalém, Jacques esses “sim, porém...” atualmente bani- países árabes; Valéry Giscard d’Estaing, via no quadro mais vasto de uma “políti-
Chirac encontrou-se com o dirigente dos do vocabulário oficial. Assim, o ge- por ter iniciado o diálogo com a Orga- ca árabe” traçada por De Gaulle a partir
palestino Yasser Arafat em Gaza. Dian- neral De Gaulle se opôs com virulência nização para a Libertação da Palestina de 1967, em uma época na qual as rela-
te de uma multidão entusiasmada, os à ofensiva israelense de junho de 1967, (OLP) e pressionado pela adoção, por ções de Paris com o Magreb e o Oriente
dois presidentes inauguraram a Rua chegando a decretar um embargo sobre parte da comunidade europeia, da De- Médio eram menos tempestuosas. E por
Charles de Gaulle. Uma década depois, a venda de armas. Alguns meses depois, claração de Veneza, que afirma o direito uma boa razão: a França havia partici-
em abril de 2007, o novo presidente da declarou, por ocasião de uma coletiva do povo palestino à autodeterminação; pado, ao lado dos israelenses e dos bri-
Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, de imprensa (27 nov. 1967): “Agora, Is- François Mitterrand, que pronunciou as tânicos, da expedição militar de Suez em
achava-se em Paris quando anunciou a rael organiza nos territórios que tomou palavras “OLP” e “Estado palestino” em 1956 e, em seguida, entrado em confron-
criação próxima da Rua Jacques Chirac a ocupação, a qual não pode avançar um discurso no Knesset, em 1982, e em to com a Tunísia sobre a transferência de
em Ramallah. Não haverá Rua Emma- sem opressão, repressão, expulsão, e vê 1989 recebeu Yasser Arafat no Palácio soberania da base naval de Bizerta em
nuel Macron em Nablus. O presidente manifestar-se ali contra ele uma resis- do Eliseu. Quanto a Jacques Chirac, ele 1961, três anos depois de ter bombar-
francês é detestado nos países árabes: tência que qualifica de terrorismo”. permanece na memória de numerosos deado a aldeia de Sakiet Sidi Youssef. Isso
quando os habitantes de Túnis ou Bei- Desde então, cada presidente (até a palestinos por seu confronto com a po- para não falar da Guerra da Argélia, que
rute foram às ruas para protestar con- eleição de Nicolas Sarkozy) teve seus re- lícia israelense em 1996, por sua feroz deixou centenas de milhares de mortos.
tra a resposta israelense aos ataques lâmpagos, seus gestos simbólicos, suas oposição à guerra no Iraque em 2003 e Tudo isso atribuiu a Paris uma imagem
perpetrados pelo Hamas e seus aliados decisões diplomáticas, irritando com por haver acolhido Yasser Arafat doente particularmente degradada.
em 7 de outubro, foi diante da embaixa-

© Christophe Ena/Reuters
da da França que se concentraram, aos
gritos de “Macron assassino”.
“Não pode jamais haver ‘sim, po-
rém...’. [...] Israel tem o direito de se de-
fender”, martelou o presidente francês
em 12 de outubro, em mais um alinha-
mento perfeito com Washington. Alguns
dias antes, Joe Biden havia dado o tom:
“Israel tem o direito de responder, tem
inclusive o dever de responder a esses
terríveis ataques. [...] Não existe justi-
ficativa alguma para o terrorismo, ne-
nhuma desculpa”. Como aconteceu por
ocasião das operações Chumbo Fundi-
do (2008-2009), Pilar de Defesa (2012),
Fronteira Protetora (2014), Guardiões
das Muralhas (2021) e Alvorada Nas-
cente (2022), o governo israelense tem
campo livre para conduzir seu projeto
Espada de Ferro. Cortes de eletricidade
e de água, deslocamentos de popula-
ções, bombardeios sem discriminação:
pode agir como bem lhe aprouver, sem
comedimento, sem correr o risco de ou-
vir alguma admoestação de seus aliados.
Catherine Colonna, ministra francesa
das Relações Exteriores, simplesmente o
exortou a proteger as vidas de civis “tan-
to quanto possível”, “inclusive em Gaza”
(France Info, 11 out. 2023).
É difícil hoje em dia acreditar nisso, mas
a França teve por muito tempo a reputa-
ção de amiga do povo palestino. Durante Emmanuel Macron (França) e Benjamin Netanyahu (Israel), em entrevista coletiva realizada em Jerusalém, em outubro
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 15

De Gaulle havia compreendido a im-


portância do mundo árabe, onde a Fran-
ça tinha raízes antigas, herdadas dos pe- UM BALANÇO MACABRO E MUITO DESEQUILIBRADO
ríodos colonial e dos mandatos pós-Pri- 0 500 1 000
meira Guerra Mundial. Rica em petróleo,
2000
a região dispunha de um peso geoestra-
2001
tégico crescente, enquanto permanecia
2002 Segunda Intifada Nº de mortos
relativamente à margem das divisões da Setembro 2000 - fevereiro 2005
Guerra Fria. Paris podia ter a expectativa 2003
de desempenhar ali outro papel que não 2004 Palestinos
o de um figurante, traçando uma via ori- 2005
ginal entre os dois blocos, servindo-se 2006
Israelenses
dos países árabes como de um retrans-
2007
missor, uma caixa de ressonância em Guerra de Gaza
direção ao Terceiro Mundo. Desejoso de
2008 (operação israelense
2009 ‘’Chumbo Fundido’’)
manter a influência francesa após o fim 27 dez. 2008 - 18 jan. 2009
do império colonial, De Gaulle dedicou- 2010
-se a retirar seu país da sombra dos Es- 2011
tados Unidos, desenvolvendo uma for- 2012
ça de dissuasão nuclear independente, 2013 2 273
abandonando o comando integrado da Terceira Guerra de Gaza (operação
2014
Otan e criticando o engajamento militar israelense ‘’Fronteira Protetora’’)
2015 8 jul. - 26 ago. 2014
norte-americano no Vietnã por ocasião
2016
do discurso de Phnom Penh (1956).
“A França não tem uma política ára- 2017
be, assim como não tem uma política 2018
chinesa, e sim uma política de seus in- 2019
teresses em direção aos países árabes”, 2020
explicava Michel Jobert, um dos artífices 2021 Ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023
dessa estratégia.1 Por vezes, esses inte- e resposta israelense ‘’Espada de Ferro’’1 4 850
2022 1 430
resses exigiam se colocar por trás dos
2023
norte-americanos, como por ocasião
da Guerra do Golfo de 1991 – uma po- 0 500 1 000 1 500 2 000 2 500 3 000 3 500 4 000 4 500 5 000
sição vista como uma traição nos países 1. Balanço provisório de 23 de outubro, entre os 225 palestinos e 28 israelenses mortos antes do 7 de outubro.
árabes. Entretanto, com frequência, im- Fonte: B’Tselem, The Israeli Information Center for Human Rights in the Occupied Territories, 2023; Le Monde, 23 out. 2023.
plicavam se distinguir de Washington, o
que garantia a Paris certa popularidade
no mundo árabe. Após a condenação e contestada. Num momento em que lestinos. Em Bruxelas, em Barcelona, “Chamas Tacos” tornou-se o “Hamas
da invasão do Iraque em 2003, Jacques numerosos Estados aspiram a uma or- em Copenhague ou em Viena, podia- Tacos”. Seria possível sorrir, se o ridí-
Chirac atravessou Argel e Orã como um dem mundial multipolar, a França deve- -se ler nos cartazes: “Boicote a Israel”. culo não assumisse por vezes um rosto
herói, sob as aclamações de centenas de ria buscar novas alianças e renovar seu Na França, tal inscrição seria imedia- inquietante; foi o que se passou nos Es-
milhares de pessoas, e foi acolhido por estatuto de potência mediadora, em vez tamente tachada de antissemitismo e, tados Unidos, onde estudantes de Har-
uma multidão em delírio em Tombuc- de considerar inimiga boa parte do pla- encorajados por jornalistas, ministros vard pagam caro por uma carta aberta
tu. Depois, porém, a França teve de se neta. A nova guerra de Gaza ilustra mais se sucederiam nas redes de televisão que apontava as responsabilidades de
acostumar aos protestos diante de suas uma vez a hipocrisia dos ocidentais, que para exigir perseguições. Israel no ataque do Hamas. O docu-
embaixadas, do Níger ao Líbano, de Bur- brandem o direito internacional para Com frequência por solicitação do mento inicial não mencionava nomes,
kina Faso à Tunísia, do Chade ao Irã. justificar seu apoio à Ucrânia, mas o es- Ministério do Interior, inquéritos sobre mas estes apareceram com rapidez nas
No momento atual, os presidentes quecem a respeito dos palestinos. Uma “apologia do terrorismo” foram abertos redes sociais. De imediato, executivos
franceses contentam-se em seguir o ca- política de “dois pesos, duas medidas” contra o Novo Partido Anticapitalista, de Wall Street estabeleceram uma “lista
minho traçado por Washington quanto que Vladimir Putin, ele próprio especia- que expressou seu “apoio aos palesti- proibida”, para impedir a contratação
ao dossiê Israel-Palestina, apoiando Tel- lista no assunto, não cessa de denun- nos e às palestinas e aos meios de luta deles. Financiado por um grupo con-
-Aviv e tratando cada vez mais o conflito ciar, com certa repercussão. que eles e elas escolheram para resis- servador, um caminhão equipado com
territorial como associado à “luta contra Não contente em diminuir o crédito tir”; contra a deputada Danièle Obo- uma tela gigante percorre os arredores
o terrorismo”. Em 2009, após três sema- internacional de seu país ao alinhá-lo no, que desajeitadamente qualificou o do campus, projetando na tela os nomes
nas de intensos bombardeios em Gaza, com os Estados Unidos, Macron coloca Hamas como “movimento de resistên- e os rostos dos “notórios antissemitas de
Nicolas Sarkozy indicava que “os euro- em xeque a reputação da França como cia que se define como tal”; e contra o Harvard”.2 Após ter-se alinhado diplo-
peus estão ao lado de Israel para assegu- defensora das liberdades públicas. Partido dos Indígenas da República. E maticamente com os Estados Unidos,
rar seu direito à segurança”. Cinco anos Quando se exprime sobre a política ex- também contra um jogador de futebol está a França em via de importar deles
depois, enquanto Gaza era de novo arra- terna, o presidente se envolve com os de Nice, dois sindicalistas, um socia- os piores defeitos, entre os quais a pa-
sada, François Hollande oferecia plena valores da liberdade, da democracia, lista eleito por Échirolles... O ministro ranoia e o macarthismo, em nome da
“solidariedade” ao governo israelense, da tolerância, para fustigar melhor os Gérald Darmanin anunciou igualmen- guerra de civilizações?
que ele considerava “habilitado a tomar regimes autoritários. Valores elevados te o lançamento de “procedimentos de
todas as medidas para proteger sua po- à categoria de nova religião secular, dissolução” contra “diversos coletivos *Benoît Bréville é diretor do Le Monde
pulação”. E agora Macron... cujo questionamento, ou mesmo a que apoiam e por vezes financiam de Diplomatique.
Tal alinhamento à Otan, além de simples discussão, seriam quase uma maneira oficiosa e oculta o Hamas ou
contribuir para degradar a imagem da heresia. Assim, para defender sua po- movimentos em torno do Hamas”. 1   C f. Ignace Dalle, “Les relations entre la France
França junto aos países do Sul, pare- lítica externa “liberal”, Macron acaba A caça às bruxas atinge o ridículo et le monde arabe” [As relações entre a França
e o mundo árabe], Confluences Méditerranée,
ce absurdo por mais de uma razão. Ao por multiplicar medidas liberticidas. quando um restaurante de Valence é v.96, n.1, 2016.
seguir escrupulosamente Washington A França é – com a Hungria de Viktor ameaçado por policiais municipais de 2   Anemona Hartocollis, “After writing an anti-Israel
em todas as questões estratégicas, da Orban – o único Estado europeu a ter fechamento administrativo caso não letter, Harvard students are doxxed” [Depois de
escreverem uma carta anti-Israel, estudantes
Ucrânia ao Oriente Médio, Paris liga seu proibido, em escala nacional, as ma- apague seu letreiro luminoso: por cau- de Harvard têm informações pessoais divulga-
destino ao de uma potência em declínio nifestações de solidariedade aos pa- sa de algumas lâmpadas queimadas, o das], The New York Times, 18 out. 2023.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

ISRAEL-PALESTINA

Hamas, as
engrenagens da guerra
Com um ataque militar surpresa em grande escala em solo israelense a partir de Gaza, na madrugada de 7 de outubro,
o Hamas provocou uma resposta devastadora para as populações civis e as infraestruturas do enclave. Embora se
diga campeão da resistência palestina, os abusos cometidos por ele durante a ofensiva prejudicam seu futuro político

POR AKRAM BELKAÏD*

“O
Oriente Médio está mais tre (ler na pág. 20), a resposta radical de mortos e milhares de civis feridos –, todo exigiria uma resposta tão devastado-
calmo hoje do que jamais Tel Aviv, que imediatamente contra-ata- esse conjunto de fatores tornava impos- ra para a população civil do enclave?
esteve em vinte anos.” cou com a Operação Espada de Ferro – sível voltar à situação anterior. Como observa a pesquisadora Sophie
Quando participou, no dia uma campanha de bombardeios aéreos “Tentar explicar não significa jus- Pommier, a estratégia do partido islâmi-
29 de setembro, da conferência anual maciços que já havia deixado, segundo tificar: por que o Hamas e seus aliados co é, em primeiro lugar, uma resposta
do site The Atlantic,1 Jack Sullivan, con- uma contagem de 23 de outubro, 4.500 lançaram esse ataque, sabendo que ele à manutenção do bloqueio infligido a
selheiro de Segurança Nacional dos Es-
tados Unidos, via a normalização da re-
lação entre Israel e vários países árabes
como um sinal de apaziguamento na
região. Mais calmo? Na mesma semana,
GAZA SOB ATAQUE
confrontos na fronteira de Gaza coloca- TelaAviv,
Área urbana Campo de refugiados Ashkelon 60 km
ram as forças de segurança israelenses
contra palestinos que clamavam pelo
Mar
Dispositivo de confinamento Mediterrâneo
direito de regressar à terra de seus ante-
xxx Cercas
passados, ecoando as Marchas do Re-
Muro de separação
torno de 2018 e 2019, durante as quais Zikim
duzentos manifestantes perderam a vi- Zona proibida exceto para agricultores
Jerusalém,
da sob as balas de atiradores israelen- Zona tampão militar, acesso desaconselhado 75 km
ses. Mais calmo, será? Em 26 de setem-
Bloqueio marítimo
bro, o coordenador especial para o
antes de 7 out. e depois Erez
Processo de Paz no Oriente Médio, Tor (
x Beit Hanoun)
Wennesland, informou o Conselho de Pontos de passagem (fechados desde 7 out.) xx
Al Shati Jabaliya
xxxx x

Segurança das Nações Unidas sobre o Somente pessoal autorizado


prosseguimento ilegal, aos olhos do di- Beit Sderot
xx

Mercadorias Hanoun
x

xx
reito internacional, da colonização is- Rimal xx
xx

raelense na Cisjordânia e em Jerusalém Gaza


xx x

Territórios em guerra
xx
Oriental. Um relatório elaborado no fim
xx
Kfar Aza
x

x
de agosto por várias organizações is- Locais atingidos pelo ataque
xx

xx
raelenses de direitos humanos destaca- do Hamas em 7 de outubro
xx

Nahal Oz
xx

va a persistência da violência nos terri-


x

Território declarado “zona


xx

tórios ocupados: entre 1º de janeiro e o


xx
de guerra” pelo Exército israelense Al Boureij
x

fim de agosto, 220 palestinos foram


xx

Be’eri Netivot
xx
mortos pelo Exército de Tel Aviv ou por
x
Principais bombardeios Deir
x

xx
colonos.2 Nada disso parece comover Al Balah
x
do Exército israelense
x
xx

Sullivan. Afinal, como diz uma noukta Réïm Festival de musique


xx

Deslocamento Supernova
Kissoufim
xx

[piada] muito ouvida no mundo árabe,


da população
xx

a situação no Oriente Médio só é consi-


xx

derada preocupante quando alguém


x x xxxxxxx

ISRAEL Beer Sheva,


além dos palestinos é agredido. Ein Hashlosha 10 km
Uma semana depois, a situação mu- Khan
Younès
dou drasticamente. A Operação Inunda-
x x x x xx x xx

ção de Al-Aqsa – nome dado ao ataque-


-surpresa feito em Israel no dia 7 de ou- Ofakim
Rafah Nir Oz Magen
tubro por organizações armadas pales- xx
tinas lideradas pelo Hamas e seu braço Salah x
xx

Ad-Din
xx

militar, as Brigadas Izz al-Din al-Qassam


xx

Base aérea
x

– lançou a região em uma era de grande


xx
xx
Rafah Soufa militar
xx
incerteza. O elevado número de vítimas xx

EGITO
x
israelenses (1.400 mortos, entre os quais
xx

xx
centenas de civis massacrados), o tama-
x

nho do trauma na população, boa parte Antigo aeroporto


5 km Kerem (destruído em 2001 pelo Fontes: Escritório das Nações Unidas para a Coordenação
da qual considera o governo de Benja- Shalom Exército israelense) de Assuntos Humanitários; Haaretz; Le Monde; AFP.
min Netanyahu responsável pelo desas-
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 17

Gaza desde 2007 por Israel e pelo Egi- permitiram essa reaproximação sob a li- região, e podemos nos perguntar como limitar a reproduzir o mesmo roteiro
to.3 Outras razões, apresentadas pelo derança do governo de Donald Trump. É essa terra – que já sofreu seis guerras em das guerras anteriores: resposta militar,
chefe do gabinete político do Hamas:4 igualmente prematuro dizer que será o dezessete anos – vai se recuperar de ta- negociação via Catar e Egito e então re-
o agravamento da política de ocupação fim das discussões entre Israel e a Arábia manha devastação. A atenção do mundo torno a um status quo precário, com o
e colonização, a multiplicação dos inci- Saudita (ler na pág. 24), mas uma coisa volta-se para Gaza, mas na Cisjordânia Hamas mantido na gestão do enclave
dentes na Esplanada das Mesquitas e as é certa: o processo parou. Mesmo que a colonização recomeça com ainda mais até que ocorra uma nova conflagração.
incessantes provocações de Itamar Ben- os governos árabes envolvidos não este- força. Livres, os colonos, protegidos pelo Segundo declarações de membros do
-Gvir, ministro da Segurança Interna de jam nem um pouco preocupados com o Exército, lutam diariamente contra uma governo de Netanyahu e de oficiais mili-
Israel, que endureceu as condições de que pensa sua opinião pública, eles não população aterrorizada e abandonada tares, é necessário “reconfigurar Gaza” e
detenção de cerca de 6 mil prisionei- vão poder ignorar a persistência do forte à própria sorte.6 Os beduínos de vilas depois passar as chaves a um novo ator.
ros palestinos. O ataque dos colonos apego à causa palestina, como já foi de- isoladas em áreas rurais são um alvo de Quem? Mistério. Neste momento, nem
israelenses à vila palestina de Huwara, monstrado pelos sinais de solidariedade destaque. Entre os dias 7 e 17 de outu- o Egito nem a Autoridade Palestina pa-
na Cisjordânia, em 26 de fevereiro, mar- de muitos jogadores e torcedores do Ma- bro, 58 palestinos foram mortos pelo recem capazes de assumir esse papel.
cou os palestinos de Gaza, convencen- greb e do Maxerreque durante a Copa do Exército e centenas foram presos. Quanto a Netanyahu, ele vai precisar,
do muitos deles de que o governo de Mundo de Futebol no Catar.5 No entanto, o Hamas vai precisar res- caso se mantenha no poder e o Hamas
extrema direita liderado por Netanyahu ponder sobretudo pelo massacre de civis saia muito enfraquecido, encontrar um
estava determinado a usar a força para israelenses desarmados, incluindo de- inimigo substituto tão útil como o pri-
expulsar parte da população desses ter- O Hamas vai precisar zenas de jovens reunidos para uma rave meiro, que permita conferir um caráter
ritórios. “Considero que Huwara deve responder pelo massa- no deserto próximo a Gaza, e pelos as- religioso a um conflito de descoloniza-
ser exterminada”, declarou o ministro sassinatos cometidos no kibutz de Kfar ção. Em março de 2019, o chefe do Exe-
das Finanças israelense, Bezalel Smo-
cre de civis desarmados, Aza (ler na pág. 22). Esses abusos, que cutivo declarou perante parlamentares
trich, enquanto o general israelense en- incluindo jovens reuni- se enquadram na categoria de crimes de seu partido, o Likud: “Quem quer que
carregado das tropas destacadas na Cis- dos para uma rave de guerra, também chocaram simpa- deseje impedir a criação de um Estado
jordânia, Yehuda Fuchs, não hesitou em e os assassinatos no tizantes da causa palestina em todo o palestino deve apoiar nossa política de
chamar de pogrom a violência dirigida mundo e foram repudiados por grande fortalecimento do Hamas e a transfe-
contra os palestinos. Após esses aconte-
kibutz de Kfar Aza parte do campo israelense defensor da rência de dinheiro para o Hamas. Isso é
cimentos, os discursos escatológicos se paz. Da mesma forma que o recurso à parte de nossa estratégia: isolar os pales-
multiplicaram nas redes sociais palesti- Em sua propaganda após o ataque, o tomada de civis como reféns, contrário tinos de Gaza daqueles na Cisjordânia”.8
nas, difundindo um rumor persistente: Hamas tenta capitalizar o que apresen- às leis da guerra, esses atos levantam ne- A menos que a guerra acabe em uma
Israel estava preparando o envio de 2 ta como vitórias militares: travessia, em cessariamente a questão do futuro polí- iniciativa de paz comparável à de Madri
milhões de colonos para dominar a po- trinta pontos, da supostamente impene- tico do Hamas e de sua participação em em 1991, um dos raros momentos em
pulação palestina da Cisjordânia. trável barreira de segurança, ataque por possíveis negociações de paz. A partir de que os Estados Unidos forçaram Israel a
Com seu ataque, o Hamas vanglo- dias a locais estratégicos (posto frontei- agora, quem em Israel, incluindo a es- se sentar à mesa de negociações.
ria-se de ser o baluarte da resistência riço de Eretz, quartel-general da divisão querda, vai concordar em dialogar com
palestina. A Autoridade Palestina, por responsável por Gaza etc.) e captura de ele? Um dos desafios da guerra é saber *Akram Belkaïd é jornalista do Le Monde
sua vez, há anos se reduziu ao papel dezenas de soldados transferidos como até onde vai a vingança de Israel. Muitos Diplomatique.
de representante de Israel para ques- prisioneiros de guerra para o enclave. de seus líderes pediram a erradicação do
tões de segurança e aplicação da lei (ler Enquanto as chancelarias e os veícu- partido islâmico – algo impossível – ou, 1   “ How democracy can move forward, with Jake
na pág. 18). Sua decisão de usar muni- los de comunicação ocidentais, com pelo menos, sua eliminação de Gaza. Sullivan and Will Hurd. The Atlantic Festival
2023” [Como a democracia pode avançar, com
ção real em Jenin e Ramallah contra os destaque para a França (ler na pág. 14), Essa segunda opção baseia-se em um Jake Sullivan e Will Hurd. The Atlantic Festival
manifestantes que exigiam a saída do concentram-se nos abusos contra as po- roteiro que se desenha desde os primei- 2023], 29 set. 2023, conferência disponível
impopular presidente Mahmoud Ab- pulações civis, o Hamas insiste no fato ros dias após o ataque de 7 de outubro. em: www.youtube.com.
2   R FI, 28 ago. 2023.
bas, de 87 anos, após o bombardeio do de ter penetrado profundamente no ter- Ao exigir que as populações civis de Gaza 3   S ophie Pommier, “La stratégie à quitte ou doub-
hospital Al-Ahli Arabi (17 out.) também ritório israelense (algo que o Hezbollah se dirijam para a parte sul do enclave, Is- le du Hamas” [A estratégia de tudo ou nada do
ajudou a fortalecer a influência política libanês nunca conseguiu). É um discur- rael deu a impressão de estar preparan- Hamas], Orient XXI, 16 out. 2023. Disponível
em: https://orientxxi.info/.
do Hamas. Este último afirma ainda ter so certeiro em um mundo árabe que há do sua transferência definitiva e até sua 4   Ibidem.
demonstrado ao mundo inteiro que ne- muito se resignou à ideia da suprema- expulsão para o Sinai egípcio. Entretan- 5   “ Coupe du monde de football, un moment
nhuma manobra diplomática pode apa- cia esmagadora do Exército israelense, to, o Egito não quer nem ouvir falar de palestinien” [Copa do Mundo de Futebol, um
momento palestino], Oriente XXI, 8 dez. 2022.
gar a centralidade da Questão Palestina. principalmente por causa de sua força campos de refugiados palestinos em seu 6   “ En Cisjordanie, la vengeance débridée des
Nos últimos anos, a normalização entre aérea e dos equipamentos de ponta for- território, e o governo norte-americano colons” [Na Cisjordânia, a vingança sem freios
países árabes (Emirados Árabes Unidos, necidos pelos Estados Unidos. parece hostil a esse deslocamento, sinô- dos colonos], La Croix, 16 out. 2023.
7   “ ‘Gaza: Tonte de la pelouse’ par l’artiste Jai-
Bahrein, Marrocos, Sudão) e Israel rele- O Hamas, contudo, também vai ter de nimo de uma nova nakba [catástrofe]. me Scholnick” [“Gaza: corte da grama”, do
gou o destino dos palestinos ao segundo assumir todas as consequências de seu “Não basta apenas cortar a grama”,7 artista Jaime Scholnick], The Markaz Review,
plano. Ainda é muito cedo para saber se ataque. Já não é possível contar os cadá- diziam muitas mensagens furiosas de 14 jul. 2021.
8   B enjamin Barthe, “Gaza. La fabrique d’une
a nova guerra em Gaza vai significar o veres dos habitantes de Gaza, tampou- internautas israelenses na rede X (ex- poudrière” [Gaza. A produção de um barril de
fim dos Acordos de Abraão de 2020, que co calcular a destruição provocada na -Twitter). Para eles, Israel não pode se pólvora], Le Monde, 15 out. 2023.

O GRANDE ESPACATE EGÍPCIO nal verde a algumas reuniões populares em locais


determinados pelo Ministério do Interior. Tais agrupa-
firmados com Tel Aviv em 1978 e 1979. Apesar da vigi-
lância das forças de segurança, acabaram ocorrendo vá-
mentos foram apresentados como destinados a “conce- rias passeatas selvagens que tinham como palavras de

O caso do Egito é emblemático das contradições que


caracterizam o tratamento da Questão Palestina em
numerosas capitais árabes. Nesse país, as manifesta-
der mandato” a Al-Sisi para defender melhor os interes-
ses dos palestinos por ocasião de uma “cúpula pela paz”
organizada às pressas no Cairo (20 out.). Importantes
ordem “Paz, liberdade, Palestina árabe”, slogan que fazia
lembrar aqueles hostis ao presidente Hosni Mubarak em
2013. No Cairo, centenas de manifestantes chegaram a
ções, quaisquer que sejam suas razões, são estritamente forças de ordem foram mobilizadas, pois o regime recea- quebrar o bloqueio de segurança para ocupar uma parte
proibidas. Desde que assumiu o poder por meio de um va eventuais transbordamentos que poderiam colocá-lo da emblemática Praça Tahrir1 aos gritos de “Não se dá
golpe de Estado, o presidente Abdel Fattah al-Sisi não em dificuldades em um contexto de graves tensões eco- mandato a ninguém, esta é uma verdadeira manifesta-
tolera oposição alguma, a começar por aquela da Irman- nômicas. Os dirigentes egípcios também preferem se ção” e “Liberdade, democracia, Palestina”. (A.B.) .
dade Muçulmana. No entanto, desde os primeiros bom- prevenir das acusações de traição vindas de massas que 1   L
 er Martin Roux, “Place Tahrir, un symbole assiégé” [Praça
bardeios israelenses em Gaza, as autoridades deram si- permanecem extremamente hostis aos acordos de paz Tahrir, um símbolo sitiado], Le Monde Diplomatique, fev. 2021.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

ISRAEL-PALESTINA

O fracasso da
solução de dois Estados
A Questão Palestina parecia ter sido resolvida com a assinatura de acordos de
normalização entre Israel e vários Estados árabes (ler na pág. 24 ). No entanto, o
ataque perpetrado pelo Hamas trouxe-a de volta ao primeiro plano, lembrando como
a realidade que se impôs no território impede qualquer paz e segurança duradouras

POR THOMAS VESCOVI*

A
ntes do ataque do Hamas a Is- raelenses. Para a Organização para a Li- solução de dois Estados e abandonaram EXCLUSÃO DO PROCESSO POLÍTICO
rael, em 7 de outubro, não exis- bertação da Palestina (OLP) e seu líder, toda a esperança de, assim, ganhar a so- Terceiro: à fragmentação dos palestinos
tiam negociações ou “processos Yasser Arafat, o abandono da exigência berania. Em primeiro lugar, a coloniza- em enclaves separados na Cisjordânia
de paz” entre israelenses e pa- de libertação total da Palestina em favor ção dos territórios ocupados nunca deu e à separação destes da Faixa de Gaza,
lestinos. Os Acordos de Oslo, assina- de um Estado com apenas 22% do terri- o menor sinal de recuo, e a interdepen- acrescenta-se a divisão de sua lideran-
dos há trinta anos, pretendiam permi- tório atribuído pela divisão da ONU de dência entre as duas sociedades forta- ça. A gestão autocrática da Cisjordânia
tir uma convergência dos interesses 1947 constituía uma concessão históri- leceu-se. Se os palestinos dependem da pelo Fatah aumenta a opressão dos pa-
das duas partes, mas na prática refor- ca. Para Israel, pelo contrário, tudo ain- economia israelense, os territórios ocu- lestinos, tal como o regime autoritário
çaram principalmente a colonização e da estava por negociar, sob a égide do pados constituem um ganho financeiro do Hamas na Faixa de Gaza. Neste últi-
a ocupação. Um mês antes do início árbitro parcial norte-americano. significativo para o complexo militar- mo, o bloqueio israelo-egípcio interdita
desta nova guerra, uma pesquisa de Em outra sondagem de opinião, o -industrial israelense, como laboratório, qualquer soberania: os palestinos não
opinião realizada pelo Centro Palesti- PSR constatou, no início deste ano, mas também para o mercado de terras, controlam os espaços aéreos e maríti-
no para Pesquisas Políticas e Estudos que o apoio a uma solução de dois que especula à vontade sobre os recur- mos nem a entrada e saída de pessoas
de Opinião (PSR) revelou que quase Estados nunca foi tão baixo em am- sos expropriados das populações locais. e bens. O ministro da Defesa israelense,
dois terços dos palestinos consideram bas as sociedades.4 Do lado palestino, Em segundo lugar, a Autoridade Pa- Yoav Gallant, conseguiu ordenar, no dia
que sua situação atual é pior do que a 33% dos inquiridos defenderam esse lestina (AP), que deveria desempenhar seguinte ao ataque do Hamas, o corte da
de antes de 1993.1 Contudo, do ponto projeto, em comparação com 43% em o papel de proto-Estado, assume muito eletricidade e do fornecimento de água
de vista israelense, o “processo de paz” 2020. Do lado israelense, 39% (34% só mais frequentemente o de auxiliar da e alimentos – o suficiente para agravar
e sua decadência não parecem neces- entre os judeus) foram a favor. Esses ocupação por causa de sua coordenação as dificuldades de uma população cuja
sariamente ser um fracasso. dados devem ser postos em perspecti- de segurança com as forças israelen- taxa de desemprego dos menores de 29
Pelo contrário, como explica a jorna- va em sua interpretação: os palestinos ses num contexto de deriva autoritária anos atinge 75%, enquanto 80% dos 2,1
lista Amira Hass, do diário Haaretz,2 a se afastam dessa solução não porque da presidência de Mahmoud Abbas. A milhões de habitantes de Gaza depen-
criação de enclaves palestinos constitui não a querem, mas porque agora a AP também se mostra completamente dem da ajuda humanitária.
“o apogeu de um compromisso interno consideram irrealizável. Além disso, impotente diante das ambições ane- Finalmente, o “processo de paz”, que
dentro do establishment israelense”: soluções alternativas recebem pouca xionistas do governo de extrema direita supostamente resultaria no estabeleci-
redefinir os contornos da ocupação a adesão: um Estado democrático com liderado por Benjamin Netanyahu. Seus mento de um Estado palestino, essen-
fim de eliminar politicamente os pales- direitos iguais para israelenses e pa- sucessos diplomáticos – admissão do cialmente deu aos líderes israelenses
tinos, apagá-los da paisagem israelen- lestinos só é apoiado por 20% dos pri- Estado da Palestina na Unesco em 2011, tempo para reforçar seu domínio sobre
se sem ter de expulsá-los, ou seja, sem meiros, enquanto 23% dos segundos entrada nas Nações Unidas como ob- os territórios ocupados. Acima de tudo,
anexar formalmente a Cisjordânia.3 A consideram a ideia possível. servador em 2012 e depois reconhecido os Estados empenhados em apoiar fi-
perspectiva de um Estado palestino to- Em trinta anos, pelo menos quatro oficialmente como Estado parte no Tri- nanceira e diplomaticamente os Acor-
talmente soberano nunca esteve, por- fenômenos explicam por que as popula- bunal Penal Internacional (TPI) em 2015 dos de Oslo sempre se recusaram a vê-
tanto, na agenda dos negociadores is- ções palestinas deixaram de acreditar na – não mudaram nada. -los como outra coisa senão um conflito

Na Ásia, apenas a Malásia e a Coreia do Norte gião”. Pequim, que trabalhou em prol da reaproxima-
VOZES ASIÁTICAS apoiam publicamente o Hamas. Ainda que todos os ção entre a Arábia Saudita e o Irã, preocupa-se em ver
DISCORDANTES outros governos condenem os atos cometidos contra
civis, alguns, minoritários, prestam apoio incondicional
seus esforços frustrados e lembra que nenhuma “onda
de reconciliação no Oriente Médio será duradoura en-
a Israel. É o caso da Índia, cujo primeiro-ministro, Na- quanto o conflito Israel-Palestina permanecer não re-

D e modo premonitório, desde o dia 24 de agosto de


2023, o comunicado final da cúpula do Brics (acrô-
nimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) fazia
rendra Modi, aproximou-se de Tel Aviv e conduz em
seu país uma política antimuçulmana. A maior parte
dos dirigentes conclama a rejeitar a lei de talião e os
solvido”. Por sua vez, a Tailândia, que tem perto de 30
mil de seus cidadãos trabalhando em Israel, anunciou
a morte de trinta deles e a captura de dezessete re-
soar o sino de alarme: “Exprimimos nossa profunda preo- bombardeios sobre Gaza.1 Assim, o Japão, apesar de féns por ocasião do ataque do Hamas. Ela também
cupação diante da desastrosa situação humanitária nos aliado do Ocidente, lastima as vítimas dos dois lados e pede “que as violências cessem”.
territórios palestinos ocupados em razão da escalada de recusa “juntar-se aos Estados Unidos, ao Reino Unido,
violência resultante do prosseguimento da ocupação is- à França, à Alemanha e à Itália para publicar [em 9 de 1   A
 ntoine Bondaz, “Israël et le Hamas en Asie: alignement in-
dopacifique en question face à la guerre de Soukkot” [Israel e
raelense e da expansão das colônias ilegais. Conclama- outubro] uma declaração comum [...] prometendo Hamas na Ásia: o alinhamento indopacífico em questão diante
mos a comunidade internacional a apoiar negociações apoio unido a Israel”. 2 A China denunciou de início “a da guerra de Sukkot], Le Grand Continent, 21 out. 2023.
diretas fundadas sobre o direito internacional”. Fazia mui- escalada de tensões e violências” antes de condenar 2   Koya Jibiki, Rimi Inomata e Ryo Nemoto, “Japan tries for balan-
ced diplomatic response to Israel-Hamas war” [O Japão tenta
to tempo que não se via uma interpelação similar em um “os atos que causam vítimas civis. Nós nos opomos às uma resposta diplomática equilibrada para a guerra Israel-Ha-
texto de conferência internacional. medidas que agravam o conflito e desestabilizam a re- mas], Nikkei Asia , 11 out. 2023.
Tel Aviv Tel Aviv Tel Aviv
Jaffa CISJORDÂNIA CISJORDÂNIA
Amã Jericó Amã Amã
Jericó Jericó
ISRAEL Jerusalém ISRAEL Jerusalém
Jerusalém
Gaza
19
Gaza Mar Mar Gaza Mar
PALESTINA Morto GAZA NOVEMBRO
Morto 2023 Le Monde
GAZA Diplomatique
Morto Brasil
Beer Sheva Beer Sheva
TRANSJORDÂNIA JORDÂNIA Beer Sheva
Deserto
do Neguev Deserto Deserto
de Neguev de Neguev JORDÂNIA
Palestina
sob mandato SINAI
britânico (ocupado
Estado judeu
de 1967
Plano de partilha Territórios a 1982)
EGITO da ONU de 1947 EGITO conquistados por
Estado judeu Israel em 1948-1949
Estado árabe Territórios ocupados EGITO

DA OCUPAÇÃO AO CONFINAMENTO 50 km Eilat


Zona
internacional 50 km Eilat
pela Jordânia
(Cisjordânia)
e o Egito (Gaza) 50 km Eilat
Territórios
ocupados
por Israel

1920-1948 LÍBANO 1948-1967 LÍBANO 1967-1995 LÍBANO GOLAN 1995-2023 LÍBANO


SÍRIA (ocupada SÍRIA
SÍRIA em 1967, GOLAN
Haifa Haifa Haifa anexada Haifa
em 1981)
MAR SÍRIA
MEDITERRÂNEO

Nablus Nablus Nablus Nablus


JORDÂNIA
Tel Aviv Tel Aviv Tel Aviv Tel-Aviv
Jaffa CISJORDÂNIA CISJORDÂNIA CISJORDÂNIA
Jericó Amã Jericó Amã Amã Jericó Amã
Jericó
Jerusalém
ISRAEL Jerusalém ISRAEL Jerusalém ISRAEL
Jerusalém
Gaza Gaza Gaza Gaza Hebron Mar
Mar Mar Mar
PALESTINA Morto GAZA Morto GAZA Morto GAZA Morto
Beer Sheva Territórios
TRANSJORDÂNIA Beer Sheva colonizados
JORDÂNIA Beer Sheva Beer Sheva
Deserto por Israel
do Neguev Deserto Deserto Territórios
de Neguev de Neguev JORDÂNIA Deserto
Palestina de Neguev palestinos
sob mandato SINAI Acordo de Oslo II (1995)
britânico (ocupado
Estado judeu de 1967 Zona B,
Plano de partilha a 1982) sob controle misto
Territórios israelo-palestino
EGITO da ONU de 1947 EGITO conquistados por EGITO Zona A, sob
Estado judeu Israel em 1948-1949
controle palestino
Estado árabe Territórios ocupados EGITO
Zona pela Jordânia Territórios Faixa de Gaza
internacional (Cisjordânia) ocupados Sob controle palestino,
50 km Eilat 50 km Eilat e o Egito (Gaza) 50 km Eilat 50 km
por Israel evacuada por Israel (2005)

1948-1967 LÍBANO
1967-1995 GOLAN LÍBANO 1995-2023 LÍBANO
SÍRIA (ocupada SÍRIA
em 1967, GOLAN
entre duas Haifa
nações, para evitar a adoção Haifa anexada
jordânia e 17 mil habitantes de Gaza en- Haifa
uma nova abordagem. Por exemplo, a A partir de 7 de outubro, todo o cam-
em 1981)
de sanções contra a parte que abusa do tram em Israel para trabalhar. SÍRIA organização A Land for All [Uma Terra po político israelense, com exceção da
direito internacional. Na verdade, as instituições e o Parla- para Todos] tem defendido, desde 2012, esquerda anticolonial e de alguns in-
Considerar Israel tal como ele é, no-
Nablus mento israelenses Nablus organizam a totalida- uma solução confederal Nablus e biestatal
JORDÂNIA
que telectuais, clamou por uma operação
meadamente Tel Aviv uma potência colonial de ou parte Tel Aviv
da vida cotidiana de toda a garantaTel-Aviv
a democracia, a liberdade de em grande escala para “ganhar a guer-
CISJORDÂNIA CISJORDÂNIA CISJORDÂNIA
que nunca respeitou a menor resolução
Jericó Amã sua população, bem como a dos
Jericó Amãterritó- circulação e de habitação, Jericó e aAmãsobera- ra” contra o Hamas. Se a eliminação de
da ONU desde ISRAEL sua criação, implica-
Jerusalém rios ocupados. ISRAELComJerusalém
a diferença de que nia partilhada ISRAELentre Jerusalém
os dois povos, em uma organização considerada membro
ria exercer
Gaza pressão suficiente Mar para que os habitantes
Gaza destes últimos, mais de 5 particular
Gaza Hebron Mar
em Jerusalém, dos recursos de pleno direito do movimento nacio-
Mar
GAZA Morto GAZA GAZA Morto
seus líderes fossem forçados a julgar milhões de indivíduos,Morto não têm possibi- naturais, além da igualdadeTerritórios de acesso nal palestino for possível, é preciso
Beer Sheva colonizados
os direitos dos palestinos JORDÂNIA como uma lidade de agir Beersobre
Sheva as decisões tomadas a justiça eBeersegurança.
Sheva Mencionemos
por Israel
se perguntar o que Netanyahu fará se
questão vitalDeserto para a sustentabilidade por Tel Aviv. Deserto Estão sujeitos, no mesmo também a One Democratic State Cam- permanecer no poder. E, se ele sair, se
de Neguev JORDÂNIA Deserto
Territórios
de seu próprio Estado. No Parlamento espaço, a diferentes de Neguev leis e tribunais, de- paign [Campanhade Neguev por um Estado De-
palestinos o governo de seu sucessor será capaz
israelense (Knesset), pelo menos cem pendendo
SINAI de seu local de residência e de mocrático], lançada em 2017
Acordo na IIcidade
de Oslo (1995) de definir outra abordagem à Questão
Estado judeu (ocupado Zona B, com
entre os 120 deputados defendem a suade filiação
1967 nacional, enquanto apenas a árabe-judaica israelense de Haifa,
sob controle misto
Palestina, garantindo direitos iguais e
Territórios a 1982)
continuidade
EGITO da colonização, conquistados oupormes- população judaica se beneficia da pleni- um programa de dez pontos destinado
israelo-palestino individuais a todos os cidadãos e cole-
EGITO
mo, para a maioria, a anexação Israel em 1948-1949
de toda tude de seus direitos, que se tornaram a constituir a base paracontrole umZona A, sob
projeto
palestino po- tivos que vivem entre o Mar Mediterrâ-
ou parte da Cisjordânia. Territórios ocupados EGITO
privilégios. Isso é particularmente o que lítico comum entre as duas sociedades. neo e o Rio Jordão – independentemen-
pela Jordânia Faixa de Gaza
No conjunto que compreende (Cisjordânia)Israel está subjacente à qualificaçãoTerritórios do regime
ocupados Sob controle palestino, te de sua origem e religião.
50 km Eilat e o Egito (Gaza) 50 km Eilat 50 km
evacuada por Israel (2005)
e os territórios palestinos, as popula- israelense como uma formaporde Israelapar-
ções árabes e judaicas somam respec- theid por numerosas ONGs israelenses, Um Estado democrático *Thomas Vescovi é pesquisador inde-
1967-19957,1 milhões LÍBANO e GOLAN 1995-2023
tivamente 7 milhões de
(ocupada
em 1967,
palestinas LÍBANO
e internacionais. SÍRIA com direitos iguais para pendente, especialista em Israel e territó-
indivíduos. Nesse mesmo espaço, en- Nesse Estado único, osGOLAN palestinos não rios palestinos.
Haifa
tre o Mar Mediterrâneo eemo1981)
anexada
Rio Jordão,
Haifa
se beneficiam de nenhuma proteção
israelenses e palestinos
existe apenas uma fronteira realSÍRIA (gerida contra as decisões do Exército de ocu- só é apoiado por 20% dos 1   “ Public opinion poll n.89” [Pesquisa de opinião
n.89] , Palestinian Center for Policy and Survey
pelas autoridades israelenses), enquan- pação e os abusos dos colonos, alimen- primeiros, enquanto Research, Ramallah, 3 set. 2023.
Nablus
to o shekel domina
Tel Aviv
o comércio. Se os tando a tentação de Nablus
uma revolta JORDÂNIA arma- 23% dos segundos consi- 2   A mira Hass, “For Israel, the Oslo Accords were
a resounding success” [Para Israel, os Acordos
elementos materiais e institucionais da entre parte CISJORDÂNIA
Tel-Aviv da juventude palestina,6
pretendem separarJericó
CISJORDÂNIA
essas populações, a
Amã
como evidencia a Jericó recente aparição da
Amã deram a ideia possível de Oslo foram um sucesso retumbante], Haa-
Jerusalém retz, Tel Aviv, 12 set. 2023.
ISRAEL Jerusalém ISRAEL em Jenin e Nablus. A
realidade deve ser entendida com maior “Cova dos Leões”, Hebron Mar
3   Ler Dominique Vidal, “Cisjordanie, de la colo-
Gaza Mar Gaza
complexidade, destacando que um úni- sociedade civil israelense habituou-se Não há dúvida de que essas estrutu- nisation à l’annexion” [Cisjordânia, da coloni-
GAZA Morto GAZA Morto
Territórios zação à anexação], Le Monde Diplomatique,
co Estado já está de fato presente.5 a essa situação, percebidacolonizados como um ras militantes devem continuar. Con- fev. 2017.
Beer Sheva Beer Sheva
O muro erguido por Israel segue a status quo, uma vez que as políticas por Israel co- tudo, sua capacidade de influência 4   “ The Palestine/Israeli pulse, a joint poll
linha de separação Deserto
em vigor em 1967 locadas em Deserto prática após a Segunda In-
Territórios provavelmente desmoronará, dado o summary report” [O pulso palestino/israelen-
de Neguev JORDÂNIA
palestinos se, um relatório resumido de pesquisa con-
(linha verde) em apenas 20% de seu tifada (2000-2005) de Neguev permitiram tornar os choque causado pelo ataque de 7 de
SINAI Acordo de Oslo II (1995) junta], Palestinian Center for Policy and Sur-
percurso
(ocupado e não pode, portanto, desem- palestinos invisíveis. A deflagração Zona B,
de 7 outubro na sociedade israelense. Para vey Research, jan. 2023.
de 1967 5   M ichael Barnett, Nathan Brown, Marc Lynch
penhar
a 1982) o papel de uma fronteira hipoté- de outubro recolocou em primeiro
sob controle misto pla- que conste, a oposição popular ao pro-
israelo-palestino e Shibley Telhami, “Israel’s one-state reality”
tica: 10% da Cisjordânia está localizada no umaEGITO população sufocadaZona pela opres-
A, sob jeto de reforma judicial de Netanyahu [A realidade de um Estado único em Israel],
do lado israelense. Além disso, cerca de são e que não se beneficia controle
depalestino
nenhuma mobilizou-se durante quarenta sema- Foreign Affairs, Nova York, v.102, n.3, abr.-
EGITO
700 mil cidadãos judeus israelenses perspectiva política que lhe permita vi- nas sem que o bloco contra a ocupação -maio 2023.
Territórios re- Faixa de Gaza
ocupados Sob controle palestino, 6   L er Akram Belkaïd e Olivier Pironet, “La jeu-
sidem50 km em colônias Eilat na Cisjordânia e em ver 50comkm dignidade e liberdade.
evacuada por Israel (2005)
conseguisse fazer que os manifestantes nesse palestinienne ne s’avoue pas vaincue”
por Israel
Jerusalém Oriental, partilhando locais O afastamento da perspectiva de um compreendessem quanto o destino dos [Juventude palestina não admite derrota], Le
do1995-2023
cotidiano com aLÍBANO população palestina, Estado palestino verdadeiramente inde- palestinos deveria ser uma prioridade e Monde Diplomatique, fev. 2018.
7   L er Charles Enderlin, “Fronde historique en Is-
especialmente lojas e estradas. SÍRIA os
Todos pendente abriu caminho a iniciativas de que nenhuma democracia pode coexis-
GOLAN raël” [Rebelião histórica em Israel], Le Monde
dias, cerca de 150 mil palestinos da Cis-
Haifa ambas as sociedades civis para pensar tir com o apartheid e a ocupação.7 Diplomatique, out. 2023.

Nablus
JORDÂNIA
20 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

ISRAEL-PALESTINA

Em Israel, uma união


nacional de fachada
À frente de um governo ampliado às pressas, Benjamin Netanyahu não assumiu responsabilidade alguma pelas falhas
colocadas sob os holofotes pelo ataque perpetrado pelo Hamas contra seus concidadãos. Ele é também censurado por
ter dado provas de pouca empatia para com as famílias das vítimas. Seu futuro político está suspenso pelo fio da guerra

POR MARIUS SCHATTNER*

A
pós o ataque do Hamas, a popu- ponsabilidade esmagadora na tragédia tudo, salientando que Netanyahu fora Netanyahu está em suspenso, mesmo
lação israelense teve como refle- por não ter visto coisa alguma sendo informado do ataque tarde demais. que nada ainda esteja decidido. Ape-
xo imediato cerrar fileiras, multi- preparada e por ter estado obcecado Em seu discurso de 13 de outubro no sar do enorme choque provocado pelo
plicando os atos de solidariedade por seu projeto de reforma judiciá- Knesset (Parlamento israelense), por ataque do Hamas, as divisões políticas
e de ajuda mútua. De sua parte, os diri- ria, destinado, entre outras coisas, a ocasião da votação para formar um go- subsistem. O chefe da oposição, o de-
gentes políticos, para além de suas de- pôr fim aos processos judiciais contra verno ampliado de “urgência nacional” putado Yair Lapid, número um do par-
clarações marciais, procuraram “sair ele. A questão polarizou a sociedade, e sobre a criação de um comitê restrito tido Yesh Atid (de centro), recusou-se
bem na fita” enquanto permaneciam levando dezenas de milhares de is- de guerra, o primeiro-ministro, trajado a ver na equipe ministerial ampliada
discretos na cena pública. Aliás, os so- raelenses a fazer manifestações todos de preto, visivelmente abalado pelo de- “um verdadeiro governo de união na-
breviventes dos massacres e as famílias os sábados desde o mês de janeiro, senrolar dos acontecimentos, preferiu cional”: as prerrogativas de Gantz e do
dos reféns em geral reservaram uma enquanto reservistas se recusavam a exaltar a coragem de que deram pro- ex-chefe do Estado-Maior Gadi Eizen-
acolhida bastante hostil aos raros mi- se juntar a suas unidades. Netanyahu vas civis e militares, proclamar que “o kot permanecem extremamente flui-
nistros, representantes eleitos ou fun- também é contestado por ter se en- povo e sua direção estão unidos”, ligar das, por mais que ambos façam parte
cionários públicos que vieram a seu en- cerrado em sua convicção de que o os massacres aos horrores da Shoah do gabinete de guerra, ao lado do pri-
contro. Foram necessários cinco dias Hamas não ousaria desafiar o poderio [termo hebraico para o Holocausto], meiro-ministro, do ministro da Defesa,
para que o primeiro-ministro Benja- militar israelense e se contentaria em equiparar o Hamas à Organização do Yoav Galant (do Likud), e do ministro
min Netanyahu decidisse ampliar seu conservar seu poder na Faixa de Gaza, Estado Islâmico (OEI) e prometer que de Assuntos Estratégicos, Ron Dermer
governo, fazendo ingressar nele seu sem se preocupar com o prossegui- a guerra contra a organização islâmi- (do Likud). Sem dúvida, esse gabinete
principal rival, o centrista e ex-chefe do mento da colonização na Cisjordânia. ca palestina terminaria pelo aniquila- ampliado toma decisões, mas, no pla-
Estado-Maior Benjamin “Benny” Gantz mento desta última. “Em seu discurso no legal, seu papel permanece con-
e quatro outros membros do Partido da havia tudo o que era preciso, exceto sultivo. Suas orientações devem ser
Unidade Nacional. Ele se resignou a is- Somente o comando uma tomada de responsabilidade; uma ratificadas por uma instância na qual a
so sob a pressão de uma opinião públi- do Exército reconheceu palavra de desculpas. Como se ele não direita e a extrema direita detêm ampla
ca que não esperou o fim dos combates seu fracasso em impedir tivesse estado ali, mas, para falar a ver- maioria, que é composta do Gabinete
para reclamar uma prestação de contas
a infiltração de coman- dade, ele não estava mesmo”, comen- de Defesa e de outros ministros.
e até mesmo exigir sua demissão. Nos tou no dia seguinte o jornal de grande Seja como for, a inclusão de Gantz e
jornais, incluindo os de direita, na tele- dos palestinos em tiragem Yediot Aharonot. Eizenkot, dois ex-chefes do Exército do-
visão ou simplesmente na rua, foram território israelense Duas pesquisas de opinião realizadas tados de uma experiência militar que
numerosos os que denunciaram um logo antes do anúncio da ampliação do falta a outros ministros – alguns deles
governo que deu provas de uma incom- Nos primeiros dias subsequentes governo indicam que os índices de po- nem sequer prestaram serviço militar –,
petência gritante antes, durante e de- ao ataque, somente o comando do pularidade do líder do Likud (de direita), deveria permitir a Netanyahu contraba-
pois da ofensiva sangrenta do Hamas. Exército reconheceu seu fracasso em já em baixa nos últimos meses, estão em lançar as exigências das personalidades
As críticas recaem tanto sobre o fra- impedir a infiltração de comandos pa- queda livre. Segundo uma pesquisa de mais extremistas de seu governo, entre
casso dos serviços de inteligência, in- lestinos em território israelense para opinião no âmbito da população judia, as quais Itamar Ben-Gvir (Segurança
capazes de prever e prevenir o ataque, atacar objetivos militares e cometer publicada no diário em língua inglesa Je- Pública) e Bezalel Smotrich (Finanças).
quanto sobre o atraso do Exército para violências contra a população civil. “O rusalem Post, 86% das pessoas entrevis- Esse reequilíbrio contribuiu também
correr em auxílio dos civis que esca- Tsahal é responsável pela segurança do tadas questionam a “direção do país”, e para transmitir uma imagem mais mo-
param dos massacres, sem esquecer o país e de seus cidadãos, e sábado pela uma frágil maioria (56%) considera que derada do governo, tanto no plano inter-
silêncio oficial no tocante ao destino manhã, na zona fronteiriça à Faixa de o primeiro-ministro deveria se demitir no como no cenário internacional.
de dezenas de reféns capturados pelos Gaza, não estivemos à altura desse en- ao término da contraofensiva israelense, Resta saber se essa equipe ampliada
atacantes. Outra censura: numerosos cargo. Vamos tirar lições disso, investi- batizada de Operação Espada de Ferro. poderá levar Israel à vitória esmagado-
israelenses não compreendem por que gar, mas, por ora, estamos em guerra”, De acordo com uma sondagem publi- ra que foi prometida à população. Sem
os ministérios continuam a trabalhar declarou em 12 de outubro o chefe do cada pelo diário Maariv (de direita), em dúvida, o objetivo dado ao Exército é
dentro da rotina e com os horários ha- Estado-Maior, general Herzi Halevi, fa- caso de eleições legislativas, o partido modesto. Não se trata de erradicar o
bituais, até mesmo fechando duran- lando do sul de Israel. Likud, no poder, cairia para 18 cadeiras Hamas, mas de destruir seu braço ar-
te o shabbat, quando tantas pessoas Em contrapartida, até a hora em que (contra 32 na atualidade), ao passo que mado. Alcançar esse objetivo, no entan-
precisam de ajuda. Foi, desse modo, a esta edição foi impressa, Netanyahu não o partido de Gantz subiria para 41 depu- to, exigirá tempo. Um tempo que leva
“sociedade civil” que se mobilizou para admitia responsabilidade alguma, qual- tados (contra 12 atualmente). No total, a Israel a acelerar o passo – por causa do
assumir a responsabilidade por tarefas quer que fosse, na cascata de falhas que oposição somaria 78 deputados em 120. impacto que sua resposta militar pro-
que deveriam caber ao Estado, como permitiram o primeiro ataque de enver- voca sobre a opinião pública mundial –,
ajudar e reconfortar as famílias atingi- gadura em solo israelense desde 1948. DIREITA E EXTREMA mas que oferece um alívio para o futuro
das pelo morticínio. Muito pelo contrário, o escritório do DIREITA NO CONTROLE político de Netanyahu.
Alvo principal das críticas, o chefe primeiro-ministro deu a entender que Se a guerra em Gaza concentra as aten-
do governo é acusado de ter uma res- cabia ao Exército a responsabilidade por ções, é inegável que o futuro político de *Marius Schattner é jornalista.
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 21

ISRAEL-PALESTINA

O espectro de exterior, no caso na Síria, para defender


o regime de Bashar al-Assad. O conflito
de baixa intensidade que a milícia liba-

um conflito regional
nesa mantém na fronteira norte de Israel
não tem por objetivo senão lembrar Tel
Aviv que será sempre necessário levá-la
em conta. Desde a “guerra dos 36 dias”
de 2006, que o havia oposto a Israel, o
Hezbollah, que considera ter saído ven-
O guia supremo iraniano, o aiatolá Ali Khamenei, ameaçou Israel de uso da força caso cedor desse conflito, reforçou-se con-
persistissem os bombardeios aéreos em Gaza. Expressando-se claramente, Teerã explica sideravelmente na esfera militar. E, se
reconhecem a supremacia da aviação
que não poderá impedir que o Hezbollah e outros atores que lhe são subordinados ataquem israelense, seus quadros insistem no fato
de não temerem um confronto terrestre.
Uma semana após o ataque, o guia
POR AKRAM BELKAÏD* supremo iraniano, o aiatolá Ali Khame-
nei, ameaçou Israel de uso da força caso
persistissem os bombardeios aéreos em

O
Irã está por trás do ataque do “unidade das frentes” ou da “resistên- importante: teria sido a direção militar, Gaza. “Se os crimes do regime sionista
Hamas contra Israel? Segundo cia comum”, expressões que regular- personificada por seu chefe, Moham- prosseguirem, as forças muçulmanas e
um artigo do Wall Street Journal mente utilizam os chefes do partido li- med Deif, quem o teria planejado, sem da resistência vão se tornar impacientes
(8 out.), que cita apenas fontes banês? Tal intervenção teria desse informar Teerã nem a direção política no e ninguém poderá detê-las”, declarou
anônimas do partido islâmico palesti- modo contribuído para desorganizar o exílio no Catar. Uma maneira de evitar em 17 de outubro o número um irania-
no e do Hezbollah, Teerã teria dado si- Exército israelense – que tinha diversas vazamentos, mas também de afirmar a no. Por sua vez, o ministro iraniano de
nal verde para a Operação Inundação unidades deslocadas para a Cisjordâ- primazia dos dirigentes no local em re- Relações Exteriores, Hossein Amir Ab-
de Al-Aqsa – informação que os diri- nia –, antes mesmo que o grupo aero- lação àqueles no exterior. dollahian, preveniu os Estados Unidos e
gentes iranianos contestam enquanto naval do porta-aviões norte-america- A segunda hipótese é que Teerã não Israel de que a situação poderia tornar-
continuam a louvar as incursões do no USS Gerald Ford viesse navegar, “de desejava que o Hezbollah estivesse as- -se “incontrolável” no Oriente Médio.
Hamas e a conclamar ao “prossegui- maneira preventiva” segundo Washin- sociado ao ataque em um primeiro mo- Expressando-se claramente, Teerã expli-
mento da resistência”. Nos Estados gton, ao longo das costas israelenses. mento, mantendo-o na reserva enquan- ca que não poderá impedir que o Hez-
Unidos, diversos representantes eleitos No caso de Teerã ter conhecimento, há to esperava o desenrolar dos aconteci- bollah e outros atores que lhe são subor-
democratas e republicanos exigiram duas hipóteses a considerar. A primeira mentos. Para o regime dos mulás, a for- dinados ataquem Israel. Na quinta-feira,
novas sanções contra Teerã. Contudo, é que o governo iraniano ignorava os mação libanesa é uma preciosa alavanca 19 de outubro, uma embarcação da Ma-
uma pergunta se coloca: se a república detalhes precisos e, em especial, a data para desencorajar Israel a lançar um rinha norte-americana cruzando o Mar
islâmica é de fato o padrinho dessa exata do desencadear das hostilidades. ataque contra suas instalações nuclea- Vermelho interceptou diversos mísseis
ofensiva, por que o “Hezb” [o partido], Diversos analistas árabes prendem-se res; não se trata, portanto, de engajá-la e drones lançados do Iêmen pelos hutis,
seu principal retransmissor na região, a esse cenário: o Hamas teria tomado levianamente. No passado, Teerã tergi- milícias pró-iranianas. Esses engenhos
não entrou na guerra no mesmo mo- sozinho a decisão de lançar o ataque, versou por muito tempo antes de levar de longo alcance estavam orientados
mento em que o Hamas em nome da sem advertir seus aliados. Ainda mais o Hezbollah a combater em uma frente para o norte e, de acordo com Washin-
gton, poderiam atingir o território is-
© Amr Alfiky/Reuters

raelense. A cada dia, a imprensa irania-


na próxima ao poder exige que todas as
facções armadas xiitas do Líbano, do Iê-
men, da Síria e do Iraque concentrem, a
partir de agora, suas forças contra Israel.
Os riscos de um incêndio generalizado
no Maxerreque tornaram-se reais.
Consciente do perigo da abertura de
uma segunda frente no norte, o governo
de Tel Aviv evacuou diversas localidades
próximas à fronteira e multiplica as ad-
vertências ao Hezbollah e ao Irã. Com o
passar dos dias, agravaram-se as escara-
muças habituais, fazendo lembrar, por
sua intensidade e seu caráter repetitivo,
o prelúdio que levou à guerra de 2006.
No entanto, teria o Hezbollah verda-
deiramente interesse em desencadear
uma guerra contra Israel? Seria assumir
o risco de provocar uma resposta nor-
te-americana quarenta anos depois de
a US Navy ter bombardeado as costas
libanesas em resposta ao duplo atenta-
do em Beirute que matou 241 soldados
norte-americanos e 58 paraquedistas
franceses. Pois uma das primeiras con-
sequências do ataque do Hamas contra
Israel é o retorno em força da Marinha
dos Estados Unidos à região.

*Akram Belkaïd é jornalista do Le Monde


Em Beirute, Líbano, apoiadores do Hezbollah protestam em solidariedade aos palestinos em Gaza Diplomatique.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

ISRAEL-PALESTINA

Barbárie dos colonizados, “É fácil não notar o terror”, observou


o escritor Manès Sperber. “Ele se escon-
de sob a indiferença daqueles que não

massacre dos civilizados


estão envolvidos, ou seja, a esmagadora
maioria.”5 Ele falava do terror fascista
na Europa dos anos 1930, mas o terror
colonial permaneceu ainda mais invisí-
vel para a esmagadora maioria das po-
pulações dos países colonizadores que
Quem não se indignaria com os assassinatos do Hamas? E diante do dilúvio de se espantaram com a “barbárie” que os
bombas ordenado pelo governo israelense? O primeiro é rotulado como “terrorista” – o colonizados deram em troca.

segundo, não. Ao longo da história, essa noção de “terrorismo” variou significativamente LUTA SUL-AFRICANA NÃO
ERA APENAS PACÍFICA
O terrorismo não ocupou o mesmo lugar
POR ALAIN GRESH* em todos os movimentos de libertação,
e alguns conseguiram limitar seu uso. O
caso sul-africano é exemplar, ainda que

O
que pode ser mais devastador para mos semeado entre eles um terror cem o Catar a transferir centenas de milhões sua luta não se reduza, como muitos no
uma mãe, para um pai, do que a vezes pior”. Em seu texto, Nurit termina de dólares para Gaza na esperança de Ocidente acreditam, a um “pacifismo”
perda de um filho? Esperanças chamando Netanyahu de “homem do “comprar” o movimento. É possível ima- bem-intencionado. O Congresso Nacio-
transformadas em fumaça, so- passado” – infelizmente ela estava erra- ginar que uma organização que recebeu nal Africano (ANC) também recorreu à
nhos convertidos em pesadelos, projetos da, pois ele ainda hoje é o rosto da polí- cerca de 40% dos votos entre os palesti- violência e, de maneira pontual, ao ter-
engolidos. Ninguém pode realmente di- tica israelense. Apesar das críticas dirigi- nos nas eleições legislativas de 2006 pos- rorismo. As condições de sua luta facili-
mensionar essa tragédia sem ter passado das a ele durante meses por causa de seu sa ser pura e simplesmente erradicada? taram a escolha pela moderação. O ANC
por ela. Todo pai e toda mãe tremem com projeto de reforma judiciária, a grande A inclusão do Hamas na lista de orga- tinha aliados sólidos em escala inter-
a ideia de receber um telefonema infor- maioria da sociedade uniu-se a Netan- nizações terroristas da União Europeia nacional, concretamente empenhados
mando esse flagelo. Tamanha calamida- yahu para justificar a política criminosa no início dos anos 2000, após os ataques em sua luta. Ele contava com o apoio
de pode ser causada por uma doença – e – segundo o direito internacional – que de 11 de setembro de 2001 nos Estados da União Soviética e países afiliados,
só podemos culpar o “destino” –; por um ele conduz em Gaza (ler na pág. 20). Nos Unidos, gerou muitos debates. A França, de um movimento determinado de não
acidente – e então podemos culpar o mo- escombros fumegantes desse enclave, convencida de que era melhor manter alinhados e do poderoso movimento de
torista, se ele for o responsável –; por um cresce a próxima geração de combaten- aberta a comunicação com o movimento boicote no Ocidente – que ninguém so-
ato “terrorista”, que atinge uma escola tes palestinos, mais determinada que a islâmico, queria dissociá-lo das Brigadas nhava em criminalizar –, que abalou o
aqui, um supermercado ali, um pedestre anterior, com o coração cheio de raiva e Izz ad-Din al-Qassam, que já constavam apartheid e os apoiadores do capitalis-
acolá. Nesse caso, quem culpar? O terro- de um ódio inextinguível. da lista, da mesma forma como as Briga- mo sul-africano. Por fim, a intervenção
rista, naturalmente – e quem mais? A ação de comandos suicidas nas dé- das dos Mártires de Al-Aqsa foram dis- militar cubana em Angola – em parti-
No entanto... Estamos em 4 de se- cadas de 1990 e 2000, como o ataque de 7 tinguidas do Fatah, o principal braço da cular a Batalha de Cuito Cuanavale, em
tembro de 1997, na Rua Ben-Yehuda, de outubro do Hamas aliado a outras or- Organização para a Libertação da Pales- janeiro de 1988, quando o Exército de
em pleno centro de Jerusalém. Três ho- ganizações palestinas, constitui um “cri- tina (OLP). Ela acabou cedendo à pressão Fidel Castro desferiu um golpe fatal na
mens-bomba do Hamas se explodem, me de guerra”, assim como constitui cri- dos parceiros, mas rejeitou a inclusão do máquina de guerra do poder sul-africa-
matando cinco pessoas, entre elas uma me de guerra o bloqueio e o bombardeio Hezbollah na lista, já que o movimento no – constituiu, segundo Nelson Man-
menina de 14 anos chamada Smadar, a Gaza. Mais uma vez se coloca a ques- era um partido político presente no Par- dela, “um ponto de virada na libertação
que tinha saído de casa para comprar tão do terrorismo e sua definição. É um lamento libanês e um importante ator na de nosso continente e do meu povo”.6
um livro. Ela tem um nome de prestígio exercício trabalhoso, pois os grupos re- política interna do País dos Cedros.3 Nesse contexto, foi possível não recorrer
em Israel. Seu avô, o general Mattityahu unidos sob a rubrica de “terroristas” são O caso do Partido dos Trabalhadores ao terrorismo. Hoje, ao contrário, são
Peled, foi um dos arquitetos da vitória heterogêneos.2 Podemos colocar sob o do Curdistão (PKK) condensa as contra- os palestinos que foram abandonados
de junho de 1967, antes de se tornar um mesmo rótulo a milícia norte-americana dições das políticas ocidentais. O partido à própria sorte, inclusive por diversos
defensor da paz e um dos protagonis- de extrema direita que cometeu o ataque figura nas listas de “organizações terro- governos árabes (ler na pág. 24), e é Is-
tas daquilo que ficou conhecido como de Oklahoma em 19 de abril de 1995, a ristas” mantidas pela Europa e pelos Es- rael que tem o apoio incondicional do
“negociações de Paris”, as primeiras re- Al-Qaeda, o Exército Republicano Irlan- tados Unidos, portanto é possível proces- Ocidente. A posição deste último não
uniões secretas entre autoridades da Or- dês (IRA) e o Partido dos Trabalhadores sar por apologia ao terrorismo alguém é nem sequer afetada pela chegada ao
ganização para a Libertação da Palestina do Curdistão (PKK)? Essa incriminação que faça sua defesa verbal. Contudo, em poder em Tel Aviv de ministros fascistas,
(OLP) e israelenses “sionistas”. Naquele implica considerar esses movimentos 2014-2015, o Ocidente forneceu armas ao “supremacistas judeus”.7
ano de 1997, Benjamin Netanyahu já era como a encarnação do Mal absoluto, PKK para combater a ofensiva do Estado Para compreender os dilemas es-
primeiro-ministro e tinha prometido sendo assim impossível qualquer tipo de Islâmico no Iraque e defender a cidade pecíficos da OLP e de seus diferentes
destruir os Acordos de Oslo, assinados conversa com eles e restando como es- síria de Kobane, com um heroísmo am- componentes, precisamos voltar à luta
em 1993, o que conseguiu fazer. Ele tam- tratégia sua erradicação, a fim de garan- plamente elogiado em todo o mundo.4 palestina que se seguiu à ocupação de
bém conhecia a mãe de Smadar, Nurit, tir a vitória do Bem. Contudo, a história Podemos concordar com o fato de 1967. Após um período de euforia mar-
que fora sua colega de escola e amiga provou muitas vezes, seja na Irlanda ou existirem “atos terroristas”, aqueles que cado pelo alargamento da ação dos fe-
de juventude. Quando ele ligou para ela na Argélia, que os “terroristas de ontem” visam ou afetam principalmente civis. dayin (combatentes) palestinos, estes
para prestar condolências, ela respon- são os líderes de amanhã. Esse método de luta tem sido utilizado foram expulsos da Jordânia em 1970-
deu: “Bibi, o que você fez?”, responsabi- Quando jornalistas instam qualquer por numerosos movimentos de liberta- 1971,8 enquanto apertava o controle is-
lizando-o pela morte de sua filha.1 um que trate de Gaza a denunciar o Ha- ção, em maior ou menor escala, depen- raelense sobre os territórios ocupados.
“Para mim, não existe diferença entre mas como uma “organização terrorista” dendo das circunstâncias. Antes de nos Era então a própria existência da revo-
o terrorista que matou minha filha e o (ler na pág. 26), eles esquecem que essa indignarmos, devemos lembrar que eles lução palestina que estava em perigo e,
soldado israelense que, em pleno cerco designação, endossada principalmen- enfrentam exércitos modernos, equipa- com ela, qualquer esperança de liberta-
dos territórios, não deixou uma palesti- te pela União Europeia e pelos Estados dos com aviação, tanques, mísseis, em ção. Assistimos assim a uma multiplica-
na grávida atravessar um bloqueio para Unidos, não é adotada pelas Nações Uni- um combate totalmente desigual. E que ção de ações violentas transnacionais,
chegar ao hospital, e ela acabou perden- das e por muitos Estados que mantêm o terror cotidiano, invisível para os colo- com a criação da organização Setembro
do o bebê. Estou convencida de que, se canais de comunicação com essa organi- nizadores, às vezes exterminador, feriu Negro, que ficou célebre com o ataque
os palestinos tivessem nos tratado da zação. Até Israel manteve, durante anos, por décadas as populações sob ocupa- à delegação israelense nos Jogos Olím-
forma como ‘nós’ os tratamos, ‘nós’ tería- contatos com o movimento, autorizando ção, criando fúria, frustração e raiva. picos de Munique de 1972. Como expli-
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 23

ca Abu Iyad, ex-número dois da OLP, “a que só se comovem quando os israelenses


organização atuou como auxiliar da re- morrem, é o destino cotidiano dos pales-
sistência, em um momento no qual esta tinos. Ele está marcado em sua carne. Ví- UM ESTADO SUPERMILITARIZADO
não conseguia assumir plenamente suas deos que circularam depois de 7 de outu-
tarefas militares e políticas [...]. Seus bro mostram combatentes gritando “Isto
membros refletiam bem os profundos é pelo meu filho (que você matou)!”, “Isto Gastos militares
sentimentos de frustração e indignação é pelo meu pai (que você matou)!”.11
em dólares por habitante, em 2022
que animavam todo o povo palestino “Foram assassinados 103 europeus; em milhões de dólares
diante dos assassinatos na Jordânia e da várias mulheres, incluindo uma senho- Israel 2 623
constantes de 2021
cumplicidade que os tornou possíveis”.9 ra de 84 anos, foram estupradas. Os
Paralelamente, a Frente Popular para a cadáveres, na maioria dos casos, foram
Arábia Saudita 2 093 100 000
Libertação da Palestina (FPLP), liderada mutilados. As partes sexuais foram cor- Turquia 124
pelo cristão palestino Georges Habache, tadas e colocadas na boca, os seios das
90 000
aumentou o número de sequestros e or- mulheres foram arrancados e os rebel- Irã 80
ganizou, com o Exército Vermelho do Ja- des atacaram os cadáveres dilacerando
pão, o ataque contra o aeroporto de Lod, os corpos a facadas.” Esse foi o balanço Egito 44 80 000
em 30 de maio de 1972. de uma comissão de inquérito francesa
O que levou a OLP a suspender suas sobre os acontecimentos no leste da Ar-
70 000
“operações externas”? Primeiro, o reco- gélia em 8 de maio de 1945. Em Sétif, du-
nhecimento cada vez maior de países rante uma manifestação pela indepen-
não alinhados e de países socialistas, dência, um jovem manifestante foi mor- 60 000
que lhe permitiu ganhar legitimidade to pela polícia, desencadeando motins e
internacional e resultou no convite de os massacres mencionados. Um notável 50 000
Yasser Arafat para a ONU em 1974. A or- livro de Mehana Amrani12 relembra as
ganização começou a ser associada ao reações na França a esse evento que
jogo diplomático e abriu suas primei- anunciava o levante de 1954.13 40 000
ras representações oficiais na Europa, Como explicar essa “barbárie” dos
inclusive em Paris, em 1974. A França, colonizados? Um analista escreveu na 30 000
que obviamente condenava o terroris- época que “o apelo à violência faz surgir
mo, teve papel importante para conven- das montanhas uma espécie de gênio do
cer seus parceiros de que a chave para a mal, um Calibã berbere, selvagem e cruel, 20 000
resolução do conflito era o fim da ocu- cujos movimentos dificilmente podem
pação israelense e de que isso envolvia ser detidos exceto por uma força maior. 10 000
o reconhecimento do direito dos pales- Essa é a explicação histórica e social dos
tinos à autodeterminação, bem como a acontecimentos em Sétif no dia da cele-
negociação com a OLP (Declaração de bração da vitória”. O jornal Le Monde não 0
1963

1967

1971

1975

1979

1983

1987

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2019
2022
Veneza de 1980). Na época, o primeiro- ficou atrás, observando que “a confusão
-ministro israelense, Menachem Begin, acontece nas regiões onde as instituições
Fonte: Sipri, Military Expenditure Database, 2023.
acusou os europeus de quererem forçá- francesas, políticas, educacionais e so-
-lo a negociar com o Fatah, cujos “textos ciais, estão menos desenvolvidas”. Está
parecem o Mein Kampf de Hitler” – um implícito: mais colonização ajudaria a ti- O Exército israelense
paralelo que Netanyahu repete para es- rar essas populações de sua “barbárie”. E tem em média...
tigmatizar o Hamas. Esse avanço euro- se fosse, ao contrário, a colonização que
peu abriu uma janela diplomática e ini- as tivesse mergulhado nela?
ciou um processo político. Durante um Décadas tiveram de se passar até que
curto período, os palestinos puderam fosse reconhecido o tamanho da repres-
ter esperança de realizar o sonho de ter são imposta às chamadas populações
120 000
um Estado e apostaram na paz. “indígenas” após a revolta de Sétif em em serviço 110 500
1945: dezenas de milhares de mortos, obrigatório homens
“ISTO É PELO MEU FILHO” há muito enterrados sob a consciência 465 000 170 000 (70%)
reservistas militares
Não se trata aqui de recontar a história tranquila daqueles que preferiram não ativos
do fracasso do processo de Oslo, mas é ver os “massacres civilizados” que a
inegável que ele teve um papel na vitó- França cometeu.
ria do Hamas nas eleições (livres e de-
50 000 59 500
mocráticas) de 1996. O que continuou *Alain Gresh é diretor da revista on-line mulheres
militares de
alimentando a violência por décadas é a Orient XXI, autor de Un chant d’amour. Is- carreira (35%)
situação concreta dos palestinos, a am- raël-Palestine, une histoire française [Um
pliação da colonização, a repressão da canto de amor. Israel-Palestina, uma história
Fonte: CIA, ‘’World Factbook’’, 2023.
atividade política, o encarceramento em francesa], Libertalia, Montreuil, 2023.
massa e a violação sistemática do direi-
to internacional. Na Cisjordânia, onde a 1   “ Bibi qu’as-tu fait?” [Bibi, o que você fez?], Le
Monde Diplomatique, out. 1997. 6   L
 er “L’Évangile selon Mandela” [O Evangelho 11  Ramzy Baroud, “A day to remember: how ‘Al-
atividade do Hamas é reduzida, a ação 2   Ler Dominique Vidal, “Vous avez dit terroris- segundo Mandela], Le Monde Diplomatique, -Quds Flood’ altered the relationship between
israelense é mais “moderada”? te?” [Você disse terrorista?], Manière de Voir, jul. 2010. Palestine and Israel Forever” [Um dia para
Israel aplica esta máxima de um espe- n.140, abr.-maio 2015. 7   
Ler Charles Enderlin, “Israël, le coup d’État lembrar: como o “Al-Quds Flood” mudou para
3   Nathalie Janne d’Othée, “Liste des organisa- identitaire” [Israel, o golpe de Estado identitá- sempre a relação entre a Palestina e Israel],
cialista alemão do fim do século XIX: “O tions terroristes. Quand l’Union européenne rio], Le Monde Diplomatique, fev. 2023. The Palestine Chronicle, 10 out. 2023.
direito internacional não passa de frases s’emmêle” [Lista de organizações terroristas. 8   Ler “Mémoire d’un septembre noir” [Memória 12  Le 8 mai 1945 en Algérie. Les discours français
no papel quando seus princípios são apli- Quando a União Europeia se enrola], Orien- de um setembro sombrio], Le Monde Diplo- sur les massacres de Sétif, Kherrata et Guelma
tXXI.info, 10 jan. 2022. matique, set. 2020. [O 8 de Maio de 1945 na Argélia. Os discursos
cados também aos povos bárbaros. Para 4   Ler Dora Serwud, “Les héros de Kobané” [Os  bu Iyad, Palestinien sans patrie [Palestino
9   A franceses sobre os massacres de Sétif, Kherra-
punir uma tribo negra, é preciso incendiar heróis de Kobane], Manière de Voir, n.169, sem pátria] (entrevistas a Éric Rouleau), Fa- ta e Guelma], L’Harmattan, Paris, 2010.
suas aldeias: não conseguiremos nada fev.-mar. 2020. yolle, Paris, 1978. 13  Ler Mohammed Harbi, “La guerre d’Algérie
5   Manès Sperber, Et le Buisson devint cendre 10  Sven Lindqvist, Exterminez toutes ces brutes! a commencé à Sétif” [A Guerra da Argélia
sem esse tipo de exemplo”.10 Esse terror, [E o arbusto virou cinza], Odile Jacob, Paris, [Exterminar todos esses bárbaros!], Le Serpent começou em Sétif], Le Monde Diplomatique,
muitas vezes invisível para os ocidentais 1990. à Plumes, Paris, 1999. maio 2005.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

ISRAEL-PALESTINA

Um freio na normalização
Há meses a diplomacia norte-americana vem fazendo de tudo para favorecer uma reaproximação entre Riad e Tel Aviv. A
guerra, porém, compromete os esforços de Washington. Ainda assim, tais esforços teriam contribuído para ampliar o prestígio
do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, que não poupa iniciativas para aumentar a influência de seu país

POR HASNI ABIDI E ANGÉLIQUE MOUNIER-KUHN*

“O
reino lembra que nunca mas da Faixa de Gaza” perpetrados pe- tativa de torpedear essa reaproximação, Como a maior parte do mundo árabe-
deixou de enfatizar os peri- lo Hamas e se declaram “consternados uma conjectura simplista demais para -muçulmano, à exceção do Egito (1979),
gos de um agravamento da com o sequestro de civis”. ser plenamente convincente. Todavia, da Jordânia (1994), da Mauritânia (entre
situação ligada à ocupação A guerra de Israel contra o Hamas fus- o conflito sem dúvida compromete as 1999 e 2010) e depois do Bahrein, dos
prolongada, à privação do povo palesti- tiga violentamente a ambição atribuída injunções tripartites levadas a cabo nos Emirados Árabes Unidos, do Marrocos
no de seus direitos legítimos e às provo- nas últimas semanas à Arábia Saudita últimos meses. A administração norte- e do Sudão, no quadro dos Acordos de
cações sistemáticas contra seus valores e aos Estados Unidos de abrirem um -americana, que se valeu de todo o seu Abraão (2020),1 o reino wahabita jamais
sagrados.” Apelando para a “suspensão capítulo mais pacífico na história do prestígio para acelerar as discussões du- reconheceu a existência de Israel. Ora, a
imediata da escalada entre as duas par- Oriente Médio. Após alguns desenten- rante o verão, logo expressou seu desejo recente intensificação das negociações
tes”, o comunicado do Ministério das dimentos durante os primeiros meses de que elas prosseguissem. Mas agora diplomáticas e os comentários sussur-
Relações Exteriores da Arábia Saudita, da administração de Joe Biden e de um que Gaza está sob o fogo das represálias rados por seus protagonistas levam a
publicado poucas horas depois do ata- período de frieza seguido da decisão do israelenses e que as manifestações de supor que uma reviravolta histórica não
que do braço armado do Hamas a Is- reino de reduzir sua produção de petró- apoio aos palestinos pululam no mun- está longe, se é que não está perto. “Nós
rael, em 7 de outubro, dá apoio inequí- leo, apesar da alta dos preços da energia, do árabe e além, seria insustentável nos aproximamos um pouquinho a cada
voco aos palestinos. Mas as palavras Riad e Washington estavam em plena para os sauditas fingir uma intenção de dia” de um acordo que talvez seja “o mais
escolhidas por Riad são menos categó- efervescência diplomática desde abril. prolongar as negociações. No domingo, importante desde o fim da Guerra Fria”,
ricas que as do Catar: este há muito Impulsos semelhantes vinham dos Esta- 14 de outubro, duas fontes sauditas in- afirmou em 20 de setembro Mohammed
tempo apoia o movimento islamista dos Unidos e de Israel. Qual seria o ob- formaram à agência de notícias Reuters bin Salman (“MBS”), o primeiro-minis-
que controla a Faixa de Gaza. Doha jetivo dessa multiplicação de contatos? que as negociações haviam sido inter- tro saudita, quando dava, à rede norte-
apressou-se em considerar expressa- “Normalizar” as relações entre Riad e Tel rompidas, embora a monarquia não -americana Fox News, sua primeira en-
mente “Israel como único responsável Aviv. O fim desse tabu deveria instaurar, confirme nada oficialmente. Naquele trevista em inglês desde sua designação
pela escalada em curso, por causa de segundo as partes envolvidas nas ne- fim de semana, o secretário de Estado como príncipe herdeiro, em 2017.
suas violações constantes do direito gociações, uma era de solidariedade na norte-americano, Antony Blinken, fez
dos palestinos”. Essas reações contras- região para poupá-la da repetição das duas vezes escala em Riad durante sua GOVERNO BIDEN ANSEIA POR
tam com a dos Emirados Árabes Uni- convulsões que a sacodem desde 1948. viagem ao Oriente Médio para se asse- UMA VITÓRIA DIPLOMÁTICA”
dos, que denunciam “os ataques contra Alguns comentaristas se apressaram gurar de que essa região sempre sujeita Passados dois dias, diante da Assem-
cidades e povoações israelenses próxi- em ver no ataque do Hamas uma ten- a distúrbios estava sob controle. bleia Geral das Nações Unidas, em Nova

UM ESTADO SUPERMILITARIZADO
Votação da resolução 67/19 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 29 de novembro Reações internacionais ao ataque do Hamas de 7 de outubro
de 2012, que concedeu à Palestina o status de Estado observador não membro
Reações oficiais expressas entre 7 e 22 de outubro
e reafirmou o direito do povo palestino à autodeterminação e à independência
em um Estado da Palestina localizado no território palestino ocupado desde 1967. Apoio ao Hamas Apelo à desescalada Condenação firme, apoio a Israel

138 votos a “favor’’ 46 abstenções ou não votantes 9 votos “contra’’ Sem posição oficial expressa

País que reconhece


o Estado Palestino
Em 15 de novembro de 1988 em Alger,
o Conselho Nacional Palestino declarou
a independência da Palestina. Na sequência da Argélia,
75 Estados reconheceram o Estado da Palestina. Hoje em dia são 138.
Fonte: Assembleia Geral das Nações Unidas. Fonte: Le Grand Continent, 23 out. 2023.
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 25

© Divulgação Corte Real Saudita


York, Benjamin Netanyahu, chefe do ga-
binete israelense, afirmava de seu lado
que Israel e o reino saudita estavam “na
iminência de um avanço espetacular”.
“A paz entre Israel e a Arábia Saudita
permitirá a criação de um novo Oriente
Médio”, continuou, profetizando a trans-
formação “dos territórios envolvidos em
conflitos e no caos em campos de pros-
peridade e paz”. “Uma estrutura de base”
foi esboçada pelas partes, confirmava
aos jornalistas John Kirby, o porta-voz
do Conselho de Segurança Nacional dos
Estados Unidos, em 29 de setembro.
A imprensa dos Estados Unidos
ecoou os contornos que esse acordo de-
veria assumir, em especial as condições
impostas por Riad a Washington para
estabelecer relações com Israel. É que,
se as três partes têm a ganhar com sua
conclusão, os Estados Unidos são par-
ticularmente exigentes. A administra-
ção Biden está ansiosa para abrilhantar
sua política externa com uma vitória
diplomática de peso, tendo em vista a
campanha presidencial de 2024. Ainda
que a Arábia Saudita não arrastasse o
conjunto dos países muçulmanos na
normalização, o reconhecimento de
Israel por Riad, visto de Washington,
constituiria uma reviravolta bem mais
decisiva para o Oriente Médio que os
Acordos de Abraão, assinados sob Do-
nald Trump.2 Esse apadrinhamento
também permitiria aos Estados Unidos
reafirmar sua influência sobre a região,
cada vez mais cortejada pela China, ela
própria mediadora de uma reconcilia- O rei saudita Salman bin Abdulaziz recebe o presidente dos EUA, Joe Biden, no Palácio Al Salman, na Arábia Saudita
ção espetacular entre o Irã e a Arábia
Saudita em março de 2023.3 movimento. A fim de normalizar suas em regar a Cisjordânia com milhões de poucos meses, MBS realizou a façanha
A impaciência norte-americana e a relações com Tel Aviv, ele precisa de um petrodólares e obter flexibilizações nas de aplacar os conflitos de seu país com
pressão exercida por seus emissários pacto feito na medida de suas ambições. condições de circulação e na outorga de o Irã, transformar-se em parceiro baju-
para selar uma aproximação daqui até Antes que eclodisse a guerra entre Is- permissão de trabalho a seus habitan- lado pelos Estados Unidos, que pouco
o próximo período eleitoral reabilitaram rael e o Hamas, Riad colocara na mesa tes. Afora isso, nenhuma alusão à inicia- antes o olhavam com desdém, e estabe-
de facto o irrequieto MBS como inter- quatro categorias de condições, algu- tiva de paz apresentada pelo rei saudita lecer relações de baixa intensidade com
locutor inevitável e encorajaram Riad mas das quais pareciam intragáveis ao Abdallah na conferência da Liga Árabe o inimigo hereditário, Israel. Em setem-
a aumentar em muito suas exigências. Congresso norte-americano. A primeira (Beirute, 2002), em plena Segunda Inti- bro, dois ministros israelenses foram a
Aparentemente, após aprender com os consistia em obter o apoio dos Estados fada. Sob o lema “terra em troca de paz”, Riad, o que jamais se vira antes.
próprios erros no cenário internacional Unidos para o desenvolvimento de um ela preceitua o estabelecimento de “rela- Com 38 anos, o futuro rei ainda não
(guerra no Iêmen, assassinato do jorna- programa nuclear civil baseado no en- ções normais” com Israel caso ocorram está no centro, mas certamente se afas-
lista Jamal Khashoggi), o príncipe her- riquecimento de seus próprios recursos uma retirada total dos territórios ocupa- tou em definitivo da periferia de um jogo
deiro trocou seus conselheiros mais im- de urânio, coisa que o segundo produtor dos desde 1967 e a criação de um Estado cujas complexidades ele vai dominando
petuosos por velhas raposas da política mundial de petróleo julga crucial para palestino independente.4 um pouco melhor a cada dia. Quanto ao
saudita, como Musaid al-Aiban, consul- garantir sua transição energética. A Ará- O texto do falecido monarca conti- megadeal desejado pelos norte-ameri-
tor de assuntos de segurança nacional e bia Saudita gostaria também de concluir nua, ainda assim, sendo a linha oficial canos, só o tempo dirá se será concluí-
pedra angular do restabelecimento das com Washington um pacto de seguran- do reino: o Ministério das Relações Ex- do. Ora, “o tempo é nosso aliado”, costu-
relações com o Irã. O futuro rei saudi- ça com garantias equivalentes às confe- teriores saudita conclamou ao “avanço mam dizer os sauditas.
ta agora faz de tudo para promover seu ridas aos membros da Organização do da paz [...] de acordo com a iniciativa
país na corte dos países influentes em Tratado do Atlântico Norte (Otan). Ela de paz árabe” tão logo os tambores da *Hasni Abidi é cientista político, diretor do
escala mundial, tanto no plano político solicitava ainda acesso rápido e quase guerra começaram a soar. Esse conflito Centre d’Études et de Recherche sur le
como no econômico. Além da reaproxi- ilimitado aos equipamentos militares poderia também melhorar um pouco Monde Arabe et Méditerranéen, em Gene-
mação com Teerã, esse movimento pas- mais sofisticados saídos das linhas de a imagem internacional do príncipe bra, e autor de Moyen-Orient. Le Temps
sa principalmente pela busca de uma produção norte-americanas, agora sob herdeiro, cujo poder crescente não está des Incertitudes [Oriente Médio. Tempo de
saída da crise no Iêmen, uma tentativa pressão por causa da guerra na Ucrânia. mais entravado por seu espantoso cur- incertezas]), Érick Bonnier, Paris, 2018; e
de mediação na guerra civil sudanesa e Restavam as concessões a obter de rículo na esfera dos direitos humanos. Angélique Mounier-Kuhn é jornalista.
o recurso, nacional e internacional, ao Israel para “melhorar a vida dos pales- Com efeito, segundo a Anistia Interna-
poder de fogo do fundo soberano sau- tinos”, conforme MBS declarou em sua cional, a Arábia Saudita executou 196 1   V er Akram Belkaïd, “Idylle entre les pays du
Golfe et Israël” [Idílio entre os países do Golfo
dita (Public Investment Fund, PIF), da entrevista à Fox News. Limitando-se a presidiários em 2022, sete vezes mais e Israel], Le Monde Diplomatique, dez. 2020.
ordem de US$ 700 bilhões. um punhado de palavras, esse represen- que em 2020. Uns cem pelo menos su- 2   Ibidem.
Como MBS não gosta de papéis se- tante da diplomacia transacional pare- cumbiram entre janeiro e setembro de 3   Ver Akram Belkaïd e Martine Bulard, “Pékin, fai-
seur de paix?” [Pequin, promotora da paz?], Le
cundários, ele nunca pensou em apa- cia reinserir a causa palestina num pro- 2023 – realidade que não parece inco- Monde Diplomatique, abr. 2023.
nhar o trem dos Acordos de Abraão em jeto de resgate econômico que consistia modar mais os parceiros do reino. Em 4   Ibidem.
26 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

ISRAEL-PALESTINA

Nas redações, o o apresentador Thomas Hughes tentou


impingir o termo à sua convidada – uma
universitária da École des Hautes Études

terrorismo inibe a análise


en Sciences Sociales (Ehess), Stéphanie
Latte-Abdallah. “Suas palavras me per-
turbam”, soltou ele, visivelmente choca-
do com sua obstinação em diferenciar o
Hamas da Organização do Estado Islâ-
mico. “Para mim, não é uma questão de
“O ataque dos terroristas do Hamas” parece interromper um cotidiano moral”, arriscou a historiadora. “Esse é o
tranquilo, sem vínculo com os 75 anos de história do conflito, o problema”, replicou Eléonore Weil, jor-
nalista do periódico israelense Haaretz.
bloqueio de Gaza há dezessete anos e a marcha da colonização Essa fixação semântica pode parecer
indecente à primeira vista, levando-se
em conta a amplitude dos massacres de
POR CLARA MENAIS* civis cometidos pelos agressores e o dilú-
vio de imagens particularmente assusta-
doras que inunda as redes. Contudo, os

“É
mais ou menos nosso 11 de a Israel se sucediam, criava-se uma po- Em outros lugares, no entanto, a am- jornalistas não fogem a seu papel quan-
Setembro, nosso 13 de No- lêmica a propósito das personalidades biguidade realmente existe. O chefe do do proíbem a ambiguidade, eles que em
vembro. [...] Vamos imagi- que não condenavam o ataque com su- serviço internacional da BBC explica: geral a opõem, como exigência absoluta,
nar duzentos Salah Abdes- ficiente veemência. Em sua transmissão “‘Terrorismo’ é uma palavra pesada; as a todo discurso radical?
lam, duzentos Mohamed Merah Le 20 h de Ruquier, em 11 de outubro, pessoas a empregam quando se referem Isso ocorre, talvez, por saberem que o
desembarcando na França e come- quarta-feira, o apresentador desfiou a um grupo que desaprovam moralmen- rótulo “terrorista” atua não só como ins-
çando a atacar civis franceses.” Em 7 uma lista dos “figurões que menos fa- te. Não é, de modo algum, função da BBC trumento de inserção no plano moral, po-
de outubro, em edição especial da re- lam” sobre Israel, antes de ler um texto dizer quem elas devem apoiar ou conde- lítico e judiciário, mas também como for-
de BFM-TV, com transmissão direta de acusatório publicado pelo apresentador nar – quem são os bons ou os maus”.1 Na ma de reenquadramento. “O ataque dos
Tel Aviv, Julien Bahloul, “especialista em sua conta no Instagram: “Seu silên- França, as redações se fazem de árbitros terroristas do Hamas” parece interromper
em sociedade israelense”, mostra em cio os mata pela segunda vez”. A tensão sem muito pudor, não hesitando em ma- um cotidiano tranquilo, sem vínculo com
selfie os bunkers, os desaparecidos, o se cristalizou principalmente em torno nipular as emoções nacionais. No Télé- os 75 anos de história do conflito israelo-
pânico nas ruas. Esse franco-israelen- do termo “terrorismo”. Em uma coletiva matin (France 2), Thomas Sotto recebeu -palestino, o bloqueio de Gaza há dezes-
se muito presente no X (ex-Twitter) é de imprensa, jornalistas questionaram Manuel Bompard em 9 de outubro: “É sete anos e a marcha da colonização.
na verdade um antigo jornalista da re- Mathilde Panot, líder do grupo A França verdade que você disse esta manhã ‘Je Como explicar essa assimetria no tra-
de i24News que por um tempo traba- Insubmissa (LFI) na Assembleia Nacio- suis israélien’ [Sou israelense] como se tamento de israelenses e palestinos? Para
lhou junto ao Exército de Israel. Suas nal: não tinham gostado nada do comu- dizia ‘Je suis Charlie’ [Sou Charlie Heb- o cronista Raphael Enthoven, não há dú-
falas serão reproduzidas pelo menos nicado dos Insubmissos, que preferiram do]?”. Ao pé da tela, a legenda reforçava vida: “É preciso distinguir entre civis as-
cinco vezes durante o dia pelo canal o termo “crimes de guerra”, acatado a intenção: “Ataques terroristas: o ‘11 de sassinados na rua por comandos islâmi-
de notícias 24 horas. pelas instâncias penais internacionais. Setembro’ israelense?”. Outra sequência, cos e vítimas colaterais de bombardeios
Nas horas seguintes à ofensiva lançada “Vocês são ambíguos!”, acusaram. em 12 de outubro, dessa vez no Senado: consecutivos ao ataque. Temos de fazer
pelo Hamas contra Israel, na manhã de 7 essa diferença, ela é muito importante”
© Abed Sabah/Reuters
de outubro, sábado, o conjunto do mun- (BFM-TV, 10 out.). Sim, a mídia a faz há
do midiático francês avaliou o aconteci- muito tempo. A imprensa francesa acusa
mento e transformou-o em prioridade regularmente de antissemitismo os mo-
absoluta, a ponto de saturar todos os es- vimentos pró-Palestina e cola a mesma
paços. A BFM-TV consagrou mais de 55 etiqueta em qualquer crítica à política
horas ao tema nas primeiras 72 da crise. israelense, que, no entanto, é dominada
Aproveitou-se de sua proximidade com pela extrema direita. Apesar das repeti-
a i24News, cujos editorialistas acabavam das condenações por parte das associa-
de comentar a situação no estúdio, entre ções humanitárias, Israel conserva aos
duas intervenções de oficiais israelen- olhos das redações sua imagem de “úni-
ses. Aliás, foi a i24News que divulgou a ca democracia da região”. Em suma, um
notícia falsa dos “quarenta bebês deca- vizinho parecido conosco, para o qual
pitados”: em 10 de outubro, terça-feira, enfeitamos a Torre Eiffel com as cores
sua correspondente, em transmissão israelenses numa noite de luto.
simultânea do kibutz de Kfar Aza, para No fim de semana, na hora do contra-
onde o Exército israelense chamara os -ataque aéreo e do massacre de palesti-
jornalistas, relatou que “cerca de qua- nos em Gaza, a ONU falou em “catástro-
renta bebês foram transportados em fe humanitária” (13 out.), mas o evento
macas”. Horas depois, ela acrescentou o não justificou uma edição especial. De-
detalhe macabro das cabeças cortadas. pois, o conflito teve uma cobertura mais
A notícia suscitou uma onda de indigna- razoável e a BFM passou o fim de sema-
ção da parte dos líderes políticos, entre na avaliando as falhas de outro aparelho
os quais o presidente norte-americano, de segurança, dessa vez o da França, a
Joe Biden. No dia seguinte, um porta-voz propósito do atentado a faca em Arras,
do Ministério das Relações Exteriores is- no norte do país. Na mídia, um terroris-
raelense, interrogado pela AFP, admitiu mo substitui o outro.
que “não podia confirmar o número de
quarenta bebês assassinados”. *Clara Menais é jornalista.
Entre os temas repetidos à exaustão na
ocasião: a surpresa, a falha dos serviços 1   J ohn Simpson, “Why the BBC doesn’t call Ha-
mas ‘terrorists’” [Por que a BBC não chama o
de segurança israelenses, os reféns civis. Hamas de terrorista?], 11 out. 2023. Disponí-
Enquanto as exibições de solidariedade Palestino carrega uma vítima dos ataques israelenses contra casas em Gaza vel em: www.bbc.com.
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 27

“O PIOR INIMIGO DA MOEDA DOS ESTADOS UNIDOS SÃO OS ESTADOS UNIDOS”

Seria mesmo ralização da circulação de capitais: os


mecanismos que Bretton Woods tinham
procurado conter por causa de seus efei-

o fim do dólar?
tos devastadores durante o entreguerras.
“O sistema encontrou então um po-
tencial de desestabilização nunca visto
desde a Segunda Guerra Mundial”, des-
taca um alto funcionário do Ministério
da Economia russo que concordou em
A cúpula do Brics em Johannesburgo, em agosto, foi acompanhada de falar conosco sob anonimato. “E fez isso
declarações oficiais denunciando o lugar da moeda norte-americana na em um contexto no qual a ‘moeda-cha-
ve’ continuou sendo uma moeda na-
economia mundial, bem como sua utilização para fins políticos. Rússia e Brasil cional, gerida em função de objetivos
anunciaram que pretendem limitar sua exposição às verdinhas. Contudo, nacionais”. “O dólar é nossa moeda, mas
será que basta declarar o fim da hegemonia do dólar para executá-la? é problema de vocês”, teria retorquido
o secretário do Tesouro, John Connally,
aos diplomatas europeus alarmados
POR RENAUD LAMBERT E DOMINIQUE PLIHON* com a decisão do presidente Nixon em
1971. Nesse ponto, nada mudou. Con-
frontado com um episódio inflacionis-

“O
s relatos da minha morte nia aumentou consideravelmente a lista Muito rapidamente, porém, pareceu ta, o Fed tem realizado, desde março de
são amplamente exagera- de recriminações contra o SMI. que o SMI baseado no domínio do dólar 2022, um aumento das taxas de juros
dos”, teria ironizado Mark – às vezes definido como dollar exchan- motivado por preocupações internas9
Twain em 1897, quando RETORNO DO CASSINO MONETÁRIO ge standard – era vítima de uma contra- – uma política nacional que, segundo
uma agência de notícias anunciou seu Grandes vencedores da Segunda Guer- dição ameaçadora, que o economista Dilma Rousseff, resulta em “maior pro-
falecimento. A recente explosão de de- ra Mundial, no fim do conflito os Esta- Triffin identificou no fim da década de babilidade de redução das perspectivas
clarações alardeando o fim da hege- dos Unidos impuseram seu domínio ao 1950. O sistema precisava cumprir duas de crescimento e maior probabilidade
monia do dólar evoca o espírito do es- mundo. Essa pax americana baseia-se, funções incompatíveis. Ele obrigava o de recessão”10 no resto do mundo...
critor norte-americano: a despeito de entre outras coisas, no estabelecimen- Federal Reserve (Fed), banco central Até aqui, portanto, nada de muito novo
algumas declarações inflamadas, o to de um sistema monetário dominado dos Estados Unidos, a realizar emissões nas críticas dirigidas ao dólar. Contudo, a
atual Sistema Monetário Internacional pelo dólar, cujos termos foram organiza- regulares de dólares para apoiar o au- guerra na Ucrânia evidenciou agora ou-
(SMI) não está morto. Entretanto, tal dos em julho de 1944 pelos Acordos de mento do comércio internacional – para tra disfunção do SMI: a utilização pelos
como o autor de Huckleberry Finn Bretton Woods. A moeda norte-america- os Estados Unidos, esse cenário permi- Estados Unidos do duplo estatuto do dó-
quando da publicação de seu obituário na seria a única diretamente conversível tia manter seu “privilégio”. Porém, isso lar – moeda nacional e moeda-chave do
prematuro, ele está doente. em ouro, constituindo o pivô em torno gerou um crescimento mais rápido dos SMI – para impor sanções a atores eco-
O questionamento do papel do dólar do qual seriam definidas todas as taxas dólares em circulação que do estoque nômicos privados ou nacionais conside-
na economia global não é novidade. Em de câmbio. O FMI7 e o Banco Mundial, de ouro de Fort Knox, minando a con- rados hostis. Ou, para usar uma formula-
2010, um certo Nicolas Sarkozy apro- criados para supervisionar a adoção dos fiança dos países estrangeiros de que ção que se tornou comum desde 2022, “a
veitou a presidência francesa do G20 acordos, ficariam sediados em Washin- suas reservas em dólar pudessem ser transformação do dólar em arma”.
para denunciar um modelo que tornava gton – no primeiro, os Estados Unidos convertidas no metal precioso. Ocorre A lista de medidas coercivas do Tesou-
“parte do mundo dependente da políti- gozariam de direito de veto; no segundo, que o SMI se baseava justamente nessa ro dos Estados Unidos, a primeira das
ca monetária dos Estados Unidos”.1 Cin- do poder (não oficial, porém muito real) certeza, no princípio da paridade ouro- quais data de muito antes da invasão da
quenta anos antes, o ministro das Finan- de nomear o presidente. -dólar. Ele exigia, portanto, ao mesmo Ucrânia pela Rússia, tem 2.206 páginas,
ças da França, Valéry Giscard d’Estaing, De maneira geral, os países endivida- tempo, que os Estados Unidos reduzis- mais de 12 mil nomes e afeta 22 países.
já tinha apontado o “privilégio exorbi- dos precisam encontrar uma maneira, sem seus déficits, ainda que isso preju- Segundo Christopher Sabatini, do think
tante” que a utilização internacional do junto a seus parceiros, de conseguir moe- dicasse o comércio internacional e de- tank britânico Chatham House, “mais de
dólar conferia aos Estados Unidos. Me- da para liquidar seus empréstimos. Não primisse a economia mundial. um quarto da economia global está sob
nos de quinze anos após seu nascimen- os Estados Unidos, que “se endividam de Embora os Estados Unidos claramen- alguma forma de sanção”.11 A utilização
to, os desequilíbrios no funcionamento graça, pagando suas dívidas, em parte, te não tivessem planos de renunciar ao desse tipo de disposição se acelerou ao
do SMI já eram suficientemente visíveis com dólares que cabe a eles próprios emi- mecanismo que cimentava sua supre- longo da última década, enquanto “su-
para que, em 1958, o economista belga tir, e não com ouro, que tem um valor real, macia, o general De Gaulle os colocou cessivos presidentes dos Estados Unidos
Robert Triffin apontasse uma “ameaça que só temos se o ganharmos”, denuncia- contra a parede. Em 1965, exigiu a con- optaram por uma estratégia considera-
iminente sobre um dólar norte-ameri- va o presidente francês Charles de Gaulle versão dos dólares detidos pela França da de baixo custo em termos de esforço
cano, que perdeu seu poder de outrora”.2 em uma coletiva de imprensa no dia 4 de em metal precioso – decisão que aborre- e sangue para resolver seus problemas
Em 1976, seu colega Charles Kindleber- fevereiro de 1965. Esse “privilégio” permi- ceu a Casa Branca e lhe valeu o apelido de política externa”, analisa o Financial
ger estava convencido: “O dólar como tiu ao país acumular déficits externos. Em de GaulleFinger, em referência ao filme Times.12 Aos privilégios da dívida fácil e
moeda internacional acabou”.3 E, no en- outras palavras, gastar sem preocupação. de James Bond lançado um ano antes, da coerção monetária, o dólar veio so-
tanto, o dólar continua reinando do alto Todavia, as críticas da França têm Goldfinger. Percebendo que o estoque mar o da extraterritorialidade: ele per-
do sistema econômico global... pouca importância, considerando-se de ouro dos Estados Unidos não seria mite aos Estados Unidos impor suas
Estaríamos observando então a mera que os Estados Unidos se beneficiam capaz de responder à multiplicação de decisões a todos os atores que desejam
sobrevivência de uma contestação ri- dessa situação de três maneiras: eles fi- demandas semelhantes, o presidente utilizar sua moeda. Em 2015, o banco
tual, na qual cada anúncio de mudan- nanciaram com facilidade suas despesas Richard Nixon decidiu, em 15 de agosto francês BNP-Paribas foi multado em um
ça está condenado a durar menos que militares ligadas à Guerra Fria; eles au- de 1971, mandar pelos ares o SMI imagi- valor recorde de US$ 8,9 bilhões por não
um bom vinho? Talvez não. Ocorre que, mentaram artificialmente o nível de vida nado em Bretton Woods: ele suspendeu respeitar o embargo norte-americano a
quando o presidente russo, Vladimir Pu- de grande parte de sua população; e suas a conversibilidade do dólar em ouro e Cuba, ao Sudão e ao Irã. A maior parte
tin, prevê o “início do fim”4 do dólar e a empresas puderam realizar investimen- inaugurou uma nova fase de flutuação das operações realizadas por esse ban-
ex-presidenta brasileira, Dilma Rousseff, tos diretos estrangeiros (IDE) a custos generalizada de moedas. A decisão uni- co com os três países “inimigos”, fora de
à frente do Novo Banco de Desenvol- mais baixos, garantindo sua expansão lateral dos Estados Unidos não apenas seu território, era denominada em dó-
vimento do Brics,5 promete “encontrar na economia global. Resultado: a maior levou à “reabertura do grande cassino lar, por isso tiveram de passar por uma
formas de não estar mais [...] dependen- potência mundial é o país com a dívida monetário”, como explica o economis- câmara de compensação localizada nos
te de uma única moeda”,6 eles falam em externa mais elevada, estimada em US$ ta James K. Galbraith,8 mas também Estados Unidos, caindo sob o golpe do
um contexto no qual a guerra na Ucrâ- 24,952 trilhões no início de 2023. permitiu um retorno progressivo à libe- direito norte-americano.
28 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

Já aplicadas à Cuba, à Coreia do Norte, RÚPIA, RUBLO OU DIRHAM? uma questão de preocupação financei- ferramenta monetária que permitisse
ao Afeganistão, ao Irã e à Venezuela, as Quaisquer que sejam as motivações, ra: “Se os chineses ricos pudessem tirar estabelecer paridades entre moedas e
sanções tomaram uma dimensão sem esse grande movimento de reajuste do seu capital do país sem restrições, eles fazer a denominação de preços de ma-
precedentes após a eclosão da guerra comércio é facilitado pela formidável estariam em posição de proteger seus térias-primas não sujeitas a flutuações
na Ucrânia. Os Estados Unidos e seus rede comercial internacional tecida pela ativos – portanto, seus privilégios. Com do dólar. Infelizmente, em 21 de agosto
aliados expulsaram a Rússia do sistema China, principal parceiro comercial de o controle de capitais, a propriedade do de 2023, véspera da cúpula, o secretário
de pagamentos internacionais Swift e 61 países no mundo (contra trinta para capital na China permanece relativa: ela de Relações Exteriores indiano, Vinay
apreenderam US$ 300 bilhões de re- os Estados Unidos).16 No entanto, ele está sujeita ao poder político, que man- Mohan Kwatra, aproveitou uma coletiva
servas russas denominadas em dólar e enfrenta uma dificuldade importante. tém a possibilidade de intervir contra os de imprensa para manifestar a oposição
euro: “Roubo puro e simples”, observa o “Como as balanças comerciais nunca indivíduos que deseja sancionar”. de Nova Déli a um projeto que ele pare-
funcionário russo mencionado. estão perfeitamente equilibradas, nes- cia considerar destinado não à criação
Um SMI cuja moeda-chave é tam- sas transações um dos dois países é ne- MAL-ENTENDIDOS CONVENIENTES de uma unidade de conta, mas de uma
bém a moeda nacional do país hege- cessariamente levado a acumular moe- Entre a internacionalização da moeda “moeda comum”. “Mas não era disso que
mônico só é estável se for percebido das do parceiro”, observa Batista Jr. “Isso nacional e a proteção do modelo de de- se tratava!”, irrita-se nosso interlocutor
“como proporcionando mais vanta- pode ser um problema, sobretudo se a senvolvimento do país, até o momento russo. “Todo mundo que trabalha na
gens por meio da integração comercial moeda em questão estiver sujeita a flu- a China já fez sua escolha. E, quando área econômica sabe que era muito cedo
e financeira do que desvantagens para tuações de valor ou não for facilmente se observa uma forma de desdolariza- para falar em moeda comum.” Para nos-
os países subordinados”, observam os convertível”, o que é o caso da maioria ção em favor do renminbi, trata-se de so entrevistado, não há dúvida: o proble-
economistas Michel Aglietta, Guo Bai das moedas. É isso que explica o fracas- um processo “sob restrição”, destaca ma é que, “nos ministérios das Relações
e Camille Macaire.13 Pelo contrário, “a so, em maio passado, das conversações Sperber: “Não é uma desdolarização Exteriores, na Rússia e nos outros luga-
utilização deliberada do sistema inter- entre Rússia e Índia para realizar transa- motivada pelo fato de que o yuan seria res, ninguém entende nada de questões
nacional de pagamentos em dólar para ções em rúpias: sendo o comércio entre superior ao dólar como moeda de tro- monetárias. Mesmo no mais alto nível”.
bloquear as transações privadas relati- as duas nações muito desequilibrado ca ou moeda de reserva para os atores Vamos tentar entendê-las. Para escla-
vas a países que os Estados Unidos pre- em favor da Rússia, esta última temia do mercado, mas uma internacionali- recer o mal-entendido: as moedas (in-
tendem sancionar apenas confirma a acumular maços de rúpias inutilizáveis. zação por meio de acordos diplomáti- clusive as comuns) precisam cumprir
instrumentalização dessa moeda como Então a Índia comprou petróleo russo... cos”. Sinal do apelo contínuo do dólar, duas funções cruciais além de servir de
puro meio de dominação política”. E em dirhams dos Emirados Árabes.17 ele ainda é o porto seguro preferido dos unidade de conta – ser instrumentos de
exige uma reação dos adversários dos “Para que o comércio em moedas na- mercados durante as crises financeiras, reserva, ou seja, ser capazes de armaze-
Estados Unidos: “Não somos nós que cionais realmente funcione”, continua incluindo quando estas têm origem... nar valor monetário, e permitir trocas.
estamos nos livrando do dólar”, argu- Batista Jr., “é necessário que as moedas nas disfunções dos mercados norte-a- Imaginar uma moeda “comum” do Brics
mentou Putin em 2020, “é o dólar que em questão possam ser transformadas mericanos, como foi o caso durante a implicaria, portanto, um grau de coor-
está se livrando de nós”.14 Diretor-exe- em reservas cambiais.” Ou seja, dinhei- crise do subprime de 2008. denação muito superior ao exigido pelo
cutivo do grupo de países liderados ro facilmente disponível e pouco ex- Por trás do barulho anunciando que “a projeto russo. Encarregado de mostrar
pelo Brasil no FMI entre 2007 e 2015, posto a depreciações violentas. Por en- supremacia financeira dos Estados Uni- diferentes vias de trabalho sobre a ques-
Paulo Nogueira Batista Jr. coloca de ou- quanto, nenhum dos candidatos tradi- dos acabou”,18 os números pintam um
tra forma: “Hoje, o principal inimigo do cionais à substituição do dólar – o euro quadro mais comedido. Segundo dados
dólar são os Estados Unidos”. e o renminbi – satisfaz essas condições. do último inquérito trienal do Banco de
Para todos os países em desacordo O euro porque a incerteza sobre seu fu- Compensações Internacionais (BIS), de
com os Estados Unidos, ou que temem turo, evidente desde a crise da dívida 2022, o dólar ainda é, de longe, a moe-
um esfriamento de suas relações com o soberana de 2010, preocupa o resto do da mais utilizada: 88% das transações
país do dólar, a urgência seria, portanto, mundo. O renminbi porque a China não cambiais recorrem a ele (percentagem
“desdolarizar”. Esse projeto, no entanto, liberalizou sua conta de capital: a moe- inalterada desde 1989), contra 32% para
levanta uma questão espinhosa: para da chinesa não é convertível e continua o euro, 17% para o iene e 17% para a libra
utilizar qual moeda? sujeita a severos controles cambiais. esterlina.19 A participação do yuan chinês
A primeira resposta parece óbvia: se Para que o yuan “destronasse” o dólar, (7%) permanece modesta, embora em
usar a moeda de outro país é um pro- um ponto de virada que alguns analistas forte crescimento (alta de 4% em 2019).
blema, vamos usar a nossa! – o que vá- apressados já anunciam, a China preci- Em termos de reservas cambiais, a
rios países começaram a fazer para seu saria fazer uma reviravolta improvável participação do dólar caiu de 72% em
comércio transfronteiriço. Em abril de em termos de política monetária. 2000 para 59% em 2023, mas em bene-
2023, a Índia e a Malásia anunciaram Isso porque a China sabe que a utili- fício sobretudo das moedas emitidas
que também negociariam em rúpias, a zação do yuan por não residentes mo- pelos aliados geopolíticos dos Estados
moeda indiana. Um mês antes, a China dificaria o modelo econômico do país. Unidos: os dólares australiano e cana-
e o Brasil declararam incentivar transa- Quanto mais uma moeda é demandada dense, o won coreano e a coroa sueca.
ções em reais brasileiros e yuans chine- no exterior, mais seu valor aumenta em No mesmo período, a participação do
ses. A França também participa desse relação às demais. E mais suas exporta- renminbi aumentou de 0 para 2,6%. Isso
movimento, uma vez que um quinto ções encarecem: um grande perigo para porque é muito complicado para um
de suas trocas com o Império do Meio a “fábrica do mundo” chinesa. Além país manter reservas em uma moeda
agora são feitas em renminbi, outro disso, o país mediu os riscos que os pro- distinta daquela em que sua dívida é de-
nome para a moeda emitida na Chi- cessos de desregulamentação significa- nominada. E a internacionalização ma-
na.15 A despeito das declarações cheias ram para seus vizinhos durante a crise ciça de um mercado de dívida em ren-
de voluntarismo que interpretam esse financeira de 1997 e para as economias minbi continua impensável sem a libe-
movimento como uma “revolta anti- do Norte durante a crise de 2008. Um ralização da conta de capital chinesa...
norte-americana”, essas iniciativas não episódio de instabilidade nos mercados Colapso da legitimidade do dólar
resultam necessariamente de um dese- chineses após uma tentativa de libera- como “moeda-chave” do SMI, limites do
jo de contestar o domínio do dólar. A lização financeira, em 2015-2016, foi comércio transfronteiriço em moedas
desdolarização comercial de vocação considerado doloroso o suficiente para nacionais, ausência de candidatos para
geopolítica liga-se a outra, mais prag- levar o governo a “redefinir os riscos fi- substituir o dólar... Diante de uma situa-
mática: a que resulta de um esforço nanceiros como potenciais ataques à ção que parece um impasse, a Rússia e
para reduzir o custo das transações, segurança nacional”, explica o pesquisa- depois o Brasil propuseram agir no ní-
por vezes ampliado pelas múltiplas dor Nathan Sperber. Ele destaca que, do vel do Brics. O projeto inicial imaginado
conversões, da moeda A para o dólar, ponto de vista das autoridades chinesas, pela primeira visava criar não uma moe-
depois do dólar para a moeda B. os controles de capitais não são apenas da, mas uma “unidade de conta”: uma
© Winny Tapajós
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 29

tão monetária durante um colóquio a moeda única em 1999, com sucessos [como aquelas impostas à Rússia], então *Renaud Lambert é jornalista do Le
organizado pela China paralelamente bastante mitigados. Em 2010, oito paí- poderia ocorrer uma verdadeira ruptu- Monde Diplomatique ; e Dominique Plihon
à cúpula de Johannesburgo, Batista Jr. ses latino-americanos lançaram o Siste- ra, dividindo o mundo em dois blocos é professor emérito da Universidade Sor-
apresentou as coisas da seguinte forma: ma Unitário de Compensação Regional isolados”. Essa situação, no entanto, se bonne Paris Nord e membro do conselho
a criação de uma unidade de conta “se- (Sucre) e uma unidade de conta com o revelaria extremamente onerosa para os científico da Associação para a Taxação
ria relativamente simples e [...] poderia mesmo nome.21 No entanto, a fraca inte- Estados Unidos, dado o volume do co- das Transações Financeiras para a Ajuda
ser colocada em prática rapidamente gração comercial dos países envolvidos mércio entre esse país e a China, e com- aos Cidadãos (Attac).
e com menor custo”; a de uma moeda limitou o porte da iniciativa. Na Ásia, a plicaria o financiamento de sua dívida.
comum exigiria “uma reflexão e um pla- crise financeira de 2008 levou à criação Será isso um convite à Casa Branca
nejamento que nem começaram”.20 Ob- do Fundo Monetário Asiático, responsá- para estar atenta à atual agitação em 1   “ Nicolas Sarkozy s’attaque aux paradis fiscaux
et à la suprématie du dollar” [Nicolas Sarkozy
viamente já era tarde: o projeto não foi vel pela regulação das taxas de câmbio. torno do dólar? Apostar nessa reação ataca paraísos fiscais e supremacia do dólar],
discutido em Johannesburgo. Desde então, porém, os projetos para também poderia ser o objetivo tácito Le Point, Paris, 13 dez. 2010.
Os mal-entendidos, porém, não expli- dar continuidade à reflexão sobre a inte- de parte do Brics. “Você sabe, se as ini- 2   Citado por Herman Mark Schwartz, “Ameri-
can hegemony: intellectual property rights,
cam tudo. Eles inclusive são uma ma- gração monetária quase não avançaram. ciativas do Brics finalmente levassem dollar centrality, and infrastructural power”
neira confortável de bloquear projetos a Análises recentes destacam o desenvol- os Estados Unidos a concordar com a [Hegemonia norte-americana: direitos de pro-
respeito dos quais não se deseja explicar vimento futuro das moedas digitais do criação de uma moeda verdadeiramen- priedade intelectual, centralidade do dólar e
poder infraestrutural], Review of International
claramente a discordância. Divergên- banco central (CBDC). Na vanguarda da te internacional, isso me serviria per- Political Economy, v.26, n.3, Routledge, Mil-
cias geopolíticas e conflitos internos – questão, a China quer poder contornar feitamente!”, confidencia nosso inter- ton Park, 2019.
nomeadamente entre a China e a Índia, sistemas de pagamento como o Swift locutor russo ao final da entrevista. “É 3   Charles Kindleberger, “The Dollar Yesterday,
Today, and Tomorrow” [O dólar ontem, hoje e
que desejam continuar negociando com com seu e-yuan. Mas isso também le- isso que a China quer”, confirma Agliet- amanhã], Banca Nazionale del Lavoro Quarterly
os Estados Unidos – complicam o traba- vanta receios sobre a capacidade de ta quando perguntamos. Review, n.38, Roma, 1985.
lho do Brics. As coisas eram assim quan- controle por parte do Estado... Na verdade, essa “moeda verdadei- 4   D urante o Fórum Econômico Internacional de
São Petersburgo, 16 jun. 2023.
do eles eram cinco – os membros funda- Até o momento, o sistema organizado ramente internacional” já existe, sob a 5   L er Martine Bulard, “Quand le Sud s’affirme”
dores não podem ignorar que a chegada em torno do dólar não parece, portanto, forma dos Direitos Especiais de Saque [Quando o Sul se afirma], Le Monde Diploma-
de seis novos membros em 1º de janeiro ameaçado. Todavia, o aumento das ten- (DES), emitidos pelo FMI.23 Criados tique, out. 2023.
6   Entrevista na CGTN, 14 abr. 2023.
de 2024 não vai contribuir para agilizar sões geopolíticas internacionais poderá em 1969, quando o sistema de Bretton 7   Ler Renaud Lambert, “FMI, les trois lettres les
as discussões. Contudo, a questão mo- levar ao surgimento de uma zona “não Woods ameaçava entrar em colapso, e plus détestées du monde” [FMI, as três letras
netária revela-se particularmente deli- dólar” para os países que os Estados semelhantes ao Bancor que John May- mais odiadas do mundo], Le Monde Diploma-
tique, jul. 2022.
cada, como sugerem as experiências an- Unidos consideram seus adversários. nard Keynes havia imaginado em 1944, 8   James K. Galbraith, “The Dollar System in a Mul-
teriores de uniões monetárias regionais. A China “teria então o papel de pon- os DSE têm todas as características ne- ti-Polar World” [O sistema dólar em um mun-
Na Europa, a “serpente monetária te entre os dois sistemas: o ponto fixo cessárias para se tornarem a ferramenta do multipolar], International Journal of Political
Economy, v.51, n.4, Nova York, 2022.
europeia” de 1972, que visava proteger de uma estrutura multipolar”, acredita monetária de que o mundo precisa: uma 9   Ler Renaud Lambert, “Les Calimero de l’euro”
as economias envolvidas da flutuação Galbraith.22 Ele acrescenta: “Se a China moeda internacional gerida de forma [Os Calimeros do euro], Le Monde Diplomati-
generalizada das moedas, só alcançou tivesse de enfrentar decisões tão severas concertada dentro do FMI, instituição que, jan. 2023.
10  Entrevista na CGTN, op. cit.
criada para esse fim. Em 2009, a ideia foi 11  Citado por Michael Stott e James Kynge, “Chi-
apresentada pelo governador do Banco na exploits sanctions to undermine dollar” [Chi-
Central chinês, Zhou Xiaochuan, que via na explora sanções para minar dólar], Financial
Times, Londres, 28 ago. 2023.
no Fundo os primórdios de um banco 12  Michael Stott e James Kynge, op. cit.
central mundial capaz de gerir a liqui- 13  Michel Aglietta, Guo Bai e Camille Macaire, La
dez internacional com o objetivo de es- Course à la suprématie monétaire mondiale. À
l’épreuve de la rivalité sino-américaine [A corri-
tabilizar os preços. A medida implicaria da pela supremacia monetária global. À prova
naturalmente uma reforma do FMI, que da rivalidade sino-norte-americana], Odile Ja-
privaria os Estados Unidos de seu direito cob, Paris, 2022.
14  “America’s aggressive use of sanctions en-
de veto, porque as elites norte-america- dangers the dollar’s reign” [Uso agressivo
nas não pretendem privar-se do privilé- de sanções pelos Estados Unidos põe em
gio que o dólar lhes concede. perigo o reinado do dólar], The Economist,
Londres, 18 jan. 2020.
Por enquanto, pelo menos. Isso por- 15  “China wants to make the yuan a central-bank
que, como apontam Astrid Viaud e favourite” [China quer tornar o yuan um fa-
Paul-Arthur Luzu, o presidente Donald vorito do Banco Central], The Economist, 7
maio 2020.
Trump (2017-2021), ao longo de seu 16  Direção de Estatísticas Comerciais (DOTS), FMI.
mandato, não parou de contestar “a po- 17  Nidhi Verma e Noah Browning, “Insight: In-
lítica de déficit permanente dos Estados dia’s oil deals with Russia dent decades-old
dollar dominance” [Insight: acordos petrolífe-
Unidos, que permite o domínio do dó- ros entre Índia e Rússia prejudicam domínio
lar” – um “sinal forte” que “criou dúvidas do dólar há décadas], 8 mar. 2023. Disponí-
sobre o desejo dos Estados Unidos de vel em: reuters.com.
18  Tom Benoît, “La fin du dollar roi” [O fim do rei
abastecer o mundo de dólares”.24 Apesar dólar], Le Point, Paris, 26 set. 2023.
dos discursos oficiais e midiáticos que 19  Essas porcentagens representam um total de
lhe ensinaram a considerar um dólar 200%, porque dizem respeito a um dos dois
lados de cada operação que envolve duas
“forte” como símbolo da grandeza de seu moedas.
país, a população dos Estados Unidos se- 20  Gostaríamos de agradecer a Paulo Nogueira
ria na verdade uma das principais bene- Batista Jr. por nos enviar o texto de sua fala.
21  Ler Bernard Cassen, “Le Sucre contre le FMI”
ficiadas com um dólar cujo valor não fos- [Sucre contra o FMI], La Valise Diplomatique,
se mais impulsionado por seu estatuto 2 dez. 2008.
internacional. Como observa Galbraith, 22  James K. Galbraith, op. cit.
23  Ler Dominique Plihon, “Une ‘monnaie’ mon-
“a multipolaridade [monetária] poderia diale contre le dollar?” [Uma “moeda” mun-
ser ruim para a oligarquia, mas boa para dial contra o dólar?], Le Monde Diplomati-
a democracia, a proteção do planeta e o que, out. 2023.
24  Astrid Viaud e Paul-Arthur Luzu, Entre dollar
interesse geral. Desse ponto de vista, ela et cryptomonnaies. Le défi des sanctions pour
já passou da hora de acontecer”. Infeliz- L’Europe [Entre dólares e criptomoedas. O
mente, adverte ele, “grandes mudanças desafio das sanções para a Europa], Éditions
Arnaud Franel, 2022, Paris.
na ordem econômica mundial só ocor- 25  James K. Galbraith, “The Dollar System in a
rem durante crises extremas”.25 Multi-Polar World”, op. cit.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

A DESORDEM SOCIAL NO RASTRO DA GUERRA

Longe do front, sociedade


ucraniana se divide em duas
Com o aumento do custo humano dos combates, a Ucrânia tem dificuldades para
recrutar voluntários para a frente de batalha. Diante de um povo que pede justiça, o
governo exibe uma política anticorrupção, mas acelera o desmantelamento do Estado
social e dos sindicatos. Tudo isso em um país em guerra no qual combatentes mutilados
precisam contratar advogados e cidadãos deslocados têm de abrir procedimentos
administrativos pelo smartphone

POR HELENE RICHARD*, ENVIADA ESPECIAL

N
ão é a paisagem cinzenta que es- empregadora da cidade, com 26 mil possa ficar velho.” No banco de trás do
perávamos encontrar. Com seu funcionários, “a empresa está usando carro, o homem coloca, ainda embala-
teatro de estilo neoclássico, a ci- somente 20% a 25% de sua capacidade dos, os colchonetes, o saco de dormir e
dade mineira de Kryvyi Rih de produção”.1 No fim do verão de 2023, a mochila cáqui que o sindicato lhe deu
manteve um charme soviético, ao mes- apenas 12 mil trabalhadores tinham para ir para o front.
mo tempo antiquado e bem conserva- conseguido manter um emprego de
do. No Parque Gagarin, neste fim de tempo integral, e a maioria enfrentava US$ 4 MIL PARA SER DISPENSADO
agosto, pedestres passeiam sob um pla- alguma forma de desemprego técnico No dia seguinte à invasão, ele foi espon-
netário de aço, tomando sorvete. Caste- parcial ou total. Quase 10% dos efetivos taneamente ao centro de alistamento.
los infláveis esperam a chegada das foram convocados a servir o país, e mais “Fiquei dois dias na fila. Não me leva-
crianças. Mais adiante, pessoas na cal- de uma centena não retornou do front. ram, mas disseram que iam ligar de
çada compram das babushkas tigelas Os operários de grandes concentra- volta.” Dezoito meses se passaram. E
de framboesas colhidas no jardim. ções industriais como essa estariam também seu entusiasmo. “Cinco amigos
Uma sirene antiaérea soa, sem atrapa- mais sujeitos ao recrutamento de guer- meus foram para a guerra em 2014-2015, çoando do cenário onde comemora seu
lhar as negociações. Após mais de de- ra do que o resto da população. Como e todos estão mortos”, diz ele em um so- aniversário. Segundo autoridades dos
zoito meses de combate contra o Exér- a propiska – endereço oficial onde o luço. Naquele ano, Viktor enfrentou, na Estados Unidos, citadas anonimamente
cito russo estacionado a 100 quilômetros cidadão está cadastrado – nem sempre Praça Maidan (a Praça da Independên- pelo jornal The New York Times, em mea-
dali, atrás da margem esquerda do indica o local onde as pessoas realmen- cia de Kiev), a polícia do presidente Vik- dos de agosto a guerra já tinha deixado
Dnieper, ninguém mais olha para o te moram, “para os comissariados mi- tor Yanukovich, deposto em 22 de feve- 70 mil mortos e 130 mil feridos graves no
céu. Na véspera, um tiro atingiu duas litares é mais fácil visitar as empresas reiro. Após o início da revolta separatista lado ucraniano.3
dúzias de casas em um bairro próximo com muitos funcionários”, afirma Olek- pró-Rússia no Donbass, “muitos amigos Os protestos se espalham como as
ao centro da cidade. No dia 1º de agosto, sandr Motouz, advogado especializado se voluntariaram para a operação anti- fofocas – nas redes sociais e, mais sur-
seis civis morreram em um ataque de em direito trabalhista e sócio da filial terrorista [lançada pelo presidente inte- preendente, nos tribunais. O escritório
mísseis. Em 13 de maio, um prédio de local da Confederação dos Sindicatos rino Oleksandr Turchynov em 7 de abril de Motouz foi inundado por um novo
nove andares já havia sido atingido. O Livres da Ucrânia (KVPU), o segundo de 2014]. Eles se juntaram ao [batalhão tipo de demanda: as de soldados. Ques-
saldo de onze mortos justificou uma maior sindicato do país. “Eles entregam voluntário de extrema direita] Pravyi tões relativas ao soldo alimentam grande
viagem do presidente Volodymyr Ze- intimações no local de trabalho. Se um Sektor ou ao Azov”. Agora é a vez dele. parte das disputas judiciais. Em julho de
lensky à sua cidade natal. trabalhador fugir, o comissariado pode Com dois dedos deficientes, lembrança 2022, o Parlamento aprovou uma lei que
Por trás da aparente normalidade da pressionar por meio do patrão. Acon- de uma briga, ele poderia ser dispensa- cancela a obrigação, por parte dos em-
vida cotidiana, a cidade suporta pesa- teceu com um funcionário da Arcelor. do. No entanto, o médico militar exigiu pregadores, de manter o salário dos fun-
das consequências do conflito. Com Assim que chegou ao trabalho, pergun- US$ 4 mil para emitir um atestado de cionários que servem no front. Arriscar a
uma economia baseada na exportação taram se ele já havia se apresentado ao inaptidão. “Por aqui, falamos da mãe vida, labutar nas trincheiras por menos
de minério e aço, ela deve seus primei- comissariado. Ele acabou se demitindo. corrupção. Ela me salvou no passado: dinheiro do que recebiam na retaguar-
ros altos-fornos a um engenheiro e ban- Casos de ônibus de empresas parados não fui condenado. Porém, estabeleci da, isso não é aceitável para os soldados,
queiro francês, Paulin Talabot, que veio em frente às minas também foram re- este princípio para mim mesmo: se eu especialmente entre os trabalhadores
investir naquilo que, em 1880, ainda era latados à direção sindical.” Por outro for chamado para a guerra, vou.” qualificados que tinham uma vida de-
o império czarista. Hoje, o bloqueio dos lado, as empresas, incluindo a AMKR, Em frente às juntas de alistamento, as cente. Soldos de 20 mil grivnas (R$ 2,7
portos do Mar Negro, por onde transi- podem “reservar” executivos ou profis- filas sumiram. Todo mundo passou a sa- mil) nem sempre bastam para pagar um
tava a produção, obriga as indústrias sionais especializados (até o limite de ber como é o cotidiano de um soldado. empréstimo ou uma pensão alimentícia.
locais a usar rotas logísticas terrestres 50% dos efetivos), evitando que sejam Nos arredores das rodoviárias das cidades “Os voluntários que se apresentaram
mais onerosas e redirecionar suas ex- chamados para o front. Essa margem de de médio porte, já não é raro encontrar por conta própria aos comissariados se
portações – em queda livre – para a Eu- manobra tende a reduzir com as neces- mutilados de guerra. As famílias ficam sentem enganados”, explica o advogado.
ropa, em detrimento de seus mercados sidades crescentes do Exército. em contato permanente com o front. Um “De mais de uma centena de pedidos
tradicionais (Oriente Médio e norte da Viktor2 foi convocado em agosto. Con- fluxo contínuo de imagens chega pelo ce- de manutenção de salário, defendemos
África). Os cortes de energia, frequentes tramestre da AMKR, até então ele esta- lular, aparentemente sem muita censura gratuitamente três casos, na esperança
pelos ataques do Exército russo contra va “reservado” pela empresa. Agora, ele por parte da hierarquia. Após oito dias de criar jurisprudência [invocando o
a infraestrutura energética, também ressalta, somente os trabalhadores com sem notícias do filho, de 31 anos, Dacha, princípio da não retroatividade da lei].
prejudicam o bom funcionamento da mais de 35 anos podem contar com essa professora de inglês em Kryvyi Rih, perdeu Contudo, no início de agosto, uma de-
economia. Segundo a direção da Arce- isenção. “Eu tenho 33, droga! A idade de o sono. Ela nos mostra um vídeo em que cisão do Supremo Tribunal rejeitou um
lor Mittal Kryvyi Rih (AMKR), principal Cristo. Se eu passar dos 34 anos, talvez ele filma os escombros de um prédio, ca- pedido semelhante.” O fosso que se alar-
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 31

to desde 2016: a parcela das contribui- bates: mais de 20 mil pessoas, incluindo
ções sociais que lhe são atribuídas caiu 3 mil crianças, durante os primeiros nove
de 14% para 9% (esta última, aliás, caiu meses da guerra, segundo um documen-
para a metade). Desde janeiro de 2020, to interno. Ela ainda os abriga, apesar
Tretiakova pede uma “descomunização das finanças degradadas e do temor de
da assistência social”, abrindo o merca- que os procedimentos legais ponham
do às seguradoras privadas.5 fim aos programas de reabilitação para
A ruptura não poupou a maior cen- feridos de guerra criados por ela. “Essa
tral sindical do país, que está na mira política é absurda em tempos de guerra e
do Ministério Público (MP). Apesar de vai enfraquecer permanentemente nos-
seus 9 milhões de membros antes do sa capacidade de nos opormos às futuras
conflito, a Federação dos Sindicatos da reformas liberais do governo”, lamenta
Ucrânia (FPU) não é exatamente um Dmitro Dovhanenko, responsável pelo
contrapoder dos trabalhadores. Geral- patrimônio da direção da FPU, enquanto
mente desencorajando greves nas em- explodem as necessidades da população
presas onde está presente, ela pratica em termos de saúde e apoio social.
um diálogo social bastante desprovido Valentin tem dificuldade para entrar
de conflitualidade, ao mesmo tempo no carro. Ele segura as muletas com
que ajuda a gerir projetos sociais das uma mão, deslizando as pernas rígidas.
grandes empresas.6 Isso ainda parece Encontramos com ele em uma avenida
demais para o atual governo. Em pleno de Khmelnytskyi, uma cidade de tama-
conflito, o Ministério Público mostra-se nho médio localizada 350 quilômetros a
pronto a dar fim a uma guerrilha judi- oeste de Kiev, esperando sem saber pelo
cial que já dura três décadas. mesmo motorista contactado pela Bla-
A disputa entre o Estado e o sindicato blacar. Com o fim do tráfego aéreo e o
remonta à década de 1990. Com a queda bloqueio marítimo, as linhas ferroviárias
d re da União Soviética, a filial ucraniana do ficam saturadas pelo transporte de mer-
an
lex
nA sindicato soviético tornou-se autônoma cadorias. O aplicativo de carona tornou-
r so
be em relação à Rússia. No processo, cons- -se, junto com as linhas de ônibus par-
Re
© tituiu duas sociedades anônimas com ticulares, um dos meios de locomoção
fins comerciais que registraram direitos mais utilizados no país.
de propriedade sobre os centros de tra- O rapaz de 24 anos sobreviveu a uma
tamento, colônias de férias e locais de la- explosão no front. Um drone ou uma
zer que até então ele geria em território daquelas minas que o inimigo dispersa
ucraniano. Em 1997, o Estado, por meio com foguetes, ele não sabe dizer. O ex-
ga entre o front e a retaguarda contribui caso a caso, e a demissão pode ser feita do Ministério Público, tentou anular plosivo atingiu um pequeno grupo que
para o ressentimento dos soldados, me- sem restrições (exceto pela obrigação de esse procedimento, fazendo reconhe- avançava rumo às linhas inimigas: sete
nos inclinados a se sacrificarem pela pá- pagar uma compensação de pelo me- cer esse patrimônio como propriedade feridos, um morto. Valentin evitou a am-
tria quando na retaguarda a vida normal nos meio salário mínimo). Outro texto do Estado perante os tribunais. Com putação após dezenove operações. Seus
parece retomar seu curso. “No início da introduziu os contratos “zero hora”. “Os algumas exceções, falhou, tendo a FPU ossos – ele mostra a radiografia no celu-
guerra, a sociedade era muito unida, empregadores recebem vantagens sem obtido uma decisão favorável até do Tri- lar – estão juntos graças a impressionan-
mas hoje está dividida em duas: os que que a lei especifique como isso se liga bunal Europeu dos Direitos Humanos, tes hastes metálicas que atravessam a
têm alguém no front e os outros”, lamen- ao impacto do conflito sobre o trabalho”, para o qual o Estado ucraniano não foi tíbia e o fêmur. Suas panturrilhas ainda
ta Dacha. “Quando vejo jovens postando indigna-se Motouz. “Da região de Zapo- capaz de demonstrar os benefícios que estão marcadas pelo impacto.
fotos de férias nas redes sociais, fico fu- ríjia, onde os combates se intensificam, o público teria com a renacionalização Como muitos outros ex-soldados, Va-
riosa. Meu filho está servindo desde 24 até a Transcarpácia, que está sendo pou- desse patrimônio (que ele pretende re- lentin contratou um advogado para au-
de fevereiro. Eles estão exaustos. O go- pada, aplicam-se as mesmas regras. Isso privatizar imediatamente).7 xiliá-lo nos procedimentos administrati-
verno prometeu uma lei para autorizar indica claramente a intenção do governo A ofensiva do governo concentra-se vos. Até o momento, ele luta para que sua
o desengajamento após dezoito meses, de fragilizar os direitos sociais.” agora no plano penal. O número dois da condição de inválido do terceiro grupo
mas ainda estamos esperando...” FPU, Volodymyr Saenko, está em prisão seja reconhecida, o que lhe daria direito
Enquanto a guerra e a sobrevivên- CENTRAL SINDICAL NA MIRA DO MP preventiva há dez meses por “desvio em a uma pensão mais elevada. Ele também
cia econômica absorvem a atenção da A pressão dos sindicatos e de seus apoia- grande escala ou em grupo organizado”. espera conseguir o bônus prometido pelo
população, prossegue o silencioso des- dores internacionais4 e os protestos da Cerca de quarenta estabelecimentos da Estado por “serviço em zona de combate
mantelamento dos direitos sociais. Em Organização Internacional do Trabalho FPU (de um total de cinquenta) foram ativo”: US$ 2,5 mil por mês. Internado em
julho de 2022, os parlamentares votaram (OIT) forçaram o governo a restringir a bloqueados, incluindo a emblemática um centro de reabilitação da capital, de
a favor de um projeto que suspende os aplicação dessas leis à duração do con- Casa dos Sindicatos, localizada na Praça onde sai às vezes no fim de semana para
acordos coletivos e dá ao empregador flito. “O fim da guerra significa o resta- da Independência, em Kiev, incendiada visitar a esposa, em licença parental com
total margem de manobra para modifi- belecimento das fronteiras de 1991. E durante enfrentamentos entre manifes- um filho de um ano e meio que perma-
car unilateralmente as condições de tra- isso não é para amanhã. Essa legislação tantes e a polícia em 2014. Embora tenha nece em Khmelnytskyi, ele teve de pagar
balho. Em caso de recusa do funcionário, veio para ficar”, observa Motouz. Outras perdido diversas instalações na Crimeia pessoalmente parte de suas despesas
este pode ser demitido sem a garantia de reformas, já em curso, encontraram na desde a anexação da península, a FPU médicas para tratar as lesões.
dois meses de aviso prévio e sem a con- guerra novas justificativas. Por exemplo, ficaria privada de um parque imobiliário
cordância do sindicato. Já a Lei n. 5.371, a liquidação do fundo de assistência so- que antes da pandemia de Covid era res- EXÉRCITO DEPENDE DE DOAÇÕES
ratificada em 17 de agosto de 2022 pelo cial (acidentes e paradas de trabalho) e ponsável por 50% a 60% de seus recursos Originário de Kryvyi Rih, Evgueni Mikai-
presidente ucraniano, estabelece um re- a transferência de suas funções para o financeiros. Sem falar que os membros – liouk não pode pagar um advogado, mas
gime jurídico especial para trabalhado- Fundo de Pensões. Inspiradora da refor- tal como suas contribuições – derreteram enfrenta dificuldades semelhantes. Ele
res de pequenas e médias empresas (70% ma, a deputada Galina Tretiakova, que com a explosão do desemprego e a crise postou um vídeo em sua página no Fa-
da mão de obra do país). Quando a em- integra a maioria presidencial, acredita econômica. A falência está à espreita. cebook denunciando o tratamento que
presa tem menos de 250 funcionários, as “que ela é necessária para não sangrar A direção da FPU considera a decisão recebeu. Em uniforme militar camufla-
condições de trabalho – da remuneração nossa economia em tempos de guerra”. ainda menos correta diante do fato de do, adornado com suas medalhas, exi-
às licenças, passando pela jornada de Essa decisão, no entanto, encerra uma que a entidade abriu seus estabelecimen- ge ser desengajado. O jovem tem crises
trabalho – agora podem ser negociadas crise deliberada de seu financiamen- tos às populações deslocadas pelos com- de epilepsia. Os combates despertaram
32 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

convulsões que remontam a 2014, quan- disse a eles: ‘Se vocês morrerem, quem O empenho dos civis por trás do Exér- extrema direita de inspiração neona-
do ele lutou contra os insurgentes sepa- vai manter o país funcionando, recons- cito tende a diminuir por causa da crise zista que praticam espancamentos ou
ratistas no Donbass. Em coma após a truir a economia?’. São os mais patriotas econômica e da instalação de um confli- assassinatos, ao mesmo tempo que de-
administração de um tratamento inade- que morrem. Nesse ritmo, não sobrará to longo, o que é acompanhado por cer- fendia o apaziguamento com a Rússia.15
quado pelo médico militar, ele ficou sete ninguém para mudar o sistema.” to pessimismo quanto às perspectivas Durante a invasão, apelou à rendição
dias internado, voltou para casa e ultra- Esse generoso doador não goza da militares. “Os amigos que estão no front do Exército e à abertura de negociações
passou o período de licença. Ameaçado confiança das autoridades. Em 2014, dizem que não temos soldados nem mu- imediatas com o agressor. Em 19 de ju-
por cinco anos de prisão por deserção, quando o encontramos pela primeira nição suficientes”, conta com voz fraca lho de 2022, o SBU realizou uma busca
ele precisou voltar urgentemente a um vez, em frente ao comissariado central Nazar Baranov, que gerencia um hotel violenta em sua casa, quebrando-lhe
hospital de campanha onde diz defi- da cidade, ele estava cercado por “sua” em Khmelnytskyi. No hall de seu esta- várias costelas no processo. O procedi-
nhar. “Pensei que estava lutando contra milícia, uma dúzia de rapazes em trajes belecimento, três pacotes com 50 latas mento aberto contra ele nos termos do
o fantasma da União Soviética, mas es- paramilitares.11 Seu objetivo declarado: de energético aguardam para serem le- artigo 436-2 ainda está em curso. “Vive-
tou vivendo dentro dele”, impacienta-se mostrar os músculos pelas instituições vados pelo comboio que, duas vezes por mos em um regime totalitário”, explica
quando o contatamos por mensagem. da cidade “para levar a revolução até o mês, recolhe donativos na retaguarda. ele, no apartamento de uma grande tor-
“Muitos de nós estamos presos aqui, fim”, enquanto o antigo presidente Viktor “Demograficamente, a Rússia é superior re residencial em Kiev, onde luta contra
privados de todos os direitos. Nós nos Yanukovich acabava de ser deposto e o a nós. Todo mundo fala dos aviões F16 a leucemia e agora vive isolado com a
tornamos escravos do Estado.” Exército ucraniano enviava seus homens dos Estados Unidos, mas eles não vão esposa. “É claro que se pode criticar Ze-
Por razões internas e externas, Ze- contra o levante pró-Rússia no Donbass. mudar o rumo da guerra.” É preciso en- lensky, mas opor-se à orientação estra-
lensky mostra sua intransigência contra Com a invasão russa de fevereiro de 2022, tão negociar com a Rússia? Ele balança a tégica que está sendo tomada pelo país
a corrupção e os privilégios. O flage- ele tentou voltar ao serviço, reunindo cabeça. “Depois de tantas vítimas, ceder se tornou inimaginável.” Ele estima em
lo existia antes da guerra,8 mas esta o trezentos voluntários. Após quatro horas não é mais possível. Só podemos contar “algumas dezenas” o número de presos
tornou insuportável para a população. e meia de interrogatório com detector com a morte de Putin.” políticos no país.
Além disso, os doadores estrangeiros, de mentiras pelo Serviço de Segurança
dos quais depende metade do novo or- da Ucrânia (SBU), seu pedido para re- SÓ 8% DISPOSTOS *Hélène Richard é jornalista do Le Mon-
çamento,9 querem ver resultados... No gistrar o grupo como batalhão de defesa A FAZER CONCESSÕES de Diplomatique.
dia 11 de agosto, o presidente anunciou territorial foi recusado. Essas formações Segundo uma pesquisa recente, 30% dos
no Telegram a demissão de todos os che- armadas de civis, que apoiam o Exército entrevistados disseram “querer o fim da 1   R espostas escritas fornecidas pela administra-
fes regionais das juntas de alistamento, oficial, foram criadas em todas as prin- guerra a qualquer custo”.13 No entanto, ção da empresa, 10 ago. 2022.
2   P ara as pessoas que solicitaram anonimato, foi
cujos funcionários são suspeitos, segun- cipais cidades do país, prevendo comba- quando questionados sobre as conces- usado um nome fictício.
do o Ministério Público, de “ajudar cida- tes de rua. “Eles me acusaram de querer sões aceitáveis em uma negociação, a 3   “ Troop Deaths and Injuries in Ukraine War Near
dãos a obter certificados de invalidez ou derrubar o poder em Khmelnytskyi”, diz maioria dos respondentes rejeita as op- 500,000, U.S. Officials Say” [Mortes e feridos
das tropas na Guerra da Ucrânia são perto de
a serem reconhecidos temporariamente ele com um sorriso, na lanchonete de ções propostas: apenas 23% estão dis- 500 mil, dizem autoridades dos Estados Uni-
inaptos para o serviço [...] para retardar sua concessionária Audi, onde mandou postos a cessar as hostilidades se man- dos], The New York Times, 18 ago. 2023.
ou evitar o serviço militar”. O ministro revisar seu veículo durante a entrevista. tida a ocupação de parte do território; 4   “ ITUC & ETUC Letter to the European Com-
mission and European Council regarding Law
da Defesa, Oleksiy Reznikov, foi demi- “Nada mudou desde 2014. Pior ainda: 13% consideram concessões territoriais; 5371 on workers’ rights in Ukraine” [Carta da
tido em 5 de setembro. Três dias antes, agora temos uma ditadura digital!” 28% e 27% renunciariam à integração Ituc e da Etuc à Comissão Europeia e ao Con-
o oligarca Ihor Kolomoisky foi colocado Para Zelensky, o Estado do futuro es- à Organização do Tratado do Atlântico selho Europeu a respeito da Lei n. 5.371 sobre
os direitos dos trabalhadores na Ucrânia], 24
em prisão preventiva por fraude e lava- tará livre do invasor, da empoeirada le- Norte (Otan) ou à União Europeia, res- ago. 2022. Disponível no site da Confederação
gem de dinheiro. Durante as eleições gislação protetiva e avançará on-line. Tal pectivamente. Apenas 8% dos entrevis- Europeia de Sindicatos: www.etuc.org.
presidenciais de 2019, ele foi apresen- como 19 milhões de ucranianos, Lout- tados estão prontos para retiradas ter- 5   S ergei Gouz, “Reforma da segurança social na
Ucrânia. Por que destruir o que funciona?” (em
tado pela mídia ucraniana e estrangeira siouk instalou o novo aplicativo Diia ritoriais ou políticas a fim de conseguir russo), Opendemocracy, 11 out. 2022.
como patrocinador de Zelensky... no celular. Lançado em 2020 pelo novo que a Rússia aceite a paz. 6   D enys Gorbach, “Underground waterlines: Ex-
Entre o Estado e a população, estabe- Ministério da Transformação Digital, o Apesar da guerra, a Ucrânia continua plaining political quiescence of Ukrainian labor
unions” [Relações subterrâneas: explicando a
leceu-se uma relação ambivalente, feita projeto é o orgulho do governo. Passa- sendo um país no qual a expressão per- quiescência política dos sindicatos ucrania-
de cooperação e desconfiança. O Exér- porte, carteira de habilitação, aviso de manece bastante livre. Nas estradas e nos], Focaal, Nijmegen (Holanda), n.84, 2019.
cito depende em grande parte de doa- impostos, multas: todos os documentos nas ruas, controles policiais são raros. A 7   “Case of Batkivska Turbota v. Ukraine (no.
5876/15)” [Caso Batkivska Turbota versus
ções de indivíduos para equipar seus de identidade e administrativos ficam população fala sem medo com os jorna- Ucrânia (n. 5.876/15)], 9 out. 2018. Disponí-
soldados: de kits de primeiros socorros centralizados ali. Em poucos cliques, o listas estrangeiros, inclusive para criticar vel em: https://hudoc.echr.coe.int.
a coletes à prova de balas, de capace- cidadão conectado pode registrar uma o governo, a incompetência dos dirigen- 8   S ébastien Gobert, “Vaine réforme policière à
Kiev” [Na Ucrânia, uma reforma policial inútil],
tes a drones. Sindicatos, associações empresa, enviar um pedido de ajuda tes e a corrupção. No entanto, a Ucrânia Le Monde Diplomatique, jun. 2018.
de voluntários ou simples grupos de para reconstruir sua casa bombardea- não é uma democracia comum. Todos 9   Ben Aris, “Ukraine releases 2024 budget plan,
WhatsApp organizam arrecadações de da, reportar a presença de tropas russas, os canais de televisão exibem o mesmo more spending on military, but raising enough
funding will be tough” [Ucrânia divulga plano or-
dinheiro e equipamentos, às vezes em obter o estatuto de deslocado interno jornal reconfortante e interminável, çamentário para 2024: gastos militares aumen-
grande escala. A associação Victory Dro- etc. Ao todo, são 120 serviços públicos, no qual o que interessa são os avanços tam, mas será difícil conseguir os fundos neces-
nes, por exemplo, treinou 28 mil pessoas o que, segundo o governo, reduziria em ucranianos no terreno, os novos equipa- sários], Bne Intellinews, Berlim, 28 set. 2023.
10  Segundo a pesquisadora Sarah-Masha Fain-
no manejo de equipamentos voadores 10% o número de funcionários. Desen- mentos recebidos pelo Exército e os ata- berg, do centro Elrom de Tel Aviv, entrevistada
(contra 10 mil do Exército) e seus volun- volvido com a colaboração da Agência ques russos contra a infraestrutura civil. pela France Info, 14 set. 2023.
tários também fazem o transporte até dos Estados Unidos para o Desenvolvi- O Código Penal ganhou um novo artigo, 11  Hélène Richard, “Dilemme pour les miliciens
ukrainiens” [Dilema para as milícias ucrania-
o front.10 Empresário em Khmelnytskyi, mento Internacional (Usaid), com um o 436-2, sobre “a justificação, legitima- nas], Le Monde Diplomatique, set. 2014.
no setor da construção, Yuri Loutsiouk financiamento de US$ 8,5 milhões, o ção, negação da agressão armada da 12  “US will help to export Ukrainian Diia app to
financiou vários milhares de euros em projeto teve apoio do Google e da Visa. Federação Russa contra a Ucrânia ou a other countries” [Estados Unidos vão ajudar a
exportar o aplicativo Ukrainian Diia para outros
equipamentos: miras para fuzis de as- Os Estados Unidos o apresentam como glorificação de seus participantes”. Além países], AIN, Kiev, 19 jan. 2023. Disponível em:
salto, binóculos de visão noturna, trans- um modelo para exportação, e Zelensky, dos atos de colaboração, a legislação https://ain.capital.
formação de jipes civis em veículos de como o prenúncio da start-up nation pune as opiniões. Segundo os números 13  “Relatório analítico sobre os resultados da pes-
quisa ‘Guerra, paz, vitória, futuro’” (em ucrania-
transporte militar. “Temos de recuperar que ele pretende criar.12 A Estônia, con- fornecidos no site do Ministério Público, no), Opora, Kiev, 27 jul. 2023.
tudo, incluindo a Crimeia, que é o ob- siderada líder em digitalização na Euro- 2.471 processos foram abertos por esse 14  “Revisão das infrações penais”, jan.-dez. 2022;
jetivo mais simples de alcançar: basta pa, anunciou que pretende desenvolver motivo desde o início da guerra.14 “Revisão das infrações penais”, jan.-set. 2023
(em ucraniano), Portal de Dados Abertos, Mi-
cortar a ponte terrestre para bloquear um aplicativo baseado no Diia. “Até as Vladimir Tchemeris passou por essa nistério da Transformação Digital.
o abastecimento”, explica Loutsiouk, ao decisões judiciais estão lá!”, indigna-se amarga experiência. Ex-dissidente so- 15  Sobretudo com o apoio à aplicação dos acor-
mesmo tempo que admite ter proibido Loutsiouk, percorrendo diante de meus viético e ativista da independência ucra- dos de Minsk por parte do governo ucraniano.
Ler Igor Delanoë, “Qui veut la paix en Ukraine?”
seu filho de se alistar e tentado dissuadir olhos várias páginas de julgamentos: re- niana, nos últimos anos ele denunciou [Quem quer a paz na Ucrânia?], Le Monde Di-
amigos empresários de se engajar. “Eu taliações políticas, ao que parece. a impunidade de que gozam grupos de plomatique, fev. 2020.
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 33

“ONDE EU ACHO IOGURTE E SUCO DE CAIXINHA?”

Em Cuba, big bang monetário


agrava as dificuldades econômicas
Escassez, filas em lojas, crescimento do mercado paralelo de moeda estrangeira e inflação: há três
anos, a economia cubana enfrenta uma profunda crise. Embora o embargo seja estruturalmente
responsável por essa situação, uma reforma monetária para unificar o peso piorou as coisas.
A população procura enfrentar as dificuldades, mas as partidas para o exterior se multiplicam

POR MAÏLYS KHIDER*, ENVIADA ESPECIAL

U
ma discussão se inicia na Avenida dependente do turismo, ela viu seu PIB gorjetas, viviam muito melhor do que Mesmo os bares que cobram pela Co-
Carlos III, uma das grandes arté- cair 11%. Apesar da recuperação (até o as demais. Esse fenômeno levou muitos ca-Cola em pesos cubanos têm de com-
rias de Havana. De repente, o tu- fim de junho, 1,6 milhão de viajantes fo- médicos, professores e engenheiros a se prar as garrafas em MLC para estocar. A
multo domina o reggaeton, que ram a Cuba em 2023), a economia pare- voltarem para atividades mais lucrati- criação dessa moeda implica, portan-
pulsa sem cessar de um alto-falante na ce um campo em ruínas. vas, como a de motorista de táxi. to, mecanicamente, a existência de um
calçada oposta. Sob um calor sufocante, É nesse contexto a priori pouco pro- Em 1997, o Congresso do Partido Co- mercado paralelo nacional de câmbio –
cerca de cinquenta pessoas lutam para pício à ousadia econômica que o go- munista Cubano “estabeleceu que era o que não deixa de alimentar a inflação.
garantir sua posição em uma fila, en- verno decidiu realizar uma das grandes necessário avançar para a reunificação Um euro era negociado oficialmente por
quanto outras tentam discretamente reformas prometidas por Raúl Castro, monetária”, lembra José Luis Rodríguez, cerca de 30 pesos no banco no início de
ganhar alguns lugares. O que está em jo- presidente de 2006 a 2018:2 a unificação ministro da Economia de 1995 a 2009.3 2020; nas ruas, ele custava 80 pesos.
go? De uns anos para cá, conseguir monetária, em uma ilha que há muito Finalmente, em 10 de dezembro de 2020, Essa convulsão econômica lembra,
comprar, antes que os estoques acabem, tempo tem duas moedas distintas. Ini- o Diário Oficial anunciou o desapareci- em alguns aspectos, à do “Período Espe-
um dos pacotes de cinco salsichas à ven- ciado em 1º de janeiro de 2021, o pro- mento do CUC. Presidente da República cial em Tempo de Paz”, eufemismo cria-
da equivale a um tesouro em Cuba. Mi- cesso – que seria uma dor de cabeça desde 2018, Miguel Díaz-Canel garan- do na época pelo governo para evocar a
guel,1 professor de Engenharia Nuclear mesmo em uma situação ideal – agra- tiu em 2020 que “a unificação monetá- fome causada pela queda da União So-
da Universidade de Havana, espera seus vou a crise e trouxe um elemento endó- ria que Cuba está preparando ajudará viética, com algumas diferenças. “Du-
perritos, como são chamados pelos geno ao caos econômico inicialmente a estabilizar as condições econômicas rante o Período Especial, o consumo da
cubanos. “Ganho 3.700 pesos por mês orquestrado por Washington. da ilha”.4 A primeira avaliação contradiz população foi afetado, mas a distribui-
(cerca de R$ 150) e vou pagar 90 pesos isso: a unificação levou a uma desvalo- ção das riquezas era mais justa”, observa
por essas salsichas. A espera pode durar rização da moeda nacional, que passou Rodríguez. “Desde então, as desigualda-
uma ou duas horas. É nosso dia a dia.” Trump colocou Cuba de 25 para 120 pesos por dólar oficial- des aumentaram na sociedade. Alguns
Ele abre sua sacola de compras. “Acabei na lista dos Estados mente. Na realidade, o dólar é trocado estão vendo seu padrão de vida pro-
de comprar 500 gramas de arroz, feijão, patrocinadores do por 250 pesos na rua. Entre a população, gredir, especialmente no turismo, mas
uma berinjela, um pepino, três cebolas, há ainda mais dúvidas desde que os pe- grande parte da sociedade permanece
duas pimentas e três limões. Paguei 968
terrorismo pela simples rigos foram identificados: “A tarefa não à margem. Além disso, nos anos 1990
pesos, um quarto do meu salário. Isso razão de ter sediado é isenta de riscos”, havia alertado Díaz- estávamos saindo de vinte anos de uma
vai durar apenas três dias.” as negociações de paz -Canel. Um dos principais é que se pro- situação econômica favorável. Hoje es-
Basta olhar para cima para se ver entre as Farc e o duza uma inflação acima do esperado, tamos saindo de vinte anos de crise. O
dominado por um imponente edifício agravada pelo déficit de oferta. De fato, cansaço se acumulou.”
vermelho e verde, que exibe em letras
governo colombiano os preços estão disparando. Para absor- Manuel transpira pacientemente em
maiúsculas: PLAZA CARLOS III. Não há ver a elevação dos preços, os salários e as seu velho Jeep vermelho de dois lugares
filas na entrada desse shopping center. O PIOR MOMENTO POSSÍVEL aposentadorias foram aumentados, mas e dois pneus sobressalentes na traseira.
Algumas pessoas andam pelos corredo- Desde 1994, circulam na ilha o CUP sem conseguir acompanhar a dança da Há apenas dez carros à sua frente e ele
res, entre as atrações para crianças, per- (peso cubano) e o CUC (peso conver- inflação. “Acho que foi o pior momento poderá abastecer no posto de gasolina
fumarias, lojas de produtos de limpeza sível, usado principalmente para servi- possível para a unificação”, admite Car- Tángana, diante do famoso Malecón,
e calçados. Para a maioria dos cubanos, ços turísticos e venda de bens importa- los Enrique González García, diretor de a orla de Havana. É permitido um má-
os preços são dissuasivos em um país dos, com valor fixo de 1 dólar). O peso planejamento e coordenação de políti- ximo de 40 litros. Vinte dias antes, ele
onde o salário mínimo é de cerca de conversível foi concebido em resposta cas macroeconômicas do Ministério da havia se reunido no mesmo lugar com
2.100 pesos (R$ 85): um frasco de sham- às dificuldades causadas pela queda Economia e Planejamento. cerca de outros trinta clientes. Manuel
poo custa 540 pesos (R$ 22,50); um par da União Soviética, em particular para Em julho de 2020, um novo dispositi- tinha conseguido a senha 422. Em se-
de tênis, 4 mil (R$ 165); um pacote de amortecer a desvalorização da moeda vo projetado para captar moedas estran- guida, ele se inscreveu no grupo “Cupet
detergente, 850 (R$ 35). nacional e permitir ao governo captar geiras entrou em circulação: uma moe- Tángana”, do aplicativo de mensagens
Nos últimos três anos, filas, escassez dólares, que foram autorizados a circu- da escritural (sem notas ou moedas), Telegram, por meio do qual os clientes
e inflação ritmam o cotidiano dos cuba- lar na ilha a partir de 1993. chamada moeda livremente conversível são convocados de acordo com a che-
nos. Abalada pelo endurecimento das Entretanto, a presença de duas moe- (MLC), cuja taxa de câmbio está vincula- gada do combustível. Ele nos mostra a
sanções norte-americanas, pela ins- das criou “distorções de preços, esti- da à do dólar, em uma base de um para mensagem em seu telefone: “Números
tabilidade política na Venezuela – seu mulou as importações e desestimulou um. Para usar a moeda, você precisa ter 400 a 550: venham no dia 12 de junho
principal apoio financeiro até meados as exportações”, explica o economista um cartão específico, associado a uma às 9h30”. “Às vezes, os tanques ficam
dos anos 2010 – e pela Covid-19, a ilha Carmelo Mesa-Lago. Algumas lojas e conta alimentada por depósitos bancá- vazios por dois ou três dias. Dependen-
atravessa uma das crises mais graves de restaurantes cobravam apenas em peso rios de dólares, euros, ienes, libras ester- do da quantidade de combustível e de
sua história recente. Forçada a fechar conversível. Nesse período, as pessoas linas etc. É muito complicado, no entan- quantos carros estão precisando, eles
suas fronteiras de 1º de abril a 15 de no- que trabalhavam no turismo, que rece- to, comprar MLC com pesos cubanos. chamam mais ou menos pessoas.” São
vembro de 2020 durante a pandemia e biam CUCs por meio de seus salários ou Portanto, é preciso recorrer às divisas. 11h30. Durante os vinte dias de espera,
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o cuentapropista (trabalhador autôno- grupo armado colombiano) que perma- Clara, uma pista asfaltada ladeada por
mo), de 48 anos, que aluga acessórios neceram em Cuba após a suspensão, palmeiras, onde ressoa o zumbido dos
para festas de aniversário precisou em 2018, das negociações com o Estado insetos, leva a um bloco de chapas de
ir ao trabalho de ônibus. “Levei uma colombiano, iniciadas em 2017. Eleito metal verde que parece abandonado: a
hora, em vez de dez minutos de carro.” em 2020, Joe Biden se contentou em eli- usina de açúcar. Não tem paredes. Suas
Ao meio-dia, enfim chega sua vez. Por minar o limite de US$ 1 mil imposto às entranhas são visíveis, feitas de engrena-
937 pesos, ele sai com 31 litros. Na rua remesas e concedeu algumas facilidades gens e canos enferrujados. Uma placa de
perpendicular, dois homens esvaziam para a obtenção de vistos. Entre setem- “Cuidado” alerta para o perigo. No alto,
o tanque de combustível com o auxílio bro de 2021 e outubro de 2022, o embar- uma chaminé com o nome estampado
de uma mangueira em garrafões bran- go resultou em um prejuízo de US$ 6,3 Ifraín Alfonso aponta para o céu. A pou-
cos, enquanto vigiam as idas e vindas ao bilhões, de acordo com a Assembleia cos metros dali, a vila dos antigos ad-
redor para que a polícia não os localize. Geral das Nações Unidas.7 ministradores (uma família espanhola)
Mais tarde, eles venderão o precioso lí- está em ruínas. Aos pés da usina, Rafae-
quido para aqueles que não têm tempo ALIMENTOS APODRECIDOS la mora com seu filho em uma casinha
para ficar na fila, a um preço mais alto. A estrada de Las Moscas é pontilhada de com jardim. A sexagenária começou a
Falta combustível. O embargo de- bananeiras, mangueiras e flamboyants, trabalhar em 1980 na usina de açúcar, no
cretado pelos Estados Unidos contra a árvores cujas folhas refletem uma luz Departamento de Planejamento. “Esta
ilha desde 1962 vem organizando me- vermelha. Nesse campo que faz fronteira usina foi uma das melhores em termos
todicamente a carência.5 A escassez de com a cidade de Cienfuegos, um consul- de quantidade de açúcar extraído. Temos
combustível impede a distribuição de tório médico fica em frente a uma escola uma boa qualidade de solo e de canas.
alimentos e o funcionamento de am- cuja fachada exibe o rosto de Che Gueva- O bloqueio nos obrigou a fechar muitas
bulâncias, usinas termelétricas (pro- ra. As montanhas de Escambray (onde o usinas. Não podíamos trazer peças de
vocando repetidos cortes de energia) e famoso guerrilheiro montou seu acam- reposição para mantê-las. Esta perma-
transportes públicos. Após um período pamento em 1958) desenham o hori- neceu aberta, mas nos últimos dois anos
de abertura durante o segundo man- zonte. Abaixo, uma estrada de terra leva ela não produz mais o que deveria. Este
dato de Barack Obama (2012-2017), a um campo. Atrás de arbustos altos, os ano só fizeram melaço para o álcool e os
Donald Trump instaurou 243 novas sinos ecoam suavemente. São 10 horas e animais”, lamenta. Consequência: o açú-
medidas de embargo assim que chegou logo o sol estará a pino. Yuni, um homem car custa caro e parte dele é importado
à Casa Branca. Só em 2019, 54 embar- alto, cabelos escuros, vestido com um para atender à demanda.
cações e 27 empresas petroleiras foram macacão de trabalho, botas e um boné
condenadas por transportar petróleo com a bandeira cubana na cabeça, lavra ALTAS RECORRENTES DO DÓLAR
para Cuba.6 Também em 2019, o De- sua terra com a ajuda de dois enormes Os passageiros espremidos no ônibus
partamento do Tesouro norte-ameri- bois pretos que puxam um arado. com destino a San Miguel del Padrón
cano sancionou 34 navios da petroleira descem todos em La Cuevita. A rua prin-
Petróleos de Venezuela, além da Ballito cipal dessa comunidade na periferia de
Bay Shipping Incorporated (com sede Em 2022, mais de 200 Havana está lotada. Ela cruza uma es-
na Libéria) e da ProPer In Management mil cubanos voaram trada lamacenta e cheia de lixo. Cen-
Incorporated, com sede na Grécia. tenas de pessoas correm para lá, onde
Trump ampliou o escopo do embar-
para a Europa e para se encontra de tudo: roupas, comida,
go para poder levar aos tribunais pes- outros países da América ventiladores. La Cuevita é um dos cen-
soas físicas ou jurídicas que investem Latina ou partiram em tros do mercado paralelo cubano que
em empresas anteriormente norte-a- um barco improvisado explodiu com a passagem da Covid-19,
mericanas e que foram nacionaliza- da unificação monetária e da espiral in-
das durante a Revolução. As remessas
para os Estados Unidos flacionária produzida por elas.
de dinheiro do exterior (ou remesas, a Uma mulher ruiva espalha caixas de
terceira maior fonte de divisas do país) Em seus 3 hectares, ele cultiva pepino, remédios na calçada com a irmã e a
foram subitamente limitadas a US$ 1 milho, mandioca, batata-doce e manga. amiga: “Os produtos farmacêuticos vêm
mil por trimestre, enquanto eram ilimi- No período das chuvas, planta arroz. Na de fora. Porém, as farmácias estão va-
tadas até então. Elas haviam impulsio- estação seca é a vez do feijão. Oito vacas zias, então vendemos aqui”. Em Cuba,
nado a economia da ilha sob o governo reprodutoras dão leite. As colheitas são os medicamentos são baratos, quando de 52 anos, cabelos loiros presos com
Obama. A Western Union foi obrigada vendidas para o Estado, que se encarre- encontrados. Em La Cuevita, uma caixi- uma tiara e o pescoço coberto de suor,
a cessar suas atividades em Cuba. Du- ga de distribuir os alimentos na cidade nha de paracetamol, por exemplo, custa veio de Perico (na província de Matanzas,
rante o mandato de Donald Trump, 22 e nos vilarejos vizinhos. “As pessoas nas 200 pesos, contra 70 pesos na farmácia. a cerca de 100 quilômetros de distância)
penalidades foram aplicadas contra áreas urbanas dependem do que ofere- Ernesto, de 45 anos e olhar cansado, naquela manhã. Em suas sacolas pretas,
instituições bancárias ou financeiras cemos para elas. Gostaríamos de produ- oferece pacotes de fralda. Desde 2020, ela amontoou pacotes de macarrão e
acusadas de violar as regras dos Esta- zir mais, mas não temos recursos para esse advogado de formação tem levado aparelhos eletrodomésticos para reven-
dos Unidos: em 2018, a Société Généra- isso. Isso dificulta as coisas para a popu- de duas a três horas todos os dias para der em sua cidade. “Saí hoje às 4 horas da
le foi multada em mais de US$ 1 bilhão lação, que nem sempre encontra tudo o chegar aqui. “Antes da Covid-19, eu não manhã, cheguei às 7 horas.” É meio-dia.
após realizar transações financeiras que deseja, e a escassez eleva os preços. precisava fazer isso. Tudo ficou mais di- Ela já está indo embora. “Até 2019, o mer-
envolvendo Cuba, Irã e Sudão. Por causa do bloqueio, não é possível fícil desde então. Eu me viro com o que cado paralelo existia, mas era marginal.
Alguns dias antes de deixar a Casa importar sistemas de irrigação, colheita- me cai nas mãos, como estes pacotes de Com a unificação monetária, a taxa de
Branca, Trump colocou Cuba na lista de deiras ou mesmo combustível suficiente fraldas, comprados por 500 pesos cada câmbio subiu de 25 para 120 pesos por
Estados patrocinadores do terrorismo para fazer o trator rodar. Levo quatro ho- um e que revendo por 650. Todo mês eu dólar. Debaixo dos panos, ele chega a 200
pela simples razão de Havana ter sedia- ras para fazer com os bois o que as má- ganho 5 mil ou 6 mil pesos, mas isso não pesos. É difícil erradicar a economia in-
do as negociações de paz entre as Forças quinas fariam em quinze minutos. Com é suficiente para viver corretamente.” formal nas condições atuais”, reconhece
Armadas Revolucionárias da Colômbia um caminhão, eu poderia colher todas Na praça em frente, algumas dezenas o ex-ministro da Economia Joel Marill
(Farc) e o governo colombiano em 2016. as mangas que você vê. Às vezes, sou de pessoas aguardam o ônibus, cercadas Domenech. “Então as pessoas estão en-
“A Noruega foi fiadora desse acordo e obrigado a deixá-las apodrecer.” por sacolas bem carregadas. Depois de contrando outras soluções.”
não foi acusada de nada”, observou Ro- Nesse país, que foi um dos principais comprar produtos em Havana, elas os O surgimento do 3G no fim de 2018
dríguez. Cuba também se recusou a ex- exportadores de açúcar, o ouro branco revenderão em outras províncias menos (antes, os cubanos só tinham acesso à
traditar membros da guerrilha do Exér- tornou-se inacessível. Na localidade de abastecidas do que a capital, onde os internet via Wi-Fi nos parques) abriu
cito de Libertação Nacional (ELN, outro Ifraín Alfonso, a trinta minutos de Santa preços costumam ser mais altos. Dani, novas possibilidades para a economia
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 35

© Vitor Flynn
informal. Em seu celular, Diego, de 32 disponíveis com os preços: “Oferece- Essa situação gerou protestos em 11 de quedos.” Como muitos cubanos com di-
anos, exibe todos os grupos de Telegram mos cosméticos de alta qualidade, per- julho de 2021, os maiores em trinta anos, ploma que deixaram a ilha, hoje ela lava
e de WhatsApp em que está cadastrado. fumes para mulheres e homens, lápis, assim como uma onda maciça de emi- pratos em um restaurante de Munique.
Existem 64 mil membros do “Timbiri- cremes antirrugas” ou “Importamos gração. Em 2022, mais de 200 mil cuba-
chi Habana” (timbirichi é uma pequena todos os medicamentos: enalapril, sul- nos voaram para a Europa e para outros *Maïlys Khider é jornalista
loja que vende um pouco de tudo e em faprim, salbutamol, amoxicilina etc.”. países da América Latina ou partiram em
1   C omo a maioria de nossos interlocutores pre-
pequenas quantidades: pirulitos, cabos Desde 2020, os sites de venda de produ- um barco improvisado para os Estados feriu o anonimato, citamos apenas o primeiro
de telefone, escovas de dente, cigarros tos alimentícios, abrigados no exterior, Unidos. Em um velho carro norte-ame- nome, que foi modificado.
etc.). Na conversa, os participantes se multiplicaram. Seu princípio: uma ricano azul-turquesa, Carolina ri com a 2   Interino de 2006 a 2008.
3   Ler Renaud Lambert, “Cuba veut le marché... sans
perguntam: “Bom dia, onde posso en- família que mora fora do país paga pe- amiga Elisabeth. Ela vai fazer uma visi- le capitalisme” [Cuba quer o mercado... sem o ca-
contrar queijo?”; “Alguém pode me di- los produtos (que estão em Cuba) com ta-surpresa à família. Há um ano e sete pitalismo], Le Monde Diplomatique, out. 2017.
zer onde comprar um frango inteiro, seu cartão de crédito. Os alimentos são meses, ela interrompeu seus estudos em 4   “Unificación monetaria ayudará a estabilizar la
economía” [Unificação monetária ajudará a es-
um litro de óleo e leite longa vida?”. entregues em seguida no endereço in- Desenvolvimento Sociocultural para se tabilizar a economia], EFE, Madri, 24 jan. 2020.
Ou ainda: “Compro euros por 193 pe- dicado. “Em 2020, as filas começavam a mudar para Munique com o filho de 7 5   Ler Salim Lamrani, “Petite histoire d’un embar-
sos”. “Nos últimos anos, os grupos se se formar às 3 ou 4 horas da manhã. En- anos e o marido. “Antes de 2020, nunca go” [Pequena história de um embargo], Maniè-
re de Voir, n.155, out.-nov. 2017.
especializaram: medicamentos, ali- tão esses sites apareceram. Eles operam tinha pensado em ir embora, até que a 6   “ Right to live without a blockade. The impact of US
mentos, geladeiras, bicicletas”, explica como empresas familiares: os cubanos Covid chegou. A partir daí, tudo deu erra- sanctions on the Cuban population and women’s
Diego. As linhas de discussão (thread) vendem produtos de suas próprias lo- do. Todos os meus colegas de faculdade lives” [Direito de viver sem o bloqueio. O impacto
das sanções dos EUA na população cubana e na
“às vezes funcionam como um mer- jas por meio desses sites, a preços mais partiram... Cuba é uma ilha de talentos. vida das mulheres], Oxfam, Oxford, maio 2021.
cado”. “Alguns compram alface de um altos. Isso evita filas, mas exige que A Revolução alfabetizou, formou exce- 7   “ L’Assemblée générale entame son débat sur le
agricultor, tomates e goiabas de outro. você tenha um familiar fora que possa lentes profissionais. Porém, quero dar ao blocus contre Cuba et vote la résolution sur la
CPI” [A Assembleia Geral inicia seu debate so-
Depois, centralizam a venda”, diz. Os pagar”, conta Diego, cujo irmão mais meu filho uma qualidade de vida melhor, bre o bloqueio contra Cuba e vota a resolução
vendedores enviam listas de produtos velho mora na Argentina. para que ele tome sorvete, tenha brin- na CPI], comunicado de 2 nov. 2022.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

“APOIO INCONDICIONAL A ISRAEL”, “TERRORISMO”, “ANTISSEMITISMO”

Gaza e a política francesa


O novo conflito no Oriente Médio teve repercussões imediatas na política francesa As análises da França Insubmissa
geraram críticas intensas, inclusive à esquerda, e facilitaram a marginalização dessa organização por um governo que
está constantemente se movendo para a direita. Parece que a extrema direita é a principal beneficiária dessa operação

POR SERGE HALIMI*

D
ezoito meses após a reeleição de É a velha história: cada qual se diz favo- amalgamado sem constrangimento e gadas a eleger de cinco em cinco anos
Emmanuel Macron, dois pressu- rável à unidade entre os partidos quando difundido o tempo todo por redes de in- um presidente cujas propostas serão
postos que caracterizavam os es- ela atende a seus interesses e a rejeita, formação cujas escolhas editoriais coin- combatidas todos os dias não elimina
crutínios presidenciais e legislati- alegando divergências – aliás, reais –, cidem com as da extrema direita. outra anomalia: a de uma aliança for-
vos foram confirmados: o poder quando os parceiros eventuais é que le- A aberração democrática de um cená- çada entre parceiros de esquerda que se
continua sendo impopular e minoritá- vam vantagem. Se a votação da primave- rio em que as pessoas se sentem obri- desentendem também por razões res-
rio, enquanto a extrema direita prosse- ra seguinte não fosse proporcional, so-
gue em ascensão. Ao mesmo tempo, cialistas, ecologistas e comunistas teriam
uma ilusão largamente difundida no seguramente evitado apresentar listas
ano passado acaba de ser abalada para separadas. E se o eleitorado atraído por
sempre. Longe de voltar a ser poderosa e essa consulta malvista pelos franceses
unida, a esquerda continua fraca e sem estivesse menos dominado pelas classes
perspectivas, o que, de modo geral, le- médias e pelos aposentados, os insub-
vou-a a fragmentar-se um pouco mais. missos não teriam aceitado desaparecer
O ataque mortífero do Hamas contra por trás dos ecologistas na esperança de
Israel e os bombardeiros indiscrimina- neutralizar o impacto de um escrutínio
dos do Exército israelense (mais de 4 ao fim do qual seus avanços corriam o
mil mortos no total durante a primeira risco de ser superados por Jean-Luc Mé-
semana) fizeram essa divisão ressurgir lenchon, em 10 de abril de 2022 (21,95%).
de maneira dramática, talvez irreversí-
vel. A nova etapa do conflito no Oriente DUAS ANÁLISES INCOMPATÍVEIS
Médio, marcada por um encadeamento No estado atual da relação de forças no
de crimes de guerra cujas imagens cir- país, a equação da unidade é simples e
culam instantaneamente, transformou sombria: nenhum candidato de esquer-
divergências antigas sobre o tema, entre da estará no segundo turno da próxima
os partidos de esquerda, em um verda- corrida ao Eliseu caso muitos figurem
deiro frenesi midiático e político contra no primeiro, e os franceses deverão en-
o partido A França Insubmissa (LFI). tão, pela terceira vez desde 2012, “esco-
Entretanto, o barco já estava afundan- lher” entre um candidato de direita e
do. Desde o sucesso relativo da Nova Marine Le Pen. A mesma regra valerá até
Aliança Popular Ecológica e Social (Nu- certo ponto para as eleições legislativas,
pes) nas eleições legislativas de junho pois os candidatos que obtêm menos de
de 2022, os desacordos e polêmicas na 12,4% dos inscritos (com uma abstenção
verdade nunca cessaram entre os quatro maciça, perto de 25% dos votantes) são
principais membros da coalizão.1 Prati- eliminados após o primeiro turno. Em
camente todos os dias um novo “caso” suma, dado que a extrema direita se ins-
servia de pretexto para escaramuças lou- talou firmemente como uma das princi-
camente midiatizadas entre os membros pais forças políticas do país, os partidos
da Nupes: abaya [vestido islâmico que a de esquerda não podem mais sustentar
França proibiu as meninas de usarem suas divergências e deixar o eleitor re-
na escola], futuro da energia nuclear, solvê-las no primeiro turno, sob pena de
churrasco, condenação de um deputado serem eliminados do segundo.
por violências conjugais, Tour de France Dois quinquênios de Emmanuel Ma-
“machista e poluidor”, Taiwan, analogia cron poderiam então levar ao seguinte
entre um dirigente comunista e um anti- resultado: em 2027, a conclamação ao
go chefe do Partido Nazista, Ucrânia, is- “voto útil” corre o risco de induzir alguns
lamofobia, agressões policiais, valor-tra- eleitores de esquerda, alarmados pelos
balho... Os próprios acordos eleitorais já números das pesquisas, a votar em um
iam mal. Quem ainda se lembra de que, candidato de direita já no primeiro turno
duas semanas antes do ataque do Ha- se, como ocorre hoje, esses levantamen-
mas, a LFI saía de mãos abanando das tos de opinião continuarem a sugerir
eleições senatoriais (nenhum eleito em que um conservador terá mais chances
348) depois de ser excluída de um acor- que um candidato da atual Nupes de
do entre seus três parceiros, consideran- “barrar” Le Pen, cuja eleição não é mais
do-se que o apoio dos insubmissos aos impossível. No mesmo sentido trabalha
comunistas, aos ecologistas e aos socia- uma conjuntura marcada por alertas de
listas havia salvo sua pele um ano antes, bomba, atentados terroristas, migran-
por ocasião das eleições legislativas? tes se comprimindo nas fronteiras, tudo
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 37

peitáveis, isto é, de base. Sim, pois basta missos e os comunistas como principais quando, em 1987, qualificou as câmaras noritário (o “bloco burguês”), além de
examinar uma lista dos temas contro- defensores. Como conciliar as duas? Que de gás de “mero detalhe na história da desprovido de um corpo de doutrina
vertidos para logo perceber que eles posição um eventual governo comum Segunda Guerra Mundial”. A declaração consistente (o macronismo), exerce um
dificilmente serão regulamentados por de esquerda assumiria no momento do de seu chefe isolou a Frente Nacional na poder quase indivisível em razão de uma
sínteses equivocadas e se tornarão cada ataque do Hamas? Seria favorável à en- direita durante três décadas. definição cínica dos “extremos” que ele
vez mais graves. O aumento do salário trada da Ucrânia na União Europeia (UE) Inspirados talvez por esse precedente, combate. Após alegar que encarnava um
mínimo e o restabelecimento do impos- e na Organização do Tratado do Atlântico os partidários de longa data de um “cor- polo progressista, “da social-democracia
to sobre fortunas reúnem sem dificul- Norte (Otan)? Seguiria os Estados Unidos dão sanitário” contra a esquerda antica- ao gaullismo social”,6 e repetir a torto e a
dade os partidos da Nupes, mas estes se estes se envolvessem num confronto pitalista3 gostariam que a recusa a em- direito alguns lemas da esquerda – o dos
discordam visceralmente em questões com a China por causa de Taiwan? pregar várias vezes por minuto o adjetivo alterglobalistas, “Outro mundo é possí-
internacionais que ficam cada vez mais Em todas essas questões, que não são “islâmico” aposto ao substantivo “terro- vel”, o do NPA, “Nossas vidas valem mais
em evidência à medida que a ordem oci- insignificantes, os socialistas estão bem rismo”, quer se trate do ataque do Hamas que o lucro deles” –, sem esquecer o con-
dental é amplamente contestada. mais perto de Macron que da França In- ou de qualquer outro, valesse a seu autor ceito de “planificação ecológica”, Macron
Duas análises incompatíveis dessa si- submissa. Seu provável escolhido para as um massacre midiático, uma excomu- se voltou para a direita. Sem maioria
tuação se contrapõem: a primeira, para eleições da primavera próxima, Raphaël nhão política e processos por apologia parlamentar, seu partido busca sempre
quem o conflito principal se dá entre de- Glucksmann, um neoconservador exalta- de crime contra a humanidade – além, acordos com os LR, que por sua vez ten-
mocracias liberais e regimes autoritários, do, chega a censurar o presidente francês sendo o caso, da dissolução de sua or- tam sobreviver plagiando os ditos da ex-
é defendida sobretudo pelos socialistas, por não estar suficientemente alinhado ganização quando ela criticar demais trema direita e aderindo a seu programa.
com o apoio intermitente dos ecologis- com as prioridades dos falcões norte-a- Israel. Um panfletário de direita acaba No entanto, o poder também se distin-
tas; a outra, não alinhada, tem os insub- mericanos. Por seu turno, a prefeita so- de exigir o fim do Novo Partido Anticapi- gue cada vez menos do Reagrupamento
cialista de Paris, Anne Hidalgo, manda talista (NPA). Esse membro da Academia Nacional (RN, ex-Frente Nacional) em
iluminar a Torre Eiffel com as cores is- Goncourt propõe até rebatizar o NPA de relação aos temas da insegurança, da
raelenses quando cidadãos desse país são “Novo Partido Antissemita”.4 Ele deve es- imigração, do “terrorismo islâmico”, do
vítimas de massacres, mas não mostra a tar muito orgulhoso de seu trocadilho. questionamento das liberdades públi-
mesma compaixão quando se cometem cas e do vínculo que postula entre todos
crimes de guerra contra os palestinos. esses assuntos, seguramente mais lucra-
Supondo-se que divergências tão Que posição um tivos para ele que a defesa do poder de
abissais possam ser dirimidas, nenhum eventual governo compra. Ao mesmo tempo, o RN aprova
tipo de solução dos conflitos foi aventa- comum de esquerda na Assembleia Nacional a maior parte
do. Bem ao contrário, sua amplificação dos textos propostos pelo governo. Esse
ocupa o palco principal sob a forma
assumiria no momento disfarce, essa “desdemonização” são a
de mensagens agressivas nas redes so- do ataque do Hamas? tal ponto mais proveitosos para a extre-
ciais, logo espalhadas com prazer pelas ma direita que esta já governa na Itália,
mídias. A organização bastante miste- “Antissemita”: acusação infamante com Giorgia Meloni sendo recebida de
riosa, bastante opaca, da LFI favorece que se tornou uma arma comum vi- braços abertos nas capitais europeias,
essa falha: deputados do mesmo grupo brada contra os defensores da Questão inclusive por Macron. A guerra de Gaza,
se ofendem em público, cada qual rea- Palestina e que, indo além, alcança os o “apoio incondicional” dado a Israel
gindo instantaneamente aos aconteci- partidários da esquerda radical. Seu pelo RN e por boa parte da classe polí-
mentos em função de sua sensibilidade poder de intimidação é imenso, a jul- tica e midiática francesa, a falta de tato
e aceitando os convites da mídia, mais e gar pelo pequeno número daqueles que da LFI e o barulho contra Mélenchon le-
mais frequentes, porque ele passa a ser ficaram ofendidos com seu uso contra vantado por alguns de seus partidários
protagonista de uma mudança de rota. Mélenchon. O fato de um deputado dos permitiram completar a operação.
A desordem assim criada, as palavras LR (Les Républicains [Os Republicanos], Com uma esquerda desunida e uma
intempestivas, as frases tiradas de con- de direita), Meyer Habib, o chamar de Nupes fora do jogo, as cartas políticas
texto e repetidas à saciedade alimentam “crápula antissemita” está, a rigor, em estão suficientemente embaralhadas
o ciclo seguinte de “polêmicas” – bem conformidade com o que se espera des- para que o presidente da República,
como a atmosfera geral crepuscular. Há se provocador regularmente convidado invocando sua dificuldade de governar
alguns anos – que parecem séculos... –, pela rede CNews, que se pergunta deli- sem maioria no Parlamento, dissolva a
os partidos discutiam suas ideias antes cadamente: “LFI: o nazismo passou para Assembleia Nacional e apresente seu
de tomar uma posição. Nada os obrigava a extrema esquerda?”. Mais inquietante partido como a última barreira possível
a reagir sem avaliar o acontecimento e para a liberdade de expressão, no entan- a uma vitória legislativa da extrema di-
organizar um debate interno; ninguém to, é ouvir a primeira-ministra Élisabeth reita? E, se a manobra fracassar, Macron
se sentia coagido a falar sobre um assun- Borne denunciar as “ambiguidades re- coabitará com Le Pen?
to que não conhecia só porque outros o voltantes” da LFI, cujo “antissionismo”
haviam comentado antes. seria “por vezes uma maneira de masca- *Serge Halimi é jornalista do Le Monde
Essa metamorfose da vida pública é rar uma forma de antissemitismo” – ou Diplomatique.
bem mais perigosa para uma esquerda saber que uma socialista, Carole Delga,
de transformação social porque as mí- contrariando a direção de seu partido, 1   E m ordem crescente dos resultados obtidos
no primeiro turno da eleição presidencial de
dias constituem um terreno minado, um sugere “proibir qualquer manifestação 2022: A França Insubmissa (LFI), Europa Eco-
adversário às claras. As primeiras rea- pró-Palestina na França”. De seu lado, logia – Os Verdes (EELV), transformada em Os
ções da LFI ao ataque do Hamas – sem após acusar a LFI de “tolerância para Ecologistas, Partido Comunista Francês (PCF)
e Partido Socialista (PS).
dúvida insuficientes, a rigor inábeis, com a violência mais bárbara”, um edi- 2   N a mesma ocasião, um comunicado do grupo
mas certamente não escandalosas – sus- torial do Le Monde fingiu se perguntar: parlamentar LFI invocava uma “ofensiva armada
citaram um dilúvio de comentários in- “Jean-Luc Mélenchon está procurando de forças palestinas desfechada pelo Hamas,
num contexto de intensificação da política de
dignados, logo seguidos por ameaças de o quê? [...] Encorajar o antissemitismo? ocupação israelense”.
processo. É espantoso que, após ter es- Desculpar o terrorismo islâmico? Todas 3   V er “Le cordon sanitaire” [O cordão sanitário],
crito em 7 de outubro que “toda violên- essas questões merecem ser colocadas Le Monde Diplomatique, abr. 2019.
4   Pascal Bruckner, “LFI et le Hamas, la solitude
cia desencadeada contra Israel e Gaza abertamente”.5 Não, não merecem. des salauds” [LFI e Hamas, a solidão dos idio-
prova que a violência só produz e repro- tas], Le Figaro, 13 out. 2023.
duz a si mesma”,2 Mélenchon tenha pro- BANALIZAÇÃO DA EXTREMA DIREITA 5   “ Mélenchon, le problème de toute la gauche”
[Mélenchon, o problema de toda a esquerda],
vocado um furacão quase comparável Desde sua reeleição, o presidente da Le Monde, 12 out. 2023.
ao que Jean-Marie Le Pen havia gerado República, política e socialmente mi- 6   E ntrevista no Figaro, 29-30 abr. 2017.
© Luciano Salles
38 Le Monde Diplomatique Brasil  NOVEMBRO 2023

MISCELÂNEA

livros
Palavra engajada traz 61 textos (seleciona- militar, responsável pela maior parte de suas
dos pelos professores Sebastião Velasco Cruz pesquisas relevantes.
e Luís Fernando Vitagliano) que nos ajudam Sobre a Espanha, descreve a transição capenga
a compreender um período crucial da história do franquismo para a democracia e como moedas
do Brasil. Tempos de Lava Jato e de generais daquele país mantiveram duas caras até o século
voltando ao poder por meio do ensandecido XXI: de um lado a efígie do ditador; do outro, a de
capitão Bolsonaro. Tempos tristes, que nosso sua cria, o rei Juan Carlos. Sobre o Chile, relembra
PALAVRA ENGAJADA querido Régis consegue tratar com humor, o golpe de 1973 e como este levou às reformas
Reginaldo Moraes, também presente nos textos que tratam de dirigidas pelos chamados Chicago Boys, primeiro
Editora Unesp e outros países. ensaio do neoliberalismo.
Fundação Sobre os Estados Unidos, ao comentar artigo O título Palavra engajada é perfeito para definir
Perseu Abramo do homem de finanças Peter Orszag, a ele se re- o que foi Reginaldo Moraes. Um intelectual e mi-
fere dizendo: “Enfim, mais um dos tantos sábios litante, capaz de unir pesquisa e elaboração teó-

R eginaldo Moraes foi meu amigo e um exemplo


de generosidade intelectual. Nunca deixou de
me socorrer em minhas dúvidas, tanto quando era
de Wall Street com os quais Obama povoava a
Casa Branca, talvez substituindo as estagiárias
de Clinton”, referência nada sutil às estripulias
rica com embate político, sem nunca renunciar a
nenhum dos dois.
O livro impresso está à venda nas livrarias e a
professor na Faculdade de Educação da Unicamp sexuais de Bill Clinton. Analisa ainda o ensino edição digital pode ser baixada gratuitamente em:
quanto depois, no IFCH. De certa forma continua norte-americano, com ênfase nas high schools e https://bit.ly/livro-reginaldo.
compartilhando conhecimento, quatro anos após nas universidades privadas. Sobre estas, desta-
sua morte, com esse livro que reúne textos seus ca como recursos públicos têm sido fundamen- [Nora Krawczyk] Professora doutora, livre-do-
publicados em sites e jornais. tais para elas, especialmente o financiamento cente na Faculdade de Educação da Unicamp.

as canções de Adoniran Barbosa. Agora, Paulinho “Saudosa maloca”. Entre os despejados, Amélia
Maestro, dono da loja e do gramofone, vai precisar e Paulinho encontram outra famosa cronista dos
voltar ao Bixiga de 1952 para impedir que a história despossuídos, a escritora Carolina Maria de Je-
seja alterada e o clássico “Samba do Arnesto” se sus, autora do clássico Quarto de despejo.
transforme no perigoso “Pagode do Gerson”. A HQ explora possibilidades narrativas que só
Tempo Discos conta com a arte estilizada e di- uma mídia como os quadrinhos pode proporcio-
nâmica de Samuel Sajo e Al Stefano, que combina nar, como o uso dos requadros para que Gerson
TEMPO DISCOS perfeitamente com o roteiro inventivo de Rodrigo escape de uma perseguição. Tempo Discos conta
Rodrigo Febronio, Febronio, que sabe explorar a forma como a música com uma extensa seção de extras, que incluem
Samuel Sajo e é capaz de nos conduzir para outras épocas. Sem- uma linha do tempo da vida de Adoniran, letras
Al Stefano, pre com muito humor, a aventura é um mergulho e bastidores de suas canções, locais e persona-
Zapata Edições na obra icônica de Adoniran. Pelo caminho, somos gens apresentados na história, além de um diver-
apresentados a diversos elementos da obra do mul- tido final que pode servir de gancho para novas

E m seu primeiro dia de trabalho em uma antiga


loja de discos no bairro do Bixiga, em São Paulo,
a jovem Amélia se vê às voltas com um misterio-
tifacetado sambista nascido em Valinhos, como sua
histórica parceria com os Demônios da Garoa e seu
trabalho como ator e humorista na Rádio Record.
aventuras. E que venham novas viagens no tempo!
Compre on-line em: https://www.abaquarpro-
ducoes.com/category/loja ou em livrarias e comic
so gramofone, capaz de realizar viagens no tempo. A grande diversão da HQ, no entanto, é como shops de São Paulo.
Essa é a deixa para que Gerson Horta, um malan- realidade e ficção se misturam, como na sequên-
dro que tenta levar vantagem em tudo, use os pode- cia em que uma ação de despejo inspira Adoni- [André Morelli] Jornalista e crítico especializado
res do gramofone para voltar ao passado e roubar ran a recitar os versos de uma ainda não escrita em cultura pop.

suas histórias; a obra, embora trate de pessoas Terebentina , em sua proposta modesta (mos-
comuns, invisíveis em termos de reconhecimento trar a afetividade de pessoas invisíveis), aos
em sociedade, vai além em sua construção formal. poucos toma de assalto nosso corpo, nossos
É curioso notarmos, junto com Guilherme Gon- afetos, apontando para uma miríade de recur-
tijo Flores (que assina a orelha de Terebentina), sos literários que parecem ter nascido com as
que a promessa de um livro de contos logo ga- próprias situações evocadas pelo autor, am-
TEREBENTINA nha conexões inusitadas, engatilhadas por fato- pliando e extravasando, sobremaneira, a forma
Alexandre Gil França, res externos, como a estrutura de uma visita à como nos relacionamos com a dicotomia fra-
Editora Urutau exposição artística ou o fato de um dos persona- casso/sucesso. Dentro de sua ética do invisí-
gens ter “escrito” as histórias do livro (conforme vel, os personagens de Terebentina nos mos-

T erebentina é daqueles livros que convocam


para uma leitura atenta à escrita densa e ex-
pressiva (características do trabalho de Alexandre
a “apresentação” assinada por Lila). Isso ganha
contornos singulares ao percebermos que essa
possível autora modifica a seu bel-prazer partes
tram muito mais do que a promessa da fama
poderia nos mostrar.

Gil França desde a publicação de Arquitetura do da narrativa em favor dos próprios sentimentos. A [Iamni Reche Bezerra] Mestra em Estudos Li-
mofo, em 2015). O autor, ao apostar na epifania organização externa, portanto, faz que enxergue- terários pela UFPR e doutoranda do Programa de
como base para suas elaborações, desarma a mos algo além do que foi proposto pela dianoia Teoria e História Literária da Unicamp. É também
possibilidade de um entendimento geométrico de das histórias encerradas em si. editora e poeta.
NOVEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Capa
Acredito no protagonismo do Mercosul! Ano 16 – Número 196 – Novembro 2023
Nelida Affonso, via Instagram www.diplomatique.org.br

Uma boa reportagem com certeza!


DIRETORIA
Maysa Miranda, via Instagram Diretor da edição brasileira e editor-chefe
02 Apoiar e fortalecer o Le Monde Diplomatique
Um jornal não alinhado
Silvio Caccia Bava
Diretores
O desenho está massa, mas essa capa representa Anna Luiza Salles Souto, Jorge Romano, Maria Eliza-
os limites da visão da esquerda liberal. Por Benoît Bréville e Pierre Rimbert
beth Grimberg e Rubens Naves e Vera da Silva Telles
Matheus Fraga Castellani, via Instagram
Editor

O ancap que pode levar a Argentina ao caos


05 Editorial
Cortar o mal pela raiz
Luís Brasilino

Editora-web
A Argentina vive uma situação difícil, que pode Por Silvio Caccia Bava Bianca Pyl
piorar, ao se lançar em uma aventura. Porém, há
bastante chance de Milei ser mais um oportunista. Editor de Arte
No poder, agirá como “mais um populista 06 Especial Meio Ambiente
Mudanças climáticas e direito ao território
Cesar Habert Paciornik

convencional”. Quando sua popularidade começar Por Tarcilo Santana


Estágio em Jornalismo
a ruir e a responsabilidade pelo desastre bater à Carolina Azevedo e Eduardo Lima

sua porta, cederá ao sistema que tanto combate A financeirização da natureza Estágio em Design
hoje. O modus operandi é idêntico aos demais não solucionará as crises ambientais Helen Saori
que, antes dele, prometiam “rupturas”. Por Bárbara Loureiro, Camilo Planejamento estratégico
Gercyley Batista, via Instagram Santana e Matheus Mendes Numa Sales de Paiva

Revisão
Será pedagógico, como no Brasil. Claro que não O Brasil que escolheu as Lara Milani e Maitê Ribeiro
existe pedagogia suficiente para aqueles em que a commodities e esqueceu a vida
Gestão Administrativa e Financeira
Razão é a vontade deles. Para estes, o que importa Por Bruno Malheiro Lúcia Benito da Silva Ricco
é o poder e a destruição. Mas também tem a ver
com a crise da hegemonia capitalista, cada vez Avanços e contradições nas Tradutores desta edição
políticas socioambientais Carolina M. de Paula, Celina Olga, Frank de Oliveira,
mais agressiva e com cariz fascista. Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Hilano Carvalho, via Instagram Por Márcio Santilli e Mauricio Guetta
Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
O fiasco Boric e a restauração pinochetista
Me parece que o identitarismo encontrou 14 Dossiê Israel-Palestina
A França lava as mãos
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
suas limitações. Quanto, de fato, o povo se viu Por Benoît Bréville Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
representado nesse projeto? As pautas sociais e José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
Hamas, as engrenagens da guerra Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
econômicas foram de fato atendidas? Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,
Adalberto Coutinho, via Instagram Por Akram Belkaïd Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
e Vera da Silva Telles.
Que isso sirva de lição a quem quer uma O fracasso da solução de dois Estados
Assessoria Jurídica
Constituinte no Brasil. Por Thomas Vescovi Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
Augusto Grieco, via Instagram Em Israel, uma união nacional de fachada Escritório Comercial Brasília
Marketing 10: José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Por Marius Schattner Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
Da ultradireita ao progressismo
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Progressismo que incentiva a guerra na Ucrânia O espectro de um conflito regional
e apoia Israel incondicionalmente. Que Por Akram Belkaïd Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre.
progressismo é esse?
Roberto Moreira, via Instagram Barbárie dos colonizados, Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
massacre dos civilizados São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
Tel.: 55 11 2174-2005
Por Alain Gresh diplomatique@diplomatique.org.br
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Um freio na normalização
O DIPLÔ AGORA TEM UMA NEWSLETTER Por Hasni Abidi e Angélique Mounier-Kuhn Assinaturas: Lúcia Benito da Silva Ricco
assinaturas@diplomatique.org.br
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Inscreva-se na Nas redações, o terrorismo inibe a análise
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27 “O pior inimigo da moeda dos EUA são os EUA”
Seria mesmo o fim do dólar?
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Por Renaud Lambert e Dominique Plihon

30 A desordem social no rastro da guerra


Longe do front, sociedade LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
ucraniana se divide em duas
Por Helene Richard, enviada especial Fundador
Hubert Beuve-Méry
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil :
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envie suas críticas e sugestões para 33 “Onde eu acho iogurte e suco de caixinha?”
Em Cuba, big bang monetário
Benoit Bréville
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agrava as dificuldades econômicas Redator-Chefe
As cartas são publicadas por ordem Akram Belkaïd
Por Maïlys Khider, enviada especial
de recebimento e, se necessário,
Diretora de Relações e das Edições Internacionais
resumidas para a publicação. Anne-Cécile Robert

36 “Apoio incondicional a Israel”,


“Terrorismo”, “antissemitismo” Le Monde diplomatique
Os artigos assinados refletem o ponto de 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
Gaza e a política francesa secretariat@monde-diplomatique.fr
vista de seus autores. E não, necessariamen-
Por Serge Halimi www.monde-diplomatique.fr
te, a opinião da coordenação do periódico.
Em novembro de 2021, o Le Monde Diplomatique contava

38
com 31 edições internacionais em 22 línguas:
Miscelânea 24 edições impressas e 7 eletrônicas.
ISSN: 1981-7525
Capa: © PriWi
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