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2 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

FRANÇA

O mercado

© Benoit Tessier/Reuters
e a imprensa
a proteger
POR BENOÎT BRÉVILLE*

E
m razão do vazio editorial das fé- Jospin, a prefeita de Paris, Anne Hidal-
rias de verão, as mídias francesas go, o eurodeputado macronista Pascal
perderam o fôlego com a história Canfin, mas também o rapper Joey Starr,
aterradora do Journal de Diman- a comediante Sandrine Kiberlain, o co-
che (JDD). Bíblia semanal da burguesia zinheiro Yves Camdeborde...
liberal, o periódico é famoso pelas en- Bossuet dizia que Deus ri dos homens
trevistas ministeriais condescendentes, que lamentam os efeitos das causas que
as reportagens de Bernard-Henri Lévy e defenderam. Portanto, não faltou di-
o ódio aos movimentos sociais. Em ju- vertimento divino no verão. Por muito
nho último, o bilionário Vincent Bolloré tempo, as elites francesas encorajaram
impôs à chefia do jornal um diretor sim- o controle dos grandes meios de comu-
pático à extrema direita. Após quarenta nicação pelos poderes do dinheiro, fus-
dias de greve, a redação descobriu de re- tigando como “populista” qualquer crí-
pente a dureza do combate social que tica a essas ligações perigosas. Após dez
ela chamava de “resmungão” quando anos, o tom mudou. Fragilizada pelas
outros o travavam. Isso não impediu o indústrias digitais e suas novas mídias,
reaparecimento, em 6 de agosto, de um e desconcertada pela divisão do pen-
semanário posto em conformidade com samento dominante entre centrismo
as ideias de seu novo proprietário, que liberal e extrema direita conservadora,
aplicara a mesma receita à rede I-Télé, a imprensa tradicional parece até uma
rebatizada como C-News. espécie a ser protegida. Diante da for-
Enquanto isso, caía uma chuva de ça potencialmente desestabilizadora de Vincent Bolloré, responsável por alterar a chefia do jornal Journal de Dimanche
abaixo-assinados e artigos para expri- franco-atiradores como Bolloré, Daniel
mir um apego sem limites “a esse jornal, Kretinsky ou, nos Estados Unidos, Elon Hostil à mudança do semanário do- que serve a seus propósitos escapa a
à sua independência, a seu gosto pela Musk, convém ao mesmo tempo denun- minical, a ministra da Cultura, Rima seu controle. Se Bernard Arnault o com-
reportagem. [...] A seus valores republi- ciar o controle da imprensa por alguns Abdul Malak, resumiu em uma tirada prasse, eles protestariam? 
canos, totalmente opostos aos da ex- bilionários e rejeitar toda solução capaz de humor involuntário a quadratura da
trema direita” (como disse uma coluna de remediá-lo. No entanto, ou a infor- razão midiática: “Não podemos coagir a *Benoît Bréville é diretor do Le Monde
do Libération). No Le Monde, nada me- mação presta um serviço de utilidade liberdade de imprensa nem a liberdade Diplomatique.
nos que quatrocentas “personalidades coletiva e sua produção deve escapar de empreender”2 – ainda que a segun-
do mundo político, econômico, social, ao mercado, ou ela não passa de uma da seja uma ameaça mortal à primeira.
cultural, associativo ou esportivo” se mercadoria que ninguém pode impedir No fundo, os indignados da classe diri- 1   V
 er Pierre Rimbert, “Projet pour une presse li-
uniram para denunciar “um atentado de ser comprada e vendida como uma gente não se queixam que a liberdade bre” [Projeto de uma imprensa livre], Le Monde
Diplomatique, dez. 2014.
às liberdades democráticas”. Entre elas pasta de alho.1 Nem que o dono de um de imprensa se reduza a uma proprie-  itado por La Correspondence de la Presse,
2   C
estavam o ex-primeiro-ministro Lionel periódico determine o rumo editorial. dade: inquietam-se quando um jornal Paris, 16 ago. 2023.

(11) 99297-7815
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

A impunidade dos generais golpistas


POR SILVIO CACCIA BAVA

A
cúpula das Forças Armadas privilegiado no Supremo Tribunal Fede- A ditadura militar implantada com Além disso, a permanência do po-
(FFAA) se movimenta para impe- ral. A PGR não tomou nenhuma atitude o golpe de 1964 puniu ou afastou, de der nas mãos dos militares por tantos
dir a prisão dos generais golpis- para indiciar quem quer que seja. 1964 a 1970, 53 oficiais generais, 274 anos lhes assegurou impunidades e
tas e a maior degradação de sua A razão dessa postura dos três co- oficiais superiores, 111 oficiais inter- privilégios, como as aposentadorias
imagem institucional, cada vez mais mandantes é a forte presença do bol- mediários, 113 oficiais subalternos, 936 e pensões. As filhas de oficiais, com a
associada à tentativa de golpe de Esta- sonarismo nas FFAA, somada à defesa suboficiais, sargentos, cabos e solda- morte destes, passam a se beneficiar
do de 8 de janeiro, à corrupção e à defe- corporativa de seus pares e da imagem dos. Todos acusados de comunistas, de de uma pensão vitalícia, não importa
sa dos privilégios do oficialato. das FFAA. Ao que tudo indica, e os dados esquerda,2 de defensores de uma polí- se estejam casadas ou não. Há casos
Um dos mais recentes movimen- da CPMI vão corroborando, a tentativa tica nacionalista de desenvolvimento e em que essas pensões ultrapassam R$
tos dos comandantes das três forças – de golpe de Estado era articulada por de soberania para o Brasil. 100 mil. As distorções em favor do ofi-
Exército, Marinha e Aeronáutica – foi um núcleo de generais e tenentes-coro- Os verdadeiros motivos do golpe de cialato são tais que o custo dos gene-
pedir uma reunião extraordinária com néis que não aceitam a vitória eleitoral 1964 e a ditadura não foram evitar que rais da ativa e aposentados são iguais
o presidente Lula, ocorrida num fim de de Lula, tido como um comunista a ser o país passasse por um processo de co- aos dos 90 mil soldados e cabos do
semana (19/8), intermediada pelo mi- combatido por todos os meios. munização e corrupção. Foram para via- Exército brasileiro.4
nistro da Defesa, José Mucio. Qual é a As investigações apontam a existên- bilizar um modelo de desenvolvimento As punições dos oficiais que come-
urgência para reafirmar ao presidente cia de um grupo de 26 militares de alta capitalista de caráter conservador, so- teram crimes contra a democracia e
sua fidelidade à democracia, sua dis- patente (23 generais) que participam de cialmente excludente e dependente do contra a Constituição, que estiveram
posição de punir os infratores? Espe- um grupo de extrema direita no Twitter, capital internacional.3 Para isso, promo- envolvidos na tentativa de golpe de
cula-se que o motivo central tenha sido inseridos numa rede de políticos bolso- veu-se uma “limpeza” nas FFAA, bus- Estado de 8 de janeiro, são essenciais
apresentar o pedido de que os generais naristas e influenciadores olavistas, que cando eliminar todo possível foco de para garantir que não haja novas ten-
incriminados não sejam levados à pri- ainda contam com a participação de 668 contestação a essa estratégia entreguis- tativas de golpe. Da mesma forma é
são. Evidentemente, essa agenda não políticos, entre governadores, ex-minis- ta. A partir daí, afirmou-se a doutrina preciso alterar drasticamente os cur-
foi a oficial do encontro. tros, senadores e deputados.1 do pensamento único. Toda divergência sos de formação para oficiais, valori-
O Inquérito Policial Militar (IPM) cria- O fato de, apenas em abril, oitenta mi- passou a ser tratada como sabotagem, zando a pluralidade e a diferença, co-
do para averiguar o envolvimento de litares, entre eles um general, terem sido como subversão, e deve ser combatida. locando como eixo a defesa da demo-
militares na invasão da sede do governo chamados pela CPMI para prestar de- É a negação da democracia. cracia e dos direitos humanos, como
não encontrou crimes militares na con- poimento à Polícia Federal sobre os atos As consequências dessa “limpeza” prega a Constituição. 
duta dos agentes públicos, isentando de golpistas alertou o alto comando para se fazem sentir até hoje. A doutrina de
responsabilidade os generais e demais suas possíveis consequências. defesa do neoliberalismo e combate às 1   D
 ados do Laboratório Data_PS, da UFRJ e
da UFF.
membros do oficialato pela tentativa de A politização das FFAA promovida pelo ameaças comunistas, que precisam ser 2   P
 rojeto Brasil Nunca Mais, que cita “Atos da
golpe. Conduzido pelo coronel Robert governo Bolsonaro apenas reforçou a erradicadas, orienta a formação dos ofi- Revolução de 1964, vol. I, de 9 de abril de
Julian da Silva Graça, chefe do Estado- postura de extrema direita que já era do- ciais nas escolas de formação, a identi- 1964 a 15 de março de 1967”, coletânea pre-
parada pelo Ministério da Aeronáutica.
-Maior do Comando Militar do Planalto, minante. É preciso um pouco de história ficação dos “inimigos internos” e as for- 3   C
 láudio Bezerra de Vasconcelos, “Cassação
o IPM já tinha seus resultados definidos para encontrar as razões pelas quais as mas de combatê-los. É essa doutrina que de militares: a ameaça vem de dentro”. Dispo-
antes mesmo das averiguações. FFAA assumem uma postura ideológica dá suporte à maior intervenção das For- nível em: http://querepublicaeessa.an.gov.br/
temas/208-cassacao-de-militares-a-ameaca-
Ocorre que os fatos contradizem essas de extrema direita e combatem toda for- ças Armadas na política. É essa a doutri- -vem-de-dentro.html.
conclusões. A Comissão Parlamentar ma de dissidência ou discordância. na abraçada pelo governo Bolsonaro. 4   B
 rasil de Fato, 23 maio 2023.
Mista de Inquérito (CPMI), que reúne
Câmara dos Deputados e Senado e apu-
ra os acontecimentos de 8 de janeiro,
parece ir por outro caminho, baseando-
-se em vídeos e depoimentos que incri-
minam vários generais e outros oficiais
da ativa e da reserva, e levando à frente
suas investigações.
A iniciativa dos comandantes também
leva em conta a deterioração da imagem
das Forças Armadas perante o público.
Pesquisa Genial/Quaest, de agosto de
2023, identifica uma queda expressiva
na avaliação das FFAA por parte dos bra-
sileiros. Em dezembro de 2022, 43% di-
ziam “confiar muito” nas FFAA; esse per-
centual caiu para 33% em agosto deste
ano, ou seja, 10 pontos percentuais. E os
percentuais dos que “não confiam” pas-
sou de 18% para 23%.
É preciso evitar o que aconteceu com
a CPI da Pandemia, criada no Senado,
cujo relatório final, encaminhado à Pro-
© Claudius

curadoria-Geral da República (PGR),


propunha vários indiciamentos, atri-
buindo crimes ao presidente, ao general
Pazuello e a outras autoridades com foro
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ENSINO ÀS AVESSAS

O alvo da educação: Programa de Escola Cívicos-Militares


de Bolsonaro (Pereira, 2020). Com base
na formação de policiais, nessas esco-

rentabilidade e punição
las a lógica disciplinar é acompanhada
de rituais de humilhação cotidiana, que
se reverte em ódio e ausência de parâ-
metros para a violência.
O problema, porém, não se limita às
escolas cívicos-militares. Desde o início
Quem preside os processos educativos se coloca como garantidor do direito à dos anos 1990, os programas educacio-
educação, mas o faz convertendo-o em tecnologia de gestão da juventude, associando nais desenvolvidos pela PM no interior
das escolas, e executados por policiais
as bandeiras da educação integral e do acesso ao trabalho à rentabilidade e à punição fardados e armados, espalharam-se pelo
país. É o caso de questionar o que se es-
pera ao delegar a uma das corporações
POR CAROLINA CATINI* militares mais genocidas do mundo a
educação de crianças e jovens.

N
© Fernando Frazão/Agência Brasil
o mundo do avesso da educação EDUCAÇÃO PELO TRABALHO
nacional, corporações militares Para conter o abandono escolar, o em-
e empresariais são educadoras e presariado promete elevar a “audiência”
formuladoras das políticas edu- das escolas, tornando-as mais atrativas,
cacionais e de juventude, em nome da com exercícios práticos, articulados com
democracia e do combate às desigual- a seleção para o trabalho em empresas
dades sociais. Embora os ofícios que ou programas de transferência de renda
exerçam e a posição social que ocupem destinados a públicos-alvo da juventu-
sejam a pura e simples negação de tais de. Não por acaso, a oferta de recursos
atributos, seu poder se amplia e se es- para estudantes mais vulneráveis ocor-
praia por toda a gama de ação social re no contexto de grande controle em-
que comandam, enquanto quem pos- presarial da educação, inclusive trans-
sui experiência e formação na educa- formando o empreendedorismo em
ção tem o alcance de suas práticas re- matéria escolar, o que altera a relação
duzido a pequenos espaços, quando educativa de maneira ampla e profunda.
conseguem realizar uma experiência Fazer brigadeiro gourmet se tornou prá-
formativa que se contrapõe à lógica do- tica no Novo Ensino Médio, assim como
minante, criando fissuras no aparente fazer bolos, sabão, tijolos, artesanatos
consenso hegemônico. ou plantar hortaliças, porque tais ativi-
Quando está tudo invertido, é preciso dades práticas transformam as escolas
revirar tudo do avesso, fazendo falar os em lugares de trabalho. Em muitos ca-
efeitos da prática educativa e da ideo- sos se comercializa o que é produzido,
logia que a sustenta. Quem preside os e, mesmo quando se trata de simulação
processos educativos se coloca como do trabalho, como no caso da criação de
garantidor do direito à educação, mas empresas fictícias nas escolas, a questão
o faz convertendo-o em tecnologia de não é apenas educar para o trabalho.
gestão da juventude, associando as ban- Militarização e modernização da educação se cruzam na criminalização da pobreza Educação pelo trabalho na educação
deiras da educação integral e do acesso estatal já era lema da Tecnologia Em-
ao trabalho à rentabilidade e à punição. ensino médio bateram recorde em 2013, negra e em idade escolar habita apenas presarial Odebrecht, escrita nos anos
quando quase 7% dos estudantes de pri- demonstra o lado em que estão os eco- 1980, que depois se transformou em
EDUCAÇÃO PELO CONFINAMENTO meiro ano abandonaram a escola. Em nomistas da educação. Ao que tudo in- Tecnologia Socioeducativa. Estava em
Um dos pontos em que se cruzam as 2020, com a adoção das aulas a distância, dica, para eles a educação se equilibra jogo aí a substituição do welfare pelo
práticas militarizadas e a moderniza- no contexto da pandemia de Covid-19, entre os negócios e os casos de polícia. workfare, que consiste em atrelar o
ção empresarial da educação é o da as taxas de evasão recuaram, mas volta- acesso a serviços sociais com transfe-
criminalização da pobreza. A educação ram a crescer de maneira alarmante em EDUCAÇÃO PELA VIOLÊNCIA rência de renda e contrapartidas à “ati-
integral, outrora pauta de reivindica- 2021 e em 2022, já nos marcos do Novo As recentes chacinas nos estados de vação” para o trabalho, o que na edu-
ção da esquerda, tornou-se presa do Ensino Médio e da ampliação da rede de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, sob cação se traduziu pelo “protagonismo
empresariado e converteu-se em mais ensino integral (Barros et al., 2023). responsabilidades de gestões petistas juvenil”. Nos anos 2000, essa concepção
uma forma de dominação. A imagem de Essa tendência deveria assombrar os ou bolsonaristas, se inscrevem numa ganhou corpo nas escolas de tempo in-
escolas periféricas sucateadas, gradea- ideólogos do domínio empresarial da cadeia de massacres perpetrados pelo tegral de Pernambuco e do Ceará, sob a
das e com rondas da PM combina mais educação, que correlacionam inversa- Estado. Longe de se apresentarem como batuta do Instituto de Corresponsabili-
com presídio do que com ensino, ainda mente escolaridade e criminalidade, e desvios da ação policial para o combate dade Empresarial (ICE), e nas práticas
mais com a reforma do ensino médio e calculam ganhos e perdas monetárias ao crime, são métodos sistemáticos de de educação não formal do Itaú Social,
toda a privação de formação cultural e com base no aumento ou na diminui- gestão da pobreza pela violência, que em periferias de grandes cidades.
intelectual que ela impõe. A educação ção da escolarização. Um desses re- atingem comunidades de maneira fatí- Hoje, um de seus principais difuso-
integral é também confinamento da ju- centes estudos concluiu que o aumen- dica e afetam a sociedade de modo ge- res é o Itaú Educação e Trabalho, que
ventude pobre e periférica. to de 1% de jovens com escolaridade ral. As chacinas também educam. fala em nome de uma “educação para
Além disso, numa terra em que, para completa diminuiria em 0,6% a taxa de Em 2022, só o estado da Bahia teve a emancipação” e da “união entre edu-
sobreviver, é preciso trabalhar desde homicídios (Barros et al., 2021). Que se mais mortos por policiais do que os cação e trabalho produtivo”. Entre inú-
cedo, a educação integral tende a am- privilegie relacionar a educação com a Estados Unidos (Carta Capital, 2023). meras iniciativas, fomenta a articulação
pliar a evasão escolar. Para falar com diminuição da criminalidade juvenil e Eram quase todos negros. Seria relevan- entre escola e empresa, como a oferta de
base em “evidências”, segundo dados nenhuma palavra seja dita sobre vio- te estudar as relações desse dado com vagas de “jovens aprendizes” no próprio
reunidos a mando das próprias corpora- lência estatal e a letalidade policial nos o fato de que o mesmo estado já havia banco Itaú, para estudantes que estão
ções empresariais, as taxas de evasão do territórios em que a juventude pobre, militarizado escolas antes mesmo do em escolas de tempo regular, ou progra-
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TITANIC DA EDUCAÇÃO

O engodo
mas que colocam estudantes de tempo da situação existente, não podendo
integral para trabalhar em empresas du- projetar nada para fora das determi-
rante o período letivo, com bolsa paga nações sociais. Se circunscreve o hori-
pelo estado, como é o caso do Primeira zonte de vida ao trabalho, limitando as

profissionalizante
Chance, realizado na Paraíba. expectativas de existência pela interdi-
Por meio dessas medidas, as empre- ção do acesso a referências da cultura e
sas vão transformando a escola de en- da história, ela amplia a reverência ao
sino médio em lugar de seleção. Assim, capital e afunda em suas contradições.

do Novo
a juventude que não é atingida pela Além de transformarem toda ação da
letalidade policial é acolhida pelos di- juventude em trabalho, que é o que a
reitos antissociais empresariais, que lhe empresa sabe gerenciar, essas grandes
abrem a oportunidade de ser confina- corporações educam jovens como se

Ensino Médio
da, de trabalhar em troca da educação não passassem de um “capital huma-
que recebe, ou, em alguns casos, con- no”, ensinando desde cedo que é pre-
cedem-lhe a dádiva de ser selecionada ciso angariar investimentos para seu
para ser explorada. empreendedorismo ou mesmo atuar
como investidores, pela ênfase nos
EDUCAÇÃO COMO programas de educação financeira. Apesar da sinalização positiva do MEC de que vai rever
ATIVO FINANCEIRO Um bom exemplo é o estado do Para- parte dos retrocessos introduzidos pela reforma de Temer,
As vantagens empresariais em privatizar ná, que produziu material escolar para
o direito à educação também se refe- combater a mentalidade pobre, que o chamado “itinerário profissional” não faz parte do pacote
rem ao fim do monopólio da escola na “culpa os outros e o governo” por sua
oferta da educação. Neste ano de 2023, condição e “trabalha pelo dinheiro”, e
o IFood celebra os 14 mil diplomas de fomentar a mentalidade rica, uma vez POR ANA PAULA CORTI E FERNANDO CÁSSIO*
ensino médio dados a jovens e adultos que quem pensa assim, mesmo sem ter
entregadores. Um curso de curta dura- recursos, “assume os próprios erros”,

O
ção preparatório para o Exame Nacio- “fala de patrimônio e negócios” e “faz Novo Ensino Médio (NEM) vem Apesar de propor sugestões de mu-
nal para Certificação de Competências o dinheiro trabalhar” (APP Sindicato, fazendo água com uma rapidez dança em pontos-chave do NEM – como
de Jovens e Adultos (Encceja) realizado 2023). A formação pelo trabalho é conju- impressionante – um verdadeiro a recomposição da formação geral bási-
por empresas privadas substitui o ensi- gada com o individualismo, com o culto Titanic da educação. Foram inú- ca a um mínimo de 2.400 horas letivas
no médio dos Programas de Educação aos patrimônios e aos negócios e com o meros os alertas de especialistas e enti- (a reforma havia desidratado a carga ho-
de Jovens e Adultos estatais. Ofertado de endeusamento do dinheiro. dades educacionais desde 2016, mas foi rária para um máximo de 1.800 horas) e
modo gratuito e a distância pela plata- Nesse contexto, não é possível se sur- necessário que o NEM materializasse a limitação na quantidade dos esdrúxu-
forma de parceria entre a IFood Decola e preender com o fato de estudantes do seus efeitos ruinosos nas escolas públi- los e inacessíveis itinerários formativos
a Edtech Descomplica, o Programa Meu ensino médio paulista terem anuncia- cas do país para que a realidade se im- –, o MEC não mencionou a revogação,
Diploma do Ensino Médio não esconde do em suas aulas de projeto de vida o pusesse sobre as promessas abstratas principal reivindicação das escolas e da
a que veio: visa ofertar um objeto, e não desejo de se tornarem agiotas. E isso de liberdade de escolha e flexibilização sociedade civil organizada. Um ponto
um processo educativo. antes mesmo da Secretaria Estadual de curricular da miraculosa reforma edu- sensível, além disso, permaneceu into-
Não é só o controle sobre a popula- Educação de São Paulo decretar a subs- cacional que traria a escola secundária cado pelo ministério: o “itinerário pro-
ção trabalhadora e a apropriação de tituição da variedade de disciplinas ele- brasileira ao século XXI. fissional”. O MEC, inclusive, sugere uma
trabalho sub-remunerado, gratuito tivas do ensino médio pela disciplina de O modelo instituído pela Lei n. carga horária de formação básica menor
ou de recursos estatais que movem Educação Financeira, em agosto deste 13.415/2017 não entregou nada do que (de 2.200 horas) para quem optar pelos
essas empresas. Como diz uma posta- ano. Em condições de vida precárias, prometeu: 1) as pesquisas mostraram cursos profissionalizantes.
gem do Senac (2023), “acolher jovens como as que dominam nas periferias de sistematicamente que os estudantes A EPT, modalidade de ensino com
aprendizes vai muito além de um cum- todo o país, as raízes violentas da ideo- pobres não conseguem acessar os cha- regulação própria e redes escolares es-
primento da legislação, é questão de logia do empreendedorismo e da con- mados “itinerários formativos” de esco- pecíficas, sofreu rebaixamento e desre-
responsabilidade social das empresas corrência desenfreada ficam expostas e lha; 2) faltam professores, e boa parte da gulamentação com a reforma do ensino
se atentar ao S da sigla em inglês ESG são facilmente traduzidas numa guerra “expansão da carga horária” prevista foi médio. Como a educação profissional
(Environmental, Social and Gover- pela sobrevivência, em sentido literal. feita a distância (isto é, não ocorreu efe- tem custos evidentemente mais eleva-
nance), sobre a qual tanto se fala hoje. Aqui, o tiro do empresariado tem tudo tivamente); e 3) o “ensino profissionali- dos em comparação à educação regular,
Pois é pelo Social que se estabelecem para sair pela culatra...  zante” preconizado pela reforma é pre- a criação do “itinerário profissional” é
ações de combate à pobreza”. A ado- cário e inferior àquilo que conhecemos uma forma de baratear o “ensino téc-
ção desses parâmetros, que se difun- *Carolina Catini  é professora associada da como Educação Profissional e Tecnoló- nico” e ofertá-lo em larga escala em
diram nos mercados financeiros e nas Faculdade de Educação da Unicamp e coor- gica (EPT). A reforma realizou a façanha escolas despreparadas, subfinanciadas
corporações empresariais que estão denadora do Grupo de Estudos e Pesquisas de desagradar a todos nas escolas. E isso e sem professores habilitados – o que a
colonizando a educação, revela que a “Educação e Crítica Social” (Gepecs). porque o NEM se tratava, de acordo com Lei n. 13.415/2017 autorizou, criando a
financeirização não é mais somente o seus defensores, de uma reforma que figura do “notório saber”.
contexto econômico no qual se insere tornaria o ensino médio mais atrativo e Deixar de construir escolas técnicas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
a educação, mas também passa a or- estimulante para os estudantes. e de contratar docentes com formação
ganizá-la. Com ou sem a mediação da • APP SINDICATO. Críticas da APP viralizam e A consulta pública anunciada pelo específica é só uma parte do problema,
escola, a prática permite que empresas Seed retira material de apoio para aulas de Educa- Ministério da Educação (MEC) em ju- já que a expansão do ensino a distância
ção Financeira. Sindicato dos Trabalhadores em
cumpram regras do mercado financei- Educação Pública do Paraná, 2023. nho de 2023 – e resultante das grandes por governos estaduais como estraté-
ro e atraiam investimentos, garantindo • BARROS, R. P. et al. Consequências da violação do pressões sociais pela revogação da Lei gia de multiplicação de vagas também
“os objetivos de desenvolvimento sus- direito à educação. Rio de Janeiro: Autografia, 2021. n. 13.415/2017 – parece ter capturado a contribui para levar um grande número
• BARROS, R. P. et.al. Diagnóstico da evasão esco-
tentável”. Estes estão intimamente li- lar Brasil. Insper, jul. 2023. insatisfação geral. Ao longo do primeiro de jovens, seduzidos pela promessa de
gados à rentabilidade da empresa que • CARTA CAPITAL. Polícia da Bahia matou 1.464 semestre, gestores do MEC chegaram a saírem do ensino médio qualificados
cumpre seu “papel social”. pessoas em operações em 2022. Carta Capital, rotular os defensores da revogação de para bons empregos, a trocar parte de
14 ago. 2023.
• PEREIRA, Roger. Fora do programa federal, esta- “extremistas” e “radicais”, mas, depois sua formação escolar geral por cursos
IDEIAS EDUCACIONAIS do governado pelo PT chega a 100 escolas milita- das críticas consistentes e generalizadas de baixa complexidade. As redes de
FORA DO LUGAR rizadas. Gazeta do Povo, 8 jan. 2020. colhidas nos seminários e nas audiên- EPT que estruturam oferta de qualida-
• SENAC. Aprendizagem profissional: um caminho
Quando a educação se fecha aos con- para jovens trilharem carreiras sustentáveis. Estú- cias públicas, eles reconheceram (ao de – a exemplo dos institutos federais e
dicionantes de seu tempo, ela é presa dio Folha, 23 jul. 2023. menos em parte) o equívoco. das escolas técnicas estaduais – pode-
6 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

rão sofrer desmonte caso se confirme a meiras sugestões desses setores é nivelar o correspondente aumento da demanda de que não prejudiquem ou impossibi-
oferta maciça de cursos “técnicos” nas por baixo: surrupiar 200 horas letivas da por trabalhadores com esses níveis de litem o acesso dos estudantes ao ensino
escolas nos moldes do NEM. formação geral básica de todo mundo. qualificação. Isso questiona a própria superior, nível educacional que, esse
No estado de São Paulo, por exem- Para a Confederação Nacional da In- teoria do capital humano (que embasa sim, possibilita melhores retornos eco-
plo, o governo do bolsonarista Tarcísio dústria (CNI) – que congrega Sesi e Se- os estudos econométricos sobre taxas nômicos na forma de salários. A oferta
de Freitas descontinuou um convênio nai – e para as fundações e institutos de retorno) e o discurso clichê dos “es- da EPT, portanto, precisa se dar em con-
com o Centro Paula Souza (CPS) – au- educacionais financiados por bancos e pecialistas” das fundações de que a bai- dições adequadas e, de preferência, de
tarquia estadual responsável pelas Ete- pelo rentismo – caso de Itaú Educação xa produtividade da economia brasileira forma integrada ao ensino médio.
cs e Fatecs – para a oferta dos itinerá- e Trabalho e da coalizão empresarial deriva da baixa escolaridade da popula- A defesa de um modelo de “itinerário
rios profissionais e criou o Programa Todos pela Educação –, é necessário ção. Os dados apontam que o mercado profissional” sem professores habilita-
Educação Profissional Paulista, com o ampliar a taxa de matrículas na educa- de trabalho simplesmente não absorve a dos, sem infraestrutura e com previsão
objetivo de ofertar cursos “técnicos” ção profissional, considerada baixa em população mais instruída. legal de ensino a distância não tem las-
nas escolas regulares da rede estadual comparação aos países da OCDE. Para Um estudo de Nakabashi e Assahide, tro no conhecimento científico disponí-
(concorrendo com as Etecs, portanto). esses agentes, a educação é vista como em especial, constatou uma diferença vel nem no princípio constitucional, que
A medida vem preocupando professo- um investimento econômico individual importante nas taxas de retorno sala- estabelece a redução das desigualdades
res e servidores, inseguros com os ru- que aumenta a produtividade da força riais entre jovens de classe alta e jovens como um dos objetivos fundamentais do
mos do CPS. A própria superintendente de trabalho, promovendo, por um lado, das classes média e baixa. Em 2012, o re- Estado brasileiro (art. 3º, inciso III). Os
da autarquia demonstrou preocupação desenvolvimento econômico geral e, por torno para cada ano de escolaridade dos reformadores empresariais da educação
em uma reunião do Conselho Estadual outro, retornos individuais na forma de jovens de classe alta foi o dobro daquele que construíram o Titanic e que agora
de Educação (23 ago. 2023), ao questio- alegados melhores ganhos salariais. observado para os jovens de classe mé- tentam remendá-lo em meio ao naufrá-
nar os critérios usados pela Secretaria Os estudos econométricos, porém, já dia e o triplo em relação aos jovens de gio também costumam ser os primeiros
da Educação do Estado de São Paulo concluíram que o maior retorno salarial classe baixa. A qualidade da educação a reivindicar a autoridade das pesquisas
(Seduc-SP) para interromper a parceria do investimento em educação no Bra- recebida é um dos fatores aventados pe- no debate público. Todavia, no caso da
com o CPS e instituir oferta própria (e sil é obtido para o ensino superior: 28% los pesquisadores para explicar o maior EPT, eles deliberadamente ignoram as
de qualidade inferior) de cursos profis- (contra 6,6% para o ensino fundamental retorno educacional obtido por jovens evidências científicas e a própria exis-
sionalizantes nas escolas regulares.1 e 13,2% para o ensino médio).3 Entre- mais ricos. Pelo menos em parte, o aces- tência de modelos públicos bem-suce-
O ensino técnico que interessa aos jo- tanto, as taxas de retorno pela educa- so a escolas piores proporciona retornos didos de educação profissional.
vens e ao país é aquele realizado em ins- ção vêm diminuindo progressivamente salariais piores, já que escolas precárias Como conclusão inescapável para o
tituições próprias, com laboratórios para no país entre 1997 e 2012, e isso ocorre reduzem as chances de os jovens pobres périplo continuado e apaixonado de
um ensino prático e aplicado, com pro- principalmente para os jovens.4 Diver- ingressarem nas universidades. bilionários e seus apaniguados na defe-
fessores habilitados e carga horária pre- sos autores atribuem a situação ao au- Logo, a diminuição das desigualdades sa do “itinerário profissional” do NEM,
sencial garantida. Mais ainda: integrado mento da escolaridade média geral dos na oferta educativa deveria ser priorida- sobra apenas a tese do barateamento da
à formação geral. A EPT integrada ao brasileiros, com ampliação do acesso de das políticas educacionais, a fim de educação pública dos mais pobres.
ensino médio avançou de forma signifi- aos ensinos fundamental e médio, sem garantir patamares mínimos de qualida- Resta saber se o MEC – cujos recentes
cativa no Brasil, tendo-se observado um sinais positivos indicam que o governo
© Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
crescimento de 160% nas matrículas en- Lula foi recobrando a consciência so-
tre 2010 e 2019: de 215.773 para 558.956. bre os efeitos deletérios da reforma do
Há evidências de que a integração curri- ensino médio e, de forma mais geral,
cular é um dos elementos que ajudam a do projeto societário perverso encam-
explicar as melhores performances aca- pado por certa “sociedade civil” que
dêmicas dos alunos egressos da EPT em trata escolas públicas como campos de
comparação com o ensino médio regu- experimentação e as massas populares
lar. Um estudo que analisou as notas no como cobaias de tecnologias sociais
Enem 2014 verificou que estudantes da – vai se colocar ao lado de quem, nos
rede federal que cursaram ensino médio últimos trinta anos, vem trabalhando
integrado ao técnico obtiveram resulta- arduamente para construir um sistema
dos semelhantes aos de estudantes do de Educação Profissional e Tecnológica
ensino médio regular das redes privadas, que não seja um engodo. 
ainda que seus níveis socioeconômicos
fossem muito inferiores.2 Ana Paula Corti é socióloga, doutora em
A oferta diversificada de ensino médio Educação e professora do Instituto Federal
no país, portanto, antecede a reforma de de Educação, Ciência e Tecnologia de São
2017 e contradiz o discurso dos refor- Paulo (IFSP); e Fernando Cássio é doutor
madores de que o país contava com um em Ciências, professor da Universidade Fe-
modelo de ensino médio único e aca- deral do ABC (UFABC) e integrante do Co-
dêmico. O modelo de EPT anterior à re- mitê Diretivo da Campanha Nacional pelo
forma, ademais, já apresenta resultados Direito à Educação. Os dois integram a Re-
acadêmicos satisfatórios. de Escola Pública e Universidade (Repu)
.
NEGACIONISTAS E IDEÓLOGOS 1   A reunião foi transmitida em: https://bit.ly/reu-
Assim que o MEC divulgou sua pro- nião-CPS.
2   M ORAES, G. H. et al. (orgs.). Avaliação da
posta de reforma da reforma, as elites Educação Profissional e Tecnológica: um cam-
econômicas do país que a elaboraram e po em construção. Brasília, DF: Instituto Na-
colocaram em prática nos últimos anos cional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira, 2020.
deixaram claro que pretendem defender 3   DIAS, J. et al. Função de capital humano nos
com unhas e dentes a manutenção dos estados brasileiros: retornos crescentes ou de-
itinerários profissionais precários como crescentes da educação? Pesquisa e Planeja-
mento Econômico, Rio de Janeiro, v.43, n.2, p.
estão. Diante da potencial dificuldade 333-379, 2013.
de as redes de ensino administrarem 4   NAKABASHI, L.; ASSAHIDE, L. Estimando o
cargas horárias de 2.200 e 2.400 horas retorno da escolaridade dos jovens por classe
de renda: 1997-2012 . Pesquisa e Planeja-
para estudantes que optem ou não pelo mento Econômico, Rio de Janeiro, v.47, n.3,
engodo profissionalizante, uma das pri- Estudantes realizam atos públicos reivindicando a revogação do Novo Ensino Médio p.137-183, 2017.
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 7

OBEDIÊNCIA IMEDIATA ÀS ORDENS DOS SUPERIORES

A militarização Em termos práticos, o fim do Pecim


não impede que as redes públicas con-
tinuem mantendo o modelo de escolas

das escolas públicas


militarizadas, mesmo sem ter compe-
tência para tal. Isso porque, segundo
o artigo 22 da Constituição de 1988,
compete privativamente à União legis-
lar sobre diretrizes e bases da educação
nacional; e o artigo 24, que trata das
Analisar a militarização das escolas formadoras das infâncias e juventudes requer pensar competências concorrentes, define no
as implicações desse processo para a educação básica, os desdobramentos na formação inciso IX que é competência da União
estabelecer normas gerais em matéria
das novas gerações, seus efeitos para o futuro da democracia e da sociedade e o papel de educação.
da segurança e da educação, regidas por princípios diferentes e opostos Na educação escolar, encontramos
referências na LDB sobre Educação de
Jovens e Adultos, Especial, Bilíngue de
POR CATARINA DE ALMEIDA SANTOS E MIRIAM FÁBIA ALVES* Surdos, Indígena, de Campo, Quilom-
bola, a Distância, profissional técnica e
tecnológica. Não consta a modalidade

Q
© Marcos Corrêa/PR
uando se fala em militarização de educação ou escolas militarizadas.
da educação e das escolas no Se não existe no arcabouço legal na-
Brasil é necessário fazer a dis- cional e estamos em um Estado cons-
tinção entre esse modelo e as es- titucional, os entes subnacionais não
colas militares, que por conveniência podem criá-las.
são “vendidos” como se fossem a mes- Vale lembrar que há jurisprudência
ma coisa. Ainda que a doutrina milita- no STF sobre essa compreensão. No
rista seja a base de ambas, as escolas julgamento do Recurso Extraordinário
militares são criadas para atender aos 888815 sobre o ensino domiciliar, com
interesses dos integrantes das corpo- repercussão geral reconhecida, o Su-
rações – Exército, Marinha, Aeronáuti- premo formou maioria em não admitir
ca, Polícia Militar e Corpo de Bombei- o ensino domiciliar, utilizando, entre
ros – e seus dependentes, e não o outros argumentos, o fato de não haver
público em geral. Essas escolas foram na legislação nacional a previsão de tal
criadas militares, com base na lógica modalidade de ensino; portanto, os en-
das respectivas corporações, e geral- tes subnacionais não poderiam criá-la.
mente são vinculadas aos órgãos espe- Assim, o necessário fim da militariza-
cíficos, como as Forças Armadas e a ção, diante do arrazoado de violações
Secretaria de Estado de Segurança. e ilegalidades – inclusive listando as
Apesar de serem financiadas com re- múltiplas formas de inconstituciona-
curso público, em muitos casos com o di- lidade (formal, material, entre outras)
nheiro da Educação, as escolas militares apresentadas nas ações, nos pareceres
seguem as regras e os princípios do mi- Jair Bolsonaro em inauguração da Escola Municipal Cívico-Militar no Rio de Janeiro dos ministérios públicos de diferentes
litarismo, estabelecidos nos regimentos estados e em decisões judiciais, como
das forças, selecionam seu público e têm metropolitanas, empresas e ONGs, para Diversos e controversos são também os as dos tribunais de Justiça de São Pau-
condições diferenciadas quando compa- a militarização das práticas pedagógi- profissionais que atuam nas escolas que lo e do Rio Grande do Sul –, precisa ir
radas com as escolas públicas estaduais, cas, da gestão e do currículo escolar; d) adotam a militarização: policiais milita- além da revogação do Pecim. O gover-
distritais e municipais no que se refere a instauração do Programa das Escolas res, bombeiros, guardas civis municipais, no federal, no cumprimento de seu de-
infraestrutura, valor aluno-ano, salário Cívico-Militares (Pecim) e, com o fim agentes da Polícia Rodoviária Federal, das ver delegado pela Constituição de 1988,
dos profissionais e público que atendem. deste, incorporação pelas gestões locais Forças Armadas e civis treinados pela área precisa fazer gestão junto às instâncias
Diferentemente das escolas militares, aos sistemas próprios de militarização.1 de segurança para implementar o mode- cabíveis, aos gestores dos sistemas de
as escolas públicas vinculadas às redes A militarização das escolas interfere lo. Isso apesar de os artigos 61 a 67 defi- ensino e ao STF para barrar o avanço
federal, estaduais, distrital e municipais em seu funcionamento à medida que nirem com precisão quem são os profis- da militarização e desmilitarizar esco-
de educação básica, também financia- a cultura do militarismo passa a pre- sionais da educação e do magistério que las públicas brasileiras.
das com verba pública, devem, por força dominar, e a disciplina, compreendida podem atuar nas escolas e qual formação A solução dos problemas educacio-
de lei, seguir os princípios republicanos como a obediência pronta às ordens dos precisam ter, incluindo a experiência ne- nais, em nossa compreensão, está nas
– definidos na Constituição de 1988 e ra- superiores hierárquicos, passa ser a mola cessária para atuar na gestão da escola. lutas travadas na sociedade e na relação
tificados na Lei de Diretrizes e Bases da mestra. A cultura militar se pauta na O processo expansionista ganhou fô- que esta estabelece com a escola, e na
Educação (LDB), de 1996, e demais legis- interdição do debate, na supressão da lego a partir de 2019 com a criação do garantia de escolas democráticas e com
lações –, não podem se guiar por princí- diversidade e no combate à existência Pecim. Conforme levantamentos feitos condições adequadas de funcionamen-
pios ou atender a interesses de nenhum das diferenças, na subjugação dos mais por integrantes da Rede Nacional de to, o que é impedido ou bastante dificul-
grupo empresarial, corporação profis- vulneráveis, na padronização dos cor- Pesquisa sobre Militarização da Educa- tado pela cultura militar. 
sional ou religiosa e devem acolher todas pos e do comportamento e, consequen- ção (RePME), o número de escolas mi-
as pessoas, independentemente de reli- temente, na negação do sujeito. litarizadas passou de 230 em 2019 para *Catarina de Almeida Santos  é doutora
gião, origem étnica, raça, cor, ascendên- mais de oitocentas em 2023. em Educação pela USP e professora asso-
cia, gênero ou outro fator de identidade. EXPANSÃO EM TODO O PAÍS Com a publicação do Decreto ciada da Faculdade de Educação da UnB;
A militarização das escolas públicas Conhecidas atualmente no debate pú- n. 11.611, em julho deste ano, revogando e Miriam Fábia Alves é doutora em Edu-
brasileiras ocorre por diferentes pro- blico como escolas cívico-militares, o o Decreto n. 10.004/2019, que instituiu o cação pela UFMG e professora da Facul-
cessos, entre os quais: a) a gestão é en- processo de militarização das escolas Programa Nacional das Escolas Cívico- dade de Educação da UFG.
tregue aos militares; b) a gestão é com- públicas ganhou destaque na década de -Militares, houve uma euforia e muitos
partilhada com os militares; c) no caso 1990, no estado de Goiás, expandindo-se agentes públicos anunciaram o fim da 1   V
 er Catarina de Almeida Santos e Miriam Fá-
bia Alves, “Militarizar e encarcerar a Educação
de escolas municipais, são realizados para o país com diferentes nomenclatu- militarização das escolas no país. Isso, Básica para um projeto de nação”, Educere et
convênios com forças militares, guardas ras e arranjos diversos e controversos. porém, está longe de ser verdadeiro. Educare, v.18, n.47, 2023.
8 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

TODOS PERDEM

A perseguição sistemática servador sobre os pais terem direito a


que seus filhos recebam uma educação
que esteja de acordo com suas próprias

contra professores no Brasil


convicções. Talvez esteja sendo interiori-
zada, inclusive por setores mais progres-
sistas, a ideia de que o direito à educação
é dos responsáveis, e não das crianças e
adolescentes. Seria uma explicação plau-
sível para o fato de ser tão naturalizado
Ao longo da última década, a perseguição contra professores vem se intensificando, que, ao contrário de outras profissões,
sem que isso soe os alarmes do campo progressista. A prática é cruelmente os professores tenham seu saber profis-
sional constantemente contestado por
pedagógica: ela ensina aqueles que já passaram por ela e aqueles que a pessoas de fora do campo educacional.
presenciaram ou dela tomaram conhecimento a se autocensurarem Os últimos anos, o campo educacional
precisou aprender a resistir de todas as
formas à perseguição: das ações contra
POR FERNANDA MOURA* as leis de censura que foram vitoriosas no
STF ao Manual de Defesa contra a Cen-
sura nas Escolas,3 que apresentava, com

O
Brasil tem um histórico de perse- aparecido com relativa frequência na mí- professores, tais como assédio ideológi- base em casos reais, estratégias peda-
guição a professores. No campo dia e em pesquisas acadêmicas, e a resis- co, doutrinação marxista, doutrinação gógicas e jurídicas para que educadores
“progressista” temos clareza das tência a eles tem sido uma das principais em umbanda e candomblé, sexualização pudessem se defender. Contudo, em um
violências sofridas por professora/ pautas de luta de estudantes e professo- precoce, ideologia de gênero, globalis- governo de esquerda, realmente compro-
es e estudantes durante os 21 anos de di- res. Essas faces visíveis, no entanto, nos mo, banheiro unissex em escolas e, claro, metido com a defesa da educação e dos
tadura militar, por exemplo. Assassina- levam a enganos. Um deles é acreditar professor-doutrinador no cotidiano da direitos humanos, a perseguição a profes-
tos, prisões e desaparecimentos são por que, porque os projetos de lei de censura sociedade. A não reeleição de Bolsonaro sores não pode ser naturalizada, tampou-
demais gritantes para serem relativiza- vêm sendo derrubados no STF1 ou por- não abrandou a perseguição e a censura. co os professores podem ser abandona-
dos. Assim, os processos e as cassações e que Jair Bolsonaro – e seu Congresso tur- Novos parlamentares se elegeram com dos à própria sorte. É preciso que profes-
demissões de professores são entendi- binado pelo “orçamento secreto” – não a mesma pauta, estão expondo profes- sores sejam reconhecidos como defen-
dos como parte de uma ampla gama de transformou o Escola sem Partido em lei, sores em suas redes e protocolando no- sores de direitos humanos, pois são eles
mecanismos persecutórios do período. o “movimento” foi derrotado. vos projetos com a mesma finalidade de que garantem o direito que torna o cida-
Porém, e quando a perseguição se dá em Sem dúvida, a derrota jurídica dos pro- gerar pânico moral. A grande novidade: dão capaz de demandar todos os outros:
uma época supostamente democrática? jetos de censura no STF é uma grande “ideologia de gênero” perdeu força e o direito à educação. É preciso também
E quando ela se dá sem mecanismos de vitória da articulação contra o ultracon- agora o foco está no ataque ao direito das reconhecer que professores estão sendo
repressão tão evidentes? A perseguição servadorismo na educação2 e, em grande pessoas trans por meio do impedimen- perseguidos no exercício de sua função,
ainda é reconhecida como tal? medida, é uma das razões do Escola sem to do uso de banheiros de acordo com o em muitos casos justamente por promo-
A resposta infelizmente tem sido não. Partido não ter se tornado lei nacional. gênero de identificação e a proibição do verem a educação em direitos humanos.
Ao longo da última década, a persegui- Seria uma enorme demonstração de uso da linguagem neutra, por exemplo. É necessário ainda que haja políticas de
ção sistemática contra professores vem fraqueza um governo que se elegeu mo- Entretanto, por que existe essa invi- reparação aos professores que foram per-
se intensificando, sem que isso soe os bilizando toda sorte de pânicos morais – sibilidade da perseguição a professores seguidos ao longo dos últimos anos e que
alarmes do campo progressista. Ocorrem incluindo “kit gay” e “mamadeira fálica” como um fenômeno sistemático, grave e os responsáveis pela perseguição respon-
exposição da figura do profissional, de – ter sua lei de censura declarada incons- com potencial de prejuízo gravíssimo à dam finalmente pelos crimes nos quais
áudios e vídeos de trechos descontextua- titucional. Ademais, como ficaria o Esco- educação e à democracia a curto, médio incorreram. Para isso, deve-se criar uma
lizados de suas aulas; processos adminis- la sem Partido enquanto capital político? e longo prazo? O que nos impede de ver estrutura capaz de receber essas denún-
trativos; demissões sumárias; materiais que não são casos isolados? Por que vá- cias e gerar dados sobre o fenômeno da
e conteúdos censurados etc. Apesar da rios casos de perseguição não são sequer perseguição sistemática contra professo-
ampla quantidade e variedade de casos Talvez esteja sendo inte- reconhecidos como tal e as violências res no Brasil. Por fim, é preciso que o ma-
de perseguição, estes continuam sendo sofridas por professores estão sendo na- gistério tenha valorização real – salarial e
tratados como isolados, e não como par-
riorizada a ideia de que o turalizadas? Talvez estejamos acreditan- de condições de trabalho – e que campa-
te de um mesmo fenômeno. A persegui- direito à educação é dos do que, se as “instituições seguem fun- nhas publicitárias desfaçam a imagem do
ção, no entanto, é cruelmente pedagógi- responsáveis, e não das cionando normalmente”, então os pro- professor brasileiro como incompetente
ca: ela ensina aqueles que já passaram crianças e adolescentes cessos administrativos contra professo- ou inimigo. Enquanto professoras e pro-
por ela e aqueles que a presenciaram ou res e suas punições e demissões devem fessores forem alvo de discursos de ódio,
dela tomaram conhecimento a se auto- ser justas. Estaríamos sendo iludidos por o fascismo estará à espreita. Queremos
censurarem. Todos perdem: professores Não é mais possível pensar na perse- um simulacro de devido processo legal? educar para o nunca mais. 
têm sua liberdade de ensinar, pesquisar guição a professores sem levar em conta Talvez porque a violência contra profes-
e divulgar a cultura, o pensamento, a arte os ganhos pessoais que os perseguidores sores não esteja vindo diretamente de *Fernanda Moura  é professora de Histó-
e o saber violada; assim, o direito à edu- obtêm. Há todo um ecossistema midiá- órgãos repressivos, mas pelas próprias ria, doutoranda em Educação na PUC-Rio
cação de nossos estudantes de todas as tico que se utiliza da exposição de pro- redes públicas e privadas, que se conver- e membra do coletivo Professores contra o
faixas etárias é violado, porque é da liber- fessores e da difusão de pânico moral tem em grandes aparelhos repressivos, Escola Sem Partido e da Articulação con-
dade de ensinar dos professores que vem para criar conteúdo e gerar engajamen- segundo os quais a liberdade de ensinar tra o Ultraconservadorismo na Educação.
a liberdade de aprender dos estudantes. to. Muitos desses influencers de direita dos professores não pode jamais causar
Toda a sociedade perde, uma vez que o conseguiram inclusive se eleger tendo desconforto em algum dos responsáveis; 1   P ara mais informações sobre os julgamentos,
que se aprende nas instituições de ensi- como principal pauta a perseguição a ou porque sejam os próprios responsá- ver Salomão Ximenes e Fernanda Vick, “A extin-
ção judicial do Escola sem Partido”, Le Monde
no não é deixado lá quando os estudan- professores – apresentada como defesa veis que agridem e ameaçam os profes- Diplomatique Brasil, jul. 2020.
tes voltam para casa. da família e das crianças. sores, com quem deveriam compartilhar 2   A história da articulação contra o ultraconser-
Não que a perseguição seja completa- Esse grupo não foi vitorioso apenas a tarefa de educar seus filhos. vadorismo na educação e como resistimos está
contada no livro de Denise Carreira e Bárbara
mente invisível. Ela tem duas faces bas- por obter ganhos financeiros e cargos Não obstante, talvez tenhamos de nos Lopes (orgs.), Gênero e educação: ofensivas
tante evidentes: o movimento Escola sem políticos eletivos ou na estrutura do go- perguntar quanto toda a sociedade bra- reacionárias, resistências democráticas e anún-
Partido e os projetos de lei de censura na verno, mas também por conseguir inserir sileira assimilou do discurso neoliberal cios pelo direito humano à educação, Ação
Educativa, São Paulo, 2022.
educação, que, desde 2014, vêm sendo ideias absurdas, criadas para despertar sobre professores serem mal formados 3   O
 manual pode ser acessado em: https://ma-
apresentados em todo o país. Ambos têm o medo contra a escola e o ódio contra e incompetentes, ou do discurso con- nualdedefesadasescolas.org.br/.
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 9

A DISPUTA PELO CONHECIMENTO ESCOLAR EM TEMPOS OBSCURANTISTAS

“No entanto,
ela se move”
O conservadorismo sabe do papel político dos conteúdos escolares e elege a escola como
sua inimiga. Isso mostra que o que ensinamos pode ter impacto no modo como os alunos
pensam, sentem e veem o mundo. Em outras palavras, ter uma escola que ensine conhecimento
científico, artístico e filosófico não é algo menor; trata-se de algo temido pelo bolsonarismo

POR HELIO MESSEDER NETO*

O
que a escola deve ensinar? Essa ou seja, refletem sobre o que os profes- e como ele foi gestado coletivamente, Talvez o leitor possa pensar que este
pergunta está longe de ter res- sores dizem, não sendo simplesmente imerso em contradições. Aprender so- texto defende uma escola chata e con-
postas fáceis e não passa desper- receptores passivos de informação.2 No bre tais aspectos é importante mesmo teudista, na qual jovens e crianças ficam
cebida pelo debate público. Por entanto, o que quero destacar é que a quando, individualmente, não lidamos o dia todo sentados na carteira. Não é
exemplo, são muitas as publicações na preocupação do bolsonarismo acerca com esse conhecimento em nossa pro- verdade. Defender que a escola ensine
internet que, em forma de memes, in- dos conceitos escolares nos mostra, por fissão. Não aprendemos a fórmula de conteúdos artísticos, científicos e filosó-
sistem em dizer: “Mais um dia se pas- contraste, que o que ensinamos pode Bhaskara na escola simplesmente por- ficos, em vez de bobagens pragmáticas
sou e eu não usei a fórmula de Bhaskara ter impacto no modo como os alunos que vamos ou não usá-la em nosso coti- neoliberais simplificadoras, significa
em nada na minha vida”. O debate so- pensam, sentem e veem o mundo. Em diano, mas aprendemos (ou deveríamos defender uma escola rica, que pensa o
bre que tipo de conhecimento e como outras palavras, ter uma escola que en- aprender) para entender que não existe sujeito como um todo e vai além da pa-
ele deve aparecer na escola é antigo, e sine conhecimento científico, artístico um dia neste mundo que a tal fórmula, lavra vazia, buscando as melhores for-
as escolhas feitas têm estreita relação e filosófico não é algo menor; trata-se desde que foi descoberta, deixou de ser mas de ensinar (dentro das condições
com o sujeito que queremos formar. de algo temido pelo bolsonarismo. útil para a humanidade produzir, pro- possíveis) para vincular a dor e a delícia
Sim, toda nação (e cada escola) tem um Tamanha é a importância dos conteú- jetar e resolver inúmeros problemas da humanidade de produzir seu conhe-
projeto político-pedagógico; portanto, dos escolares como ferramentas para relacionados à ciência e à tecnologia. cimento apontando sempre para práti-
dizer quem queremos formar e para questionar a realidade que a defesa de Entender a vida real, coletiva em suas cas mais coletivas e respeitosas.
que é responder também sobre o que seu esvaziamento não está apenas nos necessidades humanas, é central numa Pessoas e livros já foram queimados
queremos ensinar na escola. discursos inflamados dos bolsonaristas. escola que nos quer mais humanos. quando ousaram defender a verdade.
O conservadorismo sabe do papel O vácuo de conceitos se concretizou, em Defendo aqui, portanto, que cabe à O conhecimento sempre foi combatido
político dos conteúdos escolares e, não sua face perversa, com o Novo Ensino escola ensinar Ciências da Natureza, pelo conservadorismo. Galileu Galilei,
à toa, elege a escola como sua inimiga. Médio (NEM). Está mais do que claro Ciências Sociais, Artes, Filosofia, Edu- diante do julgamento da Inquisição,
Em uma fala recente,1 Eduardo Bolso- que o NEM oferece para nossa juventude cação Física, entre outras disciplinas, teve de negar o heliocentrismo, mas
naro comparou professores a trafican- da escola pública, cuja maioria é negra e pautando-se no máximo que conseguir- reza a lenda que, ao abjurar o movi-
tes, afirmando que um docente doutri- periférica, uma formação precarizada, mos avançar em nossa história humana, mento da Terra, teria dito em voz baixa:
nador causaria discórdia na família, já voltada para um mercado de trabalho mostrando também seus impasses e seus “No entanto, ela se move”.
que ensinaria crianças a ver opressão sucateado, retirando ou diminuindo limites. Uma escola viva, que ajude o es- Entendo que, nestes tempos de avan-
em tudo. Tal discurso faz, nas linhas e a carga horária de disciplinas básicas, tudante a olhar não só para si, mas para ços obscurantistas, precisamos conti-
entrelinhas, uma convocação para que como Química, Física e Sociologia, para o coletivo, a entender o mundo em movi- nuar – dentro de nossas possibilidades
a família reconheça nos professores os em troca oferecer matérias que envol- mento e, por isso, sentir a necessidade de individuais e coletivas – disputando o
inimigos que querem destruir seu lar vem fazer brigadeiro gourmet.3 O que transformá-lo diante das mazelas sociais. conhecimento científico, artístico e fi-
e, mais do que isso, que os conceitos temos para nossa juventude é a retirada Uma escola que ensinar conteúdos losófico, aprendendo com os que nos
ensinados na escola precisam estar de da possibilidade de aprender conteúdos nos termos que aqui apresento será uma antecederam e lutando pela verdade
acordo com os dogmas ensinados em escolares, os quais são substituídos por escola comprometida com a verdade histórica. Por mais que insistam que a
casa; caso contrário serão considerados demandas pragmáticas, imediatas, que histórica e, desse modo, ajudará a com- escola precisa se silenciar em relação ao
destruidores da família. Isso leva, claro, visam aprofundar a diferença de classes por o antídoto contra as fake news que movimento da Terra, às questões da evo-
os professores a ficarem temerosos em sociais no Brasil. A revogação do NEM é assolam nossa vida. O ensino da Mate- lução da espécie, aos debates de gênero,
ensinar certos conteúdos, como teoria urgente, e o resgate de uma escola que mática concreta ampliará nossa capaci- ao socialismo e a tantos outros conteú-
da evolução, debates de gênero e sexua- defenda o ensino de conteúdos funda- dade de raciocínio lógico; as Ciências da dos importantes, seguiremos dizendo:
lidade, questões raciais e sociais, que mentais é imprescindível. Natureza e Sociais nos ajudam a pensar “Apesar de tudo, ainda nos movemos”. 
trazem resultados contrários ao que o Contudo, não é todo conteúdo escolar o que fazer diante de dados e fatos; as Ar-
conservadorismo considera ideal. que terá esse papel de atuar sobre a vi- tes nos ajudam a entender o que somos, *Helio Messeder Neto  é educador popu-
Poderia aqui seguir argumentando são de mundo do estudante. A crítica de como e por que sentimos; a Biologia, a lar, professor de Química da UFBA e doutor
com os leitores que a escola tem pro- Paulo Freire a uma educação bancária, Sociologia e a Educação Física nos aju- em Ensino de Ciências pela mesma univer-
blemas mais graves e dificilmente con- que simplesmente ensina os alunos a dam a pensar o que é a cultura corporal sidade. Contato: helioneto@ufba.br.
segue realizar o trabalho de ensinar (de decorar nomes e fórmulas sem sentido, e como ela pode se expressar em mim e
fato) esses conteúdos em sua plenitude, deve ser feita e é legítima. A escola pre- no outro; a Filosofia concreta nos ajuda
e que, diante das condições materiais cisa pensar em um ensino de conteú- a ter um olhar analítico sobre diferen- 1   “ Eduardo Bolsonaro compara professores a
concretas da escola pública, gastamos dos que ajudem a entender a vida real, tes proposições do mundo e até mesmo traficantes; PF deve analisar fala”, CNN Brasil,
10 jul. 2023.
mais tempo de nossa aula tentando de carne e osso. Mas veja que eu disse a sobre as religiões. A escola que ensina 2   P ara ver essa discussão com detalhes, sugiro
organizar minimamente a sala e ges- vida concreta, e não apenas o dia a dia. conteúdos vívidos se põe contra todos a leitura de Gaudêncio Frigotto (org.), Escola
tando problemas de comportamento. Entender a vida quer dizer compreen- os mitos e contribui para a formação do “sem” partido, LPP-Uerj, Rio de Janeiro, 2017.
3   “Após reforma do ensino médio, alunos têm au-
Poderia acrescentar ainda que os alu- der a riqueza, as potências e os limites tal pensamento crítico de que tanto ou- las de ‘O que rola por aí’, ‘RPG’ e ‘Brigadeiro
nos são sujeitos do processo educativo, do conhecimento humano produzido vimos falar nos discursos educacionais. caseiro’”, Exame, 13 fev. 2023.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

ESPECIAL: 1973, UM ANO DE CHOQUES

O momento de
glória dos não alinhados
Crise do petróleo, Guerra do Yom Kippur, golpe de Augusto Pinochet: 1973 marcou o
século passado. Para o Ocidente, o ano permaneceu associado a uma grande ruptura,
conhecida como “a crise”. O fim de décadas de crescimento contínuo, instabilidade
monetária e aumento dos preços das matérias-primas, no entanto, não foram os
únicos marcos desse novo mundo. O Reino Unido acabou por se juntar à Comunidade
Econômica Europeia (pág. 16 ); na América Latina, e não apenas no Chile, golpes
de Estado se sucederam e esmagaram os movimentos populares (págs. 12, 14 e 18 ).
Em Argel, o movimento dos países não alinhados estava buscando uma “nova ordem
econômica”. Contudo, nesse aspecto, não houve grande mudança (ler abaixo )

POR AKRAM BELKAÏD*

U
m largo sorriso iluminou o rosto Desde a conferência afro-asiática de cia de Lusaka, em setembro de 1970, a
habitualmente austero de Houa- Bandung (1955) e de sua primeira reu- ideia de transformar os modos de co-
ri Boumédiène. Com um grosso nião em Belgrado (1961), os não alinha- mercialização dos recursos naturais em
charuto entre os dedos, o núme- dos reafirmavam sem interrupções sua alavanca para a redefinição das relações
ro um da Argélia não escondeu sua sa- independência diante dos dois grandes internacionais foi adotada como prin-
tisfação enquanto presidia a sessão de blocos e exigiam a paz mundial, precei- cípio de ação. Países como a Líbia ou
encerramento da quarta reunião dos tuando a “coexistência pacífica” entre a Argélia, que acabavam de nacionali-
países não alinhados. De 5 a 9 de se- os Estados Unidos e a União Soviética. zar seus hidrocarbonetos, pretendiam
tembro de 1973, em Argel, 75 países Esse era um posicionamento de con- acompanhar os que desejam fazer o
participaram integralmente da confe- tornos tanto mais imprecisos quanto o mesmo com suas matérias-primas.2 O
rência, sem contar cerca de trinta or- movimento sempre evitou se reivindi- problema das nacionalizações era assim
ganizações internacionais e de liberta- car como terceira força, o que permitia entendido como uma afirmação neces-
ção – entre as quais a da Palestina, a convivência de países mais próximos sária de soberania, devendo o Estado ser
presidida por Yasser Arafat –, além de de Washington (Arábia Saudita, Serra o único juiz do nível de indenização a
onze países não membros convidados, Leoa, Cingapura) e do campo socialis- ser pago às empresas envolvidas. E, em
como a Suécia e a Áustria. Criticado oi- ta (Argélia, Cuba, Índia). Contudo, em caso de litígio, os não alinhados segui-
to anos antes pelos grandes represen- 1973, chegara a hora da distensão – para riam um regulamento conforme às leis
tantes do campo progressista por ter a qual os não alinhados acharam ter do país, o que constituía uma rejeição
deposto o presidente Ahmed Ben Bella, contribuído muito. Galvanizados pelos óbvia da arbitragem internacional.3
o coronel Boumédiène tratava então de acordos de Paris, de janeiro de 1973, que O conceito de “nova ordem econômi-
igual para igual seus pares, como o obrigaram os Estados Unidos a retirar ca internacional” deve muito aos tra-
cubano Fidel Castro e o iugoslavo Josip suas tropas do Vietnã, os membros do balhos do pensador Samir Amin (1931-
Broz Tito. Entretanto, se ele triunfava, movimento lamentaram, ainda assim, 2018), mas também aos da Comissão
era sobretudo porque, de um lado, a re- que as negociações entre superpotên- Econômica para a América Latina e o
união fora um sucesso em termos de cias praticamente tivessem ignorado os Caribe (Cepal)4 e às contribuições das
produção ideológica e, de outro, por- países em via de desenvolvimento e a delegações dos países da América Lati-
que a equipe argelina soubera impor melhor partilha das riquezas. Muito ir- na, confrontados havia quase um século
suas teses sobre a necessidade de dar ritada contra a divisão internacional do com a problemática da soberania sobre das negociações para o Acordo Geral so-
prioridade às questões de desenvolvi- trabalho e a falta de progresso nas nego- suas matérias-primas. Salvador Allende bre as Tarifas Aduaneiras e o Comércio
mento. Um incidente ameaçou estra- ciações comerciais multilaterais, a chefe esteve ausente da conferência – descul- (Gatt), precursor da Organização Mun-
gar tudo quando, tomando a palavra de governo da Índia, Indira Gandhi, deu pou-se numa mensagem lida em sessão dial do Comércio (OMC).
com veemência, o líder líbio Muamar o tom em seu discurso: “A liberdade dos plenária que mencionava “circunstân-
Kadafi criticou o comunismo e os paí- não alinhados não será nem total nem cias graves” em seu país –, mas a dele- O CANTO DO CISNE
ses não alinhados muito próximos da real sem a liberdade econômica”.1 gação chilena contribuiu bastante com A “nova ordem econômica internacio-
União Soviética. Essa tirada irritou Fi- Foi assim que a conferência de Argel várias propostas destinadas a enquadrar nal” conheceu um momento de glória
del, obrigado a lembrar que Moscou se determinou seu rumo. Doravante, os o investimento privado estrangeiro e a quando seu programa foi apresentado
mostrara um aliado leal dos movimen- não alinhados iriam exigir “uma nova limitar a influência das empresas trans- por Boumédiène, em maio de 1974, na
tos anti-imperialistas e de descoloni- ordem econômica mundial” e “o direito nacionais.5 A ideia consistia em limitar Assembleia Geral das Nações Unidas,
zação. Contudo, esse entrevero, fruto ao desenvolvimento”. Em nenhum ins- os estímulos fiscais, criar empresas co- que o adotou por consenso. Porém, era
de questões de ego e precedência – Ka- tante, a palavra “ajuda” foi pronunciada. muns aos países não alinhados e parti- um canto do cisne. No Chile, membro
dafi era então um recém-chegado ao Não se tratava de estender a mão, e sim lhar informações dotando o movimen- bastante empenhado no movimento
círculo dos grandes dirigentes tercei- de contar consigo mesmo, industriali- to de um observatório das práticas das durante os anos precedentes, Allende
ro-mundistas –, não impediu um acor- zando-se, aproveitando os próprios re- companhias multinacionais. Além dis- foi morto após um golpe de Estado com
do quase unânime sobre os assuntos cursos e tirando proveito da conjuntura so, conforme propunham países como apoio de Washington. A ordem militar
econômicos, entre os quais se destaca- internacional para valorizá-los ao máxi- a Argentina e a Indonésia, seria preciso reinou em Santiago, e o país cuja dele-
va o domínio dos recursos naturais. mo. Esboçada por ocasião da conferên- adotar uma posição comum no quadro gação em Argel defendia a ideia de um
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 11

tos das cotações do petróleo cru contri-

© Cássia Roriz
buíram também para matar no ninho o
programa da “nova ordem econômica
internacional”. Isso se referia, notada-
mente, aos mecanismos de captação de
petrodólares. Se os países produtores se
beneficiavam de um filão repentino, os
países ricos entendiam que boa parte
dele deveria ser reciclada em suas eco-
nomias, ou seja, nada poderia impedir a
livre circulação dos capitais. Chancela-
rias, diplomatas e organizações interna-
cionais como o FMI e o Banco Mundial
iriam velar por isso. Além do mais, gran-
des montantes de liquidez provenientes
do Oriente Médio e do norte da África,
mantidos em bancos e estabelecimen-
tos financeiros estrangeiros, lhes da-
riam a capacidade de financiar projetos
de investimento em países do Sul, por
meio de empresas transnacionais ou de
empréstimos. Isso, é claro, desde que
os países “beneficiários” se curvassem
aos critérios habituais (aceitação da ar-
bitragem internacional, situação fiscal
favorável ao investidor, garantias de não
nacionalização etc.).
Enfim, a alta das cotações tornou subi-
tamente possível a exploração de jazidas
consideradas até então pouco ou nada
rentáveis. As grandes empresas passa-
ram à ofensiva, percorrendo o mundo e
oferecendo seus serviços e tecnologias.
Poucos países não alinhados resistiram
a esse canto de sereia e acederam, como
no caso da Nigéria, a contratos leoninos
com as grandes multinacionais.
A invasão da Ucrânia pela Rússia pôs
de novo em moda a expressão “não
alinhamento”, sem vínculo direto com
um movimento que ainda respira (o
secretariado-geral está atualmente nas
mãos do Azerbaijão). Porém, a recusa a
tomar partido nesse conflito – e a aderir
ao regime de sanções impostas à Rús-
sia – pouco tem a ver com a tese de um
mundo mais solidário e menos molda-
do pelo neoliberalismo. 

*Akram Belkaïd  é jornalista do Le Monde


Diplomatique.

1   L e Monde, 7 set. 1973.


“socialismo universal” se tornou pou- diram de maneira unilateral aumentar tada em Argel, de tarifas diferenciadas 2   P
 ara um relato exaustivo da reunião de Ar-
co a pouco o laboratório de práticas em 70% o preço do barril, reduzir em 5% das matérias-primas com desconto con- gel, ver Georges Fischer, “Le non-alignement
et la conférence d’Alger (septembre 1973)”
neoliberais inspiradas pela Escola de sua produção e decretar embargos con- cedido aos não alinhados mais pobres, [O não alinhamento e a conferência de Argel
Chicago. Aplicadas no Ocidente ao fim tra os países que apoiassem Israel com caiu no esquecimento. No seio do mo- (setembro de 1973)], Revue Tiers-Monde,
dos anos 1960 para acabar com o key- remessa de armas, entre eles os Estados vimento, agora era cada um por si; e al- n.56, Paris, 1973.
3   V
 er Samir Amin, “Une remise en cause de
nesianismo, as políticas neoliberais se Unidos e a Holanda.6 A Organização dos guns membros, notadamente os da Áfri- l’ordre international” [Um questionamento da
impuseram como a principal referência Países Exportadores de Petróleo (Opep), ca francófona, fustigaram o egoísmo dos ordem internacional], e Maude Barlow e Raoul
nas décadas que se seguiram, tornando na qual os países árabes constituem países produtores de petróleo. Para esses Marc Jennar, “Le fléau de l’arbitrage interna-
tional” [O flagelo da arbitragem internacional],
inaudível o programa de Argel. maioria, fez o mesmo. O que veio depois Estados, que muito pouco tempo antes Le Monde Diplomatique, respectivamente jun.
A guerra árabe-israelense de outubro é conhecido: um choque que mergulhou haviam conquistado a independência, 1975 e fev. 2016.
de 1973 contribuiu também para desa- na recessão as economias ocidentais, já foi necessário aproximar-se da potência 4   V
 er Baptiste Albertone e Anne-Dominique
Correa, “L’institution qui a inventé l’Amérique
celerar o ímpeto dos não alinhados. As fragilizadas pela desordem monetária tutelar – a França (que já açambarcava Latine” [A instituição que inventou a América
consequências imediatas desse conflito provocada pela decisão unilateral dos suas matérias-primas), a Grã-Bretanha Latina], Le Monde Diplomatique, fev. 2022.
confirmaram, sem dúvida, que recur- Estados Unidos de pôr fim à paridade ou os Estados Unidos – para ter alguma 5   Ver Evgeny Morozov, “Une multinationale
contre Salvador Allende” [Uma multinacional
sos naturais, principalmente o petróleo, fixa entre o ouro e o dólar (15 de agosto coisa sobrando no fim do mês. contra Salvador Allende], Le Monde Diploma-
podiam afetar severamente as relações de 1971). Entretanto, explodiu o custo tique, ago. 2023.
internacionais. Os membros da Organi- da energia para os países em desenvol- CONTRATOS LEONINOS 6   Ver “1973, un choc pour prolonger l’âge du
pétrole” [1973, um choque para prolongar a
zação dos Países Árabes Exportadores de vimento que não dispunham de hidro- Por tabela, algumas respostas que os era do petróleo], Manière de Voir, n.189, jun.-
Petróleo (Opaep), criada em 1968, deci- carbonetos. A proposta cubana apresen- países desenvolvidos deram aos aumen- -jul. 2023.
12 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

A GUERRA DAS MEMÓRIAS DESPERTA A IRA NUM PAÍS FRATURADO

Dois espectros
assombram o Chile
De um lado, um antigo médico, as urnas e a democracia. Do outro, um general golpista,
metralhadoras e a ditadura. Entre os protagonistas de 11 de setembro de 1973, a
memória chilena deveria ser capaz de escolher facilmente um dos lados. No entanto...

POR FRANCK GAUDICHAUD*

“S
aibam que, muito antes do Nesse último enunciado à população, lectual e militante em todos os cantos maioria sobre a oligarquia sem disparar
que se pensa, de novo se ele pretendia deixar “uma lição de mo- do planeta. As esquerdas (em torno do nem sequer um tiro. Longe das opções
abrirão as grandes alame- ral contra o crime, a covardia e a trai- Partido Socialista e do Partido Comu- estratégicas da Revolução Cubana, essa
das por onde passará o ho- ção”, assim como o testemunho de um nista), que, em 1969, estavam na origem aposta na ruptura legalista foi conside-
mem livre, para construir uma socie- “homem digno, que foi fiel à lealdade da coligação que levou o nome de Uni- rada suicida pela esquerda extraparla-
dade melhor.” Em todos os lados do dos trabalhadores” (leia o boxe na pági- dade Popular (UP), propuseram uma mentar, como o jovem Movimento de
espectro político, quase todos os chile- na ao lado). Cinquenta anos depois, co- transição para um socialismo democrá- Esquerda Revolucionária (MIR), então
nos conhecem o último discurso de mo ele previu, o “metal tranquilo” de tico e revolucionário, institucional, elei- liderado por Miguel Enríquez.
Salvador Allende, chamado de “discur- sua voz continua a ressoar, e o primeiro toral e desarmado: não se tratava mais A vitória de Allende contra os candida-
so das grandes alamedas”, do qual foi presidente marxista eleito democrati- de apostar na guerrilha e nas kalashni- tos da direita e da democracia cristã, em
retirada essa citação. Foi proferido em camente na história do Cone Sul conti- kovs, mas na mobilização das classes 4 de setembro de 1970 (com uma maio-
11 de setembro de 1973, durante o golpe nua sendo uma das figuras centrais na populares e do movimento operário. ria relativa de 36,6% dos votos), desper-
de Estado fomentado pelo general Au- história mundial das esquerdas. Baseados no que consideravam – de tou uma imensa onda de esperança. As
gusto Pinochet. Allende, eleito presi- Em plena Guerra Fria, a experiência forma equivocada – uma tradição histó- “quarenta medidas” do governo, toma-
dente do Chile em 1970, estava tranca- da “via chilena para o socialismo” durou rica legitimista do Exército e uma certa das logo no início do mandato, visavam
do no palácio presidencial de La menos de três anos (de novembro de flexibilidade do Estado chileno, Allende impulsionar o crescimento, redistribuir
Moneda com algumas pessoas próxi- 1970 a setembro de 1973). Ainda assim, e seus seguidores apostaram que os mi- a riqueza – de forma muito ambiciosa –,
mas e armas nas mãos. Sabia que não transformou o país andino de 9 milhões litares respeitariam o sufrágio universal aumentar os salários, aprofundar a refor-
sairia vivo do edifício presidencial. de habitantes e fascinou o mundo inte- e que seria possível impor a vontade da ma agrária iniciada no governo anterior e
colocar os principais recursos nacionais
© Wikimedia Commons
(mineração em particular) sob o controle
do Estado. A nacionalização de dezenas
de grandes empresas e de 90% dos ban-
cos permitiria a constituição de uma área
de propriedade social (APS), onde se ins-
tauraria um sistema de cogestão, entre
trabalhadores e administrações públicas.
O setor privado continuaria, no entanto,
muito presente na economia nacional.
O país vivia um clima de efervescência:
aumentaram as greves, as ocupações de
terras e de fábricas... Mas a esquerda per-
maneceu minoria no Parlamento.
A burguesia e os grandes proprietários
de terras reagiram às políticas da coliga-
ção como vampiros ao alho: tremeram de
pavor. Em 6 de novembro de 1970, o então
presidente dos Estados Unidos, Richard
Nixon, declarou diante do Conselho Na-
cional de Segurança: “Nossa principal
preocupação com o Chile é que ele [Al-
lende] possa consolidar seu poder e que o
mundo tenha a impressão de que ele teria
sucesso. [...] Não devemos deixar a Amé-
rica Latina pensar que pode seguir esse
caminho sem sofrer as consequências”.
O presidente chileno havia tomado posse
dois dias antes. Em 1971, a expropriação
do cobre (maior reserva do mundo), en-
tão nas mãos de empresas norte-ameri-
canas, foi interpretada pela Casa Branca
como uma declaração de guerra. Além
disso, Allende afirmava-se como líder dos
Salvador Allende acompanhado de Velasco Ibarra. A experiência da “via chilena para o socialismo” durou menos de três anos Estados não alinhados. Defendia o direito
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 13

camento militar sem precedentes: primeiro de tanques; conhecido, como fundamental na organização do golpe:
“A HISTÓRIA OS JULGARÁ” depois, diante da recusa do presidente em se render, so- em 11 de setembro, a Marinha dos Estados Unidos reali-
freram bombardeios sucessivos no palácio por dois zou uma operação conjunta com a Marinha chilena.

N aquela terça-feira, 11 de setembro de 1973, o céu


estava cinzento, o inverno austral ainda estava pre-
sente. O golpe começou muito cedo, quando a Marinha
aviões de combate. O primeiro andar ficou parcialmente
destruído e um incêndio se espalhou por todo o edifício.
Em seu último discurso, Allende condenou o que con-
No dia 9 de agosto, ainda acreditando na possibilidade
de uma solução institucional, Allende incorporou novamen-
te os militares no governo, com um gabinete civil-militar de
de Valparaíso assumiu o controle da cidade portuária si- siderou uma “traição” de generais “criminosos”, responsá- unidade nacional. Em vão. Ele também procurou desespe-
tuada no Oceano Pacífico. A aeronáutica preparava seus veis pela ruptura da ordem institucional. Até o fim, o pre- radamente encontrar um terreno comum com a Democra-
aviões Hawker Hunter no aeroporto de Concepción e, em sidente colocou-se como salvaguarda da legalidade cia Cristã, o que resultou em trocas de cartas com Patricio
Santiago, os movimentos das tropas do Exército tinham republicana, recordando seu compromisso com um cami- Aylwin e promessas de concessões. Contudo, nada disso
começado às 8h30, sob supervisão do general Sergio nho desarmado para o socialismo. Mostrou, até o último adiantou. No dia 22 de agosto, a Câmara dos Deputados
Arellano Stark. Desde a madrugada, Allende recebia in- suspiro, sua convicção sobre a tradição democrática e o decidiu declarar o governo inconstitucional, dando luz ver-
formações sobre a situação em Valparaíso e, após diver- constitucionalismo das Forças Armadas chilenas. Denun- de a uma intervenção. E, quando o presidente anunciou a
sas trocas com seu ministro da Defesa, Orlando Letelier, ciou, assim, o papel do almirante Merino e do general intenção de realizar um referendo para ampliar os poderes
compreendeu a gravidade da situação. Decidiu, assim, Mendoza (qualificado como “pérfido”), à frente dos cara- do Executivo em 7 de setembro, a notícia apenas acelerou
ocupar o palácio presidencial, acompanhado de seus binieri, mas sem nunca citar o comandante-chefe dessas o golpe. Sob pressão, o general-chefe dos exércitos, Car-
mais leais colaboradores, nomeadamente o médico Au- forças, Augusto Pinochet, o que confirma a falta de infor- los Prats González, renunciou. Allende nomeou para o car-
gusto Olivares e o cientista político Joan Garcés, mas mações precisas do governo sobre o que estava sendo go, então, Augusto Pinochet, que ele considerava um lega-
também de homens do GAP (o “grupo de amigos do pre- tramado. Contra isso, Allende invocou dois oficiais leais: lista. Oportunista, este último decidiu seguir com a
sidente”), sua guarda pessoal. A essa altura, tinha plena em primeiro lugar, o general Schneider – assassinado du- conspiração apenas no dia 8 de setembro, convencido pelo
consciência de que estava diante de uma operação coor- rante uma primeira tentativa de golpe, em outubro de general Leigh (Força Aérea). Apesar de vários generais
denada de grande envergadura. Antes das 11h, os cerca 1970 –, e Arturo Araya, seu fiel ajudante de campo, as- terem decidido retirar-se, enquanto outros foram presos
de trezentos carabinieri presentes no La Moneda retira- sassinado em 27 de julho de 1973 (provavelmente pela (como Bachelet ou Montero), foi de fato o comando das
ram-se por ordem de um superior. Allende permaneceu organização de extrema direita Pátria e Liberdade). Ainda três forças e os carabinieri que lideraram o golpe. 
sozinho com algumas dezenas de aliados próximos: as assim, o presidente reconheceu que a contrarrevolução
fotos em preto e branco, poucas horas antes de sua mor- estava em curso havia meses e que em julho e agosto os Trecho de Franck Gaudichaud,  Découvrir la révolution
te, mostram-no usando capacete e armado com um rifle ataques tinham aumentado. Invocou também, de forma chilienne (1970-1973) [Descobrindo a Revolução Chile-
de guerra. Esses homens tiveram de enfrentar um desta- clara e acertada, o papel do imperialismo yankee, hoje na (1970-1973)], Éditions Sociales, Paris, 2023.

dos países colonizados à autodetermi- dividiam cada vez mais à medida que o tonio Kast (Partido Republicano – PR), Dois espectros ainda assombram,
nação e denunciou o sistema financeiro governo se esforçava para acreditar que candidato de extrema direita, durante portanto, a política chilena e traçam
internacional. Desde o início, a CIA, a Em- seria possível evitar o confronto. Em vão. a eleição presidencial de 2021.6 Entre- caminhos diferentes para o país: o
baixada dos Estados Unidos e poderosas Na manhã do dia 11 de setembro de tanto, Kast saiu vencedor no primeiro do ex-ditador, que morreu em 2006 e
multinacionais afetadas pelas nacionali- 1973, com o apoio do governo Nixon turno, deixando os partidos tradicio- nunca foi julgado; e o de um socialista
zações conspiraram para abater a expe- (mas também – como sabemos hoje – da nais para trás. Admirador declarado do pacifista, que morreu com uma metra-
riência radical original em pleno voo.1 ditadura brasileira),4 os diversos ramos general Pinochet, o homem forte da di- lhadora na mão. Depois de cinquenta
das Forças Armadas se levantaram. A es- reita chilena é filho de um ex-tenente anos, o Chile hesita. 
“CÂNCER MARXISTA” querda estava desarmada tanto política nazista que fugiu da Europa. Católico
Em Santiago, a direita – apoiada por como militarmente. A Batalha do Chile fundamentalista, ele, assim como sua *Franck Gaudichaud  é professor de His-
Washington com milhões de dólares, terminou de forma dramática.5 Apoian- família, apoiou a ditadura (um de seus tória e Estudos Latino-Americanos da Uni-
como demonstraria uma investigação do-se num catolicismo nacional-con- irmãos chegou a ser ministro). Por sua versidade Toulouse Jean Jaurès (França).
do Senado norte-americano2 – estabele- servador e na doutrina da segurança vez, se Boric cita voluntariamente Allen- Autor, em particular, de Découvrir la révolu-
ceu como objetivo desmembrar o bloco nacional, a ditadura civil-militar fechou de como exemplo, é acima de tudo para tion chilienne (1970-1973) [Descobrindo a
sociopolítico que apoiava a esquerda no o Parlamento, reprimiu duramente os apelar ao respeito pelas instituições e Revolução Chilena (1970-1973)], Éditions
poder. Procurou apoio nos setores rea- sindicatos, proclamou estado de sítio pelos direitos humanos perante aque- Sociales, Paris, 2023.
cionários das Forças Armadas. Os ata- e praticou a censura. Contra o “câncer les que assassinaram a democracia em
ques da Pátria e Liberdade, organização marxista”, o terrorismo de Estado se 1973, e não para exaltar o militante anti- 1   Ler Evgeny Morozov, “Une multinationale
contre Salvador Allende” [Uma multinacional
de extrema direita, fizeram tremer a po- abateu sobre o país. Durante dezesseis -imperialista. Sem maioria parlamentar, contra Salvador Allende], Le Monde Diploma-
pulação. As grandes empresas e alguns anos, a polícia militar e a polícia políti- sem nenhuma ligação real com os mo- tique, ago. 2023.
profissionais liberais desencadearam ca torturaram dezenas de milhares de vimentos populares e com parte de sua 2   Cf. os dois volumes do relatório sobre as au-
diências conduzidas pelo Senado dos Esta-
boicotes e bloqueios para devastar a eco- pessoas e assassinaram mais de 3.200 coligação sendo alvo de um escândalo dos Unidos: “Multinational corporations and
nomia. Os meios de comunicação con- indivíduos, dos quais mais de mil ain- de corrupção, Boric governa no “extre- United States foreign policy” [Corporações
servadores – incluindo o jornal El Mer- da hoje estão desaparecidos (os corpos mo centro” – longe das “grandes alame- multinacionais e política externa dos Estados
Unidos], Government Printing Office, Washin-
curio –, engrenagens essenciais desse nunca foram encontrados). Centenas de das” imaginadas por Allende.7 gton, DC, 1974.
dispositivo, alertavam constantemente milhares de pessoas foram forçadas ao Há dois anos, contudo, o fim dos le- 3   Franck Gaudichaud (org.), ¡Venceremos! Expé-
para os “desvios” da “ditadura marxista”. exílio. Esse período de brutalização em gados autoritários e do neoliberalis- riences chiliennes du pouvoir populaire [Vence-
remos! Experiências chilenas de poder popu-
O cerco se apertava gradualmente sobre massa coincidiu, a partir de 1975, com mo parecia possível, graças à força da lar], Syllepse, Paris, 2023 (2. ed.).
o processo revolucionário, enquanto a o de uma terapia de choque econômico grande revolta social de outubro de 4   National Security Archive, “Brazil Abetted Over-
explosão da inflação, o boicote interna- que transformou o Chile num labora- 2019. Agora, são os reacionários que throw of Allende in Chile” [Brasil ajudou na
derrubada de Allende no Chile], 31 mar. 2023.
cional e o desenvolvimento do mercado tório a céu aberto do neoliberalismo: o estão em ascensão. Depois da rejeição Disponível em: https://nsarchive.gwu.edu.
clandestino alienavam as camadas mé- país tornava-se o modelo dos “Chicago maciça do projeto de Constituição, fe- 5   P atricio Guzmán, A batalha do Chile, Atacama
dias urbanas. Em 1972, o Partido Demo- Boys” e das teorias monetaristas caras minista e progressista, por meio do re- Production, França-Cuba-Chile, 1975-1979,
documentário em três partes.
crata Cristão deixou de hesitar e entrou ao economista Milton Friedman. ferendo realizado em 2022, cabe agora 6   Ler “Tout commence au Chili” [Tudo começa
em oposição frontal ao governo. Cinquenta anos após o golpe de Es- ao PR, paradoxalmente, liderar a elabo- no Chile], Le Monde Diplomatique, jan. 2022.
O movimento operário resistiu. Em tado, a guerra das memórias desperta a ração de uma nova Carta Magna, após 7   Cf. Pierre Serna, La République des girouettes.
1795-1815 et au-delà. Une anomalie française:
resposta a cada tentativa de greve pa- ira num país profundamente fraturado. seus excelentes resultados nas eleições la république de l’extrême-centre [A República
tronal, multiplicaram-se formas de Apoiado pelo Partido Comunista e com constituintes de maio de 2023. Aos “fi- dos Cataventos. 1795-1815 e além. Uma ano-
auto-organização e de poder popular, um programa crítico ao neoliberalismo, lhos” de Pinochet, cabe a responsabi- malia francesa: a república de extremo centro],
Ceyzérieu, Champ Vallon, 2019; Tariq Ali, The
especialmente dentro dos cordões in- Gabriel Boric (Frente Ampla) conseguiu lidade de substituir a Constituição de Extreme Center. A Second Warning [Extremo
dustriais.3 Entretanto, as esquerdas se derrotar – com 56% dos votos – José An- 1980, imaginada por seu mentor. centro. Um segundo aviso], Verso, 2018.
14 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

O GOLPE DE ESTADO DE 27 DE JUNHO DE 1973

O Uruguai transformado em prisão


Após o golpe de Estado de 27 de junho de 1973, o Uruguai se tornou o país com o maior número
de presos políticos proporcionalmente ao tamanho de sua população. Ao longo de uma ditadura
que durou pouco mais de onze anos, cerca de 10% de seus habitantes escolheram o exílio

POR DANIEL GATTI E ROBERTO LÓPEZ BELLOSO*

D
oze bandeiras brancas enfileira- pamaros (MLN-T), que, no entanto, já “Prolongado”, por outro lado, em ra- tar social: entre metade dos anos 1960
das na terra preta cobrem os res- estavam militarmente derrotados e em zão da própria natureza desses aprisio- e 1985, pelo menos 380 mil uruguaios
tos dos ossos que acabaram de sua maioria na prisão ou no exílio. namentos, que deveriam se inscrever deixaram o país, por razões na maioria
ser encontrados no entorno do Se o regime de Augusto Pinochet no no tempo para eliminar “o inimigo”. As das vezes políticas a partir de 1973.3 Eles
14º Batalhão de Infantaria Paraque- Chile (1973-1990) se caracteriza pe- condições de detenção daqueles que o iam primeiro para o Chile, onde o so-
dista – a cerca de 20 quilômetros de las execuções sumárias e a ditadura regime designava como “reféns” – nove cialista Salvador Allende ainda governa-
Montevidéu –, um lugar utilizado du- argentina (1976-1983) tenha extermi- homens (entre os quais o futuro presi- va, e principalmente para a Argentina,
rante a ditadura uruguaia (1973-1985) nado até 30 mil pessoas por meio dos dente da República José “Pepe” Mujica) que atravessava em maio de 1973 uma
como centro de tortura e detenção. Se- “desaparecimentos forçados”, a junta e onze mulheres da direção tupamaro “primavera” progressista. Alguns iam
gundo a equipe de arqueologia médi- uruguaia se distingue, explica-nos o – foram particularmente duras: Mujica, para a Venezuela. Raros, nessa época,
co-legal da Instituição Nacional dos historiador Álvaro Rico, pelo “aprisio- por exemplo, ficou fechado durante dois foram para a Europa. A opção chilena
Direitos Humanos (INDDHH), trata-se namento político maciço e prolongado anos no fundo de um poço subterrâneo. desapareceu com a derrubada de Al-
de uma das 197 pessoas que a junta fez de jovens detentos”. A segunda onda de repressão, de 1974 lende no fim do ano. E quando, a par-
desaparecer. No caso, uma mulher que “Maciço”, por um lado, porque o país a 1976, se abateu sobre os militantes tir de 1975, a extrema direita tomou o
faleceu sob tortura. O INDDHH ainda contava, nesse período, com o maior de organizações que eram legais antes Estado em Buenos Aires, a Argentina se
não a identificou desde que descobriu número de presos políticos proporcio- do golpe de Estado, principalmente o transformou em uma armadilha, que se
seu esqueleto a 30 centímetros de pro- nalmente à sua população: dezoito para Partido Comunista (PCU), e sobre as fechou definitivamente sobre milhares
fundidade, recoberto de cal, sob um cada 10 mil habitantes; 31 para cada 10 formações que se reorganizavam no es- de exilados latino-americanos depois
pedaço de louça, às 10h13, em 6 de ju- mil se contarmos as pessoas presas e trangeiro, como o Partido pela Vitória do do golpe de Estado de março de 1976.
nho de 2023. Ou seja, três semanas an- detidas sem julgamento.1 Esses núme- Povo, ao qual pertencia a maioria dos A maioria dos uruguaios foi raptada
tes que o país recordasse os cinquenta ros não incluem os detidos nos lugares desaparecidos. A escolha da prisão não na Argentina, principal plataforma do
anos do golpe de Estado. chamados de “depósito” (como o princi- impediu de forma alguma a sistematiza- Plano Condor de cooperação entre as
No início da manhã de 27 de junho pal estádio de basquete de Montevidéu, ção da tortura, por vezes durante meses ditaduras do cone sul-americano:4 141
de 1973, o presidente, com o apoio das o Cilindro Municipal) nem os menores e sempre em grande escala. desaparecidos dos 197 recenseados pela
Forças Armadas, dissolveu o Parlamen- enviados para os estabelecimentos pe- Local de imigração, principalmente Associação de Mães e Parentes dos Uru-
to. Juan María Bordaberry justificou seu nitenciários. Até hoje, 51 locais de de- europeia, até as três primeiras décadas guaios Detentos e Desaparecidos.
“autogolpe de Estado” pelos imperativos tenção “legais”, nove clandestinos e três do século XX, o Uruguai se tornou um A partir de 1975, os emigrados esco-
da luta contra os guerrilheiros do Mo- centros de sepultamento clandestino país cuja população partia quando co- lheram mais frequentemente a Europa
vimento de Libertação Nacional – Tu- foram identificados.2 meçou a crise de seu Estado de bem-es- Ocidental, Cuba ou o bloco socialista,

ALLENDE desculpa: quase quatro anos de confinamento solitário


em uma cela, o suficiente para bagunçar tudo. E sonhar,
que vai ao mesmo lugar por outros caminhos”. Pode-se
legitimamente pensar que outro caminho leva a outro lu-
POR REGIS DEBRAY* estupidamente, com castelos na Espanha. gar, mas isso parecia uma metáfora gentil e muito irreal.

E le viveu como um epicurista; cometeu suicídio como


um estoico, a arma do canhão virada contra sua boca.
O bon vivant Allende, em 11 de setembro de 1973, teve
O Chile naquela época – é verdade, eufórico e à beira-
-mar (mas o Pacífico é muito frio) – escondeu bem seu
jogo: não punitivo e puritano, Unidade Popular. Otimista.
“A democracia é um exercício de modéstia”, disse Ca-
mus. É aprendida com a idade e podemos encurtar esse
percurso. Não negarei que o Chile, para onde voltei mui-
um fim romano. Isso não foi planejado. Que ele se torna- Não afeito ao ódio nem à agressividade, paixão sombria e tas vezes até o golpe (esperado, porém de formas mais
ria lenda. E será sempre lembrado. Nele havia dois ho- viscosa – e distante estava o suicídio do presidente Bal- ou menos gentis), acelerou a aprendizagem de um pe-
mens, e de fora só tínhamos visto, até então, apenas o maceda, no século anterior. O martelar das panelas, nos queno francês demasiado seguro de si. A imolação de um
primeiro: um rad-soc (radical socialista) bem-humorado, bairros abastados, não deixava esquecer as ostras, os grande cavalheiro, que não parecia nem fingia ser, com
confiante em sua muñeca ,1 apreciador de pisco, piadas e maravilhosos ouriços-do-mar e um saboroso vinho bran- tantos camaradas assassinados no processo, lembra-nos
mulheres bonitas. Porque Allende tinha humor, coisa rara co. Criaturas mais amigáveis, um Congresso movimenta- que a tragédia ainda pode, no Ocidente e sob máscaras
na esquerda, em que o espírito de seriedade é tradicio- do, militares civilizados. Dizia-se: um perfume da Europa pacíficas, saltar na cara. Uma lição para guardar no canto
nal, e não posava do herói que um dia se tornaria. Ele não no fim do mundo, uma Inglaterra na América do Sul. O da cabeça, mesmo quando, no meu caso, essa cabeça
tinha barba nem boina, el compañero presidente. Gran- Norte ficou esquecido, enquanto preparava e financiava perdeu o interesse pelo jogo político. Desde que o cora-
des óculos de tartaruga, bigodinho elegante, voz zombe- silenciosamente a guerra (US$ 10 milhões, para come- ção se lembre de que nem sempre nem em todo lugar é
teira e cálida, bem-humorado, fraterno e até maçom – çar, em fundos especiais). Bloqueios, financiamento, sa- um joguinho inofensivo. Companheiro Allende, não desa-
como Pinochet. Tudo, eu diria, para afastar as sombras botagem e, quando necessário, assassinatos. Caminho- pareça. Devemos tanto a você na esquecida Europa co-
fatídicas – e enganar seu mundo. neiros, minas de cobre, a Casa Branca e a CIA estavam mo em qualquer outro lugar, em quase todo o lado. Lem-
Saindo da prisão, na Bolívia, durante semanas a fio fui ocupados. Contudo, só depois ficaríamos sabendo. A im- brar-se disso, cinquenta anos depois, nunca é demais. 
hóspede dele, e de Neruda também, em sua casa na Isla prensa às vezes chegava atrasada, os ativistas também.
Negro, e ainda me arrependo de meu tom um pouco pre- Na terra da bonomia e dos compromissos de última hora, *Régis Debray  é escritor e filósofo.
tensioso de conferencista marxista-leninista ao conver- não era bom pensar no mal. A ferocidade não estava na
sar com o presidente do Chile diante da câmera de Mi- agenda. Allende, que se permitia conhecer, sem ressenti-  termo muñeca significa “boneca” ou “fantoche” em espa-
1   O
nhol. Seus compatriotas evocaram a muñeca de Allende para
guel Littin. Ele, o “reformista”; eu, o “revolucionário”. Um mento, muitas vezes me mostrava sobre sua mesa, sorrin- designar sua capacidade de procurar e encontrar consenso
clichê. Um jogo de papéis. A bolha da época. Minha única do, uma foto autografada de Che: “A Salvador Allende, dentro da esquerda chilena.
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 15
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Mujica ficou preso durante dois anos no fundo de um poço subterrâneo. A prisão ocorreu junto com outros nove homens e onze mulheres da direção Tupamaro

assim como, para uma grande maioria, com diversas associações, como o Co- associada a uma nova crise econômica *Daniel Gatti  e Roberto López Belloso
o México. Os países nórdicos (em par- mitê de Defesa dos Presos Políticos no e à evolução da situação internacional, são, respectivamente, jornalista e respon-
ticular a Suécia), a França, a Espanha, Uruguai (CDPPU), criado em 1972 por favoreceu a transição para a democra- sável pela edição uruguaia do Le Monde
a Itália (por conta de sua proximidade Alain Labrousse, um jornalista francês cia e a investidura de um presidente Diplomatique.
cultural e das raízes comuns) e a Suíça que tinha vivido em Montevidéu como eleito, em 1º de março de 1985. Apesar
(sede de organizações internacionais, cooperador durante os tumultuados do retorno da maioria dos exilados e da 1   L er Maurice Lemoine, “Les heures noires de
l’Amérique latine” [As horas sombrias da Amé-
o que facilitava o trabalho de denún- anos 1960. O CDPPU manteve relações libertação dos prisioneiros políticos, a rica Latina]. In: L’Atlas histoire. Histoire critique
cia) foram alguns dos destinos privile- muito próximas com os dirigentes po- marca da ditadura permaneceu. A Lei du XXe siècle [O atlas de história. História críti-
giados no Velho Continente. líticos franceses, em particular os de n. 15.848, votada em dezembro de 1986, ca do século XX], edição especial do Le Monde
Diplomatique, 2010.
A situação variava em função do país esquerda. Paris também era a sede do ratificou a impunidade dos militares. 2   Servicio Paz y Justicia (Serpaj), Uruguay nunca
de acolhida: exílio regulamentado e con- Reagrupamento das Famílias de Uru- A chegada da esquerda ao governo em más. Informe sobre la violación a los derechos
trolado na Europa do Leste, onde a maio- guaios Desaparecidos (Afude) – a pri- 2005 e a reinterpretação de um artigo humanos (1972-1985) [Uruguai nunca mais.
Relatório sobre a violação dos direitos huma-
ria dos exilados era membro do PCU, ou meira associação desse tipo, criada em dessa lei permitiram que 82 pessoas nos (1972-1985)], Montevidéu, 1989.
em Cuba, que recebeu principalmente 1978 – e da Secretaria Internacional dos fossem investigadas. Apesar disso, de 3   Alvaro Rico (org.), Investigación histórica sobre
os militantes do MLN-T e do PCU; am- Juristas pela Anistia no Uruguai (Sijau), acordo com organizações de defesa dos la dictadura y el terrorismo de Estado en el Uru-
guay (1973-1985) [Pesquisa histórica sobre a
plamente facilitado pelas subvenções dirigida principalmente por Louis Joi- direitos humanos, incontáveis crimes ditadura e o terrorismo de Estado no Uruguai
de Estado na Suécia; de origem política net e Jean-Louis Weil, que, no fim dos permaneceram impunes. (1973-1985)], v.2, Universidade da República
mais variada e aproveitando de menos anos 1970, comandaram uma missão Hoje, 17% dos uruguaios estimam que Oriental do Uruguai, Montevidéu, 2008.
4   Magdalena Schelotto, “La dictadura cívico-mi-
apoio institucional na França e princi- de investigação em Montevidéu sobre a o golpe era justificado e 69% consideram litar uruguaya: la construcción de la noción de
palmente na Espanha, mas com níveis situação dos presos políticos. que a democracia é a melhor forma de víctima y la figura del exiliado en el Uruguay
de integração mais elevados... Os uru- Em 2014, o Ministério das Relações governo.8 Apenas um núcleo duro apoia post-dictatorial” [A ditadura civil-militar uru-
guaia: a construção da noção de vítima e a figu-
guaios conheceram o mesmo que todos Exteriores do Uruguai reconheceu ofi- a volta da ditadura. Esse é o caso do par- ra do exilado no Uruguai pós-ditatorial], Nuevo
os exilados políticos viveram: pensando cialmente a importância das redes de tido de extrema direita Cabildo Abier- Mundo Mundos Nuevos, 10 mar. 2015.
inicialmente que seu exílio seria curto, solidariedade que existiram na França to, membro da coalizão sobre a qual se 5   Ler Pierre Abramovici, “Le condor déploie ses
ailes” [O condor abre suas asas], Manière de
eles privilegiaram relações pessoais e durante a ditadura, à qual sobrevive- apoia o presidente conservador Luis Voir, n.185, out.-nov. 2022.
linguísticas com seus concidadãos antes ram. A capital francesa constituiu em Lacalle Pou. Este último prefere ignorar 6   Silvia Dutrénit Bielous (org.), El Uruguay del
de mudar de perspectiva, fundar famí- seguida uma plataforma para outros um aliado tão volumoso em 2023 e dar exilio. Gente, circunstancias, escenarios [O
Uruguai do exílio. Pessoas, circunstâncias, ce-
lias e ter filhos para os quais o país de tipos de solidariedade, facilitando prin- destaque para “a” foto das comemora- nários], Trilce, Montevidéu, 2006.
exílio se tornaria o país de origem...5 cipalmente o retorno ou o contato entre ções do 50º aniversário da derrubada da 7   Víctor Bacchetta, La Historia que no nos con-
A França recebeu no máximo de cientistas emigrados. democracia, onde figuram três antigos taron [A história que não nos contaram], Sitios
de Memoria Uruguay, 2023. Disponível em: ht-
1,5 mil a 2 mil refugiados uruguaios presidentes (Julio María Sanguinetti, do tps://sitiosdememoria.uy.
na segunda onda de chegadas, após A MARCA DA DITADURA PERSISTE Partido Colorado, Luis Lacalle Herrera, 8   “A 50 años del golpe de Estado, 57% de la pobla-
1976. Pouco numerosa, essa leva se A sociedade uruguaia resistiu ao golpe do Partido Nacional e pai do atual pre- ción está en desacuerdo con que la dictadura ‘es
un tema del pasado’” [Nos cinquenta anos do
caracterizou por um alto nível de es- de Estado desde o primeiro dia, com, sidente, e Mujica, da Frente Ampla). Um golpe de Estado, 57% da população não concor-
truturação. Concentrada em Paris e por exemplo, a greve geral da confedera- movimento de união criticado por sua da que a ditadura seja “um assunto do passado”],
na Île-de-France, essa comunidade ção sindical de 27 de junho a 11 de julho insuficiência em um contexto em que os La Diaria, Montevidéu, 27 jun. 2023, e “La rece-
sión democrática de América Latina” [A recessão
“de bairro”, segundo o sociólogo fran- de 1973, uma das três mais longas do sé- responsáveis pelo golpe de Estado ainda democrática da América Latina], Informe Latino-
co-uruguaio Denis Merklen,6 contava culo passado no mundo.7 Essa rejeição, não foram julgados.  barómetro 2023, 21 jul. 2023.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

O ANO EM QUE A EUROPA SE CONVIDOU PARA O DEBATE POLÍTICO BRITÂNICO

Quando os trabalhistas
defendiam o Brexit
Apesar da oposição dos militantes do Partido Trabalhista, um de seus líderes, o ex-primeiro-ministro Harold
Wilson, conseguiu a ratificação da entrada do Reino Unido na Europa. A medida abriu caminho para uma
reconfiguração política que, eventualmente, levaria à saída do país da União Europeia em janeiro de 2020

POR AGNÈS ALEXANDRE-COLLIER*

N
ada seria como antes. O ano de lugar no ranking mundial 2 – e, da Eu- Quando se concluiu o Tratado de 1967, iria descartar uma nova candida-
1973 começou com uma pro- ropa, esperava-se a salvação econô- Roma, em 1957, os britânicos, descon- tura, dessa vez apresentada pelo gover-
messa. Quase unânime, a im- mica. Ela não viria... como também fiados, haviam sugerido uma simples no trabalhista de Harold Wilson.
prensa saudou a adesão do Rei- não viria a renúncia à relação especial associação com seus vizinhos europeus. Quando os conservadores voltaram
no Unido à Comunidade Econômica com os Estados Unidos, suficiente- A CEE recusou a proposta no momento ao poder em 1970, tinham então um
Europeia (CEE), em 1º de janeiro. O mente forte para sobreviver à integra- em que seus primeiros êxitos econômi- interlocutor em Paris desejoso de rea-
Observer publicou um “euroguia” pa- ção comunitária e depois ao Brexit. 3 cos levaram os governos conservado- tar o diálogo, Georges Pompidou, e um
ra divulgar as implicações do caso. O Em contrapartida, uma recomposição res de Harold Macmillan (1957-1963) a pró-europeu na liderança. Para Edward
Times falou em “esplêndida aventu- política se esboçou com a entrada para avaliar o interesse de uma aproximação Heath, nada de nostalgia pós-imperial,
ra”. Para o Daily Mirror, “se ainda se a CEE. Esta era havia muito tempo vista ainda maior. Após dois anos de nego- nada de apego à “relação especial” com
sustenta a mínima ideia segundo a pelos detratores de esquerda como um ciações difíceis, conduzidas por Edward os Estados Unidos. Os tories, que se di-
qual o britânico é autossuficiente e clube capitalista de nações ricas e sem- Heath, então ministro das Relações Ex- ziam o “partido da Europa”; os traba-
acredita que Deus criou a Mancha pa- pre temida pelos soberanistas de direita teriores, em torno da preferência impe- lhistas, no conjunto hostis ao “mercado
ra protegê-lo dos estrangeiros e de como uma invasão franco-alemã. Con- rial por bens de primeira necessidade comum”: o problema europeu parecia
seus maus hábitos, essa ideia desapa- tudo, nos meses e anos que se segui- oriundos da Commonwealth e da nova agora às voltas com a divisão esquerda-
rece hoje!”.1 Na época, a situação ia se ram, a questão europeia reconfigurou política agrícola comum, Charles de -direita. Do voto do Parlamento sobre o
degradando sem trégua – a inflação os campos conservador e trabalhista, Gaulle apresentou seu veto em 1963. princípio de adesão em 28 de outubro
chegou a 9,2%, a criação de riqueza contribuiu para a emergência de novos O presidente francês desconfiava do de 1971 surgiram, de qualquer modo, as
por habitante colocava o país em 11º partidos e inflamou a imprensa popular. “cavalo de Troia” norte-americano. Em primeiras dissensões em cada campo,

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Mustaffa Khalil e Margaret Tatcher. Ela conclarama “um grande sim para a Europa”. Ele se acomodou a União Europeia enxergava bloco como promessa de liberalismo
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 17

enquanto as questões de fundo – como a liberalismo. Conclamara a “um grande mitia a instalação do Mercado Comum questões que não deixaram de dividir
contribuição britânica para o orçamento sim para a Europa” após conquistar a li- Europeu, e não se opôs à entrada da libra profundamente os partidos britânicos:
europeu – jamais encontraram solução. derança de seu partido em fevereiro de esterlina no sistema monetário europeu o lugar do país no mundo e o papel do
Os trabalhistas venceram, por pouco, 1975, comprometendo-se a romper com (SME), em 8 de outubro de 1990.6 Estado na economia e na sociedade.
as eleições de 1974. Seu programa previa o consenso do pós-guerra, com o Estado Entretanto, foi durante o segundo Inscreveu-se tão arraigadamente no
uma renegociação radical das condições de bem-estar social e com as políticas mandato que Thatcher radicalizou sua debate que se tornou, aos poucos, fator
de adesão à CEE e um referendo no ano keynesianas. Thatcher só colocou em crítica ao projeto europeu. Quando o de criação de partidos, de concorrência
seguinte à sua chegada ao número 10 da prática esse programa após sua reelei- princípio de um modelo social euro- entre os atores políticos e de dissensões
Downing Street para ratificar os resulta- ção, em 1983, mas a vitória sobre James peu promovido pela Comissão Euro- internas. No período mais recente, o
dos. O primeiro-ministro Harold Wilson Callaghan provocou outros abalos polí- peia – presidida na época por Jacques Brexit mergulhou a esquerda trabalhista
obteve apenas algumas concessões: em ticos, que iriam, outra vez, reconfigurar Delors – obteve a adesão dos sindicatos na confusão. Desorientada por um diri-
abril de 1975, 145 parlamentares traba- o campo progressista. britânicos, Thatcher comemorou uma gente radical e conhecido por suas pos-
lhistas se recusaram a segui-lo e a rati- Por um lado, a esquerda voltou a do- Europa ainda mais liberal e intergo- turas eurocéticas, Jeremy Corbyn, a base
ficar o acordo submetido à Câmara dos minar os trabalhistas: a conferência de vernamental em seu famoso discurso militante jovem e urbana interpretou o
Comuns (apenas 138 concordaram). Blackpool, no outono de 1980, adotou de Bruges, em 1988, que terminou com voto leave como uma escolha xenofóbi-
O governo só levou a melhor graças ao uma moção favorável à saída da CEE, e uma crítica virulenta do federalismo e ca, que conquistou os eleitores do nor-
apoio dos conservadores e dos liberais. Michael Foot, que havia apoiado essa ini- da tendência tecnocrática de Bruxelas. te da Inglaterra atraídos para o Partido
ciativa, assumiu a liderança do partido Com isso, chegou a provocar a indig- Trabalhista até mudarem de ideia em
APAGAMENTO DA em novembro do mesmo ano. Em répli- nação de vários membros importantes 2019, seduzidos pelos discursos de Boris
DIVISÃO DIREITA-ESQUERDA ca, três figuras de destaque da direita tra- de seu governo, como os pró-europeus Johnson.9 Entre os conservadores, essa
“Você acha que o Reino Unido deve per- balhista, David Owen, William Rodgers e Geoffrey Howe e Michael Heseltine. eleição resultou na expulsão dos últimos
manecer na Comunidade Europeia?” O Shirley Williams, publicaram uma carta Essas dissensões internas favoreceram deputados pró-europeus e na escolha
referendo ocorreu em 5 de junho de 1975. aberta no Guardian protestando contra a sua queda, em novembro de 1990. de recém-eleitos inteiramente compro-
A National Referendum Campaign (NRC) moção anti-CEE; reforçados pelo ex-mi- Seu ministro da Economia, John Ma- metidos com a causa.
– que reunia a maior parte dos trabalhis- nistro da Fazenda trabalhista Roy Jen- jor, sucedeu-lhe. Foi ele quem assinou O Brexit parece agora consensual, por
tas, um punhado de conservadores ainda kins, constituíram o “grupo dos quatro” o tratado da União Europeia em Maas- aprovação ou resignação – tanto que, em
próximos do ex-deputado Enoch Powell, e assinaram, em 25 de janeiro de 1981, a tricht, em 7 de fevereiro de 1992. Contu- 2023, a Europa já não constitui um pon-
figura carismática anti-imigração da ala “Declaração de Limehouse”, oficializan- do, os partidários da visão thatcheriana to de debate na política britânica.10 To-
mais à direita, bom número de sindica- do a criação do Partido Social-Democra- fizeram de tudo para anular sua ratifica- davia, as tensões identitárias observadas
tos e os partidos nacionalistas escocês e ta (PSD); catorze deputados da Câmara ção no Parlamento. Uma parte do país se hoje em torno da questão migratória ou
galês – defendia o “não”, contra a Britain dos Comuns, entre os quais um conser- mobilizou então contra a Europa, causa do futuro da Escócia e da Irlanda do Nor-
in Europe, que contava com a maioria vador, aderiram à nova agremiação, par- que ganhou a simpatia da imprensa po- te são suas ramificações persistentes. 
dos conservadores, os liberais e a direita tilhando sobretudo seus laços com a Eu- pular, principalmente dos periódicos de
do partido trabalhista. O apoio dos em- ropa comunitária e com a Organização Rupert Murdoch, e de dezenas de asso- *Agnès Alexandre-Collier é professora
presários e da imprensa contribuiu para do Tratado do Atlântico Norte (Otan). ciações, algumas das quais beneficiárias de Civilização Britânica Contemporânea da
a esmagadora vitória do “sim”: 67%. Ao apresentarem candidatos nas elei- do apoio de empresários como James Universidade de Bourgogne (França).
Essa opção pela Europa, combinada ções de junho de 1983, eles contribuíram Goldsmith, bilionário franco-britânico.
1   Citados por Dominic Sandbrook, State of
com a degradação da conjuntura, modi- para a dolorosa derrota dos trabalhistas. O Partido pela Independência do Rei- Emergency. The Way We Were: Britain, 1970-
ficou num primeiro momento a relação Todavia, esse revés se deveu principal- no Unido (Ukip) nasceu no ano seguinte. 1974 [Estado de emergência. O modo como
de forças no seio do campo progressis- mente ao prestígio conquistado por Apresentou candidatos ao Parlamento éramos: Grã-Bretanha, 1970-1974], Penguin,
Londres, 2010.
ta. A partir do mês de abril, o ministro Margaret Thatcher por causa de sua vi- europeu e se tornou, vinte anos depois, o 2   Jim Tomlinson, The Politics of Decline. Unders-
da Fazenda, Denis Healey, precisou pôr tória na Guerra das Malvinas contra a maior partido britânico em Estrasburgo. tanding Post-War Britain [A política do declínio.
em ação um plano de austeridade. Em Argentina, em 1982. Malgrado uma si- Enquanto os trabalhistas Tony Blair Compreendendo a Grã-Bretanha do pós-guer-
ra], Longman, Harlow, 2000.
10 de junho, o primeiro-ministro anun- tuação econômica particularmente de- (1997-2008) e depois Gordon Brown 3   Ver Alexander Zevin, “Malgré le Brexit, introu-
ciou a substituição do excessivamente sastrosa – com mais de 3 milhões de de- (2008-2010) cediam à Europa – sem vable souveraineté britannique” [Apesar do
intervencionista ministro da Indústria, sempregados e uma taxa de desemprego entusiasmo e principalmente sem ado- Brexit, não se encontra a soberania britânica],
Le Monde Diplomatique, fev. 2023.
Anthony Benn, pelo mais prudente Eric duas vezes superior à média observada tar sua moeda única –, a batalha de 4   Ver Anthony Benn, “Quand la gauche travailliste
Varley. O remanejamento aconteceu al- nos outros Estados da CEE –, o êxito des- Maastricht constituía o ponto de parti- dénonçait Bruxelles” [Quando a esquerda tra-
guns dias depois da derrota do “não”, do sa intervenção militar lhe conferiu uma da de um movimento que não deixaria balhista denunciava Bruxelas], Manière de Voir,
n.153, jun.-jul. 2017.
qual Benn fora um dos mais fervorosos vantagem decisiva sobre Michael Foot, de crescer à direita.7 Quando o Partido 5   J. Denis Derbyshire e Ian Derbyshire, Politics
defensores.4 Isso provocou uma revi- que insistia no desarmamento nuclear Conservador voltou ao poder, em 2010, in Britain. From Callaghan to Thatcher [Política
ravolta econômica: os trabalhistas não unilateral e era simpático aos militantes o novo primeiro-ministro, David Came- na Grã-Bretanha. De Callaghan a Thatcher],
Chambers, Edimburgo, 1990.
mais impuseram a planificação ao pa- trotskistas. Neil Kinnock tomou o lugar ron, precisou enfrentar uma série de re- 6   “Euroscepticism under Margaret Thatcher and
tronato e conclamaram os sindicatos à de Foot na conferência de Brighton, em voltas eurocéticas sem precedentes. Elas David Cameron: From Theory to Practice” [Eu-
moderação salarial.5 Em 1976, quando outubro de 1983. E, sob essa nova dire- o obrigaram a prometer organizar, em roceticismo sob Margaret Thatcher e David Ca-
meron: da teoria à prática], L’Observatoire de la
Wilson se demitiu – por razões de saú- ção, o Partido Trabalhista foi aos poucos caso de reeleição em maio de 2015, um Société Britannique, n.17, 2015.
de –, seu sucessor, James Callaghan, era se aliando à causa europeia. referendo sobre a permanência do Rei- 7   La Grande-Bretagne eurosceptique? L’Europe
o ministro das Relações Exteriores que, A direita se distanciou progressiva- no Unido na União Europeia. Sabemos dans le débat politique britannique [A Grã-Bre-
tanha eurocética? A Europa no debate político
no ano anterior, renegociara por baixo mente dela. Sobretudo retórico nos anos o desfecho desse plebiscito, após uma britânico], Éditions du Temps, 2002.
as condições de adesão à CEE. O novo 1980, esse distanciamento se acentuou campanha que apresentou a imagem 8   Para mais detalhes sobre a polarização pós-
primeiro-ministro marginalizou os de- na década seguinte e abalou as relações incongruente do desaparecimento da -Brexit, ver Pauline Schnapper e Emmanuel
Avril, Où va le Royaume-Uni? Le Brexit et
fensores do “não” no seio de seu governo de força no seio do campo conservador. divisão esquerda-direita em benefício après [Para onde vai o Reino Unido? O Brexit
e empenhou-se em perseguir a política Em seu primeiro mandato, Margaret de uma polarização entre remainders e depois], Paris, Odile Jacob, 2019; Maria So-
do rigor. Chegou mesmo a endurecê-la a Thatcher apenas deu continuidade a seus (os que querem ficar) e leavers (os que bolewska e Robert Ford, Brexitland Identity.
Diversity and the Reshaping of British Politics
partir de 1976, por ordem do FMI, para o predecessores trabalhistas – Wilson e em querem sair) e de um Partido Conserva- [Identidade da Brexitlândia. Diversidade e re-
qual seu governo apelara. A ruptura com seguida Callaghan, europeus moderados dor cindido em dois campos mais hostis formulação da política britânica], Cambridge,
a esquerda de seu partido se consumava. e preocupados principalmente em con- um para com o outro do que os tories Cambridge University Press, 2020.
9   Ver Chris Bickerton, “Pourquoi le Labour a per-
Três anos depois, os conservadores, seguir diminuir a contribuição britânica para com os trabalhistas.8 du” [Por que o Partido Trabalhista perdeu], Le
liderados por Margaret Thatcher, foram ao orçamento comunitário. Tendo obti- Monde Diplomatique, fev. 2020.
vencedores. A nova primeira-ministra se do em 1984 uma redução de 60% nessa TENSÕES IDENTITÁRIAS 10  Ver Marc Lenormand, “L’été indien du mécon-
tentement britannique” [O verão indiano do
acomodou a uma Europa que via como cota-parte britânica, ela concordou em Em 1973, a Europa se impôs no deba- descontentamento britânico], Le Monde Diplo-
um vasto mercado e uma promessa de assinar o Ato Único de 1986, que per- te nacional e ali ficou. Ela agitava duas matique, nov. 2020.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

HÁ CINQUENTA ANOS NO CHILE

Resistência e morte de uma


geração de intelectuais
No fatídico aniversário de cinquenta anos do golpe de Estado contra o governo
de Salvador Allende, este texto descreve a repressão sofrida pelas Ciências
Sociais no Chile e, sobretudo, as ações de solidariedade internacional, fruto
de relações pessoais e acadêmicas estabelecidas nas décadas pretéritas

POR RICARDO COLTURATO FESTI*

N
o dia 15 de setembro de 1973, sob chados os cursos de Sociologia e as insti- corpo do poeta estava sendo velado. O
a tensão e a emoção das últimas tuições de pesquisa e ensino de Ciências local tinha sido saqueado após o golpe.
jornadas vividas no Chile, um Sociais no Chile. Por fim, pedia que a Os vidros estavam quebrados, os móveis
grupo de acadêmicos se reuniu violência cessasse e que fossem emitidos haviam sido roubados e os livros tinham
para avaliar a situação política e o futu- salvo-condutos aos que se encontravam sido queimados. Diante desse cenário, o
ro incerto de sua vida, sua carreira e seu asilados nas embaixadas estrangeiras de francês escreveu que a morte do poeta
país.1 O local do encontro foi a sede da Santiago, principalmente os 250 que vi- e sua presença nessa casa brutalizada
Faculdade Latino-Americana de Ciên- viam em péssimas condições dentro do protestavam contra a ditadura.5
cias Sociais (Flacso), instituição repre- prédio da Embaixada do Panamá.3 Três dias após regressar a Paris, numa
sentativa de um dos mais ousados pro- Essa rede de intelectuais atuava não carta enviada para diversos pesquisa-
jetos acadêmicos de nível internacional apenas em defesa da vida dos acadêmi- dores, professores e instituições de en-
impulsionados na região e que contou, cos e de seus familiares, mas também sino e pesquisa da França e da Europa,
desde sua criação, em 1957, com fortís- produzindo documentos que denun- Touraine apontava como objetivo prin-
simo apoio e contribuição de colegas e ciavam a situação de repressão, prisões cipal do recém-criado comitê “proteger,
instituições europeias e norte-america- e assassinatos na nova ditadura militar na medida do possível, nossos colegas
nas. Nessa reunião, decidiu-se pela estabelecida na América Latina. Essas que estão no Chile. As organizações de
criação do Comité International des iniciativas enfureciam o regime de Pino- pesquisa podem estabelecer e reforçar
Sciences Sociales pour le Chili, recor- chet, que buscava, desde o dia do golpe, laços institucionais com certos colegas
rendo-se, dessa forma, a uma rede so- desmontar as instituições acadêmicas [...]. Para os que devem deixar o Chile,
cial e acadêmica que havia se estabele- classificadas como “subversivas”. Em o objetivo de nosso comitê é reunir, em
cido ao longo de mais de quinze anos dezembro de 1973, Alider Cragnolini, já primeiro lugar, dinheiro para cobrir os
por intermédio da Flacso e outras insti- exilado em Córdoba, na Argentina, en- gastos de transporte e de instalação e,
tuições. Nesse momento também se de- viou uma carta a Touraine com o recorte em seguida, obter postos de trabalho, de
cidiu que a solidariedade internacional de um jornal chileno em que se acusava professores e pesquisadores”.6
aos acadêmicos atingidos pelo golpe de a Flacso de “agir contra o Chile”, pois es- A ação dessa rede de intelectuais foi
Pinochet seria centralizada por Alain taria embarcando em uma intensa cam- muito mais rápida e decisiva que o po-
Touraine e sua equipe do Centre d’Étu- panha de desprestígio contra o país des- sicionamento tomado pelos organismos
des des Mouvements Sociaux (Cems- de o exterior, sendo o sociólogo francês internacionais, em particular a Unesco.
-França). Assim o sociólogo francês se o encarregado desse movimento. No dia 21 de setembro, dez dias após o
recorda desse período: “No ano do gol- A escolha de Touraine como princi- golpe, Jacques Le Goff, na condição de A comunicação do comitê formado
pe, eu era professor da Flacso. Logo pal expoente desse movimento inter- presidente da VI Section da École Prati- sob a direção de Touraine era precária e
após a queda de Allende, nos reunimos nacional não foi fortuita. O sociólogo que des Hautes Études (Ephe), enviou realizada essencialmente por cartas, al-
com Ricardo Lagos na própria sede da nutria profundas relações pessoais uma carta ao diretor-geral da Unesco, gumas enviadas com o selo diplomático
Flacso e decidimos criar um Comitê de e acadêmicas com a América Latina, René Maheu, manifestando preocupa- para que não fossem detidas pela polícia
Solidariedade. Na França, minha espo- particularmente com o Chile e o Bra- ções suas e de seus colegas com as ins- chilena. Além das cartas vindas do Chi-
sa e eu organizamos a ajuda aos chile- sil, desde que aterrissou pela primeira tituições de ensino e pesquisa do Chile. le solicitando ajuda na fuga de alguém
nos refugiados. O problema era sempre vez em Santiago, em agosto de 1957, Este respondeu em 3 de outubro de 1973 ou de famílias inteiras e na obtenção de
encontrar um posto de trabalho, e na- para ajudar no desenvolvimento de afirmando que a Flacso funcionava nor- um posto de trabalho ou simplesmente
quela época era mais fácil que hoje”.2 uma pesquisa no campo da Sociologia malmente e que os professores e estu- informando a situação política do país
Durante a 2ª Assembleia Geral do Industrial.4 Além disso, ele foi testemu- dantes que haviam sido presos no Estádio ou de uma pessoa em particular, havia
Consejo Europeo de Investigaciones nha ocular dos acontecimentos políti- Nacional estavam em liberdade.7 Nessa também uma forte correspondência en-
Sociales sobre América Latina (Ceisal), cos dos últimos meses do governo Al- mensagem, complementou que não po- tre intelectuais e outros comitês, grupos
um memorandum produzido pela Flac- lende, entre julho e setembro de 1973. deria descrever como estavam as demais e instituições solidárias às vítimas das
so e apresentado no dia 27 de setembro Ciente de que estava diante de um instituições, pois não tinham vínculos ditaduras latino-americanas.9
de 1973 pela brasileira Lourdes Sola, acontecimento histórico sem preceden- com a Unesco e a ONU. Descontente Para ajudar as pessoas no Chile,10 a
nomeada representante da instituição tes, resolveu registrar seus pensamentos com o posicionamento aparentemente rede internacional estabelecida adotou
chilena no encontro, pedia que todos os num diário. O último registro foi rea- passivo e neutro da Unesco, o presidente várias estratégias de ação, desde enca-
esforços de ajuda fossem centralizados lizado em 24 de setembro, sob o título da International Sociological Association minhar todo auxílio possível (financei-
pela equipe de Alain Touraine, vinculado “Morte de Neruda, a repressão intelec- (ISA), Guido Martinotti, escreveu para a ro e material) àqueles que desejavam
ao Musée des Sciences de l’Homme, em tual, adeus”. Nesse dia, Touraine pas- instituição em 12 de fevereiro de 1974 pe- permanecer no Chile até ajudar na fuga
Paris. Solicitava também que fosse reali- sou na casa de Pablo Neruda, em Cerro dindo que ela tomasse uma atitude mais dos que assim desejassem ou necessi-
zada pressão política para não serem fe- San Cristóbal, Santiago do Chile, onde o “enérgica” quanto ao Chile.8 tassem. Diante da escalada repressiva,
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 19

políticos da América Latina. Trocavam- exílio, estava Manuel Antonio Garretón.


-se informações sobre os perseguidos Ele era decano da Universidade Católi-
© Vitor Flynn
e buscavam-se formas de melhor aju- ca do Chile, diretor do renomado Cen-
dá-los. Uma dessas articulações dava- tro de Estudios de la Realidad Nacional
-se com a Amnesty International. Nos (Ceren) e editor da principal revista de
arquivos do comitê encontramos um Sociologia do país, a Cuadernos de la
comunicado da seção francesa dessa Realidad Nacional. O desenvolvimen-
organização, datado de 19 de novem- to dos fatos, ao longo do dia 11 de se-
bro de 1974, relatando a prisão de oito tembro de 1973, lhe deu a certeza de
franceses pela Dina (polícia política chi- que não havia mais esperança ao pro-
lena). Sete tinham sido libertados, mas jeto que sua geração havia se dedicado
um oitavo, Alphonse René Chanfreau, a construir. Ele foi até a Universidade
franco-chileno, estava desaparecido. Católica, onde escutou o bombardeio
Segundo os testemunhos de sua esposa de La Moneda, e rapidamente tratou de
e amigos, ele tinha sido levado preso de “limpar” os documentos que, ainda que
seu domicílio, em plena noite, em 31 de só acadêmicos, pudessem dar algum
julho de 1974. Vários prisioneiros tam- pretexto para perseguições políticas.
bém relataram ter visto Chanfreau no Escondeu-se e, a princípio, desejava
fim de outubro na sede da Academia de permanecer no Chile. Não sendo possí-
Guerra das Forças Armadas chilena, em vel, exilou-se, como muitos outros.
Santiago. Touraine escreveu para Ro- As ações em prol dos acadêmicos, dos
land Husson, funcionário do Consulado militantes e seus familiares, como foi o
Francês no Chile, pedindo ajuda para caso do comitê coordenado por Tou-
encontrar Chanfreau. Ainda que avalias- raine, são exemplares de tempos em
se difícil encontrá-lo vivo, emitiu uma que a solidariedade se sobrepunha às
carta atestando que o jovem tinha sido mesquinhas competições acadêmicas.
convidado a participar de pesquisas de Muitos foram salvos por conta dessas
psicologia social no quadro da École des ações, dando continuidade a diferen-
Hautes Études en Sciences Sociales.12 tes trajetórias político-acadêmicas. As
Chanfreau segue sendo um dos muitos ditaduras latino-americanas, ainda que
desaparecidos políticos desse período. tenham tentado, não conseguiram in-
terromper o ciclo de pensamento críti-
SOCIOLOGIA ELEITA co iniciado em meados do século pas-
INIMIGA DO ESTADO sado e do qual ainda hoje, de alguma
Naquela reunião do dia 15 de setembro forma, seguimos herdeiros. 
na Flacso, logo após o golpe de Pino-
chet, era evidente a todos os presentes Ricardo Colturato Festi é professor de
que os atentados protagonizados pela Sociologia da Universidade de Brasília
Junta Militar no Chile tinham um grau (UnB). Autor do livro As origens da sociolo-
de repressão muito maior e mais fas- gia do trabalho: percursos cruzados entre
cista que os outros ocorridos até então Brasil e França (Boitempo, 2023).
na região. O Palácio de La Moneda, sede
da Presidência da República, havia sido
1   E ste texto é resultado de pesquisa realizada
bombardeado e seu presidente “assassi- em 2017 no Fundo Alain Touraine dos arquivos
nado”. Em seguida, o Congresso Nacio- depositados no Institut Mémoires de l’Édition
nal foi fechado e listas de pessoas pro- Contemporaine (Imec), França. Todas as cita-
ções neste texto do Imec-France são documen-
curadas foram divulgadas pelos canais tos desse fundo.
de televisão. Milhares de pessoas en- 2   C f. Alain Touraine, entrevista realizada em 22 de
contravam-se encarceradas no Estádio fevereiro de 2017, Paris, França.
3   C f. Ceisal, 1973. TRN15. Imec-France.
muitas dessas saídas para o exílio de- oferecer minha modesta colaboração”.11 do Chile e em outros lugares pelo país, 4   Ver Ricardo Festi, As origens da sociologia do
pendiam de um salvo-conduto emitido Ele e Franz Hinkelammert tinham sido submetidas a longas sessões de tortura. trabalho: percursos cruzados entre Brasil e
pela Junta Militar no poder. Nesse caso, contratados pelo Max Planck Institute, Muitas foram assassinadas. França, Boitempo, São Paulo, 2023.
5   Alain Touraine, Vie et mort du Chili populaire :
o comitê conseguia, de alguém ou de na Alemanha, antes do golpe de 1973, Além desse cenário de sufocante re- journal sociologique [Vida e morte do Chile
alguma instituição, a emissão de car- o que lhes permitia ajudar na fuga de pressão aos militantes, estava claro que popular: jornal sociológico], Éditions du Seuil,
tas-convite para eventos acadêmicos vários colegas que se encontravam em as Ciências Sociais, em particular a So- Paris, jul.-set. 1973.
6   C f. Carta de Alain Touraine, 28 set. 1973. Co-
ou de ofertas de emprego na Europa ou perigo ou sem emprego na América ciologia, tinham sido eleitas inimigas de mitê International des Sciences Sociales pour
na América do Norte, certificando que Latina. Nessa carta, ressaltou sua preo- Estado. Começava então a maior perse- le Chili. TRN15. Imec-France.
a pessoa havia recebido uma bolsa ou cupação com a situação de Ruy Mauro guição já feita por parte de um Estado 7   N o dia do golpe, vários estudantes e professo-
res da Flacso foram presos e levados para o
estava inscrita em determinada insti- Marini, que se encontrava no Panamá, na América Latina às Ciências Sociais, Estádio Nacional do Chile e liberados alguns
tuição como estudante ou pesquisador. como muitos outros intelectuais, sem ao mesmo tempo que se colocava fim ao dias depois (Cf. Carta de Jacques Le Goff ao
Com essas cartas, aqueles que estavam saber qual destino seguir. Gunder Frank mais longo ciclo de democracias liberais diretor-geral da Unesco, de 21 setembro de
1973. TRN15. Imec-France).
acometidos pela repressão tinham em desejava levar o brasileiro para a Alema- da região e a um projeto de pensamento 8   Cf. Unesco. TRN15. Imec-France.
mãos um documento “jurídico” e de nha e, depois, conseguir trabalho para social latino-americano. Os institutos de 9   O comitê também recebeu e atendeu solicita-
“pressão internacional”. ele em alguma universidade da França Sociologia e Ciências Sociais, vinculados ções de profissionais de áreas como medicina,
psiquiatria, engenharia, entre muitas outras.
Outro exemplo dessa rede interna- por meio de Touraine. Posteriormente, às universidades, foram suprimidos ou 10  Nos documentos encontrados no Fundo
cional pode ser observado na carta que visto que Marini encontrou um posto de reduzidos praticamente à inatividade. Alain Touraine do Imec-France há centenas
Andre Gunder Frank escreveu para Tou- trabalho no México, o comitê passou a Os acadêmicos que ali trabalhavam fo- de cartas pedindo ajuda a centenas de pes-
soas. Em razão do limite deste artigo, não
raine em 25 de outubro de 1973: “Soube buscar ajuda para outro brasileiro com ram, em sua maioria, expulsos das insti- será possível citar todas as pessoas, muitas
que está coordenando a mediação em dificuldades, o sociólogo Eder Sader. tuições, e as Ciências Sociais passaram a delas personalidades conhecidas na vida
diversas instituições europeias dos com- A articulação também ocorria entre o ser consideradas subversivas. acadêmica ou política.
11  Cf. Ruy Mauro Marini. TRT13. Imec-France.
panheiros que têm saído ou que, espera- comitê e diversas outras organizações Entre os sociólogos chilenos que en- 12  Cf. Alphonse René Chanfreau. TRN12. Imec-
mos, consigam sair do Chile. Quero lhe de ajuda aos exilados e perseguidos frentaram o golpe e, posteriormente, o -France.
20 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

MALI, BURKINA FASO, GUINÉ E NÍGER

Por que todos


esses golpes?
“Muitos golpes de Estado”, lamentou a ministra
senegalesa das Relações Exteriores, Aïssata Tall Sall.
O putsch de 26 de julho no Níger, depois daqueles no
Mali, Burkina Faso e Guiné, suscita uma preocupação
inédita. O Níger é decisivo na luta contra o jihadismo
no Sahel. Porém, o golpe também indica uma mudança
na relação da região com a democracia e o Ocidente

POR ANNE-CÉCILE ROBERT*

“Muitos golpes de Estado” Aissata Tall Sall, ministra do exterior do Senegal

“E
pidemia”, “contágio”... Os crise do imperialismo francês – apon- fica as recomposições geopolíticas que e pelo carreirismo, não demonstraram
termos médicos apontam tada, entre outros, pelo economista se- estão ocorrendo em escala mundial: o eficácia nem profissionalismo; dão tes-
para a angústia e certo desa- negalês Ndongo Samba Sylla – explicam “neossoberanismo” dos golpistas reflete a temunho disso os erros patéticos na luta
lento. Isso porque a sucessão por si sós os acontecimentos recentes. afirmação de outros Estados que tentam contra o terrorismo de que eles regular-
de rupturas institucionais deixa os es- A sucessão de golpes de Estado no conduzir uma política externa autônoma mente se declaram culpados. Além dis-
pecialistas perturbados: seis golpes de Sahel coloca sobretudo em evidência o (Turquia, Arábia Saudita, África do Sul so, a duração da “transição”, que os gol-
Estado na África do Sahel desde 2020, fim de duas sequências: a dos dez últi- etc.); a emergência das juntas é o último pistas pretendem dirigir no sentido do
em quatro países – dois no Mali, dois mos anos, no decorrer dos quais a con- avatar da crise das democracias e das ten- retorno dos civis ao poder, permanece
em Burkina Faso, um na Guiné e outro dução da crise de segurança que assola dências autoritárias observadas em nível incerta na maior parte dos casos.
no Níger. Como analisar tal encadea- a sub-região foi internacionalizada sob mundial; o fracasso da gestão internacio- No entanto, como democratizar Esta-
mento? Nos casos malinês e burquinês, a batuta da França e das Nações Unidas nal da crise de segurança no Sahel traduz dos a tal ponto dependentes do exterior?
a expansão do terrorismo e tensões po- – os Estados do Sahel “retomam a ini- a crise global do multilateralismo; e a re- Perto de 55% do orçamento da República
líticas latentes levaram o Exército a ciativa”, constata Jean-Hervé Jezequel, jeição da França na África, bem como o do Níger provém de recursos externos.6
agir. No Níger, porém, o número de ata- diretor para o Sahel do International aumento de poder dos Estados Unidos Pobreza e desigualdade na repartição de
ques jihadistas havia diminuído sensi- Crisis Group; e aquela, mais longa, de (muito ativos no Níger desde o golpe), da riquezas fragilizam permanentemente o
velmente no decorrer dos últimos me- democratização, aberta em 1991 pelo China e da Rússia, ilustra a reconfigura- país. Associado à Argélia e à Nigéria na
ses. E a Guiné não enfrenta diretamente fim da Guerra Fria. Nas palavras do ção das relações internacionais.4 construção do gasoduto transaariano
a ameaça fundamentalista: os soldados cientista político senegalês Gilles Yabi, Nesse contexto geopolítico mutável, o (TSGP), que servirá o sul da Europa pelo
rebeldes destituíram Alpha Condé, que trata-se de um verdadeiro “refluxo auto- golpe é uma ferramenta de ajuste à crise Mediterrâneo – abrindo perspectivas
havia usurpado um terceiro mandato, ritário” que não poupa a África não fran- do Estado, tanto quanto à da democra- financeiras que aguçam apetites, entre
inconstitucional, em 2021. cófona (repressão sangrenta na Etiópia, cia. Ao concentrarem o poder em suas eles os dos militares –, o país encontra-
Na opinião do pesquisador Yvan Gui- crise pós-eleitoral sem fim no Quênia, mãos, os militares pretendem atenuar -se na 189a posição em 191 em termos
chaoua, professor da Brussels School guerra civil no Sudão). Teme-se de ago- tensões e contradições, pelo menos a de desenvolvimento humano7 e ressen-
of International Studies, para além de ra em diante a constituição na África curto prazo. Na África, há muito que os te-se da crise econômica subsequente à
suas diferenças, esses golpes de Estado Ocidental de um “cartel” de motins, exércitos pretendem romper situações pandemia de Covid e às sanções contra
seriam “populistas”.1 O cientista político de uma “aliança golpista cáqui”, o que de crise exacerbadas pela debilidade a Rússia. Embora o Níger seja o terceiro
camaronês Achille Mbembe os qualifica constituiria um “ponto de inflexão” na estrutural das instituições e dos pró- produtor mundial de urânio, 85% de sua
como “neossoberanistas”.2 Com efeito, sub-região, segundo o senegalês Bakary prios Estados. Na zona do Sahel, a par- população não tem acesso a eletricida-
todos os golpistas denunciam a inge- Sambe, diretor do Timbuktu Institute.3 tir de agora, a declaração apresenta-se de. Apesar do voluntarismo exibido na
rência estrangeira, tanto sua ilegitimi- O fim, concomitante e abrupto, desses igualmente como uma resposta a uma luta contra a prevaricação: o presidente
dade quanto sua ineficácia. “Não con- ciclos conseguiu deixar estupefatos os ameaça na esfera da segurança que os Bazoum ordenara a prisão, por desvio de
tar senão conosco”, afirmava o capitão observadores dessa sucessão de golpes. poderes civis não conseguem debelar. dinheiro público, de Ibrahim Moussa,
Ibrahim Traoré, presidente de transição Mais ainda: no Níger, o golpe de 28 de “Apoiamos, tapando o nariz, os golpes conhecido como “Ibou Karadjé”, ex-che-
de Burkina Faso, em um discurso em 21 julho último comporta uma dimensão de Estado no Mali, na Guiné e em Burki- fe do serviço de transportes da presidên-
de outubro de 2022. “Nosso povo decidiu oportunista, no mínimo desconcertan- na [Faso] porque, em certa medida, eles cia. Tendo como pano de fundo a desi-
retomar seu destino nas próprias mãos e te. Enquanto buscavam preservar seus se justificavam. [Os dirigentes] não con- gualdade na distribuição de riquezas,
construir sua autonomia com parceiros interesses corporativistas, os oficiais re- trolavam mais nada”,5 reconhece com a luta contra a corrupção e o enfrenta-
mais confiáveis”, indicava o coronel Sa- beldes imitaram um movimento geral essas palavras o escritor togolês Tierno mento do irredentismo (mosaico étnico,
dio Camara, ministro da Defesa do Mali, que afeta tanto a sub-região como o resto Monenembo. O paradoxo se prende ao o país é continuamente fragilizado pelo
em 13 de agosto último, em Moscou. No do planeta. A desestabilização do Sahel fato de que os exércitos da sub-região, autonomismo tuaregue), o Níger já ha-
entanto, nem a influência russa nem a aparece como um espelho que ampli- eles próprios afetados pela corrupção via conhecido quatro golpes de Estado
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 21

© Tasos Katopodis/Reuters
do Estado Islâmico (OEI) após sua der- cumprido sua missão de interposição na declarou. “A União Africana deve parar
rota na Síria e no Iraque em 2019, ela re- Serra Leoa, mas recebera censuras por de condenar os africanos que decidem
pousa no atual momento em impulsos execuções extrajudiciais. Diga-se que a se bater contra seus próprios regimes
locais. Onde quer que se instalem, por Cedeao jamais fez pressão sobre os che- fantoches do Ocidente.” Se cultiva a
meio de métodos acelerados e atroci- fes de Estado da sub-região tentados por comparação com Thomas Sankara, mi-
dades, os jihadistas podem restabele- um terceiro mandato inconstitucional litar revolucionário e presidente assassi-
cer certa ordem sobre os escombros do (Alassane Ouattara na Costa do Marfim, nado de Burkina Faso, a ponto de usar
Estado. Oferecem justiça, protegem os Alpha Condé na Guiné etc.). uma boina vermelha, ele não formulou,
comerciantes, decidem sobre conflitos até o momento, uma crítica elaborada
fundiários, abrem escolas no âmbito “REGIMES FANTOCHES da divisão internacional do trabalho,
discriminatório da xaria para com as DO OCIDENTE” que mantém o continente em posição
mulheres. “A governança jihadista re- Ela “fracassou em duas coisas impor- subalterna. No Níger, o primeiro-minis-
pousa sobre dois pilares indissociáveis: tantes: envolver-se pouco na preven- tro nomeado pelo CNSP em 7 de agosto,
o terror e a ausência dramática de ser- ção de golpes de Estado (Guiné, Mali) Lamine Zeine, é economista, represen-
viços públicos”, explica o antropólogo e na resposta ao desafio da segurança”, tante de seu país no Banco Africano de
franco-nigeriano Jean-Pierre Olivier de confirma o jornalista centro-africano Desenvolvimento e artífice do diálogo
Sardan. “[Fornecer] às populações um Seidik Abba.14 O “despertar” atual da com as instituições financeiras interna-
serviço público de segurança efetivo organização prende-se ao risco de de- cionais nos anos 2000. Em tal condição,
e sustentável é então a prioridade ab- sestabilização regional e ao ativismo de ele defendeu as políticas que asfixiaram
soluta para investir simultaneamente seu presidente em exercício, o nigeria- os jovens Estados africanos. 
contra esses dois pilares.”9 no Bola Tinubu, motivado ao mesmo
Nessas condições, a abordagem cen- tempo por objetivos políticos internos *Anne-Cécile Robert é jornalista do Le
trada exclusivamente na segurança im- e pelo estatuto de potência continental Monde Diplomatique.
posta pela França não restabeleceu a de seu país. A ideia de uma intervenção
situação, apesar da eliminação de cen- militar, sempre delicada na região, divi- 1   France Culture, 10 ago. 2023.
2   Clarisse Juompan-Yakam, “Achille Mbembe:
tenas de terroristas desde 2014.10 A re- de profundamente o continente: à exce- ‘La critique de la Françafrique est devenue le
cusa obstinada de Paris a entender as ção do dirigente de Cabo Verde, aque- masque d’une indigence intellectuelle’” [Achille
consequências disso no Mali resultou les reunidos na Cedeao (amputada dos Mbembe: a crítica da Françáfrica tornou-se a
máscara de uma indigência intelectual], Jeune
apenas na exportação de sua política quatro países golpistas, suspensos) são Afrique, Paris, 9 ago. 2023.
no Níger, com o risco de desestabilizar favoráveis a ela, mas devem fazer frente 3   Oumar Kandé, “Situation au Niger, intervention
o país.11 Além disso, a presença prolon- a reticências internas (parlamentares, de la Cedeao, sécurité au Sahel: L’analyse de
Bakary Sambe de Timbuktu Institute” [Situação
desde a independência, em 1974, 1996, gada de exércitos estrangeiros cria uma da mídia); em 19 de agosto de 2023, a no Níger, intervenção da Cedeao, segurança
1999 e 2010, bem como uma tentativa economia paralela que desvia recursos União Africana contentou-se em “tomar no Sahel: a análise de Bakary Sambe, do Tim-
fracassada em 2021. e agrava as fraturas sociais locais. A ar- nota” da escolha da organização regio- buktu Institute], 11 ago. 2023. Disponível em:
www.leral.net.
rogância das potências estrangeiras – da nal, enquanto reafirmava sua preferên- 4   Ler “La guerre en Ukraine vue d’Afrique” [A
ADESÃO, MEDO OU FATALISMO? França, sobretudo –, que impõem suas cia por uma solução diplomática; as po- guerra na Ucrânia vista da África], Le Monde
Mesmo descontando-se a manipulação visões e seus métodos no terreno, sem tências vizinhas, notadamente a Argélia Diplomatique, fev. 2023.
5   Tierno Monenembo, “Au Sahel, la guerre froide
e a demagogia exacerbada pelas redes forçosamente obter resultados, alimen- e o Chade, guardavam reservas quanto a deviendra chaude” [No Sahel, a guerra fria vai se
sociais, o golpe mais recente – como ta o ressentimento dos Estados-Maiores isso. Toda intervenção militar comporta tornar quente], Le Point Afrique, 18 ago. 2023.
aqueles que ocorreram há pouco tem- africanos. Para além de suas responsa- riscos, sobretudo em zona civil: a popu- 6   “Rapport provisoire d’exécution du budget de
l’État à fin mars 2023” [Relatório provisório de
po em Burkina Faso e no Mali – parece bilidades próprias, coloniais e pós-co- lação de Niamey, cidade já alinhada à execução do orçamento do Estado no fim de
aceito pelas populações, se não por ade- loniais, a França simboliza uma ordem oposição sob Bazoum, mobiliza-se para março de 2023], Ministério das Finanças nige-
são, pelo menos por medo e fatalismo. internacional sem contato com a reali- defender o Conselho Nacional para a riano. Disponível em: www.finances.gouv.ne.
7   “Rapport sur le développement humain
Se as tentativas de manifestações de dade e ineficaz. Ela serve de contraste Salvaguarda da Pátria (CNSP), instaura- 2021/2022. Temps incertains, vies boulever-
apoio ao presidente Bazoum foram es- a golpistas cujo “neossoberanismo” se do pelos generais rebeldes. sées: façonner notre avenir dans un monde en
magadas no nascedouro – com diversas acomoda, como aconteceu no Mali, com Diante desses desafios, os militares mutation” [Relatório sobre o desenvolvimento
humano 2021/2022. Tempos incertos, vidas
dezenas de prisões, intimidação e vio- acordos leoninos com a China e conces- golpistas não formulam projetos polí- perturbadas: moldar nosso futuro em um mun-
lências exercidas contra jornalistas –, a sões generosas feitas à milícia Wagner.12 ticos claros, que vão além de slogans do em mutação], Programa das Nações Unidas
democracia promovida pelos dirigentes O fracasso da luta contra o terrorismo é patrióticos e de um pan-africanismo para o Desenvolvimento (Pnud), 2022.
8   Ler Gilles Yabi, “L’inconsistance du procès fait à la
e organizações regionais há décadas fi- atribuído à “comunidade internacional”, “pragmático”, segundo a expressão do démocratie après chaque coup d’État” [A incon-
cou, aos olhos das populações, aquém assimilada a um Ocidente cuja autorida- coronel guineense Mamadi Doumbuya. sistência do processo feito à democracia após
do prometido. O golpe de Niamey vem de moral vem murchando. Assim, o go- Ainda assim, fortes medidas simbólicas cada golpe de Estado], West African Think Tank,
11 ago. 2023. Disponível em: www.wathi.org.
provocando intensos debates na África verno malinês não tem medo de exigir foram adotadas: denúncia da conven- 9   Jean-Pierre Olivier de Sardan, “Une sécurisa-
acerca das virtudes e dos limites de um a partida da Missão Multidimensional ção fiscal com a França por Burkina tion au service du peuple est-elle possible au
“sistema político importado”.8 “É preciso Integrada de Estabilização das Nações Faso, injunção feita às empresas estran- Sahel?” [Uma política de segurança a serviço
do povo é possível no Sahel?], 15 mar. 2023.
absolutamente banir os golpes de nosso Unidas para o Mali (Minusma). A União geiras para construir uma sede social na Disponível em:www.wathi.org.
espaço”, resume na rede X (ex-Twitter) o Africana e a Comunidade Econômica Guiné pelas autoridades de Conacri, que 10  Ler Marc Antoine Pérouse de Montclos, Une
senegalês Alioune Tine, diretor do centro dos Estados da África Ocidental (Ce- convocam igualmente a transformação guerre perdue. La France au Sahel [Uma guer-
ra perdida. A França no Sahel], Jean-Claude
Africa Jom, “mas também banir as cau- deao) também sofrem da crise de legiti- de matérias-primas no próprio territó- Lattès, Paris, 2020.
sas políticas profundas que os geram, o midade das organizações multilaterais. rio. Os golpistas vão mesmo colocar os 11  Ler Rémi Carayol, “La France partie pour res-
mau governo, a corrupção e a impuni- No seio das sociedades da sub-região, recursos nacionais a serviço de seu país ter au Sahel” [A França dá a partida para per-
manecer no Sahel], Le Monde Diplomatique,
dade.” Os golpistas tendem a construir seus discursos marciais e as sanções que – e de seu “desenvolvimento endógeno”, mar. 2023.
uma legitimidade substituta apoiando- adotam são considerados artificiais e in- como afirmam Doumbouya e seu ho- 12  Ler Philippe Leymarie, “Le temps des merce-
-se nas ruas, notadamente nos jovens, justos, prejudicando mais as populações mólogo burquinês – ou servir a si pró- naires” [O tempo dos mercenários], Le Monde
Diplomatique, ago. 2023.
e buscando o suporte das autoridades que as juntas militares, como quando prios? O capitão Traoré, de Burkina Faso, 13  Hubert Kinkoh, “Why aren’t more African Union
religiosas e dos chefes tradicionais. colocam entraves ao comércio, fechan- fez-se notar, à margem da conferência decisions on security implemented?” [Por que
Se a expansão terrorista desestabiliza do fronteiras. A União Africana sempre de cúpula Rússia-África de São Peters- não são adotadas mais decisões da União Afri-
cana sobre segurança?], Institute for Security
os países do Sahel desde a intervenção se mostrou impotente diante das crises burgo em julho de 2023, ao censurar em Studies, 17 ago. 2023. Disponível em: https://
das forças da Organização do Tratado de segurança.13 Frequentemente citada termos crus os chefes de Estado africa- issafrica.org.
do Atlântico Norte (Otan) na Líbia em como exemplo, a Brigada de Vigilância nos por sua “mendicância”, enquanto a 14  “Le point sur la situation au Niger depuis deux
semaines” [Balanço sobre a situação no Níger
2011 e a disseminação, na região, de do Cessar-Fogo (Ecomog), criada pela África é rica em minérios. “Um escravo há duas semanas], Brut Afrique, 8 ago. 2023.
uma parte das tropas da Organização Cedeao e dirigida pela Nigéria, havia que não se rebela não merece piedade”, Disponível em: www.brut.media.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

NÃO HÁ RIVAIS PARA BIDEN NAS PRIMÁRIAS DEMOCRATAS

Réquiem da esquerda
norte-americana
Mesmo as 91 acusações a ele imputadas não parecem ser capazes de
impedir que Donald Trump seja o candidato republicano no próximo ano.
Do lado democrata, o presidente em exercício também é o grande favorito
nas primárias. Onde está a esquerda que, ao lado de Bernie Sanders,
parecia tão poderosa durante a última eleição?

POR SERGE HALIMI*

E
m 28 de fevereiro de 2020, Bernie campanha de Biden, contra 133 para a Inflation Reduction Act, um programa
Sanders, um socialista, podia aca- de Trump e 61 para a de Pete Buttigieg de transição energética (solar, eólica) de
lentar a expectativa de ser presi- (atual ministro dos Transportes)” e ao quase US$ 400 bilhões em dez anos. O
dente dos Estados Unidos. Ele era papel desempenhado nos últimos trin- caráter protecionista de algumas de suas
o favorito na disputa pela candidatura ta anos pelos democratas, arquitetos disposições serve ao propósito político
democrata, tinha recursos significati- dos tratados de livre comércio e pelos de sinalizar aos trabalhadores norte-a-
vos e contava com militantes motivados bons samaritanos de Wall Street. San- mericanos que, em vez de atormentá-
em cada um dos estados do país. Diante ders chega a dizer: “Eles deveriam ter -los, como nos tempos dos Clinton, para
dele estava o ex-vice-presidente Joe Bi- aprendido a lição, mas há muito pou- se adaptar à nova economia do conheci-
den, que acumulava um desempenho cos indícios de que seja o caso”. mento, o Estado está finalmente incenti-
ruim, não despertava nenhum entu- Segundo ele, o favorecimento cres- vando a criação de empregos industriais
siasmo e estava com dinheiro curto. cente de Trump nos círculos populares bem remunerados que lhes serão desti-
Vinte e quatro horas depois, o trem da decorre disso. Entre os brancos, segu- nados. Trump falou muito sobre isso; os
radicalidade progressista descarrilava na ramente, mas também entre latinos e democratas estão fazendo um pouco.
Carolina do Sul. Chegando muito atrás negros, “sobretudo entre os homens”. Não basta, afirma Sanders: “Coloca-
de Biden (48,4%), Sanders (19,9%) sofreu Inversamente, “os democratas obtive- mos um curativo sobre uma ferida aber-
um fracasso decisivo, parte do qual pode ram ganhos importantes nos subúrbios ta. A maioria das pessoas não vai notar,
ser imputado ao voto dos eleitores ne- prósperos que antes votavam nos re- muito menos lembrar, o que fizemos”.
gros em favor de seu concorrente. Pouco publicanos”. Essa nova sociologia elei- Isso parece muito o reconhecimento do
depois, todos os demais candidatos de- toral só pode prejudicar Sanders. Com fracasso da esquerda norte-americana,
mocratas moderados e conservadores se um assento democrata no Senado, ele agora relegada ao papel de força mili-
retiraram em favor do atual presidente. interpela o partido: “O Partido Demo- tante de apoio e de suplemento que faz
Em 2024, a primeira primária demo- crata quer ficar ao lado da classe tra- parte da alma do Partido Democrata, em
crata será realizada na Carolina do Sul, balhadora e lutar por mudanças ou ser particular nas redes sociais. O resultado
e não em New Hampshire, onde muitos controlado pelas grandes empresas e decepcionante de Sanders em 2020 per-
favoritos tropeçaram no passado. Biden, proteger os ricos?”. Sua resposta é ine- mite compreender esse impasse.
que pediu essa mudança, poderia dis- quívoca: “Na grande maioria dos esta-
pensar tal vantagem, pois já conquistou dos que visitei, o establishment demo- OS TRUQUES SUJOS
a indicação de seu partido. Sanders não crata não estava apenas satisfeito com DA MÍDIA CORPORATIVA
estará na corrida, tampouco os raros o status quo, mas também ferozmente De maneira muito lógica, o senador de
parlamentares rebeldes que o apoiaram determinado a preservá-lo”. Vermont atribui a maior parte de seu re-
em 2020. Já de partida, todos indicaram Aterrorizado com a ideia de que Trump, vés à hostilidade da mídia e do establish-
voto em favor do atual presidente. No “um mentiroso patológico que busca nos ment democrata. Entretanto, um candi-
campo da esquerda, a esperança e o en- dividir”, possa retornar à Casa Branca, dato anticapitalista deveria esperar des-
tusiasmo que marcaram a última corri- Sanders sente-se compelido a multipli- ses grupos a menor simpatia – ou mesmo
da à Casa Branca deram lugar à resigna- car as concessões em nome da unidade. honestidade – assim que ele deixe de ser seu partido?”; o The Wall Street Journal
ção do “voto de rejeição”. Ainda que uma No entanto, assim ele corre o risco de, ao inofensivo? Embora não explique tudo, a e a NBC elaboraram em conjunto uma
mobilização possa ocorrer no próximo apoiar o atual presidente mais de um ano lista de truques sujos reservados a San- pesquisa mostrando que os eleitores
ano, ela não será em favor de alguma antes das eleições, acabar sendo associa- ders na última eleição continua sendo preferiam claramente eleger uma lésbica
coisa, mas contra alguém. do a esse status quo que ele combate. estarrecedora: o diário The Washington com menos de 40 anos a – acompanhe
Em um livro publicado há apenas al- Como presidente da Comissão de As- Post afirmou que a Rússia estava traba- o raciocínio... – um candidato socialista,
guns meses, o próprio Sanders formula suntos Sociais do Senado, ele pôde ob- lhando para que ele vencesse as primá- vítima recente de um ataque cardíaco e
“a questão essencial”: “Como podería- servar de perto a que ponto os compro- rias porque certamente perderia depois com mais de 75 anos de idade.
mos apoiar um candidato infinitamen- missos igualitários assumidos por Biden para Trump, presumido queridinho do Se somarmos a isso o fato de que San-
te mais conservador do que eu sem antes de sua eleição foram enterrados Kremlin; quando Sanders venceu em Ne- ders possuía três imóveis ou que alguns
comprometer nossos princípios pro- pelo jogo de lobbies. Sobrevieram o pla- vada, um colunista da MSNBC compa- de seus militantes haviam sido acusados
gressistas ou desapontar nossos apoia- no de desenvolvimento de infraestrutu- rou sua vitória à “ocupação da França no de assédio, o veredicto era óbvio: os mo-
dores?”. Seu livro intitula-se It’s OK to ras de transportes, o teto das despesas verão de 1940”; um repórter da CBS per- derados no campo democrata tinham
be angry about capitalism1 e está cheio farmacêuticas não reembolsáveis para guntou à deputada de esquerda Alexan- de construir uma frente única para
de referências ao persistente poder dos idosos, o imposto mínimo de 15% sobre dria Ocasio-Cortez: “Como uma mulher derrotá-lo. A operação foi concluída
lobbies no Partido Democrata, aos “230 os lucros das multinacionais especia- negra como você pode apoiar um ho- em menos de três dias: candidatos que
bilionários [que] contribuíram para a lizadas em evasão fiscal e, sobretudo, o mem branco idoso e ver nele o futuro de haviam levantado milhões de dólares e
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 23

Quanto às “minorias”, os eleitores his- um eleitorado popular seduzido pelas


pânicos apoiaram Sanders, mas Biden invectivas de Trump contra a elite. Eles
venceu ainda mais amplamente entre são, por exemplo, menos propensos a
os afro-americanos. Ao cortejarem ati- aceitar a desmobilização da força po-
vistas do Black Lives Matter e colocar licial, à qual até mesmo organizações
em evidência o tema da justiça racial, afro-americanas como a National Asso-
os encarregados da campanha do se- ciation for the Advancement of Colored
nador de Vermont esperavam compen- People (NAACP, Associação Nacional
sar os antigos laços forjados por Biden para o Progresso das Pessoas de Cor) se
com muitos parlamentares e prefeitos declaram hostis.3 Aleatório nas melho-
negros, frequentemente moderados. res circunstâncias, o voto comum de
Todavia, estes mais uma vez se mobi- populações rurais e urbanas, sem es-
lizaram em favor do establishment de- tudos e graduadas, pregadoras do pro-
mocrata, e ainda mais espontaneamen- gressismo e refratárias à sua benevolên-
te porque passaram a fazer parte dele. E cia não é, portanto, para amanhã.
tinham um trunfo: o apoio de Obama, No fim da década de 1960, a Guer-
ainda imensamente popular na comu- ra do Vietnã foi o cimento que uniu a
nidade negra, que teve Biden como vi- militância de esquerda, congregando a
ce-presidente por oito anos. juventude radical, uma parte crescen-
Desde o início, a aposta da esquer- te da intelligentsia e o movimento pe-
da estava assentada em um paradoxo. los direitos civis. Martin Luther King,
Como isso reiterava suas próprias con- que foi a ponta de lança dessa união,
vicções, como as redes sociais (pelas observou durante um grande encon-
quais é fascinada) esmagavam qualquer tro em Nova York que o compromis-
dúvida a respeito e como via nisso uma so militar na Indochina tornaria mais
forma de radicalizar o eleitorado, a es- difícil a marcha dos Estados Unidos
querda continuou apresentando Trump rumo à igualdade social: “Enquanto
e os republicanos de uma perspectiva os programas de luta contra a pobreza
apocalíptica: fascistas, racistas, golpis- são empreendidos com cautela, cons-
tas, sexistas, homofóbicos, xenófobos tantemente monitorados e sujeitos à
etc. Porém, de tal verdade só poderia exigência de sucesso imediato, bilhões
emergir uma prioridade: mobilizar to- são gastos nessa guerra irrefletida. A se-
dos os adversários do ex-presidente gurança que invocamos para justificar
para derrotá-lo. E, nesse caso, melhor nossas aventuras no estrangeiro, nós a
escolher desde o início o candidato com perdemos em nossas cidades, que des-
maior probabilidade de vencer, mesmo moronam. As bombas do Vietnã explo-
que, longe de estar “com raiva do capita- dem aqui”. Considerando que os Esta-
lismo”, seja um convicto defensor deste. dos Unidos não são nem culpados nem
Um democrata moderado tem, de fato, responsáveis pela guerra na Ucrânia, a
maior probabilidade de reunir em seu maioria dos progressistas norte-ame-
nome, quase sem fazer campanha, uma ricanos rejeita esse paralelo histórico.
coalizão heteróclita de mulheres, mora- Contudo, uma vez que apoiam, pelo
dores de subúrbios prósperos (incluindo menos tacitamente, o atual aumen-
republicanos ou centristas), militantes to dos orçamentos do Pentágono, eles
estudantis e eleitores negros ou hispâni- também têm dificuldade para se distin-
cos. Em suma, em vez de provocar mo- guir do establishment nessa área.
bilização radical, a escalada verbal pode A ausência de uma candidatura de
levar à moderação eleitoral. esquerda no próximo ano levou Cornel
West, um respeitado professor de Filo-
MOVIMENTOS E IDENTIDADES sofia afro-americano, a apresentar a sua
© Vitor Flynn
Outro tipo de coalizão possível privi- em nome do Partido do Povo, afirmando
legia uma plataforma social populista que nem os democratas nem os repu-
destinada a unir os norte-americanos blicanos “querem dizer a verdade sobre
para além de suas origens, gêneros e Wall Street, a Ucrânia e as big techs”.
orientações sexuais. Porém, essa união, Dessa maneira, ele endossa a acusação
obtido resultados iniciais animadores De acordo com Sanders, dezenas de preferida por Sanders, não surge espon- de Sanders contra a corrupção política
desistiram repentinamente em favor de milhões de abstencionistas, muitas taneamente. Ela requer um trabalho nos Estados Unidos. No entanto, desta
Biden. Barack Obama teria explicado a vezes jovens, pobres ou oriundos de político permanente. Temer ou odiar vez, apenas para mostrar que a esquerda
eles que seu futuro político dependeria minorias variadas, pararam de votar Trump é suficiente para votar nos de- dos Estados Unidos ainda vive. 
de sua celeridade em apoiar seu ex-vi- porque avaliam que o sistema político mocratas. Escolher um candidato de
ce-presidente. Sanders resume: “O es- é incapaz de lhes oferecer as mudan- esquerda exige um compromisso mais *Serge Halimi é jornalista do Le Monde
tablishment atacou”. Quatro anos antes, ças fundamentais que esperam. Have- profundo, especialmente quando uma Diplomatique.
ele já havia enfrentado uma barragem ria aí, portanto, um enorme potencial fração dos militantes não concorda em
de artilharia comparável.2 de voz para um candidato de esquer- se ater a temas relativamente unifica-
1   B ernie Sanders, It’s OK to be angry about ca-
No entanto, nem a hostilidade da mí- da. Essa aposta de mobilização “radi- dores, como o aumento do salário míni- pitalism [Tudo bem ter raiva do capitalismo],
dia nem a do aparato do Partido Repu- cal” foi duplamente perdida em 2020. mo, a gratuidade da saúde ou o questio- Crown, Nova York, 2023.
blicano impediram Trump de se impor Quase octogenário na época, Sanders namento do livre comércio. No campo 2   Ler “Tir groupé contre Bernie Sanders” [Todos
atiram contra Bernie Sanders], Le Monde Di-
aos seus. Outros fatores relacionados a só teve o consolo do voto dos jovens a dos possíveis herdeiros de Sanders, a plomatique, dez. 2016.
escolhas estratégicas entraram em jogo. seu favor nas primárias. Contudo, foi crescente popularidade de temas rela- 3   J ames Bickerton, “Oakland NAACP Blames
Eles continuam paralisando a esquerda obrigado a constatar que os mais ve- cionados a movimentos e a identidades ‘Defund the Police’ for Rampant Crime in City”
[Oakland NAACP culpa “desfinanciamento da
norte-americana e explicando que ela lhos se mobilizaram em maior número (polícia, transexualidade, imigração, polícia” por crime desenfreado na cidade], Ne-
não acredita mais que possa vencer. – e contra ele. caça etc.) complica a reconquista de wsweek, 28 jul. 2023.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

ALIANÇAS MALEÁVEIS

Sobre o oportunismo na diplomacia


Grupo de países criado entre 2009 e 2011, os Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – acabam de receber
seis novos membros: Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Embora seja muito diversa
para oferecer uma visão comum da ordem internacional, essa aliança ilustra a nova geopolítica: a de um mundo à la carte

POR PIERRE HAZAN*

U
© Ricardo Stuckert/PR
m novo mundo emerge, no qual te Penal Internacional (CPI), mantêm re-
as regras do jogo são acirrada- lações normais com Moscou, apesar da
mente negociadas entre um condenação de Vladimir Putin por cri-
Ocidente que perde hegemonia mes de guerra – como se viu pela presen-
e o chamado “Sul global”, ainda longe ça de 48 deles na cúpula russo-africana
de estar unificado. Nesse perigoso de São Petersburgo, em julho último. O
duelo, volátil e fluido, os atores tecem regime sul-africano chegou ao ponto de
alianças de momento, enquanto os de- menosprezar os ocidentais ao decidir,
safios planetários se tornam mais pre- em fevereiro de 2023 (isto é, exatamente
mentes do que nunca.1 um ano após o início da agressão contra
Quem imaginaria que a Arábia Saudi- a Ucrânia), participar de manobras mili-
ta e os Emirados Árabes Unidos se me- tares com a Rússia e a China.
teriam nas trocas de prisioneiros entre Da mesma forma, a política de es-
Rússia e Ucrânia? Que os bons serviços tigmatização e sanções unilaterais que
da China selariam o restabelecimento consolidava o domínio de Washington
dos laços entre Teerã e Riad?2 O campo sobre o sistema internacional agora está
da mediação está em plena mudança. marcando passo. Dirigentes conseguem
O mundo ingressou naquilo que Samir se legitimar de novo: haverá exemplo
Saran, presidente do think tank indiano mais gritante que a volta de Bashar al-
Observer Research Foundation, chamou -Assad ao seio da Liga Árabe, por ocasião
de “parcerias de sociedade limitada”,3 da cúpula de Jedah em 18 de maio últi-
acordos entre estruturas (organizações mo? Hoje ele é persona grata no mundo
regionais, coalizões e pactos diversos) árabe, não importando a sangrenta re-
por vezes antagonistas. Esse “minilate- pressão que desfechou contra uma par-
ralismo” se apresenta como um multi- te de seu próprio povo, os milhares de
lateralismo com perfil e geometria va- mortos, a utilização de armas químicas
riáveis, e com cada ator tentando lucrar e um país em ruínas. Al-Assad foi recebi-
o mais rápido possível. Sem dúvida, o do por Mohammed bin Salman (MBS),
mundo de antes era regido também pe- o todo-poderoso príncipe herdeiro e pri-
los interesses inequívocos dos Estados. Lula e Dilma participam da XV Cúpula do Brics, em Joanesburgo, na África do Sul meiro-ministro saudita, o mesmo que o
Porém, a relativa estabilidade do am- candidato Joe Biden jurou transformar
biente internacional dava mais força aos cluído com o apoio norte-americano. Os desse privilégio e apesar das pressões de em “pária”4 por ter ordenado o sórdi-
acordos concluídos. dois países se entenderam, embora Bei- Washington, Tel Aviv hesita em adotar do assassinato de seu adversário Jamal
Agora, aqui ou ali, o inimigo pode se rute jamais tenha reconhecido Tel Aviv. sanções contra a Rússia e não entrega Khashoggi. Eleito presidente, Biden pre-
tornar parceiro por algum tempo e em As duas capitais, inclusive, permanecem armas letais à Ucrânia. Essa economia cisou engolir o orgulho para ir suplicar,
torno de um assunto qualquer. Esses “tecnicamente” em guerra, e uma das política da permuta pode beneficiar uns em julho de 2022 – sem sucesso –, a MBS
acordos puramente transacionais só se principais forças militares/políticas li- e prejudicar outros. Em setembro de que aumentasse sua produção de petró-
sustentam enquanto as partes os julgam banesas, o Hezbollah, afirma constante- 2020, a administração de Donald Trump leo. A Casa Branca busca agora um acor-
oportunos. A despeito da violência dos mente sua vontade de destruir o Estado facilitou a normalização das relações do informal sobre a energia nuclear com
combates, Rússia e Ucrânia assinaram sionista. Inversamente, o fato de o mo- de certos países árabes com Israel por o regime iraniano, reconhecendo o fra-
em 22 de julho de 2022 um acordo sobre vimento ser considerado uma “organi- meio dos Acordos de Abraão. Em troca, casso da política de isolamento de Teerã.
a exportação de cereais com mediação zação terrorista” pelos Estados Unidos e o Marrocos ganhou dos Estados Unidos Fora do “Norte global”, ninguém apli-
da Turquia e da ONU, prorrogando-o por Israel não foi nenhum problema para o reconhecimento de sua soberania so- ca sanções contra a Rússia.5 As razões
por duas vezes antes que o Kremlin de- esses dois países. A exploração do gás no bre o Saara Ocidental, em detrimento são conhecidas: a lealdade para com a
cidisse rompê-lo um ano depois (ver na Mediterrâneo vale bem um pequeno es- da Resolução n. 690, adotada em 29 de ex-União Soviética, que sustentou ou-
próxima página). Moscou – que dessa forço de flexibilidade ideológica... abril de 1991 pelo Conselho de Segu- trora os movimentos de libertação na-
forma arbitrou em interesse próprio – rança da ONU, que prevê um referendo. cional; a alta do preço dos cereais, que
prometeu em seguida entregas compen- INVERSÃO DE PAPÉIS Quanto aos palestinos, mais uma vez ti- prejudica os mais pobres e que – com ou
satórias por ocasião da reunião da cúpu- No teatro de guerra sírio, o pragmatis- veram lucros e perdas... sem razão – é imputada às medidas oci-
la Rússia-África de São Petersburgo, em mo também levou a melhor: os russos Esses arranjos revelam uma mudança dentais; e, principalmente, o sentimen-
julho de 2023, integrando à sua reflexão concluíram três acordos informais, com de fundo: o fim da hegemonia ocidental to de serem vítimas inocentes de um
estratégica a eventual incidência de sua Israel, Estados Unidos e Turquia, para fragiliza as instituições internacionais e combate distante. A isso se acrescenta,
política nas populações instaladas a mi- evitar confrontos diretos. Semelhante as normas editadas no curso destes últi- para alguns países grandes do Sul, ra-
lhares de quilômetros e frequentemente entendimento não tem precedente en- mos trinta anos, ainda que os governos zões pragmáticas: beneficiar-se do pe-
governadas por regimes amigos. tre potências implicadas em conflitos. O europeus e norte-americano estejam tróleo russo barato, diversificar as fontes
Outro exemplo: o acordo sobre o tra- Exército israelense pode atacar as forças longe de respeitá-las sempre. de fornecimento de armas e reforçar a
çado da fronteira marítima entre o Lí- sírias e o Hezbollah sem temer o siste- Os Estados africanos, que foram dos própria posição geopolítica. Há também
bano e Israel, em outubro de 2022, con- ma de defesa antiaérea russo. Em troca primeiros a ratificar os estatutos da Cor- algo de mais importante para o resto
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 25

SOLIDARIEDADE EM TEMPOS DE GUERRA POSTA À PROVA

O gosto amargo
do mundo não ocidental, em termos ao diais bateram um novo recorde em 2022
mesmo tempo políticos e simbólicos: (US$ 2,24 trilhões: em termos reais,
aquilo que os alemães chamam de Scha- 3,7% a mais do que em 2021, em razão
denfreude, a “alegria ruim” responsável do aumento dos gastos europeus sem

dos cereais
pela desgraça alheia. Ela aparece aqui precedente há pelo menos trinta anos).8
diante do Ocidente, que se encontra Os Estados Unidos, o Reino Unido, a
pela primeira vez na situação de mendi- Alemanha, a França, o Japão e a Coreia
gar apoio internacional. Trata-se de uma do Sul figuram entre os dez Estados que

ucranianos
inversão de valores em que o sabichão mais investiram na área militar. O Japão
costumeiro perdeu parte de sua soberba quer dobrar seu orçamento de defesa
e mesmo de sua arrogância. É ele, rico nos próximos cinco anos.
e poderoso, que hoje pede solidarieda- Contudo, nem o pragmatismo do mi-
de; ele que, há séculos, fixa as normas nilateralismo nem essa corrida arma-
– sempre pronto a distorcê-las em seu mentista têm a menor utilidade para Quando a Rússia se retirou do acordo ucraniano sobre
proveito – e determina soberanamente enfrentar os desafios globais. É preciso cereais, ameaçando a exportação por navios, a União
os valores universais, sancionando de criar uma nova arquitetura de segurança
forma seletiva aqueles que as violam. internacional, reduzir as desigualdades Europeia tentou manter os corredores de segurança a
O Ocidente paga pela invasão ilegal responsáveis pela tensão e pela violên- todo custo, evitando que alguns Estados-membros
do Iraque em 2003, pelas intervenções cia e enfrentar a mudança climática, que fechassem suas fronteiras para os produtos de Kiev.
militares no Kosovo em 1999 e na Líbia afeta mais de 3 bilhões de habitantes de
em 2011, pelo desastre no Afeganistão regiões altamente vulneráveis. Para além da guerra, essa crise anuncia as consequências
em 2021, pelo protecionismo vacinal Sobre os escombros da Segunda Guerra de uma adesão acelerada da Ucrânia ao bloco europeu
durante a pandemia de Covid-19, pela Mundial, os governos criaram as Nações
política dos “dois pesos, duas medidas” Unidas, chefiadas então por um diretório
que dura há muitíssimo tempo e, mais das grandes potências. Diante dos desa- POR CORENTIN LÉOTARD*
recentemente, pelo desprezo da admi- fios contemporâneos, é necessário dar
nistração Trump pelo multilateralismo. prova de criatividade para elaborar novas

E
Enfim, o Ocidente sofre as consequên- regras do jogo planetário que reflitam a m 12 de maio de 2022, a Comissão melhorar e reforçar os ‘corredores de so-
cias de uma perda de autoridade moral evolução do contexto internacional. Es- Europeia decretou uma espécie lidariedade’ através da Europa”, declarou,
que ele próprio contribuiu para abalar. sas novas regras implicarão um papel de de ligação de emergência de Kiev em 26 de julho último, Luis Planas, mi-
O ministro indiano das Relações Ex- maior destaque para a Assembleia Geral com a União Europeia. Bruxelas nistro da Agricultura espanhol, cujo país
teriores, Subrahmanyam Jaishankar, da ONU perante o Conselho de Seguran- anunciou a criação de “corredores de assumiu recentemente a presidência do
disse alto e bom som o que muitos ape- ça? Ou alianças entre os governos e a “so- solidariedade” para contornar o blo- Conselho da União Europeia.
nas pensam: “Os europeus devem sair ciedade civil”? Sem dúvida, tudo isso ao queio parcial dos portos do Mar Negro, A celebração desse sucesso apaga
do estado de espírito segundo o qual os mesmo tempo e muito mais.  por onde transitavam 90% das exporta- cuidadosamente as vítimas colaterais
problemas da Europa são os problemas ções agrícolas da Ucrânia. O objetivo do dispositivo. Em 23 de maio, agricul-
do mundo, mas os problemas do mun- *Pierre Hazan  é consultor-sênior do Cen- apresentado: permitir que os cereais tores húngaros, romenos, poloneses e
do não são os problemas da Europa”.6 tre pour le Dialogue Humanitaire, em Ge- chegassem a seus mercados tradicio- eslovacos manifestaram-se em Bruxe-
Boa parte dos países do Sul não quer nebra, e autor de Négocier avec le Diable, nais do norte da África e do Oriente Mé- las para dizer à Comissão Europeia que
mais ser obrigada a se alinhar com os la Médiation dans les Conflits Armés [Ne- dio, a fim de garantir a segurança ali- seus “corredores de solidariedade” não
Estados Unidos ou a Europa e se sen- gociar com o diabo, a mediação nos confli- mentar global e apoiar a economia eram isolados. Centenas de milhares de
te forte o bastante para dizê-lo.7 Ainda tos armados], Textuel, Paris, 2023. ucraniana. A Comissão Europeia ape- toneladas de milho e de trigo surgiram
não é, como alguns dizem em Washing- lou então aos “atores do mercado da num mercado teoricamente protegido.
ton, “o Ocidente contra o resto do mun- 1   V er John Mearsheimer, “Pourquoi les grandes União Europeia para que disponibili- A superlotação dos silos e dos entrepos-
do”, fórmula que cheira a colonialismo, puissances se font la guerre” [Por que as gran- zassem urgentemente equipamentos, tos provocou a queda dos preços das
embora o “resto” forme 85% da popu- des potências guerreiam entre si], Le Monde material ferroviário, veículos, barcaças safras. No fim de abril, o preço do trigo
Diplomatique, ago. 2023.
lação mundial. No entanto, na Confe- 2   Maria Fantappie e Vali Nasr, “A New Order e barcos necessários” e intimou que na Hungria apresentou queda anual de
rência de Segurança de Munique, em in the Middle East?” [Uma nova ordem no “mostrassem flexibilidade, agilidade e 31%, e o do milho, de 28%.3 Isso se deve
fevereiro passado, esses mesmos países Oriente Médio?], Foreign Affairs, Nova York, resiliência para garantir o funciona- à lentidão do mecanismo de decisão da
22 mar. 2023. Ver também Akram Belkaïd e
do Sul reafirmaram suas prioridades: a Martine Bulard, “Pékin, faiseur de paix?” [Pe- mento das rotas de transporte e das ca- União Europeia, que atrasou a abertu-
dívida, o clima, o meio ambiente e as quim, promotora da paz?], Le Monde Diplo- deias de abastecimento.1 ra do corredor ferroviário e imobilizou
sequelas do passado colonial. matique, abr. 2023. Entre a União Europeia e a Ucrânia, os grande parte dos grãos na região. Como
3   Samir Saran, “The New World – Shapped by
Nessa “paz fria” que começa a vigorar, Self-Interest” [O mundo novo – moldado pelo direitos aduaneiros, as cotas e todas as explica Tamás Petöházi, presidente da
as potências médias podem fazer valer interesse próprio], Indian Express, Noida (Ín- restrições financeiras foram subitamente Associação de Produtores de Cereais,
alguns argumentos: a riqueza acumu- dia), 23 maio 2023. suspensos. Bruxelas instigou os Estados- havia, na primavera de 2022, “entre 4
4   David E. Sanger, “Candidate Biden Called Sau-
lada das sete principais potências eco- di Arabia a ‘Pariah’. He Now Has to Deal with It” -membros do Leste a reduzir ao estrita- milhões e 5 milhões de toneladas de
nômicas mundiais, o G7, já foi superada [O candidato Biden chamou a Arábia Saudita mente necessário as formalidades nas grãos ucranianos na Hungria. A partir
pela dos Brics sozinhos (África do Sul, de “pária”. E agora tem de lidar com isso], New fronteiras e a aumentar a sua capacidade do outono, a demanda despencou, pois
York Times, 26 fev. 2021.
Brasil, China, Índia e Rússia), um clube 5   Ver Alain Gresh, “Quand le Sud refuse de s’alig- de armazenamento de grãos. A interliga- todos os compradores se voltaram para
ao qual cerca de vinte nações, entre as ner sur l’Occident en Ukraine” [Quando o Sul ção das redes de transportes e a capaci- o milho, o trigo e a cevada ucranianos”.
quais a Argélia, a Arábia Saudita, a In- recusa se alinhar com o Ocidente na Ucrânia], dade dos terminais de transbordo melho- Ele antecipa uma fragilidade persistente
Le Monde Diplomatique, maio 2022.
donésia e o México, desejam se juntar. 6   “Explained: What Jaishankar Said about Eu- raram rapidamente. Um ano depois, em da “demanda por produtos húngaros”.
Entretanto, embora esses países saibam rope, Why Germany Chancellor Praises Him” maio de 2023, a União Europeia anun- Budapeste denunciou um mecanismo
se associar para melhor se fazer ouvir, [Explicado: o que Jaishankar disse sobre a Eu- ciou ter assegurado a exportação de 38 que foi ao mesmo tempo mal concebi-
ropa e por que o chanceler alemão o elogia],
ao menos por enquanto não oferecem OutlookIndia.com, 20 fev. 2023. milhões de toneladas de produtos agrí- do e imposto aos Estados-membros. “O
uma visão nova do sistema internacio- 7   Ver Anne-Cécile Robert, “La guerre en Ukrai- colas, cereais e oleaginosas, através des- dumping de cereais ucraniano tornou
nal, e seus interesses se mostram dife- ne vue d’Afrique” [A guerra na Ucrânia vista da sas novas rotas europeias.2 Os europeus impossível para os agricultores sobrevi-
África], Le Monde Diplomatique, fev. 2023.
rentes e às vezes contraditórios. 8   “World Military Expenditure Reaches New pretendem reforçar o dispositivo após ver, pois perderam seus tradicionais mer-
Nessa era de incertezas, o princípio Record High as European Spending Surges” a decisão tomada em julho pela Rússia cados nacionais e europeus”, explicou
da precaução prevalece sob sua forma [Gastos militares mundiais batem novo recor- de se retirar do acordo sobre os cereais em termos vagos o Ministério da Agri-
de com o aumento das despesas europeias],
mais elementar: cada qual se arma, e Stockholm International Peace Research Insti- ucranianos que permitia o transporte de cultura húngaro em um comunicado. “A
depressa. As despesas militares mun- tute, 24 abr. 2023. cargas pelo Mar Negro. “É imprescindível criação dos corredores de solidariedade
26 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

era bem-intencionada”, diz o ministro Is- György Raskó, especialista no mundo de trânsito aduaneiro comum. Embora dades agrícolas em terras de uma quali-
tván Nagy, “mas, com a atração do lucro, agrícola húngaro, observa que “Bruxelas esses produtos ainda escapem de tarifas dade excepcional e exploradas de forma
os comerciantes de cereais apareceram mantém sua narrativa sobre os corredo- e cotas, eles apenas poderão transitar por ultraintensiva, mesmo que estivessem
no mercado e aproveitaram a disponi- res de solidariedade”, mas também que esses territórios, sem serem armazena- sujeitas às restrições ambientais nitida-
bilidade de grãos ucranianos pela meta- “os vendedores ucranianos estão muito dos ou comprados. Em outras palavras, mente mais severas da União Europeia.
de do preço, os quais armazenaram na animados com a ideia de poder exportar trata-se de colocar em prática efetiva- Especialmente porque Bruxelas já está
Hungria e nos países vizinhos”.4 para o mercado europeu, e isso é bem mente nesses quatro países o princípio organizando a concorrência por meio
compreensível. É muito mais lucrativo e inicial dos corredores de solidariedade. da criação de uma plataforma digital
OS INTERESSES DO menos arriscado para eles”. Benoît Faya- Todavia, a Comissão Europeia alertou que conecta comerciantes ucranianos a
GRANDE COMÉRCIO ud, analista de mercados agrícolas, con- que se trata de “medidas preventivas ex- empresas de logística. As iniciativas pri-
Entretanto, quem colocou no mercado firma: “Os agricultores europeus sempre cepcionais e temporárias”. Como sinal vadas também estão surgindo. Demons-
esses cereais, que deveriam apenas pas- tiveram de enfrentar indiretamente a dos interesses divergentes no mundo trando solidariedade com a Ucrânia, a
sar pela região? “Foram os operadores, os concorrência ucraniana nos mercados agrícola, a interdição de fato dessas im- empresa de transporte ferroviário de
embarcadores, todos ligados ao grande do norte da África, por exemplo. Porém, portações divide a Hungria. Ela alivia os mercadorias Rail Cargo Austria lançou
comércio e que pertencem ao agronegó- com a guerra, os corretores ucranianos produtores de grãos, mas os fabricantes a plataforma GrainLane, com a ajuda
cio internacional”, explicou Marie-Clau- imediatamente procuraram vender nos de biocombustíveis e, especialmente, a da Comissão Europeia, segundo a mí-
de Maurel, diretora de estudos da École mercados do Leste Europeu”. Associação Nacional dos Comerciantes dia ucraniana. Ela conecta “produtores
des Hautes Études en Science Sociales Em meados de abril de 2023, os países de Grãos apontam para a escassez de ucranianos com varejistas europeus e
(Ehess), da França, em uma entrevista da Europa Central adotaram uma pos- milho e as dificuldades no futuro para africanos, que muitas vezes não tinham
para a Rádio France Culture, em 21 de tura contrária a Bruxelas e sua compe- os produtores de ração e seus criadores. nenhuma relação comercial antes da
abril. “Desde a década 2010-2020”, pros- tência exclusiva em matéria de política Esses corredores de solidariedade vi- guerra”. Alguns cliques permitem fechar
seguiu, “eles construíram instalações po- comercial. A Polônia foi a primeira a savam apenas permitir o transporte de as transações gratuitamente e, em segui-
derosas na Ucrânia para processar o trigo fechar suas fronteiras e o corredor. De- mercadorias para os mercados tradi- da, organizar seu transporte pago.
produzido por grupos agroalimentares. fensor fervoroso da Ucrânia, seu gover- cionais da Ucrânia no norte da África e “A União Europeia e a Ucrânia têm
As grandes propriedades rurais, herdei- no nacional-conservador não poderia no Oriente Médio? Os produtores ucra- um interesse mútuo num acordo de li-
ras distantes das fazendas estatais, foram abrir mão do mundo agrícola seis meses nianos também não estão procurando vre-comércio. Isso atrapalharia os mer-
transformadas pelos investidores estran- antes das eleições legislativas. Foi segui- novas oportunidades de negócio na Eu- cados. Os agricultores daqui aprende-
geiros, europeus e norte-americanos. Eles do, no mesmo dia, pela Hungria, depois ropa? A Comissão Europeia reconhece ram alguma coisa, após um ano de cor-
assumiram o controle dessas grandes cul- pela Eslováquia e a Bulgária. O presi- apenas um problema logístico de “es- redores”, diz Raskó. À frente de uma po-
turas de cereais, que exploram em condi- dente ucraniano, Volodymyr Zelensky, trangulamento”, que causou a acumu- derosa fazenda de 2,2 mil hectares que
ções extremamente favoráveis, graças a denunciou “medidas protecionistas lação de colheitas, mas não o caráter recorreu ao milho da Ucrânia, ele não
uma forte mecanização. É uma concor- estritas e até cruéis” em 9 de maio, em estrutural do fenômeno, enquanto esses vê isso com mal olhos e ameniza as di-
rência anormal, pois, a princípio, o mer- Kiev, ao lado da presidenta da Comissão corredores aceleram a liberalização de ficuldades atuais: “Tivemos uma era de
cado interno europeu está protegido.” Europeia, Ursula von der Leyen. Numa todas as importações provenientes da ouro desde 2004 graças aos subsídios da
Antes da guerra, a Ucrânia exportava carta enviada em meados de abril aos Ucrânia, decidida na primavera de 2022. Política Agrícola Comum (PAC), embora
muito pouco trigo para a União Euro- Estados refratários, considerava que “as “Podemos pensar que por trás dessa sendo pouco competitivos”, reconhece.
peia – cerca de 500 mil toneladas por medidas unilaterais só podem fazer o crise se escondem os interesses dissi- “Será necessário ganhar em produtivi-
ano –, principalmente por navio para a jogo dos adversários da Ucrânia”. mulados do grande capital, que conse- dade ou diversificar.” O Ministério da
Espanha e a Itália, mas não para a Eu- No entanto, a Comissão Europeia re- gue mexer os pauzinhos”, acrescentou Agricultura húngaro garante-nos hoje
ropa Central. Contudo, por causa da conheceu, em 2 de maio, em um comu- Marie-Claude Maurel. “A perspectiva da que o corredor de solidariedade con-
abertura das rotas terrestres, a Ucrânia nicado de imprensa, que “circunstâncias entrada da Ucrânia na União Europeia tinua operacional, mas que agora, tal
vendeu, entre julho de 2022 e julho de excepcionais minam a viabilidade eco- levanta essa questão da concorrência de como na Polônia, todos os comboios
2023, 800 mil toneladas de trigo para a nômica dos produtores locais” e prome- maneira direta. É um alerta.” que entram no país são documentados,
Polônia, 800 mil toneladas para a Romê- teu um segundo aporte de 100 milhões controlados, selados e estritamente vi-
nia e 250 mil toneladas para a Hungria, de euros para socorrê-los, depois de um INTEGRAÇÃO EXPRESS? giados até sua saída do território. O tiro
de acordo com a consultoria Tallage.5 primeiro de 56,3 milhões de euros, deci- Os agricultores da Europa Central te- de advertência foi severo. 
Esses fluxos não irrigaram a Europa dido em março. Mais importante ainda, mem que as medidas de emergência e
Central de forma homogênea. A Polônia em troca da reabertura de suas frontei- a ligação “temporária” da Ucrânia mar- *Corentin Léotard é redator-chefe do
importou dez vezes mais milho ucra- ras, ela concedeu à Hungria, à Polônia, à quem o primeiro passo para uma inte- Courrier d’Europe Centrale, em Budapeste.
niano do que o habitual (1,4 milhão de Eslováquia e à Bulgária que trigo, milho, gração expressa no mercado único. Em
toneladas) e acabou por receber um colza e grãos de girassol provenientes da sua forma atual, seria difícil para eles 1   U n plan d’action pour la création de corridors
enorme excedente de 600 mil toneladas Ucrânia só poderiam circular em regime competir com as gigantescas proprie- de solidarités Union Européenne-Ukraine en
vue de faciliter les exportations agricoles et les
em razão de ótimas colheitas. Em con- échanges bilatéraux de l’Ukraine avec l’Union
© Wikimedia Commons
trapartida, na Hungria, o milho ucrania- Européenne” [Um plano de ação para a cria-
no ofereceu uma tábua de salvação após ção de corredores de solidariedade União Eu-
ropeia-Ucrânia para facilitar as exportações
uma colheita desastrosa em quantidade agrícolas e as trocas bilaterais da Ucrânia com
e qualidade. Em grande parte, o milho, a União Europeia], comunicação da Comissão
impróprio até mesmo para alimentar os Europeia ao Parlamento Europeu, ao Conselho
Europeu, ao Comitê Econômico e Social Euro-
animais, teve de ser vendido para pro- peu e ao Comitê das Regiões, Comissão Euro-
duzir biocombustíveis. “Os grãos ucra- peia, Bruxelas, 12 maio 2022.
nianos salvaram minha empresa”, disse 2   “ Nourrir le monde, ce que font les pays de
l’Union européenne pour atténuer l’impact de la
Zoltán Reng, CEO da Hungrana Zrt, um guerre menée par la Russie” [Alimentar o mun-
peso-pesado do setor agroalimentar na do, o que fazem os países da União Europeia
Hungria. “A partir de abril de 2022, lan- para atenuar o impacto da guerra conduzida
pela Rússia], Conseil de l’Union européenne.
çamos um programa de importação da Disponível em: www.consilium.europa.eu.
Ucrânia, que também foi apoiado pelo 3   “ Rapports sur le marché agricole – Céréales et
Estado húngaro.” Suas declarações con- cultures industrielles” [Relatórios sobre o mer-
cado agrícola – Cereais e culturas industriais],
trastam com a nova campanha de di- Instituto de Economia Agrícola, Budapeste,
famação das mídias afiliadas ao poder, v.XXVI, n.9, 2023.
que lançam infâmias sobre os ucrania- 4   V ilággazdaság, 17 fev. 2023. Disponível em:
www.vg.hu.
nos, já apresentados como belicistas e 5   C onsultoria Tallage – Stratégie Grains. Disponí-
agora como envenenadores. Ucrânia contou com o apoio da União Européia para exportar cereais vel em: www.strategie-grains.com
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 27

O MODELO DE SINGAPURA

“Somos ricos porque temos uma


mão de obra estrangeira que sofre”
Por muito tempo, Singapura foi considerada um modelo de prosperidade e estabilidade. No entanto, a cidade,
que elege um novo presidente – um cargo em parte honorário – em 1º de setembro, enfrenta problemas:
maus-tratos a migrantes, aumento do custo de vida... O descontentamento popular preocupa
o primeiro-ministro, que tem amplos poderes e lidera o país há quase vinte anos

POR MARTINE BULARD*

N
TUC. As letras vermelhas no alto a três – Estado, empregadores e (repre- do mundo, Singapura instaurava uma explica Wei Chen Tan, que não esconde
da torre de vidro e aço – uma ba- sentantes dos) trabalhadores – que tem “democracia iliberal”, que perdura: o sua admiração pelo “pai da nação”, por
nalidade no universo criativo dos funcionado desde a independência, em direito de voto existe, mas os partidos sua visão de futuro e sua opção de apos-
arranha-céus de Singapura – in- 1965, com tanto mais sucesso porque da oposição são sufocados; o direito de tar na educação. Ele se esquece de men-
dicam a quem ela pertence, o único sin- todos os obstáculos foram eliminados greve está consagrado na Constituição, cionar que Singapura desde muito cedo
dicato do país, o National Trades Union e os laços do trio são estreitos, para não mas é impossível exercê-lo – a mais re- assumiu a aparência de paraíso fiscal a
Congress. “O edifício nos foi dado por dizer incestuosos. Eles formam “uma cente delas, dos motoristas de ônibus, fim de atrair os investimentos estran-
Lee Kuan Yew [o pai da independên- elite que se apropriou” do poder, como em 2012, foi declarada ilegal e terminou geiros (quase US$ 200 bilhões em 2022)
cia]”, explica com orgulho o secretário- observa o fino conhecedor da cidade- com a prisão de seus líderes. e se tornar a maior praça financeira do
-geral, Patrick Tay. “Ele queria que os -Estado Michael D. Barr,1 citando um No entanto, o sistema quase não é planeta desde o ano passado. Chegando
trabalhadores tivessem um lugar de discurso de 1966 de Lee Kuan Yew:2 “A contestado pela população. De um a ser chamada de “pequena Suíça”, ela
verdade. Na época, não havia quase na- sobrevivência de Singapura depende lado, “vivemos sempre com a sensação inspira Dubai. Agora, quase metade dos
da no entorno.” Um presente do gover- de 150 pessoas”. Não contaram as famí- de que temos de lutar pela sobrevivên- grandes grupos asiáticos tem escritórios
no que planejou, no entorno do edifício, lias que controlam a ilha. O que é certo cia”, garante Wei Chen Tan, antigo alto lá. O boato público – que nenhuma auto-
a criação de um centro financeiro e tu- é que, já em 1963, Lee havia eliminado funcionário de origem chinesa que faz ridade quis confirmar – é de que muitas
rístico ultrachique, o Marina Bay, que a ala progressista do PAP e seus sim- questão de esclarecer que sua famí- empresas estrangeiras estabelecidas em
mistura alegremente o setor público e o patizantes (120 prisões). Nome código lia chegou no início do século passado Hong Kong transferiram para Singapura
privado para acomodar multinacionais da operação: Coldstore. Um quarto de e “não se parece com os chineses do seus ativos. Em todo caso, os gestores de
e hotéis suntuosos, como o famoso Ma- século depois, em 1988, ele reincidiu. continente”. O medo do imigrante, in- fortunas (da China e de Hong Kong), os
rina Bay Sands, construído em 2010: A Operação Espectro tinha como alvo cluindo as grandes fortunas vindas de family offices, nunca foram tão numero-
três palácios de 55 andares cobertos por cerca de vinte personalidades (militan- Pequim, Xangai e Hong Kong, permeia sos: setecentos em 2021, segundo a Au-
uma piscina que os liga a 200 metros de tes políticos, sindicalistas, advogados, amplamente as camadas abastadas. toridade Monetária de Singapura. Três
altura, um centro comercial de luxo no estudantes, intelectuais etc.) acusadas De outro, o poder não é apenas repres- anos antes, havia apenas um punhado.
térreo e um enorme cassino para fun- de “conspiração marxista”. Ainda hoje sivo, destaca Stéphane Le Queux, profes- Entretanto, a cidade-Estado não pode
cionários que precisam relaxar e chine- é quase impossível falar desses perío- sor de Relações Profissionais da James ser reduzida a finanças, bancos e segu-
ses do continente cansados de Macau. dos. A exibição de To Singapore, with Cook University: “Ele oferece bem-estar. ros. Na ponta do Estreito de Malaca e no
“O Edifício NTUC”, como é chama- love (2013), da diretora Tan Pin Pin, co- O Estado, o sindicato e o patronato se coração do efervescente Sudeste Asiáti-
do aqui, reina portanto em boa com- nhecida e aclamada por seus pares, que unem em torno de um objetivo comum: co, ela se tornou um hub ou plataforma
panhia, abrigando também escritórios entrevista exilados políticos (de todas as garantir a paz social e o crescimento comercial e industrial, sobretudo graças
de empresas como a Samsung e agên- épocas), foi proibida a fim de prevenir econômico”. Na verdade, esse “pontinho ao segundo maior porto de contêineres
cias governamentais. Tay, um dinâmico um “ataque à segurança nacional”. Em vermelho no mapa-múndi”, para usar a do mundo (atrás de Xangai).4 A constru-
cinquentão, nos recebe no nono andar, 2015, o ilustrador e escritor Sonny Liew, expressão desdenhosa de um ex-presi- ção de outro – gigantesco, totalmente au-
chegando ofegante da Assembleia Na- que em seu magnífico trabalho A arte de dente indonésio (Bacharuddin Jusuf Ha- tomatizado, que vai reunir e ampliar as
cional. Isso porque o secretário-geral Charlie Chan Hock Chye3 faz um ques- bibie), tornou-se, nas décadas de 1970 e atuais atividades portuárias, com acesso
do sindicato também é deputado pelo tionamento da história oficial, não so- 1980, um dos quatro “dragões” asiáticos ao mar em Tuas, na zona oeste da ilha,
todo-poderoso Partido da Ação Popular freu tamanha censura. Mas sua editora – ao lado da Coreia do Sul, de Hong Kong, com areia comprada dos países vizinhos
(PAP). Ele não vê aí nenhuma contrain- precisou devolver o tradicional adianta- então sob controle britânico, e de Taiwan – deverá permitir a Singapura continuar
dicação, nem mesmo contradição. “Isso mento do Centro Nacional das Artes – o – que não brilhavam pelo respeito aos di- na corrida. A atividade industrial (refina-
permite levar a voz dos trabalhado- que poderia colocá-lo em dificuldades. reitos humanos, mas faziam a felicidade rias, química, eletrônica etc.) deve seguir
res ao Parlamento. E eu fico contente, das multinacionais inundando o planeta o movimento, com novas tecnologias
como legislador, de criar mudanças a com produtos de baixo custo. Modelo sendo introduzidas principalmente nas
seu favor.” Na verdade, a própria ideia UM PONTO VERMELHO para a China na década seguinte, Singa- regiões sul e leste. Indústria e comércio
do sindicato como um contrapoder lhe NO MAPA-MÚNDI pura construiu uma economia voltada representam hoje quase um quarto do
dá calafrios. “Nossa missão é evitar a es- Em mais de setenta anos, Singapura para a exportação utilizando uma força PIB (na França, por exemplo, esse nú-
calada, e para isso existe um processo teve apenas três primeiros-ministros, de trabalho capacitada e dócil, cujo pa- mero é 17%), segundo o Banco Mundial.
de consulta. É o que traz a estabilidade à entre eles Lee Kuan Yew e seu filho Lee drão de vida deu um salto e que depois Não é um caso anedótico.
qual a população aspira.” Patrões, diri- Hsien Loong, no cargo desde 2004 e que seria substituída por imigrantes. No conjunto, o Estado autoritário (que
gentes sindicais, políticos, altos funcio- promete se aposentar em breve, virando “Quando a China se abriu, Lee Kuan planeja e financia o desenvolvimento),
nários públicos e ministros coexistem e, finalmente a página da dinastia. Porém, Yew imediatamente entendeu que pre- as multinacionais (que se interessam
por vezes, até passam de uma função a sua saída já deveria ter acontecido há cisava direcionar o crescimento para por ele) e os sindicatos (que buscam
outra, em uma alegre miscelânea. bastante tempo (ler boxe). Muito antes produções de mais alta tecnologia e usar o consenso) levaram o país ao topo. A
Assim seguem as relações sociais e de a expressão – e a realidade – se tor- a localização geográfica de Singapura renda per capita está entre as mais al-
políticas em Singapura: um casamento narem lugar-comum em outras partes para se tornar um centro incontornável”, tas do mundo: US$ 77 mil (logo atrás de
28 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

Kuala Lumpur
Es
tre
outro paraíso fiscal, Luxemburgo). Tudo, mento, fazê-lo trabalhar quanto quiser”, ito MALÁSIA
Malacca
de
portanto, parece estar indo bem na ilha
de quase 5,5 milhões de habitantes, do
especifica Au. Como se eles estivessem
em condições de igualdade. Dumai
Ma Tanjung
lacPelepas Johor CIDADE-ESTADO GLOBALIZADA
tamanho da metrópole parisiense (729 Esses trabalhadores não apenas têm
ca
Sembawang
quilômetros quadrados) – pelo menos trabalhos árduos e mal pagos, como Sumatra SINGAPURA
para quem tem nacionalidade singapu- também são enfiados em acampamen- MAR Est
reito de
DE Jo
hor
riana e para os residentes permanentes, tos-dormitório, às vezes enfileirados por
INDONÉSIA JAVA WOODLANDS
que configuram dois terços da popula- centenas de metros e rodeados de arame
ção, os únicos que contam nas estatísti- farpado, como uma parte do centro de 50 km MALÁSIA
cas (e na maioria dos programas sociais). Tuas, que fica a uma boa meia hora de
Os outros, os imigrantes, não existem e, ônibus e caminhada depois do ponto
no entanto, fazem o país funcionar, re- final da linha do metrô. A acomodação dos – pela primeira vez desde 1965. Ele é S
presentando 40% da população ativa! (por assim dizer) é fornecida pelo empre- mais porta-voz de jovens singapurianos JURONG
As empresas, as universidades, os la- gador. Se o funcionário deixar o empre- preocupados com os estrangeiros de
boratórios, o governo, todos recrutam go, ele está na rua, podendo ser expulso qualificações médias e altas que mono-
esses trabalhadores em função de suas de Singapura. O mais das vezes, veículos polizam os bons empregos, como uma Jurong QUEENSTOWN
necessidades, e os sortudos recebem um de carga, abertos sob a chuva e o sol es- jovem bancária, descontente com seu TUAS
documento, indispensável para perma- caldante, os transportam até o trabalho, lugar na empresa, que acha que “esses ILHA
ÎLE Pasir
necer de dois a cinco anos, ou até mais, onde atuam em canteiros de obras, nas imigrantes tiram nosso trabalho”. JURONG
JURON Panjang
de acordo com uma hierarquia muito margens das rodovias ou nos pátios dos “O afluxo de estrangeiros deve criar be-
rígida. No topo da pirâmide estão os edifícios que nem uma única erva da- nefícios tangíveis para os singapurianos”,
estrangeiros superqualificados que têm ninha deve ultrapassar. “O ser humano declarou Pritam Singh, líder do WP na
Employment Pass (E.Pass, na linguagem custa menos que um herbicida”, resume Assembleia Nacional, em 21 de abril de Espaço majoritariamente residencial Parques, jardi
e reservas nat
do dia a dia); logo abaixo, os que têm di- Stéphane Le Queux. É possível vê-los 2022. Alguns dias antes, ele havia pedido Coração econômico e político
Reservatórios
ploma técnico ganham um Salary Pass dormindo no chão, na sombra se pu- que “apenas os estrangeiros que tenham Atividades portuárias de água artific
(S.Pass). Nos dois casos, eles só podem derem, na hora do almoço, ou sentados passado no teste de inglês” pudessem Outras atividades Territórios gan
ser contratados com um salário que sobre os calcanhares, esperando tarde obter o status de “residente permanente” (incluindo terrenos militares) do mar (polde
corresponda a pelo menos o equiva- da noite que o motorista venha “recolhê- ou a naturalização. A reivindicação cau-
lente ao terço mais elevado de sua área, -los”. Para a grande maioria dos singapu- sou polêmica, em um país que tem qua-
“para evitar o dumping social”, escla- rianos, nada fora do comum. Aliás, qual- tro línguas oficiais – inglês, mandarim, Não é preciso dizer que a pressão so-
rece o Ministério da Mão de Obra. Eles quer família que se preze emprega pelo malaio e tâmil – e depende da estabilida- bre os estudantes é alta, até mesmo “in-
podem se estabelecer com sua família, menos uma “ajudante”, uma doméstica: de de cada etnia: 74,3% dos singapuria- sana”, nas palavras de um pai. Há quem
se puderem pagar, pois os aluguéis são jovens filipinas, birmanesas, malaias e nos têm origem chinesa; 13,6%, origem tema que o filho acabe cometendo sui-
caros: um jovem pesquisador australia- chinesas que moram no trabalho, não malaia; 8,9%, indiana; e 3,2%, outras ori- cídio – e não sem motivo. Em 2022, 125
no conta que paga por mês cerca de 10 têm horário definido, estão sempre à dis- gens, incluindo-se aí os mestiços. jovens (de 10 a 29 anos) colocaram fim à
mil dólares de Singapura (R$ 36 mil) por posição e são algumas vezes literalmente “Será que um mau domínio do inglês própria vida, o nível mais alto da histó-
um apartamento de cinco cômodos na maltratadas. “Após anos de luta”, conta torna alguns de nós menos singapuria- ria.8 Seja como for, “a escola é um inferno
periferia. Juntos, esses imigrantes mui- Au, “conseguimos que essas ‘criadinhas’ nos?”, questionaram em uma coluna para as crianças que correm o risco de
to bem-tratados representam cerca de tenham uma vez por mês um dia de folga dois pesquisadores, Mathiew Mathiews não ter bons resultados no PSLE”, conta
10% da população ativa. inegociável.” Um dia por mês! e Malvin Tay.7 Embora os círculos abas- uma jovem professora filmada pela dire-
Na verdade, “nosso modelo pode ser tados e educados pratiquem um inglês tora Yong Shu Ling.9 “Não posso mudar
SER HUMANO CUSTA facilmente resumido”, diz ele. “Somos perfeito, as pessoas comuns falam sin- o método de cálculo, mas posso devol-
MENOS QUE UM HERBICIDA ricos não porque temos alta produti- glish. Por muito tempo banido dos jor- ver a vontade de aprender.” Justamente,
Os 30% restantes constituem o exérci- vidade, mas porque temos uma força nais, dos anúncios e da televisão (em essas formas hiperseletivas de ensino
to dos não qualificados, os work permit de trabalho estrangeira que sofre e é que cada comunidade tem seu canal), matam qualquer sede de descoberta e
holders (WPH), como são chamados, mal remunerada.” E explica: “Quando esse dialeto histórico mais melodioso, a criatividade que as novas tecnologias
que vivem em condições miseráveis, o Singapura quis sofisticar sua produção que mistura as quatro línguas, voltou ao precisam, assim como a cultura.10
que é denunciado por advogados, ativis- para enfrentar a concorrência chinesa, espaço público. Contudo, o debate lan- Além disso, elas reproduzem as de-
tas de direitos humanos e associações deparou-se com a do Japão. Para conse- çado por Singh teve ainda mais resso- sigualdades “de classe e raça”, nas sur-
como a Transient Workers Count Too guir custos salariais baixos e ao mesmo nância pelo fato de que o inglês tende a preendentes palavras saídas da boca de
(TWC2), codirigida por Alex Au, advo- tempo apostar na alta tecnologia, optou se tornar um meio de seleção, enquanto uma chefe de start-up malaia, na casa
gado aposentado católico, que nos rece- por recorrer à imigração, de forma que a concorrência entre singapurianos se dos 30, descolada, de lenço na cabeça,
beu em suas modestas instalações nos os singapurianos, homens e mulheres, faz cada vez mais acirrada. que fala muito à vontade, porém prefe-
confins do bairro indiano. Ele descreve pudessem trabalhar e viver bem, estan- Isso começa na escola, com o famoso re se manter no anonimato. Para obter
o inferno vivido por esses trabalhadores, do livres das tarefas domésticas”. Com “modelo singapuriano” tão elogiado no bons resultados, ela explica, é preciso
sem salário mínimo, cujo princípio não exceção de alguns ativistas e ONGs, esse Ocidente por suas capacidades inclusi- falar inglês perfeito em casa e princi-
existe na cidade-Estado, sem a possibili- sistema dual é aceito por todo mundo. A vas, pois dedica os dois primeiros anos da palmente ter aulas particulares em es-
dade de trazer a família ou mesmo de se NTUC diz se preocupar com isso, e seu escola primária à aprendizagem do inglês colas privadas, cujos preços sobem de
casar com uma singapuriana – é termi- balanço anual, prefaciado pessoalmente (leitura e escrita), da matemática e de uma acordo com a taxa de sucesso no PSLE.
nantemente proibido.5 A grande maioria pelo primeiro-ministro, destaca o caso língua materna (à escolha), introduzindo Seus pais, pequenos comerciantes,
está empregada na construção, nos esta- de um empregado que obteve o paga- as ciências e atividades extracurriculares “nem ricos nem pobres”, deram tudo
leiros, na indústria química e petrolífera, mento de horas extras e de outro que nos dois anos seguintes. No entanto, é um que tinham para que ela triunfasse. O
na limpeza e em empregos subalternos conseguiu se qualificar. E é tudo, ou qua- exame ultrasseletivo, o Primary School famoso historiador Thum Ping Tjin, co-
em cafés, restaurantes, hotéis. Vindos da se tudo. Os dois partidos da oposição não Leaving Examination (PSLE), que valida nhecido como PJ Thum, militante con-
Birmânia, da China, da Malásia, das Fi- fazem disso um cavalo de batalha, para tudo. Aos 12 anos de idade, as crianças tra as injustiças, aponta que os 20% de
lipinas e de Bangladesh, eles trabalham dizer o mínimo: o Partido Progressista precisam tirar boas notas no “teste” para famílias mais ricas gastam quase quatro
um número colossal de horas extras, de Singapura (PSP), que tem apenas dois poder continuar sua escolaridade em vezes mais dinheiro na educação dos fi-
normalmente de graça, sete dias por deputados sem direito a voto,6 considera boas instituições, acessar as boas univer- lhos do que as famílias na base social.11
semana, embora a folga semanal seja justo que “sejam bem recebidos aqueles sidades e, depois, conseguir os melhores Além disso, 59,2% dos singapurianos de
obrigatória. Contudo, a lei, esperta, per- que foram convidados”, nas palavras de empregos. Quem consegue um resultado origem chinesa com idade entre 20 e 39
mite ao empregador, “se o empregado o seu fundador, Tan Cheng Bock. O Partido médio tem de se contentar com as escolas anos têm diploma universitário, contra
solicitar ou se tiver dado seu consenti- dos Trabalhadores (WP) tem dez deputa- politécnicas. O resto... apenas 16,5% dos malaios.12
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 29

em junho de 2022, por um ano. Ele não prometeu uma redução de 15% no preço se exilar, mantendo seu site combativo
tem meias palavras: “Os estudantes”, da viagem. A linha está em construção. O New Naratif: “Ficou difícil demais”. 
© Cécile Marin diz, “sentem-se presos em um sistema projeto do cassino de Marina Bay tam-
onde os desafios são elevados desde a bém foi discutido, com o mesmo suces- *Martine Bulard  é jornalista do Le Monde
mais tenra idade, enquanto graduados so, lembra Caroline Wong, vice-reitora de Diplomatique.
e trabalhadores se veem preocupados ensino da James Cook University, capaz
com sua carreira e excluídos do mercado de descrever Singapura nos menores de- 1   M ichael D. Barr, The Ruling Elite of Singapore:
Networks of Power and Influence [A elite que
imobiliário”.13 Para os jovens, comprar talhes: “Em nome do bem comum, assi- governa Singapura: redes de poder e influên-
Seletar ILHA UBIN ILHA
TEKONG uma casa como seus pais fizeram é uma milado a justificativas econômicas (atrair cia], I.B.Tauris, Londres, 2014.
Es

it o or
tre

oh missão impossível, então muitas vezes turistas, criar empregos, proporcionar 2   D
 epois de ingressar na confederação da Malá-
de J
sia em 1963, logo após obter a autonomia do
Changi permanecem na casa deles, mesmo de- mais entretenimento etc.), as vozes de Reino Unido, Singapura, então dirigida por Lee
SERANGOON pois de casados. Enquanto a riqueza ga- protesto e as opiniões divergentes são ig- Kuan Yew, retirou-se e declarou independência.
TAMPINES
nha visibilidade (metade dos residentes noradas. A qualidade de vida das pessoas  onny Liew, Charlie Chan Hock Chye, une vie
3   S
dessinée [A arte de Charlie Chan Hock Chye],
de Singapura pertence aos 10% mais ri- não pode ser equiparada apenas ao cres- Urban Comics, Paris, 2017.
BEDOK
cos do planeta),14 o vice-primeiro-minis- cimento”. E se pergunta sobre o “caráter 4   L
 er Philippe Revelli, “Triangle de croissance
5 km tro manifesta o desejo de que “o suces- sustentável” dessa via. ou triangle des inégalités” [Triângulo do cres-
e Singapura
cimento ou triângulo das desigualdades], Le
eito d so esteja menos ligado ao pote de ouro Por enquanto, o governo tem amor-
MARINA BAY Estr Monde Diplomatique, jul. 2016.
acumulado no fim do caminho e mais ao daçado as controvérsias. Ele dispõe de 5   L
 er os depoimentos no site da TWC2: https://
Tanjong Pagar
Brani nosso sentido de dever e autorrealização um arsenal que lhe permite nomear di- twc2.org.sg.
6   O
 s deputados são eleitos segundo um sistema
ao longo do caminho”. E alerta: “Se nosso retamente os membros dos conselhos que combina votos nominais e de lista. Assen-
pacto social falhar, grande parte dos sin- de administração e os editores-chefes tos são atribuídos aos “melhores perdedores”:
gapurianos acabará por sentir-se afasta- dos grandes veículos de comunicação. esses deputados que não venceram podem
ins intervir nos debates, mas não têm direito a voto.
Aeroporto Porto da do restante da sociedade, pensando Singapura ocupa o 129º lugar de 180
turais 7   M
 athiew Mathiews e Malvin Tay, “Must you speak
Grande eixo de transporte mundial que o sistema não está do seu lado”. na classificação sobre liberdade de im- English to qualify as Singapore PR or new ci-
s tizen” [Você deve falar inglês para se qualificar
ciais Esse “pacto”, uma mistura de valores prensa feita pelos Repórteres sem Fron-
Fontes: Singapore Urban Redevelopment Authority, como RP de Singapura ou novo cidadão], The
nhos Master Plan 2019; Charlotte Ruggeri, Atlas des villes confucianos mais ou menos instrumen- teiras. Em 2022, por exemplo, Terry Xu Straits Times, Singapura, 4 mar. 2023.
ers) mondiales, Autrement, 2020. talizados (respeito pela hierarquia, obe- e Daniel de Costa – respectivamente 8   Gabrielle Chan, “476 suicides reported in Singa-
diência, justiça etc.) e valores ocidentais diretor de publicação e redator do site pore in 2022, 98 more than in 2021” [476 suicí-
dios relatados em Singapura em 2022, 98 a mais
mais ou menos arranjados, tem sido de de notícias The Online Citizen, fechado do que em 2021], The Straits Times, 6 jul. 2023.
Oficialmente, não há discriminação: fato bastante questionado. Uma prova alguns meses antes – foram condenados 9   Y ong Shu Ling, Unteachable [Inensináveis], 2019.
todos são tratados com igualdade. É ver- são as eleições legislativas de 2020: ape- a três semanas de prisão. 10  Cf. Caroline Wong, Singaporean Film Industry
in Transition: Looking for a Creative Edge. The
dade que existem bairros identitários – sar de uma divisão de jurisdições elei- A lei de proteção contra mentiras e Nature and Role of Intangible Resources that
Little India, China Town, Kampung Glam torais feita sob medida, de um acesso manipulação de 2019 completa o esque- Shape an Uncertain and Changing Environ-
(bairro muçulmano) –, mas eles servem muito reduzido à mídia para a oposição ma. Agora, qualquer interpretação de ment such as the Film Industry [Indústria ci-
nematográfica de Singapura em transição: em
principalmente para se encontrar e fa- e de uma campanha ultracurta de nove um fato que desagrade às autoridades busca de uma vantagem criativa. A natureza e
zer compras, mais do que para viver dias, o partido no poder teve uma das pode ser considerada “mentira”. As pe- o papel dos recursos intangíveis que moldam
entre os seus. Aqui, quatro quintos dos piores pontuações da história, embora nas se multiplicam, particularmente so- um ambiente incerto e em mudança, como a
indústria cinematográfica], Lambert Academic
habitantes têm apartamento próprio, ou mantenha uma maioria de dar inveja bre ativistas contra a pena de morte. Em Publishing, 2010.
mais exatamente um direito de uso de a qualquer presidente (83 deputados, 26 de abril, um singapuriano acusado de 11  Thum Ping Tjin, “Explainer: Inequality in Singa-
99 anos, na maioria das vezes em gran- contra dez na oposição). ter participado da importação de 1 qui- pore” [Explicando: desigualdade em Singapu-
ra], New Naratif, 28 abr. 2023. Disponível em:
des conjuntos habitacionais públicos, lo de maconha (que ninguém jamais https://newnaratif.com.
que devem obrigatoriamente acomodar QUINZE EXECUÇÕES encontrou) foi enforcado; outro, três se- 12  Departamento de Estatística de Singapura,
cada comunidade proporcionalmente NA GUERRA ÀS DROGAS manas depois, por tráfico, de 1,5 quilo 2023. Disponível em: www.singstat.gov.sg.
13  “Lawrence Wong launches ‘Forward S’pore’
ao seu peso no país: 74,3% de chineses, O futuro primeiro-ministro vai mesmo de drogas; depois, mais dois em julho, to set out road map for a society that ‘bene-
16,3% de malaios etc. Portanto, não exis- aprender com isso? Nada é mais incerto.15 incluindo uma mulher, por 30 gramas de fits many, not a few’ [Lawrence Wong lança
te gueto na ilha, o que não impede que O debate público, visto como uma poten- heroína. Desde março de 2022, quinze “Forward S’pore” para oferecer um roteiro para
uma sociedade que “beneficia muitos, não pou-
alguns sejam mais iguais que outros... cial ameaça à estabilidade, permanece pessoas foram executadas, após julga- cos”], Straits Times, Singapura, 28 jun. 2022.
Percebendo a preocupação que cresce sufocado, inclusive no que diz respeito às mentos raramente justos. Os defensores 14  “2019 Global wealth Report” [Relatório de ri-
nos estratos médios, até então relativa- questões ambientais. O traçado da oitava dos direitos humanos que corajosamen- queza global 2019], Credit Suisse, 2020.
15  Éric Frécon, “Singapour. Des politiques et
mente protegidos e conscientes de que o linha de metrô, a Cross Island, que exige te se mobilizam sofrem vários tipos de des efforts de transition, d’ajustements... ou
autoritarismo não tem necessariamente cavar sob a maior reserva natural da ilha assédio: vigilância, intimação à polícia, de façade?” [Singapura. Políticas e esforços
grande futuro, o vice-primeiro-ministro e desmatar três hectares de terreno, foi site censurado. Claro que Singapura não de transição, ajustes... ou fachada?] em Ga-
briel Facal e Jérôme Samuel (orgs.), L’Asie du
e futuro primeiro-ministro designado fortemente contestado. O Ministério dos é Pequim. Contudo, um intelectual como Sud-Est 2023. Bilan, enjeux et perspectives
Laurence Wong lançou uma plataforma Transportes destacou a redução do tem- PJ Thum, apesar de muito conhecido e [Sudeste Asiático 2023. Balanço, desafios e
de apaziguamento, a Forward Singapore, po de viagem em cerca de seis minutos e apreciado, conta que decidiu finalmente perspectivas], Irasec, Bangcoc, 2023.

semanas antes, o ministro das Relações Exteriores e o de suas funções. O presidente da República tem apenas
UMA TRANSIÇÃO AGITADA ministro do Interior e da Justiça tinham ficado sob suspei- um papel honorífico – salvo pela nomeação para cargos-
ta por causa de dispendiosas reformas em suas casas. -chave da administração pública. Isso lhe dá os meios pa-

Q uando Lee Hsien Loong, atual primeiro-ministro, no


cargo há dezoito anos, e filho do fundador do Estado,
anunciou a intenção de se aposentar, as manobras se
Eles foram inocentados, mas as imagens de suas casas
luxuosas, quando as desigualdades nunca foram tão
grandes, despertaram indignação. Para aumentar os es-
ra influenciar o designado sucessor do primeiro-ministro,
Lawrence Wong, cuja nomeação, laboriosa, resulta de
uma escolha predefinida. Se o resultado dessa eleição
multiplicaram. O fim dos Lee e a transferência do poder cândalos que sacodem o Partido da Ação Popular (PAP), muito bem preparada não abalar o poder, as eleições le-
para a nova geração, a quarta desde a independência, o presidente da Assembleia Nacional precisou se demitir gislativas que devem ocorrer o mais tardar em 23 de no-
chamada “4G”, passam por muitas turbulências. Em julho, depois de chamar um deputado da oposição que pedia a vembro de 2025 e que determinarão o futuro líder de Sin-
o primeiro-ministro exigiu a demissão do ministro dos criação de um salário mínimo de “populista de merda” – gapura devem ser um pouco mais agitadas. (M.B.) 
Transportes, Subramaniam Iswaran, investigado pelo ga- ele estava resmungando, mas todo mundo ouviu.
binete de investigação de práticas de corrupção com o Além disso, para poder concorrer às eleições presiden-
1 Arnaud Leveau, “Singapour, une transition pas si tranquille”
bilionário Ong Ben Seng. É a primeira vez em 37 anos que ciais de setembro de 2023, Tharman Shanmugaratnam, [Singapura, uma transição não muito tranquila], Lettre confi-
um ministro passa por esse tipo de situação.1 Algumas um dos pesos-pesados do PAP e do governo, demitiu-se dentielle Asie21-Futuribles, Paris, n.174, jul.-ago. 2023.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

NAS MARGENS DA EUROPA OCIDENTAL

Trieste, a fronteira de Esquerda – versão do antigo Partido


Comunista Italiano, depois rebatizado
como Partido Democrático (PD) –, foi

sangrenta esquecida
aprovada por unanimidade pelo Parla-
mento. “A ideia era não deixar a direita
se apropriar dessa memória. É por isso
que a lei menciona todas as vítimas da
violência na zona da fronteira oriental.
Mas parece que só foram lembradas
Até o início do século XX, a Ístria era austríaca, antes de se tornar italiana e, aquelas cometidas contra os italianos”,
posteriormente, iugoslava, sendo finalmente dividida entre a Eslovênia e a lamenta Dusan Kalc, vice-presidente da
Associação Nacional dos Partigiani da
Croácia. É uma região de fronteiras intricadas, facilmente cruzadas pelos Itália (Anpi), na província de Trieste.
migrantes que acabam em Trieste. Para justificar a expulsão deles, o governo A questão das foibe tornou-se objeto
italiano instrumentaliza as vítimas da Segunda Guerra Mundial, esquecendo de preocupação nacional na Itália. Nos
últimos anos, mais de uma centena de
que a minoria eslovena (comunista ou cristã) foi amplamente perseguida cidades do país deram a praças ou ruas
o nome de Norma Cossetto. Heroína de
um filme da RAI e de uma história em
POR JEAN-ARNAULT DÉRENS E LAURENT GESLIN*, ENVIADOS ESPECIAIS quadrinhos distribuída nas escolas do
Piemonte,3 essa jovem oriunda da vila
de Visinada/Vižinada foi estuprada e ati-

D
a varanda, Paolo Rumiz deixa tão abertos, mas não para todos. É para cerimônias oficiais do Dia da Memória, rada em uma foiba no outono de 1943,
seus olhos passearem pelos pla- Pesek que há muito tempo a polícia ita- provocando uma onda de indignação na durante a insurreição da Ístria após a ca-
tôs que circundam as zonas in- liana empurra os exilados, por causa de Eslovênia e na Croácia.2 Então presiden- pitulação italiana. As comunidades esla-
dustriais do Golfo de Trieste. um acordo bilateral de readmissão assi- te do Parlamento Europeu (Forza Itália vas na época estavam rebeladas contra
“Não foi o mar que despertou minha nado com Ljubljana em 1996, o qual, no – Partido Popular Europeu), Tajani se os italianos, sobretudo aqueles que ha-
vontade de ir além, mas a fronteira tão entanto, contradiz as regras europeias tornou ministro das Relações Exteriores viam apoiado o regime fascista, como
próxima. Na época da Iugoslávia, ela sobre asilo, levando o Estado italiano a do governo formado por Giorgia Meloni uma resposta aos vexames e intimida-
se abria para um mundo estranho e ser condenado por sua própria justiça (extrema direita), em outubro de 2022, e ções sofridos durante décadas.
desconhecido”, recorda o escritor via- em 2021: essas deportações causavam defende uma parceria com a Eslovênia
jante.1 Trieste é um beco sem saída no expulsões em cadeia até a Bósnia-Her- e a Croácia para garantir a proteção das ESLOVENOS “BRANCOS”
fundo do Adriático, mas é também zegovina. “Apesar das fanfarronices de fronteiras da União Europeia... OU “VERMELHOS”
uma porta, a cidade que os exilados nosso governo, elas não foram retoma- Esse Dia da Memória foi instituído em Há muito tempo, a “fronteira oriental”
atravessam a caminho do Ocidente. das, pois a Eslovênia não é mais a fa- 2004 para homenagear as vítimas dos constitui um totem para a direita italia-
Na década de 1990, esse grande porto vor”, celebra Schiavone. massacres cometidos pela Resistência na. Em 1915, a Itália entrou na guerra in-
italiano viu o desfile de refugiados fu- Com estacionamentos desertos e edi- iugoslava no fim da Segunda Guerra teressada em alcançar a unidade nacio-
gindo das guerras que devastaram a fícios abandonados, a subestação de Pe- Mundial – cujos integrantes atiravam nal, esperando conquistar as províncias
Iugoslávia. Hoje ele é uma das princi- sek fica perto de um memorial contro- fascistas ou supostos fascistas nessas de Trento, Gorizia e Trieste, bem como
pais saídas da “rota dos Bálcãs” que os verso: a Foiba de Basovizza. Foi diante foibe, fossos naturais típicos do relevo da a Ístria, as ilhas e a costa da Dalmácia –
migrantes atravessam tentando che- dele que Antonio Tajani bradou “Viva a região –, bem como o êxodo de italianos todas essas regiões, outrora venezianas,
gar à União Europeia. Ístria italiana, viva a Dalmácia italiana!”, expulsos da Iugoslávia nos anos seguin- eram então possessões austro-húnga-
“Somos experientes em receber as no dia 10 de fevereiro de 2019, durante as tes. A lei, proposta pelos Democratas ras. Entre junho de 1915 e setembro de
pessoas”, confirma Gianfranco Schiavo- 1917, as doze Batalhas do Rio Isonzo
ne, presidente do Consórcio Italiano de marcaram o vale que se divide entre a
Solidariedade (CIS), uma organização NOS CONFINS DA ITÁLIA E DA ESLOVÊNIA Eslovênia e a Itália. As esperanças tran-
de ajuda aos exilados criada em 1993. salpinas foram apenas parcialmente sa-
Para Udine 909 m Para Ljubljana
“As chegadas duplicaram nos últimos 1 495 m tisfeitas. Os italianos recuperam a cida-
Nova Gorica
meses. Cadastramos 15 mil pessoas em Gorizia de de Trieste, mas os Aliados deixaram
1 185 m
2022, principalmente afegãos. Já en- a maior parte da Dalmácia para o novo
ITÁLIA
frentamos esse tipo de situação antes. O Ajdovšcina Reino dos Sérvios, Eslovenos e Croatas,
governo de Giorgia Meloni declarou ‘es- Cemitério militar criado em 1918. As frustrações dos ve-
Cervignano Redipuglia/Rodopolje
Para Veneza

tado de emergência migratória’, mas re- del Friuli


duziu o número de vagas nos centros de 1 313 m
Monfalcone ESLOVÊNIA Postojna
acolhimento. É um estado de emergên-
1947-1990cia que foi montado”, afirma. Todo dia, Fernetti/
1809-1813 1815
Fernetitci Sežana IMPÉRIO
voluntários se revezam ÁUSTRIA
nos jardins da
Piazza Libertà, em frente à estação, para 1 027 m DA ÁUSTRIA
Opicina/Opcine Trebiciano/
receber os recém-chegados. “A travessia Trebce REINO DA
ITÁLIA Longera/Lonjer Basovizza
dos Bálcãs é rápida agora, desde que se Golfo Pesek ITÁLIA Laibach
Ljubljana de Trieste Trieste/Trst Save
paguem os US$ 10 mil que os passadores Fossa de (Ljubljana)
ZONA A Mar Kozina
cobram para a viagem Eslovênia
entre a Turquia e Basovizza
Adriático Koper/Capodistria
a Itália”, observa Davide Pittioni, que di- Izola/Isola
Trieste Piran/Pirano Trieste Províncias
rige um centro de acolhimento
IUGOSLÁVIA do CIS. 1 028 m
Portorož/Portorose Ilírias
Em Trieste, a fronteira está em toda
Mar Fiume (Rijeka) C
Linhaparte: as ruas queRijeka
sobem o planalto Adriático g
ZONA B Croácia
Morgan,
cárstico em torno da cidade levam aos 18
demarcação Umag/Umago
entre postos
a Itálie e de controle de Pesek ou de Fer- Im
a Iugoslávia, Pula Buje Império Pula A
netti/Fernetici, permitindo chegar à CROÁCIA francês... a
1945-1954
Eslovênia. Desde a entrada desse país Para Rijeka d
Fonte: Christian Grataloup, Vižinada/ ... e Estado vassalo d
Estado livre Os locais foram nomeados Visinada e Zagreb
na União Europeia
de Trieste, (2004),
Atlas historique depois no es-
mondial,
segundo a língua do país
Novigrad 0 5 10 km
Les Arènes-L’Histoire, 2019. As fronteiras atuais 0 50 km 1. Impé
paço Schengen (2007), os caminhos es-
1947-1954 em que se encontra. figuram em transparência. até 186
© Cécile Marin
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 31

teranos e o tema da “vitória roubada” antigas zonas A e B podiam se deslo- nem todas cicatrizadas. No planalto que Do lado esloveno, o silêncio também
seriam explorados por um ex-socialista car de um país para outro. Os italianos domina Trieste, Trebiciano/Trebče é um é regra há muito tempo. Contudo, em
que se juntou ao campo intervencionis- viajavam para a Iugoslávia em busca de bastião esloveno: no centro da vila, uma 2021, a antropóloga Katja Hrobat-Virlo-
ta durante a guerra: Benito Mussolini... cigarros, álcool e gasolina baratos, en- estela de pedra estampada com uma es- get, da Universidade de Koper, abordou
“Somos uma Krajina, uma das fron- quanto os iugoslavos iam a Trieste com- trela vermelha homenageia os 104 habi- um tema outrora proibido, no primeiro
teiras de sangue da Europa”, reconhece prar bens de consumo ocidentais, com tantes mortos durante a guerra, muitos livro dedicado ao êxodo dos italianos
o historiador Raoul Pupo. Ex-dirigente destaque para os jeans. “Esse período deles nas fileiras da Resistência iugos- após a Segunda Guerra Mundial.5 “Para
provincial da Democracia Cristã, Pupo foi muito próspero”, reconhece Pupo. lava. “Fomos os primeiros a erguer um a maioria dos eslovenos, os italianos
é especialista em história da fronteira. “Contudo, nos fins de semana, os tries- monumento em sua homenagem, já em que deixaram a Iugoslávia após a Se-
“A questão das foibe deu origem a mui- tinos que não tinham comércio fugiam 1947”, explica com orgulho Mauro Kralj, gunda Guerra Mundial eram fascistas
ta manipulação. O número exato de ví- da cidade, que consideravam invadida um militante local do PD. ou funcionários do regime que tinham
timas continua impossível de precisar. pelas ‘hordas balcânicas’.” No dia 25 de abril, seis meses após a vindo da Itália, e isso fechava a questão”,
Milhares de pessoas foram de fato liqui- Hoje, a senadora Tatjana Rojc é a úni- chegada de Meloni ao poder, as come- explica. “Quando chegaram à Itália, es-
dadas no fim da Segunda Guerra Mun- ca a representar a minoria eslovena no morações da Libertação foram realiza- ses exilados também foram considera-
dial, funcionários do regime fascista, Parlamento italiano. Isso equivaleria a das sob clima tenso, com o presidente do dos fascistas: em algumas cidades ‘ver-
agentes da polícia, membros do apare- 100 mil pessoas na Itália, mas ela rejeita Senado, Ignazio La Russa – veterano das melhas’, eles foram impedidos de des-
lho judiciário. Algumas foram fuziladas a ideia de organizar um censo “étnico”: muitas versões da extrema direita, do Mo- cer do trem.” Além disso, entre os que
ou mortas em campos de prisioneiros, “Não faria sentido, pois as sequelas do vimento Social Italiano (MSI) aos Fratelli partiram, destaca a historiadora, “havia
mas estamos muito longe do ‘genocídio’ fascismo ainda estão presentes. Muitos d’Italia –, afirmando (erroneamente) que croatas e eslovenos, e muitas pessoas de
algumas vezes evocado quando se trata sobrenomes foram ‘italianizados’ à for- “o antifascismo não estava consagrado identidade mista, incerta, que sonha-
das foibe.” Ninguém sabe quantos cor- ça”. Submetida a uma feroz repressão na Constituição”.4 Em Trieste, um grande vam com uma vida melhor no oeste”.
pos estão na Foiba de Basovizza: no lo- por suspeita de simpatia comunista, a destacamento policial manteve os mani- Dependendo do caso, as autoridades
cal foi colocada uma tampa de concreto minoria eslovena da Itália continuou festantes anarquistas afastados das ce- iugoslavas favoreciam ou impediam es-
que nunca foi removida. sob suspeita após o fim da Segunda rimônias oficiais. “A direita quer apagar sas saídas. “Famílias foram separadas”,
Cobiçada pela Iugoslávia no fim da Se- Guerra Mundial. “As províncias de Tries- qualquer referência ao antifascismo em continua a antropóloga, “e uma capa de
gunda Guerra Mundial, Trieste acabou te e Gorizia reconheceram nossos di- nome do apaziguamento da memória”, chumbo se abateu sobre os que ficaram.
recebendo tratamento especial. Em 1947 reitos culturais e linguísticos, não os de lamenta Kalc, entrevistado na companhia Quando as testemunhas concordaram
foi criado um “território livre de Trieste”. Udine”, observa Rojc. Os vales do Friul do presidente provincial da Anpi, Fabio em falar comigo, muitas conversas ter-
Inicialmente posta sob administração constituíam os domínios da Gladio, a Vallone. “Entretanto, esse apaziguamento minaram em lágrimas”.
aliada, em 1954 a cidade foi dividida rede clandestina criada pelo Ministério já foi feito por meio da lei de anistia aos Stefano Lusa vem de uma das últimas
entre a Itália (zona A) e a República So- do Interior italiano em conjunto com crimes fascistas, aceita pelo líder comu- famílias italianas da Eslovênia. O jorna-
cialista Federativa da Iugoslávia (zona a Organização do Tratado do Atlântico nista Palmiro Togliatti em 1948.” “O erro lista de seus 50 anos dirige os programas
B), e sua linha de demarcação só foi re- Norte (Otan) para bloquear a ameaça da esquerda foi falar em memórias com- da Radio Capo d’Istria, nome italiano da
conhecida como uma fronteira interna- de uma invasão comunista. A Operação partilhadas. As memórias são subjetivas. cidade de Koper, principal porto do país.
cional pelo Tratado de Osimo, em 1975. Gladio é conhecida por seu papel ocul- Os fatos históricos devem ser estabeleci- “Temos uma televisão em italiano, o que
“Em nossa região, todos eram vítimas e to na “estratégia de tensão” da década dos de maneira científica. Hoje, por uma pode parecer extraordinário para uma
algozes”, continua Pupo. Para o historia- de 1970, quando tudo parecia oportuno verdadeira inversão de valores, somos comunidade de apenas 2 mil pessoas,
dor, casado com uma refugiada da Ístria para impedir a chegada ao poder do Par- nós, os antifascistas, os acusados de revi- mas ela foi criada durante a era iugosla-
que chegou à Itália aos 2 anos de idade, tido Comunista Italiano (PCI), mas ela sionismo ao criticarmos a propaganda da va como um instrumento de propagan-
o êxodo é um fenômeno muito mais im- também ajudou a despovoar as vilas es- extrema direita a propósito dos supostos da. Nossa televisão cobria todo o norte
portante que as foibe. Depois da guerra, lovenas das montanhas, com o objetivo crimes dos partigiani”, a Resistência ita- da Itália, passou a fazer exibições em co-
de 200 mil a 300 mil italianos deixaram de “limpar” a área fronteiriça. liana, acrescenta Vallone. “A Itália não teve res antes da RAI e exibia filmes bastante
a Iugoslávia, movimento que chegou ao Topo da lista regional do PD nas elei- um julgamento de Nuremberg e nunca se ousados, o que explicava sua populari-
auge em 1954, após a atribuição à Itália ções para o Senado de 2022, Rojc vem empenhou em uma desfascização”, pros- dade”, diverte-se o jornalista. “Hoje, esse
e à Iugoslávia das zonas A e B. “Muitos de uma família de eslovenos “brancos”, segue Kalc. “Pelo contrário, depois da veículos sobrevivem porque permitem à
desses exilados permaneceram na re- ou seja, católicos, mais bem integrados guerra, os partidos no poder reciclaram Eslovênia dizer que ela garante os direi-
gião de Friul-Veneza Júlia. Alguns passa- à sociedade italiana do pós-guerra, por antigos fascistas para combater o PCI.” tos da minoria italiana.”
Para
Para
ParaUdine
Udine
Udine 909 mmm
909
909
ram a integrar a classe dominante, e to- meio da Igreja e da democracia cristã. A onda de choque da queda do Muro de Desde a independência, em 1991, a
Nova
Nova Gori
Nova Gor
Go
dos votavam nos partidos de direita e de A maioria da comunidade, no entanto, Berlim reacendeu na Itália o debate sobre direita eslovena fez do tema dosGorizia “crimes
Gorizia
Gorizia
centro, por causa do anticomunismo.” permanece de cultura “vermelha”, mes- os acontecimentos do fim da Segunda de comunistas e membros da Resistên-
ITÁLIA
ITÁLIA
ITÁLIA
A fronteira entre a Itália e a Eslovênia mo que a ruptura de 1948 entre Tito e Guerra Mundial, o que significou abrir as cia” seu foco principal. Poucos dias an-
se abriu aos poucos: os residentes das Stalin tenha causado feridas profundas, portas para o revisionismo. tes de deixar Cervignano
oCervignano
poder, após seu Cemitério
Cemitériomilitar
Cemitério
fracasso militar
militar
Cervignano Redipuglia/Rodopolje
Redipuglia/Rodopolje
Redipuglia/Rodopolje
Veneza
Para Veneza
Veneza

nas eleições parlamentares


del
del Friuli
delFriuli
Friuli de abril de
2022, o muito conservador primeiro-mi-
Para
Para

Monfalcone
Monfalcone
Monfalcone
nistro Janez Janša assinou um decreto
1815-1914
1815-1914
1815-1914 1920-1937
1920-1937
1920-1937 1947-1990
1947-1990
1947-1990 tornando a data de 17 de maio um dia FeF
O Caríntia
Caríntia
Caríntia ÁUSTRIA
ÁUSTRIA
ÁUSTRIA ÁUSTRIA
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ÁUSTRIA para relembrar os “crimes comunistas” Fer
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ARIA
A eee – decisão cancelada pelo novo governo
DDr aDrvarva v
Opicina/Opcine
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de centro-esquerda de Robert Golob,
ITÁLIA
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ITÁLIA Longera/L
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Vêneto
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Vêneto Carniole
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Ljubljana que provocou a indignaçãoGolfo daGolfodireita e
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reavivou as querelas memoriais que di-
Eslovênia
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Eslovênia ZONA
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ZONA MarMar
Mar
Eslovênia
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Eslovênia laceram o pequeno país.
ÁUSTRIA-HUNGRIA
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111 REINO
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DA Adriático
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Adriático giram sobretudo Koper/Capodistria
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IUGOSLÁVIA
IUGOSLÁVIA
IUGOSLÁVIA
222 “Essas polêmicas Izola/Isola
Izola/Isola
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Trieste
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Trieste Trieste
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IUGOSLÁVIA
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IUGOSLÁVIA em torno do papel dosPiran/Pirano Piran/Pirano
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Portorož/Portorose
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colaboradores eslovenos dos nazistas,
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Rijeka mas o destino dos italianos quase nunca
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germânica, Linha
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1815-1867
1815-1867
1815-1867 Ístria
Ístria
Ístria emem 1925
em1925
1925 é mencionado”, explica Nevenka Troha.
demarcação
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Itálie A historiadora de Liubliana foi uma das
Austríaco
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Pula primeiras a abordar o assunto, tendo os
1945-1954
1945-1954
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Itália
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2.2.Reino dos
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Reino dosSérvios,
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locais
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Trieste,
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Trieste, Atlas
Atlashistorique
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mondial, desmantelamento da Iugoslávia. “Sobre Novigrad
Novigrad
Novigrad
m
km 1.1.Império Austríaco
1.Império
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Croatas e eEslovenos
Croatas eEslovenos
Eslovenos Les
LesArènes-L’Histoire,
LesArènes-L’Histoire,2019.
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2019. segundo
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segundo a alíngua
alíngua dododo
língua país
país
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até
até 1866.
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1866. até
até1929.
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1929. 1947-1954
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1947-1954 a questãoem
emem dos
que
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que italianos,
encontra.
encontra.
encontra. existe um con-
32 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

senso tácito entre a esquerda, que assu- partido regionalista de centro-esquerda, lianos foram se engajar nos trabalhos de tários, seguindo o projeto do arquiteto
me a herança cultural da Iugoslávia, e hegemônico durante três décadas, ain- reconstrução, mas alguns logo voltaram. Edvard Ravnikar, discípulo esloveno de
uma direita disposta a limpar a imagem da ligado ao bilinguismo croata-italiano. Por causa das duras condições de vida, Le Corbusier. “Tito queria fazer de Nova
de antigos colaboradores em nome do Austríaca até 1918, depois italiana, todo mundo passou fome. Outros tive- Gorica uma vitrine do socialismo, que
patriotismo esloveno.” A situação é mui- iugoslava e finalmente partilhada entre ram sérios problemas em 1948, quando deveria resplandecer até o outro lado da
to semelhante na Croácia. a Eslovênia e a Croácia, a Ístria viu seu Tito e Stalin romperam, e alguns acaba- fronteira”, lembra Stojan Pelko, diretor
Na ponta noroeste da Ístria, a peque- destino desenrolar-se em um complexo ram na ilha-prisão de Goli Otok.” O ex- dos programas da Capital Europeia da
na cidade croata de Buje ergue-se em entrelaçamento de fronteiras. “Parado- -jornalista foi o primeiro a mencionar Cultura 2025, título atribuído conjunta-
um afloramento rochoso, a cerca de 10 xalmente, era mais fácil ir para a Itália publicamente o destino desses infelizes, mente a Gorizia e Nova Gorica. A antiga
quilômetros do Adriático. A penínsu- durante a era iugoslava, mas tudo se quando Goli Otok ainda parecia um as- Praça Transalpina, rebatizada de Praça
la, conhecida por suas cidades antigas complicou após a dissolução do Es- sunto delicado na Iugoslávia. da Europa, pretende ser o símbolo da
e por sua gastronomia, atrai turistas, tado comum e antes da integração da reconciliação entre as duas cidades.
mas estes parecem ignorar a vila, cujas Croácia e da Eslovênia à União Euro- “Nos últimos dez anos, os dois municí-
velhas casas caem aos pedaços. “Após peia”, observa Marianna Jelicich Buić, Enquanto muitos pios organizaram em conjunto serviços
a Segunda Guerra Mundial, metade que ensina italiano na cidade costeira italianos fugiram da públicos em comum, como os de trans-
dos habitantes foi embora, e os títu- de Umag. A identidade da Ístria é uma
antiga zona B nos anos portes”, continua Pelko. “Vimos quão
los de propriedade muitas vezes nem identidade de fronteira, na qual nacio- intimamente ligadas as populações
aparecem no cadastro”, explica Corra- nalistas de todos os contornos projetam do pós-guerra, outros, permaneciam quando as autoridades
do Dussich, vice-prefeito (italiano) da suas narrativas exclusivas, mas a vida pelo contrário, foram eslovenas levantaram subitamente uma
cidade. “As pessoas de nossa vila eram cotidiana se desenrola sob o signo do para a Iugoslávia “para barreira em março de 2020, para conter
camponesas, nem muito fascistas intercâmbio e do multilinguismo.
construir o socialismo” a propagação da Covid-19. Há uma for-
nem muito comunistas. Muitas foram Jelicich Bui, que acredita pertencer a te minoria eslovena em Gorizia, e cada
expulsas de suas casas, outras foram uma geração menos marcada pelas ci- vez mais italianos se instalam em Nova
mortas. O dono de um café foi raptado catrizes do passado, reivindica sua “iu- UM LOCAL SIMBÓLICO Gorica, em busca de escolas de melhor
pela Resistência porque sua filha tinha gonostalgia”, ao mesmo tempo que é PARA A RECONCILIAÇÃO qualidade.” Desde então, os imóveis es-
ido embora com um soldado italiano. apaixonada por sua Ístria local. Ela quer “Gorizia, você está amaldiçoada”, la- tão mais caros lá do que em Gorizia. 
Ninguém nunca mais o viu... Trabalha- acreditar na afirmação de uma identida- menta uma famosa canção antimilita-
dores vieram depois de toda a Iugoslá- de territorial que teria como um de seus rista, o equivalente italiano da “Chan- *Jean-Arnault Dérens e Laurent Ges-
via para viver nos bairros construídos marcadores o dialeto istro-veneziano: son de Craonne”, que acompanhou, lin são jornalistas. Acabam de publicar
ao redor das fábricas.” “É a língua que as pessoas sempre fa- entre outras coisas, os motins do Exér- Les Balkans en cent questions. Carrefour
Um monumento em homenagem aos laram na Ístria. Tanto o italiano como cito francês durante a Primeira Guerra sous influence [Os Bálcãs em cem per-
membros da Resistência ainda reina na o croata nos foram impostos no século Mundial. A cidade, situada cerca de 20 guntas. Um cruzamento sob influência]
praça central da vila: embora muitas es- XX”, assegura a animada quadragenária, quilômetros ao norte do Golfo de Tries- (Tallandier, Paris, 2023).
tátuas erigidas sob a Iugoslávia tenham que criou o Festival Istro-Veneziano e se te, às margens do Isonzo, na fronteira
sido demolidas na Croácia, elas perma- detém para cumprimentar o proprietá- com a Eslovênia, resume a história da 1   P aolo Rumiz é autor de obras como Aux frontières
necem intactas na Ístria, onde muitas rio de um café no centro de Buje, um al- região. Ela foi alvo de combates ferozes de l’Europe [Nas fronteiras da Europa] (2011) e
ruas e praças ainda levam o nome do banês oriundo do Kosovo. “Olha, até ele durante a Grande Guerra, quando a Itá- Le Phare, voyage immobile [O farol, viagem imó-
vel] (2015), publicados pela Hoëbeke, Paris.
marechal Tito. “Ninguém se atreve a re- fala istro-veneziano, porque se integrou lia quis arrebatar as “terras irredentas” 2   A Ístria hoje se divide entre a Croácia, a Itália
mover esses monumentos, por medo de à nossa comunidade!” da Ístria e da Dalmácia ao Império Aus- e a Eslovênia. Já a Dalmácia se localiza prin-
reabrir velhas feridas. Sem um consenso Enquanto muitos italianos fugiram da tro-Húngaro. Dominando a cidade que cipalmente na Croácia, com o resto de seu
território distribuindo-se entre Montenegro e a
para reescrever nossa história coletiva, a antiga zona B nos anos do pós-guerra, hoje abrange os dois países, Itália e Es- Bósnia-Herzegovina.
memória da Resistência continua sendo outros, pelo contrário, foram para a Iu- lovênia, a Basílica de Monte Santo foi re- 3   R oberto Pietrobon, “Foiba rossa, propaganda
uma base comum aceitável para todos”, goslávia “para construir o socialismo”. duzida a cinzas. Gorizia foi deixada para nera. Un fumetto revisionista nelle scuole del
Piemonte” [Foiba vermelha, propaganda negra.
explica a poeta Loredana Boljun, que foi Giacomo Scotti é um dos últimos sobre- a Itália em 1918, mas quase foi anexada Uma história em quadrinhos revisionista nas
vice-presidenta do condado de Ístria na viventes desse “contraêxodo”. Nascido à Iugoslávia em 1945. A nova fronteira escolas do Piemonte], 15 fev. 2020. Disponível
década de 1990. Após a independência em 1928 na região de Nápoles, ele viajou foi traçada em 16 de setembro de 1947, em: www.micciacorta.it.
4   L
 er Benoît Bréville, “Assauts contre l’histoire”
da Croácia, em 1991, a península expe- por toda a Itália como assistente civil das com o arame farpado cortando a Praça [Ataques contra a história], Le Monde Diplo-
rimentou um percurso político original: tropas anglo-norte-americanas após o Transalpina em duas. matique, jun. 2023.
refratária ao nacionalismo croata defen- desembarque na Sicília em 1943; depois, Do lado iugoslavo, a cidade de Nova 5   Katja Hrobat-Virloget, V tišini spomina: “ekso-
dus” in Istra [Na quietude da memória: “êxodo”
dido pelo governo central, a região é um chegando a Trieste, cruzou clandestina- Gorica (“Nova Gorizia”) foi construída e Ístria], Založba Univerze na Primorskem/Založ-
reduto da Dieta Democrática da Ístria, mente a fronteira iugoslava. “Muitos ita- a partir de 1948 por brigadas de volun- ništvo tržaškega tiska, Koper-Trieste, 2021.
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 33

DEBATES SOBRE O FIM DA VIDA: ENTRE A ÉTICA E A POLÍTICA

Como garantir uma prevê o artigo 2º desse texto legislativo,


alguns atos podem ser suspensos ou não
praticados. Os “cuidados paliativos”, na

morte digna para todos?


acepção do Código de Saúde Pública
(artigo L.1110-10), visam apenas “aliviar
a dor e acalmar o sofrimento psíquico”.
A cessação dos tratamentos curativos a
pedido explícito do paciente ou seguin-
do suas diretivas antecipadas conduz
A Convenção Cidadã sobre o Fim da Vida manifestou-se a favor da abertura da mais ou menos rapidamente à morte.
assistência ativa à morte, à qual o Parlamento francês poderá dar contornos A experiência revela que essa busca
por um ponto intermediário entre a “im-
jurídicos neste outono. Mais de uma dúzia de países já estabeleceram legislações placabilidade terapêutica” e a “eutaná-
nesse sentido. Porém, para além dos textos, só a salvaguarda e o reforço do sia” não basta. Diversos relatórios, entre
sistema de saúde pública podem garantir que se faça realmente uma escolha eles o de Didier Sicard, apresentado em
dezembro de 2012 ao presidente fran-
cês François Hollande, denunciam as
POR PHILIPPE DESCAMPS* dificuldades de acesso aos cuidados pa-
liativos. Durante a campanha eleitoral,
alguns meses antes, Hollande havia se

“T
omei os comprimidos há pessoas no primeiro ano, e a um número irreversível, desesperada, vivida como comprometido a autorizar “a assistência
uma hora. Por volta de dez vezes maior em 2021. intolerável”.6 Muitos, portanto, não espe- médica para dar fim à vida com dignida-
meia-noite estarei partin- Na França, o livro Changer la mort raram a lei. Muitas pessoas comuns ou de”. Porém, a chamada Lei Claeys-Léo-
do.” Depois de devolver a [Mudar a morte] marcou a opinião pú- famosas manifestaram o desejo de usar netti, de 2 de fevereiro de 2016, não vai
um jovem suicida o gosto pela vida, blica há mais de quarenta anos.3 Desde o que consideram uma liberdade (ler muito longe. Ela fortalece o acesso aos
uma sobrevivente dos campos nazistas então, a grande maioria das pessoas boxe). Casais inseparáveis, como Paul cuidados paliativos, torna mais incon-
decide, aos 79 anos, que já viveu o sufi- periodicamente questionadas sobre o Lafargue e Laura Marx (filha de Karl), em tornáveis as diretivas antecipadas e for-
ciente. Sob a música de Cat Stevens, o assunto é favorável ao respeito à esco- 1911, ou André e Dorine Gorz, em 2007, talece o papel da pessoa de confiança.
filme cult de Hal Ashby, Ensina-me a lha dos indivíduos e à possibilidade de optaram pela morte voluntária conjunta. Porém, contenta-se em reconhecer, no
viver, de 1971, levantou a questão da li- “assistência ativa”. O Parlamento nunca Como tornar possível, em condições artigo 3º, o direito em casos muito espe-
berdade de escolher a própria morte. seguiu essa opinião: a última proposta dignas, algo que constitui uma escolha cíficos à “sedação profunda e contínua,
Em 1974, três laureados com o Nobel, nesse sentido, apresentada por Olivier pessoal? Para a coletividade, isso signi- provocando uma alteração da consciên-
incluindo o francês Jacques Monod, Falorni em abril de 2021, foi barrada pela fica antes de mais nada cuidar do enve- cia mantida até a morte”.
chamavam todos a “fazer valer seu di- obstrução dos deputados do partido Os lhecimento e do adoecimento para que Não existem dados confiáveis sobre
reito de morrer com dignidade”. Republicanos (direita). Um conjunto ninguém se sinta “um fardo para a socie- o número dessas sedações profundas e
Desde então, a maioria dos países in- de histórias pessoais comoventes e as dade e para os outros”, como lembra o contínuas. O Cese observa que muitos
dustrializados adotou leis para melhorar mudanças em todos os países frontei- Conselho Econômico, Social e Ambiental médicos consideram alguns termos “am-
o fim da vida, assumindo um papel na riços e na classe médica podem mudar (Cese) da França.7 Desde as primeiras li- bíguos, até hipócritas”, com “riscos de
gestão do sofrimento e na possibilida- a situação. Em resposta a uma questão nhas do manifesto que abre o resumo de interpretação e, portanto, de desvio”. Ele
de de encurtá-lo. A “assistência passi- colocada pela primeira-ministra fran- seu trabalho, os 184 cidadãos da Conven- também observa que a lei “cria confusão
va” tornou-se legal por via parlamentar cesa, Élisabeth Borne, a Convenção Ci- ção fizeram questão de recordar isto: “É entre pacientes e familiares”; há quem te-
ou pela evolução da jurisprudência em dadã sobre o Fim da Vida, reunindo 184 mais do que nunca necessário fortalecer nha a expectativa de direito à eutanásia,
muitas nações, mas apenas quinze paí- pessoas sorteadas, chegou ao consenso nosso sistema de saúde a fim de apoiar enquanto outros temem que esta lhes
ses autorizam a “assistência ativa”, sem- de que “o atual quadro de apoio ao fim todos os pacientes e mais especialmente seja imposta e receiam qualquer aneste-
pre sob condições estritas (ver mapa). da vida não está adaptado às diferentes aqueles que estão em situação de fim de sia. A Convenção Cidadã observa ainda
Em um contexto de envelhecimento situações encontradas”. Além disso, três vida”. No dia 20 de março, dezoito orga- que esse dispositivo continua sendo “re-
da população, de desenvolvimento de quartos de seus membros são favoráveis nizações – incluindo a Liga pelos Direitos lativamente pouco praticado” e cria “uma
doenças com consequências dolorosas e à abertura da “assistência ativa”.4 Ao re- Humanos, a Liga pela Educação, a Asso- situação complexa que certas dificulda-
de declínio das religiões, o debate anima ceber as propostas da Convenção no ciação pelo Direito de Morrer com Dig- des de aplicação e a heterogeneidade das
organizações da sociedade civil, parla- dia 3 de abril, o presidente Emmanuel nidade e o Comitê Nacional para a Ação práticas constatadas na França tornam
mentos e tribunais, do Chile à Nova Ze- Macron anunciou que um projeto de lei Laica – formaram uma “força progressis- ainda mais difícil compreender”.
lândia, do Quebec à África do Sul. seria apresentado até o fim do verão. Em ta e republicana” com o objetivo de fazer A Academia de Medicina considera
Pioneira, com uma lei que em 1942 já um momento no qual muitos atores e avançar o quadro legal, recordando, no satisfatório o atual quadro legal “quan-
descriminalizava a “assistência com vis- organizações tomam posição, a clareza dia 6 de abril: “Esse avanço implica um do o prognóstico é de risco de vida a
ta ao suicídio” na ausência de um “mo- dos debates requer que possamos sepa- orçamento à altura das necessidades, curto prazo por causa de uma patologia
tivo egoísta”, a Suíça tem visto as solici- rar as oposições reais daquelas que são a fim de permitir a igualdade de acesso grave e incurável”.9 No entanto, reco-
tações aumentarem significativamente apenas aparentes. [aos cuidados paliativos]”.8 nhece seus limites e questiona também
desde a virada do século. O contingente os parlamentares que terão de decidir a
de pessoas afetadas passou de menos ESCOLHA PRIVADA OU COLETIVA, AJUDA PASSIVA OU ATIVA? questão para aqueles cujo prognóstico
de uma centena antes do ano 2000 para LIBERDADE OU IGUALDADE? Em 1995, foram aprovadas na França de vida não está comprometido a curto
1.391 (mais 221 estrangeiros) em 2021, o Desde os trabalhos de Émile Durkheim cinco leis sobre o tema, sem sair de certa prazo: “Como negar a pacientes que vi-
equivalente a 1,9% de todas as mortes.1 no fim do século XIX, sabemos que os imprecisão. Assim, desde a primeira Lei venciam os horrores e a irreversibilidade
Desde a aprovação de uma lei sobre “in- idosos se suicidam com maior frequên- Leonetti, de 22 de abril de 2005, apro- de sua condição a aspiração legítima de
terrupção da vida mediante demanda cia. Em todos os continentes – incluindo vada por unanimidade pela Assembleia não serem espectadores de sua degrada-
e assistência ao suicídio assistido”, em a África –, a taxa de suicídio aumenta Nacional, o país autoriza uma forma ção e não sujeitar outros a ela?”.
2001, o número de pedidos aceitos nos acentuadamente a partir dos 65 anos e de “eutanásia passiva” – sem dizer isso
Países Baixos também aumenta ano a sobretudo após os 75 anos.5 Simone de explicitamente. É o “deixar morrer”: a CUIDADOS PALIATIVOS OU
ano, chegando a 8.707 em 2022,2 o equi- Beauvoir já observava há cinco décadas: recusa da “obstinação irracional” a res- ASSISTÊNCIA ATIVA À MORTE?
valente a 5,1% das mortes. A ajuda mé- “Alguns suicídios de idosos se seguem a peito de um paciente incurável. “Quan- Durante a campanha presidencial de
dica para o fim da vida no Canadá – país estados de depressão neurótica que não do se revelarem desnecessários, despro- 2022, a questão parecia polarizada em
que autoriza a eutanásia e o suicídio foi possível curar; mas a maioria deles porcionados ou sem outros efeitos que um eixo direita-esquerda: Valérie Pécres-
assistido desde 2016 – foi dada a 1.018 é uma reação normal a uma situação apenas a manutenção artificial da vida”, se, Marine Le Pen, Éric Zemmour e Nico-
34 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

las Dupont-Aignan concentraram-se na francesa” centrada nos cuidados paliati- campanha de informação, melhores toadministração voluntária de uma
melhoria dos cuidados paliativos; Anne vos: “A expectativa mais profunda de to- cuidados, hospitalização em domicílio, dose letal de medicamentos prescritos
Hidalgo, Nathalie Arthaud, Jean-Luc Mé- dos não é assistência ativa para viver, em cobertura territorial, formação de cui- por um médico para esse fim”. Reversí-
lenchon, Yannick Jadot, Philippe Pou- vez de assistência ativa para morrer?”.11 dadores, orçamento etc. No entanto, ela vel até ao último segundo, esse dispo-
tou e Fabien Roussel defenderam – com Essa posição ecoa a da Sociedade reconhece um princípio fundamental: sitivo deixa o paciente no controle de
nuances – uma legislação sobre a assis- Francesa de Apoio e Cuidados Paliativos “A vontade do paciente e seu livre-arbí- seu destino e poupa aos cuidadores a
tência ativa; Jean Lassalle e Emmanuel (Sfap), cuja presidenta, Claire Fourca- trio prevalecem em todos os casos”. Isso responsabilidade do gesto final. Nes-
Macron apostaram em um grande debate de, assegura: “A urgência não é legalizar a levou a concluir que “não basta garan- sa parte dos Estados Unidos, um terço
público ou em uma Convenção Cidadã. uma forma de morte provocada, mas tir a plena aplicação do quadro atual”. dos pacientes não toma a poção mor-
A análise das deficiências dos cuida- aplicar a lei atual, que garante cuidados tal que lhes é prescrita, seja porque a
dos paliativos e a necessidade de que eles paliativos em todos os lugares e para to- EUTANÁSIA OU doença já os levou antes, seja porque
sejam melhorados são, em todo o caso, das as pessoas, para que todos tenham SUICÍDIO ASSISTIDO? mudam de ideia.16 Em compensação,
unânimes. O governo pediu ao professor o direito fundamental de viver com Em um parecer de setembro de 2022, essa lei não atende pessoas que não
Franck Chauvin, especialista em saúde dignidade até ao fim”.12 Por outro lado, o Comitê Consultivo Nacional de Éti- são fisicamente capazes de cometer
pública, a elaboração de um plano dece- um coletivo de cuidadores reunidos por ca (CCNE) reconheceu que “algumas suicídio. “Como se pode justificar que
nal para criar um setor de cuidados pa- iniciativa da Associação pelo Direito pessoas que sofrem de doenças graves o alívio do sofrimento – se foi permi-
liativos. Todavia, parte da classe médica, de Morrer com Dignidade (ADMD) re- e incuráveis, causadoras de sofrimen- tido a outros, fisicamente capazes, por
a maioria dos representantes eleitos da corda a diferença entre o sistema atual to refratário, cujo prognóstico vital não meio da assistência ao suicídio – lhes
direita e parte dos fiéis de Macron, como – “Um processo de morte prolongado, está comprometido a curto prazo, mas seja negado por causa de sua incapaci-
o ex-ministro da Saúde François Braun, lento e solitário, diante de uma morte a médio prazo, nem sempre encontram dade?”, pergunta o CCNE.
gostariam de parar por aí. Essa é a posição aceite em consciência, de forma rápida uma solução adaptada a seu sofrimento A Bélgica descriminalizou somente
recordada por um relatório do Senado: “A e partilhada pelos familiares e cuidado- no campo das disposições legislativas”.14 a eutanásia. Nos países onde ambos os
medicina paliativa fez grandes avanços res” – e o desejado: “Não há melhor ser- Assim que uma alteração é aceita, con- dispositivos existem há anos – Países
desde os anos 1990-2000, de modo que é viço a prestar ao paciente, consciente e vém fixar o novo perímetro. E mesmo Baixos, Luxemburgo e Canadá –, cons-
essencialmente por falta de uma boa co- capaz, do que responder favoravelmen- a muito conservadora Ordem dos Mé- tata-se que a maioria dos pacientes
bertura no território que ainda morremos te à sua solicitação de uma assistência dicos considera a hipótese de suicídio prefere que uma substância lhes seja
muito mal em nosso país. É nesse ponto ativa para morrer, a fim de salvaguardar assistido, ao mesmo tempo que recusa administrada. A Convenção Cidadã não
que os esforços devem ser feitos, não em sua própria dignidade”.13 a eutanásia: “O médico não pode causar resolveu completamente a questão: 40%
um sistema ativo de ajuda para morrer, o A Convenção Cidadã compreendeu a deliberadamente a morte por meio da de seus membros consideram que deve-
que traria o perigoso risco de ser uma op- importância do apoio. Diversas de suas administração de um produto letal”.15 riam ser oferecidas as duas modalidades
ção de recuo diante da falta de cuidados propostas visam ao “acesso aos cuida- Vários países, como a Alemanha, a de assistência ativa; 10%, apenas o sui-
satisfatórios”.10 A Conferência dos Bispos dos paliativos para todos em toda par- Áustria e a Itália, seguiram o Oregon, cídio assistido; 3%, apenas a eutanásia;
da França também defende uma “via te”, providenciando os meios para isso: onde desde 1997 a lei autoriza “a au- e 18% se opõem à assistência ativa. Por
fim, uma “exceção à eutanásia” para si-
tuações muito específicas e em comple-
LEGISLAÇÕES SOBRE O FIM DA VIDA mento ao suicídio assistido foi escolhida
Leis ou jurisprudências1 por 28% dos participantes.
Sem legalização
ou jurisprudência RÚSSIA
PROTEGER OS CUIDADORES
identificada CANADÁ OU OS PACIENTES?
EUROPA Durante muito tempo, a autoridade dos
Assitência à morte ver zoom
passiva unicamente ESTADOS UNIDOS ARMÊNIA médicos se impôs, tendo a ética médi-
Direito de recusa de ver zoom CHINA JAPÃO ca como única salvaguarda. Os direitos
cuidado, eutanásia passiva ISRAEL concedidos por lei aos pacientes não
ARGÉLIA
podem ser concebidos sem condições.
Assitência à morte MÉXICO EMIRADOS ÍNDIA
passiva e ativa ÁRABES UNIDOS Existe um consenso sobre vários ele-
VENEZUELA
Eutanásia ativa ÉTHIOPIE
mentos jurídicos em caso de abertura à
COLÔMBIA MALÁSIA assistência ativa à morte: a lei deve le-
NIGÉRIA
Suicídio assistido EQUADOR
vantar a proibição que consta do Código
Eutanásia ativa BRASIL
PERU Penal para os cuidadores, mas também
e suicídio assistido MALAWI
reconhecer uma cláusula de consciên-
Em debate no parlamento NAMÍBIA AUSTRÁLIA cia para eles; o desejo do paciente deve
CHILE
1. As legislações aqui são agrupadas por princípios gerais, ter sido cuidadosamente considerado;
URUGUAI
porém possuem muitas nuances de um país para outro. ÁFRICA DO SUL a solicitação, reiterada. Nenhuma pres-
2. Na Bélgica, a lei não trata especificamente do suicídio ARGENTINA
assistido, contudo, na prática o paciente pode optar NOVA são externa deve ser exercida. E as capa-
ZELÂNDIA
por ingerir um comprimido na presença de um médico. Fontes: Centre national des soins palliatifs et de la fin de vie, 2023; pesquisas do autor. cidades de discernimento devem ser in-
tegrais: quando alteradas pela evolução
da doença ou por um acidente, as dire-
CANADÁ
WASHINGTON QUÉBEC ISLÂNDIA FINLÂNDIA tivas antecipadas e a pessoa de confian-
SUÉCIA
MONTANA NORUEGA
ça têm papel capital; daí a urgência de
OREGON MAINE ESTÔNIA RÚSSIA dar a conhecer melhor sua importância;
VERMONT ESCÓCIA
LETÔNIA
NOVA YORK
DINAMARCA menos de um em cada cinco franceses
LITUÂNIA
MASSACHUSETTS IRLANDA (um terço dos maiores de 65 anos) es-
PENSILVÂNIA NOVA JERSEY HOLANDA
CALIFÓRNIA REINO
COLORADO UNIDO
POLÔNIA creveu suas diretivas, e 57% nem sequer
ALEMANHA
ESTADOS UNIDOS BÉLGICA2 REP. TCHECA
conhecem o termo.17
CAROLINA LUX. ESLOVÁQUIA Dependendo do país, algumas dis-
NOVO DO NORTE ÁUSTRIA
MÉXICO FRANÇA HUNGRIA
SUÍÇA posições variam, como o grau de co-
ESLOVÊNIA SÉRVIA
CROÁCIA
BULGÁRIA legialidade do parecer médico, os
PORTUGAL ITÁLIA
ESPANHA ALBÂNIA procedimentos de verificação do sis-
GRÉCIA tema, as vias de recurso etc. Embora
MÉXICO
500 km
a incurabilidade e o caráter refratário
500 km
dos sofrimentos constituam pré-requi-
© Cécile Marin e Philippe Descamps
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 35

“EU QUERO PODER ESCOLHER” mente minha. “Não me sinto sufocado de ter meus pais nada. É necessário permitir a livre escolha. Acompa-
POR JEAN-CLAUDE GAST* dependendo de mim”, disse-me Yannick. “Se for necessá- nhei os debates da Convenção Cidadã, que iam na di-
rio me organizar, posso fazer isso. Fazemos assim há vá- reção certa. A relutância vem da classe médica. En-

N o dia 7 de dezembro de 2022, eu fazia minha primei-


ra volta de esqui da temporada, acima da minha ca-
sa, em La Jarjatte (Drôme, sudeste da França). Muito
rios meses e está indo bem; isso nos aproximou mais do
que nunca. Respeito sua escolha, mas ela não deve estar
baseada na ideia de que seria mais fácil para os outros.”
tendo que para alguns isso seja difícil. Contudo,
também tive contato com médicos que entendem per-
feitamente minha posição.
perto do final, tive uma queda feia de cabeça. Não con- Desde o início de agosto, estou de volta em casa. Eu estabeleci o horizonte de passar à ação neste ou-
seguia mais me mover. Na sequência, fui transportado de Recuso-me a ser um fardo para a sociedade e para tono. Se houver um avanço na França nesse sentido,
avião para Gap e depois para Marselha. Uma quedinha meus entes queridos, mesmo que eles estejam total- posso esperar. Deixo também uma pequena janela em
de nada pode colocar uma vida em questão. Vi-me pri- mente prontos a me ajudar e a provar isso todos os caso de avanço da medicina. Mas, sejamos honestos, to-
sioneiro de um corpo inerte. O choque psicológico foi dias. Sempre defendi o Estado social, a solidariedade dos os dias minha decisão permanece a mesma. Algu-
forte, com a sensação de passar do sol à sombra. com os mais fracos. Agradeço muito ao pessoal do mas pessoas podem ir realizar seus desejos na Bélgica
O diagnóstico revelou compressão da medula espi- hospital, do centro de reabilitação, aos meus amigos... ou na Suíça. Outros não sabem como fazê-lo ou não con-
nhal, com um hematoma não reabsorvido. Há nove me- Alguns me parabenizam pela minha “coragem”, mas seguem por razões financeiras – o custo ronda os 6 mil
ses, os médicos me dizem que há uma pequena possi- acho que também é uma forma de covardia. Ao contrá- euros na Bélgica e 13 mil na Suíça. É totalmente injusto!
bilidade de evolução favorável. No meu corpo, eu não rio, seria coragem continuar. Estamos em uma situação de flagrante desigualdade em
acredito. Foi muito brutal, passei a viver como um “ve- Eu não tinha feito diretivas antecipadas porque, como uma questão que é, no entanto, fundamental.
getal pensante”. Minha única independência hoje é ce- muitos cidadãos comuns, não sabia que elas existiam. Iniciei o processo em uma primeira entrevista por vi-
rebral, e não sei quanto tempo isso vai durar. Não vejo No entanto, tive um câncer há 35 anos. Era uma forma deoconferência com um médico belga. Uma segunda
fim para esse túnel. perniciosa, o prognóstico era reservado. Mas na época consulta deve ser realizada no local com um psiquiatra.
Muito rapidamente, minha escolha ficou clara. Não eu tinha ímpeto, tinha filhos ainda pequenos e ainda não Digo a mim mesmo que com tais ações o Estado acabará
me sinto forte o bastante para lutar todos os dias ten- independentes. Eu tinha aberto uma loja de lã com pro- aceitando uma mudança, certamente com necessidade
tando recuperar não sei que autonomia. Dois dias após dutores locais. Valia a pena lutar por isso. A questão de estabelecer salvaguardas.
o acidente, enquanto estava hospitalizado em Marselha, nem se colocava. O mesmo indivíduo que enfrenta esse Olhando para trás, há uma certa lógica na minha traje-
disse para mim mesmo: “Assim que puder, farei greve de dilema em diferentes períodos da vida pode se compor- tória. Optei por me estabelecer em uma região monta-
fome”. Se eu fosse vinte anos mais novo, teria raciocina- tar de maneiras diversas. nhosa isolada e carente. Na agricultura, a luta contra o
do de forma diferente. Aos 79 anos, acho que vivi a vida, Eu me constituí em resposta ao caráter muito posses- produtivismo, os pesticidas e a agricultura intensiva foi
vivi a minha vida. Não tenho forças para me acomodar sivo de minha mãe, que me criou sozinha. A liberdade é considerável. Envolvi-me, em particular, com a Confede-
no que seria uma forma de sobrevivência. Não quero um valor precioso para nós. Hoje eu luto por ela. A um ração Camponesa. Enxerguei seus limites e me envolvi
mais brigar. É algo muito pessoal. outro tetraplégico, direi que sou um covarde, que escolho na política como prefeito da minha cidade por três man-
Rapidamente, meu filho Yannick montou um grupo de o caminho mais fácil. A um jovem, falarei com clareza. datos. De uma maneira talvez orgulhosa, tudo o que ten-
amigos nas redes sociais com uma agenda on-line. Uma Se o debate sobre essas questões não avança na tei fazer foi pelo interesse geral. De qualquer forma, eu
centena de pessoas se inscreveu. Todos os dias, um ami- França, é provavelmente por causa do peso das religiões. queria acreditar nisso. Minha luta pela escolha para que
go ou amiga vinha me dar comida, apesar da distância do Na minha consciência, não posso admitir a existência de cada um possa escolher o fim de sua vida faz parte des-
© Berumqui tem sa história. É uma liberdade que ainda precisa ser con-
centro de acolhimento onde morei durante seis meses, uma consciência superior. Fui criado na religião católica,
nos Alpes-de-Haute-Provence. Alguns até me trouxe- fiz primeira comunhão. Porém, quando me vi nas monta- quistada. Hoje, alguns podem ir para os países vizinhos,
ram fondue de queijo! Um grupo de amigos músicos to- nhas, olhando para todas aquelas estrelas brilhando no tal como as mulheres mais ricas podiam ir para a Grã-
cou para todos os pacientes. Estou bem cercado. Tenho céu, pensei comigo mesmo que isso era a prova de que -Bretanha antes da lei sobre o aborto. Já é hora de todos
conversas mais íntimas. Meus amigos aceitam minha de- Deus não existe. Não espero nada do depois. poderem ter essa escolha. 
cisão. Ninguém tenta me dissuadir. Por que testemunhar? Porque é preciso mudar a so-
Tivemos uma conversa em família. Minha esposa e ciedade francesa e principalmente a lei, com esse pre- *Jean-Claude Gast,  agricultor aposentado, é ex-prefei-
meus dois filhos me disseram que a escolha é exclusiva- sidente que multiplica as promessas, mas não executa to de Saint-Julien-en-Beauchêne, França.

sitos constantes, nem sempre é o caso próprios idosos e levá-los à autoexclu- 2   “Jaarverslagen 2022”, Regionale Toetsingscom- Assuntos Sociais, “Fin de vie: privilégier une
do prognóstico da expectativa de vida são da sociedade”, alerta o Comitê Con- missies Euthanasie. Disponível em: www.eutha- éthique du soin” [Fim da vida: favorecendo uma
nasiecommissie.nl. ética do cuidado], Relatório de Informação, Se-
– pouco confiável. Alguns pontos são sultivo Nacional de Ética, que pede uma 3   Léon Schwartzenberg e Pierre Viansson-Ponté, nado, 28 jun. 2023.
objeto de debate, cujo ardor se revela reação: “O dever de solidariedade e fra- Changer la mort [Mudar a morte], Albin Michel, 11  Declaração do Conselho Permanente da Con-
Paris, 1977. ferência dos Bispos da França, 24 set. 2022.
inversamente proporcional ao número ternidade para com todos os membros 4   “ Rapport de la Convention citoyenne sur la fin de 12  “Fin de vie, les données du débat” [Fim da vida,
de pessoas envolvidas. Em 2022, nos da sociedade deve absolutamente se vie” [Relatório da Convenção Cidadã sobre o Fim os dados do debate], SFAP, mar. 2023.
Países Baixos, onde o acesso à eutanásia opor a essa tendência inaceitável”. da Vida], Conselho Econômico, Social e Ambien- 13  “Fin de vie: ‘Nous, professionnels de santé, di-
tal, abr. 2023. Disponível em: www.lecese.fr. sons haut et fort que l’aide médicale à mourir
é possível em alguns casos de demência, A questão da morte atravessa a obra 5   “ Prévention du suicide, l’état d’urgence mon- est un soin’” [Fim da vida: “Nós, profissionais
estes últimos representaram 2,8% dos do escritor Milan Kundera, falecido no dial” [Prevenção ao suicídio, estado de emer- de saúde, dizemos alto e bom som que assis-
gência global], OMS, Genebra, 2014.
pedidos aceitos. A maioria das solicita- dia 11 de julho, aos 94 anos. Em A valsa 6   S imone de Beauvoir, La Vieillesse [A velhice],
tência médica para morrer é um cuidado”], Le
ções diz respeito a cânceres, doenças do dos adeuses, Jakub está prestes a deixar Monde, 6 fev. 2023.
Gallimard, Paris, 1970.
14  “Avis 139 – Questions éthiques relatives aux
sistema nervoso ou uma combinação seu país quando mostra a Olga um com- 7   “ Fin de vie: faire évoluer la loi?” [Fim da vida: mu-
situations de fin de vie: autonomie et solidarité”
dar a lei?], Conselho Econômico, Social e Am-
de doenças. Desde que a Bélgica abo- primido azul: “É uma questão de princí- [Parecer 139 – Questões éticas relacionadas
biental, maio 2023. Disponível em: www.lecese.fr.
a situações de fim de vida: autonomia e solida-
liu todos os limites de idade em 2014, pio para mim. Todo homem deveria re- 8   “ Le Pacte progressiste fin de vie salue les tra-
vaux de la Convention et appelle le gouverne- riedade], 13 set. 2022. Disponível em: www.
quatro menores receberam eutanásia, ceber veneno no dia de sua maioridade. ccne-ethique.fr.
ment et les parlementaires à prendre leurs res-
todos com condições muito específicas. Uma cerimônia solene deveria ocorrer ponsabilités” [Pacto progressista sobre o fim 15  “Fin de vie et rôle du médecin” [Fim da vida e
da vida saúda o trabalho da Convenção e pede papel do médico], Conselho Nacional da Or-
No Quebec, as questões relacionadas a nessa ocasião. Não para incitá-lo ao sui- dem dos Médicos, 1º abr. 2023. Disponível em:
ao governo e aos parlamentares que assumam
menores ou à antecipação de solicita- cídio, mas, pelo contrário, para que viva suas responsabilidades], Associação pelo Di- www.conseil-national.medecin.fr.
ções para pessoas diagnosticadas com com mais confiança e mais serenidade. reito de Morrer com Dignidade, 6 abr. 2023. 16  Autoridade de Saúde do Oregon, “Oregon
Disponível em: www.admd.net. Death with Dignity Act, 2021 Data Summary”
um distúrbio neurocognitivo grave e in- Para que viva sabendo que é o dono de [Lei do Oregon para a Morte com Dignidade,
9   “ Favoriser une fin de vie digne et apaisée:
curável não são mais tabus.18 sua vida e de sua morte”.19  répondre à la souffrance inhumaine et protéger Resumo 2021], Salem, 28 fev. 2022.
Ainda falta criar uma proteção mais les plus vulnérables” [Promover um fim de vida 17  “Les Français et la fin de vie” [Os franceses e o
digno e pacífico: responder ao sofrimento de- fim da vida], BVA, 8 dez. 2022.
complexa: contra as considerações so- *Philippe Descamps é jornalista do Le sumano e proteger os mais vulneráveis], pare- 18  “Rapport annuel d’activités du 1/04/21 au
cioeconômicas de sociedades em enve- Monde Diplomatique. cer da Academia de Medicina, sessão plenária 31/3/22” [Relatório anual de atividades de
lhecimento e a difamação daqueles que de 27 de junho de 2023. Disponível em: www. 01/04/21 a 31/03/22], Comissão sobre Cui-
1   “ Causes de décès” [Causas de morte], Serviço academie-medecine.fr. dados de Fim de Vida, Quebec.
não trabalham. “Essa desvalorização da Federal de Estatística, 17 abr. 2023. Disponível 10  Christine Bonfanti-Dossat, Corinne Imbert e 19  Milan Kundera, La Valse aux adieux [A valsa dos
vida humana pode ser integrada pelos em: www.bfs.admin.ch. Michelle Meunier em nome da Comissão de adeuses], Gallimard, 1976.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

LITERATURA

Cantar o fantástico social


Os escritores Boris Vian e Raymond Queneau gostavam de seus livros. Juliette Gréco
cantou sua obra. Seu nome evoca o “Quai des Brumes” e histórias de garotos maus.
Com o autor Pierre Mac Orlan (1882-1970), as antigas histórias de aventureiros
e desamparados ganharam a fria grandeza dos mitos desiludidos

POR GILLES COSTAZ*

E
le se chamava Pierre Dumarchey, uma ideia eletrizante: Paris. Lá ele pas- neira seca e, ao mesmo tempo, terna a
mas amava o Norte, os países si- sou fome, de maneira cruel. “Como ba- marcha extenuante, ilógica, angustiante
tuados às margens de águas tem- gagem, eu carregava uma sacola de pano e estúpida de um regimento que passa
pestuosas, a Escócia. Escolheu se com um par de chuteiras de rúgbi e al- por Lorraine, Artois, Verdun e Somme.
chamar Pierre Mac Orlan (1882-1970). gumas peças de roupas de um valor mais Foi dedicado “aos mortos do 269º regi-
Embora vários de seus romances mar- modesto”, conta em Vlaminck (1947). mento, meus camaradas”.1
cassem presença em coleções de bolso, Exerceu diversos ofícios efêmeros, mas Após a guerra, Mac Orlan revelou um
o universo que constituía sua geogra- pensava sobretudo que poderia dese- talento fértil. Ele continuou a explorar
fia pessoal, os grandes temas de suas nhar e vender seus desenhos na rua. Foi sua veia humorística, retomou os anos
histórias, foi rejeitado, quando não a todos os lugares aonde podia ir: Lon- de guerra, teorizou algumas de suas
varrido pelo tempo que passa e se ace- dres, Bruges, Nápoles, Tunísia... Uma vez ideias (Petit Manuel du parfait aven-
lera: a guerra de 1914-1918, o Montmar- terminado o serviço militar, submeteu turier [Pequeno manual do perfeito
tre do início do século XX, o romantis- a editoras histórias em quadrinhos em aventureiro], 1920), compôs poemas
mo do vagabundo, do soldado e do Paris. Foram publicadas, mas um dese- em prosa, descreveu as cidades onde
marinheiro, a imagem da mulher obri- nhista, o grande Gus Bofa, que ele tinha adorou viver (Brest, 1926), homenageou
gada a ocupar uma posição inferior e conhecido em 1908, lhe disse que os os pintores pelos quais tinha predileção
até mesmo se entregar à prostituição, a textos de seus desenhos eram melho- (todos esses ensaios foram reunidos em
mitologia do corsário e do pirata, o fas- res do que suas imagens, por isso seria Masques sur mesure [Máscaras sob me-
cínio pelas grandes cidades e pelas al- preferível que ele escrevesse. Mac Orlan dida], em 1937 e 1965) e deu livre curso
deias portuárias. Isso fez com que continuou sempre a desenhar um pou- a uma ampla inspiração romanesca du-
aquele que durante muito tempo foi re- co durante toda a vida. Porém, começou rante muitos anos. Sua ficção é dupla:
conhecido, inclusive por seus pares, a escrever contos e, depois, romances explora os recantos obscuros da socie-
como um escritor singular e necessá- humorísticos. Fez certo sucesso, prin- dade que mudava diante dele (Le Quai
rio seja visto hoje como um autor “re- cipalmente com La Maison du retour des brumes [O cais das brumas], 1927)
trô”, até mesmo retrógrado. écœurant (1912) [A casa do retorno des- e reinventa um mundo antigo, aquele
Ora, o interesse de sua obra atualmen- moralizante], ao qual, mais tarde, Boris dos aventureiros que adoram travar ba-
te resulta sobretudo de seu distancia- Vian adorava se referir. O estilo é cômi- talhas nos mares (L’Ancre de miséricorde
mento de clichês associados às décadas co, irônico, absurdo. O jovem escritor ga- [A âncora de misericórdia], 1941). Gran-
anteriores à Segunda Guerra Mundial e nhou alguns tostões e alguma estima. No de repórter – entrevistou pequenos e
que alguns de seus contemporâneos cul- entanto, a guerra o reenviou para aquele grandes deste mundo, até Benito Mus-
tivaram bastante. Montmartre, nos tem- exército em que ele desfrutou da frater- solini – durante dez anos, certo dia ele
pos da boêmia, era um lugar de êxtase? nidade dos pobres e de certo folclore. acabou com essa agitação e se instalou
De forma alguma, disse Mac Orlan, e sim em Saint-Cyr-sur-Morin (situada hoje
uma terra de extrema pobreza. O atrati- em Seine-et-Marne), como se não qui-
vo da aventura exótica foi uma exaltação “Como bagagem, sesse mais ver a infelicidade que viven-
por não existir mais? De jeito nenhum, eu carregava uma ciou ou discerniu em suas andanças em
responde o homem com gorro escocês sacola de pano com um planeta povoado, em suas palavras, tivamente cortadas. Será que ele escon-
e um papagaio adestrado no ombro. A
um par de chuteiras pela loucura do sangue derramado. dia episódios de sua vida especialmen-
aventura ativa é simplesmente infelici- Morreu nesse vilarejo, tendo recebido, te traumatizantes? Parece que sim. É
dade e desilusão; devemos preferi-la à de rúgbi e algumas nessa região longínqua, figuras de des- possível que tenha sido essa a sensação
“aventura imóvel”, ou seja, fictícia. A po- peças de roupas” taque em Paris. Entre os que por lá pas- que tiveram seus principais biógrafos,
pulação marginal que desafia leis e mo- saram, encontra-se Raymond Queneau, Jean-Claude Lamy (Mac Orlan, l’aven-
ral na clandestinidade irradia a poesia Em agosto de 1914, ele foi incorpora- que prefaciou a edição das Œuvres turier immobile [Mac Orlan, o aventu-
que lhe atribuem pintores e escritores? do à Infantaria. Continuou mobilizado complètes de Mac Orlan, relacionan- reiro imobilizado], Albin Michel, 2002) e
De modo algum, demonstra ele. Os clan- durante dois anos e depois, ferido, re- do-o a Gérard de Nerval, e observou: Bernard Baritaud (Mac Orlan, sa vie, son
destinos da sociedade são apenas explo- cebeu tratamento antes de voltar para “Este mundo sem rapazes ameaçadores temps [Mac Orlan, sua vida, seu tempo],
rados e exploradores, tais como seus per- a vida civil no momento do armistício. e personagens inquietantes vai ocupar Droz, 1992). O próprio Mac Orlan reve-
sonagens que sobrevivem em cabarés, Para ele, assim como para milhões de seu lugar ao lado daquele dos pobres e lou em Chansons pour accordéon [Can-
hotéis miseráveis ou casernas rudes. soldados, aqueles anos foram terríveis. sem preconceitos de Petrônio”.2 ções para acordeom]: “Quanto mais en-
Mac Orlan-Dumarchey não podia rei- Muitas vezes, por esquecimento, Mac Na realidade, o escritor se isolou cada velheço, mais tenho a guardar para mim
vindicar origens proletárias. Seu pai foi Orlan deixou de figurar entre os gran- vez mais de Paris após 1945. Eleito para os resultados de minhas próprias expe-
oficial de Infantaria, mas esse menino de des escritores que testemunharam a a Academia Goncourt em 1950, ele só riências, que não são encorajadoras”.
Péronne (Somme) foi educado por um guerra. Injustamente, ele é classifica- voltava à capital para as reuniões mais Contudo, quando procuramos conflitos
tutor, inspetor de academia, que o co- do numa posição muito posterior à de inevitáveis. Porém, recolhia-se cada com a polícia, não encontramos nada,
locou em um liceu de Orléans. Em 1899, Maurice Genevoix, de Roland Dorgelès vez mais, como se o medo da fome e da exceto ter sido fichado algumas vezes
o garoto rompeu as amarras e tentou a e de Henri Barbusse. Les Poissons morts violência não o abandonasse e exigisse por escrever romances eróticos usando
aventura sobre a qual ele tinha, então, (1917) [Os peixes mortos] narra de ma- que, um dia, as relações fossem defini- um pseudônimo – o que durante um
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 37

© Edson Ikê
neasta, o tema não tem mais exatamen-
te o mesmo sabor. Mais paixão ardente
em Jacques Prévert-Marcel Carné. Sen-
timentos incertos, problemas, fraquezas
em Mac Orlan. E, de maneira alguma,
o romantismo da aventura que outros
cineastas (Julien Duvivier, por exem-
plo, em La Bandera [A Bandeira]) foram
igualmente procurar nele.
É também pela canção que se pode en-
trar na obra macorlaniana, ou então dela
sair para prolongar em si mesma suas
extraordinárias vibrações. As grandes
cantoras dos anos 1950-1960, Germaine
Montero, Catherine Sauvage e Juliette
Gréco, e músicos como Lino Léonardi e
Léo Ferré se apropriaram dela para enal-
tecer o gênero realista. Elas continuam
sendo reproduzidas por jovens cantores.
“La Chanson de Margaret” [A canção de
Margaret], “Le Pont du Nord” [A Ponte
do Norte], “La Fille de Londres” [A moça
de Londres] captam instantes e estados
de espírito. De maneira geral, seus per-
sonagens são mulheres; seu universo,
um mundo desencantado, próprio de
soldados, e, no entanto, admirado como
um refúgio mais caloroso que o dos ou-
tros abrigos para deserdados. As me-
lancolias giram aí como valsas ou como
canções populares. Milhares de segredos
íntimos nelas se escondem, e suas pala-
vras são, às vezes, gírias ou antigas: “Não
tenho mais nada para continuar a viver /
E quando bebo um copo a mais do que
precisaria / Sei que minha última chan-
ce / Será me afogar na água”. O pudor se
deixa ultrapassar aí pelos sobressaltos de
um coração que, a contragosto, parece
sair da sombra.
Sobre suas Chansons pour accordéon,
Pierre Mac Orlan dizia: “Elas foram es-
critas para me libertar dessa vaga me-
lancolia que nasce de documentos per-
didos e de obras esquecidas. Elas são os
resultados específicos de minhas expe-
riências: aquelas que podem conservar
a sabedoria dos campos e dos caminhos
percorridos a pé”. A pé. Para Mac Orlan,
trata-se do mundo, da miséria e do sofri-
mento do ponto de vista de um soldado
tempo o impediu de receber a condeco- soldados unidos por seus sofrimentos, Fernand Léger, que, no entanto, não fi- de Infantaria de pequena estatura.
ração de comendador da Legião de Hon- para as crianças que ainda acreditam gura entre seus artistas irmãos, ao con- Como escreveu Raymond Queneau,
ra. No entanto, em 1966, André Malraux em seus sonhos, para os necessitados trário de Jules Pascin, Maurice Vlaminck todos aqueles que “negligenciam as
conseguiu que ele a obtivesse. que não sabem de que será feito o ama- e Pablo Picasso. Nesse registro da mo- modas literárias” e guardam um amor
Mac Orlan intitulou uma coletânea de nhã. Esses miseráveis têm muito dele dernidade dos anos 1920-1930, ele tam- intenso “pelos recursos das vidas ima-
seus contos Sous la lumière froide [Sob próprio, fazem esboços que propõem bém foi roteirista do filme L’Inhumaine ginárias e das virtudes de uma memória
a luz fria], e a reunião de seus escritos aos burgueses ou tentam escrever livros. [A desumana], de Marcel L’Herbier. reativada” continuarão a prestar home-
sobre locais singulares, La Lanterne Se há frieza, se há geleira, elas vêm das A persistência de sua notoriedade vem nagens a Pierre Mac Orlan, a seus piratas
sourde [A lanterna furta-fogo]. Chamou sensações subjacentes à sua fórmula do precisamente do cinema. Contudo, boa e ao gentleman da noite, a suas visões da
suas poesias de “documentários”. Ele se “fantástico social”, imaginada por ele e parte dos mal-entendidos também. Le chuva sobre os solitários. 
recusou a escrever um verdadeiro livro muito copiada por outros. Essa fórmu- Quai des brumes, enquanto romance,
de recordações e batizou seus textos la, de maneira visionária, é o amálga- é a epopeia de um marginal que vive o *Gilles Costaz  é jornalista e presidente
musicais com o nome de Mémoires en ma das grandes mudanças técnicas e dia a dia na colina Montmartre e mor- do Comitê Pierre Mac Orlan e do Prêmio
chansons [Memórias em canções], de sociais de um universo com novidades re, como desejava, em um regimento Mac Orlan.
modo a resumir sua vida e concentrá-la ameaçadoras, de uma era em que ondas do leste da França. Dirigido por Marcel
em alguns esboços de perspectivas in- gravitacionais, guerras indiscerníveis e Carné, o filme Quai des brumes – com 1   L es Poissons morts, ilustrado com desenhos de
David B., Liénart, Paris, 2018.
ternas. Ele sempre coloca um vidro en- ideologias furiosas anunciam tragédias Jean Gabin, Michèle Morgan, Michel Si- 2   Raymond Queneau, prefácio a Pierre Mac Or-
tre a narrativa e a emoção. Porém, a luz desconhecidas. Nesse sentido, sobretu- mon... – é a história de um desertor que, lan, Œuvres complètes, edição coordenada
é tão fria quanto ele pretende? A frieza do em alguns desses poemas, Mac Orlan no Havre, busca abandonar a França via por Gilbert Sigaux, Edito Service/Le Cercle du
Bibliophile, Genebra, 1969, com 25 volumes. A
é uma técnica, mas os sentimentos hu- é um observador das metamorfoses in- mar. Ao passar do “fantástico social” do maior parte dos livros de Mac Orlan foi publica-
manos estão bem ali, voltados para os dustriais e não está muito longe de um autor para o “realismo poético” do ci- da pela Gallimard, na coleção Folio.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  SETEMBRO 2023

MISCELÂNEA

livros
car também questões sociológicas, políticas e so- tórias do Negritude FC e em meio às questões e de-
cioculturais. safios étnico-raciais, de gênero, infância, juventude
Silva constrói uma pesquisa radical para chegar e espaço urbano. Fez o trabalho de campo e ouviu
CAMPO DE TERRA, à raiz de uma problemática oculta pela ideologia da interlocutores, acompanhou partidas de futebol e
CAMPO DE VIDA. ascensão social via futebol e que precisa ser desve- festas, observou a dinâmica e organização do time
Alternativas lada em sua totalidade. O futebol de várzea repre- e do bairro, levantou materiais e estudou documen-
de resistência sentou para sua análise fonte de relações cotidia- tos que lhe permitiram uma interpretação fecunda
negra e o Negritude nas, resistências e organização popular da negritude do movimento de resistência pela autoafirmação da
Futebol Clube periférica, desconsideradas por algumas organiza- identidade negra, de gênero e luta contra o racismo,
Roberta Pereira da Silva, ções que veem nesse tipo de atividade e prática so- o machismo, o patriarcalismo e as violações de direi-
Dandara Editora cial um mero “ópio do povo”. tos de crianças e adolescentes.
A análise potente e fluida parte do time de fute- A obra traz o sentido de que, se você quer enten-

C om alegria recebi o convite de Roberta Pereira


da Silva, assistente social, militante e cria de
Itaquera, como eu, para resenhar seu livro. Essa
bol Negritude FC, que se mistura com a história da
Cohab 1, em Arthur Alvim, zona leste de São Paulo,
numa abordagem que nos convida à leitura por seu
der o futebol no Brasil, comece pelo futebol de vár-
zea, que está na base da pirâmide social e expressa
a desigualdade de nossa sociedade e o lado mais
obra nasceu clássica porque é um estudo pioneiro enredo repleto de mediações literárias, musicais, fi- democrático do esporte bretão, não sem conflitos,
no Serviço Social, mas vai além desse campo por losóficas e fundamentos teóricos no marxismo que contradições e transformações. 
expressar a apreensão dessa intelectual, mulher, balizam a qualidade da análise.
negra, trabalhadora e periférica da realidade de A autora mostrou a sociabilidade na organização [Sandro Barbosa de Oliveira] Cientista social,
um país periférico via futebol de várzea, ao abar- da classe trabalhadora, negra e periférica pelas his- professor e educador popular.

postura excludente se alia com perfeição à cartilha que explicitam a intencionalidade do argumento,
de medidas tecnocráticas e conservadoras que ela sempre sem perder um caráter lúdico e amigável.
propõe, enquanto naturaliza as injustiças do mercado. Isso obrigou muitas idas e vindas entre a teoria e a
ECONOMIA PARA
Postura diametralmente oposta é a adotada no ilustração, muitas reescritas do texto e infindáveis
TRANSFORMAÇÃO
livro Economia para transformação social, em que versões dos desenhos, até a aprovação tanto dos
SOCIAL: Pequeno
a comunicabilidade includente é a maior aliada de economistas como dos ilustradores.
manual para
uma ciência heterodoxa que politiza as questões, O resultado é um livro ímpar, repleto de imagens
mudar o mundo
recusando o discurso de que “não há alternativas”. convidativas ao olhar, mas densas de conceitos rigo-
Juliane Furno, Pedro Rossi
Aprofundando os temas de um curso homônimo da rosos, que catapultam o leitor a uma leitura guiada
e Gazetinha da Guanabara,
Fundação Perseu Abramo (FPA), o livro foi escrito junto ao texto e sua linguagem simples e direta. Te-
Autonomia Literária e
pelos economistas Juliane Furno e Pedro Rossi em mos assim esse “pequeno manual” que, em dezes-
Fundação Perseu Abramo
um intensivo processo de diálogo com as dezenas seis curtos capítulos, desmonta uma série de mitos

U ma “ciência conformista” vem dominando o noti-


ciário, a política e nossa própria visão de mundo:
a ciência econômica ortodoxa. É uma ciência repleta
de ilustrações elaboradas pela equipe de economis-
tas e designers da Gazetinha da Guanabara .
Tal processo é o que garante seu grande potencial
conformistas repetidos diariamente no debate públi-
co, trazendo a política para o primeiro plano e resga-
tando nosso papel ativo na transformação social. 
de jargão técnico, matematização e arrogância, de for- comunicativo. Procurou-se ilustrar as ideias centrais
ma que exclui do debate a grande maioria da popula- de cada argumento, sem deixar lacunas conceituais, [André Aranha] Diretor da Gazetinha da Guanaba-
ção, relegada a um papel passivo. Não por acaso, sua mas, pelo contrário, criando imagens esquemáticas ra , canal de economia desenhada e politizada.

se espelha em seu olhar e nas sobreposições de detalha esse “jeito de fazer” cabralino, em que se
dualidades que sua obra apresenta. toma o elemento geográfico como signo do conví-
Thaís é doutora em Teoria Literária e Literatura vio entre contrários. Na terceira parte, “O projeto de
O RIO, A CIDADE Comparada pela USP e professora de Literatura. racionalidade contra o fundo da matéria histórica”,
E O POETA: Nessa obra, ela examina a poesia de João Cabral, Thaís fala sobre a criação da cidade de Brasília e
cultura popular sobretudo dos anos 1950 ao início dos anos 1960, como esse episódio da história do país ecoa nos
e construtivismo em articulação com outras artes e com sua maté- poemas de João Cabral, pontuando que, “dentre to-
na poética de João ria histórica. das as expressões artísticas, a arquitetura é a que
Cabral de Melo Neto Segundo a autora, “o que pareciam ser dois polos está mais fundada no real”.
Thaís Toshimitsu, são vistos e trabalhados por Cabral como elos”, o que Thaís nos ajuda a entender que ler Cabral não “é
Editora UFABC faz com que sua obra se estabilize num balanço, por apenas ler as singularidades de saídas pessoais, mas
meio da justaposição de duas pontas opostas que é ver atravessar-lhe o tempo, é entender a complexi-

O que leva João Cabral de Melo Neto a experi-


mentar em sua obra o dado popular, de um lado,
e o racionalismo mais avançado, de outro? Nesse
constituem historicamente a sociedade brasileira.
O livro está dividido em três partes. Na primei-
ra, “A crítica concretista e a poesia como lugar do
dade de um país que se desejava moderno, ao modo
ainda colonial”, mostrando a atualidade da obra do
autor, que completaria 100 anos em 2020, quando o
livro, Thaís Toshimitsu nos mostra que os cheiros do diálogo”, Thaís faz uma revisão histórica das linhas país, assombrado por uma pandemia mundial, viveu
Nordeste, aqueles mesmos que estão “tatuados em críticas mais importantes na poesia de Cabral, com também o assombro de uma virada à direita. 
sua pele” como filha de mãe pernambucana, orien- ênfase ao caminho aberto pelos poetas do Con-
tam a obra do autor em um caminho-dualidade que cretismo. Na segunda, “A poética do rio”, a autora [Michelle Prazeres] Jornalista e educadora.
SETEMBRO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Deve-se rever a autonomia do Banco Central?


Absolutamente. A demora na redução foi um Ano 16 – Número 194 – Setembro 2023
erro, talvez, mas a redução da inflação foi um www.diplomatique.org.br

grande acerto. Bacen deve estar livre de pressão


política e isso só é possível com autonomia. DIRETORIA
Cacaio Bronzatto, via Instagram Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Silvio Caccia Bava

O Banco Central tem que ser uma agência 02 França


O mercado e a imprensa a proteger
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Jorge Romano, Maria Eliza-
reguladora igual a todas as outras. beth Grimberg e Rubens Naves e Vera da Silva Telles
Por Benoît Bréville
Não há motivo para ser diferente. Editor
Mouro e Morgana de Sá Matar, via Instagram 03 Editorial
A impunidade dos generais golpistas
Luís Brasilino

Editora-web
Talvez seja o momento de refletir e adaptar essa Por Silvio Caccia Bava Bianca Pyl
“autonomia” para a realidade. No papel, tudo
parece funcionar. A realidade impõe restrições. 04 Capa
O alvo da educação: rentabilidade e punição
Editor de Arte
Cesar Habert Paciornik
Germano Costa, via Instagram Por Carolina Catini Estágio em Jornalismo
Carolina Azevedo e Eduardo Lima
Captagon, o novo flagelo do Oriente Médio O engodo profissionalizante
Estágio em Design
Como se os EUA não fizessem o do Novo Ensino Médio Helen Saori
mesmo... Concorrência... Por Ana Paula Corti e Fernando Cássio
Planejamento estratégico
João Quartieri, via Instagram A militarização das escolas públicas Numa Sales de Paiva
Por Catarina de Almeida Santos
Revisão
Por que as grandes potências fazem guerra e Miriam Fábia Alves Lara Milani e Maitê Ribeiro
Uma voz da lucidez, desapaixonadamente sensato.
A perseguição sistemática Gestão Administrativa e Financeira
Marcos Woortmann, via Instagram Lúcia Benito da Silva Ricco
contra professores no Brasil
Por Fernanda Moura Tradutores desta edição
Exportar democracia. É simples. Basta olharem Carolina M. de Paula, Celina Olga, Frank de Oliveira,
para a “democracia” que exportaram para o “No entanto, ela se move” Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Iraque, o Afeganistão, a Síria. Mas por que não Por Helio Messeder Neto
Conselho Editorial
exportam a democracia para a Arábia Saudita? Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Maria Sansoldo, via Instagram 10 Especial: 1973, um ano de choques
O momento de glória dos não alinhados
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
Por Akram Belkaïd Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
A era dos mercenários
José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
“Era dos mercenários”? Alguém precisa estudar Dois espectros assombram o Chile Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
história. Os mercenários sempre estiveram Por Franck Gaudichaud Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,
Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
atuando. Veja a Blackwater. Só porque é dos EUA O Uruguai transformado em prisão e Vera da Silva Telles.
não é mercenário? Já foi melhor esse jornal. Por Daniel Gatti e Roberto López Belloso Assessoria Jurídica
Bordin Marcelo, via Instagram Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
Quando os trabalhistas defendiam o Brexit
Por Agnès Alexandre-Collier Escritório Comercial Brasília
A França tem os mercenários da Legião Marketing 10: José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Estrangeira. Em muitos países, as FFAA Resistência e morte de uma Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
jh@marketing10.com.br
são mercenárias da ONU, perdendo há geração de intelectuais
muito tempo sua ligação com a pátria. Por Ricardo Colturato Festi Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
São os famosos melancias, que atendem da associação Palavra Livre.

incondicionalmente às ordens da ONU. 20 Mali, Burkina Faso, Guiné e Níger


Por que todos esses golpes?
Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
Paulo Semblano, via Instagram
Por Anne-Cécile Robert Tel.: 55 11 2174-2005
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22 Não há rivais para Biden nas primárias democratas
Réquiem da esquerda norte-americana Assinaturas: Lúcia Benito da Silva Ricco
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25 Solidariedade em tempos de guerra posta à prova


O gosto amargo dos cereais ucranianos
Por Corentin Léotard

27 O modelo de Singapura
“Somos ricos porque temos uma mão de obra LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
estrangeira que sofre” Fundador
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33 Debates sobre o fim da vida: entre a ética e a política
Como garantir uma morte digna para todos?
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Cantar o fantástico social
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te, a opinião da coordenação do periódico. Por Gilles Costaz
Em novembro de 2021, o Le Monde Diplomatique contava
com 31 edições internacionais em 22 línguas:

Capa: © Suzane dos Santos Lopes


38 Miscelânea 24 edições impressas e 7 eletrônicas.
ISSN: 1981-7525
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