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ISI'riI'dt "B�Lí N A teoria da história social, na medida em que se inscreve no domínio da

guerra de classes, cujo âmago é a idéia da coerção exercida pelos "possuidores"


�n-.)A b�1t-..1 PIJ«o{ sobre os "despossuídos", nasceu no decorrer da Revolução Industrial no Oci­
5/rt f�Lu (o�P""''''1r 9M �I� I "Iq8& . dente, e seus conceitos mais característicos pertencem à fase capitalista do
desenvolvimento econômico. As classes econômicas, o capitalismo, a concorrên­
cia desenfreada, os proletários e seus exploradores, o poder nefasto das finan­
ças improdutivas, a inevitabilidade de uma centralização cada vez maior e da
o POPULISMO RUSSO padronização de todas as atividades humanas, a transformação dos homens em
mercadoria e a conseqüente "alienação" dos indivíduos e grupos, bem como
a degradação da vida humana - tais idéias s6 podem ser plenamente inteli­
gíveis no contexto do industrialismo em expansão. Ainda na década de 1850,
a Rússia era um dos países menos industrializados da Europa. No entanto,
a exploração e a miséria há muito se incluíam entre as características mais
comuns e universalmente reconhecidas de sua vida social. As principais víti­
o populismo russo é o nome não de um partido político, nem de um con­ mas do sistema eram os camponeses, tanto os servos como os homens . livres,
junto coerente de doutrinas, mas de um amplo movimento radical, que se deu e formavam mais de 9/10 de sua população. Na verdade surgira um proleta­
na Rússia em meados do século XIX. Nasceu durante a grande efervescência riado industrial, mas, em meados do século, ele não excedia a dois ou três por
social e intelectual que se seguiu à morte do czar Nicolau I e à derrota e cento da população do Império. Em vista disso, a causa dos oprimidos, na­
humilhação da Guerra da Criméia, alcançou fama e influência durante as dé­ quela época, ainda era preponderantemente a dos trabalhadores rurais, que
(.
cadas de 1860 e 1870, e atingiu o auge com o assassinato do czar Alexandre lI, constituíam o estrato mais baixo da população. A vasta maioria se compunha
então declinando rapidamente. Seus líderes eram homens de origens, posturas de servos do Estado ou de particulares. Os populistas viam-nos como mártires,
e capacidades muito diversas; em todos os seus estágios, o populismo russo cujos agravos estavam decididos a vingar e remediar, e como encarnações da
não passou de um frouxo aglomerado de pequenos grupos independentes de virtude simples e incorrupta. Sua organização social, que eles idealizavam
conspiradores ou simpatizantes, que às vezes se uniam para a ação comum e, grandemente, era o alicerce natural sobre o qual deveria ser reconstruído o
em outros momentos, operavam isolados. Esses grupos tendiam a divergir não futuro da sociedade russa.
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s6 em relação aos meios, como também aos fins. Ainda assim, partilhavam de Os objetivos populistas centrais eram a justiça social e a igualdade social.
certas crenças fundamentais e possuíam suficiente solidariedade moral e po­ A maioria deles estavam convencidos - e nisso seguiam Herzen, cuja propa­
lítica que permitem considerá-los como um movimento único. A exemplo de ganda revolucionária na década de 1850 influenciou-os mais do que qualquer
seus antecessores, os conspiradores dezembristas da década de 1820, e os cír­ outro conjunto de idéias - de que a essência de uma sociedade justa e igua­
culos que se reuniram em torno de Aleksandr Herzen e Bielinski nos anos 30 litária já existia na comunidade camponesa russa, a obchtchina, organizada sob
e 40, encaravam o governo e a estrutura social de seu país como uma mons­ a forma de uma unidade coletiva denominada miro O mir era uma livre asso­
truosidade moral e política, obsoleta, bárbara, estúpida e odiosa, e dedicaram ciação de camponeses, que redistribuia periodicamente a terra arável para ser
suas vidas à sua completa destruição. Suas idéias gerais não eram originais. cultivada; suas decisões se impunham a todos e constituíam a pedra angular
Compartilhavam os ideais democráticos dos radicais europeus de sua época e, sobre a qual poderia se erguer, segundo afirmavam os socialistas, uma federa­
além disso, acreditavam que a luta entre as classes econômicas e sociais era o ção de unidades socialistas autogeridas, concebidas segundo uma orientação
fator determinante na política. Sustentavam essa teoria não sob sua forma popularizada pelo socialista francês Proudhon. Os líderes populistas acredita­
marxista, que s6 chegaria efetivamente à Rússia na década de 1870, mas sob vam que essa forma de cooperação oferecia a possibilidade de um sistema
a forma como era ensinada por Proudhon e Herzen e, antes deles, por Saint­ social livre e democrático na Rússia, com suas origens nos mais profundos
Simon, Fourier e outros socialistas e radicais franceses, cujos textos haviam instintos morais e valores tradicionais da sociedade russa, e na verdade de todas
penetrado na Rússia, legal e ilegalmente, durante várias décadas, obedecendo as sociedades humanas. Acreditavam também que os trabalhadores - e com
a um fluxo rarefeito, mas constante. isso se referiam a todos os seres humanos -, seja na cidade ou no campo,

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poderiam concretizar esse sistema com um grau de violência ou coerção muito
complacência ou objeto de crença fervorosa por parte da burguesia conformista
menor do que ocorrera no Ocidente industrial. Esse sistema, por ser o único
e da burocracia a que essa burguesia respeitava.
que derivava naturalmente das necessidades humanas fundamentais e do sen­
O satirista Saltikov, em seu famoso diálogo entre um menino alemão e
tido da retidão e do bem que existia em todos os homens, asseguraria a jus­
um menino russo, imortalizou essa atitude ao declarar sua fé no segundo, fa­
tiça, a igualdade e a mais ampla oportunidade para o completo desenvolvi­
minto, maltrapilhó, cambaleando na lama e na miséria do amaldiçoado regime
mento das faculdades humanas. Como corolário disso, os populistas acreditavam
czarista escravocrata, pois ele, ao contrário do asseado, dócil, presunçoso, nu­
que o desenvolvimento de uma indústria centralizada em larga escala não era
trido menino alemão, não negociara sua alma em troca das poucas moedas que
"natural" e, portanto, conduzia inexoravelmente à degradação e desumanização
o funcionário prussiano lhe oferecera, e portanto era capaz, caso ainda lhe
de todos os que eram colhidos em seus tentáculos. O capitalismo era um mal
permitissem - o que já não era o caso do menmo alemão -, de atingir um dia
terrível, destruía o corpo e a alma, mas não era inelutável. Negavam que o
sua plena estatura de ser humano. A Rússia se encontrava nas trevas, agri­
progresso social ou econômico estivesse necessariamente atrelado à Revolução
lhoada, mas seu espírito não era prisioneiro. Seu passado era negro, mas o
Industrial. Afirmavam que a aplicação de métodos e verdades científicas aos
futuro lhe prometia mais do que a morte em vida das classes médias civilizadas
problemas sociais e individuais, em que acreditavam fervorosamente, embora
da Alemanha, França ou Inglaterra, que há muito tinham-se vendido em troca
pudesse levar ao crescimento do capitalismo, poderia ser realizada sem esse
da segurança material, tornando-se tão apáticas em sua vergonhosa servidão
sacrifício fatal. Acreditavam que era possível melhorar a vida através de téc­
auto-imposta que já não sabiam mais desejar a liberdade.
nicas científicas, sem destruir necessariamente a vida "natural" da aldeia cam­
Os populistas, ao contrário dos eslavófilos, não acreditavam no caráter ou
ponesa ou criar um imenso proletariado urbano pauperizado e indiferenciado.
destino único do povo russo. Não eram nacionalistas místicos. Acreditavam
Se o capitalismo parecia irresistível, era apenas porque a resistência contra ele
apenas que a Rússia era uma nação atrasada, que não alcançara o estágio de
não fora suficientemente forte. Independentemente do que sucedia no Ociden­ l'
desenvolvimento social e econômico em que as nações ocidentais haviam in­
te, "a maldição da grandeza" ainda poderia ser combatida na Rússia, e as
gressado, seguindo a via do industrialismo desenfreado, quer pudessem ou não
federações de pequenas unidades autogeridas de produtores, conforme preco­
tê-lo evitado. Não eram, em sua maior parte, deterministas históricos. Por con­
nizavam Fourier e Proudhon, poderiam ser implementadas, e mesmo criadas,
seguinte, acreditavam que era possível que uma nação em situação semelhante
por uma ação deliberada. A exemplo de seus mestres franceses, os discípulos
conseguisse evitar esse destino por meio do exercício da inteligência e da von­
russos sentiam um ódio particular pela instituição do Estado que, para eles,
tade. Não viam nenhuma razão para que a Rússia não pudesse se beneficiar
era ao mesmo tempo o símbolo, o resultado e a principal fonte da injustiça
da ciência e da tecnologia ocidentais sem pagar o preço terrível que custara
e da desigualdade, arma brandida pela classe governante a fim de defender os
ao Ocidente. Argumentavam que era possível evitar o despotismo de uma eco­
próprios privilégios, que, em face da resistência cada vez maior de suas vítimas,
nomia ou de um governo centralizado, adotando uma estrutura federal ma­
tornava-se cada vez mais brutal e cegamente destrutiva.
leável, composta de unidades socializadas autogeridas de produtores e consu­
A derrota dos movimentos liberais e radicais no Ocidente, em 1848-9,
midores. Acreditavam que a organização era algo desejável, mas sem perder
confirmou-os na convicção de que a salvação não se encontrava na política ou
de vista outros valores, considerando essa organização como um fim em si.
nos partidos políticos. A eles parecia claro que os partidos liberais e seus
Era igualmente desejável que fossem governados levando em conta basicamente
líderes não haviam compreendido, nem realizado um esforço sério para pro­
considerações éticas e humanitárias, não apenas econômicas e tecnológicas, que
mover os interesses fundamentais das populações oprimidas de seus países. O
funcionassem com a perfeição de um formigueiro. Declaravam que proteger
que a vasta maioria dos camponeses na Rússia (ou os trabalhadores na Europa) )
os indivíduos contra a exploração, transformando-os num exército industrial de
precisava era que lhe proporcionassem alimentos e roupa, segurança física e
robôs coletivizados, era suicida e idiotizante. As idéias dos populistas eram
que a salvassem da doença, da ignorância, da pobreza e das desigualdades
freqüentemente imprecisas, e havia diferenças marcantes entre eles, mas existia
humilhantes. Quanto aos direitos políticos, voto, parlamentos, formas republi­
um ponto de concordância suficientemente amplo para constituir um movimen­
canas, eram sem sentido e inúteis para homens famintos, ignorantes, bárbaros
to autêntico. Assim é que eles aceitavam, em seus traços mais gerais, as lições
e seminus; tais programas simplesmente escarneciam de sua miséria. Os popu­
educacionais e morais de Rousseau, mas não sua veneração em relação ao
listas compartilhavam com os eslavófilos nacionalistas russos (com cujas idéias
Estado. Alguns dentre eles - a maioria, talvez - compartilhavam da crença
políticas eles, de resto, tinham muito pouco em comum) do desprezo pela

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ae Kousseau na bonaaae aos homens simples, de sua convicção de que a causa pouca atençao as veraaaeuas necesslOaaes aa Imensa maiOrIa da população
da corrupção se encontra no efeito deformador exercido pelas más instituições, russa, decididos a impor unicamente aquilo que eles, a ordem dedicada dos
de sua acentuada desconfiança em relação a todas as formas de talento, de revolucionários profissionais, apartada da vida das massas devido à sua forma­
intelectuais e especialistas, de todas as facções e côleries fechadas. Aceitavam ção especial e sua vida de conspiração, escolheram para essa mesma população,
as idéias antipolíticas, mas não o centralismo tecnocrático de Saint-Simon. ignorando as esperanças e protestos do povo. Não haveria aí o terrível perigo
Compartilhavam da crença na conspiração e na ação violenta, preconizadas de se substituir um velho jugo por um novo, de se estabelecer uma oligarquia
por Babeuf e seu discípulo Buonarotti, mas não seu autoritarismo jacobino. despótica de intelectuais, no lugar da nobreza, da burocracia e do czar? Que
Alinhavam-se com Sismondi, Proudhon, Lamennais e os outros fundadores da motivos havia para se supor que os novos senhores se revelariam menos tirâ­
idéia do Estado de bem-estar social (Welfare state) em oposição, por um lado, nicos do que os antigos?
ao laissez-faire e, por outro, à autoridade central, fosse ela nacionalista ou Foi essa a interrogação feita por alguns dos terroristas da década de 1860
socialista, temporária ou permanente, apregoada por List, Mazzini, Lassalle ou � Ichutin e Karakozov, por exemplo -, com veemência ainda mais intensa

Marx. Às vezes aproximavam-se das posições dos socialistas cristãos ocidentais, entre a maioria dos jovens idealistas, que."foram ao povo" nos anos 70 e mais
sem, no entanto, qualquer fé religiosa, pois, a exemplo dos enciclopedistas tarde, não tanto para ensinar os outros, mas sim para aprenderem eles pr6prios
franceses do século anterior, acreditavam na moral "natural" e na verdade a viver, num estado de espírito inspirado por Rousseau - e talvez por
científica. Estas eram algumas das crenças que mantinham-nos unidos, mas Nekrassov ou Tolstoi - a um grau pelo menos tão intenso quanto os te6ricos
estavam divididos por diferenças não menos profundas. sociais mais inflexíveis. Esses jovens, os chamados "fidalgos arrependidos",
O primeiro e o maior de seus problemas era sua postura para com os acreditavam que tinham sido corrompidos não s6 por um sistema social nefas­
camponeses, cujo nome invocavam em tudo o que faziam. Quem haveria de to, mas pelo próprio processo de educação liberal, responsável por profundas
mostrar aos camponeses o verdadeiro caminho que conduz à justiça e à igual­ desigualdades, inevitavelmente elevando os cientistas, escritores, professores,
dade? Na verdade, a liberdade individual não é condenada pelos populistas, especialistas e os homens cultos em geral muitíssimo acima dos líderes das
mas tende a ser considerada como um chamariz liberal, capaz de desviar a massas, e tornando-se o mais fértil solo para a injustiça e a opressão de classe.
atenção das tarefas econômicas e sociais imediatas. Dever-se-iam formar peri­ Tudo o que obstrui a compreensão entre os indivíduos, grupos ou nações, que
tos para ensinar os irmão� mais jovens e ignorantes, os lavradores do solo, e, cria e preserva obstáculos à solidariedade humana e à fraternidade é, eo ipso,
caso necessário, incitá-los a resistir à autoridade, a se revoltar e destruir a um mal. A especialização e a educação universitária erguem barreiras entre os
velha ordem, antes que os próprios rebeldes entendessem plenamente a neces­ homens, impedem que os indivíduos e os grupos estabeleçam "conexões",
sidade ou o significado de tais atos? 1! a opinião de figuras tão díspares quanto J matam o amor e a amizade, e incluem-se entre as principais causas responsá­
Bakunin e Spechnev, na década de 1840; foi difundida por Tchernichevski na veis por aquilo que, a partir de Hegel e seus seguidores, passou a ser chamado
década de 1850, e apaixonadamente advogada por Zaitchnevski e os jacobinos de "alienação" de ordens, classes ou culturas inteiras.
da "Jovem Rússia" na década de 1860; foi apregoada por Lavrov nos anos Alguns dos populistas conseguiram ignorar ou desviar-se desse problema.
70 e 80, bem como por seus rivais e adversários Netchaiev e Tkatchev, que Bakunin, por exemplo, que, se não era um populista, influenciou profunda­
acreditavam no terrorismo profissional disciplinado, e seus adeptos que incluem mente o populismo, denunciou a fé nos intelectuais e especialistas como algo
- considerando apenas esta finalidade - não somente os socialistas revolu­ capaz de conduzir à mais ign6bil das tiranias - no domínio dos cientistas e
cionários, mas também alguns dos mais fanáticos marxistas russos, em par­ eruditos -, mas não abordou o problema de saber se os revolucionários ti­
ticular Lenin e Trotski. • nham vindo para ensinar ou para aprender. A questão tampouco foi respon­
)
Alguns deles questionavam se a formação de grupos revolucionários não dida pelos terroristas da "Vontade do Povo" e seus simpatizantes. Pensadores
criaria uma elite arrogante de gente interessada no poder e na autocracia, mais sensíveis e moralmente escrupulosos - Tchernichevski e Kropotkin, por
homens que, na melhor das hipóteses, acreditariam que era seu dever propor­ exemplo - sentiram o peso opressivo da questão e não tentaram escamoteá-la
cionar aos camponeses não o que pediam, mas o que eles, seus mentores para si mesmos. No entanto, nunca tiveram uma resposta clara, ao se pergun­
autonomeados, julgassem bom, isto é, aquilo que as massas deveriam reivin­ tarem com que direito propunham impor este ou aquele sistema de organização
dicar, quer o fizessem ou não. Levaram a questão adiante e perguntaram se, social à massa de camponeses, crescidos num modo de vida totalmente dife­
no devido tempo, isso não acabaria por gerar fanáticos que prestariam muito rente, que poderia encarnar valores próprios muito mais profundos. A questão

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toi segUIdo por Lemn, com uma 110el10aoe maIOr ao que pareCIa eXIgIr a SIm­
se tornou ainda mais séria ao se indagar - o que ocorreu com freqüência
ples adesão à ambivalente fórmula marxista sobre a ditadura do proletariado.
cada vez maior na década de 1860 - o que se deveria fazer se os camponeses
Lavrov, que representa a corrente central do populismo e reflete todas as suas
efetivamente resistissem aos planos dos revolucionários pela sua libertação. As
vacilações e confusões, advogava de modo muito significativo não apenas a
massas deveriam ser iludidas ou, ainda pior, coagidas? Ninguém negava que,
imediata e total eliminação do Estado, mas sua redução sistemática a algo
no final, era o povo e não a elite revolucionária que deveria governar, mas,
vagamente descrito como "o mínimo". Tchernichevski, o menos anarquista dos
nesse meio-tempo, até que ponto seria permitido ignorar os desejos da maioria
populistas, concebe o Estado como organizador e protetor das livres associa­
ou forçá-la a seguir um curso que ela desprezava abertamente?
ções de camponeses ou operários, esforça-se em vê-lo como ao mesmo tempo
Não se tratava absolutamente de um mero problema acadêmico. Os pri­
centralizado e descentralizado, garantia da ordem e eficiência, e também da
meiros partidários entusiastas do populismo radical - os missionários que
igualdade e liberdade individual.
foram "ao povo" no famoso verão de 1874 foram recebidos com uma
Todos esses pensadores compartilham de um mesmo pressuposto apoca­
-

crescente indiferença, desconfiança, desagrado e, por vezes, ódio e resistência


líptico: uma vez que o reinado do mal - a autocracia, a exploração, a desi­
ativos por parte dos seus pretensos beneficiários que, freqüentemente, entre­ '
gualdade - tenha se consumido no fogo da revolução, de suas cinzas surgirá
gavam-nos à polícia. Assim, os populistas se viram forçados a definir explici­
com naturalidade e espontaneidade uma ordem harmoniosa, justa, natural, que
tamente sua postura, pois acreditavam com profunda convicção na necessidade
necessitará apenas da orientação suave dos revOlucionários esclarecidos para
de justificar suas atividades por meio de argumentos racionais. Quando surgi­
atingir sua devida perfeição. Esse grande sonho utópico, baseado na simples fé
ram as respostas, estavam muito longe de ser unânimes. Os ativistas, homens
na natureza humana regenerada, era uma visão que os populistas compartilha­
como Tkatchev, Netchaiev e, em sentido menos político, Pissarev, cujos admi­
vam com Godwin e Bakunin, Marx e Lenin. No centro desse sonho encontra-se
radores vieram a ser conhecidos como "niilistas", anteciparam Lenin em seu
aquele modelo de pecado, morte e ressurreição, do caminho que conduz ao
desprezo pelos métodos democráticos. Desde os dias de Platão, sustenta-se que
l- paraíso terrestre, cujos portões só se abrirão se os homens encontrarem e se­
o espírito é superior à carne e que os que sabem devem governar os que não
guirem a única via verdadeira. Tem profundas raízes na imaginação religiosa
sabem. Os instruídos não podem dar ouvidos às massas ignorantes e sem ins­
da humanidade e, portanto, não há nada de surpreendente no fato de que sua
trução. As massas deveriam ser libertadas por quaisquer meios disponíveis, se
versão secular tivesse fortes afinidades com a fé dos Velhos Crentes Russos,
necessário contra seus desejos tolos, pela astúcia, pela fraude ou, se fosse o
isto é, as seitas dissidentes para quem, desde o grande cisma religioso do século
caso, pela violência. No entanto, foi apenas uma minoria no movimento que
XVII, o Estado russo e seus dirigentes, sobretudo Pedro, o Grande, represen­
aceitou essa divisão e o autoritarismo que ela acarretava. A maioria ficou
tavam o reinado de Satã na terra, Essa clandestinidade religiosa perseguida
horrorizada diante da defesa aberta de táticas tão maquiavélicas, e julgava que J proporcionou um número muito grande de aliados em potencial, que os popu­
nenhum fim, por melhor que fosse, deixaria de ser destruído pela adoção de
listas se esforçaram por mobilizar.
meios monstruosos.
Havia profundas divisões entre os populistas. Divergiam sobre o futuro
Eclodiu um conflito semelhante quanto à atitude em relação ao Estado.
papel dos intelectuais, em comparação ao dos camponeses; divergiam igualmen­
Todos os populistas russos concordavam que o Estado personificava um sistema
te sobre a importância histórica da classe ascendente dos capitalistas, sobre o
de coerção e desigualdade, e portanto era intrinsecamente mau. Nem a justiça
gradualismo versus a conspiração, a educação e a propaganda versus o terro­
nem a felicidade seriam possíveis enquanto ele não fosse eliminado. Mas, nesse
rismo e a preparação para levantes imediatos. Todas essas questões eram inter­
meio-tempo, qual deveria ser o objetivo imediato da revolução? Tkatchev afir­
relacionadas e exigiam soluções imediatas. A dissensão mais profunda entre os
mava com absoluta clareza que, até que o inimigo capitalista fosse definitiva­
populistas se deu em torno da questão premente de saber se uma revolução
men,te destruído, a arma da coerção, isto é, a pistola arrancada de sua mão
verdadeiramente democrática poderia ocorrer antes que um número suficiente
pelos revolucionários, não deveria de modo algum ser jogada fora, e sim ser
de oprimidos adquirisse plena consciência, isto é, mostrasse-se capaz de com-'
apontada contra ele. Em outras palavras, a máquina do Estado não deveria ser
preender e analisar as causas de sua insuportável condição. Os moderados
destruída, mas empregada contra a inevitável contra-revolução. Não poderia
alegavam que nenhuma revolução poderia ser chamada de democrática, a menos
ser deixada de 'lado enquanto o último inimigo não tivesse sido liquidado,
que derivasse do domínio da maioria revolucionária. Mas, neste caso, talvez
segundo a expressão imortal de Proudhon, e a humanidade, portanto, não ti­
não houvesse alternativa, senão esperar que a educação e propaganda criassem
vesse mais a necessidade de qualquer instrumento de coerção. Nessa doutrina,

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essa maioria, uma trajetória preconizada, aliás, pela maioria dos socialistas oci­ acaso o desenvolvimento do capitalismo não destruiria automaticamente a co­
dentais, marxistas e não-marxistas, na segunda metade do século XIX. munidade? E se se afirmasse - embora talvez não se tenha colocado expli­
Contra isso, os jacobinos russos argumentavam que a espera e, enquanto citamente antes da década de 1880 - que o capitalismo já estava destruindo
isso, a condenação de todas as formas de revolta organizada pelas minorias o mir, que a luta de classes, conforme analisada por Marx, estava dividindo
decididas como um terrorismo irresponsável ou, ainda pior, como a substituição
) as aldeias, tanto q�anto as cidades, então o plano de ação ficava claro: em vez
de um despotismo por outro, levariam a resultados catastróficos. Enquanto os de permanecer de braços cruzados e observar fatalistamente essa desintegra­
revolucionários protelavam, o capitalismo se desenvolveria rapidamente. A
ção, os homens decididos podiam e deviam deter esse processo e salvar a co­
pausa para tomar fôlego possibilitaria à classe dirigente desenvolver uma base munidade aldeã. O socialismo, segundo afirmavam os jacobinos, poderia ser
social e econômica incomparavelmente mais forte do que a que possuía no
instaurado com a tomada do poder, à qual deviam se dedicar todas as energias
presente. O crescimento de um capitalismo próspero e vigoroso criaria opor­ dos revolucionários, ainda que ao preço de adiar a tarefa de educar os cam­
tunidades de emprego para os próprios intelectuais radicais: médicos, enge­ poneses nas realidades morais, sociais e políticas. Na verdade, essa educação
nheiros, educadores, economistas, técnicos e especialistas de todos os tipos poderia, com �oda certeza, ser promovida com maior rapidez e eficácia depois
receberiam tarefas e posições proveitosas. Seus novos senhores burgueses, ao que a rev-olução quebrasse a resistência do antigo regime.
contrário do regime existente, seriam suficientemente inteligentes para não obri­
Essa linha de pensamento, que apresenta uma extraordinária semelhança,
gá-los a adotar qualquer tipo de conformismo político. A intelligentsia obteria
se não com as palavras, pelo menos com os programas seguidos por Lenin em
privilégios especiais, status e amplas oportunidades de expressão. Seria tolera­
1917, era fundamentalmente diferente do determinismo marxista anterior. Seu
do um radicalismo inofensivo, permitir-se-ia muita liberdade pessoal - e, desse
contínuo refrão era que não havia tempo a perder. Os kulaks devoravam os
modo, a causa revolucionária perderia seus mais valiosos recrutas. Uma vez
camponeses mais pobres no campo, e os capitalistas cresciam rapidamente nas
parcialmente satisfeitos aqueles cuja insegurança e descontentamento haviam­
cidades. Se o governo possuísse uma centelha sequer de inteligência, ele faria
nos levado a adotar a causa dos oprimidos, o incentivo para a atividade revo­ concessões e promoveria reformas. Com isso, desviaria homens instruídos, cujas
r
lucionária se enfraqueceria e as perspectivas de uma transformação radical da
vontades e cérebros eram necessários à revolução, para os caminhos pacíficos
sociedade se tornariam extremamente tênues. A ala radical dos revolucionários a serviço do Estado reacionário. Impulsionada por essas medidas liberais, a
argumentava solidamente que o avanço do capitalismo não era inevitável, in­
ordem injusta persistiria e se fortaleceria. Os ativistas argumentavam que não
dependentemente do que Marx pudesse dizer. Talvez fosse na Europa ociden­
existia nada de inevitável a respeito das revoluções: eram fruto da vontade e
tal, mas, na Rússia, esse avanço ainda poderia ser detido por um coup revo­
da razão humanas. Se estas não fossem suficientes, a revolução poderia não
lucionário, destruído pela raiz antes que tivesse tempo de se fortalecer demais.
� ocorrer. Eram apenas os inseguros que necessitavam de solidariedade social e
Se o reconhecimento da necessidade de despertar a "consciência política" da
vida comunitária; o individualismo era sempre um luxo, o ideal dos social­
maioria dos operários e camponeses (que a essa altura, e até certo ponto como
mente estabelecidos. A nova classe de especialistas técnicos - aqueles homens
resultado do fracasso dos intelectuais em 1848, era considerada absolutamente
modernos, esclarecidos, enérgicos, festejados por liberais como Kavelin e Tur­
indispensável à revolução, tanto pelos marxistas como pela maioria dos líderes
gueniev e, de vez em quando, mesmo por Pissarev, o individualista radical
populistas) equivalia à adoção de um programa gradualista, então certamente
se perderia o momento para agir. Em lugar da revolução populista ou socialista - eram, para o jacobino Tkatchev-, "piores do que o cólera ou o tifo", pois,

não surgiria um regime capitalista bem-sucedido, vigoroso, cheio de recursos, ao aplicarem métodos científicos à vida social, eles favoreciam os novos oli­

predatório, que se sucederia ao semifeudalismo russo com a mesma certeza garcas capitalistas em ascensão e, portanto, obstruíam o caminho que conduzia
com que substituíra a ordem feudal na Europa ocidental? E então quem po­ à liberdade. Os paliativos eram fatais, quando apenas uma operação poderia
deria dizer quantas décadas ou séculos haveriam de se passar antes que a salvar o paciente. Eles simplesmente prolongavam sua doença e o enfraque­
revolução finalmente chegasse? E quando chegasse, quem poderia afirmar que ciam a tal ponto que, no final, nem mesmo uma operação poderia salvá-lo.
tipo de ordem ela instauraria, àquela altura dos acontecimentos, e em que base Era preciso reagir antes que esses novos intelectuais, potencialmente conformis­
social se apoiaria? tas, tomassem-se numerosos demais, com um conforto excessivo e poder de­
Todos os populistas concordavam que a comunidade aldeã era o embrião masiado. Caso contrário, seria tarde demais: uma elite saint-simoniana de ge­
ideal daqueles grupos socialistas em que se basearia a futura sociedade. Mas rentes extremamente bem-pagos presidiria a uma nova ordem feudal, uma

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sociedade economicamente eficiente, mas socialmente imoral, na medida em pância entre esse leito de Pl'ocusto e a liberdade absoluta. No início, tal ordem
que se baseava numa permanente desigualdade. seria imposta pelo poder e pela autoridade do Estado. Em seguida, este, após
O maior de todos os males era precisamente a desigualdade. Toda vez cumprir seu objetivo, haveria de "liquidar-se" rapidamente.
que qualquer outro ideal entrava em conflito com a igualdade, os jacobinos Contra isso, os porta-vozes da principal entidade dos populistas argumen­
russos sempre exigiam sua eliminação ou modificação. O primeiro princípio tavam que os meios jacobinos tendiam a acarretar conseqüências jacobinas. Se
sobre o qual toda justiça se apoiava era o da igualdade. Nenhuma sociedade o objetivo da revolução era libertar, não deveria usar as armas do despotismo
onde não existisse o máximo grau de igualdade entre os homens poderia pro­ fadadas a escravizar aqueles a quem se destinavam a libertar. O remédio não
clamar-se justa. Para que a revolução triunfasse, era necessário combater e deveria se revelar mais destrutivo do que a doença. Usar o Estado a fim de
extirpar três grandes falácias. A primeira era que apenas os homens cultos abater o poder dos exploradores e impor uma forma específica de vida a um
criavam o progresso. Isso não era verdade, e apresentava a conseqüência no­ povo, que em sua maioria não fora educado para entender a necessidade dela,

civa de incentivar a fé nas elites. A segunda era a ilusão oposta, de que tudo significava trocar o jugo czarista por um novo, não necessariamente menos

deve ser aprendido com o povo. Era uma colocação igualmente falsa. Os cam­ esmagador, o da minoria revolucionária. A maioria dos populistas era profun­
poneses arcádicos de Rousseau não passavam de invenções idílicas. As massas damente democrática. Acreditavam que todo poder tendia a corromper, que

eram ignorantes, brutais, reacionárias, não compreendiam suas próprias neces­ toda concentração da autoridade tendia a se perpetuar, que toda centralização
sidades ou o que as beneficiava. Se a revolução dependesse de sua maturidade era coercitiva e má. Assim sendo, a única esperança de uma sociedade justa
ou capacidade de julgamento ou organização política, com toda certeza fracas­ e livre residia na conversão pacífica dos homens por argumentos racionais às
saria. A última falácia era a de que apenas uma maioria proletária poderia verdades da justiça social e econômica e à liberdade democrática. Para obter
realizar uma revolução bem-sucedida. Sem dúvida, a maioria proletária teria a oportunidade de converter os homens a tal visão, talvez fosse de fato neces­
condições para tal, mas se a Rússia fosse esperar até ter essa maioria, passaria sário romper os obstáculos existentes - o Estado policial, o poder dos capi­
a oportunidade de destruir um governo corrupto e detestado, e se descobriria talistas e dos latifundiários - a um convívio livre e racional e recorrer ao
que o capitalismo já estava solidamente implantado. emprego da força, fosse por uma sublevação das massas ou pelo terrorismo

O que, então, deveria ser feito? Os homens deveriam ser preparados para individual. No entanto, esse conceito de medidas temporárias apresentava-se a

fazer a revolução e destruir o sistema atual, com todos os obstáculos à igual­ eles como algo inteiramente diverso da idéia de se deixar o poder absoluto nas

dade social e ao autogoverno democrático. Feito isso, seria convocada uma mãos de algum partido ou grupo, por mais virtuoso que fosse, uma vez derru­

assembléia democrática. Se os que haviam feito a revolução se dessem ao tra­ bado o poder do inimigo. Seu caso é o exemplo clássico, durante os últimos

balho de explicar as razões e a situação econômica e social que a tornaram dois séculos, de todos os libertários e federalistas que se opõem aos jacobinos
necessária, então as massas, por mais ignorantes que ainda fossem, com toda e centralizadores. :e o exemplo clássico de Voltaire contra Helvetius e Rous­
certeza, segundo os jacobinos, perceberiam suficientemente sua condição para seau, da ala esquerda da Gironda contra a Montanha. Herzen empregou esses
permitir que fossem organizadas na nova federação livre de associações pro­ argumentos contra os comunistas doutrinários do período imediatamente an­
dutivas. As massas, aliás, acolheriam de bom grado essa oportunidade. terior - Cabet e os discípulos de Babeuf. Bakunin denunciou a exigência
Mas supondo que, no dia seguinte a um coup d'état vitorioso, as massas marxista de ditadura do proletariado como uma simples transferência do poder
ainda não estivessem suficientemente maduras para perceber isso? Herzen for­
de um conjunto de opressores para outro; os populistas dos anos 80 e 90
mulou essa incômoda pergunta muitas vezes, em seus escritos do final da
retomaram essa denúncia contra todos os que lhes pareciam conspirar - per­
década de 1860. A maioria dos populistas ficou profundamente perturbada
cebessem ou não - para destruir a espontaneidade e a liberdade individuais,
com ela. A ala ativista não teve, porém, a menor dúvida quanto à resposta:
quer se tratasse de liberais do tipo laissez-faire, que permitiam que os donos
basta remover os grilhões do herói prisioneiro, e ele se endireitará, recuperan­
das fábricas escravizassem as massas, ou coltttivistas radicais prontos a fazer o
do sua plena estatura, e viverá livre e feliz para todo o sempre. As idéias
mesmo, quer fossem entrepreneurs capitalistas (conforme Mikhailovski escre­
desses homens eram surpreendentemente simples. Acreditavam em terrorismo
veu a Dostoievski, na célebre crítica ao seu romance Os Possessos) ou defen­
e mais terrorismo para alcançar uma liberdade completa e anárquica. Para eles,
a finalidade da revolução era estabelecer uma absoluta igualdade, não somente sores marxistas da autoridade centralizada. Ele considerava ambos muito mais

econômica e social, mas "física e fisiológica". Não percebiam a menor discre- perigosos do que os fanáticos patológicos expostos ao ridículo por Dostoievski,

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como darwinistas sociais brutais e amorais, profundamente hostis à variedade, polêmicas contra todas as formas de idealismo e amadorismo e, em particular,
à liberdade e ao caráter individuais. a idealização sentimental da simplicidade e beleza dos camponeses em geral,
Foi esta a principal questão política que, na virada do século, separou os e dos camponeses russos em particular, como criaturas tocadas pela graça,
Socialistas-Revolucionários russos dos Social-Democratas, e pela qual, alguns distantes das influências corruptoras do Ocidente em decadência. Essa fé en­
anos mais tarde, Plekhanov e Martov romperam com Lenin. Com efeito, a controu apoio no apelo que aqueles "realistas críticos" lançavam a seus com­
grande disputa entre os bolcheviques e os mencheviques, qualquer que tenha patriotas, a fim de que salvassem a si mesmos, por iniciativa própria e energia
sido sua causa aparente, girou em torno dela. No devido tempo, o próprio obstinada. Era uma espécie de campanha neo-enciclopedista, a favor da ciência
Lenin, dois ou três anos após a Revolução de Outubro, embora sem nunca natural, da especialização e do profissionalismo, dirigida contra as humanida­
abandonar a doutrina marxista fundamental, expressou sua amarga decepção des, a cultura clássica, a história e outras formas de autocomplacência "siba­
com aquelas mesmas conseqüências da revolução que seus adversários haviam rita". Acima de tudo, esse apelo contrapunha o "realismo" à cultura literária,
previsto: a burocracia e o despotismo arbitrário dos funcionários do partido, que havia acomodado os melhores homens da Rússia numa situação em que
e Trotski acusou Stalin desse mesmo crime. O dilema entre os meios e os fins os burocratas corruptos, latifundiários estúpidos e brutais e uma Igreja obs­
constitui o mais profundo e angustiante problema que atormenta os movimen­ curantista poderiam explorá-los ou deixá-los apodrecer, enquanto os estetas e
tos revolucionários dos nossos dias, em todos os continentes do mundo, e não os liberais olhavam para o outro lado.
menos na Ásia e na África. Como esse debate assumiu uma forma tão clara Mas a tendência mais profunda de todas, o próprio núcleo da visão po­
e coerente no interior do movimento populista, sua evolução se torna excepcio­ pu lista, era o individualismo e o racionalismo de Lavrov e de Mikhailovski.
nalmente pertinente para nossa própria situação. Juntamente com Herzen, acreditavam que a história não seguia nenhum mo­
Todas essas diferenças ocorreram no contexto de uma visão revolucionária delo predeterminado, não possuía "nenhum programa", que nem os violentos
comum, pois, quaisquer que fossem suas discordâncias, todos os populistas es­ conflitos entre culturas, nações e classes que, para os hegelianos, constituíam
tavam unidos por uma inabalável fé na revolução. Essa fé derivava de muitas a essência do progresso humano, nem as lutas pelo poder, empreendidas por
fontes. Nascia das necessidades e perspectivas de uma sociedade ainda esma· uma classe contra outra - e que os marxistas apresentavam como a força
gadoramente pré-industrial, que conferia aos anseios por simplicidade e frater­ motivadora da história -, eram inevitáveis. A fé na liberdade humana era a
nidade, e ao idealismo agrário que, em última análise, deriva de Rousseau. pedra fundamental do humanismo populista. Os populistas jamais cansaram
uma realidade que ainda hoje pode ser observada na índia e na África, e que de repetir que os fins eram escolhidos pelos homens, e não impostos a eles, e
parece necessariamente utópica aos olhos dos historiadores sociais nascidos no que somente as vontades dos homens poderiam construir uma vida feliz e hon­
Ocidente industrializado. Ela foi conseqüência da desilusão geral com a demo­ rada, uma vida em que os interesses dos intelectuais, camponeses, trabalha­
cracia parlamentar, as convicções liberais e a boa-fé dos intelectuais burgueses, dores manuais e das profissões liberais poderiam se reconciliar, não numa
resultante da derrota das revoluções européias de 1848-49, e da conclusão convergência total, o que seria um ideal inatingível, mas adaptados num equi­
particular a que Herzen chegou, segundo a qual a Rússia, que não tinha sofri­ líbrio instável, que a razão e os constantes cuidados humanos conseguiriam
do tal revolução, poderia encontrar sua salvação no socialismo natural incó­ ajustar às conseqüências imensamente imprevisíveis da interação dos homens
lume do mir camponês. Essa fé foi profundamente influenciada pelas violentas entre si e com a natureza. :e possível que a tradição da Igreja ortodoxa, com
diatribes de Bakunin contra todas as formas de autoridade central e, em par­ seus princípios conciliares e comunitários, além da profunda oposição à hierar­
ticular, o Estado, e pela sua idéia de que os homens são pacíficos e produtivos quia autoritária da Igreja Católica e ao individualismo dos protestantes, tam­
por natureza, tornando-se violentos apenas quando desviados dos seus próprios bém exercesse sua parcela de influência. Essas doutrinas, esses profetas e seus
fins e forçados a se converter em carcereiros ou prisioneiros. No entanto, essa mestres ocidentais - os radicais franceses antes e depois da Revolução Fran­
fé também foi alimentada pelas correntes que fluíam em direção contrária: cesa, bem como Fichte, Buonarotti, Fourier e Hegel, Mill e Proudhon, Owen
pela fé de Tkatchev numa elite jacobina composta de revolucionários profis­ e Marx - tiveram sua participação. No entanto, a maior figura do movimento
sionais, como a única força capaz de destruir o avanço do capitalismo, auxi­ populista, o homem cujo temperamento, idéias e atividades o dominaram do
liado em sua rota fatal por inocentes reformistas, humanitários e carreiristas início até o fim é, sem dúvida, Nikolai Gavrilovitch Tchernichevski. A influên­
intelectuais, escondendo-se por trás do simulacro repelente da democracia par­ cia de sua vida e seus ensinamentos, apesar das inúmeras monografias, ainda
lamentar; ainda mais pelo utilitarismo apaixonado de Pissarev e suas brilhantes aguarda um intérprete.

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Nikolai Tchernichevski não era um homem de idéias originais. Não pos­ agressivos, socialmente inseguros, irados e desconfiados, que desprezavam o
suía a profundidade, a imaginação ou o intelecto brilhante e o talento literário menor traço de eloqüência ou "literatura", Tchernichevski foi aquele pai e
de Herzen, nem a eloqüência, a ousadia, o temperamento e a capacidade de confessor que nem o aristocrático e irônico Herzen, nem o volúvel e, em última
raciocínio de Bakunin, nem o gênio moral e a extraordinária percepção social análise, frívolo Bakunin jamais poderiam ser.
de Bielinski. Era, porém, homem de inabalável integridade, imensa diligência A exemplo de todos os populistas, Tchernichevski acreditava na necessi­
e uma capacidade de concentração em detalhes concretos rara entre os russos. dade de preservar a comunidade camponesa e de aplicar seus princípios à
Seu profundo, sólido e contínuo ódio à escraviàão, à injustiça e à irraciona­
produção industrial. Acreditava que a Rússia poderia se beneficiar diretamente
lida de não se expressava por grandes generalizações teóricas ou pela criação
com o aprendizado dos avanços científicos do Ocidente, sem passar pelas dores
de um sistema metafísico ou sociológico, e tampouco por uma ação violenta
de uma revolução industrial. "O desenvolvimento humano é uma forma de
contra a autoridade. Ele assumiu a forma de u. ma acumulação de fatos e idéias,
injustiça cronológica", certa vez observou Herzen tipicamente, "já que os re­
lenta, paciente, pouco inspirada. Tratava-se de uma estrutura intelectual rude,
tardatários podem se beneficiar dos esforços de seus predecessores sem pagar
enfadonha, mas vigorosa, onde era possível perceber um programa detalhado de
o mesmo preço". "A história ama seus netos", repetiu Tchernichevski, "pois
ações práticas, apropriado ao específico ambiente russo que ele desejava mo­
lhes oferece o tutano dos ossos, com os quais a geração precedente machucou
dificar. Tchernichevski demonstrava mais simpatia pelos planos socialistas
concretos, cuidadosamente elaborados, por mais equivocados que fossem, do as mãos, ao tentar quebrá-los". Para Tchernichevski, a história se movia ao

grupo de Petrachevski, ao qual Dostoievski pertencera na juventude, e que longo de uma espiral, em tríades hegelianas, pois cada geração tende a repetir
fora esmagado pelo governo de 1849, do que pelas grandes construções ima­ a experiência, não dos pais, mas dos avós, e repete-a num "nível mais elevado".
ginativas de Herzen, Bakunin e seus seguidores. Mas não foi esse elemento historicista de sua doutrina que enfeitiçou os
Uma nova geração crescera durante os anos mortos que se seguiram a populistas. Acima de tudo foram influenciados pela profunda desconfiança de
1849. Aqueles jovens haviam testemunhado a vacilação e as traições abertas Tchernichevski frente às reformas vindas de cima, pela sua convicção de que
dos liberais, que levaram às vitórias dos partidos reacionários em 1849. Doze a essência da história era a luta entre as classes, e principalmente pela sua
anos mais tarde, presenciaram o mesmo fenômeno em seu próprio país, pois convicção (que, até onde sabemos, não retira nada de Marx, mas se reporta a
o modo como os camponeses foram emancipados na Rússia lhes pareceu uma fontes socialistas, comuns a ambos) de que o Estado é sempre o instrumento
caricatura impudente de todos os seus planos e esperanças. Homens como eles da classe dominante e não pode proceder, quer queira conscientemente ou não,
acharam que o gênio laborioso de Tchernichevski, suas tentativas de elaborar àquelas reformas necessárias que, se dessem certo, poriam fim à dominação
soluções específicas para problemas específicos, em termos de dados estatísti­ desse mesmo Estado. Não se pode convencer ordem alguma a empreender a
cos concretos, seus constantes apelos aos fatos, seus esforços pacientes no sen­ sua própria dissolução. Segue-se daí que todas as tentativas de converter o
tido de indicar fins imediatos, práticos, atingíveis, ao invés de situações dese­ czar, todas as tentativas de escapar aos horrores da revolução serão necessa­
jáveis sem nenhuma via de acesso visível; seu estilo simples, seco, prosaico, riamente vãs, segundo concluiu no início da década de 1860. Houve um mo­
sua própria falta de brilho e de inspiração, eram mais sérios e, em última mento, no final dos anos 50, quando, como Herzen, ele esperou por reformas
análise, mais inspiradores do que os nobres vôos dos idealistas românticos da vindas de cima. A forma final da emancipação dos servos e as concessões do
década de 1840. Sua origem social relativamente baixa (era filho de um padre governo aos latifundiários curaram-no dessa ilusão. Ele assinalou, de modo
de aldeia) dava-lhe uma afinidade natural com aquela gente humilde cujas bastante justificado historicamente, que os liberais, que esperavam influenciar
condições procurava analisar, bem como uma permanente desconfiança, que o governo por uma tática fabiana, até então apenas tinham conseguido trair os
mais tarde haveria de se transformar em ódio fanático, em relação a todos camponeses e a si mesmos. Inicialmente desacreditaram-se perante os campo­
os teóricos liberais, na Rússia ou no Ocidente. Essas qualidades fizeram de neses, devido a suas relações com seus senhores; depois disso, a classe gover­
Tchernichevski o líder natural de uma geração desencantada, de origens sociais nante não teve muitas dificuldades, sempre que lhe convinha, em apresentá-los
misturadas, já não mais dominada por membros da classe alta, amargurada como falsos amigos dos camponeses, fazendo com que estes se voltassem contra
pela falência de seus primeiros ideais, pela repressão do governo, pela humi­ eles. Isso havia ocorrido na França e na Alemanha em 1849. Mesmo que os
lhação da Rússia na guerra da Criméia, pela fraqueza, insensibilidade, hipo­ moderados recuassem a tempo e defendessem medidas violentas, seu desco­
crisia e caótica incompetência da classe dirigente. Para esses jovens radicais nhecimento quanto às condições e sua cegueira às verdadeiras necessidades dos

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camponeses e operários geralmente levavam-nos a advogar planos utópicos que,
veniência de uma indústria em larga escala. Da mesma forma é ambivalente em
no final, custavam um preço terrível a seus adeptos.
relação ao papel a ser exercido (e o papel a ser evitado) pelo Estado, enquanto
Tchernichevski desenvolvera uma forma simples de materialismo histórico,
fomentador e controlador da indústria, sobre a função dos gerentes de grandes
de acordo com a qual os fatores sociais determinavam os fatores políticos, e
empresas industriais coletivas, as relações entre os setores público e privado da
não ao contrário. Por conseguinte, ele sustentava, com Fourier e Proudhon,
economia, a soberania política de um parlamento democraticamente eleito e
que os ideais liberais e parlamentares simplesmente evitav!lm as questões fun­
sua relação com o estado enquanto fonte do planejamento e controle econô­
damentais. Os camponeses e operários precisavam de alimentos, abrigo, botas;
mico centralizado.
quanto ao direito a votarem, a serem governados por constituições liberais, ou
Os traços gerais do programa social de Tchernichevski permaneceram va­
a obterem garantias de liberdade pessoal, tudo isso pouco significava para
gos ou incoerentes, muitas vezes ambos ao mesmo tempo. Eram os detalhes con­
homens famintos e seminus. A revolução social precisaria vir em primeiro
cretos que, baseados na experiência real, falavam diretamente aos representan­
lugar, e as reformas políticas apropriadas se seguiriam automaticamente. Para
tes das grandes massas populares, que finalmente haviam encontrado um por­
Tchernichevski, a principal lição de 1848 foi a de que os liberais ocidentais,
ta-voz e intérprete de suas próprias necessidades e sentimentos. As aspirações
tanto os corajosos como os covardes, haviam demonstrado sua falência política
e emoções mais profundas de Tchernichevski foram apresentadas em Que Fazer?,
e moral e, com ela, a de seus discípulos russos, Herzen, Kavelin, Granovski e
uma Utopia social que, embora grotesca como obra de arte, exerceu sobre a
os demais. A Rússia deveria seguir seu próprio caminho. Ao contrário dos es­
opinião russa um efeito que literalmente marcou época. Esse romance didático
lavófi1os, e à semelhança dos marxistas n�ssos da geração seguinte, ele susten­
descrevia os "novos homens" da comunidade socialista cooperativa do futuro,
tava, com inúmeras provas econômicas, que o desenvolvimento histórico da
livre e moralmente pura. Sua comovente sinceridade e sua paixão moral enfeiti­
Rússia, e em particular do mir camponês, não era de modo algum excepcional,
çaram as imaginações dos filhos de famílias prósperas, idealistas e com senti­
mas obedecia às leis sociais e econômicas que regiam todas as sociedades hu­
mento de culpa. proporcionando-Ihes um modelo ideal, à luz do qual toda uma
manas. Como os marxistas (e os positivistas comtianos), acreditava que essas
geração de revolucionários se educou e se fortaleceu para o desafio às leis e
leis poderiam ser descobertas e formuladas; mas, ao contrário dos marxistas, es­
convenções existentes e a aceitação do exílio e da morte com sublime despreo­
tava convencido de que, ao adotar técnicas ocidentais e ao educar um grupo de
cupação.
homens dotados de vontade resoluta e treinada, com uma perspectiva racional,
Tchernichevski apregoava um utilitarismo ingênuo. Como James MilI e
a Rússia conseguiria "saltar" o estágio capitalista de desenvolvimento social,
talvez Bentham, afirmava que a natureza humana básica era um modelo fixo,
transformando suas comunidades aldeãs e os grupos cooperativos livres de arte­
psicologicamente analisável, de processos e faculdades naturais e que, portanto,
sãos em associações agrícolas e industriais de produtores, que constituiriam o
a maximização da felicidade humana poderia ser planejada e realizada cientifi­
embrião da nova sociedade socialista. Em sua opinião, o progresso tecnológico
camente. Tendo decidido que os escritos e a crítica de talento eram os únicos
não destruía automaticamente a comunidade camponesa : "pode-se ensinar aos
meios disponíveis na Rússia para a propagação das idéias radicais, ele encheu
selvagens o uso do alfabeto latino e dos fósforos"; podem-se acoplar fábricas
as páginas do Contemporâneo, revista que editava junto com o poeta Nekras­
aos artels dos trabalhadores sem os destruir; uma organização em larga escala
sov, com a proporção mais elevada possível de doutrina socialista direta, dis­
poderia eliminar a exploração e, ainda assim, preservar a natureza predomi­
farçando-a sob uma fachada literária. Foi auxiliado em sua tarefa pelo violento
nantemente agrícola da economia russa.1
jovem crítico Dobroliubo, homem de letras realmente talentoso (não era o caso
Tchernichevski acreditava no papel histórico decisivo da aplicação da ciên­
de Tchernichevski) que, em algumas ocasiões, foi ainda mais longe em seu
cia à vida, mas, ao contrário de Pissarev, não considerava a empresa individual,
apaixonado desejo de pregar e educar. As idéias estéticas desses dois entusiastas
e muito menos o capitalismo, indispensável a esse processo. Conservava uma
eram austeramente práticas. Tchernichevski estabeleceu que a função da arte
dose suficiente do fourierismo de sua juventude para considerar as livres asso­
era ajudar os homens a satisfazer suas necessidades de modo mais racional, a
ciações de comunidades camponesas e os artels dos artesãos como a base de
disseminar o conhecimento, a combater a ignorância, o preconceito e as paixões
toda liberdade e progresso. Ao mesmo tempo, como os saint-simonianos, estava
anti-sociais, a melhorar a vida no sentido mais literal e estreito do termo. Le­
convencido de que muito pouco se realizaria sem uma ação coletiva, o socia­
vado a conseqüências absurdas, a elas se entregou com satisfação. Assim, ex­
lismo estatal em vasta escala. Essas crenças incompatíveis nunca se reconcilia­
plicou que o principal valor dos quadros de marinha era o de mostrarem o
ram. Os textos de Tchernichevski contêm argumentos a favor e contra a con-
mar para quem vivia longe demais do litoral e nunca poderia vê-lo com os

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próprios olhos (por exemplo, os habitantes da Rússia central). Num outro exem­
das de 1880 e 1890, por exemplo Danielson e Vorontsov, a despeito de toda sua
plo, afirmava que seu amigo e protetor N ekrassov, graças à sua poesia, levou
argumentação estritamente econômica sobre a possibilidade do capitalismo na
os homens a demonstrar uma maior solidariedade para com os oprimidos do
Rússia (e parte dessa argumentação parece bem mais sólida do que seus adver­
que qualquer outro poeta anterior, e por isso era o mais importante de todos
sários marxistas fizeram crer), eram, em última análise, motivados pela indigna­
os poetas russos, vivos ou mortos. Seus primeiros colaboradores, literatos cultos
ção moral diante da soma de sofrimentos que o capitalismo estava destinado a
e exigentes como Turgueniev e Botkin, acharam cada vez mais difícil suportar
acarretar. Recusavam-se a pagar um preço tão espantoso, por mais valiosos que
seu fanatismo implacável. Turgueniev não conseguia mais conviver com esse
fossem os resultados. Seus sucessores no século xx, os socialistas revolucioná­
mestre-escola dogmático, que odiava a arte. Tolstoi desprezava seu provincia­
rios, repetiram a nota que perpassa toda a tradição populista na Rússia: o obje­
nismo árido, sua total ausência de senso estético, sua intolerância, racionalismo
tivo da ação social não é o poder do Estado, mas o bem-estar do povo; enrique­
e enlouquecedora autoconfiança. No entanto, foram essas mesmas qualidades,
cer o Estado, equipá-lo com um poderio militar e industrial, enquanto se solapa
ou melhor, a postura caracterizada por elas que o ajudou a se tornar o líder na­
a saúde, a educação, a moral e o nível cultural geral de seus cidadãos, era factí­
tural daqueles jovens "duros" que haviam sucedido aos idealistas da década de
vel, mas perverso. Eles comparavam o progresso dos Estados Unidos, onde,
1840. As frases cruas, simplórias, opacas, desagradáveis e desprovidas de hu­
segundo afirmavam, o bem-estar do indivíduo era fundamental, com o da Prús­
mor, com que Tchernichevski se expressava, sua preocupação com os detalhes
sia. onde tal não se dava. Adotaram a idéia (que remonta pelo menos a Sismon­
concretos, a autodisciplina, a dedicação ao bem-estar material e moral de seus
di) de que a condição física e espiritual do cidadão importa mais do que o poder
semelhantes, sua personalidade desbotada e apagada, seus esforços incansáveis,
do Estado, de modo que, conforme acontecia com freqüência, se os dois se
apaixonados, dedicados, minuciosos, o ódio ao estilo e a quaisquer concessões
estabelecessem em proporção inversa, os direitos e o bem-estar do indivíduo
à elegância, a sinceridade inquestionável, o mais completo desprendimento, a
deveriam vir em primeiro lugar. Rejeitavam como historicamente falsa a propo­
franqueza brutal, a indiferença às exigências da vida privada, a inocência, a
sição segundo a qual apenas os Estados poderosos conseguiriam formar cidadãos
bondade pessoal, a meticulosidade, o encanto moral desarmante, a capacidade
bons ou felizes, e consideravam moralmente inaceitável a proposição segundo a
de auto-sacrifício, criaram a imagem que, mais tarde, acabou por se tornar pro­
qual diluir-se na vida e no bem-estar de sua sociedade é a forma mais elevada
tótipo do herói e mártir revolucionário russo. Mais do que qualquer outro pu­
de auto-realização individual.
blicista, ele foi o responsável por traçar a linha definitiva entre "nós" e "eles".
A crença no primado dos direitos humanos sobre as outras reivindicações
Durante a vida inteira, proclamou que não deveria existir nenhum compromis­
é o primeiro princípio que separa as sociedades pluralistas das sociedades cen­
so com "eles", que a guerra deveria ser travada até a morte em todas as fren­
tralizadas, os estados do bem-estar social, as economias mistas e as políticas do
tes, que a neutralidade não existia, que, enquanto a guerra prosseguisse, ne­
Jljew Deal daqueles governos de partido único, das sociedades "fechadas" e dos
nhum trabalho poderia ser considerado banal, repulsivo ou tedioso demais para
"planos qüinqüenais" e, em geral, de formas de vida que servem a um único
que um revolucionário o executasse. Sua personalidade e postura imprimiram
objetivo que transcende os objetivos variados de diferentes grupos ou indiví­
sua marca sobre duas gerações de revolucionários russos, e entre eles Lenin,
duos. Tchernichevski era mais fanático do que a maioria de seus adeptos nas
que o admirava com devoção.
décadas de 1870 e 1880, e acreditava com muito maior convicção na organi­
Apesar da sua ênfase sobre argumentos econômicos ou sociológicos, a
zação, mas nem mesmo ele fez ouvidos moucos aos gritos por ajuda imediata,
abordagem básica, o tom e a concepção de Tchernichevski e dos populistas em
que ouvia de todos os lados, nem acreditava na necessidade de suprimir as
geral são morais e às vezes religiosos. Esses homens acreditavam no socialismo
carências dos indivíduos que estavam realizando esforços desesperados para
não porque era inevitável, não porque trouxesse resultados e nem mesmo por
escapar à destruição, mesmo em nome dos objetivos mais sagrados e preponde­
ser o único sistema racional, mas porque era justo. A concentração do poder
rantes. Havia ocasiões em que se mostrava uma pessoa excessivamente meti­
político, o capitalismo e o Estado centralizado espezinhavam os direitos dos ho­
culosa, estreita, desprovida de imaginação, mas mesmo em seus piores momen­
mens e os aleijavam moral e espiritualmente. Os populistas eram ateus convic­
tos nunca foi impaciente, arrogante ou desumano. Lembrava constantemente a
tos, mas o socialismo e os valores cristãos ortodoxos fundiam-se em seu espí­
seus leitores e a si mesmo que, em seu zelo por ajudar, os educadores não deve­
rito. Recuavam diante da perspectiva da industrialização na Rússia, devido a
riam acabar intimidando seus pretensos beneficiários, que o que "nós", os inte­
seu custo brutal, e não apreciavam o Ocidente, pois havia pago esse preço com
lectuais racionais, achamos bom para os camponeses talvez não seja o que eles
excessiva insensibilidade. Seus discípulos, os economistas populistas das déca-
querem ou precisam, e que não é permitido enfiar "nossos" remédios pela goe-

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la " deles" . Nem ele, nem Lavrov, ' nem até mesmo o mais impiedoso jacobino muito diversa. Os jovens que se espalharam pelas aldeias durante o célebre ve­
entre os defensores do terror e da violência jamais tentaram se abrigar por trás rão de 1874, apenas para encontrar a incompreensão, a desconfiança e freqüen­
da inevitável direção da história como justificativa para aquilo que, de outro temente a hostilidade declarada por parte dos camponeses, teriam ficado pro­
modo, teria sido patentemente injusto ou brutal. Se a violência constituía o fundamente assombrados e indignados se lhes dissessem que deveriam encarar
único meio para um determinado fim, então poderiam ocorrer circunstâncias a si mesmos como instrumentos sagrados da história, e que portanto seus atos
em que seria correto empregá-la, mas isso deveria ser justificado em cada caso, deveriam ser julgados por um código moral diferente do código comum aos
pela exigência moral intrínseca ao próprio fim - aumento da felicidade, da outros homens.
solidariedade, justiça, paz ou qualquer outro valor humat:lo universal que con­ O movimento populista foi um fracasso. "O socialismo ricocheteou no povo
trabalance a nocividade dos meios -, e jamais pela idéia de que era racional como ervilhas numa parede", escreveu o conhecido terrorista Kravtchinski a
e necessário marchar em cadência com a história, ignorando os escrúpulos pes­ sua companheira revolucionária Viera Zassulitch em 1876, dois anos depois de
soais e descartando os princípios morais "subjetivos" por serem necessaria­ se extinguir a primeira onda de entusiasmo. "Eles ouvem os nossos como ou­
mente provisórios, sob o pretexto de que a própria história transformava todos vem o padre" - respeitosamente, sem entender, sem nenhum efeito sobre suas
os sistemas morais e justificava retrospectivamente apenas aqueles princípios ações.
que sobreviveram e foram bem-sucedidos.
O ânimo dos populistas, sobretudo na década de 1870, pode ser correta­ Há barulho nas capitais
mente qualificado como religioso. Esse grupo de conspiradores ou propagan­ Os profetas trovejam
distas considerava-se, e era considerado pelos outros, como integrantes de uma Trava-se uma furiosa guerra de palavras
ordem dedicada. A primeira condição para se tornar membro era o sacrifício Mas nas profundezas, no co ração da Rússia,
de toda sua vida ao movimento, tanto ao grupo e ao partido particular como à Tudo está tranqüilo, lá existe uma antiga paz.
causa da revolução em geral. No entanto, a noção da ditadura do partido ou
de seus líderes sobre as vidas dos indivíduos, principalmente sobre as crenças Esses versos de Nekrassov transmitem o estado de frustração que se se­
dos revolucionários enquanto indivíduos, não faz parte dessa doutrina e na guiu ao fracasso dos esforços esporádicos realizados pelos idealistas revolucio­
verdade é contrária a todo o seu espírito. O único censor dos atos de um indi­ nários no final dos anos 60 e início dos anos 70, tanto os propagandistas pací­
víduo é sua consciência individual. Se alguém prometeu obediência aos líderes ficos como terroristas isolados, dos quais Dostoievski pintou um retrato tão
do partido, esse juramento é sagrado, mas se estende apenas aos objetivos revo­ violento em seu romance Os Possessos. O governo apanhou esses homens, exi­
lucionários específicos desse partido, e não além dele�. Ele términa com a rea­ lou-os, mandou-os para as prisões e, graças a sua obstinada relutância em pro­
lização de quaisquer objetivos específicos que justificam a existência do partido: mover quaisquer medidas que aliviassem as conseqüências de uma reforma
em último recurso, a revolução. Uma vez feita, cada indivíduo é livre para agir agrária inadequada, acabou fazendo com que a opinião liberal demonstrasse
conforme achar melhor, já que a disciplina constitui um meio temporário, e sip1patia pelos revolucionários. Estes sentiram que a opinião pública estava do
não um fim. Os populistas, na verdade, praticamente inventaram o conceito do seu lado, e finalmente recorreram ao terrorismo organizado. No entanto, seus
partido como um grupo de conspiradores profissionais sem vida privada, obe­ fins sempre permaneceram bastante moderados. A carta aberta que dirigiram
decendo a uma disciplina total, como um núcleo de profissionais "duros" em ao novo imperador, em 1881, é branda e de tom liberal. "O terror", disse a
contraposição aos meros simpatizantes e companheiros de percurso. Isso, po­ conhecida revolucionária Viera Figner muitos anos depois, "tinha a intenção de
rém, nasceu da situação específica que prevalecia na Rússia czarista, das ne· criar oportunidades para o desenvolvimento das faculdades dos homens a ser­
cessidades e condições para uma conspiração eficaz, e não da crença na hierar­ viço da sociedade". A sociedade para a qual a violência abriria caminho à for­
quia como uma forma de vida desejável ou sequer tolerável em si mesma. Os ça haveria de ser pacífica, tolerante, descentralizada e humana. O principal ini­
conspiradores tampouco justificavam seus atos invocando um processo cósmi­ migo ainda era o Estado.
co que santificasse cada ato deles, pois acreditavam na liberdade da escolha A onda de terrorismo atingiu seu clímax com o assassinato de Alexandre II
humana e não no determinismo. A concepção leninista posterior do partido em 1881. A revolução tão ansiada não explodiu. As organizações revolucioná­
revolucionário e sua ditadura, embora historicamente muito devesse a esses rias foram esmagadas, e o novo czar decidiu-se por uma política de extrema re­
mártires experimentados de uma época anterior, nasceu de uma perspectiva pressão. A opinião pública de modo geral apoiou-o, pois se retraíra diante do

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assassinato de um imperador que, afinal de contas, emancipara os camponeses como os dignos precursores de um partido revolucionário verdadeiramente ra­
e que, ao que se dizia, pensava em introduzir outras medidas liberais. As figu­ cional, e Tchernichevski em algumas ocasiões recebeu um status ainda mais
ras mais destacadas do movimento foram executadas ou exiladas; os membros elevado. A ele atribuíram percepções geniais, uma abordagem empírica e não­
de menor importância fugiram para o exterior, e os mais talentosos entre os que científica, mas instintivamente correta, de verdades que somente Marx e Engels
ainda estavam livres - Plekhanov e Akselrod - caminharam gradualmente poderiam demonstrar, por estarem armados com o instrumento de uma ciência
em direção ao marxismo. Eles se sentiam embaraçados diante da concessão fei­ exata, ainda não alcançada por Tchernichevski, nem por qualquer outro pensa­
ta pelo próprio Marx, segundo o qual a Rússia poderia, em princípio, evitar o dor russo de sua época. Marx e Engels acabaram se tornando particularmente
estágio capitalista mesmo sem a ajuda de uma revolução comunista mundial, indulgentes para com os russos: receberam elogios por terem feito maravilhas
tese que Engels aceitava com enorme má vontade e com restrições, e afirma­ enquanto amadores, distantes do Ocidente e usando instrumentos rudimenta­
vam que a Rússia já ingressara de fato no estágio capitalista. Declaravam que, res. Só eles em toda a Europa, em 1880, haviam criado em seu país uma situa­
'
visto que o desenvolvimento do capitalismo na Rússia era tão inevitável quanto ção verdadeiramente revolucionária; no entanto, deixou-se bem claro, sobre­
fora no Ocidente, não haveria nada a se ganhar desviando os olhos da lógica tudo por Kautsky, que isso não substituía os métodos profissionais e o empre­
" férrea" da história. Por esses motivos, longe de resistirem à industrialização, go da nova maquinaria proporcionada pelo socialismo científico. O populismo
os socialistas deveriam encorajá-la, e na verdade se aproveitar do fato de que foi posto de lado como um amálgama de indignação moral desorganizada e
somente ela poderia gerar o exército de revolucionários suficiente para derru­ idéias utópicas introduzidas nas cabeças confusas de camponeses autodidatas,
bar o inimigo capitalista, exército este formado pelo proletariado urbano cres­ de intelectuais universitários bem-intencionados e de outras vítimas sociais da­
cente, organizado e disciplinado pelas próprias condições de seu trabalho. quele confuso ínterim entre o final de um feudalismo obsolescente e o início
O enorme salto para diante no desenvolvimento industrial, dado pela Rús­ de uma nova fase capitalista num país atrasado. Os historiadores marxistas
sia na década de 1890, pareceu apoiar a tese marxista. Ela se mostrava atraen­ ainda tendem a descrevê-lo como um movimento composto por uma interpreta­
te para os intelectuais revolucionários por muitos motivos : alegava se basear ção sistematicamente equivocada dos fatos econômicos e das realidades so­
numa análise científica das leis da história, às quais nenhuma sociedade pode­ ciais, um terrorismo individual nobre mas inútil, e levantes camponeses espon­
ria esperar subtrair-se; alegava ser capaz de provar que embora pudesse ocor­ tâneos ou mal dirigidos. Era o início necessário, porém patético, da verdadeira
rer, à medida que o modelo da história se desdobrasse inexoravelmente, muita atividade revolucionária, o prelúdio da verdadeira peça, um cenário de idéias
violência, sofrimento e injustiça, ainda assim a história teria um final feliz. ingênuas e prática frustrada, destinado a ser levado de roldão pela nova ciên­
Por isso, a consciência dos que se sentiam culpados por consentirem na explo­ cia revolucionária e dialética, proclamada por Plekhanov e Lenin.
ração e na pobreza, ou em todo caso por não tomarem medidas ativas, isto é, Quais eram as finalidades do populismo? Violentas disputas se travaram
violentas, para atenuá-las ou impedi-las, conforme exigia a política populista, em relação aos meios e métodos, à escolha do momento oportuno para agir,
sentiu-se aliviada pela garantia "científica" de que a estrada, embora pudesse mas não quanto aos objetivos finais. O anarquismo, a igualdade, uma vida ple­
ficar juncada com cadáveres de inocentes, conduzia inevitavelmente às portas na para todos eram universalmente aceitos. Era como se o movimento inteiro,
de um paraíso terrestre. De acordo com essa concepção, os expropriadores se a variedade heterogênea de tipos revolucionários que Franco Venturi descreve
veriam expropriados pela simples lógica do desenvolvimento humano, embora em seu livro 2 com tanta propriedade e ternura - jacobinos e moderados, ter­
o curso da história pudesse ser encurtado e as dores do parto aliviadas, não só roristas e educadores, lavrovistas e bakuninistas, "trogloditas", "recalcitrantes",
através de uma organização consciente, mas, acima de tudo, por um aumento "gente do campo", membros da "Terra e Liberdade" e de "A Vontade do
do conhecimento (isto é, da instrução) por parte dos trabalhadores e seus líde­ Povo" - fosse dominado por um mito único: assim que se eliminasse o
res. Isso foi particularmente bem acolhido por aqueles que, compreensivel­ monstro, a princesa adormecida, isto é, o campesinato russo, despertaria sem
mente relutantes em prosseguir com um terrorismo inútil, que apenas condu­ mais delongas e viveria feliz para todo o sempre.
zia à Sibéria ou ao cadafalso, agora encontravam uma justificação doutrinária Este é o movimento cuja história Franco Venturi registrou. Trata-se do
para o estudo pacífico e para a vida da idéias, o que os intelectuais existentes relato mais amplo, claro, bem-escrito e imparcial já feito sobre um determi­
entre eles achavam muito mais agradável do que atirar bombas. nado estágio do movimento revolucionário russo. No entanto, se o movimento
O heroísmo, o desinteresse, a nobreza pessoal dos populistas foram foi um fracasso, se se apoiou em falsas premissas e foi tão facilmente liquidado
freqüentemente reconhecidos por seus adversários marxistas. Eram encarados pela polícia czarista, apresentaria algo mais do que um mero interesse histó-

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rico, o da narrativa da vida e morte de um partido, seus atos e idéias? Em lutando contra os obstáculos a ele impostos pela monarquia e burocracia, a
relação a isso, Venturi, muito discretamente, como convém a um historiador exemplo do que acontecera na França no século XVIII. Lenin, no entanto, agiu
objetivo, não exprime uma opinião direta. Ele narra a história numa seqüência como se os banqueiros e industriais já estivessem no comando. Atuou e falou
cronológica, explica o que ocorre, descreve origens e conseqüências, ilumina as como se assim fosse, mas sua revolução triunfou não tanto pela ocupação dos
relações mútuas de vários grupos populistas, e deixa a especulação moral e po­ centros da finança e da indústria (que a história já deveria ter minado), mas
lítica para outros. Seu trabalho não é uma apologia do populismo nem de seus pela tomada do poder estritamente político, por parte de um grupo de revolu­
adversários. Não elogia nem condena, procura apenas compreender. O sucesso cionários profissionais decididos e preparados, precisamente como fora preco­
nessa tarefa não precisa de nenhuma outra recompensa. Ainda assim, em certos nizado por Tkatchev. Se o capitalismo russo alcançara aquele estágio ao qual,
momentos, somos levados a indagar se o populismo deveria ser descartado com de acordo com a teoria marxista da história, teria de chegar antes que uma
tamanha facilidade, como acontece ainda hoje, tanto pelos historiadores comu­ revolução proletária pudesse ter êxito, a tomada do poder por uma determi­
nistas como pelos historiadores burgueses. Estariam os populistas tão irremedia­ nada minoria, além do mais muito pequena - um mero putsch - não poderia,
velmente errados? Tchernichevski, Lavrov - e Marx, que lhes dera ouvidos ex hypothesi, persistir durante muito tempo. E, com efeito, o que Plekhanov
- estariam totalmente iludidos? disse repetidas vezes em suas ásperas denúncias contra Lenin, em 1 9 17, igno­
O capitalismo seria de fato inevitável ' na Rússia? As conseqüências da rando seu argumento de que muita coisa pode ser permitida num país atrasado,
industrialização acelerada, profetizadas pelos economistas neopopulistas na dé­ contanto que os resultados sejam devidamente salvaguardados por revoluções
cada de 1880, a saber, um grau de miséria econômica e social tão ,grande quan­ marxistas ortodoxas empreendidas logo em seguida no Ocidente industrialmente
to o experimentado pelo Ocidente durante a Revolução Industrial, ocorreu mais avançado.
antes e, em ritmo cada vez mais acelerado, depois da Revolução de Outubro. Essas condições não foram preenchidas. A hipótese de Lenin revelou-se
Seriam elas evitáveis? Alguns escritores que se dedicam à história consideram historicamente impertinente e, ainda assim, a revolução bolchevique não fra­
esse tipo de interrogação em si mesmo absurdo. O que aconteceu, aconteceu. cassou. Acaso a teoria marxista da história estaria enganada? Ou os, menchevi­
Dizem-nos que, se não quisermos negar a causalidade nos assuntos humanos, ques a interpretaram mal, ocultando a si mesmos as tendências antidemocráti­
devemos supor que o que aconteceu só pode ter ocorrido precisamente do jeito cas que sempre estiveram implícitas nela? Em qual das duas hipóteses suas
que ocorreu; indagar o que poderia ter acontecido, se a situação fosse dife­ acusações contra Mikhailovski e seus amigos seriam inteiramente justas? Por
rente, não passa de uma divagação ociosa da imaginação, nada digna de histo­ volta de 1 9 17, os receios que manifestavam em relação à ditadura bolchevi­
riadores sérios. No entanto, essa questão acadêmica não deixa de ter uma ex­ que se apoiavam na mesma base. Além do mais, os resultados da Revolução
trema pertinência contemporânea. Alguns países como, por exemplo, a Iugos­ de Outubro se revelaram estranhamente semelhantes àqueles que os métodos
lávia, a Turquia, a lndia e alguns estados do Oriente Médio e América Latina empregados por Tkatchev haveriam de produzir inevitavelmente, segundo pro­
adotaram um ritmo mais lento de industrialização, menos capaz de acarretar fetizavam seus adversários: a emergência de uma elite, um poder ditatorial, do­
uma ruína imediata em regiões atrasadas antes que possam se recompor. Opta­ minante, destinado em princípio a ser eliminado, tão logo não houvesse mais
ram por essa via preferindo-a conscientemente às marchas forçadas da coletivi­ necessidade dele. Na prática, porém, conforme os democratas populistas afir­
zação às quais aderiram em nossos dias os russos e, depois deles, os chineses. maram repetidas vezes, tal poder tendia a crescer em agressividade e força,
Acaso esses governos não-marxistas trilharão irremediavelmente o caminho que apresentando uma inclinação à autoperpetuação a que nenhuma ditadura pare­
leva à ruína? Pois são idéias populistas que estão na base de boa parte da polí­ ce capaz de resistir.
tica econômica socialista adotada por esses e outros países na atualidade. Os populistas estavam convencidos de que a morte da comunidade cam­
Quando Lenin organizou a revolução bolchevique em 1 9 17 , a técnica que ponesa significaria a morte ou, pelo menos, um enorme entrave à liberdade e
empregou, pelo menos à primeira vista, assemelhava-se muito mais às recomen­ à igualdade na Rússia. Os Socialistas Revolucionários de Esquerda, seus des­
dadas pelos jacobinos russos, Tkatchev e seus adeptos, que aprenderam-nas com cendentes diretos, transformaram essa convicção numa exigência de uma forma
Blanqui ou Buonarrotti, do que às que se podem encontrar nos textos de Marx de autogoverno democrático e descentralizadc entre os camponeses, que Lenin
e Engels, pelo menos após 1 85 1 . Afinal de contas, o que se entronizou na Rús­ adotou ao concluir sua aliança temporária com eles em outubro de 1 9 1 7 . No
sia, em 1 9 1 7 , não foi um capitalismo plenamente desenvolvido. O capitalismo devido tempo, os bolcheviques rejeitaram esse programa, transformando as cé­
russo ainda era uma força crescente, que ainda não se encontrava no poder, lulas dos revolucionários dedicados - talvez a mais original contribuição do

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populismo à prática revolucionária - na hierarquia do poder político centra­
lizado que os populistas haviam corajosa e constantemente denunciado até se­
rem finalmente proscritos e aniquilados, sob a forma do Partido Socialista Re­
volucionário. A prática comunista deveu muito ao movimento populista, como
Lenin esteve sempre disposto a reconhecer, pois recorreu à técnica de seu rival ,
adaptando-a com evidente sucesso para servir àquele exato objetivo contra o
qual ela fora inventada.

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