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A Cultura do Controle

Crime e ordem social na sociedade contemporânea


Coleção Pensamento Criminológico

DAVID GARLAND

A Cultura do Controle
Ctime e ordem social na sociedade contemporânea

Tradução, apresentação e notas


ANDRÉ NASCIMENTO

Editora Revan
~Pensamento
Criminológico
Direção
Prof. Dr. Nilo Batista

© 2008 Instituto Carioca de Criminologia


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Projeto gráfico
Luiz Fernando Gerhardt
Revisão CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sylvia Moretzsohn
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

G22c
Garland, David, 1955-
A cultura do controle : crime e ordem social na sociedade contemporânea /
David Garland ; [tradução, apresentação e notas André Nascimento]. - Rio de
Janeiro, : Revan, 2008, 1" reemprenssão, janeiro de 2014. ·
440p.
(Pensamento criminológico; 16)

Tradução de: The culture of control : crime and social order in contemporary society
Apêndice

ISBN 978-85-7106-379-2

1. Crime e criminosos - Estados Unidos. 2. Controle social - Estados Unidos. 3.


Prevenção do crime - Estados Unidos. 4. Crime e criminosos - Grã-Bretanha. 5.
Controle social - Grã-Bretanha. 6. Prevenção do crime - Grã-Bretanha. I.
Título. II. Série.

08-2372. CDD: 364


CDU: 343.9
11.06.08 13.06.08 007135
Índice

Apresentação à edição brasileira ....... 7


Prefácio ....... 31
L Um história do presente ....... 41
2. Justiça criminal moderna e o Estado
penal-previdenciário ....... 93
3. A crise do modernismo penal ....... 143
4. Mudança social e ordem social na
pós-modernidade ....... 181
5. Dilema político: adaptação, negação e
atuação simbólica ....... 239
6. Complexo do crime: a cultura das sociedades
de alta criminalidade ....... 311
7. A nova cultura do controle do crime ....... 365
8. Controle do crime e ordem social ....... 413
Apêndice .... 436
Apresentação à edição brasileira

Embora o autor faça questão de frisar, logo na introdução


da presente obra, que sua análise se restringe ao cenário con-
temporâneo do controle do crime nos EUA e na Grã-Bretanha,
há um motivo fundamental que recomenda ao público brasilei-
ro - não apenas juristas ou aqueles que trabalhem com o siste-
ma penal, mas todos os que queiram entender a realidade circun-
dante - a leitura deste trabalho. Tal motivo não diz respeito ao
notável rigor científico com o qual David Garland desenvolve seu
raciocínio para explicar as razões e os fatores estruturais (soci-
ais, culturais, econômicos e políticos) que levaram à superação
do previdenciarismo penal (e da criminologia conecionalista que
lhe era característica) e ao surgimento de novas criminologias
que preconizam o controle desenfreado. Também não diz respei-
to à riqueza de fontes utilizadas pelo autor para respaldar suas
conclusões ou à lucidez, consistência e coerência destas. Se o
trabalho possuísse apenas estas virtudes, que já são muitas, sua
leitura pelo leitor comum não passaria de um exercício para saci-
ar a curiosidade; para o criminólogo, seria somente o cumpri-
mento de uma obrigação acadêmica de conhecer mais um texto
sobre seu objeto de estudo; para o advogado, juiz ou promotor,
configuraria um luxo incompatível com o pragmatismo que in-
forma seus ofícios.
O motivo fundamental que recomenda a leitura da presente
obra é que a análise da realidade britânica e, sobretudo, norte-
americana constitui, de certa forma e em certa medida, a análise
da realidade brasileira e latino-americana. Quem almeja entender
por que o Brasil possui cada vez mais pessoas presas encontrará
no exemplo dos EUA, o país que proporcionalmente mais encar-
cera seres humanos no planeta, similitudes perturbadoras. Quem
quiser entender por que os meios de comunicação têm, com o
passar do tempo, dedicado atenção crescente à questão criminal,

7
perceberá que estamos percorrendo um caminho já trilhado antes.
Quem já se deu conta da segmentação do espaço público e, dentro
desta, da segregação de certos grupos, identificará as raízes deste pro-
cesso urbano em aceleração nas práticas e ideologias atualmente vigen-
tes nos EUA, na Grã-Bretanha e em outras democracias ocidentais.
Quem, por fim, buscar entender os motivos para o assustador número
de pessoas mo1ias em razão do crime ou de sua repressão, descobrirá
que a semente do genocídio atualmente em curso nos centros urbanos
brasileiros foi primeiramente plantada nos guetos das duas potências
mundiais acima referidas -com absoluto protagonismo dos EUA, cuja
"gue1rn contra as drogas" se encarrega de avultar suas estatísticas nes-
te setor.
O leitor verá que o presente estudo - a conclusão da trilogia de
Garland, iniciada com Punishment and Welfare 1 e continuada com
Punishment and Modem Society 2 , ambos sem tradução para o ver-
náculo- tem o objetivo de entender a radical mudança na orientação
das práticas penais, que se operou do final da década de setenta do
século XX em diante, através da análise dos aspectos mais visíveis
do período histórico cognominado pós-modernidade. No campo da
política criminal, tais aspectos podem ser resumidos no seguinte: o
paulatino abandono do ideal de reabilitação, que tanto marcou a ex-
periência penal do Estado de bem-estar, o ressurgimento de sanções
puramente retributivas e expressivas, a mudança no tom emocional
da política criminal, marcada agora, mais do que nunca, pelo medo
do crime, o retomo da vítima ao centro dos acontecimentos, a retóri-
ca da proteção do interesse público, a politização do tema - não no
sentido da reflexão sobre o conteúdo e os objetivos políticos da pena, o
que é desejável e salutar, mas no sentido da apropriação do tema pela
classe política para fins eleitoreiros, - a reinvenção da prisão como
pena e a transfo1mação do pensamento criminológico, com a ascensão
dos discursos de "lei e ordem", que moldaram políticas criminais
visceralmente repressivas como "tolerância zero" - talvez o exemplo
mais eloqüente de propaganda enganosa nesta área-, "vidraças que-
bradas", entre outras.

i Garland, D. Punishment and Welfare. Brookfield: Gower, 1985.


2
Garland, D. Punishment and Modem Society. Chicago: Chicago Press,
1993.

8
Ainda não estamos vivenciando os fenômenos da pós-mo-
dernidade penal na intensidade e com o vigor com que são ex-
perimentados nos EUA e na Grã-Bretanha. Sem embargo, de-
vemos manter nossa atenção voltada aos desdobramentos e ten-
dências que vão surgindo nestes dois países desenvolvidos,
porque, dada a nossa posição marginal e dependente na ordem
capitalista mundial, os fenômenos nefastos de lá têm o mau hábi-
to de se repetirem por aquL Vale a pena ouvirmos dois eminentes
autores latino-americanos, cujos trabalhos são marcados pela vi-
são global da criminologia no nosso continente. Já no intróito de
uma de suas principais obras, a saudosa Rosa del Olmo adver-
tia que a reconstrução histórica da criminologia da América
Latina deve ter em mente, sempre, a natureza dependente do
capitalismo da região 3 , o que significa dizer que as políticas e
práticas dos países centrais normalmente encontram ressonân-
cia em nosso continente, pois as elites latinas - advogados,
médicos, professores universitários, enfim, os "especialistas" for-
madores de opinião - importam tais experiências alienígenas, di-
vulgam-nas nos seus círculos de conhecimento (produzindo con-
senso através do argumento de autoridade que se ampara na
irrefutabilidade do conhecimento dito "científico") e tentam
implementá- las nas instituições dos sistemas penais domésticos.
Zaffaroni vai adiante, afirmando que a reprodução das práticas
e políticas (e de suas contradições) dos países centrais nas so-
ciedades latino-americanas tem o incoveniente de gerar pro-
cessos cujos resultados freqüentemente são imprevisíveis para
nós mesmos, seja porque a transferência de uma política de fora,
forjada a partir da conjunção muito específica em cada sociedade
de elementos culturais, políticos, históricos, econômicos e sociais
para outro ambiente necessariamente gera distorções de propor-
ções ignoradas, seja porque, como nossas sociedades não
protagonizam o processo de acumulação originária de capital,
não possuem elas estruturas de poder suficientes para controlar
3
Olmo, R. del. América Latina y su criminología. México: Siglo Veintiuno
Ed., 1981, p. 12. Há tradução em língua portuguesa, publicada na coleção
Pensamento Criminológico, que é patrocinada pelo ICC: A América Latina
e sua criminologia. Trad. Francisco E. Pízzolante e Sylvia Moretzsohn. Rio
de Janeiro: Revan, 2004.

9
as variáveis (níveis de desemprego, controle de preços etc.) que
podem interferir decisivamente nas políticas que se pretende
importar4 .
Embora estejamos fadados a repetir as práticas político-
criminais dos EUA e da Grã-Bretanha, é bastante seguro prever
que tal repetição nunca se equiparará, em termos de intensida-
de, à sua experiência original. Isto se dá, basicamente, por três
fatores: 1) a tradição jurídica romano-germânica continental é
estruturalmente diferente da tradição jurídica inglesa e norte-
americana, permitindo menos fontes e menor flexibilidade na
criação do direito; 2) os orçamentos mais modestos dos países
latino-americanos - algo de que historicamente nos queixamos,
mas que, nesta área, talvez devêssemos comemorar- conferem
menor amplitude de ação aos governantes, ainda obrigados a
dividir suas preocupações criminalizantes com a espinhosa ges-
tão da nossa tragédia social, em que basicamente todos os seto-
res da vida social carecem muito de investimentos; e 3) esta
escassez de recursos aliada ao lastimável estado de nossas ins-
tituições penais ainda geram, na classe política, alguma resis-
tência na adoção de medidas legislativas que impliquem a
realocação de recursos na implementação de medidas repressi-
vas em detrimento dos investimentos em setores mais básicos.
Apesar disto, o processo em marcha no Brasil e na América
Latina é semelhante ao que se encontra em estágio avançado na
Grã-Bretanha e, principalmente, nos EUA.
Garland expõe que o previdenciarismo penal funcionou
nestes dois países numa conjuntura singular, que envolvia uma
forma peculiar de Estado, uma estrutura específica de relações
de classe e um ambiente também específico de políticas econô-
micas e sociais, interagindo com o mercado de trabalho e as
instituições do Welfare State. Era um período de prosperidade
econômica, de revolução tecnológica, de expansão da industri-
alização, do conseqüente desenvolvimento dos movimentos or-
ganizados de trabalhadores e de baixos níveis de desemprego.
No plano das políticas trabalhistas e sociais, a enorme deman-
4
Zaffaroni, E. R. Criminología -Aproximacíón desde un margen. Bogotá:
Temis, 2003, p. 22.

10
da de mão-de-obra gerada pela expansão da produção industrial
possibilitava fenômenos hoje impensáveis, tais como o consis-
tente aumento da renda real dos trabalhadores, tanto através do
aumento do salário propriamente dito, impulsionado pela escas-
sez de mão-de-obra, como pela construção de uma rede de
seguridade social, que em seu funcionamento pleno chegou a
permitir que o trabalhador ocasionalmente desempregado rece-
besse do Estado renda equivalente a até 80% do salário que auferira
até ser dispensado. A massificação da produção industrial recla-
mava uma economia lastreada no consumo. Assim, o mesmo
Estado que supervisionava o crescimento econômico assumia "o
compromisso político com o pleno emprego e - em menor medi-
da - com a redução da desigualdade econômica, isto é, um com-
promisso com a seguridade social e previdenciária" 5 , segundo as
palavras de Eric Hobsbawm, de maneira a proporcionar as condi-
ções objetivas para o florescimento daquela economia de consumo.
A criminologia que melhor respondia àquela estrutura de poder .
era a que preconizava a (re-) inclusão do indivíduo no tecido social,
em vez de sua exclusão ou eliminação. A cdminologia de que estamos
falando é a correcionalista, que tinha compromisso com a engenha-
ria social e confiança na capacidade do Estado e nas possibilidades
da ciência. O correcionalismo enxergava o crime como um proble-
ma social e apregoava, portanto, que tanto as condições sociais
criminógenas como os indivíduos podiam ser modificados pelas in-
tervenções das agências estatais. O previdenciarismo penal, pois,
foi marcado pela multiplicação das agências que atuavam nesta pers-
pectiva de tratamento do indivíduo criminoso. A legislação penal
brasileira é profundamente marcada pelo viés correcionalista e pela
criminologia positivista. Olhemos, por exemplo, para a individuali-
zação da pena, que busca equalizar a punição ao indivíduo e não ao
seu ato, para a estrutura progressiva do cumprimento da pena, que
aposta na confiança no condenado, bem como para a disciplina das
medidas de segurança no Código Penal, segundo a qual o juiz pode
compelir o indivíduo inimputável a se internar em hospital de custó-
dia ou estabelecimento psiquiátrico ou a se submeter a tratamento

5
Hobsbawm, E. A Era dos extremos. Trad. Marcos Sant:arrita. São Paulo:
Cia. das Letras, 1995, p. 264.

11
ambulatorial (cf. a.i-t. 96, incs. I e II, CP), com o objetivo de curar a
causa de sua inimputabilidade.
Nos EUA e na Grã-Bretanha, o previdenciarismo penal come-
çou a ser questionado a partir das crises econômicas da primeira
metade da década de setenta do século XX, que forneceram, já no
limiar da década seguinte, as condições políticas para a eleição de
governos fortemente conservadores (Reagan e Thatcher). A situa-
ção no Brasil (e no resto do continente) é um pouco distinta, especi-
almente por causa do seu processo tardio de industrialização e por
causa das turbulências no cenário político no período que vai da
segunda metade da década de sessenta até meados da década de
oitenta do século XX. É justamente a partir da redemocratização,
que tem como um dos marcos a promulgação da Constituição da
República de 1988, que o tratamento penal dos conflitos sociais
começa a se tornar mais severo. O período de redemocratização,
contudo, encontra o país em estado de total penúria, mercê do estilo
de desenvolvimento historicamente adotado no país. A população
rural, por exemplo, jamais conseguiu ascender de um patamar de
miséria ou quase-miséria, que, de tão comum, parece ser inerente à
atividade ag1icola. Muitos trabalhadores do campo se viram forçados a
migrar para as cidades, seja por não possuírem ou não conseguirem
manter uma estruturaminifundiária, familiar, que lhes proporcionasse a
· subsistência, seja por não lograrem emprego ou não aceitarem os bai-
xos salários pagos pelos grandes fazendeiros ou pelas empresas agti-
colas, que cultivam os bens destinados ao consumo externo (e que
gozam os privilégios do Estado, principalmente em termos de crédito).
Como explica Celso Fmtado, o custo da mão-de-obra agrícola é o fator
decisivo na determinação do preço da força de trabalho não-especializa-
da urbana6 , o que significa dizer que aos baixos preços pagos no cam-
po co1Tespondem as baixas remunerações percebidas nos centros ur-
banos.
O desenvolvimento do setor industtial, a partir da década de
trüita do século XX, de certa forma aprofundou as dificuldades
vi vidas pela população, embora tenha conhibuído diretamente para
o crescimento da economia brasileira, ao ponto de inseri-la no rol
das dez maiores economias do mundo. Até 1949, o país se tornou

6
Furtado, C. O Brasil pós- "Milagre". Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 27.

12
praticamente auto-suficiente em bens manufaturados não dm:áveis
destinados ao consumo final. Nos anos seguintes, acentuou-se a
demanda por bens duráveis de consumo, em cuja produção o Esta-
do investiu, sob a condição de que a produção cada vez mais se
nacionalizasse. Esta nacionalização, contudo, não se realizou em
sua plenitude em razão do ingresso das empresas transnacionais,
que, para além de fixarem novos holizontes de consumo (com a
estimulação das demandas que atendam às suas ofertas), induzi-
ram a concentração de renda nas mãos das classes altas e médias,
cujo ritmo de consumo cresceu mais do que a própria renda (que,
por sua vez, crescia mais que a própria renda média da popula-
ção), enquanto que o saláiio básico da população declinava ou
mantinha-se estacionálio.
No momento em que os países desenvolvidos ingressavam·
naqueles ciclos de crise econômica que os precipitaria no neo-
liberalismo, o Brasil vivia o "milagre econômico", que se deu
em razão da conjunção do uso da capacidade produtiva ociosa,
da melhora nos termos de intercâmbio, da grande prosperidade
acumulada nos países principais importadores do Brasil (cujas
temporadas de crise estavam por começar) e do endividamento
externo em condições excepcionalmente favoráveis 7 . O
endividamento oconeu, em larga medida, para aliviar as pres-
sões inflacionárias que se originavam do esforço em elevar a
taxa de investimento interno. Assim é que o valor da dívida
externa, que em 1973 era de US$ 12,5 bilhões;saltou para US$
21,5 bilhões em 1975 e para US$ 43,5 bilhões ein 1978, conti-
nuando a crescer aceleradamente nos anos que se seguiram,
rompendo a baneira dos US$ 100 bilhões em 1986. O serviço
da dívida, por conseqüência, subiu de US$ 3,4 bilhões em 1974
para US$ 10 bilhões em 1978, cifra que representava nada mais,
nada menos, que 5% do PIB brasileiro e 75% das divisas gera-
das pelas exportações, e que continuava a crescer em detrimen-
to dos investimentos produtivos. Para piorar a situação, o cres-
cimento econômico e o aumento da produtividade não signifi-
caram aumento da renda dos trabalhadores, nem tampouco me-
lhora dos indicadores sociais. Segundo dados do IBGE, em 1976

7
Cf. Celso Furtado, op. cit., p. 47.

13
quase metade das famílias brasileiras se situava na faixa de po-
breza, isto é, possuía renda total inferior a dois salários míni-
mos. No que tange aos salários, o regime militar sufocou os
sindicatos, que haviam encontrado tanta abertura e diálogo no
governo de João Goulart, praticamente proscrevendo os instru-
mentos reivindicatórios da classe trabalhadora, muito especial-
mente a greve, cuja realização, com a edição de sucessivas leis,
se tornou quase impossível. O resultado disto, aponta Luiz Ara-
nha Corrêa do Lago, foi que, "no período de 1967 a 1973 ocorreu
uma queda ou estagnação do salário mínimo real, apesar do forte
crescimento da economia e da produtividade do trabalho" 8 . O
mesmo autor acrescenta que, paralelamente à estagnação do salá-
rio mínimo, os salários dos trabalhadores mais qualificados sofre-
ram aumentos bastante superiores aos da média dos trabalhadores,
o que reforçava a tendência da política salarial e trabalhista do
regime militar de conter os níveis de salário real (em harmonia
com o desiderato de combater a inflação, usado como arma ideo-
lógica para legitimar perante a população o regime que burlara a
Constituição e desprezara a vontade popular), "favorecendo a acu-
mulação de capital v1a manutenção de elevada taxa de lucro e pos-
sibilitando uma política de remuneração seletiva para o pessoal de
nível mais elevado" 9 . Intimamente ligada à questão salarial estava
a distribuição de renda, que nos anos que antecederam a década de
oitenta do século XX foi marcada por uma forte inclinação à con-
centração. Corrêa do Lago revela que, em 1960, a participação na
renda dos 5% mais ricos da população era de 28,3%, enquanto que
a dos 50% mais pobres era de 17,4%; esta proporção, que já era
ruim, piorou significativamente em 1972, em que o primeiro gru-
po detinha 39,8% e o segundo apenas 11,3%. Tal realidade levou
muitos autores - entre os quais, o que vem sendo citado aqui - a
afirmar que o período do "milagre econômico" beneficiou a.penas
uma pequena parcela da população brasileira, bem como que "o
crescimento da indústria de bens de consumo duráveis foi baseado

8
Cf. Lago, L. A. C. do. A retomada do crescimento e as distorções do
"Milagre": 1967-1973, in Abreu, M. de P. (org.). A ordem do progresso. Rio
de Janeiro: Campus, 1990, p. 286.
9
Op. cit., p. 287.

14
na demanda de um estrato muito pequeno da população" 10 , como já
dito acima.
A despeito disto, entre a segunda metade da década de sessen-
ta e a primeira metade da década de setenta do século XX, a econo-
mia brasileira cresceu substancialmente: a produção industrial se
avolumou, as exportações (e importações) aumentaram, o nível de
investimentos se elevou, a inflação se manteve controlada (embora
as perspectivas futuras neste particular não fossem boas) e as taxas
de desemprego se mantiveram baixas. No plano da política criminal,
o regime militar se caracterizou pela repressão aos seus dissidentes
políticos. Apesar da recorrência à criminalização, os níveis de en-
carceramento chamavam a atenção mais pela qualidade do que pela
quantidade dos encarcerados. Foi a partir de 1964 que ganhou in-
discutível força no discurso da segurança pública a figura do inimi-
go interno, encamadaentão pelo comunista, pelo subversivo, assim
como a lógica do combate militarizado. O golpe militar, sabemos, se
baseou na doutrina de segurança nacional, que, nas palavras de Nilson
Borges, era "a manifestação de uma ideologia que repousa sobre
uma concepção de guerra permanente e total entre o comunismo e
os países ocidentais" 11 , e tinha raízes na noção de segurança cole-
tiva (hemisférica) da Doutrina Monroe. A doutrina de segurança
nacional, (re)formulada pela Escola Superior de Gue1rn para a reali-
dade brasileira, trabalhava com uma concepção belicista do proces-
so social, segundo a qual toda a política nacional deveria ser orien-
tada em função da segurança. Tal mentalidade preconizava a utiliza-
ção da guerra interna ou a eliminação do inimigo intemo como estra-
tégia imposta pelos imperativos da segurança nacional. A gueirn as-
sumia várias vertentes, que iam desde a mais brutal- o extermínio
físico do inimigo - até a mais sutil, de cariz psicológico, cujo plano
básico de ação consistia na demonização do indivíduo com o objeti~
vo de destacá-lo e afastá-lo dos cidadãos comuns e, assim, de en~.
gendrar a mobilização da população em torno da causa que justifica-
ra a antidemocrática e inconstitucional assunção do poder pelos

10
Op. cit., p. 290.
11
Cf. Borges, N. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares,
in Ferreira, J.; Delgado, L. de A. N. (orgs.). O Brasil republicano. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 24.

15
militares. Qµalquer semelhança deste processo com o que as agên-
cias de segurança pública atualmente fazem com a figura do trafi-
cante de drogas não é mera coincidência, como ensina Nilo Batista
em seu texto sobre a política criminal brasileira em matéria de dro-
gas 12. A militarização da segurança pública se deve à própria con-
cepção de segurança interna da doutrina de segurança nacional, que
comportava ações em dois planos: o da defesa interna, quanto aos
"antagonismos e pressões vinculados ao processo subversivo", e o
da segurança pública, relacionada com os conflitos "de toda espécie
que não contenham conotações ideológicas" 13 . Embora o paralelismo
seja muito claro, é intligante observar que, no período do regime militar,
o conteúdo político do processo de ctiminalização foi claramente per-
cebido, mesmo quanto aos criminosos ditos "comuns" ou sem
"conotações ideológicas", tendo esta percepção simplesmente desapa-
recido após o fim da ditadura militar e com a implantação da nova
ordem econômica. O livro de Garland auxiliará o leitor brasileiro a ana-
lisar os motivos deste notável câmbio de percepção.
A segunda metade da gestão militar, que na área política foi
marcada pelo início da negociação em tomo das condições da
redemocratização do país ("lenta, gradual e segura"), na área eco-
nômica se caracterizou pelas tentativas, fracassadas, de
compatibilizar o equacionamento das finanças públicas com a ex-
pansão da economia brasileira. A partir da década de oitenta do
século XX, chamada de "década perdida", o Brasil se lançaria às
tarefas de controlar a inflação, que em seus piores momentos che-
gou a mais de 200% ao ano (211 %, em 1983; 223,8%, em 1984), e
de negociar uma forma de pagar a dívida externa, cujo crescimen-
to estratosférico se deu por causa da elevação das taxas de juros
internacionais no início dos anos oitenta e da completa dependên-
cia do país de financiamento externo. Quanto a esta tarefa, ainda
podemos nos recordar das inúmeras vezes em que as nossas mis-
sões econômicas foram ao FMI após 1983, ano da moratória, dis-
cutir o pagamento, que só se viabilizaria através do acatamento,
pelo Brasil, das "ortodoxas" receitas econômicas ditadas por aquela

12
Cf. Batista, N. Política criminal com derramamento de sangue, in
RBCCrim, São Paulo, ed. RT, nº 20, out.-dez./97, pp. 129-146.
13
Cf. Borges, N., op. cit., p. 37.

16
instituição financeira privada, que vaticinavam, entre outros ajustes,
o controle da inflação, a redução de gastos públicos e o asseguramento
de saldos positivos na balança comercial (o que direcionava nossa
produção no sentido da exportação). O combate à inflação, por seu
turno, ocorreu basicamente através da indexação de preços públicos
e administrados e do airncho salarial, cujo poder de compra foi se
reduzindo paulatinamente ao longo dos anos, uma vez que os gati-
lhos salariais instituídos só excepcionalmente conseguiam recupe-
rai· o poder aquisitivo. O resgate do salário real, aliás, foi a principal
bandeira do sindicalismo brasileiro, que nos anos oitenta viveu seu
período áureo. Capitaneados pela CUT, criada em São Bernardo do
Campo em agosto de 1983, e pela CGT (então Central Geral dos
Trabalhadores), fundada em março de 1986, os trabalhadores brasi-
leiros realizaram mais de 6.500 greves na década de oitenta do sécu-
lo XX, objetivando, essencialmente, pleitear reajustes salariais.
O primeiro governo democraticamente eleito em 1989
(Fernando Collor de Mello) marcou uma profunda mudança nas
políticas estatais. Foi a partir de então que se promoveu a aber-
tura comercial, que, ao derrubar os óbices alfandegários im-
postos a inúmeros bens de consumo, permitiu a entrada de tais
produtos estrangeiros com os quais a produção industrial brasi-
leira não tinha condições de competir. Os tempos, porém, não
eram de lamentação, mas sim do discurso da competitividade
que abruptamente introduzia nossa fechada economia na glo-
balização. O resultado disto foi o importante comprometimen-
to do nosso parque industrial e, conseqüentemente, os alarman-
tes índices de desemprego, que chegaram a 18 % na Grande São
Paulo, em 2000. No plano administrativo, o governo Collor se
caracterizou por dar início à reforma administrativa do Estado,
de maneira a substituir o obsoleto e ineficiente modelo "buro-
crático" pelo ágil e austero modelo "gerencial", inspirado na
eficiência da gestão privada. A reforma administrativa foi leva-
da a cabo em três frentes: através das privatizações de impor-
tantes empresas estatais brasileiras, da delegação à iniciativa
privada de serviços públicos essenciais e da terceirização de fun-
ções auxiliares 14 . A política trabalhista brasileira, por sua vez,
preconizou a flexibilização (e precarização) da relação de trabalho.
Neste particular, Mai·co Aurélio Santana notará uma mudança no

17
perfil da atuação sindical: das reivindicações dos anos oitenta que
orbitavam a "questão econômico-salarial", os movimentos sindi-
cais, cada vez mais enfraquecidos, passaram a enfrentar "a temática
da garantia do emprego e as tentativas de combate ao desempre-
go"15, nos anos noventa.
Esta é a cara da nossa pós-modernidade. Apesar da inflação
controlada, o Brasil vive uma grave crise social, que é a herança de
décadas de crescimento econômico baseado na concentração de ren-
da. A propósito, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios de 2006 16 (PNAD 2006), realizada pelo IBGE, a paitici-
pação na renda total dos 10% mais pobres é de 1%, ao passo que a
dos 10% mais ricos é de 44,4%. O Brasil ainda possui quase 15
milhões de analfabetos; se levaimos em consideração o conceito de
analfabetismo funcional 17 , a proporção sobe pai·a 23,6%. A política
estatal de fomento à atividade agrícola privilegia o mercado externo e
dá pouca atenção às culturas de subsistência; aos pequenos agriculto-
res, então, coloca-se o seguinte dilema: alienai· a força de trabalho aos
grandes fazendeiros ou às empresas agrícolas, em troca de baixos
salários, ou migrai· pai·a as cidades pai·a tentar alguma colocação,
também mediante baixa remuneração, no esgotado setor terciário,
que apenas gira a riqueza e que possui baixo poder de mobilização. À
ampla disponibilidade de mão-de-obra deve ser somada sua baixa qua-
lificação - segundo a PNAD 2006, apenas 28,9% da população em
idade ativa (acima de 10 anos de idade) que possui algum grau de
escolai·ização concluiu o ensino médio - o que é sinônimo de perpetu-
ação da situação subalterna. Os centros urbanos, por seu turno, estão
superpovoados, porém não oferecem empregos formais aos que ne-
les se instalam. De acordo com o IBGE, apenas 33,8% da população
ocupada possui carteira assinada e menos da metade está coberta
pelas gai·antias previdenciárias. A renda média mensal do trabalhador
14
Cf. Souza Neto, C. P. A crise do modelo regulatório e as fundações públicas
de direi.to privado, in Tribuna do Advogado, Rio de Janeiro, set.07, p. 9.
15
Cf. Santana, M. A. Trabalhadores em movimento: o sindicalismo brasileiro
nos anos 1980-1990, in Ferreira, J.; Delgado, L. de A N., op. cit., p. 304.
16
Disponível para consulta no site do IBGE (www.ibge.gov.br).
17
Analfabeto funcional, para o IBGE, é a pessoa de 15 anos de idade ou
mais com menos de quatro anos de estudo completos.

18
é de precisos R$ 883,00, o que coffesponde a US$ 541,71 18 . Os
desempregados e trabalhadores mal remunerados, que compõem a
maior parte da população brasileira, são obrigados a se amontoar em
favelas, pois desde a extinção, em 1986, do BNH, que foi um dos
principais instrumentos brasileiros de desenvolvimento urbano (com
o financiamento da construção de moradias através da gestão do
FGTS), o Estado não apresenta uma política habitacional que dê con-
ta da demanda crescente. Paralelamente, nossa economia gradual-
mente se estruturou sobre o consumo, ainda não exercido nos níveis
paroxísticos observados nos EUA ou nos países europeus, mas em
escala que não encontra precedente em nossa história socioeconômi-
ca. A homogeneização global dos gostos e desejos, promovida pelas
empresas estrangeiras instaladas em nosso país, é responsável pela
ampla disponibilidade de bens de consumo duráveis e não duráveis,
que, entretanto, são acessíveis somente à pequena parcela da popula-
ção que detém a maior parte da renda. Este talvez seja o componente
mais problemático da nossa estrutura social: a privação relativa, que,
combinada com o individualismo pós-modemo, é uma poderosa cau-
sa de criminalidade, conforme o diagnóstico de Jock Young 19 .
Entrementes, nossas taxas de encarceramento vêm cres-
cendo consistentemente, atio a ano, como demonstram as esta-
tísticas do Ministério da fostiça 20 . Em 1997, o Brasil contava
com pouco mais de 170.000 presos (108,6 presos por 100.000
habitantes). Dez anos depois, nossas cadeias e penitenciárias
abrigam quase 420.000 presos (233,3 presos por 100.000 habi-
tantes), o que significa um aumento de 247% em apenas uma
década. Desde 2003, o número de encarcerados vem se
avolumando estavelmente a uma taxa de pouco mais de 10% ao
ano, o que projeta para a metade do ano de 2009 o atingimento
da sinistra marca dos 500.000 presos, mantido o ritmo atual. Só
o estado de São Paulo já possui atualmente cerca de 140.000

18
Utilizando-se a cotação excepcionalmente baixa (se levado em consideração
o passado recente) de US$ l,00/R$ 1,91, de 4 de junho de 2008.
19
Cf. Young, J. A Sociedade Excludente. Trad. Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Revan, 2002, p. 36.
20
Acessáveis no site oficial do Ministério da Justiça: www.mj.gov.br.

19
presos, isto é, quase o número de presos que o país inteiro pos-
suía há dez anos. Apenas três delitos - todos relacionados ao
acesso forçado à renda - são responsáveis pela prisão de quase
240.000 pessoas (cerca de 60% do total): furto, roubo - ambos
nas modalidades simples e qualificada - e tráfico de drogas ilí-
citas. Cada um destes três delitos, considerados individualmente,
supera em incidência o homicídio (no caso do roubo e do tráfi-
co, por larga margem). Estes dados só revelam uma realidade
que é por demais óbvia, mas que o senso comum criminológico
tenta escamotear: o sistema penal criminaliza a pobreza e, como
o neoliberalismo multiplica a pobreza, o número de criminalizados
cresce e crescerá na mesma proporção.
Tal como se deu nos EUA e na Grã-Bretanha, o modelo penal-
previdenciário começa a ser questionado em nosso passado recente por
vários atores sociais e políticos, de todas as c01Tentes, e com base em
fatores estruturais semelhantes aos observados nos dois países desen-
volvidas. Com um pouco de retardo, disseminou-se no seio da popula-
ção urbana brasileira a experiência do crime, cuja oc01Tência estatística
inequivocamente aumentou em razão do desenvolvimento da economia
de consumo (maior disponibilidade de bens de consumo em circula-
ção). Tal experiência se potencializou pela situação de profunda desi-
gualdade social, gerando a reação dos grupos sociais de maior partici-
pação na renda, retratados como as maiores vítimas de eventos crimi-
nosos (embora os números relativos à vitimização desmentissem esta
"verdade''). Outro fator impulsionador da crítica ao modelo previdenciário
de sistema penal foi a percepção de sua atuação seletiva, que nasceu nas
universidades e se incorporou ao ideário de certos grupos políticos de
esquerda21 . Do ponto de vista dos resultados, o modelo penal-
previdenciário passou a ser questionado por dois flancos: a) os eleva-
dos índices de reincidência indicavam que a proposta ressocializadora

21
Esta menção remete ao paradigmático trabalho de Maria Lúcia Karam,
em cujas linhas iniciais pode-se ler o seguinte: "nahistóriarecente, o primeiro
momento de interesse da esquerda pela repressão à criminalidade é marcado
por reivindicações de extensão da reação punitiva a condutas tradicionalmente
imunes à intervenção do sistema penal". Cf. A esquerda punitiva, in Discursos
Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1996, 1º sem. 96, nº 1, p. 79.

20
era essencialmente falaciosa; e b) o aparelho, como um todo, era visto
como ineficiente, seja por causa de seu excessivo formalismo, seja por
causa de sua incapacidade de se adaptar à demanda crescente (ocasio-
nada pela expansão da climinalidade ou, melhor dizendo, da criminali-
zação). Tal como ocmTeu nos EUA e na Grã-Bretanha, arraigou-se no
senso comum o paradigma do "nada funciona" e a noção de que o
aparelho punitivo esbanjava o suado dinheiro dos contribuintes em tro-
ca de resultados pífios (vide a conhecida latomia relativa ao "custo dos
presos"). No plano da segurança pública, espraiava-se o multifái.io dis-
curso da "impunidade", já inserido no léxico da esquerda, nos anos
passados, pela anistia concedida aos militares (percebidos generica-
mente como to1iuradores facinorosos ), que foi a pedra de toque retóri-
ca das mudanças que estavam por vir.
Este conjunto de pressões, que encontrava expressão real no
sensível aumento de processos criminais e no conseqüente
assoberbamento das serventias judiciais, gerou dois tipos de rea-
ções por parte do sistema penal, classificados aqui como
criminalizantes e não-criminalizantes, cujo maior desafio era con-
ciliar dois aspectos antagônicos situados na ordem do dia, a saber:
o aumento dos mecanismos de controle social, que é um dos pila-
res dos governos neoliberais e um dos principais anseios sociais
da atualidade, e as limitações (orçamentárias, humanas etc.) do pró-
prio apm·elho policial-judiciário, isto tudo sem abrir mão da pena.
Dentro do grupo das reações não-criminalizantes, cabe destacar
como representativa do esforço conciliatório mencionado a edição
da lei nº 9.714, de 25 de novembro de 1998, que, em síntese, au-
mentou de um para quatro anos de privação da liberdade o patamar
penal máximo passível de substituição por penas restritivas de direi-
tos e restringiu o óbice subjetivo apenas para os casos de reincidên-
cia específica em crimes dolosos (permitindo, assim, a substituição
da pena até para réus reincidentes, se o juiz entender conveniente),
como disposto na atual redação do artigo 44, incisos I e II e § 3º, do
Código Penal 22. Outrossim, merece menção alei nº9.099, de 26 de

22
É ilustrativa do que vem sendo afirmado a mensagem presidencial nº
1.447, de 25 de novembro de 1998 (acessível no sítio eletrônico da Presidência
da República, www.presidencia.gov.br), que, antes de apresentar as razões
do veto de alguns dispositivos do projeto de lei que originou a lei nº 9.714/

21
setembro de 1999 (regulamentadora do art. 98, inc. I, da Constitui-
ção da República), tal vez a mais transformadora da estrutura judici-
ária brasileira no passado legislativo recente, que pretendeu introdu-
zir um modelo "consensual" de resolução dos conflitos penais tidos
como de menor potencial ofensivo, cujos institutos desjudicializadores
e despenalizadores praticamente proscreveram a possibilidade de
aplicação de pena privativa de liberdade para crimes cuja pena máxi-
ma não seja superior a dois anos 23 . É possível notar a equação sobre
a qual se estruturam as duas novidades legislativas: controle do indi-
víduo pelo sistema penal sem submissão ao cárcere.
Ainda dentro do grupo das reações não-criminalizantes, pode-
mos mencionar certas medidas administrativas instituídas nas es-

98, menciona o móvel da iniciativa: "o Projeto de Lei n.<i 2.684, de 1996 (nº 32/
97 no Senado Federal), de iniciativa do Poder Executivo, teve sua concepção
normativa inspirada na vertente filosófica defendida pelas modernas escolas
de Direito Penal, cuja tônica doutrinária centra-se, nuclearmente, no
amadurecimento e na sustentação da tese de que as penas privativas de
liberdade, instituídas com a finalidade preponderante de promover a
ressocíaUzação da pessoa do delinqüente, estudada a sua aplicação
prática ao lume de métodos científicos de política criminal, revelaram-se
inadequadas e inábeis a propiciar a reintegração do detento ao convívio
social".
23 Não nos esqueçamos que, originalmente, a lei nº 9.099/95 fixou o patamar

máximo em um ano, que seria ampliado com alei nº 10.259, de 12 de julho de


2001 (juizados especiais federais), para dois anos. Curioso notar que a lei dos
juizados especiais criminais anulou uma das reações não-criminalizantes do
sistema penal, que, na dicção de Garland, era a restrição da criminalização, ao
ressuscita.rum conjunto de conflitos que o próprio gigantismo do sistema penal
cuida-:a de resolver pela inércia Alexandre Wunderlich diz que "com o advento
da Lei uma série de tipos sem qualquer dignidade penal, e ·que poderiam ser
descriminalizados, acabaram revigorados. Contravenções que estavam
desaparecidas hoje engordam as prateleiras forenses" (cf. A vítima no processo
penal: impressões sobre o fracasso da Lei 9.099/95, in RBCCrim, São Paulo,
ed. RT, 2007, nº 47, p. 250), e cita um estudo de Rodrigo Ghiringhelli de
Azevedo para ilustrar sua conclusão: "nos anos de 1994 e 1995 foram
distribuídos para as Varas Criminais Comuns em torno de 6.000 processos por
ano; em 1996 o número de processos distribuídos salta para 54.687, baixando
para 37.608 processos no ano de 1997" (op. cit., p. 251).
22
truturas policiais e judiciárias, às quais Garland dá o nome deres-
postas de adaptação do sistema penal à nova conjuntura de contes-
tação motivada pelas altas taxas de criminalidade, que, internamen-
te, têm por objetivo aumentar a capacidade de absorção do sistema
ou de tornar a atuação dos seus agentes mais seletiva (porém mais
visível) e, externamente, buscar legitimidade social através da apre-
sentação de resultados concretos. Há medidas ligadas à racionaliza-
ção e profissionalização das agências do sistema penal, que passa-
ram a seguir os mesmos padrões de gestão da iniciativa privada.
Observa-se, neste diapasão, a criação de diretorias de desenvolvi-
mento institucional, comissões de gestão estratégica ou órgãos afins
que, em linhas gerais, têm a missão de racionalizar o trabalho das
agências estatais. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janei-
ro, por exemplo, estampa em seu site na internet24 que uma das
tarefas da Diretoria Geral de Desenvolvimento Institucional (criada
em 2004, através da Res. nº 19, de 22.dez.04) é a construção do
sistema integrado de gestão através da metodologia preconizada pela
norma NBR ISO 9001:2001. Dá-se o mesmo com a Polícia Civil,
que premia suas unidades policiais de acordo com o atendimento
das diretrizes do Sistema de Avaliação da Gestão Pública.
Em outra vertente, Garland ressalta os processos de privati-
zação e comercialização do sistema penal, que consistem na apro-
ximação dos serviços oferecidos pelas agências penais às necessi-
dades comerciais de setores economicamente influentes. Não te-
mos tradição na privatização do sistema penal, ressalvados o mo-
vimento já consolidado de privatização da atividade de seguran-
ça pessoal e institucional e algumas experiências com a gestão
privada das prisões, mas no aspecto da comercialização existem
claros e abundantes sinais na atualidade. Apenas para citar alguns,
pensemos nas "rondas bancárias" das viaturas policiais militares,
ou nas delegacias cuja atuação é determinada menos em função da
especificidade de certos crimes do que nas suas vítimas - é o
caso, no Rio de Janeiro, da Delegacia de Serviços Delegados (que
atende às empresas concessionárias de serviços públicos essenci-

24
O endereço é: www.tj.rj.gov.br, devendo-se acessar a guia "Institucional"
e, sucessivamente, os links "Diretorias Gerais" e "Desenvolvimento
Institucional".
23
ais - Light, CEG, entre outras-privatizadas alguns anos atrás) ou
da Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Propriedade Imaterial
(que protege os interesses da Nike, Warner, Microsoft etc., através
da criminalização dos comerciantes populares de produtos "piratas").
Uma terceira modalidade de adaptação ou de reação não-
criminalizante é o compartilhamento da tarefa de controle do cri-
me com a sociedade civil. A partir do momento em que certos
organismos não governamentais, criados notadamente no seio dos
grupos sociais mais conservadores, se interessaram pela questão
da segurança pública, as agências policiais passaram a interagir
com eles, criando canais diretos de comunicação. Hoje em dia, as
"denúncias" elaboradas através do disque-denúncia levam poucos
dias para inaugurar um procedimento policial apuratório ou para
serem juntadas em algum inquérito policial já em andamento; e
todas as "denúncias" devem ser apuradas, ainda que sumariamen-
te, pois a instituição policial deve prestar contas à ONG responsá-
vel pelo serviço, que, por sua vez, confere premiações à equipe
policial que desvende determinado crime noticiado no disque-de-
núncia. Falamos aqui da participação espontânea, mas a participa-
ção ativa dos cidadãos no combate ao crime é também cobrada,
especialmente se o cidadão em questão possuir algum status.
Lembremo-nos que, no carnaval de 2007, o atual Ministro de Es-
tado da Fazenda Guida Mantega decidiu não comunicar à polícia
o assalto que sofrera junto com sua família, em Ibiúna-SP. O com-
portamento adotado pelo Ministro, absolutamente corriqueiro e
sob qualquer ponto de vista incensurável, foi publicamente
exprobado num desses grandes "debates" promovidos pela mídia.
O jornal O Globo, por exemplo, publicou matéria de página intei-
ra divulgando a opinião unânime dos "especialistas" ouvidos ho
sentido da imperiosidade de comunicar-se o crime em qualquer
circunstância. De acordo com um dos "especialistas" de sempre,
"no quadro de violência que enfrentamos, a comunicação é dever de
todo cidadão, principalmente quando se trata de pessoa pública. Par-
ticipar do reconhecimento é outro dever. Se não, contribui-se
para a impunidade"25 . A participação da sociedade civil, contudo,

25A matéria, intitulada "A condenação da impunidade", saiu na edição de


26 de fevereiro de 2007, na editoria País, p. 3. O "especialista" transcrito é

24
não se faz sentir somente por estas vias. É notável o relevo que a
vítima assumiu nos conflitos penais, sendo este movimento o
resultado direto da priorização das agências do sistema penal às
conseqüências do crime, em detrimento do combate às causas
( que marcou o previdenciarismo penal). A vítima, atualmente, ao
mesmo tempo em que, no campo do simbólico, serve para
humanizar e dar concretude ao difuso sofrimento com o crime,
canaliza o sentimento público de indignação para com o fenôme-
no da criminalidade como um todo e ainda ganha status de espe-
cialista em matéria criminal.Na ocorrência criminal de hoje, os
meios de comunicação ouvem a opinião das vítimas de ontem - a
autora de novela cuja filha, atriz, foi assassinada por um colega
de trabalho, os pais da jovem que ficou tetraplégica depois de
atingida por um tiro no campus da Universidade Estácio de Sá,
os pais da menina morta na estação de metrô, o vocalista da
banda de rock, o ex-baterista do grupo Rappa, entre muitos ou-
tros, viraram celebridades com amplo espaço nos meios de co-
municação. A presença das vítimas no espaço público de debate,
sempre ao lado de políticos ou de autoridades em geral 26 , serve
para angariar adesão, através da solidariedade e da formação de
consenso, às medidas em sua maioria repressivas pleiteadas por
elas. Copiando o modelo dos EUA, também temos as nossas leis
batizadas com o nome de vítimas, como a Lei Maria da Penha
(nQ 11.340/06), qúe instituiu tratamento mais severo para acha-
mada violência doméstica, assim nomeada em homenagem a Maria
da Penha Maia, por anos agredida fisicamente pelo marido até
ficar paraplégica.

Antonio Carlos Biscaia, ex-procurador de justiça do Estado do Rio de


Janeiro e atual secretário nacional de Segurança Pública.
26
Impossível não lembrar a acolhida que uma empregada doméstica,
espancada por jovens de classe média na Barra da Tijuca, recebeu do atual
presidente da Seção do Rio de Janeiro da OAB, que talvez se tenha esquecido
de que os jovens, demonizados naquele espetáculo publicitário, seriam
defendidos por advogados, isto é, por membros da entidade classista presidida
por ele.
25
O outro tipo de reação do sistema penal abarca as medidas
criminalizantes, a que Garland dá o nome de respostas de não-adap-
tação. Respostas de não-adaptação porque procuram distender o
sistema penal, como se ele já não estivesse próximo do ponto de
ruptura; porque preconizam o encarceramento, como se o
superlotado sistema prisional brasileiro já não registrasse há déca-
das um absurdo déficit de vagas. Ou seja, respostas de não-adapta-
ção porque simplesmente parecem desconhecer ou negar a cala-
mitosa realidade do sistema penal. Se é possível, na pós-moderni-
dade, identificar duas criminologias - a primeira, a criminologia
do eu, que retrata o criminoso como uma pessoa normal, consumi-
dor como nós numa situação transitória de vulnerabilidade, e que
banaliza o crime, mitiga o medo popular e advoga o afastamento
do sistema penal em favor de intervenções preventivas, e a segun-
da, a criminologia do outro, que demoniza o criminoso, apóia o
poder punitivo e expressa e dramatiza os medos populares - a cri-
minologia que está por trás das respostas de não-adaptação é
inequivocamente a segunda. São abundantes os exemplos brasi-
leiros das medidas criminalizantes, concentradas, acima de tudo,
na atividade legislativa pós-Constituição da República de 1988.
Não estamos nos referindo apenas à face mais óbvia da criação de
tipos penais ou da majoração das penas dos já existentes; referimo-
nos também ao notório aproveitamento do processo penal como
importante instrumento das políticas criminais de lei e ordem. Tal-
vez tenha sido através das portas do processo penal que a maior
parte das medidas legislativas repressivas se inscreveu no repertó-
rio do sistema penal. Neste norte, cabe citar a incorporação ao
discurso jurídico da categoria do "crime organizado", sobre a qual
se ergue a propaganda oficial de combate à criminalidade, as mui-
tas tentativas de restringir a liberdade provisória (vide a Lei dos
Crimes Hediondos e o Estatuto do Desarmamento), a introdução de
novos instrumentos investigatórios e probatórios, tais como a in-
filtração de agentes policiais, a interceptação de comunicações te-
lefônicas e a delação premiada, que buscam retroceder o processo
penal aos tempos inquisitoriais, em que a atividade probatória pro-
curava basicamente obter a confissão do acusado, a sumarização
dos procedimentos, entre outros. Examinando conjuntamente as
inovações posteriores a 1988, é possível notar que o processo pe-

26
nal da pós-modernidade se preocupa mais com os resultados do que
com a segurança, assim conduzido pelo discurso jurídico da
instrumentalidade do processo. Trata-se de um processo que per-
deu sua inspiração na produção do resultado justo; a função, ago-
ra, é evitar a prescrição, de uns tempos para cá despojada de sua
dignidade jurídica e político-criminal para se transformar em um
dos sinônimos de impunidade. Neste particular, nada é mais
ilustrativo do que duas novidades constitucionais trazidas pela EC
nº 45, de 8 de dezembro de 2004, apelidada de "reforma do Judici-
ário": a introdução da garantia constitucional da "razoável dura-
ção do processo", assegurados os meios "que garantam a celeridade
de sua tramitação" (art. 5º, inc. LXXVIII), e a introdução de mais
um critério para a promoção de juízes, consistente na "aferição do .
merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos
de produtividade e presteza no exercício da jurisdição" (art. 93,
inc. II, "c").
O discurso que prega, por um lado, medidas despenalizadoras
e, por outro, medidas repressivas - presente, em ambas as esferas,
o controle do indivíduo pelo sistema penal - não é absolutamente
aquele que se pauta pela distinção dos crimes em "leves", merece-
dores das primeiras, e "graves", tratáveis somente pelas segundas.
Este é apenas o verniz legitimante de uma política criminal que,
na verdade, seleciona os clientes do sistema penal em função da
utilidade que podem ter para o modelo econômico. Como o neoli-
beralismo é, em essência, concentrador de renda e excludente, o
resultado disto é que a clientela vem aumentando aceleradamente
- aí está o crescimento da população carcerária que não nos deixa
mentir. O que quadra destacar é que, também no Brasil, a pena
teve subtraída sua função terapêutica, restando-lhe apenas o
retributivismo puro a prazos cada vez mais longos. Nesta linha de
raciocínio, um dos fatores que explicam a disparidade entre as
populações carcerárias do Brasil e dos EUA é que, por aqui, ape-
sar do empenho, os próceres dos movimentos de lei e ordem ainda
não conseguiram den-ubar os dois diques legais que mantêm imen-
sos contingentes humanos fora do cárcere: o limite etário mínimo de
18 anos para a imputação de responsabilidade penal (art. 27 CP) e a
proibição de pe1manência na prisão por prazo superior a 30 anos
(art. 75 CP).

27
Outro aspecto da pós-modernidade criminal presente entre nós
é o papel da mídia na dinamização do sistema penal. Para Garland, a
mídia funciona como um elemento oportunista, ou seja, ela não
produziu o interesse social pelo crime ou o punitivismo popular;
sem uma sedimentada e genuína experiência coletiva do crime, difi-
cilmente o noticiário criminal atrairia tanta atenção. Coube à mídia
apenas reforçar e dramatizar aquela experiência pública,
institucionalizando-a. Para os fins desta apresentação, é dispensável
analisarmos se a mídia apenas embarcou no fenômeno criminal,
desde que ele se tornou mais presente na vida social, ou se, de fato,
ela fabrica a representação popular sobre o assunto. O que importa
destacar é que, aqui como nos EUA e na Grã-Bretanha, o interesse
da mídia pelo crime é visivelmente crescente, transcende a ingênua
suposição de que "sangue vende jornal" e não possui qualquer rela-
ção direta com o aumento dos índices de criminalidade. Como sali-
entou Nilo Batista, num dos principais estudos brasileiros sobre as
relações da mídia com o sistema penal, a partir do momento em que _
os órgãos de comunicação se viram incorporados aos grandes gru-
pos das telecomunicações que lucraram fantasticamente na transi-
ção para o capitalismo tardio, passaram eles a priorizar.um dos ele-
mentos centrais do neoliberalismo, que é a utilização do poder puni-
tivo "para o controle dos contingentes humanos que ele mesmo
marginaliza" 27 . Daí os noticiários divulgarem, todos os dias, o "novo
credo criminológico", que, segundo Nilo Batista, "tem seu núcleo
irradiador na própria idéia de pena: antes de mais nada, crêem na
pena como rito sagrado de solução de conflitos" 28 . Sem correr o
risco de subestimar os efeitos do controle do crime na vida cotidia-
na e a sua parcela de responsabilidade na institucionalização do medo
do crime, pode-se afirmar que a mídia é hoje o elemento que mais
alavanca o poder punitivo, através da disseminação maciça do dis-
curso único segundo o qual todos os conflitos sociais devem ser
resolvidos pelo sistema penal. Nos tempos atuais, a mídia é a princi-
pal responsável por inserir a vítima no centro do palco da questão

27
Cf. Batista, N. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, in Discursos
Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan, 2002, 2!>.
sem.02, n2 l2, pp. 271-288.
28
Op. cit., p. 273.

28
criminal, vinculando seus interesses ao chamado interesse público e
colocando ambos em antagonismo com os eventuais direitos e ga-
rantias do acusado, como se fossem duas dimensões inconciliá-
veis. É responsável, também, pelo crescente interesse parlamentar
na atividade investigatória - hoje em dia, a composição de uma
CPI é tão estratégica quanto a das comissões que analisam as ques-
tões da vida nacional, não apenas por causa do tradicional apro-
veitamento da criminalização como instrumento de luta política,
mas principalmente porque a própria atividade parlamentar é
enxergada por este prisma. A mídia, enfim, enraizou na represen-
tação popular a lógica do crime e castigo, contribuindo diretamen-
te para a sedimentação da formação cultural pós-moderna a que
Garland dá o nome de "complexo do crime".
A atual cultura política do controle do crime exige grande
atuação do Estado, porém, ao mesmo tempo, preconiza que tal
presença nunca é suficiente. Portanto, é atraída para o campo do
controle do crime a atuação dos entes privados, cuja obsessão com
a segurança fez florescer, nas últimas décadas, a bilionária indús-
tria privada da prevenção do crime - empresas de viligância, blin-
dagem de veículos, alarmes e circuitos internos de TV, grades,
cofres, portões, cadeados, ou seja, todos os mecanismos que, por
um lado, demarcam o terreno do privado (cujo acesso é proibido)
e, por outro, amainam as angústias com a insegurança existencial.
Perceberá o leitor que nosso Estado trilha o mesmo caminho
já percorrido pelos EUA e, em menor escala, pela Grã-Bretanha.
O Estado vem se despindo de muitos poderes, remanescendo em
suas mãos apenas o poder punitivo; cabe a ele, assim, exercer este
poder punitivo da forma mais funcional aos que detêm o poder
econômico. A prisão, que no previdenciarismo penal era vista como
último recurso, o último estágio de um processo contínuo de trata-
mento, hoje reúne cada vez mais os atributos de um mecanismo
explícito de exclusão e controle dos contingentes populacionais
rejeitados pelas instituições da família, do trabalho, da previdência e
da economia de consumo. A prisão, na feliz síntese de Loi:c Wacquant,
é o principal instrumento da política habitacional do Estado para os
inúteis da nova economia. Como enfatiza Garland, sua reaparição,
em forma renovada, se deu pelo papel essencial que vem desempe-
nhando no funcionamento das sociedades pós-modernas neoliberais:

29
a de instrumento "civilizado" e "constitucional" de segregação das
populações problemáticas criadas pela economia e pelos arranjos
sociais atuais.
Como se disse acima, a crônica do presente britânico e, espe-
cialmente, norte-americano é em ampla medida a crônica do nos-
so futuro próximo. Por isso, é chegada a hora de o leitor vasculhar
as entranhas .da cultura çlo controle.

André Nascimento

30
Prefácio

Este livro trata da cultura do controle do crime e da justiça


criminal na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Ou, para ser mais
preciso, trata dos dramáticos desdobramentos dos últimos trinta
anos em nossa resposta social ao crime e das forças sociais, cultu-
rais e políticas que os impulsionaram. "Controle do crime" e "jus-
tiça criminal" são termos abreviados que descrevem um complexo
espectro de práticas e instituições, que vão da conduta dos mora-
dores que trancam as portas de suas casas às ações das autoridades
que habilitam leis criminais, versando estas desde o policiamento
comunitário até o encarceramento, e todo o processo que as
permeia. Como pode paTecer ao leitor uma aventura inconseqüen-
te expandir a análise a um conjunto tão amplo de políticas e práti-
cas, assim como sobre duas sociedades tão diferentes entre si, tal-
vez uma palavra de esclarecimento seja devida logo de início.
Em nossas tentativas de buscar o sentido da vida social, nota-
mos a existência de inevitável tensão entre amplas generalizações
e a especificidade das experiências particulares. A-resposta padrão
para qualquer interpretação social ou histórica ampla é apontar os
fatos específicos que não se encaixam, a variação que não se levou
em conta ou os detalhes que faltaram para completar o cenário. "É
mais complicado do que isto!" ou "não é assim em Minnesota!"
(ou, neste particular, em Manchester ou em Midlothian 1) são críti-
cas inevitáveis e, em seus próprios termos, tais críticas são fre-

1
Referência à cidade escocesa situada a cerca de 15 quilômetros de
Edimburgo, capital da Escócia, em cuja universidade o autor obteve seu
bacharelado em direito, em 1977, e o título de PhD em Socio-Legal Studies,
em 1984. David Garland lecionou na Universidade de Edimburgo de 1979 a
1997, até incorporar-se à Universidade de Nova Iorque, onde é professor
de sociologia. Além disso, é professor da faculdade de direito da
Universidade Arthur T. Vanderbilt, uma das mais prestigiadas instituições
de ensino dos Estados Unidos, localizada na cidade de Nashville, estado
do Tennessee. (N.T.)

31
qüentemente bem recebidas. Porém, os estudos detalhados de ca-
sos ensejados por essa reação crítica têm destino oposto quando
enfrentam seus próprios críticos. Agora, o problema não é a sim-
plificação, mas a insignificância. Como este estudo se relaciona
com outros já feitos ou por fazer? Por que deveríamos nos inte-
ressar? O que, no fim das contas, o estudo diz do mundo em
que vivemos?
Para o autor, como indivíduo, não há como escapar deste dile-
ma. É preciso avançar e retroceder entre o geral e o particular, entre
o cenário global e o detalhe local, até alcançar um nível de análise
que aparentemente lhe forneça o ponto ótimo - consideradas as
inevitáveis limitações de acesso, de recursos, de habilidade e de
disposição. Para a comunidade acadêmica em geral, contudo, o di-
lema felizmente desaparece. A divisão do trabalho acadêmico asse-
gura que quaisquer deficiências existentes sejam decoffentes de
apenas um estilo de análise; tais deficiências podem comumente ser
compensadas ou coffigidas por estudos realizados pela outra ponta
da seqüência. Naffativas genéricas do cenário podem ser ajustadas
e revisadas por estudos de casos mais específicos que adicionem as
particularidades empúicas e o detalhe local. O desenvolvimento das
análises específicas acaba despertando o desejo por análises mais
genéricas, na medida em que as abastece com a inspiração e o ma-
terial bruto produzido. Um tipo de estudo provoca e facilita o ou-
tro, numa dialética acadêmica que necessita de ambos.
No presente estudo, optei por me concentrar no conjunto das
nossas respostas sociais ao crime. Fiz esta opção porque, anali-
sando a questão neste nível, acredito poder identificar alguns dos
princípios organizacionais gerais que estruturam nossos modos
contemporâneos de pensar e agir no que se refere ao controle do
crime e à justiça criminal. Há evidentes prejuízos implicados na
opção de analisar as coisas com este nível de abstração: simplifi-
cação excessiva, falsas generalizações, um certo descuido com
vatiáveis, para indicar apenas alguns. Todavia, espero demonstrar
que há também algumas virtudes: particularmente, a habilidade de
indicar as propriedades estruturais do campo e a recorrente dinâ-
mica social e cultural que as produz. Parâmetros estruturais deste
tipo simplesmente não se tornam visíveis em estudos voltados es-
pecificamente a um campo político ou a uma instituição. Somente
32
através da observação do campo como um todo podemos preten-
der descobrir as estratégias, as racionalidades e culturas que pro-
porcionam ao campo sua estrutura e organização próprias. Além
disso, se tais parâmetros realmente existem, e se eu ajudei a
identificá-los, então estudos de casos subseqüentes certamente
estarão em melhores condições de confirmar, refutar ou refinar
estas descobertas.
O descobrimento destes parâmetros de organização no con-
trole do crime contemporâneo e minha compreensão sobre seu
substrato social e cultural permitiram-me fazer minha segunda - e
talvez ainda mais inconseqüente - escolha de objeto de estudo: a
decisão de analisar o controle do crime tanto na Grã-Bretanha quan-
to nos Estados Unidos. A fim de evitar mal-entendidos, devo ex-
plicar, de pronto, o que espero e o que não espero alcançar, ao
conferir ao meu estudo este alcance transatlântico.
Minha intenção certamente não é produzir um estudo compa-
rativo, mensurando as respostas norte-americanas ao crime e con-
trapondo-as às correspondentes britânicas, ou comparando os índi-
ces observados em cada uma das duas nações ou mesmo especifi-
cando suas similitudes e discrepâncias. Tal estudo exigiria uma
abrangência inalcançável e bem além da minha competência; e, mes-
mo que fosse possível, não é claro o valor teórico que poderia ter.
Em vez disso, minha preocupação é apontar o que considero impor-
tantes similitudes na experiência recente destes dois países e sugerir
que estas similitudes provêm não apenas da imitação política e da
transferência de políticas públicas - conquanto isto tenha aconteci-
do - mas também de um processo de mudança social e cultural que
recentemente tem alterado as relações sociais em ambas as socieda-
des. Para usar uma expressão melhor, descrevo estas mudanças
sociais e culturais como sinal da pós-modernidade, e tento estabele-
cer como este fator compartilhado de desenvolvimento histórico
transformou a experiência do crime, da insegurança e da ordem
social - primeiramente nos Estados Unidos e, em seguida, na Grã-
Bretanha. Meu argumento será o de que a "pós-modernidade" - o
caráter específico de relações sociais, econômicas e culturais que
emergiram nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em outros luga-
res do mundo desenvolvido no último terço do século XX - traz
consigo um grupo de riscos, inseguranças e problemas relaciona-
33
dos ao controle, que tem assumido papel crucial nos contornos de
nossa cambiante resposta ao crime.
Evidentemente, as diferentes características sociais, instituci-
onais e culturais destas duas nações têm influenciado a maneira de
perceber estes problemas, de apontar quem são os responsáveis e
de escolher as respostas políticas. E não se pode negar que a con-
junção especial da questão racial, da desigualdade econômica e da
violência letal que marcam os Estados Unidos, na contemporaneidade,
tem conferido intensidade, por vezes aparentemente excessiva, à
sua resposta penal. Uma democracia liberal do Ocidente, que roti-
neiramente executa criminosos e encarcera seus cidadãos em ritmo
de seis a dez vezes mais acelerado do que em outras nações
equiparáveis, pode parecer muito divergente dos padrões internaci-
onais, assim como desafia qualquer comparação útil. No entanto, se
alguém se debruçar sobre o caráter destas respostas penais e sobre
os temas centrais, recorrentes, de interesse público, de debate polí-
tico e de desenvolvimento de políticas, e se alguém está disposto a
deixar de lado, por ora, questões de tamanho e grau, revela-se clara-
mente que há importantes similitudes nos problemas aos quais am-
bos os atores sociais, em ambos os países, estão respondendo. Os
mesmos tipos de riscos e inseguranças, a mesma percepção quanto
à ineficácia do controle social, as mesmas críticas ao sistema tradi-
cional de justiça criminal e as mesmas e recorrentes ansiedades re-
lativas à mudança social e à ordem social: estes fatores afetam as
duas nações. E o recente desenvolvimento do controle do crime na
Grã-Bretanha sugere que os Estados Unidos não estão de forma
alguma sozinhos no que se refere à resposta ao crime ou aos pro-
cessos sociais que lhe são subjacentes.
Se for mesmo este o caso, seria de se esperar que outras socieda-
des, que igualmente têm experimentado as mudanças da pós-moder-
nidade, também se debatessem com problemas desta natureza. Pro-
fessores como Thomas Mathiesen, Nils Christie e Loi:c Wacquant
vêm indicando a crescente tendência das nações européias em equi-
parar suas respostas ao crime àquelas pioneiramente empregadas
pelos Estados Unidos, mesmo que esta equiparação vá de encontro
às tradições históricas das nações envolvidas." Se estes professores
estão corretos em suas observações, é possível que a explicação
esteja no fato de que aquele desenvolvimento social, econômico e
34
cultural expõe-nos, cada vez mais, aos problemas especiais de or-
dem social que a pós-modernidade traz em seu limiar,
Qualquer exame extensivo dos Estados Unidos e da Grã-
Bretanha - dois grandes países, mais ou menos federativos, que
possuem inúmeros sistemas legais distintos operando em seus ter-
ritórios - envolverá um desconfortável grau de simplificação. Mi-
nha desculpa para impor ao leitor eventuais omissões e exageros,
ou, em todo caso, a maneira com que advogo minha hipótese, é
que tal análise me permite captar os parâmetros estruturais que, do
contrário, não estariam disponíveis para verificação. Todavia, se
isto não for suficiente, adicionaria, com o objetivo de mitigar mi-
nha falha, que esta é uma área da pesquisa acadêmica que necessi-
ta de mais de estudos gerais, e não menos. Como pudemos apren-
der na impactante obra Vigiar e punir, de Michel Foucault, tentati-
vas de delinear parâmetros de mudanças estruturais tendem, te-
nham ou não consistência seus argumentos, a possuir um efeito
estimulante para estudos empíricos ulteriores e para críticas enér-
gicas. É com este espírito de provocação e de estímulo à produção
que apresento este estudo ao público.
Considerando-se que a tese que trabalho aqui se combina com
uma narrativa histórica e é desenvolvida em vários níveis diferen-
tes, um esboço preliminar do argumento central talvez seja útil
como guia. Neste preâmbulo e tàmbém na seqüência tent~i ser
claro nas questões teóricas, de modo que o leitor estará apto a
seguir meu argumento sem esforço excessivo. Com a mesma fina-
lidade, coloquei as fontes de dados e as referências acadêmicas
em notas ao final de cada capítulo. Estas notas serão leitura es-
sencial (e, espero, esclarecedora) para o profissional acadêmi-
co, ao passo que, para o leitor interessado em simplesmente
acompanhar a narrativa e os argumentos expostos no livro, se-
rão desnecessárias.
O estudo se inicia com a apresentação do contraste das nos-
sas políticas e práticas atuais com aquelas em voga até a década de
1970, e se encerra demonstrando a análise de como a dinâmica
atual do controle do crime reproduz um certo tipo de ordem social
nas sociedades pós-modernas. Ao longo do percurso, o presente
estudo destaca a história da justiça criminal, a teoria da mudança
social e penal e a descrição de como forças sociais, econômicas e
35
culturais pós-modernas deram nova feição à reflexão criminológica,
às políticas criminais governamentais e às atitudes culturais popula-
res. No que concerne a estes aspectos, o presente estudo é baseado
em dois livros meus anteriores: Punishment and Welfare, quedes-
creveu o recrudescimento de uma forma previdenciária de justiça
criminal no início do século XX, e Punishment andModem Society',
que desenvolveu uma teoria social da punição, a qual enfatizou tanto
os elementos culturais como os políticos das instituições penais. A
cultura do controle completa a trilogia, pois fornece a atualização
histórica de Punishment and Welfare, assim como utiliza a teoria
social desenvolvida emPunishment andModem Society para inter-
pretar e explicar um grupo concreto de instituições e idéias.
Como já sugeri, minha hipótese é de que as muitas transfor-
mações que ocorreram na lei penal e em sua aplicação podem ser
mais bem entendidas através da análise do campo como um todo
do que pela análise isolada de cada elemento. Mudanças em polí-
ticas, sentenças, punições, teorias criminológicas, filosofia penal,
políticas penais, segurança privada, prevenção do crime e trata-
mento das vítimas, assim por diante, podem ser mais bem apreen-
didas se forem vistas como elementos que interagem no campo
estrutural do controle do crime e da justiça criminal. Comparando
às práticas atuais com o conjunto de instituições e idéias que exis-
tiram até 1970, é possível identificar uma série de características
comuns, que ajudam a explicar a dinâmica da mudança e os prin-
cípios estratégicos que suportam o estado de coisas atual.
Meu argumento será o de que a situação atual, em termos de
controle do crime, foi moldada por duas forças sociais fundamen-
tais: o modo especial de organização social da pós-modernidade e
a economia de mercado - políticas sociais conservadoras que do-
minaram os Estados Unidos e a Grã-Bretanha na década de 1980 -
e os capítulos centrais do livro descrevem essas forças sociais com
detalhes. Todavia, em vez de simplesmente asseverar que as mu-
danças no controle do crime representaram uma "resposta" para
uma mudança social e política mais ampla, ou foram "influencia-
das" por ela, tento descrever os processos atuais, em que o campo

2
Como já esclarecido na apresentação, nenhuma das duas obras citadas
possui tradução em língua portuguesa. (N.T.)
36
do controle do crime foi afetado pela mudança social, e os meca-
nismos específicos através dos quais a política criminal foi alinha-
da às relações sociais e culturais contemporâneas.
Para tanto, o livro provê uma série de análises detalhadas que
mostram como atores políticos e agências governamentais - forças
policiais, agências de persecução criminal, tribunais, prisões, departa-
mentos governamentais, representantes eleitos - foram confrontados
com um novo conjunto de problemas práticos em suas atividades
diárias. Este conjunto de problemas derivou essencialmente da
prevalência de altas taxas de criminalidade na sociedade pós-moderna
e do crescente reconhecimento de que a justiça criminal moderna é
limitada em sua capacidade de controlar o crime e de prover seguran-
ça. Os capítulos centrais do livro analisam as evidências que indicam
como atores e agências governamentais entenderam a perplexidade
que esta situação lhes trazia e como eles engendraram estratégias
específicas, que lhes permitiram adaptarem-se ao (ou, em alguns ca-
sos, contornar o) problema. Estas estratégias assumiram várias for-
mas e se desenvolveram em direções contraditórias. As mais "exitosas"
(por "exitosas" quero dizer as que se tomaram mais arraigadas) fo-
ram aquelas que repercutiram nas políticas e nas culturas populares e
profissionais emergentes nestes anos.
Após descrever estas adaptações governamentais e as políti-
cas de controle do crime por elas impulsionadas, exploro as condi-
ções culturais que influíram para sua popularização. O singular fato
de que as políticas punitivas de "lei e ordem" tenham coexistido, em
ambos os países, com estratégias completamente diferentes - par-
cerias preventivas, policiamento comunitário e prevenção generali-
zada do crime - é explicado pela ambivalência pública quanto ao
crime e ao seu controle: uma ambivalência que dá ensejo a formas
bem distintas de ação. As sensibilidades que caracterizam esta cul-
tura popular não provêm do tratamento midiático ou da retórica
política, muito embora estes elementos as influenciem. Elas são ori-
ginadas da experiência coletiva do crime no dia-a-dia e nas adapta-
ções práticas que esta experiência acaba provocando.
Nas mesmas décadas em que a justiça criminal se esforçou
para fazer frente ao crime na sociedade pós-moderna, os cidadãos,
as comunidades e as empresas aprenderam a se adaptar a um mun-
do no qual altas taxas de criminalidade são um fato social normal.
37
Os atores privados da sociedade civil desenvolveram sua própria
adaptação à nova disseminação do crime, seus próprios cuidados
rotineiros e controles sociais, e são estas adaptações (mais do que
as taxas de criminalidade em si mesmas) que contam para a rele-
vância política e cultural que o crime tem obtido nos anos recen-
tes. Estas medidas práticas rotineiras fornecem a base social para
muitas das novas políticas criminais dos últimos anos e moldam a
formação cultural - o complexo do crime - que vem crescendo em
torno do crime no final do século XX. Elas contribuíram também
para a queda nos índices de criminalidade que se destacaram na
década de 1990 e para a viabilidade de políticas, como o policia-
mento comunitário, que dependiam do apoio público e de uma
espraiada cultura de controle e prevenção.
Minha análise sugere que, muito embora as estruturas da justi-
ça criminal tenham mudado significativamente nas últimas décadas,
as mudanças mais importantes giraram em torno da representação
cultural que lhes dá vida. Descrevo o surgimento de um novo con-
trole do crime, que encarna um novo conceito de previdência penal,
uma nova criminologia do controle e um modo econômico de toma-
da de decisões. Também indico como esta nova cultura do con-
trole se enreda com as políticas sociais e econômicas que
contemporaneamente vêm caracterizando a Grã-Bretanha e os
Estados Unidos.
As raízes das atuais práticas relacionadas ao controle do crime
estão fincadas no caráter da organização social contemporânea e
nas escolhas políticas e culturais, a ela relacionadas, que foram fei-
tas. E o novo mundo do controle do crime proporciona, por seu turno,
imp01iante fonte de legitimação para políticas antiprevidenciárias e para
uma concepção dos pobres como subclasse social não merecedora
de apoio. O caráter de dependência mútua entre as políticas penais e
previdenciárias da atualidade- baseado em princípios bem diferen-
tes daqueles descritos em Punishment and Welfare - é indicado
por uma análise dos expedientes retóricos dos discursos e das
estratégias administrativas que perpassam os domínios de ambas
as instituições.
À guisa de conclusão, diferencio aqueles desenvolvimentos
históricos que são estruturalmente condicionados por outros mais
contingentes, indicando quais aspectos da política atual são mais
38
suscetíveis de persistirem num futuro previsível e quais aparente-
mente estão mais maduros para contestação política. O estudo se
encerra com a consideração dos processos sociais que tenderão a
nos engessar numa cultura institucional do controle e das forças
que ainda podem se contrapor a esse quadro e nos permitir escapar
desta jaula de ferro. A experimentação destas possibilidades deve,
espero, tomar claro que minha exposição dos motivos pelos quais
as coisas são como são não deve sugerir que nosso mundo é como
deveria ser. Como Raymond Aron disse em certa ocasião, o ob-
jetivo da análise social é tornar a história mais inteligível, e não
encerrá-la.
Mais do que em meus livros anteriores, este surgiu diretamen-
te das discussões e debates que travei com outros professores, que
trabalham o mesmo conjunto de questões. Neste sentido, o livro é o
produto de um esforço coletivo, e minha possível acuidade ou a
coerência das conclusões são fruto desta empreitada comum. A
experiência de participar de debates sociológicos sobre o crime e a
punição contemporâneos tem sido saudável, e os trabalhos de Tony
Bottoms, Stan Cohen, Adam Crawford, Malcom Feeley, David
Greenberg, James B. Jacobs, Pat O'Malley, Nikolas Rose, Joachim
Savelsberg, Stuart Scheingold, Clifford Shearing, Jonathan Simon,
Richard Sparks, Philip Stenning, Michael Tonry, Loi:c Wacquant e
Frank Zimring têm sido especialmente importantes para mim, neste
particular. E se meus interlocutores e eu ainda não conseguimos
alcançar um consenso sobre como interpretar o mundo, pelo me-
nos nós podemos agora discordar com mais precisão do que vínha-
mos fazendo. A este respeito, estou também em débito com os edi-
tores e colaboradores da revista Punishment & Society, que tem
sido fonte constante de inspiração e de idéias, nos últimos anos, e
um lembrete perene das virtudes do trabalho coletivo.
Além disso, devo agradecimentos especiais a vários amigos
e colegas que me ajudaram na elaboração deste livro. As pessoas
indicadas a seguir leram rascunhos inteiros do trabalho e me brin-
daram com críticas detalhadas e sugestões, muitas das quais foram
rapidamente incorporadas ao texto final: Todd Clear, David Downes,
Jeff Fagan, Barry Friedman, Doug Husak, James B. Jacobs, Ian
Loader, Stephen Morse, Kevin Reitz, Stuart Scheingold, Adina
Schwartz, Jonathan Simon, Jerry Skolnick, Richard Sparks e Michael
39
Tomy. Sou imensamente grato a eles. Gostaria, também, de regis-
trar meu agradecimento a Vanessa Barker, Gretchen Feltes, Aaron
Kupchik e Elana Dietz-Weinstein, pela excelente assistência no tra-
balho de pesquisa e de seleção bibliográfica; a Jim Jacobs e John
Sexton, por fazer da Faculdade de Direito da Universidade de Nova
Iorque uma instituição soberba para se trabalhar; aos meus colegas
do Departamento de Sociologia da Universidade de Nova Iorque; e
ao Filomen D' Agostino and Max E. Greenberg Research Fund, por
seu apoio à pesquisa sobre a qual este trabalho é baseado. Versões
substancialmente diferentes dos Capítulos 5 e 6 foram publicados
no British Journal of Criminology e sou grato a seus editores, revi-
sores e leitores, pelos comentários e críticas que fizeram. Finalmen-
te, gostaria de agradecer a John Louth, Mick Belson e John Tryneski,
por fazer da publicação deste livro um processo eficiente e prazeroso.
Anne J owett me ajudou neste trabalho de tantas maneiras que
é difícil mencioná-las, e é com amor e gratidão que dedico a ela
este livro, e a nossas filhas, Kasia e Amy.

40
1. Uma história do presente

Nós rapidamente nos acostumamos às coisas como elas são.


Hoje, mais do que nunca, é fácil viver no imediatismo do presente
e perder todo o senso do processo histórico que gerou o atual esta-
do de coisas. Nos EUA, o público parece agora acostumado a vi-
ver numa nação que possui 2 milhões de cidadãos confinados e
que executa condenados à média de dois ou mais por semana. Da
mesma forma, o público britânico não parece mais se surpreender
com a existência de prisões plivadas que abrigam uma proporção
crescente de prisioneiros da Grã-Bretanha; os cidadãos se ocupam
dos seus afazeres e sequer percebem as câmeras que os vigiam nas
mas de todas as grandes cidades. Nos dois lados do Atlântico,
sentenças condenatórias, direitos das vítimas, leis de vigilância
comunitária, policiamento privado, políticas de "lei e ordem" e
uma enfática crença de que "a prisão funciona" se tornaram luga-
res-comuns no cenário do controle do crime e não surpreendem
mais a ninguém, mesmo que cause estarrecimento e desconforto
em certos círculos.
Para o cidadão razoavelmente informado, que lê jornais ou
assiste aos telejornais, estes são inexoráveis componentes das po-
líticas criminais contemporâneas. Já são tão familiares quanto ou-
tros elementos do nosso dia-a-dia, como televisão a cabo, telefo-
nes celulares ou shopping centers. Mas o aspecto mais estarrecedor
destas políticas criminais é que qualquer uma delas surpreenderia
(ou talvez até mesmo chocaria) um historiador que, há alguns anos,
observasse este cenário. Num passado recente, como há trinta anos,
cada um desses fenômenos pareceria altamente improvável, mes-
mo para a pessoa mais atualizada e observadora. Embora apare-
çam como óbvias para nós, nossas práticas atuais são profunda-
mente confusas e estarrecedoras se consideradas de um ponto de
vista histórico temporalmente muito próximo. Como discutirei nas
próximas páginas, a trajetória histórica do controle do crime na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos nas últimas três décadas foi
41
quase a oposta daquela prevista nos anos setenta do século XX.
Relendo documentos governamentais, relatórios de pesquisas e
comentários de especialistas daquele período, encontra-se uma
série de previsões e expectativas que foi solapada por eventos
subseqüentes 1.
Costuma-se dizer que é mais fácil prever certos eventos de-
pois que eles efetivamente acontecem. Porém, os processos históri-
cos que nos levaram das expectativas do início dos anos setenta
para os acontecimentos das décadas seguintes continuam a desafiar
nossa compreensão. Ainda não sabemos verdadeiramente como che-
gamos ao ponto atual e por que o futuro do controle do crime - que
é o presente por nós vivido - se tornou algo tão diverso do que se
esperava há apenas uma geração. À guisa de prestação de contas
com esta amnésia social, o presente livro se lança à tarefa de desen-
volver uma história do presente na área do controle do crime e da
justiça criminal. No processo de descrever esta história, visa-se re-
solver um problema que tem deixado os cronistas perplexos nos
últimos vinte anos: explicar como nossas respostas contemporâne-
as ao crime assumiram a forma que possuem hoje, com seus aspec-
tos novos e contraditórios. A tarefa é destrinçar a rede de forças
transformadoras que têm, já há décadas, reconstituído aquelas res-
postas ao crime de maneira surpreendente e inesperada, bem como
entender o mosaico de práticas e políticas que surgiram destes de-
senvolvimentos.
Dando a este trabalho o nome de "história do presente", espe-
ro me distanciar das convenções da narrativa histórica e, sobretudo,
de qualquer expectativa de uma história completa do passado recen-
te. Minha preócupação primordial é mais analítica do que propria-
mente histórica. Esta preocupação consiste em entender as condi-
ções históricas de existência das quais dependem as práticas con-
temporâneas, particularmente aquelas que parecem ser mais sur-
preendentes e intrigantes. A pesquisa histórica - juntamente com a
análise sociológica e penalógica- é empregada aqui como meio de
descobrir como estes fenômenos lograram adquirir suas caracterís-
ticas atuais. Ahistória que proponho é motivada antes por uma pre-
ocupação crítica de entender o presente do que por uma preocupa-
ção histórica de entender o passado. Trata-se de uma crônica gene-
alógica que visa indicar as forças que deram à luz nossas práticas
42
atuais e identificar as condições históricas e sociais das quais elas
ainda dependem. O objetivo não é pensar historicamente o passado,
mas sim, através da história, repensar o presente 2 . -

Se essa crônica genealógica tiver êxito, da proverá um instru-


mento para a análise das novas práticas relacionadas ao controle do
crime, forjadas ao longo das últimas três décadas, e para revelar as
hipóteses, os discursos e as estratégias que emprestam a forma e a
estrntura para este campo social3 . Ela também identificará os inte-
resses políticos e os significados culturais que amparam estas no-
vas práticas, assim corno os mecanismos específicos que ligam as
instituições do controle do crime a outros domínios sociais.
No curso desta análise, busco uma série de perguntas que pos-
suem natureza tanto genealógica quanto sociológica. A pesquisa gene-
alógica pergunta: "quais são os processos históricos e sociológicos
que deram à luz as maneiras atuais de controlar o crime e de fazer
justiça?" e "de quais condições históricas estas instituições depen-
dem?". A pesquisa sociológica é mais centrada na estrutura e nas
condições de funcionamento do campo. Ela pergunta: "quais são as
regras discursivas e de ação que organizam as diversas práticas
que caracterizam este campo?", "corno estas regras e práticas
estão relacionadas às de outros domínios sociais, tais como previ-
dência, política e economia?" e "qual é o papel que estas práticas
desempenham no governo da sociedade pós-moderna?".
Estas perguntas são inspiradas, em grande medida, pelo traba-
lho de Michel Foucault, muito embora minha análise seja menos
ambiciosa, do ponto de vista filosófico, e mais orientada sociologi-
camente do que a de outros acadêmicos que seguiram seu caminho.
São perguntas eminentemente analíticas, que invocam as fontes da
pesquisa sociológica e histórica, mas que também envolvem um
aspecto normativo que deve ser explicitado. Tenha ele se dado con-
ta disto ou não, a pesquisa de Foucault sempre trouxe consigo uma
dimensão crítica normativa, que nos exorta a identificar os perigos
e danos implícitos da situação atual e a indicar como nossas práticas
sociais poderiam ter sido - e ainda podem ser - organizadas diferen-
temente. O presente livro tem o mesmo objetivo crítico, mas esco-
lhi restringir aquela manifestação normativa até completar minha
análise de como este campo prático é normalmente constituído, em
toda a sua complexidade e contradição. Uma das lições remanes-
43
centes do exemplo de Foucault é que se uma teoria crítica deve ser
levada a sério, deverá ela primeiramente encarar as coisas como
elas realmente são.
Assim, o estudo enfrenta o problema que, de uma só vez, é
histórico, penalógico e sociológico:
Histórico. Como descreverei mais detalhadamente abaixo,
recentes desdobramentos em matéria de controle do crime e da
justiça criminal são intrigantes porque envolvem uma súbita e
perturbadora subversão do padrão histórico assentado. Mostram
uma aguda descontinuidade que reclama explicação. Os processos
modernizantes que, há tão pouco tempo, pareciam sedimentados
neste domínio - acima de todas as tendências de longo prazo que
apontavam para a "racionalização" e para a "civilização" - agora
aparentam ter engatado a marcha à ré4• A reaparição, na política
oficial, de sentimentos punitivos e de gestos expressivos, que pa-
recem estranhamente arcaicos e absolutamente antimodernos, tende
a confundir as teorias sociais comuns sobre a punição e seu desen-
volvimento histórico. Nem mesmo o mais criativo leitor de Foucault,
Marx, Durkheim e Elias poderia prever estes desdobramentos recen-
tes, e certamente nenhuma previsão deste tipo jamais surgiu.
As últimas três décadas testemunharam um movimento ace-
lerado em direção oposta àquelas hipóteses que gravitaram em tomo
do controle do crime e da justiça criminal, na maior parte do sécu-
lo XX. As agências centrais da justiça criminal moderna têm se
submetido a guinadas radicais em suas práticas e missões institu-
cionais. As práticas atuais referentes a policiamento, acusações,
sentenças e sanções penais buscam novos objetivos, encarnam
novos interesses sociais e se erigem sobre novas formas de conhe-
cimento, todas estranhas, se consideradas as ortodoxias que pre-
valeceram durante a maior parte do século passado. O que desig-
narei por "previdenciarismo penal" - os valores e práticas institu-
cionais que caracterizaram a área entre as décadas de 1890 e 1970,
e que ditaram os lugares-comuns de gerações de políticos, aca-
dêmicos e operadores do sistema - foi recentemente abalado em
suas bases. Em face desta ruptura, uma profusão de questões his-
tóricas implora por resposta. Qual é a natureza da mudança? O
que distingue o campo atual da previdência penal, que existiu por
quase todo o século XX? Que conjuntura, na área social e penal,
44
precipitou os acontecimentos? Como estes acontecimentos devem
ser entendidos?
Penalógico. Esta rápida e abrangente transformação provo-
cou divergências e muita confusão entre os operadores e estudio-
sos do sistema penal. Em lugar do esperado progresso compatível
com um caminho predeterminado de desenvolvimento, ou mesmo
de certos retrocessos para práticas mais familiares do passado, as
mudanças assumiram a forma de um ataque fundamental ao siste-
ma existente. Operadores do direito formados antes dos anos 1980
viram suas acalentadas ortodoxias ser submetidas a importantes
revisões; as práticas e os códigos de conduta então em voga se
tornaram obsoletos; a distribuição de poderes mudou; e objetivos
que não tinham espaço no sistema antigo se tornaram paulatina-
mente proeminentes. Em vez da "mudança de sempre", instalou-
se a alannante percepção de que a indústda conceituai que durante a
maior parte de um século manteve unidas as agências da justiça
criminal e lhes deu sentido foi implodida.
No curto tempo entre o estágio e a prática profissional, uma
geração inteira de operadores do direito - fiscais do livramento con-
dicional5, diretores de presídios, promotores, advogados, juízes,
policiais e estudiosos da criminologia - ficaram simplesmente assis-
tindo seu mundo profissional virar de pernas para o ar. Hierarquias
se alteraram precariamente, rotinas estabelecidas desapareceram,
objetivos e prioridades foram reformulados, práticas profissionais
padronizadas se alteraram e a experiência profissional foi desafiada
e vista com ceticismo crescente. A rápida emergência de novas for-
mas de pensar e agir com relação ao crime e o concomitante des-
crédito de vetustas crenças e mientações profissionais asseguraram
que muitos operadores do sistema penal e acadêmicos vivessem
nos anos 1980 e 1990 em permanente estado de crise e de anomia
profissional.
Ainda nos anos 1970, quem lidava com o negócio do controle
do cdme compartilhava um conjunto comum de crenças sobre as
molduras da justiça criminal e da prática penal. Existia um campo
institucional razoavelmente estável, com identidade própria, e os
debates e divergências ocorriam dentro de limites muito bem co-
nhecidos. Livros e manuais sobre a justiça cdminal podiam articu-
lar as fronteiras que guiavam a prática penal, e transmitir com se-
45
gurança este conjunto de saberes de uma geração para outra. Hoje
em dia, para o bem ou para o mal, não existe tal consenso, nem uma
cultura firmemente estabelecida ou mesmo qualquer percepção cla-
ra do panorama geral. O desenvolvimento político aparenta ser alta-
mente volátil, com inaudita quantidade de atividade legislativa, muito
dissenso no seio dos operadores do direito e uma boa dose de con-
flito entre estudiosos e políticos. A frente de batalha é obscura e se
modifica rapidamente. Ninguém está certo sobre o que é radical e
sobre o que é reacionário. Prisões privadas, depoimentos impactantes
de vítimas, leis de vigilância comunitária, regras gerais de prolação
de sentenças, monitoramento eletrônico, punições comunitárias,
políticas de "qualidade de vida", justiça restaurati va- estas e dúzias
de outras novidades nos levam a um território estranho, onde as
linhas ideológicas estão longe de qualquer clareza e as antigas cren-
ças são um guia inconfiável.
O fluxo constante e a energia febril desta transição deixaram
uma geração mais antiga de funcionários da jusüça criminal exausta
e desiludida, flutuando à deriva sem os ideais e exemplos com os
quais foram treinados. Entrementes, seus colegas mais jovens se
ressentem de uma ideologia estável ou de enquadramento conceitua!
para guiar suas ações e formar suas opiniões. As diretrizes com as
quais estavam familiarizados estão agora superadas. Tornou-se difí-
cil tratar ou pensar qualquer questão, porque não existe ideologia
articulada ou assentada que possa orientar nossa reflexão e formar
nosso discernimento. Aquilo que Pierre Bmu:dieu chamaria de habitus
de muitos operadores do sistema- suas arraigadas atitudes e ideologias,
as orientações-padrão, que são seguidas sem pensar- foi questionado
em suas bases e tachado de ineficaz. Por pelo menos duas décadas, a lei
penal e a política criminal têm sido conduzidas sem norte claro por um
teneno bastante desconhecido. Se esta área deve ter alguma identidade
e alguma possibilidade de autocrítica e autocorreção, então nossos
manuais precisam ser reescritos, e nosso senso de como as coisas
funcionam deve ser totalmente revisto.
No início do século XXI, depois de muitas décadas de mudan-
ça contínua e de incertezas, os novos contornos da área mostram
solidez e clareza, que permitem um pouco mais de confiança na
tentativa de mapear o terreno. Iniciou-se um reagrupamento, novos
princípios estão começando a se consolidar, novas crenças profissi-

46
onais vêm sendo lentamente construídas, muito embora nada disso
esteja sendo articulado claramente ou já possua alguma identidade.
À medida que o cenário do controle do crime começa a se esta-
bilizar, e novas regiões se tornam mais conhecidas, podemos
começar a explorar suas características em nível mais compre-
ensíveL
Um dos objetivos deste livro é avançar no processo de identi-
ficação e de reflexão, desvendando os novos enquadramento que
estão emergindo. Este objetivo não visa a tomar o funcionamento
do sistema mais fácil ou a aplacar as ansiedades dos seus operado-
res. Ao invés, o propósito é submeter suas práticas à crítica infor-
mada e ajudar a compreensão dos efeitos sociais e da significação
política do sistema que está em formação.
Sociológico. Instituições do controle do crime e da justiça cri-
minal têm condições de existência definidas. Elas formam parte da
rede de ordenação governamental e social, que, nas sociedades
modernas, inclui a instância judicial, o mercado de trabalho e ins-
tituições do Estado de bem-estar. Reportam-se e são sustentadas
por outras instituições sociais e mecanismos de controle social,
assim como estão assentadas sobre uma configuração específica
de ação cultural, política e econômica. Então, considerando-se que
o campo do controle do ciime possui certa autonomia e uma capa-
cidade de incorporar desenvolvimentos e mudanças, toda trans-
formação na configuração do campo sinalizará para transforma-
ções correlatas na estrutura dos campos e das instituições sociais
que lhe são contíguos.
Este campo do controle do crime é caracterizado por dois
eixos de ação entrelaçados e mutuamente condicionados: os con-
troles formais exercidos pelas agências estatais do sistema penal e
os controles sociais informais, que se estribam nas atividades coti-
dianas e nas interações da sociedade civil. As instituições formais
de controle do crime tendem a ser reativas e adaptáveis. Elas ope-
ram buscando complementar os controles sociais da vida comum,
apesar de muitas vezes interferirem nesses controles sociais, pre-
judicando sua efetividade. Como a vida cotidiana se modifica, suas
mudanças freqüentemente trazem conseqüências para a estrutura
dos controles informais, que podem, por seu turno, trazer proble-
mas para o funcionamento e a efetividade das instituições de con-
47
trole formal. Devemos ter em mente, portanto, que o campo do
controle do crime envolve tanto as atividades oficiais de ordena-
mento social como as atividades de atores e agências privadas, nas
práticas e rotinas ordinárias. É comum nossa atenção se voltar ape-
nas às instituições estatais, descuidando das práticas sociais infor-
mais, das quais a ação estatal depende.
Um reconfigurado campo do controle do crime significa mais
do que apenas uma mudança na resposta da sociedade ao crime.
Importa, também, em novas práticas relacionadas ao controle de
comportamentos e à maneira de se fazer justiça, em conceitos re-
visados de ordem social e de controle social e em modos alterados
de se manter a coesão social e de lidar com relações entre grupos.
O remodelamento de um campo institucional estabelecido, a
emergência de objetivos e prioridades diferentes e o surgimento
de novas idéias sobre a natureza do crime e dos criminosos tam-
bém sugerem mudanças nas bases culturais dessas instituições.
Estes fenômenos indicam que, por trás dessas novas respostas ao
crime, encontra-se um novo parâmetro de mentalidades, interesses
e sensibilidades que alteraram o modo como pensamos e sentimos o
problema subjacente.
Investigar os novos parâmetros do controle do crime signifi-
ca, portanto, investigar ao mesmo tempo a reconstrução social e
de suas instituições responsáveis por produzir a ordem. Significa
perguntar "qual é o novo problema de natureza criminal e social
para o qual o emergente sistema do controle do crime representa a
resposta?", "De qual nova estratégia governamental este sistema
emergente faz parte?", "Quais são as novas condições sociais que
ajudaram este processo?". O caráter das relações sociais é tão den-
samente inter-relacionado que a perquirição da transformação de
um campo institucional leva inexoravelmente a questionar os cam-
pos contíguos, assim como as relações culturais, políticas e eco-
nômicas existentes entre eles. Como discutirei a seguir, o reconfi-
gurado campo do controle do crime é o resultado de escolhas polí-
ticas e de decisões administrativas, ambas assentadas sobre uma
nova estrutura de relações sociais e informadas por um novo padrão
de sensibilidades culturais.

48
Sinais da mudança
Então, quais são as mudanças às quais venho me referindo?
Quais são os sinais do movimento e os pontos de referência do
te1rnno emergente? A simples afirmação dando conta de mudanças e
transformações traz consigo alguns problemas teóricos complica-
dos e algumas questões delicadas relacionadas ao discernimento
histórico e penalógico. Como comprova a controvertida literatura
nesta matéria, especificar o que aconteceu é quase tão controverti-
do quanto explicar por que aconteceu. Não obstante, é possível
indicar um conjunto de desdobramentos, que a maioria dos
comentadores informados reconheceria apenas como o ponto de par-
tida para a discussão. Neste estágio, quero apenas catalogar os sinais
da transformação percebida pelos profissionais do sistema e pelos
acadêmicos. Apresento-os aqui como uma primeira, não-teódca, apro-
ximação do que está acontecendo; sem embargo, à medida que minha
análise se desdobrar, providenciarei mais detalhes de cada um.
É claro que estas "observações" já são, também, interpreta-
ções, na medida em que operacionalizam ferramentas conceituais
e categorias analíticas, assim como realizam juízo de valor sobre
mudanças qualitativas ou quantitativas. Porém, trata-se de inter-
pretações amplamente aceitas, que não são especialmente contro-
vertidas, nem intimamente vinculadas a qualquer outra interpretação
ou teoria. Deliberadamente começando com esta tênue definição do
problema a ser explicado, o restante do livro tenta repensar esta série
preliminar de observações: estendê-las e elaborá-las, oferecer uma
explicação sobre como surgiram e seu significado para o controle do
crime e para a ordem social na sociedade pós-moderna.
Aqui e ao longo de todo o livro, reúno provas da Grã-Bretanha
e dos EUA para confirmar minha hipótese. Meu argumento será o
de que a enorme semelhança entre as recentes políticas e práticas
dessas duas sociedades - com parâmetros observáveis em todos os
cinqüenta estados norte-americanos e em nível federal, bem como
nos três sistemas judiciais da Grã-Bretanha - são uma prova das
características subjacentes das transformações estruturais, e que
essas transformações estão sendo engendradas por um processo
de adaptação às condições sociais que agora caracterizam estas
duas (e outras) sociedades. Não pretendo afirmar que a seqüência
de eventos observada nestas duas sociedades seja universal: exis-
49
tem importantes diferenças nacionais, que distinguem a trajetória
específica do ambiente político numa mesma sociedade e em ou-
tras. Tampouco pretendo asseverar que as experiências recentes
da Grã-Bretanha e dos EUA sejam similares, pois freqüentemente
apontarei diferenças de tipo, de grau e de ênfase, que continuam a
distingui-las 6 . Afirmo, contudo, que os problemas institucionais e
as reações políticas que surgiram nestes dois países são tão seme-
lhantes que me permitem falar, às vezes, em tendências estruturais
comuns. Isto também me leva a supor que muitos dos problemas e
das inseguranças subjacentes são, ou serão em breve, familiares a
outras sociedades pós-modernas, mesmo que suas reações cultu-
rais e políticas e suas trajetórias sociais venham a ser muito dife-
rentes 7 • Como sugiro nas páginas que seguem, os tipos de riscos,
inseguranças e problemas relacionados ao controle aos quais os
governos norte-americano e britânico têm reagido são bem típicos
do estágio social, econômico e cultural da pós-modernidade, mes-
mo que as adaptações políticas, institucionais e culturais específi-
cas engendradas por essa reação não o sejam.
Abstraindo a extensa literatura acerca do controle do crime e
da justiça criminal nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, é pos-
sível indicar as mais importantes tendências das mudanças dos
últimos trinta anos.
O declínio do ideal de reabilitação
Se instados a descrever as maiores mudanças na política
criminal, nos últimos trinta anos, os operadores do sistema, em
sua maioria, certamente mencionariam "o declínio do ideal de
reabilitação" - expressão que Francis Allen popularizou, quan-
do empregada no título do seu livro de 1981 8 . Uma descrição
mais cuidadosa do que ocorreu, feita vinte anos depois da obra
de Allen, talvez deva falar, ao invés, do desaparecimento gra-
dual da ratio correcional e previdenciária da intervenção do
sistema penal; da reduzida ênfase na reabilitação como objeti-
vo das instituições penais; e da modificação nas regras de ela-
boração das sentenças, que olvida a participação em programas
de tratamento pelo tempo de cumprimento da pena.
Como veremos, os programas de "reabilitação" continuam
em operação nas prisões e em outros lugares, com tratamentos

50
voltados particularmente aos "indivíduos de alto risco", tais como
criminosos sexuais, viciados em drogas e criminosos violentos.
E os anos 1990 testemunharam o ressurgimento do interesse em
pesquisas sobre "o que funciona?", que desafiam algumas das
conclusões mais pessimistas dos anos 1970 9 . No entanto, hoje
em dia, os programas de reabilitação não mais reivindicam o status
de expressão máxima da ideologia do sistema, nem mesmo a
posição de objetivo primordial de qualquer medida penal. As sen-
tenças condenatórias não são mais inspiradas por conceitos
correcionais, tais como indeterminação e soltura antecipada. As
possibilidades de reabilitação das medidas da justiça criminal são
rotineiramente subordinadas a outros objetivos penais, especial-
mente a retribuição, a neutralização e o gerenciamento de riscos.
Sem embargo, Allen estava certo em observar a debilitação do
apoio, a partir dos anos 1970, ao ideal de reabiiitação. Esta mu-
dança de mentalidade ocorreu, primeira e mais enfaticamente, no
meio acadêmico, mas subseqüentemente, com maior hesitação,
também afetou as aspirações dos operadores do sistema, a razão
dos formuladores das políticas públicas e as expectativas do pú-
blico em geral 10 . Em período muito curto, tornou-se comum re-
ferir-se ao valor essencial de todo o enquadramento penal-previ-
denciário não apenas como um ideal impossível, mas principal-
mente como um objetivo político inútil, até mesmo perigoso, que
era contraproducente nos seus efeitos e equivocado nas suas
finalidades.
Este ocaso da reabilitação foi muito significativo. Seu declínio
foi o primeiro indicativo de que o enquadramento moderno - que
resistiu por quase um século- estava sendo abandonado. A reabi-
litação foi o suporte estrutural central do sistema, a mola-mestra
de um grupo de práticas e ideologias que se alimentavam mutua-
mente. Quando a fé neste ideal ruiu, dissipou-se o arcabouço de
crenças, valores e práticas sobre o qual a pena moderna foi erigida.
O ressurgimento de sanções retributivas e da justiça
expressiva
Na maior parte do século XX, punições que pareciam explici-
tamente retributivas ou deliberadamente duras foram largamente
criticadas, consideradas anacronismos que não tinham lugar no sis-

51
tema penal "moderno". Nos últimos vinte anos, contudo, temos
presenciado o ressurgimento da retribuição "justa" como um objeti-
vo político generalizado nos EUA e na Grã-Bretanha, inicialmente
ocasionado pela percepção da injustiça contida no sentenciamento
individual 11 . Este processo gerou a preocupação pela proporciona-
lidade e por sentenças fixas, valores buscados por seus proponentes
liberais. Porém, também restabeleceu a legitimidade de um discurso
explicitamente retributivo, o qual, por sua vez, incentivou os políti-
cos a manifestarem abertamente seus sentimentos punitivos e a apro-
varem leis draconianas. Num restrito, porém significativo, número
de instâncias, temos notado o ressurgimento de medidas decidida-
mente "retributivas", tais como a pena de morte, o acorrentamento
coletivo de presos e penas corporais. Muito embora os políticos
britânicos tenham evitado os excessos dos estados norte-america-
nos do sul, pode-se entrever os ecos deste movimento no discurso
adotado pelos ministros de Estado da Grã-Bretanha, segundo o qual
deveríamos "condenar mais e compreender menos", bem como es-
forçar-nos no. sentido de assegurarmo-nos de que as condições
carcerárias sejam devidamente "austeras". Formas de humilhação
pública, que por décadas foram tidas por obsoletas e excessivamen-
te indignas, são valorizadas hoje em dia por seus proponentes polí-
ticos, precisamente por causa do seu inequívoco caráter retributivo.
Resultado disso são as novas leis norte-americanas sobre a notifica-
ção pública da identidade de criminosos sexuais, o uso do uniforme
listrado de condenado ou a execução de trabalho acmTentado a ou-
tros presos, assim como seus equivalentes britânicos mais brandos:
o registro de pedófilos e a exigência de uniformes, bem como de
realizar trabalhos indignos para aqueles submetidos à prestação de
serviços àcomunidade 12 .
Na maior parte do século XX, a manifestação aberta de senti-
mentos de vingança era virtualmente tabu, ao menos da parte de
autoridades públicas. Nos anos recentes, tentativas explícitas de
expressar arai va e o ressentimento públicos se tomaram recon-en-
tes para a retórica que acompanha a legislação penal e a tomada de
decisões. Os sentimentos das vítimas, das famílias das vítimas ou
de um público aviltado e temeroso são agora rotineiramente invo-
cados em apoio às novas leis e políticas penais. Houve uma mu-
dança notável no tom do discurso oficial. Punição - no sentido da

52
punição expressiva, que canaliza o sentimento público - é mais uma
vez um objetivo jurídico respeitável, largamente abraçado, que afeta
não só as sentenças condenatórias para a maioria dos delitos graves,
mas também a própria justiça de menores e as penalidades comuni-
tá.rias. A linguagem da condenação e da punição voltou ao discur-
so oficial, e o que se diz representar a "expressão do sentimento
público" tem sido prioritário na análise de especialistas da pena 13 .
A aberta aceitação de propósitos ante1iormente desacreditados
transformou, também, o discurso acadêmico, mais formal, acerca da
filosofia da pena. A última onda de teorias normativas salienta os as-
pectos simbólicos, expressivos e publicitários da sanção penal, bem
assim os filósofos começam a criar explicações racionais para medi-
das retributivas, que melhor expressam as crenças culturais e os
interesses políticos atualmente orientadores da prática punitiva 14 .
Mudanças no tom emocional da política criminal
Políticas oficiais de regulação do crime e da pena sempre in-
vocam e expressam um conjunto variado de sentimentos coletivos.
Ao longo do período em que o modelo penal-previdenciário prevale-
ceu, o tom dominante do discurso dos políticos era o da confiança
no progresso do combate ao crime e da racionalização da justiça
criminal. Os sentimentos invocados para justificar reformas penais
eram, mais freqüentemente, um progressivo senso de justiça, a evo-
cação ao que a "decência" e a "humanidade" exigiam e o zelo pelas
necessidades e pelos direitos dos menos afortunados. Estes senti-
mentos residiam, indubitavelmente, mais nos valores aspirados pe-
las elites políticas do que na sensibilidade do público em geral, e
existe a noção de que sua invocação era um disfarce dos interesses
profissionais e das estratégias de poder. Porém, a referência regular
a estes sentimentos serviu para aprofundar sua dependência da ima-
ginação moral e para justificar muito do que se fez em seu nome.
Hoje em dia, tais sentimentos ainda estão presentes e ainda são invo-
cados, particularmente pelos adeptos da "justiça reparadora", cujas
proposições começam a penetrar nas margens da justiça criminal 15 .
No entanto, elas não mais estabelecem o tom emocional do discurso
público sobre o crime e a pena.
Desde os anos 1970, o medo do crime adquiriu novo desta-
que. O que antes era referido como uma ansiedade localizada, que

53
afligia as piores vizinhanças, agora é encarado como um problema
social de primeira magnitude e como uma característica da cultura
contemporânea 16 . O medo do crime passou a ser visto como pro-
blema por si só, bem distinto do crime e de sua vitimização, e polí-
ticas específicas têm sido desenvolvidas mais com o objetivo de
reduzir os níveis de medo do que de reduzir o crime. Pesquisas
patrocinadas pelo governo agora investigam regularmente os ní-
veis e as características desse medo, categorizando e medindo
as reações emocionais provocadas pelo crime - medos concretos,
medos difusos, insegurança generalizada, raiva, ressentimento - e
correlacionando-os com parâmetros atuais de risco e vitimi-
zação17.
A emergência do medo do crime como um tema cultural pro-
eminente é confirmada pela pesquisa de opinião pública, que re-
vela a existência de uma presunção consolidada em boa parte do
público norte-americano e britânico, no sentido de que as taxas de
criminalidade estão piorando, independentemente dos níveis atuais,
e no sentido de que há pouca confiança pública na capacidade da
justiça criminal de fazer algo a respeito 18 . A percepção de um públi-
co amedrontado e revoltado teve grande impacto no tipo e no con-
teúdo das políticas, nos anos recentes. O crime foi redramatizado. A
imagem aceita, própria da época do bem-estar, do delinqüente como
um sujeito necessitado, desfavorecido, agora desapareceu. Em vez
disto, as imagens modificadas para acompanhar a nova legislação
tendem a ser esboços estereotipados de jovens rebeldes, depreda-
dores perigosos e de criminosos incuravelmente reincidentes, Acom-
panhando estas imagens projetadas, e em reação retórica a elas,
o novo discurso da política criminal insistentemente invoca a
revolta do público, cansado de viver com medo, que exige medi-
das fortes de punição e de proteção. O mote aparent~ da política
é agora mais a revolta coletiva e o justo reclamo por retribuição
do que um compromisso com a construção de soluções sociais
justas. A temperatura emocional da elaboração das políticas mu-
dou de fria para quente.
O retomo da vítima
Nas últimas três décadas, houve o notável retomo da vítima para
o centro da política criminal. No enquadramento penal-previdenciário,
vítimas individuais não possuíam figuração além da autoria das ma-
54
nifestações que provocavam a ação estataL Seus interesses eram
absorvidos pelo interesse público e ce1tamente não erara contrapos-
tos aos interesses do ofensor. Tudo agora mudou. Os interesses e
os sentimentos das vitimas - vítimas verdadeiras, famílias das víti-
mas, vítimas potenciais, a figura projetada da "vítima" - agora são
rotineiramente invocados em apoio às medidas de segregação puni-
tiva. Nos EUA, políticos concedem entrevistas coletivas parn anun-
ciar leis relativas às sentenças condenatórias, e são acompanhados
no palco pelas famílias de vítimas. Leis são aprovadas e batizadas
com o nome de vítimas: lei Megan 19 , lei Jenna20 , lei Brady 21 . Na Grã-
Bretanha, as vítimas de crimes aparecem como palestrantes convida-
dos nas conferências dos partidos políticos, e estabeleceu-se um "Es-
tatuto da Vítima", com amplo apoio dos dois maiores partidos.
O novo imperativo político é no sentido de que as vítimas de-
vem ser protegidas, seus clamores devem ser ouvidos, sua memó-
ria deve ser honrada, sua raiva deve ser exprimida, seus medos
devem ser tratados. A retórica do debate penal normalmente invo-
ca a figura da vítima - tipicamente uma criança, uma mulher ou
um enlutado membro da família - como uma figura plena de direi-
tos, cujo sofrimento deve ser expressado e cuja segurança deve
doravante ser garantida. Qualquer atenção aos direitos ou ao bem-
estar do agressor é considerada como defletiva das medidas apro-
priadas de respeito às vítimas. Cria-se um jogo político maniqueísta,
no qual o ganho do agressor significa a perda da vítima, e "apoiar" as
vítimas automaticamente quer dizer ser duro com os agressores 22 .
A figura simbólica da vítima ganhou vida própria e desempe-
nha um papel no debate político, que é freqüentemente dissociado
dos reclamos dos movimentos organizados de vítimas ou da opi-
nião agregada de vítimas consultadas 23 . Este é um novo e significa-
tivo fato social. A vítima não é mais um cidadão desafortunado,
atingido pelo crime, e cujos interesses se subsumem ao "interesse
público" que guia os órgãos acusatórios e as decisões penais do
Estado. A vítima é agora, de certo modo, um personagem muito
mais representativo, cuja experiência é projetada para o comum e o
coletivo, em lugar de ser considerada individual e atípica. Quem
quer qu·e fale pelas vítimas fala por todos nós - assim recomenda a
nova sabedoria política das sociedades que possuem altas taxas de
criminalidade24 . Imagens publicadas de vítimas reais servem de
55
metonímia personalizada da vida real, do "poderia ter sido você",
relacionada ao problema de segurança que se tornou um componen-
te decisivo da cultura contemporânea.
Paradoxalmente, esta visão da vítima como qualquer pessoa
minou a velha noção do público, que agora foi redefinida e de-
composta. Não é mais suficiente subsumir o interesse individual
da vítima à noção de paz pública: a paz pública deve ser individu-
alizada, cindida em pedaços individuais. Vítimas específicas de-
vem ter voz, seja fazendo impactantes declarações vitimizadas,
seja através das consultas sobre punição e decisões de soltura, seja
pela sua notificação dos movimentos subseqüentes do agressor.
Há, em poucas palavras, um tema cultural novo, um novo signifi-
cado coletivo de vitimização e uma relação retrabalhada entre a
vítima específica, a vítima simbólica e as instituições públicas de
controle do crime e da justiça criminal.
Antes de mais nada, o público deve ser protegido
Proteger o público é preocupação perene da política criminal
e isso se reflete expressamente nos sistemas correcionais. Afinal
de contas, foram os reformistas do bem-estar penal que inventa-
ram a detenção preventiva e as sentenças condenatórias de tem-
po indeterminado; o sistema que operou durante a maioria do sé-
culo XX reservou poderes especiais para encarcerar criminosos
"incorrigíveis" e perigosos por períodos indeterminados. No en-
tanto, numa época em que os índices de criminalidade eram bai-
xos e o medo do crime ainda não era mote político, a proteção do
público raramente servia de motivação para a elaboração de polí-
ticas públicas. Hoje em dia, há uma nova e urgente ênfase na
necessidade de segurança, na contenção do perigo, na identifica-
ção e gerenciamento de riscos de todos os tipos. Proteger o públi-
co se tomou o tema dominante da política criminal.
Nas últimas décadas, a prisão foi reinventada como um instru-
mento de contenção neutralizante, destinado a criminosos violentos
e perigosos reincidentes, mas afetando também grupos de agressores
condenados a pequenas penas. O livramento condicional e a liberda-
de vigiada perderam ênfase nas funções sociais do trabalho, em de-
trimento das funções de controle e de monitoramento de riscos. Sen-
tenças a penas mais elevadas do que justificaria qualquer considera-

56
ção retributiva são mais comuns e até mesmo obrigatórias. Leis
sobre notificação comunitária marcam publicamente criminosos li-
bertados, destacando seus atos pretéritos e possíveis perigos futu-
ros. Existe uma notável negligência quanto às liberdades civis de
suspeitos e aos direitos dos presos, na direta proporção da ênfase
sobre repressão efetiva e controle. O reclamo de proteção do Estado
deu lugar à proteção pelo Estado. Garantias procedimentais (como
a exclusão de provas obtidas por meios ilícitos do direito norte-
americano e o direito ao silêncio do ordenamento britânico) foram
parcialmente proscritas, câmeras de vigilância são comuns nas ruas
das cidades e decisões sobre fiança, liberdade vigiada e livramento
condicional estão agora submetidas a intenso escrutínio. Nestes as-
suntos, o público aparenta ser (ou é representado como tal) avesso
a riscos e intensamente centrado no perigo da ação deletéria de cri-
minosos livres. O risco de autoridades estatais sem limites, dopo-
der arbitrário e de violação às liberdades civis aparentemente não é
mais relevante na preocupação pública.
Politização e o novo populismo
Em outra ruptura significativa com as práticas pretéritas, a po-
lítica criminal deixou de ser assunto partidário que pode ser delegado
a especialistas e se tomou um tema proeminente na competição eleito-
ral. Agora, um discurso político fortemente carregado permeia todos
os temas relacionados ao controle do crime, de modo que toda deci-
são é tomada sob as luzes dos holofotes e da disputa política e todo
e1rn se transforma em escândalo. O processo de formulação das po-
líticas se tomou profundamente politizado e populista. As medidas
políticas são tomadas de maneira tal que aparentam valorizar a vanta-
gem política e a opinião pública, em detrimento da opinião de especi-
alistas e dos resultados de pesquisas. Os grupos profissionais, que
uma vez dominaram o processo de elaboração de políticas, agora são
crescentemente afastados, na medida em que as diretrizes estão sen-
do formuladas por comitês de ação política e conselheiros políticos.
Novas iniciativas são anunciadas em eventos políticos - as conven-
ções dos partidos norte-americanos, as conferências partidárias na
Grã-Bretanha, entrevistas televisionadas - e resumidas por expres-
sões de impacto, tais como: "a prisão funciona", "three strikes and
you 're out"25 , "rigor nas sentenças", "redução da maioridade penal",
"tolerância zero", "guerra ao crime" 26 .
57
Existe, agora, uma corrente marcadamente populista nas polí-
ticas penais, que desqualifica as elites profissionais e que invoca a
autoridade da "população", do senso comum, do retorno ao básico.
A voz dominante da política criminal não é mais a do expert ou
mesmo a do profissional do direito, mas sim a da população sofri-
da, desamparada- especialmente a das "vítimas" e dos amedron-
tados, membros angustiados do público. Há algumas décadas, a
opinião pública funcionava como um freio ocasional das iniciati-
vas políticas; agora, ela serve de fonte privilegiada. A importância
da pesquisa e do saber criminológico foi rebaixada, e em seu lugar
outorgou-se nova deferência à voz da "experiência", do "senso
comum", daquilo que "todo mundo sabe" 27 .
A politização do controle do crime transformou a estrutura das
relações atinentes ao processo político e às instituições da justiça cri-
minal. Os legisladores estão se tornando mais operativos, mais incisi-
vos, mais preocupados em submeter a tomada de decisões político-
penais à disciplina partidária e aos cálculos políticos de curto prazo.
Isto constitui uma reversão aguda do processo histórico, segundo o
qual o poder de punir era amplamente delegado aos especialistas e
administradores. Esta inversão na transferência de poder é visível numa
série de medidas (leis que determinam condenações a penas fixas,
padronização nacional de punições, rigor nas sentenças, restrições à
soltura antecipada etc.) que centralizaram a tarefa casuística de deci-
dir-deixando-a, primeiramente, nas mãos dos tribunais e, posterior-
mente, nas do próprio legislati vo 28 .
A "politização" às vezes sugere uma polarização de opiniões,
mas a forma populista que as políticas penais assumiram gerou o
efeito exatamente oposto. Longe de existirem diferenças entre posi-
ções políticas, o que de fato se deu, nas décadas de 1980 e 1990, foi
um estreitamento do debate e uma surpreendente convergência de
propostas políticas da parte dos maiores partidos políticos. Não foi
.apenas um partido que se afastou da velha ortodoxia correcionalista:
todos o fizeram. O centro de gravidade políticô se deslocou, e um
novo e rígido consenso se formou em tomo de medidas penais que
sejam percebidas pelo público como duras, hábeis e adequadas.

58
A reinvenção da prisão
Durante a maior parte do período pós-guen-a, as taxas de en-
carceramento nos EUA e na Grã-Bretanha diminuíram em compara-
ção com o número de crimes registrados e de pessoas condenadas.
No sistema de bem-estar do pós-guerra, a prisão era vista como
uma instituição problemática, necessária como último recurso, po-
rém contraproducente e desorientada com relação aos objetivos
co1Tecionais. Despendeu-se muito esforço governamental na tare-
fa de se criar alternativas ao encarceramento e no estímulo a que
as sentenças as aplicassem. Na maior parte do século XX, aparen-
temente existiu um movimento secular de distanciamento da pri-
são, no sentido da aplicação de penas pecuniárias, do livramento
condicional e de muitas outras formas de supervisão comunitária.
Nos últimos vinte e cinco anos esta tendência se inverteu, pri-
meira e principalmente nos EUA, mas posteriormente, também
na Grã-Bretanha29 .
A inversão desta tendência nos EUA foi seguida do maior e
mais consistente aumento das taxas de encarceramento observado
desde o nascimento da prisão moderna, no século XIX. No perío-
do de 1973 a 1997, o número de pessoas presas nos EUA subiu
mais de 500%. Igualmente marcante foi o aumento do número de
condenações a penas privativas de liberdade (em oposição a penas
alternativas) e da duração média das penas privativas de liberdade
aplicadas - aumento este que persistiu por muito tempo, mesmo
depois que as taxas oficiais de criminalidade assumiram tendência
de baixa. Depois de um século no qual a tendência foi de alta nas
taxas de criminalidade e de baixa nas taxas de encarceramento, o
período recente testemunhou o surgimento, primeiro dos EUA e,
em seguida, na Grã-Bretanha, do fenômeno precisamente oposto
- taxas de encarceramento crescentes e de criminalidade
descrescentes 30 .
Em nítido contraste com a sabedoria convencional do período
passado, a opinião dominante agora é a de que "a prisão funciona" -
não como um mecanismo de reforma ou de reabilitação, mas como
instrumento de neutralização e de retribuição que satisfaz as exigên-
cias políticas populares por segurança pública e punições duras. Os
anos recentes testemunharam uma notável reviravolta nos destinos
da prisão. Esta instituição, com longa história de expectativas utópi-
59
case de tentativas periódicas de reinvenção-primeiro como peni-
tenciária, depois refmmatório e, mais recentemente, como estabele-
cimento correcional -, finalmente viu suas ambições reduzidas ao
terreno da neutralização e da punição retributiva. No curso, porém,
desta mudança de status, a prisão novamente se transformou. Ao
longo de poucas décadas, ela deixou de ser uma instituição correcional
desacreditada e decadente para se tornar um maciço e aparentemen-
te indispensável pilar da ordem social contemporânea31 .
A transformação do pensamento criminológico
As idéias criminológicas que moldaram a política durante o
período pós-guerra foram uma mistura eclética de psicologia da
anormalidade e teorias sociológicas, como a anomia, privação re-
lativa, teoria das subculturas e rotulacionismo. A criminalidade
era vista como um problema de indivíduos e de famílias
desajustadas, ou como um sintoma da necessidade, da injustiça
social e do inevitável conflito de normas culturais numa sociedade
plural e ainda hierarquizada. Se existia uma explicação central,
esta era a privação social, posteriormente "privação relativa". In-
divíduos se tornavam delinqüentes porque eram privados de edu-
cação adequada, de socialização familiar ou de oportunidades de
empregos, ou, ainda, de tratamento apropriado para sua condição
psicológica anormal. A solução para o crime, pois, residia no tra-
tamento correcional individualizado, no apoio e supervisão das
famílias e na adoção de medidas de reforma social que aumentas-
sem o bem-estar - particularmente relacionadas à educação e à cri-
ação de empregos 32 .
O repertório intelectual da criminologia do pós-guerra era su-
ficientemente variado para conter muitas ênfases distintas e dispu-
tas teóricas, e isto, sem dúvida, se apresentava de forma compendiosa
e ampla para os criminólogos e operadores da época. Em
retrospecto, porém, parece claro que este tipo de pensamento,
esta episteme criminológica, era tanto historicamente
diferenciadora quanto estruturada de maneira a adaptar-se aos
processos individualizantes da justiça criminal e à racionalidade
social do Estado de bem-estar.
No período de 1970 em diante, um conjunto bem distinto de
idéias criminológicas começou a emergir e a influir na política go-

60
vernamentaL As teorias que agora informam o pensamento e a ação
oficiais são teorias de controle de várias espécies, que concebem a
delinqüência como problema não de privação, mas de controle ina-
dequado. Controles sociais, controles situacionais, autocontroles -
estes são os temas dominantes na criminologia contemporânea e
nas políticas de controle do clime por ela geradas 33 .
As criminologias da era do Estado de bem-estar tendiam a ad-
mitir a perfeição do homem, a ver o crime como sinal de um pro-
cesso de socialização deficiente e a preconizar que o Estado deveria
assistir aqueles que carecessem das provisões econômicas, sociais
e psicológicas necessárias para a integração social adequada e para
que mantivessem conduta respeitadora da lei. As teorias de controle
partem de uma visão muito mais obscura da condição humana. Elas
preceituam que indivíduos são fortemente propensos a assumir con-
dutas egoístas, anti-sociais e criminosas a menos que sejam inibidos
de fazê-lo por controles robustos e eficazes, e recon-em à autorida-
de da família, da comunidade e do Estado para sustentar restrições
e inculcar controle. Onde a antiga criminologia demandava mais
em termos de bem-estar e assistência, a nova criminologia insis-
te em intensificar o controle e reforçar a disciplina.
Cada vez mais, a criminologia contemporânea vê o c1ime como
um aspecto normal, rotineiro, lugar-comum da sociedade moderna,
sendo tais crimes praticados por indivíduos normais em seus inten-
tos e propósitos. No ambiente penal, este modo de pensar tem
ensejado o recrudescimento de políticas de retribuição e de intimi-
dação, na medida em que afirma que delinqüentes são atores racio-
nais, refratários aos mecanismos de inibição e totalmente responsá-
veis por seus atos criminosos. No entanto, em suas implicações
mais gerais com a prevenção do crime, esta nova percepção gerou
novas conseqüências. Uma espécie de teorização do controle - que
talvez possamos chamar de criminologia da vida cotidiana - con-
siste em teorias tais como escolha racional, atividade rotineira, cri-
me como oportunidade e prevenção situacional do crime; este gêne-
ro de teorias rapidamente se tomou importante fonte para os políti-
cos nas últimas duas décadas. A hipótese de trabalho dessas teorias
é a de que o crime é um evento - ou, melhor dizendo, um conjunto
de eventos- que não requer qualquer motivação ou disposição es-
pecial da parte do sujeito, nenhuma patologia ou anormalidade, e
61
que está inscrito nas rotinas da vida social e econômica contempo-
rânea. Em oposição às criminologias do Estado de bem-estar, que
partiam da premissa de que o crime era um desvio da conduta nor-
mal, civilizada, explicável em termos de patologia individual, socia-
lização deficiente ou disfunção social, as novas criminologias vêem
o crime como continuidade da interação social normal, explicável
através de referência aos padrões motivacionais normais 34 .
Um importante aspecto desta abordagem é a exortação à ação
oficial no sentido de deixar de lado sua atenção à criminalidade e
ao criminoso, para concentrá-la no evento criminoso. O novo foco
recai sobre a fonte de oportunidades para a prática do crime e so-
bre a existência de "situações criminogênicas". A premissa é de
que as ações criminosas acontecerão rotineiramente diante da au-
sência de controles e da disponibilidade dos alvos atrativos, te-
nham ou não os indivíduos uma "disposição ao crime" (a qual,
onde de fato existir, será em qualquer caso difícil de mudar). A
atenção deve se centrar não nos indivíduos, mas nas rotinas de
interação, nas características do ambiente, sobre as quais a estru-
tura de controles e incentivos deve atuar. O novo conselho político
é de se concentrar na substituição da prevenção pela cura, redu-
zindo as oportunidades, aumentando controles sociais e situacionais
e modificando as rotinas diárias. O bem-estar de grupos sociais
desvalidos ou as necessidades de indivíduos desajustados são muito
menos importantes para este modo de pensamento.
A expansão da infra-estrutura da prevenção do crime
e da segurança da comunidade
Nas duas últimas décadas, enquanto os debates nacionais so-
bre o crime, na Grã-Bretanha e nos EUA, se concentravam em
punição, prisões e justiça criminal, uma infra-estrutura totalmente
nova foi montada no nível local, que trata o crime e a desordem de
maneira bastante diferente. Desenvolvida sob a tutela do Home Office
britânico e, nos Estados Unidos, pela iniciativa privada e pelos go-
vernos locais, esta rede de parcerias e de acordos interagenciais de
trabalho tem o objetivo de intensificar a prevenção do crime e au-
mentar a segurança comunitária, primordialmente através da pro-
moção do envolvimento das comunidades e da disseminação de idéi-
as e práticas ligadas à prevenção do crime.

62
Policiamento comunitário, painéis de prevenção do crime, pro-
gramas Safá Cities 35 , prevenção do crime por intermédio de proje-
tos de Environmental Design 36 , vigilância nos baitTos, serviços
municipais de gerenciamento todas estas atividades superpostas e
inter-relacionadas se combinam para produzir o preâmbulo de um
novo sistema de controle do crime que se vale das novas
criminologias da vida diária para guiar suas ações e moldar suas
técnicas 37 . Embora esta nova infra-estrutura tenha relações defini-
das com as instituições da justiça criminal - especialmente com a
polícia e as agências de livramento condicional, que patrocinam ou
administram muitas das iniciativas principais - ela não deve ser en-
tendida como um mero anexo ou extensão do sistema tradicional de
justiça criminaL Pelo contrário. A nova infra-estrutura é fortemente
orientada para um conjunto de objetivos e prioridades-prevenção,
segurança, redução de danos, redução de perdas, redução de medos
- que são bem diferentes dos objetivos tradicionais da acusação,
punição e da "justiça criminal". Então, enquanto as medidas mais
proeminentes da política de controle do crime são cada vez mais
orientadas para a segregação punitiva e para a justiça simbólica,
existe, concomitantemente, um novo compromisso, especialmente
no âmbito local, com uma estratégia diferente que se pode chamar
de parcerias preventivas. As estratégias de controle do crime mais
visíveis, hoje em dia, podem até trabalhar com expulsão e exclusão,
mas são acompanhadas por esforços pacientes, continuados, de baixa
intensidade, direcionados a construir controles internos nas vizi-
nhanças e de encorajar as comunidades a se auto-policiarem.
A sociedade civil e a comercialização do controle do
crime
Um dos aspectos mais interessantes deste novo conjunto de
práticas preventivas é que ele transcende a linha divisória entre o
público e o privado, e estende os contornos do controle do crime
oficial para muito além das fronteiras institucionais do "Estado". Na
maior parte dos dois últimos séculos, as instituições estatais da jus-
tiça criminal dominaram a área, tratando o crime como um proble-
ma a ser administrado através do policiamento, acusação e punição
de indivíduos que violassem a lei. Hoje, testemunhamos o movi-
mento que busca o engajamento dos cidadãos, das comunidades e

63
das empresas, que opera com um conceito mais amplo de controle
do clime e que utiliza técnicas e estratégias bastante diferentes das
adotadas pelas agências da justiça elimina! tradicional.
Este movimento está sendo, atualmente, encorajado pelas agên-
cias governamentais, bem como por grupos e organizações da soci-
edade civil. Por um lado, tem-se velificado uma tentativa coordena-
da do governo central (especialmente na Grã-Bretanha) de ir além
das organizações de seu próprio sistema de justiça criminal e de
estimular os cidadãos, as comunidades, o setor comercial e outros
atores da sociedade civil a empenhar-se na redução do crime. Numa
total inversão da tendência de monopolização do controle do clime
pelas agências governamentais, o Estado começou a envidar esfor-
ços no sentido de "pulverizar" a resposta social- isto é, de dissemi-
nar o esforço voltado ao controle do crime para além das organiza-
ções estatais que, anteriormente, buscavam monopolizá-lo 38 .
Ao mesmo tempo, nota-se a marcante expansão de uma in-
dústria de segurança privada, que originalmente cresceu na som-
bra do Estado, mas que tem sido cada vez mais reconhecida pelo
governo como um parceiro na produção de segurança e no controle
do crime. O policiamento se tomou uma empreitada de economia
mista, que envolve recursos públicos e privados, na medida em que
mais funções de vigilância ostensiva são protagonizadas por agentes
privados de vigilância, da mesma forma que os estabelecimentos
comerciais e domésticos investem em mecanismos e serviços de
proteção ofertados pela indústiia da segurança. Uma simbiose simi-
lar enti·e o público e o privado está começando a surgir no setor
penal, com o chocante aumento de prisões privadas -isto, depois
de mais de um século durante o qual a administi·ação de instituições
penais constituía função estatal, excluindo completamente interes-
ses privados ou comerciais 39 •
Até recentemente, a crença consolidada era de que o controle
do crime e a reforma do criminoso eram responsabilidades do Es-
tado, que deveriam ser executadas por funcionários do governo, a
bem do interesse público. Estas claras linhas entre o público e o
privado agora se obscureceram. Agências do setor público (pli-
sões, livramento condicional, liberdade vigiada, o tribunal etc.)
estão sendo remodeladas de maneira a emular os valores e o modo
de trabalho da indústria privada. Interesses comerciais passaram a
64
desempenhar um papel no desenvolvimento e produção de políticas
penais, de uma forma que seria impensável há vinte anos. O que
estamos testemunhando é o estabelecimento de novas fronteiras
entre as esferas pública e privada, entre ajustiça criminal estatal e os
controles operativos da sociedade civil. O "moderno" campo do
controle do crime está sendo rapidamente reconfigurado, de modo
a descentralizar não apenas as funções das instituições estatais
especializadas, mas também as racionalidades política e criminoló-
gica que lhes davam sustentação.
Novos estilos de gerência e de rotinas de trabalho
Nas últimas décadas, têm-se verificado mudanças importantes
nos objetivos, ptioridades e ideologias de trabalho das principais
agências da justiça criminal. A polícia, agora, se considera não só
uma força de combate ao crime mas principalmente um serviço
público reativo, que intenta reduzir o medo, a desordem e a incivili-
dade, bem como atender às expectativas da comunidade quanto às
prioridades relacionadas à manutenção da lei. Autoridades prisionais
consideram que sua tarefa principal é guardar com segurança os
criminosos, e não pretendem mais levar a cabo medidas reabilitadoras
para a maioria dos internos. Agências de fiscalização do livramento
condicional e da liberdade vigiada não mais enfatizam o ethos do
trabalho social que antes informava sua atividade; em vez disto,
apresentam-se como forma barata e comunitária de punição, volta-
da ao monitoramento de criminosos e ao gerenciamento de riscos.
O ato de sentenciar mudou, particularmente nos EUA, deixando
de ser a arte discricionária de individualizar a punição para se
tornar uma mecânica distribuição de penalidades.
Há, outrossim, um novo e invasivo espírito gerencial que afeta
todo e qualquer aspecto da justiça criminal. Dentro de agências e
organizações específicas, indicadores de performance e medidas
gerenciais estreitaram a discricionariedade profissional e regula-
ram minudentemente a rotina de trabalho. Novas formas de siste-
mas de monitoramento, de tecnologia de informação e de auditori-
as financeiras expandiram o controle centralizado de um processo
que, antes, era menos coordenado e altamente resistente à política
de gerenciamento40 .

65
A ênfase no custo financeiro da gerência de riscos produziu
um sistema que é crescentemente seletivo em suas respostas ao
crime. Há, agora, uma prática estabelecida de escolha de alvos (os
pontos de criminosos, criminosos multirreincidentes, vítimas visa-
das e criminosos de alta periculosidade); de rigorosa seleção de ca-
sos para excluir os crimes triviais ou de baixo risco (salvo quando
se acreditar que estejam ligados a assuntos mais importantes relaci-
onados à segurança pública); e de generalizada preocupação com a
alocação dos recursos da justiça criminal, inclusive recursos
investigativos, prioridades no julgamento, supervisão do livramento
condicional e vagas nas prisões. Diversificação de tratamento, me-
didas preventivas, multas e penas alternativas fixas encarnam esta
tendência de concentrar os recursos do controle do crime nos deli-
tos mais graves e nos indivíduos mais perigosos.
Existem, é claro, instâncias importantes onde os princípios de
eficiência e estratégias gerenciais parecem ter sido rompidos ou
mesmo invertidos. O notável crescimento da população prisional
primeiramente nos EUA e, mais recentemente, na Grã-Bretanha é
um exemplo claro da preponderância de preocupações políticas
populistas sobre a austeddade orçamentária. Leis que obrigam a
aplicação de pena privativa de liberdade são aprovadas com pouca
preocupação quanto à necessidade de preservar os escassos recur-
sos orçamentários ou mesmo de concentrar esforços em hipóteses
de maior risco. As iniciativas do policiamento da "qualidade de
vida" e da "tolerância zero" parecem inverter a lógica da
seletividade ou, pelo menos, definir as prioridades do policiamen-
to de maneira radicalmente nova. As restrições ao uso da fiança, à
soltura antecipada de presos ou ao uso de medidas preventivas são
outros exemplos em que as políticas recentes inverteram a preocu-
pação anterior com medidas penais de baixo custo e impacto, em
nome da segurança pública ou em reação a escândalos nos quais
estas políticas tenham sido responsabilizadas por eventos crimino-
sos 41. Tais exemplos mostram claramente a intensidade das tensões
e contradições existentes nesta área. De fato, a combinação de corte
de gastos em setores da justiça criminal que muitos especialistas
reputam fundamentais no longo prazo (programas de tratamento da
dependência de drogas, medidas preventivas comunitárias, educa-
ção nas prisões, remanejamento de condenados, subvenção de habi-

66
tações etc.) com o esbanjamento de recursos em medidas que são
populares, mas cuja efetividade é tida como duvidosa (encarceramento
maciço, a "guerra contra as drogas", obrigatoriedade da aplicação
de penas privativas de liberdade etc.) é uma fonte continuada de
tensão entre segmentos da comunidade, operadores do direito e
formuladores das políticas públicas.
Uma pe1pétua sensação de crise
Nas últimas duas décadas, um desconforto e uma desmorali-
zação inconfundíveis abalaram o campo. Isto é visível nas conver-
sas sobre "crise", muito embora o termo seja claramente inade-
quado para uma situação que já perdura por várias décadas. Desde
o final dos anos 1970, quem trabalha na justiça criminal vem vi-
vendo um período de contestação e reforma impiedosas, que não
dá sinais de mTefecimenh Ao longo dos anos 1990, as coisas se
sucederam com rapidez inaudita. Houve uma onda de novas leis,
reformas organizacionais constantes e um ritmo urgente, volátil,
de desenvolvimento de políticas. Quem trabalha na justiça criminal
foi exposto a um período continuado de incerteza e de ruptura, com
a ansiedade e o esforço desordenado que acompanham as mudanças
institucionais bruscas. A leitura de revistas e boletins especializados
ou dos programas das conferências sobre o assunto deixa isto sufi-
cientemente claro 42 .
Isto, porém, é mais do que a confusão psicológica própria de
um período de reforma. Existe, agora, um crescente senso de que
os arranjos "modernos" relacionados ao controle do crime - organi-
zados por intermédio de agências especializadas da justiça criminal
estatal- talvez não sejam mais adequados à questão do crime, nem
sejam coerentes entre si. As falhas do sistema, atualmente, não são
mais tão facilmente vistas como problemas temporários, que têm a
ver com falta de recursos ou com a implementação insuficiente de
programas coITecionais ou preventivos. Ao revés, há um reconhe-
cimento crescente de que a moderna estratégia de controle do crime
pela justiça criminal foi testada e fracassou. Altas taxas de crimina-
lidade ou de reincidência, antes atribuídas afalhas de execução, que
ensejavam a demanda por mais empenho por parte do sistema exis-
tente, com mais recursos e poderes para os agentes do sistema,
agora são interpretadas como prova da falha da teoria: como sinal

67
de que o controle do crime é baseado num modelo institucional que
é singularmente inadequado para esta missão.
Uma das conseqüências mais profundas desta situação - à qual
me referi alhures como "crise do modernismo penal" - é que o
······ conhecimentortos·grupos·profissionais que operam no sistema ten-
deu a ficar desacreditado, tanto externamente quanto pelos seus
próprios membros. Parte da crise, tal qual experimentada por estes
profissionais, consiste em que, ao longo deste período, o público
deixou de confiar na justiça criminal; os políticos, por sua vez,
ficaram cada vez menos dispostos a outorgar maiores poderes
decisórios aos criminólogos e aos funcionários da justiça crimi-
nal. Do ponto de vista político, o sistema de justiça criminal se
tornou uma zona de perigo - um gerador constante de riscos e
escândalos e de custos cada vez mais altos· - a cujos representan-
tes não se pode mais confiar poderes autônomos e parcelas de
discricionariedade.
O que todo mundo sabe...
Listar estes sinais de mudança não significa nada mais do que
apresentar um catálogo de desdobramentos que será familiar para
qualquer pessoa informada sobre a recente política criminal. Toda-
via, reuni-los desta forma e contrastá-los com as instituições e prá-
ticas existentes antes de 1970 indica, de forma mais nítida do que o
normal, a surpreendente natureza do presente estágio do tema, quan-
do visto de uma perspectiva temporal mais ampla.
Reunindo-se estas mudanças, da forma como se fez, pode-se
observar que os discursos criminológicos, as práticas de controle
do crime e as instituições da justiça criminal, de fato, se relacionam
entre si como elementos numa estrutura diferenciada e tenuamente
ligada, que pode ser descrita como "campo". Esta "observação"
(que, na verdade, é uma premissa teórica) é básica parà a investiga-
ção que desenvolvo aqui e, sendo um pressuposto básico, não está
sujeito a confirmação ou confutação pelo próprio estudo. Todavia,
se, como penso, este pressuposto auxilia a elucidar o fenômeno que
não é de outra forma explicável, terá então mostrado seu valor prag-
mático e heurístico, e servido ao seu propósito imediato.
Nas sociedades modernas, o càmpo do controle do crime e da
justiça criminal possui uma estrutura organizacional própria, suas

68
próprias práticas de trabalho e seus próprios discursos e cultura;
todos estes fatores conferem um certo grau de autonomia com re-
lação ao ambiente em que se situam. É claro que os diferentes ele-
mentos deste campo - agências como a polícia, as prisões ou as de
supervisão da liberdade vigiada; discursos como a lei penal, a crimi-
nologia, a teoria da pena; práticas como a pro lação de sentenças e a
prevenção do crime- são complexos demais para autorizar o estu-
do individual de cada um; a vasta maioria das análises acadêmicas
prefere se concentrar num tópico específico. No entanto, uma série
de estudos individuais talvez falhe em perceber os princípios gerais
que estruturam as relações entre estes elementos; portanto, o pre-
sente estudo olha para o campo como um todo, no esforço de iden-
tificar tendências e características comuns, procurando da mesma
forma entender as mudanças específicas à luz de desenvolvimentos
mais gerais. A análise genérica que produzo não é um substituto dos
detalhados estudos de caso, sem os quais esta análise não poderia ter
sido escrita: é uma suplementação de tais estudos, que almeja ver os
elementos individuais no contexto de sua interação, além de entender
a organização do campo do controle do crime por inteiro e examinaT
a relação das mudanças observadas com o ambiente social.
Evidentemente, minha descdção dos sinais de mudança, ex-
posta desta forma, não leva em conta o tempo histórico e o espaço
institucional. Representadas em seqüência ordenada, parece que
estas dimensões diferentes coexistem no mesmo plano, em um sis-
tema categoricamente unificado, como muitos aspectos do mesmo
objeto, ao passo que, na verdade, elas resumem observações de
muitos conjuntos distintos e se relacionam a fenômenos que ocu-
pam níveis diversos de um campo complexo e multidimensional.
Algumas das mudanças que descrevi estão ligadas e coffem na
mesma direção, formando parte de uma mesma seqüência causal ou
de um mesmo conjunto institucional. Outras são contraditó1ias, ou
desvinculadas, operando em planos discursivos díspares e distintos
níveis de ação social. No curso da minha análise, esta complexidade
terá que ser investigada, antes que estas relações possam ser
destrinçadas. Todavia, por mais equívoca que esta aproximação ini-
cial pareça ser, por mais que aparente simplificar uma realidade que
é sempre mais complexa e confusa, pelo menos ela nos fornece um
ponto de partida.

69
Há, também, o problema da valoração. Algumas das tendênci-
as que descrevi podem ser mero fogo de palha ou experiências po-
líticas de curta duração, muito embora se revelem aos estudiosos da
atualidade como indício do que está por vir. E algumas mudanças
podem acabar sendo mais efêmeras do que aparentam atualmente.
É difícil ter certeza. Deve-se ter cuidado para não exagerar ou
extrapolar tão rapidamente, ou para afiançar que as iniciativas polí-
ticas de maior visibilidade virão a ter o maior impacto empírico ou
significação política. Tampouco devemos confundir uma proposta
ou iniciativa com uma política consolidada. Qualquer análise sobre
eventos recentes e sobre seu significado estrutural deve ser levada a
termo com certo grau de cuidado, assim como é preciso ter em
mente certas regras metodológicas básicas:

• Não se deve confundir movimentos de curta duração com


mudança estrutural. Modificações de curta duração na ênfase políti-
ca, que são temporárias e reversíveis, devem ser diferenciadas de
transformações estruturais de longa duração. Da mesma forma, mu-
danças no estilo retórico devem ser diferenciadas de transformações
mais profundas nas crenças aceitas e nas premissas que estruturam o
discurso criminológico e a política do controle do crime.
• Não se deve confundir discurso com ação.As mudanças rá-
pidas e, às vezes, radicais que ocorrem nos discursos da política
oficial não devem ser confundidas com alterações nas efetivas prá-
ticas e ideologias profissionais. Nem se deve assumir que o des-
crédito de uma determinada linguagem (tal como "reabilitação" ou
"bem-estar") significa que as práticas um dia por ela descritas te-
nham desaparecido. Ao mesmo tempo, não devem ser ignoradas a
significação social e a eficácia prática da retórica política e das re-
presentações oficiais.
• Não se deve considerar que o discurso seja inconseqüente. A
retórica política e as representações oficiais acerca do crime e dos
criminosos têm um significado simbólico e uma eficácia prática que
efetivamente geram conseqüências sociais. Às vezes, o "discurso"
é a "ação".
• Não se deve confundir meios com fins. A infra-estrutura relati-
vamente fixa das instituições penais, dos seus aparatos e das suas téc-
nicas devem ser analisados separadamente das estratégias mais móveis
70
que determinam objetivos e prioridades e que ditam como os recursos
destinados ao controle do crime são distribuídos.
• Não se deve unificar questões distintas. A incidência de even-
tos nos EUA e na Grã-Bretanha; casos isolados e tendências cen-
trais; mudanças nas taxas de criminalidade e mudanças na política
criminal; representações políticas da opinião pública e as verdadei-
ras crenças e atitudes do público; os efeitos penais das práticas de
controle do crime e sua significação política - deve-se resistir à
tentação de tratar da mesma forma esses temas equivalentes. Cada
um envolve questões analíticas distintas, que requerem
metodologias e dados bem diferentes, de maneira a serem devida-
mente abordados.
• Não se deve perder de vista o longo prazo. Quem se dedica
a empreender uma "história do presente" deve resistir à tentação
de ver descontinuidades em todos os lugares ou de afirmar apres-
sadamente que hoje é o limiar de uma era absolutamente nova.
Como Michel Foucault certa vez destacou,
um dos hábitos mais danosos do pensamento contemporâneo é a
análise do presente como sendo precisamente, na história, um
presente de ruptura, de pontos altos, de completitude ou de retor-
no ... o tempo em que vivemos não é o único ou fundamental
ponto de ruptura na história, onde tudo está completo e recomeça
de novo 43 .
Nada obstante, e tendo-se em mente estas regras de cautela
do bom senso metodológico, algo parece estar acontecendo, e não
sabemos bem o que é. Mais do que isso, mesmo o mais cauteloso
relato do presente é obrigado a reconhecer que a corrente reconfi-
guração do controle do crime parece estar intimamente ligada à
reestruturação de outras dimensões da vida social e econômica nas
sociedades pós-modernas. Este estudo tenta dar sentido à presente
conjuntura olhando-a historicamente e sociologicamente. Através
do enfrentamento de eventos específicos e de características sociais
mais genéricas, espero aumentar a inteligibilidade não apenas do con-
trole do crime como também das distintas formas de ordenação e
controle sociais da pós-modernidade.

71
Orientação teórica
Meu objetivo neste livro é escrever uma história do presente e
de apresentar um relato estrutural de como o controle do crime e a
justiça criminal estão organizados atualmente. Para tanto, exige-se
um mapeamento das condições sociais de existência que subjazem
ao controle do crime contemporâneo e a identificação das regras de
pensamento e de ação que moldam suas políticas e práticas. Uma
das dificuldades de um projeto como este é como discutir a mudan-
ça num complexo campo de práticas, discursos e representações.
Falar-se em "estrutura" e em "mudança estrutural" é freqüentemen-
te totalizante demais, muito "tudo ou nada". Bem assim é a justapo-
sição de uma "racionalidade" em outra, como a alegação de que uma
"nova penalogia" está substituindo a "velha penalogia", ou de que a
modernidade está sendo desalojada pela pós-modernidade44 . Um
campo complexo, multidimensional, que se submeteu a um proces-
so de transição revelará sinais de continuidade e de descontinuidade.
Conterá múltiplas estruturas, estratégias e racionalidades, algumas
das quais terão mudado e outras, não. Precisa-se discutir a mudan-
ça tendo-se em conta estas complexidade e variação, evitando-se o
apelo a dualismos simplificadores e o falso essencialismo que estes
implicam.
Meu argumento será o de que, no presente, pode-se identificar
a emergência de uma reconfiguração nos campos do controle do
crime e da justiça criminal. Argumentar neste sentido não equivale a
afirmar com veemência a existência de uma lógica singular nova ou
de um conjunto radicalmenté novo de instituições e estruturas. Nem
sugere a transformação de uma época inteira, como "a morte do
social" ou a chegada da pós-modernidade. Em lugar disto, descrevo
a emergência de uma nova configuração - um complexo
reconfigurado de estruturas e de estratégias inter-relacionadas, que
são compostas de elementos novos e antigos, o antigo contexto
operacional revisado e redirecionado pelo novo, os novos elementos
modificados pela contínua influência de práticas profissionais e de
modos de pensamento próprios do período anterior. Meu argumen-
to, pois, é construído em termos de um estruturalismo tênue, que
:dão reclama nada além da óbvia verdade de que a introdução de
novas racionalidades, práticas e propósitos num campo já existente
terá conseqüências na operação e no significado dos elementos exis-
72
tentes naquele domínio. São essas qualidades estruturais ou
modeladoras do campo - suas regras discursivas, suas lógicas de
ação, as restrições sistemáticas sobre aquilo que pode ser afirmado
ou não - que consubstanciarão meu objeto principal de estudo.
As mudanças descritas acima estimularam muitos comentári-
os e análises. Todos concordam em que o campo está mudando, e
de modo fundamentaL Surpreendentemente, contudo, há pouco
consenso acerca da característica precisa desta transformação, ou
acerca das causas que estão a engendrá-la. Acadêmicos chamam
nossa atenção para desdobramentos particulares (a guinada em di-
reção à sociedade da lei e ordem, o ocaso da reabilitação, a mu-
dança para a correção comunitária, a nova penalogia, a bifurcação
da política criminal, gerencialismo e populismo punitivo) e ofere-
cem o arcabouço teórico de suas análises (crise econômica e social;
pós-modernismo, governabilidade, sociedade de risco, modernida-
de tardia) 45 . Cada um deles destaca certas dimensões do processo,
e suas conclusões tiveram grande contribuição para formar a análi-
se que desenvolvo aqui. Mas nenhuma destas teorias oferece uma
análise da reconfiguração geral do campo, nem provêem, em minha
opinião, um relato compreensível e convincente das forças sociais e
históricas que o criaram.
O campo do controle do crime e da justiça criminal é um do-
mínio relativamente diferente, com suas dinâmicas, normas e ex-
pectativas próprias, em função das quais os agentes do sistema pe-
nal orientam sua conduta. Os determinantes sociais e econômicos
do "mundo externo" certamente afetam a conduta dos agentes do
sistema penal (policiais, juízes, agentes prisionais etc.), mas o fa-
zem somente de forma indireta, através da modificação gradual das
regras de pensamento e de ação internas a um campo que possui o
que os sociólogos chamam de "autonomia relativa". Tendências
sociais - tais como crescentes taxas de criminalidade e sensação de
insegurança, crises econômicas, guinada política do Estado do bem-
estar para o neoliberalismo, mudanças nas relações de classe, raça
ou gênero, e assim por diante- devem ser traduzidas na linguagem
dos costumes do campo, antes que possam ter algum efeito nele.
Afirmar-se que tendências sociais e penais operam articuladamente,
ou que existe algum tipo de causação homológica que sempre liga
umas diretamente às outras, significa ignorar o expressivo número
73
de evidências factuais que tendem a desmentir, ou ao menos a
relativizar, tal noção. Também significa negligenciar a necessidade
de especificar os mecanismos através dos quais as forças sociais
em um domínio se transmudam em resultados em outro domínio.
As estruturas, sobretudo as mudanças estruturais, são proprie-
dades emergentes, que resultam das ações rec01rentes e reiteradas
dos atores que ocupam o espaço social em questão. A consciência
destes atores - as categorias e estilos de raciocínio com os quais
eles pensam, e os valores e sensibilidades que guiam suas escolhas
- é, assim, um elemento chave na produção da mudança e na repro-
dução da rotina, sobre o qual deve recair importante foco num estu-
do deste tipo. Os atores e agências que ocupam o campo da justiça
criminal- com suas experiências particulares, treinamento, ideolo-
gias e interesses - são os sujeitos humanos, através dos quais e em
nome dos quais os processos históricos são levados a termo. O
entendimento destes atores acerca de sua própria prática e do siste-
ma no qual trabalham é crucial na formàção da operação das insti-
tuições e dos mecanismos sociais nos quais eles estão inseridos 46 .
Os discursos e retóricas - e as racionalidades baseadas no conheci-
mento ou no valor que eles envolvem - serão, assim, tão importan-
tes quanto a ação e as decisões, para a finalidade de produzir provas
sobre a característica do campo. Uma nova configuração não emer-
ge completamente até que esteja arraigada nas mentes e nos hábitos
daqueles que operam no sistema. Até que este pessoal tenha conso-
lidado um habitus apropriado ao campo, que lhe permita atender às
suas demandas e reproduzi-las como resultado lógico, o processo
de mudança permanece parcial e incompleto. Enquanto os operado-
res e formuladores de políticas se ressentirem de uma noção precisa
do sistema, o campo continuará a exibir alto grau de volatilidade, e
sua direção futura remanescerá incerta. Para o bem ou para o mal,
um campo em transição é um campo que está mais suscetível do
que o normal a forças externas e pressões políticas. É um momen-
to histórico que convida à ação transformadora precisamente
porque é mais provável que ela cause impacto.
Esta atenção aos depoimentos dos atores e aos seus pressu-
postos é também importante no que concerne a atores políticos,
cujas retórica e racionalidade anunciadas não são simplesmente o
destaque de suas atitudes, mas na verdade representam uma forma

74
de ação em si mesmas. Um tópico central nesta investigação se
refere aos modos pelos quais os funcionários do governo e os ato-
res privados vivenciam e apreendem as novas circunstâncias soci-
ais e as novas dificuldades, bem como aos instrumentos intelectu-
ais e meios técnicos desenvolvidos para lidar com tais circunstân-
cias e dificuldades. Deve-se lembrar que a emergência de fenôme-
nos estruturais, tais como racionalidades, mentalidades e estraté-
gias, é, em primeiro lugar, o resultado da operação de resolução de
problemas, por parte dos atores e agências. Não há nenhum pro-
cesso mágico ou automático de funcionamento e de adaptação do
sistema à parte desta realidade. Análises assentadas em tais no-
ções omitem o verdadeiro substrato humano de disposição, escolha
e de ação - o substrato que, na realidade, compõe a sociedade e a
história.
Um compromisso com categorias de atores e com o que eles
fazem com elas representa um compromisso com idéias e discur-
sos, no caso presente primordialmente a lei penal, a criminologia e
o discurso relacionado à política social. Parte da minha preocupa-
ção, portanto, será traçar e reconstruir as categorias através das
quais os criminosos e o crime são apreendidos e trabalhados. Isto,
entretanto, não é exatamente o mesmo do que uma história das
idéias criminológicas, tendo em vista que muitas teorias e concei-
tos criminológicos têm tido muito pouca influência na prática,
embora sejam importantes enquanto conquistas intelectuais. Meu
foco é na "ctiminologia oficial" e nas concepções criminológicas
que pautaram a lei penal e as práticas de controle do crime em seus
vários ângulos. É um estudo sobre categorias sociais operantes e
sobre como estas categorias se transformaram ao longo do tempo
- uma questão mais de história cultural e institucional do que de
história das idéias 47 . As categorias criminológicas que me interes-
sam aqui são as sancionadas pelas autoridades sociais e respaldadas
pelo poder institucional. Tais categorias, na verdade, constituem
seus objetos criminais, no próprio ato de compreendê-los. Elas são
referidas não como conhecimento "verdadeiro", "válido" ou "cien-
tífico", mas como categorias efetivas, produtoras de verdade, que
provêem condições discursivas para práticas sociais reais. Estas
categorias são elas próprias um produto (e um aspecto funcio-
nal) das mesmas culturas e estruturas sociais que produzem os

75
comportamentos criminosos e os indivíduos aos quais elas se
referem.
Meu presente relato da mudança penal e social baseia-se na
teoria que iniciei em Punishment and Welfare - um livro quedes-
creveu a formação, no limiar do século XX, do campo penal-
previdenciário. Em resposta à erosão ou ao colapso de uma confi-
guração institucional estabelecida anteriormente, vários tipos de
programas e de adaptações rapidamente surgiram para preencher
o vácuo. Esta proliferação de novas propostas, esta enxurrada de
novas idéias, é eclética, variegada e emerge de várias fontes do
campo social. Não existe uma resposta uniforme, uma necessida-
de de evolução, de progresso do velho para o novo. Existe, contu-
do, um conjunto compartilhado de condições existentes, entendidas
de maneiras distintas, e uma história de falhas e de problemas preté-
ritos, que formam o background contra o qual muitos dos novos
programas são criados. Existe, também, contíguo ao domínio pe-
nal, um campo estruturado socialmente (com seus domínios so-
cial, econômico e político), fora do qual novos problemas e ini-
ciativas transitam.
Estes novos desdobramentos se tornam organizados e coeren-
tes (e as configurações que emergem são apenas tenuamente orga-
nizadas e relativamente coerentes) como instrumento de um pro-
cesso de seleção política e cultural. Há, com efeito, um processo
evolutivo de variação, de seleção ambiental e de adaptação, con-
quanto, é claro, o mecanismo de "seleção" não seja absolutamente
"natural". Ele é, ao revés, social e político e, portanto, o locus de
cálculos, contestação e de luta. Além disso, as escolhas que cumu-
lativamente compõem o processo seletivo são freqüentemente fei-
tas de modo a ignorar algumas de suas conseqüências, e são guia-
das mais por compromissos com valores do que pelo cálculo infor-
mado, instrumental. Atores socialmente situados, precariamente in-
formados, tropeçam no desenvolvimento das atividades que pare-
cem funcionar e que parecem coincidir com seus interesses. Auto-
ridades arranjam soluções práticas para os problemas que percebem
e que podem enfrentar. As agências se esforçam para dar conta do
seu espectro de trabalho, para agradar seus chefes políticos e para
fazer o melhor possível em determinada conjuntura. Não existe um
estrategista onipotente, um sistema abstrato ou um ator ciente de
76
tudo, dotado de conhecimento total e de poderes ilimitados. Cada
"solução" é baseada em uma percepção específica do problema que
está sendo tratado, dos interesses que estão em jogo e dos valores
que devem guiar a ação e distribuir as conseqüências.
Assim, os programas e idéias selecionados são aqueles que se
encaixam nas estruturas dominantes do campo e nas culturas espe-
cíficas a que elas dão suporte. Estes são os programas que se e1ue-
dam nas instituições mais poderosas, que distribuem a culpa publi-
camente e que dão poder aos grupos que, em dado momento, estão
de posse da autoridade, do respeito e dos recursos. As estratégias
de controle do crime e as idéias criminológicas não são adotadas
por sua capacidade de resolver problemas. As evidências disto de-
saparecem bem antes que seus efeitos sejam percebidos com algu-
ma clareza. Essas estratégias são adotadas, e logram êxito, porque
caracterizam problemas e identificam soluções de maneira compatí-
vel com a cultura dominante e com a estrutura de poder sobre a qual
ela reside.
Este livro é um relato da mudança em vários campos sociais e
em vá.dos registros históricos diferentes. No preâmbulo deste estu-
do está o problema de descrever como nossas respostas ao crime e
nosso senso de justiça criminal se modificou tanto e de forma tão
dramática, no final do século XX. Subjacente a esta investigação
está uma preocupação teórica mais ampla, no sentido de entender
nossas práticas contemporâneas de crime e punição em suas rela-
ções com as estruturas de bem-estar e (in)segurança, bem como
em suas ligações com as cambiantes relações de classe, de raça e de
gênero, que estão na base destes acontecimentos. Através do estu-
do do problema do crime e do seu controle, podemos rapidamente
passar os olhos por problemas mais gerais relacionados à govema-
bilidade nas sociedades pós-modernas e à criação da ordem social
num mundo em acelerada transformação.

Notas

1
Para consulta a textos representativos da política oficial da década de
1960 nos EUA e na Grã-Bretanha, v. Home Office, The War Against Crime
(Londres: HMSO, 1964) e The President's Commission on Law

77
Enforcement and Administration, The Challenge of Crime in a Free
Society Report (Washington DC: US Government Printing Office, 1967).
Para consulta a textos representativos das previsões de sentenças nos
Estados Unidos daquele período, v. The American Law Institute, The
Model Penal Code (1962), seções 6 e 7 e H. Wechsler, "Sentencing,
corrections and the Model Penal Code", 109, University of Pennsylvania
Law Review (1961 n.Q 6), pp. 465-93. Para demonstrações das ideologias
de reabilitação de autoridades prisionais nos EUA na década de 1970, v.
R. Berk e P. Rossi, Prison Reform and State Elites (Cambridge, MA:
Ballinger, 1977). Para debates acerca das atitudes e expectativas britânicas,
v. Lord Windlesham, Responses to Crime, vol. 2: Penal Policy in the
Making (Oxford: Clarendon Press, 1993), capítulos 2 e 3 e A. E. Bottoms
e S. Stephenson, "'What Went Wrong?' Criminal Justice Policy in
England and Wales, 1945-70" in D. Downes (org.) Unravelling Criminal
Justice (Basingstoke: Macmillan, 1992). Como um indicativo da diferença
entre aquela época e agora, considere-se o seguinte: em 1972, depois da
tendência vintenária de decréscimo no número de execuções, a Suprema
Corte dos Estados Unidos, em Furman v. Geórgia, 408 US 238 (1972),
considerou que a pena capital, da forma que vinha sendo executada,
violava a 8ª emenda à Constituição norte-americana, no sentido da
proibição de penas cruéis e desumanas. Entre 1920 e 1970, a taxa de
encarceramento dos EUA permaneceu estável em aproximadamente 110
presos (estaduais e federais) por 100.000 habitantes. Tão acentuada era
esta proporção que surgiram teorias para explicá-la - v. A. Blumstein e J.
Cohen, "A Theory ofthe Stability of Punishmenf', Joumal of Criminology,
CrimínalLawandPolice Science (1973), 63(2),pp.198-207. Em 1973, uma
comissão norte-americana recomendou que "nenhuma nova instituição
para adultos deveria ser construída e as instituições existentes para jovens
deveriam ser fechadas" e concluiu que "a prisão, o- reformatório e a cadeia
atingiram um chocante nível de fracasso": National Advisory Commission
on Criminal Justice Standards and Goals, A National Strategy to Reduce
Crime: Final Report (Washington DC: Government Prínting Office, 1973),
pp. 358 e 597.
2
Esta abordagem é, obviamente, inspirada pelo trabalho de Michel
Foucault. Sobre a idéia de uma "história do presente", v. M. Foucault,
Discipline and Punish (Londres: Allen Lane 1977), 31. Para uma discussão
a respeito, v. M. Dean, Critica! and Effective Histories (Londres: Routledge,
1994), e J. Goldstein (org.), Foucault and the Writing of History (Oxford:
Blackwell, 1994).
3
A idéia de campo social - um domínio diferenciado da prática social -
é retlrada do trabalho de Pierre Bourdieu. O melhor resumo da concepção

78
de Bourdieu nos é fornecido por LoYc Wacquant: "em sociedades avançadas,
as pessoas não se deparam com um espaço social indiferenciado. As
muitas esferas da vida, arte, ciência, religião, economia, política, e assim
por diante, tendem a formar microcosmos distintos, dotados de regras,
regularidades e fo1Tü:lS de autoridade próprias - é o que Bourdieu chama
de campo. Um campo é, em primeira instância, um espaço estruturado de
posições, um campo de força que impõe suas determinações específicas
a todos os que entram nele. Assim, aquele que deseja obter algum sucesso
como cientista não tem escolha senão adquirir o mínimo 'capital científico'
exigido e observar os valores e regras encampados pelo ambiente científico
daquele tempo e lugar", L. Wacquant, "Pierre Bourdieu", in R. Stones
(org.), Key Sociological Thinkers (Nova Iorque: New York University
Press, 1998), pp. 215-29 a 221.
4
Para uma discussão acerca de como as várias tradições da sociologia
histórica têm entendido a punição e a história da pena, v. D. Garland,
Punishment andModern Society (Oxford: Oxford University Press, 1990).
5
No original, probation officers. Não encontra paralelo em nosso direito a
figura do probation officer, precisamente porque o direito brasileiro jamais
adotou o instituto anglo-saxão da probation. A tradução mais exata da
expressão é "fiscais (ou agentes) do livramento condicional", tal como constc1.
no texto. Na estrutura administrativa da justiça criminal brasileira não existe
tal cargo, pois o livramento condicional - figura mais assemelhada com o
probation da common law - é fiscalizado pelo juízo das execuções penais,
nas estruturas judiciárias que prevêem tal órgão jurisdicional, ou pelo juízo
da condenação, nas estruturas mais simples (N. T}
6
Algumas das diferenças mais destacadas são as seguintes: no meio
do ano de 1999, a taxa de encarceramento dos EUA, incluídos os presos
das cadeias, era de 682 por 100.000 habitantes, o que representava
aproximadamente o sêxtuplo da taxa britânica. Veja-se A. l Beck, Prison
anel Jail Inmates at Midyear 1999: Bureau of Justice Statistics Bulletin
(Washington DC: US Department of Justice, abril de 2000). A maioria dos
estados norte-americanos pratica a pena de morte, abolida na Grã-Bretanha
há mais de 30 anos. Ambos os países adotaram parcerias público-privadas
para a prevenção do crime, sendo que, na Grã-Bretanha, o protagonismo
destas medidas tem sido do governo, ao passo que, nos EUA, do setor
privado. Por trás destes contrastes existem importantes diferenças nos
padrões de crime, de relações sociais e de instituições políticas. Conquanto
as taxas de criminalidade, na maioria dos crimes, não sejam muito diferentes
nos EUA e na Grã-Bretanha, a taxa de homicídios é seis vezes maior no
primeiro país do que no segundo. Armas de fogo foram usadas em 41 %
dos roubos ocorridos nos EUA, enquanto que em 5% dos roubos ocorridos

79
na Grã-Bretanha. Veja-se P. A. Langan e D. P. Farrington, Crime and
Justice in the United States and ín England and Wales, 1981-1996
(Washington DC: US Department of Justice, Bureau of Justice Statistics,
1997), e F. E. Zimring e G. Hawkins, Crime is Not the Problem (Nova
Iorque: Oxford University Press, 1997). O nível extraordinário de violência
letal nos EUA, a ampla disponibilidade de armas de fogo e a intensa
"guerra contra as drogas" explicam algumas diferenças de tamanho e
intensidade que marcam sua reação ao crime. Da mesma forma, a profunda
divisão racial que ainda caracteriza a sociedade norte-americana, a
desigualdade econômica mais acentuada e sua tradição de reduzir verbas
previdenciárias para os "pobres indesejáveis". Veja-se A. Hacker, Two
Nations: Black and White, Separate, Hostile, Unequal (Nova Iorque:
Ballantine Books, 1992); W. J. Wilson, The Truly Disadvantaged (Chicago:
University of Chicago Press, 1987) e P. J. Cook e M. H. Moore, Gun Contrai,
in J. Q. Wilson e J. Petersilia (orgs.), Crime (São Francisco: ICS Press,
1995). Diferenças importantes no processo de elaboração de políticas e
de instituições políticas nos dois países também se refletem nas políticas
relacionadas ao controle do crime. Por exemplo, a centralização
administrativa do poder do British Home Office lhe permitiu desenvolver
políticas - tais como parcerias visando a prevenção do crime - com maior
velocidade e coerência do que nos EUA. A escolha popular direta e a
eleição de representantes da justiça criminal fazem do populismo um
aspecto mais acentuado nas políticas norte-americanas, ao contrário do
que se dá na Grã-Bretanha.
7
Para uma discussão sobre como outras nações européias têm experimentado
a pós-modernidade, v. G. Therborn, European Modernity and Beyond
(Londres: Sage, 1995).
8
F. A. Allen, The Decline of the Rehabilitative Ideal (New Haven: Yale
University Press, 1981).
9
P. Gendreau e R. Ross, "Revivication ofRehabilitation: Evidence from the
1980s", Justice Quarterly (1987), vol. 4, n;i 3, pp. 349-407; J. McGuire,
What Works? Reducing Reoffending (Nova Iorque: Wiley, 1995); G. Gaes,
"Correctional Treatment", in M. Tonry (org.), The Handbook of Crime
Punishment (Nova Iorque: Oxford University Press, 1998). Para uma prova
de como a reabilitação tem sido retrabalhada no idioma político
contemporâneo, v. Visiting Commitee of the Correctional Association
of New York, in Rehabilitation that Works: Improving and Expanding
Shock Incarceration in New York State (Nova Iorque: Correctional
Association of New York, abril de 1996).
10
Para um exemplo do impacto nos formuladores das políticas públicas,
v. o depoimento de John Croft, chefe do Home Office Research and
80
Planning Unit: "a reforma dos criminosos (... ) tem sido central pMa o
tratamento da justiça criminal inglesa desde o século XIX (... ). Porém,
pesquisas penalógicas realizadas ao longo dos últimos vinte anos sugerem
que 'tratamentos' penais, como nós os concebemos, não possuem nenhum
efeito regenerador, sem prejuízo de outros efeitos que talvez possuam. O
dilema é que investimentos consideráveis foram feitos em várias medidas e
serviços, dos quais os exemplos mais óbvios são instituições de custódia
para jovens infratores e serviços comunitários destinados à grande variedade
de condenados em livramento condicional ou recentemente libertados.
Devem estes serviços ser simplesmente abandonados, à luz das evidências
recolhidas nas pesquisas?", J. Croft, Research in Criminal Justice, Home
Office Research Study n-º 44 (Londres: HMSO, 1978), 4. Para demonstração
da mudança da opinião pública nos EUA, v. G Pettinico, "Crime and
Punishment: América Changes its Mind'', que registra dados que sugerem
uma destacada mudança na atitude pública, da pró-reabilitação para a pró-
punição e neutralização, no período de 1971 a 1993.
11
Veja-se A von Hirsch, Censure and Sanctions (Oxford: Clarendon
Press, 1993) e A Ashworth, Sentencing and Criminal Justice, 2ª ed.
(Londres: Weidenfield & Nicolson, 1995).
12
Veja-se J. Pratt, "The Retum of the Wheelbarrow Men", British Journal
of Criminology (2000), voL 40, n-º 1, pp. 127-45; J. Pratt, "Emotive and
Ostentatious Punishment", Punishment & Society (2000), vol. 2 (4), pp.
416-38; B. Hebenton e T. Thomas, "Sexual Offenders in the Community:
Rejlections on Law, Community and RiskManagement in the USA, England
and Wales", Intemational Journal of Sociology ofLaw (1996), vol. 24, pp.
427-43; P. Finn, Sex Offender Comnnmity Notification, Research inAction,
fevereiro de 1997, NIJ, US Depm1ment of Justice;A. S. Book, "Shame on
You: An Analysis of Modem Shame Punishment as an Alternative to
Incarceration", William and Mary Law Review (1999), vol. 40, pp. 653-
86; M. Tonry, "Rethinking Unthinkable Punishment Policies inAmerica",
UCLA Law Review (1999), vol. 46, n-º 6, pp. 1751-91; K. Barry, "Chain
Gangs" (1997), texto sem publicação, de posse do autor. Para um exemplo
sobre a reintrodução de penas corporais, v. a legislação aprovada no
Mississippi em 1999: Mississippi House Bill NQ 327 (1997 MS HB 327
[SN]). Para uma discussão sobre a política inglesa acerca das "prisões
austeras", v. R. Sparks, "PenalAusterity and SocialAnxiety", inL. Wacquant
(org.), From Social State to Penal State (Nova Iorque: Oxford University
Press, no prelo).
13
Sobre a linguagem punitiva, v. A E. Bottoms, "The Philosophy and
Politics of Punishment and Sentencing", in C. Clark e R. Morgan (orgs.),
The Politics of Sentencing Refonn (Oxford: Clarendon Press, 1995); D.

81
Lewis, Hidden Agendas: Politics, Law and Disorder (Londres: Hamish
Hamilton, 1997); e Federal Sentencing Reporter, março/abril de 1998, vol.
10, nº 5, Special Issue on "Sentencing in England: The Rise of Populist
Punishment". Sobre o novo retributivismo na justiça de menores, v. S.
Singer, Recriminalizing Delinquency (Cambridge: Cambridge University
Press, 1996) e D. Bishop, "Juvenile Offenders in the Criminal Justice
System", Crime & Justice, vol. 27 (no prelo). Para um exemplo dos esforços
oficiais em considerar as penalidades comunitárias como penas, v. Home
Office, Punishment, Custody and the Community (Londres: HMSO, 1988)
e o anúncio pelo Home Office Minister Paul Boateng em 1º de dezembro
de 1999 do seu plano de renomear o serviço de livramento condicional
para "Community Punishment and Rehabilitation Service".
14
Veja-se R. A. Duff, "Penal Communications: Recent Work in the
Philosophy of Punishment", M. Tonry (org.), in Crime and Justice, An
Annual Review of Research, 20 (1995).
15
Sobre a justiça restaurativa no contexto norte-americano, v. L. Kurki,
"Restorative and Community Justice in the United States", in M. Tonry
(org.), Crime and Justice, vol. 27 (2000). Mais genericamente, v. J.
Braithwaite, "Restorative Justice", ín M. Tonry (org.), The Handbook of
Crime and Punishment (Nova Iorque: Oxford University Press, 1998),
pp. 323-44. O governo do Partido Trabalhista na Grã-Bretanha descreve a
introdução de medidas reparadoras no Crime and Disorder Act, 1998,
como um exemplo de justiça restaurativa. Veja-se J. Quin, Minister of
State at the Home Office, "The Labour Government's New Approach to
Criminal Justice", Policy Studies, vol. 19, n-Q 3/4 (dezembro de 1998), p.
188. Depois de descrever as medidas reparadoras neste sentido, Quin
adiciona que "nós estamos ( ... ) conscientes que a justiça restaurativa,
apesar de possuir muita utilidade, precisa ser usada de forma conjunt~ e
não contrária, com os interesses da vítima".
16
Um relatório na American Demographics faz o contraste histórico: "a
preocupação com o crime é generalizada, sugerindo que a lei e a ordem
continuarão em primeiro lugar no imaginário das pessoas. O crime é o problema
número um, mais comumente citado por pessoas de todas as idades e de
todos os extratos sociais. Este cenário é muito diferente do que existia no
início da década de 1970, quando o crime era visto como problema apenas
pelos mais velhos, pelos Republicanos, pelos pobres e pela população do
Nordeste, do Sul e das grandes cidades" Roper Reports Editors, "The Bir
Picture: Crime Fears", American Demographics (Julho de 1997).
17
A British Crime Survey do British Home Office e o Bureau of Justice
Statistics Sourcebook do Department of Justice dos EUA regularmente
relatam descobertas acerca do medo público do crime. Para discussões a
82
este respeito, v. M. Hough, Anxiety About Crime: Findings From the 1994
British Crime Survey (1995), Londres: HomeOffice; C Hale, "FearofCrime:
a Review of the Literature", Intemational Review of Victimology (1996),
voL 4, pp. 79-150. Quando, em 1992, uma Comissão briL:'mica sobre Justiça
Social apresentou sua versão atualizada do Beveridge Report (o documento
que fundou o Estado de bem-estar britânico do pós-guerra), seus
representantes argumentaram que o "medo do crime'º' deveria ser adicionado
à lista de males capitais que as políticas sociais teriam que enfrentar.
18
Veja-se Julian Roberts, "Public Opinion, Crime and Criminal Justice",
Crime and Justice, voL 16 (1992); T. J. Flanagan e D. R Longmire (orgs.),
American View Crime and Justice (Thousand Oaks, CA: Sage, 1996); M.
Hough e J. Roberts, Attitudes to Punishment: Findings from the 1996
British Crime Survey (Londres: Home Office, 1998).
19
Referência ao estupro e morte de Megan Nicole Kanka, de 7 anos de
idade, ocorridos entre as noites de 29 e 30 de julho de 1994, num subúrbio
de Nova Jérsei. As autoridades locais descobriram que lesse K.
Timmendequas, o autor dos crimes, era um ex-condenado por abuso sexual
contra crianças, que vivia na mesma rua em que se situava a residência da
família Kanka. O crime intensificou o debate público a respeito da
notificação compulsória à comunidade acerca da presença de ex-condenados
por crimes sexuais na vizinhança. O debate resultou na aprovação, pelo
então presidente Bill Clinton, em 8 de maio de 1996, da Lei Megan, que
determinou que todos os Estados estabelecessem procedimentos de
notificação às comunidades a respeito da soltura e do local de residência
de ex-condenados por crimes sexuais (N. T.).
20
Jenna Grieshaber, então com 22 anos de idade, foi morta em seu
apartamento, situado na cidade de Albany, estado de Nova Iorque, em
novembro de 1997. O autor do delito, Nicholas Pryor, estava em livramento
condicional, após cumprir dois terços da pena à qual havia sido condenado,
também em razão da prática de crime violento. O movimento que se estruturou
a partir do crime visava proscrever a soltura antecipada (parole). A "lei
Jenna" foi sancionada pelo então governador do Estado de Nova Iorque,
George E. Pataki, em 6 de agosto de 1998, e estabeleceu categorias para
crimes praticados com violência de acordo com, a escala penal, introduziu a
obrigatoriedade de sentenças condenatórias com penas fixas (ao contrario
do critério da indeterminação, em que a sentença estabelecia apenas as
penas mínima e máxima que deveriam ser cumpridas), instituiu a supervisão
estatal de criminosos violentos, por um período de 3 a 5 anos após sua
soltura, entre outras providências igualmente repressivas (N. T.).
21
Alusão a James S. Brady, assessor de imprensa da Presidência dos
EUA e da Casa Branca, gravemente ferido em 30 de março de 1981
83
por John Hinckley, que tentava assassinar o então presidente Ronald
Reagan, também baleado no famoso episódio (juntamente com dois
policiais que faziam sua segurança pessoal). Após o crime, Brady
iniciou campanha nacional pelo controle de armas de fogo. A "lei Brady"
(Brady Handgun Violence Prevention Act), que passou a viger em 28
de fevereiro de 1994, instituiu controles mais severos para a aquisição e
o porte de armas de fogo, como, por exemplo, a pesquisa sobre os
antecedentes criminais dos adquirentes. A segunda parte da· lei,
aprovada em 30 de novembro de 1998, criou um banco de dados,
chamado National Instant Criminal Background Check System
(NICS), a respeito de pessoas proibidas de comprar armas de fogo em
estabelecimentos comerciais licenciados. (N. T.)
22Veja-se F. E. Zimring, "The New Politics of Criminal Justice", in D.
Garland (org.), Mass Imprisonment in the USA (Londres: Sage, no prelo).
23 Muitos grupos de vítimas evitam se envolver com assuntos relacionados
à punição, preferindo manter-se concentrados nas demandas relacionadas
aos direitos das vítimas: compensação, apoio, informação etc. Isto é
s
verdadeiro, por exemplo, no caso daBritain NationalAssociation ofVictim
Support Schemes (agora chamada simplesmente Victim Support). Veja-se P.
Rock, Helping Victims of Crime (Oxford: Clarendon Press, 1990). Nos EUA,
tem havido uma associação mais estreita entre os movimentos pelos direitos
das vítimas e as políticas de "lei e ordem", mas, mesmo aí, as representações
políticas das necessidades das vítimas estão comumente em descompasso
com as preocupações declaradas de vítimas reais: v. R. Elias, Victims Still:
The Política! Manípulation of Crime Victims (Thousand Oaks: Sage, 1993).
Para provas de que vítimas de crimes não são especialmente punitivas em
sua atitude para com o ofensor, v. J. Roberts, "Public Opinion, Crime and
Criminal Justice", Crime and Justice, vol. 16 (1992) e M. Hough e D. Moxon,
"Dealing with Offenders: Popular Opinion and the View ofVictims", Howard
Joumal (1985), vol. 24, pp. 160-175. Iniciativas reparadoras encarnam a
visão da relação entre o agressor e a vítima, que contrasta com a predominante
visão maniqueísta que descrevi.
24
V., por exemplo, a President's Task Force on Victims of Crime, Final
Report (Washington DC: Govemment Printing Office, 1982). As linhas
iniciais do relatório são "algo insidioso aconteceu na América: o crime fez
de todos nós vítimas". O Presidente Reagan ecoou este tema em seu
pronunciamento à nação de 1985, quando disse que "de todas as
mudanças dos últimos 20 anos, nenhuma ameaçou mais nosso senso de
bem-estar do que a explosão da criminalidade violenta. Não é necessário
ser atacado para ser uma vítima. A mulher que precisa correr para o carro
depois de fazer compras à noite é uma vítima. O casal que cobre sua porta

84
de trancas e correntes é uma vítima, assim como a exausta, decente faxineira
que não pode pegar o metrô de volta para casa sem ficar com medo". V
também a declaração do Partido Trabalhista birtãnico de 1995, intitulada
Eve1yone ~· a Victim (Londres: Central Office, 28.mar.95). Sublinhando a
estratégia de combate ao crime do novo trabalhismo, o orador do partido
(e posteriormente Home Secretary) Jack Straw disse que "há não muito
tempo atrás, o crime era visto como algo que só acontecia com o outro.
Agora, particularmente desde a duplicação dos índices de criminalidade
nas últimas décadas, o crime é algo que nos afeta a todos", J. Straw, "The
Criminal Justice Crisis", Criminal Justice Matters, nQ 26, inverno de 96/
97. A Procuradora-Geral da República dos EUA, Janet Reno, disse em
conferência sobre os direitos das vítimas, em 12 de agosto de 1996:
"destino a maior parte das minhas forças para as vítimas, pois elas.
representam a América para mim", citado em B. Shapiro, "Victims &
Vengeance: Why the Victim's Right Amendment is a Bad ldea", The
Nation (10.fev.1997). Mais da metade de estados norte-americanos
emendaram suas Cunstituições, para incluir o idioma do direito das vítimas.
25
Alusão a um dos momentos mais emocionantes do beisebol, no qual o
rebatedor de um time é eliminado se o arremessador (pitcher) do time
adversário consegue contabilizar três strikes (arremesso da bola do pitcher
para o catcher em condições de ser rebatida sem, porém, que o seja). Em
âmbito penal, utilizou-se a metáfora do three strikes and you're out para
batizar a lei aprovada com pioneirismo pelo estado da Califórnia, em 1994,
segundo a qual a terceira condenação (cada qual equiparada a um strike),
dependendo do crime, pode gerar prisão perpétua automática (N. T.).
26
F. E. Züming. Populism, Democratic Govemment, and the Decline of
Expert Authority: Some Reflections on 'Three Strikes'in Califomia. Pacific
Law Joumal 28 (outono de 1996), pp. 243-56. S. Pillsbury. Why are we
lgnored? The Peculiar Place ofExperts in the Current DebateAbout Crime
and Justice. Criminal Law Bulletin, Julho/Agosto 1995, pp. 305-36. A. K.
Bottomley, Crime and Penal Politics: The Criminologists' Dilemma
(Inglaterra: Hull University Press, 1989). A recente promessa do partido
trabalhista de uma política criminal "baseada em provas" marca o
reconhecimento desta tendência predominante e indica a intenção de se
afastar dela, ou, pelo menos, o desejo de ser caracterizada, nas palavras de
Bill Clinton, por sua "sabedoria", bem como por sua "severidade".
27
Os aspectos da política criminal do programa de "retorno ao básico"
de John Major são discutidos em I. Dunbar e A. Langdon, Tough Justice
(Londres, Blackstone, 1998), na p. 118. O Home Secretary daquela época
declarou que "não devemos transigir com teorias que tentam explicar o
crime como resultado de fatores socioeconómicos. Os criminosos (... )

85
devem ser responsabilizados por suas ações e punidos de acordo". V.,
também, os comentários de Charles Murray, Sunday Times, 20 de janeiro
de 1997, e de Jack Straw, The Times, 8 de abril de 1998. Para exemplos
deste movimento nas políticas criminais norte-americanas, v. K. Beckett,
Making Crime Pay (Nova Iorque: Oxford University Press, 1997), p. 49.
28
Para um panorama desse processo nos EUA, v. M. Tonry, Sentencing
Matters (Nova Iorque: Oxford University Press, 1996). A respeito das
tendências similares na Grã-Bretanha, v. R. Hood e S. Shute, "Protecting
the Public: Automatic Life Sentences, Parole and High Risk Offenders",
Criminal Law Review, novembro de 1996, pp. 788-800.
29
Para a discussão a respeito dos esforços do governo britânico voltados
à redução da população carcerária, v. A. E. Bottoms, "Limiting Prison
Use: Experience in England and Wales", Howard Journal (1987), vol.
26, n-º 3, pp. 177-202. Sobre a experiência norte-americana, v. N. Morris e
M. Tonry, Between Prison and Probation (Nova Iorque: Oxford
University Press, 1990). Sobre o crescimento da população prisional dos
EUA depois de 1973, v. A. Blumstein e A. Beck, "Population Growth in
US Prisons 1980-1996", in M. Tonry e J. Petersilia (orgs.), Prisons
(Chicago: University of Chicago Press, 1999). Sobre a recente política
britânica de encarceramento, v. I. Dunbar e A. Langdon, Tough Justice
(Londres: Blackstone, 1998). Para as taxas de encarceramento nos EUA e
na Inglaterra e no País de Gales, cf. Apêndice, Figuras 3 e 4.
30
Para dados relativos ao aumento da população carcerária nos EUA, v.
T. Caplow e J. Simon, "Understanding Prison Policy and Population
Trends" in M. Tonry e J. Petersilia (orgs.), Prisons, Crime and Justice,
vol. 26 (Chicago: Universíty of Chicago Press, 1999), p. 63. Para uma
análise da taxa de prolação de sentenças privativas de liberdade e a
inversão desta tendência, primeiro nos EUA e depois na Inglaterra e no
País de Gales, v. P. A. Langan e D. P. Farrington, Crime and Justice in the
United States and in England and Wales, 1981-1996 Bureau of Justice
Statistics Executive Summary (Washington DC: US Department of Justice,
1997). Os Uniform Crime Reports também demonstram a estável redução
do número de crimes contra o patrimônio, registrados nos EUA de 1982
em diante. Depois de cair e de subir agudamente de novo nos anos 1980,
o número registrado de crimes violentos se reduziu estavelmente depois
de 1992.
31
Na Grã-Bretanha, a idéia de que a "prisão funciona" remanesce contro-
vertida, tendo sido introduzida pelo Home Secretary Michael Howard no
início dos anos 1990, em franca oposição ao entendimento adotado por
seus antecessores, segundo o qual "o encarceramento é um modo caro de
transformar pessoas más em pessoas piores". Para discussões a respeito
86
desta inversão política, v. E. Baker, "From 'Making Bad People Worse' to
'Prison Works': Sentencing Policy in England and Wales in the 1990s",
Criminal Law Forum (1996), voL 7, nn 3, pp. 639-71; Lord Windlesham,
Responses to Crime, vol. 3: Legislating with the Tide (Oxford: Oxford
University Press, 1996); e L Dunbar e A Langdon, Tough Justice:
Sentencing and Penal Policies in the 1990s (Londres: Blackstone, 1998).
No entanto, o valor do encarceramento como método de retribuição e de
contenção está mais estabelecido no debate político agora do que estava
há vinte anos. A abordagem do governo trabalhista a este tema é
deliberadamente ambígua: v. o discurso do Home Secretary Jack Straw,
Making Prisons Work, Prison Reform Trust Annual Lecture, dezembro
de 1998. Como Straw disse em outra ocasião, "reduzir a população
carcerária não pode ser mais importante do que proteger o público". J.
Straw, Open Letter to Penal Affairs Consortium (agosto de 1997). Nos
EUA, políticos têm poucas dúvidas sobre a eficácia do encarceramento
como resposta ao crime.
32
Para uma visão geral, v. P. Rock (org.), The History of Criminology
(Aldershot: Dartmouth, 1994), parte IV.
33
Para os principais exemplos, v. T. Hirschi, Causes of Delinquency
(Berkeley: University of Califomia Press, 1969); M. Gottfredson e T. Hirschi,
A General Themy ofCrime (Stanford, CA: Stanford University Press); J. Q.
Wilson, Thinking About Crime (1983); C. Tittle, Control Balance: Towards
a General Theory of Deviance (Boulder, CO: Westview Press, 1995); R. V.
Clarke, "Situational Crime Prevention: lts Theoretical Basis and Practical
Scope", in M. Tonry e N. Morris (orgs.), Crime and Justice: An Annual
Review of Research, vol. 4 (1983), pp. 225-56. Para uma versão mais
politizada, v. W. Bennett, J J Dilulio Jr., e J. P. Walters, Body Count: Moral
Poverty and How to WinAmericas War Against Crime and Drugs (Nova
Iorque: Simon & Schuster, 1996).
34
Sobre a atividade de rotina, v. L. E. Cohen e M. Felson, "Social Change
and Crime Rate Trends: A Routine Activity Approach", in American
Sociological Review (1979), vol. 44, n9 4, pp. 588-608, e M. Felson, Crime
and Everyday Life, 2~ ed., (Thousand Oaks, CA: Pine Forge Press, 1998).
Sobre estilo de vida e vitimização, v. M. Hindelang, M. Gottfredson e J.
Garafalo, Victims of Personal Crime (Cambridge, MA: Ballinger, 1978); e
M. Maxfield, "Lifestyle and Routine Activities Theories of Crime:
Empirical Studies of Victimization, Delinquency and Ojfender Decision-
Makíng", Joumal of Quantitative Criminology (1987), voL 3, nn 4, pp.
275-82. Sobre escolha racional, v. R V. Clarke e D. Comish (orgs.), The
Reasoning Criminal: Rational Choice Perspectives on Ojfending (Nova
Iorque: Springer-Verlag, 1986).

87
35
Este tipo de programa existe em nível nacional nos EUA e possui várias
frentes de atuação, todas relacionadas, de alguma forma, ao aumento da
segurança do público e/ou à diminuição da violência. Há, por exemplo, o
programa desenvolvido pela National Center for Missing & Exploited
Children (Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas) em
parceria com a Microsoft, cujo objetivo é premiar as cidades norte-americanas
que tenham desenvolvido medidas tendentes a aumentar a segurança de
crianças no que concerne ao uso da internet (Cyber Safe City), bem como
de incentivar as cidades nas quais tais medidas ainda não tenham sido
adotadas. Outro exemplo é o do programa Safer City 101, cujo objetivo é
de promover campanhas relacionadas à segurança nas rodovias
(diminuição de acidentes), e assim por diante (N. T.).
36
No original, Crime Prevention through Environmental Design. A
expressão parcialmente traduzida, na verdade, é o nome de uma espécie
de filosofia arquitetônica e de ocupação do espaço, que visa informar a
construção de edifícios, bairros, espaços públicos em geral, de maneira a
aumentar a segurança das pessoas. No site do Crime Prevention through
Environmental Design (www.cpted-watch.com), é possível colher as
quatro estratégias de environmental design: a) vigilância natural
(construção de espaços nos quais as pessoas sejam facilmente
observáveis); b) controle territorial (circunscrição de certas áreas, com o
objetivo de demarcação de território); c) controle de acesso (limitação do
espaço privado, para evitar a entrada de criminosos que, por exemplo,
estejam fugindo da polícia na rua); e d) dispositivos de seguranças
(trancas, fechaduras etc., empregadas com o objetivo de impedir a entrada
de pessoas indesejadas) (N. T.).
37
Sobre o assunto na Grã-Bretanha, v. A. Crawford, The Local
Governance of Crime (Oxford: Oxford Universíty Press, 1997) e Crawford,
Crime Prevention and Community Safety (Londres: Longman, 1998). A
respeito do panorama dos EUA, v. R. C. Ellickson, "Controlling Chronic
Misconduct in City Spaces: Of Panhandlers, Skid Rows, and Public-
Space Zoning", Yale Law Joumal (1996), 105: 1165; J. R. Pack, "BIDs,
DIDs, SIDs, SADs: Private Governments in Urban America", The
Brookings Review, outono de 1992, pp. 18-21. T. M. Seamon, "Private
Forces for Public Goocf', Security Management, setembro de 1995, pp.
92-7. Para uma crítica pessimista, v. M. Davis, "Beyond Blade Runner:
Urban Control - the Ecology of Fear', Open Magazine Pamphlet Series
# 23 (1992), Open Magazine: Open Media.
38
Para exemplos, v. D. Garland, "Limits of the Sovereign State", British
Journal of Criminology (1996), vol. 36, n-º 4; e M. H. Moore, "Public
Health and Criminal Justice Approaches to Prevention", in M. Tonry e

88
D. P. Farrington (orgs.), Building a Safer Society (Chicago: Universíty of
Chicago Press, 1995), pp. 237-62.
39
Sobre a indústria de segurança, v. T. Jones e T. Newburn, Private
Security and Public Policing (Oxford: Clarendon Press, 1998). L.
Johnston, The Rebi11h of Private Policing (Londres: Routledge, 1992) e
C. Shearing, "The Relatio11 Between Public a11d Private Policing", i11
M. Tonry e N. Morris (orgs.), Modem Polici11g (Chicago: University of
Chicago Press, 1992). Sobre as prisões privadas, v. R. Harding, "Private
Prisons", in M. Tonry (org.), The Handbook of Crime and Punishment
(Nova Iorque: Oxford University Press, 1998).
40
Veja-se J. W. Raine e M. l Wilson, Managing Criminal Justice (Londres:
Harbester Wheatsheaf, 1993); C. fones, "Auditing Criminal Justice", British
Journal of Criminology (1993), voL 33, n9 2, pp. 187-202; A. J. Fowles,
"Monitoring Expenditure on the Criminal Justice System: The Search for
Control", The Howard Joumal (1990), vol. 29, n9 2, pp. 82-100; N. Lacey,
"Govemment as Manager, Citizen as Consuma: The Case of the Criminal
JusticeActof 1991", TheModemLaw Review(1994), 57: 534-54; S. Walker,
Taming the System (Nova Iorque: Oxford University Press, 1993); W.
Hydebrand e C. Seron, Rationalizing Justice (Albany: SUNY Press, 1990).
41
O caso Wíllie Horton, nos EUA, é talvez o melhor exemplo disto; veja-se D.
C. Anderson, Crime and the Politics of Hysteria (Nova Iorque: Tunes Books,
1995). Na Grã-Bretanha, escândalos recorrentes sobre os "bandidos
afiançados" e fugas das prisões produziram a mesma reação. O fenômeno do
policiamento "tolerância zero" - esta mesma expressão indica a reação às
políticas mais brandas - é ao mesmo tempo o contraponto político e
organizacional das políticas que foram amplamente adotadas, nos anos 1970 e
1980, em face das altas taxas de criminalidade. A popularidade de sentenças
privativas de liberdade e das restrições à aplicação da fiança, bem como à
soltura antecipada, são reativas na mesma medida. (N. T.: Willie Horton, nascido
em 12 de agosto de 1951, na cidade de Chesterfield, Carolina do Sul, cumpria
pena de prisão perpétua por ter roubado e assassinado Joseph Fomnier, um
frentista então com 17 anos de idade, no dia 26 de outubro de 1974, na cidade
de Lawrence, estado de Massachusetts. Willie foi beneficiado, em 6 de junho
de 1986, por um programa - razoavelmente apoiado por vários especialistas e
políticos, entre os quais o governador de Massachusetts e candidato à
presidência dos EUA pelo Partido Democrata nas eleições de 1988, Michael
Dukakis - que previa saídas periódicas da cadeia para visitação à familia. Willie
não mais retomou para a cadeia e, meses depois de sua saída, em 3 de abril de
1987, praticou um roubo contra Clifford Bames, na cidade de Oxon Hill, estado
de Maryland, bem como estuprou a noiva deste. Após condenar Willie Horton
a duas penas de prisão perpétua, acrescidas de 85 anos de reclusão, o juiz local

89
se recusou a mandá-lo de volta a Massachusetts, de onde ele se evadira, pois,
conforme suas próprias palavras, não estava preparado para correr o risco de
vê-lo solto novamente pelo mesmo programa).
42
Para uma discussão a respeito, v. A. E. Bottoms e R. H. Prestou, The
Coming Penal Crisis (Edimburgo: ScottishAcademíc Press, 1981). Em 1980,
o secretário permanente do Home Office britânico disse num seminário do
departamento que "numa visão desalentadora, nós parecemos estar
presos numa teia de forças negativas e de resultados negativos. O serviço
policial e prisional exige mais pessoal e mais dinheiro. Mas o crime aumenta
com constância, se toma pior, e a população prisional aumenta". Citado
in P. Rock, "The Organization of a Home Office Initiative", European
Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice (1994), 2(2), 142.
V. também A. E. Bottoms e S. Stevenson, '"What Went Wrong?': Criminal
Justice Policy in England and Wales, 1945-70", in D. Downes (org.),
Unravelling Criminal Justice (Londres: Routledge, 1992). O ex-diretor de
pesquisa daLEAA (Law EnforcementAlliance ofAmerica), Gerald Chàplan,
ofereceu uma avaliação igualmente derrotista da política criminal norte-
americana em 1981: "em primeiro lugar, nós temos mais crime do que em
qualquer outro lugar do mundo, mais a cada ano, e muito, muito mais do
que tivemos em 1964, quando o Senador Goldwater se tomou o primeiro
candidato à presidência a argumentar que o governo federal deve fazer
algo a respeito dos crimes nas ruas. Em segundo lugar, boa parte do aumento
da criminalidade ocorreu em períodos de pleno emprego e de prosperidade
econômica sem precedentes, bem como durante o período em que o governo
federal lançou um novo, multibilionário,programa de combate ao crime( ...).
Hoje, virtualmente ninguém - acadêmicos, operadores e políticos - ousa
adiantar um programa que prometa reduzir substancialmente o crime num
futuro próximo", citado in J. Rosch, "Crime as na issue in American
Politics", in E. S. Fairchíld e V. J. Webb (orgs.), The Politics of Crime and
Criminal Justice (Nova Iorque: Sage, 1985), p. 19.
43
M. Foucault, "Structuralism and Post-Structuralism: An Interview
with Michel Foucaulf' (com G. Raulet), in Te/os, n2 55, primavera de 1983,
pp. 195-211.
44
Sobre a idéia de uma "nova penalogià', v. M. Feeley e J. Simon, "The New
P_enology: Notes on the emerging strategy of corrections and its
implications', Criminology (1992), vol. 30, n24, pp. 449c74. Para uma discussão
sobre modernismo e pós-modernismo em âmbito penal, v. D. Garland, "Penal
Modemism and Postmodernism", in T. Blomberg e S. Cohen (orgs.),
Punishment and Social Control (Nova Iorque: Aldíne de Gruyter, 1995).
45
Veja-se S. Hall et ai., Policing the Crisis: Mugging, the State and Law
and Order (Londres: MacMíllan, 1978); F. A. Allen, The Decline of the
90
Rehabilitative Ideal (New Haven: Yale University Press, 1981); A E.
Bottoms, "Neglected Features of Contemporary Penal Systems", in D.
Garland e P. Young (orgs.), The Power to Punish (Aldershot: Gower, 1983);
e Bottoms, "The Philosophy and Politics of Pimishment and Sentencing",
in C. Clark e R Morgan (orgs.), The Politics of Sentencing Reform (Oxford:
Clarendon Press, 1995); S. Cohen, Visions of Social Conflvl (Oxford: Polity
Press, 1985); M. Feeley e l Simon, "The New Penology: Notes on the
emerging strategy of corrections and its implications", Criminology (1992),
voL 39, nº 4, pp. 449-74; J. Simon e M. Feeley, "True Crime: The New
Penology and the Public Discourse on Crime", in T. Blomberg e S. Cohen
(orgs.), Punishment and Social Contrai (Nova Iorque: Aldine de Gruyter,
1995); P. O'Malley, "Post-Keynesian Policing", Economy and Society
(1996), 25(2), pp. 137-55; "Risk, Power; and Crime Prevention", Economy
and Society (1992), 21, pp. 252-75, "Volatile and Contradictory
Punishment", Theoretical Criminology (1999), 3(2), pp. 175-96; A.
Crawford, The Local Govemance of Crime (Oxford: Oxford University
Press, 1997); E. Girling, l Loader e J. R. Sparks, Crime and Social Order in
Middle England (Londres: Routledge, 2000); S. Scheingold, The Politics
of Street Crime (Filadélfia: Temple University Press, 1991), "Politics, Public
Policy, and Street Crime", ANNAIS, AAPSS, maio de 1995, e "Constructing
the New Political Criminology: Power; Authority and the Post-Liberal
State", in Law ànd Social Inquiry (no prelo). O presente livro surgiu de
minha adesão a estes trabalhos e outros semelhantes.
46
Sobre a relação entre as escolhas dos atores e os campos sociais nos
quais eles as exercem, sob a mediação do habitus do ator, v. P. Bourdieu,
"Social Space and Symbolic Power", Sociological Theory, 7(1), junho
de 1989. Para um depoimento diverso acerca deste tema sociológico
fundamental, v. A. Giddens, The Constitution of Society (Oxford: Policy
Press, 1984).
47
O termo "categorias sociais operantes" foi retirado de P. Hirst, "The
Concept of Punishmenf', in R. A. Duff e D. Garland (orgs.), A Reader on
Punishment (Oxford: Oxford University Press, 1994).

91
2. Justiça criminal moderna e o Estado
penal-previdenciário

Nas décadas anteriores a 1970, o controle do crime na Grã-


Bretanha e nos Estados Unidos tinha uma estrutura institucional
assentada, e se pautava por um arcabouço intelectual definido. Suas
práticas características e as organizações e crenças que o respalda-
vam surgiram depois de um longo processo de desenvolvimento,
durante o qual as modernas estruturas da justiça criminal foram
primeiramente erigidas em sua forma liberal clássica e, em segui-
da, orientadas para um programa de ação de cunho correcionalista.
A exemplo de qualquer estrutura que tenha sido construída
e reconstruída por um longo período de tempo, seus vários com-
ponentes datavam de diferentes épocas; havia um ecletismo his-
tórico, e não uma pureza de um único estilo. As fundações insti-
tucionais do campo do controle do crime - as agências especia-
lizadas da polícia, da acusação, dos tribunais e das prisões -
contavam com mais de 150 anos de idade, assim como os proce-
dimentos legais e os princípios penais liberais que informavam
suas atividades e forneciam suas ideologias oficiais. Acima disto
havia uma mais recente superestrutura, criada durante o século
XX, com seus singulares motes correcionalistas (reabilitação, tra-
tàmento individualizado, sentenças indete1minadas, pesquisa crimi-
nológica) e as práticas especializadas que os materializavam (li-
vramento condicional, liberdade vigiada, juizados de menores,
programas de tratamento etc.). O resultado era uma estrutura
"penal-previdenciária" híbrida, que combinava o legalismo libe-
ral do devido processo legal e da punição proporcional com um
compromisso correcionalista de reabilitação, bem-estar e o saber
criminológico especializado. Em 1970, os contornos básicos deste
estilo penal-previdenciário estavam bem estabelecidos, e parecia
haver uma dinâmica consolidada de mudança progressiva na dire-
ção de um correcionalismo cada vez maior 1.

93
Isto não significa negar a existência, no campo da justiça cri-
minal, de contestações internas e de uma inclinação à ruptura. Havia
escândalos e crises episódicas, problemas do dia-a-dia, falhas re-
correntes, oposição crítica de determinados grupos. Os reformistas
reclamavam constantemente no sentido de que o progresso era ge-
ralmente muito lento. Estes percalços, porém, ocorriam num con-
texto de amplo consenso profissional sobre o enquadramento bási-
co dentro da qual o controle do crime deveria operar, bem como
num contexto de compartilhamento dos objetivos e valores que de-
veriam estar na base da justiça criminal. As tensões básicas que
subjazem ao campo - entre objetivos penais e aspirações relativas
do bem-estar, princípios penais e afümações criminológicas, a fun-
ção policial e a missão do trabalho social, os direitos do acusado e o
interesse público - eram tensões que há muito estavam enlaçadas
nas práticas profissionais e nos compromissos conceituais que cons-
tituíam o tecido de qualquer instituição.
Nos anos 1960 e 1970, o tipo de literatura dos partidos políticos
demonstrava a extensão deste consenso, bem assim os relatórios ofi-
ciais e depoimentos políticos da época, que falavam em "moderna
teoria penal" de forma tal que assumiam a existência, o conheci-
mento e a ampla aceitação de tal coisa. Havia uma filosofia oficial
em curso: uma estrutura de pensamento da qual a política emergia,
dentro da qual ocon-ia o debate sério e para a qual a ação prática
estava orientada2 .
É verdade que o atributo da estabilidade deste sistema ficou
disfarçado, durante boa parte do período pós-guerra, pelo fato de
que o programa correcionalista estava sempre em processo de uma
realização mais completa. Os compromissos centrais do seu plano
de reforma- sentenças individualizadas, sentenças indeterminadas,
classificação, programas de tratamento - nunca foram completa-
mente implementados; os proponentes de tais reformas se consi-
deravam reformistas modernos colocados contra estruturas
estabelecidas de um sistema anacrônico, legalista e retributivo. No
entanto, no início da década de 1970, estes reformistas represen-
tavam o sistema, e a maior parte das políticas e práticas oficiais
relacionadas ao controle do crime foi orientada ou influenciada
por seu conhecimento e por seus objetivos.

94
Nos anos 1960, tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha, o
previdenciarismo penal ditou o consenso, ou ao menos a ten-
dência majoritária, de todos os principais grupos envolvidos na
justiça criminal, bem como o apoio entusiástico de funcionários
do governo, de profissionais do trabalho social e das elites liberais.
A idéia de "progresso na reforma penal" era convencional e inteli-
gível, porque capturava o senso de implementação gradual de um
programa progressista cujos postulados eram amplamente acei-
tos e respeitados 3 . Precisamente porque o campo estava bem
consolidado, e suas práticas e cultura arraigadas, as transforma-
ções que ocorreram a partir de então são tidas como muito
perturbadoras.
As práticas penais-prevideciárias também estavam inseridas
num contexto mais amplo. Sua estrutura básica e funcionamento
estavam enraizadas nas diferenciadas práticas institucionais da so-
ciedade moderna, e seus programas e ideologias de trabalho eram
elementos integrantes do Estado de bem-estar do pós-guerra, bem
como de sua democracia social. A solidez e o arraigamento deste
conjunto de instituições, no início dos anos setenta, são o que fazem
da transformação que viria acontecer um problema para a análise
histórica e sociológica. Poderíamos esperar que uma estrutura tão
assentada como esta induziria a uma inércia forçada contra mudan-
ças - ou, de qualquer forma, contra a mudança radical, estrutural,
que não fizesse parte dos próprios programas institucionais de
autodesenvolvimento. Outrossim, poder-se-ia esperar que os gru-
pos e agências cujos poderes profissionais e status derivassem des-
tas práticas penais-previdenciárias tenderiam a proteger suas práti-
cas de trabalho mediante a aposição de séria resistência à mudança
radical. Finalmente, dados os estreitos liames entre o controle do
crime, ajustiça criminal e instituições sociais contíguas (tais como
instituições previdenciárias, o mercado de trabalho e os controles
sociais das vizinhanças e comunidades), poder-se-ia esperar que
qualquer grande mudança neste campo só seria possível se acom-
panhada de mudanças correlacionadas em outras instituições e prá-
ticas sociais.
Para explicar o processo de mudança que se operou neste
campo, devemos começar compreendendo, com certo nível de
detalhamento, quais práticas ou instituições estavam sendo trans-

95
formadas. Em uma rede internamente diferenciada e multidimensional
de práticas e de instituições, a mudança jamais é uma questão de tudo
ou nada. Então, conquanto seja tentador simplificar a explicação do
processo - "da reabilitação ao risco", "regressões penais", "a nova
penalogia" ou "a chegada do pós-modernismo" -, a natureza real da
mudança não é tão simplória e clara. Para melhor entender esse proces-
so de mudança e de resistência, e para melhor situar as dimensões e os
locais de transf01mação, precisamos iniciar com o relato mais minuci-
oso da moderna justiça criminal e do controle do crime, assim como
das condições sociais de existência de ambas. É somente através
da perfeita compreensão do passado que se pode esperar enten-
der o que há de genuinamente novo no presente.
Modernidade penal: a emergência de um Estado de
justiça criminal
As fundações do controle do crime no século XX foram
lançadas séculos antes, quando as conhecidas instituições da justiça
criminal moderna surgiram na forma de elementos integrantes do
longo processo que desaguaria na formação do Estado-nação. No
início deste processo, na condição de detentores da contestada e
instável autoridade que caracterizava a Europa no limiar da Idade
Moderna, lordes soberanos vitoriosos sustentavam sua promessa
de pax et jus titia aos seus súditos, enquanto seus soldados lutavam
para pacificar o território recentemente conquistado e para impor a
"paz do Rei" 4. A garantia de "lei e ordem" (que originalmente signi-
ficava a supressão de poderes alternativos e de fontes alternativas
de justiça, assim como o controle da conduta criminosa e desordeira)
era, pois, desde o início, um aspecto crucial do poder soberano. A
"aplicação da lei" era, naquele contexto, uma questão de nobreza e
de governo político. Tratava-se do processo através do qual se im-
punha a vontade soberana do Rei contra seus inimigos e contra os
súditos rebeldes ou que não respeitassem suas leis. Somente tem-
pos depois a aplicação da lei viria a denotar o sistema estatal de
busca e punição de criminosos. Nossa tendência moderna de enten-
der a "aplicação da lei" como sinônimo de "controle do crime" reve-
la o quanto se compreende o Estado como a instância central para o
tratamento do crime.
Do final do século XVIII ao XIX, o policiamento, a acusa-
ção e punição de criminosos se tornou atividade cada vez mais
96
monopolizada pelo Estado, embora importantes distinções entre
o governo central e governos locais fossem preservadas até os
dias atuais na Grã-Bretanha e nos EUA Disputas privadas e danos
praticados aos indivíduos foram reconstituídos na forma de as-
suntos de interesse público, que deveriam ser julgados nas cortes
criminais. Vinganças privadas e as alegações de indivíduos que
houvessem sido lesados ou feridos foram gradualmente incorpo-
radas aos processos da justiça estatal, na medida em que a acusa-
ção pública paulatinamente proscreveu as ações privadas. Mais
tarde, com a expansão da democracia nos séculos XIX e XX, este
poder soberano se transformou em poder "público". A lei passou a
traduzir a "vontade do povo" e de seus representantes, e, muito
embora continuasse a ser aplicada pelas instituições estatais, estas
agora deveriam se guiar mais pelo "interesse público" do que pelas
vontades das elites políticas ou de indivíduos poderosos.
À medida que o Estado-nação alijou do policiamento e dopo-
der punitivo as autoridades religiosas e seculares concorrentes e
concentrou-os em novas instituições da justiça criminal, as institui-
ções da polícia e da pena gradualmente assumiram seu singular for-
mato moderno. O policiamento deixou de ser uma atividade alta-
mente dispersa, confiada a amadores e empregados privados, para
tomar-se tarefa desempenhada por agentes treinados, integrantes
de uma organização especializada que fazia parte do Estado. O pro-
cesso de criminosos cessou de ser uma forma privada de ação e se
tomou uma atividade estatal, levada a termo em nome do "povo".
As punições gradualmente perderam seu caráter local e passaram a
ser mais firme e unif01memente reguladas por autoridades estatais.
Assim, o sistema moderno de captura, acusação e punição
de violadores da lei penal se tomou especializado e, ao mesmo
tempo, diferenciado, constituindo parte do aparato do Estado
moderno. Ao longo do tempo, veio a ser administrado por bu-
rocracias profissionais, por instituições úteis, por leis e por san-
ções, especialmente designadas para este propósito. Estes pro-
cessos históricos de diferenciação, estatização, burocratização
e profissionalização são as características fundamentais do que po-
demos chamar de "modernização" do controle do crime e da justiça
criminal5.

97
O problema da ordem e o caminho não trilhado
Na perspectiva mais ampla, estas eram novas formas de puni-
ção e de controle, adaptadas às singulares condições da modernida-
de, que desalojaram os modos tradicionais de controle, tornados
ineficazes ou intoleráveis. No entanto, por trás desta estrutura de
justiça criminal, e induzindo sua criação, havia um problema históri-
co específico sobre a ordem, próximo àquele descrito por Thomas
Hobbes em sua justificação da lei e da autoridade estatal 6.Ahistória
da justiça criminal do início da Idade Moderna - como a história do
próprio Estado - é a história da luta entre poderes rivais, da qual
surgiu um Estado-Leviatã, capaz de suprimir a violência e a desor-
dem. Ao longo do tempo, à medida que este poder emergente ga-
nhou ceiieza e legitimidade, sua vontade soberana se tornou a lei e a
justiça. A violenta imposição da lei do Leviatã e a pacificação forçada
dos inimigos e dos súditos vieram, com o tempo, a ser a "pacífica"
(embora ainda violenta) manutenção da ordem e da provisão de se-
gurança a todos os súditos.
Nas democracias liberais, a capacidade estatal de impor "lei e
ordem" veio a ser vista não como um poder hostil e ameaçador, mas
como uma obrigação contratual, devida pelo governo democrático
aos cidadãos respeitadores da lei. A "garantia" de lei e ordem, de
proteção ao cidadão contra a violência, o crime e a desordem, se
tornou um dos benefícios públicos cruciais conferidos ao povo pelo
Estado. Neste processo, a natureza do controle do crime lentamente
deixou de ser uma responsabilidade dos cidadãos e da sociedade civil
para se transformar numa especialidade executada, de forma ampla-
mente monopolística, pelos mecanismos estatais de aplicação da lei.
Ao estabelecerem agências estatais especializadas, cujo méto-
do principal de controlar o crime era a acusação e punição de crimi-
nosos individuais, as sociedades modernas se afastaram de um
modelo alternativo de regulação que tinha sido praticado nas cidades
européias, no início da Idade Moderna. A idéia de "polícia", naquele
período, referia-se não à agência especializada que surgiu no século
XIX, mas a um programa muito mais amplo de regulação detalhada,
perseguido pelas autoridades urbanas, cujos esforços se voltavam à
criação de um ambiente ordenado para as trocas mercantis e para o
comércio. O objetivo daquele tipo de regulação "policial" era pro-
mover segurança e tranqüilidade pública, de modo a assegurar a
98
eficiência do comércio e da comunicação entre as cidades, a au-
mentar a riqueza, a saúde e a prosperidade da população. Para estes
fins, as autoridades municipais promulgaram portarias sobre a ins-
peção de pesos e medidas, os censos populacionais, a iluminação
das ruas, as estradas e edificações, o comércio e a alimentação,
chegando ao ponto de especificar os modos e vestimentas apropri-
ados aos cidadãos. Este corpo de regulação administrativa apenas
incidentalmente se preocupava com o crime, mas, no final do
século XVIII, Patrick Colquhoun se aproveitou daquelas idéias
para articular um modelo de controle do crime que pudesse en-
frentar as crescentes taxas de criminalidade então verificadas
em Londres e em outras grandes cidades 7 .
As propostas de Colquhoun visavam conservar as práticas
regulatórias urbanas do final do século XVIII e, ao mesmo tempo,
fortalecê-las e racionalizá-las, adaptando-as aos novos desafios do
capitalismo comercial, bem como ampliá-las através da criação de
uma organização centralizada com funcionários de tempo integral.
Este modelo alternativo engendrou uma forma de regulação enfa-
ticamente preventiva - voltada tanto à indigência quanto ao crime
- e uma concepção mais genérica e indiferenciada das agências
responsáveis pelo controle do crime e pela manutenção da ordem.
Nesta visão, o controle do crime era de responsabilidade difusa,
amplamente compartilhada, envolvendo a regulação estrita de ati-
vidades sociais e econômicas, vigilância informal e a evitação de
oportunidades para a prática de crimes. O modelo de Colquhoun
certamente abrangia a identificação e a persecução de criminosos,
além de ressaltar a necessidade de uma agência especializada na
organização destas funções. Todavia, em vez de identificar o cri-
me com a criminalidade de indivíduos específicos, o modelo assu-
mia que o crime era uma conseqüência natural da tentação, larga-
mente disseminada em todas as classes mais baixas e intimamente
relacionada com a ociosidade e a indigência. A resposta estratégi-
ca não era acusar e punir indivíduos, mas focar na prevenção das
oportunidades de prática do crime, bem como policiar situações de
vulnerabilidade 8.
Hoje em dia, Colquhoun é lembrado não por sua visão de
regulações diferenciadas - uma visão enraizada nos estilos de
governança municipal do século XVIII-, mas como um reformador
99
pioneiro da polícia, cujos escritos auxiliaram a criação da moderna
força policial, que começou a surgir na década de 1820. A ironia
desta falsa memória é que o desenvolvimento de uma "nova polícia"
efetivamente marcou o início de mecanismos modernos e diferenci-
ados de controle do crime e o desaparecimento do estilo de gover-
nança que Colquhoun advogava9 . Esta incompreensão acerca da
significação dos postulados de Colquhoun é um testemunho da ex-
tensão do domínio exercido pelas modernas instituições da justiça
criminal em nossa percepção do que é e do que deve ser o controle
do crime. Evidentemente, não foi acidental a substituição do modelo
de Colquhoun por um especializado sistema estatal emergente. A
evolução histórica da justiça criminal foi parte de um amplo e pode-
roso processo de modernização, que testemunhou o desenvolvimento
de diferenciações estruturais, organizações burocráticas, fortes agên-
cias estatais e a profissionalização na maior parte dos campos da
vida social moderna. Mais do que isto, o polidamento generalizado
preconizado por Colquhoun era visto com suspeição pelos liberais
por causa de sua associação com os regimes absolutistas da Europa
continental 10. No entanto, o fato de existir um modelo alternativo de
controle do crime no momento histórico da emergência de nossas
instituições modernas deve nos ensinar duas lições. Deve nos adver-
tir que o atual estado de coisas não foi de forma alguma inevitável, bem
como nos alertar para as características singulares do campo institucional
que, de fato, veio a se desenvolver. Num tempo em que a conjuntura
"moderna" está, mais uma vez, sendo objeto de questionamento, tais
lições se tornam particularmente pertinentes.
Na Grã-Bretanha e nos EUA do século XIX, as novas agências
do Estado de justiça criminal trabalhavam lado a lado com os meca-
nismos de vigilância e de controle do crime da sociedade civil 11 . Ao
longo do tempo, entretanto, as formas tradicionais de justiça priva-
da foram gradualmente reduzidas em sua força e importância. As
acusações privadas diminuíram em número, e os grupos·de acusa-
ção de criminosos se tornaram obsoletos. Forças policiais privadas
encolheram à medida que a polícia pública estendia sua cobertura e
autoridade. Cada vez mais, os cidadãos dirigiam suas reclamações
ao Estado, em detrimento da organização de reações privadas ou da
busca de iniciativas em sua própria defesa. Entrementes, a polícia
pública evoluiu de um instrumento estatal, que protegia os interes-

100
ses do Estado e da elite proprietária, para se tomar um autêntico
serviço público, receptor de reclamações de cidadãos individuais e,
ao menos em tese, provedor de segurança e de proteção para toda a
população.
Na metade do século XX, as forças policiais públicas em am-
bos os países ocuparam posição dominante no campo da seguran-
ça. A reação normal do público à vitimização passou a ser a de
comunicar o fato à polícia. À medida que a provisão pública se
expandia, as iniciativas individuais ou comunitárias de controle
do crime se atrofiavam. É claro que as pessoas continuavam a com-
prar trancas para suas portas, a atravessar as ruas para evitar o
encontro com pessoas suspeitas e, às vezes, a aplicar a justiça pri-
vada aos criminosos flagrados no ato. No entanto, sua disposição de
intervir ativamente se esvaiu com o tempo. A presença de profissio-
nais tendia a desarmar as pessoas e a aliviá-las do sentimento de que o
controle do crime era sua responsabilidade. O crime se tomou algo
sobre o que "as autoridades" deveriam tomar alguma providência, um
problema que os profissionais eram pagos para resolver 12.
Esta fórmula de controle do crime - a qual, como na maioria
das instituições modernas, reduzia o papel da ação informal, por
parte do público, e privilegiava o papel de profissionais e de funci-
onários do governo - ficou gradualmente entrincheirada no curso
do século XX 13 . A razão disto é que foi amplamente percebida como
efetiva. Apesar das novidades trazidas pela urbanização, pela in-
dustrialização e pelo advento da sociedade comercial, e a despei-
to das guinadas políticas associadas à democratização, ajustiça
criminal estatal logrou reivindicar o reconhecimento do seu su-
cesso. Na primeira metade do século XX, com sua nova polícia,
sua lei criminal reformada, sua rede de prisões e reformatórios e
sua nova capacidade burocrática de processar registros de ca-
sos, colecionar informações e prover dados estatísticos, as insti-
tuições da justiça criminal britânica e norte-americana granjea-
ram a posição de reivindicar vitórias em sua guerra contra o cri-
me. O fenômeno da queda nas taxas de criminalidade - taxas que
permaneceram em níveis historicamente baixos até os anos 1950
- foi creditado ao sistema de justiça criminal então recentemente
concebido 14 .

101
Na verdade, porém, talvez seja mais exato creditar esta con-
quista à resiliência dos controles sociais nas comunidades de tra-
balhadores, ao impacto da disciplina laboral, à doutrina religiosa e
às campanhas morais das igrejas e das organizações de reforma.
As constrições da consciência e de conduta propagadas pelas ins-
tituições da sociedade civil- as igrejas e sociedades beneficentes,
as entidades filantrópicas e de aconselhamento, as sociedades de
amigos, sindicatos, associações de trabalhadores e clubes -
proveram uma legitimação orgânica e vigorosa às mais intensas e
intermitentes ações do Estado policial. Bem assim, também o fize-
ram os entes de controle mais íntimos, como a família, os bairros e
os locais de trabalho. A maior parte das entidades sociais daquele
período e o novo aparato da aplicação da lei tendiam a se alimen-
tar e a se legitimar mutuamente, por mais hostilidade e suspeição
que houvesse entre algumas comunidades de trabalhadores e imi-
grantes e os agentes estatais que as policiavam15 .
Dos anos noventa do século XIX até os sessenta do século
XX, sempre que fortes aumentos no número de crimes praticados
começavam a questionar esta percepção, acreditava-se piamente
que o Estado de justiça criminal seria capaz de vencer a guerra
contra o crime ou, ao menos, de reverter a corrente de crime e
de desordem que a industrialização trouxe consigo, com o seu
nascimento. Por mais duvidosa que tal percepção, retrospecti-
vamente, tenha se tornado, nas primeiras décadas do século XX
as credenciais da justiça criminal moderna pareciam estar bem
estabelecidas, expressando um otimismo que se revelava no
programa de expansão, diferenciação e reforma então implan-
tado. O programa correcionalista de reforma penal, que iria
caracterizar a maior parte da mudança nos sessenta anos se-
guintes, foi lançado em um contexto de baixas taxas de crimi-
nalidade e de confiança disseminada nas instituições estatais
de controle do crime. Foi a partir desta confiança da erafin de
siecle que nossas modernas instituições penais-previdenciárias
surgiram, com suas estratégias e crenças singulares 16 .
Provavelmente estas eram falsas credenciais. Com maior pro-
babilidade, o sucesso da polícia e das prisões foi vicariante, de-
pendente de outras forças e contextos sociais. Era provável que as
façanhas da justiça criminal estatal, relacionadas ao controle do
102
crime, dependessem mais da contribuição dos controles informais
daqueles atores e agências privadas do que da retirada do Estado
do negócio do controle do crime 17. Sem sombra de dúvida, a faça-
nha era percebida como algo institucional, era creditada como tal, e
se incorporou ao pensamento oficial ao longo de boa parte do sécu-
lo. Nos idos dos anos setenta do século XX, a crença ainda era, de
acordo com um manifesto eleitoral britânico, a de que "o crime nos
preocupa a todos, mas somente o governo pode adotaT medidas
efetivas" 18 .
Assim, a fórmula estabelecida do moderno Estado de justiça
criminal - o credo da modernidade penal - entendia que o contro-
le do crime deveria ser uma tarefa especializada, profissionalizada,
de "aplicação da lei", orientada à perseguição e acusação de cri-
minosos. Não havia necessidade de uma política que encorajasse a
ação privada. Não havia necessidade de envolver o público ou as
vítimas. Não havia necessidade de enfatizar a prevenção social ou
situacionaL Tudo o que se exigia era um enquadramento de ameaças
legais e de respostas reativas 19. Talvez estivéssemos historicamente
e sociologicamente predispostos a pensar daquela forma. Afinal de
contas, este credo é reconhecidamente uma versão criminológica
daquilo que James C. Scott chamou de alta modemidade: uma ide-
ologia que acredita que os problemas sociais são mais bem adminis-
trados por burocracias dirigidas pelo Estado, compostas por espe-
cialistas e racionalmente voltadas para tarefas específicas. Esta ati-
tude modernista pensa em mecanismos tecnologicamente refina-
dos, verticais, que minimizam o envolvimento das pessoas comuns
e dos processos sociais espontâneos e maximizam o papel do saber
especializado e do "conhecimento governamental". Independente-
mente de estarmos ou não predispostos a seguir este caminho, as
práticas caracteristicamente modernas que se instalaram naquela
época permaneceram incontrastadas até recentemente20 . As insti-
tuições, ideologias e práticas penais-previdenciárias que se desen-
volveram na segunda metade do século XX serviram apenas para
reforçar estas características modernistas. A idéia de que o crime
era um problema a ser enfrentado pelas instituições estatais
especializadas estava cada vez mais aceita, à medida que ajustiça
criminal se aproximava do enquadramento correcional, baseado no
tecnicismo, em conhecimentos específicos e na engenharia socialº

103
Previdendarismo penal e o controle corredonalista
do crime
Com raízes na década de noventa do século XIX e vigorosa-
mente desenvolvido nos anos 1950 e 1960, o previdenciarismo
penal era, nos anos 1970, a política estabelecida tanto na Grã-
Bretanha quanto nos Estados Unidos. Seu axioma básico - medi-
das penais devem, sempre que possível, se materializar mais em
intervenções reabilitadoras do que na punição retributiva - pro-
porcionou o aperfeiçoamento de uma nova rede de princípios e
práticas inter-relacionados. Estes incluíam a edição de leis que
permitiam a condenação a penas indeterminadas, vinculada à li-
berdade antecipada e à liberdade vigiada; varas de crianças e ado-
lescentes informadas pela filosofia do bem-estar infantil; o uso da
investigação social e de relatórios psiquiátricos; a individualiza-
ção de tratamento, baseada na avaliação e classificação de especi-
alistas; pesquisa criminológica focada em questões de fundo
etiológico e na efetividade do tratamento; trabalho social com os
condenados e suas famílias; e regimes de custódia que ressalta-
vam o aspecto ressocializador do encarceramento e, após a soltu-
ra, a importância do amparo no processo de reintegração. Princí-
pios penais-previdenciários tendiam a trabalhar contra o uso do
encarceramento, considerando que a prisão era amplamente vista
como contraproducente, do ponto de vista da reforma do indiví-
duo. Regimes de custódia especializados - reformatórios para jo-
vens infratores, prisões-escola, estabelecimentos correcionais etc.
- eram preferidos às prisões tradicionais, e a preterição do encar-
ceramento em favor de medidas comunitárias se tornou um esfor-
ço constante dos reformadores correcionalistas. Dos anos 1890
aos 197 O, cada vez menos categorias de criminosos foram aponta-
das como merecedoras do encarceramento padrão 21 . No enqua-
dramento penal-previdenciário, a reabilitação não era apenas um ele-
mento entre outros. Ao revés, era o princípio hegemônico, o substrato
intelectual e o valor sistêmico que unia toda a estrutura e que fazia
sentido para os operadores do sistema. Ela provia uma rede
conceitua!, abraçada por todos, que poderia ser lançada em toda e
qualquer atividade no campo penal, conferindo sentido e coerência
à atividade dos operadores, bem como um sentido benigno e cientí-
fico às práticas outrora desagradáveis e problemáticas22 .

104
A reabilitação não era, contudo, o único objetivo do sistema
penal-previdenciário. Nem era, na prática, o resultado típico. A
natureza individualizante, indeterminada e altamente discricioná-
ria das práticas correcionalistas conferiam às autoridades do siste-
ma uma extensa latitude no tratamento de condenados ou de jo-
vens necessitados. Criminosos identificados como perigosos, re-
incidentes ou incorrigíveis podiam ficar detidos por longos perío-
dos. Aqueles que possuíssem antecedentes respeitáveis ou fortes
vínculos com o trabalho e a família eram tratados com mais
leniência. As medidas penais podiam ser ajustadas para adapta-
rem-se ao nível de subserviência ou de risco apresentado pelo cri-
minoso; e criminosos responsáveis por crimes bárbaros podiam
ser condenados a penas que conespondessem à sua culpabilidade
e que atendessem às expectativas públicas 23 .
Neste sistema de penas indeterminadas e de soltura antecipa-
da, um hiato considerável se criou entre as condenações publica-
mente anunciadas e o tempo efetivamente cumprido pela maioria
dos condenados, de modo que os elementos penais do sistema pa-
reciam ser mais extensivos do que realmente eram. Este hiato en-
tre o "latido" e a "mordida" permitia ao sistema mostrar-se atento
às demandas públicas por punição e, ao mesmo tempo, tolerar o
impacto real da forma que os especialistas liberais considerassem
mais apropriada. Enquanto o sistema não fosse investigado de per-
to, e sua dinâmica interna de funcionamento não fosse inteiramen-
te compreendida pelo público, ele podia, simultaneamente, evitar
a crítica da opinião pública e dar mais poderes a seus especialis-
tas. A funcionalidade e a longevidade do enquadramento penal-
previdenciário residem precisamente na combinação de objetivos
penais e previdenciários, na flexibilidade para enfatizar um ou outro
de acordo com as circunstâncias e, por fim, no fato de estar a salvo
do escrutínio popular detalhado 24 .
Nesta estrutura, reservou-se um lugar central aos especialis-
tas e à decisão informada dos profissionais. O saber criminológico e
descobertas empíricas foram tidos como guias mais confiáveis para
a ação do que os costumes e o bom senso; os governos do pós-
guerra acalentaram o desenvolvimento de uma cadeira de crimino-
logia nas universidades e dentro da própria estrutura do governo.
Como o governo britânico declarou em 1964, "não basta condenar
105
o crime, nós precisamos entender as suas causas" - isto parecia
especialmente importante na conjuntura de rápida mudança social e
econômica dos anos 1950 e 1960, nos quais a taxa de criminalidade
aumentou com regularidade 25 . Decisões centrais como as senten-
ças, a classificação de internos, sua distribuição por entre as dife-
rentes instituições e regimes disciplinares, a avaliação sobre as con-
dições de soltura e o estabelecimento de requisitos de supervisão
foram paulatinamente deixadas nas mãos dos peritos, em detrimen-
to da autoridade judicial. Onde outrora o princípio condutor fora
nulla poena sine crímine ("não há pena sem crime"), no mundo do
previdenciarismo penal vigiam os axiomas não há tratamento sem
diagnóstico e não há pena sem aconselhamento especializado.
Nas décadas do pós-guerra, ajustiça criminal se tornou o ter-
ritório dos fiscais do livramento condicional, dos agentes do traba-
lho social, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, pedagogos e
profissionais sociais de todos os tipos. O desenvolvimento do pro-
grama penal-previdenciário não significava apenas a civilização e a
reforma da justiça criminal. Significava, também, a colonização de
um terreno anteriormente legal pelas autoridades "sociais" e por
grupos profissionais. A expansão daquele importava na expansão
destes. O "progresso na reforma penal", entre outros fatores, era
uma questão de aumentar o número e a atribuição dos especialistas
sociais em delinqüência26 .
Esta concessão de poder discricionário para inúmeros profis-
sionais, cujas decisões eram geralmente tomadas sem explicação e
ao abrigo da revisão judicial, serve como indicativo do grau de
confiança de que gozavam estes grupos profissionais, bem como
da forma com que seus poderes eram percebidos. Em contraste
com o poder judicial de punir, que há müito estava submetido a
escrutínio e revisão, os poderes dos assistentes sociais e psicólo-
gos eram referidos de modo mais benigno, apolítico. Suas visões
sobre a psicologia normal, as fontes do comportamento anti-social,
sobre o funcionamento da instituição familiar e o modo de compor-
tamento do indivíduo eram tidas como neutras, como julgamentos
clínicos baseados no conhecimento científico e na pesquisa empírica.
Suas práticas normalizadoras e poderes coercitivos também tendi-
am a escapar do escrutínio, a despeito de suas implicações na pli va-
cidade e na liberdade dos indivíduos com os quais lidavam. Sua
106
missão era vista como elevada, civilizadora, que tentava se distanci-
ar (e distanciar seus objetivos) dos mecanismos penais no seio dos
quais operava. Trabalhando numa área dominada pelo estigma do
crime e da pena, eles buscavam ser "não-julgadores"; seu objetivo
professado era mais o alívio do sofrimento individual e o aperfeiço-
amento da engrenagem social do que fazer justiça ou infligir lições
morais. O conhecimento atinente ao trabalho social e à avaliação
clínica reclamava uma forma de autoridade que se via a si própria
como bastante distinta dos clamores por superioridade moral, muito
embora, como as críticas posteriormente apontaiiam, a distinção
não fosse tão grande quanto seus proponentes imaginavam27 .
Esta confiança nos especialistas se estendeu também ao pro-
cesso de formulação de políticas. Ajustes na lei penal, a criação de
novas sanções, a reforma de regimes de cumprimento da pena, a
reformulação de mecanismos de soltura antecipada, tudo isso foi
fruto do trabalho de servidores públicos experientes e do
aconselhamento dos especialistas, que estavam a salvo do debate
público e das manchetes dos jornais. Enquanto escândalos, fugas e
rebeliões fossem evitados, a inte1ferência política no dia-a-dia do sis-
tema seria mínima, assim como o envolvimento do grande público ou
dos seus representantes políticos no que tange à maioria das iniciati-
vas políticas que caracterizavam aquele período. A abordagem bipartida
que a maioria dos grandes paiiidos políticos adotava e a noção de que
a política criminal e o controle do crime eram assuntos eminentemen-
te técnicos, mais bem tratados pelos especialistas e operadores do
sistema, foram expressões ulteriores desta confiança e credibilidade
. de que dispunham estes grupos profissionais28 .
Evidentemente, o nível de compromisso com os aspectos
previdenciários do previdenciarismo penal era bastante variado -
tanto ao longo das jurisdições locais quanto no seio das instituições,
agências e grupos que compunham o sistema. Fiscais do livramento
condicional, funcionários dos juizados de crianças e adolescentes,
supervisores de reformatórios, diretores de prisões, pesquisadores
de criminologia, funcionários públicos experientes e os psicólogos,
psiquiatras e pedagogos do sistema eram comumente mais entusi-
asmados do que agentes penitenciários de carreira, policiais e pro-
motores de Justiça. Tampouco estava o sistema livre de restrições e
de conflitos. Diariamente, nos gabinetes dos juízes havia discussões
107
acaloradas entre promotores de Justiça e fiscais do livramento con-
dicional: o primeiro sustentando penas de reclusão e o segundo,
penas alternativas; o primeiro esgrimindo um discurso moral da lei
com ênfase na ação institucional, na responsabilidade individual e na
culpa, e o segundo invocando o discurso causal do trabalho social,
com foco em circunstâncias justificadoras, na responsabilidade co-
letiva e nos resultados positivos. Os juízes eram obrigados a equilibrar
considerações relacionadas ao crime com considerações relacionadas
ao criminoso, de maneira a contrabalançar o apelo imediato de uma
medida individualizada e a preocupação com a equanimidade das sen-
tenças e a proteção do público. Este dilema, entretanto, era um tanto
mitigado pela existência do procedimento pós-sentença, que, na práti-
ca, re-sentenciava o indivíduo na perspectiva do comportamento prisional
do condenado (ou condenada) e da possibilidade de posterior soltura.
As posições defendidas nestes bem ensaiados debates invoca-
vam ideologias políticas, bem como o antagonismo de posições.
Liberais frisavam que o crime era um sintoma da desigualdade;
que criminosos deviam ser compreendidos antes de julgados; que
não se pode permitir à polícia a violação dos direitos dos suspei-
tos; que a pena era menos útil do que o tratamento; que a prisão
era contraproducente; e que a pena de morte era irracional. Con-
servadores enalteciam o efeito intimidatório das sentenças duras e
a necessidade de condenações a penas longas, assim como da pena
de morte. Eles ressaltavam a importância da responsabilidade in-
dividual; da obediência à lei; de deixar a polícia executar seu tra-
balho sem interferências, municiando-a dos poderes legais e dos
recursos financeiros necessários para tanto. No entanto, até mes-
mo eles aceitavam que certas circunstâncias sociais e psicológicas
deveriam temperar a severidade da justiça com a clemência, assim
como admitiam a necessidade do tratamento con-ecional e da provi-
são previdenciária, "nos casos devidos". A discórdia real girava em
torno do "ponto de equilíbrio", e não do alcance dos argumentos
legitimamente envolvidos. Ambos os lados falavam o idioma do
previdenciarismo penal e colocavam em prática seus princípios -
fato que é comprovado pelo registro de administradores conserva-
dores e republicanos, que fizeram tanto para implantar este enfoque
quanto seus oponentes trabalhistas e democratas 29 .

108
Ao longo do tempo, estas tensões foram resolvidas no curso
das interações diárias e através do compromisso institucional. Deli-
cados equilíbrios de poder foram engendrados pela lei e pela prática.
Acordos pragmáticos e acomodações foram forjados de maneira a
permitir que instituições como o reformatório, o livramento condi-
cional e os juizados de crianças e adolescentes trafegassem pelas
conflituosas linhas que separavam estes dois interesses ideologica-
mente antagônicos.
Foi antes este previdenciarismo penal prático do que qualquer
teoria específica ou verdade criminológica que lapidou os modos de
pensar e os hábitos dos operadores do sistema e dos formuladores
das políticas. Seus habitus, suas ideologias de trabalho, suas rea-
ções e decisões treinadas foram formados por - e adequados a -
este padrão geral de idéias e de instituições que compunham o cam-
po penal-previdenciário. Foi a característica global do campo que
moldou os debates e as políticas formuladas. Esta característica
deu margem a uma ontologia institucionalizada, que definia o pro-
blema do crime, e a uma epistemologia que ditava como este proble-
ma deveria ser conhecido, bem como os meios apropriados para
entendê-lo e abordá-lo. Ela lapidou à sua feição o espectro de políti-
cas penais, determinando o que era progressista e o que era reacio-
nário e dividindo os grupos segundo seus interesses diferentes. Os
manuais de criminologia, os cursos de treinamento para o pessoal
da justiça criminal, a estrutura das carreiras profissionais, as histó-
rias que um operador do sistema contava ao outro, enfim, tudo isto
conconia para reproduzir as estruturas, as ortodoxias e as narrati-
vas do campo, mesmo que houvesse queixas a respeito das falhas
do sistema e que se reconhecesse a necessidade de reforma.
Os discursos e práticas que compunham o campo penal-
previdenciário foram erguidos sobre certas premissas sociopolíticas
fundamentais, sobre um conjunto de compromissos culturais e so-
bre uma determinada forma de saber criminológico. Juntos, estes
fatores desencadearam um grupo implícito de regras, um tipo de
gramática produtiva que estruturava a nova linguagem, o pensa-
mento padrão e. as práticas normais dos atores e das agências que
operavam no campo. Em sua operação detalhada, esta gramática
era peculiar ao - e um produto do - campo do controle do crime e
da justiça criminal. Ela assumiu tal forma na conjuntura prática ao
109
longo de um extenso período de tempo, e em reação a uma
multiplicidade de problemas e interesses específicos. A gramática
do previdenciarismo penal era, pois, como todo fenômeno insti-
tucional, ajustada a um conjunto peculiar de práticas e de proces-
sos. Porém, como descreverei brevemente, ela também era condi-
cionada tanto pelas estruturas sociais e pelos temas culturais
extrínsecos ao campo como por uma certa experiência coletiva,
que, num sentido importante, lhe era anterior.
Desde o seu início, no final do século XIX, o previdenciarismo
penal evoluiu sobre dois axiomas inquestionados, ambos deriva-
dos da cultura política progressista do período. O primeiro destes
axiomas - nascido do "milagre do crime" do final do século XIX e
criado pelo otimismo liberal do século XX - postulava que a refor-
ma social juntamente com a prosperidade econômica acabariam
por reduzir a freqüência do crime. A prosperidade generalizada, em
si e por si, era vista como um meio natural de prevenção do crime.
O segundo axioma, igualmente produto daquele período histórico
específico, preconizava que o Estado é responsável por cuidar dos
criminosos, bem como por sua punição e seu controle. Ao longo do
século XIX, o Estado crescentemente monopolizou e racionalizou o
processo e a punição de criminosos. No entanto, a crença até então
em vigor era de que se alguém deveria se preocupar com os crimi-
nosos, ajudando-os uma vez libertados ou provendo as suas neces-
sidades sociais, este alguém deveria ser antes as igrejas e a filantropia
privada do que o Estado. Depois dos anos noventa do século XIX,
este quadro mudou, passando o Estado a assumir a responsabilida-
de pela reforma e pelo bem-estar dos criminosos. O Estado deveria
ser um agente da reforma assim como da n:pressão, do cuidado
assim como do controle, do bem-estar assim como da punição. A
justiça criminal no emergente Estado de bem-estar não era mais -
ou pelo menos não era apenas - a relação entre o Leviatã e o súdito
rebelde. Em vez disto, a justiça criminal se tomou, em parte, um
Estado de bem-estar, ao passo que o indivíduo criminoso, especial-
mente o jovem, o desfavorecido ou a mulher, passou a ser objeto de
necessidades assim como da atribuição de culpa, passou a ser um
"cliente" tanto quanto um criminoso. Nas décadas do pós-guerra, a
resposta padrão para os problemas relacionados à delinqüência -
com efeito, a resposta padrão para a maioria dos problemas sociais

110
- se tomou uma combinação de trabalho social e de reforma social,
de tratamento profissional e de ordem pública 30 .
Porque o âmbito das instituições da justiça criminal se limitava
ao tratamento dos indivíduos - ou, na melhor das hipóteses, dos
indivíduos e de suas famílias -, uma crucial divisão de trabalho
rapidamente se estabeleceu. O mecanismo institucional padrão do
controle do crime era a resposta da justiça criminal, disparada por
um ato criminoso específico e centrada em distribuir punições pe-
nais-previdenciárias aos criminosos. Por trás disto existia uma polí-
tica muito mais difusa e generalizada de reforma social e de provi-
são previdenciária, através da qual, conquanto raramente fosse des-
tinada especificamente ao crime ou aos criminosos, esperava-se
poder contribuir para a redução do crime por meio da melhoria das
condições dos pobres e da promoção de justiça sociaL Embora a
teoria criminológica apontasse para as raízes sociais da conduta crimi-
nosa e propugnasse pela adoção de medidas sociais mais amplas de
controle do crime, a lógica mais poderosa da diferenciação institucional
e da especialização burocrática ditava que os esforços governamentais
para controlar o crime se1iam canalizados para as instituições dajustiça
criminal. Estas eram as agências governamentais especificamente in-
cumbidas da responsabilidade de cuidar do crime, as receptoras dos
recursos estatais relacionados ao controle do c1ime. Por mais que ou-
tras medidas sociais pudessem ter contribuído para a redução do crime,
as demarcações burocráticas em última instância é que estabeleciam o
que seria feito. O controle governamental do crime, assim, continuava
a focar mais na punição reativa de criminosos do que na prevenção
social do crime.
Esta divisão de funções - que, é claro, refletia a estrutura
institucional diferenciada do Estado moderno e suas áreas de inte-
resse político - foi a causa subjacente de uma profunda frustração,
regularmente manifestada pelo pessoal da justiça criminal. Ela as-
segurava que "o ideal da reabilitação" posto em prática fosse sem-
pre restringido, individualizado e conduzido num contexto penal. Se
o crime é um problema social, alegavam os críticos, então estas
respostas individualizadas, correcionalistas, inevitavelmente falha-
rão em alcançar suas raízes. Elas intervirão somente depois que o
mal estiver feito, tratando das conseqüências e não das causas,
focando em indivíduos já formados (e freqüentemente incorrigí-
111
veis) em lugar de cuidar dos processos sociais que já estão se en-
carregando de formar a nova geração. O previdenciarismo penal,
localizado no seio do Estado da justiça criminal, estruturava-se de
forma auto-limitadora e auto-derrotada.
Os compromissos do modernismo
A cdminologia correcionalista que floresceu na metade do sé-
culo XX talvez seja mais adequadamente descrita como "modernis-
ta" em seus valores e compromissos. O que a fazia modernista era
seu inquestionável compromisso com a engenharia social; sua con-
fiança nas capacidades do Estado e nas possibilidades da ciência; e
sua indefectível crença de que as condições sociais e os criminosos
pode1iam ser modificados pelas intervenções das agências governa-
mentais. Quaisquer que fossem suas visões políticas ou preferênci-
as penalógicas, este modelo de modernismo formava o sistema de
crenças subjacente da nova classe de criminólogos e de intelectuais
que cada vez mais desafiavam o controle do campo que advogados
e moralistas um dia tiveram.
Em sua fé implícita na razão científica e na perfeição do ho-
mem, esta nova corrente correcionalista era filha legítima do pen-
samento iluminista - de fato, constituía de vádas maneiras a ex-
pressão máxima do racionalismo tradicional e da ambição utilitá-
ria. Mas os novos criminólogos se opunham à penalogia do
Iluminismo de Cesare Beccaria e de Jeremy Bentham, e viam suas
propostas de reforma mais como um antídoto àquele programa do
que como um desdobramento dele31 . A punição em geral e as puni-
ções retributivas em particular eram vistas pelos modernistas como
irracionais e contraproducentes, reminiscências de práticas pré-
modernas que se baseavam na emoção, no instinto e na superstição.
Em sua visão, mesmo os princípios liberais da proporcionalidade e
da igualdade eram contaminados pelo pensamento arcaico. O trata-
mento adequado de criminosos demandava medidas individualiza-
das, corretivas, cuidadosamente adaptadas ao caso concreto ou ao
problema particular, e não um rol uniforme de penas a serem mecani-
camente aplicadas. Precisava-se do conhecimento especializado, da
pesquisa científica e de instrumentos flexíveis de intervenção, tanto
quanto da vontade de regular certos aspectos da vida que o liberalis-
mo clássico colocou fora do alcance do Estado. O sistema legal
tinha que continuar garantindo o espaço do sistema normalizador da
112
ciência, assim como a punição tinha que ser substituída pelo trata-
mento32.
É claro que o sucesso prático do movimento modernista era
i1Tegular e raramente satisfazia aos seus proponentes mais entusiásti-
cos. Havia resistência da parte dos liberais, que insistiam na propor-
cionalidade e na pena justa, e também da parte de expoentes de uma
tradição vetusta, anti-moderna, que via a punição como um fim ne-
cessário e como uma importante manifestação do poder soberano
da lei. Conseqüentemente, as instituições penais-previdenciárias que
surgiram eram formações comprometidas, que equilibravam temas
co1TecionaHstas e clássicos. No entanto, quaisquer que fossem as
limitações da prática, no início dos anos setenta do século XX, o
discurso do alto modernismo se estabeleceu como a forma domi-
nante de expressão entre os reformistas penais, os correcionalistas
e as autoridades do governo.
À medida que o previdenciarismo penal se desenvolveu nos
anos do pós-guerra e a linguagem correcionalista se tornou hege-
mônica, expressões explícitas de punitivismo se fizeram cada vez
mais escassas. Sentimentos e depoimentos que um dia foram roti-
neiramente invocados pelas comissões de crimes graves agora pas-
sarnm a ser objeto de censura. O apelo apaixonado pela condena-
ção implacável do crime; o desejo de ver os criminosos sofrerem e
as vítimas vingadas; a franca preocupação de deixar registrada a
revolta pública; o clamor articulado de que a justiça deveria ser
feita, de que a autoridade deveria ser reforçada e de que a punição
deveria ser ministrada como um fim em si mesmo - todas estas
manifestações da justiça punitiva tradicional vieram a ser referidas
como suspeitas e prejudiciais a uma penalogia racional. Ao longo do
tempo, o tom apaixonado e moralista das demandas por punição,
que sempre integraram a reação da sociedade ao crime, tomou-se de
certa forma tabu no discurso das elites governamentais e políticas.
Tanto assim que os críticos que desejassem externar uma posição "anti-
moderna" eram cada vez mais obrigados a fazê-lo utilizando o vocabu-
lário do próprio modernismo. A palavra "punição" saiu do vocabulário
oficial da política criminal moderna, assim como as manifestações de
revolta apaixonada que ela tradicionalmente engendrava33 .
Obviamente, os sentimentos punitivos não desapareceram.
Foram, ao revés, reprimidos, empurrados para a sombra, conside-
113
rados embaraçosos em circuitos ilustrados. Amostras públicas de
puniti vismo ficaram paulatinamente circunscritas à vida interna
das instituições, às demandas irreprimidas da imprensa marrom e
ao âmbito do hoi polloi34, assim como aos rompantes ocasionais de
um juiz particularmente irascível ou de um político renitente. Oca-
ráter latente desta reação humana e social tão vigorosa, a repressão
desta emoção tão poderosa e primitiva, é um exemplo eloqüente do
processo civilizador em andamento 35 . Todavia, foi também a base
sobre a qual se ergueu uma divergência cultural entre os profissio-
nais da justiça criminal e os membros do público em geral. Como
veremos, a linguagem e a tendência puni ti vista que desapareceram do
discurso oficial, embora permanecessem muito presentes na cultura
popular e no senso comum, ressurgiriam como uma importante fonte
de tensão nas décadas de oitenta e noventa do século XX.
Criminologia corredonalista e seus temas centrais
Tanto quanto as instituições penais-previdenciátias, desenvol-
veram-se as formas de conhecimento das quais aquelas dependiam
e que foram criadas por elas: orientação infantil, trabalho social,
psiquiatria forense, ciência médico-legal e, sobretudo, o discurso
criminológico. A criminologia conecionalista que se desenvolveu na
periferia daquelas instituições percebia o crime como um problema
social, que se manifestava na forma de atos criminosos individuais.
Estas atos criminosos, ou pelo menos aqueles que aparentavam ser
sérios, repetitivos ou irracionais, eram vistos como sintomas da
"criminalidade" eda "delinqüência", isto é, de disposições subjacentes
próprias de indivíduos anti-sociais ou desajustados. Estas disposi-
ções individuais subjacentes - e as condições que as produziam-
constituíam o objeto do saber criminológico. Da mesma forma, elas
eram o alvo preferido da intervenção correcional, estando o trata-
mento penal focado na disposição do indivíduo, ao passo que à
política social confiava-se a tarefa de lidar com suas causas mais
amplas.
Um aspecto básico do enfoque correcionalista era a diferenci-
ação rotineira entre "o normal" e "o patológico", seguida de atenção
mais ou menos exclusiva sobre o segundo. Aqueles indivíduos que
cometessem crimes, mas que fossem considerados essencialmente
"não-delinqüentes" ou livres de qualquer disposição criminosa real,
tomavam-se desinteressantes para os propósitos da teoria crimino-
114
lógica e para a prática penal. Seria possível lidar com eles na pers-
pectiva da intervenção mínima- seja através de medidas precautórias
ou multas, seja através de penas intimidatórias, no caso de delitos
mais sérios, sem qualquer componente de tratamento. A atenção
estava verdadeiramente voltada ao delinqüente, ao caráter crimino-
so ou àquilo que os criminólogos do século XX denominaram de
"criminoso psicopata". Era nesta direção que a pesquisa científica e
a energia institucional deveriam ser impulsionadas. Eram estes os
objetivos que deveriam movimentar o sistema. A criminologia
correcional e as instituições penais-previdenciárias identificaram,
conjuntamente, o-delinqüente desajustado como o problema e o tra-
tamento correcional como a solução. Conseqüentemente, a grande
massa de criminosos não-perigosos ou ocasionais foi largamente
negligenciada pela prática correcionalista, que raramente descia ao
nível das carceragens e prisões locais, para lidar com o crime roti-
neiro, de baixo potencial ofensivo. Isto ajuda explicar o intrigante
fato de que uma das penas mais utilizadas no período do pós-guerra
- a multa - fosse completamente despida de pretensões reabilitadoras
e raramente chamasse qualquer atenção criminológica36 .
Dentro desta predisposição criminológica havia um inclinação
recon-ente para uma forma de causalidade de longo prazo, dispositi va,
que operava através da formação dos hábitos e das atitudes da per-
sonalidade. Esta noção de causalidade- popularizada pela psicologia
profunda de Freud e amplamente adotada por profissionais do tra-
balho social - se concentrava nas causas subjacentes profundas,
nos conflitos do inconsciente, nas experiências da infância e nos
traumas psicológicos. Ela tendia a desprezar os eventos próximos
ou imediatos (tais como a tentação e as oportunidades criminógenas)
e a assumir que os significados superficiais ou as motivações da
consciência eram necessariamente "superficiais" e de pequeno va-
lor explicativo. Para este modo de pensai\ o crime ocasional, opor-
tunista, racionalmente motivado, era de pouco interesse, por mais
que contribuísse pai·a a formação das taxas gerais de criminalidade,
porque tais atos não envolviam nenhuma patologia particular e não
ofereciam oportunidade pai·a o tratamento especializado ou pai·a a
reforma correcional.
A preocupação primordial da pesquisa criminológica
correcionalista era de identificar as caracteris ticas do indivíduo, que
115
diferenciavam "delinqüentes" e "personalidades criminosas", bem
como de correlacionar estas com outras condições que poderiam
proporcionar pistas acerca da sua etiologia e do seu tratamento. Em
sua ênfase e seus interesses conceituais, esta criminologia se con-
centrava, mais e mais, no indivíduo, como faziam as instituições
penais-previdenciárias que ela servia. O problema do crime veio a
ser visto como um problema criminal. O saber criminológico era o
saber sobre os delinqüentes individuais e suas diferenças. Mesmo
onde a pesquisa fosse destinada a tratar de dados e padrões estatís-
ticos, ou de famfüas e comunidades, o ponto essencial era, em últi-
ma instância, entender o criminoso individual, sua relação com a
criminalidade e as maneiras através das quais os elementos sociais e
o ambiente deixaram sua marca nos criminosos indi viduais 37 •
Uma preocupação secundáril). desta corrente criminológica era
estudar e avaliar o irri.pacto dos vários tipos de intervenção das ins-
tituições penais-previdenciárias: saber com certeza "o que funcio-
na" e por que. Este tipo de pesquisa garantia às instituições de con-
trole do crime - notadamente, a polícia, as prisões e o livramento
condicional- o desenvolvimento de mecanismos de monitoramento
e de reflexão internos e as informações acerca dos efeitos de sua
atividade e dados com os quais poder-se-iam medir seus resultados.
Não é surpresa que este tipo de pesquisa criminológica atraísse a
maior parte dos recursos e do apoio do governo, em detrimento das
investigações mais ambiciosas relacionadas à etiologia38 .
As teorias desenvolvidas sob este enfoque mudaram, pouco a
pouco, com o passar do tempo, a despeito de as estruturas básicas
do discurso correcionalista terem permanecido intactas. A crimino-
logia do início do século XX era fortemente baseada na medicina
psiquiátrica e na psicologia do indivíduo, e centrava-se nos traços
característicos das personalidades de delinqüentes individuais, as-
sim revelados pelo estudo de prisioneiros e de internos dos reforma-
tórios. Nos anos vinte e trinta do século XX, acadêmicos começa-
ram a pensar a criminalidade como um efeito multifariamente condici-
onado da privação social. Eles descobriram que os indivíduos pos-
suidores dos traços mais negativos da personalidade e de anteceden-
tes criminais eram aqueles que comumente haviam passado por múl-
tiplas formas de privação, incluíd.a a ausência de educação familiar e
a pobreza. Nos anos cinqüenta e sessenta do século XX, quando a
116
pobreza e as taxas de abandono infantil aparentemente declinaram,
na conjuntura de maior segurança e prosperidade do pós-guerra na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, esta tese da privação foi retra-
balhada na forma de "privação relativa" ou de "anomia" 39 .
As novas teorias atribuíam a conduta criminosa não ao empo-
brecimento, mas ao hiato que se abria entre as expectativas e o que
se podia alcançar. Elas, então, implicavam uma crítica modesta do
Estado de bem-estar e das suas conquistas, apontando para a lacuna
entre as crescentes expectativas e as oportunidades reais, para as
frustrações daquelas pessoas deixadas para trás pela economia prós-
pera e para os excessos do egoísmo associado à nova sociedade de
consumo. Seus clamores se direcionavam para o maior provimento
social e, particularmente, para a abertura de rotas mais acessíveis,
mais legítimas, de mobilidade social positiva. Apesar de toda a novi-
dade e das implicações críticas, estas narrativas explicativas perma-
neceram fiéis aos axiomas fundamentais do previdenciarismo penal:
o crime ainda era visto como resultado da pobreza e da privação e
sua cura ainda dependia da expansão da prosperidade e da provisão
de bem-estar social4º.
A criminologia co1Tecionalista que floresceu na Grã-Bretanha
e nos Estados Unidos da metade do século XX era bastante distin-
ta das versões caricaturais que posteriormente seriam apresenta-
das por seus críticos. A maior parte dos reformadores correcionalistas
e dos criminólogos não possuía compromisso sério com o
determinismo estrito, tampouco sustentavam que o delinqüente típi-
co fosse "doente" ou profundamente "patológico". Os programas
de tratamento recomendados e implementados eram raramente
intrusivos, dotados de medidas relacionadas à la vagem cerebral ou
coercitivamente impostos a indivíduos recalcitrantes, e o chamado
"modelo médico" de tratamento, na verdade, não era um ponto de
referência tão importante quanto a idéia de desenvolvimento educa-
cional e de apoio social. Embora criminólogos conecionalistas re-
co1Tessem ao Estado para implementação dos seus programas e
desenvolvimento dos seus regimes de tratamento, sua relação com
o governo não era de forma alguma acrítica. Conecionalistas eram
os críticos mais diretos da descontinuidade governamental na exe-
cução das políticas, uma das quais, e não menos importante, a pena
de morte.
117
Retrospecti vamente, o que é mais notável neste esquema crimi-
nológico e nas teorias por ele engendradas não é sua imaturidade
científica ou seu viés acrítico. É o padrão específico de atenção que
ele estabeleceu, bem como os pontos cegos que ensejou. É a relativa
ausência de qualquer interesse substancial nos eventos relacionados
ao crime, nas situações criminogênicas, no comportamento das víti-
mas ou nas rotinas econômicas e sociais que produziam as oportuni-
dades criminosas. Este esquema, pois, se diferencia consideravel-
mente do que viria depois e, se nos lembrarmos de Colquhoun, do
que veio antes. Com efeito, a criminologia correcionalista assumia a
eficácia da justiça criminal e a possibilidade de um modelo individua-
lizado de redução do crime. Ela compartilhava a epistemologia
institucional criada pelo Estado de justiça criminal, que sabia ser o
clime um problema de criminosos individuais com disposições crimi-
nosas. Sempre e sempre, este modo de pensar direcionava nossa
atenção para estes indivíduos e para os processos psicológicos que os
produziam, olvidando, assim, outras formas de conceber e de tratar o
problema. Em sua base, e apesar de suas reformulações e de seus
argumentos auto-destrutivos, esta foi a criminologia que serviu de
fonte para as políticas estatais progressistas do Estado de bem-estar.
Ela assumia sem questionar a possibilidade e o desejo da reintegração
de delinqüentes e de indivíduos desviantes. E olhava para o trabaJho
social, para a reforma social, para o tratamento especializado e para a
provisão pública na perspectiva de implementá-los.
Contexto social e apoios institucionais
Como todas as instituições sociais, o previdenciarismo penal
foi moldado por um contexto histórico específico e operava sobre
um conjunto de estruturas sociais e de experiências culturais. Seus
modos de pensar e de agir faziam sentido para os que trabalhavam
no campo, mas também repercutiam nas estruturas mais amplas da
sociedade do Estado de bem-estar e nos modos de vida que estas
estruturas refletiam e reproduziam. O previdenciarismo penal an-
gariou apoio de - e forneceu apoio a - uma forma particular de
Estado e uma estrutura peculiar de relações de classe. Funcionou
num ambiente específico de políticas econômicas e sociais, e
interagiu com um grupo de instituições contíguas, a mais impor-
tante das quais o mercado de trabalho e as instituições sociais do
Estado de bem-estar. Em resumo, suas maneiras características de
118
pensar e agir, notadamente seu modernismo e sua racionalidade
"social", foram consolidadas nas formas de vida criadas pelas re-
lações políticas e culturais dos anos do pós-guerra.
A exemplo do Estado de bem-estar modem o do qual era parte,
o previdenciarismo penal se desenvolveu como uma solução estra-
tégica para um problema historicamente específico de ordem, e es-
tava amparado por um tipo particular de experiência e de memória
coletivas. Como vimos, o previdenciarismo penal se voltava aos
problemas do desajustamento individual, altamente concentrados nos
setores mais pobres da população, e que eram por ele atribuídos à
pobreza, à socialização deficiente e à privação social. Os problemas
com os quais ele lidava eram, em outras palavras, as patologias
clássicas da sociedade de classes industrializada e desigual 41 . Fo-
ram precisamente estes problemas de destituição e de insegurança,
e as questões políticas que eles engendravam (conflito de classes
declarado, insurreição das classes trabalhadoras e medos relaciona-
dos a uma população "inadequada", à "deterioração racial", ao declínio
da eficiência nacional etc.), que forjaram o desenvolvimento do "Es-
tado social" nos primeiros anos do século. E foram medos similares
- amplificados pela memória coletiva do desemprego maciço, do
colapso econômico, e o temor da ascensão do fascismo e do comu-
nismo que poderiam se seguir- que incentivaram o New Deal, o
plano Beveridge e a expansão, no pós-guerra, dos programas esta-
tais de bem-estar nos EUA e na Grã-Bretanha42 . Se foi um problema
hobbesiano de ordem que disparou o desenvolvimento do Estado de
justiça criminal na Europa do início da era Moderna, pode-se dizer
que foi um problema marxista de ordem - a instabilidade social e
política causada pelo antagonismo de classes e pela exploração econô-
mica desregulamentada- que primeiro motivou o previdenciarismo pe-
nal. Afümar isto não significa dizer que o con-ecionalismo foi parte
direta das políticas de luta e de compromisso de classes. Nenhum
movimento da classe trabalhadora na Grã-Bretanha ou nos Esta-
dos Unidos (ou em qualquer outro lugar, aliás) jamais demandou
tratamento melhor ou a implementação de trabalhos sociais para
os criminosos. Não obstante, os vínculos se fizeram presentes,
pois a forma de Estado, a política social e as relações de classe,
das quais o previdenciarismo penal surgiu, eram todas respostas
estratégicas para este problema sociopolítico específico43 .

119
O Estado de bem-estar britânico, e sua contrapartida norte-
americana do Estado regulatório do New Deal, institucionalizaram
uma série de soluções estratégicas para o conflito de classes e para
a desigualdade econômica que se ergueu em torno das novas for-
mas de gerenciamento econômico e social. Leis regulatórias, en-
genharia social direcionada ao Estado e um gerenciamento basea-
do em demandas keynesianas se tornaram ferramentas centrais de
governabilidade. Embora o mercado e o poder privado da riqueza
e do capital continuassem a governar a maioria dos aspectos da
vida na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, estes poderes se sub-
meteram cada vez mais ao poder restritivo do Estado regulador.
Os governos do pós-guerra em ambos os países crescentemente
amainaram os riscos do capitalismo de mercado e amenizaram o
conflito econômico através da instituição de seguros sociais e medi-
das previdenciárias, que aumentavam a segurança e redistribuíam
recursos 44 . Ao longo do tempo, ambas as nações estabeleceram sis-
temas de tributação progressiva, construíram escolas e estradas,
regulamentaram o trabalho, a aquisição subsidiada de moradias,
proveram pensões e outras formas de apoio financeiro e assegura-
ram níveis mínimos (ou melhores) de educação e de assistência
médica aos seus cidadãos. Instituíram novos mecanismos de
gerenciamento econômico e de investimento público, de modo a
aliviar o problema decorrente dos altos e baixos nos indicadores
sociais e econômicos. Estenderam a regulação estatal para o local
de trabalho e para os lares, com a finalidade de estabelecer padrões
nacionais de saúde e de segurança. Graças a um Estado interven-
cionista, à pulverização de riscos e a um certo grau de redistribuição
de renda, novos níveis de segurança econômica e social se tomaram
possíveis. Os efeitos mais imediatos disto foram sentidos por aque-
les que saíram do mercado de trabalho em virtude de doenças, de
acidentes, da idade avançada ou do desemprego forçado. Conco-
mitantemente, porém, a população como um todo estava sendo
mais protegida, e as economias nacionais estavam sendo estabilizadas
-processos que tiveram importantes implicações nas políticas soci-
ais e econômicas do período do pós-guerra45 .
Nesta nova estrutura social, as políticas prevalentes foram as
de cunho inclusivo, orgânico, social-democrático, e as formas ca-
racterísticas da política social confiavam em várias modos de inter-

120
venção estatal e de engenharia social. Sua ideologia dominante era
moderadamente solidária, buscando incorporar todos os indivíduos
a uma cidadania social plena, com direitos e oportunidades iguais.
Esta nova nan·ativa cívica de inclusão, comumente associada ao "Es-
tado de bem-estar" europeu, era de fato uma característica dos EUA,
onde assumiu a forma especial dos movimentos pelo reconheci-
mento dos direitos civis e a visão da "Great Society" 46 . Em seus
aspectos idealistas e altruístas e em sua preocupação por justiça
social, este apelo à solidariedade refletia a memória ainda viva da
Grande Depressão e da guerra, as consciências culpadas das elites
abastadas, as lutas do trabalho organizado e as aspirações de grupos
até então excluídos. Mas também encarnava as preocupações
atuai-iais e iluminava o interesse próprio dos eleitores da classe mé-
dia, que rapidamente perceberam que tinham muito a ganhar com
certas políticas sociais e com a redistribuição de renda. Com efeito,
foi precisamente por prover benefícios para todas as classes, relaci-
onados à segurança econômica, à melhor assistência médica, às
oportunidades educacionais e à oferta de empregos públicos que o
bem-estar do pós-guerra logrou sustentar-se nas décadas seguin-
tes47. Para os seus simpatizantes, o Estado de bem-estar represen-
tava uma nova visão de justiça social e igualdade, habilmente ex-
pressada pelo influente argumento de John Rawls, segundo o qual a
justiça exigia um mínimo garantido de provisão, antes de qualquer
competição por recursos48 . Para intelectuais mais conservadores, o
Estado de bem-estar era o preço que se deveria pagar pela paz soci-
al, pela estabilidade econômica e pela educação adequada e treina-
mento da força de trabalho. Quaisquer que fossem os motivos, o
resultado foi um amplo apoio bipartidário ao Estado de bem-estar -
o que se repetiu quanto ao previdenciarismo penal.
Previdência penal e regulação "social"
O desenvolvimento destas estratégias de govemabilidade soci-
al e econômica estabeleceu um novo estilo de exercício do poder e
um novo tipo de autoridade social - o dos especialistas sociais. A
este respeito, a trajetória do previdenciarismo penal (ao longo da
qual especialistas da pena cada vez mais substituíram outras auto-
ridades) foi precisamente a de amparar o Estado de bem-estar como
um todo. Durante a primeira metade do século XX, muitas práticas
governamentais centrais começaram a fazer uso de uma nova racio-
121
nalidade quanto aos desafios que enfrentavam. Uma nova série de
problemas - tais como o crime, saúde, educação, emprego, pobreza
ou a unidade familiar - veio a ser concebida como problemas soci-
ais, com causas sociais, que deveriam ser tratados através de técni-
cas sociais por assistentes sociais. Este novo estilo de regulação
conferia poderes aos especialistas para o estabelecimento de nor-
mas e padrões sociais nas áreas da vida humana (assistência infan-
til, médica, educação moral etc.) que até então não haviam sido
reguladas. Ao fazê-lo, estas agências não se escudavam na lei ou na
coerção, apesar de serem usadas como último recurso; ao revés, se
escudavam em sua autoridade de especialistas, na persuasão de seus
postulados normativos e na disposição dos indivíduos e das farm1ias
de alinhar suas condutas com o que os especialistas prescrevessem,
na esperança de alcançar a promoção social, a segurança econômica
ou saúde física e realização interior49 .
Assim, o Estado de bem-estar acelerou o movimento em dire-
ção a uma "sociedade profissionalizada", que já estava em formação
ao longo do século XIX. Proporcionou a ascensão de uma camada
de trabalhadores especializados, que compuseram o Estado de bem-
estar e o setor público em expansão, suprindo as necessidades dos
cidadãos numa crescentemente próspera economia de consumo. A
educação superior se expandiu para treinar e graduar estes novos
grupos que proliferavam. O trabalho social se tomou uma indústria
ascendente, alimentada pela correlata espiral de problemas recém-
reconhecidos como carecedores de soluções especializadas 50 . Na
década de sessenta do século XX, houve um grande crescimento
nos serviços sociais pessoais e a ascensão de novos grupos
ocupacionais, tais como "profissionais do serviço social", "conse-
lheiros" e "terapeutas", que mal existiam antes da Segunda Guerra
Mundial. À medida que a tendência de maiorrenda e igualdade do pós-
guerra se consolidou, as antigas hierarquias de classe começaram a
ruir, bem como profissionais e especialistas da área social passaram a
desfrutar de maior status e autoridade51 .
As ideologias e interesses dos novos profissionais da área pe-
nal, assim, se articularam facilmente com as estratégias de coman-
do e com as formas de autoridade típicas do Estado de bem-estar.
"Reforma", "reabilitação", "tratamento e treinamento", "os melho-
res interesses da criança" - todos estes objetivos se enredaram efi-
122
cazmente nos novos mecanismos da regulação social, com o gover-
no através dos experts e com ênfase ideológica na universalização
da cidadania e na integração social, que caracterizaram as políticas
sociais do período do pós-guerra.
A base social do previdenciarismo penal
Em seu livro RiskandBlame, Mary Douglas destaca que uma
abordagem "sem culpa" do crime- que é a inclinação implícita do
previdenciarismo penal - depende da existência de uma ampla rede
de seguridade e recompensa. Enquanto as sociedades de livre mer-
cado tendem a responsabilizar os indivíduos pelas perdas e viola-
ções e pe1mitir apenas um certo nível de risco, culturas mais soli-
dá.rias (nas quais os indivíduos estão ligados por redes de confian-
ça mútua) podem permitir que as perdas sejam absorvidas pelo gru-
po, assim como aceitam normas de responsabilidade coletiva. O
argumento de Douglas consiste em que uma cultura que se ampare
antes em processos restitutivos do que na distribuição de culpas e
punições é tipicamente uma cultura na qual, na experiência da mai-
oria das pessoas, a restituição é uma perspectiva em que se pode
depositar razoável expectativa e confiança. Somente diante um
background material de confiança mútua e segurança econômica é
que uma abordagem "sem culpa" pode se sustentar.
O Estado de bem-estar e a prosperidade do pós-guerra fizeram
recrudescer a segurança econômica e a solidmiedade social na Grã-
Bretanha e nos Estados Unidos, e parece razoável supor que estes
fatores sociais proporcionaram um importante fundamento cultural
para as instituições coffecionalistas "sem culpa" que floresceram
nos anos do pós-guerra. O desenvolvimento de uma cultura mais
solidária foi facilitado pelo duradouro boom das décadas de 1950 e
1960 - período de crescimento econômico, pleno emprego, desi-
gualdades descrescentes e de expansão da rede dos serviços de
seguridade social. Neste contexto histórico, o crime podia ser visto
não como uma ameaça à ordem social, mas como uma relíquia reni-
tente de privações passadas. As agências penais-previdenciárias po-
diam contribuir pm·a aliviar este problema, através da ajuda e do
tratamento aos desafortunados indivíduos e às famílias problemáti-
cas, que foram deixados para trás pela maré de prosperidade e de
progresso social.

123
Há, também, um sentido mais imediato no qual as práticas
penais-previdenciárias dependiam de condições materiais adequa-
das. Muito da efetividade e da plausibilidade das práticas correcio-
nais, como a profissionalização na cadeia, o aconselhamento durante
o período de livramento condicional e a supervisão da liberdade
vigiada, dependia da habilidade de se comunicar com o criminoso
através da linguagem do trabalho e da estabilidade doméstica. Num
período de pleno emprego, serviços de bem-estar abundantes e
de benefícios relativamente generosos, as práticas correcionais
deste tipo vieram a ser referidas como exeqüíveis e desejáveis.
Como a experiência subseqüente demonstraria, tal não aconteceu
em situações econômicas de maior recessão e insegurança52 .
A expansão e elaboração das instituições penais-previdenciárias
foram paralelas à do Estado de bem-estar como um todo. Na direta
proporção em que as taxas de criminalidade tenderam a crescer mais
rapidamente durante tempos de crescimento econômico, aumentaram
os esforços reativos para se desenvolver uma estratégia correcionalista.
A expansão econômica e o aumento nos níveis de vida facilitaram a
ascensão do previdenciarismo penal. O ambiente mais próspero dopós-
gue1rn relaxou os estímulos relacionados ao "menor merecimento" e
tornou disponíveis mais recursos públicos e serviços sociais para este
propósito. Considerando-se que a maior parte dos problemas daquilo
que se costumava chamar de "pobres desejáveis" havia sido abordada
(ou pelo menos assim se pensava) pelo desenvolvimento do Estado de
bem-estar, agora tomou-se possível concentrar a atenção nos pobres
indesejáveis, desagregados, e nas populações problemáticas, tais como
jovens infratores, criminosos adultos e presos. ·
Então, quais foram, em resumo, as condições históricas e so-
ciais que fundamentaram o modernismo criminológico e o com-
promisso penal-previdenciário?
Um estilo de governança
As instituições penais-previdenciárias se formaram num mo-
mento histórico peculiar, em reação a um problema específico de
ordem. Em sua forma aperfeiçoada, estas instituições foram asso-
ciadas a uma forma política social-democrática e a um contexto de
inclusão cívica, ambas as quais retiraram seu poder das relações
de classe e das memórias coletivas que dominaram o período do

124
pós--guerra na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. As práticas pe-
nais-previenciárias materializavam um estilo de govemança "soci-
al", que se amparava no saber especializado e nas técnicas de regulação
característicos das sociedades dos Estados de bem-estar. Elas tam-
bém materializavam a singular combinação de humanitarismo e
motivações utilitárias, que caracterizavam as relações entre os gru-
pos dominantes e as classes subordinadas ao longo do desenvolvi-
mento da democracia de massa.
A capacidade de controle social
Embora não fosse sempre claro para seus proponentes, a
efetividade das agências penais-previdenciárias dependia, em grande
medida, da capacidade da sociedade civil de controlar indivíduos e de
canalizar suas atividades parn finalidades lícitas. Os controles sociais
infmmais exercidos pelas farm1ias, vizinhanças e comunidades,junta-
mente com a disciplina imposta pelas escolas, fábricas e outras insti-
tuições, criaram um ambiente rotineiro de regras e sanções que supria
as demandas legais e provia apoio para as intervenções penais-
previdenciárias. O sucesso do sistema formal no disciplinamento de
indivíduos desviantes, ou em sua reintegração à sociedade, se deve
dfretamente à ajuda daqueles controles do dia-a-dia53 . O programa
correcionalista que levou à criação das instituições penais-
previdenciárias foi lançado num período histólico de baixas taxas de
criminalidade e de alto grau de controle social informal.
O contexto econômico
As políticas penais-previdenciárias, como o próprio Estado de
bem-estar, se desenvolveram diante de um background de condi-
ções econômicas favoráveis às provisões previdenciárias, aos gas-
tos públicos e à redistribuição de renda. O crescimento econômico
sustentado das décadas do pós-guerra, os padrões elevados de vida
dos trabalhadores e a experiência consolidada de pleno emprego
proporcionada pelo keynesianismo trouxeram importantes, talvez
indiretas, conseqüências para as instituições correcionalistas e para
as políticas de controle do crime. O senso de prosperidade genera-
lizada e crescente permitiu o relaxamento das considerações de
"menor merecimento", que tradicionalmente fazem recrudescer as
condições penais. A disponibilidade de emprego, até mesmo para os
indivíduos desqualificados e inconfiáveis, viabilizaram o trabalho

125
ressocializador do livramento condicional e da liberdade vigiada e
emprestaram sentido aos programas de "tratamento e treinamento"
das prisões. Na medida em que as políticas penais-previdenciárias
demandavam legitimação pública, isto representava o avanço numa
economia em expansão, na qual as classes médias desfrutavam de
benefícios tangíveis provenientes dos investimentos públicos e eram
amplamente simpáticas às políticas previdenciárias.
A autoridade da expertise social
O poder e influência coletiva de certos grupos profissionais
constituíram outra condição importante para a viabilização e de-
senvolvimento da justiça criminal correcionalista. De importantes
maneiras, o aperfeiçoamento do previdenciarismo penal representa-
va a vitória de profissionais da área social e da medicina psiquiátiica
e dos seus adeptos. Foram estes grupos, com suas singulares for-
mas de regulação, que obtiveram êxito em estabelecer um novo con-
junto de práticas e objetivos correcionais, bem como novas formas
de saber especializado num campo que até então fora direcionado
por princípios legais e ideais punitivos. Foram estes grupos que
ocupaTam os cargos principais nas instituições penais-previdenciárias
e foi o seu conhecimento especializado que deu vida ao funciona-
mento do sistema.
O apoio das elites sociais
O apoio ativo das elites políticas e sociais foi crucial para o
desenvolvimento do campo. Autoridades governamentais, especi-
almente as diretamente envolvidas com a administração da justi-
ça, tinham que confiar no sistema. E, na medida em que desempe-
nhavam um papel na formulação da política criminal, os organis-
mos de reforma, acadêmicos e os setores mais influentes das clas-
ses políticas também tinham que apoiar as políticas de controle do
crime. O importante, neste particular, não era tanto o apoio a polí-
ticas específicas - cujos detalhes eram comumente acertados por
administradores e especialistas sem ulteriores consultas - mas um
amplo nível de apoio ao ethos do previdenciarismo penal. A idéia
de que deveria existir uma abordagem racional, desinteressada,
"civilizada", aos criminosos, concebendo-os através de categorias
da necessidade social e da cidadania, constituiu uma condição
importante para o sistema. Bem assim seu corolário: rejeição a uma

126
abordagem emocional, hostil, ao crime, que equiparava o fenômeno
a uma guerra contra o mal ou à proteção contra o perigo. Do século
XIX em diante, particularmente na metade do século XX, estas idéi-
as e sensibilidades foram características das elites liberais e dos
profissionais da nova classe média, tanto nos Estados Unidos quan-
to na Grã-Bretanha.
Validez e efetividade percebidas
Como qualquer atividade governamental, a legitimidade das
instituições penais-previdenciárias dependia de que suas opera-
ções fossem percebidas como íntegras e efetivas. Na maior par-
te do século XX, houve um alto grau de confiança, no seio das
comunidades acadêmica e política, acerca da validade das idéias
correcionais e da correspondente efetividade das práticas
correcionais adequadamente implementadas. Para o aparente fra-
casso que estas instituições às vezes demonstravam- quando taxas
de criminalidade continuavam a subir ou os tratamentos resultavam
mais em reincidência do que em reforma - havia uma narrativa plau-
sível para explicar tais falhas. Problemas relacionados à
implementação do programa, falta de recursos e de pessoal trei-
nado, a persistência de atitudes anacrônicas e a perene necessi-
dade de mais pesquisa e conhecimento - todas estas justificati-
vas poderiam ser citadas em defesa do sistema, contanto que a
credibilidade básica da instituição e seu enquadramento conceituai
permanecessem intactos.
A ausência de qualquer oposição pública ou política ativa
As políticas penais-previdenciárias foram uma conquista de
profissionais e de políticos adeptos da reforma, e não o resulta-
do de qualquer movimento popular. Tampouco tais políticas de-
mandavam grande dose de apoio popular ativo. As evidências
sugerem que a opinião pública, mesmo na década de 1960, con-
tinuava a ser mais punitiva e "tradicionalista" do que as políti-
cas governamentais 54 . O previdenciarismo penal era, para amai-
oria das pessoas, uma política imposta de cima. Era imposta,
contudo, com pouca resistência de baixo, inexistindo qualquer
demanda mais intensa por alternativas específicas. Se o grande
público era mais punitivo do que seus represenantes e menos
convencido pelo correcionalismo do que as elites liberais, ele

127
também se mostrava, inobstante, pouco interessando a respeito.
As políticas penais-previdenciárias em desenvolvimento podiam
confiar numa boa dose de apatia e ignorância populares. Deixan-
do de lado clamores resultantes de crimes particularmente revol-
tantes, sentenças lenientes ou fugas notáveis das prisões, não
havia envolvimento popular muito ativo, nem críticas públicas
ruidosas, a respeito das políticas de controle do crime. O funci-
onamento diário do sistema era deixado completamente nas mãos
do pessoal da justiça criminal.

Notas

1 Para análises da formação do Estado penal-previdenciário na Grã-

Bretanha, v. D. Garland, Punishment and Welfare: A History of Penal


Strategies (Aldershot: Gower, 1985); M. Wiener, Reconstructing the
Criminal (Cambridge: Cambridge University Press, 1990); L. Radzinowicz
e R. Hood, A History of the English Criminal Law and its Administration,
vol. 5 (Oxford: Clarendon Press, 1990). Nos EUA, v. D. Rothman, Conscience
and Convenience (Boston: Little Brown, 1980). A maior parte das idéias-
chave do correcionalismo já estavam sendo discutidas pelos supervisores
de instituições reformatórias em 1871: v. "Statement of Principies" in
National Congress on Penitentiary and Reformatory Discipline,
Transactions of the National Congress on Penitentiary and Reformatory
Discipline 1871 (Albany-NY: Weed Parsons, 1871), pp. 541-7.
2
No caso da Suprema Corte norte-americana, de 1949, Williams v. People
of State of New York, 337 US 241, 69 S.Ct.1079, o Justice Black, falando
para a maioria, referiu-se à "prevalente filosofia moderna da pena que
deve estar adaptada ao condenado e não somente ser proporcional ao
crime", e registrou depois que a "retribuição não é mais o objetivo principal
da lei penal. A reforma e a reabilitação se tornaram fins importantes para
a jurisprudência criminal". V., também, o American Friends Service
Committee, Strugglefor Justice (Nova Iorque: Hill and Wang, 1971), p. 37:
"o modelo de tratamento individualizado ( ... ) tem sido, por quase um século,
a fonte intelectual da qual quase todas as reformas da justiça criminal ou as
meras propostas derivaram. Seria errado subestimar o poder desta idéia ou o
vulto de sua influência"; M. Tonry, Sentencing Matters (Nova Iorque: Oxford
University Press, 1996), observa que entre 1930 e o meio da década de
1970, as sentenças norte-americanas baseavam-se predominantemente

128
no modelo da indeterminação. Em 1973, autoridades de alta patente da
área penitenciária de vários Estados diziam que consideravam a
reabilitaçã.o de condenados um objetivo de máxima importância: v. R. A.
Berk e P. Rossi, Prison Reform and State Elites (Cambridge-MA: Ballinger,
1977). Para uma pesquisa acerca da "opinião liberal" sobre o crime entre
1945 e 1975, v. R. Bayer, "Crime, Punishment and the Decline of Liberal
Optimism", in Crime and Delinquency (abril de 1981), pp. 169-90. Para
evidências acerca do compromisso britânico com esta corrente, v. Scottish
Home Department, The Scottish Borstal System (Edimburgo: HMSO,
1947); Home Office, Prisons and Borstals: England and Wales (Londres:
Home Office, 1950); Home Office, Penal Practice in a Changing Society
(Londres: HMSO, 1959).
\
3
Veja-se L Blom-Cooper, Progress in Penal Refo,m (Oxford: Oxford
University Press, 1974).
4
Sobre os preâmbulos da formação dos Estados modernos, v. C. Tilly
(org.), The Formation of National States in Westem Europe (Princeton:
Princeton University Press, 1975) e N. Elias, The Civilizing Process, vol.
2 (Oxford: Blackwell, 2000). Sobre as instituições da justiça criminal da
América colonial, v. E. Monkkonen (org. ), Crime and Justice in American
History (Westport: Meckler, 1991).
5
Sobre a emergência do estado de justiça criminal na Grã-Bretanha, v. D.
Philips, '"ANew Engine of Power andAuthority': The Institutionalization
ofLaw-Enforcement in England, 1780-1830", in V. A. C. Gatrell el al. (orgs.),
Crime and the Law: The Social History of Crime in Westem Europe
Since 1500 (Londres: Europa Publications, 1980), e P. Rock, "Introduction"
a P. Rock (org.), History of Criminology (Aldershot: Dartmouth, 1996).
Sobre a história norte-americana, v. L. Friedman, Crime and Punishment
in American History (Nova Iorque: Basic Books, 1993) e S. Walker,
Popular Justice: A History of American Criminal Justice, 2l1 ed. (Nova
Iorque: Oxford University Press, 1998). Sobre o desenvolvimento do
policiamento, v. D. H. Bayley, "The Police and Political Development in
Europe", in C. Tilly (org.), The Formation of National States (Princeton:
Princeton University Press, 1975) e Pattems of Policing (New Brunswick-
NJ: Rutgers University Press, 1985). Para uma discussão sobre a
organização policial contemporânea na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos
e suas diferenças, v. P. Manning, Police Work: The Social Organization
of Policing, 2l1 ed. (Prospect Heights-IL: Waveland Press, 1997).
6
T. Hobbes, Leviathan (Londres: J. M. Dent, orig. 1651).
7
P. Colquhoun, Treatise on the Police of the Metropolis explaining the
various Crimes and Misdemeanors which are at presmt Jelt as a pressure

129
upon the Community, and suggesting Remedies for their Prevention, by
a Magistrate, 2~ ed. (Londres: H. Fry for C. Dilly, 1796). Sobre a idéia de
"polícia", no início da Idade Moderna, v. M. Foucault, "Govemamentality",
in G Burchell et al. (orgs.), The Foucault Effect: Studies in Govemamentality
(Londres: Harvester Wheatsheaf, 1991); P. Pasquino, "Theatrum Politicum:
The Genealogy of Capital-Police and the State ofProsperity", in G Burchell
et ai. (orgs. ), The F oucault Effect; F.-L. Knemeyer, "Polizd', Economy and
Society, 9:2, pp. 172-96 e G Oestreich, Neostoicism and the Early Modem
State (Cambridge: Cambridge University Press, 1982). Para uma dicussão
da literatura britânica acerca desta tradição, v. L. Radzinowicz,AHistory of
the English Criminal Law and its Administration, vol. 3 (Londres:
Stevens, 1956), pp. 417-23.
8
Veja-se D. Garland, "The Limits ofthe Sovereign State", British Joumal
of Criminology, vol. 34, nº 4, 1996, e J. McMullan, "The Arresting Eye:
Discourse, Surveillance and Disciplinary Administration in Early English
Police Thinking", in Social & Legal Studies, 7: pp. 97-128.
9
Veja-se T. A. Critchley, A History of Police in England and Wales, 2~ ed.
(Londres: Constable, 1978) e C. Reith, British Police and the Democratic
Ideal (Oxford: Oxford University Press, 1943). A carta original da polícia
metropolitana de Peel, em 1829, incumbia-a de prevenir o crime, de manter
a tranqüilidade pública e, somente depois, de prender criminosos. Esta função
preventiva, porém, veio a ser interpretada como· o efeito intimidatório da
presença policial (a "função do espantalho"), e a prisão de criminosos
acabava por assumir prioridade operacional. Veja-se D. Gilling, "Crime
Prevention Discourses and the Multi-Agency Approach", International
Joumal of the Sociology of Law (1993), vol. 21, pp. 145-57. Quanto à
polícia urbana nos EUA, Eric Monkkonen descreve sua função original,
no século XIX, como sendo "serventuários civis de última instância,
chamados para administrar restaurantes populares, inspecionar
aquecedores, uniformizar pesos e medidas e encontrar crianças perdidas.
Não antes do final do século XIX eles começaram a se dedicar mais ao
controle do crime; à medida que fizeram isto, reduziu-se o variado espectro
de serviços sociais, entre os quais se incluía o abrigo noturno de milhares
de mendigos". E. H. Monkkonen, "History of Urban Police", in Crime
and Justice: AReview of Research, vol. 15, p. 547 (Chicago: University of
Chicago Press, 1992). A tensão entre as funções relacionadas à
"manutenção da ordem" em geral ·e aquelas específicas relacionadas ao
"controle do crime" continua a afetar o policiamento moderno.
Pesquisadores sociais têm reiteradamente descoberto que a polícia se auto-
identifica com a última função, mas que ocupa a maior parte do tempo
desempenhando a primeira. Veja-se D. Bayley, Police for the Future (Nova

130
Iorque: Oxford University Press, 1994), cap. 2, e R. Reiner, The Politics ofthe
Police, 2ª ed. (Hemel Hernstead: Hruvester Wheatsheaf, 1995).
10
Veja-se C. Emsley, "The History of Crime and Crime Control
Institutions", in M. Maguire et al. (orgs.), The Oxford Handbook of
Criminology, 2ª ed. (Oxford: Oxford University Press, 1997).
11
Sobre a importância do controle social informal na redução do crime e
da violência nos EUA, v. R. Lane, Murder in America: A History
(Colurnbia: Ohio State University Press, 1997), e, na Grã-Bretanha, v. M.
Clarke, "Citizenship, Community and the Management of Crime", British
Joumal of Criminology, 1987, 27(4), pp. 384-400. Para uma discussão
criminológica, v. J. Q. Wilson, "Crime and American Culture", em sua
obra Thinking About Crime, 2., ed. (Nova Iorque: Vintage, 1983).
12 É claro que o controle do crime informal e a justiça privada continuaram a

desempenhar um papel na produção de "lei e ordem" ao longo do século


XIX e de boa parte do século XX. Isto é particularmente verdadeiro para os
EUA, uma sociedade ainda muito inóspita durante boa parte daquele período;
v. J. P. Reid, Policing the Elephant: Crime, Punishment and Social Behaviour
on t!ie Overland Trail (San Marino-CA: Huntington Library, 1997). E então
havia o linchamento - prática que matou quase 3 .000 pessoas (em sua maioria
afro-americanos) entre 1882 e 1930. Veja-se S. E. Tolney e E. M. Beck, A
Festival of Violence: An Analysis of Southern Lynchings, 1882-1930
(Urbana: University of Illinois Press, 1995). Todavi~ na maior parte do século
XX, o equilíbrio entre controle do crime privado e público pendeu para este;
v. L. Johnston, The Rebirth of Private Policing (Londres: Routledge, 1992).
Citando fontes norte-americanas e britânicas, Engstad e Evans notam a
"mudança gradual de responsabilidade pelo controle do crime (e o 'tratamento'
de um vasto espectro de problemas sociais) dos cidadãos para a polícia(... ).
De modo geral, a polícia saudou a ampliação de sua esfera de responsabilidade
e o concomitante aumento dos seus poderes (...), tenham eles sido adquiridos
por pressão ou por atos legislativos ( ... ). Correlatamente, parece que os
cidadãos desejavam se desvencilhar da responsabilidade de controlar o
crime", P. Engstad e J. L. Evans, "Responsibility, competence and police
effectiveness in crime contrai", in R. V. Clarke e M. Hough (orgs.), The
Effectiveness of Policing (Aldershot: Gower, 1980).
13
Como Robert Reiner argumentou, "o surgimento da polícia - uma
organização especializada em executar as tarefas de regulação e de vigilância,
com o monopólio estatal do uso legítimo da força como sua fonte última -
er~ por si só, um paradigma do moderno. Foi afirmado sobre o projeto de
organizar a sociedade em tomo de uma noção central, coesa, de ordem",
R. Reiner, "Policing a Postmodern Society", The Modem Law Review,
voL 55, n" 6, novembro de 1992.
131
14
Veja-se V. A. C. Gatrell, "Crime, Authority and the Policeman-State",
in F. M. L. Thompson (org.), Cambridge Social History of Britain,
1750-1950, Vol. 3: Social Agencies and Institutions (Cambridge:
Cambridge University Press, 1992). Sobre o declínio no número de crimes
na Grã-Bretanha do final do século XIX, v. V. A. C. Gatrell, "The Decline
of Theft and Violence in Victorian and Edwardian England", in V. A. C.
Gatrell et ai. (orgs.), Crime and the Law: The Social History of Crime in
Western Europe Since 1500 (Londres: Europa, 1980), e M. Clarke,
"Citizenship, Community and the Management of Crime"; M. Wiener,
Reconstructing the Criminal: Culture, Law and Policy in England,
1830-1914 (Cambridge: Cambridge University Press, 1990), e L.
Radzinowicz e R. Hood, A History of the English Criminal Law and its
Administration, vol. 5 (Oxford: Clarendon Press, 1990). Sobre a situação
norte-americana, v. R. Lane, "Urban Police and Crime in Nineteenth
Century Ame rica", in Crime and Justice: An Annual Review of
Research, vol. 2 (1980), e Murder in America: A History; e T. R. Gurr
(org.), Violence in America, Vol. 1: The History of Crime (Beverley
Hills-CA: Sage, 1989).
15 Para evidências históricas sobre os crescentes níveis de controle social

informal no período Vitoriano, v. R. Lane, Murder in America (Columbia:


Ohio State University Press, 1997), M. Clarke, "Citizenship, Community
and the Management of Crime", e J. Q. Wilson, "Crime and the American
Character'. Para uma análise das tendências mais amplas em relação ao
controle social, v. F. Fukuyama, The Great Disruption: HumanNature and
the Reconstitution of Social Order (Nova Iorque: Toe Free Press, 1999).
16
Políticos provavelmente compartilham este senso de que os destinos
políticos das medidas penais-previdenciárias dependem da percepção de
que o crime está sob controle. Veja-se A. E. Bottoms e S. Stevenson, '"What
Went Wrong?': Criminal Justice Policy in England and Wales, 1945-197(]',
in D. Dowes (org.), Unravelling Criminal Justice (Basingstoke: MacMillan,
1992). Eles citam o memorando do Home Secretary britânico R.A. Butler, que
comenta a minuta do Penal Practice in a Changing Society, um documento
central no surgimento do previdenciarismo penal: "(As versões finais) devem
ter alguma referência ao atual sucesso da polícia (...). Tenho dúvidas sobre se
as idealísticas porções desde documento, elaborado para esquematizar o
caminho no futuro, serão entendidas de maneira adequada, caso não se
suavize, em algum ponto dos parágrafos iniciais, a eficiência da força policial
e o presente estágio de operação da lei penal" (p. 12).
17 Sobre a importância do controle social informal e da ação comunitária

na contenção dos índices de criminalidade antes dos anos 1950, v. M.


Clarke, "Citizenship, Community and the Management of Crime"; e L.

132
Johnson, The Rebirth of Private Policing. Para descrições etnográficas
destes controles comunitários, v. N. Elias e J. Scotson, The Established
anel the Outsiders (Londres: Cass, 1965). Sobre a história das interações
entre a polícia e as comunidades de trabalhadores na Grã-Bretanha, na
primeira metade do século XX, v. P. Cohen, "Policing the Working Class
City", in R. Fine et al. (orgs.), Capitalism anel the Rule of Law (Londres:
Hutchinson, 1979).
18Partido Conservador escocês, Tomorrow Scotland: Better with the
Con.sen1atives (Edimburgo: Scottish Conservative and Unionist Party Central
Office, 1970).
19
Um bom exemplo da tendência moderna de mais confiança nas agências
estatais do que nos processos sociais é encontrado no relatório do American
President's Crime Commission, um documento central da política criminal
no período penal-previdenciário. Em sua análise retrospectiva do citado
relatório, Mark Moore aponta a visão "fundamentalmente reativa" de
controle do crime que nele está implícita. "A concentração de atenção
nas agências públicas do sistema penal necessariamente significa retirar
a ênfase do papel que indivíduos e instituições da sociedade civil -
famílias, grupos comunitários, igrejas, associações comerciais -
desempenham em controlar o crime, tanto por si próprios como também
na condição de apêndices do sistema penal. O relatório não enfatizou o
papel central desempenhado pelas vítimas e testemunhas na ativação
das agências da justiça criminal para tratar de crimes específicos, nem
mencionou a importância das iniciativas individuais e coletivas
direcionadas à proteção de suas propriedades, bem como à intervenção
junto a cidadãos que estão se comportando mal. Outrossim, o Crime
Commission não chamou a atenção para o papel que as associações
comerciais buscam desempenhar, seja assegurando a manutenção da
ordem nas ruas em que suas lojas estão situadas, seja dando emprego
para os adolescentes da vizinhança. Não enfatizou o papel de grupos
religiosos em apoiar mães solteiras que lutam para criar seus filhos. Tais
esforços foram vistos como localizados fora das fronteiras da justiça
criminal", M. H. Moore, "The Legitimation of Criminal Justice Policies
and Practices", Perspectives on Crime and Justice, 1996-1997 Lecture
Series (Washington DC: NU, 1997).
20 Sobre o uso da expressão "alta modernidade", v. l C. Scott, Seeing Like a
State (New Haven: Yale University Press, 1998). De acordo com Scott, alta
modernidade "é mais bem concebida como uma versão forte, poder-se-ia até
dizer robusta, da auto-confiança do progresso técnico e científico, a expansão
da produção, a crescente satisfação das necessidades humanas, o controle da
natureza (inclusiva da natureza humana) e, sobretudo, o desenho racional da

133
equivalência entre a ordem social e a compreensão científica das leis naturais
(...). Houve, para dizer o mínimo, uma afinidade eletiva entre a alta modernidade
e o interesse de muitas autoridades públicas" (pp. 4-5). A discussão de Scott se
escora parcialmente em D. Harvey, The Condition of Post-Modemity: An
Inquiry into the Origins of Social Change (Oxford: Basil Blackwell, 1989), p.
35. Sobre o "conhecimento governamental", v. D. Yergin e J. Stanislaw, The
Commanding Heíghts. Os autores contrastam o "conhecimento governamental
- a inteligência coletiva daqueles que tomam decisões no centro" - com o
"conhecimento do mercado - a inteligência difusa daqueles entes privados
que tomam decisões e dos consumidores nas lojas" (p. 11).
21 Veja-se D. Garland, Puníshment and Welfare, p. 242. Não fosse pelo
aumento no número de criminosos proce.ssados, a população prisional em
ambos os países teria se reduzido durante boa parte do século XX. A
mudança de ênfase do tratamento em custódia para a correção comunitária
é evidente na President's Commission on Law Enforcement and the
Administration of Justice, The Challenge of Crime in a Free Society
(Washington DC: Govemment Printing Office, 1967). A Law Enforcement
Administration Agency norte-americana, criada pelo Omnibus Crime
Control Act de 1968, enfatizou particularmente a "desinstitucionalização"
e medidas comunitárias, no que toca à distribuição de recursos e ao
desenvolvimento de projetos. Veja-se, também, a US National Advisory
Commission on Criminal Justice Standards and Goals, A National Strategy
to Reduce Crime: Final Report (Washington DC: Govemment Printing
Office, 1973), p. 187: "os Estados deveriam evitar a construção de mais
instituições para jovens infratores: os Estados deveriam abandonar as
instituições atuais num período de 5 anos. Eles também deveriam deixar de
construir mais instituições estatais para adultos nos próximos dez anos, salvo
onde o planejamento institucional demonstre a necessidade imperiosa delas".
De igual forma, a Juvenile Justice and Delinquency Prevention Act de 1974
buscava "desencorajar o uso de internação e de detenção" e, ao mesmo
tempo, promover "alternativas comunitárias à detenção juvenil e aos
estabelecimentos correcionais". Veja-se A. Pisciotta, "A Retrospective Look
at the Task Force Report on Juvenile Delinquency and Youth Crime", in J. A.
Conley (org.), The 1967 President's Crime Commission Report: Its Impact 25
Years Later (Cincinnatí: Anderson, 1994).
22
Veja-se E. Goffman, Asylums (Londres: Penguin Books, 1961 ), pp. 80-1: "é
sabido por todos que as instituições totais normalmente não conseguem
cumprir seus objetivos oficiais. É menos sabido que cada um destes objetivos
ou aspectos oficiais parecem adequados a prover uma chave ao significado
- uma linguagem que o corpo de funcionários e, às vezes, os internos podem
utilizar em cada brecha da ação institucional ( ...). Paradoxalmente, então,

134
enquanto instituições totais parecem ser o menos intelectual dos lugares, é
nelas que, pelo menos recentemente, o cuidado com as palavras e perspectivas
verbalizadas desempenham um papel central e febril".
23
Sobre os efeitos neutralizadores das medidas penais-previdenciárias,
v. D. Garland, Punishment and Welfare, pp. 241-2. Para uma discussão
acerca das leis sobre encarceramento precautório nos EUA, v. A. Von
Hirsch, "Review of F. Allen 's Decline of the Rehabilitative Ideal",
University of Pennsylvania Law Review (1983), vol. 131, p. 822.
24
Veja-se o comentário de Michael Serrill acerca do hiato entre a pena
aplicada e o tempo efetivamente cumprido: "existem avisos afixados nos
balcões do Chemical Bank em Nova Iorque, que estampam, em letras
maiúsculas, a seguinte mensagem: 'roubo a banco é crime, punido com
20 anos em prisão federal'. Os avisos são um logro. Mas seu impacto
seria enfraquecido se fossem mais precisos, e estampassem o seguinte:
'a punição simbólica por roubo a banco é de 20 anos de prisão. A punição
verdadeira é amorfa, podendo consistir no livramento condicional de
até 20 anos, dependendo do acordo feito entre o acusado e o órgão
acusatório, das crenças pessoais do juiz relacionadas ao roubo de
bancos, da superpopulação das prisões federais e da opinião dos agentes
de liberdade vigiada acerca da recuperação e/ou da periculosidade do
criminoso"', M. Serrill, "Detenninate Sentencing: The History, the
Theory, the Debate", Corrections Magazine (1977), vol. 3: pp. 3-13.
25
Home Office, The War Against Crime (Londres: HMSO, 1964). Para
uma discussão sobre as várias iniciativas norte-americanas destinadas a
desenvolver uma base de pesquisa criminológica para informar a formulação
de políticas, v. L. Radzinowicz, The Need for Criminology (Londres:
Heinemani., 1965) eAdventures in Criminology (Londres: Routledge, 1999),
cap. 16.
26
"Uma boa instituição correcional é algo mais do que um edifício reluzente
( ... ). É uma oficina composta de pessoas preparadas, empenhadas em
transformar os cidadãos socialmente fracassados em cidadãos úteis", T.
Morris, "Social Values and the Criminal Act", The Nation, 4 de julho de
1959.
27
Sobre a contradição entre o propósito penal e a mentalidade do trabalho
social, v. M. D. Jacobs, Screwing the System and Making it Work: Juvenile
Justice in the No-Fault Society (Chicago: University of Chicago Press,
1990). Para uma discussão a respeito do impacto do pensamento do
trabalho social sobre a prática norte-americana da liberdade vigiada, v. J.
Simon, Poor Discipline: Parole and the Social Control of the Underclass
(Chicago: University of Chicago Press, 1993), cap. 3.

135
28
Sobre o papel central dos experts desde a política criminal norte-
americana do President's Crime Commission, do final da década de 1960,
até as reformas das leis sobre sentenciamento no início dos anos 1980, v.
S. Pillsbury, "Why Are We Ignored? The Peculiar Place of Experts in the
Current Debates about Crime and Justice", Criminal Law Bulletin
Gulho-agosto de 1995), p. 313. Na Grã-Bretanha, v. L. Radzinowicz,
Adventures in Criminology (Londres: Routledge, 1998), cap. 13.
29
Sobre o amplo apoio bipartidário ao previdenciarismo penal na Grã-
Bretanha, v. L. Radzinowicz, Adventures in Criminology (Londres:
Routledge, 1999), cap. 13, e Lord Windlesham, Responses to Crime, vol. 2:
Penal Policy in the Making (Oxford: Oxford University Press, 1993), pp.
105-6. Prova de situação similar nos EUA pode ser encontrada na
platafonna da campanha republicana de 1968. Embora os republicanos
buscassem transformar o "crime nas ruas" em questão nacional, seu
compromisso com o previdenciarismo penal permaneceu inabalado. A
plataforma oficial postulava "o aumento no número de pesquisas sobre
as causas e sobre a prevenção do crime, a delinqüência juvenil e sobre o
vício das drogas" e "uma nova abordagem ao problema de criminosos
crônicos, incluído o reaparelhamento do sistema correcional e o
aperfeiçoamento de técnicas de reabilitação". A plataforma eleitoral
republicana de 1972 foi igualmente afirmativa: "nós temos dedicado mais
atenção à reabilitação de criminosos do que em qualquer outro tempo na
história da nação": D. B. Johnson, National Party Platforms, Vol. II,
1960-1976 (Urbana: University of Illinois Press, 1978), pp. 751 e 869.
30
V., por exemplo, o President's Crime Commission, The Challenge of Crime
in a Free Society (1967), p. 6: "a guerra contra a pobreza, contra a habitação
inadequada e contra o desemprego é uma guerra contra o crime. Um lei que
confere direitos civis é uma lei contra o crime. Dinheiro para as escolas é
dinheiro contra o crime. Serviços de aconselhamento médico, psiquiátrico e
familiar são serviços contra o crime. De maneira mais ampla e importante,
qualquer esforço para melhorar a vida nas cidades da América é um esforço
contra o crime". Na Grã-Bretanha, o ponto alto desta abordagem é o
Killbrandon Report de 1964, no qual os elementos penais e previdenciários
se misturavam completamente - v. Lord Killbrandon, Children and Young
Persons in Scotland (Edimburgo: HMSO, 1964). O Social Work Act escocês
de 1968, que se seguiu ao relatório de Killbrandon, aboliu departamentos
separados de livramento condicional, tornando a supervisão do livramento
condicional uma função de departamentos genéricos de assistência social. A
lei também instituiu o Children 's Hearing System - um tribunal orientado
pelos valores de bem-estar, administrado por assistentes sociais e voluntários
que temperavam a justiça juvenil com o bem-estar infantil.

136
31
Sobre as teorias penais utilitárias de Cesare Beccaria e Jeremy Bentham,
v. J. Heath, Eighteenth Century Penal Theory (Oxford: Oxford University
Press, 1963).
32
Para um testemunho veemente sobre esta posição nos EUA, v. K.
Messinger, The Crime of Punishment (Nova Iorque: Viking, 1968), e na
Grã-Bretanha, J. R Rees, Mental Health and the Offender (Londres: Clarke
Hall Fellowship, 1947). Para urna crítica dos seus argumentos e evidências,
v. B. Wootton, Social Science and Social Pathology (Londres: Allen &
Unwin, 1959). Para urna discussão acerca da formação da criminologia
modernista, v. D. Garland, "The Criminal and his Science", British
Joumal of Criminology (1985), voL 25, nQ 2, pp. 109-37.
33
Da Primeira Guerra Mundial até o final dos anos 1980, poucas
publicações ou estatutos do governo britânico usaram a palavra "punição"
em seus títulos. Aqueles que o fizeram eram tipicamente leis que restringiam
a aplicação da pena capital ou de penas corporais ou leis que revogavam
estatutos anteriores que previam tais penas.
34
Expressão de origem grega, incorporada pela língua inglesa, que significa
"as 1nassas", "o povo con1um" (N. T).
35
Veja-se N. Elias, The Civilizing Process (Londres: Blackwell, 1999), D.
Garland, Punishment and Modem Society (Oxford: Oxford Uníversity Press,
1990), eA Rutherford, Criminal Justice and the Pursuit ofDeceney (Oxford:
Oxford University Press, 1993). N. T.: A escolha do adjetivo civilizador, em
vez da forma mais corrente civilizatório, foi ditada pelo desiderato de manter-
se a uniformidade vocabular. É que a obra de Norbert Elias, citada nesta
nota pelo autor e por ele muitas vezes referida nesta e em outras de suas
obras, foi traduzida por Ruy Jungmann para o português como "O Processo
Civilizador" (Rio de Janeiro, 1994, Jorge Zahar Ed., 2 vols.).
36
Veja-se P. J. Young, "Punishment, Money and Legal Order", tese de Ph.D.
não publicada (Edimburgo: Universíty ofEdínburgh, 1987).
37
Para uma análise desta guinada teórica dos processos sociais para os
processos individuais, v. D. Garland, Punishment and Welfare.
38
Sobre as relações entre a criminologia e o governo, v. D. Garland, "Of
Crime and Criminais: The Development of Criminology in Britain", in
M. Maguire et ai. (orgs.), The Oxford Handbook of Criminology, 2ª ed.
(Oxford: Oxford University Press, 1997), e "Criminological Knowledge
and its Relations to Power: Foucault's Genealogy and Criminology
Today", British Joumal of Criminology (1992), voL 32, n-" 4, pp. 403-22.
Para um relato interno, v. L. Radzinowicz, The Cambridge Institute: Its
Background and Scope (Londres: HMSO, 1988).

137
39
Sobre o desenvolvimento da teoria criminológica na Grã-Bretanha ao
longo do século XX, v. P. Rock (org.), A History of British Criminology
(Oxford: Oxford University Press, 1988). Sobre a teoria criminológica nos
EUA, v. G B. Vold e T. Bernard, Theoretical Criminology, 2~ ed. (Nova
Iorque: Oxford University Press, 1979).
40
Os escritos mais importantes desta tradição foram R. K. Merton, "Social
Structure and Anomie", in R. K. Merton, Social Theory and Social
Structure, ed. revista (Nova Iorque: Free Press, 1968); A. Cohen,
Delinquent Boys: The Culture of the Gang (Nova Iorque: Free Press,
1955); R. A. Cloward e L. E. Ohlin, Delinquency and Opportunity (Nova
Iorque: Free Press, 1960); e D. Downes, The Delinquent Solution
(Londres: Routledge & Kegan Paul, 1966). Teorias da anomia e da falta
de oportunidades e expectativas frustradas ressoaram junto aos
formuladores das políticas e aos próprios políticos: o trabalho de Cloward
e Ohlin foi adotado pelo programa governamental do Mobilizatíon for
Youth, no meio da década de 1960; v. M. B. Katz, The Undeserving Poor:
From the War on Poverty to the War on Welfare (Nova Iorque: Pantheon,
1989), pp. 96-7. Na Grã-Bretanha, as idéias de Merton e de Cohen
apareceram nos manifestos políticos sobre crime dos partidos políticos,
no final dos anos 1960. V. Conservative Party, Crime Knows No
Boundaries (Londres: Conservatíve Party Central Office, 1966); Labour
Party, Crime: A Challenge To Us Ali (The Longford Report) (Londres:
Labour Party, 1964). O manifesto de 1970 do partido conservador
escocês, Tomorrow Scotland: A Better Future with the Conservatives,
identifica as "raízes" do crime nos "problemas sociais, no despreparo
educacional e nas frustrações econômicas".
41
Veja-se U. Beck, The Risk Society: Towards aNew Modernity (Londres:
Sage, 1992). Beck discute os problemas clássicos das modernas
sociedades industriais e as soluções criadas para enfrentá-los. Ele
contrasta estes problemas e soluções com outros mais reflexivos da
pós-modernidade e da "sociedade de risco".
42
V., genericamente, E. Hobsbawm, The Age of Extremes (Londres:
Michael Joseph, 1994) e D. Yergin e J. Stanislaw, The Commanding
Heights.
43
Minha discussão sobre as versões hobbesianas, marxistas e
durkheimianas do problema da ordem se baseia em D. Wrong, The Problem
of Order (Nova Iorque: Free Press, 1994).
44
Para uma discussão sobre as diferentes formas que o Estado de
bem-estar assumiu nos EUA e na Grã-Bretanha, v. G. Esping-Anderson,
The Three Worlds of Welfare Capitalism (Cambridge: Polity, 1990).

138
Sobre a crescente convergência das políticas sociais britânicas e
norte-americanas nos anos 1980 e 1990, v. J. Holmwood, "The
Americanization of British Social Policy'' (texto sem publicação, no
arquivo do autor). Para um relato da estrutura singular do Estado de
bem-estar norte-americano, que é mais localizada do que a do Estado
britânico e mais claramente dividida entre assistência pública e
seguridade social, e que confia mais nas agências privadas para a
execução destes serviços, v. M. B. Katz, lmproving Poor People
(Princeton-NJ: Princeton University Press, 1995), cap. 1. Sobre a Grã-
Bretanha, v. A. Digby, British Welfare Policy: Workhouse to Workfare
(Londres: Faber&Faber, 1989).
45
Aqui, talvez se queira distinguir o impacto das medidas do New
Deal, tais como o Social Security Act de 1935, que operavam "para
prevenir os não-pobres de caírem na pobreza", da produção legislativa
da Great Society, como, por exemplo, o Economic Opportunity Act
de 1964, que "se preocupava primordialmente em ajudar os pobres a
ascender no mundo". Veja-se C. Jencks, Rethinking Social Policy
(Cambridge-MA: Harvard University Press, 1992), p. 3. Sobre os
efeitos econômicos da legislação social, v. T. Cutler, K. Williams e J.
Williams, Keynes, Beveridge and Beyond (Londres: Routledge &
Kegan Paul, 1986), e D. Yergin e J. Stanislaw, The Commanding
Heíghts (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1998). Como Paul Pierson
anota, "em todas as democracias avançadas, o Estado de bem-estar
foi uma parte central do contexto do pós-guerra, que introduziu um
quarto de século de prosperidade inaudita ( ... ). O desembolso social
foi um instrumento-chave da política macro e microeconômica. O
Estado de bem-estar era considerado uma ferramenta poderosa,
produzindo deficit durante períodos de recessão e (ao menos em
tese) superavit em períodos de expansão. Em nível microeconômico,
os. programas de previdência social serviram para compensar,
parcialmente, importantes falhas do mercado. A assistência médica
decente, a habitação digna e um mínimo de segurança econômica
podem contribuir para o potencial dos trabalhadores, e mesmo as
empresas vêem estes fatores como benefícios públicos. Os Estados
de bem-estar contrabalançam a tendência do setor privado de investir
pouco em sua própria força de·trabalho", P. Pierson, Dismantling the
Welfare State (Nova Iorque: Cambridge University Press, 1994), pp.
2-3. Por volta de 1971, a política norte-americana ainda estava sendo
orientada pelos postulados keynesianos. Veja-se D. Yergin e J.
Stanislaw, The Commanding Heights, p. 60, para uma discussão sobre
o keynesianismo de Nixon e o orçamento do programa de "pleno
emprego" daquele ano. Sobre a ascensão e queda do keynesianismo
139
na Grã-Bretanha, v. o cap. 4 de P. Hall, Governing the Economy
(Cambridge: Polity, 1986).
46
Veja-se H. J. Aaron, Politics and the Professors: The Great Society
ín Perspective (Washington DC: Brookings Institute, 1978); M. Weir,
A. S. Orloff, e T. Skocpol (orgs.), The Politics of Social Policy in the
Uníted States (Princeton-NJ: Princeton University Press, 1988); M.
B. Katz, The Undeserving Poor (Nova Iorque: Pantheon, 1989), cap.
3, "The Intellectual Foundations of the War on Poverty". (N.T.: A
Great Society consistiu num conjunto de programas sociais
propostos ou implementados nos EUA, durante o mandato de Lyndon
Johnson (1963-1969), com o objetivo de eliminar a pobreza e a injustiça
racial. A Great Society se inspirou no New Deal de Franklin
Roosevelt, no que concerne às atividades internas.)
47
Para evidências comparativas sobre o apoio da classe média às
medidas previdenciárias estatais, v. P. Baldwin, The Politics of
Solidarity: Class Bases of the European Welfare State (Nova Iorque:
Cambridge University Press, 1990) e R. E. Goodin e J. Le Grand (orgs.),
Not Only the Poor: The Middle Classes and the Welfare State (Londres:
Allen & Unwin, 1987). Para evidências no cenário dos EUA, v. C.
Howard, The Hidden Welfare State: Tax Expenditures and Social Policy
in the United States (Princeton-NJ: Princeton University Press, 1997).
J. K. Galbraith destaca que foi apenas na década de 1970, quando uma
classe média mais abastada começou a questionar os benefícios públicos
que recebiam em troca de seus impostos, que estes mecanismos estatais
de bem-estar vieram a ser seriamente combatidos: J. K. Galbraith, The
Culture of Contentment (Londres: Sinclair-Stevenson, 1992). Para
provas de que, a despeito deste questionamento, os programas vitais do
Estado de bem-estar sobreviveram mais ou menos intactos, v. P. Pierson,
Dismantling the Welfare State: Reagan, Thatcher and the Politics of
Retrenchment (Nova Iorque: Cambridge University Press, 1994).
48
J. Rawls, A Theory of Justice (Oxford: Clarendon Press, 1962). Os
argumentos altamente técnicos de Rawls e sua prosa difícil exerceram
influência para além do universo da filosofia, porque sua abordagem
expressava o ethos social dominante do seu tempo.
49
Sobre esta forma de governabilidade social, v. J. Donzelot, The
Policing of Families (Londres: Hutcheson, 1980); G. Steinmetz,
Regulating the Social: The Welfare State and Local Polítics in Imperial
Germany (Princeton-NJ: Princeton University Press, 1993); P. Hirst,
"The Genesis of the Social", in Politics and Power, vol. 3 (Londres:
Routledge & Kegan Paul), pp. 67-82. Sobre a significação da seguridade

140
social enquanto instituição política e econômica, v. E Ewald, L'Etat
Providence (Paris: B.Grasset, 1986).
50
H. Perkin, The Rise of Professional Society (Londres: Routledge,
1989): "a observação de Titmuss de 1965 poderia ser aplicada para
qualquer período do século XX: 'ao longo dos últimos vinte anos,
sempre que o povo britânico identificou e investigou um problema
social, seguiu-se uma convocação nacional por mais trabalho social
e mais assistentes sociais treinados'" (p. 349).
51
Sobre a história norte-americana, v. A. J. Polsky, The Rise of the
Therapeutic State (Princeton: Princeton University Press, 1991). Para
evidências acerca da situação britânica, v. H. Perkin, The Rise of
Professional Society.
52Veja-se J. Simon, Poor Discipline (Chicago: University of Chicago
Press, 1993).
53
Veja-se E Fukuyama, The Great Disruption, e W. G Skogan, Disorder
and Decline: Crime and the Spiral of Decay in American Neighborhoods
(Nova Iorque: Free Press, 1990).
54
Veja-se L. Radzinowicz, "Public Opinion and Crime", in Medicine, Science
and Law, 1961, vol. 2, n9 1, pp. 24-32, e F. Zirnring e G. Hawkins, Capital
Punishment and the AmericanAgenda (Nova Iorque: Cambridge University
Press, 1986), cap. 1.

141
3. A crise do modernismo penal

Na metade da década de setenta do século XX, o apoio ao


previdenciarismo penal começou a ruir em razão da pressão feita
por um ataque continuado a suas premissas e práticas. Em questão
de poucos anos, houve uma rápida e marcante guinada na filosofia
e nos ideais penais - guinada que marcou o início de um período
turbulento de mudança, que dura até os presentes dias. Nas déca-
das que se seguiram, este processo resultaria em mutações impor-
tantes nas leis relativas ao sentenciamento, nas práticas prisionais,
no livramento condicional, na liberdade vigiada e no discurso po-
lítico e acadêmico sobre o crime. Este período de mudança foi
precedido pela crítica ao correcionalismo e pelo ataque coordena-
do às penas indeterminadas e ao tratamento individualizado. Tais
desdobramentos rapidamente levaram a um desencanto mais fun-
damental - não apenas com o previdenciarismo penal, mas com
todo o Estado de justiça criminal em sua forma moderna. Essa
transformação reconfigurou o campo do controle do crime e da
justiça ciiminal e reorientou suas políticas e práticas, freqüente-
mente em direções bastante distintas daquelas para as quais apon-
tavam as críticas originais. Um movimento, que inicialmente visa-
va a ampliar os direitos dos presos, minimizar o encarceramento,
restringir o poder estatal e a proscrever a prisão cautelar, desa-
guou, em última instância, em políticas que postulavam exatamente
o contrário. Como explicar esta estranha alteração no curso dos
acontecimentos?
Esta sucessão de acontecimentos se toma mais intrigante pelo
fato de representar uma ruptura radical da trajetória penal inicial-
mente estabelecida. Durante os séculos XIX e XX, ocorreram rom-
pantes periódicos na atividade de reforma penal, mas normalmen-
te levavam muito tempo para se formar e miravam problemas e
deficiências institucionais há muito reconhecidas como tais. A ação
legislativa era tipicamente o ápice de um processo prolongado de

143
agitação e persuasão, assim como mantinha coerência com tradici-
onais programas de reforma. O que é notável no ataque dos anos
1970 ao correcionalismo é que, longe de representar o momento
culminante dos existentes programas de reforma, marcou a oposi-
ção repentina das opiniões progressistas aos mesmos programas.
Ninguém poderia ter previsto tal desfecho, e efetivamente nin-
guém o fez. A história dos cem anos precedentes testemunhou a gra-
dual incorporação do modelo reabilitador pela ideologia ortodoxa de
especialistas e políticos, bem como sua transformação em importante
elemento da prática da justiça criminal. No início dos anos 1970, o
previdenciarismo penal e a penalogia progressista eram os elementos
estruturantes centrais do campo e formavam a base programática da
maioria das propostas políticas. O repentino ataque crítico e a rapidez
com que este ataque mudou as coordenadas da justiça criminal foram
tidos por muitos operadores da justiça criminal como fenômeno con-
traditório e profundamente marcante.
A exemplo do que sucedeu com os profissionais da justiça
criminal, o colapso do correcionalismo também pegou despreve-
nidos os criminólogos e sociólogos, muito embora alguns destes
últimos tenham fornecido apoio intelectual e prático para a oposi-
ção ao antigo regime. Se as previsões viessem deles, as principais
teorias sociais da modernização e da racionalização provavelmen-
te teriam previsto o oposto do que viria a ocorrer subseqüente-
mente. Escrevendo na metade da década de 1970, autores como
Michel Foucault e Michael Ignatieff argumentaram que a aborda-
gem correcionalista estava enraizada nas estruturas da moderna
sociedade ocidental. O Estado regulador, as estruturas de discipli-
na e normalização, a ideologia previdenciária, o crescimento da
profissionalização e da política social baseada em pesquisa, as
políticas inclusivas da sociedade de massa - todos estes fatores
proporcionavam apoio ao correcionalismo e amparavam suas ins-
tituições. Se análises como estas mereciam algum crédito, as ten-
dências reabilitadoras da justiça criminal pareciam fazer parte do
contexto da modernidade. O correcionalismo seria um elemento
necessário da própria modernidade, e não apenas um modismo
que vai e vem 1.
E, no entanto, o correcionalismo efetivamente se foi. Ou, para
ser mais preciso, foi subitamente despejado de sua posição central,
144
axiomática, e forçado a desempenhar um papel bem diferente e re-
duzido nas políticas e práticas posteriores. No curso de poucos
anos, as ortodoxias da fé reabilitadora desapareceram em virtual-
mente todos os países desenvolvidos, ao passo que os reformistas
e acadêmicos, políticos e intelectuais e, finalmente, os operadores
do sistema se dissociaram dos seus postulados. Com rapidez sur-
preendente, um ideal liberal progressista veio a se tornar reacioná-
rio e perigoso para os mesmos grupos que anteriormente o acalen-
taram. Em nenhum lugar esta reviravolta foi tão espetacular como
nos EUA, até então o país mais comprometido com as políticas e
práticas correcionalistas.
A sucessão dos acontecimentos nos deixa um problema pro-
fundo para a análise histórica e sociológica: um problema que le-
vanta questionamentos sobre as instituições penais e sua dinâmica
de transformação, mas também acerca do contexto social e das
crenças culturais sobre as quais estas instituições penais são
erguidas. Este capítulo examinará os detalhes deste evento
penalógico e iniciará a tarefa de explicação histórica e sociológi-
ca. Em sendo assim, é importante ter em mente que nos depara-
mos com dois problemas históricos. Estes dois problemas normal-
mente estão lado a lado, mas são, de fato, bem distintos e exigem
análise e explicação apartadas. O primeiro é o problema do evento
inicial: por que a abordagem penal-previdenciária perdeu sua for-
ça no imaginário penalógico e na prática institucional? Este é o
problema tratado neste capítulo. A outra questão se refere à se-
qüência posterior dos acontecimentos: por que as políticas e práti-
cas subseqüentes assumiram a forma determinada que viriam a
assumir? Esta questão bem distinta será objeto dos capítulos
seguintes.
A transformação que se iniciou na metade dos anos 1970 en-
volveu forças sociais e investiu contra as fontes ideológicas que
compunham o Estado de bem-estar e as políticas progressistas da
social-democracia. De importantes maneiras, estas críticas ao cam-
po penal-previdenciário foram lançadas de dentro das estruturas e
dos compromissos básicos do próprio campo. Porém, à medida
que o processo de mudança se desenvolveu no final dos anos 1970
e nos anos 1980, primeiramente nos EUA e depois na Grã-Bretanha,
ele foi apropriado por outros grupos e forças sociais, caracterizan-
145
do-se por posições ideológicas e penalógicas que se relacionavam a
estruturas sociais, relações de classe e experiências culturais bem
diferentes. Este capítulo conta a história do colapso das fundações
intelectuais do antigo campo e das causas criminológicas imedia-
tas que levaram tal processo a termo. Os capítulos subseqüentes
cuidarão das mudanças sociais e culturais subjacentes, que possi-
bilitaram tal transformação.
As críticas norte-americanas ao correcionalismo
No limiar dos anos 1970, uma enxurrada de publicações norte-
americanas criticavam pesadamente o previdenciarismo penal e seu
"niodelo de tratamento individualizado". A primeira e mais radical
destas publicações foi o relatório do Partido Trabalhista do American
Friends Service Commitee - intitulado Struggle for Justice - que
veio a lume em 1971. Este relatório declarava peremptoriamente
que "o modelo de tratamento individualizado, ideal perseguido pelos
reformistas nos últimos cem anos, é teoricamente falho, sistemati-
camente discriminatório em sua administração e incompatível com
alguns dos nossos conceitos mais básicos de justiça" 2. No desen-
volvimento de sua crítica ao con-ecionalismo, os acadêmicos, ativistas
e ex-prisioneiros que compunham o Partido Trabalhista aliaram-se
explicitamente ao então recém-criado movimento pelos direitos dos
presos e apresentaram seu trabalho como parte de um esforço mai-
or por justiça social, econômica e racial. Seus objetivos políticos
eram, neste particular, muito mais explícitos e radicais do que seri-
am os de muitas outras vozes subseqüentes envolvidas no debate,
assim como suas propostas de reforma da lei penal eram menos
precisas. No entanto, o poderoso testemunho do relatório acerca de
seus temas críticos causou enorme impacto internacional e passou
a pautar as discussões e debates que se seguiram.
O alvo primordial do relatório era o uso discriminatório do
poder punitivo pelo sistema de justiça criminal, especialmente atra-
vés do encarceramento, considerado um instrumento para repri-
mir negros, pobres, jovens e as minorias culturais. De acordo com
os autores do relatório, este uso discriminatório do poder estatal
era escamoteado pela operação do modelo de tratamento individua-
lizado, que legitimava e fazia recrudescer tais abusos, enquanto si-
multaneamente camuflava as duras realidades da pena com um ver-
niz benigno, paternalista. Todavia, se o público e os operadores do
146
sistema se iludiam com esta camuflagem, aqueles que verdadeira-
mente vivenciavam as entranhas do sistema-os próprios prisionei-
ros - não se impressionavam. O relatório falava de uma "revolução
de baixa visibilidade" em andamento nas cadeias e penitenciárias,
onde greves e rebeliões já haviam começado, e alertava que os "pri-
sioneiros não mais se submeterão ao que lhes estão fazendo a título
de 'tratamento' ou de 'reabilitação"' 3.
O relatório consubstanciava uma crítica completa do Estado
de justiça criminal e da ideologia correcionalista que o sustentava.
A "penalogia progressista" era criticada por seu paternalismo e
hipocrisia, por sua fé ingênua de que a pena poderia produzir re-
sultados úteis e por sua inclinação a impor "tratamento" num am-
biente punitivo, com ou sem o consentimento dos criminosos. As
teorias deterministas e métodos positivistas da criminologia
cmTecionalista foram atacados, bem assim suas crenças de que a
violação da lei penal era sintomática de patologias individuais e
de que os costumes da classe média branca eram sinônimo de boa
saúde social. Sobretudo, o relatório engendrou uma investida crí-
tica ao poder punitivo discricionário, encarnado pelas sentenças
indeterminadas de tratamento e de custódia preventiva. Este poder
- "impressionante no alcance e, por sua própria natureza,
incontrolável" - era sistematicamente utilizado de maneira
discriminatória e repressiva, em sincronia com as necessidades de
controle por parte das instituições penais ou dos interesses políti-
cos da classe dominante.
O programa de reforma que o relatório preconizava era gené-
rico e exortatório, em vez de conter um bem elaborado plano de
mudanças legais. Suas demandas penalógicas se voltavam à con-
tenção do poder punitivo - restringindo o uso das sentenças ape-
nas para os casos de crimes efetivamente praticados, abolindo o
sentenciamento individualizado em favor de penas uniformes e
proporcionais, mitigando as penas em favor das menos onerosas e
drásticas e estabelecendo um "bill of rights dos presos". Sua solu-
ções políticas mais amplas enfatizavam a "mudança social e eco-
nômica", o "fortalecimento" de comunidades oprimidas e de grupos
fragilizados e o "retirar a justiça criminal dos nossos calcanhares",
através da descriminalização e do uso de métodos voluntários, não-
estatais, de lidar com os problemas sociais. Finalmente, ele propu-

147
nha a disponibilização de "um conjunto completo de terapia,
aconselhamento e de serviços psiquiátricos e educacionais, gratuita-
mente, em regime de trabalho voluntário, para toda a população,
dentro e fora das prisões" 4 .
O aspecto marcante deste primeiro grande ataque ao
previdenciarismo penal, ainda que em sua versão radical, foi a
extensão com que partiu de dentro do quadro da democracia social,
previdenciária. Como seus postulados deixaram claro, ele continuou
a ver o crime como produto da privação social e econômica, assim
como recorria ao Estado para prover as reformas sociais e o apoio
previdenciário necessários para enfrentar o problema social. O que
radicalizou o documento e o diferenciou dos textos críticos que o
precederam foi o objeto diverso de crítica. Uma profunda desconfi-
ança do poder estatal; um profundo cinismo quanto às motivações
profissionais; a insistência em que o tratamento não devia estar vin-
culado à pena; a preocupação pela "autodeterminação" e pelo "for-
talecimento" dos pobres e das minorias que compunham a clientela
das instituições penais-previdenciárias- estes eram os destaques do
novo discurso crítico.
Na formulação de seus reclamos heréticos, o relatório do
American Friends Service Commitee invocava fontes criminoló-
gicas, bem como a cultura mais ampla do radicalismo dos direitos
civis dos anos 1960 e dos protestos contra a guerra. Muitas de suas
posições teóricas já haviam sido alcançadas no seio da criminolo-
gia acadêmica, que, num ambiente de educação superior em ex-
pansão, já se tornara menos dependente das instituições da justiça
criminal e cada vez mais crítica da prática convencional. No final
dos anos 1960, um novo estilo de criminologia sociológica come-
çou a se distanciar de antigas teorias que consideravam o crime
produto da privação e da patologia. Estas novas "sociologias do
desvio" concebiam o crime como uma forma de ação racional e
cheia de significado, na qual o status desviante era resultado de
uma negociação, e não algo intrínseco. Segundo seus cada vez
mais influentes termos, a categoria do "desvio" era um produto
das relações de poder, e não de patologias individuais. O relatório
Struggle for Justice efetivamente transformou esta nova perspecti-
va teórica em vigorosa crítica da prática correcionalista5 •

148
A experiência dos autores do relatório com o movimento de
direitos civis mostrou-lhes a disseminação da discriminação de
raça e de classe social na sociedade norte-americana. Isto, junta-
mente com a experiência do tratamento brutal dispensado pela
polícia aos manifestantes de tais movimentos, ressaltou o potenci-
al de arbitrariedade e de coerção do Estado de justiça criminal e
seu uso como instrumento de opressão política6 . Com efeito, para o
campo da justiça criminal, a nova crítica à reabilitação era direta-
mente proporcional aos clamores por direitos civis, processo que já
tinha se iniciado com a Warren Court1 nos anos 1960 e sua aplicação
das proteções derivadas do devido processo legal aos suspeitos e
jovens infratores. Representava, também, umareleitura forçada dos
valores do legalismo - um conjunto de valores que desempenhava o
papel residual, porém contínuo, no campo penal-previdenciário, de
símbolo da tradição secundária do compromisso entre modos soci-
ais e legais de regulação. Muitas das preocupações externadas pelo
relatório - sobre a redução da importância do ideal de reabilitação na
prática institucional ou o problema da discricionariedade ilimitada-
não representaram nada além da mera releitura, em termos mais
veementes, daquilo que fora assentado por escritores como Francis
Allen e Kenneth Culp Davk A diferença residia na circunstância de
que Allen e Davis eram críticos simpáticos ao sistema, ao passo que
os autores do relatório eram oponentes diretos deste8.
O argumento do relatório contra o tratamento penal compul-
sório encarnava a preocupação com a dignidade individual e com
a liberdade de expressão - tema central da cultura jovem dos anos
1960. Era um protesto contra as políticas do conformismo e contra
a tendência do governo total e das organizações burocráticas de
esmagar a individualidade, seja através de meios coercitivos, seja
através da persuasão do saber especializado. A preocupação com a
autenticidade, com o "little man" e seu direito de ser diferente, e o
receio do potencial autoritarismo do governo e da ciência vincula-
ram o relatório a uma poderosa corrente cultural daquele tempo. É
possível encontrar estes mesmos motes em romances populares e
em filmes do período, tais como A Laranja Mecânica ou Um Es tra-
nho no Ninho. É possível, também, encontrá-los no trabalho de
filósofos da pena, alguns dos quais reagiram à prevalente face
utilitarista do correcionalismo, reforçando a importância da integri-

149
dade moral individual e a autonomia do indivíduo. O paradoxo, ar-
gumentavam eles, consistia no fato de que no Estado moderno valo-
res individualistas eram mais protegidos pela pena retributiva do que
por um correcionalismo invasivo que a todos arrastava para o con-
formismo9.
Em 1971, argumentar-se que a reabilitação era ineficaz, quan-
do analisada segundo seus próprios critérios de avaliação da redu-
ção da reincidência e da prevenção do crime, era um ato de heresia
criminológica. Asseverar que esta abordagem não possuía nenhu-
ma base científica, não dispunha de nenhuma técnica confiável de
diagnóstico e tampouco de qualquer técnica efetiva de tratamento
significava dizer, de forma ainda mais provocante, que a ortodoxia
estabelecida se baseava numa rede de mitos e falácias. No entanto,
mesmo esta ousada assertiva veio de algum lugar. Ela se sustenta-
va numa série de descobertas negativas e de estudos, particular-
mente sobre o impacto dos programas correcionais de encarcera-
mento, que se acumulavam no campo já há algum tempo, mas que
vinham sendo ignorados por causa do seu caráter perturbador, de
sua capacidade de questionar o paradigma vigente. A rejeição fron-
tal do relatório ao modelo de tratamento - posição politicamente
motivada ainda muito incomum nos círculos progressistas - per-
mitiu-lhe reinterpretar aqueles estudos e descobertas não como
anomalias ou limitações fáceis de serem superadas, mas como prova
empírica das deficiências fundamentais do modelo.
Nos anos seguintes, as questões levantadas no relatório
Struggle for Justice ecoaram em círculos ainda mais centrais, por
intermédio de uma leva de publicações que davam voz às objeções
ao estado de coisas de então. A prova empírica do fracasso dq
tratamento foi resumida em 1974 por Robert Martinson num arti-
go muito lido e citado, publicado no The Public Interest, intitulado
"What Works in Prison Reform?". Com base na análise c9njunta
de 231 estudos de caso, realizados entre 1945 e 1967, Martinson
chegou à devastadora conclusão de que "com poucas e isoladas
exceções, o esforço de reabilitação até agora noticiado não teve
nenhum efeito apreciável na reincidência". Desde o início, as des-
cobertas de Martinson foram vistas por todos como provas empíricas
cabais do fracasso do sistema, e se tomaram a base para os clamo-
res de que "nada funciona". Esta visão exagerada e um tanto niilista
150
seria posteriormente reforçada por uma série de pesquisas, inclusi-
ve por algumas publicações do governo britânico. Em poucos anos,
tornou-se verdade unânime 1°.
Em 1973, Jessica Mitford publicou um estudo tendencioso do
sistema prisional norte-americano, que levou a crítica às prisões e à
reabilitação ao conhecimento do grande público - público este já
influenciado por notícias negativas 01iundas da cobertura jornalística
da rebelião no presídio de Attica, em 1971, e dos seus trágicos
desdobramentos 11 . No ano seguinte, Norval Morris, um dos mais
proeminentes criminólogos norte-americanos e simpatizante de lon-
ga data do modelo de reabilitação, reconheceu a força do emergente
movimento crítico. Seu livro, The Future of Imprisonment, buscou
temperar o impacto das críticas pregando a limitação dos poderes
discricionários das sentenças e a desvinculação da decisão de liber-
tação dos processos de tratamento 12 .
É talvez pouco surpreendente que, numa sociedade intima-
mente ligada aos direitos derivados do devido processo legal e aos
problemas relativos à discriminação, a posição crítica que atraiu
mais apoio tenha sido o ataque ao sentenciamento por tempo
indeterminado e aos poderes discricionários a ele inerentes. Numa
série de ensaios muito lidos e em seu livro Criminal Sentences:
Law Without Order, de 1972, o juiz Marvin Frankel preconizou
mecanismos legais de controle à discricionariedade judicial, a fim
de proscrever a "justiça sem lei". Esta demanda por reforma nas
leis sobre sentenciamento foi encampada e aprofundada por Andrew
von Hirsch no trabalho Doing Justice: The Choice of Punishments
- The Report of the Commitee for the Study of Incarceration, bem
como na obra Fair and Certain Punishment, o relatório da
Twentieth-Century Fund Task Force, ambos publicados em 1976.
Estes textos propugnavam a revogação das leis que permitiam a
prolação de sentenças indeterminadas, restrições ao uso da liber-
dade vigiada, aplicação de penas fixas, proporcionais ao crime e não
ao criminoso, e o estabelecimento de diretrizes ao sentenciamento
que guiassem o processo judicial decisório e reduzissem as
disparidades nas condenações. Os mesmos tipos de críticas e de
contra-propostas podiam ser encontrados no livro de Morris e no
trabalho de David Fogel intitulado We Are The Living Proof .. the
Justice Model of Corrections (publicado em 1975), com a significa-
151
tiva diferença de que Morris admitia deixar alguma discricionariedade
aos juízes e aos conselhos de avaliação do livramento condicional.
Tanto Morris quanto Foge!, por outro lado, ainda entreviam certa
utilidade da custódia precautória de criminosos "perigosos". Tais
proposições foram secamente rejeitadas pelo retributivismo advoga-
do por Von Hirsch e pelo comitê que produziu o Doing Justice 13 •
Ao contrário da maioria dos estudo críticos, que continuavam
a trabalhar dentro de um enfoque utilitário, mesmo aqueles que
enfatizavam a preferência por produzir menos danos do que mais
benefícios, Doing Justice explicitamente endossava uma filosofia
retributivista da pena. Ele destacava a superioridade moral da pena
proporcional, sintonizada com o passado - "pena justa" - e os peri-
gos, imorais e autoritários, das medidas penais baseadas em previ-
sões de criminalidade futura ou na avaliação da personalidade ou do
modo de vida do indivíduo. Pela primeira vez em décadas, e em
franca contradição com a ortodoxia prevalecente, um importante
trabalho de penalogia discutiu um caso genérico de pena retributiva
como um fim em si mesmo 14 . A outra novidade do livro - que rapi-
damente se tornaria um marco no discurso e na prática das leis
sobre sentenciamento - era o aparecimento de um cardápio rudi-
mentar de penas: uma matriz com dois eixos que estabelecia uma
relação de penas em que o primeiro eixo mediria o crime em julga-
mento e o segundo, eventuais crimes pretéritos 15 . Ao longo das
duas décadas seguintes, o foco da discussão penalógica seria a ela-
boração deste retributivismo revigorado e os detalhes técnicos de
sua aplicação às leis e práticas de sentenciamento.
James Q. Wilson repercutiu esta nova corrente por penas fi-
xas e determinadas em 1975, no seu best-seller Thinking About
Crime, mas seu trabalho conferiu um significado muito diferente à
idéia de reforma das leis sobre sentenciamento 16 . Em franca contra-
dição com o American Friends, Wilson desdenhava das tentativas
de reduzir o crime através de programas sociais ou da redistribuição
de renda; ao mesmo tempo, era um proponente acendrado de uma
abordagem neoconservadora às questões sociais. Ele externou dú-
vidas sobre a equanimidade e utilidade dos tratamentos individuali-
zados, endossando ardorosamente a idéia de penas com prazo de
duração fixo. Porém, sua preocupação não era assegurar a "pena
justa" ou "minimizar o poder estatal". Em vez disto, almejava a uti-
152
lização de penas intimidatórias, que deveriam ser rigorosamente apli-
cadas e suficientemente duras para desestimular os criminosos po-
tenciais. Mais do que isto, suas soluções preferidas eram policia-
mento mais vigoroso e punições mais severas e certas, isto é, inti-
midação e controle, em lugar de mais bem-estar. A exemplo de Emest
Van Den Haag, cuja obra Punishing Criminais surgiria no ano se-
guinte, Wilson insistia em que as taxas norte-americanas de
criminalidade eram altas porque as chances de o criminoso ser cap-
turado, condenado e severamente punido haviam diminuído muito.
Argumentava que a intimidação era o fator que deveria nortear a
fixação das penas, bem como que criminosos perigosos ou contu-
mazes deveriam ser submetidos a longas penas e, em alguns casos,
à pena de morte. Estas propostas foram, é claro, inteiramente con-
denadas pelos autores liberais, que haviam começado a campanha
porrefo1mas das leis sobre sentenciamento indeterminado 17 .
O impacto na política e na prática dos EUA e da Grã-
Bretanha
O movimento reformista por penas determinadas criou uma
inusitadamente ampla e influente aliança de forças. A campanha
incluía não apenas os radicais membros dos movimentos em favor
dos presos, advogados liberais e juízes reformistas, mas também
filósofos retributivistas, criminólogos desiludidos e conservado-
res linha-dura. Mais do que isto, seu alcance se estendia para além
das fronteiras dos Estados Unidos, influenciando o pensamento na
Grã-Bretanha, onde rapidamente surgiriam livros e artigos que en-
dossavam a crítica à reabilitação e encampavam a alternativa
retributivista 18 . Em poucos anos, o movimento logrou conquistar
uma série de êxitos práticos, notadamente a aprovação de uma lei
sobre sentenciamento determinado em 1976, na Califórnia- estado
onde o regime de penas indeterminadas e de tratamento indi viduali-
zado havia sido implantado com mais sucesso. Nos anos seguintes,
outros estados seguiriam o exemplo- com destaque para Minnesota,
que estabeleceu uma comissão para análise das sentenças e aderiu
com estreita fidelidade às propostas inspiradas pela "pena justa" do
relatório Doing Justice. Nas duas décadas subseqüentes, quinze es-
tados estabeleceram parâmetros para as condenações e vinte e cin-
co instituíram regras fixas para a aplicação da liberdade vigiada, ao
passo que outros dez a eliminaram por completo 19 . Em 1970, todos
153
os estados norte-americanos possuíam leis regulamentando a conde-
nação a penas indeterminadas. Nos trinta anos que se seguiram, quase
todos os estados, de alguma forma, repudiaram esta orientação, le-
vando a cabo uma importante transformação nas políticas e práticas
relacionadas às sentenças condenatórias. Outros países também
adotaram a rationale da "pena justa", conferindo-lhe um lugar mais
explícito e central na política oficial, conforme evidenciado mais
claramente pelo White Paper de 1990 do governo britânico, intitulado
Crime, Justice and Protecting the Public, e pelo Criminal Justice
Act de 1991 20 .
Todavia, o sentenciamento não foi absolutamente a única prá-
tica afetada. Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, da década de
1970 em diante, autoridades do sistema prisional começaram a aban-
donar os programas de tratamento e os objetivos "reabilitadores" do
encarceramento e, por certo tempo, foram atraídos para o que viria
a ser conhecido como "modelo correcional justo". O fluxo de re-
cursos públicos para os programas de tratamento e para as pesqui-
sas voltadas ao desenvolvimento de novos métodos de tratamento
foi interrompido nos anos 1980. Funcionários das agências de livra-
mento condicional e de liberdade vigiada começaram a refletir sobre
sua missão, retirando-a do paradigma do tratamento e enfatizando
as funções de controle e vigilância. No que concerne à justiça de
menores, aprovaram-se leis que introduziam garantias relacionadas
ao devido processo legal e, ao mesmo tempo, afastavam-na da ide-
ologia previdenciária e correcionalista, dominante nos anos 1960 e
1970, aproximando-a do formato da justiça criminal para adultos 21.
As mudanças legislativas e práticas que se verificaram no nas-
cimento deste movimento reformista foram freqüentemente incom-
patíveis com os objetivos iniciais que seus proponentes buscavam
alcançar. No último quarto do século XX, as "reformas nas senten-
ças condenatórias" mais populares nos Estados Unidos - adotadas
em todos os estados da federação, assim como em âmbito federal-
foram a introdução de penas mínimas obrigatórias, medida que em
nada se relacionava ao movimento original da "pena justa". E para
cada estado que, como Minnesota, levava a sério os princípios libe-
rais da pena justa, e que buscou alcançar a eqüanimidade e unifor-
midade sem aumentar, simultaneamente, o uso do encarceramento,
houve muitos outros que estabeleceram parâmetros condenatórios
154
mais punitivos e encarceradores do que antes. A preocupação de
substituir as penas indeterminadas por penas fixas e determinadas
propiciou a criação de comissões de análise das sentenças e a fixa-
ção de parâmetros de condenação. Porém, com maior freqüência,
resultou em leis que estabeleciam penas minimas obrigatórias, que
expandiram agudamente os níveis de encarceramento 22 . Ao longo
do tempo, a preocupação liberal com a pena justa, com a proporci-
onalidade e com a minimização da coerção penal abriu caminho para
políticas mais severas relacionadas à intimidação, à prisão preventi-
va, a longas penas de prisão e, finalmente, a condenações expressi-
vas, exemplares, bem corno ao encarceramento em massa - políti-
cas completamente dissonantes dos princípios e intenções dos re-
formistas liberais originais. De forma semelhante, a crítica à prisão
e ao seu fracasso correcional encorajou, num primeiro momento, o
maior uso de mecanismos comunitários e a realização de experiên-
cias com o desencarceramento e a descriminalização. Todavia, nos
anos posteriores, a desilusão com o potencial reformador da prisão
preparou o teneno parn uma visão bem diferente do encarceramen-
to, que enfatizava sua efetividade enquanto instrumento padrão de
punição e de neutralização, através das penas de longa duração 23 .
"Nada funciona": a disseminação do paradigma do
fracasso
O colapso da fé no correcionalismo iniciou uma onda de des-
moralização, que minou a credihilidade de instituições-chave do
controle do crime e, pelo menos por certo período, de todo o siste-
ma de justiça criminal. Durante o final da década de 1970 e ao
longo da década de 1980, a influência desmoralizante daquilo que
David Rothman chamou de "o paradigma do fracasso" se espalhou
na maioria dos setores da justiça criminal. Influenciadas pelos resul-
tados negativos de pesquisas e estudos, pelas crescentes taxas de
criminalidade, mas também por um espraiado sentimento de desilu-
são e pessimismo, as instituições, uma após a outra, passaram a ser
vistas como ineficientes ou contraproducentes. Primeiramente usa-
da em relação aos programas prisionais de tratamento, a noção de
que "nada funciona" veio a ser aplicada a outras medidas, tais como
o livramento condicional, os mecanismos correcionais comunitári-
os e, de forma mais geral, as penas intimidatórias. Do final da déca-
da de 1970 em diante, formou-se também um poderoso conjunto de
155
opiniões críticas relacionadas às várias políticas sociais e aos pro-
gramas de criação de empregos, que se supunha contribuírem para
a prevenção do crime, bem como para aumentar o bem-estar. Con-
solidou-se, assim, a visão de que o "tratamento" simplesmente não
funcionava, seja sob a forma de terapia individual, seja sob a forma
de programas sociais mais abrangentes 24 .
O ceticismo quanto à efetividade da justiça criminal logo
afetaria também o policiamento. Pesquisas norte-americanas
muito citadas sugeriam que a polícia era muito menos eficiente
na prevenção do crime e na prisão de criminosos do que se
supunha. Estudos como a experiência de policiamento preven-
tivo realizada na cidade de Kansas demonstraram o impacto
limitado do aumento do patrulhamento, bem como do policia-
mento de rotina. Heal e outros relataram descobertas semelhan-
tes na Grã-Bretanha; o Home Office britânico publicou infor-
mações perturbadoras sobre a raridade com que a polícia se
deparava com o crime nas ruas, no exato momento de sua prá-
tica - em média, segundo o relatório, um policial conseguia
flagrar um crime apenas uma vez a cada oito anos 25 .
Desde cedo, este senso de limitada eficácia e de baixa produ-
tividade começou a afetar o sistema de justiça criminal por inteiro,
criando uma atmosfera de desmoralização, que as significativas
revelações oriundas de pesquisas junto às vítimas foram incapazes
de dissipar. Na metade da década de 1980, era comum ouvir auto-
ridades públicas apontarem o baixo impacto das intervenções da
justiça criminal sobre o crime. O Home Office freqüentemente ci-
tava estatísticas segundo as quais em apenas 2% ou 3% dos crimes
conhecidos havia a aplicação de alguma pena, e na maioria dos ca-
sos tratava-se de multa ou de advertência. Este "efeito funil" do
sistema de justiça criminal - primeiramente descrito no relatório
de 1967 da President s Commissíon - havia se tornado verdade ab-
soluta, na medida em que cada vez mais especialistas reconheciam
o fracasso do sistema na luta contra o crime.
A despeito do fato de ser uma disciplina acadêmica em franco
progresso, expandindo sua influência no círculo acadêmico e pro-
duzindo mais pesquisas e publicações como nunca antes visto, a
criminologia também foi afetada por esta noção de fracasso. O pro-
jeto básico da criminologia - de descobrir as causas do crime e
156
identificar as formas de reduzi-lo - era cada vez mais visto como
falho, no sentido de alcançar algum resultado minimamente útiL
Esta crítica foi feita mais incisivamente pelo conservador James
Q. Wilson, que publicamente salientou a inabilidade da criminolo-
gia de superar suas preocupações ideológicas (liberais, de esquerda)
e duvidou de sua capacidade de produzir o tipo de conhecimento
concreto, prático, de que necessitavam os políticos. Entretanto, o
mesmo tipo de opinião também partiu de outros pontos do espectro
ideológico. Jock Young, um expoente da criminologia radical, apon-
tou para a "crise etiológicà' da criminologia moderna- seu fracasso em
estabelecer conclusões causais confiáveis-, e John Croft, ex-chefe do
departamento de pesquisa criminológica do H ome Office, declarou em
1981 que "a pesquisa criminológica ... foi um fracasso" 26 .
Como veremos nos capítulos seguintes, esta disseminada
sensação de fracasso, alimentada pelo grande aumento nas ta-
xas de criminalidade, nos anos 1970 e 1980, redundaria no
questionamento da habilidade estatal de controlar o crime, bem
como na reflexão sobre o papel da justiça criminal. Ensejaria o
surgimento de novas formas de criminologia, uma nova série
de prioridades em termos de controle do crime e uma nova com-
preensão acerca da relação entre atividades estatais e não-esta-
tais no campo do controle do crime. No entanto, seu efeito mais
imediato foi o de criar uma espécie de vácuo ideológico na es-
fera da política criminal. A reabilitação e o correcionalismo não
haviam desaparecido, mas suas ações estavam completamente
em baixa. No final da década de 1970, não era possível, sem al-
gum constrangimento, apoiar o modelo antigo: fazê-lo significava
estar aparentemente fora de contato com a realidade, significava
apoiar o fracasso, significava expor-se a críticas de todos os lados.
Sem embargo, não existia um enfoque alternativo pronto para ocu-
par aquele espaço vazio. O resultado disto foi um período tumultu-
ado de atividade legislativa, em que uma multiplicidade de políticas e
programas novos e conflitantes foram desenvolvidos para preen-
cher a lacuna. Em vez de ser o ápice do centenário projeto
correcionalista, o final da década de 1970 marcou o nascimento de
um novo e contestado campo do controle do crime.
O ataque ao tratamento individualizado abriu as comportas para
um período de mudança que tem perdurado desde então. Foi a fase
157
de abertura de um processo de transformação que operou mudan-
ças cruciais nas instituições, nas idéias e nas práticas ao longo de
todo o campo do controle do crime. Não obstante, se pararmos
para considerar o que isto significa, parece que estamos a sugerir
algo bastante improvável. Será, realmente, que uma série de publi-
cações críticas - a maioria das quais escritas por autores sem muita
expressão na criminologia, num tempo em que as prateleiras das
bibliotecas estavam saturadas de literatura correcional - foi capaz
de desestabilizar completamente todo o edifício do Estado penal-
previdenciátio? Certamente, esta é agora a narrativa padrão - aquela
da qual os manuais se valem para explicar a reorientação histórica
qa política criminal27 • Porém, será que as avaliações críticas real-
mente foram tão eficazes, neste particular, ao passo que são tão
pouco efetivas em outros aspectos? Pense-se, por exemplo, na lite-
ratura crítica sobre o encarceramento, em que contestações vee-
mentes e descobertas negativas vêm acompanhando há séculos a
prática sem produzir maiores alterações. Colocar as questões desta
forma sugere fortemente que o relato histórico padrão está decidi-
damente desequilibrado. Como estas intervenções críticas vieram a
ter tão drásticas conseqüências? Como foi possível que uma série
de críticas disparasse uma reação em cadeia tão importante? Como
alguns poucos acadêmicos puderam causar o colapso de uma es-
trutura institucional, como se fosse um castelo de cartas?
Os limites da narrativa padrão
Raymond Aron certa vez observou que os principais even-
tos históricos são sempre "criados a partir de causas genéricas
(e) completados, tais como o foram, por acidentes". Apenas a
análise mais superficial buscaria explicar um evento pela se-
qüência de ações fortuitas, sem referir-se a processos históri-
cos fundamentais 28 . Nada obstante, a narrativa padrão das re-
centes mudanças penais atribui este grande acontecimento ao
impacto causado por uma série de críticas publicadas. O senso
comum aponta para as críticas direcionadas ao modelo
correcionalista e considera que estes ataques foram suficientes
para solapar sua viabilidade. A interpretação é de que a força
dos argumentos críticos disparados contra o regime penal-
previdenciário foi tamanha que o fez ruir, em face das avalia-
ções veementemente negativas. Olhando-se de perto, entretan-
158
to, há razões para se duvidar que o colapso do campo possa ser
adequadamente explicado desta forma.
De um lado, havia interesses profissionais em jogo e uma ampla
infra-estrutura de práticas e crenças, que normalmente não seria su-
perada pela força de críticas acadêmicas ou idéias contrárias. De ou-
tro lado, estas críticas teóricas, filosóficas e políticas à reabilitação
nos anos 1960 e 1970 não constituíam objeções recém-descobertas:
estes argumentos formavam um contraponto recorrente às propostas
correcionalistas desde o século XIX. Precisamente porque os propo-
nentes do correcionalismo logravam convencer os políticos de que
tais críticas eram inconsistentes, ou podiam ser preteridas por outros
benefícios, é que se estabeleceu o previdenciarismo penal29 .
A noção de que a reabilitação foi abandonada porque os críti-
cos um dia acordaram e se deram conta das perigosas possibilida-
des dessa proposta e da sua inclinação natural ao abuso é uma ver-
são moderna do conto de fadas da refonna iluminista. Em sua histó-
ria da tortura e das leis sobre prova, John Langbein descreve como
"conto de fadas" a nairativa oferecida pelos historiadores, quando
estes sustentam que a abolição da tortura foi o resultado das críticas
morais elaboradas pelos pensadores iluministas. ContraestanaITati-
va padrão, Langbein argumenta que a tortura foi abandonada no
final do século XVIII não por causa dos escritos filosóficos críti-
cos, mas por causa de circunstâncias institucionais e culturais que
conferiram um poder contextual a estes escritos, inexistente quan-
do outros autores desenvolveram anteriormente as mesmas críti-
cas. Esta é uma lição explicativa que devemos ter em mente quando
pensamos sobre o colapso do correcionalismo 30 .
Pode-se objetar que, embora as críticas de matiz teórico ou
político não fossem novas, as descobertas empíricas negativas o
eram, e que tais descobertas foram suficientes pai·a diminuir o apelo
da reabilitação e pai·a desestabilizar, em seu desfavor, a balança de
opiniões. Esta asse1iiva é mais convincente, pois certamente as des-
cobertas empíricas repercutiram profundamente junto às autorida-
des governamentais e aos políticos. Todavia, há motivos pai·a reser-
vas também quanto a esta interpretação.
Em primeiro lugar, descobertas negativas foram produzidas
por pesquisas empíricas desde os anos 1930. Anteriormente, tais
descobertas foram utilizadas pai·a ajustar e refinai· os regimes de
159
tratamento - por exemplo, através do aperfeiçoamento dos proces-
sos de seleção e classificação - e não para questionar a próp1ia idéia
de tratàmento 31 .
Em segundo lugar, as descobertas disponíveis na metade da
década de 1970 não eram absolutamente inequívocas. Mesmo o
tendencioso sumário da literatura de Martinson identificava alguns
êxitos ocasionais, e novas análises subseqüentes dos seus dados
produziram interpretações mais otimistas. Aliás, Martinson rapi-
damente se retrataria e reformularia muitas de suas conclusões,
embora tal retratação tenha sido amplamente ignorada, recebendo
pouca publicidade. Naquelas circunstâncias, certamente teria sido
possível montar uma forte contra-crítica aos métodos de meta-aná-
lise de Martinson e aos padrões de avaliação hTeais que ele apli-
cou. Alguma crítica neste sentido foi produzida na época, mas não
mereceria atenção até muito tempo depois 32 •
Em terceiro lugar, como vimos no capítulo anterior, havia
um estoque inteiro de respostas à disposição dos defensores do
status quo que poderiam ter sido utilizadas para prevenir as críti-
cas. A reabilitação não dispunha de recursos adequados; seu im-
pacto era anulado por contextos punitivos e encarceradores; havia
a necessidade de mais treinamento para o pessoal das agências, de
melhor seleção dos internos, de mais individualização, de mais acom-
panhamento, e assim por diante. Podia-se argumentar que as insti-
tuições de reabilitação eram vítimas do seu próprio sucesso: elas
haviam se multiplicado desordenadamente, aplicadas a todos os ti-
pos de criminosos, fossem eles recomendados a tratamento ou não.
Em outras palavras, teria sido bem possível explicar o problema
pela falha na sua implementação - visão que dispunha de infindáveis
provas e de muito apoio profissional, e que permitira às autoridades
públicas mascarar suas próprias falhas. No que concerne a proble-
mas relacionados à equanimidade e às liberdades civis, teria sido
possível desenvolver salvaguardas e reformas limitadas, sem ne-
cessariamente abandonar o enquadramento geral - precisamente o
que foi proposto por figuras exponenciais como Norval Mon-is nos
Estados Unidos e por Nigel Walker na Grã-Bretanha33 .
É claro que o aumento no número de crimes e da violência em
geral, bem como as novas evidências (oriundas de pesquisas de
opinião junto às vítimas) sobre a generalização do desvio criaram
160
uma atmosfera na qual se tornou difícil argumentar que o status quo
estava funcionando bem. No entanto, criminólogos podiam apontar
para o efeito de fatores demográficos ou para mudanças na forma
de comunicação de crimes ou, ainda, para a necessidade de maiores
esforços relacionados à prevenção social e à intervenção terapêuti-
ca. Em qualquer caso, se o sistema penal-previdenciário estava indo
mal naquela conjuntura, não havia nenhuma prova de que aborda-
gens aHernati vas teriam mais êxito. Tivessem sido mobilizados es-
tes argumentos defensivos, talvez se pudesse esperar que prevale-
cessem, pelo menos para a finalidade de evitar mudanças radicais.
Afinal de contas, é notoriamente árduo superar a inércia de um sis-
tema institucional, uma vez estabelecido. Todavia, esta linha de de-
fesa não foi adotada, e onde ela o foi, não obteve muito sucesso.
Como podemos explicar isto? Por que a defesa do sistema penal-
previdenciário foi tão fraca? Que fatores internos e externos mina-
ram aquele enfoque e fortaleceram os setores que o atacaram?
O caráter cambiante da criminologia acadêmica
Quando a crítica ao previdenciarismo penal se cristalizou na
metade da década de 1970, já existia uma série de correntes na
criminologia acadêmica que se harmonizavam perfeitamente com o
novo movimento. Estes desdobramentos criminológicos tinham raízes
intelectuais e institucionais próprias, bastante distintas daquelas do
movimento reformista, mas ambas se combinaram sem dificulda-
des e, com o tempo, aparentavam constituir parte da mesma reação
crítica ao sistema penal-previdenciário.
No final dos anos 1960, tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha,
a criminologia "positivista" se deparou com um ataque vigoroso da
crítica acadêmica, amparada em fontes tão díspares como a teoria
rotulacionista e a etnometodologia, o marxismo e a filosofia da ciên-
cia. Na relativa liberdade dos departamentos acadêmicos em expan-
são e num ambiente cultural cada vez mais crítico das idéias do
saber especializado e do consenso de valores sobre os quais a crimi-
nologia positivista se assentava, os criminólogos voltaram a conectar
seu objeto de estudo às tradições mais amplas e críticas da teoriza-
ção sociológica. Começaram, também, a reavaliar e a redescrever o
problema do crime de um modo bem diferente do da criminologia
tradicional- menos um problema de patologia individual ou social e
mais uma questão de rotulacionismo e de pânico moral induzido
161
pela mídia, ou de relações de poder e baixa tolerância para com a
saudável diversidade. A generalidade do desvio era, nos anos 1960,
um fato social cada vez mais aceito, cuja visibilidade proveio do
estudo de casos, da experiência colhida pelos juizados de menores e
dos novos padrões da cultura jovem, tidos como desviantes pelas
gerações mais velhas 34 . Isto, juntamente com a experiência dos mo-
vimentos de direitos civis e contra a guerra, propiciou que os soci-
ólogos mais jovens se identificassem estreitamente com desviantes
e inadequados e adotassem uma postura mais "simpática" em rela-
ção a eles. As ações dos criminosos deveriam ser referidas como
sig1úficativas, merecedoras de análise e talvez até mesmo de respei-
to, da mesma forma que, na política previdenciária radical, as vozes
dos pobres foram ouvidas, pela primeira vez. Autores norte-ameri-
canos como David Matza, Howard Becker, Edwin Lemert e outros
naNational Deviancy Conference britânica problematizaram o status
do desvio, do crime e dos processos oficiais de reação e controle.
Centraram a atenção no comportamento crinúnoso que fosse ambí-
guo em seu significado e moralidade - crimes sem vítimas, estilos
de vida e crimes sexuais, uso de drogas leves, crimes de baixa
lesividade- e argumentaram que estes problemas eram construídos
pelos mesmos processos criados para tratá-los. Do ponto de vista
desta nova sociologia do desvio, muito da conduta criminosa era de
fato normal, saudável e amplamente desfrutada - expressiva da diversi-
dade humana e não de patologias perigosas. O problema verdadeiro
residia no controle excessivo e não no desvio em si.
Esta criminologia radical, tão influente nos círculos acadêmi-
cos no final dos anos 1960 e nos anos 1970, tem uma significação
cultural e histórica que vale a pena ressaltar. Embora seu surgimen-
to tenha coincidido com o período de aumento mais acelerado das
taxas de criminalidade no século XX, muitos dos seus temas pare-
cem bem desvinculados daquele fenômeno em vários aspectos. O
fato de, sem prejuízo disto, ter angariado tanta influência nos círcu-
los acadêmicos sugere que o medo do crime era muito menos disse-
minado então do que viria a ser posteriormente, bem como que
tinha pouca importância para a classe média jovem, educada, que
compunha seu público principal. No final da década de 1960 e no
início da década de 1970, ainda era possível conceber as ansiedades
populares com o crime como fenômeno fundamentalmente engen-

162
drado pela mídia-os "pânicos morais". Também era possível, para
esta literatura criminológica, desprezar os crimes mais graves- rou-
bos, agressões, estupros, homicídios - e concentrar-se naquelas for-
mas de desvio mais contestadas no seu significado e menos claras no
que tange ao dano social que produziam.
Retrospectivamente, as teorias rotulacionistas radicais pareci-
am reconhecer com primazia que o crime é normal, que o desvio é
endêmico, algo que "todo mundo faz". O mais interessante e carac-
terístico, neste tópico, é que se trata de uma reação despreocupada.
A mensagem era de que o desvio e a ilegalidade constituíam fenô-
menos generalizados, com os quais, porém, todos podiam conviver.
A melhor reação era ser tolerante, não dar muita importância, não
exagerar. O "crime", enquanto tal, não era o problema. A questão
era o "controle" - a repressão estatal, mas também o controle bem-
intencionado, paternalista, à maneira previdenciária. A exemplo do
movimento contracultural dos anos 1960, cujas preocupações eco-
ava fielmente, o tema central da nova criminologia consistia na li-
berdade de expressar-se e na libertação dos indivíduos da autorida-
de arbitrária. Idéias como segurança pessoal e pública, medo do
crime e preocupação com as vítimas possuíam pouca proeminência
nesta literatura35 .
Os novos criminólogos - e seu aliados nos movimentos radi-
cais do trabalho social e da psiquiatria- se engajaram numa críti-
ca de sua própria disciplina universitária e desafiaram as credenci-
ais dos especialistas, que até então vinham sendo a base da autori-
dade dos criminólogos. Para a maioria dos grupos ocupacionais,
isto lhes pareceria suicídio profissional. No contexto de liberdade
acadêmica, idealismo político e radicalismo cultural recém-instituí-
dos, tais considerações foram totalmente desprezadas. Naquele
momento histórico, apenas poucos autores radicais demonstraram
grande preocupação com os riscos futuros ou com usos reacionári-
os dos argumentos radicais. Em lugar disto, a mai01ia organizou um
ataque à epistemologia institucional da conente dominante da crimi-
nologia, mostrando os limites de sua visão social e o caráter con-
descendente de suas políticas reformistas. Deste audacioso movi-
mento crítico surgiram alguns dos mais lúcidos e poderosos escri-
tos jamais produzidos sobre crime e pena, bem como uma tradição
intelectual que sobrevive até os dias atuais. Todavia, as conseqüên-
163
cias políticas deste movimento, pelo menos a médio prazo, foram
exatamente o inverso daquilo que almejavam seus proponentes.
Estas críticas radicais acabaram se tomando um ponto de tran-
sição na história da política criminaL Marcaram, apesar de tudo, o
ápice de um certo processo de longa duração. Como seus corres-
pondentes norte-americanos, o Friends Service Commitee, os ra-
dicais britânicos estavam em sua maioria comprometidos com os
objetivos e os mesmos valores sociais do previdenciarismo penal,
só que de maneira mais profunda. Eles levaram o aspecto
previdenciário ao limite e não suportavam os fracassos do Estado
de bem-estar em cumprir suas promessas de oportunidades iguais,
justiça social, liberdade individual e direitos da cidadania para to-
dos. Esta geração mais jovem de escritores e acadêmicos - muitos
deles produto da universalização da educação secundária e superi-
or do Estado de bem-estar, herdeiros, todos eles, das décadas de
prosperidade e do otimismo do pós-guen-a - se caracterizava por
um forte idealismo e radicalismo. Abraçaram uma cultura crítica,
democrática, que questionava todas as restrições à liberdade e à
expressão do indivíduo, assim como assumiram o papel de intelec-
tuais críticos que deploravam o sistema do qual faziam parte. Quan-
do estudaram a justiça criminal, analisaram-na em termos dos
seus ideais sociais radicais e não em termos da sua distância da
realidade mais punitiva do passado recente. Em face da deterio-
rada realidade do sistema e da precariedade dos postulados da
reabilitação, eles descartaram o correcionalismo, considerando-
º uma falácia perigosa.
Em sua maioria, a criminologia radical foi um movimento inte-
lectual sem muito apoio fora do âmbito acadêmico, mas seus temas
críticos se hatmonizaram perfeitamente com as críticas políticas da
justiça criminal que surgiram nos EUA (e depois na Grã-Bretanha)
no início dos anos 197036 • Esta afinidade eletiva entre teoria e prá-
tica críticas possibilitou que jovens criminólogos assumissem posi-
ções que pareceriam profanas para a maioria dos membros de sua
disciplina apenas uma década antes. Em lapso admiravelmente cur-
to de tempo, acadêmicos "progressistas" evoluíram da posição de
simpatizantes naturais do previdenciarismo penal para a de críticos
ferozes dessa política. Precisamente no momento em que os defen-
sores do correcionalismo foram forçados de volta aos princípios
164
iniciais, tais princípios estavam sendo decisivamente questionados
por seus antigos proponentes acadêmicos 37 .
Isto é especialmente importante quando recordan1os que o pro-
grama penal-previdenciário se amparou primordialmente no conhe-
cimento especializado das classes profissionais que o administra-
vam. Seu corpo principal de simpatizantes eram os grupos
ocupacionais de origem recente e de posição social incerta, esteados
por uma conjuntura liberal. Tais grupos eram particularmente vul-
neráveis às mudanças no conhecimento ou ao descrédito do seu
saber específico. Diferentemente de outros aspectos da política
estatal de bem-estar, tais como pensões, seguridade social, atendi-
mento médico ou programas educacionais, o público não deduzia
nenhum benefício imediato das instituições penais-previdenciárias.
Ao revés, talvez o público se sentisse mal servido por um sistema
considerado mui to leniente e/ou ineficiente. Para a maioria, as clas-
ses médias e trabalhadoras não tinham nenhum interesse no siste-
ma. As políticas correcionalistas haviam sido passivamente tole-
radas por estes setores do público, e não demandadas ou entusiasti-
camente apoiadas. Aquilo que havia sido tolerado num período de
crescimento progressivo e otimismo liberal, com baixas taxas de
criminalidade e confiança crescente na reforma penal, era suscetí-
vel de ser visto, num ambiente diferente, como uma forma indul-
gente e contraproducente de esbanjar dinheiro público. Neste con-
texto, a inimizade dos grupos profissionais que serviam ao sistema
poderia ter conseqüências muito significativas.
Reflexividade
Se a lealdade cambiante de criminólogos progressistas era um
desafio para o status quo, ela ficou mais desestabilizante quando
somada às descobertas negativas obtidas nas pesquisas que seus
colegas criminólogos vinham realizando. Um aspecto singular do
controle do crime, no final do século XX, quando comparado com
épocas anteriores, é seu alto grau de reflexividade. Ao longo do
tempo, as agências da justiça criminal desenvolveram mecanis-
mos destinados a monitorar suas próprias práticas, bem como a
sujeitá-las a avaliação controlada. Com efeito, uma das ironias do
previdenciarismo penal, com sua ênfase no uso do conhecimento
em ciência social, é que este compromisso tenha gerado uma quan-
tidade maciça de provas que apontavam para as falhas do sistema. A
165
maior parte da pesquisa criminológica realizada no século XX e,
dentro deste uni verso, a maior parte daquelas diretamente financia-
das pelo governo, é dedicada a esta forma de monitoramento refle-
xivo. A ironia é que as descobertas empíricas destas investigações
freqüentemente tendiam a minar as premissas sobre as quais elas (e
as instituições penais-previdenciárias) se assentavam. No final do
século XIX e em boa parte do século XX, os reformadores
conecionalistas podiam obstinadamente. prometer resultados po-
sitivos. Nos anos 1970, contudo, o sistema já funcionava há muito
tempo e era suficientemente reflexivo para ser julgado em termos
de resultados efetivos e não em termos das esperanças e expectati-
vas dos seus simpatizantes.
Havia, ao mesmo tempo, uma experiência acumulada sobre
o potencial do sistema em cometer abusos. As práticas correcionais
que, em teoria, pareciam atraentes, acabaram por revelar proble-
mas inesperados em sua operação. Aqueles que supostamente de-
veriam se beneficiar do sistema na verdade estavam muito longe de
demonstrar gratidão. Reformistas liberais, em particular, ficaram
surpresos em descobrir que seu sistema progressista era, freqüen-
temente, abominado por seus supostos "beneficiários". Assim, no
final dos anos 1960, todos os ingredientes para uma ampla revisão
do modelo correcionalista e dos seus consectários se faziam pre-
sentes. Uma reavaliação crítica, contudo, é uma coisa; a rejeição
maciça é outra. Ainda temos que explicar por que estes vários ele-
mentos foram interpretados, tal como o foram, como umfracasso
da teoria, em vez de algo menos profundo. O que fez da rejeição por
atacado um movimento mais prático do que a reforma gradual?
A forma da reação
Tal vez devêssemos ser literais nestes assuntos. Tal vez devês-
semos ver o "colapso da fé" na reabilitação como sendo literalmente
isto: não uma crítica racional, não uma adaptação às descobertas
negativas, mas algo semelhante à quebra do mercado de ações. O
fato de a confiança no sistema ter desaparecido tão repentinamente
sugere que os fundamentos estruturais do sistema já estavam seria-
mente comprometidos. O caráter inusitadamente enfático da reação
também sugere que esta dramática mudança de pensamento foi de-
terminada por múltiplos fatores, sendo motivada por considerações
conscientes ou inconscientes que transcendem as questões imedia-
166
tas. Na guinada contra o correcionalismo, houve algo de histerica-
mente desproporcional entre o problema e a reação, um exagero que
parece quase sintomático em sua veemência. Tal reação talvez deva
ser diagnosticada, em vez de meramente explicada.
Uma prova desta visão é a característica do sentimento de que
"nada funciona!", que se tomou lugar-comum no final da década de
1970 e ao longo da década de 1980. Esta reação de frustração agres-
siva, com sua enfática utilização de dados negativos e a supressão
de toda prova em contrário, era menos uma visão informada do
sistema do que uma reação catártica aos problemas e conflitos cau-
sados pelo sistema. A rápida transformação desta reação exagerada-
mente emotiva em verdade absoluta sugere que havia outros inte-
resses e emoções envolvidos na formação desta resposta - forças
não muito preocupadas com detalhes criminológicos ou com a inter-
pretação cuidadosa da pesquisa empírica.
Tal vez parte do caráter extremado desta reação possa ser atri-
buído à compreensível raiva dos desiludidos. Assim como revolu-
ções acontecem por causa de expectativas subitamente frustradas,
reações importantes surgem quando um programa, do qual se es-
perava muito, produz resultados decepcionantes. Existe uma
dialética de confiança e impotência, de otimismo ineal e desespe-
rança. Altas expectativas e ambições são seguidas de perto pela crí-
tica exagerada e pela frustração niilista. Neste caso, porém, a dialética
da ascensão e ocaso da reabilitação parece estar ligada a um contex-
to histórico mais amplo. Como veremos, ela traz consigo a força de
uma reação não apenas contra a sociedade de especialistas e o Esta-
do de bem-estar, mas também contra idéias mais gerais, tais como
as utopias da engenharia social, a perfeição do homem e a fé na
razão, própria do Iluminismo.
Um segundo indicativo da desproporcionalidade da reação é o
modo com que esta se disseminou indiscriminadamente, influencian-
do áreas onde ela parecia ser praticamente irrelevante. Acadêmicos e
operadores do sistema na Grã-Bretanha foram profundamente influ-
enciados pelo movimento norte-americano; rapidamente, longas
monografias e manuais repetiram palavra por palavra as críticas feitas
nos EUA, apesar de o con-ecionalismo ser muito menos desenvolvido
na lei e na prática britânicas e, por conseguinte, os abusos atribuídos a
essa política serem menos numerosos. Para a maioria, no contexto
167
britfuúco, onde as penas indetenninadas eram menos utilizadas, os pro-
blemas raciais e de discrinúnação eram menos acentuados e os prisio-
neiros cumpriam suas penas em prisões locais sem qualquer intenção
de reabilitação, a crítica não passava de uma caricatura. Ainda assim,
ela ecoou. Não demoraria muito para se refletir em documentos gover-
namentais, tornando-se senso comum entre autoridades do sistema
prisional e fiscais do livramento condicional38 . Indubitavelmente,ara-
zão disto é a moda acadênúca e a lei da inútação. No entanto, de alguma
fonna, a força da crítica se sustentou, ainda que os críticos tivessem
que recmTer a horizontes excessivamente pessinústas, salientar o po-
tencial mais süústro do programa em vez de analisar seus efeitos reais,
onútir as variações e os detalhes locais e ignorar, de todo, a existência
de salvaguardas e forças contrapostas39 . Isto sugere fmtemente que a
reação contra o previdenciarismo penal não se baseou somente em
considerações penalógicas, tendo tido outras fontes de ressonância e
apelo.
O terceiro sintoma a ser observado é a linguagem específica
da oposição e as qualidades retóricas formais dos argumentos críti-
cos. Em inspeção detida, torna-se claro que os argumentos
anticmrncionais são um clássico exemplo daquilo queAlbe1t Hirschman
chamou de "retórica da reação". De acordo com Hirschman, a hls-
tória da reação política contra a Revolução Francesa, contra o su-
frágio universal e contra o Estado de bem-estar revela a existência
de uma retórica recoffente que organiza a forma tipicamente adota-
da pelos oponentes "reacionários" de determinado conjunto de re-
formas "progressistas". Caracte1isticamente, a retórica da reação
ataca o sistema em -seus fundamentos. Assume a forma de uma
oposição frontal, em vez de umacríticarefonnadoraou refinadora,
cuja intenção não é reparar o sistema, mas verdadeiramente
desacreditá-lo e rejeitá-lo. Hirschman mostra que três teses centrais
estão sempre presentes no discurso reacionário: as alegações de
perversidade, de futilidade e de risco 40 • Cada uma dessas teses foi
proeminente no movimento oposicionista que se ergueu em torno
do sistema penal-previdenciário:
A tese da perversidade. O correcionalismo produz resultados
perversos e não-desejados. Ele torna o crinúnoso pior e não o in-
verso. Políticas de reabilitação provocam o aumento no crime e
não sua redução. "O resultado é sempre o avesso".
168
A tese da futilidade. O cmTecionalismo sempre falhará. Não é
possível refo1mar as pessoas ou produzir a mudança co1TecionaL Os
esforços de reabilitação são fúteis e desnecessálios. "Nada funciona".
A tese do risco. As práticas cmTecionalistas minam valores
fundamentais, corno a autonomia moral, os direitos do indivíduo,
o devido processo legal e o princípio da legalidade. As políticas de
reabilitação põem em risco os acalentados valores democráticos
liberais. "A justiça está em risco".
Consideradas em conjunto, essas acusações atingem os fun-
damentos do campo. São, literalmente, reacionárias. Se deseja-
mos entender a guinada no controle do crime, devemos explicar a
natureza desta reação e a veemência que lhe foi inerente.
O quarto e último indicador desta "hostilidade motivada" e dos
conflitos subjacentes tem a ver mais com a substância do que com
a forma das várias críticas contra o correcionalismo. Tais críticas
não foram confutações coerentes da lógica da reabilitação, que, so-
madas, formaram uma corrente irrespondível. Ao revés, foram uma
miscelânea de críticas díspares, algumas das quais bem consisten-
tes, outras nem tanto, que se somaram para formar uma colcha de
retalllos mutuamente inconsistente, em lugar de uma retorsão raci-
onal. Em circunstâncias normais e na ausência de outras forças
sociais, esta incoerência facilitaria a resistência ao desafio crítico.
Defensores do status quo poderiam ter isolado os clamores contra-
ditórios, as premissas incompatíveis e as prescrições políticas aí
implicadas, para demonstrar que nenhuma delas conduzia a qual-
quer resultado positivo. Poderiam ter argumentado que os vetores
negativos se cancelavam mutuamente. Uma medida reabilitadora não
pode ser muito leniente e, ao mesmo tempo, muito opressiva. O
previdenciarismo penal não pode ser ineficaz e, ao mesmo tempo,
autoritálfo. O poder dos especialistas não pode ser domesticado ape-
nas por transferi-lo de um grupo profissional para outro. As diretrizes
na aplicação da pena podem satisfazer seus proponentes liberais ou
conservadores, mas não a ambos. E assim por diante. Todavia, aque-
las não eram circunstâncias normais e, como veremos nos capítu-
los seguintes, outras forças sociais estavam presentes.
O que conferiu força a este complexo de discursos críticos
não foi seu poder intelectual enquanto posição criminológica, mas

169
sim sua força combinada enquanto movimento reacionário. A (ne-
gativa) objeção à reabilitação uniu a esquerda, a direita, o centro,
liberais, radicais e conservadores41 . O poder da oposição não resi-
dia em sua habilidade de refutar a teoria ortodoxa, mas em sua
habilidade de criar uma aliança momentânea desses inimigos da
então vigente abordagem penal-previdenciária. Era uma espécie
de catarse - a liberação a conta-gotas do descontentamento com o
Estado penal-previdenciário - direcionada contra um novo estado
de coisas, forjado durante muito tempo e instituído apesar das gran-
des apreensões e dos interesses contrários.
A força deste movimento crítico obviamente derivou tam-
bém dos seus ecos políticos. Ressoou e tomou por empréstimo a
ampla retórica de reação contra o Estado de bem-estar. Mas a forma
da reação - seu tom destemperado, seu exagero, sua recusa em
ponderar e negociar, bem como em reformar e reparar as práticas
de reabilitação - sugere que algo mais estava em jogo. Sugere
forças mais profundas em ação: valores culturais cambiantes, es-
truturas sociais em transformação, novas alianças políticas e pon-
tos de vista. Nestas circunstâncias, pressuposições básicas foram
questionadas. Não se duvidou apenas da efetividade de políticas
específicas, mas também da capacidade do Estado de controlar o
crime e de promover bem-estar.
Finalmente, há uma questão fundamental. Por que as mudan-
ças que se seguiram à desestabilização da antiga moldura não refle-
tiram os valores e postulados das críticas, constituindo algo bem
diverso? Como observei antes, algumas das novas medidas eram
precisamente o oposto daquelas originalmente propostas pelos crí-
ticos da reabilitação. A oposição às detenções preventivas não tinha
em vista a emergência da "neutralização" como objetivo central das
condenações. A alegação de que a reabilitação era excessivamente
coercitiva não imaginava a guinada na direção do encarceramento
maciço e da revitalização da pena de morte. Os proponentes das
condenações a penas determinadas não tinham a intenção de inau-
gurar uma competição política pelo estabelecimento das penas mais
elevadas. O argumento de que a reabilitação não era boa para os
criminosos não significava que devesse ser "boa demais para eles".
Outras medidas que brevemente dominariam o cenário penal- puni-
ções expressivas, vítimas, proteção pública, punitivismo-simples-
170
mente não faziam parte da literatura reformista original. De alguma
forma, o movimento anticorrecionalista abriu as portas para um
conjunto de mudanças que ele jamais previra e que não podia con-
trolar.
Como explicar que o reconfigurado campo do controle do cri-
me, que emergiu nos anos 1980 e 1990, guardasse tão pouca rela-
ção com as propostas do movimento de reforma que iniciou esta
reconfiguração? A estrutura deste problema histórico é precisamen-
te a mesma daquela descrita por Michel Foucault em Vigiar e Punir.
Foucault argumenta que a emergência do encarceramento generali-
zado no século XIX foi o reflexo não das idéias dos reformistas,
mas da estrutura emergente das instituições sociais e do poder gover-
namental no período moderno. Nos próximos capítulos desenvolverei o
mesmo tipo de resposta para aquestão apresentada aqui. Onovo campo do
controle do crime e dajustiça criminal foi moldooo não pelos programas de
refonna ou por idéias criminológicas, mas pelo caráter da sociedade do final
do século XX, por seus problemas, sua cultura e suas tecnologias de poder.
Meu argumento será o de que os novos airanjos institucionais foram origi-
nados como mecanismos de solução de problemas, criados apartir da expe-
riência prática das agências governamentais e de seus integrantes, e não da
ideologia dos programas de refonna O campo do controle do clime é uma
resposta institucionalizada para um problema particular de ordem, apartir de
uma experiência coletiva específica Minha descrição da mudança no con-
trole do crime olha para a maneira pela qual o campo foi afetado pela emer-
gência de novos problemas de segurança, novas percepções de ordem soci-
al e novas concepções de justiça, todas estas propiciadas pelas mudanças
econômicas e sociais da pós-modernidade. Oreconfigurado campo do con-
trole do crime e dajustiça criminal é produto daquelahistória e das tentativas,
de vários atores, de se adaptarem às oportunidades e aos problemas que se
colocaram.
O próximo capítulo indaga quais desdobramentos levaram à ero-
são do apoio social e institucional ao previdenciarismo penal. Quais
foram as novas questões que surgiram com os novos arranjos sociais
e com as rotinas de cada dia, que se desenvolveram na segunda meta-
de do século? Como as percepções e presunções fundamentais se
modificaram tão acentuadamente? Minha hipótese será a de que as
estruturas e ideologias do controle do c1ime moderno ruíram (onde
efetivamente míram) não apenas por causa da crítica intelectual,
171
tampouco por causa de um fracasso penalógico, mas porque elas per-
deram sua sustentação nos modos de vida e nas crenças con-espon-
dentes. As estmturas sociais e as sensibilidades culturais que ampara-
vam o campo se transfo1maram. A crítica ao correcionalismo surgiu
precisamente no limiar de uma transição social que envolveu proces-
sos convergentes de mudança econômica, política e cultural. Como
vimos, tal transição se iniciou no final de um pe1iodo dominado pelas
políticas estatais de bem-estar e pela social-democracia, e as críticas
originalmente se escoraram naquele enquadramento subjacente. Toda-
via, os programas e políticas surgidos desta crítica emergiram num
contexto político e cultural diverso e trouxeram sentimentos e atitudes
bem diferentes para lidar com as questões postas.
Os processos que minaram a credibilidade do pre videnciarismo
penal não foram os mesmos que subseqüentemente o destrinçaram.
O dano original à estrutura foi produzido no início dos anos 1970,
como resultado de forças radicais e reacionárias trabalhando em
linha, e as forças reacionárias ocuparam a posição dominante. A
crítica à reabilitação foi, originalmente, uma crítica progressista. O
ataque posteriorao sistema, nos anos 1980 e 1990, se deu num contex-
to de regressão do humor e do temperamento do público, contra um
backgrozmd de modificação da percepção do problema central e como
pm1e da criação de uma nova e menos inclusiva narrativa cívica. Como
veremos, os novos programas e estratégias de controle do crime cons-
tituíram uma resposta ao suposto fracasso do Estado de justiça cdrninal
em seu modelo penal-previdenciário e se abrigaram no espaço
institucional deixado pelo ataque ao cmTecionalismo. Mas também eles
se adaptm·am às novas condições sociais, políticas e culturais da socie-
dade pós-moderna, bem como às novas relações de classe e de raça por
elas criadas.

Notas
1
M. Foucault, Discipline and Punish (Londres: Allen Lane, 1977); M.
Ignatieff, A Just Measure of Pain (Londres: MacMillan, 1978).
2
The American Friends Service Commitee, Struggle for Justice (São
Francisco: Hill and Wang, 1971), p. 12.
172
3
Ibidem, p. 23.
4
Ibidem, p. 171.
5
Os argumentos criminológicos da obra de David Matza Delinquency and
Drift (Englewood Cliffs-NJ: Prentice Hall, 1964) implicavam uma crítica similar,
conquanto não totalmente explícita, dos juizados de menores. V., também, N.
Kittrie, The Right to be Different: Deviance and Enforced Therapy (Baltimore:
Toe Johns Hopkins Press, 1971) e E. Goffman, Asylums (Nova Iorque: Anchor
Books, 1961). Goffman foi um dos signatários do relatório Doing Justice.
6
David Greenberg, um dos autores de Struggle f ar Justice, posteriormente
escreveu: "a compreensão de que o sistema de justiça criminal era às vezes
usado para repressão política veio no final de uma década em que autoridades
poliéiais sulistas espancaram com cassetetes, dispersaram com jatos d' água e
encarceraram ativistas dos movimentos pelos direitos civis; manifestantes se
digladiaram com a polícia nos campi das universidades e nas rua.s; e o FBI
e as agências policiais locais grampearam telefones, invadiram residências
e locais de trabalho, interceptaram a comunicação postal e utilizaram agentes
infiltrados e provocadores para destruir organizações e programas radicais",
D. F Greenberg e D. Humpries, "The Cooptation of Fixed Sentencing
Refonn", Crime and Delinquency (1980), vol. 26, pp. 206-25.
7
Referência do autor às decisões paradigmáticas prolatadas na•década de
1960 pela Suprema Corte dos EUA, sob a liderança do Justice Earl Wanen,
em favor do reconhecimento da igualdade de todos os indivíduos perante a
lei. Uma dessas decisões foi proferida no caso Brown v. Board of Education,
Topeka, Kansas. Neste caso, a Suprema Corte reconheceu o direito de Linda
Brown, estudante negra do sistema educacional de Topeka, de freqüentar urna
escola próxima de sua residência até enfüo só cursada por brancos, em vez de
ter que caminhar por quase oito quilômetros para chegar ao estabelecimento
exclusivamente para negros no qual fora matriculada (N. T.).
8
F. A. Allen, The Borderland of Criminal Justice (Chicago: University
of Chicago Press, 1964); K. C. Davis, Discretionary Justice (Urbana:
University of Illinois, 1969). V., também, L Radzinowicz e R. Hood, "The
American volte face in sentencing thought and practice", in C. Tapper
(org.), Crime, Pmof and Punishment (Londres: Butterworths, 1981).
9
A citação de "little man" foi retirada do Struggle for Justice, p. 31. Para
urna história cultural dos EUA daquele período, v. T. Gitlin, The Sixties:
Years of Hope, Days of Rage (Nova Iorque: Bantam Books, 1987). Sobre a
reação na filosofia, v. J. Kleinig, Punishment mui Desert (Toe Hague: Martin
Nijhoff, 1973); H. Morrís, "Persons and Punishment", The Monist (1968),
vol. 52, pp. 475-501; J. Murphy, "Marxism and Retribution", Philosophy
andPublicAffairs (1973), vol. 2, pp. 217-43; H. L. A. Hart, "Prolegomenon

173
to the Principies of Punishment", in H. L. A. Hart, Punishment and
Responsibility (Oxford: Oxford University Press, 1968).
10
Veja-se D. Lipton et ai., The Effectiveness of Correctional Treatment (Nova
Iorque: Praeger, 1975); W. Bailey, "Correctional Outcome: An Evaluation of
100 Reports'', Joumal of Criminal Law, Criminology and Police Science,
junho de 1966, pp. 53-160; J. Robinson e G. Smith, "The Effectiveness of
Correctional Programs", Crime and Delinquency, janeiro de 1971, pp. 67-80;
L. Sechrest et al., The Rehabilitation of Criminal Offenders: Problems and
Prospects (Washington DC: National Academy of Science, 1979). Estudos
brit'micos incluem S. R. Brody, The Effectiveness of Sentencing: A Review of
the Literature, Home Office Research Study nP 35 (Londres: HMSO, 1976) e
M. S. Folkard, Intensive Matched Probation and After-Care Treatment Home
Office Research Study nQ 24 (Londres: HMSO, 1974).
11
Em 9 de setembro de 1971, os presos do Attica Correctional Facility,
situado na cidade de Attica, estado de Nova Iorque, se rebelaram com o
objetivo de obter melhores condições de vida na cadeia. A rebelião durou
quatro dias e se encerrou quando 211 policiais e agentes penitenciários
invadiram o estabelecimento. O resultado da invasão da cadeia foi trágico:
10 dos 39 reféns morreram, além de 29 detentos, e quase uma centena de
pessoas ficou ferida. A cobertura jornalística creditou a morte dos reféns à
ação cruel dos presos, mas curiosamente todos morreram por causa de
ferimentos produzidos por armas de fogo, que os presos não tinham, como
posteriormente seria apurado. Este episódio foi um marco no movimento
nacional pela melhora das condições carcerárias (N. T.).
12
J. Mitford, Kínd and Unusual Punishment: The Prison Business (Nova
Iorque: Random House, 1973); N. Morris, The Future of Imprisonment
(Chicago: University of Chicago Press, 1974).
13
M. Frankel, Criminal Sentences: Law Without Order (Nova Iorque: Hill
and Wang, 1973); A. von Hirsch, Doing Justice: The Choice ofPunish,nents
- Report of the Committee for the Study of Incarceration (Nova Iorque:
Hill and Wang, 1976); Twentieth Century Fund Task Force, Fair and Certain
Punishment (Nova Iorque: Wiley, 1976); D. Fogel, We Are The Living
Proof .. the Justice Model of Corrections (Cincinnati: Anderson Pub., 1975).
14
O desconforto que os liberais expelimentaram ao adotar esta posição é
aparente na "Introduction" ao Doing Justice de Rothman e Willard, que
descreve sua escolha como produto do ceticismo e não do entusiasmo, e
insiste em que a pena mensurável deve ser fixada nos menores níveis
possíveis. O relatório argument-i que a prisão deveria ficar reservada aos
casos que envolvessem violência ou ameaça à pessoa, com a utilização de
multas e das demais medidas alternativas para os casos de menor importância.

174
A prisão até cinco anos era vista como o topo da nova escala penal, exceto
parn o homicídio.
15
Von Hirsch, Doing Justice, p. 134. Anteriormente, Leslie Wilkins e
Don Gottfredson haviam demonstrado que um modelo bifásico como
aquele também poderia ser utilizado para nortear as decisões de
concessão de liberdade vigiada.
16
J. Q. Wilson, Thinking About Crime (Nova Iorque: Vintage Books,
1975). Boa parte deste trabalho já havia sido publicada anteriormente
em jornais, tais como Atlantic Monthly, The Public Interest,
Commenta,y, New York Times Magazine e The Washington Post, o que
contribuiu em muito para aumentar seu impacto.
17
Diferentemente de Van Den Haag, Wilson resistiu em apoiar
abertamente a pena de morte, malgrado sua discussão sobre o assunto
tenha sido travada para confundir seus oponentes. Veja-se a reação de
Andrew von Hirsch a estes desdobramentos antiliberais em seu Past or
Future Crimes? (Manchester: Manchester University Press, 1985).
18
Sobre a aliança de forças, v. M. S. Serrill, "Detenninate Sentencing:
the History, the Theory, the Debate", in Corrections Magazine (1977),
vol. 3, pp. 3-13. Para exemplos de clamores semelhantes por reformas
nas leis sobre sentenciamento na Grã-Bretanha, v. R. Hood, Tolerance
and the Tariff: Some Reflections on Fixing the Time Prisoners Serve in
Custody (Londres: NACRO, 1974); Howard League, Whose Discretion?
Faimess and Flexibility in the Penal System (Londres: Howard League
for Penal Reform, 1975); L. Taylor et al., ln Whose Best lnterests? (Londres:
Cobden Trust, 1980), estenderam a crítica à justiça menorista na
Inglaterra. Para a repercussão da crítica à reabilitação na Grã-Bretanha,
seguida da defesa p~la pena retributiva, v. P. Bean, Rehabilitation and
Deviance (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1976), e P. Bean,
Punishment (Londres: MacMillan, 1981).
19
Veja-se M. Tonry, Sentencing Matters (Nova Iorque: Oxford University
Press, 1996). Para uma história deste processo de reforma, v. L. Radzinowicz
e R. Hood, "The American volte face".
20
O texto governamental estatufa o seguinte: "o objetivo das propostas
governamentais é aperfeiçoar a justiça através de uma abordagem mais
adequada ao sentenciamento, de maneira que criminosos condenados
recebam a 'pena justa'. A severidade da sentença judicial deve estar
relacionada diretamente com a gravidade do crime", Home Office, Crime,
Justice and Protectíng the Public (Londres: HMSO, 1990), p. 2. Para outro
exemplo das reformas penais em busca da "pena justa", v. o Swedish
Sentencíng Statute de 1988, debatido em A. von Hirsch e A. Ashworth

175
(orgs.), Principled Sentencing: Readings on Theory and Policy, 2ª ed.
(Oxford: Hart Publishing, 1998), pp. 240-52.
21
Na Grã-Bretanha, um relatório governamental de 1979 sobre o sistema
carcerário ponderou que "a retórica do 'tratamento e treinamento' teve
sua chance e, agora, deve ser substituída", Home Office, Report of the
Commitee of Inquiry into the UK Prisons Services (The May Report)
(Cnmd 7673) (Londres: HMSO, 1979). V., também, Scottish Home and
Health Department, Parole and Related Issues in Scotland (The Kincraig
Report) (Edimburgo: HMSO, 1989). Na p. 2, o relatório consigna: "talvez
agora seja aceito por todos que uma condenação à prisão provavelmente
não alcançará a reabilitação; assim, a reabilitação não mais deve ser
considerada um objetivo no momento em que se condena uma pessoa à
prisão". Para uma tentativa inicial de repensar o livramento condicional na
Grã-Bretanha, em seguida à derrocada da reabilitação, v. A. E. Bottoms e W.
McWilliarns, "A Non-Treatment Paradigmfor Probation Practice", British
Joumal ofSocial Work (1979), vol. 9, pp. 159-202. Sobre a mudança do modelo
clínico para o modelo gerencial na prática da liberdade vigiada, v. J. Simon,
Poor Discipline (Chicago: University of Chicago Press, 1993). Sobre o novo
papel dos fiscais do livramento condicional, sob a égide das regras norte-
ame1icanas de sentenciamento, v. S. M. Bunzel, "The Probation Officer and
the Federal Sentencing Guidelines: Strange Philosophical Bedfellows",
Yale Law Joumal, vol. 104, janeiro de 1995, pp. 933-66. Sobre a redução do
financiamento para os programas prisionais de tratamento após Martinson, v.
C. Riveland, "Prison Management Trends, 1975-2025", in M. Tonry e J.
Petersilia (orgs.), Prisons (Chicago: University ofChicago Press, 1999), p. 167.
Sobre mudanças na justiça menorista norte-americana, v. B. Feld, Bad Kids
(Nova Iorque: Oxford Universíty Press, 1998), e britfi.nica, L. Gelsthorpe e A.
Morrís, "Juvenile Justice, 1945-1992", in M. Maguire et ai. (orgs.), The
O:>.jord Handbook of Criminology (Oxford: Oxford University Press, 1994).
22
Penas de prisão obrigatórias para delitos relacionados a drogas e,
posteriormente, para aqueles praticados com violência, para crimes sexuais
e para reincidentes foram largamente aplicadas, apesar de pesquisas
significativas demonstrarem que não possuíam nenhum efeito apreciável
no uso de drogas ou nas taxas de criminalidade. Veja-se M. Tonry, Sentencing
Matters, pp. 141 ss.
23
O processo de edição de novas leis relativas à aplicação de penas
tendia a politizar a questão da pena. Quando, nos anos 1970 e 1980, os
congressistas estaduais abriram debates sobre os níveis apropriados de
punição, isto foi feito em reação a um cenário de crescentes taxas de
criminalidade e de inquietação pública. Nestas circunstâncias, a edição
de leis penais mais duras foi um resultado previsível.

176
24
"Acredito que realizaremos mais se adotarmos o 'paradigma do fracasso',
se reconhecermos nossa inabilidade de alcançar tão grandiosos objetivos, como
a eliminação do crime e a reforma do criminoso. Aceitemos o fracasso e
cuidemos de suas implicações", D. Rothman, "Prisons: The Failure Model",
The Nation, 2 Ldez.7 4, p. 657. Sobre a ineficácia do livramento condicional, v.
M. S. Folkard, lntensive Matched Probation andAfter-Care Treatment Home
OJ]ice Reserach Study n~ 24 (Londres: HMSO, 1974). Sobre a limitada eficácia
de penas intimidatórias, v. D. Beyleveld, TheE.ffectiveness ofÇeneral Deterrents
Against Crime (Cambridge: Insfüute of Criminology, 1978) e A Blumstein et
al. (orgs.), Deterrence and Jncapacitation: Estimating the Effects of
Criminal Sanctions in Crime Rates (Washington DC: National Academy
of Sciences, 1978). Sobre os limites de programas sociais como mecanismo
de controle do crime, v. J. Q. Wilson, Thinking About Crime. Para uma
crítica influente dos progran1as sociais da Great Society, v. D. P. Moynihan,
Maximwn Feasible Misunderstanding (Nova Iorque: Free Press, 1969).
25
Sobre a eficácia limitada do policiamento, v. R. V. Clarke e M. Hough
(orgs.), The Effectiveness ofPolicing (Aldershot: Gower, 1980); R. V. Clarke
e K. H. Real, "Police effectiveness in dealing with crime: some current
British research", in The Police Joumal (1979), voL 52, pp. 24-41; H.
Goldstein, "Improving policing: A problem-oriented approach", Crime
and Delinquency (1979), vol. 25, pp. 236-58; D. Bayley, Police for the
Future (Nova Iorque: Oxford University Press, 1994); G Kelling et al., The
Kansas City Preventive Patrol Experiment (Washington DC: Police
Foundation, 1974).
26
J. Young, "Thefailure of criminology: The needfor a radical realism",
in R. Matthews e J. Young (orgs. ), Corifronting Crime (Londres: Sage, 1986).
A afirmação completa de Croft foi a seguinte: "a pesquisa criminológica,
contudo, não solucionou o crime e, na medida em que a pesquisa é um
elemento do gerenciamento tecnológico, foi um fracasso". "Houve uma
discrepância entre as expectativas daqueles que realizaram as pesquisas,
os objetos de investigação em si e a tecnologia disponível. Nesta
circunstância, tem sido difícil manter a credibilidade da pesquisa
criminológica - pelo menos enquanto instrumento da elaboração de
políticas", J. Croft, Managing Criminological Research, Home Office
Research Study ns, 69 (Londres: Home Office, 1981), p. 3.
27
V., por exemplo, M. Cavadino e J. Dignan, The Penal System: An
Introduction (Londres: Sage, 1992), pp. 49-51, e S. Christianson, With
Liberty for Some: 500 Years of Imprisomnent in America (Boston:
Northeastern University Press, 1998), pp. 277-8. F. A. Allen, The Decline
of the Rehabilitative Ideal (New Haven: Yale University Press, 1981),
oferece um relato sociológico mais rico sobre o declínio da reabilitação.

177
28
R. Aron, Main Currents in Sociological Tlwught, vol. 1 (New Brunswick-
NJ: Transaction Books, 1998), p. 313.
29
V., por exemplo, F. A. Allen, "Legal values and the rehabilitative ideal",
Joumal of Criminal Law, Criminology and Police Science (1959), vol. 50, pp.
226-32; C. S. Lewis, "The Humanitarian Theory ofPunishmenf', Res Judicatae,
vol. 6 ( 1953 ). Para uma resposta, v. N. Mon-is e D. Buckle, "The Humanitarian
Theory of Punishment: A Reply", Res Judicatae, vol. 6 (1953), pp. 231-7.
30
J. Langbein, Torture and the Law ofProof (Chicago: University of Chicago
Press, 1976).
31 Para evidências iniciais do fracasso, v. B. McKelvey,AmericanPrisons:

A History ofGoodintentions (originalmente publicado em 1936, republicado


por Montclair-NJ: Patterson Smith, 1979), e B. Wootton, Social Scíence
and Social Pathology (Londres: Allen & Unwin, 1957). David Rothman
descreve como os simpatizantes do con-ecionalismo desdenhavam de tais
críticas: "o fracasso, eles acreditam, refletia a implementação deficiente, e
não problemas teóricos ou políticos subjacentes; administradores
incompetentes e legisladores avarentos, e não falhas básicas em sua
estrutura ( ... ). Reformistas respondiam ao desapontamento de maneira
monocórdia: clamavam por melhor treinamento para agentes do
livramento condicional e da liberdade vigiada, por melhores programas
para as prisões e para as escolas profissionalizantes, por aumento no
número de funcionários nos tribunais de menores e de atendentes nos
hospitais psiquiátricos. Fazer mais do mesmo, de modo que a promessa
de inovação se realizasse", D. Rothman, Conscíence and Convenience
(Boston: Little Brown & Co., 1980), p. 9. Como Ronald Bayer anota, "a
história da reforma penal mostra que, durante o período em que a
popularidade da reabilitação estava em alta, cada falha dava ensejo a
demandas por mais experimentação, mais conhecimento especializado,
mais recursos", R. Bayer, "Crime, Punishment and the Decline of Liberal
Optimism", Crime and Delinquency, abril de 1981, pp. 169-90.
32
Para uma contra-crítica da época, v. T. Palmer, "Martinson Revisited",
Journal of Research in Crime and Delinquency, 1975, vol. 12, pp. 133-52.
Para a reformulação de Martinson, v. R. L. Martinson, "New Findings,
New Views: A Note of Caution Regarding Sentencing Refonn", Hofstra
Law Review (1979), vol. 7, pp. 242-58. Sobre a história do debate empírico
e da metodologia de meta-análise, v. P. Gendreau e R. Ross, "Revivificatíon
ofRehabilitation: Evidence Jrom the l 980s", in Justice Quarterly, setembro
de 1987, vol. 4, nQ 3, pp. 349-407.
33
N. Morris, The Future of Imprisonment; N. Walker, Treatment and
Justice in Penology and Psychiatry: The 1976 Sandoz Lecture

178
(Edimburgo: Edinburgh University Press, 1976). Para outras defesas, v.
F. Hussey, "Just Deserts and Determinate Sentencing: Impact on the
Rehabilitative Ideal", The Prison Joumal, voL LIX, nD 2 (1980).
34
Estudos de casos criminais começaram nos EUA no final dos anos
1950: v. J. E Short e E I. Nye, "Extent of Unrecorded Delinquency:
Some tentative conclusions", Journal of Criminal Law, Criminology
and Police Science (1958), vol. 49, pp. 296-302. Lá pela metade dos anos
1960, tais dados começaram a ser amplamente utilizados no estudo da
delinqüência juvenil.
35
Jodc Young apontou estas tensões e omissões ainda em 1975, apenas
dois anos depois de ter publicado, juntamente com Taylor e Walton, o
texto paradigmático da teoria radical do desvio, The New Criminology
(Londres: Routledge & Kegan Paul, 1973). Veja-se J. Young, "Working
Class Criminology", in Taylor et al. (orgs.), Critica! Criminology
(Londres: Routledge, 1975). Nos EUA, então em vias de se tomar uma
sociedade de alta criminalidade na metade dos anos 1970, a utopia dos
radicais britânicos era mais aparente. Veja-se a resenha de E. Currie de The
New Criminology, in Crime and Social Justice, voL 2 (1974), pp. 109-13, e
T. Platt e P. Takagi, "Intellectualsfor La.w and Order: A Critique of the New
'Realists"', Crime and Social Justice, vol. 8 (outono-inverno de 1977), p. 8.
Platt e Takagi argumentavam que "o crime de rua é um problema sério e
desmoralizante, que deprecia a qualidade de vida nas comunidades de
trabalhadores e que aumenta o racismo e outras fo11nas de segregação". Na
metade dos anos 1980, esta visão da "esquerda realista" foi cada vez mais
adotada pelos criminólogos radicais britânicos.
36
As dificuldades de combinar a temia com a prática radical são discutidas
em S. Cohen, "It's Ali Rightfor You to Talk: Political and Social Manifestos
for Social Work Action", in R. Bailey e M. Brake (orgs.), Radical Social
Work (Londres: Edward Arnold, 1975), pp. 76-95. Para um exemplo da relação
mais próxima entre a teoria radical do desvio e as políticas radicais, v. T.
Mathiesen, The Politics of Abolition (Londres: Martin Robertson, 1974).
37
A rápida expansão da criminologia acadêmica no início dos anos 1970
possibilitou que a geração mais jovem de teóricos radicais do desvio tivesse
uma voz proeminente na disciplina, particulannente na Grã-Bretanha, onde
a criminologia acadêmica era reduzida e relativamente recente. Esta geração
tendeu a se autodefinir como opositora das atitudes correcionalisas e dos
métodos positivistas dos seus precursores, bem como crítica da relação
íntima entre a criminologia e o Estado de justiça criminal. Veja-se P.
Rock, ''The Present State of Criminology in Britain", in P. Rock (org.),
A History ofBritish Criminology (Oxford: Oxford University Press, 1988).

179
38
Vejam-se as fontes britânicas na nota nQ 20, supra.
39
Michel Foucault, que brilhantemente articulou a sabedoria radical
daquela época, fez exatamente isto. Para uma discussão crítica acerca
do relato de Foucault, v. D. Garland, Punishment and Modem Society
(Oxford: Oxford University Press, 1990), cap. 7; D. Garland, "Criminologícal
Knowledge and its Relation to Power: Foucault's Genealogy and
Críminology Today", in British Journal of Criminology (1992), vol. 32,
nQ 4, pp. 403-22.
40
A. Hirschman, The Rhetoric of Reaction: Perversity, Futility, Jeopardy
(Cambridge-MA: Harvard University Press, 1991).
41
Como Michael Serrill observou, mesmo a idéia básica de reduzir a
discricionariedade possuía significados diferentes para pessoas diferentes. "Hoje
em dia é difícil encontrar um membro destacado da comunidade acadêmica,
política ou prisional que não seja favorável à drástica redução na quantidade
de discrícionariedade exercida pelo sistema de justiça criminal. Porém, quando
hghh se começa a discutir propostas específicas, as pedras começam a voar",
M. S. Serrill, "Detenninate Sentencing: The History, the Theory, the Debate",
Corrections Magazine (1977), vol. 3, pp. 3-13.

180
4. Mudança social e ordem social na pós-modernidade

As mudanças dos últimos vinte anos no controle do crime


foram conduzidas não apenas por considerações criminológicas,
mas também por forças históricas que transformaram a vida social
e econômica na segunda metade do século XX. Para o nosso pro-
pósito, é útil distinguir dois grupos de forças transformadoras.
Primeiro, as mudanças sociais, econômicas e culturais carac-
terísticas da pós-modernidade: mudanças vi vendadas, em maior ou
menor medida, por todas as democracias industriais ocidentais de-
pois da Segunda Guerra Mundial, e que se acentuaram de 1960 em
diante.
Segundo, as iniciativas e realinhamentos políticos desenvolvi-
dos em reação àquelas mudanças e à percepção da crise do Estado
de bem-estar, nos EUA e na Grã-Bretanha, a partir do final dos anos
1970. Estas variações na política social e econômica-uma combina-
ção do "neoliberalismo" de livre-mercado com conservadorismo social
- ecoaram em outros países, tais como a Nova Zelândia, Canadá e
Austrália. Todavia, desenvolveram-se em sua plenitude, nos EUA,
durante os governos Reagan e Bush (1981-92), e, na Grã-Bretanha,
durante a administração da Primeira-Ministra Thatcher (1979-92),
continuando, em formas modificadas, ao longo da administração
democrata de BiH Clinton (1993-2000) e, na Grã-Bretanha, ao longo
do governo conservador de John Major (1992-97) e sob o neo-
trabalhismo de Tony Blair, de 1997 em diante 1.
Deixando de lado, por ora, as diferenças nacionais que distin-
guiram a experiência norte-americana da britânica, pode-se resumir o
impacto deste processo da seguinte maneira: o primeiro grupo de
forças - a chegada da pós-modernidade - transformou algumas das
condições sociais e políticas sobre as quais se assentava o campo do
controle do c1ime moderno. Outrossim, este grupo trouxe novos pro-
blemas de crime e insegurança, desafiou a legitimidade e a efetividade
das instituições de bem-estar e estabeleceu novos limites aos poderes
181
do Estado-nação. O segundo grnpo de forças - as políticas do pós-
previdenciarismo - produziu um novo conjunto de relações raciais e
de classe, assim como um bloco politicamente dominante, que se
definia como opositor do antigo estilo "previdenciarista" e dos ideais
sociais e culturais nos quais tal estilo se baseava.
Sem este realinhamento político, o resultado mais provável da
crítica ao correcionalismo teria sido o incremento de reformas, o
estabelecimento de salvaguardas, o aumento dos recursos, o aper-
feiçoamento dos procedimentos. Em lugar disto, o que ocorreu foi
a modificação completa da política e das opiniões, bem como a
reconstrução de todo o campo do controle do crime. Neste capítulo
argumenta.rei que a reação contra o previdencia.rismo penal assumiu
uma fo1ma "reacionária.", totalizante, porque, subjacente a.o debate
sobre o crime e a pena, houve uma mutação funda.mental nos inte-
resses e sensibilidades. Esta mutação histórica., que tinha dimensão
política. e cultural, propiciou o surgimento de novas relações entre
grupos e atitudes sociais - atitudes, em sua maioria, definidas em
relação ao problema do crime, do bem-estar e da ordem social.
Estas novas relações entre grupos - freqüentemente manifesta.das
a.través de demonstrações alta.mente emotivas de medo, indignação
e hostilidade - fmmara.m o terreno social sobre o qual se assenta-
ram as políticas de controle do crime nos a.nos 1980 e 1990.
As causas desta virada histórica não tinham muita relação com
a justiça criminal, mas isto não impediu que ela gerasse conseqüên-
cias criminológicas cruciais. Classes sociais numerosas que um dia
ha. viam apoia.do as políticas estatais de bem-estar (por interesse pró-
prio, bem como em razão da solidariedade interclasses) passaram a
pensar e sentir ta.is questões diferentemente. Mudanças demográfi-
cas, na estratificação social e nas alianças políticas levaram impor-
tantes setores das classes média e trabalha.dora. a modificar sua ati-
tude com relação a muitas destas políticas - encarando-as como
incompatíveis com seus interesses a.tua.ria.is e beneficentes de gru-
pos, cada vez ma.is perigosos, que não as mereciam. Neste novo
contexto político, as políticas previdenciárias destina.das a.os pobres
foram sendo paulatinamente considera.das luxos onerosos, que os
contlibuintes trabalhadores não podiam mais sustentar. O corolário dis-
to foi que as medidas penais-previdenciárias para os criminosos foram
tachadas de absurda.mente indulgentes e inócuas.
182
Se a traumática experiência com a Depressão e a guerra foi o
pano de fundo social do surgimento do previdenciarismo penal
nos anos 1930 e 1940, no início dos anos 1980 aquela matriz polí-
tica e cultural era uma esmaecida memória histórica. As políticas
deste último período miravam um conjunto diferente de problemas
- muitos dos quais foram percebidos como tendo sido causados
pelo previdenciarismo, em vez de terem sido solucionados por ele.
Adiante, argumentarei que a gradual formação das novas sensibili-
dades e interesses de classe representou uma resposta à crise do
Estado de bem-est:u e à transformada dinâmica da vida social pós-
modema, mas também insistirei em que esta resposta foi o resultado
de escolhas políticas e culturais que não foram em absoluto inevitá-
veis. Nas próximas páginas, forneço um relato deste realinhamento
social e político. Tal relato olha para os processos históricos e soci-
ais que reconfiguraram nosso modo de vida, no último terço do
século XX, bem como nosso modo de pensar e agir em relação ao
crime. É a história do desenvolvimento da pós-modernidade, de
nossas reações políticas e culturais e das implicações destas reações
no tratamento do crime, do controle do crime e da justiça criminal.
Meu relato não é, deliberadamente, uma história do período,
mas uma exploração das mudanças sociais que influenciaram, ou
problematizaram, o campo do controle do crime. Muito do que vai
ser dito será familiar ao leitor - parte "do que todo mundo sabe"
sobre o final do século XX. Não obstante, é importante recordá-lo.
Relembrando alguns dos principais fatos sociais da nossa história
recente, espero agitar a atitude "atualista" que tão comumente do-
mina nossas discussões e diagnósticos. Muito freqüentemente, ten-
demos a ver os eventos contemporâneos como tendo somente cau-
sas contemporâneas, quando, na verdade, estamos inseridos em
processos duradouros de mudança histórica e somos afetados pelo
efeito recorrente de eventos agora esquecidos. Nossa escolhas atuais
são visceralmente dependentes do caminho já trilhado e refletem o
padrão de decisões e de arranjos institucionais anteriores, assim
como nossos modos de pensar refletem as circunstâncias e proble-
mas dos períodos em que originalmente se desenvolveram.
A teoria da mudança histórica que sustento adiante é centrada
nas ações e tem a pretensão de explicar o problema; em tal teoria, os
atores socialmente situados reproduzem (ou transformam) as es-
183
truturas que viabilizam ou restringem suas ações. Meu argumento,
substancialmente, é de que os apoios políticos, econômicos e cul-
turais que anteriormente ampararam o controle do crime moderno
gradualmente ruíram por causa das tendências sociais pós-moder-
nas e das guinadas intelectuais e políticas que as acompanharam.
Estas tendências, por seu turno, trouxeram novos problemas, mo-
tivaram novas percepções e ditaram variadas adaptações práticas,
das quais pouco a pouco emergiram o controle do crime e as práti-
cas da justiça criminal do presente período. A teoria considera que a
emergência destas práticas é o resultado típico do pragmatismo e da
seleção política e cultural. Conseqüentemente, trata-se de processo
complexo, no qual relatos concotTentes dos problemas e soluções
estão sempre em jogo, interesses e sensibilidades diferentes estão
sempre em pauta e a capacidade de selecionar soluções com infor-
mações concretas é, na melhor das hipóteses, sempre parcial.
A dinâmica de mudança na pós-modernidade do
século XX
As mudanças sociais em larga escala na segunda metade do
século XX têm sido objeto de muito debate e reflexão sociológi-
cos. Para alguns analistas, estas mudanças indicam a chegada da
pós-modernidade e de uma forma de organização social e de cons-
ciência bem distintas daquelas da modernidade. Outros, desejosos
de marcar a singularidade do mundo que estas mudanças criaram,
mas também de reconhecer sua continuidade com o anterior, fa-
lam de "modernidade tardia", "alta modernidade" ou "modernida-
de reflexiva". Te1mos como "novos tempos", "pós-fordismo", "pós-
previdenciarismo" e "neoliberalismo" identificam igualmente as pe-
culiaridades do presente, porém o primeiro é por demais vago, en-
quanto os demais são muito específicos. Meu teimo preferido é
"pós-modernidade do século XX" - que denota uma fase histórica
do processo de modernização serri. assumir que estejamos chegan-
do ao fim, ou mesmo ao ápice, de uma dinâmica centenária, que
não dá nenhum sinal de que irá acabar. Infelizmente, tal termo é
ainda mais problemático do que os outros, possuindo utilização limi-
tada para a generalização teórica. Então, usarei o termo "pós-mo-
dernidade" por pura conveniência, devendo o leitor ter em mente o
sentido com que o emprego.

184
As grandes transformações que varreram a sociedade na se-
gunda metade do século XX foram, de uma só vez, econômicas,
sociais, culturais e políticas. Até onde é possível, elas podem ser
resumidas no seguinte: (i) a dinâmica da produção capitalista e
das trocas mercantis e os correspondentes avanços em tecnologia,
transportes e comunicações; (ii) a reestruturação da família e do
lar; (iii) mudanças na ecologia social das cidades e dos subúrbios;
(iv) a ascensão dos mass media eletrônicos; e (v) a democratiza-
ção da vida social e cultural.
Estas grandes forças de mudança histórica transformaram a
textura do mundo desenvolvido na segunda metade do século XX
- até o ponto das economias de mercado globais e do sistema de
Estado-nação, até as profundezas da vida diária e das dinâmicas
psicológicas das famílias e dos indivíduos. Enquanto a silhueta da
modernidade capitalista e democrática ainda marca nossa existên-
cia social, a segunda metade do século XX foi vincada por mudan-
ças profundas no modo em que a vida é vivida - mudanças que
têm tido implicações importantes para questões relacionadas ao
crime e ao seu controle. A discussão sobre qualquer uma destas
tendências de mudança social entrelaçadas leva à discussão das
demais. Aqui, começo e encerro com aquelas que considero as
forças transformadoras mais básicas dos tempos modernos: a for-
ça econômica da competição capitalista e a luta por igualdade social
e política.
A dinâmica modernizante da produção capitalista e
das trocas mercantis
A mais poderosa e determinante destas forças históricas - tão
vigorosa hoje em dia quanto era no tempo de Karl Marx - foi a
dinâmica da produção e das trocas capitalistas. Direta ou indireta-
mente, todas as principais transformações da segunda metade do
século XX podem ser reconduzidas ao processo de acumulação de
capital e de busca incessante por novos mercados, maiores lucros
e vantagens na competição. Episódios militares, tais como a coni-
da rumamentista e a Guerra Fria, sem dúvida desempenharam um pa-
pel, mas, sobretudo e sobre todos, o lucro é que foi o mote da ultra-
rápida transformação em tennos de tecnologia, transportes e comuni-
cações, que vem cru·acterizando os últimos quarenta anos. Automóveis
e aviões, válvulas eletrônicas e microchips, telefones e aparelhos de
185
fax, computadores pessoais e a Internet - cada um destes trouxe con-
seqüências significativas para as relações sociais e para a textura da
vida cotidiana. Propiciaram a ascensão da "sociedade da infonnação"
na qual estamos inseridos; possibilitaram as cidades e os subúrbios nos
quais habitamos; ligaram os quatro cantos do planeta, formando um
mundo único e acessível; e criaram novas divisões sociais, entre os que
têm acesso ao mundo high-tech e os que não têm.
Foram a produção e comercialização em massa de bens que
viabilizaram o mundo de supermercados e de shoppings centers,
de mecanismos de poupança do salário e bugigangas eletrônicas,
de pagamentos parcelados e crédito estendido, da indústria da moda
e da obsolescência intrínseca- em poucas palavras, todo um ethos
de "consumo" e "consumismo" e das atitudes culturais que lhes
são próprias 2 . Foi a doutrina da racionalidade econômica que aju-
dou a diminuir as antigas divisões sociais que por séculos atribuí-
ram a homens e mulheres e negros e brancos diferentes papéis
sociais. Ao contrário, foram estas mesmas considerações "finan-
ceiras" que permitiram desigualdades abissais e a exclusão social
de grupos que não poderiam ser facilmente utilizados de modo
lucrativo. Foi a incessante procura por novos mercados, por retor-
nos mais elevados e pela divisão mais eficiente do trabalho que
criou mercados internacionais, o fluxo non-stop de informação e
dinheiro ao redor do planeta e uma economia globalizada na qual
Estados-nações são cada vez menos capazes de controlar os desti-
nos sociais e econômicos dos seus súditos.
Os acontecimentos do final dos anos 1980 podem ter atirado
Marx e Engels à pilha das ideologias fracassadas, mas sua descri-
ção da modernidade capitalista no Manifesto Comunista pe1mane-
ce tão verdadeira quanto antes:
a revolução constante da produção, os distúrbios ininterruptos de
todas as condições sociais, as incertezas e agitações permanentes
distingüiram a época burguesa e todas as anteriores. Todas as re-
lações firmes, sólidas, com sua série de preconceitos e opiniões
antigas e veneráveis, foram varridas, todas as novas tomaram-se
antiquadas antes que pudessem ossificar. Tudo o que é sólido
desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é,
finalmente, compelido a enfrentar de modo sensato suas condi-
ções reais de vida e suas relações com seus semelhantes3 •
186
"Os Anos Dourados": 1950 a 1973
Por um quarto de século, após 1950, as economias da Grã-
Bretanha e dos Estados Unidos - a exemplo da maior parte do
mundo industrializado desenvolvido - vivenciaram um marcante e
continuado processo de crescimento e de aumento na qualidade de
vida. Graças à disseminação das técnicas de produção em massa, à
expansão dos mercados doméstico e exterior de consumo, ao baixo
custo da energia elétrica e ao sucesso do gerenciamento keynesiano
da demanda, essas economias obtiveram êxito em evitar as oscila-
ções cíclicas de tempos pretéritos e gozaram quase três décadas de
expansão e prosperidade ininterruptas. Para a massa trabalhadora, o
"pleno emprego" e a rede de segurança previdenciária emprestaram
às suas vidas um nível de segurança econômica jamais visto. O
crescimento dos sindicatos, o aumento nos níveis salariais e a tribu-
tação progressiva tiveram o efeito de diminuir a lacuna entre ricos e
pobres4 .
Nos EUA, a disseminação do consumismo e a prosperidade da
classe média, que se iniciaram antes da Segunda Guerra Mundial,
foram retomadas e se aceleraram nos anos seguintes; a família nor-
te-americana suburbana rapidamente se tornou um símbolo uni ver-
sal de "estilo de vida" confortável e desejável, com todos os "recur-
sos modernos". Uma vez encerrado o período de racionamento e
reconstrução do pós-guerra, a Grã-Bretanha enveredou pelo mes-
mo caminho, alcançando os novos padrões consumistas estabe-
lecidos do outro lado do Atlântico. Nos anos 1950, a produção
em massa, a preços acessíveis, de bens de consumo duráveis,
tais como carros, máquinas de lavar, refrigeradores, rádios, apa-
relhos de televisão, permitiu que amplos setores da população
trabalhadora tivessem acesso a bens que, anteriormente, eram
disponíveis apenas para os muito ric'1s. Nos anos 1960, o
emburguesamento alcançou um ponto em que boa parte da classe
de trabalhadores qualificados já se acostumara a luxos - carros
novos, viagens ao exterior, casa própria, roupas da moda - que
seus pais sequer sonharam5 .
A revolução tecnológica na produção industrial introduziu dis-
positivos eletrônicos portáteis - televisores, rádios, aparelhos de
som estéreo e, posteriormente, computadores - em praticamente
todos os lares, e abriu novos mercados em termos de entretenimen-
187
to doméstico e publicidade. O ato de comprar- nos novos shoppings,
supermercados, butiques e resorts turísticos - deixou de ser uma
necessidade para se tornar um passatempo prazeroso, à medida que
mais e mais pessoas passaram a dispor de sobras em seus rendi-
mentos para gastar e de mais tempo para usufruir os bens adquiri-
dos. E se alguns setores de trabalhadores não recebiam salário sufi-
ciente para comprar aqueles produtos, que cada vez mais definiam a
identidade dos indivíduos, a ampla disponibilidade de crédito e as
possibilidades de parcelamento dos débitos garantiam que não fi-
cassem totalmente excluídos .
. Pela primeira vez, as massas podiam imitar os ricos na trans-
missão de suas conquistas para seus descendentes - não na forma
de herança ou de imóveis, mas dando-lhes dinheiro. Isto, juntamen-
te com salários provenientes de empregos de tempo parcial, abriu
um importante mercado novo, que se expandiu rapidamente nos
anos 1960. Em poucos anos, "cultura jovem" e "adolescentes" se
tornaram um setor de mercado fundamental para publicitários das
indústrias de roupas, música e entretenimento. Com a extensão da
escolaridade obrigatória, a expansão da educação superior e, graças
às dietas sofisticadas, a vinda cada vez mais precoce da puberdade,
esta faixa etária passou a ocupar um estendido lapso temporal entre
a infância e o trabalho em tempo integral e compromissos familia-
res. Com o aumento no número dos filhos do pós-guerra que che-
gavam à adolescência nos anos 1960, este novo estrato social assu-
miu uma identidade singular e se tornou uma força pioneira na mu-
dança cultural, pelo menos no que tange a estilo de vida e preferên-
cias de consumo.
Foi durante o período do pós-guerra que o capitalismo
monopolista se reinventou na forma de capitalismo de consumo.
Este sistema orientado ao consumo era sustentado pelo poder aqui-
sitivo de uma massa de consumidores ativos, por técnicas de
marketing que contribuíam para gerar um fluxo constante de dese-
jos não atendidos, e por acordos corporativos entre o governo,
empregadores e sindicatos, que estabilizavam o sistema e conferi-
ram uma base econômica para sua dinâmica inflacionária. Novos
grupos ocupacionais surgiram (gerenciamento, profissionais de ser-
viços públicos, especialistas em trabalho, finanças, marketing,
mídia e serviços industriais) e as instituições de ensino superior se
188
multiplicaram, de modo a equipar a força de trabalho com as habili-
dades e com o treinamento que estas novas ocupações exigiam6 ,
Qualquer que fosse o partido político a ocupar o poder, a po-
lítica de expansão era sempre o tema dominante- seus críticos viri-
am a chamá-la de política da "tributação e gasto" - à medida que os
govemos reagiam à maré de expectativas crescentes e de demanda
por aquilo que T. H. Marshall chamou de "direitos sociais". Naquelas
décadas, um importante setor público surgiu - provendo trabalho e
serviços sociais, assistência médica, apoio infantil, educação, habita-
ção, assim como auxílios-desemprego. Isto era custeado, evidente-
mente, pelos recursos miundos do pagamento de tiibutos e dependia,
destarte, da capacidade continuada do setor privado de gerar riquezas
e emprego. Independentemente de os políticos aceitarem ou não o
rótulo, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha se tornaram "Estados de
bem-estar", "Estadosregulatórios", "governos totais" -cada vez mais
responsáveis por administrar a vida econômica, cada vez mais vistos
como garantidores do bem-estar e da prosperidade de sua população,
cada vez mais responsabilizados pela tarefa de resolver problemas
sociais mais graves 7 .
A prosperidade econômica foi a mola propulsora dos direitos
civis, de uma "política de solidariedade" e de políticas progressis-
tas como o correcionalismo e a reabilitação. Outrossim, ela forne-
ceu a base para a expansão da democracia, do princípio da igual-
dade entre as pessoas e paira amplas mudanças culturais que se
seguiram. O duradouro boom econômico legitimou o otimismo e o
caráter progressista que marcaram estas décadas, especialmente
no fim dos anos 1960. Duas décadas de crescimento sustentado,
num mundo que parecia muito diferente do que era no período
pré-Guerra, notadamente no que tange às expectativas, conferiram
uma sensação de possibilidades "pós-escassez" e ajudaram a apa-
gar as lembranças da depressão e da insegurança, que fizeram do
Estado de bem-estar algo tão essencial e do seu ethos algo tão es-
praiado. Porém, o próprio sucesso da conjuntura do pós-guerra deu
causa a correntes contraditórias e a novas formas de oposição. Por
exemplo, foram precisamente esta liquidez econômica e o dissemi-
nado senso de que muito mais era possível que propiciaram o radi-
calismo jovem do final dos anos 1960 e a nova atitude crítica que
tais radicais assumiram quanto ao Estado de bem-estar 8 .
189
As décadas de crise: 1970 e 1980
O que os mercados capitalistas dão, também tiram. Como um
súbito e inesperado choque, a crise do petróleo do início dos anos
1970 inaugurou um período de recessão econômica e de instabilida-
de política em todas as nações industrializadas do Ocidente. O
reaparecimento do "crescimento negativo", agora complicado por
uma inflação intrínseca e pelas expectativas políticas sufragadas
pelos sindicatos de trabalhadores, expôs os problemas subjacentes
das economias dos EUA e da Grã-Bretanha, escancarando-as à
acendrada competição de novas economias em desenvolvimento.
Neste contexto recessivo, as ferramentas da demanda gerencial
keynesiana falharam em alinhar a oferta e a procura; a inflação de
salários e preços continuava; a produção e a venda caíram vertigi-
nosamente; as crises da balança de pagamentos se acumulavam à
medida que os gastos públicos superavam a arrecadação; e conflitos
agudos começaram a esfacelar as relações entre os outrora "parcei-
ros sociais" do governo: os empregadores eos sindicatos. Em uma
década, o desemprego maciço reapareceu, a produção industrial
despencou, a adesão aos sindicatos se reduziu significativamente e
o mercado de trabalho se reestruturou de forma a gerar conseqüên-
cias sociais dramáticas nos anos estavam por vir 9 .
Esta reestmturação do mercado de trabalho - iniciada algum
tempo antes, mas agora acelerada em resposta à curva descenden-
te - testemunhou o colapso da produção industrial e, com ela, a
extinção de milhões de empregos, até então ocupados por traba-
lhadores não-qualificados do sexo masculino. Onde persistiu, a
manufatura industrial se tornou mais dependente do capital (se
comparado com a mão-de-obra) e mais sofisticada tecnologicamente,
o que resultou em menos empregos e, por outro lado, exigia mais
qualificação dos trabalhadores. À medida que os mercados interna-
cionais de investimento se desenvolviam, fazendo com que o capital
se tornasse mais volátil e menos vinculado às nações e regiões, a
pressão para aumentar a produtividade ou diminuir os salários reve-
lou as deficiências das antigas indústrias e minou a capacidade dos
sindicatos de proteger seus associados menos qualificados. Quando
veio a recuperação econômica- que de fato veio, depois das recessões
de 1973-75 e 1981-83-o processo foi mais lento e modesto do que
antes, concentrando-se nos setores de serviços e de tecnologia de
190
ponta. O resultado foi um diferente tipo de emprego, de baixos
salários, de tempo parcial, que empregava geralmente mulheres
ou, então, trabalhadores altamente qualificados 10 .
Do final dos anos 1970 em diante, os mercados de trabalho
nos EUA e na Grã-Bretanha se tornaram cada vez mais precários
e "dualizados". A vitalícia segurança no emprego que as indústrias
e o setor público haviam oferecido nos anos do pós-guerra ficou
no passado, à medida que os trabalhadores ficaram mais flexí-
veis, mais dispostos a desenvolver habilidades transferíveis, mais
acostumados a novos treinamentos e remanejamentos. A figura
do chefe de família, que sustentava a casa com seu salário, foi
paulatinamente substituída pela da mulher trabalhadora em regi-
me de meio expediente, com pouca segurança no emprego e es-
cassos benefícios 11 . Enquanto os estratos mais qualificados da
população trabalhadora podiam continuar ganhando bons salários
e amplos benefícios, na outra ponta do mercado de trabalho ha-
via massas de pessoas não-qualificadas, iletradas e desemprega-
das - grande parte das quais composta por jovens, moradores das
cidades e minorias-, para as quais o horizonte era de desemprego
duradouro. Os novos padrões de remuneração, que nos anos 1980
foram reforçados por estruturas regressivas de tributação e por be-
nefícios previdenciários decrescentes, reverteram os ganhos dos
cinqüenta anos precedentes, na inversa proporção do crescimento
da desigualdade de renda e do aumento do número de pessoas (es-
pecialmente as que tinham filhos) que iam se situando abaixo da
linha de pobreza 12 .
Estas mudanças não foram temporárias. Mesmo nos anos
1990, quando um mercado de ações forte e baixos custos com
salários sustentaram um período de crescimento continuado e de
alta oferta de empregos, setores inteiros da população - particular-
mente jovens moradores dos centros urbanos, pertencentes às co-
munidades pobres ou de minorias - foram sistematicamente ex-
cluídos do mercado de trabalho, da mesma forma que acontecera
com seus pais. Conseqüência disto foi um mercado de trabalho
mais intensamente estratificado, com desigualdades crescentes
separando as pontas superiores e inferiores da pirâmide; um redu-
zido senso de comunhão de interesses, à medida que o poder e a
adesão aos sindicatos diminuíam; maiores contrastes nas condi-
191
ções de trabalho, de moradia e de estilo de vida; e, por fim, menos
laços de solidariedade entre estes grupos 13 .
Mudanças na estrutura da família e do lar
Uma das mudanças sociais centrais do pós-guerra nos Esta-
dos Unidos e na Grã-Bretanha foi o ingresso maciço de mulheres
casadas e de mães no uni verso do trabalho assalariado. Em 1941,
mulheres casadas que viviam com o marido e que realizavam al-
gum trabalho remunerado representavam menos de 14% da popu-
lação feminina nos EUA; em 1980, elas já constituíam mais de
50%. Na Grã-Bretanha, a tendência era a mesma, com as mulheres
formando 29% da força de trabalho em 1951 e 43%, em 1991 14 .
Ao longo do mesmo período, a estrutura da família se trans-
formou substancialmente. Verificou-se um significativo declínio
(e concentração, com o tempo) da fertilidade, pois as mulheres
passaram a se casar mais tarde, a ter menos filhos e a reingressar
no mercado de trabalho pouco tempo depois de dar à luz 15 . Verifi-
cou-se, também, um súbito e marcante aumento na freqüência de
separações, particularmente na Inglaterra, onde o número de di-
vórcios, comparativamente ao de casamentos, saltou de 1 para 58,
em 1938, para 1 para cada 2,2, na metade dos anos 1980. Esta
nova proporção fez crescer agudamente o número de crianças que
viviam em ambientes familiares com apenas um dos pais, o que
trouxe novos problemas relacionados à pobreza infantil e femini-
na. O crescimento concomitante do número de mães solteiras re-
forçou esta tendência, especialmente nos EUA, onde, no início
dos anos 1990, mais de 30% de todas as crianças eram filhos de
mães solteiras, proporção que aumentava para perto de 70% nas
comunidades afro-americanas, nas quais 58% de todas as famílias
eram chefiadas por mulheres solteiras. No lapso de apenas quarenta
anos, a imagem tradicional da família nuclear - homem e mulher
casados, vivendo junto com os filhos - passou a guardar pouca
relação com a realidade da vida doméstica da maioria da população
dos EUA e da Grã-Bretanha 16 .
A expansão, verificada no período pós-anos 1960, da educa-
ção superior e das oportunidades profissionais para mulheres de
classe média, assim como o aumento na oferta de empregos (espe-
cialmente os de tempo parcial) nos novos serviços industriais e no

192
setor de manufatura leve para as proletárias, gradualmente transfor-
maram a feição das carreiras pós-casamento da mulher média. Bem
assim a maior eficácia dos mecanismos contraceptivos,
correlacionada às novas e mais tolerantes normas em tomo de sua
utilização. Ao longo do tempo, muitas famfüas passaram a ter "dupla
fonte de renda", o que gerou conseqüências em todos os aspectos,
desde a forma de gastar o dinheiro até o preço médio das residênci-
as, passando pelas despesas com assistência infantil, o tempo livre
em casa, o número de cru1-·os na garagem e os níveis de estresse de
homens e mulheres 17 .
No mesmo período, houve mudanças nas características nu-
méricas das famfüas. Desde 1950, vem oc01Tendo um declínio cons-
tante no tamanho médio das famílias, com mais e mais pessoas
morando sozinhas ou em pequenas unidades familiares. Ao longo
do primeiro terço do século, em aproximadamente apenas 6% das
residências na Grã-Bretanha, havia pessoas vivendo sozinhas. Em
1991, esta proporção havia alcançado 25%, com picos de 50% em
muitas das grandes cidades. O tamanho médio das famílias de-
cresceu, ao longo do mesmo interregno, de 3,4 pessoas para 2,7.
Estas mudanças resultaram das características de natalidade e for-
mação familiar já mencionadas, mas também foram causadas pelo
maior número de adolescentes que passaram a ir para a universi-
dade e pelo fato de que mais pessoas de idade avançada passaram
a viver sozinhas 18 .
Forças sociais operando de dentro e de fora da família dita-
ram estas mudanças. Remunerações mais elevadas, melhor assis-
tência de saúde e benefícios previdenciários maiores permitiram
que os mais velhos vivessem mais e de forma mais independente;
permitiram, também, que mães e pais solteiros sobrevivessem de
benefícios ou de empregos de tempo parcial; proveram aos adoles-
centes recursos públicos para financiar o curso universitário; alivi-
aram as famílias de algumas de suas tradicionais responsabilidades
assistenciais e gradualmente modificaram as normas e expectativas
que estavam no entorno de tais responsabilidades. Mudanças no
mercado de trabalho permitiram que mais mulheres nele ingressas-
sem, assim como ocasionaram o declínio da renda familiar. Movi-
mentos em regras culturais e legais - notadamente a intensificação
dos ideais feministas nos anos 1970, o aumento da tolerância com
193
formas familiares "alternativas" e a redução do estigma para com
divórcio, filhos fora do casamento e homossexualismo - também con-
tribuíram. A relação, evidentemente, era recíproca. Como vere-
mos, estas modificações na estrutura familiar trouxeram impor-
tantes conseqüências práticas para todos os aspectos da vida
diária.
Como resultado destas mudanças, as famílias e os lares de
hoje são bem diferentes e funcionam de forma muito distinta das
famílias típicas dos anos 1950 ou do início dos anos 1960. A ques-
tão sobre quais efeitos funcionais decorrem daquelas mutações es-
truturais é, obviamente, uma das mais polêmicas da atualidade.
No entanto, não há dúvida de que as mutações na família e no seu
significado social constituíram tema central do debate político e
cultural ao longo do último quarto de século. E tal debate tem,
rec01·rentemente, lançado luz sobre assuntos relacionados ao cri-
me e ao bem-estar.
Mudanças na ecologia social e na demografia
As décadas do pós-guerra testemunharam duas grandes novi-
dades na ecologia social: a disseminação do automóvel e os novos
padrões de habitação, cujos exemplos mais importantes foram o
deslocamento das moradias para áreas de subúrbio e dos conjuntos
habitacionais públicos para as periferias das grandes cidades. O ve-
ículo automotor e a malha rodoviária construída para acomodá-lo já
existiam nos EUA antes da gue1rn e se desen vol verarn rapidamente
na Grã-Bretanha nos anos 1950 e 1960. Entre 1950 e 1994, o núme-
ro total de automóveis, caminhões e ônibus registrados nos EUA
quadruplicou, saltando de 49,2 para 198 milhões. Na Grã-Bretanha,
o crescimento foi mais lento e nunca se equiparou em intensidade,
mas a tendência foi semelhante 19 .
Uma conseqüência da disseminação do transporte particular e
de massa foi a supressão da necessidade de se residir próximo ao
local de trabalho. Nas décadas do pós-guerra, houve uma migração
em larga escala dos centros urbanos para os subúrbios, e a distância
média percorrida entre a casa e o trabalho, a casa e os centros
comerciais e de lazer e a casa e a escola aumentou significativamen-
te20. Tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha esta mutação foi pro-
piciada, em parte, pela demanda crescente de novos padrões

194
habitacionais e pelo desejo de famílias jovens de escapar dos cen-
tros urbanos decadentes e dos seus problemas sociais. Os projetos
de remodelação urbana dos anos 1960 confirmaram este processo,
demolindo muitos dos bairros residenciais dos centros urbanos que
estavam no caminho das novas rodovias, bem corno realojando as
residências em projetos habitacionais novos e densamente povoa-
dos. O efeito mais comum foi o de concentrar os pobres e as mino-
rias em áreas distantes, longe da cidade e carentes dos serviços
básicos, tais como comércio, dos locais de trabalho e da rede de
transporte público de qualidade21 .
Juntos, estes dois desdobramentos ecológicos transformaram a
maneira através da qual os elementos da vida diária se inter-relacio-
nam no tempo e no espaço, com conseqüências importantes sobre o
modo de vi ver a vida. Entre estas, há multi pias mudanças sociais - o
shopping center fora da cidade; o despovoamento do centro das cida-
des; a mobilidade da força de trabalho; a suburbanização do emprego;
o declínio de importância dos laços locais e da interação pessoal; e a
crescente privatização da vida individual e familiar.
Estas mudanças interagiram com outros fatores demográficos,
de modo a ocasionar novas formas de segregação e de divisão so-
cial. Nos EUA, uma das dinâmicas de suburbanização foi a "fuga
branca", na medida em que o movimento migratório dos negros
do sul para as cidades do norte e do meio-oeste, de 1940 em dian-
te, levou muitos residentes brancos das cidades a se mudarem para
outros locais. Nos anos 1960, a combinação de suburbanização
branca com a extensiva migração negra resultou no aumento inau-
dito do tamanho dos guetos das grandes cidades, como Chicago,
Los Angeles, Newark e Detroit22 . Na Grã-Bretanha, verificou-se
uma segregação similar, ainda que menos visível, à medida que as
políticas habitacionais das autoridades locais se alinhavam às es-
colhas de mercado dos proprietários mais prósperos, no sentido de
produzir a concentração dos residentes mais desfavorecidos nos
piores locais e nos centros urbanos decadentes. Nos anos 1980, o
contraste entre os subúrbios da classe média branca e as vizinhan-
ças urbanas pobres, freqüentemente negras, foram exacerbadas pelo
corte de recursos públicos, associado ao "Novo Federalismo" de
Reagan e Bush, e pela contenção de gastos públicos imposta pelo
governo de Thatcher23 .
195
O impacto social dos mass media eletrônicos
Se o automóvel e o subúrbio transformaram o espaço social
em termos físicos, o advento da televisão e os veículos de infor-
mação fizeram o mesmo, só que em termos psicológicos, de modo
igualmente profundo e influente. Ainda no início do século XIX,
jornais de circulação maciça estabeleceram uma comunidade na-
cional de notícias; na época da Primeira Guena Mundial, a indús-
tria começou a se consolidar na forma de conglomerados de im-
prensa de âmbito nacional. Porém, somente com o desenvolvi-
mento da transmissão via rádio, nos anos 1920 e 1930, e com a
disseminação da televisão uma ou duas décadas mais tarde, os
"mass media" se estabeleceram como instituição central da vida
moderna. Na Grã-Bretanha e nos EUA, a cobertura da televisão
saltou da inexistência para a abrangência universal em tempo infe-
rior ao de uma geração. Em 1950, 9% dos lares norte-americanos
e 10% dos lares britânicos possuíam aparelhos de televisão. Em
1963, a proporção se inverteu: menos de 10% não os tinham 24 •
A revolução da televisão modificou o resto da mídia. En-
quanto sua audiência aumentava, o impacto da televisão sobre
os gostos populares e sua crescente participação no dinheiro
gasto com publicidade forçaram os jornais a competir, cada vez
mais, em termos televisivos. Conseqüência disto foi a ulterior
consolidação da indústria dos jornais, o advento dos tablóides
e a tendência, crescente e imperceptível, de mesclar notícias e
entretenimento.
A revolução da TV também mudou relações sociais e sensibili-
dades culturais. O surgimento de um sistema único de informação,
de alcance nacional, ao qual todos tinham acesso constante trouxe
conseqüências notáveis às identidades e relações de grupo, particu-
larmente num lugar tão grande e diversificado quanto os EUA, ou
tão fortemente dividido em classes como a Grã-Bretanha. Perspec-
tivas nacionais e cosmopolitas ficaram disponíveis para grupos cujas
experiências haviam sido ditadas, até então, pelas culturas
introspectivas do localismo, da classe social e dos grupos étnicos.
Membros de grupos anteriormente isolados ficaram mais capazes
de reconhecer sua desvantagem e de exigir direitos e tratamentos
iguais. A mídia eletrônica, assim, conferiu maior visibilidade à expe-
riência de exclusão, tornando-a, portanto, menos aceitável. Então,
196
não foi nem um pouco surpreendente o fato de que as "tensões
sobre formas de integração racial ou de qualquer outra natureza
alcançaram o ápice quando a televisão concluiu o processo de inva-
são nos lares dos Estados Unidos" 25 .
Padrões de consumo e estilos de vida até então circunscritos
aos ricos e famosos passaram a estar disponíveis a todos, com con-
seqüências perturbadoras para as expectativas das massas e dos
aspirantes a consumidores. Como Joshua Meyrowitz apontou em
1985, "através da televisão, as crianças dos guetos têm hoje mais
pontos de referência e critérios mais rigorosos de comparação. Em
qualquer programa e comercial elas vêem aquilo de que estão pri-
vadas"26. Ao mesmo tempo, riscos e problemas que, anteriormen-
te, eram localizados e possuíam significação limitada, ou associa-
da a grupos específicos de vítimas, passaram a ser, cada vez mais,
percebidos como problemas de todos, à medida que as imagens
dos comportamentos em questão (racismo, abuso sexual, crime,
violência, abuso de crianças, guerras, fome ... ) começaram a ser
exibidas nas salas de estar de toda a população. A visibilidade de
eventos e indivíduos deixou de depender do elemento local e da
experiência direta; ao revés, tomou-se dependente da mídia e das
decisões desta sobre o quê e como divulgar.
A televisão mudou, também, outros aspectos da vida cultu-
ral. Diferentemente dos outros veículos de imprensa, a televisão
era capaz de veicular informações íntimas, "expressivas" - im-
pressões da pessoa que fala, só disponíveis, anteriormente, em
encontros pessoais. As notícias televisivas despertavam um senso
de imediatismo e intimidade, colocando o telespectador face a face
com o entrevistado ou com o objeto da apresentação. Isto levou a
uma nova ênfase nos aspectos emotivos e íntimos de determinado
evento, bem como a uma tendência de revelar cada vez mais as
"personalidades" envolvidas 27 . Outrossim, levou também à maior
exposição daquilo que Erving Goffman chamou de "comportamen-
to nos bastidores". Autoridades, celebridades e pessoas comuns eram
exibidas de maneira mais reveladora, ao passo que as entrevistas
buscavam provocar reações não ensaiadas, revelando os sentimen-
tos que se escondem atrás das frases feitas e das imagens públicas.
Também as instituições passaram a ser objeto de escrutínio detalha-
do, na medida em que o olhar inquisidor da câmera procurava ir

197
além das aparências externas e mostrar aos espectadores "como
realmente é". Neste sentido, a televisão tendia a minar a tradição. A
mídia, em nome do realismo e do jornalismo direto e aberto, não
mais respeita as demandas tradicionais por pli vacidade e intimidade.
Cada vez mais os comportamentos nos bastidores são revelados, a
exemplo do que sucede com as falhas e defeitos de figuras e insti-
tuições públicas. A conveniente e abusivamente empregada- con-
quanto democrática - justificativa disso é que "o público tem o
direito de saber"28 .
Estas mudanças na mídia auxiliaram a cliação de maiores ní-
veis de transparência e confiabilidade nas instituições sociais ego-
vernamentais. Más decisões e práticas equivocadas são, agora, muito
mais visíveis, assim como há um controle mais próximo do que está
acontecendo nos bastidores. O sigilo oficial e a imunidade governa-
mental são crescentemente desafiados por uma imprensa ousada e
popularizada. Como Meyrowitz observa,
à medida que o interior da prisão, do convento, da casa, da vizi-
nhança, da suíte do executivo, do campus universitário e do Sa-
lão Oval é invadida por dispositivos eletrônicos, devemos espe-
rar uma mudança fundamental em nossa percepção da sociedade,
de nossas autoridades e de nós mesmos 29 .
A democratização da vida social e da cultura
Foi nas décadas de 1950, 1960 e 1970 que as instituições de-
mocráticas na Grã-Bretanha e nos EUA se ampliaram e passaram a
abranger todos. Os direitos civis de grupos, tais como os negros,
mulheres, gays, prisioneiros e doentes mentais, foram reconheci-
dos e estendidos naquele período; mudanças importantes oc01Teram
na relação de poder entre governo e governados, empregadores e
empregados, organizações e consumidores. Estas mudanças foram
o resultado de esforços prolongados da parte dos membros dos
grupos defavorecidos e dão o testemunho dos ideais igualitários do
poder, do tom liberal das elites políticas e do ativismo de governos
reformistas e, nos EUA, da Suprema Corte. Porém, tinham também
raízes nas condições estruturais da sociedade pós-moderna. Insti-
tuições do Estado de bem-estar, políticas corporativas, os mass me-
dia e a nova cultura de consumismo contribuíram para isto, bem
assim a democratização funcional que cresceu fora dos interminá-

198
veis elos de interdependência que caracterizaram a divisão do traba-
lho, através da qual conferiu-se a trabalhadores especializados, ge-
rentes e técnicos uma parcela maior de poder no local de trabalho,
particularmente onde eles fossem pouco organizados.
Naquele período, o discurso da igualdade e as políticas de
isonomia desempenharam um papel crucial na cultura política, por
mais que seus postulados, vez por outra, não se verificassem na
prática. Em princípio, não havia nenhuma razão para que alguém
devesse ser tratado desigualmente ou que lhe devessem ser nega-
dos os atributos da cidadania plena30 . Havia uma expectativa cul-
tural de tratamento justo ao indivíduo em face da autoridade ou de
grande organizações. Novos mecanismos (juízos trabalhistas, leis
sobre discriminação sexual, shows de defesa do consumidor) fo-
ram desenvolvidos para reforçar estes clamores. Uma expectativa
similar de direitos iguais e inclusão social transformou as expecta-
tivas (se não as chances de vida) de minorias às quais antes se
atribuía baixo status. Embora estas novas expectativas nem sem-
pre redundassem em diminuição das distinções sociais e das bar-
reiras de classe, elas produziram um efeito cultural que Ralph
Miliband batizou de "dessubordinação" - um declínio nos níveis
de deferência e de respeito por superiores sociais que antes repro-
duziam a estratificação. Nos anos 1960 e 1970, esta guinada em
direção à democracia e à igualdade se estendeu para além da esfera
política, invadindo os domínios privados dafamfüa, do local de tra-
balho, das universidades, das escolas - com importantes conseqü-
ências na autoridade e no controle destes ambientes 31 .
Em muitas organizações, especialmente nas corporações maio-
res e bem administradas e nas instituições públicas, esta alteração
ocasionou uma mudança nos estilos de administração e no equilíbrio
de poder. A "administração por ordem", em que um superior ordena
que seu subordinado se comporte de determinada maneira, foi subs-
tituída pela "administração negociada" 32 . Os trabalhadores,
notadamente os qualificados e organizados, não estavam mais dis-
postos a agir como servos dos seus empregadores. Os clientes das
burocracias governamentais começaram a agir como clientes efeti-
vos. Mulheres exigiam mais poder dentro de casa. Aprendizes e
estudantes, assim como crianças e prisioneiros, desejavam maior
participação nas instituições que os abrigavam. Especialistas e o

199
próprio saber especializado foram cada vez mais sujeitos ao ceticis-
mo, ainda que o público se tomasse cada vez mais dependente de-
les33 . Embora o resultado fosse, freqüentemente, a mudança ape-
nas de forma, e não uma mudança verdadeira de status e de poder,
estas formas cambiantes faziam a diferença - e não apenas quanto
às expectativas e ao senso de direito das pessoas. Dos anos 1960
ern diante, e em cada vez mais contextos sociais, a autoridade abso-
luta e o modo vertical de tornada de decisões foram ficando paulati-
namente insustentáveis34 •
No período do pós-guerra, absolutismos morais e proibições
inquestionáveis perderam sua força e credibilidade, à medida que as
hierarquias sociais rígidas e duradouras sobre as quais se sustenta-
vam começaram a ruir. Este processo, por sua vez, enfraqueceu os
poderes morais da igreja e do Estado e, ao mesmo tempo, encorajou
a disseminação de uma sensibilidade moral mais relativista, mais
"situacional" 35 . No decurso de poucos anos, oconeram transfor-
mações radicais nas normas relacionadas a algumas matérias, tais
como divórcio, conduta sexual, filhos fora do casamento e uso de
drogas. Com o desenvolvimento de novos movimentos sociais e à
medida que mais e mais grupos reafirmavam a legitimidade dos seus
valores e estilos de vida específicos, políticas muito mais pluralistas
entraram em cena. O resultado foi uma política de identidade que
rompia com o antigo sistema de partidos políticos, bem como uma
opinião pública mais diversificada, que questionava a possibilidade
de consenso moral e o poder de uma única cultura dominante por
ele engendrada36 .
O ataque dos anos 1960 às hierarquias sociais estabelecidas e
às autoridades morais também encorajou o desenvolvimento de dife-
rentes culturas e visôes de mundo - que se tornariam crescentemente
espraiadas nas décadas seguintes. O pensamento característico da-
quele período tendia a ser mais cético, mais pragmático e mais re-
flexivo do que antes. O fim dos absolutismos e a ascensão de uma
cultmamais plmalista tiveram conseqüências na vida intelectual tam-
bém. O pensamento "positivista" se tornou cada vez menos defen-
sável - não apenas na criminologia, rnas em cada esfera do pensa-
mento social. A noção positivista de que existiam observações am-
plamente compartilhadas, uma realidade universalmente vi vendada,
um campo determinado de fatos reais, a possibilidade de liberdade
200
teóricas para a ciência- nada disto parecia muito plausível, uma vez
que o pluralismo e o relativismo se tornaram parte da atmosfera
cuHuraL Mesmo a "racionalidade" era desafiada, na medida em que
intelectuais pós-modernos e grupos excluídos rechaçavam a idéia
de um parâmetro único, válido para todos. Na vida cultural, como
no mundo das instituições sociais, o legado iluminista da razão cien-
tífica foi sendo cada vez mais criticado, assim como suas ambições
de engenharia social não mais foram vistas como um desiderato
humano inquestionável37 .
Uma das conseqüências mais profundas destas mudanças so-
ciais e culturais foi o surgimento de um individualismo moral mais
pronunciado. Os indivíduos foram ficando cada vez menos sujei-
tos à influência restritiva das demandas grupais e dos códigos
morais absolutistas. Parcelas crescentes da população foram enco-
rajadas a perseguir os ideais da expressão individual, da autode-
terminação e das recompensas que a sociedade de consumo reser-
vava a todos. As amarras da tradição, da comunidade, da igreja e
da família se afrouxaram numa cultura que enfatizava direitos e
liberdades individuais que solapavam as barreiras legais, econô-
micas e morais anteriormente usadas para pôr homens, mulheres e
jovens "nos seus devidos lugares". O resultado disto foi uma al-
teração no equilíbrio do poder entre o indivíduo e o grupo, o
relaxamento dos controles sociais tradicionais e a nova ênfase
na liberdade e na importância do indivíduo. Alguns aspectos
desta nova cultura possuíam qualidades egoísticas, hedonistas,
ligadas ao ethos do consumo incessante do novo capitalismo.
Esta nova cultura engendrou uma moralidade do individualismo liberal,
uma moralidade na qual a tolerância mútua, o autocontrole prudente e o
respeito pelos outros indivíduos tomam o lugar das ordens do grupo e
dos imperativos morais. Neste universo moral, o pecado capital era a
crueldade para com os indivíduos ou a supressão de sua liberdade; as
obrigações para com o grupo ou mesmo a famfüa eram muito mais
relativizadas38 .
É certo que, à medida que as "comunidades naturais" decli-
naram e afrouxaram os laços sociais com os indivíduos, novas
"comunidades por escolha" emergiram - subculturas, identida-
des de consumo e de estilos de vida, associações profissionais,
salas de bate-papo virtuais - aproximando as pessoas de novas

201
maneiras e sujeitando-as a novas normas sociais. Estas novas
formas de solidariedade, porém, não carregavam tanto nos con-
troles que exerciam. Não tinham esta característica face-a-face,
não eram locais, não estavam assentadas sobre um senso co-
mum de espaço ou sobre os apertados laços da família. Não afe-
tavam as pessoas da mesma forma íntima com que o fizera a
velha família ou os vínculos de vizinhança. Ao revés, os indiví-
duos transitavam por múltiplas redes, relacionando-se com elas
de modo segmentado, e não de "corpo e alma", dos quais deriva-
va a relação de pertencimento a um grupo específico. Além dis-
so, nem todos os novos modos de associação eram abrangentes
ou absolutamente includentes. Eles excluíam na mesma medida
em que incluíam. Tipicamente, eles agiam no sentido de excluir os
pobres e minorias, muitos dos quais já haviam sido destacados das
comunidades e dos controles do local de trabalho, dos novos movi-
mentos sociais e das fontes legítimas da identificação como consu-
midor. O declínio dos laços familiares e comunitários, portanto, afe-
tou mais negativamente os pobres do que outros grupos.
O impacto da mudança social pós-moderna no crime
e no bem-estar
As amplas mudanças descritas acima deixaram sua marca por
todo o terreno da organização social pós-moderna; em todo caso,
seu impacto foi mediatizado pela forma com que os partidos políti-
cos e os atores sociais compreenderam e reagiram aos novos des-
dobramentos. Porém, antes de ir em frente, sublinhando as distintas
reações e acomodações que estas mudanças provocaram, desejo
fazer uma pausa para considerar algumas das maneiras pelas quais elas
afetaram os dois domínios centrais para este estudo: (i) crime e contro-
le social e (ii) as instituições do Estado de bem-estar.
Crime e controle social
A dinâmica transformadora da pós-modernidade gerou seus
efeitos mais pronunciados e profundos nas duas décadas após 1960.
Este período coincidiu, mais ou menos exatamente, com um rápi-
do e consistente aumento 110 número de crimes registrados - não
apenas nos EUA ou na Grã-Bretanha, mas em todas as nações oci-
dentais industrializadas39. O aumento nas taxas de criminalidade neste
período é um fato social importante e incontestável, apesar dos pro-

202
blemas de demonstração inerentes às estatísticas criminais e da pos-
sibilidade de tais estatísticas terem sido afetadas por mudanças nos
métodos de comunicação e de registro dos crimes. Entre 1955 e
1964, o número de crimes registrados pela polícia na Inglaterra e no
País de Gales dobrou - de meio milhão por ano para um milhão.
Dobrou de novo em 1975 e, mais uma vez, em 1990. A proporção
de crimes, pois, subiu de cerca de 1 por cada 100 pessoas, em
1950, para 5 por cada 100 nos anos 1970 e, posteriormente, para 10
por cada 100, em 19944º. Nos EUA, as taxas de criminalidade subi-
ram muito de 1960 em diante, alcançando o ápice no início dos anos
1980, quando o número de crimes foi o triplo da média de vinte anos
antes; os anos entre 1965 e 1973 registraram o maior aumento nas
estatísticas. Mais do que isto, a majoração se verificou em todas as
categorias principais de crimes, incluídos crimes contra o patiimônio,
delitos sexuais e relacionados às drogas41 .
Esta correlação entre mudanças sociais da pós-modernidade e
elevadas taxas de criminalidade não foi mera coincidência. A expli-
cação mais provável para o rápido e constante aumento, em âmbito
nacional, é de natureza social estrutural, apontando parn parâmetros
comuns de desenvolvimento social. A despeito de consideráveis va-
riações de lugar para lugar, em vários tipos de crimes, e apesar do
impacto de diferentes regimes de controle social e legal, as evidên-
cias sugerem fortemente um liame causal entre a chegada da pós-
modernidade e a crescente suscetibilidade da sociedade ao crime42 .
Além disso, é possível descrever de forma plausível os mecanismos
que ligam as específicas mudanças sociais, econômicas e culturais
do final do século XX à dilatada suscetibilidade ao crime. Esta
suscetibilidade potencializada não é absolutamente um aspecto ine-
vitável, inexorável, da vida pós-moderna. Algumas sociedades,
notadamente o Japão e a Suíça, mantiveram um alto e eficaz
nível de controle (predominantemente informal) do crime, en-
quanto muitas outras encontraram métodos de deter a curva as-
cendente do crime. Entretanto, o impacto inicial da pós-moder-
nidade consistiu em vincular as altas taxas de criminalidade aos
novos arranjos sociais e econômicos que lhe foram inerentes.
O impacto da pós-modernidade sobre o número de crimes re-
gistrados foi multidimensional, tendo envolvido: (i) maiores oportu-
nidades para a prática de crimes, (ii) controles situacionais reduzi-
203
dos, (iii) o aumento da população "em situação de risco" e (iv) a
redução da eficácia dos controles sociais e individuais, como con-
seqüência das mudanças na ecologia social e nas nonnas culturais43 .
O boom do consumo nas décadas do pós-guerra pôs em circulação
uma massa de bens portáteis e de alto valor, que representavam
novos e atrativos alvos de furtos. O aumento exponencial no núme-
ro de bens em circulação criou, por conseqüência, o corresponden-
te aumento nas oportunidades para o crime. Ao mesmo tempo, ve-
rificou-se uma sensível redução nos controles situacionais, à medi-
da que aumentava a quantidade de lojas self-service, as vizinhanças
densamente povoadas davam lugar à disseminação de cinturões su-
burbanos residenciais ou aos quarteirões de edifícios anônimos, áreas
do centro das cidades se transformavam em centros de entreteni-
mento sem locais residenciais e cada vez mais casas ficavam vazias
durante o dia, quando tanto o marido quanto a mulher saíam para
trabalhar. O próprio veículo motorizado, que contribuiu para a
consolidação desta sociedade mais dispersa e móvel, foi, por si
só, objeto visado por suas propriedades criminogênicas. Em pou-
cos anos, a disseminação do automóvel constituiu alvo atraente para
o crime, por estar disponível em todas as ruas das cidades, durante
o dia e a noite, comumente estacionado sem ninguém por perto. O
roubo de - ou com o emprego de - veículos rapidamente se tornou
um dos tipos mais comuns de crime contra o patrimônio.
Outro ingrediente para a elevação na criminalidade verificada
nos anos 1960 foi o aumento no número de jovens do sexo mascu-
lino - o grupo etário mais propício ao comportamento criminoso.
Como resultado das mudanças descritas alhures, esta geração de
jovens desfrutou de mais prosperidade e mobilidade do que as gera-
ções anteriores, assim como de períodos mais longos ao largo da
disciplina familiar e do trabalho de tempo integral. Os jovens pude-
ram ficar mais tempo fora de casa, tinham mais acesso às ativida-
des de lazer e estavam menos sujeitos à supervisão dos adultos e, ao
mesmo tempo, mais sujeitos a integrar ambientes subculturais, tais
como clubes, bares, danceterias e as esquinas das ruas. Esta gera-
ção do baby boom, que cresceu numa cultura universalmente co-
mercial e experimentou novas formas de desejos, expectativas e
demandas por prazer instantâneo, forneceu a maior parte dos futu-
ros protagonistas do boom criminal44 .

204
Finalmente, deve-se acrescentar que este período também tes-
temunhou o relaxamento dos controles sociais informais - nas fa-
mílias, nos bairros, nas escolas, nas ruas - causado, por um lado,
pela nova ecologia social e, por outro lado, pelas mudanças cultu-
rais. O espaço social ficou mais distendido, mais anônimo e me-
nos vigiado, no exato momento em que estava ficando recheado
de tentações e oportunidades para o crime45 . Mais ou menos na
mesma época, deu-se o questionamento das autoridades tradicionais,
um relaxamento das nmmas reguladoras da conduta sexual e do uso
de drogas e a disseminação de um estilo mais "permissivo", "expres-
sivo", de tratamento infantil. Para alguns setores da população, espe-
cialmente as vozes emergentes da nova cultura jovem, o "desvio" se
transformou em signo da liberdade e a "confo1midade" em sinal de
repressão normalizada e obtusa. As velhas categorias do "c1ime" e da
"delinqüência" se tomaram menos óbvias, em tennos de padrão de
comportamento, e menos absolutas em sua força moral.
Juntos, estes mov~mentos sociais geraram um efeito definiti-
vo e pronunciado sobre o crime. As altas taxas de criminalidade
dos anos 1960 e 1970 foram a precipitação destas mudanças soci-
ais - um não planejado, mas absolutamente previsível, produto da
interação daqueles elementos 46 . Dito de fonna sociológica, os ele-
vados níveis de criminalidade foram uma propriedade emergente
das convergentes transformações sociais e psicológicas do pós-
guérra. O novo estado de coisas social e cultural fez da sociedade
pós-moderna uma sociedade mais propícia ao crime, pelo menos até
o momento em que novas práticas de controle do crime pudessem ser
desenvolvidas para frear estas tendências estmturais.
A chegada da pós-modernidade também teve conseqüênci-
as práticas imediatas para as instituições de controle do crime e para
a justiça criminal, bem distintas das conseqüências que altas taxas
de criminalidade normalmente teriam. O automóvel, o telefone e a
distensão do espaço social ensejaram a mudança, nos anos 1960,
para o que os americanos chamam de "policiamento de emergên-
cia" - um estilo de policiamento reativo, que retirou os policiais das
ruas e das comunidades e colocou-os dentro de viaturas, concentra-
dos em prover resposta rápida aos chamados emergenciais47 . A ampli-
ação dos veículos de informação de massa, a universalização de exi-
gências democráticas e aquilo que Edward Shils chamou de as po-
205
líticas de "sociedade de massa" sedimentaram novas leis e formas
de escrutínio, relacionadas às autmidades da justiça criminal. O equi-
líbrio do poder entre a polícia e suspeitos ou entre autoridades
prisionais e os internos foi sutilmente alterado em favor destes últi-
mos, sujeitando estas instituições a níveis mais elevados de controle
legal e exposição na mídia. Finalmente, a deferência social e a
autoridade moral inquestionável que fundamentavam a idéia de
reabilitação dos jovens infratores, seja nas prisões, seja durante
o período de livramento condicional, deixaram de ser incondici-
onais. Considerando-se que a ética do trabalho e do dever perdeu
seu apelo, e que a idéia de consenso moral foi progressivamente
minada, a noção de que funcionários estatais poderiam "co1Tigir"
desviantes se mostrou autoritária e inadequada, e não intrinseca-
mente humana, como antes. No contexto da pós-modernidade, a
empedernida e arraigada resistência que as minorias e os crimi-
nosos pertencentes às classes trabalhadoras sempre impuseram
aos agentes do sistema penal agora assumiu uma face explícita e
ideológica que tornou o policiamento e a punição mais difíceis. A
disponibilidade decrescente de trabalho para ex-condenados de-
pois de 1970 veio agregar-se à implausibilidade de todo o projeto
correcionalista48 .
Instituições previdenciárias
Falar sobre o impacto da pós-modernidade no Estado de bem-
estar significa isolar um lado de um processo histórico inextricável.
Afinal de contas, foram o Estado de bem-estar britânico e seu equi-
valente norte-americano, o New Deal, que proporcionaram o ambi-
ente institucional básico no qual o capitalismo do pós-guerra flores-
ceu e a social democracia se estabeleceu. Foi o Estado keynesiano
que regulou a vida econômica, assegurou os níveis de vida da classe
trabalhadora, ajustou o suprimento de moeda, construiu estradas,
promoveu investimentos e gerenciou globalmente a prosperidade.
Foi este mesmo Estado que custeou a educação, a saúde e a habitação,
bem como aprovou leis instituindo o divórcio e conferiu benefícios aos
indivíduos que não tinham emprego ou familia para ampará-los. O Es-
tado de bem-estar foi, assim, um dos motores que ajudaram a moldar a
pós-modernidade, deixando para trás as inseguranças dos anos de de-
pressão do entre-guerras e inaugurando a nova cultura do indi vidualis-
mo liberal e da social-democracia.
206
No entanto, a ironia histórica deste processo consiste em que
as mesmas mudanças econômicas e sociais inauguradas pelo Esta-
do de bem-estar acabariam por minar a efetividade e legitimidade
de formas previdenciárias de governo. No final dos anos 1970, o
Estado de bem-estar estava sendo atacado nos termos das condi-
ções pós-modernas que ele próprio ocasionou. Antes de discutir as
políticas antiprevidenciárias dos anos 1980 e 1990, quero descre-
ver brevemente as fontes desta dinâmica negativa49 .
O primeiro elemento deste processo de auto-negação foi o efeito
reverso que se seguiu à criação das agências previdenciárias e de
serviços sociais. No fim das contas, as instituições idealizadas para
suprir as necessidades da população no que se refere a habitação,
saúde, educação, trabalho social ou complementação de renda ten-
deram a descobrir mais e mais necessidades insatisfeitas. Então,
conquanto seu orçamento fosse regularmente incrementado, tais
instituições continuavam a parecer insuficientes. Da Segunda Guer-
ra Mundial até os dias atuais, os gastos públicos em serviços sociais
nos EUA e na Grã-Bretanha assumiram uma tendência inerente de
alta, tanto em termos absolutos quanto em comparação com o pro-
duto intemo bruto50 . No entanto, os problemas previdenciários não
se "solucionaram": em vez disto, tornaram-se objeto de políticas e
de administração e, neste processo, ficaram mais visíveis, mais com-
plexos e mais dependentes de recursos estatais. Mesmo onde as
soluções previdenciárias foram eficazes - p. ex., combatendo a po-
breza, a subnutrição ou a assistência médica e habitação deficientes
- este movimento tendeu a produzir mais necessitados e não o con-
trário51. As pessoas passaram a depender mais do Estado e dos
serviços sociais por ele promovidos do que dos pais, maridos, agio-
tas ou dos empregos de baixa remuneração. Este desdobramento é
comumente descrito por seus críticos como "criação de dependên-
cia", porém o termo melhor talvez seja mudança de dependência,
uma vez que os indivíduos escolheram se tomar clientes das agên-
cias estatais em lugar de aceitar formas de dependência mais tradi-
cionais e personalistas.
O segundo elemento do processo de auto-negação foi a ten-
dência de alta das expectativas. Três décadas da prosperidade do
pós-guerra proporcionaram o respaldo arrecadatório para a expan-
são dos serviços previdenciários, mas esta prosperidade também
207
criou problemas de provisão do Estado de bem-estar. Por um lado,
o Estado aumentou continuamente o piso em relação ao qual os
níveis de vida eram estimados, particularmente desde que a "priva-
ção relativa" se tomou o critério mais comum de medida da pobreza
social e psicológica. Conseqüência disto foi que os níveis de benefí-
cios praticados nos anos 1960 e 1970 extrapolaram em muito o que
Beveridge ou Roosevelt haviam um dia imaginado. Finalmente, as
expectativas aumentaram até um ponto que os recursos estatais
simplesmente não puderam alcançar. A prosperidade duradoura e o
pleno emprego conferiram às pessoas um senso de abundância e de
segurança, permitindo-lhes desfrutar um nível de vida bem superior
àquele que os benefícios estatais podiam proporcionar. Ao longo do
tempo, este processo levou amplos setores da classe média e de
trabalhadores qualificados a se referirem aos gastos públicos como
inaceitavelmente deficientes, se comparados com a habitação, a edu-
cação, a assistência médica e as pensões privadas. Como um dos
críticos observou em 1981,
o Estado de bem-estar está agonizando porque está sendo mina-
do pelas forças de mercado, em condições cambiantes de oferta e
demanda. Os consumidores são cada vez mais capazes de pagar
por, e conseqüentemente demandarão, educação, remédios, habi-
tação e pensões melhores do que aqueles que o Estado fornece;
os fornecedores são cada vez mais capazes de oferecer alternati-
vas no mercado 52 .
Desta forma, os grupos que compunham o corpo principal de
contribuintes para o Estado de bem-estar gradualmente começaram
a se dissociar dele, a vê-lo como um ralo pelo qual escorriam seus
impostos e a considerar suas instituições como destinadas a benefi-
ciar outros que não eles próprios 53 .
O terceiro elemento de auto-negação tinha a ver com proble-
mas do governo total e com suas burocráticas e ínertes engrena-
gens que administravam os benefícios previdenciários. Quanto mais
o Estado fazia, mais parecia se tornar pesado, tanto em relação ao
cliente individual quanto no cenário geral da economia. O novo
capitalismo de consumo ocasionou a revolução de gostos indivi-
dualizados e uma cultura de serviços comerciais, que, contrasta-
dos com as agências previdenciárias, faziam estas parecer rigida-
mente burocráticas e surdas às necessidades e preferências dos
208
seus dientes. Em vez de fortalecer os indivíduos e de maximizar os
direitos sociais da cidadania, o sistema estava fadado ao formalismo
e a sustentar as prerrogativas dos administradores das agências 54 .
No que diz respeito à economia, quanto mais direcionada pelo Esta-
do, mais ficava sujeita às restrições políticas que reduziam os efei-
tos das "disciplinas do mercado", diminuindo a capacidade de reagir
a forças exógenas, tais como mudanças nas trocas globais ou o
surgimento de novas tecnologias.
Por fim, e ironicamente, a institucionalização do Estado de bem-
estar, juntamente com o prolongado período de prosperidade que
veio em seu limiar, tiveram o efeito de escamotear os problemas
políticos e econômicos que deveriam ser tratados justamente pelo
previdenciarismo, destacando, ao revés, uma série diferente de pro-
blemas que ele aparentemente criava. O sucesso do Estado de bem-
estar tendia a minar sua credibilidade. À medida que a memória
coletiva da depressão, do desemprego maciço e do empobrecimen-
to começava a se dissipar, o Estado aparecia para muitos como o
problema, e não a solução 55 .
O discurso político e o significado da pós-modernidade
As mudanças trazidas pelas forças da pós-modernidade rela-
tivas ao crime, à previdência e a todos os outros aspectos da vida
social, restrospectivamente, aparentam possuir uma realidade ma-
terial inegável. Todavia, para os que viveram aquelas mudanças,
seu significado preciso e suas implicações políticas estavam muito
longe da obviedade. Nas décadas do pós-guerra, as pessoas ti-
nham plena consciência de que estavam vivendo um período de
rápida transformação social, e havia uma extensiva, às vezes sô-
frega, literatura que refletia sobre a modernização e os desconten-
tes com ela. Havia, é claro, muitas formas de "ler" e reagir a estas
mutações sociais; assim, emergiram diferentes correntes de pen-
samento para explicá-la. Como veremos, dos anos 1970 em dian-
te, a cultura política britânica e norte-americana foi caracterizada
por uma atitude predominantemente reacionária no que se refere à
pós-modernidade e às mudanças sociais que esta desencadeou.
Trata-se de uma atitude geralmente refratária às mudanças e que
aspirava revertê-las na medida do possível. Porém, vale a pena
fazer uma pausa para recordar que, até aquele ponto, a corrente
política dominante era a social-democrata, que abraçava comple-
209
tamente a pós-modernidade como símbolo do progresso econômi-
co e da mudança social-democrática.
A leitura progressista
Pelo menos até o ilúcio dos anos 1970, os governos britânico
e norte-americano tendiam a ver mais como uma virtude do que
como problema os rumos que a transformação social vinha toman-
do. Os partidos governistas daquele período visavam não só pro-
porcionar prosperidade continuada e pleno emprego, através de
uma economia altamente regulada, mas também avançar com uma
pauta social de benefícios previdenciários ampliados, direitos ci-
vis alargados e maiores liberdades pessoais. Havia, evidentemen-
te, forte oposição a esta pauta, particularmente da parte de grupos
conservadores, tais como o partido Tory na Inglate1Ta e os estados
norte-americanos do sul, bem como da parte de setores do capital
e do comércio que resistiam à regulação. Esta oposição, contudo,
tinha menos influência em âmbito nacional, tampouco era fo1mula-
da como ideologia política organizada. A política de expansão estava
na ordem do dia. Controle econômico e liberação social eram as
palavras de ordem daquele momento.
Considerando-se que o Estado de bem-estar estava em xeque
naqueles anos, a política de expansão não se deu em nome de al-
ternativas ao livre mercado, mas em prol da extensão de seus servi-
ços e provisões, permitindo maiores controles comunitários e a par-
ticipação e domesticação das burocracias do governo total56 • A crítica
padrão ao Estado de bem-estar era de que este não estava se saindo
bem, seus benefícios eram desprezíveis, seus procedimentos,
desgastantes, seu processo de tomada de decisões, muito inflexível
e seus experts, pouco confiáveis. As soluções preferíveis, progres-
sistas, eram transfmmar as reivindicações em direitos sociais, tor-
nando os benefícios universais, em vez de seletivos, reformando a
burocracia para torná-la mais ativa e fazendo de todo o processo
algo menos paternalista e mais fortalecedor dos clientes e das co-
munidades pobres. No final dos anos 1960, este enquadramento
crítico era uma posição sedimentada e crescentemente influente nos
círculos sociais e políticos. Poucos anos mais tarde, críticas radi-
cais à justiça criminal, como vimos, condenariam o correcionalismo
essencialmente nos mesmos te1mos.

210
Mesmo o problema das crescentes taxas de criminalidade não
logrou evocar muita dúvida ou hesitação na visão de mundo soci-
al-democrata. Embora as taxas de criminalidade, nos EUA e na
Grã-Bretanha, crescessem ano a ano, de 1950 em diante, e atraís-
sem muitos comentários ansiosos, o problema era freqüentemente
subestimado por autoridades do governo e tratado com ceticismo
pelos criminólogos. Relatórios governamentais atribuíam as cres-
centes taxas de criminalidade aos desajustes da guerra ou aos
contínuos problemas da pobreza e da privação relativa.
Criminólogos apontavam para as armadilhas das estatísticas
oficiais, para os efeitos do rotulacionismo e da repressão ou
para a superexposição do assunto e o pânico moral patrocina-
dos pela mídia. Muitos partidos políticos e experts permanece-
ram comprometidos com a crença de que os efeitos benéficos
da previdência e a prosperidade acabariam por alcançar as ci-
dades e as comunidades pobres, solucionando o problema do
crime. O paradigma penal-previdenciário e sua análise criminoló-
gica continuavam a moldar a racionalidade prática até o início dos
anos 1970, a despeito da emergência de fatos que tendiam a contra-
dizer seus postulados 57 .
O mesmo paradigma penal-previdenciário ditou as formas pre-
dominantes através das quais as instituições da justiça criminal fo-
ram referidas. Até a metade dos anos 1970, as propostas de reforma
mais recorrentes concerniam ao aperfeiçoamento dos serviços vol-
tados à reabilitação, à redução de controles opressivos e ao reco-
nhecimento dos direitos de suspeitos e presos. A demanda era por
menos criminalização, por minimizar o uso da custódia, por humanizar
a prisão e, onde fosse possível, por tratar os criminosos no seio da
comunidade. Propostas radicais, tais como o "não-intervencionismo"
e mesmo o "abolicionismo", emergiram naqueles anos - no ápice da
onda de criminalidade - e foram muito influentes na adequação da
prática da justiça de menores, na instituição de advertências policiais
e 110 uso de meios alternativos à justiça criminal para delitos de
menor importância. Esta situação em que as taxas de criminalidade
estavam em aha e a quantidade de punição estava sendo reduzida
pareceria absurda e equivocada para muitos comentaristas subse-
qüentes. No entanto, fazia total sentido no prevalente enquadra-
mento penal-previdenciário, que encarava o crime como algo pri-

211
mordialmente sensível às intervenções previdenciárias, e não às
intervenções penais 58 . O enquadramento penal-previdenciário es-
tava sendo seriamente desafiado naqueles anos, mas tratava-se
de um desafio vindo da esquerda, que indicava a inadequada pro-
visão, por parte do sistema, de programas de tratamento e os limites
da abordagem correcionalista, individualista.
O discurso político da social-democracia, assim, abraçou a
pós-modernidade, subestimou os problemas do crime e os limites
do Estado de bem-estar, bem como ofereceu uma visão de futuro
que permanecia fiel aos valores fundamentais e às crenças do
previdenciarismo. Foi precisamente por causa desta persistência
que a social-democracia viria a parecer tão fora da realidade, no
momento em que as atitudes políticas fizeram uma curva reacio-
nária nos anos 1980 e 1990.
O divisor de águas político dos anos 1970
Partidos social-democratas podem ter se recusado a repensar
seus compromissos à luz das transformações da pós-modernidade,
mas no início dos anos 1970 muitos eleitores começaram a recon-
siderar suas próprias opiniões. Mesmo antes da recessão de 1973,
setores da população trabalhadora, na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos, haviam experimentado uma mudança em sua situação eco-
nômica, que os fez pensar o Estado de bem-estar de modo diferen-
te. Eleitores que, anteriormente, haviam sido simpatizantes entusi-
asmados dos partidos social-democráticos cada vez mais conside-
ravam que o Estado de bem-estar não mais trabalhava em seu bene-
fício. Havia uma percepção de alteração nos interesses atuariais, à
medida que as pessoas se conscientizavam de que, com grande pro-
babilidade, jamais precisariam de muitos dos benefícios estatais sus-
tentados pelo dinheiro dos seus impostos. Naquelas classes médias
recentes, havia também uma crescente ansiedade para com a possí-
vel realidade de que seu trabalho duro poderia perder-se numa dinâ-
mica de mudança aparentemente fora de controle. Questões sociais,
tais como os ascendentes níveis de criminalidade, a deterioração
das relações inter-raciais, o ocaso da unidade familiar, o crescente
número de pessoas dependentes dos benefícios previdenciários e o
declínio de "valores tradicionais" - somadas às preocupações com
o aumento dos impostos, a inflação e a economia em queda - cria-
ram uma ansiedade crescente no que tange aos efeitos das mudan-
212
ças, que políticos conservadores perceberam, começando a se arti-
cular em í.orno desses temas 59 . Pode-se notar isto, da metade da
década de 1960 em diante, nos discursos dos então candidatos à
presidência Goldwater e Nixon, muito embora as políticas econô-
micas do Partido Republicano tenham permanecido fiéis aos postu-
lados keynesianos até o momento em que Ronald Reagan assumiu a
presidência, em 198 L Na Grã-Bretanha, o consenso social-demo-
crático do pós-guerra permaneceu intacto até a eleição de Margaret
Thatcher, em 1979, mas, desde o final dos anos 1960, políticos
conservadores corno Enoch Powelljá haviam começado a articular
uma visão social reacionária (e às vezes racista) que despertou a
atenção popular.
Esta mudança gradual de interesses e sentimentos, verificada
da metade da década de 1960 em diante, formou o pano de fundo
para o realinhamento político maior que estava por vir. Todavia, só
depois da tumultuada sucessão de acontecimentos e do colapso eco-
nômico da década seguinte, bem como da rápida mudança na opi-
nião pública por eles proporcionada, é que tais condições subjacentes
encontraram expressão política clara. Imagens televisionadas de
rebeliões raciais urbanas, protestos violentos por direitos civis, ma-
nifestações contra a guerra, assassinatos políticos e o aumento do
percentual de crimes de rua modificaram as atitudes do público
norte-americano no final dos anos 1960, da mesma forma que his-
tórias de assaltos, o crescimento do índice de criminalidade, movi-
mentos sindicais militantes, disputas industriais crônicas e longas
filas de desempregados convenceram o eleitorado britânico de que
o tempo das políticas social-democráticas havia terminado. Junto
com o impacto econômico devastador da recessão da metade da
década de 1970, estes fatores causaram o colapso do panorama
político do pós-guerra60 . Na razão direta em que governos social-
democráticos ao redor do mundo tentaram em vão encontrar uma
saída keynesiana para a recessão, os partidos de direita agarraram a
oportunidade. No final da década, partidos republicanos e conser-
vadores assumiram o governo com plataformas explicitamente hos-
tis ao previdenciarismo, ao "governo total", à "cultura permissiva"
dos anos 1960 e ao "consenso político" da social-democracia, que
dominara o governo por um quarto de século.

213
O que impressiona nas eleições de Reagan e Thatcher é que
elas se deveram menos ao apelo das políticas econômicas - que,
àquela altura, estavam visivelmente subdesenvolvidas - do que à
sua habilidade de articular o descontentamento popular. A hostili-
dade ao estilo "tributar e gastar" de governar, aos imerecidos
beneficiários da previdência, às políticas "brandas com o crime",
aos sindicatos ilegítimos que administravam o país, à destruição
da família, ao colapso da lei e ordem - estes foram os pontos cen-
trais de uma política populista que anegimentou amplo apoio.
Apelando ao conservadorismo social das classes médias "traba-
lhadoras", "respeitáveis" (e largamente brancas), políticos da "Nova
Direita" culparam os pobres desvalidos pela vitimização da socie-
dade "decente" - pelo crime nas ruas, pelos gastos com previdên-
cia, pelos altos impostos, pela militância sindical -, bem como as
elites liberais por condescender com uma cultura permissiva e com
a conduta anti-social que esta encorajava 61 .
Enquanto os governos do pós-guerra assumiram a responsa-
bilidade de prover pleno emprego e prosperidade generalizada, os
governos da Nova Direita rapidamente abandonaram ambas as ta-
refas. Alegando que o desemprego, assim como a prosperidade,
era um fenômeno do mercado que refletia a saúde subjacente da
economia - em vez de um resultado político controlado pelo Esta-
do-nação - estes governos se retraíram, permitindo que as forças
do mercado operassem completamente livres, impondo, simultane-
amente, diversos cortes nos gastos públicos 62 . O resultado palpá-
vel foi o rápido colapso da produção industrial e o ressurgimento de
um desemprego estrutural em larga escala que não se via desde os
anos 1930. Ambos os fenômenos tiveram efeitos políticos, na medi-
da em que os governos de Reagan e Thatcher agiram no sentido de
enfraquecer os sindicatos, devolver o poder para os administrado-
res e para o capital, desregulamentar a vida econômica, reverter a
"revolução dos direitos" e retrair o Estado de bem-estar. Em poucos
anos, as políticas progressistas das décadas do pós-guerra haviam
sido substituídas por regimes políticos que se autodefiniam reacio-
nários ao Estado de bem-estar e às correntes sociais e culturais da
pós-modemidade63 .

214
A leitura reacionária da pós-modernidade
Os projetos políticos dos governos de Thatcher e Reagan se
diferenciaram ao longo do tempo e entre si. Por mais coerentes que
pareçam em retrospectiva, eles foram, na realidade, mais oportunis-
tas, mais contraditórios e não tão plenamente implementados como
supunham seus adeptos ou críticos. Não obstante, as políticas e
ideologias destes governos ostentaram uma unidade temática, que
nos permite caracterizá-los, de forma abstrata porém não impreci-
sa, como reacionários, em sentido bem específico64 .
Eles foram reacionários no sentido de que suas políticas fo-
ram marcadas por uma profunda antipatia à revolução social e eco-
nômica que transformou a Grã-Bretanha e os Estados Unidos nas
décadas do pós-guerra: é dizer, antipatia ao Estado de bem-estar e
à cultura da pós-modernidade. Ambos os governos estavam abso-
lutamente comprometidos em desfazer muitos dos arranjos sociais
que se sedimentaram naqueles anos, bem como em atacar as miodoxi-
as econômicas e políticas que os sustentavam. A combinação
comumente contraditória daquilo que veio a se chamar "neolibe-
ralismo" (a reafirmação das disciplinas do mercado) e
"neoconservadorismo" (a reafirmação de disciplinas morais), o com-
promisso com a "retração do Estado" concomitante à construção de
um aparato estatal mais poderoso e autoritário do que antes- estas
foram as posições contraditórias que estavam no coração dos regi-
mes de Thatcher e Reagan65 . Elas faziam sentido, do ponto de vista
ideológico, e arregimentaram expressivo apoio popular- a despeito
de sua incoerência - porque, juntas, representavam o contraponto
da revolução progressista das décadas do pós-guerra e a promessa
de que o mercado restabeleceria a prosperidade econômica que o
Estado intervencionista falhara em manter. O enquadramento da so-
cial-democracia keynesiana deixou de ser uma panacéia, tomando-
se, em vez disto, o problema-chave a ser arrostado pela política
governamental. Sua_s falaciosas presunções econômicas e seus esti-
los de pensamento permissivo jaziam na raiz de todos os novos ma-
les sociais e econômicos- baixa produtividade, altos impostos e índi-
ces inflacionários, a cultura da dependência, o respeito decrescente
pela autoridade, a crise da família 66 . As conquistas do Estado de
bem-estar foram sistematicamente desqualificadas ou esquecidas, ao
passo que suas falhas e limitações ganhavam o centro do palco.
215
Ao longo dos anos 1980 e boa parte dos anos 1990, estas
políticas da Nova Direita dominaram o cenário social e econômico
nos EUA e na Grã-Bretanha. Reve1tendo as soluções solidaristas do
Estado de bem-estar, com sua preocupação pela igualdade, segmidade
e justiça sociais, as políticas neoliberais insistiam no fundamentalismo
de mercado e em manter a fé intransigente na competição, na livre
iniciativa e nos incentivos, assim como nos salutares efeitos da de-
sigualdade e da exposição ao risco 67 . Neste diapasão, ambos os
governos aprovaram leis para controlar os sindicatos, reduzir os
custos do trabalho, desregulamentar as finanças, privatizar o setor
público, estender a competição de mercado e reduzir benefícios
previdenciários. Os impostos pagos pelos ricos foram sensivelmen-
te reduzidos, e o déficit estatal resultante serviu para justificar mais
cortes nos gastos públicos. O resultado foi o aprofundamento das
desigualdades e a cliação de uma distorcida estrutura de incentivos,
que encorajava os ricos a trabalhar, para torná-los mais ricos, e
compeliam os pobres a trabalhar, para evitar que ficassem mais
pobres 68 .
O neoconservadorismo introduziu na cultura política uma
preocupação chocantemente antimoderna para com temas rela-
cionados à tradição, ordem, hierarquia e autoridade. Tais temas
eram mais explicitamente articulados pela direita cristã norte-
americana, que se desenvolveu como força política da metade
dos anos 1970 em diante. Mas foram também sustentados com
grande força e influência por intelectuais neoconservadores,
como, por exemplo, Irving Kristol, Gertrude Himmelfarb, Charles
Murray e James Q. Wilson, e por seus equivalentes britânicos
Roger Scruton, Digby Anderson, Norman Dennis e Sir Keith
Joseph. Este padrão de conservadorismo moral era diametralmente
oposto à cultura liberal dos anos 1960 e aos temas liberais,
democratizantes, da "era permissiva", que viria a ser culpada por
todos os males sociais e econômicos das décadas seguintes. Nos
anos 1980, as demandas por "retomar ao básico", por restaurar
os "valores familiares" e por reinstituir a "responsabilidade indi-
vidual" haviam se transformado nos temas centrais nos dois la-
dos do Atlântico, a exemplo dos clamores por mais disciplina nas
escolas e na família, o fim da "licença libertária" na arte e na
cultura, a condenação da nova moralidade sexual e o retorno

216
para uma sociedade em geral mais ordeira, mais disciplinada,
mais estritamente controlada 69 .
Estes postulados conservadores de manutenção da ordem e
controles mais rígidos poderiam ter-se chocado com as políticas
de desregulamentação e de liberdade de mercado, que estavam,
precisamente na mesma época, libertando os indivíduos e as em-
presas do jugo da regulação social e das restrições morais. O fato
de não ter sido assim é o testemunho mais eloqüente do êxito dos
arautos em retratar o problema do comportamento imoral como
um problema inerente ao comportamento das pessoas pobres. A
despeito da retórica inclusiva, as propostas políticas efetivas que
emergiram deixavam claro que a necessidade por mais controle
social não era parn todos, contradizendo a cultura da pós-moderni-
dade, mas sim uma necessidade mais específica, que mirava gru-
pos particulares e comportamentos particulares. Os ricos podiam
continuar a desfrutar das liberdades pessoais e do individualismo
moral proporcionado pelas mudanças sociais do pós-guerra- aliás,
eles podiam gozar de ainda mais liberdades e escolhas, à medida que
a sociedade mergulhava mais na economia de mercado. Os pobres,
contudo, deveriam ser mais disciplinados. Assim, o novo
conservadorismo proclamou o retorno aos valores da família, do
trabalho, da abstinência e do autocontrole, mas na prática seu
disciplinamento moral recaiu sobre o comportamento de desempre-
gados, mães beneficiárias do sistema previdenciário, imigrantes,
criminosos e usuários de drogas.
Se os lemas da social-democracia do pós-guerra foram con-
trole econômico e liberação social, as novas políticas dos anos 1980
estabeleceram um enquadramento bem distinto de liberdade econô-
mica e controle social7º . E, conquanto este movimento reacionário
alegasse estar desfazendo o regime político e cultural que se desen-
volvera desde a gue1ra, na realidade seu ataque à pos-modernidade
assumiu uma forma bem peculiar, deixando os principais arranjos
sociais intocados.
O apelo conservador ao retomo à disciplina moral e aos valo-
res tradicionais efetivamente resultou numa disciplina renovada e na
intensificação de controles, direcionados, porém, primordialmente
aos pobres e às comunidades marginalizadas, permanecendo inertes
no que tange à maioria dos cidadãos. O reclamo neoliberal pela
217
distensão das liberdades de mercado e pelo desmache do "Estado
babá" certamente produziu mais liberdade para aqueles com recur-
sos suficientes para obter benefícios de um mercado desregula-
mentado, mas também criou desemprego crônico para os setores
mais frágeis da força de trabalho e um crescente senso de insegu-
rança para o resto. A ironia, aqui, consiste em que, mesmo com a
restrição dos benefícios, o desemprego maciço fez com que osgas-
tos com programas sociais fossem mais elevados no final das ges-
tões de Thatcher e Reagan do que no início. Além disso, os progra-
mas previdenciários que mais atendiam as classes médias -hipote-
cas subvencionadas, seguridade social, isenções tributárias e subsí-
dios educacionais - permaneceram no mesmo - e elevado - pata-
mar71.
As políticas dos anos 1980 e 1990 foram, em seus efeitos,
fortemente baseadas na classe social, ainda que se afirmasse serem
extensivas a todos. Embora as classes médias ricas e empregadas
obtivessem enormes benefícios econômicos do novo contexto, o
fim das políticas solidaristas e a abertura de divisões de classe e de
raça trouxeram custos sociais que as afetaram também. Um dos
mais importantes destes custos foi o de que as novas políticas pro-
duziram um ambiente cultural defensivo, ambivalente e inseguro,
em franca contradição com a cultura emancipatória, confiante, do
passado recente. Introduzidas em nome da liberdade, as políticas
reativas deram causa a inseguranças generalizadas e acabaram por
produzir uma obsessão renovada pelo controle. Uma razão para isto
foi que, mesmo aqueles suficientemente ricos para assumir certos
riscos econômicos, de modo a colher suas recompensas depois,
estavam preocupados com outros tipos de riscos - tais como a
ameaça do crime e da violência - inerentes à sociedade
desregulamentada. Existia um conhecimento, ainda turvo mas es-
praiado, de que os custos das novas liberdades de mercado estavam
sendo cobrados dos grupos mais pobres e vulneráveis. E, mesmo
que se pudesse justificar esta realidade através de referências ao
mérito e à utilidade econômica, era difícil esquecer os perigos implí-
citos envolvidos em oprimir uma parcela considerável da população
de jovens despossuídos e de minorias descontentes 72 .
Nesta situação, a insegurança, as hostilidades grupais e um
pouco de consciência pesada floresceram e desempenharam um
218
papel na concentração das insatisfações. Tal vez o pluralismo da pós-
modernidade significasse que viver com as "diferenças" fosse o
destino inevitável de todos, e as políticas reacionárias poderiam fa-
zer muito pouco para mudar esta realidade. Como Émile Durkheim
há muito já observara, arranjos sociais deste tipo representam pro-
blemas agudos de ordem social e demandam a criação de institui-
ções governamentais e associações civis que possam construir a
solidariedade social e assegurar a regulação moral 73 . Sociedades
complexas precisam de mais organização (e não de menos), e se os
mercados podem organizar as eficiências econômicas, eles têm pouca
capacidade de instituir freios morais, integração social ou o senso
de pertencimento a um grupo qualquer. Na ausência de tais iniciati-
vas, a nova cultura da diversidade permaneceu, para muitos, como
uma fonte de frustração e como um manancial de lamentações cul-
turais. Em sociedades solidárias, pelo menos, a hipocrisia para com
o multiculturalismo e os direitos individuais significava que as obje-
ções relacionadas aos estilos de vida dos outros tendiam a ser silen-
ciadas e escamoteadas. Entretanto, havia alguns comportamentos e
pessoas que não deveriam ser tolerados, razão pela qual políticas soci-
ais e criminais novas e mais repressivas foram sendo criadas visando a
esses alvos 74 .
Um dos principais resultados das políticas dos anos 1980 foi,
assim, o aprofundamento das divisões sociais 75 • Como as políticas
neoliberais reforçaram a estratificação produzida pela economia glo-
bal e por um mercado de trabalho cindido, em vez de resistirem a
ela, novas divisões surgiram na população dos EUA e da Grã-Bretanha.
A distância econômica e social entre empregados e desempregados,
brancos e negros, subúrbios prósperos e os conflituosos guetos
urbanos, consumidores do setor privado em expansão e pedintes
esquecidos nas calamitosas instituições pííblicas cresceu como nunca
naqueles anos, até se tomar lugar-comum na crônica política e so-
cial. Em lugar dos ideais solidaristas da Great Society ou do Estado
de bem-estar, cdou-se uma sociedade profundamente dividida -
genericamente descrita como a "sociedade dualizada", a "sociedade
trinta trinta quarenta", os "seduzidos e os reprimidos" ou, nos EUA,
onde as divisões sociais se somaram às divisões raciais, o "apartheid
americano" - na qual um setor foi desregulamentado em nome do
livre mercado e o outro foi disciplinado em nome da moralidade

219
tradicional 76 . Estas novas divisões serviram para minar ainda mais
as antigas solidariedades e identidades coletivas, das quais o Estado
de bem-estar dependia. As possibilidades de identificação interclasses,
de solidariedade mútua entre pessoas apartadas pela renda, decida-
dania comum e de deferência mútua - tudo isto se tomou cada vez
mais improvável, na medida em que a vida e a cultura dos pobres
começaram a parecer estranhas aos olhos dos bem-situados 77 .
Neste novo contexto social, não foi surpreendente descobrir
que problemas sociais, tais como violência, crimes de rua e abuso
de drogas, pioraram, especialmente naquelas áreas em que se con-
centravam as caTências econômicas e sociais. Assim, apesar de o
número de crimes contra o patrimônio nos EUA ter começado a cair
após o pico de 1982, homicídios e ciimes violentos aumentaram
agudamente na segunda metade dos anos 1980, paiticulaimente entre
jovens, freqüentemente associados ao crescente mercado de drogas
pesadas. Na administração "lei e ordem" de Thatcher, as taxas britâni-
cas de criminalidade duplicaram no período de uma década 78 .
Porém, mais importante para nossos propósitos é a forma com
que o crime veio a assumir um significado novo e estratégico na
cultura política deste período. O crime - juntamente com os
con-elatos comportamentos da "subclasse", tais como abuso de dro-
gas, gravidez precoce, mães solteiras e dependência previdenciária
- passai·am a funcionar como legitimação retórica para políticas
econômicas e sociais que efetivamente puniam os pobres, bem como
pai·a o desenvolvimento de um Estado marcantemente disciplinador.
No discurso político daquele período, justificativas sociais para o
problema do crime seriam completamente desacreditadas 79 . Tais
justificativas, como se dizia, negavam a responsabilidade individual,
exculpavam as falhas morais, mitigavam as punições, encorajavam
o mau comportamento e eram emblemáticas de tudo aquilo que ha-
via de equivocado no previdenciai·ismo. O crime veio a ser visto
como um problema de indisciplina, de falta de autocontrole ou de
controle social, algo próprio de indivíduos perversos que precisa-
vam ser detidos e que mereciam ser punidos. Em vez de indicai·
necessidade e privação, o crime era o resultado de culturas ou per-
sonalidades anti-sociais e da escolha racional do indivíduo, em face
da lassidão na aplicação da lei e de regimes punitivos lenientes.

220
Naquele período decisivo, o efetivo controle do crime passou
a ser visto como uma questão de impor mais controles, criar
desincentivas e, se necessário, segregar os setores perigosos da
população. A imagem recorrente do criminoso deixou de ser a da-
quela pessoa necessitada, ociosa ou desajustada, tornando-se mais
ameaçadora - como as dos criminosos recalcitrantes, drogados e
predadores - e, ao mesmo tempo, muito mais racial 80 . A apiedada
sensibilidade que costumava temperar o rigor da punição agora
intensificava-a, porquanto a solidariedade invocada pela retórica
política passou a se centrar exclusivamente na vítima e no público
atemorizado, e não mais no criminoso. Em vez do idealismo e da
humanidade, as discussões de política criminal passaram a ser ins-
piradas pelo ceticismo para com a reabilitação, pela desconfiança
com os especialistas em penalogia e pelo reconhecimento da impor-
tância e da eficácia da pena. Se o "não-intervencionismo radical"
simbolizou o ideal progressista dos anos 1960, o termo que mais
bem captura a essência do ideal da nova direita é "tolerância zero".
Na reação política ao Estado de bem-estar e à pós-modernidade, o
crime agia como uma lente para olhar os pobres - como indesejados,
desviantes, perigosos, diferentes - e como uma barreira para conter
sentimentos de solidariedade e compaixão. Nesta visão reacionária,
o problema subjacente da ordem era visto não como um problema
durkheimiano de solidariedade, mas como um problema hobbesiano
de ordem, cuja solução deveria ser uma versão centralizadora edis-
ciplinar do Estado-Leviatã.

Notas

1
Outros Estados-nações na Europa e na Escandinávia reagiram
diferentemente às forças da pós-modernidade, agindo mais intensamente
parn proteger a população trabalhadora da ameaça do desemprego maciço
e da pobreza produzidos pela depressão dos anos 1980 e pelo impacto
da globalização de mercados. Muitos destes mesmos Estados também
evitaram as formas mais punitivas de controle do crime e de políticas
previdenciárias, agora instituídas no mundo anglo-americano. Veja-se G.
Therborn, Why Some People Are More Unemployed Than Others
(Londres: Verso, 1986); M. Mauer, Americans Behind Bars: US
221
and Intemational Use of Incarceration, 1995 (Washington DC: The
Sentencing Project, 1996); e J. Lynch, ''Crime ín Intemational
Perspective", ín J. Q. Wilson e J. Petersilia (orgs.), Crime (São Francisco:
Institute of Contemporary Studies, 1995), pp. 11-39.
2
Veja-se E. Hobsbawm, TheAge of Extremes (Londres: Michael Joseph,
1994) e também G. Therborn, European Modemíty and Beyond
(Londres: Sage, 1995). A primeira parte deste capítulo se valeu
intensamente do relato de Hobsbawm sobre o período do pós-guerra.
3
K. Marx e F. Engels, The Communist Manifesto (Nova Iorque: Verso,
1998, originalmente publicado em 1848), pp. 38-9 (N.T.: o trecho no
vernáculo foi extraído da tradução em língua portuguesa de O Manifesto
Comunista, trad. Maria Lucia Como, Rio de Janeiro, ed. Paz e Terra,
1997, pp. 13-14).
4
Veja-se E. Hobsbawm, The Age of Extremes, e D. J. Smith, "Living
Conditíons ín the Twentieth Century", in M. Rutter e D. J. Smith (orgs.),
Psycho-Social Disorders in Young People: Time Trends and Theír Causes
(Londres: Wiley, 1995). Como Hobsbawm anota, mesmo naqueles ''anos
dourados" o desemprego entre os negros, nos EUA, permaneceu alto.
5
J. K. Galbraith, TheAffluent Society (Boston: HoughtonMifflin, 1998);
J. Goldthorpe et ai., The Affluent Worker in the Class Structure (Londres:
Cambridge University Press, 1969).
6
H. Perkin, The Rise of Professional Society: England Since 1880
(Londres: Routledge, 1989); S. Brint, ln an Age of Experts: The
Changing Role of Professionals in Politics and Public Life (Prínceton-
NJ: Prínceton University Press, 1994). Sobre o recrudescimento do
capitalismo de consumo, v. D. Bell, The Cultural Contradictions of
Capitalism (Nova Iorque: Basic Books, 1976), cap. 1.
7
T. H. Marshall, "Citizenship and Social Class", in Marshall, Sociology
at the Crossroads (Londres: Heinemann, 1963); D. Yergin e J. Stanislaw,
The Commanding Heights: The Battle Between Govemment and the
Marketplace that is Remaking the World (Nova Iorque: Simon &
Schuster, 1998).
8
P. Baldwin, The Politics of Social Solidarity (Nova Iorque: Cambridge
University Press, 1990). T. Gitlin, The Sixties: Years of Hope, Days of
Rage (Nova Iorque: Bantam Books, 1987).
9
D. Yergin e J. Stanislaw, The Commanding Heights, cap. 5; E.
Hobsbawm, The Age of Extremes, cap. 14.
10
Nos EUA, entre 1970 e 1990, o percentual de empregos na indústria
caiu de 25,9% para 17,5%. Na Grã-Bretanha, caiu de 38,7% para 22,5%,
222
M. Castells, The Rise of the Network Society (Malden Mass:
Blackwell, 1996). V., também, E Fukuyama, The Great Disruption, p.
105, e A. Amin (org.), Post-Fordism: A Reader (Oxford: Blackwell,
1994).
11
R. Crompton, Women and Work in Modem Britain (Oxford: Oxford
University Press, 1997), pp. 31-5. V. Beechey e T. Perkins, A Matter of
Hours: Women, Part-Time Work and the Labour Market (Minneapolis:
s
University of Minnesota Press, 1987); D. R. Williams, "Women Part-
Time Employment", Monthly Labor Review, abril de 1995, pp. 36-44.
12
Veja-se W. Hutton, The State We're ln (Londres: Jonathan Cape, 1995),
cap. 2; C. Oppenheim, Poverty: The Facts Revised Edition (Londres:
Chíld Poverty Action Group, 1993), cap. 9. Sobre as tendências norte-
americanas, v. L. M. Mead, The New Politics of Poverty (Nova Iorque:
Basic Books, 1992), p. 75, e T. B. Edsall, Chain Reaction: The lmpact
of Race, Rights and Taxes on American Politics (Nova Iorque: Norton,
1991), p. 23.
13
E. Hobsbawm, The Age of Extremes, p. 308. Para uma discussão
sobre o impacto destes desdobramentos nas comunidades afro-
americanas, v. W. J. Wilson, When Work Disappears: The World of
the New Urban Poor (Nova Iorque: Knopf, 1997). Sobre o impacto
nas relações entre sexos na classe trabalhadora britânica, v. B.
Campbell, Goliath: Britain's Dangerous Places (Londres: Methuen,
1993).
14
E. Hobsbawm, The Age of Extremes, p. 310; R. Crompton, Women
and Work in Modem Britain (Oxford: Oxford University Press, 1997),
p. 25. Estatísticas do Bureau of Labour norte-americano demonstram
que a participação de mulheres casadas na força de trabalho cresceu
parn pouco menos de 60% em 1990. No período de 1948 a 1987, a
participação masculina caiu de 89% para 78%. Entre 1969 e 1987, a
fração de mulheres casadas 11orte-america11as que exerciam unicamente
a função de donas de casa decresceu de 30% para 15%. Veja-se J. B.
Schor, The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure
(Nova Iorque: Basic Books, 1992), pp. 25-8 e 36.
15
Sobre o declínio das taxas de fertilidade, v. R. Crompton, Women
and Work, pp. 74-6. Crompton assevera que as taxas de fertilidade
britânicas do pós-guerra alcançaram o ápice de 2,95 em 1964 e, depois,
caíram vertiginosamente ao ponto mais baixo de 1,69 em 1977. Em
1994, o número era de 1,75. Sobre a feminilização da pobreza, v. L.
Morris, Dangerous Classes: The Underclass and Social Citizenship
(Londres: Routledge, 1994), pp. 113-16.

223
16
E. Hobsbawm, The Age of Extremes, p. 321. De acordo com o
Social Trends, a taxa britânica de divórcios por cada mil pessoas
casadas no período de um ano subiu de 2,1, em 1961, para 12,7, em
1989 - v. T. Griffin (org.), Social Trends (Londres: HMSO, 1991). As
taxas norte-americanas são discutidas por F. Fukuyama, The Great
Disruption, p. 41: "a taxa norte-americana de divórcios vem
aumentando a cada ano desde a Guerra Civil, mas a velocidade da
mudança começou a acelerar muito a partir da metade dos anos 1960".
Partos de mães solteiras também assumiram forte tendência de alta:
"partos de mães solteiras, em comparação com o número total de
partos nos Estados Unidos, saltaram de 5% para 31 % de 1940 a 1993.
Tais taxas variam significativamente de acordo com a raça e a etnia.
Em 1993, a proporção para brancos era de 23,6% e para afro-
americanos, 68,7%"; F. Fukuyama, The Great Disruption, pp. 42-3.
Para detalhes das tendências britânicas, v. L. Morris, Dangerous
Classes: "as mudanças na estrutura familiar que vêm sendo
observadas nos Estados Unidos parecem estar se repetindo aqui,
com o número de famílias chefiadas por apenas um dos pais crescendo
de 8% de todas as famílias, em 1971, para 16% em 1988 ( ... ). A razão
principal para a existência de mães solteiras na Grã-Bretanha é o
divórcio, que abrangia 40% das mães solteiras em 1986 - 19%
separadas e 23% efetivamente solteiras. Este último percentual subiu
de 15% em 1972" (p. 119).
17
De acordo com o Bureau of Census norte-americano, em documento
intitulado StatisticalAbstracts of the United States para os anos de 1978
e 1996, o número de lares com dois ou mais carros cresceu de 20%, em
1960, para 60%, em 1996. Em 1975, mais de 80% das famílias com
filhos cuidavam deles em sua própria casa. Em 1995, este número
despencou para 40%. A mudança no cuidado infantil neste período foi
drástica (US Bureau of the Census: Statistical Abstracts for 1996 e US
National Center for Educational Statistics, Statistics in Brief, 1996).
Sobre o aumento do estresse, v. A. R. Hochschild, The Time Bind (Nova
Iorque: Metropolitan Books, 1997), e J. B. Schor, The Overworked
Amerícan. Sobre o aumento do número de famílias com duas fontes de
renda e chefiadas por apenas um adulto, v. D. Hernandez e D. E. Myers,
"Revolutions in Children's Lives", in A. Skolnick e J. Skolnick (orgs.),
Family in Transition, 10ª ed. (Nova Iorque: Longman, 1999): "o aumento
na proporção de crianças vivendo em famílias com duas fontes de renda
ou chefiadas por apenas um adulto (nos EUA) foi extremamente rápido
( ... ) houve um aumento de 15-20% para 50% em apenas 30 anos ( ... ).
Em 1980, quase 60% das crianças viviam em famílias com duas fontes
de renda ou chefiadas por apenas um dos pais; em 1989, cerca de
224
70% viviam em tais famílias e, no ano 2000 (... ) a proporção( ... ) talvez
exceda 80%" (p. 240).
18
E Hobsbawm, The Age of Extremes, p. 322. V., também, L. Hess,
"Changing Family Pattems in Western Europe", in M. Rutter e D. J.
Smith (orgs.), Psycho-Social Disorders, p. 123.
19
Relatório do Bureau of Census norte-americano, Statistical Abstracts
of the United States 1978 e 1996. O número de proprietários de veículo
por cada mil pessoas, na Grã-Bretanha, subiu de 46 em 1950 para 366
em 1989. Nos EUA, o número já era de 266 em 1950 e aumentou para
589 em 1989. Veja-se G. Therborn, European Modemity and Beyond
(Londres: Sage, 1995), p. 142.
20
Entre 1940 e 1970, a proporção de norte-americanos que viviam
nos subúrbios das metrópoles subiu de um terço para metade - v. D.
S. Massey e N. A. Denton, American Apartheid: Segregation and
the Making of the Underclass (Cambridge-MA: Harvard University
Press, 1993), p. 44. V., também, K. T. Jackson, Crabgrass Frontier:
The Suburbanization of the United States (Nova Iorque: Oxford
University Press, 1985). Jackson argumenta que o "preconceito racial
e a moradia de baixo custo" (p. 287) foram as causas primárias da
desconcentração residencial nos EUA. Como Wilson verbera, as
políticas governamentais norte-americanas de financiamento
imobiliário desempenharam papel fundamental neste processo de
segregação: "manipulando os incentivos do mercado, o governo
federal levou a classe média branca para os subúrbios e, com efeito,
enjaulou os negros nos centros urbanos. Iniciando-se em 1950, a
suburbanização da classe média foi facilitada pelas políticas federais
de transportes e de construção de rodovias, incluindo a construção
de redes de estradas pelo coração de muitas cidades, o financiamento
para veteranos, isenções tributárias para aquisição de imóveis e a
rápida e barata construção de quantidades maciças de casas pré-
fabricadas", W. J. Wilson, When Work Disappears: The World of the
New Urban Poor (Nova Iorque: Knopf, 1997), p. 46.
21
W. J. Wilson, The Truly Disadvantaged: The Jnner City, the
Underclass and Public Policy (Chicago: University of Chicago Press,
1987), e D. S. Massey e N. A. Denton, American Apartheid. Sobre os
padrões residenciais britânicos, v. A. Murie, "Linking Housing Changes
to Crime", in C. J. Finer e M. Nellis (orgs.), Crime and Social Exclusion
(Oxford: Blackwell, 1998), pp. 22-36.
22
"A ecologia da sociedade americana tem sido alterada drasticamente
pelo processo de suburbanização. Este processo tem dividido a

225
população em termos raciais e de classe social, concentrando nas
grandes cidades os pobres e os desempregados. Daí resultam grandes
e densas estruturas deterioradas, que acabam sendo abandonadas,
porque repará-las seria antieconômico. Essas estruturas passam a
ser ocupadas por brancos proletários e negros e latinos de várias
classes, que não têm outra opção. As classes médias, reagindo
racionalmente à disponibilidade de moradias baratas e seguras, ligadas
às estradas, trataram de agir no sentido de escapar dos impostos, das
políticas e da desordem que as assolavam", W. G. Skogan, "The
Changing Distribution of Big-City Crime", Urban Affairs Quarterly,
1977, vol. 13, nº 1, pp. 33-48, especialmente 43.
23
"Desde 1980, a guinada fundamental no amparo do governo federal
aos programas urbanos básicos agravou os problemas de falta de
empregos e de organização social nos novos bairros da pobreza. As
administrações Reagan e Bush - proponentes do Novo Federalismo -
cortaram radicalmente os gastos em ajuda às cidades, incluindo a
distribuição de recursos, transporte público de massa, empregos públicos
e treinamento profissional, educação compensatória, serviços sociais,
assistência ao desenvolvimento econômico e ações voltadas ao
desenvolvimento urbano", W. J. Wilson, When Work Disappears: The
World of the New Urban Poor (Nova Iorque: Knopf, 1997), p. 49. V.,
também, D. N. Massey e N. A. Denton, American Apartheid, p. 45.
Sobre as políticas governamentais locais de Thatcher, v. P. Hirst, After
Thatcher (Londres: Collins, 1989).
24 J. Meyrowitz, No Sense of Place: The Impact of Electronic Media on

Social Behaviour (Nova Iorque: Oxford University Press, 1985), p. 133;


J. B. Thompson, Ideology and Modem Culture (Cambridge: Policy Press,
1990), p. 184. V., também, J. R. Sparks, Television and the Drama of
Crime (Buckingham: Open University Press, 1992). Para detalhes das
tendências do público telespectador norte-americano, v. R. Putnam,
Bowling Atone (Nova Iorque: Simon & Schuster, 2000), cap. 13.
25
J. Meyrowitz, No Sense of Place, p. 133.
26
Ibidem, p. 133.
27
"Com o advento da mídia eletrônica e especialmente da televisão (... )
indivíduos comunicadores se tornaram personalidades com uma voz, um
rosto, um temperamento e uma história, personalidades estas com as
quais os receptores podem se solidarizar, criar empatia, detestar ou, ainda,
reverenciar", J. B. Thompson, Ideology and Modem Culture, p. 228.
28
E. Goffman, The Presentation of Seif in Everyday Life (Harmondsworth:
Penguin Books, 1969), cap. 3. J. Meyrowitz, No Sense of Place, cap.
226
14. Sobre as implicações do escrutínio midiático na administração
das prisões, v. S. Cohen e L Taylor, Prison Secrets (Londres: NCCL,
1978), e J. B. Jacobs, Stateville: The Penitentiary in Mass Society
(Chicago: University of Chicago Press, 1977).
29
J. Meyrowitz, No Sense of Place, p. viii.
3
° Como Meyrowitz destaca, o crescimento dos sistemas nacionais de
mídia eletrônica intensificou esta corrente igualitária e democratizante.
"A integração de informações faz a integração social parecer mais
possível e desejável. Distinções de status geralmente implicam distinções
de acesso a situações. Quanto mais pessoas compru-tilharem sistemas
de informações similares, maior será a demanda por igualdade de
tratamento", J. Meyrowitz, No Sense of Place, p. 133.
31
R. Miliband, "A State of Desubordination", British Journal of
Sociology, 1978, vol. 29, nQ 4, pp. 399-409. A contestação da hierarquia
também teria conseqüências sobre o comportamento criminoso, na
medida em que envolve um respeito decrescente pelas autoridades
sociais e por seu direito de governar: v. G. LaFree, Losing Legitimacy:
Street Crime and the Decline of Social Institutions inAmerica (Boulder:
Westview, 1998).
32
A. de Swaan, The Management of Normality (Londres: Routledge,
1990), pp. 150-61.
33
Sobre o eclipse da autoridade dos especialistas na política social, v.
N. Glazer, The Limits of Social Policy (Cambridge: Harvard University
Press, 1983), cap. 7.
34
A. de Swaan, The Management of Normality; C. Wouters, "Changing
Patterns of Social Contrais and Self Controls", British Joumal of
Criminology, voL 39, nº 3 (1999), pp. 416-32.
35
T. Newburn, Permission and Regulation: Law and Morals-in Postwar
Britain (Londres: Routledge, 1992); D. Halpern,- "Values, Morais and
Modemity", in M. Rutter e D. J. Smith (orgs.), Psycho-Social Disorders,
pp. 324-88. .
36
T. Newburn, Permission and Regulation; T. Gitlin, The Twilight of
Common Dreams: Why America is Wracked by Culture Wars (Nova
Iorque: Metropolitan Books, 1995).
37
Isto, é claro, formava as bases socioculturais e epistemológicas pru·a
as mudanças criminológicas descritas no capítulo 3. A obra de Foucault
Discipline and Punish (Londres: Allen Lane, 1977) formou a ponte
intelectual entre este movimento cultural e filosófico mais amplo e a
crítica criminológica específica do previdenciarismo penal.
227
38
E. Hobsbawm, The Age of Extremes, p. 338: "o velho vocabulário
moral de direitos e deveres, pecado e virtude, sacrifício, consciência,
prêmios e castigos não mais podia ser traduzido na nova linguagem de
satisfação dos desejos. Uma vez que tais práticas e instituições não eram
mais aceitas como parte de um modo de ordenar a sociedade que ligava
as pessoas umas às outras, e que assegurava a cooperação social e a
reprodução, desapareceu a maior parte de sua capacidade de estruturar
a vida social humana. Foram reduzidas simplesmente a manifestações
de preferências individuais" (N.T.: trecho retirado da tradução em
língua portuguesa da obra de Hobsbawm, A Era dos Extremos, trad.
de Marcos Santarrita, São Paulo, 1995, Cia. das Letras, pp. 331-2). V.,
também, F. Fukuyama, The Great Disruption, "quem vivem nas
décadas que medearam os anos 1950 e 1990 nos Estados Unidos ou
em qualquer outro país ocidental não pode deixar de reconhecer a
maciça mudança de valores que ocorreu ao longo do período. Estas
mudanças nas normas e valores são complexas, mas podem ser
resumidas pela expressão genérica individualismo crescente ( ... ).
Nas sociedades modernas, as opções para os indivíduos aumentaram
amplamente, enquanto que os vínculos com as redes de obrigações
sociais estão intensamente enfraquecidos" (p. 47). Para uma
discussão desta moralidade na esfera do controle do crime, v. H.
Boutellier, Crime and Morality: The Significance of Criminal Justice
in Post-modem Culture (Londres: Kluwer, 2000).
39
L. Radzinowicz e J. King, The Growth in Crime: The Jntemational
Experience (Harmondsworth: Penguin Books, 1977); D. J. Smith, "Youth
crime and Conduct Disorders: Trends, Patterns and Causal Explanations",
in M. Rutter e D. J. Smith, Psycho-Social Disorders in Young People:
Time Trends and Their Causes (Londres: Wiley, 1995).
40
V. apêndice, figuras nº' 1 e 2, para detalhes das tendências do número
de crimes registrados nos EUA e na Inglaterra e no País de Gales. O
leitor deve ter em mente que o crime registrado pela polícia representa
aproximadamente um terço do total de crimes que ocorrem, muito
embora as estatísticas oficiais de crimes passem a ter especial
significação à medida que começam a ser a fonte de dados mais
discutida na mídia. Como observa David Smith, o aumento no número
de crimes registrados desde 1950 foi consideravelmente menor na
Escócia do que na Inglaterra e no País de Gales; v. D. J. Smith, "Less
Crime Without More Punishment", Edinburgh Law Review (1999),
vol. 3, pp. 294-316: "entre 1950 e 1995, o número de roubos aumentou
15 vezes na Escócia e 67 vezes na Inglaterra; lesões graves aumentaram
17 vezes na Escócia e 39 vezes na Inglaterra; crimes sexuais

228
aumentaram 5 vezes na Escócia, ao passo que a quantidade de
estupros aumentou 20 vezes na Inglaterra; e, finalmente, invasões
de domicílios aumentaram menos que 3 vezes na Escócia, ao passo
que tal aumento na Inglaterra foi de 13 vezes" (p. 310). O número de
crimes registrados na Irlanda do Norte também cresceu agudamente
nas décadas do pós-guerra, v. J. Brewer, R Lockhart e P. Rodgers,
Crime in Ireland, 1945-1995 (Oxford: Clarendon Press, 1997).
41 A análise de Gary LaFree da tendência norte-americana em termos
de "crimes de rua" de 1946 a 1995 - elaborada sobre dados relativos
a homicídio, estupro, roubo, invasão de domicílio, lesão corporal,
dano e roubo de veículos - demonstra que sete destes crimes exibiram
parâmetros históricos similares, com baixo número de ocorrências no
início do período pós-guerra e alto número de ocorrências no período
final. Como LaFree aponta, esta descoberta "sugere que o que quer que
tenha causado o aumento no número de crimes nos Estados Unidos do
pós-guerra provavelmente gerava efeitos muito amplos, influenciando
tanto o homicídio como o dano, o estupro como o roubo de veículos",
G LaFree, Losing Legitimacy, p. 27.
42
As evidências de todos os países desenvolvidos, com a importante
exceção do Japão, apontam para esta tendência. Veja-se D. J. Smith,
"Youth Crime and Conduct Disorders", in M. Rutter e D. Smith, Psycho-
Social Disorders, p. 401; E Fukuyama, The Great Disniption, cap. 2.
43
Veja-se M. Felson e L E. Cohen, "Human Ecology and Crime: A
Routine Activity Approach", Human Ecology (1980), vol. 8, nº 4, pp.
389-406; L. E. Cohen e M. Felson, "Social Change and Crime Rate
Trends: A Routine Activity Approach", American Sociological Review
(1979), vol. 44, nº 4, pp. 588-608; G. LaFree, Losing Legitimacy; e A.
E. Bottoms e P. Wiles, "Crime and Insecurity in the City", in F. Fijnaut,
J. Goethals, T. Peters e L. Walgrave (orgs.), Changes in Society, Crime
and Criminal Justice in Europe, voL 1 (The Hague: Kluwer, 1995).
44
Veja-se M. Felson e M. Gottfredson, "Social Indicators ofAdolescent
Activities Near Peers and Parents", Joumal ofMarriage and the Family
(agosto de 1984) pp. 709-15. De acordo com M. Rutter e D. J. Smith,
Psycho-Social Disorders, esta geração de jovens também experimentou
altas doses de outros tipos de "distúrbios psicossociais", tais como abuso
de álcool e drogas, suicídio, depressão e distúrbios de alimentação. A
presença de outro grupo "de risco" - o dos doentes mentais - também
aumentou ao longo dos anos 1970 e 1980, na medida em que políticas
de desinstitucionalização puseram milhares de doentes mentais nas ruas,
freqüentemente sem qualquer apoio. Conseqüência parcial disto foi a

229
quadruplicação do número de pessoas desabrigadas nos EUA, entre
1979 e 1994 - v. C. Jencks, The Homeless (Cambridge-MA: Harvard
University Press, 1994). Na Grã-Bretanha, o número de pessoas sem-
teto aumentou ano a ano, no período de 1979 e 1994, W. Hutton, The
State We're ln, p. 210.
45
Tim Hope observa as implicações criminológicas destas mudanças
ecológicas: "correlatas a esta evolução estrutural, as atividades humanas
também se tornaram dispersas - a propriedade está dispersa em
habitações pouco povoadas, as pessoas estão dispersas em maior
número de residências, viajantes em mais veículos e as atividades
sociais em maior número de lugares distantes de casa. Cada forma de
dispersão reduz encontros íntimos, enfraquece os laços sociais,
aumenta o anonimato e reduz as restrições", T. Hope (resenha literária)
British Journal ofCrimínology (1997), vol. 37, nº 1, pp. 151-3.
46
Muitas sociedades altamente desenvolvidas, notadamente Japão
e Coréia, preservaram controles sociais informais e freios comunitários,
não tendo experimentado os níveis de criminalidade e de desordem
verificados no Ocidente. Veja-se F. Fukuyama, The Great Disruptíon,
càp. 7.
47
H. Goldstein, em Problem-Oriented Policing (Nova Iorque:
McGraw Hill, 1990), comenta o seguinte: "na absoluta maioria dos
departamentos policiais, o telefone, mais do que qualquer outra fonte
administrativa ou comunitária, continua a ditar a forma com que os
recursos policiais serão utilizados" (p. 21). A popularização do veículo
motorizado privado também alterou as relações entre a polícia e a
classe média, estabelecendo cada vez mais encontros pouco
aprazíveis dos cidadãos da classe média com a polícia. A motorização
das patrulhas policiais, na Grã-Bretanha e nos EUA dos anos 1960,
tendeu a distanciar a polícia das comunidades que ela servia, com
conseqüências adversas que seriam posteriormente assimiladas.
48
Veja-se J. Simon, Poor Discipline: The Social Contrai of the
Underclass, 1890-1990 (Chicago: University ofChicago Press, 1993).
49
Sobre a "crise" do Estado de bem-estar, v. C. Offe, Contradictions of
the Welfare State (Londres: Hutchinson, 1984), e C. Pierson, Beyond
the Welfare State? (Cambridge: Polity Press, 1991).
50
"O percentual de todos os americanos que recebem benefícios
previdenciários aumentou dramaticamente de aproximadamente 2%, na
metade dos anos 1960, para 6%, na metade dos anos 1970, enquanto o
gasto agregado em previdência social mais do que duplicou, de 0,24%
do PIB, em 1965, para 0,60%, em 1975", M. Gilens, Why Americans

230
Hate Welfare (Chicago: University of Chicago Press, 1999), p. 122.
Em termos de percentual do PIB britânico, os gastos públicos subiram
de 12,4%, em 1960, para 19,6%, em 1975. Nos EUA, subiram de 9,9%
para 19,7% no mesmo período, C. Pierson, Beyond the Welfare State?
(Cambridge: Polity Press, 1991), p. 128.
51
Glazer descreve como políticas democráticas contribuem para a
"revolução de esperanças em alta", N. Glazer, Limits of Social Polícy,
p. 4. Apontando tais problemas, comentaristas raramente enfatizam o
fato de que a população foi se tornando gradativamente mais
saudável, melhor abrigada, melhor assistida e educada. Problemas
contemporâneos saturaram a perspectiva histórica de longo alcance.
52
A. Selsdon, Wither the Welfare State (Londres: Institute of
Economics Affairs, 1981), p. 1 L O mesmo fenômeno foi descrito nos
EUA por J. K. Galbraith, The Culture of Contentment, e R. Reich,
"The Secession of the Successfull", The New York Times Magazine,
20.jan.91.
53
J. K. Galbraith, The Culture of Contentment; T. Edsall, Chain
Reaction.
54
Veja-se M. Ignatieff, "Citizenship and Moral Narcissism", The
Political Quarterly (1988), vol. 59; R. Rosenblatt, "Social Duties and
the Problem of Rights in the American Welfare State", in D. Kairys (org.),
The Politics of Law, ed. rev. (Nova Iorque: Pantheon Books, 1990), pp.
90-114.
55
Veja-se G. Himmelfarb, "Prefácio" a D. Anderson (org.), This Will
Hurt: The Restoration ofVirtue and Civic Order (Londres: Social Affairs
Unit, 1995), p. ix: "o Estado - e mais especificamente o Estado de bem-
estar - agora é visto como parte do problema e não da solução". Em
seus discursos State of the Union, da metade dos anos 1980, o presidente
Reagan atacava sistematicamente o Estado de bem-estar com os
seguintes termos: "a previdência é um narcótico, um destruidor sutil do
espírito humano. Nós devemos escapar desta teia de aranha da
dependência" (1986). "Há alguns anos, o governo federal declarou
guerra à pobreza e a pobreza venceu" (1988).
56
Veja-se N. Glazer, "Towards a Self Service Society", The Public
lnterest, nº 70 (inverno de 1983), pp. 66-90. As visões de Hayek sobre
o livre mercado já circulavam desde a guerra, mas sem muita ressonância
política; v. Yergin e Stanislaw, The Commanding Heights.
57
V., por exemplo, a President's Commission on Law Enforcement, The
Challenge of Crime in a Free Society (Washington: US Government
Printing Office, 1967).
231
58
Para detalhes, v. P. A. Langan e D. P. Farrington, "Crime and
Justice in the United States and in England and Wales, 1981-96",
Bureau of Justice Statistics Executive Summary (Washington: US
Department of Justice, Bureau of Justice Statistics, 1997).
59
S. Hall et al., Policing the Crisis (Londres: MacMíllan, 1978); T.
Edsall, Chain Reaction; P. Schrag, Paradíse Lost: Californía 's
Experience, America's Future (Berkeley-CA: University of California
Press, 1998).
60
Para uma descrição destes eventos e um relato acerca de suas
conseqüências políticas, v. S. Hall, The Hard Road to Renewal:
Thatcherism and the Crisis of the Left (Londres: Verso, 1988), e T.
Edsall, Chain Reaction (1992). De acordo com Edsall, os distúrbios de
Watts de 1965, que irromperam uma semana depois da aprovação do
Voting Rights Act, foram "os primeiros de uma cadeia de eventos que
empurraria um segmento substancial do eleitorado norte-americano para
a direita, produzindo quase uma década de intenso conflito ideológico,
social e racial. Esta cadeia de eventos incluiu: distúrbios nos guetos; o
surgimento de um movimento negro separatista; o aumento abrupto de
crimes praticados por negros; a mudança dos protestos por direitos civis
para o Norte, onde tradicionalmente eleitores democratas polarizavam
em questões relacionadas a assentos em ônibus e à venda e aluguel de
imóveis sem discriminação; o aumento no número de opositores, no
seio da juventude educada em instituições de ensino superior, à Guerra
do Vietnã, às convenções de disciplinas acadêmicas e às restrições
tradicionais relativas a sexo e drogas; o emergente movimento
feminista; o reaparecimento de movimentos brancos racistas como
força política poderosa; o conflito, no seio da Guerra contra a Pobreza,
entre autoridades brancas do governo e lideranças negras; um
aumento sem precedentes no número de beneficiários do sistema
previdenciário; a intensificação da demanda, da parte de negros, por
emprego em duas instituições que lhes eram hostis, controladas por
democratas brancos - os sindicatos e o City Hall" (pp. 48-9).
61
Edsall observa que "o significado dos impostos ( ... ) se transformou.
Não mais a fonte de recursos que criaram um governo federal
beneficente, os impostos passaram a significar, para muitos eleitores, a
transferência forçada do dinheiro suado daqueles que trabalharam duro
para os que não trabalhavam. Os impostos passaram a ser vistos como
fonte de recursos de um judiciário federal liberal, que garantia direitos
em excesso para criminosos acusados, para condenados e, em termos
de educação e empregos, para as minorias 'menos qualificadas"', T.
Edsall, Chain Reaction, p. 214. V., também, M. B. Katz, The

232
Undeserving Poor: From the War on Poverty to the War on \Velfare
(Nova Iorque: Pantheon, 1989): "enfatizando as obrigações dos pobres,
em vez do seu direito a benefícios públicos, o apelo do novo
autoritarismo se difundiu nos círculos conservadores; no Congresso,
ele se tornou a fundação intelectual de uma abordagem bipartidária à
reforma previdenciária" (p. 125).
62
"Os Estados não mais se comprometem com o pleno emprego: eles
não acreditam que isto seja possível. Em lugar disto, buscam a
estabilidade de preços e a aprovação dos mercados globais de títulos
públicos de sua retidão fiscaL Bancos centrais independentes são
venerados como guardiães da ordem monetária e da inflação baixa. Não
é surpresa que o desemprego no mundo industrializado tenha
alcançado 35 milhões de pessoas em 1994, um recorde desde o pós-
guerra, e que a inflação, abaixo de 3%, estivesse no menor patamar
em trinta anos. Esta é a escolha consciente dos principais países
industrializados do mundo", W. Hutton, The State We're ln (Londres:
Jonathan Cape, 1995), p. 16. Esta política é, também, um
reconhecimento de que o Estado-nação não está mais no controle
pleno. O desemprego é retratado como um efeito inevitável da ação
de outros. Esta negação de responsabilidade (governamental) se
tornaria um tema proeminente nas políticas socioeconômicas dos
anos 1980, num tempo em que a responsabilidade individual estava
sendo incisivamente enfatizada, D. Yergin e J. Stanislaw, The
Commanding Heights, p. 116, citam o ministro John Wakeham, do
governo Thatcher: "uma das principais forças da privatização foi o
consenso entre burocratas de que eles não mais sabiam como
administrar. Planejamento, nacionalização e assim por diante - tudo
havia falhado. As indústrias estatais estavam apurando déficits
maciços. Havia a disposição de tentar-se algo novo. Descobriu-se que a
resposta da burocracia para o novo governo conservador era de que
'não podia ficar pior do que já estava"'. Sobre a mesma mudança nos
EUA, Thomas Edsall comenta: "de 1978 a 1980, durante os anos Carter,
o postulado central do novo Partido Democrata pós-New Deal, de que
poderia administrar a economia e produzir crescimento sustentado, ruiu
sob o peso da inflação, da escalada dos preços do petróleo, do
desemprego, das altas taxas de juros e da estagnação industrial", T.
Edsall, Chain Reaction, p. 134.
63
Ibidem; P. Pearson, Dismantling the Welfare State: Reagan, Thatcher
and the Politics of Retrenchment (Nova Iorque: Cambridge University
Press, 1994); E. Hobsbawm, The Age of Extremes, cap. 14; D. Yergin e
J. Stanislaw, The Commanding Heights, caps. 4 e 12.

233
64
Sobre o significado de políticas "reacionárias", v. A. Hirschman,
The Rhetoric of Reactíon (Cambridge-MA: Harvard University Press,
1991). Para detalhes de tais políticas, v. P. Pierson, Dismantling the
Welfare State? (Nova Iorque: Cambridge University Press, 1994), e
D. Yergin e J. Stanislaw, The Commanding Heights (Nova Iorque:
Simon & Schuster, 1998), caps. 4 e 12.
65
Veja-se A. Gamble, The Free Economy and the Strong State
(Basingstoke: MacMillan, 1988). Como veremos, as tensões no seio
desta combinação de liberalismo de mercado com conservadorismo
moral se reproduziram na política criminal. A demanda neoliberal por
agregar valor ao dinheiro, por aplicar ao governo as disciplinas do
mercado e dos negócios, por cortar gastos públicos, por pensar em
termos utilitaristas, teve a resistência do retributivismo mais
deontológico dos conservadores morais. Esta tensão entre mercado
e disciplina moral estava fadada a influenciar contraditoriamente a
justiça criminal ao longo das últimas décadas do século.
66
Veja-se M. Magnet, The Dream and the Nightmare: The Sixties
Legacy to the Underclass (Nova Iorque: Encounter Books, 1993).
Para uma crítica a esta linha de argumentação, v. H. Dean e P. Taylor-
Gooby, Dependency Culture: The Explosion of a Myth (Londres:
Harvester Wheatsheaf, 1992).
67
V., genericamente, R. Keat e N. Abercrombie (orgs.), Enterprise
Culture (Londres: Routledge, 1991).
68
Veja-se a Commission on Social Justice, Social Justice: Strategies
for Renewal (Londres: Vintage, 1994), pp. 28-9: "por quase quarenta
anos depois da Segunda Guerra Mundial, o hiato, em termos de renda,
entre ricos e pobres na Grã-Bretanha gradualmente diminuiu. Aquela
tendência agora foi revertida. Hoje, o hiato entre a renda dos mais bem
pagos e a dos mais pobres é maior do que jamais se viu, em qualquer
época, desde que se começou a medir este indicador em 1886"; v.,
também, W. Hutton, The State We're In, cap. 2; C. Oppenheim, Poverty:
The Facts Revised Edition (Londres: Child Poverty Action Group, 1993),
cap. 9. Sobre as tendências norte-americanas, v. L. M. Mead, The New
Politics of Poverty (Nova Iorque: Basic Books, 1992), p. 75, e T. Edsall,
Chain Reaction. Edsall anota que "em termos de recompensas
econômicas positivas, a década de 1980, dominada pelos Republicanos,
produziu uma das mais dramáticas concentrações de renda na história
da nação. Enquanto a renda familiar em geral cresceu 15,7%, já
considerados os gastos com impostos, a renda da parte mais baixa da
pirâmide decresceu 10,4%, de US$ 4.791,00 para US$ 4.295,00 (em

234
valores de 1990), ao passo que a renda dos 1% mais ricos subiu em
87,1%, de US$ 213.675,00 para US$ 399.697,00" (p. 23).
69
C Murray, Losing Ground: American Social Policy, 1950-1980 (Nova
Iorque: Basic Books, 1984); N. Glazer, The Limits of Social Policy
(Cambridge-MA: Harvard University Press, 1988); L. M. Mead, The
New Politics of Poverty (Nova Iorque: Basic Books, 1992); W.
Bennett, J. Dilulio e J. Walters, Body Count: Moral Poverty and
How to Win America's War Against Crime and Drugs (Nova Iorque:
Simon & Schuster, 1996); G. Himmelfarb, The Demoralization of
Society: From Victorian Virtues to Modem Values (Nova Iorque:
Knopf, 1995); N. Dennis, Rising Crime and the Dismembered Family
(Londres: lnstitute of Economic Affairs, 1993); N. Dennis, The
Invention of Permanent Poverty (Londres: Institute of Economic
Affaírs, 1997); C. Murray, The Emerging British Underclass (Londres:
Institute for Economic Affairs, 1990); D. Anderson (org.), This Will
Hurt: The Restoration of Virtue and Civic Order (Londres: Social
Affairs Unit, 1995). No prefácio parn o livro de Anderson, Gertrude
Himmelfarb ecoa este sentimento antimoderno: "é evidente que
estamos sofrendo de uma grave desordem moral. 'Patologia social' é
o termo usual para a síndrome do crime, violência, promiscuidade,
filhos ilegítimos, drogadição e dependência a benefícios previdenciários:
'patologia moral' seria o termo mais exato. E patologia moral requer
vigorosos purgantes e restauradores morais" (p. x).
70
Veja-se A. Gamble, The Free Economy and the Strong State.
71
Veja-se W. Hutton, The State We're ln, cap. 7; P. Pierson,
Dismantling the Welfare State?
72
B. Campbell, Goliath.
73
É. Durkheim, Professional Ethics and Civic Morais (Londres:
Routledge, 1992). V., também, P. Hirst, Associative Democracy
(Cambridge: Polity, 1994).
74
Concluindo sua análise da opinião pública norte-americana a respeito
de questões sociais, na qual encontra evidências de tolerância crescente
para com a "diferença de estilo de vida", porém tolerância decrescente
parn com o crime, Katblyn Gaubatz especula que "muitos americanos
decidiram tolerar condutas que, não obstante, entendem ser problemáticas.
Assim, vão levando suas vidas, carregando o fardo de sentir que seus
concidadãos estão engajados em atividades um tanto ou quanto
ofensivas, artificiais, pecaminosas, perigosas, imorais ou petulantes.
Mas eles preferem não externar tal fardo psicológico na forma de
clamores por proibição daquelas atividades. O que estou sugerindo

235
é que, gradualmente ao longo dos anos, muitos americanos
desenvolveram uma carga de sentimentos negativos insuficientemente
extravasados, que precisavam ser colocados em algum lugar. Qual
lugar melhor do que a oposição obstinada aos atos criminosos?", K.
T. Gaubatz, Crime in the Public Mind (Ann Arbor: University of
Michigan Press, 1995), p. 162.
75
Veja-se C. Oppenheim, Poverty: The Facts, Revised Edition
(Londres: Child Poverty Action Group, 1993), cap. 9; W. J. Wilson,
When Work Disappears.
76
Para detalhes da "sociedade dualizada, v. M. Piore e C. Sabel, The
Second Industrial Divide (Nova Iorque: Basic Books, 1984). Sobre a
"sociedade trinta trinta quarenta", v. W. Hutton, The State We're ln,
pp. 105-10, onde ele se refere aos 30% da população carente (há
muito desempregada), aos 30% da população marginalizada e em
situação de risco (empregos de meio expediente ou temporários) e
aos 40% de privilegiados (altos salários, empregos estáveis). Sobre
os "seduzidos e reprimidos", v. Z. Bauman, Legislators and
Interpreters (Oxford: Polity, 1987). Sobre o apartheid americano, v.
D. S. Massey e N. A. Denton, American Apartheid.
77
Um editorial de 26 de novembro de 1989 do Sunday Times dá uma
boa noção disto: "a subclasse promove uma inundação de crianças
ilegítimas sem qualquer preocupação com o amanhã e alimenta uma
taxa de criminalidade que desafia os Estados Unidos, em termos de
crimes contra a propriedade. Seus jovens saudáveis não vêem nenhum
sentido em trabalhar e tampouco se sentem obrigados a isto. Eles rejeitam
a sociedade ainda que se alimentem dela; estão se tornando uma geração
perdida, girando a roda da privação (...). Não há distribuição de :renda
ou engenharia social que possa resolver o problema deles. Seus
subestilos de vida estão além de aumentos nos benefícios previdenciários
e de programas de criação de empregos. Eles existem como excluídos
das sociedades, vinculados a um sistema anti-social".
78
Para dados norte-americanos sobre as tendências de crimes violentos
e contra o patrimônio, v. US Department of Justice, Crime in the United
States 1995 (Washington DC: US Government Printing Office, 1995).
Para dados da Inglaterra e do País de Gales, v. Home Office, Digest 4
(Londres: Home Office, 1999). V., também, A. Norrie e S. Adelman,
"Consensual Authoritarianism' and Criminal Justice in Thatcher's
Britain", Journal of Law and Society (1989), vol. 16, nº 1, pp. 112-28;
R. J. Terrill, "Margaret Thatcher's Law and Order Agenda", The
American Joumal of Comparative Law (1989), vol. 37, pp. 429-56.

236
79
Como Ronald Reagan disse, "a paciência do povo americano se
esgotou com a leniência liberal e com as desculpas pseudo-intelectuais
para o crime"; citado por K Beckett, Making Crime Pay: Law and Order
in Co11te111porary American Politics (Nova Iorque: Oxford University
Press, 1997),p.49.
80
Sobre a crescente tendência de representar o crime de ma como
um problema da juventude negra, v. M. H. Barlow, "Race and the
Problem of Crime in Time and Newsweek Cover Stories, 1946 to
1995", Social Justice (1998), vol. 25, nº 2, pp. 149-83; C. West, Race
Matters (Nova Iorque: Vintage Books, 1994), e S. Hall et al., Policing
lhe Crisis: Mugging, the State and Law and Order (Londres:
MacMillan, 1978). Mru·tin Gilens demonstrou como a representação
da mídia norte-americana da pobreza destaca pessoas brancas, nos
períodos em que a política é simpática aos pleitos dos pobres, e
pessoas negras, quando as atitudes públicas e as políticas são mais
hostis. M. Gilens, Why Americans Hate Welfare (Chicago: University
of Chicago Press, 1999). Tais quais as representações da mídia sobre
o crime, estas representações sobre a previdência, que a tornaram
sinônimo de "raça" nos EUA, são altamente enganosas: "para a
maioria dos americanos, as imagens mais poderosas da pobreza são,
induvidosamente, os guetos urbanos negros. Estas concentrações
de pobreza representam as piores falhas dos nossos sistemas
econômico, educacional e previdenciário. Ainda assim, elas também
representam uma proporção minúscula de todos os pobres
americanos. Somente 6% de todos os pobres americanos são negros
que vivem nos guetos urbanos" (p. 132).

237
5. Dilema político: adaptação, negação e
atuação simbólica

Então, como as mudanças sociais da pós-modernidade vie-


ram a deixar sua marca no campo do controle do crime e da justiça
criminal? Não de forma direta, pai-a ser exato, mas por intermédio
de uma série de acomodações e ajustes sofridos pelas várias agên-
cias em resposta a pressões, oportunidades ou problemas específi-
cos com os quais elas se depararam. Às vezes, tais estímulos pru_·e-
ciam vir de fora do sistema; outras vezes, foram gerados no seio
das próprias agências da justiça criminal. No entanto, à medida
que as novas relações e sensibilidades sociais da pós-modernidade
abriam caminho dentro das instituições de controle do crime, a
distinção entre "fora" e "dentro" ficava cada vez mais obscura. A
pós-modernidade e as novas políticas por ela engendradas modifi-
cru_·am a forma com que as organizações pensavam o crime e a
pena, a justiça e o controle, da mesma forma pela qual modifica-
ram o terreno sobre o qual estas organizações operavam.
O presente capítulo busca descrever e explicar as recorrentes
formas de cálculo e de tomada de decisões que forjaram as práti-
cas do período contemporâneo. Não se trata de uma nru_Tativa dos
acontecimentos políticos, embora isto de fato descrevesse as polí-
ticas centrais e como elas se formru_·am 1. Ao revés, visa a descrever
os tipos de considerações que guiaram o processo de tomada de
decisões deste período e os tipos de políticas que emergiram em
conseqüência.
O último quarto do século XX testemunhou a emergência de
racionalidades não-correcionalistas de controle do crime - novas
criminologias, novas filosofias da pena, novos objetivos penalógicos.
Ao longo do mesmo interregno, houve também uma tentativa de
aperfeiçoar a relação entre política c1iminal e o novo contexto cultu-
ral e político - inventando mecanismos novos e mais efetivos de
controle do crime, assim como novas maneiras de representar o
crime e ajustiça. Esta ininterrupta tentativa de reorientru_· as institui-

239
ções de controle do crime e de revisar sua relação com um ambiente
social em transfmmação foi muito mais uma questão de remendar so-
luções temporárias do que uma reconstrução planejada.
Qualquer desafio substancial ao airanjo institucional de deter-
minada sociedade cria problemas e incertezas práticas - para o pú-
blico que se serve de tais instituições, assim como para as autorida-
des e funcionários das mesmas instituições. Neste capítulo e no
próximo, examinarei os problemas trazidos pelo desafio ao moder-
nismo penal. Meu argumento é que, sempre que transformações
sociais contêm um padrão estrutural característico, com algum cam-
po da ação social (neste caso, o controle do crime) aparentando
alinhar-se com estruturas e sensibilidades que se desenvolveram em
outros campos, a explicação deve ser expressada em termos que
respeitem as motivações e ações dos atores e agências envolvidos.
Em vez de falai· abstratamente em "alinhamento estrutural", ou as-
sumir que "forças subjacentes" são capazes de automaticamente
fazer operar seus efeitos através de diferentes campos sociais, nós
devemos atentar para atores e agências específicos. Devemos inda-
gar como eles percebem suas situações e como tratam os proble-
mas que estas instituições representam para eles. E, por fim, deve-
mos atentar pai·a as percepções e reações dos atores da sociedade
civil, assim como do Estado, particularmente onde as instituições
tenham significado central para o público em geral.
Esta narrativa explicativa da mudança institucional encontra
apoio no fato de que, normalmente, os períodos históricos nos quais
os arranjos institucionais estão ameaçados tendem a ser marcados
por uma enxurrada de propostas de reforma e pela criatividade
política. Quaisquer que sejam os problemas surgidos em seu ras-
tro, o processo de colapso institucional também tende a agir como
impulso para a ação. Seu efeito imediato é o de desprender energia
e estimular novas idéias, novos programas e novas iniciativas de
reforma. À medida que as antigas instituições cedem terreno, no-
vos modos de pensar e de agir são trazidos à baila. Formas inova-
doras de encarar os problemas se tornam mais palatáveis e mais
urgentemente relevantes. Novas maneiras de ação podem ser
tentadas. Não foi à toa, então, que o campo do controle do cri-
me, nos anos 1980 e 1990, testemunhou tal processo constante
de fermentação e reforma.
240
Seria exagero dizer que a justiça criminal entrou em "colap-
so" ou "faliu" no período posterior à metade dos anos 1970, mas
não há dúvida de que os arranjos institucionais do previdenciarismo
penal e, mais genericamente, da justiça criminal moderna foram
seriamente abalados naqueles anos. O campo sofreu uma ruptura,
a exemplo do enquadramento criminológico em que se escorava.
Nos anos que se seguiram, um dilúvio de novos programas e de
iniciativas políticas tomou a cena, propondo novos objetivos
institucionais, novos regimes penitenciários e de policiamento e no-
vas concepções sobre o problema do crime e sua solução.
Alguns destes, tais como os projetos radicais do abolicionismo,
da descriminalização e da desinstitucionalização, que surgiram nos
anos 1970, capturaram a imaginação de acadêmicos e militantes,
mas tiveram pouco impacto no pensamento governamental e na
política institucional. Outros, tais como o movimento reformista
por penas determinadas, vieram a se tornar ingredientes centrais
da política e da prática contemporânea, ainda que não da forma
desejada por seus proponentes. Outras propostas, como aquelas
favoráveis à mediação e à justiça restaurativa, puderam operar nas
mai·gens da justiça criminal, compensando as tendências centrais
sem mudar muito o equilíbrio geral do sistema. Por fim, houve
propostas, como a reintrodução do acorrentamento coletivo de pre-
sos e a reinstituição de penas corporais em alguns estados do sul
dos Estados Unidos, que deixaram sua marca emblemática na cul-
tura da punição, embora seu impacto na prática penal tenha sido
muito mais discreto.
Muitas das reformas que agora constituem importantes ele-
mentos no campo do controle do crime - tais como a mobilização
de vítimas, prisões privatizadas ou policiamento preventivo co-
munitál'io - nasceram como iniciativas restritas, locais, que em
princípio atrafram pouca atenção pública. Outras medidas que ti-
veram grande visibilidade e apoio público - tais como condena-
ções a penas determinadas pai·a criminosos reincidentes e "preda-
dores sexuais" ou notificação comunitária de criminosos sexuais
libertados - foram rapidamente implementadas, com repercussão
imediata, embora tenham sido freqüentemente menos significati-
vas do que tanto seus simpatizantes quanto seus críticos preconi-
zaram2. Finalmente, houve desdobramentos de primeira impor-

241
tância- especialmente, a emergência de altas taxas de encarceramento
nos EUA- que não foram originalmente articulados na fonna de pro-
gramas de refonna, nem implementados como políticas explícitas: sur-
giram ao longo do tempo como o resultado de vários processos con-
vergentes. Apesar de terem, subseqüentemente, se tomado estratégias
de fato, atraindo amplo apoio e múltiplas racionalidades ex postfacto, o
plano seguiu a prática, e não o contrátio3 .
Este confuso torvelinho de acontecimentos toma difícil expli-
car por que algumas propostas são abraçadas e transformadas em
lei, enquanto outras falham em produzir resultados práticos, parti-
cularmente quando os desfechos têm pouco a ver com suas cre-
denciais, com os resultados de pesquisas ou mesmo com o apoio
profissional. Para tornar o processo inteligível, precisamos exami-
nar mais do que apenas os detalhes das propostas. Devemos, tam-
bém, investigar as motivações e raciocínios das autoridades que as
selecionaram e implementaram, bem como os contextos culturais
e políticos nos quais sua escolhas são validadas. Este capítulo focará
o problema do controle do crime, tal como foi percebido e admi-
nistrado pelas agências e autoridades do Estado de justiça crimi-
nal, assim como as considerações e contextos que informaram suas
decisões. O capítulo seguinte olhará mais detidamente para a ques-
tão do contexto cultural, examinando a nova experiência coletiva
do crime e as estruturas de sensibilidades por ela criadas, e para o
comportamento dos vários atores não-governamentais que passa-
ram a ficar ativamente envolvidos no esforço de controlar o crime.
O novo dilema
Durante os últimos trinta anos, as autoridades britânicas e norte-
americanas da justiça criminal tiveram que formular políticas em
meio a um cambiante conjunto de pressões e restrições. Elas se
viram obrigadas a reorientar suas práticas no limiar de desenvolvi-
mentos internos, tais como a crítica ao correcionalismo; tiveram
que se adaptar às mudanças em campos adjacentes, tais como o
declínio do trabalho e do bem-estar; e tiveram que se adequar às
novas c01Tentes políticas dominantes do neoliberalismo e do neo-
conservadorismo, conquanto muitas destas correntes seguissem ru-
mos diversos ou fossem de encontro ao substrato de suas próprias
crenças. Sobretudo, porém, elas tiveram que encarar um novo dile-
ma criminológico - um conjunto novo e problemático de restrições
242
estruturais que formavam o horizonte político, em meio ao qual
todas as decisões devem ser tomadas 4 . Este dilema tem suas ori-
gens em dois fatos sociais fundamentais do último terço do século
XX: a normalidade de altas taxas de criminalidade e as reconheci-
das limitações do Estado de justiça criminal.
Ao longo do tempo, este dilema tem se mostrado mais ou me-
nos premente. Nos anos 1970 e início dos anos 1980, ele ficou
completamente exposto para muitos administradores, muito em-
bora autoridades estatais eleitas fossem mais resistentes em reco-
nhecer sua força. No final dos anos 1990, com a diminuição das
taxas de criminalidade, seus efeitos foram temporariamente suavi-
zados, tomando-se mais fácil para os governantes (ou para autori-
dades policiais dissidentes) negá-lo publicamente. Todavia, por
mais que se esconda ou se exponha ao reconhecimento público, os
limites impostos pelas altas taxas de criminalidade e pela baixa
efetividade da justiça criminal permanecem como uma restrição
fundamental da política e da prática contemporâneas.
Altas taxas de criminalidade como fato social normal
No período do pós-guerra, altas taxas de criminalidade setor-
naram um fato da vida nos EUA e na Grã-Bretanha, como, de resto,
na maioria das sociedades ocidentais. Da metade dos anos 1960 em
diante, os níveis de crimes violentos e contra o patrimônio, que já
estavam no dobro e no triplo, respectivamente, dos níveis existen-
tes antes da guerra, passaram a constituir um lugar-comum da ex-
periência social. No início dos anos 1990, a despeito de certa esta-
bilização, os números registrados de crimes eram o décuplo dos
números de quarenta anos antes 5 . Entre os anos 1960 e 1990, todo
um complexo de fenômenos relacionados se erigiu em torno do
crime - notadamente, um medo disseminado do crime, comporta-
mentos rotineiros de cautela, representações culturais e midiáticas
popularizadas e uma generalizada "consciência do crime". Neste
sentido, a alta criminalidade - e as reações a ela - se transformou
em princípio organizacional da vida diária, parte integrante da orga-
nização social. Se os cronistas do período imediatamente posterior à
guerra podiam se referir às crescentes taxas de criminalidade como
uma aberração temporária, nos anos 1970, a vulnerabilidade da so-
ciedade aos altos níveis de criminalidade veio a ser vista como o que
ela realmente era: um fato social normaL No final dos anos 1990,
243
apesar da redução reconhecida em alguns indicadores, as taxas de
climinalidade e violência norte-americanas e britânicas permanece-
ram em nível historicamente elevado, e são amplamente percebidas
como tal, particularmente pela população mais idosa, que ainda com-
para o presente com as circunstâncias muito diferentes dos anos
1950 e início dos 1960. Qualquer que seja o êxito a ser comemorado
pela polícia ou pelos governantes, a evitação do crime continua como
um proeminente princípio organizacional da vida diária, e o medo do
crime persiste em níveis jamais vistos.
Em que pese o fatp de o crime possuir distribuição social
bastante desigual, e dos riscos de vitimização estarem desproporcio-
nalmente concentrados nos distritos urbanos mais pobres, o crime agora
é vastamente experimentado como um fato primordial da vida moder-
na. Para a maioria das pessoas, especialmente aquelas que vivem
nas cidades e nos subúrbios, o crime não é mais uma aberração ou
um evento inesperado, anormal 6. Ao revés, a ameaça do crime se
tomou um aspecto rotineiro da consciência moderna, uma possibi-
lidade sempre presente que se deve sempre "ter em mente". O cri-
me veio a ser referido como risco de todo dia, que deve ser habitu-
almente estimado e administrado de forma semelhante com que li-
damos com o trânsito - outro perigo mortal que se tornou elemento
normal do cenário moderno. Ao longo do período correspondente a
uma geração, as altas taxas de criminalidade passaram a ser um
aspecto natural das nossas vidas - um elemento aceito da pós-mo-
dernidade. As propagandas agora onipresentes sobre segurança, que
nos dizem que "um carro é roubado a cada minuto" ou que "um
cartão de crédito é perdido ou roubado a cada segundo", expressam
esta experiência com precisão: o crime forma uma parte do nosso
ambiente diário e é constante como o próprio tempo 7 •
Altas taxas de criminalidade se tornaram sistémicas - aspecto
normal e mais ou menos inteligível das nossas rotinas sociais e eco-
nômicas, amplamente referido como um companheiro inevitável da
modernização. Até recentemente e com consistência raramente vis-
ta em outros dados sociais, as estatísticas criminais acusaram au-
mento, na maioria de suas categorias, em praticamente todos os
anos das três últimas décadas. Este padrão secular sedimentou um
conjunto de crenças culturais e representações coletivas que são
agora difíceis de afastar. Pesquisas de opinião, desde os anos 1970,
244
mostram que a maioria das pessoas acredita que o problema do
crime é grave e está piorando, bem como que o número de crimes
continuará a crescer no futuro, crença que persiste mesmo em pe-
ríodos de estabilização ou declínio das taxas de criminalidade 8 . Ve-
remos no próximo capítulo como a normalidade das altas taxas de
criminalidade veio a fmmar o ponto nodal para todo um espectro de
crenças e comportamentos - um novo complexo cultural que molda
e expressa a experiência contemporânea do crime. No entanto, por
ora, a conclusão que desejo assentar é que a emergência deste novo
fato social teve importantes implicações para o governo, especial-
mente para as agências encarregadas do controle do crime e da
justiça criminal.
Os limites do Estado de justiça criminal
O segundo fato social que compõe o novo dilema é intima-
mente relacionado ao primeiro e diz respeito ao modo através do
qual ajustiça criminal veio a ser referida pelo público, por autori-
dades políticas e por seu próprio corpo de funcionários. Os anos
1970 são o período no qual a normalidade das altas taxas de crimi-
nalidade começou a ser reconhecida como fato, mesmo por aque-
les que tinham motivos para resistir a esta interpretação, mas são
também o período no qual a justiça criminal passou a ser medida
primordialmente em termos de suas limitações e inclinação ao fra-
casso, e não por suas possibilidades de sucesso futuro.
Não que altas taxas de criminalidade jamais tivessem pertur-
bado a justiça criminal ou trazido problemas para o sistema. Ele-
vações no número de delitos registrados têm sido um incômodo
problema para as autoridades desde a Segunda Guerra Mundial.
Entretanto, até os anos 1960, as instituições da justiça criminal
eram capazes de absorver desafios deste tipo e de beneficiar-se
deles. Em 1964, o relatório do governo britânico The War Against
Crime reconheceu que houvera um "aumento abrupto na crimina-
lidade", que perdurou na mesma intensidade desde a metade dos
anos 1950, mas não via necessidade de questionar o enquadramento
penal-previdenciário. Como seu antecessor de 1959, Penal Practice
in a Changing Society, o relatório de 1964 expressava a convicção
de que a estratégia penal-previdenciária representava a abordagem
coffeta e afiançava que o policiamento vigoroso e medidas conecio-
nais, guiadas por pesquisas sobre as causas do crime e a efetividade
245
dos tratamentos penais, começariam a frear a maré crescente do
crime. Quanto ao fracasso aparente destas medidas, isto era credi-
tado ao problema de recursos e de conhecimento científico ou aos
métodos de implementação, mas foram traçados planos para a reali-
zação de pesquisas ulteriores, para o aumento de recursos e para a
expansão dos serviços de bem-estar infantil. Se havia alguma dúvi-
da acerca da capacidade do Estado de enfrentar o problema, ela n ~o
passava nem perto das afirmações govemamentais. Muito pelo con-
trário, a mola propulsora dos anúncios oficiais era de que o Estado
venceria a guen-a contra o crime, assim como o Estado de bem-estar
havia de1rntado seus inimigos, o que lhe permitia enfrentar os proble-
mas sociais e econômicos dos tempos de paz.
A reafirmação do paradigma existente, em face de cada vez
mais provas da ineficiência estatal, também foi a tônica do relató-
rio da US President's Crime Commission de 1967. Este relatório
reagiu às taxas de criminalidade em rápida ascensão assegurando
que com mais recursos federais, pesquisas mais aperfeiçoadas,
compartilhamento de informação e os efeitos preventivos do pro-
grama governamental de guerra contra a pobreza, o crime seria
controlado. Quaisquer que fossem os problemas trazidos pelo de-
safio da criminalidade numa sociedade livre - isto num período de
grandes distúrbios urbanos e do recorde de crescimento da crimi-
nalidade, segundo o relatório do FBI-, estes não teriam o condão
de dissipar a confiança nos postulados correcionais, do tratamento
caso a caso, que info_mavam o Estado de justiça criminal e seu
monopólio do controle do crime9 .
Desde o final dos anos 1960, o discurso oficial se afastou da
posição confiante estampada nestes documentos. Não há mais um
compromisso com o enquadramento penal-previdenciário e os pos-
tulados conecionalistas que lhe eram inerentes. Tampouco há qual-
quer confiança na capacidade do Estado de justiça criminal de con-
trolar o crime e de assegurar lei e ordem, seja qual for o enfoque
adotado. As reivindicações do Estado se tornaram mais modestas e
hesitantes, ao menos em certos contextos e perante públicos espe-
cíficos. Particularmente nos anos 1980 e início dos 1990, havia
uma clara noção do fracasso da agências da justiça criminal, uma
nova ênfase em suas limitações e um senso muito mais restrito do
poder estatal de regular condutas e de prevenir crimes 10 • Esta visão
246
oficial, comumente expressada em voz baixa, ecoa mais intensa-
mente na opinião pública, que se tornou altamente crítica do sistema
(particularmente dos tribunais e magistrados), considerando muito
lenientes as punições aplicadas e o sistema penal pouco comprome-
tido com a segurança pública 11 . Este sentimento de impotência do
Estado em face do crime se tomou tão sedimentado nas décadas
recentes que os desdobramentos que o questionam - tais como o
suposto êxito de certos métodos nmie-americanos de policiamento ou
a afümação do governo britânico de que a "prisão funciona" - chama-
ram enonne atenção da mídia e dos especialistas.
Os primeiros sinais deste questionamento ao modernismo pe-
nal assumiu formas bem específicas e localizadas. Do final dos
anos 1960 em diante, um influente corpo de obras especializadas
questionou a eficácia e legitimidade de medidas reabilitadoras e o
modelo de sentenciamento individualizado. Isto abriu caminho para
uma crítica mais arrebatadora da justiça criminal, à medida que a
noção de fracasso se disseminou e estudos estatísticos iconoclastas
se tornaram mais comuns. Uma por uma, as limitações das prisões
e dos institutos de menores, do livramento condicional e da liber-
dade vigiada, do policiamento convencional e da estrutura
intimidatória das penas foram cuidadosamente documentadas; cada
estudo contribuía para o sentimento de que a credibilidade de todo
o Estado de justiça criminal estava sendo seriamente questiona-
da 12. O slogan do "nada funciona", que se popularizou no final
dos anos 1970, pode ter sido um exagero histérico, mas gerou o
efeito de estabelecer urna atitude nova e pessimista, que persistiria
por muito tempo depois de terem sido desmentidos os dados que a
sustentavam.
Desde aquele tempo, uma noção mais sóbria e persistente
das limitações da justiça criminal se transformou em aspecto cen-
tral do discurso político e do lugar-comum criminológico. Da me-
tade dos anos 1980 em diante, passou a ser cada vez mais comum
os documentos governamentais, relatórios policiais e até mesmo
manifestos de partidos políticos enfatizarem que as agências esta-
tais não conseguem, por si sós, controlax o crime 13 . Melhorias
marginais modestas, a melhor administração de riscos e recursos, a
redução do medo do crime, a redução dos gastos da justiça criminal,
maior apoio para as vítimas, medidas penais mais expressivas -
247
estes se tomaram os novos objetivos políticos, na medida em que
analistas políticos consideram mais realista cuidar dos efeitos do
crime do que do próprio crime. Pela primeira vez desde que se
estabeleceu completamente no final do século XIX, a confiança
na capacidade da justiça criminal de controlar o crime e de prover
segurança foi seriamente minada. Mesmo na metade dos anos 1990,
quando as taxas de criminalidade nos EUA e na Grã-Bretanha de-
clinaram, poucos especialistas estavam dispostos a atribuir esta
mudança às ações efetivas das agências da justiça criminal.
O mito do Estado soberano e do seu monopólio do
controle do crime
Este estado de coisas era bastante novo e trazia implicações
significativas para as autoridades governamentais e para as agên-
cias da justiça criminal. A percepção das altas taxas de criminali-
dade como fato social normal, junto com as amplamente reconhe-
cidas limitações do sistema de justiça criminal, causaram a erosão
de um dos mitos fundacionais da sociedade moderna: o mito de
que o Estado soberano é capaz de prover "lei e ordem" e de con-
trolar o crime dentro do seu território. Este desafio à mitologia
estatal da "lei e ordem" era sobretudo persuasivo e problemático,
porque se deu num tempo em que a noção maior da soberania
estatal já estava sob ataque em diferentes frentes 14 .
Como todos os conceitos políticos historicamente desenvol-
vidos, soberania é uma noção complexa e muito contestada. Estri-
tamente definida, ela se refere à competência do Poder Legislativo
de um Estado de fazer ou revogar leis, sem o contraste de outras auto-
ridades legiferantes. Mas o termo possui um significado mais amplo,
que se relaciona à alegada capacidade do Estado soberano de gover-
nar um território, em face da competição e resistência de inimigos
internos e externos. Ao longo do tempo, o controle efetivo do crime e
a proteção rotineira dos cidadãos dos ataques criminosos passaram a
constituir parte da promessa que o Estado faz aos seus cidadãos 15 .
Por toda a sua importância em guiar a formação do Estado e
as estratégias de governo, esta noção de soberania estatal se provou
insustentável. No controle do crime, como em outras esferas, as
limitações da capacidade do Estado de governar a vida social em
todos os seus detalhes ficou mais do que nunca aparente, particu-

248
larmente na era da pós-modernidade. Assim, tendo atribuído a si
funções e responsabilidades de controle que pertenceram às institui-
ções da sociedade civil, o Estado pós-moderno agora está diante de
sua própria inabilidade de proporcionar os níveis esperados de con-
trole do crime. Como todos os mitos, o da soberania penal e de seus
poderes de "lei e ordem" está profundamente inscrito, é duradouro e
politicamente potente demais para ser facilmente desmontado pela
crítica racional e por uma reforma administrativa. Não há dúvida de
que continuará a ser invocado e continuará a reter, ainda por algum
tempo, o poder de persuadir. Porém, o que mudou na última década
é que o mito se tornou problemático - antes uma fonte de
ambivalência do que de certeza. Conseqüentemente, ele não susten-
ta mais o enquadramento tradicionalmente aceito de política e práti-
ca no campo do controle do crime.
O dilema para as autoridades governamentais hoje em dia, en-
tão, consiste em que elas reconhecem a necessidade de abandonai·
sua reivindicação de ser o provedor primário e eficaz de segurança e
controle do crime, mas também vêem, de modo igualmente claro,
que os custos políticos de tal abandono são potencialmente desas-
trosos. A conseqüência é que, nos anos recentes, temos testemu-
1lhado um padrão marcadamente volátil e ambivalente de desenvolvi-
mento político, que vem se tornando cada vez mais febril na urgência
com que certa iniciativa política sucede a anterior.
O resultado é uma série de políticas esquizofrênicas, que pare-
cem conflitai· entre si. Por um lado, tem-se tentado enfrentai· o dile-
ma e procurado desenvolver novas estratégias pragmáticas, adapta-
das a ele: através de reformas institucionais tendentes a superar os
limites do Estado de justiça criminal, ou através de acomodações
que reconheçam estas limitações e as trabalhem. Entretanto, ao lado
destas adaptações difíceis ao princípio da realidade, há uma tentati-
va recorrente de contornar seus termos como um todo, notada.mente
no que concerne às autoridades eleitas, que desempenham um papel
crescentemente importante na elaboração de políticas criminais. Esta
reação politizada assume duas formas recorrentes. Ou nega aberta-
mente o dilema e reafirma o velho mito do Estado soberano e seu
poder punitivo pleno, ou abandona a ação racional, instrumental,
retraindo-se a um estado expressivo, que talvez possamos, parafra-
seando a metáfora psicanalítica, descrever como atuação simbólica

249
- um Estado que não se preocupa tanto com o controle do crime,
mas sim em expressar a raiva e indignação que o crime provoca.
São este dilema e as reações oficiais profundamente ambivalentes a
ele- em lugar de qualquer programa coerente ou estratégia especí-
fica - que têm informado o controle do crime e a justiça criminal no
período pós-moderno 16 .
A estruturada ambivalência da resposta do Estado
O dilema que descrevi traz diferentes implicações para dife-
rentes tipos de autoridades. Para os atores políticos, atuando no
contexto da competição eleitoral, as escolhas políticas são ampla-
mente determinadas pela necessidade de encontrar medidas popu-
lares e efetivas, que não sejam vistas como sinal de fraqueza ou do
abandono da responsabilidade do Estado para com o público. As
medidas com as quais os representantes eleitos se identificam de-
vem ser penalogicamente críveis, mas, sobretudo, devem manter a
credibilidade política e o apoio popular. Na seleção de respostas
políticas, aquelas que mais facilmente possam ser tidas como vee-
mentes, inteligentes e efetivas ou expressivas são as mais atraen-
tes. Aquelas que sejam compreendidas (pelos adversários ou pelo
público) como uma retração, como reconhecimento do fracasso
ou dissociadas do sentimento público são as que apresentam os
maiores inconvenientes. O problema é mais de retórica política e
de aparência do que de efetividade prática.
Para os atores administrativos, encanegados do funciona-
mento das organizações, questões de ponto de vista político e de
relação com o público também são importantes, e agem como um
freio externo sobre as decisões. Todavia, na atividade diária, estas
não são as considerações principais que ditam as decisões admi-
nistrativas. Ao revés, administradores são guiados pela necessida-
de de manter a integridade dos processos internos, de ajustar sua
organização para acompanhar o ritmo das mudanças no ambiente
externo, de reparar deficiências e de cuidar de falhas organizacionais.
Seus grupos de referência são outros administradores, assim como
especialistas, pesquisadores e organizações de reforma. E, embora
devam obedecer às leis e a outras diretivas políticas, estas últimas
são consideradas uma força externa problemática, com pautas e
interesses distintos, e não como parte da organização.

250
A relação entre a organização e seus superiores políticos habi-
tualmente envolve conflitos sobre orçamento, especialmente no pe-
ríodo neoliberal de corte de gastos públicos. Outrossim, pode gerar
conflitos mais substanciais, particularmente quando as medidas pro-
postas se chocam com a visão da organização acerca de sua missão
institucional e dos métodos mais eficazes de cumpri-la. (Este tipo
de conflito tem ficado cada vez mais pronunciado nos anos recen-
tes, em que a pauta política neo-conservadora engendra medidas
populistas que poucos especialistas apóiam.) Decisões administrati-
vas são, assim, tomadas segundo duas pautas: uma interna e a outra
imposta de fora, e é tarefa do administrador cumprir suas missões
institucionais de forma que ao menos pareça sintonizada com as
preocupações dos seus chefes políticos 17 .
Tipicamente, o governante político vê as iniciativas em ter-
mos do seu apelo político e em relação com outras posições políti-
cas; age de acordo com o horizonte de tempo ajustado pela com-
petição eleitoral e sob os holofotes da publicidade midiática; e
confia primordialmente na sabedoria "política" - sobre opinião
pública, preferências de certos grupos, táticas da oposição, valo-
res políticos - e menos na experiência administrativa ou nas desco-
be1tas científicas. As iniciativas políticas são freqüentemente reativas,
disparadas por eventos específicos e deliberadamente parciais. Con-
seqüentemente, elas tendem a ser urgentes e passionais, motivadas
por casos chocantes porém atípicos e mais preocupadas em se afi-
nar com a ideologia política e com a i1.:::cepção popular do que com
os postulados do saber especializado ou com a capacidade provada
das instituições.
Em contraste, o administrador pode e deve focar nos interes-
ses de uma única organização, orienta-se de acordo com um hori-
zonte de tempo mais longo e opera a partir de uma distância maior
da imprensa e do escrutínio público. Dados estatísticos,
gerenciamento de recursos e análises de custo/benefício são os re-
quisitos da administração institucional. O administrador possui uma
compreensão mais realista dos processos e impactos da organiza-
ção e acesso mais direto à infonnação sobre seus custos e conseqü-
ências. Sua preocupação primária é com a área de atuação da orga-
nização: o fluxo das atividades, as decisões modais, os eventos nor-
mais. Opinião pública, posições políticas e preocupação apaixonada
251
com casos atípicos são distrações perturbadoras para a missão
institucional principal.
O governante e o administrador. O discurso político e o admi-
nistrativo. O escopo e as condições de ação em cada caso são bem
diferentes, na medida em que ambos guiam racionalidades, valores
e interesses. Como veremos, estas diferenças de posição têm ditado
as diferentes maneiras pelas quais o dilema do controle do crime
tem sido tratado, e produzido tensões no processo de formação de
políticas públicas.
No que concerne a ministros e secretários de Estado, estes se
situam no contraditório ponto entre os domínios político e admi-
nistrativo - comandam um departamento e são responsáveis por
sua ações; são autoridades que devem representar a política para o
público e para seu partido, bem como disputar futuras eleições.
Sua posição é fruto da ambivalência estrutural e exige que aten-
dam, simultaneamente, a interesses bastante diversos, represen-
tem a política perante audiências diferentes e continuamente tran-
sitem entre a racionalidade administrativa e a vantagem política.
Precisam olhar para os dois lados: viabilizar a eficiência adminis-
trativa, mas também servir ao público; instituir políticas viáveis,
mas também minimizar seus riscos políticos; perseguir os objeti-
vos da justiça criminal, mas também evitar os escândalos e injus-
tiças que inevitavelmente surgem; serem administradores hábeis,
mas também políticos populares.
Esta ambivalência é intensificada por crenças irreais sobre a jus-
tiça criminal acalentadas pela opinião pública. O senso comum é fre-
qüentemente caracterizado por uma concepção "absolutista", basea-
da em aparições espetaculares e motes ideológicos - uma concepção
que demanda justiça, punição e proteção a qualquer custo. Neste
modo de pensar, criminosos devem ser processados sob os rigores
da lei, o culpado deve sempre ser punido, indivíduos perigosos não
podem ser libertados jamais, os condenados devem cumprir sua
pena integralmente e a condenação de um criminoso deve refletir
precisamente seu crime. E, de alguma forma, ao mesmo tempo, os
inocentes devem sempre ser absolvidos, o império da lei sal vaguar-
dado e os gastos mantidos dentro de níveis razoáveis. O fato de
existirem sérias incompatibilidades entre estes imperativos "absolu-
tos" e de que cada princípio é minado pela realidade dos bastidores
252
- de contenção de recursos, limites probatórios, transações relati-
vas à imputação e acordos judiciais - significa que o público fica
facilmente escandalizado com muitas das decisões rotineiramente
tomadas.
Estes problemas de percepção pública são exacerbados pelo
fato de que o sistema de justiça criminal é, em qualquer caso, um
campo minado. Ele habitualmente lida com casos emocionalmen-
te carregados e de grande visibilidade, que sufocam o significado
de justiça e provocam reações hostis de um lado ou de outro. Ele
administra riscos e indivíduos perigosos, freqüentemente devol-
vendo criminosos à comunidade quando suas penas chegam ao
fim, ou pior, através de equivocadas decisões dos conselhos de
livramento condicional ou através de fugas escandalosas. No con-
texto das sociedades de alta criminalidade, tanto governantes quanto
o público consideram tal sistema inconfiável: uma constante fonte
de perigos, de injustiça e insegurança, rigorosamente parte do pro-
blema do crime e não de sua solução.
As decisões políticas principais comumente dependerão da
forma com que os agentes governamentais reajam a estas conside-
rações e públicos bem diferentes. Evidentemente, a dinâmica des-
te processo muda quando as questões relacionadas ao controle do
crime são politizadas e submetidas à renhida competição eleitoral
e ao intenso escrutínio público. À medida que o sistema foi fican-
do mais politizado, nos anos 1980 e 1990, o equilíbrio de forças
freqüentemente se abalou em detdmento da lógica da administração
e da tomada de decisões especializada, favorecendo um estilo mais
político e populista. As páginas seguintes descrevem as formas con-
traditórias pelas quais as ambivalentes autoridades estatais e suas vá-
rias agências têm reagido ao dilema, ao longo do tempo, às vezes
adaptando-se a ele de forma criativa e realista, às vezes afastando-se
dele através de negações forçadas e da atuação simbólica expressiva.
Respostas de adaptação
Ao longo das últimas três décadas, e ainda hoje, estas respos-
tas contraditórias ao dilema do controle do crime têm coexistido,
com as autoridades patrocinando tipos de políticas bem diferentes,
em tempos diversos, e em setores distintos do campo do controle
do crime. Com o passar do tempo, no entanto, tem-se percebido

253
uma forte mudança de ênfase, em que soluções de adaptação foram
paulatinamente eclipsadas por alternativas mais politizadas, mais
expressivas. Nos EUA, esta mudança remonta à metade dos anos
1980, com a declaração do presidente Reagan de "guerra contra as
drogas", enquanto que na Grã-Bretanha a mudança mais pronunci-
ada ocorreu em 1993, quando o governo de John Major abandonou
a abordagem da "punição na comunidade" em favor de uma política
mais dura, mais populista, baseada no slogan de que a "prisão fun-
ciona". Anteriormente a estas mudanças de ênfase, as respostas
oficiais ao problema eram mais caracterizadas por medidas de adap-
tação, usualmente desenvolvidas por decisões administrativas
seqüenciais e de baixa visibilidade, em vez de alardeadas políticas
sujeitas ao debate político ou público. A seguir, descrevo as seis
principais formas de adaptação - a racionalização da justiça, a
comercialização da justiça, a restrição da criminalização, a rede-
finição do êxito, a concentração sobre as conseqüências e a
redistribuição das responsabilidades - para depois sublinhar o
novo estilo de discurso criminológico que as acompanhou e
viabilizou.
Profissionalização e racionalização da justiça
Para os administradores encan·egados das agências do siste-
ma penal, as altas taxas de criminalidade trouxeram consigo os
problemas imediatos do aumento no número de processos, combi-
nado com a restrição do orçamento, bem como com as crescentes
ansiedades relacionadas à perda da confiança pública. Dos anos 1960
em diante, tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha, os crescentes ní-
veis de criminalidade aumentaram o "volume de trabalho" do sistema
penal, com a aguda intensificação do número de crimes rep01tados à
polícia, acusações formuladas, processos julgados e criminosos puni-
dos. Este fato sozinho significava que as agências do sistema penal
tinham que expandir sua capacidade e transformar suas práticas, de
maneira a fazer face ao novo volume de trabalho. Todavia, o aumento
do crime também foi visto como o resultado do fracasso do controle
do c1ime e, sobretudo, da atuação policial, judicial e prisional. Isto
levou, nas últimas duas décadas, a ref01mulações freqüentes e às ve-
zes radicais dos objetivos e prioridades destas agências.
A polícia tem estado na linha de frente desta batalha perdida.
Foi particularmente assim nos EUA, nos anos 1960 e 1970, quando
254
crescentes ocorrências de crimes, alegações de corrupção generali-
zada e uma série de distúrbios urbanos e manifestações políticas se
combinaram para reduzir a legitimidade da polícia, rurnstando-a ain-
da mais para dentro dos conflitos sociais que perturbavam as cida-
des18. Os departamentos policiais, em todos os EUA, reagiram a
esta crise através da profissionalização, do investimento em equipa-
mentos e em sistemas de informação disponibilizados pela Law
Enforcement AdministrationAuthority (LEAA) e através da adoção
de estilos novos, mais reativos, de "policiamento 190", viabilizados
pelo telefone e pelo automóveL O resultado -rapidamente copiado
pelas forças policiais britânicas - foi uma força policial motorizada,
retirada do envolvimento comunitário (para evitar acusações de
corrupção), e focada em prover uma "resposta rápida" aos chama-
dos emergenciais do público. A conseqüência acidental foi que as
relações entre a polícia e o público ficaram mais distantes e mais
restritas, particularmente nas comunidades pobres ou de minorias.
Sem a cooperação do público, a habilidade da polícia de erradicru· o
crime se reduziu. Sem a presença de policiais em patrulhamento a
pé pelas ruas, o medo do crime aumentou. Sem as relações infor-
mais com moradores e líderes comunitários, a polícia ficou menos
sensível às nuanças da vizinhanças, menos reativa aos desejos dos
seus membros e menos capaz de manter a ordem e prevenir o
crime. Nos anos 1980, os equívocos deste estilo distante de atua-
ção policial estavam perfeitamente aparentes e, hoje em dia, um
retorno ao "policiamento comunitário" é visto como uma espécie
de panacéia.
Se a polícia inicialmente reagiu ao dilema através da
profissionalização, uma reação mais geral foi a tentativa de racio-
nalizru· a prática da justiça criminal. Já em 1967, o relatório da US
President's Commission já enfatizava esta solução e encorajava as
agências da justiça criminal a assumir uma atitude mais informada
e sistemática quanto ao seu trabalho. A demanda disseminada pela
redução da discricionariedade e pela adoção de um processo
decisório mais formalizado, mais inteligível - demanda endossa-
da por uma série de decisões da Suprema Corte - deu mais ímpeto
a esta transformação. Dos anos 1970 em diante, verificou-se um
grande esforço, liderado pela LEAA, no sentido de aumentar a
eficiência dos processos criminais, através da introdução de meca-

255
nismos de infonnação mais sistemáticos, da administração do volu-
me de entrada dos processos e de novas estratégias de integração e
monitoramento das instâncias 19 .
Deste momento em diante, os custos da justiça criminal se
tornaram um tema explícito do debate político, no qual se coloca-
ram em cena, abertamente como jamais visto, questões obtusas
sobre os recursos e o racionamento da justiça. Os custos compara-
tivos de medidas penais se transformaram em elemento significa-
tivo no momento de decidir qual adotar, notadamente quando ne-
nhuma delas parecia especialmente eficaz. Os anos 1970 e 1980
testemunharam uma série de iniciativas governamentais
implementadas para substituir as condenações às onerosas penas
de custódia por sanções mais baratas, tais como o livramento condici-
onal intensivo, as casas de albergado e as colônias de tratamento20 .
Estas considerações sobre custos também serviram para outras fllll-
ções da justiça eliminai. A acusação ficou mais seletiva; os gastos dos
tdbunais foram reduzidos com a mudança para ritos sumários (a in-
trodução de aplicação imediata de multas, a redução de julgamento
pelo júri, medidas altemativas etc.) e as agências do livramento con-
dicional desenvolveram fórmulas de seleção para a finalidade de as-
segurar que, entre seus clientes, estivessem incluídos apenas aqueles
que coniam algum risco de serem submetidos a custódia21 .
Em certo nível, esta era uma óbvia resposta organizacional
e se equiparava aos padrões de reforma encontrados em outras
áreas da administração pública22 . Mas também registrava - e
pela primeira vez - uma percepção oficial sobre o sistema de
justiça criminal, que o via primordialmente não como a
materialização da justiça ou como solução para o problema do
crime, mas, ao revés, como um problema por si só. Deste ponto
em diante, podem-se encontrar os rastros da percepção estabelecida
de que oprocesso criminal é caractedzado pela arbitradedade e pela
injustiça, com uma tendência a gerar custos incontroláveis e resul-
tados indesejados, bem como a cdar riscos e perigos para o público
que deve proteger. "Domesticar o sistema" - seus custos, seus po-
deres discricionários, sua capacidade de expor o público a perigo -
veio a integrar o projeto governamental neste setor23 .
A sistematização da justiça criminal - usando tecnologia da
informação, modelos operacionais e processamento infmmatizado
256
de dados, assim como novos mecanismos de promoção da coor-
denação interagências - foi um importante elemento dos anos
1980 e 1990. Foi entusiasticamente patrocinado pelo governo
central na Grã-Bretanha e pelos governos estaduais e federal nos
EUA, freqüentemente contra a vontade das próprias instituições,
que se preocupavam em preservar a autonomia decisória e a in-
tegridade institucional das quais haviam desfrutado até então. Na
extensão com que foi aplicada - o que varia muito, dependendo
do lugar - esta sistematização permitiu uma dose maior de plane-
jamento central e de controle, assim como aumentou a capacida-
de do governo de perseguir objetivos políticos comuns a todo o
sistema.
Uma vez instituídas as tecnologias de informação e práticas
gerenciais, a reflexividade e o autocontrole se tornaram partes
normais das operações do sistema. A pergunta de Martinson - "o
que funciona?" - veio assombrar as práticas da justiça criminal,
não como uma crítica à reabilitação, mas como um aspecto roti-
neiro de toda e qualquer prática da justiça criminal. Durante os
anos 1980, seu reflexo mais importante foi sobre o controle dos
funcionários da justiça criminal, que passaram a ficar sujeitos a
crescentes níveis de monitoramento, avaliação e supervisão. Nos
anos 1990, a nova infraestrutura de computadores, de tecnologia da
infonnação e do processamento detalhado de dados propiciou uma
nova geração de controle do crime "inteligente", na medida em
que a polícia, magistrados e autoridades prisionais começaram a
usar computadores e dados para nortear suas decisões e inter-
venções.
A comercialização da justiça
O movimento no sentido da formalização e da confiabilidade
administrativa foi distendido pelas refonnas gerais do serviço públi-
co dos anos 1980. Na maior parte daquela década, a justiça criminal
permaneceu ao abrigo dos cortes de gastos públicos que estavam
sendo impostos em outras áreas, mas o expansivo ethos da gestão
empresarial, do controle financeiro e do governo custo/benefício
era inescapável. Na metade dos anos 1980, as agências da justiça
criminal, nos EUA e na Grã-Bretanha, tinham desenvolvido um ethos
empresarial, que enfatizava a economia, a eficiência e a efetividade
no emprego de recursos. O esforço continuado de "reinventar o
257
governo" levou ao desenvolvimento de "indicadores de performance"
claramente especificados, com base nos quais as atividades de de-
terminada instituição deveriam ser medidas, assim como a uma ên-
fase no planejamento estratégico, no gerenciamento de produção
em massa, na transferência orçamentária e na responsabilidade fi-
nanceira no seio das agências 24 . Com o tempo, estas novas práticas
afetaram não apenas a administração das instituições, mas também
sua missão. Agentes do livramento condicional, administradores dos
presídios e chefes de polícia descobriram que suas novas responsa-
bilidades orçamentárias e deveres de prestação de contas faziam a
diferença no momento de se reportarem aos seus funcionários, ao
público e a seus clientes. As reformas propiciaram o surgimento de
novos padrões de confiabilidade, estabeleceram fórmulas para o
processo decisório e ocasionaram um afrouxamento gradual da
discricionariedade e da autonomia dos agentes estatais.
O aspecto mais notável deste novo ethos empresarial foi orá-
pido processo de privatização e de comercialização que tomou as-
sento na justiça criminal, primeiramente nos EUA e, da metade da
década de 1980 em diante, na Grã-Bretanha. Funções específicas
da justiça criminal, que vão desde o serviço de apresentação de réus
presos até a construção e gerenciamento de prisões, passando pela
supervisão da liberdade vigiada e serviços carcerários especializados,
foram paulatinamente confiados a empresas privadas, tais corno
Securicor, Group 4, Wackenhut e a Correction Corporation of
America. Aquelas funções um dia exercidas exclusi varnente pelo
Estado foram crescentemente delegadas às empresas privadas, "com
fins lucrativos", às quais se permite perseguir interesses comerci-
ais, desde que obedeçam aos contratos celebrados com o governo e
submetam-se às várias formas de monitoramento e regulação 25 . As
privatizações, que correspondem precisamente aos princípios ideo-
lógicos e fiscais do Estado neoliberal, foram impostas pelo governo
central e pelos legislativos estaduais, apesar da forte oposição por
parte dos profissionais da área penal, especialmente das associações
de classe, que temiam a deterioração das condições de trabalho re-
sultante da competição e da austeridade financeira. Porém, à medida
que a população carcerária se expandiu nos anos 1980 e 1990, a
confiança do governo no setor privado cresceu, principalmente por
causa da velocidade corporativa e do baixo custo com os quais as

258
empresas privadas conseguiam erguer novos estabelecimentos
prisionais.
Mais recentemente, e por razões similares, a disposição em
combinar provisões públicas e privadas começou a afetar o polici-
amento, tendo em vista que a força policial pública tem sido enco-
rajada a reconhecer e cooperar com seus correspondentes da fran-
camente ascendente vigilância privada26 . O acolhimento do setor
privado está fadado a gerar conseqüências desastrosas, à propor-
ção que começa a transformar o perfil do campo do controle do
crime, estabelecendo novos interesses e incentivos, criando
novas desigualdades de acesso e de provisão e facilitando um
processo de expansão penal que, de outra forma, tal vez fosse
mais contido.
Se técnicas de gestão empresarial forneceram à justiça cri-
minal formas de reagir aos problemas de custo e sobrecarga, o
modelo privado também pautou a reação do sistema aos pro-
blemas de legitimidade e de confiabilidade pública. O ethos da
"relação com o cliente", que é tão comum no setor comercial e
tão central na gestão empresarial, começou a influenciar as prá-
ticas das agências governamentais também. Organizações tais corno
a polícia e os tribunais, que concebiam sua missão como sendo a
salvaguarda do "interesse público" - de maneiras amplamente defi-
nidas pelas próprias organizações- buscaram se tornar mais reativas
às vozes e preferências dos públicos específicos a que servem, bem
como agir para atender a estas preferências. Elas redefiniram sua
missão para servir aos "consumidores" privados, tais corno asco-
munidades locais, as empresas, as vítimas e seus parentes e, ocasi-
onalmente, até mesmo os internos e seus parentes. A exemplo de
outras organizações do setor público, as burocracias do sistema de
justiça criminal foram obrigadas a se tomar mais reativas, mais ligadas
aos interesses dos consumidores individuais e dos acionistas, e menos
seguras quanto ao que constitui o interesse público27 .
Restrição da criminalização
Em face das altas taxas de criminalidade e da sobrecarga de
trabalho, as agências da justiça criminal começaram a limitar as de-
mandas impostas a si por intermédio de vários mecanismos que
efetivamente "restringiram a criminalização"28 . O efeito redutor foi

259
alcançado, seja pela filtragem das ocorrências e dos casos feita
fora do sistema, seja pela diminuição do grau de criminalização e
punição de certas condutas. Este processo ocorre "abaixo da
superfície" da justiça criminal, sendo, pois, menos visível, e tipi-
camente se dá por tempo determinado e em razão de meras or-
dens administrativas, bem distante dos olhos da imprensa e dos
políticos 29 . Esta adaptação estratégica (que se iniciou mais cedo
nos EUA, nos anos 1960, e cerca de uma década depois na Grã-
Bretanha) só foi possível pela coincidência das preocupações com
contenção de gastos com uma percepção climinológica que via a
criminalização de pequenos delitos como algo necessariamente
estigmatizante e contraproducente. (Como veremos, cerca de vinte
anos depois, esta combinação conveniente de interesses orça-
mentários e políticos seria rompida por uma criminologia muito
diferente, que considerava totalmente desastroso o afrouxamen-
to da repressão à pequena ctiminalidade, e não uma questão de bom
senso).
O processo de descriminalização funcionou em inúmeros con-
textos, desde as decisões tomadas pelos policiais nas ruas até a
uniformização de procedimentos judiciais, desenvolvidos para guiar
as decisões sobre a apresentação de acusações formais e a aplica-
ção de livramento condicional e liberdade vigiada. Estes padrões
decisórios eram tipicamente informais e "internos", embora ocasi-
onalmente fossem resultado da ação legislativa, como aconteceu
com as reformas dos juizados de adolescentes, que consagraram a
informalização e a desinstitucionalização 30 . Freqüentemente, as
mudanças foram escalonadas, tornando-as difíceis de serem detec-
tadas de fora, salvo por comparação retrospectiva ou por estudos
específicos.
A aplicação de multas administrativas pela polícia e o em-
prego de vias alternativas à acusação formal; penalidades fixas
e audiências sumárias para delitos até então submetidos a pro-
cesso integral; a descriminalização de condutas que antes eram
rotineiramente levadas à justiça criminal; a aplicação de mul-
tas para delitos que um dia chegaram a ensejar condenações
com direito a livramento condicional- todas estas medidas gera-
ram o efeito prático de restringir a criminalização31 . Assim tam-
bém as emergentes políticas relacionadas ao policiamento, que
260
rechaçavam o dispêndio de recursos investigativos para a apura-
ção de crimes com baixa probabilidade de detecção ou de pouca
repercussão junto ao público 32 . Este afrouxamento da
criminalização em seus estágios iniciais perdurou por muitos
anos antes de se tomar publicamente visível, transformando-se
em assunto de alguma polêmica. Entretanto, a despeito das crí-
ticas formuladas pelas vítimas e da emergência de idéias de
"tolerância zero", a prática de estabelecer prioridades e de ra-
cionalizar a atividade policial continua até hoje 33 .
Apesar destas tentativas de restringir a criminalização, ovo-
lume de trabalho da justiça criminal continuou a se expandir du-
rante a maior parte do período em exame. Ao longo dos anos 1970,
isto se deu por causa do marcante aumento no número de ocorrên-
cias policiais que, evidentemente, haviam disparado o processo de
início. Na Grã-Bretanha, a expansão continuou nos anos 1980 e
1990, embora o número de pessoas condenadas tenha diminuído
após 1982 em razão da redução da atuação policial e do emprego
de meios alternativos à acusação formal 34 . Nos EUA, a situação
era bem diferente. Lá, a sobrecarga de trabalho foi produzida não
pelos crimes contra o patrimônio - cujo número, inclusive, dimi-
nuiu após o início dos anos 1980 - ou por crimes violentos, cuja
ocorrência flutuou em (altos) patamares, mas sim pela guerra con-
tra as drogas, que produziu números expressivos de prisões e de
processos criminais ao longo dos anos 1980 e 1990. Esta "guerra",
veremos, foi o resultado de uma dinâmica bem distinta dentro da
política de controle do crime.
Em boa parte dos últimos vinte anos, temos experimentado
uma situação que é mais complexa e mais contraditória do que su-
gere uma análise convencional que se preocupe apenas com a ex-
pansão do Estado de justiça crin:iinaL Durante este período, as agên-
cias estatais da justiça criminal aumentaram constantemente de ta-
manho, em termos de produtividade e no número de casos proces-
sados. Na mesma época, até bem pouco tempo atrás, elas têm redu-
zido a extensão com que realmente processam e punem crimes de
escassa gravidade. O recente foco na prisão de autores de crimes
leves e as abordagens do tipo "vidraças quebradas" e "tolerância
zero" de Nova Iorque constituem exceção pública daquele movi-
mento, mas mesmo lá ficou claro que muitos infratores presos
261
não são posteriormente processados e punidos. Fazê-lo signifi-
caria aumentar gastos que já são grandes, mesmo para as políti-
cas de lei e ordem de Nova Iorque, administrada pelo prefeito
Giuliani35 .
Redefinindo o êxito
As agências estatais também reagiram às críticas reduzindo as
expectativas, redefinindo publicamente seus objetivos e buscando
modificar os critérios de julgamento do êxito e do fracasso. Em vez
de contestar as acusações de ineficácia, as agências da justiça cri-
minal assumiram um realismo autoconsciente na forma de se repre-
sentarem a si mesmas. Ao longo das duas últimas décadas, elas
começaram a admitir suas falhas, a enfatizar os obstáculos que afe-
tam o sistema e a apontar para os limites de sua capacidade de
controlar o crime.
A polícia ainda se jacta de resolver crimes graves e de trazer
os piores criminosos a julgamento, e recentemente alguns departa-
mentos de polícia norte-americanos empenharam toda a sua habi-
lidade em tornar as ruas mais seguras através de ações vigorosas
contra cri:r..1es mais leves e pequenos distúrbios. Porém, eles geral-
mente mantêm baixas expectativas quanto ao controle do que cha-
mam de crimes "aleatórios" e "de ocasião", que, aliás, constituem
a vasta maioria de comportamentos criminosos36 • De maneira si-
milar, autoridades prisionais se concentram cada vez mais na ha-
bilidade de manter os criminosos seguramente custodiados (pu-
nindo-os e neutralizando-os, por conseqüência) e são muito mais
comedidas quanto à capacidade de produzir efeitos reabilitadores 37 .
As agências de livramento condicional e de serviços comunitários
fazem o mesmo, sublinhando sua habilidade de prover formas ba-
ratas de vigilância e de controle comunitário e olvidando sua tra-
dicional função de reabilitação em sua retórica pública38 .
Ao mesmo tempo, o discurso destas agências busca transfe-
rir a responsabilidade pelos resultados para seus "clientes", exi-
mindo, assim, a instituição de qualquer falha. O prisioneiro, ago-
ra, é responsável por fazer uso de qualquer oportunidade reabili-
tadora que a prisão venha a oferecer; o condenado em livramento
condicional ou prestando serviços comunitários deve assinar um
contrato aceitando a responsabilidade por aderir a um tipo de con-

262
duta prescrito; a polícia enfatiza que é ircumbência da vítima prote-
ger seu patrimônio, permanecendo alerta e evitando situações peri-
gosas39.
Cada vez mais, as instituições procuram ser avaliadas com
base em objetivos internos, sobre os quais têm total controle, em
lugar de objetivos sociais, tais como reduzir a criminalidade, pren-
der criminosos ou reabilitar os prisioneiros, que envolvem muitas
contingências e incertezas. Os novos indicadores de performance
são idealizados para medir os "outputs" em vez dos resultados: o
que a instituição faz, e não o que ela alcança. Os regimes prisionais
são avaliados em termos do número de horas que os internos gas-
tam com atividades "úteis" e não em termos da capacidade de re-
duzir a reincidência40 . As forças policiais pedem para ser julgadas
de acordo com o número de policiais em serviço, o número de
chamadas de emergência atendidas, a velocidade de resposta aos
chamados ou outras medidas de "economia e eficiência", e não
pelos efeitos que tais ações efetivamente tiveram sobre as taxas de
criminalidade ou em termos de condenações41 .
Da mesma maneira, a mudança na política de sentenciamento,
voltando-se às penas de prisão, às diretrizes padronizadas de con-
denação e à "pena justa" - quaisquer que sejam as outras dinâmi-
cas que talvez tenham contribuído para este desdobramento - tem
o efeito de atrair a atenção especialmente sobre o processo e não
sobre os resultados. A partir do momento em que o sentenciamento
se torna a mera aplicação de penas previamente estalelecidas, ele
perde muito do seu propósito social. Ele se distancia do enc;_uadramento
antigo, no qual as condenações visavam um resultado ::-ocial - a
redução do crime através de penas individualizadas - e se aproxima
de um enfoque onde o objetivo principal (ajustar a pena ao crime)
está bem dentro da capacidade das cortes e muito menos propenso
a "falhar" 42 . As mesmas ambições modestas e despreocupações
para com propósitos sociais positivos reforçam o novo significado
do encarceramento e do livramento condicional, ambos cada vez
mais representados como modalidades de punição e de
neutralização, em vez de medidas transformadoras.
As instituições do sistema penal, ao longo das duas últimas
décadas, têm buscado ser mais autocontidas, mais direcionadas
internamente e menos comprometidas com propósitos sociais ex -
263
ternamente definidos, e até certo ponto lograram êxito em estabele-
cer esta postura mais defensiva. Todavia, enquanto o governo cen-
tral tem freqüentemente encorajado e conspirado para implantares-
tas missões institucionais mais reduzidas e realistas, parte do preço
do fracasso consiste em que a estas agências não mais é franqueada
a autonomia profissional e a discricionariedade que lhes foram ou-
trora confiadas. Agências como a polícia, o serviço de livramento
condicional e as prisões, que um dia desfrutaram de poderes estatu-
tários e responsabilidades, bem como de orçamentos anuais e um
certo grau de liberdade para cumprir suas funções, agora são objeto
de critérios e diretrizes impostos pelo Estado, assim como são
monitorados de perto e exaustivamente inspecionados, de maneira a
assegurar que estejam de acordo com o figurino. A tendência de
longo prazo voltada à autonomia profissional e à delegação de pode-
res penais foi abuptamente revertida; o Estado começou a controlar
mais de perto as agências e funcionários do sistema penal43 .
Por intermédio destas várias formas, as agências de con-
trole do crime começaram a representar a si próprias de manei-
ras que sugerem um figurino mais modesto e comedido. A pro-
messa de assegurar a "lei e ordem" e a segurança para todos os
cidadãos é agora substituída por uma promessa de processar as
ocorrências ou de aplicar punições de modo justo, eficiente e
econômico. Há uma emergente distinção entre a punição de
criminosos, que permanece como função do Estado (e se torna,
uma vez mais, símbolo significativo do poder estatal), e o con-
trole do crime, que está cada vez mais "além do Estado" em
importantes aspectos. Como sua capacidade de controle é con-
siderada limitada e contingente, o poder punitivo estatal assume
uma relevância e prioridade política renovadas.
Concentrar-se nas conseqüências
Outro mecanismo emergente de adaptação é a tendência das
agências estatais de dar mais prioridade ao tratamento das conse-
qüências do crime do que às suas causas. Na política criminal
oficial e nas prioridades das autoridades policiais, verificou-se uma
nova ênfase em enfrentar os efeitos danosos do crime - dando apoio
às vítimas, mitigando os custos do crime, lidando com o medo pú-
blico e reduzindo a insegurança, em lugar do enfrentamento do
próprio crime44 . Este é, em certa medida, o resultado previsível do
264
agravamento no crime enquanto problema social. À medida que seus
efeitos se espalham, o mesmo ocorre com as demandas por ajuda
da parte dos mais afetados. No entanto, isto também representa
uma mudança estratégica da parte das agências da justiça criminal,
cujo velho discurso de tratar o problema em sua raiz parece cada
vez mais vazio.
Vítimas
Isto pode ser visto com clareza no emergente campo da
"política das vítimas". Desde o século XIX, têm havido clamo-
res direcionados ao governo e a suas agências no sentido de
atuar mais em favor da situação das vítimas de crimes. Como
os críticos observaram, o papel da vítima na justiça criminal
era comumente reduzido aos de denunciante e testemunha, em
vez de ser parte ativa no processo, ressaltando-se que os danos
sofridos pelas vítimas normalmente passavam despercebidos ou
não eram ressarcidos. Enquanto o sistema, assim se dizia, ex-
cedia-se em atenção e cuidados para com o acusado, buscando
entender suas necessidades e reabilitá-lo, ele tinha pouco a ofe-
recer às vítimas, que não eram nem consultadas, nem informa-
das sobre os caminhos que seus casos estavam trilhando. Até
recentemente, a resposta padrão do sistema a esta crítica era de
que os interesses da vítima se confundiam com o interesse pú-
blico e que, no longo prazo, as políticas correcionalistas esta-
tais atenderiam tanto o interesse público quanto o do criminoso.
Desde os anos 1970, esta resposta viria a ser considerada re-
ticente e excessivamente lacônica, assim como de credibilidade muito
duvidosa. Com o incentivo forçado de políticos eleitos, as agências
do sistema penal desenvolveram uma relação completamente dife-
rente com as vítimas individuais e também com os movimentos
organizados de vítimas, cuja presença na cena política ficou cada
vez maior, nos anos 1980 e 1990. Em frontal contraste com a polí-
tica anterior, as vítimas se tomaram o grupo favorecido, e servir as
vítimas passou a ser um dos pontos da nova missão de todas as
agências do sistema penal.
Como veremos, os políticos desenvolveram sua própria - e
bastante punitiva- concepção de como agir no interesse das víti-
mas, mas a abordagem das agências da justiça criminal ficou centrada

265
em objetivos mais modestos e reativos. Desde os anos 1980, as
agências policiais, acusatórias e judiciais incorporaram às suas polí-
ticas o constante préstimo de informação às vítimas, o tratamento
mais sensível, o oferecimento de apoio e a recompensa pelos danos
sofridos. Novas formas de justiça restitutiva foram criadas na for-
ma de condenações a indenização, de mediação entre criminoso e
vítima e de programas de tratamento aos condenados que enfatizavam
o impacto do crime sobre as vítimas. Às vítimas foram conferidos
inúmeros direitos, bem como participação ativa no processo. Estes
variaram de inovações incontroversas, tais como salas separadas
nos tribunais, a medidas polêmicas, tais como "o depoimento da
.vítima" e as "opiniões das vítima", oferecidas ao juiz, no momento
da prol ação da sentença, e aos conselhos penitenciários, no momen-
to de decidir sobre a libertação do preso. Destas muitas maneiras, o
sistema penal buscou se reinventar na forma de prestador de servi-
ços para as vítimas, em detrimento de ser um serviço público de
aplicação da lei45 .
Medo do crime
A exemplo das vítimas com seus sofrimentos, o medo do cri-
me também tem sido fenômeno concomitante ao crime. Até recen-
temente, assumia-se, sem muita discussão, que medidas de com-
bate ao crime também constituíam o melhor meio de reduzir o
medo e a insegurança associados a ele. Sem dúvida, este pensa-
mento político teria continuado, caso os esforços de reduzir o crime
tivessem demonstrado alguma dose de sucesso. Todavia, no final
dos anos 1970 e início dos 1980, quando esses esforços visivel-
mente fracassaram, inúmeros estudos sugeriram que o medo públi-
co do crime é um fenômeno mensurável e até certo ponto indepen-
dente dos níveis de criminalidade e de vitimização. Quando uma
série de pesquisas policiais sugeriu que algumas medidas, embora
falhassem em reduzir o crime, geravam o efeito de reduzir os níveis
registrados de medo e insegurança, abriu-se o caminho para um novo
objetivo político. Dos anos 1980 em diante, os departamentos policiais
e as autoridades públicas, nos EUA e na Grã-Bretanha, começaram a
desenvolver manuais e práticas que consideravam a redução do medo
como objetivo político distinto e autônomo46 .
Os primeiros debates sobre o problema tentavam sugerir que
boa parte do medo era irracional e poderia ser afastado através de
266
uma dose de informações confiáveis. Assim, na metade dos anos
1980, o I·Jome Office embarcou numa campanha publicitária que
usava dados do British Crime Survey para mostrar que o medo era
freqüentemente equivocado ou, ao menos, exagerado quando co-
tejado com o risco real de vitimização 47 . Esta abordagem
desmistificadora rapidamente seria vista como equivocada, razão
pela qual os esforços subseqüentes não subestimariam a força e a
significação dos medos públicos, por maior que fosse o hiato entre
estes medos e os riscos estatísticos envolvidos. Portanto, a polícia
reintroduziu o patrulhamento nas ruas e entusiasticamente patro-
cinou os mecanismos de vigilância comunitária, a todo tempo ci-
ente das pesquisas que mostravam que tais medidas eram muito
mais eficazes em tranquilizar o público do que propriamente em
reduzir as taxas de criminalidade. Nos anos 1990, o estilo "quali-
dade de vida" de policiamento foi amplamente adotado não por-
que se acreditasse ser exitoso - isto veio depois - mas porque era
considerado popular e capaz de mudar a percepção pública de for-
ma positiva.
Realocando e redefinindo responsabilidades
Ao longo dos anos 1970 e 1980, as autoridades governamen-
tais foram percebendo progressivamente que o controle do crime
estava "além do Estado" em dois aspectos importantes e distintos.
Primeiro, na direta proporção com que as instituições da justiça cri-
minal são severamente limitadas em termos da capacidade de con-
trolar o crime, não podendo, assim, manter a "lei e ordem" por si
sós 48 ; mas também na medida em que existem mecanismos de con-
trole do crime operando de fora dos limites do Estado e de forma
relativamente independente das suas políticas. O esforço de analisar
estes limites, primeiramente pela reforma das instituições estatais e
depois pela mobilização e utilização de mecanismos não-estatais,
tem sido a base das mais invadoras políticas do período recente.
A comunidade como a solução
Uma solução recorrente para o problema das limitações do
Estado de justiça climinal tem sido o esforço de realocar a tarefa de
controle do crime para "dentro da comunidade". Desde pelo menos
os anos 1960, autoridades da justiça criminal, ecoando a opinião de
acadêmicos e reformistas, vêm propugnando que a missão seria

267
mais facilmente realizada fora das instituições estatais, no que eles
chamam de ambiente "comunitário". Com base nas críticas às ins-
tituições totais, em argumentos sobre os perigos da estigmatização e
da exclusão e na crença nos poderes curativos das relações comuni-
tárias, houve uma série de iniciativas reformistas que identificam a
comunidade como o local adequado para o controle do crime e para
a justiça criminal. Desde os anos 1960, vemos o desenvolvimento de
um programa comunitário após outro- conecionalismo comunitário,
policiamento comunitário, cumprimento da pena na comunidade, pre-
venção comunitária do crime, acusação comunitária, justiça comunitá-
1ia49 . "A comunidade" se tomou a solução poli valente para todo e qual-
quer problema dajustiça criminal.
Muitas destas soluções, como, por exemplo, o cmTecionalismo
comunitário e a "punição na comunidade", consistiam na aplica-
ção de políticas estatais, por funcionários estatais, sob os
auspícios de organizações estatais. "Comunidade", nesta ins-
tância, significava meramente "não-prisional" ou "fora das pri-
sões ou reformatórios". Podiam ser menos onerosas do que a
institucionalização, menos estigmatizantes e menos suscetíveis
de privar o criminoso de trabalho e do apoio familiar, mas eram,
rigorosamente, sanções estatais aplicadas com pouca ou nenhu-
ma participação de atores não-estatais. Outras medidas utiliza-
vam a "comunidade" de maneira mais inovadora e radical, bus-
cando angariar participação e responder às preocupações dos
i-esidentes e empresas locais. Policiamento comunitário e pre-
venção comunitária do crime, particularmente, almejavam
arregimentar o apoio voluntário de agências, empresas comer-
ciais e residentes, otimizando os esforços de controle do crime
por parte destes atores e alinhando-os aos esforços das agências
oficiais de controle do crime.
Iniciativas relacionadas ao policiamento comunitário começa-
ram a se desenvolver do final dos anos 1960 em diante, em boa
medida como corretivo para os estilos reativos, remotos, de polici-
amento que haviam sido adotados no início daquela década. Fre-
qüentemente disparado por distúrbios urbanos ou pela ruptura das
relações entre polícia e moradores de vizinhanças habitadas por mi-
norias, o policiamento comunitário tentou promover a imagem da
polícia, através do trabalho mais próximo e responsável junto às
268
organizações comunitárias e seus líderes. Policiais nas ruas, víncu-
los com as escolas, consultas ao público e até mesmo um certo
grau de confiança local - todos estes eram vistos como métodos
importantes de assegurar um nível adequado de cooperação do
público e de evitar a construção de uma imagem da polícia como
sendo um exército hostil de ocupação.
Nos anos 1980, o policiamento comunitário havia se trans-
formado em retórica disseminada e estava sendo usado para
descrever toda e qualquer prática policial, por mais díspares
que fossem 50 . Atrás desta cortina retórica, contudo, de fato
houve novidades significativas no policiamento contemporâ-
neo. A mais importante destas foi o crescente esforço empe-
nhado em alcançar e atrair as atividades de atores não-estatais,
ligando suas práticas informais de controle do crime aos meca-
nismos formais da polícia. Esta política de parceria, viabiliza-
da e encorajada pelos dispositivos de prevenção comunitária
do crime inspirados nos mesmos princípios, ocasionou o surgi-
mento de uma estratégia autoconsciente que se tornou o aspec-
to primordial da política governamental, nos anos 1980 e 1990,
tanto na Grã-Bretanha quanto nos EUA.
A estratégia de responsabilização
A tentativa de estender o alcance das agências estatais através
da vinculação com a atividade de atores do "setor privado" e "da
comunidade" pode ser descrita como uma estratégia de responsabi-
lização51. Ela envolve uma forma de pensamento e uma variedade
de técnicas designadas para mudar a maneira pela qual os governos
agem em relação ao cr~.ne. Em vez de tratar o crime diretamente
com o uso da polícia, dos tribunais e da prisão, esta abordagem
promove um novo tipo de ação indireta, na qual as agências estatais
incentivam a ação de atores e de organizações não-estatais. O resul-
tado pretendido é uma rede otimizada de controle do crime mais
ou menos direcionada, mais ou menos informal, que complementa
e estende o controle do crime formal do Estado de justiça crimi-
nal. Em lugar de imaginar que podem monopolizar o controle do
crime ou de exercitar seus poderes soberanos independentemen-
te dos poderes de outros atores, as agências estatais agora adotam
uma relação estratégica com outras forças de controle social. Elas
buscam construir alianças mais amplas, arregimentando os pode-
269
res "governamentais" de atores privados, adaptando-os para o
fim de controlar o crime 52 .
Esta é a essência da nova abordagem relativa à prevenção do
crime desenvolvida pelos governos dos EUA e (especialmente) da
Grã-Bretanha ao longo das duas últimas décadas. É também um
elemento crucial nas políticas de policiamento comunitário pro-
priamente ditas. As expressões-chave da nova estratégia são "ali-
ança", "parceria público-privada", "cooperação interagências",
"abordagem multiagências", "ativação das comunidades", criação
de "cidadãos ativos", "ajuda para auto-ajuda" e a "co-produção de
segurança". O objetivo principal é pulverizar a responsabilidade
pelo controle do crime entre as agências, organizações e indivídu-
os que operam fora do Estado de justiça criminal e persuadi-los a
agir condizentemente53 .
Esta missão "responsabilizadora" é muito dificultada pela
preexistente divisão de trabalho no campo e pela consagrada
crença de que o Estado é a única e exclusiva autoridade respon-
sável pelo controle do crime. Como Engstad e Evans anotam, é
difícil convencer organizações privadas a assumirem responsa-
bilidade por aquilo que continuam a ver como função pública.
É muito improvável que o grupo ou corporação aos quais esteja
sendo transferida a responsabilidade imediatamente reconheçam
que sua propriedade ou suas operações estejam gerando um óbi-
ce substancial aos recursos policiais, aceitem o fato de que pos-
suem um dever, compatível com sua competência, para com o
controle do crime e empreendam ações adequadas. Em nosso
modo de ver, o fracasso de muitos (... ) esforços de controlar o
crime pode ser atribuído à ausência de instrumentos que assegu-
rem que os membros da comunidade aceitem e definitivamente se
desincumbam de suas responsabilidades54 .
Redistribuir a tarefa de controlar o crime, atribuir responsabi-
lidades a outros, multiplicar o número de autoridades efetivas, for-
mar alianças, arranjar as coisas de modo que as iniciativas de con-
trolar o crime sigam os comportamentos criminógenos - estes são
os novos objetivos institucionais radicais. O Estado de justiça crimi-
nal está, pelo menos nesta área, repartindo seu estilo "soberano" de
governar, através de ordens verticais, e desenvolvendo uma forma

270
de comandar próxima daquela descrita por Michel Foucault como
"governamentalidade" - uma modalidade que envolve a participação
de outros, incentivos e a criação de novas maneiras de coopera-
ção55 . Como o Estado leva a cabo esta nova missão de provocar a
ação de outros? Como o Estado pode ter êxito em "estimular novas
formas de comportamento", em "deter hábitos estabelecidos" e em
;manjar "a cotTeta distribuição das coisas" 56 ?
O primeiro passo é "identificar as pessoas ou organizações
que tenham competência para efeti varnente reduzir as oportunida-
des criminosas e(.,,) para dimensionar tanto os que tenham ares-
ponsabilidade de fazê-lo como também se esta responsabilidade
pode ser reforçada" 57 . Vários alvos e técnicas de persuasão são
identificados por esta análise. Amais simples, mas também a mais
abrangente, é a campanha publicitária, que visa atingir o público
como um todo. Tais campanhas, veiculadas por intermédio de anún-
cios televisivos ou panfletos distribuídos nas residências e empre-
sas, retratam o cidadão como vítima potencial, criam novo senso
de dever, conectam a população às agências de controle do crime e
ajudam a mudar a mentalidade e as práticas daqueles envolvidos 58 .
Objetivos semelhantes são perseguidos pela polícia, que oferece o
apoio de especialistas e encoraja os grupos de auto-ajuda forma-
dos por moradores e cidadãos, auxiliando-os a idealizar projetos de
prevenção do crime, tais como "vigilância do quarteirão" ou "vigi-
lância do bairro", intensificando sua consciência do crime e estrei-
tando sua relação com as autoridades públicas.
Os governos britânico e norte-americano estabeleceram inú-
meras organizações não-governamentais ou quase-governamentais,
como o National Crime Prevention Council, o Crime Concem UK e
o Safer Cities. Seus recursos são voltados à construção de projetos
de prevenção do crime e de "segurança comunitária" e, mais gene-
ricamente, ao estabelecimento de estruturas locais que ajudarão a
combater o ciime através da cooperação interagências e da ativação
de iniciativas privadas. Dentro das agências estatais, mudanças
organizacionais foram introduzidas para viabilizar tais finalidades,
incluindo-se a promoção de planejamento estratégico, cooperação
interagências e o compartilhamento de decisões entre departamen-
tos que anteriormente operavam apartadamente.

271
A mensagem recorrente desta abordagem é que o Estado, so-
zinho, não é e nem pode ser responsável por prevenir e controlar o
crime59 . Pela primeira vez desde a formação do moderno Estado
de justiça criminal, os governos começaram a reconhecer uma ver-
dade sociológica básica: os mais importantes processos de produ-
ção da ordem e conformidade são processos visceralmente soci-
ais, situados dentro das instituições da sociedade civil, e não fruto
da ameaça incerta de sanções legais. O projeto de estabelecer um
monopólio estatal soberano começou a abrir caminho para o claro
reconhecimento da natureza dispersa e pluralista do controle soci-
al efetivo. Nesta nova visão, a tarefa do Estado é multiplicar e
apoiar estes inúmeros atores e processos informais, em vez de atri-
buir o controle do crime a uma única agência especializada60 .
A nova estratégia do Estado não é comandar e controlar, mas
persuadir e alinhar, organizar, assegurar que outros atores façam a
sua parte. Proprietá.tios, moradores, lojistas, industriais, engenhei-
ros, autoridades escolares, funcioná.t-ios de transportes, emprega-
dores, pais, cidadãos - a lista é interminável- devem ser levados a
reconhecer sua responsabilidade nesta matéria. Eles devem ser con-
vencidos a exercer seus poderes informais de controle social e, se
necessário, a modificar sua práticas habituais, de modo a ajudar a
reduzir as oportunidades criminosas e ape1feiçoar o controle do cri-
me. As autoridades governamentais estão, neste campo político como
em muitos outros, operando aquém e além das fronteiras que sepa-
.ravam o âmbito privado do público, buscando renegociar a questão
do que é ou não propriamente função estatal. Assim fazendo, elas
também estão começando a desafiar a verdade central do modernis-
mo penal, que encarava o controle do crime como tarefa para espe-
cialistas, mais bem tratada se concentrada numa instituição estatal
diferenciada.
Às vezes, os efeitos desejados são alcançados por uma sim-
ples exortação, como no caso em que as montadoras de automó-
veis são convencidas a construir mais mecanismos de segurança
em seus produtos, o,.u no caso em que companhias seguradoras são
incentivadas a conceder descontos para pessoas que residam em
locais nos quais exista o programa de vigilância do bairro. Às ve-
zes, a persuasão pode assumir a forma de uma análise de interes-
ses, como, por exemplo, na hipótese em que lojistas e empresas
272
sejam cientificadas de dados estatísticos sobre o medo do crime e
como isto afeta seus negócios, ao fito de encorajá-los a adotar prá-
ticas de segurança mais apuradas e a cooperar em empreendimen-
tos conjuntos. Para este fim, todas as autoridades locais na Grã-
Bretanha foram obrigadas a realizar "auditorias do crime" no final
dos anos 1990. Cada vez mais, a ação preventiva se realiza através
do estabelecimento de estruturas cooperativas, multiagências, que
agregam instituições públicas e privadas com o objetivo de iniciar
projetos locais ou de trabalhar através de Business lmprovement
Districts 61 , que têm a tranqüilidade e a segurança da comunidade
como instrumento para alavancar os interesses comerciais 62 .
Às vezes, são propostos métodos mais coativos. Sugere-se
reiteradamente, por exemplo, que o governo aplique o princípio do
"poluidor pagador" para atividades criminogênicas. Isto talvez faça
com que as lojas ajam mais no sentido de evitar furtos e outros delitos
co1Telatos, através da ameaça de transferir os custos dos processos
por ftuio ou roubo para os próprios lojistas. Ou talvez trate os produ-
tores de "produtos visados" como sendo parcialmente responsáveis
pelos custos dos crimes que eles regulannente propiciam63 . Estas pro-
postas mais duras - que visam a diluir os custos como também ares-
ponsabilidade pelo controle do crime- se casariam pe1feitamente com
as políticas neoliberais de privatização e de co1ie de gastos públicos,
mas até o momento não safram do estágio de meras sugestões ou
ameaças subliminares. Há uma relutância real em punir os "fornecedo-
res" das oportunidades criminosas, que contrasta frontalmente com o
entusiasmo com o quàl seus "consumidores" são punidos.
A motivação por trás destas estratégias de "responsabilização"
não é o puro e simples alívio de funções estatais problemáticas,
embora a divisão de responsabilidades seja claramente uma estraté-
gia atraente para as autoridades da justiça criminal que buscam evi-
tar a culpa pelas limitações de suas instituições. Nem é simplesmen-
te a "comunitarização" ou a "privatização" do controle do crime,
conquanto o desiderato de reduzir os gastos públicos certamente
seja um fator e um dos efeitos desta estratégia consista em estimu-
lar o mercado já crescente da segurança privada. Ao contrário de
tudo isto, a motivação é uma nova concepção de exercício de poder
no campo do controle do crime, uma nova forma de "governar à
distância" que introduz princípios e técnicas de governo que, a esta
273
altura, já estão bem sedimentadas em outras áreas da política eco-
nômica e social 64 .
As novas criminologias da vida cotidiana
Um dos acontecimentos mais significativos das duas últimas
décadas foi a emergência de um novo estilo de pensamento crimi-
nológico que tem atraído o interesse das autoridades. Com o ocaso
da racionalidade correcionalista na justiça criminal e tendo em vista
o dilema do controle do crime, as autoridades têm, cada vez mais,
descoberto uma afinidade eletiva entre suas próprias preocupações
práticas e este novo gênero de discurso criminológico. O novo gêne-
ro - que tal vez possa ser chamado de criminologias da vida cotidiana
- mal chama a atenção pública, mas tem funcionado como sustentácu-
lo cmcial para políticas mais recentes. Pode-se encontrar vestígios dele
não apenas na estratégia de responsabilização e no novo aparato de
prevenção do crime, mas também em recentes políticas de intimidação
penal e de neutralização. Esta nova forma de pensamento rapidamente
se tomou uma das tendências principais da criminologia oficial, mol-
dando as políticas governamentais e as práticas institucionais tanto
nos EUA quanto na Grã-Bretanha. A despeito de seu caráter eminente-
mente prático e não-teórico, esta nova forma de pensamento expressa
com precisão algumas das maneiras precípuas através das quais o campo
do controle do crime está sendo reconfigurado.
As novas criminologias da vida cotidiana são um conjunto de
enquadramentos teóricos cognitivos, que incluem a teoria da ati vi-
dade de rotina, o crime como oportunidade, a análise do estilo de
vida, a prevenção do crime situacional e algumas versões da teoria
da escolha racional 65 . A característica marcante destas várias
criminologias é que cada uma delas parte da premissa de que o
crime é um aspecto normal, lugar-comum, da sociedade moderna.
O crime é tido como uma forma generalizada de comportamento,
rotineiramente produzida pelas características normais da , ida eco-
nômica e social na sociedade contemporânea. Cometer um crime,
pois, não requer nenhuma motivação ou predisposição especial, ne-
nhuma anormalidade ou patologia. Em contraste com criminologias
anteriores, que partiam da premissa de que o crime era um desvio
da conduta normal, civilizada, explicável em termos de patologia
individual ou de socialização deficiente, as novas criminologias vêem
o crime como decorrência natural da interação social normal, expli-
274
cável por padrões médios de motivação. O crime é visto como um
risco rotineiro a ser calculado, ou um acidente a ser evitado, em vez
de uma aben-ação moral que precisa ser explicada especificamente.
No passado, a criminologia oficial costumava ver o crime retros-
pectivamente e individualmente, de maneira :1 isolar o ato ilícito indi vi-
dual e atribuir-lhe pena ou tratamento. As novas criminologias tendem a
ver o crime prospectivamente e em termos agregados, para o fim de
calcular os riscos e de estabelecer medidas preventivas. Esta mudança
de perspectiva é significativa em suas conseqüências intelectuais e prá-
ticas, a partir do momento em que descortina novas maneiras de enten-
der e de agir em relação ao crime. Mas também é significativa em
termos institucionais, como sinal de um campo em transformação,
porque ela consagra uma visão do problema do crime que não é mais
aquela do Estado de justiça criminal. Até o ponto atual, e a despeito dos
argumentos intelectuais em sentido contrário, a criminologia oficial (e
boa parte da criminologia acadêmica) via o problema do crime na pers-
pectiva do sistema de justiça criminal, insistia em considerá-lo um pro-
blema relacionado a criminosos individuais e tendia a representar os
criminosos como sendo apenas as pessoas presas. As novas
criminologias rejeitam este ponto de vista institucional, vendo o cri-
me de uma perspectiva social e econômica que nada deve ao pro-
cesso de aplicação da lei. Assim, a aprovação oficial das novas
criminologias da vida cotidiana representa uma importante mudança
de perspectiva da parte de autoridades da justiça criminal e sugere o
poder decrescente da epistemologia institucional que, anteriormen-
te, cunhou o pensamento e a ação neste campo.
Esta nova abordagem criminológica surge num contexto em
que altas taxas de criminalidade são aceitas e os dados sobre víti-
mas ratificam a normalidade do crime. Seu surgimento é um teste-
munho da decrescente credibilidade do Estado de justiça criminal
ou, ao menos, do mito de sua capacidade soberana de controlar o
crime por si só. Muitas das prescrições práticas que defluem destas
teorias são destinadas não às agências do Estado, tais como a polí-
cia, os tribunais e as prisões, mas para além do aparato estatal, para
as organizações, instituições e indivíduos da sociedade civil. As teo-
rias simplesmente admitem que o Estado de justiça criminal possui
capacidade limitada e, portanto, olham para o uni verso da vida diária
como o locus adequado de ação.

275
Além de conferir poder para agências distintas, as novas teori-
as identificam alvos diferentes e novos modos de tratá-los. Seus
programas de ação são direcionados não a todo e qualquer crimi-
noso individual, mas à conduta de vítimas potenciais, a situações
criminogênicas e àquelas rotinas da vida diária que involuntariamente
criam op011unidades criminosas. Onde uma velha criminologia se
preocupava em disciplinar delinqüentes ou puni-los, a nova abor-
dagem identifica oportunidades criminosas recorrentes e busca
administrá-las através do desenvolvimento de controles
situacionais, que as tornará menos tentadoras ou vulneráveis. Si-
tuações criminogênicas, "produtos visados", "locais visados" -
estes são os novos objetos de controle. A premissa é a de que "a
ocasião faz o ladrão", e não o oposto. Tal abordagem promete
maximizar o retorno aos esforços de prevenção, a partir do momen-
to que se concentra naqueles elementos da equação criminosa que
são mais identificáveis, fixos e previsíveis. Como Nigel Walker ob-
serva, "criminosos potenciais são numerosos e nem sempre reco-
nhecíveis. Diferentemente, pelo menos sempre sabemos qual patri-
mônio proteger e onde este se encontra" 66 .
Esta é, de fato, a "criminologia do fornecedor", que altera os
riscos, redistribui os custos e cria desincentivas. Ela visa cercar de
controles a rede de interações normais, em lugar de suspender tais
controles acima desta, na forma de comandos soberanos. Em vez
de confiar na ameaça incerta de penas intimidatórias ou na duvi-
dosa habilidade da polícia de prender criminosos, ela engendra um
conjunto mais mundano de ref01mas, idealizadas não para mudar as
pessoas, mas para redesenhar as coisas e modificar as situações.
Milhares de pequenos ajustes são exigidos. Substituir o dinheiro em
espécie por cartões de crédito. Instalar travas nos volantes dos au-
tomóveis. Contratar funcionários para os estacionamentos e usar
circuito integrado de câmeras para monitorar as ruas das cidades.
Coordenar o horário de fechamento de clubes e boates rivais. Esca-
lar ônibus e estabelecer rotas noturnas na ida e volta dos jogos de
futebol. Aconselhar os lojistas sobre segurança. Incentivar as auto-
ridades locais a coordenar as várias agências que enfrentam o cri-
me. Lembrar os cidadãos da necessidade de proteger seu patrimô-
nio e de vigiar seus bairros.

276
Em contraste com a criminologia correcionalista, esta aborda-
gem não mais considera o Estado e suas agências como os atores
principais ou mais próximos do negócio do controle do crime. Quanto
à pessoa objeto de criminalização, não se trata mais do socialmente
desajustado carente de assistência, mas sim do consumidor oportu-
nista, cujas atitudes não podem ser mudadas mas cujo acesso aos
bens de consumo pode ser barrado. Este personagem criminal - às
vezes descrito como o "homem situacional" - se ressente de limites
morais definidos ou de qualquer controle interno efetivo, a par da
capacidade de cálculo racional e de uma saudável vontade de pra-
zer67. Nas mãos de outros autores, isto pode parecer uma forma de
crítica cultural ou um comentário sobre os usos e costumes
consumistas contemporâneos. Porém, não há qualquer ironia na fria
prosa dos novos textos criminológicos.
Se o efeito principal destas criminologias tem sido o de esti-
mular novas formas de ação que vão "além do Estado", elas tam-
bém ajudaram a reviver alguns modos mais tradicionais de ação.
Discursos criminológicos são sempre polivalentes em sua relação
com a ação prática, de maneira que não deve nos surpreender que
as criminologias da vida cotidiana tenham influenciado a política em
mais de um sentido. Além de serem utilizados em estratégias de
prevenção afinadas com as novas condições da pós-modernidade,
estes discursos igualmente desempenharam um papel na ressureição
de velhas estratégias que tendem a ignorar tais condições e a confiar
no tradicional poder punitivo do Estado soberano. O retrato cru da
rnoti vação humana desenvolvida pela teoria da escolha racional tem
ajudado os simpatizantes da prevenção situacional do crime a mudar
o foco do controle do crime para longe da disposição individual,
voltando-o à oportunidade situacional. Mas esta concepção de es-
colha racional também traz implicações concernentes à eficácia da
ameaça penal que a tem tomado útil numa estratégia bem diferente e
muito menos inovadora: o renovado uso de sentenças penais duras
corno instrumento para deter a conduta criminosa68 .
As teorias de escolha racional revivem urna explicação mera-
mente utilitária da conduta criminosa, que foi há muito descartada
por teorias positivistas e sociológicas. Onde a criminologia
con-ecionalista considerava a conduta criminosa como produto de
influências sociais e conflitos psicológicos, e reputava o criminoso
277
como sujeito complexo, não totalmente senhor do seu comporta-
mento, o modelo de escolha racional se refere ao ato criminoso
como conduta calculada, utilitária, resultante de um processo ativo
de escolha individual. Este modelo representa o problema do crime
como uma questão de oferta e demanda, com a pena operando como
se fosse um mecanismo de regulação do preço69 . Os criminosos
são vistos como oportunistas racionais ou contumazes, cuja condu-
ta é in-egularmente sofreada ou impulsionada de acordo com a ma-
nipulação de incentivos- abordagem que faz das penas intimidatórias
um instrumento evidente de redução do crime. Onde a criminologia
coffecionalista tratava o crime como problema de dimensões soci-
ais, temporais e psicológicas, o modelo da escolha racional trata-o
como uma questão de preço.
O corolário penalógico disto é que a preocupação com as "cau-
sas primárias", "problemas sociais" e "necessidades individuais" é
substituída por uma atenção mais singular à "precificaçãó" e ao
esforço de assegurar que as conseqüências penais do crime sejam
suficientemente rápidas, certas e severas· para operarem como
desincentivo efetivo. Depois de mais de um século de pesquisa em
ciência social, que complicou e refinou a compreensão acerca do
crime; depois de um conjunto acumulado de evidências para de-
monstrar que atos criminosos são tipicamente cercados e produzi-
dos por relações sociais e psicológicas definidas, o modelo da es-
colha racional, abruptamente e sem maior cerimônia, vau-eu para
longe todas aquelas descobertas empíricas complexas. Com a cer-
teza de filósofos acadêmicos e modelos econômicos, tal tendência
insiste em que o crime é, afinal de contas, simplesmente uma ques-
tão de escolha individual- ou, de qualquer forma, pode ser tratado
como se fosse 70 . Seria errado dizer que a criminologia da escolha
racional causou a mudança no sentido do endurecimento das pe-
nas e do aumento no uso de ameaças intimidatórias. Mas é certa-
mente plausível argumentar que este tipo de razão tem funcionado
para legitimar estas políticas mais severas, dando-lhes um verniz
de respeitabilidade. A política criminal, tal qual a assistência
previdenciária aos pobres, redescobriu a disciplina do mercado e a
pureza dos desincentivas coercitivos.
No contexto político reacionário dos anos 1980 e 1990, com
seu ceticismo para com programas previdenciários e sua ênfase na
278
responsabilidade individual, a simplicidade de uma explicação que
lança a culpa sobre o criminoso, passa por cima de eventuais escu-
sas, ignora as causas primárias e vê a punição de criminosos como
a resposta apropriada tem um apelo popular e político que vai muito
além do seu mérito criminológico. É como se conferir atenção cri-
minológica ao criminoso e desenvolver análises admiráveis sobre
a etiologia do crime subitamente passasse a ser moralmente dele-
tério, assim como politicamente inaceitável. Este retrocesso cultu-
ral contra aquilo que Ronald Reagan chamou de "teorias sociais
soft" e "apologias pseudo-intelectuais ao c1ime" é memoravelmente
resumido pela perspectiva reacionária de James Q. Wilson, ao insistir
em que "más pessoas existem. Nada funciona, salvo separá-las das
pessoas inocentes" - postulado que simultaneamente reafirma o
mais simplório senso comum, desiste de programas sociais e de
reabilitação e rejeita todo projeto de uma criminologia socialmente
científica71 . O fato de que tal posição possa ser sustentada por
um proeminente analista político de Harvard e recorrentemente
festejada por seu mérito atesta o clima político e cultural que se
formou em tomo da política de controle do crime, nos anos 1980.
Resposta<; de não-adaptação: negação e atuação simbólica
Estas políticas de intimidação e as teorias utilitárias que as ra-
cionalizavam integraram uma segunda linha de desenvolvimento
político, mais politizada, populista e regressiva. Até aqui, descrevi
as várias respostas de adaptação para o que denominei de "novo
dilema" do controle do crime na sociedade pós-moderna. Indepen-
dentemente do que se pense a respeito destas respostas e de quais
sejam os problemas que elas suscitam, tais estraté_gias são caracte-
1izadas pelo alto nível de racionalidade e criatividade administrativa.
As agências envolvidas, ao longo do tempo, reconheceram o dilema
com os quais se depararam (ou pelo menos uma versão dele) e
reagiram aos seus desafios através da revisão de suas práticas, da
renegociação de suas relações externas e da construção de novas
instituições. Este movimento, porém, representa apenas uma face
de uma resposta profundamente contraditória. A medida que a má-
quina administrativa estatal levou a termo o planejamento de estraté-
gias e a adaptação às limitações e ao ambiente em transformação, a
máquina política do Estado se engajou numa espiral de fuga e nega-
ção de forma quase histérica, no sentido clínico do termo 72 .
279
Esta reação política ficou mais pronunciada à medida que as
condições do discurso político mudaram ao longo do tempo. No
curso dos anos 1980 e 1990, a formulação de políticas nesta área
se tornou mais intensamente politizada, mais carregada de perigos
políticosª e mais sujeita ao escrutínio da imprensa e do público.
Quanto maior o interesse eleitoral do crime e da punição, mais os
partidos da situação e de oposição competiram entre si para obter
a credencial de ser duro com o crime, preocupado com a seguran-
ça pública e capaz de restaurar a moralidade, ordem e disciplina, em
face das co1Tosi vas mudanças sociais da pós-modernidade. Enquanto
os pilares neoliberais da privatização, da economia de mercado e da
contenção de gastos pautaram boa parte da reforma administrativa
que o governo impôs, nos bastidores, às agências da justiça crimi-
nal, foi a bem diferente agenda neoconservadora que ditou a face
pública da política criminal. Em vez de reconhecer os limites do
Estado soberano e de adaptar-se a eles, a agenda política de medidas
de grande repercussão consistia em "restaurar a confiança pública"
na justiça criminal, afirmando, ao mesmo tempo, os valores da dis-
ciplina moral, da responsabilidade individual e do respeito pela auto-
ridade. Na política criminal, como na política previdenciária, o im-
perativo residia na reimposição de controle, normalmente através de
meios punitivos. Em ambos os casos, a população apontada como a
mais necessitada de controle era composta de pobres beneficiários
da rede de seguridade social, negros habitantes dos centros urbanos
e jovens marginalizados da classe trabalhadora.
Desprezando as evidências de que o crime não reage rapida-
mente a punições duras, a novos poderes policiais ou ao maior re-
curso ao encarceramento, as legislaturas têm reco1Tentemente ado-
tado uma postura punitiva de "lei e ordem". Assim agindo, elas ne-
gam rotineiramente as limitações já reconhecidas por suas próprias
administrações. Longe de adaptarem-se aos limites do poder estatal
neste domínio, elas buscam expandir e reafümar estes poderes atra-
vés do comando soberano. Dos muitos exemplos desta tendência,
o mais claro é a mudança de opinião do Home Secretary britânico,
Michael Howard, que em 1993 introduziu novas leis sobre aplica-
ção de penas privativas de liberdade com a declaração de que a
"prisão funciona!" - poucos meses depois que seu próprio gover-
no havia declarado publicamente que o "encarceramento é uma

280
maneira carn de tomar as pessoas más ainda piores" 73 . O resultado
deste endosso oficial ao poder punitivo e da negação de suas limita-
ções tem sido o agudo e continuado aumento da população carcerária
britânica de 1993 até os dias atuais. Mas este exemplo é pálido, se
comparado com a política do governo norte-americano de "guerra
contra as drogas", que transformou profundamente a atividade de
aplicação da lei nos EUA, assim como inundou o distendido sistema
caxcerário com um número desproporcional de negros pobres. Esta
fútil e muitíssimo onerosa tentativa de modificar um padrão de com-
portamento disseminado e profundamente entranhado através da pena
tem todos os sintomas de um quadro em que um Estado soberano
lida com suas limitações na forma da recusa de sua existência. Mo-
tivada pela necessidade política urgente de "fazer alguma coisa"
decisiva sobre o crime, num cenário em que o governo federal pos-
sui poucos poderes (outras áreas de controle do crime são preno-
gativas dos Estados-membros e das autoridades locais), a guena
contra as drogas foi a tentativa do Estado norte-americano de "sim-
plesmente dizer não". Desprezando as provas de que os níveis de
consumo de drogas já estavam em declínio, de que o uso de drogas
não se altera com a ameaça da pena, de que a criminalização traz
consigo suas próprias patologias (notada.mente violência nas ruas e
desrespeito pelas autoridades) e de que declarar guerra contra as
drogas significa, na verdade, declarar guerra contra as minorias, o
governo norte-americano resolveu declarar tal guerra e insistir nela,
apesar todas as indicações de fracasso 74 . Por quê? Porque os gru-
pos mais afetados carecem de poder político e são amplamente ti-
dos como perigosos e indesejados; porque os grupos menos afeta-
dos podem ficar certos de que algo está sendo feito e que a situação
de ausência ou descumprimento da lei não é tolerada; porque pou-
cos políticos estão dispostos a se opor a uma política, na medida em
que, ao fazê-lo, há pouca vantagem a ser obtida.
Outras medidas legislativas podem ser descritas como uma
forma de atuação simbólica - significa dizer que se engajam
numa maneira impulsiva e irrefletida de ação, evitando o reco-
nhecimento realista de problemas subjacentes, sendo que a pró-
pria reação provê alívio e gratificação. Muitas das leis aprova-
das nos anos 1990- as leis de Megan, Three Strikes, estatutos de
predadores sexuais, a reintrodução das prisões para crianças,

281
registro de pedófilos e penas privativas de liberdade obrigatórias
- assumem este cariz e talvez sejam mais bem compreendidas
nestes termos. Tais medidas são instituídas para simbolizarem
ações expressivas, catárticas, de mal}eira a censurar o crime e
confortar o público. Sua capacidade de controlar o crime futuro,
conquanto ruidosamente decantada, é freqüentemente duvidosa
e, em todo caso, menos importante do que sua habilidade imedi-
ata de representar o sentimento público, de proporcionar respos-
tas instantâneas, de funcionar como medida retaliadora cuja vir-
tude é sua própria existência. Estas medidas são tipicamente apro-
vadas no calor da indignação popular em face de crimes violen-
tos marcantes, que envolvem o perturbador e arquetípico cçm-
fronto entre um criminoso perigoso deficientemente controlado
e uma vítima inocente, indefesa, da classe média75 . E porque os
legislativos -particularmente nos EUA- estão em "pé de guerra"
com o crime e exercitam controle direto sobre escalas penais, o
sistem1 está ajustado para produzir uma resposta instantânea.
Do ponto de vista dos atores políticos, as questões mais
sensíveis do realismo penalógico se tornaram considerações se-
cundárias facilmente subordinadas aos fins políticos 76 • Sua pre-
ocupação mais premente é fazer algo decisivo, reagir com efei-
tos imediatos à indignação do público, demonstrar que o Esta-
do está no controle e disposto a usar seus poderes para manter a
"lei e ordem" e a proteger o público cumpridor da lei. Algumas
dessas leis - tais como a reintrodução do acorrentamento cole-
tivo de presos, instituições de tratamento, punições vexatórias e
tentativas de reviver as penas corporais- têm o selo de qualidade
do "feito para a televisão", que trai seu propósito principal77 .
Outras - tais como aquelas sobre penas privativas de liberdade
obrigatórias, sobre sentenciamento e pena de morte expedita -
têm uma qualidade absolutista feita para confortar um público
desconfiado, no sentido de que o sistema não os trairá uma vez
que o caso saia da notoriedade. Um terceiro grupo de leis - tais
como a notificação comunitária, leis contra predadores sexuais,
prisões de segurança máxima, monitoramento eletrônico e a
recriminalizaçãodajustiçajuvenil-envolve consideraçõe~ de segu-
rança pública de duvidosa eficácia e um punitivismo subliminar
que sugere o desprezo completo pelos direitos ou pela humanida-

282
de dos punidos 78 . Tais políticas ficam particularmente ressalta-
das onde uma insegurança mais geral - decorrente da precarie-
dade das relações sociais e econômicas da sociedade pós-mo-
derna - é amplamente experimentada e onde o Estado é conside-
rado fracassado em seus esforços de prover segurança pessoal e
econômica para os principais grupos ~ociais. A política de con-
trole do crime proporciona estas mesmas emoções na popula-
ção-alvo convencional, contra a qual se direciona.
Michel Fouooult, na descrição da execução de Robert Damiens,
em 1757, mostrou com detalhes como punições severas há muito
têm sido utilizadas para reafirmar a força da lei e o mito do poder
soberano 79 . Embora os regimes democráticos atuais não se pare-
çam muito com o de Luís XV, sempre que as autoridades estatais
"guerreiam contra o crime", aumentando os poderes penais para
mandar violadores da lei à morte ou para impor penas de prisão
perpétua, elas estão deliberamente empregando as mesmas táticas
arcaicas. Considere-se isto uma cínica manipulação de emoções
coletivas para obtenção de dividendos políticos ou uma bem-inten-
cionada tentativa de dar expressão democrática ao sentimento pú-
blico, o resultado é o mesmo. A formulação de políticas se toma
uma forma de atuação simbólica que rebaixa as complexidades e o
caráter duradouro do controle do crime efetivo, em favor das grati-
ficações imediatas de uma alternativa mais expressiva80 . A elabora-
ção de leis se toma uma questão de gestos retaliadores, cujo objeti-
vo é o de reconfortar um público preocupado com o tema e de se
alinhar ao senso comum, por mais inadequados que sejam tais ges-
tos para tratar o problema subjacente. Uma mostra de força punitiva
contra os indivíduos é exibida para reprimir qualquer reconheci-
mento da inabilidade estatal de controlar o crime em níveis aceitá-
veis. A disposição de aplicar penas severas a criminosos condena-
dos compensa, magicamente, ô fracasso em prover segurança para
a população em geral.
Não será surpresa observar que os profissionais da justiça cri-
minal são freqüentemente contrários à legislação deste tipo e ten-
dem a diluir seus efeitos no processo de implementação 81 . Medidas
"populistas", "punitivas" (como as leis do Three Strikes e suas pe-
nas privativas de liberdade obrigatórias), que, aprovadas com pou-
co apoio, visam a abolir toda a discricionariedade administrativa,
283
são paiticularmente impopulares e têm motivado uma variedade de
subterfúgios e procedimentos alternativos que permitem aos acusa-
dores e juízes contornar seus mandamentos 82 . Evidentemente, po-
rém, o conflito entre atores políticos e administrativos trabalha em
ambas as direções; representantes eleitos freqüentemente têm rela-
ção muito difícil com as medidas administrativas "de adaptação" já
descritas acima. Ao longo dos anos 1980 e 1990, os governos de
vez em quando se sentiram constrangidos com incidentes ou notíci-
as da imprensa que revelavam a lassidão da polícia em aplicai· a lei,
sentenças lenientes ou decisões de soltura, pouca segurança nas
prisões ou com a libertação de criminosos condenados que em se-
guida voltam a delinqüir (ocaso de Willie Horton é paradigmático,
neste sentido). Estratégias como "restrição da criminalização" ou
"redefinição do êxito", por mais razoáveis que pareçam aos profissi-
onais da área, podem escandalizar a imprensa e o público, e
comumente são os representantes eleitos que levam a culpa, e não
os administradores. Alguns dos principais desdobramentos dos anos
1980 e 1990- tais como leis sobre sentenciamento, a "prisão funci-_
ona" e "tolerância zero" - constituíram tentativas políticas de reco-
brar a confiança pública, em seguida ao descrédito das estratégias
de adaptação, transformadas em fonte de constrangimento políti-
co83. E muitas das medidas de endurecimento dos anos 1990 têm
se preocupado em reverter medidas policiais de adaptação (deriva-
das dos cortes orçamentários) silenciosamente adotadas nas déca-
das anteriores 84 .
É aqui que vemos com maior clareza o mito do Estado sobera-
no e sua resiliência em face de toda a prova em sentido contrário.
Pai·a os atores políticos, confrontados com as pressões imediatas
da indignação pública, com a crítica midiática e os desafios eleito-
rais acerca do tema criminal, é extremamente difícil desprezar a
responsabilidade total pelo controle do crime, justificando-se nos
limites do Estado. Poucos governos fizeram isto publicamente ou
por período prolongado. Confrontados com estas pressões, a
atratividade essencial da resposta "soberana" ao crime (e, sobretu-
do, das leis retaliadoras que criam sanções penais mais severas ou
maiores poderes policiais) é que esta pode ser representada como
uma intervenção imediata e de reforço da autoridade. Tal ação dá a
impressão de que algo está sendo feito - aqui, agora, rápida e deci-

284
si vamente. Como a decisão de declarar guerra, a decisão de aplicar
penas severas ou de estender os poderes policiais exemplifica o
modo soberano de ação estatal 85 . Não há necessidade de coopera-
ção ou negociação, não se questiona se "funcionará" ou não. Tais
medidas são atos soberanos, que se espera angariem amplo apoio
popular e pouca oposição política organizada. O resultado acu-
mulado de tais atos soberanos na Grã-Bretanha, nos anos 1990,
foi um aumento sem precedentes na quantidade de pena aplicada
e no aumento das taxas de encarceramento. Nos EUA, foi o
surgimento de encarceramento em massa, em escala jamais tes-
temunhadas antes numa democracia moderna, bem como a
revivificação de um "Estado matador", comprometido com a
aceleração das execuções de um número cada vez maior de cri-
minosos86.
Criminologia e o inconsciente coletivo
Acompanhando estas políticas está um discurso criminológi-
co que se parece bem diferente das criminologias da vida cotidia-
na, vistas anteriormente. Enquanto estas "normalizam" os crimino-
sos, desenhando-os como oportunistas racionais pouco diferentes
de suas vítimas, a criminologia invocada pela estratégia do Estado
soberano é essencialmente diferente. Freqüentemente esgrimida no
rastro de crimes escandalosos (o que significa dizer, casos altamen-
te atípicos que se faz parecerem "totalmente típicos"), está é uma
criminologia que se vale de imagens, arquétipos e ansiedades, e não
de análises cuidadosas e de descobertas científicas. Em sua delibe-
rada intenção de ecoar os receios públicos e as pautas midiáticas, e
seu foco nas ameaças mais preocupantes, ela é, na verdade, um
discurso politizado do inconsciente coletivo, muito embora reclame
para si a virtude de ser realista e consensual, se cotejada com "temias
acadêmicas". Em suas figuras de linguagem e invocações retóricas
típicas, este discurso político se baseia na criminologia arcaica do
tipo cdminoso, do Outro. Às vezes de forma explícita, mais comumente
em códigos, o problema é ahibuído ao comportamento insidioso, imo-
ral, de delinqüentes perigosos, que pertencem tipicamente a grupos
raciais e culturais que guardam pouca semelhança "conosco".
Com este arcabouço de idéias, as políticas de controle do cri-
me podem invocar imagens do "criminoso", retratado (ele mais do
que ela) como profundamente anti-social. Criminosos individuais
285
são vistos como "criminosos de carreira", "viciados em drogas",
"vilões" e "desordeiros" com poucas virtudes e diminuto valor soci-
al. Alguns - particularmente "pedófilos", "predadores sexuais" ou
"superpredadores" juvenis - são evocados de maneiras que mal são
humanas; suas condutas são essencializadas como "más" ou "per-
versas" e fora da possibilidade de compreensão humana87 . Comu-
nidades inteiras são anatematizadas por discursos sobre uma
"subclasse" indesejada, enredada em cultura e modo de vida estra-
nhos e ameaçadores.
Estas não são pessoas reais ou mesmo categorias criminológ~-
cas. São figuras imaginárias que funcionam como símbolos num
processo político que explora aquilo que Mary Douglas chama de
os "usos políticos do perigo". Os riscos que elas representam, as
angústias que evocam, o senso de impotência que motivam, tudo
funciona para reforçar a sentida necessidade de imposição da or-
dem e da importância de uma resposta estatal forte. Tampouco
estas figuras são representativas dos perigos reais que o crime indu-
bitavelmente envolve, pois o inventário de riscos gira, quase que
exclusivamente, em torno no crime de rua, esquecendo-se dos séri-
os danos causados por empresas criminosas, criminosos de colari-
nho branco ou mesmo motoristas embriagados. Cada figura é, ao
revés, selecionada por sua utilidade como "inimigo adequado" -
utilidade não apenas para o Estado de justiça cdminal em sua versão
soberana, mas também para uma política socialmente conservado-
ra, que enfatiza a necessidade de autoridade, valores familiares e a
ressureição da moralidade tradicional88 .
Nesta retórica inflamada e nas políticas reais que dela decor-
rem, os criminosos são tratados como espécimes diferentes de in-
divíduos violentos, ameaçadores, por quem não podemos ter ne-
nhuma solidariedade e para quem não há meio efetivo de ajuda.
Explicações biológicas e genéticas para o crime e para a violência
sempre fizeram parte do repertório criminológico, mesmo no con-
texto do previdenciarismo penal, mas nos anos 1980 e 1990 elas
se tornaram mais proeminentes no discurso público e em setores
da academia - o exemplo mais eloqüente é o best seller de Wilson
e Herrnstein, intitulado Crime and Human Nature. Estas teorias
reducionistas certamente proporcionaram apoio para uma crimino-
logia do Outro, assim como alimentaram debates públicos sobre os
286
supostos vínculos entre raça e crime. Porém, mais importante foi o
que se pode chamar de explicações "culturalistas" do Outro estra-
nho - explicações que assumiam que os criminosos nasceram na
"cultura da dependência" da "subclasse", que se ressentem de qual-
quer capacidade para o trabalho e de valores morais e que são liga-
dos aos hábitos do uso de drogas, do crime e da fraude
previdenciária89 . Nestas teorias, a realidade e a humanidade de cri-
minosos individuais são substituídas por uma categoria imagética
oriunda de filmes de terror, como quando o presidente Reagan invo-
cou "a face severa, que encara sem parar - uma face que pertence
a uma aterradora realidade do nosso tempo: a face do predador
humano ... nada na natureza é mais cruel ou mais perigoso" 9º . O
público sabe-ninguém precisa lhe contar-que estes "superpredadores"
e criminosos multirreincidentes são jovens do sexo masculino, inte-
grantes de minorias, aprisionados no submundo do crime, das dro-
gas, das famílias destruídas e da dependência aos programas
previdenciários. A única resposta prática e racional para estes tipos,
tão logo pratiquem um crime, se não antes, é "retirá-los de circula-
ção" para a proteção do público. Muitas das políticas dos anos re-
centes - penas privativas de liberdade obrigatórias, neutralização, a
revivificada pena de morte - são feitas para fazer precisamente isto
e um pouco mais.
A caracterização criminológica do "pedófilo" é sintomática de
forma diferente. Hoje em dia, na Grã-Bretanha e nos Estados Uni-
dos, este tipo de criminoso é objeto da obsessiva atenção da mídia e
da discussão política, de forma bastante desproporcional, se levada
em consideração a freqüência com que tais cdmes ocorrem ou a
quantidade de dano que produzem, uma vez comparados com for-
mas mais estruturais de lesões ou de negligência, tais como a pobre-
za infantil, assistência médica deficiente ou espancamento por parte
dos pais. O pedófilo é representado tipicamente como perigoso,
vigoroso, insondável- uma criatura infensa a reforma, que consti-
tui grave risco para as nossas vítimas mais inocentes, mais vulnerá-
veis: nossos filhos. Como a maioria dos perigos do mundo moder-
no, o pedófilo transita de forma invisível no nosso ambiente diário,
mantendo sua "alteridade" escondida por trás de sua aparente nor-
malidade. Uma vez identificado, ele deve ser marcado e retirado do
convívio social ou continuamente monitorado. Esqueça-se que tal

287
processo de estigmatização contribui para o problema, ou que pre-
visões de perigosidade futura são notoriamente inconfiáveis: estas
são hesitações próprias de uma época mais inocente. Dados os nos-
sos compromissos culturais - nossa inflamada sensibilidade para
com riscos criminais, nossa obsessiva urgência em administrá-los,
nossa reduzida preocupação para com as liberdades de qualquer um
considerado perigoso - a escamoteada natureza da alteridade do
criminoso nos deixa mais determinados a agir com base em qual-
quer evidência que tenhamos. A quimérica obscuridade da diferença
criminal, junto com a assunção de que tais pessoas são, de fato,
diferentes, é o que guia a preocupação em marcar aqueles que te-
nham "se revelado". É o que deixa as pessoas e formuladores de
políticas prontos para usar quaisquer sinais que estejam à mão -
sejam antecedentes criminais, sejam estilos de comportamento, seja
tão-somente a cor da pele de uma pessoa.
As contradições da criminologia oficial
Considerando-se todo o espectro do discurso governamental
sobre o crime - não apenas o testemunho de representantes elei-
tos, mas também o das agências administrativas- vê-se que o dis-
curso oficial é estruturado sobre um mal-resolvido conjunto de
conflitos e tensões. Cada vez mais, nos anos 1980 e 1990, os go-
vernos se ampararam em crenças criminológicas que, vistas con-
juntamente, são bem esquizofrênicas. No nível das agências indi-
viduais e dos departamentos governamentais, estas contradições são
vistas como embates entre atores diferentes, entre diferentes níveis
da organização e entre diferentes formas de conceber os problemas.
Mas no nível do Estado como um todo e do seu impacto sobre o
campo do controle do crime, o resultado é um conjunto de políticas
cada vez mais dicotômicas, polarizadas e esquizofrênicas.
Por trás destas políticas e práticas contraditórias, existem
enquadramentos criminológicos diametralmente opostos entre si,
em aspectos cruciais. Existe uma criminologia do Eu, que caracte-
riza o criminoso como consumidores n01mais, racionais, assim como
nós; e existe uma criminologia do Outro, do excluído ameaçador,
do estranho, do marginalizado, do revoltado. Uma é invocada para
banalizar o crime, para mitigar os medos desproporcionais e para
promover ação preventiva. A outra funciona para demonizar o cri-
minoso, para expressar simbolicamente os medos e ressentimentos
288
populares e pru:a promover apoio ao poder punitivo estataL A exclu-
ída fronteira situada entre estes dois pólos é, precisamente, a outro-
ra dominante criminologia previdenciarista, que retratava o crimino-
so como desfavorecido ou deficientemente socializado, e atribuía a
responsabilidade ao Estado, em termos de política social como tam-
bém criminal, de tomar medidas positivas de natureza curativa. Esta
velha criminologia social-democrata não desapareceu, nem foi de-
sacreditada cientificamente. No entanto, se tomou paulatinamente
inelevante para os políticos, à medida que estes buscam resolver o
novo dilema do controle do crime e as políticas de reação que se
seguiram no rastro do Estado de bem-estar.
Ao longo das duas últimas décadas, políticas populistas, puni-
tivas e centradas no Estado acompanharam e contraditaram ases-
tratégias de normalizar o crime, responsabilizando outros e restrin-
gindo a criminalização. Enquanto os administradores das agências e
departamentos estatais, assim como as autoridades locais, se ocu-
pavam reduzindo a escala da resposta da justiça criminal ao crime
ou construindo uma nova infraestmtura de "parcerias preventivas",
representantes eleitos e legisladores intensificavam a resposta penal
e promoviam o quanto fosse necessário para uma estratégia de se-
gregação punitiva. Num grupo de cálculos governamentais, influen-
ciado pelo neoliberalismo, altas taxas de encarceramento represen-
tam o desperdício de recursos escassos. Em outro grupo, informa-
do pelas pautas neoconservadoras, tais taxas representam um sím-
bolo positivo da disposição do Estado de usar a força contra seus
inimigos, de expressar o sentimento popular e de proteger o público
através dos meios necessários. A soberania do Estado sobre o crime
é simultaneamente negada e simbolicamente reafirmada. Os limites
da polícia e da pena somente são reconhecidos por uma política
para serem ignorados por outra. Uma estratégia busca construir
instituições mais adequadas às condições da pós-modernidade; a
outra busca estimular os velhos poderes do Estado na tentativa de
superar aquelas mesmas condições. Embora esta contradição seja,
às vezes, racionalizada como uma política de "bifurcação", suas
raízes verdadeiras jazem na ambivalência política que resulta de uma
máquina estatal complexa confrontada por suas próprias limitações 91 .
Adaptação, negação e atuação simbólica. Se estas respostas
ambivalentes ao dilema do controle do crime produziram políticas
289
que, por mais incoerentes que fossem, se ajustaram admiravelmen-
te bem na moldura mais ampla da política econômica e social con-
temporânea, isto não se deu graças a um milagroso sistema de
compatibilização. É porque o neoliberalismo e o neoconservadorismo
moldaram o ambiente ideológico no qual a justiça criminal tomou
suas decisões, e porque estas correntes políticas gerais são carac-
terizadas pela mesma ambivalência profunda em sua relação com as
realidades e encruzilhadas do mundo pós-moderno.

Notas
1
Para relatos detalhados sobre o processo de formulação de políticas, o
leitor deve consultar os seguintes estudos: a) britânicos: Lord Windlesham,
Responses to Crime, vol. 2: Penal Policy in the Making (Oxford: Oxford
University Press, 1993) e vol. 3: Legislating With the Tide (Oxford: Oxford
University Press, 1996); 1. Dunbar eA. Langdon, ToughJustice: Sentencing
and Penal Policy in the 1990s (Londres: Blackstone, 1998); P. Rock, Helping
Victims of Crime (Oxford: Oxford University Press, 1990); b) norte-
americanos: H. Chernoff et al., "The Politics of Crime", Harvard Joumal of
Legislation (1996), vol.33, pp. 527-79; Lord Windlesham, Politics,
Punishment, andPopulism (Nova Iorque: Oxford University Press, 1998).
2 V., por exemplo, relatos sobre o impacto limitado das leis "three strikes",
fora da Califórnia. J. Austin et ai., "The Impact of 'three strikes and you're
out"', Punishment & Society (1999), vol. 1, nº 2, pp. 163-86.
3
Na Grã-Bretanha, a tendência de aumento da população prisional, ao longo
dos anos 1970 e 1980, ocorreu apesar dos constantes esforços governamentais
em contrário. Em 1993, contudo, ministros de Estado deliberadamente
relaxaram tal esforço, o que resultou num dramático aumento da população
carcerária. Veja-se 1. Dunbar e A. Langdon, Tough Justice. Para análise das
forças que produziram as atuais taxas de encarceramento nos EUA, v. D.
Garland (org.), Mass Imprisonment in the USA (Londres: Sage, no prelo).
4
M. M. Feeley e A. D. Sarat, The Policy Dilemma: Federal Crime Policy
and the Law Enforcement Assistance Administration (Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1980) analisam, em termos similares, o
"dilema político" enfrentado pela política criminal norte-americana nos anos
1960 e 1970. "O governo, hoje, está enredado num dilema político; um
dilema no qual demandas constantes e continuadas por serviços

290
governamentais são contrapostas por uma crescente percepção da
ineficiência e ineficácia de muito do que o governo faz" (p. 11).
5
Para as tendências das taxas de criminalidade nos EUA, na Inglaterra e
no País de Gales, v. Apêndice, figuras 1 e 2. Para as tendências na Escócia,
no mesmo período, v. D. J. Smith, "Less Crime Without More Punishment",
Edinburgh Law Review (1999), voL 3, pp. 294-316. No que tange à Irlanda
do Norte, v. J. Brewer et al., Crime in Ireland, 1945-1995: "Here Be
Dragons" (Oxford: Clarendon Press, 1997).
6 Áreas rurais e prósperas que são, de fato, locais de baixa criminalidade,

freqüentemente se vêem como distinguidas e definidas por este contraste


favorável. Mas também elas são ameaçadas pela incursão de criminosos - a
disseminação do crime da grande cidade. Neste particular, a consciência e o
medo do crime têm responsabilidade maior do que o crime em si mesmo.
Veja-se E. Girling et ai., Crime and Social Change in Middle England
(Londres: Routledge, 2000).
7
A presença constante do crime é enfatizada nos relatórios anuais sobre
crime do FBI, que estampam uma figura do "Relógio do Crime", indicando
a freqüência de crimes cometidos por intervalo de tempo: "um crime violento
a cada 21 segundos", "um crime contra o patrimônio a cada 3 segundos".
US Federal Bureau of Investigation, Crime in the Uníted States: Unifonn
Crime Reports 1987 (Washington DC: Government Printing Office, 1988),
p. 6. Um relatório de 1994 do National Institute of Justice Report começa
com a seguinte frase: "hoje, como em qualquer outro dia deste ano nos
Estados Unidos, 65 pessoas serão assassinadas e 264 mulheres, estupradas.
Na próxima hora, 120 pessoas serão agredidas. No tempo que se leva para
ler este parágrafo - 49 segundos - outra pessoa será roubada", F. E. Earls e
A. J. Reiss, Breaking the Cycle: Predicting and Preventing Crime
(Washington DC: NU, 1994).
8
Veja-se J. Roberts e J. Stalans, Public Opinion, Crime and Criminal Justice
(Nova Iorque: Westview, 1997).
9
President's Commission, The Challenge of Crime in a Free Society
(Washington DC: US Government Printing Office, 1967).
10
V. o relato de Paul Rock sobre o tipo de opinião no Home Office, no início
dos anos 1980: "o diagnóstico foi desolador. A despeito da abundância de
'mi tos e teorias', ninguém parecia saber muito das causas do crime. A maioria
dos crimes resistia ao controle formal. Criminosos resistiam à reabilitação.
O domínio próprio especial do Home Office era a descoberta, prisão e
punição, mas estas atividades pareciam cada vez menos úteis em enfrentar
as causas primárias da criminalidade. A polícia não era considerada efetiva:
o patrulhamento alcançava resultados modestos, as investigações

291
criminais nem sempre eram conduzidas adequadamente e o aumento do
efetivo policial não significou a diminuição de crimes. As prisões não
reformavam os internos. Penas alternativas à privação de liberdade não
esvaziavam as prisões, as sentenças não tinham efeito intimidatório e os
índices de reincidência não melhoraram. Havia, como disse um proeminente
membro do Research and Planning Unit, em 1984, 'urna percepção das
limitações da intervenção convencional através das condenações, do
policiamento e do encarceramento'", P. Rock, Helping Victims, p. 256. O
chefe da Home Office Research and Planning Unít observou, em 1991,
que o Home Office está cada vez mais circunscrito a um "modelo de
administração ( ... ) baseado na noção de que o crime é inevitável em
qualquer sociedade, e de que concebe sua tarefa como administrar, reduzir
ou prevenir a freqüência de crimes, de maneira a tornar sua ocorrência
algo que produza o menor dano possível à sociedade", M. Tuck,
"Community and the Criminal Justice System", Policy Studies, vol. 12,
nº 3 (outono de 1991), pp. 22-7 (citação na p. 23).
11
Hough e Roberts, Public Opinion, Crime and Criminal Justice; D. C.
Anderson, Crime and the Politics of Hysteria (Nova Iorque: Times Books,
1995).
12
Veja-se S. Brody, The Effectiveness of Sentencing: A Review of the
Literature (Londres: Home Office, 1976); J. Burrows e R. Tarling, Clearing
Up Crime (Londres: Home Office, 1982); K. Heal et ai., Policing Today
(Londres: Home Office, 1985); A. Blumstein et ai. (orgs.), Deterrence and
Incapacitatíon: Estímating the Ejfects of Criminal Sanctions in Crime Rates
(Washington DC: National Academy of Sciences, 1978); L. Sechrest et ai.,
The Rehabilitation of Criminal Offenders: Problems and Prospects
(Washington DC: National Academy of Science, 1979); R. L. Martinson,
"What Works? Questions andAnswers in PrisonReform", The Public Interest
(1974), vol. 35; G. L. Kelling et ai., The Kansas City Preventive Patrol
Experiment (Washington DC: Police Foundation, 1974).
13
Home Office, Criminal Justice: A Working Paper (Londres: Home Office,
1986); Commission of the Police of the Metropolis, Report for the Year
1986, Cm 158 (Londres: HMSO, 1987). Vejam-se os comentários do ex-
chefe do LEAA, Patrick Caplan: "nós aprendemos que as condições que
realmente fazem a diferença em termos de controle do crime estão
majoritariamente fora da esfera da autoridade governamental", citado em
T. E. Cronin, US v. Crime in the Streets, p. 179. Em março de 1982, o Lord
Chief Justice disse, na Câmara dos Lordes, que "nem a polícia, nem os
tribunais e tampouco as prisões podem resolver o problema do aumento
da criminalidade", citado em G. Laycock e K. Heal, "Crime prevention:
The British Experience", in D. J. Evans e D. T. Herbert (orgs.), The

292
Geography of Crime (Londres: Routledge, 1989), pp. 315-30 (citação na
p. 317). Em 1983, uma autoridade senior do Home Office estatuiu que "a
impressão geral deve ser a de que o crime neste país aumentou
consideravelmente nos últimos vinte anos; de que ainda está aumentando;
de que as forças de lei e ordem estão sob grande pressão; e até mesmo de
que estão travando uma batalha perdida", David Faulkner, citado in P.
Rock, Helping Victims of Crime (Oxford: Oxford University Press, 1990),
p.255.
14
Veja-se S. Strange, The Retreat of the State: The Diffusion of Power in
the World Economy (Cambridge: Cambridge University Press, 1996); P.
Hirst,Associative Democracy (Oxford: Polity, 1994); S. Lash e J. Uny, The
End of Organised Capitalism (Cambridge: Polity Press, 1987).
15
Como Barry Goldwater anotou em 1964, "segurança contra a violência
doméstica, não menos do que contra a agressão estrangeira, é o mais
elementar e fundamental propósito de qualquer governo, e um governo que
não consegue cumprir este objetivo não pode mais demandar a lealdade dos
seus cidadãos", citado in T. E. Cronin et al., US v. Crime in the Streets
(Bloomington-lN: Indiana University Press, 1981), p. 18. Um primeiro-
ministro britânico fez a mesma observação em 1994: "uma responsabilidade
primordial de qualquer governo, em seu território, é de agir no sentido de
proteger as pessoas do crime ... a garantia de lei e ordení é essencial para o
modo de vida britànico", John Major, 9 de setembro de 1994 (grifo do original).
16
Este é um clássico exemplo daquilo que Robert Merton descreveu como
"ambivalência sociológica" - v. R. Merton, Sociological Ambivalence (Nova
Iorque: Free Press, 1976), p. 8. Na Grã-Bretanha, o final dos anos 1980 e
início dos 1990 testemunharam a emergência de uma série de iniciativas
políticas cuidadosamente planejadas (notadamente o Criminal Justice Act
de 1991 e o programa governamental de reformadas prisões em seguida ao
Woolf Repo,1), que foram repentinamente abandonados por nmdanças nas
atitudes políticas. Para detalhes deste padrão errático de desenvolvimento
político, v. R. Reiner e M. Cross, Beyond Law and Order: Criminal Justice
Policy and Politics into the 1990s (Londres: MacMillan, 1991 ); A. Ashworth
e B. Gibson, "Altering the Sentencing Framework", Criminal Law Review,
fevereiro de 1994, pp. 101-9; Lord Windlesham,Responses to Crime vol. 3.
Para um histórico - e uma crítica- das recentes iniciativas legislativas norte-
americanas, v. o recente relatório Meese do American Bar Association Task
Force, intitulado The Federalization of Criminal Law (Washington DC:
American Bar Association, Criminal Justice Section, 1998).
17
Para relatos feitos sob o ponto de vista interno, v. Lord Windlesham,
Responses to Crime Vol. 2: Penal Policy in the Making (Oxford: Oxford
University Press, 1993), cap. 1; D. Lewis, Hidden Agendas; P. Rock, A
293
View From the Shadows. Para uma discussão, v. M. Hill, The Policy
Process in the Modem State, 3ª ed. (Londres: Harvester Wheatsheaf,
1997), pp. 78 ss.
18
Veja-se W. G. Skogan, Disorder and Decline (Nova Iorque: Free Press,
1990), sobre o "tremendo aumento no volume de crimes reportados à polícia.
Isto começou na metade dos anos 1960. Nas cidades norte-americanas com
mais de 250.000 habitantes, o número de crimes registrados saltou de pouco
menos de 1 milhão, em 1960, para 2,2 milhões, em 1970, e 3,8 milhões, em
1980. O orçamento da polícia se expandiu, por conseqüência, mas não
suficientemente rápido: o número de crimes por policial quase dobrou ao
longo dê cada década, de 10 para 19, nos anos 1960, e de 19 para 34, entre
o início e fim dos anos 1970" (pp. 86-7). Skogan prossegue descrevendo
como a polícia se reorganizou, através do desenvolvimento de uma central
de atendimento à população e de serviços telefônicos 190.
19
Veja-se A. Blumstein, "Coherence, Coordination and Integration ín the
Administration of Criminal Justice", in J. van Dijk (org.), Criminal Law in
Action (Deventer: Kluwer, 1988). Sobre a mudança no sentido de uma
"administração tecnocrática da justiça" nos EUA, v. W. Heydebrand e C.
Seron, Rationalizing Justice (Albany-NY: State University of New Yory
Press, 1990). A. J. Fowles, "Monitoring Expenditure on the Criminal Justice
System: The Searchfor ControI", The Howard Joumal, vol. 29, nº 2 (1990),
pp. 82-100; C. fones, "Auditing Criminal Justice", British Joumal of
Criminology (1993), vol. 33, nº 2, pp. 187-202.
20
Para dados britânicos, v. Lord Windlesham, Responses to Crime, vol. 2.
Nos EUA, a taxa de crescimento na aplicação da liberdade vigiada tem sido,
desde 1980, similar à taxa de crescimento da população carcerária. Sobre os
EUA, v. T. R. CleareA.A. Braga, "Community Corrections", inJ. Q. Wilson
e J. Petersilia (orgs.), Crime (São Francisco: lnstítute for Contemporary
Studies, 1995), pp. 421-44.
21
Lord Windlesham cita números do Home Office sobre gastos da polícia,
que subiram (em libras esterlinas de 1993) de 1.629 milhão, em 1964/5,
para 3.545 milhões, em 1979/80, e 5.862 milhões, em 1992/3 (1996, p. 80).
Sobre o livramento condicional, v. Audit Commission, The Probation Service:
Pronwting Value for Money (Londres: Audít Commission, 1989), e Audít
Commission, Going Straight: Developing Good Practice in the Probation
Service (Londres: Audit Col11111ission, 1991).
22
Sobre a disseminação da auditoria e de outras técnicas gerenciais correlatas,
v. M. Power, The Audit Explosion (Londres: Demos, 1994).
23
S. Walker, Taming the System: The Contrai of Discretion in Criminal
Justice, 1950-1990 (Nova Iorque: Oxford University Press, 1993). Como

294
J acobs aponta, uma importante dinâmica na racionalização da
administração prisional foi o impacto do êxito dos primeiros movimentos
pelos direitos dos presos e as provisões de erros judiciais. J. B. Jacobs,
"The Prisoners Rights Movement and lts Impacts, 1960-1980", in N.
Morris e M. Tonry (orgs.), Crime and Justice: An Annual Review of
Research, voL 2 (Chicago: University ofChicago Press, 1980), pp. 429-70.
Nos anos 1990, as cortes norte-americanas foram retiradas desta tarefa,
tendo o Congresso legislado para limitar a extensão com que os pedidos
de reconhecimento de direitos dos presos poderiam ser feitos: v., por
exemplo, o Prison Litigation Reform Act de 1996.
24
J. W. Raine e M. J. Willson, Managing Criminal Justice (Londres:
Harvester Wheatsheaf, 1993); A. James e J. Raine, The New Politics of
Criminal Justice, cap. 4; Humprey, 1991; S. Walker, Taming the System; J.
Simon, Poor Discipline.
25
R. Harding, "Private Prisons", in M. Tonry (org.), The Handbook of Crime
and Punishment (Nova Iorque: Oxford University Press, 1998), pp. 628-58;
J. R. Lilly e P. Knepper, "The Corrections-Commercial Complex", Crime
and Delinquency, voL 39, nº 2 (1993), pp. 150-66. P. Young, The Prison
Cell: The Start ofa Better Approach to Prison Management (Londres: Adam
Smith, 1987).
26
Clifford Shearing anota que o estudo de Randy sobre a segurança privada,
na metade dos anos 1970, transferiu o assunto "de uma questão política e de
soberania, para ser tratada em termos absolutos relacionados à economia e
eficiência", C. D. Shearing, "The Relation between Public and Private
Policing", in M. Tonry e N. Morris (orgs.), Modem Policing (Chicago:
Chicago University Press, 1992), p. 410. V., também, T. Jones e T. Newburn,
Private Security andPublic Policing (Oxford: Oxford University Press, 1998);
L. Johnston, The Rebirth of Private Policing (Londres: Routledge, 1992).
27
Assim, a nova prática de promover pesquisas de opinião e de mercado,
para identificar a opinião pública local, os receios da comunidade e as
prioridades em termos de policiamento. Veja-se D. Bayley, Police for the
Future (Nova Iorque: Oxford University Press, 1994); Commissionerofthe
Police of the Metropolis, Report for the Year 1986 (Cm 158) (Londres:
HMSO, 1987).
28
Veja-se D. P. Moynihan, "Defining Deviancy Down", The American
Scholar (1992), p. 17-30. Moynihan cunhou a expressão para criticar a
mudança nos níveis de tolerância cultural e aquilo a que se referiu como a
tendência de "normalizai.~' os (altos) níveis de criminalidade dos anos 1970
e 1980. Aqui, eu uso o termo para descrever uma estratégia burocrática
específica.

295
29
A falta de escrutínio que facilita medidas "restritivas" também facilita
os indesejados efeitos colaterais, tais como a diluição do devido processo
legal. Veja-se S. Cohen, Visions of Social Control (Oxford: Policy, 1985).
30
Sobre a discricionariedade acusatória para restringir a criminalização
na Inglaterra e no País de Gales, v. D. Rose, ln the Name of the Law
(Londres: Jonathan Cape, 1996), cap. 4. Como Rose observa, o Criminal
Justice Act de 1988 redefiniu categorias inteiras de delitos (o roubo de
carro se transformou em subtração sem o consentimento do proprietário)
e os retirou da Crown Court para os juízos de instância inferior. Veja-se o
Home Office Working Paper intitulado A Review of Criminal Justice
Policy 1976 (Londres: HMSO, 1977): "é preciso considerar a idealização
de formas de limitação do input no sistema, por exemplo através do
estreitamento do escopo da lei penal, de políticas acusatórias mais
seletivas, do desenvolvimento de penalidades que não exijam o
envolvimento das agências penais e da modificação do processo criminal"
(§ 16). Para dados norte-americanos, v. Vera Institute, Felony Arrests:
Their Prosecution and Disposition in New York City's Courts (Nova
Iorque: Vera Institute, 1977). O principal mecanismo de restrição da
criminalização é, obviamente, o sistema do plea bargaining consagrado
nos EUA e, mais recentemente, na Grã-Bretanha. Sobre a aplicação de
medidas alternativas e a des'criminalização na justiça de menores norte-
americana, v. o Juvenile Delinquency Preventíon and Control Act de
1968 e o Juvenile Delinquency Prevention Act de 1974. Sobre a realidade
britânica, v. o Social Work Act escocês de 1968 e o Children and Young
Persons Act de 1969. Para outras demonstrações de restrição da
criminalização nos EUA, v. R. C. Ellickson, "Controlling Chronic
Misconduct in City Spaces: Of Panhandlers, Skid Rows and Public-
Space Zoning", Yale Law Review, vol. 105 (1996), pp. 1165-248.
31
Sobre as multas administrativas aplicadas pela polícia, v. J. Ditchfield,
Police Cautioning ín England and Wales (Londres: Home Office, 1976), e
R. Taylor, Forty Years of Crime and Criminal Justice Statistics, 1958 to
1997 (Londres: Home Office, 1998), que revela a undecuplicação das
hipóteses de aplicação de multas administrativas entre 1958 e 1997. Sobre o
emprego de vias alternativas à acusação formal e penalidades fixas e a
sumarização dos procedimentos, v. Stewart Comrnitee, Keeping Offenders
Out of Court: Further Altematives to Prosecution (Cmnd 8958) (Edimburgo:
HMSO, 1983), e o Thompson Comrnitee Reports na Escócia. Sobre o
reduzido uso do encarceramento na Grã-Bretanha, entre 1950 e 1990, v. C.
Nuttall e K. Pease, "Changes in the Use of Imprisonment in England and
Wales 1950-1991", Criminal Law Review (1994). D. P. Farrington,
Understanding and Preventing Youth Crime (York: J. Rowntree

296
Foundation, 1996), aponta o aumento em advertências informais da polícia
e o rebaixamento de crimes, tais como roubo com o uso de veículos
automotores, para a categoria de contravenções penais.
32
"Em razão dos limitados recursos, nem toda a demanda pode ser
atingida", Comissário da Police of the Metropolis, Report for the Year
1986 (Cm 158) (Londres: Home Office,junho de 1987), p. 13. "Ao fito de
prevenir a força policial de ser soterrada de demandas, introduzi sistemas
de priorização e filtragem", p. 11.
33
Wesley Skogan relata como a prática política norte-americana se
adaptou. "Departamentos tiveram que fazer frente a estas demandas
crescentes com recursos decrescentes, visto que, no início dos anos
1980, muitos departamentos das grandes cidades eram menores do que
uma década antes. Tendo em mente a eficiência, as autoridades policiais
adotaram sistemas de atendimento de prioridades, com rápidas respostas
garantidas para 'homem portando arma de fogo', 'invasão a domicílio em
andamento' e outras emergências, mas colocando a maioria das
reclamações relativas a pequenos distúrbios no final da fila. Muitos
resistiam obstinadamente em prover serviços que não fossem 'produtivos'
- que não lhes fornecessem amplas áreas de cobertura e acelerassem seu
tempo de reação ou que não resultassem em prisões. Uma das primeiras
vítimas da produtividade foi o patrulhamento a pé", Skogan, Disorder
and Decline, p. 88. Skogan prossegue constatando "o declínio no número
de prisões nas quatro grandes categorias de distúrbios - embriaguez,
condutas agressivas, vadiagem e atitude suspeita. Em 1960, houve 2,3
milhões de prisões com esta motivação, que constituíam 52% de todas as
prisões nos Estados Unidos, excluídas as prisões relacionadas a drogas.
Em 1985 (quando a população havia crescido consideravelmente), houve
apenas 1,4 milhão de prisões relacionadas àquelas categorias, que
constituíam apenas 16% do total (estatísticas anuais do FBI). Tanto em
termos absolutos quanto relativos, a polícia parecia estar prestando
menos atenção formal às principais categorias de desordem" (p. 89). Para
evidências do cenário britânico, v. o Audit Commission, Helping With
Enquiries: Tackling Crime Effectively (Londres: HMSO, 1993), e P. Amey
et al., Proactive policing: An evaluation of the Central Scotland Police
management nwdel (Edimburgo: Scottish Office, 1996). "Tradicionalmente,
a prática da Polícia Central escocesa era visitar todas as vítimas e todos
os locais de crime. O projeto testava se os recursos podiam ou não ser
usados de forma mais eficaz através da realização, pelo telefone, de
investigações exaustivas acerca de um grande número de crimes de baixa
importância. Policiais atendiam pessoalmente apenas se a investigação
pelo telefone demonstrasse que isto fosse necessário" (p. 2).

297
34
"Em 1958, mais de 142.000 pessoas foram condenadas na Inglaterra e
no País de Gales. Este número cresceu uniformemente até o ápice de 474.000
em 1982. O número de pessoas condenadas gradualmente baixou desde
1982, para repousar em pouco mais de 318.000 em 1997", R. Taylor, Forty
Years of Crime and Criminal Justice Statistics, 1958 to 1997 (Londres:
Home Office, 1998), p. 24.
35
Veja-se F. Fessenden e D. Rohde, "Dismissed by Prosecutors Before
Reaching Court, Flawed Arrests Rise in New York City", The New York
Times, 23 de agosto de 1999.
36
"Nossa estratégia deve se dar conta( ...) da limitada capacidade da polícia,
nas próximas duas décadas, de causar algum impacto real nos crimes
aleatórios e de ocasião", Comissário da Police of the Metropolis, Report
for the Year 1986 (Cm 158) (Londres: Home Office, junho de 1987), p. 2.
Veja-se L. Sherman, ''Attacking Crime: Police and Crime Control", in M.
Tonry e N. Morris (orgs.), Modem Policing (Chicago: University of Chicago
Press, 1992), pp. 159-230; D. Bayley, Police for the Future; R. Reiner, The
Politics of the Police, 2ª ed. (Hemel Hempstead: Wheatsheaf, 1992).
37
"É ( ... ) uma das conseqüências das pressões impostas ao serviço
prisional pela demanda excessiva e pelos recursos inadequados de que
dispomos que tenhamos nos tornado cada vez mais incapazes de atender
a virtualmente todos os objetivos esperados de nós que não sejam a
simples 'neutralização' do criminoso pelo período de sua pena", HM
Prison Department, Report of the Work of the Prison Department 1981
(Londres: HMSO, 1982), p. 5. Veja-se o relatório Learmont de 1995, que
definiu a "custódia" como o objetivo predominante do sistema carcerário.
Sir John Learmont, Review of Prison Service Security in England and
Wales (Cm 3020) (Londres: HMSO, 1995), e I. Dunbar e A. Langdon, Tough
Justice. Sobre os desdobramentos nos EUA, v. F. E. Zimring e G Hawkins,
Incapacitation: Penal Confinement and the Restraint of Crime (Nova
Iorque: Oxford University Press, 1995), cap. 1.
38
Sobre o caráter cambiante das punições comunitárias nos Estados
Unidos, v. D. R. Gordon, The Justice Juggemaut (New Brunswick-NJ:
Rutgers, 1991), cap. 5. Sobre as mudanças no cenário britânico, v. I
Brownlee, Communíty Punishment: A Criticai Introduction (Londres:
Longman, 1998), cap. 4. V., por exemplo, o memorando do Home Office
para o chefe do serviço de livramento condicional da Inglaterra e País de
Gales, intitulado Tackling Ojfending: An Action Plan (17 de agosto de
1988): "os programas deveriam sempre se concentrar em trabalhar com os
criminosos no sentido de confrontar seu crime e de examinar, com eles, as
circunstâncias de suas ações e os efeitos sobre as vítimas, suas famílias,
seus amigos, sua comunidade e si próprios", anexo A.
298
39
V. o Scottish Prison Service, Opportunity and Responsibility
(Edimburgo: Scottish Prison Service, 1990); D. Nelkin, "Discipline and
Punish: Some Notes on the Margin", Howard Joumal (1989) 28/4,
pp. 245-254; A. E. Bottoms, "Intermediate Punishments and Modem
Societies", texto apresentado no American Society of Criminology
Meeting (Miami: novembro de 1994).
40
Talvez estejamos a ver o início de uma reação contra isto. O melhor
exemplo público é o New York Police Department, que recentemente
começou a admitir a responsabilidade pelos resultados relacionados à redução
do crime e a medir sua própria performance nestes termos; há sinais de que
o mesmo movimento est.--i começando a ocom:r também na Grã-Bretanha.
Na maior parte dos anos 1990, os medidores de performance utilizados pelo
serviço prisional na Inglaterra e no País de Gales foram medidores internos,
tais como o "número de horas que os prisioneiros gastaram, por semana,
com atividades úteis" ou "tempo fora das celas", para indicar a efetividade
dos programas, em vez de medidores externos, tais como a redução da
reincidência. Nos anos 2000 e 2001, o serviço planeja introduzir um novo
medidor: "proporção de reincidência comparado com o nível previsto". Veja-
se Her Majesty's Prison Service, Framework Document (Londres: Prison
Service, 1999), anexo A. Sobre a história recente da política prisional na
Inglaterra e nos País de Gales, v. R. D. King e K. McDerrnott, The State of
Our Prisons (Oxford: Oxford University Press, 1995).
41
Commissioner of Police for the Metropolis, Reporl for the Year 1986
(Cm 158) (Londres: HMSO, 1987); R. Ericson e K. Haggerty, Policing the
Risk Society (Toronto: University ofToronto Press, 1997); D. Bayley, Police
for the Future. O New York Police Department tem sido uma exceção notável
a esta regra, proclamando a habilidade de reduzir o crime, convidando o
público a julgar a organização nestes termos e impondo objetivos de
redução da criminalidade por cada chefe de departamento. Ao fazê-lo, porém,
o NYPD estava conscientemente reagindo contra a estratégia que descrevo
no texto, que até então adotara. O novo slogan do departamento "não somos
fazedores de relató1ios, somos policiais" resume esta história pretérita e as
conotações negativas dela decorrentes - para com o público e a própria
polícia.
42
Sobre a história recente das reformas nas leis sobre sentenças nos
EUA, v. K. Stith e J. A. Cabranes, Fear of Judging: Sentencing Guidelines
in the Federal Courts (Chicago: Universíty of Chicago Press, 1998), M.
Tonry, Sentencing Matters (Nova Iorque: Oxford University Press, 1996).
Na Grã-Bretanha, v. L Dunbar e A. Langdon, Tough Justice.
43
"Auditorias de várias formas vieram substituir a confiança confedda aos
profissionais tanto por seus clientes - agora usuruios e consumidores - quanto
299
pelas autoridades que os empregam e os legitimam. A demanda constante por
auditoria expressa e contribui para a erosão da confiança e do positivo saber
especializado acerca da conduta humana no qual era baseada", N. Parton,
"Social Work, Risk and 'the Blaming System"', in N. Parton (org.), Social
Theo,y, Social Change and Social Work (Londres: Routledge, 1996), p. 112.
44
Veja-se o Home Office, A Revíew of Criminal Justice Policy 1976
(Londres: HMSO, 1976).
45
Para mais detalhes, v. M. Maguire, "The Needs and Rights of Victimi",
in M. Tonry (org.), Crime and Justice: A Review of Research, vol. 14
(Chicago: University of Chicago Press, 1991), pp. 363-433; P. Rock,
Helping Victims of Crime (Oxford: Oxford University Press, 1990). Em
1997, vinte e nove Estados americanos haviam emendado suas
constituições para garantir vários direitos às vítimas: v. B. Shapiro,
"Victims and ¼ngeance", The Nation, 10 de fevereiro de 1997, pp. 11-19.
46
M. Maxfield, Fear of Crime in England and Wales (Londres: HMSO,
1984); T. H. Bennett, Tackling Fear of Crime: A Review of Policy Options
(Cambridge: Institute of Criminology, 1989); C. Hale, "Fear of Crime: A
Review ofthe Literature", International Review ofVictimology, vol. 4 (1996),
pp. 79-150; J. Garofalo, "The Fear of Crime: Causes and Consequences",
Journal of Criminal Law and Criminology, vol. 72, nº 2 (1981), pp. 839-58.
47
Para um histórico das tentativas do Home Office de usar, para esta
finalidade, os dados empíricos relacionados ao medo, v. P. Rock, Helping
Victims, pp. 262 ss.
48
Como o Home Secretary Douglas Hurd observou em 1986, "todos
concordamos que o sistema de justiça criminal não pode, por si só, esperar
reverter a tendência de alta nos níveis de criminalidade. As causas
subjacentes do crime residem no âmago da própria sociedade", D. Hurd,
"Forewonf' ao Home Office, intitulado Criminal Justice: A Working Paper
(Londres: HMSO, 1986).
49
S. Cohen, Visions of Social Control (Oxford: Policy, 1985); D. R. Karp
(org.), Community Justice: An Emerging Field (Nova Iorque: Rowman
and Littlefield, 1998).
50
T. Jones et al., Democracy and Policing (Londres: Policy Studies
Institute, 1997). Isto é particularmente verdadeiro nos EUA, agora que o
governo federal concede subsídios para iniciativas policiais inspiradas
pela participação da comunidade. Veja-se o Criminal Justice Newsletter,
vol. 29, nº 24, 15 de dezembro de 1998, no qual citou-se o Justice Dept.
Inspector General: "nossa experiência nos mostra que o COPS office
aceita virtualmente qualquer atividade relacionada à aplicação da lei como
policiamento comunitário" (p. 1).
300
51
O termo "responsabilizar" é usado por Pat O'Malley para descrever o
esforço da parte das autoridades de atribuir responsabilidades a outrem
tendência que ele foi um dos primeiros a identificaL Veja-se Pat
O'Malley, "Post-Keynesian Policing", Economy and Society (1996),
25(2): pp. 137-55.; e O'Malley, "Risk, Power, and Crime Prevention",
Economy and Society (1992), 21: pp. 252-75. O'Malleylocalizaesteprocesso
dentro de um contexto "neoliberal" mais amplo de mudança, que afeta pensões,
previdência, assistência médica etc., à medida que o Estado pós-keynesiano
busca transfe1ir a responsabilidade ao indivíduo e ao mercado.
52
Veja-se a Interdepartmental Circular on Crime Prevention do governo
britânico, que é inaugurada com a declaração de que "um objetivo primário da
polícia tem sido a prevenção do ciime. Todavia, apartir do momento que alguns
dos fatores que afetam o crime estão fora do controle ou da influência direta da
polícia, a prevenção do crime não pode ser deixada apenas em suas mãos.
Todo cidadão e agências cujas políticas e práticas possam influenciar o crime
deveriam contribuir. Prevenir o crime é uma tarefa para toda a comunidade",
Home Office, Crime Prevention, CircularS/1984 (Londres: Home Office, 1984).
53
Sobre estes desdobramentos na Grã-Bretanha, v., genericamente, A.
Crawford, The Local Govemance of Crime (Oxford: Oxford University Press,
1997). Sobre a prevenção do crime além do sistema de justiça criminal, v.
D. Gilling, Crime Prevention: Theory, Policy and Practice (Londres: UCL
Press, 1997), cap. 6. Sobre os desdobramentos nos EUA, v. D. R. Rosenbaum,
Community Crime Prevention (Beverly Hills: Sage, 1986); C. Murray, "The
Physical Environment", in J. Q. Wilson e J. Petersilia (orgs.), Crime (São
Francisco: Institute for Contemporary Studies, 1995); e R. V. Clarke (org.),
Situational Crime Prevention: Successful Case Studies, 2ª ed. (Albany-NY:
Harrow and Heston, 1997), caps. 9 e 22.
54
R. Engstad e J. L. Evans, "Responsibility, Competence and Police
Effectiveness in Crime Control", in R. Clarke e M. Hough (orgs.), The
Effectiveness of Policing (Aldershot: Gower, 1980), pp. 6-7.
55
D. Garland, "Govemamentality and the Problem of Crime: Foucault,
Sociology, Criminology", Theoretical Criminology (1997), vol..1, nº 2, pp.
173-214. M. Foucault, "Govemamentality", in Burchell et al. (orgs.), The
Foucault Effect (Hemel Hempstead: Harvester Wheatsheaf, 1992).
56
As duas primeiras perguntas são de D. Riley e P. Mayhew, Crime
Prevention Publicity: An Assessment, Home Office Research Study, nº
63, (Londres: Home Office, 1980), p. 15. A terceira é de M. Foucault,
"Governamentality".
57
M. Hough et al., "Introduction" a R. Clarke e P. Mayhew (orgs.),
Designing Out Crime (Londres: HMSO, 1980), p. 16.

301
58
Vejam-se os panfletos intitulados Partners Against Crime (Londres:
Horne Office, setembro de 1994) e Preventing Crime Together in Scotland
(Edimburgo: Scottish Office, s/d), que foram postados para as residências
pelo governo britânico na metade dos anos 1990. Um prospecto do Scottish
Office, elaborado para a comunidade empresarial, descreve o entendimento
do governo sobre a prevenção do crime: "a prevenção do crime, no passado,
foi tida eminentemente corno território da polícia. A complacência para com
a prevenção do crime que esta atitude ensejou na população inibiu largamente
o progresso nesta importante área. A nova estratégia busca ampliar a
responsabilidade individual e coletiva pela prevenção do crime,
encorajando a participação mais profunda e o maior envolvimento da
comunidade. Ela visa a construir urna abordagem interagências",
Preventing Crime Together: A Guide to Good Practice in Business
(Edimburgo: Scottish Office, s/d). Para detalhes das práticas norte-
·arnericanas de prevenção do crime, v. o site do National Crime
Prevention Council na internet (www.ncpc.org).
59
"Agora é amplamente reconhecido que o crime não pode ser prevenido
apenas pela polícia ou por outras agências da justiça criminal, instituições
para as quais a comunidade tradicionalmente tem delegado responsabilidade.
Ao revés, isto depende de ações coordenadas de várias agências", Home
Ojfice, A Practical Guide to Crime Prevention for Local Partnerships
(Londres: HMSO, 1993), p. iii.
6
°Como frisou John Patten, Ministro de Estado do Home Office, "a prevenção
do crime precisa ir além da instalação de fechaduras e trancas, para tentar
restaurar um enfoque voltado para controles informais, mas efetivos.
Talvez os políticos e especialistas sejam tímidos em mencionar que a
necessidade de exercer 'controle', 'controle social', 'controle comunitário'
- qualquer que seja o rótulo preferido - significa adultos responsáveis e
cidadãos ativos, todos nós, e não apenas a polícia ou as agências de
livramento condicional agindo individual ou conjuntamente para prevenir
jovens de serem arrastados ao crime quando possível. O governo,
sozinho, não pode desempenhar esta tarefa (... ). Inspirar e arregimentar
cidadãos ativos em todas as etapas da vida é a chave", J. Patten, "Crime:
A Middle Class Disease?", New Society, 13 de maio de 1988.
61
Os Business Improvement Districts são, para as empresas comerciais,
o equivalente às associações de moradores. São formados por parcerias
_entre o setor público e o privado e representam uma das maneiras mais
comuns de angariar recursos para a realização de pequenas benfeitorias
(manutenção de calçadas e parques, pagamento dos salários de guardas
municipais etc.), que venham a melhorar o ambiente comercial. (N.T.)

302
62
Sobre as Business Improvement Districts e suas atividades de controle
do crime, v. J. R. Pack, "BIDs, DIDs, SIDs and SADs", Brookings Review
(outono de 1992), pp. 18-21, e T. M. Searnon, "Private Forr:esfor Public
Goocf', Security Management (setembro de 1995), pp. 92-7. Searnon relata
que, em 1995, estimava-se existirem mais de 1.000 BIDs nos EUA e Canadá.
Sobre o desenvolvimento de BIDs na Grã-Bretanha, v. C. Sherman, "Writing
on the Wallfor Graffiti", The Daily Telegraph, 23 de fevereiro de 1998.
63
Veja-se M. Hough et al., "Introduction" a R. V. Clarke e P. Mayhew (orgs.),
Designing Out Crime (Londres: HMSO, 1980), p. 14; R. V. Clarke, Hot
Products: Understanding, anticipating and reducing demand for stolen goods
(Londres: Home Office, Researcb, Development and Statistics Directorate, 1999).
64
Veja-se J. Kooiman, Modem Govemance: New Social-Govemmental
Interactions (Londres: Sage, 1993). Em importante sentido, as autoridades
do governo federal norte-americano necessariamente "governam à distância"
no que concerne ao crime, por causa da divisão constitucional de jurisdições.
Tradicionalmente, seu método de influenciar a política criminal no âmbito
do Estado federado tem sido o de disponibilizar recursos para aquelas
autoridades estaduais e locais dispostas a tocar projetos aprovados pelo
governo federal, tais como o sistema de coordenação, policiamento
comunitário etc. A frustração com tal forma indireta de ação e o desejo de
ser visto como ente ativo contra o crime ensejaram a "federalização" da
lei penal nas décadas recentes.
65
R. V. Clarke e D. Comish (orgs.), The Reasoning Criminal: Rational
Choice Perspectives on Offending (Nova Iorque: Springer-Verlag, 1986);
M. Felson, Crime and Everyday Life (Londres: Pine Forge Press/Sage, 1994);
K. Heal e G. Laycock (orgs.), Situational Crime Prevention: From Theory
to Practice (Londres: HMSO, 1986); R. V. Clarke e P. Mayhew (orgs.),
Designing Out Crime (Londres: HMSO, 1980); M. J. Hindelang et al.,
Victims of Personal Crime: An Empirical Foundation for a Theory of
Victimization (Cambridge-MA: Ballinger, 1978).
66
N. Walker, "Introduction", K. Heal e G. Laycock (orgs.), Situational
Crime Prevention (Londres: HMSO, 1986), p. v.
67
D. Comish e R. V. Clarke, "Introduction" a R. V. Clarke e D. Cornish
(orgs. ), The Reasoning Criminal: Rational Choice P erspectives on Offending
(Nova Iorque: Sprínger-Verlag, 1986), p. 4.
68
J. Q. Wilson, Thinking About Crime, ed. rev. (Nova Iorque: Vintage, 1983),
cap. 7.
69
Como frisa van Dijk, "criminosos são vistos como os consumidores
dos ganhos ilícitos e as vítimas como os relutantes fornecedores de
oportunidades criminosas" e "crimes contra o patrimônio são transações
303
consumadas pelos consumidores sem a permissão dos fornecedores", J.
J. M. van Dijk, "Understanding Crime Rates: On the interactions between
the rational choices of victims and offenders", British Journal of
Crimínology (1994), vol. 34, nº 2, pp. 105-6. '
70
"O analista político é levado a agir como se o crime fosse produto da
livre escolha( ...). O individualismo radical de Bentham e Beccaria pode
ser cientificamente questionável, mas é prudentemente necessário", J. Q.
Wilson, Thinking About Crime, p. 51.
71
Esta afirmação é feita no último parágrafo de Thinking About Crime,
cit., p. 260.
72
Na terminologia freudiana, "negação" é um mecanismo psíquico de
defesa, através do qual veda-se o acesso à consciência de algumas
experiências ou realidades dolorosas. O comportamento "histérico" consiste
em conduta que engendra "sintomas de conversão", que mascaram o
problema psíquico jacente em sua base. A implicação é que os fenômenos
observados não deveriam ser estimados de acordo com seu valor aparente
e que tencionam chamar ou defletir a atenção. "Atuação simbólica" é uma
forma de atividade expressiva, impulsiva, disparada por conflitos internos
no indivíduo que não possui a capacidade de inibição. Veja-se C. Rycroft,
A Criticai Dictionary of Psychoanalysis (Harmondsworth: Penguin Books,
1968). Eu uso estes termos no texto para sugerir os conflitos e a
ambivalência subjacentes que informam a ação institucional; não tenho
pretensão de aplicá-los de forma estrita.
73
A declaração de que a prisão é "uma maneira cara de tomar as pessoas
más ainda piores" é do Home Office, Crime, Justice and Protecting the Public
(Londres: HMSO, 1990). A declaração do Home Secretary Howard de
que a "prisão funciona" foi feita em seu discurso na Conferência do
Partido Conservador, realizada em 6 de outubro de 1993 - discurso que
foi precedido pela aparição no palanque de uma vítima de delito sexual,
que sofridamente narrou sua experiência dolorosa. Veja-se I. Dunbar e A.
Langdon, Tough Justice, e E. Baker, "From 'Making Bad People Worse'
to 'Príson Works': Sentencing Policy in England and Wales in the 1990s",
Criminal Law Forum, vol. 7, nº 3 (1996). O Crime (Sentences) Bill de
1997 introduziu novas previsões de penas privativas de liberdade mínimas
e o etiquetamento eletrônico de jovens infratores, permitiu que os nomes
dos infratores aparecessem nas cortes e aboliu a exigência estatutária de
que o criminoso deveria aceitar o livramento condicional, a prestação de
serviços comunitários e as restrições de direitos. A despeito dos amplos
protestos do judiciário e dos profissionais da justiça criminal, a oposição
trabalhista não se opôs àquelas medidas e, inclusive, implementou-as,
após assumir o poder.
304
74
Veja-se M. Tonry, Malign Neglect (Nova Iorque: Oxford University
Press, 1995), cap. 3. O leitor deve ter em mente que as decrescentes taxas
de criminalidade dos anos 1990 deixam de fora crimes relacionados a
drogas, que não são incluídos nos relatórios do FBI. No final dos anos
1990, prisões ligadas a drogas haviam atingido quantidade recorde: v.
Drug and Crime Facts no site da internet do Bureau of Statistics do US
Department of Justice (www.ojp.usdoja.gov/bjs).
75
D. C. Anderson, Crime and the Politics of Hysteria (Nova Iorque:
Times Books, 1995).
76
Para um relato de dentro, v. as memórias do ex-diretor do English
Prison Service, D. Lewis, Hidden Agendas, Politics, Law and Disorder
(Londres: Hamish Hamilton, 1997). Lewis descreve como o imperativo
político do Home Secretary Howard o poupou de consultar o serviço
prisional sobre as propostas punitivas por ele introduzidas (p. 198). V.,
também, M. Tonry, Sentencing Matters, p. 159: "autoridades que apóiam
penas privativas de liberdade obrigatórias freqüentemente não se
importam muito com problemas relativos à implementação, com previsíveis
padrões de evasão ou com a certeza da aplicação de penas excessivas ou
injustas para alguns criminosos. Seus interesses são diferentes, como os
debates políticos recentes demonstram. De acordo com um artigo
publicado no New York Times sobre as propostas punitivas oferecidas
pelo senador norte-americano de Nova Iorque Alfonse D' Amato, 'o Sr.
D' Amato admitiu que seus dois projetos exitosos, sobre os quais
autoridades do US Justice Department dizem que teriam pouco efeito
prático na persecução de crimes, talvez não resolvam o problema.' 'Mas',
disse ele, 'isto traz um sentimento de que são sérios" (p. 159). Uma
declaração do senador republicano Orrin Hatch dá a mesma impressão:
"não adianta nos enganarmos; alguns destes projetos de endurecimento
com o crime podem não ter grandes efeitos", citado em W. Kaminer, lt's
Ali the Rage (Nova Iorque: Addison-Wesley), p. 196.
77
Sobre recentes estatutos norte-americanos relativos a penas vexatórias, v.
A. S. Book, "Shame on You: An Analysis of Modem Shame Punishment as
an Altemative to lncarceration", William and Mary Law Review, vol. 40
(1999), pp. 653-86. Sobre o acorrentamento coletivo de presos, v. o relató1io
da Anistia Internacional, United States of America Florida Reintroduces
Chain Gangs (Londres: Amnesty Intemational, janeiro de 1996).
78
Sobre prisões de segurança máxima, v. C. Riveland, Supermax Prisons:
Overview and General Considerations (Washington DC: NIJ, 1999), e R.
D. King, "The Rise and Fali of Supermax: An American Solution in
Search of a Problem?", Punishment & Society, vol. 1, nº 2 (1999). Sobre
leis contra predadores sexuais, v. D. Denno, "Life Before the Modem Sex
305
Ojfender Statutes", Northwestern University Law Review (1998), vol. 92,
nº 4, pp. 1317-414. Para detalhes da notificação comunitária de criminosos
sexuais, v. P. Finn, Sex Ojfender Community Notification (Washington
DC: NIJ, fevereiro de 1997), e, na Grã-Bretanha, v. B. Hebenton e T.
Thomas, "Sexual Ojfenders in the Community", International Journal
of the Sociology of Law, vol. 24 (1996), pp. 427-43; sobre monitoramento
eletrônico, v. E. Mortimer e C. May, Electronic Monitoring of Curfew
Orders: Research Findings, nº 66 (Londres: Home Office Research and
Statistics Directorate, 1998); sobre penas privativas de liberdade
automáticas, v. R. Hood e S. Shute, "Protecting the Public: Automatic
Life Sentences, Parole and High Rísk Ojfenders", Criminal Law Review
(novembro de 1996), pp. 788-800.
79
M. Foucault, Discipline and Punish (Londres: Allen Lane, 1977).
80
O discurso de um Home Secretary britânico sobre a necessidade de
abolir-se o direito ao silêncio dá uma noção do conflito entre os benefícios
da expertise profissional (neste caso, legal) e as demandas do público:
"quando converso com as pessoas em todos os cantos do país, há um
aspecto específico da nossa lei que faz o sangue delas ferver ( ... ). É o
chamado direito ao silêncio( ... ). O chamado direito ao silêncio será abolido.
O inocente nada tem a esconder", M. Howard, Speech to the 110th
Conservative Party Conference, Blackpool, 6 de outubro de 1993. Sobre
as políticas de "justiça expressiva", v. D. C. Anderson, Crime and the
Politics of Hysteria.
81
Dois ex-membros do English Prison Board escreveram em 1998 o
seguinte: "este país está se encaminhando para uma situação de confiança
inaudita no uso do encarceramento, de custo exorbitante e subestimado,
com sérias conseqüências ao sistema prisional e, na melhor das hipóteses,
apenas discreta melhora na proteção pública a curto prazo, mas com
previsão real de reduzida proteção pública a longo prazo. A nosso sentir,
exatamente as lições erradas foram aprendidas dos EUA", I. Dunbar e A.
Langdon, Tough Justice: Sentencing and Penal Policy in the 1990s
(Londres: Blackstone, 1998), p. 3. Manifestações fortes e públicas de
oposição judicial saudaram o Crime (Sentences) Bill de 1997, que
introduziu penas privativas de liberdade mínimas automáticas para
criminosos reincidentes: v. A. Ashworth, Sentencing in the 80s and 90s:
The Struggle for Power (Londres: ISTD, 1997). O Criminal Justice
Newsletter de 1º de novembro de 1994 relata que aAmerican Correctional
Association criticou o Crime Act de 1994, declarando sua oposição às
penas privativas de liberdade automáticas e expressando sua visão
segundo a qual "a lei dá muita ênfase ao encarceramento" (p. 2). V.,
também, o relatório no Criminal Justice Newsletter, vol. 24, nº 14 (15 de

306
julho de 1993), intitulado "30 organizations call for shift in criminal
justice policy'', na p. 3.
82
Veja-se D. Shichor e D. K. Sechrest (orgs.), Three Strikes and You're
Out: Vengeance as Public Policy (Thousand Oaks-CA: Sage, 1996).
83
Uma afirmação no manifesto de 1987 do Pro.tido Conservador traiu esta
tensão: "conse1vadores sempre acreditaram que urn propósito fundamental do
governo é proteger a segurança do cidadão, sob a égide da lei. Não pode haver
meios-te1mos ou omissões na luta contra o crime e a violência", Conservative
Party, 'lhe Ne.xt Moves Forward (Londres: Conservative Central Office, 1987).
84
Exemplos britânicos incluem a súbita oposição às políticas de "punição
na comunidade", de aplicação de multas administrativas e advertências pela
polícia, fiança e sanções não-privativas de liberdade nas cortes de menores.
Veja-se a cru.ta do editor do Daily Mail, de 14 de setembro de 1993: "o
ponto nodal da mudança de atitude é a percepção de que a legislação e as
mudanças na prática acusatória idealizadas para mitigar a superpopulação
prisional apenas têm aprofundado a exasperação daqueles que sofrem os
efeitos do crime", citado por Lord Windlesharn, Responses to Crime, vol. 3
(Oxford: Oxford University Press, 1996), p. 47. V., também, a crítica do
Times sobre a aplicação de advertências policiais e sobre autorizações de
saída para presos, também citadas lá, e a invocação do primeiro-ministro
britfinico Tony Blair da "tolerância zero", em seu discurso de 29 de setembro
de 1998. Respostas de adaptação à normalidade do crime são o alvo da
observação, muitas vezes citada, de Raymond Kelly, ex-comissário de
polícia de Nova Iorque: "há alguns anos, começaram a aparecer, nos
vidros dos automóveis estacionados nas ruas das cidades americanas,
adesivos que diziam 'sem rádio'. Em vez de expressar indignação, ou
mesmo aborrecimento com a possibilidade de furto, as pessoas tentavam
se comunicar com os potenciais ladrões em termos conciliatórios. A
tradução de 'sem rádio' é: 'por favor, furte o carro de outra pessoa, não há
nada no meu'. Estes adesivos de 'sem rádio' são bandeiras de rendição
urbana. São capitulações manuscritas. Precisamos substituir esses 'sem
rádio' por novos adesivos que digam 'rendição jamais"', citado por D. P.
Moynihan, "Towards a New Intolerance", The Public Interest, nº 112
(inverno de 1993), p. 122, e in W. Benett et al., Body Count, p. 193.
85
Como Susan Sontag pontifica, "guerrear é uma das poucas atividades
que as pessoas não precisam ver 'realisticamente'; isto é, com um olho
nos gastos e no resultado prático. Numa guerra completa, os gastos são
completos, imprudentes - sendo a guerra definida como situação de
emergência na qual nenhum sacrifício é excessivo", citado em J. Best, Random
Violence: How We TalkAbout New Crimes and New Victims (Berkeley-CA:
University of California Press), p. 147.
307
86
Sobre os EUA, v. M. Mauer, The Race to Incarcerate (Nova Iorque:
The New Press, 1998), e A. Sarat (org.), The Kiling State: Capital
Punishment in Law, Politics and Culture (Nova Iorque: Oxford University
Press, 1999). Referindo-se à Inglaterra e ao País de Gales, Dunbar e
Langdon notam que, no período pós-1993, "os tribunais estão usando a
prisão mais livremente do que em qualquer outro tempo do passado
próximo e estão aplicando penas mais elevadas do que seria
considerado normal há 20 ou 30 anos atrás. A explosão nos números
prisionais se deve a uma mudança absolutamente extraordinária nas
leis sobre aplicação da pena em período bastante curto", I. Dunbar e
A. Langdon, Tough Justice, p. 153.
87
Eis alguns exemplos: "estamos aterrorizados pela possibilidade de
pessoas inocentes serem mortas a tiros aleatoriamente, sem prévio aviso
e quase sem motivo, por jovens que, posteriormente, nos mostram a face
impiedosa de um ser selvagem, pré-social", J. Q. Wilson, "Crime and
Public Policy", in J. Q. Wilson e J. Petersilia (orgs.), Crime (São Francisco:
Institute of Contemporary Studies, 1995), p. 492. "Os Estados Unidos,
agora, são o lar de hordas cada vez maiores de 'superpredadores' juvenis
- jovens radicalmente impulsivos, brutalmente inclementes, entre os quais
se incluem, mais do que nunca, garotos pré-adolescentes, que matam,
atacam, estupram, roubam, danificam, traficam drogas letais, se unem em
gangues armadas e criam desordens generalizadas", Bennett et ai., Body
Count, p. 27. Os artigos de Charles Murray sobre "a nova subclasse
britânica emergente" falavam do "populacho" e dos jovens do sexo
masculino que são "essencialmente bárbaros", C. Murray, Underclass:
The Crisis Deepens (Londres: IEA em associação com The Sunday Times,
1994), pp. 18 e 26. Como observa Adam Sampson, o debate sobre
criminosos sexuais ocorre freqüentemente no idioma demonizante. "Um
estereótipo cruel de um criminoso violento, calculista e eternamente
perigoso foi construído na imprensa popular e ( ... ) na literatura
'respeitável' sobre crimes sexuais", A. Sampson, Acts of Abuse: Sex
Offenders and the Criminal Justice System (Londres: Routledge, 1994).
88
M. Douglas, Risk and Biame: Essays in Cultural Theory (Londres:
Routledge, 1992); N. Christie, "Suitable Enemies", in H. Bianchi e R. van
Swaaningen (orgs.), Abolitionism: Towards a Non-Repressive Approach to
Crime (Amsterdã: Free University Press, 1986).
89
J. Q. Wilson e R. J. Herrnstein, Crime and HumanNature: The Definitive
Study of the Causes of Crime (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1986); L.
Mead, The New Politics of Poverty; C. Murray, The Emerging British
Underclass (Londres: The IEAHealth and Welfare Unit, 1990); C. Murray,
Underclass: The Crisis Deepens (Londres: Toe IEA Health and Welfare

308
Unit em associação com The Sunday Times, 1994); W. Bennett et al.,
Body Count (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1996).
90
Presidente Ronald Reagan, citado in K, Beckett, Making Crime Pay
(Nova Iorque: Oxford University Press, 1997), p. 47.
91
Para detalhes destes elementos contraditórios na política criminal da
administração Clinton, v. Lord Windlesham, Politics, Punishment and
Populism (Nova Iorque: Oxford University Press, 1998), pp. 30 ss; e 1-1.
Chemoff et al., "The Politics of Crime", Harvard Joumal of Legislation
(1996), vol. 33, pp. 527-79. Sobre as oscilações da política britânica, v.
Lord Windlesham, Responses to Crime vol. 3: Legislating with the Tide
(Oxford: Oxford University Press, 1996).

309
6. Complexo do crime: a cultura das sociedades
de alta criminalidade

No capítulo anterior estabeleci um argumento que procura


explicar as recentes transformações no controle do crime do ponto
de vista das agências governamentais e dos atores políticos direta-
mente responsáveis pela formulação política. Esse argumento será
aprofundado aqui, através da descrição das formas com que certas
modificações na estrutura social e nas sensibilidades culturais tor-
naram mais prováveis as políticas daquele tipo. Veremos que as
políticas que emergiram nas décadas recentes têm suas raízes numa
nova experiência coletiva do crime e da insegurança, experiência
que é, por si só, estruturada pelos arranjos sociais, econômicos e
culturais singulares da pós-modernidade.
As tendências sensoriais e emocionais desta experiência co-
letiva foram retomadas, retrabalhadas e infletidas para resultados
específicos pela classe política e por formadores de opinião: o pro-
cesso político é, naquele sentido, determinante. Seria, porém, equi-
vocado concentrarmos toda a nossa atenção nestes processos de
transformação e representação política. As recentes políticas de
controle do crime também dependem, para sua viabilidade e res-
sonância popular, da preexistência de certas rotinas sociais e sen-
sibilidades culturais disseminadas. Tais rotinas e sensibilidades são
as condições extrapolfücas que agora viabilizam (em sentido téc-
nico) políticas deste tipo, tomando-as desejáveis (para setores
cruciais do eleitorado) nos EUA e na Grã-Bretanha 1 .
Considerando-se que é no âmbito político que as estratégias
de controle do crime são desenvolvidas, discutidas e legisladas,
não causa surpresa que a maior parte dos comentários tenha se
concentrado no processo político e nos interesses e ideologias en-
volvidos. Contudo, as novas políticas de controle do crime são
social e culturalmente condicionadas, e o conteúdo, o tempo e o
apelo popular destas políticas não podem ser entendidos, salvo
por referência às mudanças na prática social e na sensibilidade

311
cultural. Isto não significa, repito, sugerir que as decisões políticas
sejam determinadas ou tomadas inevitáveis por eventos e circuns-
tâncias aleatórios. A política sempre envolve escolhas e tomadas
de decisões, bem como a possibilidade de agir em sentido diverso.
Meu argumento é que as políticas do tipo discutido aqui têm certas
condições de viabilidade, sendo que a presença destas condições
conjunturais aumenta substancialmente a probabilidade de que
venham a se tomar realidade.
Comecemos por recapitular, sumariamente, a análise do últi-
mo capítulo. Na Grã-Bretanha e nos EUA, no tempo presente, o
campo do controle do crime exibe dois novos e distintos padrões
de ação: uma estratégia de adaptação, que enfatiza a prevenção e
a parceria, e uma estratégia do Estado soberano, que postula mai-
or controle e punições expressivas. Ambas as estratégias - bastan-
te diferentes das políticas penais-previdenciárias que as precede-
ram - foram formadas em resposta a um novo dilema enfrentado
pelo governo nas sociedades pós-modernas. Tal dilema surgiu por-
que, em certo momento histórico, altas taxas de criminalidade se
tomaram um fato social normal, as soluções penais-previdenciárias
caíram em desgraça e o Estado de justiça criminal moderno foi perce-
bido como tendo falhado em prover níveis adequados de segurança.
A necessidade do Estado de reconhecer estas realidades sem
aparentar retrair-se em face delas constitui um problema político
agudo e recorrente. Atores políticos e autoridades governamentais
cada vez mais se apercebem do dilema e se adaptam a ele, por exem-
plo, concentrando-se nos efeitos do crime (vítimas, medo, custos
etc.) e não nas suas causas. Uma importante resposta tem sido a de
aliviar a responsabilidade do Estado como o principal provedor de
segurança, bem como a de tentar remodelar o controle do crime em
bases mais diluídas, compartilhadas. Neste cenário, o Estado traba-
lha através da sociedade civil e não sobre ela, enfatizando a preven-
ção proativa em vez da persecução e purtição de indivíduos. Solu-
ções de adaptação deste jaez são politicamente difíceis e
institucionalmente radicais. Elas envolvem a formação de organiza-
ções luôridas, que trafegam nas velhas fronteiras do público/priva-
do, que ativam ações preventivas da parte das comunidades, empre-
sas comerciais e cidadãos e que redefinem as missões instituicionais
das agências, tais como a polícia e as prisões. Os governos, tanto
312
na Grã-Bretanha quanto nos EUA, começaram a desenvolver res-
postas de adaptação para angariar apoio em parcerias com o setor
privado e para instituir urna nova infra-estrutura de prevenção do
crime e de policiamento comunitário.
No entanto, as autoridades governamentais - especialmente
autoridades eleitas - são profundamente arnbivalentes quanto a
estas estratégias, freqüentemente subtraindo-se às suas implica-
ções. Sob certas circunstâncias ou em relação a certos tipos de
crimes e criminosos, elas respondem ao dilema negando-o e
reativando o velho mito do Estado soberano. O resultado é a emer-
gência de modelos expressivos e intensivos de policiamento e pu-
nição que objetivam canalizar o sentimento público e a força total
da autoridade do Estado.
Continuemos agora com aquela análise, fazendo uma série de
perguntas sobre as duas estratégias. Por conveniência, chamarei es-
tas estratégias de parcerias preventivas - através da qual refiro-me ao
esforço de dividir responsabilidades pelo controle do crime e de cons-
truir uma infra-estrutura de prevenção do crime além do Estado - e de
segregação punitiva, que alude à nova confiança em métodos - o
principal dos quais a neutralização prisional - forjados para punir e
excluir2 . Desejo indagar o seguinte: de onde vêm estas estratégias?
Quais são suas condições históricas de existência? De quais fontes
derivam seu apoio social e sua ressonância cultural?
Uma análise das condições de existência destas duas estratégi-
as, na verdade, nos conduz por dois caminhos distintos e enfrenta
dois problemas bem diferentes, muito embora ambas tenham emer-
gido na mesma conjuntura histórica. A questão-chave da segrega-
ção punitiva se refere ao seu apoio social e cultural. Afinal de con-
tas, esta é uma política altamente visível, que desperta discussões
acaloradas e jamais poderia operar sem ampla adesão popular. No
que pertine às parcerias preventivas, o problema das pré-condições
é bem diverso. Parceiias preventivas, como a maior parte das adap-
tações administrativas, não são políticas de alta visibilidade, nem
requerem muito em termos de apoio eleitoral. No entanto, elas en-
volvem a invenção de novos modos de pensar e agir, bem como o
surgimento de novos hábitos e rotinas da parte de organizações e
atores privados. Se pretendemos entender como esta estratégia se
tomou viável na forma e no momento em que isto oconeu, somos
313
obrigados a explicar de onde estas idéias e modos de ação vieram.
Parcerias preventivas envolvem toda uma nova infraestrutura
na qual agências estatais e não-estatais coordenam suas práticas
de maneira a prevenir o crime e a aumentar a segurança da comu-
nidade através da redução de oportunidades e da conscientização
quanto ao crime. Em ambos os lados do Atlântico, temos visto o
crescimento do policiamento comunitário em suas várias formas.
Temos presenciado a coordenação de agências governamentais
locais, relacionadas a habitação, transportes, planejamento, edu-
cação e assistência social, no esforço de aumentar suas responsa-
bilidades para com o controle do crime. Temos testemunhado a
criação de parcerias público-privadas, tais como os Business
Improvement Districts, painéis de prevenção do crime e mecanis-
mos de viligância dos bairros, que procuram direcionar as energi-
as e interesses de cidadãos privados e associações comerciais para
objetivos ligados à prevenção do crime3 . Esta estratégia, que é
constantemente invocada por autoridades da justiça criminal nos
dois lados do Atlântico, implica um conjunto de crenças crimino-
lógicas (as novas criminologias da vida cotidiana); um estilo de
governança (responsabilização, governar à distância); e um reper-
tório de técnicas e conhecimentos, todos muito recentes e distin-
tos dos modos de pensar e agir até então praticados.
De onde vieram os novos conhecimentos? Quem os inventou
e como vieram a influenciar a política pública? Como foi possível
para as agências do Estado encontrar apoio para estas políticas
nos hábitos e rotinas dos atores privados? Estas são questões de
que tratarei mais detida.mente adiante. Por ora, desejo cuidar da
estratégia da segregação punitiva. As medidas reais que compõem
esta estratégia- sentenças condenatórias, encarceramento em mas-
sa, penas corporais - exigiram muito pouco em termos de
inventividade ou originalidade. Mas demandaram um certo grau
de apoio público e político que precisa ser explicado. Em minha
análise até agora, caracterizei a segregação punitiva como uma
forma de negação e de atuação simbólica da parte dos atores polí-
ticos envolvidos. No entanto, mesmo políticas que reajam ao dile-
ma contemporâneo negando sua existência possuem certas condi-
ções de existência que condicionam sua forma e conteúdo. É a es-
tas condições que me volto neste momento.
314
A estratégia da segregação punitiva
Condenações mais severas e o aumento no uso do encarcera-
mento; "Three Strikes" e penas privativas de liberdade mínimas
obrigatórias; cumprimento integral das penas e restrições à aplica-
ção da liberdade vigiada; proscrição das benesses nas prisões e
"cadeias austeras"; retribuição nos juizados de menores e o encar-
ceramento de crianças; a revivificação do acorrentamento coletivo
de presos e de penas corporais; campos de tratamento e prisões de
segurança máxima; a multiplicação de crimes punidos com pena
de morte e do número de execuções efetivadas; leis sobre notifica-
ção comunitária e registro de pedófilos; políticas de tolerância zero
e penas restritivas de certos comportamentos 4 . Existe agora uma
extensa lista de medidas que parece denotar uma virada punitiva
na punição contemporânea5 . Minha análise até o momento enfocou
estas medidas primordialmente em termos políticos - como for-
mas de atuação simbólica, de legislação retaliadora, de gestos que
simbolizam a vontade soberana ou de rituais politicamente orques-
trados de solidariedade mecânica. Punições mais duras - e a velha
retória da "lei e ordem" - são ministradas pelo Estado como um
gesto soberano de império para reconfortar o público. Elas são apoi-
adas pelo público, para quem este processo de condenação e puni-
ção serve como uma válvula de escape expressiva das tensões e
como momento gratificante de coesão, em face do crime e da inse-
gurança. É o gesto típico da "justiça expressiva", muito familiar nas
páginas da história. Entretanto, ao desenvolvermos esta análise, ve-
remos que as políticas punitivas atuais são diferentes em inúmeros
aspectos e que tais aspectos distintivos são moldados pelo contexto
social da pós-modernidade no qual surgiram. Em particular, a ver-
são atual da "estratégia do Estado soberano" depende, para obter
apoio, da preexistência de certas rotinas sociais disseminadas e de
sensibilidades culturais que só passaram a existir nas décadas derra-
deiras do século XX.
O primeiro ponto a ser assentado sobre as medidas de "endu-
recimento com o crime" é o seguinte: por mais que se engajem em
um modo de ação expressivo - punir como um fim em si mesmo,
canalizar o sentimento público, enfatizar objetivos punitivos - elas
simultaneamente revelam uma lógica mais instrumental. Tipicamen-
te, cada medida opera em duas dimensões distintas: uma escala pu-
315
nitiva, expressiva, que utiliza os símbolos de condenação e sofri-
mento para transmitir sua mensagem; uma dimensão instrumental,
preocupada com a proteção do público e com a administração de
riscos. Os modos favoritos de expressão punitiva são, também e
principalmente, modos de segregação e de estigmatização penal. A
preocupação política, hoje em dia, não é apenas puramente punitiva,
nem somente orientada à proteção do público. O novo ideal penal é
que o público seja protegido e que seus sentimentos sejam expres-
sados. A segregação punitiva- longas penas cumpridas em cadeias
sem privilégios e uma existência marcada e monitorada para aqueles
que sejam finalmente libertados - é, cada vez mais, a estratégia
penal preferida.
A segunda característica destas medidas é que são populistas e
politizadas6 . As medidas políticas são construídas de maneira a pri-
vilegiar a opinião pública em detrimento dos especialistas da justiça
criminal e das elites profissionais. Os grupos profissionais que um dia
dominaram a comunidade política estão cada vez mais perdendo ter-
reno. A política é formulada por comitês de ação política e por conse-
lheiros políticos-não por pesquisadores ou servidores civis7 . Inici-
ativas políticas são anunciadas em ambientes políticos- convenções
partidárias, entrevistas televisionadas. São batizadas com expressões
sonoras: "a prisão funciona'', "three strikes and you're out", "sem
benefícios nas prisões", "duro com o crime, duro com as causas do
crime". Freqüentemente, tais iniciativas são aprovadas com pouca
pesquisa prévia, bem como carecem do planejamento de custos e das
projeções estatísticas próprias de outras áreas políticas 8 .
A terceira característica desta estratégia é que se propõe a
conceder lugar privilegiado para as vítimas, muito embora o lugar
seja ocupado, verdadeiramente, por uma imagem projetada,
politizada, da "vítima", e não dos interesses e opiniões das próprias
vítimas. Ao introduzir novas medidas de segregação punitiva, auto-
ridades políticas rotineiramente invocam os sentimentos das "víti-
mas" como fonte de apoio e legitimidade. A necessidade de reduzir o
sofrimento presente ou futuro da vítima funciona, hoje em dia, como
uma justificação geral para medidas de repressão penal; o imperati-
vo político de reagir ante os sentimentos das vítimas agora serve
para reforçar os sentimentos retributivos que paulatinamente vêm
informando a legislação penal.
316
Se, um dia, as vítimas foram as baixas esquecidas e ocultas do
comportamento criminoso, elas agora retornaram para a vingança,
trazidas de volta aos olhos do público por políticos e executivos da
mídia que costumeiramente exploram a experiência da vítima em
seu próprio interesse. A imagem santificada da vítima sofredora se
tomou um bem valioso nos circuitos políticos e midiáticos: indiví-
duos de carne e osso são colocados diante das câmeras e convida-
dos a desempenhar tal papel - transformando-se, não raramente,
em celebridades da mídia ou em ativistas dos movimentos de víti-
mas. Nós nos acostumamos a ver as vítimas ou suas famílias acom-
panhando políticos norte-americanos no momento em que estes
anunciam novas leis que instituem penas privativas de liberdade em
que declarnm que alertarão as comunidades sobre os perigos que
criminosos libertados representam. As conferências dos partidos
políticos britânicos também têm sido um palco no qual as vítimas
desfilam ou, como dizem, "ganham voz" - não necessariamente a
sua própria voz, uma vez que elas são cuidadosamente ensaiadas,
de maneira a assegurai· que sejam adequadas à mensagem política
da qual agora fazem parte.
Como observei acima, o novo imperativo político é que as
vítimas devem ser protegidas; suas vozes devem ser ouvidas; suas
memórias devem ser honradas; suas raivas expressadas; seus me-
dos enfrentados. O batismo de leis criminais e medidas penais com
nomes de vítimas de crimes (lei de Megan, lei de Jenna, lei de
Stephanie9 e, mais recentemente, a campanha da imprensa britâ-
nica pela "lei de Sarah" 10 ) serve para honrá-las desta forma, em-
bora aqui induvidosamente exista também um elemento de explo-
ração, na medida em que o nome do indivíduo é usado para evitar
objeções às medidas que, na maioria das vezes, não passam de
legislação retaliadora, aprovada unicamente pai·a exibição pública
e obtenção de vantagens políticas. A santificação das vítimas tam-
bém tende a anular a preocupação para com os criminosos. A rela-
ção de incompatibilidade total que se acredita existir entre um e
outro faz com que qualquer demonstração de compaixão para com
os criminosos, qualquer invocação dos seus direitos, qualquer es-
forço de humanizar suas punições sejam representadas como um
insulto às vítimas e suas famílias 11 .

317
Como conseqüência desses usos, a figura simbólica da vítima
assumiu vida própria e desempenha papel central no debate político.
A vítima de crime não é mais representada como um cidadão desa-
fortunado situado na ponta receptora de um dano criminoso. As
preocupações dele ou dela não estão mais subsumidas no "interesse
público" que guia a persecução e as decisões penais. Em lugar disto,
a vítima de crime é, agora, de certa forma, um personagem repre-
sentativo cuja experiência é considerada comum e coletiva, e não
individual e atípica 12 . O sofrimento dele (ou mais habitualmente
dela) é representado no idioma imediato e personalizado dos mass
media e diz diretamente com os medos e rai vas do público especta-
dor, produzindo efeitos de identificação e de reforço que são apro-
veitados para fins políticos e comerciais.
O Partido Trabalhista britânico - pelo menos quando estava na
oposição - alertou que "todo mundo é uma vítima" e prometeu uma
política afinada com esta nova realidade. O relatório da Victims Task
Force do presidente Reagan insiste em que seus leitores enfrentem a
questão não por via do intelecto, mas através das emoções e do
imediatismo da empatia e identificação: "não se pode dar a importân-
cia devida à vítima, se se aborda a questão somente com o intelecto.
O intelecto se rebela. As impmtantes propostas contidas aqui não
estarão claras a menos que se confronte a realidade humana da
vitimização". Este depoimento é seguido porum relato doloroso, "ba-
seado no testemunho destas e de todas as outras vítimas em que nos
inspiramos para desenhar o retrato da vítima de crime. A vítima é toda
vítima, poderia ser você ou estar relacionada a você" 13 . Esta metáfo-
ra personalizante, repetida infinitamente nos noticiários e documentários
televisivos, representa a vítima de crime como a metonímia da vida
real, "poderia-ser-você", no que pertine ao problema da segurança
pessoal. E, assim fazendo, ela afasta o debate da razão instrumental
da análise do controle do crime, privilegiando as emoções viscerais da
identificação e da indignação justa. Uma vez consumada a mudança
de foco, os termos do debate se transfmmam e os "fatos" se tomam
"menos persuasivos do que a autotidade moral do luto" 14 . Se o nú-
cleo do previdenciarismo penal era o (ou a imagem projetada pelos
experts do) criminoso individual e as necessidades dele ou dela, o
centro do discurso penal contemporâneo é a vítima individual (ou sua
projeção política) e os sentimentos dele ou dela.

318
Parn entendermos os aspectos punitivos, expressivos, desta
estratégia e suas preocupações com segurança e segregação, te-
mos que explorar o novo significado coletivo de vitimização 15 .
Temos que examinar a nova experiência do crime e da inseguran-
ça que ele implica, bem como a retrabalhada relação entre a vítima
individual, a vítima simbólica e as instituições públicas que repre-
sentam seus interesses e administram suas reclamações. Como "o
público" veio a ser reconstituído na forma de tantas vítimas indi-
viduais de crimes? Como cada um de nós veio a assumir aquela
identidade? Estas questões exigem que olhemos para além do do-
mínio da ação política e adicionemos uma dimensão cultural e
psicológica à nossa análise.
As políticas atuais de segregação punitiva não devem serre-
baixadas a um mero rompante de algum instinto punitivo ou emoção
primitiva eternamente presentes. Emoções coletivas certamente são
um componente calculado de tais políticas, como deixa claro a in-
flamada retórica política que informa a legislação deste tipo. Mas
há algo sobre a cultura contemporânea que provoca esta emotivi-
dade e a enfática expressão de sentimentos, empurrando o discurso
político naquela direção. Indignação e raiva são os antídotos da cul-
tura para o medo e a ansiedade; a expressão aberta de tais emoções
é parte da consolação e terapia que ela oferece 16 . Os sentimentos
que agora vemos manifestados são bem específicos, fundados an-
tes em aspectos definidos da nossa organização social do que em
algum instinto punitivo perene. São condicionados, evocados e ca-
nalizados pelas rotinas sociais e práticas culturais da sociedade con-
temporânea, bem como aproveitados e articulados pela estratégia de
segregação punitiva de maneira particular, como resultado de pro-
cessos políticos e culturais específicos.
O problema da explicação histórica
A emergência desta estratégia demanda uma análise que pode
explicar seus elementos singulares, o tempo de sua aparição e a
extensão do seu apelo popular e político. Políticas de controle penal
nem sempre são expressadas em termos das necessidades das víti-
mas ou do imperativo da proteção pública. Nem sempre são uma
receita de sucesso político. Tampouco o controle do crime tem
aparentado ser sempre adequado para expressão e discussão
populistas. Na maior parte do século XX, a punição e o controle do
319
crime raramente apareceram na competição eleitoral, particularmente
em âmbito nacional 17 . Não foi antes dos anos 1960 nos EUA e da
metade dos anos 1970 na Grã-Bretanha que os partidos republicano
e conservador começaram a dar destaque ao crime em seus mani-
festos eleitorais. Muitas eleições se passaram antes que seus opo-
nentes democratas e trabalhistas começassem a reagir adequada-
mente, reação esta que serviu apenas para aumentar as apostas, em
vez de mudar o jogo. A velha sabedoria convencional era de que
autoridades políticas eleitas deviam evitar pronunciamentos confliti vos
numa área em que o fracasso político era bastante provável 18 . Até
recentemente, os pormenores do sistema prisional e do controle do
crime foram freqüentemente deixados para os profissionais da jus-
tiça criminal; a "opinião pública" era vista como um elemento
perturbador ocasional da política criminal, e não uma fonte privile-
giada de iniciativas políticas. De alguma forma, a relação entre polí-
ticos, o público e os especialistas se transformou, com importantes
conseqüências para a política e a prática.
A capacidade de grupos profissionais de assegurar controle
com a formulação de políticas criminais e de efetivamente
despolitizar questões relacionadas ao controle do crime foi uma
constante do enquadramento penal-previdenciário que dominou a
formulação de políticas nas décadas seguintes à Segunda Guerra
Mundial. Os profissionais da previdência social lograram caracteri-
zar as questões relativas ao controle do crime como questões es-
sencialmente técnicas, mais bem administradas pelo conhecimento
especializado e pela pesquisa empírica. Também lograram caracte-
rizar preocupações retributivas oµ expressivas como irracionais e
inadequadas - emoções fúteis que deveriam ser reprimidas - ao
ponto de banir os sentimentos explicitamente punitivos do discurso
oficial sobre o crime e seu controle. Se o ressurgimento do
punitivismo na política criminal representa o retomo do recalcado,
' então isto sugere uma ruptura no equilíbrio entre populismo e
profissionalismo no processo de formulação de políticas. Devemos
nos indagar o seguinte: como a opinião pública veio a ser tão exerci-
tada sobre o crime e por que os agentes do sistema penal perderam sua
capacidade de limitar o impacto do público na política?
Alega-se, às vezes, que o apoio público às medidas punitivas é
um fenômeno superficial, gerado pela mídia. A alegação consiste em
320
que as políticas duras com o crime não se originam de nenhum
rompante de demanda pública; que o público não está verdadeira-
mente comprometido com tais políticas; e que dito compromisso,
tal como existe, foi artificialmente criado e incentivado pelas ima-
gens e campanhas da mídia que representam equivocadamente tan--
to o crime quanto o sentimento público. O apoio público por mais
"lei e ordem" é, de acordo com esta linha de pensamento, o resulta-
do fabricado de uma retórica política manipuladora e de uma im-
prensa popular panfletária. Não pode haver dúvida de que as notíci-
as dos tablóides e a ficção televisiva são importantes definidores do
conhecimento popular relativo ao crime e que o resultado disto é
uma boa dose de desinformação e de mistificação. Também é ver-
dadeiro que as atitudes públicas sobre o crime e a pena são condici-
onadas pela informação e às vezes talvez sejam mudadas através de
meios educativos 19 . Mas é errado inferir disto que o universo de
eleitores seja facilmente convencível e infinitamente maleável, que o
apoio maciço às políticas de "lei e ordem" possa ser erigido a partir
do nada20 ou que os jornais e televisões possam criar e sustentar
uma ampla audiência para as histórias de crimes sem certas condi-
ções sociais e psicológicas preexistentes 21 .
Políticas repressivas não são isentas de custos. As políticas
atualmente almejadas nos EUA e na Grã-Bretanha geram níveis
inéditos de dispêndio de recursos com o sistema prisional 22 . Os
gastos públicos com a "lei e ordem" aumentam o fardo tributário
ou reduzem outras linhas de investimentos públicos, tais como
educação, assistência médica ou programas de criação de empre-
gos23 . Novos poderes para a polícia, penas mais elevadas, medi-
das restritivas da liberdade de ex-condenados - cada uma dessas
tem um preço em termos de erosão das liberdades civis e da redu-
ção do poder do cidadão ante o Estado. O apoio público por tais
políticas - como o bem documentado fascínio de largos setores da
população pelo noticiário e pela ficção eliminai- é fenômeno que
tem certas condições preexistentes24 . Ele não surge do nada, graças
aos poderes mágicos da ideologia, nem pela força inelutável da retó-
rica política. Se amplas parcelas da população estão agora emocio-
nalmente investidas em questões relacionadas ao controle do crime
e apóiam a legislação repressiva, dando seu voto e gastando o di-
nheiro dos seus impostos com tais leis, então isto configura um

321
fenômeno que requer explicação. As evidências de manipulação ide-
ológica e de convencimento político são relevantes aqui, mas não são
suficientemente fortes para explicar o fenômeno completamente.
Finalmente, há a questão do tempo histórico. A disseminada
expressão de sentimentos punitivos pelo legislador e a emergência
de leis e políticas penais que expressam tais sentimentos não se
correlacionam diretamente com as crescentes taxas de criminali-
dade. O ápice da reação penal, tanto nos EUA como na Grã-
Bretanha, ocorreu no meio e final dos anos 1990, bem depois do
ápice da vitimização. No caso dos EUA, este "descompasso" não
é de meses ou de anos, mas de décadas 25 .
Uma nova experiência do crime
Minha hipótese é que as estratégias de parcerias preventivas
e de segregação punitiva são condicionadas por, e adaptadas a,
uma experiência historicamente singular do crime, que começou a
tomar forma nos anos 1960 e 1970. As coordenadas daquela expe-
riência foram estabelecidas antes e de forma mais intensa nos EUA
do que na Grã-Bretanha; cada país possui suas características e
ênfases próprias. Mas são suas similitudes que desejo sublinhar aqui.
Argumentei antes que as altas taxas de criminalidade se tor-
naram um fato social normal nos EUA e na Grã-Bretanha e que
este fato social normal, junto com alguns fenômenos relaciona-
dos, criou um novo dilema relativo ao controle do crime para as
agências governamentais e para a classe política. Vimos como os
atores governamentais e políticos reagiram ao referido dilema e
como as estratégias contemporâneas de controle do crime foram
erguidas em meio ao processo de reação, adaptação e solução de
problemas. Mas se altas taxas de criminalidade se tornaram um
fato social normal - parte da consciência moderna, um risco diário
a ser avaliado e administrado - então trata-se de um fato inicial-
mente enfrentado e negociado pela população em geral, pelas pesso-
as que executam suas atividades diárias, que levam suas vidas nor-
malmente. Foi o engajamento ativo da população (ou, melhor dizen-
do, dos indivíduos, dos seus lares, das comunidades e organizações
que a compõem) naquele novo fato social que gradualmente produ-
ziu uma nova experiência coletiva do crime e um novo conjunto de
possibilidades para o controle do crime.

322
Por "experiência", não quero referir-me ao conceito empírico
impossível: o encontro direto, imediato, com o real. Os indivíduos
podem estar na ponta vitimizada de atos criminosos, mas nenhum
de nós experimenta o "crime" de maneira imediata, ingênua ou
súbita. A experiência do crime historicamente situada a que me
refiro é aquela constituída para, e vivida por, indivíduos social-
mente situados, que habitam o complexo de práticas, saberes, nor-
mas e subjetividades que compõem uma cultura. Trata-se de uma
experiência cultural coletiva, que enreda suas linhas de significa-
do em cada encontro individual, e que é, por outro lado, infletida e
revisada pelos milhares de encontros semelhantes que ocorrem
todos os dias. Falar de uma "experiência do crime" neste sentido
implica falax do significado que o crime possui para determinada
cultura, num momento específico 26 . Significa falar de um tecido
densamente entrelaçado de mentalidades e sensibilidades coleti-
vas e de um conjunto de termos através dos quais estas são publi-
camente representadas - uma rede cultural ligada a formas especí-
ficas de vida, que, precisamente por esta razão, é resistente a mu-
danças e a alterações deliberadas.
Tal conceito é, obviamente, muito amplo, muito abstrato e
muito genérico para ser utilizado para a maioria das finalidades.
Mas nos permite, penso, destacar alguns contrastes históricos mais
gerais, tal como o contraste entre a experiência do crime que ante-
riormente amparou o previdenciarismo penal27 e a nova experiên-
cia que ampara o reconfigurado campo atualmente em formação.
Também nos permite identificar os elementos básicos de percep-
ção e de preocupação nos quais as políticas governamentais se
engajam e aos quais alegam responder.
A experiência coletiva do crime é, evidentemente, altamente
diferenciada e estratificada, particularmente em sociedades mo-
dernas. Grupos sociais e indivíduos estão situados diferentemente
em relação ao crime - desigualmente vulneráveis à vitimização, de-
sigualmente receosos dos riscos desta, desigualmente orientados
por valores, crenças e educação no que tange a sua atitude com
relação às suas causas e remédios. Mapear tais diferenças, contudo,
não é necessário para a hipótese que busco confirmar aqui 28 . O que
busco isolar e explicar não é a distribuição de sentimentos puniti vos,
mas a mudança específica que ocmTeu nas últimas duas ou três
323
décadas - mudança esta que gerou o efeito de tornar o crime muito
mais relevante, como fato social e cultural29 .
Já vimos como, nos anos 1970 e 1980, mudanças nas posi-
ções econômicas e sociais de amplas parcelas das classes média e
trabalhadora facilitaram a formação política de novas alianças de
classes e relações raciais, bem como a ascensão ao poder de um
regime político mais conservador. Por motivos já discutidos, este
bloco político se opôs às políticas que pareciam beneficiar os "po-
bres indesejáveis", era cético quanto à "previdência" e apoiava
controles mais agressivos para uma "subclasse" percebida como
desordeira, inclinada ao uso de drogas e perigosa. Pesquisas de
opinião 'forneceram evidências de uma mudança correspondente
da opinião pública num sentido mais punitivo tanto nos EUA quanto
na Grã-Bretanha, ao longo dos últimos vinte anos 30 . Mas antes de
considerar que estas amplas mudanças na opinião pública explicam
as mudanças subseqüentes na política criminal, devemos nos recor-
dar que, na maior parte do século XX, a política não foi absoluta-
mente ditada pelo "público", que agia como elemento de ruptura da
reforma penal, e não cqmo seu incenti vador principal. O modernis-
mo penal, ao revés, consistiu na criação de departamentos governa-
mentais, encorajada pelas influentes vozes de experts, profissionais
e reformistas e amplamente apoiada pelos setores mais educados
das classes médias e das freqüentemente chamadas "elites liberais".
Estes grupos de status elevado foram os principais simpatizantes do
enquadramento penal-previdenciário, os oponentes mais obstinados
das medidas punitivas e os proponentes mais entusiasmados de um
processo político baseado em pesquisa. Qualquer análise séria das
recentes políticas de lei e ordem deve explicar como estes grupos
vieram a exercer menos influência ou, de outra sorte, vieram a mu-
dar suas atitudes para com o crime e as preferências políticas que
fluíam deles. O centro estratégico de análise não é a opinião pública
como um todo, mas a experiência cambiante e a posição política
deste grnpo específico. Enquanto a opinião pública efetivamente se
virou para uma direção mais punitiva, foi este grupo que teve suas
atitudes e disposições mais profundamente transformadas ao longo
das três últimas décadas. Foram suas adaptações à experiência de
altas taxas de criminalidade que tiveram o impacto mais significati-
vo nas políticas criminais e no controle do crime31 .

324
As classes médias profissionais e o previdenciarimo
penal
Elites liberais, as classes médias instruídas e profissionais do
setor público (às vezes coletivamente referidos pelos sociólogos
como "as novas classes") foram os grupos que mais apoiaram os
objetivos previdenciaristas e correcionalistas da política crin,inal
do pós-guerra, bem como os que insistiram numa abordagem
profissionalizada, técnica, especializada, para administrar a justi-
ça criminal 32 . Eles o fizeram na condição de eleitores, provendo
sólido apoio ao Estado de bem-estar e aos programas da Great
Society e também através de sua capacidade enquanto novo espec-
tro de grupos ocupacionais (profissionais do serviço social, edu-
cadores, psicólogos, psiquiatras, administradores do Estado, agentes
do livramento condicional e de liberdade vigiada etc,) que ocupa··
vam o largo setor público do Estado de bem-estar. A formulação
de políticas criminais era, até bem pouco tempo atrás, de certa
forma removida do escrutínio público crítico e da força da opinião
pública, da mesma forma que os profissionais e administradores
que comandavam o sistema eram capazes de exercer influência
desproporcional sobre sua direção 33 .
Três condições ligavam os profissionais das classes médias
às políticas correcionalistas de controle do crime. Primeiro, havia
interesses políticos e econômicos que uniam as classes médias às
políticas e instituições do Estado de bem-estar. Eram estes grupos
- e não os pobres ou as classes comerciais e empresariais - que
mais tinham a ganhar com os efeitos redistributivos do seguro na-
cional compulsório, da seguridade social, da assistência médica
nacional, dos subsídios habitacionais e da educação pública34 .
Eram seus filhos e filhas que se beneficiavam das novas oportunida-
des de mobilidade social positiva, oferecidas pela abertura de educa-
ção superior em larga escala. E foram estes grupos que assumiram
as novas posições ocupacionais criadas pela expansão do Estado,
particularmente nos seus novos setores do trabalho social e da as-
sistência infanti1 35 .
Em segundo lugar, para as classes médias instruídas, uma ati-
tude "civilizada" relacionada ao crime - destacando circunstâncias
sociais e não a responsabilidade individual, preconizando tratamen-
tos curativos e não a pena - era um sinal de distinção cultural, sepa-
325
rando a opinião urbana, educada, aculturada das visões mais vulga-
res, mais reacionárias, dos grupos situados acima e abaixo na hie-
rarquia social. O contraste com a "mentalidade restrita" pequeno-
burguesa e com as atitudes tacanhas e rudes das classes mais bai-
xas era particularmente importante para a construção de uma certa
auto-imagem da classe média, como também a crítica dos seus su-
periores sociais que pareciam dar mais valor à propriedade do que
ao humanismo e à compaixão36 .
A terceira consideração tem a ver com a distância social que,
até bem recentemente, separou a classe média profissional do cri-
me e da insegurança. Diferentemente dos pobres, ou mesmo das
classes médias baixas, as classes médias profissionais nos anos
1950 e 1960 residiam tipicamente em lugares distantes dos even-
tos criminosos37 • Elas ocupavam partes da cidade e os subúrbios
com baixa criminalidade. Seus filhos freqüentavam boas escolas,
que, além de disciplinadoras, eram livres do crime, das drogas e
da violência. Suas rotinas diárias não as expunham à ameaça do
crime, assim como o medo do crime não ocupava um lugar de
destaque em suas consciências. Como resultado disto, seu pensa-
mento sobre o crime era amplamente moldado por estereótipos e
ideologias - neste caso, os estereótipos da criminologia moderna e
a ideologia social-democrata, progressista - e desapercebido de
fatos concretos ou encontros diretos. Sua imagem preferida do cri-
minoso era aquela do adolescente subsocializado, subeducado,
subdesenvolvido - o delinqüente juvenil, para quem a reforma
social e o tratamento correcional eram a resposta adequada. Sua
experiência de classe do crime, que era altamente influente em
informar a política criminal, foi, assim, construída pela distância
social do problema, pelos baixos níveis de vitimização e pelo saber
especializado e ideologias do Estado de bem-estar através dos quais
explicava-se este "problema da pobreza" 38 .
As classes médias profissionais eram, sobretudo, um grupo
social economicamente próspero, que gozava da segurança e do
status conferido pela formação acadêmica e pelas credenciais pro-
fissionais na sociedade cada vez mais profissionalizada das déca-
das do pós-guerra. Deste ponto privilegiado, o grupo era capaz de
adotar uma atitude civilizada quanto ao crime e aos criminosos.
Via-se o crime como problema social ligado a, e explicável por,
326
condições sociais deficientes e sensível às soluções profissionais e
de engenharia social, nas quais tal grupo se especializava. Para
aquelas classes médias, adotar uma atitude correcionalista, não-
puniti va, significava, de uma só vez, desdenhar as vulgaridades
dos subeducados, expressar compaixão pelas massas pobres e
aprofundar seus próprios interesses profissionais. A despolitização da
política criminal, a supressão de temas puniti vos, a profissionalização
da justiça criminal e a preponderância de objetivos cmTecionais -
todos os elementos-chave que caracterizavam o controle do crime no
período do pós-guerra - foram em ampla medida as conquistas des-
te grupo social e de seus representantes políticos, agindo num con-
texto estrutural altamente suscetível a resultados deste tipo.
A influência decrescente da expertise social
O que aconteceu nas últimas décadas que minou tal estado de
coisas? Por que o estreito vínculo entre as classes médias e o
previdenciarismo penal se desfez? Duas explicações se oferecem,
cada uma das quais parece plausível dadas as evidências disponí-
veis. Uma possibilidade é a de que as elites profissionais se toma-
ram menos capazes de resistir ao impacto da opinião popular no
âmago do processo de formulação política - seja porque a formu-
lação política ficou mais politizada, seja porque tais grupos profis-
sionais perderam um pouco de seu status e credibilidade. Outra
possibilidade é a de que as próprias classes médias profissionais
tenham arrefecido seu apoio ao previdenciarismo penal, optando
por respostas punitivas ao crime. Sugiro que há razões para acre-
ditarmos que ambos os processos estejam em andamento.
Desde os anos 1970, os profissionais do setor previdenciário
têm experimentado um agudo declínio de status e de influência po-
lítica - declínio que é parte de uma reação mais geral contra o Esta-
do de bem-estar e os tipos de saberes sociais que formaram seu
lastro 39 . Soluções de mercado, responsabilidade individual e auto-
ajuda paulatinamente substituíram o coletivismo do Estado de bem-
estar, e a política social veio dar mais ênfase à expertise gerencial do
que aos profissionais do serviço social. Um importante pilar das
políticas penais-previdenciárias, pois, diminuiu em sua significância.
Agentes do sistema penal, cujas políticas e ideologias vieram a
ser associadas às décadas de criminalidade crescente e ao fracasso

327
institucional, não escaparam desta trajetória de denocada40 . Estes
grupos vivenciaram um processo de desmoralização e de
questionamento, como conseqüência da crítica da autoridade pro-
fissional ocorrida nos final dos anos 1960. Quando, no início dos
anos 197 O, a fé na reabilitação começou a ruir, importantes grupos
profissionais do previdenciarismo penal se juntaram aos
criminólogos acadêmicos e a reformistas radicais na adesão a esta
crítica e na revelação pública de suas dúvidas com relação ao pro-
jeto correcionalista41 . Quando, posteriormente, todo o ethos pe-
nal-previdenciário começou a ser desafiado por correntes mais re-
acionárias e retributivistas, os grupos mais intimamente associa-
dos a tal ethos se dividiram internamente, sendo incapazes de en-
gendrar qualquer oposição efetiva à mudança.
Desde a metade dos anos 1970, os legisladores têm gradu-
almente reclamado o poder punitivo que antes havia sido dele-
gado aos especialistas, revertendo, assim, o padrão histórico
que acompanhou a ascensão do enquadramento penal-
previdenciário. O desfazimento daquilo que Foucault chamou de
"Declaração de Independência Carcerária" começou com os
movimentos de direitos dos presos e com a disseminação gradu-
al do devido processo legal no sistema prisional42 . Desde aquela
época, uma variedade de mecanismos - penas privativas de li-
berdade mínimas, diretrizes para condenações, parâmetros naci-
onais de livramento condicional e de prestação de serviços co-
munitários, redução das hipóteses de soltura antecipada, escrutí-
nio político mais intenso dos regimes prisionais - aprofundaram
o processo de redução da autoridade dos especialistas e profissi-
onais que anteriormente haviam administrado o sistema.
A posição de profissionais da área social no sistema penal foi,
assim, questionada a partir do final dos anos 1970, tendo sido exa-
cerbada nos anos 1980 porreformas organizacionais que transferi-
ram o processo decisório de clínicos e práticos para os administra-
dores e gerentes 43 . Esta redução na credibilidade e na influência
política dos especialistas da justiça criminal e da área social trouxe
importantes conseqüências para a política da justiça criminal. Até
recentemente, tais profissionais funcionavam como um tipo de es-
cudo, protegendo os processos políticos e a administração diária do
impacto da opinião pública. A influência descrescente daqueles gru-
328
pos, juntamente com a politização da política criminal, alterou a
dinâmica de formulação de políticas nesta área, tornando-a mais
sensível à pressão populista exercida de fora.
Mas os destinos cambiantes dos grupos profissionais propor-
cionam uma explicação apenas parcial para uma mudança de dire-
ção política bastante radicaL Tivessem acontecido por si sós, tal-
vez estes desdobramentos internos pudessem ter modificado o
previdenciarismo penal - diminuição do poder discricionário,
judicialização maior do processo decisório, quem sabe uma guina-
da na direção de objetivos mais punitivos. Mas é difícil acreditar
que a reconfiguração da punição fosse tão longe, caso a opinião da
elite liberal tivesse permanecido firmemente ao lado da ortodoxia
penal-previdenciária.
De fato, não permaneceu. O otimismo liberal e as ideologias
correcionalistas destes grupos passaram por sério declínio a partir
dos anos 1970; nos anos 1980, muitos dos seus membros apoia-
vam partidos comprometidos com políticas criminais mais seve-
ras44. Esta mudança de opinião ocorreu em dois estágios. O pri-
meiro destes - a mudança da ideologia correcionalista para preo-
cupações com a "pena justa" e o devido processo legal - já foi
muito discutido e é relativamente fácil de explicar como resultado
dos processos descritos no capítulo três 45 . O que é muito mais
difícil de explicar é por que o ceticismo dos anos 1970 quanto ao
correcionalismo desaguou, nos anos 1980 e 1990, nas estratégias
paiiiculares que de fato surgiram - estratégias que guai·davam pouca
semelhança com os programas de reforma originais. A explicação
convencional para isto é eminentemente política. O movimento libe-
ral por penas justas e retributivismo foi rapidamente apropriado por
políticos eleitos e legisladores linha-dura que - num cenário de alta
criminalidade e pânico moral - aumentaram as apostas no puniti vismo
e a quantidade de pena para além de qualquer limite preconizado pela
crítica liberal à reabilitação 46 . Isto é sem dúvida verdadeiro. Esta
explicação, porém, falha em dar conta do cachorro que não latiu.
Falha em mencionar as classes médias profissionais, um grupo ou-
trora poderoso e articulado, que pouco fez para se opôr à virada na
direção de políticas punitivas. É verdade, evidentemente, que vozes
liberais não restaram completamente silentes e que ainda podem ser
ouvidas criticando o punitivismo e a desumanidade. Mas agora soam
329
como vozes no deserto, ecoando o sentimento de uma época passa-
da, carentes de apoio real no domínio político. Cada vez mais pare-
cem vozes isoladas, desprovidas de apoio significativo mesmo den-
tro de sua própria classe social. O que distanciou a opinião da classe
média de sua tradicional abordagem civilizada no que concerne a
questões penais, aproximando-a das novas políticas de punição e
proteção?
A crescente relevância do crime
As mutações sociais e espaciais, que deram causa às altas ta-
xas de criminalidade nos anos 1960 e nas décadas seguintes, tam-
bém, e de forma independente, transfonnaram a experiência da classe
média com o crime. De problema que afetava majoritariamente os
pobres, o crime e a incivilidade (particularmente vandalismo, fur-
tos, invasão a domicílios e roubos) se tornaram paulatinamente um
fator diário para quem quer que possuísse um automóvel, usasse o
metrô, deixasse sua casa vazia durante o dia ou andasse nas ruas
das cidades à noite. A vitimização continuou a ser desigualmente
distribuída, com os pobres e minorias suportando as maiores con-
seqüências do aumento nos níveis de criminalidade, mas, no lapso
de tempo conespondente a uma geração, o crime se tornou fato
proeminente da vida não apenas para a classe média urbana mas
também para muitas classes médias moradoras dos subúrbios 47 •
Os grupos que haviam sido os principais beneficiários da explosão
do consumo do pós-guena agora se encontravam muito mais vul-
neráveis do que antes, em face dos crescentes níveis de crime e
violência que aquela explosão trouxe consigo. À medida que os si-
nais do crime e da desordem ficaram mais visíveis nas ruas - na
forma de vandalismo e pichação, da incivilidade de adolescentes não
vigiados ou do comportamento errático dos doentes mentais então
recentemente desinstitucionalizados -, o medo do crime se tornou
um dado indissociável da existência diária48 . Aquilo que um dia fo-
ram, para boa parte da população de classe média, apenas medos
ocasionais, transitórios, ligados a situações particulares e circuns-
tâncias incomuns, agora virou rotina, parte do habitus da vida coti-
diana, especialmente nas grandes cidades49 . A distância social entre
as classes médias e o crime se reduziu significativamente, afetando,
assim, os pontos de vista e as perspectivas.

330
Não há dúvida de que a distribuição de medos era um indica-
dor muito inexato para os atuais padrões de vitimização e de risco,
mas crescentes níveis de preocupação com o crime certamente fo-
ram disparados pelo grande aumento no número de crimes regis-
trados (especialmente aqueles praticados com violência) verifica-
do nas décadas posteriores aos anos 1960. À medida que mais e
mais pessoas sofreram furtos, roubos ou agressões ou tiveram um
amigo próximo ou parente que passaram por isso; à medida que o
furto de automóveis passou a acompanhar o volume de venda de
tais bens; à medida que os sinais de vandalismo e de abuso de dro-
gas começaram a se manifestar nas mas e escolas das cidades; e à
medida que estatísticas norte-americanas revelavam um aumento
no número de homicídios praticados por agressores anônimos, as
crescentes taxas de criminalidade deixaram de ser uma abstração
estatística e assumiram um significado pessoal real na consciência
popular e na psicologia individual50 . Estas angústias relacionadas ao
crime, cumuladas com as inseguranças mais difusas decorrentes da
rápida transformação social e da recessão econômica, pavimenta-
ram o caminho para uma política de reação no final dos anos 1970.
Tal política, por seu turno, contribuiu para conduzir as angústias
difusas da classe média no sentido de um conjunto de atitudes e
compreensões mais centradas, identificando os criminosos, nome-
ando o problema, criando bodes expiatórios. À medida que as clas-
ses médias se perceberam vítimas regulares de crimes, elas foram
simultaneamente estimuladas a verem a si próprias como vítimas do
governo total, das políticas de tributação e gasto, de programas
previdenciários irresponsáveis, da inflação de sindicatos de traba-
lhadores e, nos EUA, de programas de ações afirmativas. Todos
estes foram tidos como militantes contra os interesses da "classe
média trabalhadora, decente", e benéficos somente aos pobres ur-
banos indesejáveis e cada vez mais desordeiros. Se as classes médi-
as eram agora as vítimas, seus algozes eram uma subclasse
indesejada, financiada por políticas previdenciárias equi voe adas e
protegida por profissionais do serviço social com interesses própri-
os e por elites liberais que não viviam no mundo real.
Eventos de grande visibilidade - como os distúrbios urbanos
que ocorreram nos EUA nos anos 1960 e, na Grã-Bretanha, no iní-
cio dos anos 1980, ou a publicidade maciça dada ao uso de heroína,

331
cocaína e crack e às patologias correlatas, ou crimes atrozes, como
os assassinatos de James Bulger e Polly Klaas 51 - emprestaram co-
res dramáticas ao assunto para muitos, transformando o crime e a
violência em assuntos de interesse nacional e fixando-os como ca-
nais para a expressão de medos mais difusos. Imagens da mídia de
jovens revoltosos, "drogados" violentos e de uma subclasse aliena-
da, irascível e autodestrutiva eram especialmente eficazes em
aprofundar o alarme sentido pelas classes médias, assim como em
vincular o crime a questões de classe e raça52 .
O medo do crime está intimamente relacionado com o medo
de estranhos, e a dinâmica de classes sociais dos anos 1980 e 1990
(nos quais se deu a concentração da pobreza e do desemprego na
juventude urbana, especialmente entre homens negros, intensifi-
cando sua exclusão social e cultural e construindo a percepção de
constituírem uma nova classe perigosa, alienada) contribuiu para
exacerbar tais medos 53 . As políticas sociais neoliberais que inten-
sificaram a exclusão e privação de grupos sociais específicos pro-
duziram novos problemas de ordem e novos medos relacionados à
manutenção desta. Os medos recrudesceram também graças à trans-
formação no perfil de crimes praticados, que se processou nos anos
1980 nos EUA e um pouco mais tarde na Grã-Bretanha: o relativo
aumento de crimes violentos, notadamente relacionados às drogas
(tais como roubos, invasão a domicílios e homicídios), foi especi-
almente problemático porque aqueles envolvidos em tais delitos eram
freqüentemente retratados como desesperados, capazes de praticar
atos violentos gratuitamente.
Mudança social e as atitudes da classe média para
com o crime e o controle
Estes novos receios da classe média com o crime foram signi-
ficativamente afetados por três desdobramentos sociais que se veri-
ficaram ao longo do mesmo intervalo de tempo.
Crime e os lares da classe média
O primeiro destes tinha a ver com algumas mudanças básicas
que ocorreram na organização característica e no "estilo de vida"
de muitas fa11111ias de classe média54 . A solidez do ambiente familiar
de classe média, nos anos 1950, deu lugar a uma organização muito
mais complexa e frágil, que requer bem mais em termos de adminis-

332
tração, planejamento e coordenação do que antes. As principais ten-
dências sociais dos anos do pós-guena - a disseminação do auto-
móvel, a migração em massa para os subúrbios, o aumento de tem-
po e distância para se chegar ao trabalho, o movimento de ingresso
das mulheres no mercado de trabalho, o aumento de famílias com
ambos os pais trabalhando, aumento nas taxas de divórcio, a
terceirização do cuidado doméstico e da assistência infantil - causa-
ram grande impacto no ambiente familiar da dasse média tanto nos
EUA quanto na Grã-Bretanha. Muitas destas novidades aumentaram
substancialmente a liberdade, as oportunidades e a prosperidade de
membros de tais ambientes familiares, especialmente as mulheres,
que não estão dispostos a abrir mão destas conquistas. Mas o custo
destas conquistas históricas tem sido freqüentemente um profundo
sentimento de vulnerabilidade, de insegurança, de precariedade. Nos
ambientes familiares da classe média abastada existe uma necessi-
dade constante de administrar o tempo; de coordenar pessoas e
eventos; de planejar a escola, o trabalho, as compras e o lazer 55 .
Os chefes de família, que na prática são as esposas e mães,
devem lutar continuamente para impor pelo menos um resquício
de controle sobre uma rotina alucinante de atividades. As tendên-
cias de "separar o tempo e o espaço" e de "desagregação de
sistemas sociais" que sociólogos apontam como características
da pós-modernidade são experimentadas e administradas diaria-
mente pelos indivíduos, enquanto estes se esforçam em levar as
crianças à escola ou à creche situadas do outro lado da cidade, vão
ao trabalho, desempenham as pequenas atividades domésticas, man-
têm contato com amigos e parentes distantes, consettam seus automó-
veis e, ao mesmo tempo, tentam controlar os gastos, os in vestimentas,
os planos de aposentadoria, bem como cuidam dos seus relacionamen-
tos e se preocupam com a saúde56 .
O problema de administrar, de exercer controle sobre os even-
tos, de impedir o caos doméstico iminente, é mais intenso do que
no tempo em que uma divisão de trabalho mais rigidamente base-
ada no sexo assegurava que a mulher permanecesse em casa, cui-
dando destas tarefas por si só, e o homem ganhava um "salário
familiai·" suficiente pai·a suprir todas as necessidades do lar 57 . O
sentimento de precariedade, de fragilidade da existência, é um im-
portante elemento novo nas vidas das pessoas, mesmo que a vida

333
seja mais variada, movimentada e excitante. Este sentimento de in-
segurança ontológica é maximizado por recentes mutações na natu-
reza do trabalho e pelo caráter cambiante da carreira profissional.
Também é exacerbado pela substituição da seguridade social provi-
da pelo Estado em favor da autonomia dos planos de aposentadoria
privados e das provisões previdenciárias oferecidas pelo mercado,
assim como pelas angústias difusas com o colapso das instituições
sociais e com a dissolução da família 58 . Minha conclusão, porém, é
que este novo elemento de precariedade e de insegurança se insere
no tecido da vida cotidiana e tenderá a persistir mesmo que a econo-
mia passe por seus ciclos periódicos ou seja congelada pela
globalização e pelos efeitos desta. É pouco surpreendente, assim,
que a necessidade de estabelecer controle aos riscos e incertezas e
que o desejo de afastar a insegurança tenham se tornado aspectos
mais do que nunca urgentes da psicologia e da cultura da classe
média59 . É pouco surpreendente, outrossim, que as pessoas de-
mandem conhecer cada vez mais os riscos aos quais estão expostas
pelo sistema penal e que tenham cada vez menos paciência quando
o sistema falha em controlar os indivíduos "perigosos" que estejam
ao seu alcance.
Estes desdobramentos econômicos e ecológicos deixaram o
ambiente familiar e seus membros mais vulneráveis ao crime do
que antes. A ausência do guardião doméstico; a acumulação de bens
móveis valiosos; a propriedade de veículos automotores; os lares
dispersos do subúrbio, desprovidos dos controles naturais das vizi-
nhanças aglutinadas e dos transeuntes-todos estes fatores aumen-
taram a probabilidade de vitimização 60 . Aconteceu o mesmo em
decorrência da retração de adultos e famílias "respeitáveis" doses-
paços públicos das cidades para dentro de suas casas e de outros
espaços privados de lazer-movimento que fez os parques públicos,
praças e ruas parecerem mais desordenados e inseguros, particular-
mente para aqueles grupos que os abandonaram61 .
Ao longo dos anos do pós-gue1n, a estrutura da vida cotidiana
se tornou mais permeável, mais aberta, mais geradora de oportuni-
dades para a vitimização criminal. O que viria a ser visto como um
fracasso do Estado de justiça criminal talvez seja visto de maneira
mais precisa como uma distensão do tecido social, à medida que os
processos da pós-modernidade de "distanciamento de tempo-espa-

334
ço" relaxaram os controles orgânicos e produziram uma sociedade
civil mais vulnerável 62 . Tanto a Grã-Bretanha como os EUA foram
transfmmados sob formas que serviram para aumentar as oportuni-
dades criminosas, que enfraqueceram os tradicionais controles
situacionais e que relaxaram alguns dos liames que uniam os indiví-
duos entre si na conformidade grupal. Altas taxas de criminalidade e
de desordem foram uma precipitação da estrutura social cambiante.
O crime se tomou uma das ameaças que as famílias de classe média
contemporâneas devem encarar com seriedade - outro problema a
ser administrado, outra possibilidade que deve ser antecipada e con-
trolada.
As reações psicológicas dos indivíduos a esta nova situação
variam muito, naturalmente. Para alguns, o problema do crime se
tornou fonte de angústia e frustração; um lembrete diário urgente
da necessidade de impor controle, de proteger a si próprio e à sua
família dos perigos do mundo moderno. Angústias deste tipo fre-
qüentemente se misturam com raiva e indignação e, quando expe-
rimentadas em massa, podem prover base emocional para leis
retaliadoras e punições expressivas. Na ponta oposta do espectro,
outros indivíduos reagem com certo estoicismo, acostumando-se
aos riscos e dissabores do crime, adaptando-se a este "fato da vida"
da mesma maneira conformada com que se adaptam ao trânsito
cada vez mais engarrafado, ou à tendência de alta do custo de vida.
A presença do crime na vida diária cria uma resposta psicológica e
cultural, mas esta resposta não é única nem determinada63 .
Crime e o déficit de controle
O segundo desdobramento que influenciou a experiência das
classes médias com o crime foi, em parte, o resultado imprevisto
das mudanças políticas descritas no capítulo anterior. Dos anos
1960 em diante, uma das principais respostas do Estado de justiça
criminal para os crescentes níveis de criminalidade foi restringir a
criminalização, transigir com a aplicação da lei, tolerar crimes
menores ou puni-los com sanções brandas. Este tipo de aplicação
lassa da lei, em toda a sua racionalidade burocrática, produziu a
indesejada conseqüência de aumentru: marcantemente a angústia
pública - particularmente nas ruas das cidades, no transporte públi-
co e nos ambientes familiares mais pobres, onde pequenas incivili-
dades e desordens eram mais comuns. Enquanto a polícia e os tri-
335
bunais concentravam seus recursos nos crimes graves, pequenos
delitos passaram incólumes; os sinais da desordem ficaram gradual-
mente mais aparentes, espalhando-se na esfera pública ocupada pe-
las classes médias, que iam e vinham do trabalho, da escola ou da
atividade de lazer. Esta rápida mudança no cenário urbano, num
tempo em que o crime e o medo do crime estavam ainda assim
crescendo, levou muitos a acreditar que, de modo discreto mas
significativo, o Estado estava se retraindo em face do problema. A
resultante impressão de um déficit no controle- de um empenho na
aplicação da lei que estava sendo relaxado no exato momento em
que os controles comunitários também se enfraqueciam - foi pro-
fundamente perturbadora para muitos 64 . Que isto tenha acontecido
num período conturbado política e socialmente, no qual instituições
tradicionais pareciam estar bem próximas do colapso, serviu apenas
para exacerbai· a sensação da necessidade de adotar-se postura mais
severa com o controle do crime e da desordem65 .
Os medos das classes médias, sem dúvida, se somai·am a uma
dose de culpa e de consciência pesada. Aquela era, afinal de con-
tas, a sociedade que tais classes haviam escolhido; pela qual
reiteradamente votaram nos anos 1980 e 1990. Eleger governos
neoliberais significava reduzir deliberadamente os gastos públi-
cos e "liberar" as forças do mercado. Regimes de baixa tributação e
poucos programas previdenciários significavam que todo e qual-
quer cidadão havia ficado mais dependente de sua posição no mer-
cado e menos suscetível de confiar no Estado. Ao optar pelo mer-
cado, por tirar o Estado "dos seus calcanhai·es" e por libertai· os
indivíduos e in vestimentas, muitos eleitores ficaram ricos. Mas, ao
fazê-lo, eles dissolveram as delicadas teias de solidariedade e de
comunidade que são tão importantes pai·a prover aos indivíduos
uma impressão de segurança pai·a si próprios e para seus filhos. O
declínio de instituições públicas através da supressão de recursos, a
redução dos benefícios estatais, o corte de investimentos nascida-
des, a mai·ginalização social e econômica dos pobres - estas são
políticas que engendram insegurança, e não apenas para os mais
desfavorecidos por elas.
A escolha neoliberal foi fatal em termos emocionais e também
econômicos. Cada indivíduo está cada vez mais obrigado a adotar a
postura econômica do empreendedor responsável, competitivo. A
336
postura psíquica correspondente é a do indivíduo tenso, incansável,
que olha para o próximo de maneira suspeitosa e desconfiada. A
busca pela liberdade - liberdade moral, liberdade de mercado, liber-
dade individual - traz consigo o risco da insegurança e a tentação de
responder a ela com repressão. Neste contexto cultural, não é à toa
que os pobres indesejados sejam temidos e hostilizados. "Escolher a
liberdade" tem um custo, e com muita freqüência os pobres e
desfavorecidos é que são obrigados a pagá-1066 .
Crime e os rnass media
O terceiro desenvolvimento que desejo sublinhar é o impacto
dos meios de comunicação de massa, especialmente da televisão,
nas percepções populares do crime. O ato de assistir televisão
surgiu como fenômeno de massa mais ou menos na mesma épo-
ca em que as altas taxas de crmininalidade começaram a se tor-
nar um fato social normal, isto é, entre aproximadamente 1950 e
1970. O foco da TV nas notícias nacionais e não locais; sua
afinidade com o crime enquanto tema; a pintura de um retrato
sensível de vítimas individuais que tenham padecido nas mãos de
criminosos e que foram abandonadas por um sistema ineficaz e
negligente - tudo isto transformou as percepções sobre o crime e
reduziu a noção de distanciamento do problema, da qual um dia
desfrutaram as classes médias.
A dinâmica das entrevistas coletivas televisionadas também
dificultaram aos administradores e profissionais evitar a força
emocional da opinião pública. Ao contrário das audiências públi-
cas no Congresso ou das comissões de inquérito, a entrevista
televisionada normalmente contrapõe a racionalidade do "siste-
ma" ao sofrimento de indivíduos atingidos pelas políticas do sis-
tema67. Com efeito, a TV mudou as regras do discurso político.
O encontro televisionado - com suas frases de efeito, sua inten-
sidade emocional e sua enorme audiência - tende a tornar os
políticos mais populistas, mais emotivos, mais explicitamente li-
gados ao sentimento público. O espectro do derrotado Michael
Dukakis, com seu liberalismo supostamente "soft com relação
ao crime" e sua linguagem tecnocrática excessivamente racio-
nal, lançou uma enorme sombra sobre o debate político nos EUA
e em outros lugares.

337
A crescente importância e popularidade dos programas
televisivos sobre o crime, desde os anos 1960, é um fator cultu-
ral concomitante à normalidade das altas taxas de criminalida-
de na sociedade contemporânea. Os medos e revoltas parcial-
mente subconscientes, típicos da vida nas sociedades de alta
criminalidade, encontram uma válvula de escape na tela da te-
levisão. Eles são dramatizados na forma de histórias de vingan-
ça, de contos sobre moralidade, de natTativas de crime e castigo,
de histórias de criminosos levados às batTas dos tribunais e de
notícias sobre atrocidades que disparam a indignação e deman-
dam catarse68 . Estas representações da mídia induvidosamente
conferem forma e inflexão emocional à nossa experiência do
crime, de forma amplamente ditada pela estrutura e pelos valo-
res da mídia e não pelo fenômeno por ela retratado. A cobertura
seletiva da mídia de histórias de crimes e seus dramas crimi-
nais inverossímeis tendem a distorcer a percepção pública do
problema69 . Assim também o privilegiamento do que pode ser
chamado de "discurso da vítima" sobre o "discurso do sistema"
- a preferência retórica da mídia pelos relatos pessoais daque-
les abandonados pelo sistema penal à análise política daqueles
que o representam. Esta preferência nos induz a reagir ao crime
como se este fosse um drama humano, emocional, levando-nos
a achar que os criminosos são mais numerosos e mais perigosos
do que realmente são.
Isto não significa dizer que a mídia tenha produzido nosso in-
teresse pelo crime ou que tenha produzido o puniti vismo popular
que desponta como forte corrente política nos dias atuais. Sem uma
experiência coletiva do crime sedimentada, rotineira, seria imprová-
vel que o noticiário criminal atraísse tanto interesse ou vendesse
tantos espaços de publicidade. Meu argumento é que os meios de
comunicação de massa tiveram acesso a, e depois dramatizaram e re-
forçaram, uma nova experiência pública, com profunda ressonância
psicológica; e, ao fazê-lo, a mídia institucionalizou aquela experiên-
cia. Ela nos cercou de imagens de crimes, de perseguições e de
punições, bem como nos alimentou de ocasiões regulat·es, diárias,
nas quais podemos descatTegat· nossos sentimentos de medo, raiva,
indignação e fascinação que a experiência do crime provoca.

338
Esta institucionalização aumenta a relevância do crime na vida
cotidiana. Ela também vincula a resposta do público não ao próprio
crime, nem mesmo às estatísticas oficiais, mas à mídia, através da
qual o crime é normalmente representado, e às representações cole-
tivas que a mesma mídia consolida ao longo do tempo 70 .A opinião
e o conhecimento públicos sobre a justiça criminal se baseiam nas
representações coletivas e não em informações precisas; se baseiam
numa determinada experiência cultural do crime e não no próprio
crime. Assim, enquanto mudanças ecológicas talvez tenham reduzi-
do a distância social da classes médias do crime, a disseminação
simultânea destas práticas culturais reduziram ainda mais a distân-
cia psicológica e emocional.
Adaptações culturais
Mudanças na freqüência e na distribuição do crime, nos
parâmetros de aplicação da lei ou mesmo na qualidade de vida da
classe média não são, por si sós, suficientes para explicar as mu-
danças nas atitudes sociais para com o crime. Não existe uma aLlap
tação automática de percepção que se siga à mudança nas coorde-
nadas "objetivas" de um fenômeno como o crime71 . Evoluções
sociais não determinam as respostas políticas e culturais por elas
motivadas. Todavia, elas colocam problemas que exigem ajustes,
adaptações ou soluções de algum tipo. Para o fim de explicar o
apoio social às políticas criminais contemporâneas, as respostas
políticas e culturais às altas taxas de criminalidade são mais im-
portantes do que as próprias taxas de criminalidade.
Então, quais foram as respostas? Como aqueles grupos se adap-
taram à nova situação, à nova relação com o crime e com a insegu-
rança? Parte de sua resposta foi exigir mais atuação do Estado e
maior efetividade da parte das agências do sistema penal. Mas as clas-
ses médias não dependiam tanto da atuação do Estado, nem careciam
de recursos para desenvolver respostas privadas próprias.
Um importante desdobramento destes anos foi o surgimento
dos movimentos de vítimas. Inicialmente, este processo oc01Teu
na forma de iniciativas locais muHifárias espontâneas, amplamen-
te administradas por voluntários ou ex-vítimas, que ofereciam apoio
e aconselhamento às vítimas de crimes. Ao longo do tempo, estes
grupos de apoio construíram relacionamentos de referência com

339
departamentos policiais e agências de livramento condicional locais,
operando discretamente nas margens do sistema, fornecendo apoio
aos indivíduos ignorados pelo sistema penal que carecessem do
amparo da família ou de vizinhos. Finalmente, nos anos 1980, os
movimentos de vítimas foram descobertos pela mídia e por políti-
cos, após o que a questão das vítimas e dos seus direitos começou
a assumir um significado político bem diferente. O que começou
como movimento isolado e espontâneo se transformou numa fun-
ção subsidiada pelo governo. Entrementes, os (supostos) interesses
das vítimas foram promovidos a ponto de referência para muitos
partidos políticos, figurando nos debates sobre pena que não faziam
parte das preocupações originais de tais movimentos.
Outra história importante das últimas duas décadas se refere à
invenção, normalmente por atores privados, de controles sociais e
situacionais e à modernização destes, de maneira a adaptarem-se a
um novo contexto no qual as agências do sistema penal eram cada
vez mais vistas como ineficientes. Em face de altas taxas de crimi-
nalidade e na ausência de mecanismos estatais adequados de segu-
rança, a energia e inventividade da sociedade civil foram estimula-
das para prover novas linhas de defesa e novas medidas de controle.
Nos anos recentes, temos testemunhado a mutação no caráter e na
organização do que é comumente chamado de "controle social in-
formal". Como vimos, a chegada da pós-modernidade reduziu a
extensão e a efetividade de controles sociais "espontâneos" - as
conhecidas práticas habituais, automáticas, de supervisão, repreen-
são e repressão mútuas, levadas a cabo pelos membros da comuni-
dade. A onda atual de prevenção do crime tenta revi ver aqueles hábi-
tos longínquos e, primordialmente, complementá-los com novas
práticas de controle do crime mais deliberadas, mais focadas, mais
intencionais.
Quais foram estas adaptações e invenções? Uma resposta ade-
quada a esta indagação daria conta de uma infinidade de pequenas
ações e técnicas mundanas, que se espalham em todo o campo
social num processo de imitação, reinvenção e repetição bem se-
melhante à emergência e disseminação de técnicas disciplinares da
Europa do início da Idade Moderna, que Foucault descreve72 . Tudo
o que posso fazer aqui é fornecer um rascunho das principais fon-
tes e tipos de ação.
340
O setor comercial
A reação do setor comercial tem sido a de desenvolver um
conjunto de mecanismos de segurança privada. O ressurgimento
do policiamento privado; a demarcação de locais segregados e pro-
tegidos; rotinas gerenciais que fazem da segurança parte integran-
te do funcionamento da organização; o desenvolvimento de análi-
ses custo/benefício em termos de controle do crime; auditorias de
segurança; a evitação de oportunidades criminosas; redução de
danos; enfrentamento e prevenção do crime na perspectiva do for-
necedor - todas estas respostas foram forjadas primeiramente no
setor privado 73 . Muitas delas foram desenvolvidas na indústria da
segurança privada, que tem se expandido rapidamente nas últimas
três décadas, vendendo seus serviços para organizações que exigi-
am maiores níveis de segurança do que a polícia poderia prover e
ajustando seus procedimentos de administração do crime para
compatibilizá-los com seus próprios fins comerciais 74 .
Empresas privadas passaram a considerar a aplicação públi-
ca da lei como insuficiente - precisamente porque o sistema su-
bordinou os interesses da empresa ao interesse público - e desen-
volveram processos mais autônomos de "administrar" o crime. Es-
tes mecanismos privatizados, gerenciais, enfatizam estratégias de
prevenção e redução, desprezando a persecução e a punição efetiva.
Eles se concentram no fluxo de comportamentos criminosos e vi-
sam atingir suas formas mais recorrentes e onerosas, em vez de
buscar a preservação da lei genérica e uniformemente. Optam por
soluções tecnológicas integradas, inserindo o,s dispositivos de con-
trole do crime nas práticas da empresa de ~àneira não-invasiva e
que não inte1fira no objeto principal de atividade do negócio - promo-
vendo vendas, criando confiança e obtendo lucros 75 .
Estas adaptações da comunidade empresarial - para a
inflacionada ameaça do crime, para a ineficácia da justiça crimi-
nal, para as novas condições da vida comercial - levaram, ao lon-
go do tempo, ao desenvolvimento de enclaves de "justiça priva-
da", nos quais criminosos reais e potenciais recebem tratamento
bem distinto daquele ministrado pela justiça pública. Nestes ambien-
tes privados (muitos dos quais são espaços utilizados pela popula-
ção em geral, como shopping centers, normalmente de propriedade
da e administrados pela iniciativa privada), os indivíduos talvez se-
341
jam obrigados a se submeter a revistas ou a ser monitorados e fil-
mados, assim como talvez sejam sujeitos à exclusão sem qualquer
motivo aparente. Há uma justiça bruta de exclusão e de vigilância
integral que se tornou gradualmente habitual na nossa experiência e
que é cada vez mais vista como condição necessária para salvaguar-
dar a segurança e o lazer de consumidores e cidadãos decentes -
"pessoas más existem; nada adianta fazer, salvo segregá-las". A cons-
ciência do crime, com sua dialética de medo e de agressão defensi-
va, se arraigou no nosso ambiente diário.
É no seio destas adaptações privadas que devemos localizar
alguns dos novos modos de pensar o crime. As novas criminologias
da vida cotidiana - teoria da escolha racional, teoria da atividade
de rotina, crime como oportunidade, prevenção situacional do cri-
me - cada vez mais influentes em moldar o pensamento político
contemporâneo, são normalmente creditadas a autores como Ron
Clarke, Marcus Felson, George Kelling e James Q. Wilson. Entre-
tanto, talvez seja mais exato atribuir a aut01ia destas maneiras de
pensar e de agir aos inúmeros gerentes e chefes de segurança anô-
nimos, cujo trabalho tem consistido em criar soluções práticas para
combater o problema do crime da forma com que este afeta seu
negócio privado.
Numa história bem foucaultiana, este campo de receitas e téc-
nicas dispersas, desorganizadas, de controle do crime - composto
de diversas intervenções pequenas, algumas das quais engenhosas,
a maioria delas bem mundanas, todas elas extraídas da prática e não
de análises abstratas-é adotado e desenvolvido pelos ctiminólogos.
Tais experts racionalizaram e sistematizaram estas idéias e técnicas,
criando novas teorias criminológicas e convencendo as agências
públicas (o Home Ojfice, o National lnstitute of Justice, a polícia) a
adotarem as novas mentalidades. As teorias são, então,
retroalimentadas -através de parcerias preventivas e aconselhamento
sobre prevenção do crime76 - em locais práticos, onde auxiliam os
práticos a sistematizar sua prática, a se tomarem mais autoconscientes
sobre sua atividade e a extrair lições dos dados acumulados e dos
melhores métodos.
De forma muito semelhante à que, no século XIX, a prática
penitenciária preparou o terreno para o surgimento da ciência da
criminologia e subseqüentemente foi informada e influenciada pelo
342
conhecimento "científico" a que deu causa77 , o mundo atual da
prevenção privada do crime existe numa relação reflexiva com as
teorias e prescrições da prevenção situacional do crime. É neste
intercâmbio - entre receitas práticas dos gerentes do setor comer-
cial e as racionalidades trabalhadas de criminólogos e políticos -
que se deve localizar a estratégia de parcerias preventivas e os
hábitos de pensamento e ação dos quais esta depende.
Cidadãos privados, residências e comunidades
As reações de adaptação dos cidadãos privados, dos lares e
das comunidades à nova experiência do crime assumem trajetória
similar e produzem efeitos institucionalizantes similares 78 . Ao lon-
go do tempo, surgiu um padrão de resposta e de adaptação segun-
do o qual os indivíduos começaram a adotar maiores precauções
rotineiras contra o crime79 . Como a maioria das transformações
sociais, esta mudança foi lenta e inconsciente num primeiro mo-
mento, liderada por pequenas parcelas da população - particular-
mente os prósperos moradores mais jovens e proprietários de clas-
se média, que passaram a ocupar áreas desvalorizadas. A tendên-
cia de conscientização quanto à segurança, porém, acabou chegan-
do a um ponto em que se tomou o padrão coletivo, amparado pelo
novo senso comum dos proprietários de imóveis e reforçado pelos
incentivos e conselhos de companhias seguradoras, de construto-
ras, guias turísticos e pela polícia local. Esta consciência de segu-
rança também foi encorajada pela indústria de segurança privada,
cujas vendas de dispositivos de segurança alimentavam as insegu-
ranças e os medos públicos no exato momento em que alegavam
amainá-los 80 .
Pessoas comuns adquiriram seguros e dispositivos de segu-
rança. Instalaram fechaduras e trancas para as portas e janelas,
introduziram interfones nas portarias dos edifícios e alarmes e rá-
dios removíveis em seus automóveis. Particularmente as mulheres
começaram a rever suas rotinas diárias de modo a minimizar a
vulnerabilidade à vitimização 81 . Passaram a gastar tempo tran-
cando as portas, ocultando os bens de valor, ligando e desligando
alarmes, deixando as luzes acesas nas casas vazias, não abrindo a
porta para estranhos, limitando a quantidade de lixo que Jeixam
nas calçadas e restringindo severamente sua conduta em lugares
públicos, por medo de chamar atenção para si próprios como víti-
343
mas em potencial 82 . Muitos moradores se uniram (com o apoio
ativo da polícia local e, nos EUA, de fundações privadas) para
instituir esquemas de vigilância do bairro. Alguns foram além e
integraram grupos de patrulhamento e outras formas de
autopoliciamento 83 .
Estas precauções rotineiras freqüentemente envolviam ações
evasivas, muitas das quais implicavam certo nível de inconveni-
entes e de despesas. Muitos moradores das cidades começaram a
viajar de carro em vez de usar o transporte público, a evitar estaci-
onar nas ruas ou em locais sem vigilância, a permanecer em casa à
noite, a evitar parques depois do pôr do sol, a não mais freqüentar
jogos de futebol ou atrações noturnas, assim como passaram a gastar
la1·gas somas de dinheiro contratando motoristas para leva1·em seus
filhos ao colégio ou a qualquer outro lugar para não os expor ao
risco do crime nas ruas, nos ônibus e no metrô. Outros adotaram
ações mais drásticas, escapando para os subúrbios e até mesmo,
quando os subúrbios ficaram mais suscetíveis ao crime (ou "diver-
sificados" demais), para um dos 20.000 condomínios fechados que
surgiram recentemente nos EUA. Um número significativo de la1·es
norte-americanos passou a contar com armas de fogo para defesa
pessoal, trazendo a guerra contra o crime para dentro de casa, o que
deve ter gerado efeitos psicológicos significativos.
Ao mesmo tempo, engenheiros, arquitetos e construtoras co-
meçaram a adaptar seus projetos para aumentar a segurança ofere-
cida aos clientes e moradores. O mais extraordinário exemplo dis-
to é o das "comunidades fechadas", sobre as quais diz-se serem,
hoje em dia, o modo de vida comunitário em maior ascensão -
embora isto subestime o setor prisional, que é uma comunidade
fechada de massa e um produto de processos e sentimentos sociais
correlatos, que operam ao longo do mesmo lapso temporal 84 . Mas
como Blakely e Snyder destacam, "viver em comunidades fecha-
das" é pa1·te de uma mudança mais ampla no sentido de planeja-
mentos e estilos a1·quitetônicos orientados para a valorização da
segurança, mudança esta que inclui "o shopping center fechado que
dispõe de todos os serviços; prédios públicos e pa1·ques recheados
de mecanismos de segurança; hotéis e centros de convenção com
as mesmas características; e passarelas e túneis que permitem que
turistas e trabalhadores dos centros urbanos nunca botem os pés
344
nas calçadas" 85 . Na nova arquitetura urbana - pioneira em Los
Angeles, mas tornando-se evidente agora nos shoppings centers e
centros empresariais em todos os Estados Unidos e na Grã-Bretanha
- a preocupação principal é administrar o espaço e separar os dife-
rentes "tipos" de pessoas 86 . E, como Shearing e Stenningjá desta-
caram há muito tempo, o caráter privado destes maciços espaços
comerciais fornecem às empresas a autoridade legal e o incentivo
econômico para desempenharem seu próprio policiamento - dinâ-
mica que contribuiu em muito para alimentar o crescimento da se-
gurança privada87 .
Um desdobramento correlato é o enorme aumento nas associ-
ações de moradores registrado nos últimos trinta anos, notadamente
nos EUA Como David J Kennedy anota, estas associações, generi-
camente conhecidas como associações de proprietários ou simples-
mente associações de moradores, estão surgindo com grande força
na vida urbana e suburbana, aparelhadas para aumentar a seguran-
ça, para melhorar a qualidade de vida e para manter o valor dos
imóveis. Nos EUA, em 1970, existiam 10.000 organizações deste
tipo; em 1992, eram mais de 150.000, abrangendo 32 milhões de
pessoas ou, em termos brutos, 12% da população 88 . Onde as preo-
cupações com segurança, considerações relativas ao lucro e inte-
resses relacionados à propriedade se encontram, os atores privados
reagiram vigorosamente às reconhecidas deficiências da atuação
estatal.
Os efeitos de controle do crime destas adaptações privadas de
baixa intensidade são difíceis de estimar e jamais foram cuidadosa-
mente avaliados, até onde tenho conhecimento 89 . Mas o que é mais
importante para o nosso objetivo é que tais mudanças nas rotinas
diárias acabaram resultando em efeitos culturais estabelecidos. Elas
mudaram a forma com que as pessoas pensam e sentem, o que elas
falam e como falam, seus valores e prioridades, como ensinam seus
filhos ou aconselham os recém-chegados à vizinhança. O medo do
crime - ou, melhor dizendo, uma crescente consciência coletiva do
crime- gradualmente se institucionalizou. Inscreveu-se no nosso sen-
so comum e nas rotinas da nossa vida cotidiana. Inseriu-se no texto
dos novos programas, nas categorias de imóveis, nos contratos de
seguro e, de maneira mais fantástica, nos nossos mitos urbanos e
programas de TV 9º .
345
O "complexo do crime": a cultura de sociedades de
alta criminalidade
Pode-se resumir este processo histórico afirmando-se que uma
formação cultural se ergueu em tomo dos fenômenos das altas ta-
xas de criminalidade e da insegurança crescente, e que esta forma-
ção agora confere à experiência do crime uma consolidada forma
institucional. Esta formação cultural - que podemos chamar de
"complexo do crime" da pós-modernidade - é caracterizada por
um conjunto específico de atitudes e crenças:
(i) altas taxas de criminalidade são tidas como um fato social
normal 91 ;
(ii) o investimento emocional no crime é disseminado e in-
tenso, abrangendo elementos de fascinação como também de medo,
raiva e indignação;
(iii) temas criminais são politizados e regularmente repre-
sentados em termos emotivos;
(iv) a preocupação com as vítimas e com a segurança do pú-
blico dominam as políticas públicas;
(v) o sistema penal é visto como inadequado ou ineficaz;
(vi) rotinas defensivas privadas são comuns, existindo um gran-
de mercado de segurança privada;
(vii) a consciência do crime está institucionalizada na mídia,
na cultura popular e no ambiente circundante.
Uma vez estabelecida, esta visão de mundo não se altera rapida-
mente. Não é muito afetada por mudanças anuais nas taxas de crimes,
mesmo no caso de redução dos níveis reais de vitimização. Isto expli-
ca a aparente ausência de relação entre as tendências do crime e o
medo do crime. Nossas atitudes para com o crime - nosso medo e
indignação, mas também nosso senso comum- se tomam fatos cultu-
rais estabelecidos, que são sustentados e reproduzidos por roteiros cul-
turais e não pela pesquisa criminológica ou por dados oficiais92 .
· O desenvolvimento de um complexo do crime acarreta uma
série de efeitos psicológicos e sociais que exercem influência na
política93 . Cidadãos se conscientizaram do crime, ficaram mais
atentos ao problema e muitos exibem altos níveis de medo e ansi-
edade. Eles estão inseridos em instituições e práticas cotidianas que

346
exigem que assumam a identidade (real ou potencial) de vítimas de
crime e que pensem, sintam e ajam de acordo. Este engajamento
forçado com o crime e com sua prevenção produz uma reação
ambivalente. De um lado, uma adaptação estóica que enseja novos
hábitos de evitação e rotinas preventivas. De outro lado, uma dose
de irritação, frustração e exasperação com o aborrecimento acumu-
lado que o crime representa para a vida diária. Setores substanciais
do público passaram a ficar menos dispostos a dispensar solidarie-
dade ao criminoso, passaram a ficar mais impacientes com as polí-
ticas criminais consideradas fracassadas e mais visceralmente iden-
tificadas com a vítima. A postura de "compreender" o criminoso -
sempre uma atitude difícil, encampada pelas elites liberais não-atin-
gidas pelo crime ou por grupos profissionais que ganham a vida
com isto - é progressivamente substituída pela postura de condená-
lo. A possibilidade de ressocializar o cdminoso é cada vez mais vista
como irreal e, ao longo do tempo, menos obrigatória do ponto de
vista moral.
O investimento social e psíquico que as pessoas fazem com
relação a questões de crime e punição se expande consideravelmen-
te. Os sentimentos envolvidos estão mais profundamente enraiza-
dos e são mais compartilhados pela população. Membros do público
expressam cada vez mais seu medo, sua exasperação com o fato de
ter que aHerar o estilo de vida e despender recursos, sua insatisfação
com o sislt'ma que fracassou. A atribulação diária com pequenos
delitos rapidamente descamba para a preocupação com o "crime
como tal", que, por sua vez, denota crimes violentos e predatóri-
os94. O trauma da impotência em face do medo dispara as exigênci-
as por ação. O sentimento de que "algo deve ser feito" e de que
"alguém deve assumir a culpa" encontra cada vez mais representa-
ção política e alimenta a ação política.
São estes padrões de rotinas sociais, práticas culturais e sensi-
bilidades culturais que formam a superfície social sobre a qual são
erguidas as estratégias de controle do crime que dominam a cena
nos dias atuais. É um composto social, uma experiência coletiva,
que sustenta um novo nível de consciência do crime, uma nova
profundidade de engajamento emocional e uma nova relevância do
crime na nossa vida cotidiana. As políticas, bem diferentes entre si,
de parcerias preventivas e de segregação punitiva deveriam ser vis-
347
tas, ambas, como iniciativas político-administrativas que jazem so-
bre esta superfície social e que são condicionadas pelos contornos e
caracterísitcas desta. Longe de serem criação exclusiva dos políti-
cos ou da mídia, tais estratégias dependem - para sua operação
prática, bem como para seu apoio político - de airnigados modos de
pensamento, rotinas de ação e de estruturas de sentimento que re-
centemente vieram a caracterizai· a sociedade civil.
É clai·o que a diferença entre países influencia a forma como
estas estratégias têm se desenvolvido nos diferentes locais. Por
exemplo, as iniciativas anti-crime empresaifais privadas são mais
proeminentes nos EUA do que na Grã-Bretanha, onde a freqüên-
cia inversa se deve aos esforços governamentais de prevenir o cri-
me. A força punitiva e neutralizante das políticas norte-america-
nas tem sido mai·cantemente maior e sustentadas por período mui-
to mais longo do que na Grã-Bretanha. Mas os pai·âmetros estraté-
gicos que caracterizam o campo do controle do crime em ambos
os países são substancialmente os mesmos, e tenderam a persistir
mesmo quando as administrações conservadora e republicana fo-
ram substituídas pelos governos trabalhista e democrata.
Os temas primários das novas estratégias - expressividade,
punitivismo, vitimização, proteção pública, exclusão, maior contro-
le, prevenção de perdas, pai·cerias público-privadas, responsabiliza-
ção - estão fincados numa nova experiência coletiva, da qual reti-
ram seu significado e sua força, e nas novas rotinas sociais que
fornecem suas técnicas e apoios práticos. Também estão emaizadas
na tematização reacionária da "pós-modernidade", produzida não
apenas pelo crime, mas por toda a corrente reacionária cultural e
política que cai·acteriza o presente em termos de colapso moral, de
incivilidade e do declínio da família, exortando a reversão da re-
volução dos anos 1960 e do movimento de liberação cultural e
política que ela deslanchou. A sociedade porosa, móvel, aberta, de
estranhos, da pós-modernidade deu causa a práticas de controle do
crime que buscam tornar a sociedade menos aberta e menos mó-
vel: fixar identidades, imobilizar os indivíduos, colocar em qua-
rentena setores da população, erguer fronteiras, fechar acessos 95 .
Se estas estratégias não são absolutamente determinadas pelo cam-
po social que descrevi, elas são fortemente condicionadas por tal
campo e provavelmente inconcebíveis sem ele.
348
Notas

1
Como acentuei no prefácio, procedo neste ponto baseado na premissa
de que há símilitudes estruturais (assim como exemplos suficientes de
imitação e que podem ser tomados de empréstimo) que fazem valer a pena
discutir a Grã-Bretanha e os EUA conjuntamente. É claro que, ao fazê-lo,
estou desconsiderando importantes diferenças. Isto é exacerbado pelo
fato de que discussões sobre o controle do crime "norte-americano"
olham apenas superficialmente para as grandes variações que marcam os
cinqüenta estados-membros, o Distrito de Colúmbia e o sistema federal,
bem como os desdobramentos "britânicos" mascaram os aspectos que
distinguem a Escócia e a Irlanda do Norte da Inglaterra e do País de Gales.
O que considero interessante e merecedor de explicação é o fato de
padrões semelhantes cm termos de punição e controle do crime terem
sido verificados recentemente em ambos os países. Meu argumento
aludirá às diferenças de conteúdo, tempo e contexto, onde sejam
significativas neste nível estrntural de análise.
2 O leitor deve ter em mente que tais medidas ainda não são as respostas-

padrão de tratamento dos criminosos condenados - a maioria dos quais é


condenada por crimes menores e submetida a medidas menos onerosas, menos
punitivas e menos expressivas, tais como multas, livrmnento condicional e
transações. Minha preocupação, neste ponto, é descrever e explicar estas
estratégias novas. No capítulo 7, discutirei o campo como um todo.
3
W. G Skogan, "Community Organizations and Crime", in M. Tonry e
N. Morris (orgs.), Crime and Justice: An Annual Review of Research
(Chicago: University of Chicago Press, 1988); D. Rosenbaum,
"Community Crime Prevention: A Review anel Synthesis of the
Literature", Justice Quarterly (1988), vol. 5, pp. 323-95; P. N. Grabowsky,
"Law Enforcement and the Citizen: Non-Governmental Participants in
Crime Prevention and Control", Policing and Society (1992), vol. 2, pp.
249-71; A. Crawford, The Local Govemance ofCrime (Oxford: Clmendon
Press, 1997).
4
Detalhes destas medidas podem ser encontrados na literatura citada no
capítulo 4. Para uma discussão acerca do acorrentamento coletivo de presos,
reinstituído no estado do Alabm11a em 1995 e, subseqüentemente, em muitos
outros estados do sul, v. K. Barry, "Chain Gangs" (texto sem publicação,
em poder do autor). Leis que pem1item a aplicação de penas corporais em
menores foram introduzidas nos estados do Mississippi, Oklahoma, Nova
Iorque e Califórnia, entre 1994 e 1997. Sobre a "proscrição de benesses nas
prisões", v. P. Finn, "No-Frills Prisons anel Jails", Federal Probation

349
(setembro de 1996), vol. 60, pp. 35-44, e J. Nossiter, "Making Hard Times
Harder",New York Times, 17 de setembro de 1994, seção 1,p. 1, que descreve
a reintrodução de uniformes listrados e a redução de benefícios nas prisões
dos estados do sul. Sobre restrições comportamentais impostas a criminosos
sexuais na Grã-Bretanha, bem como penas privativas de liberdade mínimas
automáticas, v. D. Downes, "Toughing it Out: From Labour Opposition to
Labour Govemment", Policy Studies (1988), nº 19 (pp. 3-4).
5
Claramente, os EUA foram mais fundo nesta direção do que a Grã-Bretanha,
embora haja grandes diferenças de escala e intensidade que distinguem uma
jurisdição da outra. Existem, também, diferenças mais recentes de ênfase
que distinguem as iniciativas do Partido Democrata e do Novo Trabalhismo
daquelas adotadas pela administração republicana e conservadora que as
precedeu. Todavia, o mais marcante e relevante para a explicação estrutural
desenvolvida aqui é o grau de alinhamento dos aspectos estratégico,
discursivo e político de ambos os partidos que governaram os dois países,
nos anos recentes.
6
F. E. Züming, "Populism, Democratic Govemment, and the Decline of
Expert Authority: Some Reflections 011 'Three Strikes' in Califomia",
Pacific Law Joumal, 28 (1996), pp. 243-56; Federal Sentencing Reporter,
Special Issue on 'Sentencing in England: The Rise of Populist
Punishment' (Vera Institute of Justice, Califórnia: University of Calífornia
Press, 1998); A. E. Bottoms, "The Philosophy and Politics of Punishment
and Sentencing", in C. Clark e R. Morgan (orgs.), The Politics of
Sentencing Reform (Oxford: Clarendon Press, 1995).
7
D. Lewis, HiddenAgenda (Londres: Hamish Hamilton, 1997); S. Píllsbury,
"Why Are We Ignored? The Peculiar Place ofExperts in the Current Debate
About Crime and Justice", Criminal Law Bulletin (julho/agosto de 1995).
8
Afirmações recentes -do governo neotrabalhista britânico no sentido de
que desenvolverá políticas criminais "orientadas por provas" marcam o
reconhecimento desta tendência. Ainda estamos para ver se tais afirmações
irão, de fato, inaugurar a reversão do processo. Em julho de 2000, sem
consulta prévia à polícia ou aos pesquisadores do Home Office, o primeiro-
ministro Tony Blair anunciou a intenção de introduzir um novo poder policial
de impor multas sumárias, "no local", a indivíduos desordeiros. No dia
seguinte, o gabinete do prüneiro-ministro abandonou a proposta diante da reação
maciçamente negativa da imprensa e dos especialistas da justiça criminal.
9
Alusão a Stephanie Fuller, moradora de Long Island, estado de Nova Iorque,
que foi clandestinamente filmada por seu senhorio, William Schultz, através
de uma câmera por ele instalada no detector de fumaça existente no cômodo
em que ficava a cama. Como o estado de Nova Iorque não possuía lei

350
específica sobre voyeurismo - e então aplicou-se uma lei sobre invasão
de domicílio, que previa apenas multa de cerca de US$ 1.500,00 -,
rapidamente aprovou-se tal lei, apenando a conduta referida (e outras
assemelhadas) com pena privativa de liberdade de 2 a 7 anos, além da
obrigação de inscrição do nome do culpado no cadastro estadual de
criminosos sexuais, uma vez libertado. Na cerimônia de assinatura da lei,
realizada em 23 de junho de 2003, Stephanie Fuller estava presente (N. T.).
10
Referência a Sarah Payne, morta em julho de 2000, aos 8 anos de idade,
em Sussex, cidade da costa sudeste da Inglaterra. Descobriu-se que o crime
fora praticado por Roy Whitting, cujo nome já constava do cadastro local de
criminosos sexuais. Alei de Sarah busca instituir medidas de monitoramento
de criminosos sexuais, especialmente pedófilos, como, por exemplo, a
possibilidade de acesso do público ao mencionado cadastro de criminosos
sexuais, a proibição de que, uma vez libertados, voltem a residir próximos
de suas vítimas, entre outras. A campanha pela aprovação da lei de Sarah
está disponível na internet, no site www.forsarah.com (N.T.).
11
Veja-se W. Kaminer, It's Ali the Rage: Crime and Culture (Nova Iorque:
Addison-Wesley, 1995), p. 71.
12
Para um debate sobre a vítima de crime na cultura contemporânea, v. J.
M. Boutellíer, Crime and Morality: The Sig11ijica11ce of Criminal Justice in
Post-Modem Culture (Londres: Kluwer, 2000).
13
s
Labour Party, Everyone a Victim (Londres: Central Office, 28 de março
de 1995); President's Task Force on Victims, Final Repo11 (Washington DC:
Government Printing Office, 1982), pp. vii e 3.
14
A citação é de W. Kaminer, It's Ali the Rage, p. 171.
15
Sobre este assunto, v. J. Best, Random Violence: How We TalkAbout New
Crimes andNew Victims (Berkeley-CA: University ofCalifomiaPress, 1999),
cap. 5.
16
Sobre a idéia de justiça expressiva e de reações punitivas como "terapia",
v. D. C. Anderson, Crime and the Politics of Hysteria (Nova Iorque: Times
Books, 1995).
17
L. Friedrnan, Crime and Punishment inAmerican History (Nova Iorque:
Basíc Books, 1993); H. Chernoff et al., "The Politics of Crime", Harvard
Joumal ofLegislation (1996), voL 33, pp. 527-79; H. Jacob, The Frustration
of Policy (Boston: Little Brown and Co., 1984); D. Downes e R. Morgan,
"Hostages to Fortune? 'The Politics ofLaw and Order inPost-War Britain",
in M. Maguire e tal. (orgs.), The OxfordHandbookof Criminology (Oxford:
Clarendon Press, 1994); K. Beckett, Making Crime Pay (Nova Iorque: Oxford
University Press, 1997).

351
18
Lord Windlesham, Responses to Crime, vol. 2 (Oxford: Oxford University
Press, 1993).
19
M. Hough e J. Roberts, "Sentencing Trends inBritain: Public Knowledge
and Public Opinion", Punishment & Society (1999), 1 (1), pp. 11-26.
2
°Como Stuart Hall anota, "o populismo não é um mecanismo ou truque
retórico ( ... ). Seu sucesso e efetividade não dependem de sua capacidade de
iludir o homem comum, mas da forma com que trata problemas reais,
experiências verdadeiras, contradições reais", S. Hall, The Hard Road to
Renewal (Londres: Verso, 1988), p. 56.
21
O melhor estudo sobre este assunto é o de K. Beckett, Making Crime Pay,
que parece demonstrar um alto grau de maleabilidade. Os dados recolhidos
por Beckett sugerem que a opinião pública e a preocupação para com o
crime seguem as manchetes dos jornais e as iniciativas políticas. Mas, na
verdade, os dados recolhidos são de tal ordem que induzem tal descoberta,
porque a pesquisa se vale de enquetes que perguntam "qual é o maior
problema nacional?" - indagação que enseja respostas tendentes a invocar
um conhecimento do que está acontecendo no cenário político nacional,
em vez de revelar sentimentos pessoais e receios localizados. Observe-
se que Beckett também aponta que o discurso de lei e ordem ressoa
"importantes temas culturais e sentimentos" (p. 11).
22
S. Donziger (org.), The Real War on Crime (Nova Iorque: Harper
s
Perennial, 1996); Her Majesty Prison Service, Audit of Prison Resources
(Londres: HM Prison Service, 1996).
23
M. Miller, "Cells vs. Cops vs. Classrooms", in L. Friedman e G. Fisher
(orgs.), The Crime Conundrwn (Nova Iorque: Westview Press, 1997), pp.
127-62.
24
Veja-se J. R. Sparks, Television and the Drama of Crime (Milton Keynes:
Open University Press, 1992): "se as histórias de crimes ( ... ) de fato se
relacionam de alguma forma digna de menção aos sentimentos, às
solidariedades e às atitudes de sua audiência, só podem fazê-lo,
primeiramente, sendo suficientemente exitosas em atrair a atenção, mantendo
o interesse e produzindo prazer" (p. 149).
25
Na Grã-Bretanha, o ápice de crimes registrados aconteceu em 1992. O
Home Office (1996) relatou que "houve 5 milhões de crimes registrados
pela polícia em 1996, 1% menos do que em 1995. Esta foi a quarta queda
anual consecutiva e a primeira vez no século em que isto aconteceu",
Criminal Statistics for England and Wales (p. 16). Observe-se, contudo,
que o relatório de 1996 do British Crime Survey sugere um aumento de
4% em crimes contra a pessoa e contra o patrimônio entre 1993 e 1996.
Nos EUA, de acordo com os dados do UCR, o ápice de crimes registrados
352
se deu em 1980, quando se alcançou o recorde de 5.950 por 100.000
pessoas. Subseqüentemente, a taxa se reduziu uniformemente até 1984,
subiu de novo até 1990 e depois caiu bruscamente ao longo dos anos
1990. Veja-se US Depa,1ment of Justice, Federal Bureau of lnvestigation
Unifonn Crime Reports, Crime in the United States 1995 (Washington
DC: US Government Printing Office, 1995). As pesquisas do NCVS
sugerem que a taxa de vitimização tenha alcançado o ápice em 198 L
Veja-se United States Department of Justice, Criminal Victimization
(Washington DC: US Government Printing Office, 1994 e 1996). Veja-se o
apêndice, figuras 1 e 2.
26
Para o uso por Michel Foucault do termo "experiência", do qual faço
derivar este conceito, v. M. Foucault, "Preface to the History of Sexuality,
Volume II", in P. Rabinow (org.), The Foucault Reader (Nova Iorque:
Pantheon, 1984).
27
D. Garland, Punishment and Welfare (Aldershot: Gower, 1985); M.
Weiner, Reconstructing the Criminal (Nova Iorque: Cambridge
University Press, 1990).
28
Para informações sobre a distribuição de vitimização nos EUA por
raça, origem hispânica, renda familiar, região e por residências
próprias, v. United States Department of Justice, Criminal
Victimization in the United States: 1973-1992 Trends (Washington
DC: US Government Printing Office, 1994), pp. 7-8. Para dados
relativos à Inglaterra e ao País de Gales, v. M. Hough, Anxiety About
Crime: Findings From the 1994 British Crime Survey (Londres:
Home Office, 1995).
29
Veja-se T. G. Taylor et al., "Salience of Crime and Support for
Harsher Criminal Sanctions", Social Problems (1979), voL 26, nº 4:
"está claro que o apoio a sanções mais severas é (ao menos de vez
em quando) uma posição ideológica, e que manter esta posição está
relacionado à relevância do crime no ambiente ( ... ). Medir a
importância ambiental da questão criminal é mais difícil. A relevância
é o resultado apenas parcial de mudanças nos fenômenos objetivos (p.
ex., taxas de criminalidade). É claramente influenciada pela mídia,
campanhas políticas e por todas as outras fontes difusas de informação
e de mudança cultural" (p. 423).
30
T. Tyler e R. J. Boeckmann, "Three Strikes and You Are Out', But
Why? The Psychology of Public Supportfor Punishing Rule Breakers",
Law and Society Review (1997), vol. 331, nº 2, e K. Beckett, Making
Crime Pay, resumem os dados oriundos de pesquisas de opinião
sugerindo que o público norte-americano se tornou mais punitivo ao

353
longo das décadas recentes. V., também, G. Pettinico, "Crime and
Punishment; America Changes Its Mi111f', The Public Perspective (setembro/
outubro de 1994); P. B. Ellswmth e S. R. Gross, "Hardening of the Attitudes:
Americans' Views on the Death Penalty", Joumal of Social Issues
(1994), vol. 50, nº 2, pp. 19-52. Sobre atitudes relacionadas à punição
na Grã-Bretanha, v. M. Hough e J. Roberts, "Sentencing Trends in
Britain".
31
Dada a falta de evidências empíricas diretamente relevantes sobre
tais fatos, devo enfatizar o caráter sugestivo da análise que se seguirá.
32
A. Rutherford, Criminal Justice and the Pursuit of Decency (Oxford:
Oxford University Press, 1993).
33
J. B. Jacobs, Stateville (Chicago: University of Chicago Press, 1977);
Lord Windlesham, Responses to Crime, vol. 3 (Oxford: Oxford
University Press, 1996).
34
S. Brint, ln An Age of Experts (Princeton-NJ: Princeton University
Press, 1994); P. Baldwin, Tlie Politics of Social Solidarity (Nova
Iorque: Cambridge University Press, 1990); C. Pierson, Beyond the
Welfare State (Oxford: Polity, 1994).
35
H. Perkin, The Rise of Professional Society (Londres: Routledge,
1989). Estes interesses econômicos e as credenciais educacionais
marcam os profissionais das classes médias, especialmente aqueles
empregados no setor público provenientes das classes comerciais e
empresariais. Veja-se S. Brint, InAnAge ofExperts, para um relato das
diferenças.
36
Veja-se S. Ranulf,Mora/ Indignation andMiddle Class Psychology (Nova
Iorque: 1964), sobre as atitudes punitivas das classes médias baixas e suas
raízes sociais.
37
R. Fishman, Burgeois Utopias (Nova Iorque: Basic Books, 1987); N.
Elias e J. Scotson, The Established and the Outsiders (Londres: Cass, 1965).
38
O Home Secretary do governo trabalhista afirma exatamente isto em
apoio às novas políticas criminais mais severas. "Por muitos anos, a
preocupação daqueles que viviam em áreas afetadas pelo crime e pela
desordem foi ignorada ou desprezada pelas pessoas cujas confortáveis
noções sobre o comportamento humano eram diretamente proporcionais à
confortável distância dos seus piores excessos", J. Straw, "Crime and Old
Labour's Punishment", The Times, 8 de abril de 1998.
39
N. Glazer, "Towards a Self-Service Society", Public Interest (1987), nº
70, pp. 66-90; J. Hopkins, "Social Work Through the Looking Glass", in N.
Parton (org.), Social Theory, Social Change and Social Work (Londres:
354
Routledge, 1996); D. Yergin e J. Stanislaw, The Commanding Heights
(Nova Iorque: Simon & Schuster, 1998).
40 "Poucas pessoas com formação extensiva na justiça criminal servem
como conselheiros políticos aos representantes eleitos. Tampouco tais
pessoas são seriamente consultadas no momento em que políticas
relacionadas à justiça criminal são formuladas. Podemos imaginar
importantes decisões legislativas sobre política de saúde sendo tomadas
sem uma cuidadosa consulta a médicos e executivos de planos de saúde?",
S. Pillsbury, "Why Are We lgnored?", p. 313.
41
A E. Bottoms, "Introductionto the Coming Penal Crisis", inA. E. Bottoms
e R. H. Preston (orgs.), The Coming Penal Crisis (Edimburgo: Scottish
Academic Press, 1981); F. A Allen, The Decline of the Rehabilitative Ideal
(New Haven: Yale University Press, 1981).
42
M. Foucault, Discipline and Punish (Londres: Allen Lane, 1977),
p. 247 (N.T.: na edição em língua portuguesa, traduzida por Raquel
Ramalhete, Petrópolis, 1995, ed. Vozes, o trecho correspondente está à
p. 220); J. B. Jacobs, "The Prisoners' Rights Movements and its lmpacts,
1960-1980", in N. Morris e M. Tonry (orgs.), Crime and Justice: An
Annual Review of Research (Chicago: University of Chicago Press,
1980); M. Maguire et al., Accountability and Prisons (Londres:
Tavistock, 1985).
43
J. Simon, Poor Discipline (Chicago: University of Chicago Press, 1993);
N. Parton, "Social Work, Risk and 'the Blaming System", in N. Parton (org.),
Social Theory, Social Change and Social Work (Londres: Routledge, 1996).
44
R. Bayer, "Crime, Punishment and the Decline of Liberal Optimism", in
Crime and Delinquency (abril de 1981), pp. 169-90; B. Ehrenreich, Fearof
Fallíng: The lnner Life of the Middle Class (Nova Iorque: Perennial, 1989);
K. B. Bottornley e J. G. Johnstone, "Labour's Crime Policy in Context",
Policy Studies (1998), vol. 19, nº' 3-4, pp. l 73-84;K. Beckett,Making Crime
Pay. A emergência do "realismo de esquerda" corno posição influente entre
criminólogos radicais, especialmente na Grã-Bretanha, é outro indicador
importante do colapso das velhas posições liberais de esquerda. Para uma
discussão acerca do contexto no qual tal mudança ocorreu, v. I. Taylor, "Left
Realíst Criminology and the Free Market Experiment in Britain", J. Young
e R. Matthews (orgs. ), Rethinking Criminology: The Realist Debate (Londres:
Sage, 1992).
45
A. E. Bottorns, "Introduction to the Coming Penal Crisis"; F. A. Allen,
The Decline of the Rehabilitative Ideal.
46
D. Greenberg e D. Hurnpries, "The Co-Optation of Fixed Sentencing
Refonn", Crime and Delinquency (1980), vol. 26, pp. 205-25.
355
47
Veja-se o apêndice, figuras 1 e 2. "O número de crimes registrados
aumentou nove vezes desde 1950. A taxa por 100.000 pessoas subiu de
cerca de 1.100, em 1940, para 9.400, em 1996. O percentual médio de
aumento anual, ao longo dos últimos 40 anos, tem sido de aproximadamente
6%", Home Office, Criminal StatisticsJor England and Wales (Londres:
HMSO, 1996), p. 16. V., também, United States Department of Justice,
Criminal Victim:zation in the United States: 1973-1992 Trends (Washington
DC: US Government Printing Office, 1994).
48W. G Skogan e M. Maxfield, Coping With Crime (Beverly Hills: Sage,
1981); M. Hough, Anxiety About Crime: Findings From the 1994 British
Crime Su11Jey (Londres: Home Office, 1995); C. Mirrless-Black et al., The
1996 British Crime Su11Jey (Londres: HMSO, 1996).
49
V. o President's Task Force on Victims, Final Report (Washington DC:
Government Printing Office, 1982); Research and Forecasts Inc., America
Afraid: How Fear of Crime Changes the Way We Live: The Figgie Reports
(Nova Iorque: NAL Research and Forecasts, 1983). Nos EUA, notadamente
após os anos 1960, o medo do crime veio a ser perpassado por antagonismos
raciais ao ponto do discurso político sobre "o problema do crime"
freqüentemente conter uma mensagem subliminar poderosa referente às
hostilidades inter-raciais: v., T. Edsall, ChainReaction, p. 224. Como Stuart
Hall argumentou; a Grã-Bretanha absolutamente não está livre deste tipo de
divisão racial, mas a escala e intensidade do problema são bem diferentes.
Veja-se Hall et al., Policing the Crisis (Londres: MacMillan, 1978). Minorias
pobres são normalmente as mais expostas ao risco de vitimização. O Criminal
Justice Newsletter de 15 de junho de 1994 relata que "moradores de
vizinhanças negras estão três vezes mais propensos a temer o crime do que
os moradores de vizinhanças brancas, e a diferença só aumenta, de acordo
com estudo do Justice Department". Segundo o censo de 1991, 5,5% da
população britânica é não-branca; a proporção correspondente nos EUA é
de 25,8%.
50
"A maioria dos moradores dos centros urbanos não passa um dia sequer
sem entrar em contato com o crime de um jeito ou de outro", W. G Skogan
e M. Maxfield, Coping With Crime (Beverly Hills: Sage, 1981), p. 11. D. C.
Anderson, Crime and the Polítics of Hysteria, argumenta que as recentes
políticas foram guiadas por uma percepção pública segundo a qual o crime
envolve cada vez mais "violência aleatória contra vítimas inocentes da classe
média, e é cometido por criminosos que o sistema poderia ter controlado
melhor" (p. 55). Ele cita Mike Reynolds, que passou a fazer uma campanha
por leis penais mais severas após o homicídio de sua filha: "o que estes
crimes têm feito é mostrar às pessoas que se pode fazer tudo certo, mas que
isto não importa. Pode-se trancar as portas, permanecer nos locais certos

356
( ... ). Quando criminosos estão matando criminosos, isto é uma coisa.
Mas quando começam a matar pessoas normais, aí deve-se estabelecer
um limite. É isto o que está enlouquecendo as pessoas" (p. 12).
51
L Taylor, Crime in Context (Oxford: Policy, 1999); D. C. Anderson,
Crime and the Politics of Hysteria (Nova Iorque: Times Books, 1995); C.
Hay, "Mobilization Through Interpellation: James Bulge1; Juvenile
Crime and the Construction of a Moral Panic", Social and Legal Studies
(1995), 4 (2). (N.T.: James Patrick Bulgerfoi assassinado em 12 de fevereiro
de 1993, quando tinha apenas 2 anos de idade, em Merseyside, condado
situado no noroeste da Inglaterra. O crime foi praticado por dois meninos
de 10 anos de idade, Jon Venables e Robert Thompson, que fornm ambos
condenados à pena privativa de liberdade 1nínima de 10 anos. Apesar de
maciça campanha nacional contrária, ambos foram libertados em junho
de 2001, após cumprir 8 anos da pena. Polly Klaas, de apenas 12 anos, foi
seqüestrada e morta, entre lº de outubro e 30 de novembro de 1993, por
Richard Allen Davis, na cidade de Petaluma, estado da Califórnia. O detalhe
marcante do caso foi a participação da atriz Winona Ryder, que, tendo
crescido na mesma localidade, ofereceu recompensa de US$ 200.000,00
pelo retorno seguro de Polly à sua família. Richard Allen Davis foi
condenado à morte pelo crime.)
52
B. Campbell, Goliath: Britain's Dangerous Places (Londres: Methuen,
1993); K. Beckett, Making Crime Pay.
53
Sobre o medo, v. C. Hale, "Fear of Crime: a Review of the Literature",
Intemational Review of Victimology, 1996, voL 4, pp. 79-150. Sobre
exclusão, v. W. J. Wilson, The Truly Disadvantaged (Chicago: Chicago
University Press, 1987) e When Work Disappears (Nova Iorque: Knopf,
1997); B. Campbell, Goliath; L. Morris, The Dangerous Classes: The
Underclass and Social Citizenship (Londres: Routledge, 1994).
54
Existem, evidentemente, muitos tipos de famílias e de ambientes familiares
na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos contemporâneos, assim como grande
diversidade de estilos de vida, mesmo dentro de uma classe social
determinada. Minha discussão, aqui, tenciona rascunhar uma trajetória bruta
de mudança e sugerir algumas das conseqüências domésticas típicas destes
movimentos sociais.
55
A. R. Hochschild, The Time Bind (Nova Iorque: Metropolitan Books,
1997); J. B. Schor, The Ove1worked American (Nova Iorque: Basic Books,
1992); P. Hewit, About Time: The Revolution in Work and Family Life
(Londres: Institute of Public Policy Research, 1993).
56
Para uma discussão acerca da "separação de tempo e espaço" e da
"desagregação", v. A. Giddens, The Consequences of Modemity (Dxford:

357
Polity Press, 1990). Um exemplo eloqüente de como estas mudanças
ecológicas causam impacto na vida cotidiana das famílias está nos dados
sobre o deslocamento para a escola. "Em 1971... 80% das crianças de 7 e 8
anos de idade, na Inglaterra, iam para a escola sozinhas, desacompanhadas
de qualquer pessoa adulta. Em 1990, esta proporção despencou para 9%; o
questionário da pesquisa revelou que a principal razão dos pais para não
permitirem que seus filhos fossem sozinhos era o medo do trânsito", J.
Adams, Risk (Londres: UCL Press, 1995), p. 13. Para dados sobre o
cambiante volume de trabalho das famílias norte-americanas, v. J. B. Schor,
The Overworked American.
57
Aquele cenário, obviamente, produzia sérias patologias e formas de
opressão próprias. Meu objetivo não é valorizar a desigualdade e as
relações entre sexos do velho núcleo familiar, mas apontar algumas das
conseqüências ocultas de sua transformação subseqüente .
58
A expressão "insegurança ontológica" é de A. Giddens, The
Consequences of Modernity. Sobre a natureza cambiante do trabalho no
que ele chama de "novo capitalismo", v. R. Sennett, The Corrosion of
Character (Nova Iorque: Norton, 1998). Para um estudo empírico da
conexão entre tais preocupações e o apoio por medidas punitivas, v. T. R.
Tyler e R. J. Boeckmann, "Three Strikes and YouAre Out, But Why? The
Psychology of Public Support for Punishíng Rufe Breakers", Law and
Society Review (1997), vol. 331, nº 2.
59
Os receios e inseguranças bem diferentes dos lares pobres e das classes
proletárias são ainda mais intensos e têm sido exacerbados pelas políticas e
"reformas previdenciárias" neoliberais dos anos 1980 e 1990. Meu foco,
aqui, é nas atitudes da classe média porque as mudanças na orientação política
deste grupo desempenharam papel central no movimento de afastamento
das políticas penais-previdenciárias.
60
L. E. Cohen e D. Cantor, "The Determinants of Larceny in the United
States: Life-Style and Demographic Factors Assocíated with the Probability
ofVictimization", Journal of Research in Crime and Delinquency (1981),
vol. 18, pp. 113-27; M. Felson, Crime and Everyday Life, 2ª ed. (Thousand
Oaks-CA: Pine Forge Press, 1998).
61
I. Taylor, "Prívate Homes and Public Others", British Journal of
Criminology (1995), vol. 35, nº 2, pp. 63-285.
62
A. Giddens, The Consequences of Modernity.
63
Girling et ai. ponderam com propriedade: "ao falarem sobre crime, as
pessoas rotineiramente registram sua perplexidade com outros aspectos da
vida econômica, social e moral; atribuem responsabilidades e culpas;
demandam confiabilidade e justiça; e estabelecem limites entre 'nós' e
358
muitas categorias de 'eles' ( ... ). As pesquisas sobre 'medo do crime' são
mais esclarecedoras quando tratam as variadas fontes de (in)segurança
que se infiltram na vida das pessoas (e as relações entre elas) e quando
explicitam (em vez de suprimir) as conexões que as angústias dos cidadãos
relacionadas ao crime têm com o conflito social, a divisão social, a justiça
social e a solidariedade social", E. Girling et. al., Crime and Social Change
in Middle England (Londres: Routledge, 2000), p. 170.
64
Como Albert Biderman anotou, ainda em 1967, "descobrimos que as
atitudes dos cidadãos relativas ao crime são menos afetadas por suas
experiências passadas de vitimização do que pela noção daquilo que está
acontecendo em suas comunidades - medos quanto ao enfraquecimento dos
controles sociais com os quais sentem-se seguros e dos quais o tecido
social depende em última instância", citado in W G Skogan, Disorder
and Decline (Chicago: University of Chicago Press, 1990), p. 76.
65
Peter Schrag argumenta que mudanças demográficas (L e., o aumento
no tamanho do que se costumou chamar de "minorias") exacerbou este
desconforto entre os brancos de classe média na Califórnia - estado que
liderou o movimento nacional de expansão da prisão e de fortificação das
cidades. P. Schrag, Paradise Lost: California's Experience, America's
Future (Berkeley-CA: University ofCaliforniaPress, 1998). V., também, T.
R. Tyler e R. J. Boeckmann, "Three Strikes and You Are Out, But Why?".
66
Será que os extraordinários medos e hostilidades públicos
concernentes a certos crimes praticados contra crianças derivam da culpa
residual e da ambivalência que as famílias sentem com relação a suas
próprias escolhas e às vulnerabilidades que elas parecem causar? Se for
assim, o pedófilo e o traficante são telas sobre as quais projetamos nossa
culpa, bem como nossas angústias.
67
D. C. Anderson, Crime and the Politics of Hysteria, fornece muitos
exemplos eloqüentes.
68
J. R. Sparks, Television and the Drama of Crime (Milton Keynes: Open
University Press, 1992); R. Ericson et al., Representing Order: Crime, Law
and Justice in theNews Media (Buckingham: Open University Press, 1991);
D. Duelos, The Werewoif Complex: America's Fascination with Violence
(Nova Iorque: Oxford University Press, 1998); R. Reiner et al., "Discipline
or Desubordination: Changing Images of Crime in the Media Since World
War II", texto apresentado ao/SA World Congress, Montreal,julho de 1998.
69
"Três descobertas da literatura são inescapáveis: o público superestima as
taxas de criminalidade, particularmente quanto a crimes violentos; o público
cita o noticiário como sua fonte primária de informação sobre a justiça
criminal; crimes violentos são consideravelmente exagerados no

359
noticiário", J. V. Roberts, "Public opinion, crime and criminal justice",
in M. Tonry e N. Morris (orgs.), Crime and Justice (Chicago: University
of Chicago Press, 1992).
70
Ilustração disto é o fato de que a maioria dos norte-americanas e
britânicos consultados acredita que as penas são normalmente lenientes
demais, mas quando colocadas diante de uma série de decisões reais, elas
escolhem penas idênticas ou mais lenientes do que aquelas efetivamente
aplicadas pelos juízes. Veja-se M. Hough e J. Roberts, "Sentencing Trends
in Britain: Public Knowledge and Public Opinion", Punishment & Society
(1999), 1 (1).
71
Se alguma prova disto é necessária, devemos nos recordar que no
período entre 1960 e 1975, quando os índices de crimes registrados
estavam subindo meteoricamente tanto na Grã-Bretanha quanto nos EUA,
as práticas e políticas criminais de ambos os países continuaram a se
desenvolver no sentido exatamente oposto, tornando-se cada vez mais
"liberais" e "não-punitivas".
72
M. Foucault, Discipline and Punísh.
73
M. Felson e R. V. Clarke (orgs.), Business and Crime Preventíon
(Monsey-NY: Criminal Justice Press, 1997). Felson e Clarke observam,
contudo, que "não devemos superestimar o grau de inovação do setor
privado na prevenção do crime. A maior parte dos estabelecimentos instala
sistemas de segurança repressivos e não preventivos; confia mais em
tecnologias caras ou em vigilantes do que na menos onerosa prevenção
situacional. Muitos vigilantes buscam flagrar as pessoas no ato de furtar,
em vez de implementar sistemas que evitem o furto. É por esta razão que
o setor comercial ainda tem muito a aprender" (p. 7). Clifford Shearing
aponta a participação do policiamento privado no desenvolvimento de
estratégias comunitárias que se tornaram populares junto às forças
policiais públicas, C. Shearing, "The Unrecognised Origins of the New
Policing: Linkages between private and public police", in M. Felson e
R. V. Clarke (orgs.), Business and Crime Prevention, pp. 219-30.
74
"Enquanto o esforço de convencer o cidadão a se proteger do crime
possui muitos pontos de referência - na forma de pronunciamentos
ministeriais, circulares, campanhas-, o setor comercial evoluiu para um
estado substancial de auto-suficiência na prevenção do crime sem muito
debate ou dissensão. Na maioria das empresas de médio e grande porte,
departamentos internos de segurança já existem há várias décadas", J.
Burrows, Making Crime Preventíon Pay: Initiatives from Business, Crime
Prevention Unít Papers 27 (Londres: Home Office, 1991), p. 1; L. Johnston,
The Rebirth of Private Policing (Londres: Routledge, 1992); T. Jones e T.

360
Newburn, Private Security and Public Policing (Oxford: Clarendon
Press, 1998).
75
A. Beck e A Willis, Crime and Security: Managing the Risk to Safe
Shopping (Leicester: Perpetuity Press, 1995).
76
A. Crawford, The Local Govemance of Crime (Oxford: Oxford University
Press, 1997).
77
M. Foucault, Discipline and Punish (Londres: Allen Lane, 1977); D.
Garland, Punishment and Welfa,~ (Aldershot: Gower, 1985).
78
H. Krahn e L W. Kennedy, "Pmducing Personal Safety: The Effects of
Crime Rates, Police Force Size, and Fear of Crime", Criminology (1985),
voL 23, nº 4, pp. 697-710; R. Warren et al., "Coproduction, Equity and
the Distribution of Safety", Urban Ajfairs Quarterly (1984), voL 19, pp.
447-64.
79
S. Riger et al., "Coping With Urban Crime: Women's Use of
Precautionary Behaviors", American Joumal of Community Psychology
(1982), voL 10, nº 4, pp. 369-86; W G Skogan e M. Maxfield, Coping With
Crime; E DuBow et al., Reactions to Crime: A Critica[ Review of the
Literature (Washington DC: National Institute of Law Enforcement, 1979);
W. Conklin, The Impact of Crime (Nova Iorque: MacMillan, 1975); A. L.
Schneíder e P. B. Schneider, Private and Public-Minded Citizen
Responses to a Neighborhood-Based Crime Prevention Strategy
(Eugene-OR: Institute of Policy Analysis, 1977).
80
Veja-se Girling et al., Crime and Social Change in Middle England
(Londres: Routledge, 2000), cap. 7, para evidências da ambivalência pública
quanto à questão da segurança, especialmente no que concerne à vigilância
com circuito interno de TV. Estes autores observam que os entrevistados de
classe média eram mais suscetíveis a receios sobre segurança do lar e agiam
para estabelecer precauções rotineiras mais do que os moradores de
conjuntos habitacionais.
81
E. Stanko, Everyday Violence: How Women and Men Experience
Sexual and Physical Danger (Londres: Pandora's Press, 1990). O papel
das mulheres nas novas políticas de controle do crime é crucial: nos
movimentos de vítimas, no medo da política criminal, nas adaptações do
cotidiano e nas campanhas de pressão por proteção contra a violência
doméstica, crimes sexuais, embriaguez ao volante e abuso de crianças.
82
Research and Forecasts, America Afraid; V. H. Sacco e H. Johnson,
Patterns of Criminal Victimization in Canada (Canadá: Minister of Supply
and Services, 1990); T. J. Flanagan e K. Maguire, Sourcebook of Criminal
Justice Statistícs (1994, tabela 2.42, "Reported Self-Protective Measures

361
Taken as a Result of Concern about Crime"). Veja-se E. Anderson,
Streetwise: Race, Class and Change in an Urban Community (Chicago:
University of Chicago Press, 1998), cap. 8, para uma explicação etnográfica
sobre a evitação do crime pelos negros pobres numa comunidade urbana.
83
P. N. Grabowski, "Law Enforcement and the Citizen: Non-
governmental participants in crime prevention and crime control",
Policing and Society (1992), vol. 2, pp. 249-71. "Ações coletivas de
prevenção do crime por cidadãos se equiparam ao crescimento da indústria
de segurança privada, como um dos desdobramentos mais significativos
nos Estados Unidos ( ... ) nos anos recentes. Inspirado em parte pela
percepção de que os recursos policiais eram insuficientes para
proporcionar cobertura nos bairros residenciais e incentivados pelas
próprias agências do sistema penal, o modelo mais comum deste tipo de
atividade é a vigilância de bairro" (p. 253). V., também, L. Johnston, The
Rebirth of Private Policing, caps. 7 e 8.
84
Veja-se S. Christopherson, "The Fortress City: Privatised Spaces,
Consumer Citizenship", inA.Amin (org.),Post-Fordism: AReader(Oxford:
Blackwell, 1994), pp. 409-10. Christopherson anota que "o design defensivo
contemporâneo diz respeito à conexão entre lucro e segurança. Reflete,
também, o entendimento de que o valor das propriedades é significativamente
afetado pela segurança" (p. 420).
85
E. Blakely e M. G. Snyder, Fortress America (Washington: Brookings
Institute, 1997), p. 28. Sobre a militarização da vida na cidade de Los Angeles,
v. M. Davis, City of Quartz (Londres: Vintage, 1990). Sobre a realização de
compras em segurança, v. A. Beck e A. Willis, Crime and Security. Sobre as
"geografias da exclusão", v. D. Sibley, Geographics ofExclusion (Londres:
Routledge, 1995). Sobre o medo do crime na vida das mulheres, v. E. Madriz,
Nothing Bad Happens to Good Girls: Fear of Crime in Women's Lives
(Berkeley-CA: University of California Press, 1997).
86
Christopherson, "The Fortress City": "enquanto a imagem da rua continua
a existir na fonna de atração, a tendência dominante em termos de design é
de construir ambientes comerciais e de consumo mais amplos, mais bem
administrados. Tais ambientes ( ... ) são desenhados para isolar, represar e
proteger os chamados 'usuários normais' no espaço. O caráter de intensa
administração destes espaços é definido tanto por aquilo que é excluído
quanto pelo que é incluído" (p. 417).
87
C. D. Shearing, "The Relation between Public and Private Policing", iii
M. Tonry e N. Morris (orgs.), Crime and Justice (1992), p. 423.
88
D. J. Kennedy, "Residential Associations as State Actors", Yale Law
Joumal, vol. 105 (1995), p. 765.

362
89
Sobre a medição de precauções rotineiras, v. United States Depar1ment
of Justice, Sourcebook of Criminal Justice Statistics 1995 (Washington
DC: US Government Printing Office, 1996), p. 173, tabela 2.42, "Reported
self-protective measures taken as a result of concern about crime".
Ações coletivas mais formais, tais como esquemas de vigilância de bairro,
já foram avaliadas: v. T. H. Bennett, Evaluating Neighbourhood Watch
(Cambridge: Cambridge University Press, 1990), e W. G Skogan, Disorder
and Decline, cap. 6.
90
Não se deve subestimar o prazer contido no crime e na punição como
fontes de entretenimento - às vezes de forma bem direta, em programas
policiais "reais", tais como "Crime Stoppers", "Crime Watch UK" -
freqüentemente mediatizadas pela dramatização ficcional. Veja-se J. R.
Sparks, Television and th.e Drama of Crime (Milton Keynes: Open University
Press, 1992).
91
"Altas" é, evidentemente, um termo relativo. Nos EUA e na Grã-
Bretanha, as taxas atuais de criminalidade e violência permanecem
historicamente em níveis altos, a despeito das quedas recentes, e são
amplamente percebidas como elevadas, particularmente pelos mais velhos,
que se recordam das circunstâncias muito diferentes dos anos 1950 e
início dos 1960. Para meu propósito, uma taxa de criminalidade "alta" é
aquela em que a evitação do crime é um princípio organizacional central
da vida cotidiana.
92
Analisando dados relativos a três questões relacionadas à justiça
criminal (sobre pena de morte, condenação de criminosos e gastos com
controle do crime), colhidos entre 1950 e 1990, Sharpe observa que, "desde
a metade dos anos 1960, houve de fato apenas duas fases de opinião
pública sobre crime e punição: uma fase inicial (de 1966 a aproximadamente
1980) de preocupação crescente e de punitivismo e uma segunda fase
(1980-1993) na qual o ápice do nível de preocupação pública verificado
na primeira fase se mantém relativamente inalterado", E. B. Sharpe, The
Sometime Connection: Public Opinion and Social Policy (Albany-NY:
State University of New York Press, 1999), p. 53. A conclusão de Sharpe
é que a opinião pública neste assunto não se altera com as mudanças
políticas atuais. Tyler e Boeckmann chegam a conclusão semelhante,
após encontrarem um liame entre atitudes punitivas e um conjunto
específico de valores sociais: "na medida em que os valores sociais
representam orientações políticas de longa duração, eles refletem uma
influência estável na opinião pública e a pouca probabilidade de mudarem
em reação a eventos públicos contemporâneos. Assim, a forte influência
que exercem no punitivismo sugere que os níveis atuais de apoio popular
ao punitivismo não são simplesmente o resultado de eventos de grande

363
visibilidade como o seqüestro de Polly Klaas. Ao revés, eles se
desenvolvem a partir de valores sociais subjacentes, que são estáveis e
moldarão a visão pública no futuro próximo" T. R. Tyler eR. J. Boeckmann,
"Three Strikes and You Are Out, But Why?" (p. 257).
93
Estes efeitos, evidentemente, variam em caráter e expressão. Por exemplo,
o significado político de "vítima de crime" na Grã-Bretanha não é o mesmo
do que nos EUA, onde parte dos movimentos de vítimas fez carga sobre
políticas punitivas, de direita. Mas em ambos os países, a figura da vítima se
tornou proeminente e é cada vez mais utilizada para justificar medidas de
punição e opressão pública.
94
Zimring e Hawkins chamam este processo de "contágio categorial", F. R.
Zimring e G. Hawkins, Crime is Not the Problem (Nova Iorque: Oxford
University Press, 1997), p. 4.
95
Z. Bauman, "The Social Uses of Law and Order', in D. Garland e J. R.
Sparks (orgs.), Criminology and Social Theory (Oxford: Oxford
University Press, 2000).

364
7. A nova cultura do controle do crime

Até agora, minha análise foi feita sob a perspectiva da ação,


particularmente da ação pragmática de políticos e administradores
e das ações cotidianas de muitos grupos sociais. Quero mudar,
agora, para uma perspectiva mais estrutural, concentrando-me no
campo do controle do crime que surgiu como resultado daquelas
ações e decisões ora convergentes, ora contraditórias. Desejo re-
fletir sobre a natureza do campo como um todo, especificar a for-
ma como difere do previdenciarismo penal da metade do século e
comentar o impacto global das transformações que descrevi. An-
tes de fazê-lo, porém, desejo abordar brevemente duas questões
analíticas.
A primeira diz respeito ao problema da complexidade e de como
solucioná-lo. O campo que está sendo descrito aqui é composto por
uma multiplicidade de agências, práticas e discursos diferentes e se
caracteriza por várias políticas e práticas, algumas das quais bem
contraditórias entre si. Sua natureza geral é mais bem elucidada
através do mapeamento da distribuição de seus elementos, dos prin-
cípios organizacionais que se relacionam a tais elementos e dos lo-
cais nos quais os conflitos são dispostos, do que através da tentati-
va de identificar uma única essência, elegendo-a como característi-
ca do campo como um todo. Caracterizar o campo desta forma
implica a perda do impacto imediato da análise essencialista com
sua poderosa simplicidade, assim como da face crítica que se al-
cança retratando o campo em termos dos seuS' valores extremos em
lugar das suas tendências centrais. Mas essências e extremos ten-
dem a ser maus guias para a realidade social. Mesmo no seu esplen-
dor, o campo penal-previdenciário não era caracterizado pelos esta-
belecimentos co1Tecionais altamente desenvolvidos: as sanções típi-
cas eram, na verdade, multas e liberdade vigiada, e a maioria das
prisões locais oferecia pouco em termos de reabilitação 1 . Da mes-
ma forma, o campo contemporâneo não pode ser retratado com

365
precisão se atentarmos somente para os extremos, tais como as leis
de "Three Strikes" ou as parcerias de prevenção do crime, e ignorar-
mos as outras práticas que o compõem.
A segunda questão concerne à relação do passado com o pre-
sente. Até o momento, preocupei-me em descrever e explicar os
novos desdobramentos que têm surgido no controle do crime. Mi-
nha análise se desenvolveu a partir daquelas idéias e práticas que
rompem com o arranjo penal-previdenciário então vigente, alme-
jando caracterizar a mudança e identificar suas fontes. Todavia,
considerando o campo em sua totalidade, devemos ter em mente
que as novas práticas e mentalidades coexistem com os resíduos do
enquadramento anterior. O foco no novo e no renovado não deve
nos levar a negligenciar as práticas e instituições antigas. A história
não é a substituição do velho pelo novo, mas a modificação, em
maior ou menor medida, de um pelo outro. O entrelaçamento do
estabelecido com o emergente é o que estrutura o presente e nossa
análise deve refletir este fato.
Então, como devemos descrever o campo do controle do cri-
me e da justiça criminal que se formou nos últimos trinta anos?
Quais são seus princípios organizacionais, suas racionalidades es-
tratégicas e suas contradições recorrentes? Quais são os valores
políticos, as sensibilidades culturais e os conceitos criminológicos
que guiam suas práticas e que lhes dão significado? E como estes
arranjos na área do controle do crime se relacionam com outros
desdobramentos sociais em marcha nos Estados Unidos e na Grã-
Bretanha ao longo dos últimos trinta anos, especialmente no que
tange ao "reformado" Estado de bem-estar e à organização social
da pós-modernidade?
O aparato de controle do crime
A mutação histórica que estamos estudando não é uma trans-
formação ao nível das formas institucionais. Esta não é uma época
em que as velhas instituições e práticas estão sendo abandonadas
em benefício de novas que estão sendo criadas. Não houve um
processo de abolição e reconstrução, tal como ocorreu quando se
desmontaram as forcas e construfram-se penitenciárias em seu lu-
gar. Tampouco ocorreu um processo de criação institucional que
possa ser comparado à criação do juizado de menores, do serviço
de livramento condicional e da individualização das penas, ocorrida
366
um século antes. A arquitetura institucional da modernidade penal
permanece firme em seu lugar, como também o aparato estatal da
justiça criminal. Foram sua distribuição, seu funcionamento estraté-
gico e sua significação social que se transformaram.
Houve mudanças de tamanho e de ênfase, é claro. Entre 1970
e o tempo presente, os sistemas penais em ambos os países se ex-
pandiram enormemente em termos de volume de trabalho, de pes-
soal e de orçamento global; nas últimas duas décadas, realizou-se
o maior programa de construção de penitenciárias desde a era
vitoriana2 . Também houve a reversão de uma tendência longeva
de redução proporcional das penas privativas de liberdade em fa-
vor de multas e prestação de serviços comunitários. Desde os anos
1980, tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha, as condenações cri-
minais se elevarnm no que tange à quantidade de pena aplicada; o
tempo médio de encarceramento subiu; as penas privativas de li-
berdade têm sido utilizadas proporcionalmente com maior freqüên-
cia e a possibilidade de reencarceramento durante o período de li-
berdade vigiada aumentou 3 . Houve, pois, uma guinada - mais
pronunciada nos EUA do que na Grã-Bretanha, mas presente nos
dois países - no sentido do uso mais freqüente e intenso da prisão.
Esta corrente mais punitiva se reflete nos Estados Unidos no au-
mento do número de execuções da pena capital, que recentemente
alcançaram níveis jamais vistos desde os anos 1950. Estas mudan-
ças de ênfase punitiva causaram efeitos importantes no número de
pessoas custodiadas, no tamanho da indústria prisional, na com-
posição racial da população carcerária e no significado político e
cultural da punição. Estas, porém, foram mudanças apenas de for-
ma e não alterações mais básicas nos tipos de pena ou no cenário
institucional.
De maneira similar, no setor policial verificou-se um afasta-
mento das estratégias reativas e do policiamento "190", em favor
de estilos mais pró-ativos de policiamento comunitário e, mais re-
centemente, do policiamento intensivo da desordem, das incivili-
dades e de cond..1tas contravencionais. Policiamento dirigido, po-
liciamento comunitário, policiamento para salvaguardar a ordem,
policiamento da "qualidade de vida" - estas novas estratégias
redefinem a forma com que as forças policiais são distribuídas e
como elas interagem com o público. O policiamento ficou mais "es-
367
perto", mais centrado, mais ligado às circunstâncias locais, mais
sensível à pressão pública, mais disposto a trabalhar com a comu-
nidade e a enfatizar a prevenção. Tecnologias de informação e as
novas técnicas gerenciais se combinaram para produzir maior con-
trole de recursos e condutas mais dirigidas, pontuais. A polícia
iniciou seu ingresso na fase pós-burocrática da instituição, come-
çando a desenvolver vínculos flexíveis com outros parceiros na
tentativa de somar forças em lugar de monopolizar os esforços 4 .
Outrossim, os objetivos declarados da polícia mudaram, às vezes
de forma acentuada, e novas táticas paulatinamente definem como
são utilizados seus recursos. Todavia, estudos sobre orçamento e
rotinas de trabalho da polícia sugerem que as práticas diárias da
maior paite das forças policiais não se alteraram tanto assim5 • Além
disto, as novas prioridades e táticas ainda não levaram a nenhuma
reorganização básica da polícia enquanto agência pública. Como
entidade pública, financiada pelos contribuintes e encarregada da
aplicação da lei, a polícia pública pai·ece ser o mesmo do que era
há trinta anos.
A consolidação da figura da vítima certamente alterou os pro-
cessos da justiça criminal de várias formas significativas. O reco-
nhecimento do direito das vítimas; a coleta da opinião da vítima a
respeito da pena a ser aplicada ou da concessão de liberdade vigia-
da; o crescimento de grupos de apoio às vítimas; e o freqüente
encaminhamento das vítimas para tais organizações pela polícia -
tudo isto mudou não apenas as rotinas da justiça criminal, mas tam-
bém o status relativo e o valor das várias pai·tes envolvidas. Mas à
exceção das organizações de apoio às vítimas, estas mudanças não
ocasionaram o desenvolvimento de novos aparatos, nem levaram à
criação de novas penas. É bem verdade que novos mecanismos de
repai·ação e mediação começaram a aparecer, retirando certos casos
da esteira comum do sistema, reunindo a vítima e o agressor e
promovendo, sempre que possível, resultados "restaurativos" em
vez de punitivos. Nos últimos poucos anos, tem havido notável au-
mento no interesse por este estilo de fazer justiça - da parte de
acadêmicos, reformistas e até mesmo autoridades governamen-
tais. Mas, no presente, estas iniciativas dajustiçarestaurativa de-
sempenham apenas um papel minúsculo no sistema, sendo mais
visíveis pelo entusiasmo reformista que atraem do que pela fre-

368
qüência de sua utilização ou pelo impacto no funcionamento da jus-
tiça criminal 6 .
Mais surpreendentemente, talvez, o aparato conecionalista
associado ao penal-previdenciarismo ainda está, em sua maior parte,
no lugar. As leis sobre sentenciamento foram completamente trans-
formadas, particularmente nos EUA, e penas indeterminadas são
agora muito menos comuns. Entretanto, a maior parte das
tecnologias, poderes e saberes específicos desenvolvidos pelo mo-
vimento penal-previdenciário ainda estão em uso. O juizado de
menores e o serviço de livramento condicional continuam a ex-
pandir seu âmbito de atuação. Especialistas em ciências sociais e
psiquiatria ainda são contratados para preparar relatórios de in-
vestigação social, para fornecer diagnósticos e auxiliar no trata-
mento de criminosos. Com efeito, os anos 1990 testemunharam
um aumento bem significativo no número _de programas de trata-
mento oferecidos aos criminosos na comunidade e nas prisões 7 .
Os indivíduos ainda são avaliados e classificados; possibilidades
de tratamento e fatores de risco ainda são identificados; o poder
punitivo ainda se combina com um enfoque psicossocial de diag-
nóstico e remediação. Se vi vemos na era da "pós-reabilitação", como
o senso comum presume, não é porque os dispositivos de avaliação
de indivíduos e de reabilitação foram desmontados e removidos.
O terceiro setor: policiamento, punição e prevenção
O evento mais significativo no campo do controle do crime
não é a transformação das instituições da justiça criminal, mas o
desenvolvimento, ao lado destas instituições, de uma forma bem
diferente de gerir o crime e os criminosos. Ao lado da polícia e do
sistema penal, surgiu um terceiro setor "governamental" - o novo
aparato de prevenção e segurança. Como vimos no Capítulo 5,
este pequeno mas ascendente setor é composto por organizações
de prevenção do crime, por parcerias público-privadas, por meca-
nismos de policiamento comunitário e por rotinas de trabalho
multiagências que unem as diferentes autoridades cujas atividades
digam respeito ao problema do crime e da segurança. Ao contrário
dos dois outros setores, com seus sólidos edifícios, amplos qua-
dros funcionais e orçamentos generosos, este setor tem uma exis-
tência mais frágil, mais virtual. Ele consiste principalmente em re-
des de práticas coordenadas - painéis das autoridades locais, grn-
369
pos de trabalho, fóruns multiagências e comitês de ação - cujo ob-
jetivo primário é reunir as atividades dos atores e agências exis-
tentes, direcionando-as para a redução do crime. Este novo setor
ocupa uma posição intermediária, eqüidistante do Estado e da so-
ciedade civil, conectando as agências do sistema penal às iniciati-
vas dos cidadãos, das comunidadt-S e das empresas. Enquanto seu
orçamento, corpo fundonal e organização são relativamente pe-
quenos (particularmente se comparados com os gastos totais da
polícia ou do sistema penitenciário), a implantação desta nova infra-
estrutura expande significativamente o campo de controle do cri-
me "formal" e seu potencial de empreender ações organizadas 8 .
Uma conseqüência chave deste movimento é que as frontei-
ras formais do campo do controle do crime não são mais marcadas
pelas instituições do Estado de justiça criminal. O campo, agora,
se estende para além do Estado, envolvendo os atores e agências
da sociedade civil, permitindo que rotinas de controle do crime
sejam organizadas e direcionadas ao largo das agências estatais. O
controle do crime está se tomando responsabilidade não só dos
especialistas da justiça criminal mas de todo um conjunto de ato-
res sociais e econômicos. Dois séculos depois de Patrick
Colquhoun, e no fim de um período durante o qual a função de
controle do crime ficou concentrada nas diferentes camadas das
burocracias estatais, monopolizada por autoridades estatais, um
movimento discreto porém significativo no sentido da pulveriza-
ção agora se iniciou.
O desenvolvimento deste novel setor começou a alterar o equi-
líbrio geral do campo. Sua própria existência exerce uma pequena
mas persistente pressão que tende a rlistanciar a política do
retributivismo, da intimidação e da reforma, aproximando-a da pre-
venção, da redução de danos e do gerenciamento de riscos. Em
vez de perseguir, processar e punir os indivíduos, ele visa a redu-
zir a oferta de eventos criminosos através da minimização de opor-
tunidades, da intensificação de controles situacionais e da evitação
de situações criminogênicas. Antes de tratar disposições crimino-
sas ou de punir indivíduos culpados, o terceiro setor se concentra
em evitar a convergência de fatores que precipitem eventos crimi-
nosos. Enquanto a justiça criminal confia no emprego do poder pu-
nitivo ou na ameaça que este representa, o novo aparato busca ati-
370
vara ação preventiva dos atores e agências que integram a socieda-
de civiL A segurança da comunidade passa a ser a consideração
principal, tomando a aplicação da lei não mais um fim em si mesmo,
mas meramente um meio para alcançar tal fim. Redução do medo,
redução de perdas e danos e controle de custos se transformam em
considerações proeminentes. E à medida que este novo setor de
prevenção se liga aos setores antigos da polícia e da pena - particu-
larmente através da primeira e das agências de livramento condicio-
nal - as preocupações com prevenção se fazem sentir em todo o
campo.
Ao longo dos últimos vinte anos, começamos a presenciar o
aparecimento de uma série de novos especialistas que ocupam esta
ainda difusa e indefinida conjuntura. Conselheiros de prevenção do
crime, coordenadores, funcionários interagências, analistas de sis-
temas, auditores criminais, gerenciadores de riscos, especialistas
em design e policiais comunitários - ainda poucos em quantidade,
mas de significação cada vez maior - compõem o corpo de funcio-
nários deste setor. As idéias derivadas da prevenção situacional do
crime, da teoria da atividade de rotina e da criminologia ambiental
informam cada vez mais seu pensamento e suas ações. Em lugar de
concentrar-se nos criminosos individuais, o setor preventivo tem
em mira situações criminogênicas que podem ser alteradas de
modo a torná-las menos propiciatórias de eventos criminosos,
menos convidativas para criminosos potenciais. Ele analisa o fluxo
de pessoas e a distribuição de eventos criminosos, identificando
"lugares visados", "produtos visados" e padrões recorrentes de
vitimização, transformando-os no objeto de ação. Soluções poli-
ciais e punitivas até fazem parte do seu repertório, porém ore-
médio preferido é a instalação de controles situacionais e a deflexão
da conduta para longe das tentações, em vez de promover acusa-
ções formais e de punir os criminosos. Na direta proporção com
que o "governo" logra organizar, otimizar e direcionar a capaci-
dade de controlar o crime dos cidadãos, das corporações e das
comunidades, ele simultaneamente estende seu alcance governa-
mental e transforma seu modo de exercer controle 9 .
A decrescente autonomia da justiça criminal
As$im, o campo do controle organizado do crime foi amplia-
do, ainda que a arquitetura institucional do Estado de justiça criminal
371
tenha permanecido inalterada. No processo, a relação da justiça cri-
minal com o ambiente social e político passou por uma série de
mudanças significativas.
Agora, a justiça criminal possui menos autonomia do que há
três décadas, estando mais sujeita a ingerências vindas de fora. Os
atores e agências da justiça criminal são menos capazes de dirigir
seus próprios destinos e de formular suas próprias políticas e deci-
sões. Isto é, parcialmente, o resultado da necessidade de trabalhar
com outros "provedores" e de ser mais reativo às demandas do
público e de outros "clientes". Mas a principal razão para esta
perda é que as relações do campo com o público e com o processo
político se modificaram. Surgiu uma nova relação entre políticos,
o público e os especialistas do sistema penal, segundo a qual os
políticos têm mais autoridade, os especialistas têm menos influên-
cia e a opinião pública constitui o ponto de referência para deter-
minar as posições. Ajustiça criminal está mais sensível às mudan-
ças no humor público e à reação política. Novas leis e políticas são
rapidamente instituídas sem consulta prévia aos profissionais do
sistema penal e o controle da agenda política por tais profissionais
foi consideravelmente reduzido por um estilo populista de fazer
política.
A conente populista na política criminal contemporânea é,
em certa medida, uma postura ou tática política, adotada para a
obtenção de dividendos políticos de curto prazo 10 . Sendo assim,
pode ser rapidamente revertida se iniciativas "populares" deixam
de coincidir com os cálculos de lucro político. Devemos, porém,
estar cientes de que este momento populista tem sido acompanha-
do por uma revisão dos mecanismos de ação política neste campo
- mudança que terá conseqüências contínuas na forma com que a
política é feita e na capacidade dos políticos de moldarem as prá-
ticas da justiça criminal. Com a instituição de penas privativas de
liberdade mínimas obrigatórias e outros instrumentos de micro-
administração do processo decisório criminal- tais como diretrizes
para aplicação da pena, dispositivos que imponham o cumprimento
integral da pena aplicada, parâmetros nacionais de concessão de
livramento condicional e de prestação de serviços comunitários, in-
dicadores de performance nas prisões etc. - as legislaturas e o go-
verno adquhiram meios mais diretos e incisivos de guiar os resulta-
372
dos práticos. Na área do seni.enciamento, os arranjos legais e admi-
nistrativos atualmente vigentes reduzem significativamente a liber-
dade decisória e a revisão discricionária das sentenças condenatórias.
Existe, como Nils Christie afirma, um sistema mais controlado de
imposição da dor, com menos obstáculos situados entre o processo
político e a distribuição de punições individuais. As demandas públi-
cas por penas maiores são, agora, mais fácil e instantaneamente tras-
ladadas para as sentenças condenatórias que aplicam penas privativas
de liberdade mais longas.
Uma dinâmica igualmente controlada gradualmente vai carac-
terizando o processo legislativo também. As regras atuais de
engajamento político asseguram que o governo e o legislativo per-
maneçam altamente atentos às preocupações públicas, notadamente
ao sentimento de que os criminosos estão sendo insuficientemente
punidos ou de que indivíduos perigosos estão sendo inadequada-
mente controlados; exerce-se grande pressão para que medidas que
expressem e aliviem estas preocupações sejam instituídas. Os go-
vernos, hoje em dia, estão em pé de guerra no que tange ao abuso
de drogas, a crimes sexuais e aos delitos praticados com violência,
e espera-se deles que produzam uma resposta instantânea sempre
que esta seja requisitada. Nos anos 1990, a regra era que crimes de
grande repercussão atraíssem boa dose de atenção da míd1a e de
revolta pública, gerando demandas de que algo fosse feito. Tais
casos normalmente envolviam um indivíduo predatório, uma víti-
ma inocente (freqüentemente uma criança) e uma falha prévia do
sistema penal em impor controles efetivos, ressaltando-se que sua
regularidade refletia antes a estrutura dos medos da classe média e
dos valores do meios de comunicação de massa do que a freqüên-
cia estatística de ditos eventos 11 . De forma quase inevitável, a
demanda é por mais controle penal efetivo. Lei de Megan, Three
Strikes, as leis sobre predadores sexuais, a reintrodução do encar-
ceramento de crianças na esteira do homicídio de James Bulger, a
imposição do Home Office de restrições nas condições carcerárias
e no arbitramento de fianças que se seguiu a episódios notáveis de
falhas de segurança - estes são apenas os melhores exemplos co-
nhecidos do sistema de respostas rápidas que agora caracteriza a
formulação de políticas neste campo 12 . O que isto consubstancia
é um estilo retaliador de elaboração de leis, expressando simboli-

373
camente as urgências punitivas e aplacando as ansiedades por justi-
ça expressiva. Seus objetivos principais são os de mitigar a revolta
popular, reconfortar o público e restaurar a "credibilidade" do siste-
ma, ou seja, preocupações de natureza política e não penalógica.
Não causa surpresa que estas medidas freqüentemente desafiem a
opinião penalógica especializ&<la.
A extensão e natureza da mudança estrutural
Estas são, pois,aquilo que pode ser descrito como as mudan-
ças estruturais ou morfológicas que ocorreram no campo do con-
ttole do crime no último quarto de século. O campo ainda não foi
completamente transformado, nem a justiça criminal foi recons-
truída. O que aconteceu é que as instituições da justiça criminal
alteraram suas prioridades e o campo do controle do crime se ex-
pandiu para novas direções, à medida que as agências do Estado e
da sociedade civil se adaptaram ao crescimento da criminalidade e
da insegurança trazido pela pós-modernidade. O resultado é que o
Estado de justiça criminal está maior do que antes, mas ocupa um
lugar relativamente menor no campo por causa do crescimento da
segurança privada e das iniciativas comunitátias e comerciais orga-
nizadas.
Agora, a cultura política do controle do crime admite que o
Estado terá grande presença, preconizando, simultaneamente, que
tal presença nunca é suficiente. O desfecho paradoxal é que o Es-
tado aumenta seu poder punitivo e reconhece, cada vez mais, a
inadequação desta estratégia soberana. Ao lado de um padrão
crescentemente punitivo de sentenciamento, tem-se o desenvolvi-
mento de novos ,modos de exercício do poder, através dos quais o
Estado procura "governar à distância", formando alianças e ati-
vando os poderes governamentais das agências não-estatais 13 .
Neste contexto, o Estado de justiça criminal não mais reclama o
monopólio do controle do crime e não mais se considera o único
ou mesmo o principal provedor de segurança. O Estado, agora, opera
numa economia mesclada de provisão de segurança e controle do
crime e suas agências têm que se adaptar ao mercado de segurança
privada que cresceu ao longo dos últimos trinta anos 14 .
As modernas instituições da justiça criminal mostraram ser bem
resilientes quanto à mudança. Elas permaneceram inertes, demons-

374
trando habilidade em suportar o choque e em anular o impacto da
mudança imposta de fora. Conseqüentemente, elas mudaram mais
lenta e sutilmente do que a maioria dos comentários penalógicos
sugere 15 . Ao nível estrutural, a mudança tem sido uma questão de
assimilar novos elementos (a vítima, a prevenção do crime, a justiça
restaurativa), de alterar o equilfbrio e as relações (entre punição e
previdência; provisão estatal e provisão privada; instrumentos e fins
expressivos; direitos dos criminosos e proteção do público) e de
mudar a relação do campo com o seu ambiente (sobretudo sua rela-
ção com o processo político, com a opinião pública e com as ativi-
dades de controle do crime da sociedade civil).
As mutações institucionais e culturais que ocorreram no cam-
po do controle do crime são análogas àquelas mais genéricas ocor-
ridas no Estado de bem-estar. Falar do "fim do bem-estai·" e da
"morte do social" - assim como falar da morte da reabilitação -
deve ser entendido como uma espécie de contra-retórica e não como
uma forma de descrição empírica. A infra-estrutura do Estado de
bem-estai· não foi abolida ou profundamente transformada. Ela foi
cercada por uma cultura política diferente e dirigida por um novo
estilo de administração pública 16 . No processo, ela se tornou mais
restritiva e testada, mais preocupada em controlar a conduta dos
reclamantes e em transmitir os incentivos certos, desencorajando
a "dependência". Como as reformas da justiça criminal dos últi-
mos vinte anos, as políticas sociais correntes são pautadas pe-
las percebidas disfunções e patologias das instituições do
previdenciarismo 17 . A solução virou o problema. O previdenciarismo
penal compartilha o destino dos arranjos sociais previdenciários
que o trouxeram a lume. Seu destino não é ser dissolvido, mas se
transformar num terreno institucional problemático sobre o qual
novas estratégias e objetivos são reiteradamente erguidos.
As mudanças verificadas no campo do controle do crime con-
sistem principalmente na redistribuição e no redirécionamento das
práticas das instituições existentes. Consistem nãJ na invenção de
instituições ou na criação de novas práticas, mas na redefinição da-
quelas que já existem, confelindo-lhes força e significado distintos e
utilizando-as de maneiras diferentes. Os enquadramentos que
direcionam o controle do crime e as práticas penais foram alterados,
propiciando o surgimento de novos objetivos, novas formas de cál-

375
culos e novas prioridades. Novas racionalidades e formas de conhe-
cimento emergiram, modificando sutilmente a maneira pela qual pen-
samos o crime e os criminosos, entendemos os problemas que re-
presentam e agimos com relação a tais problemas e entidades. Uma
alterada estrutura de regras legais e mentalidades gerenciais trans-
formou o processo decisório diário dos profissionais da área do
controle do crime. Um novo conjunto de símbolos, imagens e re-
presentações se formou em tomo destas práticas, evocando signifi-
cados culturais bem diferentes daqueles até então prevalecentes.
A nova cultura de controle do crime
Pode-se resumir este complexo processo afirmando-se que,
embora as estruturas de controle tenham sido transformadas em
importantes aspectos, a mudança mais significativa se deu no ní-
vel da cultura, que dá vida a estas estruturas, ordena seu uso e
cunha seu significado. Um padrão retrabalhado de assunções
cognitivas, compromissos normativos e sensibilidades emocionais
está agora inscrito no campo, motivando a ação das agências de
controle do crime, dando novo propósito e significado às suas prá-
ticas e alterando os efeitos e a significação simbólica de sua con-
duta. Sem um design ou articulações explícitas pré-constituídas,
as coordenadas culturais do controle do crime têm sido paulatina-
mente modificadas, alterando a forma pela qual os agentes do siste-
ma penal pensam e agem e conferindo novo significado ao que eles
falam e fazem. Junto com as revisadas provisões legais que agora
regulam a prática policial e penal, é esta nova cultura que mais tem
contribuído para mudar a maneira como pensamos e agimos relati-
vamente ao crime e à insegurança. Esta nova cultura de controie do
crime orbita em torno de três elementos centrais: (i) um
previdenciarismo penal recodificado; (ii) uma criminologia do con-
trole; (iii) um estilo econômico de pensamento.
A transformação do previdenciarismo penal
Nas práticas diárias da justiça criminal, houve uma mudança
marcante de ênfase da modalidade previdenciária para a penal. Como
vimos, as leis e práticas relativas ao sentenciamento priorizam fins
retributivos, neutralizadores e intimidatórios. O livramento condici-
onal se representa a si próprio como punição na comunidade e não
como uma forma de pena alternativa à prisão. Juizados de menores

376
nos EUA habitualmente enviam os jovens infratores aos tribunais de
adultos para que recebam penas mais severas, enquanto seus cor-
respondentes na Inglaterra destacam cada vez mais a culpa e ares-
ponsabilidade individual, conferindo mais peso à segurança públi-
ca 18 . Instituições de custódia de crianças e adolescentes enfatizam
a segurança em vez da educação ou reabilitação, tornando-se cada
vez menos distinguíveis das prisões para adultos. Agências de liber-
dade vigiada desprezam sua tradicional função ressocializadora,
priorizando a vigilância próxima de criminosos libertados; na mes-
ma esteira, associam-se mais intimamente com a polícia e devolvem
com maior freqüência os criminosos à prisão.
No curso destes acontecimentos, tanto a modalidade "penal"
quanto a "previdenciária" mudaram de significado. O método pe-
nal, além de ter ficado mais proeminente, se tomou mais punitivo,
mais expressivo, mais ligado à segurança. Preocupações
especificamente penais, tais como a certeza e determinação da pena,
a condenação e o tratamento severo aos criminosos 19 e a proteção
do público foram priorizadas. O método previdenciário, além de ter
sido silenciado, se tomou mais condicionado, mais centrado no cri-
me, mais consciente do risco. Os criminosos e infratores tratados
pelo livramento condicional, pela liberdade vigiada e pelos juizados
de menores agora são menos suscetíveis de figurar no discurso
oficial como cidadãos socialmente carentes que precisam de apoio.
Ao revés, eles são retratados como indivíduos culpáveis,
imerecedores e perigosos, que devem ser cuidadosamente contro-
lados para a proteção do público e para a prevenção de outros
crimes. Em vez de clientes carecedores de amparo, eles são vistos
como um risco que deve ser administrado. Em vez de enfatizar
métodos de reabilitação que atendam às necessidades do criminoso,
o sistema enfatiza controles efetivos que minimizem os custos e
maximizem a segurança.
Reabilitação redefinida
Onde quer que as intervenções reabilitadoras sejam realizadas,
hoje em dia seu caráter é bem diferente do que antes. Elas focam
mais questões relacionadas ao controle do crime do que ao bem-
estar do indivíduo; são mais centradas no crime do que no cliente.
O crime, aliás, não é mais considerado um sintoma superficial, mas
o problema central a ser anostado. Onde um dia a personalidade do
377
indivíduo ou suas relações sociais formaram o objeto de esforços
transformadores, no seu lugar está hoje o comportamento crimino~
so e os hábitos mais intimamente relacionados a este. O escopo
imediato não é mais melhorar a auto-estima do criminoso, aperfei-
çoar sua capacidade cognitiva ou prestar-lhe os serviços necessári-
os, mas sim impor restrições, reduzir o crime e proteger o público.
As mudanças na prática, juntamente com a recente revivificação de
preocupações concernentes ao mérito, fazem com que os progra-
mas de tratamento sejam desenvolvidos visando ao benefício das
futuras vítimas, e não do criminoso. As futuras vítimas é que são
agora "resgatadas" pela reabilitação e não mais do criminosos 20 .
A reabilitação está cada vez mais inscrita num enquadramento
de risco, e não no enfoque previdenciário. Os criminosos só podem
ser "tratados" (em programas relacionados ao uso de drogas, pro-
gramas de terapia para a personalidade agressiva, programas de re-
dução do crime etc.) na medida em que tal tratamento seja conside-
rado capaz de proteger o público, de reduzir o risco e consubstanciar
uma punição com boa relação custo/benefício.Assim, a reabilitação
é representada como uma intervenção com os objetivos determina-
dos de inculcar auto-controle, reduzir o perigo e aumentar a segu-
rança do público. No novo enquadramento, a reabilitação é vista
como instrumento de administração de riscos e não como um fim
previdenciário por si só 21 . Se o programa de tratamento não funci-
ona, pode-se recorrer a outros meios mais eficazes, tais como a
supervisão próxima ou o encarceramento. A ênfase contemporânea
no rigor com as "brechas" no cumprimento de benefícios legais
(que devolvem os beneficiários do livramento condicional ou da
liberdade vigiada aos tribunais, caso descumpram as condições im-
postas) possui precisamente esta função.
A reabilitação não mais se arroga a condição de ser o objetivo
principal de todo o sistema ou mesmo de instituições tradicional-
mente previdenciárias como o livramento condicional e a liberdade
vigiada. É apenas mais um objetivo, entre muitos outros, provido
como serviço especializado e não mais acompanhado por qualquer
dose de expectativa ou idealismo. Areabilitação de criminosos não é
mais vista como um objetivo geral, mas como uma intervenção es-
pecífica voltada aos indivíduos que reúnam condições de fazer uso
economicamente mais eficaz deste oneroso serviço. Ela é tratada
378
como um investimento e não como um direito, e, como todo inves-
timento, é monitorada de perto e constantemente avaliada para asse-
gurar que dê retorno. A este respeito, o movimento do "que foncio--
na", que atualmente influencia a política criminal na Grã-Bretanha,
carrega a marca do ceticismo e da reflexividade pós-Martinson: não
é um retorno ao otimismo para com a reabilitação. Esteja o crimino-
so sendo punido ou tratado, agora as preocupações principais são
proteger o público e reduzir o risco de vitimização posterior, fazen-
do-o com o mínimo de recursos. Se o objetivo oficial do
previdenciarismo penal era a promoção de bem-estar social, o
desiderato principal, hoje em dia, é lastimavelmente o aumento efici-
ente do controle social.
O livramento condicional reposicionado
Durante boa parte do século XX, o livramento condicional foi
uma das principais instituições da justiça criminal. Largamente utili-
zado na vanguarda do progresso penal, era comumente referido
como a instância exemplar da abordagem penal-previdenciária ao
controle do crime. No uni verso atual da justiça criminal, o li vramen-
to condicional ocupa posição muito mais conflitiva e muito menos
segura. Ao longo dos últimos trinta anos, o livramento condicio-
nal teve que lutar para manter sua credibilidade, à medida que os
ideais nos quais se baseava foram sendo desacreditados e subs-
tituídos. Sob pressão do governo, endureceram-se seus procedi-
mentos, destacou-se sua capacidade de supervisão, abandona-
ram-se suas afinidades com o trabalho social, intensificaram-se seus
controles, bem como passou-se a representá-lo como modalidade
de punição na comunidade. "Ordens intensivas" foram desenvolvi-
das, envolvendo restrições mais severas e exigências de relatórios
constantes. A supervisão do livramento condicional foi "misturada"
com medidas mais explicitamente penais, tais como restrições de
direitos, encarceramento parcial e multas. Como uma autoridade
britânica do livramento condicional observou, "o serviço do li-
vramento condicional absorveu as políticas punitivas, entrou no
mercado, mirou-se no setor privado (e) submeteu seus agentes a
uma grande cerimônia de renomeação" 22 . A despeito desta mu-
dança profunda, os tribunais e o público ainda não estão convenci-
dos de que o livramento condicional seja uma punição "real" e um
instrumento confiável de controle 23 .
379
O livramento condicional se afastou de sua missão 01iginal, às ve-
zes descdta como sendo a de "assistir, aconselhar e ajudar" criminosos
merecedores, assentando-se em prioridades que refletem o novo clima
punitivo: mudar o comp01tamento do cdminoso, reduzir o cdme, tomar
as comunidades mais seguras, proteger o público, amparar as vítimas 24 .
Cursos revisados de treinamento, manuais de operação e indicadores
de perf01mance continuam a empurrar o livramento condicional nes-
ta direção, assim como o fizeram as mudanças legais que passaram a
considerá-lo forma compulsória de pena e não mais medida voluntária
substitutiva da prisão. A prática do livramento condicional abraça cada
vez mais novas formas de vigilância, incluindo-se o etiquetamento, o
monitoramento, as restrições de direitos e a realização de testes para a
detecção de drogas. E mais, enquanto no passado o livramento condi-
cional podia ser aplicado a quem quer que parecesse suficientemente
capaz de se beneficiar dele, hoje em dia os recursos da instituição são
gastos de fo1ma muito mais cuidadosa. "Equiparar o input ao risco" é
a nova regra de contenção de gastos. "Oferecer supervisão apenas
àqueles ciiminosos de alto risco capazes de reagir" 25 . O gerenciamento
de riscos erecursos substituiu a reabilitação como objetivo central da
instituição.
A prisão reinventada
No sistema penal-previdenciário, a prisão funcionava como a
última instância do setor correcional, lidando com aqueles crimino-
sos que não reagiram às medidas de reforma de outras instituições.
Na teoria, se não na prática, a prisão era representada como o últi-
mo estágio de um processo contínuo de tratamento. Hoje, ela é
concebida explicitamente como mecanismo de exclusão e contro-
le26 . Modalidades de tratamento ainda operam dentro dos seus mu-
ros e ainda se presta certa deferência ao ideal de reabilitação. Mas,
agora, os próprios muros são vistos como o elemento mais impor-
tante e valioso da instituição. Os velhos ideais penais-previdenciários
da prisão permeável, aberta, que afasta as barreiras entre a custódia
e a comunidade, e da reintegração do prisioneiro com sua família
através de autorizações temporárias de saída e da liberdade vigiada
estão agora em baixa. Ao revés, os muros foram fortificados, em
sentido literal e figurado. O perímetro de segurança foi ampliado e a
libertação antecipada está mais restrita, mais controlada, mais fir-
memente supervisionada27 .

380
A prisão é usada atualmente como um tipo de reservatório,
uma zona de quarentena, na qual indivíduos supostamente perigo-
sos são segregados em nome da segurança pública. Nos EUA, o
sistema que está se formando lembra os gulags soviéticos um
cinturão de estabelecimentos de trabalho forçado e prisões, que se
estende ao longo de um vasto país, abrigando dois milhões de pes-
soas, a maioria das quais oriundas de classes sociais e grupos raci-
ais que se tornaram política e economicamente problemáticos 28 .
A fronteira entre a prisão e a comunidade é fortemente patrulhada
e cuidadosamente monitorada, para prevenir o risco de vazamento
de um lado para o outro. Aqueles criminosos que são libertados
"para a comunidade" estão sujeitos a controles mais rigorosos
do que antes e freqüentemente retornam à prisão por falharem
em cumprir as condições que continuam a restringir a sua liber-
dade. Para muitas destas pessoas em liberdade vigiada ou ex-
condenados, a "comunidade" para a qual são devolvidos é na
verdade um território intensamente vigiado, um espaço super-
visionado, em ampla medida carente da liberdade associada à
"vida normal".
Esta transformação da relação prisão/comunidade está intima-
mente relacionada com a transformação do trabalho. O desapareci-
mento dos primeiros empregos para homens jovens da "subclasse",
somado ao empobrecimento de famílias e de vizinhanças suscetí-
veis ao crime, significa que a prisão e a liberdade vigiada agora
carecem dos apoios sociais dos quais anteriormente dependiam os
esforços de reabilitação. Trabalho, previdência social e apoio famili-
ar costumavam ser os pilares da reintegração de ex-prisioneiros à
vida sociaL Com o declínio destes pilares, o encarceramento se
tornou uma imposição de longo prazo, da qual os indivíduos têm
poucas perspectivas de retomar para o estado de liberdade
desvigiada29 .
Como as penas pré-modernas de banimento e degredo, a pri-
são agora funciona como uma espécie de exílio, sendo o seu uso
menos informado por um ideal de reabilitação e mais por um ideal
que Rutherford chama de "eliminativo"3º. Como o gulag soviético
ou o gueto urbano norte-americano, este exílio interno tem efeitos
sociais e econômicos, assim como penalógicos31 . Nos EUA da atu-
alidade, o sistema prisional abriga uma população maciçamente cons-

381
tituída de adultos em idade ativa cuja exclusão estrutural do merca-
do de trabalho é n01malmente esquecida das análises econômicas e
das estatísticas relativas ao desemprego 32 . O encarceramento em
larga escala funciona como um modo de posicionamento econômi-
co e social, um mecanismo de zoneamento que segrega aquelas
populações rejeitadas pelas decadentes instituições da família, do
trabalho e da previdência, colocando-as nos bastidores da vida soci-
al. Da mesma forma, mas por períodos menores, a prisão está sen-
do cada vez mais usada como um repositório faute de mieux para
doentes mentais, viciados em drogas e pessoas pobres, doentes,
para os quais os arminados serviços sociais não mais podem prover
acomodações adequadas 33 . Mais recentemente, o policiamento de "to-
lerância zero" e da "qualidade de vida" começou a estender sua zona de
coerção, empregando práticas agressivas de captura para excluir indi-
víduos "desordeiros" dos espaços públicos sempre que sejam flagrados
inte1ferindo com os interesses comerciais ou com a "qualidade de vida"
demandada pelos moradores mais prósperos34 • Forças privadas de se-
gurança têm feito o mesmo no que tange ao espaço privado ou comer-
cial há muito tempo.
A nova individualização e "punição à distância"
No enquadramento penal-previdenciário, o criminoso era o pro-
tagonista; o principal objeto da preocupação criminológica. As pe-
nas deviam ser individualizadas para atender às necessidades e pos-
sibilidades de reforma do criminoso. Fatores biográficos eram leva-
dos em conta. Relatórios sociais e psicológicos eram preparados.
As características singulares do criminoso eram, teoricamente se
não também na prática, o aspecto dete1minante de toda a ação pe-
nal. Em franca oposição com os tempos atuais, a vítima mal apare-
cia. Na maior parte, ele ou ela permaneciam como uma abstração
silenciosa: uma figura secundária cuja individualidade mal era
registrada e cujas vontades e receios pessoais não tinham espaço
no processo.
No cenário punitivo contemporâneo, a situação narrada acima
foi completamente revertida. Agora, os processos de individualiza-
ção são cada vez mais centrados na vítima. Às vítimas são ofereci-
das informações constantes e o apoio necessário; elas são consulta-
das antes da prolação da sentença, o que faz com que participem do
processo judicial desde o registro do crime até a condenação e mes-
382
mo depois desta etapa. Depoimentos impactantes das vítimas são
introduzidos nos tribunais com a finalidade de indi viduaHzar o im-
pacto do crime, de demonstrar como o crime afetou aquela vítima
específica, em todas as suas particularidades, em toda a sua singu-
laridade humana. Vários Estados norte-americanos agora permitem
que as vítimas façam recomendações ao juiz antes da condenação e
opinem junto aos conselhos de liberdade vigiada, antes da soltura do
"seu" criminoso35 .
Entrementes, na perspectiva das novas leis sobre sentenciamento,
o criminoso é representado de forma cada vez mais abstrata, mais
estereotipada: cada vez mais uma imagem projetada em vez da
pessoa reaL Condenações a "penas justas" começam a gerai· este
efeito, particularmente onde sentenças-padrão são mecanicamen-
te prolatadas. Diretrizes pai·a a escolha da pena aprofundam o pro-
cesso. Penas privativas de liberdade mínimas obrigatórias vão ao
máximo, eliminando completamente qualquer resquício de indivi-
dualização da pena36 . Este método de penas fixas,já estabelecidas
no momento em que o caso concreto surge, aumenta a distância
entre aqueles que cominam as penas (na verdade, o legislativo) e a
pessoa à qual estas são aplicadas. A individualização da pena abre
espaço para um tipo de "punição à distância", em que as penas já
estão definidas, freqüentemente de maneira ineversível, por ato-
res políticos que operam nos contextos políticos situados bem lon-
ge das circunstâncias do caso concreto. Quanto maior a distância,
menos provável que os fatos específicos do processo e as caracte-
rísticas singulares do indivíduo sejam levados em conta no fim 37 .
O tratamento de criminosos, portanto, se tomou cada vez menos
individualizado no exato momento em que a vítima foi trazida para o
centro do palco. Michel Foucault descreveu como a superveniência de
instituições disciplinares mudou o "eixo da individualização" dos per-
sonagens principais pai·a os pequenos desviantes 38 . Hoje em dia, o
eixo está novamente mudando de direção: desta vez, do delinqüente
sentado no banco dos réus pai·a a vítima sentada na cadeira das
testemunhas.
A relação sociedade/criminoso
O enquadramento penal-previdenciário funcionava como se os
interesses da sociedade e os do criminoso pudessem ser compatibilizados.
Reabilitar os criminosos, prisões ressocializadoras, o tratamento das
383
causas do crime- estes eram interesses comuns. O dinheiro gasto no
tratamento do criminoso e na melhora das condições sociais retornaria
na fonna da queda das taxas de criminalidade e no fortalecimento da
cidadania. O tratamento de criminosos era um processo positivo.
Atualmente, os interesses dos criminosos condenados, quando le-
vados em consideração, são vistos essencialmente como opostos
aos do público. Se a escolha é entre sujeitar os criminosos a maiores
restrições ou expor o público a riscos mais elevados, o senso co-
mum vigente sempre recomenda a escolha segura39 . Conseqüente-
mente, sem muita discussão, os interesses do criminoso e mesmo seus
direitos são freqüentemente desconsiderados40 .
A mesma falta de equilíbrio e reciprocidade informa a relação
entre criminoso e vítima que a política criminal projeta. Os interes-
ses de vítimas e criminosos são tidos como diametralmente opos-
tos: os direitos das primeiras competem com os dos últimos, numa
espécie de "tudo ou nada". Expressões de preocupação com o cri-
minoso e com suas necessidades sinaliza o desprezo pela vítima e
seu sofrimento 41 . A resposta padrão para aqueles que se mobilizam
em favor dos direitos dos presos ou por melhor tratamento para os
criminosos é que estes deveriam direcionar sua compaixão e preocupa-
ção para a vítima inocente e não para o criminoso culpado.
O respeito decrescente pelos direitos dos acusados e a absolu-
ta prioridade dada à segurança pública podem ser vistos claramente
nas práticas cada vez mais comuns de quebra de sigilo e de notifica-
ção comunitária. Na atual sociedade da informação, as agências da
justiça criminal são submetidas a enorme pressão no sentido de com-
partilhar a informação por elas obtidas com o público, particular-
mente quando tais informações dizem respeito a riscos à segurança
pública e a perigos potenciais. Leis sobre notificação comunitária e
registros de pedófilos são exemplos proeminentes da nova disposi-
ção de revelar informações que um dia foram confidenciais 42 . As-
sim também a prática de agências correcionais (tais como o depar-
tamento correcional do Estado da Flórida), que agora mantêm sites
da internet no qual fornecem-se detalhes pessoais de todos os prisi-
oneiros libertados. Esta nova prática está em franca oposição com a
linha de pensamento consagrada no Rehabilitation of Ojfenders Act
e em leis sobre registros criminais pretéritos, aprovadas nos anos
1960 e 1970, que tornavam ilícita a revelação de informações crimi-
384
nais sobre ex-condenados após algum lempo 43 . A crença, hoje em
dia, é que não existe mais a figura do "ex-criminoso", mas apenas
criminosos que foram apanhados antes e que cometerão novos cri-
mes. "Criminosos" têm poucos direitos ligados à intimidade que
possam obst:u o avassalador direito de informação do público.
Finalmente, pode-se notar o desequilíbrio na maneira com que
o "estigma" assumiu valor renovado na punição de criminosos. No
enquadramento penal-previdenciário, a estigmatização era vista como
efeito pernóstico e desnecessário da justiça criminal. Estigmatizar o
criminoso era contraproducente na medida em que reduzia as possi-
bilidades de ressocialização. Instituições correcionais, como os
juizados de menores, o livramento condicional e os reformatórios,
eram cuidadosamente concebidos para evitar os efeitos
estigmatizantes; estabelecimentos prisionais chegaram a abandonar
o uso de símbolos que induziam a estigmatização, tais como cortes
de cabelo típicos ou os uniformes listrados. Hoje em dia, o estigma
se tomou útil de novo. Duplamente útil, na verdade, uma vez que
serve simultaneamente para punir o criminoso e alertar a comunida-
de para o perigo que ele representa. Práticas de notificação comuni-
tária, registros de pedófilos, utilização de uniformes, aconentamento
coletivo de presos (nos estados norte-americanos do sul) e penas à
moda "letra escarlate", que obrigam os criminosos a proclamarem
sua culpa com placas e sinais - todos estes envolvem a estigmatização
pública do criminoso. Seja para fins punitivos, seja para a proteção
do público, seja para ambos, a estigmatização deliberada de crimi-
nosos é novamente parte do repertório penal oficial44 .
À medida que o valor percebido do criminoso tende a zero, os
interesses das vítimas se expandem para preencher o vazio deixado.
Pode-se divisar isto na modificada atitude relacionada a crimes le-
ves, que costumavam ser chamados de "crimes sem vítimas". Hoje
em dia, não existe crime sem vítima. Se ninguém em particular é
atingido por certa conduta, isto não impede a invocação de uma
vítima coletiva - "a comunidade" e sua "qualidade de vida" - que
acredita-se suportar os alegados efeitos negativos deconentes de
comportamentos proibidos, por mais tdviais que sejam. Embria-
guez pública, uso de drogas leves, pichação, vadiagem, mendicân-
cia, incivilidade: estes deixam de ser incômodos toleráveis para a
classe média, transformando-se na fonte de desordem da qual se
385
alimenta a criminalidade grave. No pensamento político co1Tente,
nas novas posturas municipais que estão sendo aprovadas nos EUA
e na Grã-Bretanha e, evidentemente, no uni verso da segurança pri-
vada, crimes sem vítima são coisas do passado 45 . Todo pequeno
delito, todo ato de desordem - particularmente se protagonizados
por pessoas pobres nos espaços públicos - são agora considerados
atentatórios à qualidade de vida. Na sociedade de alta criminalidade,
crimes minúsculos são vistos de forma cumulativa, e "a comunida-
de" é a vítima coletiva, de todas as horas. Os medos e inseguranças
públicas, sua magnificada consciência do problema, seu ceticismo
com políticas liberais, sua falta de preocupação com os criminosos
- todos estes fatores nos levaram a identificar vítimas onde antes
havia apenas violações.
Como pode? Como os criminosos vieram a ser tão completa-
mente despidos de toda a sua cidadania e dos direitos que normal-
mente a acompanham? Como uma preocupação excessiva pela "ví-
tima" pôde sufocar qualquer consideração relacionada ao crimino-
so, como se ambas fossem categorias mutuamente excludentes?
Talvez porque nos convencemos de que certos criminosos, uma
vez que praticam o crime, deixam de ser "membros do público",
não mais merecendo as atenções que nonnalmente dispensamos uns
aos outros. Talvez por termos incorporado uma divisão social e
cultural entre "nós", os inocentes, sofredores de classe média, e
"eles", os indesejados e perigosos pobres. Ao usar de violência,
abusar de drogas ilícitas ou reincidir em atos criminosos, eles se
revelam pelo que são: "o Outro perigoso", a subclasse. "Nossa"
segurança depende do controle "deles". Com esta equação, nós nos
permitimos esquecer aquilo que o previdenciarismo penal admitia
como verdadeiro: que os criminosos também são cidadãos e, ou-
trossim, que a sua liberdade também é a nossa liberdade. O cresci-
mento de uma divisão social e cultural entre "nós" e "eles", junto
com novos níveis de medo e de insegurança, nos tornou muito com-
placentes com relação à emergência de um poder estatal mais re-
pressi vo46. Nos anos 1960, os críticos acusaram as instituições
penais-previdenciárias de serem autoritárias quando exerciam seus
poderes correcionais de forma às vezes arbitrária. O atual Estado de
justiça criminal é caracterizado por um autoritarismo escancarado,
sem as benignas pretensões de outrora.

386
A criminologia do controle
Nos ültimos vinie anos, verificou-se uma notável diversifica-
ção do pensamento criminológico. Em particular, surgiram duas
novas correntes que contrastam fortemente entre si e com a crimi-
nologia previdenciarista que dominou o pensamento oficial. As
idéias mais velhas - que vêem a criminalidade como o resultado
disposicional da privação social - ainda circulam e inspiram res-
peito. Elas não foram mais abandonadas do que as instituições do
previdenciarismo penal. De forma mais ou menos revisada, elas
ainda compõem a espinha dorsal do pensamento de muitos acadê-
micos e práticos. Entretanto, cada vez mais, estas idéias
previdenciaristas competem com duas outras criminologias bem
distintas, ambas desenvolvidas em reação crítica ao fracasso per-
cebido do modernismo penal, ambas atraentes às classe políticas.
Uma reação aos problemas do modernismo penal - as novas
criminologias da vida cotidiana - pode ser descrita como pós-mo-
derna em seu caráter e orientação. Correntes como a prevenção
situacional do crime, a teoria da atividade de rotina e as demais,
dão continuidade aos temas modernistas da criminologia
c01Tecionalista, na medida em que enfatizam soluções instmmental-
mente racionais, moralmente neutras, baseadas no saber especi-
alizado e pragmáticas. Mas elas desenvolvem estes temas moder-
nistas de novas maneiras, destacando a modificação de situações e
oportunidades, em vez da reforma de indivíduos desviantes; pres-
crevendo uma engenharia situacional em lugar de uma engenharia
social. Este é um modernismo menos idealista, menos utópico, e
mais ligado à maneira com que vi vemos atualmente, mais ciente das
limitações das iniciativas governamentais, mais modesto em suas
ambições de aperfeiçoamento humano.
Se refletirmos sobre as implicações sociais deste modo de pen-
samento, notamos um interessante contraste com a lógica da práti-
ca penal-previdenciária, que pode ser melhor explicitada se usarmos
a diferenciação sociológica entre integração social e integração do
sistema47 . As práticas penais-previdenciárias e as criminologias que
as informavam visavam aperfeiçoar a ordem social através do de-
senvolvimento do trabalho de integração social. Elas visavam mu-
dar os valores e atitudes dos criminosos de maneira que os alinhas-
sem aos códigos normativos vigentes. Elas retratavam a ordem so-
387
cial como um problema de consenso de valores, buscando reinserir
os desviantes na ordem através da educação moral e de práticas
reformadoras que alteravam as crenças e o comportamento.
Diferentemente, as criminologias da vida cotidiana abordam a
ordem social como um problema de integração do sistema. Não são
mais as pessoas que precisam ser integradas, mas os processos e
imanjos sociais nos quais habitam. Em vez de tratar de seres huma-
nos e de suas atitudes morais ou disposições psicológicas, as novas
criminologias tratam das partes integrantes dos sistemas e das situ-
ações sociais. Elas imaginam como as situações podem ser
redesenhadas de forma diferente ao fito de criarem menos oportu-
nidades para o crime; como os sistemas interativos (transportes,
escolas, lojas, áreas de lazer, habitação etc.) podem convergir para
criar menos pontos vulneráveis ou situações visadas do ponto de
vista criminológico. Para estas c01Tentes, a ordem social é uma
questão de alinhar e de fazer interagir as diversas rotinas e institui-
ções sociais que compõem a sociedade moderna. É um problema
de assegurar a coordenação - fazer os trens andarem na hora certa
- e não de construir um consenso normativo.
Assim, as criminologias da vida cotidiana nos oferecem uma
aproximação à ordem social que é, na maior parte, amoral e tecno-
lógica48 . Elas contornam o arcabouço de valores, concentrando-se
nas formas i·otineiras que unem as pessoas no tempo e no espaço.
Sua concepção de ordem social não gira em torno de valores com-
partilhados, mas de arranjos inteligentes que minimizam as oportu-
nidades de ruptura e de desvio. Esta é uma abordagem bastante
autoconsciente e sofisticada da ordem social numa sociedade com-
plexa e diferenciada. Ela desafia as idéias tradicionalistas, que con-
cebem a ordem como decon-ente da disciplina moral e da obediên-
cia à autoridade. Mas ela também subverte a velha crença do Estado
de bem-estar segundo a qual, para que uma sociedade funcione, a
solidru·iedade deve se estender a todos ~s seus membros, que, por
sua vez, devem fazer parte de um~. 1 mião éívica includente.
Tal abordagem convive bem com políticas econômicas e soci-
ais que excluem contingentes populacionais inteiros, desde que uma
segregação deste tipo faça o sistema social operar mais
harmonicamente. Da mesma forma, ela possui uma óbvia afinida-
de com políticas policiais de "tolerância zero", que tendem a ser
388
associadas com repressão generalizada, com o uso discriminatório
dos poderes policiais e com a violação das liberdades civis dos
pobres e das minorias. Por outro lado, não é impossível imaginar
uma versão socializada da prevenção situacional do crime na qual
os grupos mais pobres, mais vulneráveis, sejam municiados de
recursos de prevenção do crime e de níveis maiores de segurança
comunitária; tal cenário, contudo, implicaria que esta criminolo-
gia fosse desacoplada dos imperativos comerciais e do ambiente
de mercado aos quais ela está freqüentemente associada.
Em termos de sua auto-representação, este enquadramento
teórico cultiva uma postura neutra e apolítica, buscando apenas re-
parar as relações sociais e econômicas que ensejam situações
criminogênicas e nunca rejeitá-las como socialmente injustas ou
inaceitáveis. No presente clima político, a ênfase ao controle de
cunho bastante prático e o silêncio quanto à forma com que os
criminosos devem ser punidos, próprios desta criminologia, sig-
nificam ser ela um dos poucos caminhos para uma política não-
punitiva que não é vuh1erável à acusação de ser "soft com o crime".
A outra criminologia atualmente emergente - a criminologia do
Outro - talvez seja mais bem descrita como antimoderna por natu-
reza. Ela reage às falhas do modernismo penal e aos arranjos sociais
da sociedade pós-moderna questionando os códigos normativos
daquela sociedade e buscando transformai· os valores sobre os quais
ela está assentada. Esta é a criminologia do outro perigoso, um eco
criminológico dos conflitos culturais e das políticas neoconservadoras.
Se a criminologia da vida cotidiana "desdramatiza" o crime, tratan-
do-o como parte rotineira da ordem normal das coisas, esta outra
criminologia o "redramatiza" - retratando-o em te1mos melodramá-
ticos, vendo-o como uma catástrofe, definindo-o num idioma bélico
e segundo a lógica da defesa social49 . De acordo com os proponen-
tes desta criminologia, o problema do modernismo penal e da soci-
edade moderna que o produziu é que ambas fracassa1°am no aspecto
da coragem moraL Eles não estão dispostos a julgar, relutam em
condenar, são excessivamente sensíveis a questões de puniç:°'0 e
disciplina 50 . Duvidaram dos sentimentos "naturais" de justiça
retributiva e do senso comum das pessoas, substituindo-os pelas duvi-
dosas soluções profissionais das elites liberais e das ideologias socioló-
gicasº Conseqüentemente, fracassaram em manter a lei e ordem ou em

389
preservar o respeito pela autoridade; provocaram uma enxmrada de
crimes, desordens e problemas sociais que caracterizam o período pós-
modemo.
Esta criminologia é decididamente antimoderna em seus temas
centrais: a manutenção da ordem e da autoridade, a afirmação de
padrões morais absolutos, a preservação da tradição e do senso
comum. Também é profundamente antiliberal em sua crença de
que certos criminosos são "simplesmente maus" e, neste particu-
lar, intrinsecamente diferentes de nós. Esta visão do criminoso
possui implicações ontológicas e epistemológicas. Sendo intrinse-
camente perversos, alguns criminosos não são como nós. Eles são
os "outros" perigosos, que ameaçam nossa segurança e que não
têm qualquer consideração por nossos sentimentos comuns. A rea-
ção apropriada da sociedade é de natureza defensiva: devemos nos
defender destes inimigos perigosos em vez de nos preocuparmos
com seu bem-estar ou com seus prognósticos de reabilitação. Como
o título de um artigo de John Dilulio uma vez destacou, devemos
simplesmente "deixá-los apodrecerem" 51 . Sua alteridade intrínseca
também tem implicações na nossa compreensão. A perversidade in-
trínseca desafia qualquer tentativa de compreensão racional ou ex-
plicação criminológica. Não pode existir inteligibilidade mútua, pon-
te de entendimento ou qualquer comunicação real entre "nós" e "eles".
Tratá-los como compreensíveis - como a criminologia tradicio-
nalmente tem feito - significa trazer os criminosos para os nos-
sos domínios, humanizá-los, enxergarmo-nos neles e enxergá-
los em nós mesmos. A criminologia do Outro, nas palavras de
um primeiro-ministro britânico, nos deixa preparados para "con-
denar mais e entender menos" 52 . Leva-nos a tratá-los como
"criaturas monstruosamente opacas, além ou fora da nossa com-
preensão" - o que ajuda a acalmar a consciência de qualquer
um que se sinta desconfortável em neutralizar milhões de pes-
soas e até mesmo em matar algumas, tudo em nome da segu-
rança pública53 .
A preocupação usual da criminologia tem sido afastar adis-
cus são de questões morais relativas à responsabilidade, aproximan-
do-a de questões científicas de causação e prevenção; da mesma
forma, substituir a urgência de punir pela disposição de entender. A
criminologia do Outro faz exatamente o contrário. Talvez ciente de
390
que a pena de morte e o encarceramento maciço dependem da nos-
sa recusa em compreender os seres humanos que tão completa-
mente condenamos, ela reafirma um velho conceito metafísico que
retrata o criminoso como causador do mal e o crime como uma
escolha incondicional pelo mal 54 . Seja a personalidade do criminoso
o fruto de genes defeituosos ou o resultado de ter sido formada
numa cultura anti-social, o desfecho é o mesmo - uma pessoa que
está além dos limites, além da possibilidade de reforma, fora da
comunidade civil. Nesta perspectiva antimoderna, a ordem social
necessita de consenso social, mas trata-se de um consenso de cariz
pré-moderno, mecânico - baseado num conjunto de valores com-
partilhados e não no pluralismo de diferenças toleradas. Aqueles
que não se encaixam, ou não podem se encaixar, devem ser exco-
mungados e expulsos 55 .
Tal criminologia é, evidentemente, oposta à criminologia da
vida cotidiana. Devemos observar, contudo, que sua visão do cri-
minoso também é completamente incompatível com a política de
solidariedade que amparava o Estado de bem-estar e a criminologia
sociológica dominante na metade do século. A popularidade atual
deste tipo de razão criminológica nos EUA e, em menor medida, na
Grã-Bretanha é a medida do quanto nos afastamos daquela visão
inclusiva anterior.
As características destas duas novas criminologias são dife-
rentes na maioria dos seus aspectos, na medida em que são, res-
pectivamente, tributárias e provedoras do apoio social. Mas elas
compartilham a ênfase sobre o controle, o reconhecimento de que
o crime se tomou um fato social normal e a reação às idéias crimi-
nológicas e políticas criminais associadas ao previdenciarismo
penal. Uma é pós-moderna, aprofundando mais a abordagem
amoral da ciência social do que o fez o correcionalismo, vendo o
crime como o resultado previsível de rotinas sociais normais e não
de disposições distorcidas. A outra é uma ciência antimoderna e
anti-social, que adota uma abordagem absolutista e moralista para o
crime, insistindo em que os atos criminosos são voluntários, más
escolhas de indivíduos perversos.
Estas novas criminologias também sinalizam o quanto nos
afastamos daquele projeto de integração através da correção do
indivíduo e da reforma social - projeto que simbolizava a justiça
391
criminal no Estado de bem-estar. Uma criminologia toma a soci-
edade pós-moderna no estado em que esta se encontra e sugere
formas de adaptação. A outra é perturbada pela cultura contem-
porânea e pelos novos arranjos sociais, postulando sejam ambos
superados. Uma argumenta que a conjuntura social e econômica
normalmente gera eventos criminosos, sugerindo modos de mo-
dificar a composição desta conjuntura. A outra afirma que uma
subclasse imoral é a fonte do problema e sugere formas de ex-
cluí-la e policiá-la. A despeito destas diferenças profundas, am-
bas as novas criminologias compartilham um aspecto fundamen-
tal: cada uma delas interage com, e incorpora, a cultura do con-
trole que paulatinamente vem dominando o discurso público so-
bre questões sociais e criminais.
Em oposição à criminologia correcionalista, com sua preo-
cupação com a prevenção através da reforma, estas novas cor-
rentes concebem sua missão de maneira muito distinta. Ambas
dão prioridade ao controle e à proteção do público, embora te-
nham métodos muito diferentes de fazê-lo. A primeira propõe o
desenvolvimento gradual de uma silenciosa rede de controles
situacionais, desenhados para modificar rotinas existentes. Ela
pretende inscrever controles no tecido da vida social com o ob-
jetivo de guiar a conduta para a ordem sem perturbar o fluxo dos
eventos sociais. A outra exerce um excesso de controle e tem
pouca preocupação com os custos sociais e as conseqüências
penais. Ela impõe controles de fora na forma de ameaças legais
ou exortações morais; condena e exclui todos aqueles que fa-
lham em obedecer. Intimidar, punir, neutralizar - e pendurar a
conta.
Estas duas criminologias consubstanciam reações à cultura do
previdenciarismo e à conelata criminologia conecionalista. Elas são
reações aparentadas que divergem da ortodoxia anterior de formas
diferentes. O surgimento simultâneo destas reações não é acidental
nem arbitrário, e não chega a causar surpresa a sua popularidade
entre políticos e administradores. Porque estes modos opostos de
pensar e agir quanto ao crime estão precisamente alinhados aos dois
pilares da ambivalência cultural que se ergueu em tomo do crime.
Uma diz que "o crime é normal, acostume-se a ele". "Seja realista,
adapte-se, proteja-se, sobreviva". A outra vê a disseminação do cri-
392
me como uma catástrofe pela qual alguém deve ser culpado, uma
praga que atinge uma sociedade degenerada, preceituando o retomo
a um modo de vida mais tradicional, talvez até temente a Deus 56 .
Estas novas formas de pensar o crime estão, neste sentido, as-
sentadas na nossa cultura. Como Foucault mostrou há décadas,
nossas ciências sociais se destinam a "descobrir" precisamente
aqueles temas culturais que dão causa ao surgimento destas for-
mas de conhecimento e dos objetos por elas estudados.
As cambiantes ênfases da criminologia e do controle do crime
Quais são os efeitos práticos destas novas criminologias? Como
elas diferem das criminologias sociais que as precederam? Como
vimos no Capítulo 2, as criminologias sociais relacionadas ao
correcionalismo da 1netade do século possuíam um padrão particu-
lar de ênfases e silêncios. Tais características discursivas se afina-
vam com a estrutura e a cultura do previdenciarismo penal e ecoa-
vam os arranjos institucionais e compromissos políticos daquele
período. O aspecto mais marcante do recente discurso criminológi-
co é o modo com que destacou os silêncios e os pontos cegos que
caracterizaram o velho pensamento criminológico.
As criminologias sociais que dominaram a cena antes dos anos
1970 não previam nenhum programa de policiamento, não tinham
nenhum interesse substancial em eventos criminosos e tampouco
alguma teoria sobre as rotinas sociais e econômicas que geravam as
oportunidades criminosas e as situações criminogênicas. Sequer se
interessavam pela prevenção primária ou secundária do crime, eis
que presumiam que os efeitos preventivos fluíssem de reformas
sociais gerais e não de intervenções criminológicas específicas.
Questões relacionadas à motivação tinham ascendência sobre aque-
las relacionadas ao controle, pelo simples motivo de que os atos
criminosos eram considerados sinais de alguma patologia subjacente
e não meramente o fruto da falta de controles efetivos.
As criminologias sociais também desprezavam a idéia de inti-
midação, apesar do fato de tal noção ter formado o liame crucial
entre a punição tradicional e o controle do crime. Antes dos anos
1970, os criminólogos eram altamente céticos quanto à efetividade
de ameaças legais e tendiam a considerar as políticas de intimida-
ção como pouco mais do que um pretexto para preocupações

393
retributivas mais básicas. Esta atitude tinha suas raízes em compro-
missos epistemológicos e ideológicos. Considerando-se que nor-
malmente eram os conservadores que preconizavam a necessidade
de penas duras e intimidatórias, a inspiração liberal da maioria dos
criminólogos do Estado de bem-estar os deixava cautelosos quanto
a esta abordagem. Mais fundamentalmente, porém, foi a inclinação
singular da criminologia previdenciarista que levou a maior parte
dos especialistas e operadores do sistema a serem céticos quanto à
utilidade de penas intimidatórias. Se o crime era um sintoma de
patologias subjacentes, se era cunhado por processos causais de
longa duração, então fazia pouco sentido debruçar-se sobre as cir-
cunstâncias imediatas da situação, bem como lançar mão de ame-
aças e desincentivas. As premissas básicas da criminologia penal-
previdenciária preceituavam a supressão da idéia de intimidação,
não como uma questão empírica mas de forma mais apriorística.
Em contraste, as criminologias recentes têm interesse renova-
do por toda a questão de intimidação e desincentivas, encorajando
os políticos a adotarem medidas intimidatólias, que vão desde penas
privativas de liberdade mínimas automáticas para o tráfico de dro-
gas e o crime organizado até medidas agressivas de busca pessoal
para reduzir o porte ilegal de arma de fogo. Por conseguinte, adis-
tinção prática entre o normal e o patológico foi revista. Na crimino-
logia penal-previdenciária, o criminoso patológico era o objeto de
análise e da intervenção correcional: constituía uma categoria cdmi-
nológica amplamente definida e em expansão constante. Diversa-
mente, criminosos normais, racionais, formavam uma categoria te-
oricamente mais marginal, de pouco interesse profissional. Hoje em
dia, houve uma mudança de atenção e de prioridade. O criminoso
mundano, oportunista, agora está mais próximo do centro do palco
no estudo criminológico e na prática de controle do crime, e o cri-
minoso patológico, necessitado, é muito menos proeminente.
As novas criminologias também priorizam o potencial da polí-
cia de reduzir o crime, bem como a atividade policial em geral. Na
criminologia do controle, a polícia desempenha um papel muito mais
central, ao passo que intervenções sociais ou psicológicas estão em
segundo plano. Considera-se que a polícia é capaz de reduzir o cri-
me de múltiplas fo1mas - através da intimidação, da prevenção, das
parcerias, do policiamento agressivo. De fato, os desdobramentos
394
mais comentados em termos de policiamento contemporâneo - as
abordagens das "vidraças quebradas" e da "tolerância zero" - im-
portam na completa inversão das velhas crenças criminológicas. Na
criminologia atual, pequenos delitos são importantes, controles
situacionais ditam as condutas e penas intimidatórias são o recurso
principal do controle do crime. Este constitui o terreno comum das
criminologias da vida cotidiana e da mais punitiva criminologia do
outro.
Do modo "social" ao "econômico" de pensamento
Em qualquer conjuntura institucional existem receitas básicas
que guiam o pensamento e o processo de tomada de decisões. Tais
receitas não constituem teorias articuladas ou diretrizes legais, mas
hábitos de pensamento e estilos rotineiros de raciocínio que estão
inseridos nos precedentes e nas práticas de determinada instituição.
Novos recrutas aprendem estas maneiras de pensar "no trabalho".
Elas se tomam o senso comum dos atores, cunhado pelas estrutu-
ras e pela cultura da organização. Estas receitas se enraízam nas
instituições e nos indivíduos e não tendem a mudar rapidamente:
uma vez aprendidas, é difícil desaprendê-las. Mas elas podem ser
modificadas ao longo do tempo, e nos últimos trinta anos uma nova
mentalidade gradualmente se inscreveu nos hábitos dos atores rela-
cionados ao controle do crime.
Durante boa parte do século XX, a maioria das decisões polí-
tico-criminais e da justiça criminal se fundou num modo social de
pensamento. Problemas criminais tinham uma causa social e, por-
tanto, uma solução social. Os problemas particulares que sobrevi-
nham eram socialmente contextualizados, reconduzidos às suas raízes
sociais e tratados com os mais adequados instrumentos sociais, tais
como o aconselhamento social, a provisão social ou a reforma social.
Recentemente, contudo, surgiu um modo diferente de abordar os
problemas, um estilo que talvez possa ser descrito corno "econômi-
co" em vez de social. Esta linha de raciocínio infonnou a maneira
pela qual os operadores do sistema penal tomam suas decisões,
alocam recursos e usam seus poderes. Ela mudou o modo pelo qual
as instituições controlam seu pessoal e administram suas ações in-
ternas. Afetou até a forma com que as autoridades judiciais se refe-
rem à conduta dos criminosos, dos beneficiários do livramento con-
dicional e dos presidiários. Em resumo, ela se tornou uma força
395
modeladora do pensamento e da ação criminológica, tanto dentro
quanto fora das agências do sistema penal57 .
É claro que a justiça sempre dependeu de recursos e que o
controle do crime sempre teve seus custos. Jamais houve um tem-
po em que autoridades policiais ou judiciais não reclamassem da
inadequação dos seus orçamentos, ou que políticos não reclamas-
sem do esbanjamento do dinheiro dos contribuintes no sistema
penal. Mas, hoje em dia, questões relacionadas a custos e
efetividade estão cada vez mais enraizadas nas decisões políticas;
as agências do sistema penal são mais auditadas atualmente do que
em qualquer outra época da história. Nos últimos vinte anos, a pres-
são para alcançar-se a relação custo/benefício ideal, juntamente com
os efeitos de mecanismos específicos de restrição fiscal e disciplina
gerencial, motivaram o surgimento de um estilo econômico de pen-
samento cada vez mais disseminado e poderoso.
Hoje em dia, exige-se que os agentes de controle do crime e da
justiça criminal falem o idioma econômico do "custo/benefício", do
"melhor valor" e da "responsabilidade fiscal". O gerencialismo -
com suas técnicas polivalentes de aferição de confiabilidade e de
avaliação, bem como com seus valores privados de eficiência -
ocupou o vácuo criado quando o conteúdo mais substancial, mais
positivo, da velha abordagem social perdeu credibilidade. O campo
do controle do crime - do trabalho de prevenção do crime aos
regimes prisionais e benefícios de execução da pena - ficou
saturado de tecnologias de auditoria, controle fiscal, medição de
performance e de avaliação custo/benefício. A vetusta linguagem
da causalidade social foi substituída por um novo léxico (de "fa-
tores de risco", "estruturas de incentivos", "oferta e procura",
"estoque e fluxo de mercadorias", "custo do crime", "precificação
da pena") que traduz formas econômicas de cálculo para o cam-
po criminológico. Os custos do crime agora são rotineiramente
calculados, como também o são os custos de prevenção, dopo-
liciamento, da persecução e da punição; os números produzidos
ajudam a nortear as escolhas políticas e prioridades operacionais 58 •
A virtude principal de novas políticas como prisões privatizadas
ou "punição na comunidade" é que elas alegam ser a.temativas
economicamente racionais ao estado de coisas anterior. E o esta-
belecimento de prioridades pelas agências do sistema penal é uma
396
questão de "escolha de alvos", de "filtragem" ou de "condena-
ções hábeis", de maneira que menos recursos sejam utilizados
para alcançarem-se os efeitos máximos.
A despeito do seu caráter formalista, este modo de pensamen-
to gera conseqüências substanciais. Como os críticos do
gerencialismo destacam, ele pode conduzir à limitação da experi-
mentação, ao favorecimento do "output" em detrimento da "solu-
ção", à adptação das práticas para que atendam aos indicadores de
pe1formance, à limitação da discricionariedade do pessoal de campo
e à diminuição da efetividade real das agências com a finalidade de
maximizar as práticas mais facilmente mensuráveis. Todavia, esta
racionalidade cada vez mais influente também ajudou a mudar a
forma com que o sistema pensa o crime e os criminosos - incenti-
vando uma concepção de dano social mais baseada no custo e uma
concepção do criminoso que enfatize a escolha e o cálculo racio-
nais. A institucionalização deste estilo de pensamento nas agências
do sistema penal aumentou a ressonância e o apelo de alguns con-
ceitos criminológicos em detrimento de outros. Por exemplo, este
enfoque economicista tem clarns afinidades com as análises crimi-
nológicas que concebem o crime como um fator extrínseco das
transações sociais normais ou como o resultado de escolhas opor-
tunistas, racionais. O mesmo talvez possa ser dito da imagem do
homo prudens projetado pela literatura oficial sobre prevenção do
crime 59 .
Cada um desses novos (ou renovados) conceitos contrastam
frontalmente com as criminologias sociais que anteriormente gui-
aram nosso pensamento. Eles decotam os figurinos sociológicos e
psicológicos que adornavam os conceitos da criminologia do sé-
culo XX sobre o criminoso individual, e parecem representar um
intrigante retomo à criminologia ingênua de Jeremy Bentham e
dos seus seguidores utilitaristas. Esta reversão parece menos intri-
gante à luz das forças institucionais que a empurram naquela dire-
ção. Evidentemente, a revivificação da figura do "criminoso raci-
onal" na criminologia oficial e a preocupação de administrar esta
figura através da manipulação de incentivos e riscos certamente
seriam estimuladas pela cultura geral da escolha e do consumo
que caracteriza a pós-modernidade. Mas a grande afinidade destas
idéias criminológicas com os processos gerenciais e de auditagem

397
das instituições do sistema penal aumentou muito seu apelo. Os
agentes do sistema penal cada vez mais buscam controlar os crimi-
nosos com as mesmas técnicas que utilizam para controlar a si
próprios.
O emprego de idéias econômicas para pensar o crime prova-
velmente ocorreu primeiramente no setor privado - nas práticas
das companhias seguradoras, nas empresas de segurança privada e
nos empreendimentos comerciais que buscavam reduzir os custos
dos crimes que lhes incumbia suportar. O modo preferido de abor-
dar o problema era focar na redução ou na substituição dos custos
do crime, enfatizar a prevenção em desfavor da punição e a
minimalização dos riscos em vez de salvaguardar a justiça. Adis-
posição das empresas de cotejar os custos do crime com os custos
de sua prevenção - e sua tendência de tomar medidas preventivas
apenas onde compensa fazê-lo-levou à elaboração de uma aborda-
gem "gerencial" ao crime, que era bem diferente daquela adotada
pelos governos.
A emergência desta racionalidade é, como a prisão disciplinar,
um resultado conjuntural que não foi planejado. A velha linguagem
social "não funcionou" e ficou desacreditada tanto como questão
prática quanto como proposição política. Em contraste, modos eco-
nômicos de pensamento estavam disponíveis, eram transferíveis e
pareciam funcionar ou, ao menos, satisfazer as autoridades
financiadoras que cada vez mais demandam que as atividades finan-
ciadas sejam monitoradas e avaliadas desta forma. Os partidos polí-
ticos que estavam no poder nos anos 1980 e 1990 favoreceram
enfaticamente "soluções de mercado", valores do "setor privado" e
soluções gerenciais e incentivaram as agências estatais a adotarem
esta mentalidade. A decrescente credibilidade dos profissionais do
serviço social e a resistência dos políticos em transferir o poder
punitivo estimularam o uso de técnicas externas de controle do pro-
cesso decisório 60 • O poder discricionário foi paulatinamente substi-
tuído pela especificação detalhada de performance e pela avaliação
minuciosa. Ao longo do tempo, as agências do sistema penal foram
arrastadas para a "sociedade de auditoria" e vieram a compartilhar
as mesmas práticas profissionais da "nova gerência pública" já
sedimentadas em outros pontos do setor público 61 .

398
O estilo econômico de pensamento, como o estilo social que o
precedeu, possui uma coerência temática e cultural - o sucesso de
um padrão aplicado em todos os lugares - em detrimento de uma
lógica estrita ou de uma estrutura conceHual sólida. Trata-se, com
efeito, de um mosaico de técnicas, modelos, analogias e receitas de
ação tenuamente ligadas umas às outras pelo apelo à racionalidade
econômica. Confmme autores como Gary Becker ou Richard Posner
nos demonstraram, este tipo de racionalidade pode ser aplicado em
todas as espécies de terrenos, embora sua inadequação à racionalidade
substantiva de "fazer justiça" signifique que tenha provocado mais
resistência neste campo do que em outros. A racionalidade econô-
mica é, sobretudo, uma linguagem para fazer e representar. Ela foi
brutamente imposta às práticas que às vezes parecem bem limitadas
em sua racionalidade e bem distantes de considerações econômicas
(tais como a conduta dos criminosos, as escolhas dos prisioneiros,
o comportamento das vítimas etc.), bem como aos operadores que
lhe são hostis (agentes do livramento condicional, assistentes soci-
ais, juízes). Que ela tenha fincado suas raízes nesta conjuntura não
é o reflexo da natureza econômica do crime e da justiça ou mesmo
do poder intrínseco de modelos econômicos. É o efeito de um
ambiente político-cultural particular que opera nas instituições atra-
vés das quais construímos o "crime" e a "justiça" como entidades
sociais.
Os limites políticos da racionalidade econômica
O modo econômico de pensamento pode ter se tomado o esti-
lo decisório padrão na área do controle do crime, mas ele é substitu-
ído em determinado ponto por um modo bem diferente de pensa-
mento que faz carga sobre os imperativos de punir criminosos e de
proteger o público, "custe o que custar". Esta modalidade alternati-
va contrasta fortemente com o enfoque economicista. Sua razão é
centrada no "valor" e não no "objetivo"; ela é expressiva e não cal-
culista, bem como absolutista em sua abordagem, em vez de estra-
tégica. Onde a razão economicista é gerencial, relativista, conscien-
te dos custos e orientada para as intervenções de baixa intensidade,
o modo expressivo é abertamente moralista, intransigente e preocu-
pado em afirmar a força do poder soberano 62 . As medidas penais
associadas a esta abordagem expressiva, soberana, tendem a ser
abastecidas por uma raiva coletiva e por uma preocupação com
399
assertivas simbólicas em lugar de cálculos cuidadosos de custo e
efeito.
Desnecessário dizer que esta forma de reagir ao crime confuta
as ponderações de custo/efetividade do enfoque econômico. A guerra
contra as drogas é um eloqüente exemplo disto. Assim também as
penas privativas de liberdade obrigatórias das leis "Three Strikes"
californianas, a recente política britânica da "prisão que funciona"
e as políticas policiais de tolerância zero, todas muito onerosas e,
em termos de controle do crime, de eficácia duvidosa. A adoção de
uma lógica de guerra por si só derrota a racionalidade econômica.
O processo de mudança entre estas duas racionalidades con-
traditórias, passando de um parâmetro discursivo para o outro, é
essencialmente político. É governado não por qualquer lógica cri-
minológica, mas pelos interesses conflitantes dos atores políticos e
pelas exigências, pelos cálculos políticos e pelos interesses imedia-
tos que a motivam. Em sua configuração detalhada, com todas as
suas contradições e incoerências, o campo, assim, é um produto da
história decididamente aleatória das manobras e dos cálculos
políticos.O embate entre a lógica institucional do custo/efetividade e
o gesto soberano da "guerra contra o crime" é, pois, um embate
entre princípios inconciliáveis. Daí a frustração aparente de admi-
nistradores e autoridades, engessados pelas considerações de cus-
to/efetividade, quando confrontados com a absolutista guerra con-
tra as drogas ou com a demanda de que predadores violentos sejam
trancafiados por tempo indeterminado para proteger o público. É
verdadeiro, obviamente, que as medidas penais são freqüentemente
apresentadas em termos que as fazem parecer funcionar em ambos
os terrenos - como medidas econômicas e expressivas. Por exem-
plo, penas privativas de liberdade mínimas são retratadas por seus
proponentes como capazes de economizar dinheiro a longo prazo
através da neutralização de grande número de pessoas, reduzindo,
assim, a criminalidade. Mas neste exemplo, como em outros, a su-
posta racionalidade econômica é falsa, sendo desmentida pelas esta-
tísticas e estimativas sobre gastos, sobre o perfil dos criminosos e
por dados atuariais .. Políticas punitivas como a guerra contra as
drogas, a "prisão funciona" e a pena de morte podem até afirmar
serem formas economicamente eficientes de administração de ris-
cos, mas os cálculos envolvidos estão longe de serem os atuariais.
400
Ao revés, elas são motivadas por um sentimento implícito, mas bem
entendido, segundo o qual os criminosos visados por aquelas medi-
das (reincidentes, criminosos profissionais, "predadores sexuais vi-
olentos", traficantes de drogas, pedófilos) são indivíduos perversos
sem qualquer direito ou escusa moral. A postura moti vacional, aqui,
não diz respeito à previsão atuarial ou à cuidadosa administração de
riscos. É informada por uma intolerância brutal produzida pelas
imagens estereotipadas do perigo e pelas avaliações negativas de
ordem moral.
A atitude preponderante consiste em que é melhor manter um
criminoso trancafiado para sempre do que aiTiscar a vida ou a pro-
priedade de outra vítima inocente. Tal vez se os criminosos tivessem
maior importância política ou status social mais elevado, eles inspi-
rassem a atenção atuaifal requerida pelos programas de neutralização
seletiva ou de condenação vicariante. No presente quadro, os políti-
cos freqüentemente falam a linguagem do risco apenas para tergi-
versar seus termos e subverter a sua lógica. Se o assunto é a liber-
tação de um criminoso condenado, então qualquer nível de risco é
inaceitável. Seus cálculos são simples - o interesse relativo à liber-
dade do prisioneiro é postergado se a libertação dele ou dela expõe o
público a perigos evitáveis ou exige que a autoridade responsável se
submeta a qualquer risco político apreciável. No clima político atu-
al, um registro de antecedente criminal afeta mais o status moral do
indivíduo do que altera seu risco atuai·ial.

NoútS

1
Para relatos das instituições que estavam comprometidas com um ethos
correcionalista, v. E L. Carney, Criminality and its Treatment: ThePatuxent
Experience (Malabar-FL: Krieger Publishíng Co., 1989), e E. Genders e E.
Player, Grendon: A Study ofa Therapeutic Prison (Oxford: Oxford University
Press, 1995).
2
Veja-se K. Maguire e A. Pastore (orgs.), Sourcebook of Criminal Justice
Statistics 1998 (Washington DC: Bureau of Justice Statistics), que fornecem,

401
na seção 1, informações detalhadas sobre as características do sistema
norte-americano de justiça criminal, inclusive quanto ao volume de
funcionários, gastos e quantidade de trabalho. V., também, C. G Camp e G.
M. Camp (orgs.), The Corrections Yearbook 1998 (Middletown-CN:
Criminal Justice Institute, 1998). Para as tendências atuais na Grã-Bretanha
e no País de Gales, v. Home Office, Digest 4: Information on the Criminal
Justice System, editado por G. C. Barclay e C. Travers (Londres: Home
Office, 1999).
3
P. White et al., Projections of Long Tenn Trends in the Prison
Population to 2006 (Londres: Home Office, 2000), relatam que, "entre
1992 e 1997, a taxa de encarceramento na Crown Court subiu de 44% para
60%. A duração média de privação da liberdade também subiu de 21
meses para 23,9 meses ( ... ). Nas magistrates' courts, a taxa de
encarceramento dobrou de 5% para 10%" (p. 3). V., também, I. Dunbar e
A. Langdon, Tough Justice (Londres: Blackstone, 1998), cap. 11, pp. 133-
43. Para uma análise detalhada das tendências norte-americanas de
encarceramento, de tempo médio cumprido dentro das prisões e de
revogações da liberdade vigiada entre 1980 e 1996, v. A. Blumstein e A. J.
Beck, "Population Growth in US Prisons, 1980-1996", in M. Tonry e J.
Petersilia (orgs.), Prisons (Chicago: University of Chicago Press, 1999),
pp. 17-62.
4
P. Manning, Police Work, 2ª ed. (Prospect Heights-IL: Waveland Press,
1997); A. J. Reiss, "Police Organization in the Twentieth Century", in
M. Tonry e N. Morris (orgs.), Modem Policing (Chicago: University of
Chicago Press, 1992); R. Reiner, "Policing a Postmodem Society", The
Modem Law Review (1992), vol. 55, pp. 761-81.
5
T. Jones et al., Democracy and Policing (Londres: PSI, 1994); P.
Manníng, Police Work.
6
L. Kurki, "Restorative and Community Justice in the United States", in
M. Tonry (org.), Crime and Justice (Chicago: University of Chicago
Press, 2000). Num relatório diferente, Kurki observa a falta de dados
sistemáticos sobre estas iniciativas: "ninguém sabe quantos ou quais os
tipos de programas que existem; quantos criminosos, vítimas e voluntários
participam; a quantia paga a título de ressarcimento ou de serviços
comunitários prestados; ou os efeitos sobre as vítimas, comunidades e
criminosos", L. Kurki, Incorporating Restorative aiul Community Justice
lnitiatives into American Sentencing and Corrections, Research ín Brief,
nº 3 (Wasington DC: US Department of Justice, 1999).
7
De acordo com o relatório do Bureau of Justice Statistics, órgão pertencente
ao US Department of Justice, intitulado Census of State and Federal

402
Correctional Facilities, 1995 (Department of Justice, Government Printing
Office, 1996), no ano em questão, "mais de 97% dos estabelecimentos
correcionais ofereciam aconselhamento. Aconselhamento em questão de
drogas e álcool existia em quase 90% dos estabelecimentos; aconselhamenlo
psicológico, profissional e psiquiátrico, em 69%; aconselhamento para
ressocialização, em 67%; em matéria de emprego, em 60%; e em questão de
criação infantil, em 49%". Segundo os números do BJS, um grande aumento
no corpo de funcionários e nos tipos de programas ocorreu no período de
1990 a 1995. Entre 1984 e 1990, o percentual de internos/residentes engajados
em programas de aconselhamento subiu de 14,2% para 30,8%.
8
"Em 1993-4, f 9,42 bilhões foram gastos com as agências da justiça
criminal (na Inglaterra e no País de Gales). Apenas f 240 milhões (0,37%)
são gastos pelo governo diretamente com prevenção", J. Bright, Tuming
the Tide: Crime, Community and Prevention (Londres: Demos, 1997).
Para detalhes das organizações e práticas de prevenção do crime, v. A.
Crawford, The Local Govemance of Crime (Oxford: Oxford University
Press, 1997); A. Crawford, Crime Prevention and Community Safety
(Londres: Longman, 1998), e M. Tonry e D. P. Farrington (orgs.), Building
a Safer Society (Chicago: University of Chicago Press, 1995).
9
Na Grã-Bretanha, o Crime and Disorder Act de 1998 regulamenta as
parcerias para redução do crime. Para detalhes, vejam-se as diretdzes emitidas
pelo Home Office para as autoridades locais: Home Office, Guidance on
Statutory Crime and Disorder Pa,1nerships (1998), www.homeoffice.gov.uk/
cdact/index.htm.
10
O "populismo" é mais extensivo e endêmico no contexto norte-americano
porque as instituições políticas dos EUA são mais populistas em sua
constituição e tendem a ser mais reativas à pressão pública do que as
instituições da Grã-Bretanha. Muitos Estados federados norte-americanos
prevêem a eleição popular de autoridades judiciais (comissários, promotores
de justiça e juízes) o que motiva tais autoridades a estarem mais atentas à
opinião pública local. Vários Estados prevêem referendos que permitem
determinar a legislação a ser apreciada e aprovada ou não pelos eleitores.
Em contraste, o populismo punitivo da recente política britânica é menos
determinado estrnturalmente. O Home Secreta,y mais populista dos tempos
recentes -Michael Howard-foi precedido no cargo por Douglas Hurd, cujo
estilo era uma mistura de aristocracia e autoritarismo e cujas políticas de
"punição na comunidade" e de prevenção do crime seguiam o conselho de
criminólogos e não a opinião popular. O complexo do crime pode promover o
populismo, mas as instituições políticas britínicas tendem a inibi-lo.
11
D. C. Anderson, Crime and the Politics of Hysteria (Nova Iorque:
Times Books, 1995).
403
Veja-se J. R. Sparks, "Risk and biame in criminal justice controversies",
12

in M. Brown e J. Pratt (orgs.), Dangerous Offenders: Criminal Justice


and Social Order (Londres: Routledge, 2000).
13 "A missão do governo nas complexas sociedades contemporâneas é

influenciar as interações sociais de forma que o governo político e a


auto-organização social se complementem", J. Kooiman, Modem
Govemance: New Social-Govemmental Jnteractions (Londres: Sage,
1993), p. 256.
14Em face do policiamento privado, das prisões privadas, da segurança
privada e das atividades preventivas dos cidadãos, das comunidades e das
empresas, as agências estatais ficaram autoconscientes de sua relação com
os "provedores privados". O resultado foi o desenvolvimento de mecanismos
específicos de regulação desta relação público-privada, seja na forma de
parcerias voluntárias (como na prevenção do crime), seja na forma de acordos
comerciais (como acontece com as prisões privatizadas e com a prestação
comercial de serviços da justiça criminal). Para detalhes, v. T. Jones e T.
Newburn, Public Private Security and Public Policing (Oxford: Clarendon
Press, 1998).
15
Veja-se D. Garland, "Penal Modemism and Postmodemism", ín T.
Blomberg e S. Cohen (orgs.), Punishment and Social Control (Nova Iorque:
Aldine de Gruyter, 1995), para uma discussão sobre a literatura referente à
mudança penal e seu significado social.
16
Veja-se P. Pierson, Dismantling the Welfare State? (Nova Iorque:
Cambridge University Press, 1994).
17
"O discurso da dependência previdenciária define a própria previdência
como o problema a ser enfrentado, em vez da pobreza ou do desemprego, e
Clinton, é claro, prometeu acabar com a previdência, mas não com a pobreza",
J. Peck, The Guardian, 7 de agosto de 1996.
18
O sistema escocês de oi tiva infantil (Scottish Children 's Hearing System)
é uma interessante exceção a esta tendência. Veja-se P. Duff e N. Hutton
(orgs.), Criminal Justice in Scotland (Aldershot: Ashgate, 1999), cap. 14.
19
Sobre a austeridade penal na Inglaterra e no País de Gales, v. J. R. Sparks,
"Penal austerity and social anxiety at the century's tum: govemmental
rationalitíes, legítimation deficits and populism in English penal politics in
the 1990s", ín L. Wacquant (org.), From Social State to Penal State (Nova
Iorque: Oxford University Press, no prelo). Sobre as prisões "sem regalias"
nos EUA, v. P. Finn, "No-Frills Prisons and Jails: A Movement ín Flux",
Federal Probation, vol. 60 (setembro de 1996), pp. 35-44.

404
20 O Home Secretary do governo trabalhista britânico, Jack Straw, e seu
antecessor conservador, Douglas Hurd, concordam com isto. Em recente
discurso, Straw citou Hurd (agora membro do conselho do Prison Refonn
Trust) sobre a reforma prisional inspirada pelo bem-estar da vítima: "não
podemos ser insensíveis com as oportunidades que a bem-intencionada
educação na prisão oferece. Como seu conselheiro escreveu num artigo
publicado na edição de ontem do Daily Telegraph, 'isto está inextricavelmente
ligado à segurança futura dos cidadãos"', J. Straw, Making Prisons Work (Toe
Prison Reform TrnstAnnual Lecture, dezembro de 1998).
21
Veja-se H. Kemshall, "Risk in Probation Practice: The Hazards anel
Dangers of Supervision", Probation Joumal, voL 42, nº 2 (junho de 1995),
pp. 65-71.
22
E. Wallis, "A New Choreography: Breaking Away from the Elaborate
Corpora/e Dance", in R. Burnett (org.), The Probation Service: Responding
to Change (Oxford: Probation Studies Unit, Oxford University, 1997), p. 91.
23
Sobre a "credibilidade" do livramento condicional como pena na Grã-
Bretanha, v. H. Rees e E. H. Williams, Punishment, Custody and the
Community (Londres: LSE, 1989), e I. Brownlee, Community Punishment
(Londres: Longman, 1998). Sobre as falhas e os problemas de credibilidade
do livramento condicional norte-americano, v. o Reinventing Probation
Council, Broken Windows Probation (Nova Iorque: Manhattan lnstitute, 7
de agosto de 1999).
24
O ministro do governo trabalhista, Paul Boateng, anunciou recentemente
planos (posteriormente abandonados) de rebatizar o serviço de livramento
condicional: "o novo nome, 'Serviço de Reabilitação e Punição Comunitária',
explica seu propósito e sinaliza o caminho a ser seguido por este serviço vital.
A importância do seu papel na proteção do público através da supervisão efetiva
de criminosos na comunidade a na redução da reincidência não pode ser
subestimado" (entrevista coletiva do Home Office, 1º de dezembro de 1999). A
entrevista prosseguiu, afirmando-se que "o SRPC tem um papel crncial a
desempenhar na consecução dos objetivos do Home Secretary com a
condenação e punição efetiva: o público é protegido de criminosos perigosos;
os criminosos são adequadamente punidos e suas penas rigorosamente
cumpridas; as penas são feitas para funcionar bem tanto dentro quanto fora da
prisão" (p. l). Nos EUA, o Reinventing Probation Council afirma o mesmo:
"o livramento condicional será reinventado quando se colocar a segurança
do público acima de tudo, trabalhando com a, e dentro da, comunidade",
Reinventing Probation Council, Broken Windows Probation, p. 13.
25
H. Kemshall, Risk in Probation Practice (Aldershot: Ashgate, 1998).
Ao longo dos últimos vinte anos, o livramento condicional nos EUA e na

405
Grã-Bretanha tem sido uma instituição problemática, buscando
constantemente se reinventar a si própria na forma de instituto mais
compatíve, com o cambiante clima penal no qual opera. Um recente
conjunto de propostas de mudança, oferecido por um grupo norte-
americano de "funcionários veteranos e executivos", que se auto-intitula
"Reinventing Probatíon Council" (Conselho de Reinvenção do
Livramento Condicíoml), reflete este esforço de adaptação. Chamando
suas propostas de "Broken Windows Probation", ele lista os imperativos
maiores da seguinte forma: "a segurança do público vem em primeiro
lugar"; "supervisionar os beneficiários da rua e não dos gabinetes";
"alocação racional de recursos"; "punir as violações das condições rápida
e severamente"; "desenvolver parcerias na comunidade"; "instituir
indicadores de performance"; "a liderança é crucial". Reinventing
Probation Council, Broken Windows Probation.
26
O Home Secretary do governo trabalhista recentemente definiu sua
política prisional nestes termos: "primeiro, nossa política deve girar
fundamentalmente em torno da proteção do público. Estimar, reduzir e
administrar riscos após a soltura são os elementos centrais da nossa
missão", J. Straw, Making Prisons Work (The Prison Reform TrustAnnual
Lecture, dezembro de 1998).
27
Sobre a última fase da implantação de segurança nas prisões norte-
americanas - a prisão de segurança máxima - v. R. D. King, "The Rise and
Rise of Supermax: An American solution in search of a problem?",
Puníshment & Society, vol. 1, nº 2 (1999), pp. 163-86.
28
Veja-se N. Christie, Crime Contrai as Industry: Towards Gulags, Westem
Style, 2ª ed. (Londres: Routledge, 1994) (N.T.: A obra de Christie está
traduzida para o vernáculo: A Indústria do Controle do Crime -A caminho
dos Gulags em estilo ocidental, trad. Luis Leiria, Rio de Janeiro, 1998, Ed.
Forénse). D. Garland (org.), Mass Imprisonment in the USA: Social Causes
and Consequences (Londres: Sage, no prelo).
29
Para um excelente estudo, v. J. Simon, Poor Discipline: Parole and the
Social Contrai of the Underclass, 1890-1990 (Chicago: University of
Chicago Press, 1993). V., também, W. J. Wilson, When Work Disappears
(Nova Iorque: Knopf, 1997); I. Taylor, Crime in Context (Cambridge: Polity
Press, 1999), cap. 6; B. Campbell, Goliath: Britain's Dangerous Places
(Londres: Methuen, 1993).
30
A. Rutherford, Criminal Folicy and the Eliminative Ideal (Southampton:
Institute of Criminal Justice, University of Southampton, 1996).
31
Sobre as funções sociais, econômicas e penalógicas do gueto norte-
americano, v. L. Wacquant, "Deadly symbíosis: when ghetto and prison

406
meet and merge", Punishment & Society, voL 3, nº 1 (2001), reimpresso
in D. Garland (org.), Mass Imprisonment.
32
Veja-se B. Western e K Beckett, "How Unregulated is the US Labor
Market? The Penal System as a Labor Market Institution", American
Journal of Sociology, nº 104 (janeiro de 1999), pp. 1.135-72.
33
Veja-se J. Gunn et al., Mentally Disordered Prisoners (Londres:
Institute os Psychiatry, 1991). Um dos aspectos recorrentes das
sociedades neoliberais, em que os serviços públicos e os recursos
socializadores são minimizados, é que a prisão funciona como uma
instituição onerosa de última instância, ocupada por indivíduos aos quais
foi recusado tratamento em outras instâncias. O sistema carcerário da
cidade de Nova Iorque tem a maior unidade de tratamento de tuberculose
dos EUA e um dos maiores programas de tratamento para pacientes
contaminados pelo vírus HIV Há uma trágica ironia nisto e não muita
eficiência em termos de custo/benefício.
34
Veja-se B. Harcourt, "Reflecting on the Subject: A Critique of the
Social Influence Conception of Deterrence, the Broken Windows Theory,
and Order-Maintenance Policing New York Style", Michigan Law
Review, vol. 97, nº 2 (novembro de 1998).
35
Veja-se o Capítulo 5, supra. O governo trabalhista britânico
recentemente anunciou que um novo painel guiará a Court of Appeal nas
decisões judiciais, incluindo as vítimas entre seus membros, cf. entrevista
coletiva do Home Office, de 5 de janeiro de 1998. Em setembro de 2000, o
Home Secretary britânico anunciou a introdução da oportunidade de
depoimento das vítimas em todos os casos criminais.
36
Mesmo sentenças vinculadas deixam algum espaço para a discricionariedade
- normalmente quanto à acusação. A individualização pode acontecer
neste ponto, muito embora as preocupações dos acusadores sejam muito
diferentes das dos juízes, mais voltadas a assegurar a condenação do
que a fazer justiça ou a obter a pena mais adequada às necessidades e à
culpabilidade do criminoso.
37
Veja-se Christie, Crime Control as Industry, cap. 8. Como Noam
Chomsky observou numa conjuntura diferente, é muito mais fácil usar de
violência contra um inimigo quando não se vê seu alvo humano de perto.
N. Chomsky, American Power and the New Mandarins (Nova Iorque:
Pantheon Books, 1969).
38
M. Foucault, Discipline and Punish. "Quanto mais o homem é detentor
de poder ou de privilégio, tanto mais é marcado como indivíduo, por
rituais, discursos ou representações plásticas ( ... ). Num regime disciplinar,
a individualização, ao contrário, é 'descendente': à medida que o poder
407
se toma mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais se exerce
tendem a ser mais fortemente individualizados (... ). Num sistema de
disciplina, a criança é mais individualizada que o adulto, o doente o é
antes do homem são, o louco e o delinqüente mais que o normal e o não-
delinqüente", pp. 192-3 (N.T.: na versão brasileira da conhecida e já citada
obra de Foucault, o trecho transcrito pelo autor está à p. 171).
39
"Ironicamente, uma vez que o risco se institucionaliza., a habilidade e
disposição dos profissionais de assumi-lo - no sentido original de possibilidade
de ocorrerem resulta.dos positivos ou negativos - são obviados", N. Pa.rton,
"Social Work, Risk and 'The Blaming System"', in N. Pa.rton (org.), Social
Theory, Social Change and Social Work (Lçmdres: Routledge, 1996), p. 113.
40
E não a.penas do criminoso. O US Department of Housing and Urban
Development atualmente adota a política que impõe que qualquer inquilino
usuário de drogas ou que tenha cometido um crime grave seja despejado
do sistema de habitação pública. "Como o presidente Clinton enfatizou
no anúncio político de 1996 (... ) responsabilizar inquilinos inocentes pela
conduta destrutiva. dos componentes do seu ambiente familiar (... ) é
essencial para manter a segurança.", Center for the Community Interest,
CCI Friday Fax (10 de julho de 1998).
41
Iniciativas de "justiça restaura.tiva" - endossadas pelo Crime and
Disorder Act de 1998 e utiliza.das como alternativa por muitas forças
policiais - são uma importante exceção a esta regra. Ao menos na mediação
vítima-criminoso, objetiva-se beneficiar também o último com o processo.
Veja-se J. Brnithwa.íte e S. Mugford, "Conditions of Successful
Degradation Ceremonies", British Joumal of Criminology (1994), 34(2),
pp. 139-71; J. Hudson e B. Ga.laway (orgs.), Restorative Justice:
Internacional Perspectives (Monsey-NY: Willow Tree Press, 1996).
42
P. Finn, Sex Offender Community Notifícation (Washington DC:
Na.tiona.l Institute of Justice, Office of Justice Programs, 1997); B. Hebenton
e T. Thomas, "Sexual Offenders in the Community: Reflections on
Problems of Law, Community and Risk Management in the U.S.A.,
England and Wales", Intemational Journal of the Socíology of Law
(1996), 24: 427-443.
43
Sobre o estado atual de tais leis, v. Home Office, The Rehabilítation of
Ojfenders Act 1974: A Consultation Paper (Londres: Home Office, 1999),
e M. D. Mayfield, "Revisíng Expungemenf', Utah Law Review (1997), p.
1057.
44
Para detalhes, v. J. Brilliant, "The Modem Day Scarlet Letter: A Critica[
Analysis", Duke Law Joumal (1989), pp. 1357-85; D. Karp, "The Judicial
and Judicious Use of Shame Penalties", Crime and Delinquency (1998)
408
44: 277-94. T. Vinciguerra, "The Clothes that Make the Inmate", New
York Times, lº de outubro de 2000.
45
R. C. Ellickson, "Controlling Chronic Misconduct in City Spaces: Of
Panhandlers, Skid Rows, and Public-Space üming", Yale Law Joumal
(1996), 105: 1165-248.
46
"A geração que um dia temeu o Estado policial faz lobby para que haja
um policial em cada esquina", B. Carlen, "Jnsecurity Complex", Califomia
Lawyer (junho de 1998), p. 85.
47
Sobre este assunto, v. D. Lockwood, "Social Integration and System
Jntegration", reproduzido in D. Lockwood, Solidarity and Schism (Oxford:
Oxford University Press, 1992).
48
Recentemente, Ron Clarke enfatizou que "estimular a consciência" deve
ser considerada mais uma técnica da prevenção situacional do crime -
quando, por exemplo, um aviso indica que furtar é errado e também ilegal.
Mas o apelo moral é envolvido de forma apenas contingente e marginal
neste tipo de abordagem - não lhe é essencial. R. V. Clarke, Situational
Crime Prevention: Successful Case Studies, 2ª ed. (Albany-NY: Harrow and
Heston, 1997), p. 24. Para uma discussão critica sobre a ética da prevenção
situacional do crime, v. A. von Hirsch, D. Garlancl e A. Wakefield (orgs.),
The Ethics of Situational Crime Prevention (Oxford: Hart Publishing, 2000).
49
Para uma discussão a respeito, v. J. Best, Random Violence (Berkeley-
CA: University of Califomia Press, 1999), e para um exemplo significativo,
v. W. Bennett et ai., Body Count. Como "czar das drogas" no governo Bush,
Bennett buscou abertamente "desmoralizar" o uso de drogas, retratando o
usuário como criminoso a ser punido e não como uma "pessoa como nós".
A estratégia de "essencializar" uma forma de comportamento que se tornou
tão disseminada a ponto de parecer normal é o que confere à guerra contra
as drogas sua enorme amplitude e intensidade ideológica.
50
Veja-se D. Anderson (org.), This Will Hurt: The Restoration ofVirtue and
Civic Order (Londres: Toe SocíalAffairs Unit, 1995); J. Q. Wilson, Thinking
About Crime (Nova Iorque: Vintage, 1983), cap. 12; Bennett et ai., Body
Count (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1996); N. Dennis, Rising Crime
mui the Dismembered Family (Londres: IEAHealth and Welfare Unit, 1993).
51 J. J. Dilulio Jr., "Let'em Rof', The Wall Street Joumal, 26 de janeiro de

1994, p. A14. Tendo em vista que este foi um artigo de jornal, o título pode
ter sido criação de algum editor. Seja como for, parece que Dilulío começou
a recuar: veja-se seu texto intitulado "Two Million Prisoners Are Enough"
(N.T.: "Dois milhões de prisioneiros são o bastante"), The Wall Street
Joumal, 12 de março de 1999, p. Al4.

409
52
Primeiro-Ministro John Major, The Sunday Times, 21 de fevereiro de
1993.
53
A expressão está na resenha de Daphne Markin, publicada no New
York Times Book Review, p. 17, edição de 11 de abril de 1299, sobre a obra
de Inga Clendinnen, intitulada Reading the Holocaust. Ela indaga se
devemos ver os nazistas - ou criminosos reincidentes - como "hediondas
versões de nós mesmos, em vez de criaturas monstruosamente opacas,
além ou fora da nossa compreensão".
54
Como Santo Agostinho explicou, "a disposição para o mal é a causa de
más ações, mas nada causa a disposição para o mal. Quando a disposição
abandona o que está acima de si, voltando-se para o que está abaixo, ela se
toma má- não porque ela se volta para o mal, mas porque a própria mudança
é má", Santo Agostinho, The City of God (Nova Iorque: Image Books, 195 8).
55
Há reflexos inconfundíveis aqui da explicação de Durkheim acerca da
"solidariedade mecânica" repressiva das sociedades pré-modernas. Veja-se
E. Durkheim, The Division of Labor (Nova Iorque: Free Press, 1933), cap. 2.
56
O remédio para a pobreza moral e para a ruptura social oferecido por
William Bennett e seus co-autores é ilustrativo: "como nós restauramos estes
laços? Acreditamos que a resposta mais óbvia- e talvez a única confiável-
seja uma renovação geral da fé religiosa e o fortalecimento das instituições
religiosas", Bennett et al., Body Count (Nova Iorque: Simon & Schuster,
1996), p. 208.
57
A idéia de utilizar um enfoque especificamente economicista para intervir
na análise do crime e da punição tem sido proposta por vários autores,
com destaque para Gary Be't:ker, Richard Posner e Isaac Ehrlich. Tenho a
impressão, contudo, que um estilo economicista de tomada de decisões foi
fruto de desdobramentos gerenciais, práticos, e não do trabalho acadêmico.
58
Como registrado anteriormente, o Crime and Disorder Act de 1998 exige
que todas as autoridades locais na Grã-Bretanha realizem auditorias do crime.
Para uma discussão sobre temas relacionados, num idioma explicitamer.te
econômico, v. D. Pyle, Cutting the Costs of Crime: The Economics of Crime
and Criminal Justice (Londres: IEA, 1995).
59
Veja-se J. van Dijk, "Understanding Crime Rates: On the Interactions
Between the Rational Choices of Victims and Offenders", British Joumal of
Criminology (1999), 34 (2): 105-21. Sobre o homo prudens, o "homem risco-
zem", que "personifica a prudência, a racionalidade e a responsabilidade", v. J.
Adams, Risk (Londres: UCL Press, 1995), p. 16.
60
Note-se que, no novo campo, não é que todos os experts e categorias
profissionais tenham sido rebaixados. Ao revés, foram aqueles grupos

410
profissionais mais claramente associados à racionalidade social (agentes
do livramento condicional, assistentes sociais, funcionários comunitários
e criminólogos sociais) que tiveram sua influência reduzida, ao passo
que os profissionais associados à nova racionalidade econômica
(auditores, contadores, gerentes, técnicos da informação) estão em
ascensão.
61
M. Power, The Audit Explosion (Londres: Demos, 1994).
62
Descrever este modelo como "expressivo" é ensejar a seguinte questão:
expressivo do quê? Para seus proponentes, a resposta é "expressivo do
sentimento público". Uso o termo com o objetivo de sublinhar a natureza
emocional e deontológica deste estilo de racionalidade: seu absolutismo e
urgência.

411
8. Controle do crime e ordem social

Em termos de controle do crime, o cenário que se formou nos


Estados Unidos e na Grã-Bretanha no final do século XX surpre-
endeu os especialistas e desafiou as previsões históricas. Argu-
mentei que estes acontecimentos - no que tange ao policiamento,
ao perfil das condenações, à teoria criminológica, ao tratamento
dado às vítimas e assim por diante - podem ser mais bem entendi-
dos se os considerarmos como aspectos inter-relacionados de um
campo social que está sendo reestruturado. Tentei demonstrar como
o campo do controle do crime e da justiça criminal foi afetado
pelas mudanças na organização social das sociedades em que ope-
ra, pelos problemas específicos de ordem social característicos
daquela forma de organização social e por adaptações políticas,
culturais e criminológicas que sobrevieram em resposta àqueles
problemas específicos. A título de conclusão, desejo mostrar como
minha explicação se aproxima de algumas questões específicas
que ainda precisam ser tratadas e indicar algumas das conseqüên-
cias que se seguem, admitindo-se que a minha interpretação esteja
correta.
O universo atual do controle do crime e da justiça criminal
não foi criado pelas crescentes taxas de criminalidade ou pelo de-
saparecimento da fé no previdenciarismo penal, pelo menos não
somente por estes dois fatores. Estas foram as causas próximas e
não os processos causais fundamentais. Em lugar disto, tal univer-
so foi criado por uma série de respostas de adaptação às condições
culturais e criminológicas da pós-modemidade - condições que
abarcam novos problemas relativos ao crime e à insegurança e
novas atitudes perante o Estado de bem-estar. Aquelas respostas,
porém, não ocorreram do lado de fora do processo político ou numa
espécie de vácuo político e cultural. Muito pelo contrário. Elas
foram profundamente marcadas pela formação cultural que des-
crevi como o "complexo do crime"; pelas políticas reacionárias

413
que dominaram.a Grã-Bretanha e os Estados Unidos nos últimos
vinte anos; e pelas novas relações sociais que cresceram em torno
das cambiantes estruturas do trabalho, da previdência e do merca-
do destas duas sociedades pós-modernas.
Durante os anos 1980 e 1990, a cultura política que articulou
aquelas relações sociais era bem diferente da existente no período
culminante do Estado de bem-estar. Em suas ênfases e quiçá em
todos os demais aspectos, esta cultura era mais excludente do que
solidarista, mais comprometida com o controle social do que com
a provisão social e mais alinhada às liberdades privadas do merca-
do do que às liberdades públicas decorrentes da cidadania. As ins-
tituições do controle do crime e da justiça criminal seguiram na
mesma direção. Elas ajustaram suas políticas, práticas e representa-
ções de modo a perseguir os objetivos sociais e a invocm· os temas
culturais agora dominantes no âmbito político.
As políticas e práticas específicas que sobrevieram são adap-
tações ao mundo no qual o controle do crime atualmente opera e
aos dilemas práticos que este mundo cria. Como vimos, as novas
práticas normalmente surgem como soluções locais aos proble-
mas imediatos encontrados pelos indivíduos e organizações no
momento em que cumprem suas rotinas diárias. Mas o que elas
indicam é um processo de adaptação institucional por força do
qual o campo do controle do crime como um todo gradualmente
ajusta sua orientação e funcionamento. Em termos daquele cená-
rio mais amplo, os ajustes realizados são estruturais e concernem
à relação entre o controle do crime e a ordem social. Ao longo do
tempo, nossas práticas atinentes ao controle do crime e à realiza-
ção da justiça tiveram que se adaptar a uma economia cada vez
mais insegura, que marginaliza setores substanciais da população;
a uma cultura de consumo hedonista, que combina amplas liber-
dades pessoais com controles sociais relaxados; a uma ordem moral
pluralista, que luta para crim· relações de confiança entre estra-
nhos que pouco têm em comum; a um Estado "soberm10", que é
crescentemente.incapaz de regulm· uma sociedade de cidadãos in-
dividualizados e de grupos sociais díspares; e às cronicamente ele-
vadas taxas de criminalidade que coexistem com o baixo grau de
coesão familim· e de solidm"iedade comunitária. O caráter inseguro
e arriscado das relações sociais e econômicas atuais constitui a
414
superfície social que propicia uma nova preocupação, mais enfática
e exacerbada, para com o controle, bem como a urgência com a
qual segregamos, protegemos e excluímosº São as circunstâncias
conjunturais que disparam nossa obsessão por monitorar indiví-
duos temíveis, isolar populações perigosas e impor controles
situacionais em contextos outrora abertos e fluidosº Aquela superfí-
cie é a fonte de angústias profundamente emaizadas que encontram
expressão na cultura consciente quanto ao crime atual, na
mercantilização da segurança e em um ambiente desenhado para
administrar o espaço e separar as pessoasº
Descrevi como os novos desdobramentos pertinentes ao con-
trole do crime se "adaptaram" e "responderam" ao mundo pós-
moderno e aos valores políticos e culturais deste, Mas estes des-
dobramentos, por seu turno, também desempenham um papel na
criação daquele mundo, ajudando a formar o significado da pós-
modemidadeº Hoje em dia, o controle do crime faz mais do que
simplesmente administrar problemas alusivos ao crime e à insegu-
rançaº De igual forma, ele institucionaliza um conjunto de respos-
tas a estes problemas que são, por si sós, a causa do seu impacto
sociaL Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha da atualidade, a
"pós-modernidade" é vivida - não apenas pelos criminosos, mas
por todos nós - de maneira que é mais do que nunca definida pelas
instituições do policiamento, da punição e da prevenção 1 ,
O desejo por segurança, ordem, controle, pela administração
de riscos e pelo contingenciamento de chances certamente está
presente em qualquer culturaº Mas na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos, nas décadas recentes, tal questão se tomou dominante,
com conseqüências imediatas para os que são apanhados pelas de-
mandas de repressão e com efeitos corrosivos mais difusos para
todos nós 2 º Controles do espaço, controles situacionais, controles
gerenciais, controles do sistema, controles sociais, autocontroles -
em um setor social depois do outro, deparamo-nos com a imposi-
ção de mais regimes intensivos de regulação, inspeção e controle;
no processo, nossa cultura cívica se toma cada vez menos tolerante
e inclusiva, cada vez menos capaz de confiar3 º Após um processo
duradouro de expansão da liberdade individual e de relaxamento das
restrições sociais e culturais, o controle, agora, está sendo reenfatizado
em todas as áreas da vida social, com a única e surpreendente exce-
415
ção da economia, de cujo desregulamentado domínio normalmente
provém a maior parte dos principais riscos da atualidade.
A ascendência deste tema cultural tem o caráter de uma rea-
ção, uma reversão violenta; uma tentativa de romper com a mu-
dança histórica acumulada. As décadas de 1950, 1960 e 1970 fo-
ram um período de rápida transfo1mação social e econômica, du-
rante o qual as famílias e comunidades foram deslocadas, indiví-
duos e grupos sociais passaram a desfrutar de novas liberdades, de
estilos de vida mais variados e de maior oferta de bens de consu-
mo. Subseqüentemente, aquela fase deu lugar a uma onda de an-
gústias com relação ao colapso da família, de normas informais de
conduta e ao relaxamento das disciplinas institucionais. Nas déca-
das derradeiras do século XX, a busca pela liberdade veio a ser
obscurecida por uma nova impressão de desordem e de controles
perigosamente inadequados. Como vimos, políticas reacionárias
se aproveitaram desta inquietação subjacente para criar um pode-
roso discurso acerca do declínio moral no qual o crime floresceu -
junto com a gravidez na adolescência, mães solteiras, a dependên-
cia de programas previdenciários e o uso de drogas ilícitas - como
sintoma principal da suposta doença. Esta exortação pelo retorno
à ordem levou à imposição de novas disciplinas e amplos contro-
les, sem embargo do fato de estas disciplinas e controles terem
sido desenvolvidos para atingir grupos sociais específicos e não a
totalidade dos membros. Os anos 1980 e 1990 testemunharam o
retorno à restrição, a adequação dos controles e uma tentativa de
conter um novo mundo desordenado. Todavia, a despeito de tais
esforços, o tempo não retrocedeu. Não houve o retorno para um
mundo no qual todos os indivíduos são confinados pelos controles
comunais da identidade de local, do trabalho estável e da unidade
familiar sólida. O que aconteceu é que as liberdades individuais
conferidas pelas morais e pelos mercados da pós-modernidade fo-
ram cercadas por uma nova estrutura de controles e exclusões,
direcionada àqueles grupos mais desfavorecidos pela dinâmica de
mudança econômica e social - os pobres das cidades, os
beneficiários da previdência e as minorias.
Convencidas da necessidade de reafirmar a ordem, mas re-
fratárias em restringir as possibilidades de consumo ou a abrir mão
das liberdades pessoais; determinadas a aumentar sua própria segu-
416
rança, mas refratárias a pagar mais impostós ou a financiar a segu-
rança de outros; chocadas com o egoísmo desenfreado e com com-
portamentos anti-sociais, mas comprometidas com um sistema de
mercado que reproduz precisamente aquela cultura, as angustiadas
classes médias, hoje em dia, buscam solucionar sua ambivalência
zelosamente controlando os pobres e excluindo os marginais 4 . Elas
impõem controle, sobretud?, aos criminosos "perigosos" e
beneficiários "indesejáveis", cujas condutas levam alguns a supor
que sejam incapazes de assumir as responsabilidades da liberdade
pós-moderna. As punições mais veementes são reservadas para aque-
les culpados de abuso de crianças, uso de drogas ilícitas ou crimes
sexuais - precisamente as áreas cujas normas sociais e culturais
elementaTes passaram por processo de mudança mais profundo e
nas quais a ambivalência e a culpa da classe média se manifestam de
forma mais intensa.
Punição e previdência na pós-modernidade
O presente estudo se concentrou nos efeitos das novas rela-
ções sociais e culturas políticas no campo do controle do crime.
Mas os mesmos efeitos podem ser sentidos em outras áreas da
política social e econômica, sobretudo no que tange ao tratamento
dos pobres. No discurso político e na política oficial, os pobres
são mais uma vez vistos como indesejáveis e são tratados como
tais. Sua pobreza é atribuída à sua suposta falta de empenho, às
suas escolhas equivocadas, à sua cultura específica e à sua condu-
ta atual 5 . No mundo cada vez mais próspero dos anos 1990 e des-
de então, estas populações persistentemente pobres são facilmente
vistas como "diferentes" e não meramente "desfavorecidas". Como
criminosos reincidentes e "bandidos profissionais", elas são con-
venientemente retratadas como pertencentes a uma cultura estra-
nha, uma classe à parte, um resíduo esquecido dos processos velo-
zes e high-tech da economia globalizada e da sociedade da informa-
ção6. Os temas que dominam a política criminal - escolha racional
e as estruturas de controle, ir.timidações e desincentivos, a normali-
dade do crime, a responsabilização dos indivíduos, a temível
subclasse, o sistema fracassado e leniente - vieram a organizar as
políticas da pobreza também. As mesmas premissas e propósitos
que transformaram ajustiça criminal são evidentes nos programas
de "reforma previdenciária" que têm sido adotados pelos go-
417
vemos (e por partidos de oposição) em ambos os lados do Atlânti-
co, bem como na reconstruída política social por eles criada.
Começando nos anos 1980, os níveis de benefícios têm sido
constantemente reduzidos, mesmo em períodos nos quais o núme-
ro de beneficiários desempregados aumentou enormemente7 . A
provisão previdenciária foi condicionada ao trabalho e cercada de
·restrições disciplinares. "Escolha" e "responsabilidade" foram
enfatizadas, a "dependência" anatematizada, e o mercado veio a
ser visto como uma força providencial da natureza e não como um
conjunto de relações sociais que requerem regulação cuidadosa e
freios morais. A extinção de benefícios é cada vez mais usada como
fonna de empurrar os beneficiários para fora das folhas de paga-
mento - geralmente no sentido de empregos sub-remunerados, mas
sem dúvida também para a economia alternativa das drogas e do
crime. Desempregados são obrigados a demonstrar que estão "em-
penhados em procurar emprego" antes que possam postular bene-
fícios. A noção de que processos sociais e econômicos podem às
vezes criar dificuldades indesejadas deu lugar a uma postura mais
realista quanto aos êxitos e fracassos do mercado de trabalho, da
mesma forma que as criminologias deterministas foram substituí-
das pelo moralismo da escolha racional. A solidariedade para com a
vítima do rebaixamento social e econômico foi substituída por uma
visão mais reprovadora dos beneficiários, muitos dos quais reputa-
dos como membros de uma "subclasse" culturalmente diferente e
socialmente ameaçadora na qual se concentram todas as patologias
da vida pós-moderna. Ao mesmo tempo, o desemprego crônico que
assola certos grupos sociais passou a ser visto como um fato nor-
mal da vida econômica, situado além do alcance da política gover-
namental ou do controle regulatório. Na nova ordem econômica,
apenas a conduta empreendedora e a administração prudente de ris-
cos podem obviar a ameaça da insegurança: o Estado não age mais
como o último garantidor; a cidadania não mais garante segurança.
Como o sistema penal, a estrutura de benefícios do Estado de bem-
estar passou a ser vista como um gerador de problemas e patologi-
as, em vez de uma solução para e~tes. As propostas de reforma
giram em torno da redução de gastos e do recrudescimento de
desincenti vos. Outrossim, procuram cercar o pagamento dos bene-
fícios de controles:e restdções, além de se empenharem em "excluir

418
as pessoas da previdência". Menos esforços são destinados ao
enfrentamento das causas estruturais do desemprego, da pobreza e
da degradação da saúde da população. É impossível não perceber o
paralelo com o novo campo do controle do crime.
Durante os últimos vinte anos, o efeito combinado de políticas
"neoliberais" e "neoconservadoras" - de disciplina do mercado e
disciplina moral - tem sido o de criar uma situação na qual mais e
mais controles são impostos aos pobres, enquanto cada vez menos
controles afetam as liberdades de mercado para o resto da popula-
ção. Redução de impostos para os mais ricos, subsídios habitacionais
para as classes médias, a desregulamentação do sistema financeiro,
a privatização de grandes indústrias e um prolongado boom do mer-
cado - todos estes fatores asseguraram que os mais ricos desfru-
tassem de níveis de vida mais elevados, aumentaram as liberdades
de consumo e reduziram mais do que nunca os controles estatais da
vida econômica. O aprofundamento da diferença entre ricos e po-
bres decmTente de tais políticas, juntamente com a contenção dos
benefícios estatais, gerou a situação na qual aqueles que podem
arcar com os gastos reconem aos serviços privados de habitação,
saúde, educação e aposentadoria. Um próspero mercado de servi-
ços básicos cresceu em paralelo ao Estado de bem-estar, da mesma
maneira que o novo mercado de segurança privada se estabeleceu
ao lado do sistema penal. A conseqüência previsível foi que as clas-
ses médias passaram a ver o Estado de bem-estar cada vez menos
como um sistema que funcione em seu benefício. Em vez disto,
passou a ser visto como uma burocracia governamental onerosa e
ineficiente, cuja função é redistribuir os suados recursos da popula-
ção trabalhadora para uma massa de beneficiários ociosos e irres-
ponsáveis. Na previdência, como no crime, amplos setores das clas-
ses médias e trabalhadoras se vêem como vitimizadas pelos pobres
e por um sistema que reproduz o problema que deveria resolver8 . A
conjuntura mais punitiva e, no que tange à previdência, mais restritiva
que se consolidou nos últimos anos é a expressão direta deste novo
sentimento. Aquilo que Galbraith chamou de cultura do contenta-
mento paulatinamente deu lugar a uma política antiprevidenciária na
qual as liberdades de mercado e os interesses econômicos das clas-
ses média e alta ditam uma política mais restritiva e menos generosa
para com os pobres 9 . Nos prósperos anos 1990, aquelas políticas

419
lograram reduzir a quantidade de beneficiários da previdência e limi-
tar o crescimento do gasto social. Ainda estamos para ver como as
coisas funcionarão quando a economia hesitar e os níveis de de-
semprego mais uma vez começarem a subir.
A dialética de liberdade e controle
Os historiadores têm apontado um padrão recorrente de de-
senvolvimento social segundo o qual o caráter turbulento dos perí-
odos de mudança social subseqüentemente ensejam esforços no
sentido da consolidação e da reimposição da ordem e do contro-
le10. Pode-se dizer que a dialética entre liberdade e controle mar-
cou os últimos trinta anos. Em certos aspectos, a conta da libera-
ção social dos anos 1960 e das liberdades do mercado dos anos
1980 está sendo paga na moeda do controle social e da repressão
penal. Enquanto a dinâmica liberalizante da pós-modernidade
enfatizou a liberdade, a abertura, a mobilidade e a tolerância, a
cultura reacionária do fim do século prioriza o controle, a restri-
ção, o confinamento e a condenação. O aproveitamento continua-
do de liberdades pessoais baseadas no mercado depende dos aper-
tados controles de grupos excluídos, aos quais não se pode confiar
tais liberdades. Enquanto os criminosos e beneficiários forem re-
tratados como o "Outro" e como responsáveis por seu próprio in-
fortúnio, oferecem-se oportunidades para que as classes dominan-
tes imponham controles rígidos sem abrir mão de suas próprias
liberdades. Em contraste com um controle social solidário, no qual
todos abrem mão de certa parcela de liberdade pessoal para a finali-
dade de promover o bem-estar coletivo, o individualismo de merca-
do consiste na liberdade de alguns amparada na exclusão e no rígido
controle de outros.
Hoje em dia, quando impomos controle aos criminosos, nós
nos esforçamos para salientar sua suposta liberdade, sua respon-
sabilidade moral e sua capacidade de ter agido de forma diversa.
As criminologias e crenças judiciais que passaram a ser influentes
nos anos 1980 e 1990- criminologias da escolha e do controle-
são precisamente aquelas que ecoam as normais culturais e os im-
perativos sócio-políticos atuais. Nós vivemos num mundo social
construído sobre os imperativos da escolha individual e da liber-
dade pessoal. Posições criminológicas que menosprezam a livre es-
colha e destacam determinantes sociais agora carecem do tipo de
420
ressonância e apelo ideológico de que desfrutavam nos dias de gló-
ria do Estado de bem-estar. Aquelas con:entes que ressaltam a esco-
lha racional e a reatividade de criminosos perante prêmios e
desincentivos se harmonizam com o senso comum atual e com a
moral individualista da nossa cultura de consumo. Criminosos
devem ser reputados como livres, racionais, aptos a escolher, por-
que agora é assim que devemos nos conceber a nós mesmos. O
"crime é uma decisão e não uma doença" é a nova verdade absolu-
ta 11 . Dito de maneira mais exata, o crime é considerado um ato
livremente escolhido, uma decisão racional, salvo naqueles casos
em que realmente tenha sido determinado por alguma patologia.
Se os indivíduos devem ser considerados irresponsáveis, se forças
impessoais interferem sobre suas ações, então estas devem ser for-
ças que não agem sobre nós - causas com raízes biológicas, psico-
lógicas e nas diferenças culturais. Se devemos nos ver como as
causas indeterminadas de nossas próprias ações e escolhas, como
o individualismo moral da sociedade de mercado nos ensina a fa-
zer, então aqueles que não estejam no pleno controle de sua pró-
pria conduta devem ser diferenciados em algum sentido extra-so-
cial. Sua alteridade é uma condição de sua exculpação. O que falta
hoje em dia, o que é ativamente suprimido dos nossos compromissos
culturais é o abandonado meio-termo entre liberdade plena e compulsão
inesistível - a velha noção previdenciarista de que as decisões e esco-
lhas individuais são elas próprias socialmente estruturadas, como tam-
bém as capacidades e oportunidades de realizá-las.
Nas décadas intermediárias do século passado, o sistema pe-
nal fazia parte de um projeto solidarista mais amplo. Sua resposta
programática ao crime era parte da resposta programática do Esta-
do de bem-estar à pobreza e à privação. Ajustiça criminal era in-
formada pelas políticas da social-democracia e seus ideais eram os
ideais reintegradores da sociedade inclusiva do Estado de bem-
estar. E se as práticas não alcançassem aquele desiderato, como
normalmente não alcançavam mesmo, ao menos elas podiam ser
criticadas com base naqueles ideais e reformadas de maneira que
suprissem a lacuna. Hoje em dia, as instituições do Estado de bem-
estar ainda desempenham um papel assistencial na vida econômi-
ca e social, assim como as instituições penais-previdenciárias ainda
sustentam a justiça criminal. Mas aquele projeto solidário não mais

421
domina a retórica política ou a lógica do processo decisório. Os
elevados ideais de solidariedade foram eclipsados pelos imperativos
mais básicos de segurança, economia e controle. O controle do
crime e a justiça criminal foram desconectados do terreno mais
amplo da justiça social e da reconstrução social. A função social de
ambos, agora, é aquela mais reacionária e menos ambiciosa de
reimpor o controle àqueles que estão fora do mundo da liberdade de
consumo. Se o bem-estar penal canalizava o otimismo e o idealismo do
modernismo do século XX, as políticas criminais atuais expressam
uma mensagem mais sinistra e menos tolerante.
As raízes sociais do controle do crime
A explicação para alguns dos mais intrigantes fatos do contro-
le do crime contemporâneo pode ser encontrada se descobrirmos
suas conexões com os tipos de organizações sociais e culturas po-
líticas que hoje dominam a Grã-Bretanha e os Estados Unidos.
Por que a prisão deixou de ser uma instituição desacreditada,
condenada à abolição, e se tomou um pilar cada vez mais indis-
pensável da vida social pós-moderna? Não porque fosse a espinha
dorsal de qualquer programa penal que preconizasse o encarcera-
mento em massa. Não havia um programa deste tipo. O encarcera-
mento emergiu em sua forma renovada e reinventada porque é
capaz de desempenhar um papel essencial no funcionamento das
sociedades pós-modernas, neoliberais: a de instrumento "civiliza-
do" e "constitucional" de segregação das populações problemáti-
cas criadas pela economia e pelos arranjos sociais atuais. A prisão
está situada precisamente na junção de duas das mais importantes
dinâmicas sociais e penais do nosso tempo: o risco e a retribui-
ção12 . Com a lógica absolutista de uma sanção penal, ela pune e
protege, condena e controla. O encarceramento serve, simultanea-
mente, como uma satisfação expressiva de sentimentos 'retributivos
e como mecanismo instrumental para a administração de riscos e
para o confinamento do perigo. Os setores populacionais efetiva-
mente excluídos dos mundos do trabalho, da previdência e da famí-
lia- tipicamente jovens do sexo masculino, pertencentes a minorias
urbanas - estão cada vez mais atrás das grades, tendo sua exclusão
econômica e social efetivamente escamoteada por seu status criminal.
A prisão reinventada da atualidade é uma solução pronta e acabada para
um novo problema de exclusão social e econômica.
422
Por que os governos adotam, tão rapidamente, soluções pe-
nais para lidar com o comportamento de populações marginaliza-
das, em vez de cuidarem das fontes sociais e econômicas de sua
marginalização? Porque soluções penais são imediatas, fáceis de
serem implementadas e podem alegar que "funcionam" como ins-
trumento punitivo ainda que fracassem em todos os outros objeti-
vos. Porque elas possuem poucos oponentes políticos e relativo
baixo custo, assim como se harmonizam com o senso comum no
que concerne às fontes da desordem social e à adequada atribuição
de culpa. Porque elas se amparam em sistemas de regulação exis-
tentes, deixando intocados os arranjos sociais e econômicos fun-
damentais. Sobretudo, porque elas concentram o controle e a con-
denação nos grupos excluídos, deixando relativamente livre de
regulação e censura o funcionamento dos mercados, das empresas
e das classes sociais mais favorecidas.
Por que fizemos tantos investimentos em segurança privada e
criamos mercados tão prósperos em matéria de comercialização do
controle? Porque o velho Estado soberano pode prover punição mas
não segurança, e isto se tomou visível para os atores econômicos
que têm interesses reais no processo. Porque setores prósperos da
população se acostumaram a proteger a si próprios e a seu patrimô-
nio e estão cada vez mais dispostos a gastar dinheiro na busca por
segurança pessoal. Porque estes mesmos grupos estão bem cientes
das divisões sociais e raciais que caracterizam a sociedade atual
e se organizam em propriedades fortificadas para o fim de pre-
venir a ameaça de estranhos. E porque, nas sociedades de alta
criminalidade, os problemas relativos à segurança pessoal, pre-
venção do crime e provisão penal criaram oportunidades comer-
ciais vigorosamente exploradas pelos interesses privados e pelas
forças de mercado que o neoliberalismo tão eficazmente libertou.
Por que a ênfase agora se direciona à prevenção situacional
do crime e não mais aos programas de reforma social que domina-
vam o campo? Porque, ao contrário dos esforços anteriores no
sentido de construir programas de prevenção social, criação de
empregos e de ressocialização comunitária, os novos métodos
situacionais não parecem beneficiar os pobres indesejáveis, não
parecem sugerir uma crítica social ou perturbar as liberdades do
mercado. Sua implementação pode ocorrer fora de uma política de
423
solidariedade e de sacrifício coletivo e na ausência do apoio de
programas previdenciários de redistribuição de riqueza. Sua
atratividade crescente reside no fato de que podem ser distribuí-
dos no mercado como bens personalizados, em vez de serem pro-
vidos pelas agências estatais. Como o policiamento privado e a
segurança comercial, estes métodos se encaixam nas dinâmicas
da sociedade de mercado, adaptando-se à demanda específica,
inserindo-se nos circuitos da oferta lucrativa e do consumo priva-
do.
Por que a imagem da vítima sofredora agora é tão central para
a questão do crime e para as nossas respostas a ela? Porque, na
nova moralidade do individualismo de mercado, as instituições pú-
blicas carecem de força e a lei estatal se ressente de autoridade
independente. Qualquer que seja a reciprocidade e a solidariedade
existentes, elas são alcançadas através da direta identificação mú-
tua dos indivíduos e não das instituições políticas ou públicas às
quais cada um pertence. Num mundo em que sentimentos morais
estão cada vez mais privatizados junto com todo o resto, a revolta
moral coletiva provém mais facilmente de uma base individuali-
zada do que pública. A fé decrescente nas instituições públicas
agora significa que apenas a visão de "indivíduos sofredores como
nós" é suficiente para disparar as apaixonadas respostas tão neces-
s~írias para prover a energia emocional por políticas punitivas e
pela guerra contra o crime. Na cultura individualista do capitalis-
mo de consumo, a lei depende cada vez mais da identificação de
cariz individual. Ajustiça, como os outros serviços públicos das
sociedades pós-bem-estar, gradualmente se submete à lógica da
sociedade de consumo, gradualmente se adapta à demanda indivi-
dualizada. A nova importância atribuída à figura da "vítima" é cri-
ada não pela realidade da vitimização - esta sempre foi abundante
- mas pelo novo significado da identificação visceral, num contexto
em que existem poucas fontes de reciprocidade 13 •
Finalmente, por que as políticas criminais contemporâneas se
assemelham tanto às políticas antiprevidenciárias que surgiram exa-
tamente no mesmo período? Porque elas compartilham as mesmas
premissas e angústias, trabalham com os mesmos estereótipos e
· utilizam as mesmas receitas para a identificação de riscos e atribui-
ção de culpas. A exemplo da política social e do sistema de benefícios
424
previdenciários, o controle do crime funciona como um elemento num
sistema mais amplo de regulação e ideologia, que busca forjar uma
nova ordem social nas condições da pós-modernidade.
Este futuro não é inevitável
Tenho argumentado que as estratégias atuais de controle do
crime guardam uma certa congruência, um certo "ajuste" com as
estruturas da sociedade pós-moderna. Elas representam um tipo
particular de resposta, uma adaptação particular, aos problemas
específicos de ordem social produzidos pela organização social
pós-moderna 14 . Mas tais políticas não são inevitáveis. A superfí-
cie social sobre a qual as instituições de controle do crime são
construídas traz certos problemas, mas não dita a forma com que
tais problemas serão percebidos e tratados pelos atores sociais e
autoridades. Estas respostas são cunhadas por instituições políti-
cas e compromissos culturais. Elas são o produto de um determi-
nado estilo de políticas, de uma determinada conjuntura de rela-
ções de classe, de uma trajetória histórica própria. Elas são o fruto
(parcialmente previsto, parcialmente imprevisto) de escolhas cul-
turais e políticas - escolhas que poderiam ter sido diferentes e que
ainda podem ser repensadas e revertidas 15 .
A explicação geral que forneço aqui necessariamente envol-
ve dois tipos de relatos: um relato estrutural, que indica as carac-
terísticas gerais de um certo modo de organização social, e um
relato conjuntural, que identifica as escolhas e contingências que
ditaram a forma com que grupos sociais particulares se adaptaram
àquelas estruturas e com que resolveram as conseqüências sociais
destas. Narrando estes desenvolvimentos históricos, tentei distin-
guir os diferentes níveis de análise e diferenciar as características
estruturais das adaptações políticas ou culturais. Busquei defen-
der que o reconfigurado campo do controle do crime é estrutural-
mente relacionado às condições da pós-mdernidade, enfatizando, ao
mesmo tempo, que "estruturalmente relacionado" não é o mesmo
que "estritamente determinado". No mundo real, porém, não existe
separação clara entre "estrutura social" e "resposta política": as duas
andam juntas. Apenas análises comparativas nos permitem mostrar
como as mesmas coordenadas estruturais podem suportar arranjos
políticos e culturais bem distintos. Este estudo optou por considerar
a Grã-Bretanha e os EUA conjuntamente, na tentativa de apontar as
425
similitudes estruturais que marcam suas trajetórias sociais, políticas
e penalógicas. Mas a Grã-Bretanha não são os Estados Unidos. Seu
regime penal não é tão repressivo, suas divisões sociais e raciais não
são tão profundas, sua história recente não tem sido tão explosiva.
Tampouco os partidos políticos concorrentes são os mesmos em
todos os aspectos - Clinton não é Bush e Blair não é Thatcher - e as
diferenças que singularizam suas políticas oficiais tiveram conseqü-
ências reais para a vida das pessoas. Minha hipótese não é que inexistem
diferenças importantes, mas sim que existem atualmente importantes
similitudes estruturais nas mentalidades e estratégias organizacionais
que informam a prática naquelas duas sociedades pós-modernas, inde-
pendentemente do partido que esteja no poder. Um trabalho mais ex-
tensivo de comparação internacional poderia ter demonstrado como
outras sociedades, tais como o Canadá, a Noruega, a Holanda ou o
Japão, têm experimentado as rupturas sociais e econômicas da pós-mo-
dernidade sem recorrer às mesmas estratégias e níveis de controle 16 .
Mesmo que o presente estudo não possa demonstrar isto de
forma conclusiva, suas análises sugerem pontos nos quais escolhas
diferentes poderiam ter sido feitas e políticas diferentes poderiam ter
sido adotadas, causando resultados diferentes com maior probabilida-
de 17. Como vimos, os atores políticos na Grã-Bretanha e nos Esta-
dos Unidos têm reiteradamente escolhido responder à generalizada
preocupação pública com o crime e a segurança através da formula-
ção de políticas que punem e excluem. Eles assumiram a postura de
um Estado soberano, que aplica seu monopólio da força para impor a
ordem e punir os violadores da lei. Como argumentei, esta tentativa de
criar ordem social por intermédio de instrumentos penais é profunda-
mente problemática, particularmente nas democracias pós-moder-
nas. Em vez de trabalhar para construir as complexas instituições de
govemança e integração necessárias para regular e unir a ordem soci-
al e econômica atual, tais políticas criminais sedimentaram uma di vi-
são entre aqueles gmpos que podem viver em liberdade desregulamentada
e aqueles que devem ser pesadamente controlados. Em vez de rever-
ter os processos de marginalização econômica e de exclusão social,
que são endêmicos na presente economia globalizada, a nova ênfase
na punição e no policiamento reproduziu e reforçou aqueles mesmos
processos. Em vez de tratar o difícil problema da solidariedade social
num mundo diversificado e individualizado, nossos líderes políticos

426
preferiram lançar mão das certezas de uma solução hobbesiana mais
simplória, mais coercitiva.
Entretanto, existem outras possibilidades para o controle do cri-
me e para a cunhagem de condutas ordeiras, como vimos na análise
das respostas de adaptação desenvolvidas por agências administrati-
vas. Esforços no sentido de compartilhar a responsabilidade pelo con-
trole do crime, de inserir o controle social no tecido da vida cotidiana,
de reduzir os efeitos criminogênicos das transações econômicas, de
proteger vítimas reconentes - estas são possibilidades que já existem
e que poderiam ser mais enfatizadas na política oficial. Comparadas
com soluções penais, estas outras possibilidades são mais bem adap-
tadas aos arranjos sociais do mundo pós-moderno, mais realistas quanto
aos limites do Estado soberano e do seu sistema penal e menos susce-
tíveis a reforçar as divisões sociais existentes.
Vimos que o público norte-americano e britânico está intensa-
mente atento à questão do crime, razão pela qual aqueles atores
políticos se sentem compelidos a responder diretam~nte a tais pre-
ocupações. Estar fora de sintonia com o sentimento público neste
tópico significa protagonizar manchetes negativas e desastres po-
líticos. Mas o envolvimento emocional que muitas pessoas agora
têm com este assunto nem sempre resulta na expressão de senti-
mentos punitivos. O público demanda que algo deve ser feito com
relação ao crime, que seu patrimônio deve ser protegido, que cri-
minosos devem ser adequadamente punidos e controlados e que o
sistema opere de forma confiável e eficiente. Mas estas preocupa-
ções recorrentes podem ser atendidas de muitas maneiras. As ati-
tudes públicas relacionadas ao crime e ao controle são profunda-
mente ambivalentes 18 . Elas deixam espaço para outras soluções. Os
políticos têm preferido trilhar o caminho mais fácil, optando por
segregação e punição em vez de incutir controles sociais, de regular
a vida econômica e de desenvolver políticas que propiciem a inclu-
são e integração sociais: Se as sociedades pós-modernas devem
acalentar os ideais da democracia, direitos iguais para todos e de um
mínimo de segurança econômica para toda a população, elas preci-
sarão assegurar que a regulação moral e o controle social sejam
estendidos para os processos econômicos e de mercado mais fun-
damentais e não mantidos apenas no âmbito de criminosos e
beneficiários da previdência.
427
Não sã'J apenas os políticos que precisam rever suas atitudes.
Como vimos, as escolhas cumulativas dos indivíduos e das unida-
des familiares também fazem diferença. O enorme mercado de
segurança privada é uma conseqüência destas escolhas. Bem as-
sim, o crescente abismo entre aqueles que têm condição financeira
de se proteger e os que não têm tal condição. Precisamente porque
as escolhas que parecem racionais do ponto de vista individual
podem produzir resultados irracionais quando repetidas em larga
escala, o mercado de segurança também deve ser sujeitado à
regulação coletiva e às restrições morais. As autoridades governa-
mentais atuais até podem ser obrigadas a operar em paralelo a este
setor privado, e às vezes em combinação com ele, mas não são
obrigadas a permitir que as desregulamentadas conseqüências te-
nham incidência indiscriminada.
A nova jaula de ferro
No início do século XXI, os EUA experimentam um boom eco-
nôm~..:o sem precedentes, com baixas taxas de desemprego, crescen-
tes níveis de vida, superávit econômico e orçamentos estatais saudá-
veis. A Grã-Bretanha também vive unia recuperação econômica con-
sistente. As taxas de criminalidade caíram constantemente em ambos
os países durante os anos 1990, com os EUA registrando decrésci-
mos anuais desde 1992 até os dias atuais, e a Inglaterra e o País de
Gales testemunhando cinco anos consecutivos de redução até a alta
registrada no final de 1999 19 . A despeito destas tendências positivas,
há muitos sinais no sentido de que a opção por uma justiça punitiva e
pelo incremento da segurança continua inabalada20 . À medida que o
mercado de segurança privada se expande, a elaboração de legislação
penal se acelera e o complexo do crime se reproduz, nos deparamos
com a possibilidade real de sermos trancados na nova "jaula de fer-
ro". Há muito tempo, Max Weber descreveu como a racionalidade
capitalista superava a vocação espiritual que originalmente deu-lhe
ímpeto e significado. A nova cultura do controle do crime, nascida
dos medos e angústias do.final do século XX, pode perfeitamente
persistir por muito tempo, mesmo depois que suas causas tenham
deixado de existir. Afinal de contas, tais arranjos alavancam investi-
mentos institucionais e produzem benefícios específicos, particular-
mente para os grupos sociais que estão mais distantes deles. Tais
arranjos propiciam uma forma de alocar os custos do crime - injus-
428
tos, desiguais, mas não obstante prováveis. Soluções penais podem
ser onerosas, mas o último quarto de século nos mostrou que seus
custos financeiros podem ser suportados mesmo que os contribuin-
tes estejam notoriamente relutantes em arcar com os custos de outros
tipos de investimentos públicos.
Os novos arranjos do controle do crime envolvem, contudo,
certos custos sociais que são, a longo prazo, menos facilmente
acomodáveis. A intensificação das divisões sociais e raciais; ore-
forço de processos criminogênicos; a alienação de muitos grupos
sociais; o descrédito da autoridade legal; a redução da tolerância
civil; a tendência ao autoritarismo - estes são resultados suscetí-
veis de serem produzidos pela confiança em mecanismos penais e
na manutenção da ordem21 . O encarceramento em massa e a forti-
ficação de propriedades privadas podem ser soluções palpáveis
para o problema da ordem social, mas são profundamente
desinteressantes. Uma numerosa população de pobres marginali-
zados e criminalizados pode até carecer de poder político e ser
incapaz de atrair muita simpatia pública, mas, em termos agrega-
dos, tem a capacidade negativa de tomar a vida difícil para todo o
resto. Não é acidente que as imagens distópicas do filme "Blade
Runner - O Caçador de Andróides" tenham ressonância cultural
tão poderosa22 . Comunidades fechadas e a aquisição de seguran-
ça privada talvez sejam opções para os ricos, mas não podem ofe-
recer uma solução social geral para os problemas de crime e vio-
lência - especialmente porque a proteção privada total está além da
capacidade da maioria das famílias de classe média, que continua-
rão a depender da polícia e dos instrumentos estatais 23 . O encarce-
ramento em massa pode continuar a ser atraente para Estados de
"lei e ordem", uma fonte de empregos muito oportuna para comuni-
dades rurais e de lucros para companhias correcionais privadas.
Mas a longo prazo é provável que seu conflito com os ideais da
democracia liberal se torne cada vez mais aparente, notadamente
onde a exclusão penal (e a privação que ela proporciona) esteja tão
concentrada em minorias raciais. Um governo que rotineiramente
sustenta a ordem social através da exclusão maciça começa a se
parecer como um Estado-apartheid.
Estes custos sociais e políticos dificultam a permanência inde-
finida de tais políticas. A recente redução nas taxas de criminalidade
429
tornou a questão do controle do crime ligeiramente menos urgente,
um pouco menos proeminente no discurso político. Os custos do
encarceramento maciço estão começando a ficar visíveis. Nos EUA,
está em curso um debate público motivado por evidências de um
percentual expressivo de condenações erradas dos casos envolven-
do pena de morte; pelo menos um governador decretou moratória
na execução da pena de morte até que fosse concluída a investiga-
ção sobre as anomalias do sistema. Algumas das figuras mais con-
servadoras na política criminal estão começando a recuar do projeto
de encarceramento maciço continuado24 . A política está começan-
do a deixar de ser a solução para se transformar no problema. Se
estas mudanças continuarem, há um prognóstico de que as tendên-
cias atuais sejam sofreadas ou talvez até revertidas.
No entanto, a lição mais fundamental do século XX não é po-
lítica, mas estrutural. O problema do controle do crime na pós-
modernidade demonstrou eloqüentemente os limites do Estado so-
berano. As negações e gestos expressivos que marcaram a política
criminal recente não podem disfarçar o fato de que o Estado é
seriamente limitado em sua capacidade de prover segurança para
seus cidadãos, bem como de engendrar níveis adequados de con-
trole social. A lição trazida pela experiência do século XX consis-
te em que o Estado não pode mais esperar governar através de
comandos soberanos impostos aos súditos obedientes; isto é ver-
dadeiro tanto no que se refere ao provimento de benefícios
previdenciários quanto no que concerne à manutenção da prosperi-
dade econômica ou de "lei e ordem". No complexo e diversificado
mundo da pós-modernidade, o governo efetivo e legítimo deve de-
volver poderes e compartilhar a tarefa de controle social com orga-
nizações locais e comunidades. Ele não pode mais confiar no "saber
do Estado", em burocráticas agências estatais inertes e nas soluções
universais impostas de cima. Teóricos sociais e políticos há muito
vêm argumentando que o governo efetivo em sociedades comple-
xas não pode se esteiar em comando e coerção centralizados 25 . Em
lugar disto, deve incrementar as capacidades governamentais com
as organizações e associações da sociedade civil, com o conheci-
mento e os poderes locais que estas contêm. Nós estamos desco-
brindo - ainda em tempo - que isto também é verdadeiro para o
controle do crime.

430
Noúts

1
Sobre as consequencias culturais do uso norte-americano do
encarceramento em massa e da pena de morte, v. n Garland (org.), Mass
Imprisonment (Londres: Sage, 2001), e A. Sarat (org.), The Killing State
(Nova Iorque: Oxford University Press, 1998).
2
P. Hirst, "Statism, Pluralism and Social Control", e Z. Bauman, "The
Social Uses of Law and Order", ambos in D. Garland e J. R. Sparks
(orgs.), Criminology and Social Theory (Oxford: Oxford University Press,
2000).
3
Para um amplo ensaio sobre os temas da inclusão e exclusão, v. J.
Young, The Exclusive Society (Londres: Sage, 1999). (N.T.: A obra de
Joclc Young conta com versão em língua portuguesa, que foi publicada
na coleção Pensamento Criminológico, patrocinada pelo Instituto Carioca
de Criminologia: v. J. Young, A sociedade excludente, trad. Renato Aguiar,
Rio de Janeiro, Revan-ICC, 2002.)
4
"Do que sabemos a respeito da opinião da maioria dos americanos, eles
desejam os benefícios da ortodoxia em termos de ordem social e comunitária,
mas não querem abrir mão de qualquer parcela significativa de liberdade
pessoal para alcançar aquele fim. Deploram o desaparecimento de valores
familiares, mas se opõem à proscrição do divórcio sem causa; querem lojas
familiares e simpáticas, mas flertam com preços baixos e com a variedade",
E Fukuyama, The Great Disruption (Nova Iorque: Simon & Schuster,
1999), p. 90. Fukuyama trabalha com dados empíricos constantes de A
Wolfe, One Nation, After Ali (Nova Iorque: Viking, 1998). Charles
Leadbetter chega à mesma conclusão no que concerne à Grã-Bretanha
contemporânea: "nós queremos urna sociedade livre, plural, aberta, mas
também queremos uma sociedade que seja ordenada pelas tradicionais
virtudes da civilidade, cortesia e responsabilidade", C. Leadbetter, The
Self-Policing Society (Londres: Demos, 1996).
5
Veja-se H. Dean e P. Taylor-Gooby, Dependency Culture (Hemel
Hempstead: Hru-vester Wheatsheaf, 1992); M. B. Katz, The Undeserving
Poor: From the War on Welfare to the War on the Poor (Nova Iorque:
Pantheon, 1989); H. J. Gans, The War Against the Poor: The Underclass
and Antipoverty Policy (Nova Iorque: Basic Books, 1995).
6
Veja-se L. Morris, Dangerous Classes: The Underclass and Social
Citizenship (Londres: Routledge, 1994); R. McDonald (org.), Youth, 'the
Underclass' and Social Exclusion (Londres: Routledge, 1997); C. Jencks e
P. E. Peterson (orgs.), The Urban Underclass (Washington DC: The
Brookings Institute, 1991).
431
7
Veja-se H. Dean e P. Taylor-Gooby, Dependency Culture (Hemel
Hempstead: Harvester Wheatsheaf, 1992) para um relato de como a política
social britânica nos anos 1980 instituiu ''um corte nos benefícios, a restrição
das hipóteses de inclusão nos programas, um regime de vigilância mais severo
e um aumento real no custo de vida dos pobres em idade de trabalho" (p.
24). Sobre a política norte-americana, v. S. Danziger e P. Gottschalk, America
Unequal (Cambridge-MA: Harvard University Press, 1995): "em termos
simples, ao longo dos anos 1980, o crescimento econômico pouco ajudou
os pobres e os trabalhadores de baixa renda; as políticas governamentais
não foram reorientadas para combater( ...) mudanças negativas no mercado
de trabalho. Os programas sociais retiraram menos famfüas da pobreza,
especialmente aquelas com filhos, nos anos 1980 do que nos anos 1970, por
duas razões. Primeiro, o percentual de pobres empregados beneficiados pelos
programas se reduziu depois dos cortes orçamentários de Reagan. Segundo,
o valor real dos benefícios continuou a cair, ao passo que o valor nominal
em muitos programas não conseguiu manter o ritmo da modesta inflação da
década de 1980" (p. 29).
8
M. Gilens, Why Americans Hate Welfare: Race, Media and the Politics of
Antipoverty Policy (Chicago: University of Chicago Press, 1999).
9
J. K. Galbraith, The Culture of Contentment (Londres: Sinclair Stevenson,
1992). Em seu discurso de 29 de setembro de 1998, o primeiro-ministro
Tony Blair externou a visão neotrabalhista do Estado de bem-estar: "desafio
qualquer um de nós quanto ao Estado de bem-estar. Nós estamos
gastando mais e recebendo menos de volta, não estamos conseguindo
ajudar aqueles que precisam e, às vezes, ajudamos os que não precisam.
Bilhões desperdiçados a cada ano através da fraude e do abuso".
w V., por exemplo, T. Raab, The Struggle for Stability in Early Modem
Europe (Nova Iorque: Oxford University Press, 1975); M. Wiener,
Reconstructing the Criminal (Nova Iorque: Cambridge University Press,
1990).
11
O primeiro-ministro John Major usou esta frase em seu discurso de 9 de
setembro de 1994, proferido na Church House de Londres.
12
Tentativas recentes na Grã-Bretanha e nos EUA de "reinventar" o
livramento condicional e as penas comunitárias buscam emular esta
combinação, até o momento com pouco êxito. As virtudes econômicas de
"penas comunitárias", comparadas com a prisão, indicam que é provável
que tais tentativas prossigam, provavelmente concentrando-se nas
possibilidades penais do monitoramento eletrônico e de tecnologias similares.
13
A noção do controle do crime e da justiça criminal como bens que podem
ser comprados e vendidos por consumidores individuais é claramente

432
descrita num panfleto do Institute of Economic Affairs: "o verdadeiro
problema é que os 'produtores' no sistema penal não respondem
diretamente aos seus clientes (as vítimas). Conseqüentemente, eles podem
buscar seus próprios interesses, que podem conflitar com os das vítimas.
A solução virá quando o consumidor puder escolher comprar proteção
no mercado", D. Pyle, Cutting the Costs of Crime: The Economics of
Crime and Criminal Justice (Londres: IEA, 1995), p. 6L Sobre amoralidade
da justiça criminal nas sociedades pós-modernas, v. H. J. Boutellier, Crime
and Morality - The Significance of Criminal Justice in Post-modern
Culture (Dordrecht, Holanda: Kluwer Academic, 2000). O outro lado da
dinâmica da moral individualizada é que os criminosos que não
reconhecemos como sendo "exatamente iguais a nós" são mais facilmente
condenados a penas severas.
14
Para uma crônica dos desdobramentos recentes no controle do crime e
na justiça criminal na Austrália, muitos dos quais seguem o mesmo
parâmetro que descrevi quanto à realidade dos EUA e da Grã-Bretanha, v.
R. Hogg e D. Brown, Rethinking Law and Order (Annandale, NSW:
Pluto Press, 1998).
15
Como Wesley Skogan aduz em sua discussão sobre o crime e a
desordem: "deve estar claro que muitos fatores que parecem engendrar a
desordem ou que a contenham são moldados por decisões conscientes
das pessoas no poder. Estas decisões refletem os interesses de bancos,
construtoras, empregadores, agências governamentais e outros que
buscam defender seus interesses macro-econômicos e políticos. Nenhuma
dessas decisões é irreversível, embora talvez sejam motivooas por forças
macro-econômicas e demográficas maiores", W. G. Skogan, Disorder and
Decline (Chicago: University of Chicago Press, 1990), p. 179. Para uma
instrutiva discussão acerca da importância do espaço e um estudo de
caso detalhado sobre como forças sociais de larga escala são
experimentadas (e tratadas) num local específico, v. E. Girling et al., Crime
and Social Change in Middle England: Questions of Order in an English
Town (Londres: Routledge, 2000).
16
Veja-se S. Snacken et al., "Changing J'rison Population in Westem
countries: Fate or Policy?", European Journal of Crime, Criminal Law
and Criminal Justice, voL 3, 11º 1 (1995), pp. 18-53; J. Muncie e J. R. Sparks
(orgs.), lmprisonment: European Perspectives (Hemel Hempstead: Harvester
Wheatsheaf, 1991); M. Mauer, Race to lncarcerate (Nova Iorque: Toe New
Press, 1999), cap. 2.
17
Nos EUA, pesquisas sugerem que os Estados mais punitivos, medidos
com base nas taxas de encarceramento, também são aqueles com as
políticas previdenciárias menos generosas e com populações rncialmente
433
minoritárias mais numerosas. Veja-se K. Beckett e B. Western, "Governing
Social Marginality: Welfare, Incarceration and the Transformation of
State Policy", in D. Garland (org.), Mass Imprisonment (Londres: Sage,
no prelo). Contrastes similares foram traçados, na Grã-Bretanha, entre
Escócia, com sua tradição previdenciária mais arraigada e suas políticas
criminais menos punitivas, e Inglaterra e País de Gales. Veja-se L. McAra,
"The Politícs of Penality: An Overview of the Development of Penal
Policy in Scotlancf', in P. Duff e N. Hutton (orgs.), Criminal Justice in
Scotland (Aldershot: Ashgate,.1999), pp. 355-80; e D. J. Smith, "Less
Crime Without More Punishment", Edinburgh Law Review (1999). Os
contornos do controle do crime podem até ser socialmente definidos,
mas a determinaçâo da política é, neste fim, uma questão de escolha
política feita no seio de restrições sociais e culturais.
18
Para uma discussão sumária sobre a opinião pública e sua ambivalência,
v. M. Tonry, "Rethínkíng Unthínkable Puníshment Policies in America",
UCLA Law Review (1999), vol. 46, nº 6, pp. 1.751-91.
19
Para dados norte-americanos, v. K. Maguire e A. Pastore (orgs.),
Sourcebook of Criminal Justice Statistics, 1998. Quanto à Inglaterra e País
de Gales, v. Home Office, Digest 4: Information on the Criminal Justice
System, org. por G. C. Barclay e C. Travers (Londres: Home Office, 1999),
e D. Povey e J. Cotton, Recorded Crime Statistics: England and Wales,
October 1998 to September 1999 (Londres: Home Office, 18 de janeiro de
2000): "no período de doze meses encerrado em setembro de 1999, a polícia
registrou na Inglaterra e no País de Gales um total de 5,2 milhões de crimes.
A tendência de crimes registrados indica uma alta de 2,2%, se comparada
com os doze meses anteriores. O aumento se dá depois de cinco anos
consecutivos de queda" (p. 3).
20
Estabelecendo os temas para a campanha de reeleição no sufrág~o de
1996, um proeminente conselheiro político do presidente Clinton listou-o[
da seguinte forma: "Venho aqui tomar a América melhor. E, segundo os
medidores que usamos, a América está melhor. Há mais pessoas empregadas
do que quando assumi. Há mais pessoas presas do que quando assumi",
James Carville, The New Yorker, 3 de abril de 1995. Enquanto Tony Blair
alega ser "duro com o crime, duro com as causas do crime", o objetivo de
Clinton é ser "duro e ágil". "Crimes violentos e o medo que eles provocam
estão mutilando nossa sociedade, limitando a liberdade pessoal e
desgastando os laços que nos unem. O crime nos cobra antes que o
Congresso nos dê alguma chance de fazer algo - ser duros e ágeis",
presidente Clinton, State of the Union Address, 26 de janeiro de 1994.
21
Discutindo a influência da pena de morte na cultura política norte-
americana, Austin Sarat observa que "a pena capital é uma ferramenta
434
dos poderosos contra os grnpos dominados. Como tal, ela aparece como
a ativação da finalidade do poder estatal; finalidade bem discrepante com
o espírito e a substância da democracia. A pena de morte sempre nos
invoca a certeza e, assiru fazendo, nos convida a esquecer os limites da
nossa razão", A. Sarat (org.), The Killing State (Nova Iorque: Oxford
University Press, 1999), p. 11.
22 O filme "Blade Runner", de Ridley Scott, foi originalmente exibido em
1982. Veja-se M. Davis, "Beyond Blade Runner: Urban Control - the
Ecology of Fear", Open Magazine Pamphlet Series# 23 (Open Magazine:
Open Media, 1992). Eleito em 1997, o primeiro-ministro Tony Blair falou
publicamente sobre a necessidade de evitar um cenário "Blade Runner" que
estava se desenvolvendo na Grã-Bretanha.
23
Veja-se P. Hirst, "Statism, Pluralism and Social ControI", p. 130.
24
Veja-se Dilulio Jr., "Two Million Prisoners are Enough", The Wall Street
Joumal, 12 de março de 1999. Em janeiro de 2000, o governador do Estado
de Illinois George H. Ryan anunciou a moratória do uso da pena de morte
em seu Estado, enquanto não fosse concluída investigação sobre a razão de
mais condenados à pena de morte haverem sido exonerados do que
efetivamente executados, desde que a pena capital fora reinstituída em 1977.
(N.T.: a tradução em língua portuguesa do discurso no qual o governador
Ryan fez tal anúncio foi publicada na revista Discursos Sediciosos - crime,
direito e sociedade, trad. André Nascimento, Rio de Janeiro, 2004, Revan-
ICC, ano 9, nº 14, pp. 233-248). Para detalhes, v. J. S. Liebman et al., A
Broken System: Error Rates in Capital Cases, 1973-1995 (Nova Iorque:
The Justice Project, 2000). Uma pesquisa de opinião realizada pouco
tempo depois disto revelou que o apoio à pena de morte havia diminuído
de 80% em 1994 para 66% - o menor nível em dezenove a>1os. Veja-se B.
Shapiro, "Capital Offense", The New York Sunday Times, 26 de março de
2000. O Sourcebook of Criminal Justice Statistics 1998 relata que a
preocupação pública quanto ao crime e à violência decresceu ligeiramente
após o ápice registrado em 1994 (Tabela 2.1).
25
J. C. Scott, Seeing Like a State (Yale: Yale University Press, 1998); P.
Hirst, Associative Denwcracy (Cambridge: Polity, 1992); P. Selznick, The
Moral Commonwealth (Berkeley-CA: University ofCaliforniaPress, 1992);
J. Kooiman, Modem Govemance: New Social-Govemmental lnteractions
(Londres: Sage, 1993).

435
Apêndice

As quatro tabelas que se seguem buscam ilustrar, sumariamen-


te, as tendências da criminalidade e do encarceramento, ao longo dos
anos, nos EUA, na Inglaterra e no País de Gales. Todavia, os dados
norte-americanos e britânicos não são estritamente comparáveis. Os
"índices de crimes" norte-americanos incluem homicídio, roubo, furto,
estupro, lesão corporal grave, invasão a domicílio, roubo de veículos
e incêndio. A categoria britânica de "crimes registráveis" é muito mais
abrangente, incluindo todos os delitos dtados e outros, menos gra-
ves, tais como lesão corporal simples e dano. Da mesma forma, a
população prisional dos EUA inclui apenas os internos de prisões fe-
derais e estaduais, excluindo os detentos de cadeias locais cumprindo
penas privativas de liberdade de um ano ou menos. Os dados da po-
pulação carcerária da Inglaterra e do País de Gales abarcam todos os
criminosos encarcerados, sem distinções.
Gráfico 1
Crimes registrados pela polícia dos E.U.A., por 100.000 habitantes, 1950-1998
7000

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Gráfico 4
População carcerária da Inglaterra e do País de Gales, por 100.000 habitantes,
1926-1998
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438
AO LEITOR
Se, numa livraria, lhe disserem que um título publicado
pela Revan está esgotado, ou que a Revan não
faz consignação, ou lhe derem qualquer justificativa
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