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PARTE II - ANAMNESE DA

COTIDIANIDADE DAS PRÁTICAS


JURÍDICAS
1. Azdak, humpty dumpty e os embargos
declaratórios
Bertolt Brecht, entre tantas peças, escreveu uma que se reveste de especial
relevância para o direito. Trata-se do Círculo de Giz Caucasiano,1 que trata da
história de uma cidade imaginária em que ocorre um conflito de terras depois
da guerra travada contra o nazismo. Mas o que interessa, aqui, é a história de
Azdak. Ele é escrivão de uma aldeia, que, sem saber, acaba salvando a vida
do Grão-duque, líder absoluto antes de um primeiro golpe de Estado e que volta
ao poder no segundo golpe. Azdak quer se entregar (ou se punir) por ter
salvado o tirano, mas quando vai se entregar, descobre que os tempos
continuam os mesmos, e acaba sendo escolhido juiz. Para decidir o destino de
uma criança, traça um círculo de giz e coloca as duas mães no meio, para lutar
pela criança. Como Salomão, decide por aquela que não “larga” a criança para
não a machucar (ele decide em favor daquela que larga a criança, a serva
Grucha).

A característica principal de Azdak é que ele decide como quer. O próprio


Brecht – e nunca esqueçamos das raízes ideológicas que o sustentavam –
disse que a intenção era mostrar que o seu personagem (Azdak) era alguém
decepcionado “ao perceber que a queda dos velhos senhores não anuncia um
novo tempo, mas um tempo de novos senhores… Assim, ele continua a praticar
o direito burguês, só que esfarrapado, sabotado, no exclusivo interesse do
próprio juiz”. Claro que, e ainda é Brecht quem fala, “essa explicação não muda
nada das minhas intenções e não justifica Azdak”.

Como diz Maurini de Souza Alves Pereira, em texto chamado A lei e a ética
em Azdak – o Círculo de Giz Caucasiano, Azdak é múltiplo e contraditório, e
nenhum personagem consegue concebê-lo em suas contradições, ou chegar a
uma conclusão sobre a complexidade de suas atitudes: para a cozinheira, ele
não entende do ofício, e absolve os “maiores ladrões”, demonstrando que o
povo estava consciente de que a lei era feita para proteger os poderosos…
Azdak não era entendido como antítese a essa lei pelos personagens, e suas
atitudes não levam as pessoas da peça a uma síntese.

A peça trata de três julgamentos de Azdak, além daquele do Círculo de Giz.


Em um deles, dois grandes proprietários de terra levam a juízo uma velha
camponesa que mantinha uma vaca pertencente a um deles, e um presunto do
outro. O segundo também reclamava que vacas dele haviam sido mortas para
que deixasse de cobrar o arrendamento do lote da senhora. Ela atribui, tanto
os bens quanto o perdão da dívida, à atuação de “São Banditus”, que os
proprietários acusam ser Irakli, cunhado dela, um justiceiro que roubava dos
ricos para dar aos pobres. Esse personagem é o que mais se aproxima do juiz
enquanto contraventor. Azdak multou os proprietários em “quinhentas piastras”,
por não acreditarem em milagre e absolveu a velha e o “São Banditus”, a quem
ofereceu vinho depois da sentença, precedida de uma declaração lírica…!

Eis algumas máximas de Azdak: “É bom para a justiça funcionar ao ar livre.


O vento lhe levanta a saia e pode-se ver o que está por baixo”; “Contam a meu
respeito que um dia, antes de pronunciar a sentença, eu saí para respirar o
cheiro de uma roseira”; “Me traga aquele livro grosso, que eu sempre faço de
almofada para sentar!. (Schauva apanha em cima da cadeira de Juiz um grande
livro, que Azdak se põe a folhear.) Isto aqui é o Código das Leis, e você é
testemunha de que eu sempre fiz uso dele”, sentando-se sobre o livro.

Em síntese: Azdak decide como quer! Por vezes, dá ganho de causa aos
pobres; por vezes, contradiz-se ao infinito. Não deve explicações a ninguém. E
tampouco explica as suas decisões.

Pois bem. Em Alice Através do Espelho, Lewis Caroll nos apresenta um


personagem muito parecido com o Juiz Azdak. Trata-se de Humpty Dumpty,
cujo papel é nitidamente o de um nominalista, corrente filosófica que se forma
a partir de Guilherme Ockham, pela qual não há coisas universais, apenas
“particulares”. É a primeira grande contrariedade ao essencialismo aristotélico.
Entretanto, o nominalismo é também sinônimo de positivismo,
convencionalismo e pragmatismo.

Vejamos, então. Discutindo sobre o papel do “desaniversário”, pelo qual


haveria 364 dias destinados ao recebimento de presentes em geral e somente
um de aniversário, Humpty Dumpty diz para Alice: é a glória para você. Poderás
receber, em vez de um, 364 presentes. Ela responde: não sei o que quer dizer
com glória, ao que ele, desdenhosamente, diz: “Claro que não sabe…até que
eu lhe diga. Quero dizer ‘é um belo e demolidor argumento para você’”,
acrescenta Humpty Dumpty. Mas, diz Alice, “glória não significa ‘um belo e
demolidor argumento’”. E Humpty Dumpty aduz: “Quando eu uso uma palavra,
ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”.
Observe-se bem essa frase final do personagem nominalista de Lewis Carroll:
a palavra “glória” significa o que ele, Humpty Dumpty quer que ela signifique…
É o fim “demolidor” de uma discussão!

O que essas duas estórias têm em comum? O autoritarismo, o decisionismo


e o pragmatismo (ou, se quisermos, pragmaticismo). Os dois livros tratam de
personagens que têm o poder de dizer algo – no caso, decidir – e o fazem sem
qualquer critério e sem accountability. Apenas decidem ao seu bel-prazer
(lembremos da vontade do poder – a Wille zur Macht). Resultado: um caos.

Assim, mutatis, mutandis, é terrae brasilis. O pamprincipiologismo e a falta


de uma teoria da decisão, aliados ao incentivo de ativismos dos mais variados,
forjou um sistema jurídico absolutamente fragmentário, em que os processos
se multiplicam aos milhares (ou milhões). Veja-se que, “darwinianamente”, o
próprio “sistema” fez uma “correção de rumo” (ou seria uma adaptação?),
criando as súmulas vinculantes e a repercussão geral.

E parece que isso não serviu para diminuir as demandas. Ao contrário: do


que se pode perceber, vivemos a era das “efetividades quantitativas”.
Estatísticas! Números! Vivemos preocupados com o rápido despacho de
processos, mesmo que milhares deles sejam embargos declaratórios
provocados pela pressa, para dizer o mínimo…

Trata-se de um círculo vicioso, pois. A questão é: não estaria na hora de


nos preocuparmos com efetividades qualitativas? Ao invés de fazer uma
sentença rápida – correndo o risco desta ser omissa, obscura ou contraditória
– não seria melhor fazer uma boa sentença, que não demandasse embargos
de declaração, seguidos de outros embargos e agravos de agravos etc.?

É de pensar, pois não? Se eu tivesse que escolher um instituto que


represente simbolicamente esse “estado de natureza hermenêutico”
(homenagem a Hobbes), escolheria os embargos declaratórios e sua
derivação: os embargos declaratórios com efeitos infringentes.

Trata-se de uma virose epistêmica que assola o direito, produto da


invencionice dos juristas. Isso vem de longe. Desde já lanço a pergunta: como
é possível que um Código de Processo Civil (também o de processo penal)
admita que um juiz ou tribunal, agentes políticos do Estado, produzam decisões
(sentenças e acórdãos) omissas, obscuras ou contraditórias?

Ora, se a fundamentação é um dever fundamental do juiz e um direito


igualmente fundamental do utente, de que modo se pode admitir que sejam
lançadas/ promulgadas sentenças com esses vícios? Só para registrar: a Corte
Europeia dos Direitos Humanos declarou, de há muito, que a fundamentação,
antes de um dever dos juízes e tribunais, é um direito fundamental do cidadão.
Fundamentação frágil gera nulidade. Pois é. Lá não tem embargos…!

Parece evidente que a previsão da possibilidade de um juiz ou tribunal


produzir decisões omissas, contraditórias ou obscuras fere frontalmente o art.
93, IX, da Constituição, além do dispositivo que trata do devido processo legal
(também, o do contraditório). Absolutamente inconstitucional!

Sempre pensei que uma decisão omissa (vejam no dicionário o significa a


palavra “omissão”…) seria nula, írrita, nenhuma. Igualmente parece evidente
que uma sentença contraditória (portanto, que fere o raciocínio lógico) deveria
ser nula, írrita, nenhuma.

Finalmente, uma decisão obscura parece demonstrar uma obscuridade de


raciocínio, longe, portanto, daquilo que o próprio CPC estipula como requisito
da sentença.

Por certo – e não me tomem por ingênuo – a incorporação dos embargos


no sistema processual brasileiro acabou por gerar um subproduto que, no
contexto atual, confere certa importância (pragmática) para o instituto. Isso é
óbvio. Até mesmo não se nega que, em casos limitados, uma decisão poderia
demandar um esclarecimento. Mas não do modo como hoje se age. O que
quero dizer com isso? Refiro-me ao fato de que, a morosidade da justiça, a
dificuldade de tramitação de inúmeros recursos que seriam aplicáveis às
hipóteses de sentenças nulas (por ausência ou insuficiência de fundamentação,
vale dizer que, sentenças omissas, obscuras ou contraditórias são, ao final,
sentenças com fundamentação insuficiente, portanto, nulas), faz com que os
Embargos sejam instrumentos úteis para sanar erros materiais cometidos pelo
juízo a partir de uma intervenção “cirurgicamente” mais precisa no desenrolar
processual.

Só que isso acaba por gerar um círculo vicioso progressivo: na medida em


que temos embargos, temos mais recursos no judiciário; se temos mais
recursos, temos mais trabalho; se temos mais trabalho e não aumentamos a
estrutura humana/funcional que opera com tudo isso temos mais morosidade…
Enfim, no fundo, os embargos, no lugar de remédios, acabam por se constituir
como parte da causa da “doença”.

Quero dizer que além de a própria existência dos embargos de declaração


ser algo, digamos assim, estupefaciente e bizarro, também a sua
operacionalidade em terrae brasilis deixa muito a desejar. Acaba dando ao
processo contornos, para dizer o menos, de um jogo (não raro, de cartas
marcadas!). Entra, aqui, o fator “Azdak” e o efeito “Humpty Dumpty”. Explico-
me.

Pensemos no caso de um cidadão que faça um pedido qualquer em Juízo.


Sei lá, imaginem aí um pedido de realização de uma cirurgia modificadora
extrema do próprio corpo ajuizado por alguém que queira – sejamos criativos –
tornar seu rosto parecido com o de um lagarto (afinal, em tempos de caos
hermenêutico, por que não?). Uma ação cominatória contra o Poder Público,
pois. Afinal – e aqui vai mais uma pitada de sarcasmo – mais uma ação contra
o poder público não fará tanta diferença assim…

Pois bem. O argumento central da “causa” é o de que o sujeito tem direito


a perseguir a sua felicidade (he has the right to pursue his own happiness), e
que o Estado, por estar comprometido com a promoção da saúde (sic) e da
dignidade (sic) da pessoa humana, teria o dever de realização do procedimento
de forma gratuita ao cidadão hipossuficiente. Lembrem-se sempre da questão
n. 10 do Concurso da Defensoria Pública do RJ (2010), em que o
hipossuficiente queria fazer cirurgia para ficar com as feições de um lagarto e
que, ao que consta, o gabarito apontou para o direito fundamental à felicidade
do hipossuficiente-pretendente-a-ter-feições-de-um-lagarto. E por conta da
“viúva”.

Na sequência, imaginemos que o Estado (no auge da sua cupidez, por certo
– sejamos de novo um pouco irônicos e/ou sarcásticos) conteste a demanda
invocando um princípio que ninguém mais respeita, o princípio da legalidade
(não haveria previsão legal que o obrigasse a cobrir os custos da operação
pretendida), além da falta de provas e garantias de que a realização do
procedimento cirúrgico (“lagarteal”) perseguido fosse necessário ou suficiente
para garantir a felicidade do autor.

Suponhamos que depois de uma profunda instrução e de acaloradas razões


finais (nas quais o advogado – aquele defensor público da questão objeto do
concurso da Defensoria Pública) o Juiz tenha chegado a uma decisão. Julgou
improcedente o pedido, só que com a seguinte fundamentação:

“Não encontrei no texto constitucional ou na legislação infraconstitucional a


positivação do ‘direito fundamental a ficar parecido com um lagarto’. O Estado
deve agir de acordo com a legalidade. E pronto. Interne-se o pretendente a
lagarto em um hospital psiquiátrico”. E seguiu-se o dispositivo.
Percebam que o Juiz nada falou sobre os argumentos nodais do autor: de
que a dignidade humana, como vetor interpretativo, implica tornar a pessoa
humana como um fim em si mesmo; de que, no exercício de sua autonomia, a
pessoa humana tem o direito de dispor de seu próprio corpo da maneira como
desejar; de que o Estado, já que comprometido com a promoção da dignidade
e saúde humanas, teria de tornar acessíveis ao cidadão os meios necessários
para que fosse atingido aquele fim; de que o fim da vida humana é a conquista
da felicidade. Risíveis ou não, são estes os argumentos do autor.

O julgamento, assim, até poderia estar correto por seu resultado, mas sua
fundamentação seria espetacularmente simplista. No plano do devido processo
legal, do princípio do contraditório e do que exige o art. 93, IX, da CF, as partes
(e o público) seguem sem saber, depois da decisão, se há ou não um
compromisso público com a promoção da dignidade humana. E se esse
compromisso implica, ou não, um dever de promover a felicidade dos cidadãos.
Teria o magistrado negado a existência de um direito à felicidade? Mais: será
que nas decisões anteriores deste mesmo Juiz não encontraríamos algumas
reconhecendo o caráter normativo da Constituição mesmo na ausência de lei
(será que ele nunca “aplicou” o – também “não positivado” – “princípio da
proporcionalidade”, por exemplo?)? O cidadão quer saber! A sentença, pois, foi
omissa, no mínimo.

“Não há problemas”, pensa o autor. “Existem, justamente para suprir


omissões, contradições e obscuridades, os embargos de declaração”. Suspiros
de alívio e de fé nas instituições preenchem o coração do utente. Opõem-se os
embargos.

Eis, contudo, a resposta:

“O juiz, na linha de precedentes do STF, não está obrigado a responder a


todas as questões articuladas pelas partes. As razões de meu convencimento
são suficientemente claras. Rejeito os embargos."

O autor não desanima. Afinal, ainda resta o recurso de apelação. Apela. Eis
o acórdão, unânime:

“Peço vênia para reproduzir os suficientes argumentos esposados pelo


Colega de primeiro grau que, como de hábito, resolveu a contenda com síntese
e suficiência." E seguiu-se o “recorta e cola” da decisão de primeiro grau.

“Novos embargos?", questiona o autor a seu advogado, já um tanto


sestroso. Novos embargos. E a velha resposta:

“O juiz não está obrigado a responder a todas as questões levantadas pelas


partes. O Tribunal não é um órgão de consulta”.

“Ao Supremo Tribunal! A questão é constitucional!", exasperam-se o autor


– aspirante-a-lagarto e seu advogado. No entanto, batem na trave:

“A matéria não foi objeto do devido prequestionamento. Não se pode, pena


de ferir o due process of law, suprimir instâncias, enfrentando, em caráter
original, matérias não apreciadas pelas Cortes inferiores. Nego conhecimento”.
E vai agravo… E, depois, outro agravo. E embargos declaratórios para
esclarecer a decisão do agravo…

Paro por aqui. Os que militam no foro sabem do que falo. Já viram essa
história se repetir dezenas de vezes. Os mais argutos até já tomaram notas. A
culpa foi do autor: “ele deveria ter oposto embargos com efeito expressamente
prequestionador” ou “deveria ter interposto um recurso especial alegando
violação ao art. 535 do CPC”. Viram como funciona nossa mente? É a prova de
que esta defecção já não causa estranhamento.

O problema é que, ao contrário do que se usa dizer, o juiz tem, sim, o dever
de responder a todas as alegações juridicamente relevantes articuladas pelas
partes. Nem que seja para dizer que elas não são… juridicamente relevantes!
E isso por uma questão de democracia. Para que serve, enfim, a garantia do
contraditório?

Para finalizar, trago à colação (colação é ótimo, não?) o Recurso


Extraordinário 222.752, só para mostrar que, embora o exemplo acima seja
absolutamente fictício, tem tudo a ver com a realidade. Vamos ao exemplo do
mundo real:

RE 222.752 – Recurso Extraordinário

Recurso Extraordinário

1. Emb. Decl. No Recurso Extraordinário

2. Emb. Decl. Nos Emb. Decl. No Recurso Extraordinário

3. Emb. Decl. Nos Emb. Decl. Nos Emb. Decl. No Recurso Extraordinário

4. Emb. Decl. Nos Emb. Decl. Nos Emb. Decl. Nos Emb. Decl. No Recurso
Extraordinário

5. Ag. Reg. Nos Emb.Decl. Nos Emb.Decl. Nos Emb.Decl. Nos Emb. Decl.
No Recurso Extraordinário

6. Ag. Reg. No Ag. Reg. Nos Emb. Decl. Nos Emb. Decl. Nos Emb. Decl.
Nos Emb. Decl. No Recurso Extraordinário

7. Ag. Reg. No Ag. Reg. No Ag. Reg. Nos Emb. Decl. Nos Emb. Decl. Nos
Emb. Decl. Nos Emb. Decl. No Recurso Extraordinário

8. Emb.Decl. No Ag. Reg. No Ag. Reg. Nos Emb. Decl. Nos Emb. Decl. Nos
Emb. Decl. Nos Emb. Decl. No Recurso Extraordinário (ipsis literis; pontuação
do original do respectivo site; apenas coloquei a numeração de 1 a 8.).

(ipsis literis; pontuação do original do respectivo site; apenas coloquei a


numeração de 1 a 8.).

O que acham? Tudo isto em um mesmo “feito” (ou desfeito!). Eis o “fator
Azdak” e o “efeito Humpty Dumpty”. No Brasil, juízes e tribunais podem “dar às
palavras os sentidos que querem”. E parece que as partes, rapidamente, estão
se adaptando darwinianamente…! Depois… bem, depois, tem sempre os
embargos declaratórios.

E assim vamos levando. Mas não se preocupem. Olhei o projeto do novo


CPC, com a esperança de que de lá fossem extirpados os embargos
declaratórios. Ledo engano. Lá estão. Nada como sustentar a velha tradição,
que todos já conhecemos…! Essa anemia significativa vai continuar, assim
como a algaravia aplicacional.

Ora, o mínimo que se espera do Estado-juiz (para valer-me de um jargão


relativamente influente no meio acadêmico) é que lhe diga, depois de
produzidas as provas e feitas todas as alegações, ao final do processo, se ele
tinha ou não razão (ou seja, se o pedido procede ou improcede) e, claro, as
razões para que se tenha chegado a uma tal conclusão (a motivação da
decisão).

Aliás, todos deveriam ler o voto do Min. Gilmar Mendes no MS 24.268/04,


em que ele promove, com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional
alemão – que reproduzo em meu Verdade e Consenso2 –, uma autêntica
homenagem ao direito-dever fundamental de as decisões serem
fundamentadas. Penso que com essa decisão já poderíamos derrubar essa
virose epistêmica representada pelos embargos declaratórios. O cidadão que
entra em juízo tem:

(a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão


julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre
os elementos dele constantes;

(b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao


defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os
elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;

(c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf


Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de
ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as
razões apresentadas. O mesmo voto do Min. Gilmar Mendes incorpora, ainda,
a doutrina de Dürig/Assmann, ao sustentar que o dever de conferir atenção ao
direito das partes não envolve apenas a obrigação de tomar conhecimento
(Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar, séria e detidamente, as
razões apresentadas (Erwägungsplicht).

Numa palavra: parece humilhante que os embargos de declaração sejam o


mecanismo (quase)recursal pela qual o cidadão implora ao decisor que este
“valide” a sua decisão ou, no mais das vezes, que o esclareça a respeito das
razões pelas quais perdeu ou ganhou a causa.

Por meio do instituto dos Embargos Declaratórios, absurdamente admite-se


que uma decisão judicial não fundamentada possa ser “consertada”, em
cristalina manifestação do “instituto” do “jeito” no direito brasileiro (tão bem
criticado, desde 1955, por Dante Moreira Leite). Pior: não se considera isto
inconstitucional!
Muitos dizem que apenas se trata de uma válvula de escape do próprio
sistema, afinal imagine-se a “confusão” que seria gerada pela declaração de
nulidade de todas as sentenças “defeituosas”, mas passíveis de serem
“consertadas”?! A confusão aí já está! Admitido o nefasto instituto dos “EDs”,
criam-se inúmeros outros desvios que ajudam a promover o caos quase que
completo no sistema processual, impedindo decisivamente o “acontecer” da
Constituição.

Voltando ao “jeito”, vale lembrar como Keith Rosen, autor estadunidense


que produziu estudo denominado “O Jeito na cultura Jurídica Brasileira”, iniciou
tal obra, especialmente quando mencionou anedota onde um recém-formado
médico francês é aconselhado por um cônsul brasileiro, quando de sua
tentativa de imigração, a “alterar” sua profissão, o que facilitaria a concessão
do visto. O autor continua fazendo referência ao fato de que a flexibilização da
aplicação das leis também ocorre em outros países, mas no Brasil adquiriu
um status privilegiado, em “um genuíno processo brasileiro de resolver
dificuldades, a despeito do conteúdo das normas, códigos e leis”.

No fundo, os embargos de declaração são um “autêntico legado” da


chamada Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, que deixada aos
brasileiros pelos portugueses, estabeleceu que as regras do direito romano
somente seriam aplicáveis em uma análise, da “boa razão”, um conceito flexível
que permitia amplas interpretações, o que incentivava juízes e advogados a
observarem o senso comum, o espírito da lei e os costumes como base das
decisões, precursor do “jeito”. Materializa-se a “boa razão” processual pátria
por meio dos “EDs”, com isso, mais um subterfúgio, um “jeito”, novamente
pensamos que estamos salvos, quando apenas nos afundamos cada vez mais
no lodo jurídico que nos afogamos cada dia mais!

Atuando como “válvula de escape”, os “EDs” impedem os necessários


desgastes advindos da acumulação da pressão decorrente das NULAS
decisões judiciais não fundamentadas, as quais deveriam servir de estopim
para ocorrência de indispensáveis reformas jurídicas e administrativas, acabam
por instituir a corrupção interna do próprio sistema processual, tornando-o
completamente autofágico. And I rest my case.
2. E o "oscar" vai para. O decisionismo (de novo)!
Saramago contava que, há mais de 400 anos, em Florença, numa pequena
aldeia, os habitantes ouviram tocar o sino da igreja em uma determinada tarde.
O sino só tocava domingos e quando alguém morria. Só que o toque era de
finados. E não era domingo. Todos correram para saber: afinal, quem morrera?
E lá estava um pobre camponês que dizia: "ninguém que tivesse nome e figura
de gente; toquei porque a Justiça está morta”. E, então, o campônio fala das
agruras que sofrera nas “mãos” da justiça de então…!

Admito que o pequeno conto de Saramago soa um pouco (melo)dramático.


Quase piegas. Mas os leitores entenderão, na sequência, as razões para tal.
Peço, de novo como tutela antecipatória, que se fixem nos aspectos simbólicos
do conto de Saramago. Imaginemos algumas situações. No Rio Grande do Sul,
um Prefeito, réu de várias ações, depois de, finalmente, ser preso, recebeu,
menos de 24 horas depois, uma ordem de habeas corpus oriunda do STJ.
Quando seu advogado chegou ao Presídio para a sua soltura, teve que passar
por um corredor polonês de familiares dos outros milhares de presos, que lhe
puxavam o terno Hugo Boss, dizendo-lhe: “Doutor, por que o meu não?";
“Doutor, por que o meu marido, preso sem julgamento há tanto tempo, não
recebe HC?"; “Por que o meu filho, que já podia progredir de regime há mais
de 4 meses, não recebe HC?"; “Por que, no caso do meu filho, o juiz disse que
não cabia HC, somente agravo de execução, que demora meses para ser
apreciado?"; “Por que, no caso do seu cliente-Prefeito, Doutor, o HC saiu tão
rápido?". Parece que aqueles familiares, quase todos composto por mulheres,
mães, irmãs e filhas, tocavam, cada uma, pequenos sinos, como que a dizer “a
justiça morreu…”. É, pois é. Ninguém que tivesse nome e figura de gente… Só
o fulano saiu… Os demais ficaram no ergástulo. Na enxovia.

Por isso a historinha contada por Saramago… As “histórias de vida” de


milhares (ou milhões) de pessoas não nos interessam. Essas pessoas são
invisíveis, como o porteiro do prédio no romance “A elegância do Ouriço”. Mas,
em um país como o Brasil, em face da herança estamental, indignamo-nos no
varejo e nos omitimos no atacado… Ou seja, como perceberão, nem todos tem
acesso a um remédio que nos acostumamos a chamar de “heroico”, o habeas
corpus. Deve haver, hoje, dezenas de milhares de pessoas – invisíveis – que
precisam da concessão da ordem de HC. E não conseguirão. Muitos pedidos
sequer serão conhecidos.

Então, vamos ampliar as situações. Enquanto há milhares – milhares


mesmo – de casos passíveis de habeas corpus e que são negados sob várias
motivações formais, do tipo “não se conhece da medida, por ser caso de agravo
de execução”, “não se conhece do writ porque não esgotada a instância” etc.,
o Superior Tribunal do Trabalho (TST) acaba por nos brindar com uma pérola,
ao conceder habeas corpus ao jogador Oscar, do Sport Club Internacional, em
face da disputa envolvendo aquela agremiação e o São Paulo FC. A notícia
está em todos os jornais. No seguimento, os leitores que não leram a notícia
entenderão o imbróglio. O que importa aqui não é nem o fato, mas o silêncio
eloquente dele decorrente. Parece que a comunidade jurídica acha normal esse
tipo de decisão. Em um país de accountability praticamente zero, nada pode
nos surpreender…!
Para deferir o habeas corpus, o TST invocou Rui Barbosa… E eu invoco
Raymundo Faoro, para dizer que o Brasil é ainda pré-moderno. Dizia Faoro, em
seu Os Donos do Poder, que o Brasil, em muitos aspectos, não ultrapassou a
fase dos estamentos. Refiro-me ao binômio patrimonialismo-estamento que
Raymundo Faoro, inspirado em Max Weber, apresenta para construir sua
interpretação do Brasil (desde as feitorias até a Era Vargas). Com efeito, em
larga síntese, a tese de Faoro era de que – e ressalta-se que ela permanece
atual na maioria de seus aspectos – o poder político no Brasil se articula, devido
a uma herança lusitana, a partir de um Estado que é patrimonialista em seu
conteúdo e estamental em sua forma. O estamento – diz Faoro – é o que dá
forma a esse exercício patrimonialista do poder.

Há, assim, brasileiros “diferentes” de outros brasileiros, circunstância


reconhecida pelo Presidente Lula, não faz muito, ao sugerir que o Ministério
Público, antes de denunciar alguém, examine antes o seu curriculum, como se
o direito penal fosse um “direito penal do autor”…! Sua Excelência se referia à
possibilidade de o Senador Sarney ser processado. Para ele, Presidente da
República, o Ministério Público deveria, primeiro, ver com quem estava
lidando… Algo do tipo “você sabe quem é o denunciado? Você se informou
antes acerca de quem é essa pessoa?" Foi pelo menos assim que eu entendi.

Essa constatação assume contornos dramáticos, quando percebemos que,


passados mais vinte anos desde a promulgação da Constituição, não há
indicativos de que tenhamos avançado no sentido da superação da crise por
que passa a operacionalidade do Direito em terrae brasilis. Qual a razão para
que a mais alta Corte (essa designação de “Corte” é um ato falho estamental,
sem dúvida) da Justiça do Trabalho invente a concessão de um habeas
corpus para um jogador de futebol que estava em sua casa, com piscina,
recebendo seu ótimo salário (que deve passar de 200 mil reais por mês,
seguramente), tudo “nos conformes”?

Estava ele, o atleta Oscar, passando fome? Seu salário não estava sendo
pago? Estava em cárcere privado? Estava sob trabalho escravo? Não. A
resposta é, dramaticamente, não. O jogador Oscar simplesmente era
protagonista de uma singela (ou complexa) disputa comercial entre dois clubes
de futebol. Frisa-se: uma discussão contratual! A proibição de desempenhar
sua atividade estava atrelada ao descumprimento do contrato e o não
pagamento da multa correspondente. Sim, Oscar não pagara a multa
contratual.

Portanto, tratava-se de uma questão que não envolvia sua liberdade de


locomoção, liberdade pessoal, ou outra coisa do gênero. Estava impedido de
trabalhar? É? E quando um jogador é suspenso por dois meses, por agressão
a outro jogador ou ofensa a um árbitro, cabe habeas corpus? Poder-se-ia
redarguir: “mas neste caso houve uma ato ilícito, reconhecido pela Justiça
Desportiva”. Sim, entendo. Mas, permaneceria a pergunta: o descumprimento
do contrato, também não é um ato contrário ao direito? Tal descumprimento,
igualmente, não fora reconhecido pelo Judiciário. Por certo que exageros do
tipo “não nos interessa a multa, queremos contar com o jogador” (discurso do
São Paulo), devem ser contidos pelo Judiciário que, nos termos da melhor
reconstrução da história institucional do direito, deverá arbitrar o valor da multa
(mais as perdas e danos, se for o caso) a ser paga pelo descumprimento do
contrato. De se notar: o pagamento da quantia determinada judicialmente libera
o jogador da obrigação. Esse é um detalhe importante. Mas que nada tem haver
com a necessidade de se conceder uma ordem de habeas corpus.

Qual é a relação do instituto do habeas corpus com o futebol? Qual a


fundamentação do Ministro? Alguma vez na história algum tribunal do mundo
já o fizera? O próprio TST tem precedentes? Se os tem, nem de longe possuem
qualquer similitude com o “caso Oscar”. Ora, invocar o precedente do Supremo
Tribunal Federal (histórico e corajoso) quando da declaração em sede difusa
do art. 48 do Dec.-Lei 314/ 1967 (Lei de Segurança Nacional – LSN) parece um
disparate. Naquele caso, estava-se diante de um dispositivo da LSN que
impedia o exercício profissional em face do simples recebimento da denúncia
por crime contra a segurança nacional. Não me parece que haja similitude com
o caso de um atleta objeto de uma mera discussão contratual entre dois
grandes clubes de futebol. Aliás, que história é essa de precedentes? O que é
isto – um precedente judicial? Onde fica a coerência e a integridade do direito?
O que liga uma decisão à outra? Nada? Um grau zero de sentido?

Quais são os efeitos colaterais dessa decisão? Não haveria outro meio
processual para solver a pendenga? Oscar não poderia esperar alguns dias até
o julgamento final? Onde o periculum in mora? Quem pode responder a esse
questionamento? O TRT de São Paulo pode até ter exarado decisão
equivocada (abaixo, dialetizo isso). Mas daí a dizer que, em face dessa decisão,
havia “coação” ou “violência” impedindo o atleta de exercer a sua profissão vai
uma distância enorme.

Vamos dialetizar o “case”:

Hipótese 1: vamos dar de barato e dizer que a decisão do TRT de São


Paulo estava errada. Ou seja, ainda que o atleta Oscar não tivesse reconhecido
o seu direito à rescisão indireta do contrato de trabalho, que o São Paulo FC
fosse o melhor dos empregadores do mundo ocidental, cumpridor de suas
obrigações etc., mesmo nessa hipótese, não poderia o Tribunal simplesmente
restabelecer o contrato e determinar o seu cumprimento, digamos assim, "in
natura". Ora, quando isso acontece, cabe ao Tribunal converter a rescisão
indireta em rescisão direta, injustificada! Afinal, é para isso é que existe a
cláusula penal. Se o jogador não quer mais jogar, que pague a multa e levante
acampamento. “Ah, Prof. Lenio, mas aí qualquer jogador pode sair de qualquer
time assim, sem mais nem menos?" Sim! Contanto que pague a multa. “Mas
isso não é descumprimento do contrato?" Não. A multa integra o
contrato. Pacta sunt servanda. Se há discussão a respeito do valor da multa,
ou de seu pagamento prévio ou posterior, que se faculte a caução. Isso tudo
para dizer que, no caso, uma decisão incorreta levou à outra. Dois erros não
fazem um acerto, eu sei, e é óbvio.

Dizendo de outro modo: o atleta Oscar pediu a rescisão indireta do contrato


de trabalho, alegando que o São Paulo não cumpriu com as suas obrigações
contratuais (art. 483 da CLT). O objeto de ações como essa é, justamente, o
reconhecimento de que foi demitido, de fato, sem justa causa. Com isso, o
empregado ganha as verbas rescisórias daí decorrentes (multa sobre o FGTS
etc.). Quando o empregado não prova os fatos alegados (que foi o que
entendeu o TRT), a consequência não é o restabelecimento do contrato de
trabalho, mas, apenas, o reconhecimento de que a rescisão ocorreu por
iniciativa do empregado. Repassa-se ao empregado, automaticamente, os
ônus da rescisão (no caso, inclusive, a cláusula penal). Observe-se: não se
discute a “validade” do contrato. Válido ele foi desde sempre. O que se discute
é se ele foi cumprido ou não.

Hipótese 2: também vamos dar de barato e dizer que a decisão do TRT


estava certa, o que mostra apenas a complexidade da querela. Raciocinemos
do seguinte modo e o faço isso por amor ao debate. Assim: O TRT-SP não
poderia ter convertido a rescisão em pecúnia. Isso seria extra petita. O atleta
Oscar tinha contrato com o São Paulo. Alegou um vício qualquer em juízo e
pediu a anulação do contrato. Ganhou a liminar e no mérito em 1.ª instância.
Mas perdeu em 2.º grau e a consequência só pode ser a validade do contrato,
ao menos até que seja rescindido por vontade das partes. Daí decorrem
consequências que não são trabalhistas, mas desportivas. Se o Oscar tem um
contrato válido e anterior com um clube, não pode ser inscrito por outro. Se
deixarem um time novo inscrever sem haver rescisão do contrato, há sim perigo
de que os jogadores mudem de time de graça e sem causa. Também ao que
consta, o atleta não procurou o São Paulo, nesse espaço de tempo, para pagar
a multa rescisória… Ou seja, para sair do São Paulo e assinar com outro clube,
ele (ou o Internacional) tem/tinha de pagar a multa. E esta não foi paga! Então
procurou a Justiça e perdeu, pelo menos até que recebeu o habeas corpus. Em
outras palavras, para rescindir contrato não precisa de HC nem de processo,
precisa pagar a multa. O que o TST fez foi liberar o atleta para jogar em outro
time sem pagar nada. Coisa que o TRT-SP negara.

Ou seja – seguindo na hipótese de que o TRT tenha decidido corretamente


–, se o contrato sempre foi válido e se o ônus da rescisão é do jogador, significa
necessariamente que o jogador tem de se desonerar dos ônus, para liberar-se
da obrigação. E isso tem de acontecer antes de jogar por outro time. Se não for
assim, e se o jogador pode transitar livremente sem haver rescisão (i.e.,
pagamento) e se a CBF puder incluir no BID contratos de jogadores com vários
clubes simultaneamente e ele pode jogar por qual quiser quando quiser, essa
decisão do TST, utilizada como precedente, fragilizará as relações desportivo-
contratuais.

Na verdade, não me importa quem esteja com a razão. O que quero


demonstrar é que a única coisa que não cabia – exatamente em face da
extrema complexidade do caso – é a concessão de uma ordem de habeas
corpus. Isto é, não considero o “caso Oscar” de relevância material a ponto de,
digamos assim, “desestabilizar” o direito… Importa-me, aqui, denunciar
os abusos dos institutos jurídicos, utilizados de forma ad hoc, como se no
direito tudo fosse relativo. Habeas corpus só se concedem no limite do limite.
Um writ não é algo que esteja à disposição (Ge-stell) do julgador. Decidir não é
o mesmo que escolher.

Fora do processo penal, há pouquíssimas situações, como o caso de um


paciente de hospital que é impedido de sair por não ter dinheiro para pagar a
conta. Só que, neste caso, seu direito de ir e vir está sendo impedido… Mas,
no “caso Oscar”, onde está no enquadramento do direito de ir e vir? Veja-se,
de novo, o que diz a Constituição, em seu inc. LXVIII do art. 5.º: “conceder-se-
á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer
violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso
de poder”. Onde a violência ou coação na liberdade de locomoção do atleta
Oscar? Fosse o Oscar atleta com vínculo com o E.C. Asa, de Arapiraca,
envolvido em uma disputa com o River A.C., de Sergipe… queria ver essa
“causa” chegar ao TST nessa velocidade e vir a ser solvida mediante a
concessão do remédio heroico. Esse é um dos problemas denunciados na obra
de Faoro. Assim como na sociedade, também no futebol existem estamentos.

Hermenêutica jurídica é coisa séria. Não se pode dizer qualquer coisa sobre
qualquer coisa. Há limites semânticos que, se não forem ultrapassados pela
parametricidade constitucional, devem ser minimamente obedecidos. Não se
pode “transformar um homicídio em um estelionato” ou “um furto em um crime
de falsidade”. Vou repetir, aqui, um velho exemplo, que vem de um positivista
da cepa, Herbert Hart. Ele usa o jogo de críquete para exemplificar os limites
da aplicação do direito. E eu faço a adaptação para o futebol, já que estamos a
falar de coisas relacionadas ao esporte bretão. Se um jogador é derrubado meio
metro fora da área ou meio metro dentro da área, pode-se discutir a penalidade.
Agora, se o árbitro decidir dar o pênalti há cinco metros da área ou no meio
campo, teremos um sério problema. Primeiro, a decisão valerá. Afinal, ele é o
árbitro. O problema é a jogada seguinte. Se outro jogador for derrubado no meio
campo, o árbitro marcará a penalidade? Mas, neste caso, qual é a regra que
estará valendo? A regra do futebol ou a “regra do árbitro”? E diz Hart: um jogo
baseado na discricionariedade do árbitro não é um jogo de futebol; é um “jogo
do árbitro”; e, neste caso, já não haverá mais regras do jogo de futebol! Pronto.
Nem precisei apelar para autores de matriz pós-positivista ou coisa que o valha.

A inusitada e arbitrária (no sentido de estar para além da discricionariedade)


decisão do TST abre caminho para uma pororoca de situações. Um aluno que
não passa de ano e recorre da correção e se julga injustiçado… Vai buscar HC
para cursar o semestre seguinte, porque está sendo impedido de estudar no
semestre que ele considera seu direito… Executivos que trocam de empresas
e que tenham cláusula de exclusividade e que, ao trocarem de empresa, não
pagam a cláusula penal… Ao serem demandados na justiça, valer-se-ão
do habeas corpus. Exatamente como o “caso Oscar”. E um juiz ou membro do
Ministério Público que, em face da “quarentena”, está impedido de advogar por
3 anos? Não é caso de HC? Ora, ele está sendo impedido de trabalhar. Que
violência, não? Logo, vai aqui uma sugestão, já que o TST invocou a decisão
do STF que declarou a inconstitucionalidade do art. 48 da Lei de Segurança
Nacional: no caso da quarentena, o TST declara, em sede difusa, a
inconstitucionalidade da emenda constitucional n. 45, que estabeleceu o prazo
de 3 anos da “quarentena”… Pronto. Ora, onde se viu impedir aposentados de
trabalhar no dia seguinte? Onde está o direito ao trabalho e a liberdade de
escolha da profissão? Tudo conforme o precedente do “caso Oscar”.

O uso do habeas corpus virou uma “questão esquizofrênica”. No processo


penal, de há muito já foi transformado em “recursão” (na Bahia, tentaram um
HC para um macaco “preso” no Zoo; já vi também pedido de HC para liberar
automóvel). Valendo a tese criada pelo TST, temos que pensar na
generalização para outros casos. Se qualquer jogador puder obter HC para
trabalhar onde quiser, o futebol brasileiro foi pro beleléu, porque vive da
exportação de jogadores e os jogadores vão pedir HC ao invés de serem
vendidos para a Europa.

Afora que, nesta quadra da história, uma plêiade de livros sobre direito
constitucional e direito processual penal – desde a dogmática mais pedestre
até sofisticados livros sobre a história das garantias constitucionais do Brasil –
são uniformes ao afirmar que, com a incorporação do mandado de segurança
em 1926 passando pela ampliação da “jurisdição constitucional das liberdades”
em 1988 (com a consagração do habeas data e do mandado de injunção), não
cabe mais falar no chamado “uso heterodoxo” do habeas corpus.

É isso mesmo. Atualmente, está ultrapassado falar em “uso heterodoxo


do writ". Já não cabe esse tipo de discussão pós-Constituição de 1988. Os
casos de impetração do writ, por expressa disposição constitucional, ficaram
restritos à liberdade ambulatorial, de locomoção, pois. Daí que não parece ser
um bom argumento – dada as singularidades situacionais e históricas – invocar
a autoridade de Rui Barbosa que, como se sabe, era partidário do uso
heterodoxo do writ, o que deu origem à chamada “doutrina brasileira do habeas
corpus" (segundo a qual caberia a impetração do remédio tanto para violações
da liberdade de ir, vir e permanecer, quanto para as violações à liberdade
religiosa). Mas isso era “naqueles tempos”! Sobral Pinto chegou a usar a Lei de
Proteção aos Animais para defender Luis Carlos Prestes. Ou seja, eram outros
tempos.

De todo modo, no Brasil, cada vez mais prolifera a infeliz ideia de que
interpretar a lei é um ato de vontade (de poder). Nesse sentido, mostram-se
muito próximas as diversas posições axiologistas-voluntaristas que conformam
o imaginário dos juristas (fruto da jurisprudência dos interesses, da
jurisprudência dos valores, da ponderação de valores, do realismo norte-
americano ou escandinavo, ou, ainda, produto de um voluntarismo ad
hoc mesmo, sem “filiação” teorética). Tudo pode. Tudo é permitido. Algo do tipo
“não há verdades”. “Tudo é relativo”1 (como se a frase também não fosse
relativa!). As decisões acabam sendo fruto de meras subjetividades, sem
compromisso com a história institucional do direito e do instituto em questão. É
o extremo pragmaticismo em vigor. Como se existisse um “grau zero” e que a
decisão pode ser do jeito que o decisor quiser.

Aliás, a tese de que “a interpretação da lei é um ato de vontade” (de poder)


está no oitavo capítulo da TPD de Kelsen (desculpem-me, mas tenho que
lembrar isso em todos os momentos). Ali, naquelas poucas páginas daquele
pequeno capítulo, reside o “ovo da serpente do decisionismo”. Kelsen era um
pessimista moral. Ele tinha certeza de que era impossível controlar a vontade
de poder judicial. Ele lera Nietzsche. Por isso, fez a sua teoria pura. E a colocou
– a TPD – no andar de cima, no plano da ciência do direito (uma meta-
linguagem sobre a linguagem objeto, que era o direito enquanto conjunto de
regras). Kelsen não queria se meter no andar de baixo (no mundo da
aplicação). Ali, dizia o velho mestre, faz-se política jurídica. Não é ciência…!
Pois é. O velho tinha razão: política jurídica. Era terrível esse Hans.

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