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Revista Jurídica

UniSEB
Ano II - Nº 2 - Outubro 2012
ISSN 2317-2681
CONSELHO EDITORIAL

O Conselho Editorial da Revista Jurídica UniSEB é composto por docentes


convidados do Centro Universitário UniSEB e outras instituições
de ensino superior, bem como por profissionais da área jurídica.

André Luiz Carrenho Geia


César Augusto Ribeiro Nunes
Dirceu José Vieira Chrysóstomo
Elizabete David Novaes
Fernando H. Costa Roxo da Fonseca
Gilberto Andrade de Abreu
Giovanni Comodaro Ferreira
Karina Prado Franchini Bizerra
Luciana Lopes Canavez
Paulo Henrique Miotto Donadeli
Reginaldo Arthus
Romualdo Gama
Sérgio Ricardo Vieira
Sérgio Roxo da Fonseca
EXPEDIENTE

A Revista Jurídica UniSEB é uma publicação anual do curso de Direito do


Centro Universitário UNISEB – União dos Cursos Superiores Seb Ltda.

CHAIM ZAHER
M. Reitor – UniSEB

REGINALDO ARTHUS
Vice-Reitor – UniSEB

KARINA PRADO FRANCHINI BIZERRA


Pró-Reitora - UniSEB

ROMUALDO GAMA
Coordenador de Operações Acadêmicas - UniSEB

LUCIANA LOPES CANAVEZ


Coordenadora do Curso de Direito - UniSEB

CÉSAR AUGUSTO RIBEIRO NUNES


Coordenador da Revista Jurídica – UniSEB

Editor Responsável
Prof. Reginaldo Arthus
Rua Abrahão Issa Halack, nº 980
Bairro Ribeirânia, Ribeirão Preto-SP
CEP 14096-160

* Opiniões expressas pelos autores em seus trabalhos, artigos e entrevistas não refletem, necessariamente,
a opinião do Instituto de Ensino Superior COC, do Sistema COC de Educação e Comunicação, de seus
mantenedores, diretores, coordenadores, docentes, discentes e membros do Conselho Editorial.
Por terem ampla liberdade de opinião e de crítica, cabe aos colaboradores da Revista Jurídica UniSEB a
responsabilidade pelas ideias e pelos conceitos emitidos em seus trabalhos.
** Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração pela publicação dos trabalhos na Revista Jurídica
UniSEB. O autor receberá gratuitamente um exemplar da Revista (versão impressa) em cujo número seu
trabalho tenha sido publicado.

ACEITAMOS PERMUTA – EXCHANGE DESIRED


INTERCÂMBIO DESEÓ – ÉCHANGE DESIRÉ
Ficha Catalográfica

R281
Revista Jurídica / UniSEB. Ano 2. n.2 (out. 2012) -.- Ribeirão Preto,
SP: UNICOC, 2011.

Ano 2. n. 2 (out. 2012)


Anual
ISSN: 2317-2681 (versão impressa)

1. Ciências Jurídicas. 2. Direito Nacional. 3. Direito Internacional.


4. Doutrina. 5. Jurisprudência. I. Centro Universitário UniSEB. II.
Revista Jurídica UniSEB.

CDD 340
SUMÁRIO

COISAS MÓVEIS DURADOURAS: O REGIME DAS GARANTIAS NO


ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS...................................................................15
Mário Frota

IMPROBIDADE POR OMISSÃO: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS..........39


Paulo José Freire Teotônio

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: REFLEXÕES SOBRE A SUA EFICÁCIA E


APLICABILIDADE..............................................................................................................63
Michel Fernandes Rosa

A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS APÓS A EC 15/96: UMA ANÁLISE EM BUSCA DA


EFETIVIDADE DO TEXTO CONSTITUCIONAL.........................................................73
Alex Pires Andrade

DIREITO PENAL DO INIMIGO E A LEI DE CRIMES HEDIONDOS NO BRASIL.....95


Marina Druziani Araujo

DIRETO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS – CASO SOMÁLIA E A TUTELA


UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS....................................................................109
Rita Silvana Andreolli

O PROBLEMA DO JUSTO NA ANTIGUIDADE DA HÉLADE: OS APORTES


EPISTEMOLÓGICOS DA FILOSOFIA E DA LITERATURA DA PAIDEIA
GREGA................................................................................................................................119
André Gonçalves Fernandes

PRINCÍPIO DA SIMETRIA: A RESTRIÇÃO DO PODER CONSTITUINTE DOS


ESTADOS MEMBROS FACE A SUA APLICAÇÃO NÃO PONDERADA................137
Raisa Duarte da Silva Ribeiro

CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS ACERCA DA PENHORA “ON LINE”..................155


José Antônio Cremasco

O JUÍZO SINTÉTICO A PRIORI COMO CONDIÇÃO CIENTÍFICA DA METAFÍSICA EM


IMMANUEL KANT: OS LIMITES DA RAZÃO REGULADORA....................................165
Reginaldo Arthus

A MOTIVAÇÃO PARA DEMISSÃO DE EMPREGADOS PÚBLICOS......................183


João Antonio Faccioli

HISTÓRIA DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL: DO SURGIMENTO AS


MEDIDAS DE FLEXIBILIZAÇÃO DA CLT...................................................................201
César Augusto R. Nunes
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: OS DESAFIOS E
POTENCIALIDADES PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DAS
MULHERES........................................................................................................................215
Beatriz Rigoleto Campoy

PROTEÇÃO JURÍDICA DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO SISTEMA


JURÍDICO BRASILEIRO SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTAIS ......................................................................................................227
Mario Augusto Carboni

POLÍTICA EDITORIAL DA REVISTA JURÍDICA FACULDADES UNISEB.............247


Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 9

APRESENTAÇÃO

A Revista Jurídica da Faculdade de Direito do Centro Universitário


UNISEB apresenta-se como um instrumento institucional, acadêmico e social
voltado, essencialmente, à publicação de artigos e resenhas sobre as diversas
áreas do Direito nacional e internacional, elaborada a partir de contribuições de
juristas, pesquisadores e demais profissionais das Ciências Sociais e Jurídicas.
Criada no ano de 2004, sob o título de Revista Jurídica das Faculdades COC, este
periódico acadêmico passou por um amplo processo de reformulação nos anos
de 2011 e 2012, processo este que incluiu criteriosas e necessárias mudanças
nas diretrizes da Revista, nas artes gráficas das recentes edições, bem como
nas regras de envio e de avaliação dos trabalhos submetidos aos pareceristas,
resultando numa destacada atualização que já pôde ser apresentado na última
edição da Revista, a primeira intitulada Revista Jurídica da Faculdade de Direito
do Centro Universitário UNISEB – Ano 2011, Nº. 01.
Deste momento em diante passou-se a incorporar na proposta acadêmica
que orienta os trabalhos da equipe de Professores e dos demais profissionais
da Coordenação da Revista Jurídica as atuais diretrizes pedagógicas da
própria Faculdade de Direito do UNISEB, hoje voltadas para a formação
ampla e humanística do bacharel, compromissada com uma visão reflexiva
e crítica dos fenômenos sociais e jurídicos que compõem a nossa complexa
sociedade do século XXI. Ademais, cumpre destacar ainda o quanto esta
iniciativa acadêmica se tornou importante para a Instituição naquele momento,
tendo em vista o fato da Faculdade de Direito ter conquistado o prestigiado
e reconhecido, nacionalmente, selo “OAB RECOMENDA”, atribuído pela
Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/Federal.
Mais do que isto, também se definiu, a partir desta edição de 2012 da
Revista Jurídica UNISEB, a reserva de um espaço exclusivo para publicação
de artigos escritos por autores ainda estudantes do curso de graduação em
Ciências Sociais e Jurídicas, uma iniciativa que buscou, além de difundir a
produção dos conhecimentos produzidos por esses jovens pesquisadores,
valorizar e enriquecer a formação acadêmica de inúmeros discentes que já
se dedicam à prática investigativa dos conteúdos ministrados no decorrer de
sua formação superior. Em síntese, a nova e reformulada Revista Jurídica da
Faculdade de Direito do Centro Universitário UNISEB abre uma prestigiada
possibilidade para que seus acadêmicos fortaleçam e consolidem as práticas
de pesquisa e investigação no campo do Direito, garantindo-se a publicação
daqueles trabalhos de elevada qualidade e potencial repercussão acadêmica,
apoiada em criteriosa avaliação científica.
Por último, no que concerne ao referencial teórico inspirador de nossa
Revista Jurídica, reiteramos a premissa de lograr perceber o Direito sob uma
10 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

perspectiva de globalidade, de integralidade e de conjunto, ou seja, como uma


dimensão fundamental da práxis social. Buscamos compreender sua identidade
e a possibilidade de esclarecimento de todas as suas potencialidades. Não
concebemos a possibilidade de compreender o Direito fora da produção
social, nem tampouco como uma instituição considerada em si mesma. Para
nós, portanto, o Direito é uma dimensão basilar e constituinte de qualquer
sociedade humana.
A Ciência Jurídica, por sua vez, se restringe à análise específica dos
modelos de conduta e de organização social, consubstanciados pelos institutos e
pelas normas jurídicas correspondentes a cada época histórica e suas singulares
sociedades. Desse modo, torna-se possível aos juristas e estudiosos das Ciências
Jurídicas apresentarem as suas leituras e compreensões sistematizadas daquilo
que reconhecemos como sendo a fundamentação, ontológica e deontológica,
daquilo que reconhecemos como a base constituinte da ordem jurídica vigente,
bem como de seus variados ramos especializados, as quais podem ser também
chamadas de DOUTRINA JURÍDICA. Esperamos que toda a comunidade
acadêmica acolha esse anelo de busca do discernimento jurídico a partir da
pluralidade da sociedade e de suas disposições!
Para nós, especificamente, tem sido um orgulho e um desafio o trabalho
de coordenar o projeto de registro e difusão da produção científica de um
Curso de Direito de elevada qualidade como tem sido apresentado pelo
Centro Universitário UniSEB, hoje consolidado não só na Região da cidade
de Ribeirão Preto-SP, mas também em todo o território Nacional, como uma
instituição conceituada e referencial para alunos, pesquisadores e profissionais
do campo do Direito. Por conseguinte, fica registrado nesta apresentação
os nossos agradecimentos pelo apoio valoroso e sempre presente que são
originados da Mantenedora do Centro Universitário UniSEB, de sua Reitoria e
da Direção e Coordenação da Faculdade de Direito UniSEB. Especialmente, o
último agradecimento desta apresentação não poderia faltar a pessoa da Profa.
Elizabete David Novaes, Coordenadora do Núcleo de TCC e do Programa
de Iniciação Científica do Centro Universitário UNISEB, profissional que nos
inspira sempre por sua dedicação ao trabalho acadêmico e de pesquisa.

César Augusto Ribeiro Nunes


Coordenador da Revista Jurídica - UniSEB
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 11
12 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
DOUTRINA
14 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
COISAS MÓVEIS DURADOURAS: O REGIME DAS
GARANTIAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS

MÁRIO FROTA1

Generalidades
1. Âmbito de aplicação
Os direitos do consumidor, em Portugal, desfrutam de cobertura
constitucional: têm, com efeito, assento no Texto Fundamental no título dos
direitos económicos, sociais e culturais – com maior precisão, no artigo 60.
O valor reforçado de tais direitos exprime-se em múltiplos domínios do
ordenamento.
A disciplina das garantias das coisas móveis objecto de contratos de
consumo, na caracterização que do fenómeno se fará, releva, porém, de uma
iniciativa legislativa européia. Na submissão aos Tratados da União a que os
Estados-membros, como é o caso de Portugal, se adscrevem.
Com a chancela do Parlamento Europeu e do, ao tempo, Conselho de
Ministros, editou-se uma directiva minimalista - a Directiva 99/44/CE, de 25
de Maio - que estabelece um patamar de direitos no que tange à garantia das
coisas móveis objecto de contratos de consumo.
O que permitira, aliás, que os Estados-membros oferecessem aos seus
nacionais um regime mais protectivo. Como sucedeu, de resto, em Portugal,
em determinados segmentos, na esteira do que se consagrara na sua LDC - Lei
de Defesa do Consumidor -, a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho de 1996.
A LG - Lei das Garantias (DL 67/2003, de 8 de Abril, republicada pelo
DL 84/2008, de 21 de Maio, que introduz alterações de tomo) -, que provê à
transposição da directiva para o ordenamento jurídico nacional, restringe-se
às relações jurídicas de consumo.
Por relações jurídicas de consumo se entende: “o acto (em geral, um
contrato) pelo qual o consumidor obtém de um profissional um produto ou serviço que
visa a satisfazer uma necessidade pessoal ou familiar”.
Profissional é o vendedor, fornecedor de produtos, é o prestador de
serviços, é a entidade financeira que desenvolve actividades no domínio das
instituições de crédito e das sociedades financeiras2.
1
Professor da Faculté de Droit / Université de Paris XII (1991/2006). Fundador e primeiro presidente da
AIDC – Associação Internacional de Direito do Consumo. Presidente da apDC – sociedade portuguesa
de Direito do Consumo, Coimbra. Director do CEDC - Centro de Estudos de Direito do Consumo de
Coimbra. Director da RPDC – Revista Portuguesa de Direito do Consumo, Coimbra. Presidente do
Conselho Director da Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, Curitiba-PR.
2
A LG define agora vendedor, na alínea c) do seu artigo 1.º-B, como: “c) … qualquer pessoa singular ou
colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional”.
16 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Consumidor é “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços


ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que
exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de
benefícios”.
Dela se excluem as relações jurídico-civis que se entretecem entre
particulares destituídos de qualquer estatuto peculiar.
Dela se excluem ainda as relações jurídico-empresariais ou jurídico-
mercantis que se constituem entre empresas e/ou empresários e/ou
profissionais liberais3.
Há um equívoco que importa desvanecer liminarmente: se um
consumidor final adquirir um equipamento, em princípio “reservado” a
profissionais, e o destinar, como é curial, a uso prevalentemente privado, a
garantia aplicável é a que se dá aos consumidores que não aos profissionais4.
Mas, no quadro dos contratos de consumo, o regime das garantias não
se restringe à compra e venda: estende-se à locação e à empreitada e, bem
assim, a outras prestações de serviço, de harmonia com o que prescreve o n.º
2 do artigo 1.º - A da LG.

2. Regimes jurídicos aplicáveis


Se as relações forem, na sua essência, estabelecidas entre particulares,
3
Cfr. o acórdão da Relação de Lisboa de 31 de Março de 2007 (relator Granja da Fonseca) que, ao
contrário de tantos outros arestos em que os planos se confundem, estabelece a boa doutrina: “1 - O
regime previsto no Código Civil não é o único que rege a venda de coisas defeituosas. A venda de
bens de consumo conhece variadas especificidades, nomeadamente a Directiva 1994/44/CE, que veio
regular determinados aspectos dessa venda e das garantias dos consumidores, vindo a ser transposta
para o direito interno pelo DL n.º 67/2003, de 8 de Abril. 2 - A Directiva apenas se reporta à venda
de bens de consumo, aplicando-se apenas quando o comprador seja consumidor, ficando excluídos
todos os [compradores] que sejam pessoas jurídicas bem como as pessoas singulares que actuem no
âmbito da sua actividade profissional. 3 - O vendedor responde pelo “defeito” existente no momento em
que entrega o bem ao consumidor, presumindo-se que as faltas de conformidade que se manifestem
no período da garantia já existiam no momento da entrega, salvo quando tal for incompatível com
a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.” E, com maior propriedade
ainda, quando em tantos dos arestos dos consultados, por manifesta ignorância se aplicava o regime
do contrato de empreitada do Código Civil, como se fora o único, a Desembargadora Maria do Rosário
Morgado, esquadrinhando convenientemente as situações fácticas e os regimes legais aplicáveis, vem
a decretar no acórdão de 9 de Fevereiro de 2010, com manifesta justeza: “I - Deve ser qualificada como
empreitada de consumo o contrato celebrado por quem destina a obra encomendada a um uso não
profissional e alguém que exerce, com carácter profissional, uma determinada actividade económica,
a qual abrange a realização da obra em causa, mediante remuneração. II - Ao contrato de empreitada
de consumo aplica-se, não o regime geral do CC, mas o regime especial da responsabilidade pelos
defeitos das obras nos contratos de empreitadas de consumo, cuja disciplina se encontra plasmada
no DL nº 67/2003, de 8 de Abril, com as alterações introduzidas pelo DL nº 84/2008, de 21 de Maio.
III - No contrato de empreitada, o dono da obra, muito embora deva indicar inequivocamente, com o
grau de precisão possível, os defeitos detectados na obra (já que a denúncia só impede a caducidade
dos direitos do dono da obra relativamente aos defeitos denunciados), não está obrigado precisar a sua
causa. IV - Relativamente a defeitos evolutivos, o prazo de denúncia inicia-se logo que eles assumem
uma determinada relevância e deles se tem conhecimento, não sendo de exigir sucessivas denúncias
sempre que se altere a sua dimensão.”
4
Se um berbequim eléctrico, por exemplo, se destinar a um uso profissional, mas for adquirido por um
consumidor para aplicação não profissional, a garantia que se lhe reconhece é a da LG e não a do Código Civil.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 17

sem mais, as regras aplicáveis são as que decorrem, entre outras, dos artigos
913 e ss do Código Civil.
Se as relações se enquadrarem no domínio mercantil ou empresarial,
o regime aplicável é a dos artigos 463 e ss do Código Comercial5 e,
subsidiariamente, o do Código Civil - artigos 913 e ss.
Se tratar de relações jurídicas de consumo, aplicável é o DL 67/2003, de
8 de Abril (republicado, após modificações pontuais, pelo DL 84/2008, de 21
de Maio).

3. Conteúdo da garantia legal no quadro do direito do consumo


A garantia legal das coisas móveis objecto de contrato de compra e
5
Cfr. o artigo 471 do Código Comercial, que reza o seguinte: “As condições referidas nos dois artigos
antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar
as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar dentro de oito dias. § Único. O vendedor
pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entregam salvo caso de
impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado.” Cfr. ainda o acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 1999 (relator FERREIRA RAMOS) que decreta o
que segue: “I- Aos contratos de compra e venda celebrados entre comerciantes não são aplicáveis as
disposições do Código Civil (cfr. artigos 913.º e seguintes), mas sim as normas do Código Comercial
(cfr. artigos 463.º e seguintes, nomeadamente o artigo 471.º). II- A norma do artigo 471.º do Código
Comercial tem como finalidade submeter a compra e venda comercial a um regime de prazo mais curto,
para as reclamações do comprador contra as qualidades da coisa, e como razão de ser a necessidade
de segurança das transacções, indispensável à vida mercantil. III- O disposto no artigo 471.º do Código
Comercial pressupõe a possibilidade de ser feita a verificação da coisa transaccionada; mas, no caso
de reclamação, para além do prazo de oito dias, previsto na parte final do corpo daquele artigo, incumbe
ao comprador alegar e provar toda a factualidade respeitante à diligência exigível no tráfico comercial, à
impossibilidade de detecção dos vícios ou defeitos, no momento da entrega ou dentro daquele prazo, e
à data em que cessou tal impossibilidade.” E um outro – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
14 de Outubro de 2008 (relator FONSECA RAMOS): “I - O art.º 471 do Código Comercial estabelece,
na sua parte final, um prazo de 8 dias para o comprador denunciar os defeitos da coisa, caso a não
examine no acto da compra, não indicando, no entanto, desde quando se conta o início desse prazo,
estabelecendo um regime legal diverso do previsto no Código Civil - art.ºs 916 n.º 2 e 925 n.º 2 –,
sendo claramente mais restritivo. II - A questão do início da contagem de tal prazo tem sido objecto de
controvérsia, pois se é possível, em certos casos, ao comprador examinar a coisa vendida no acto da
entrega, ou no prazo de oito dias – sempre supondo a sua diligente actuação conforme o paradigma do
bonus pater familias e os usos do comércio – casos haverá em que o comprador não pode, naquele
curto prazo, saber se existe conformidade entre o produto encomendado e o que lhe foi fornecido. III
- Tal dificuldade existe quando se trata de coisas dificilmente examináveis, ou cujos possíveis defeitos
apenas podem emergir quando for pericialmente vistoriada ou utilizada. IV - A noção de defeito da coisa
vendida não é definida especificamente no Código Comercial, pelo que se deve apelar ao regime do
Código Civil, subsidiariamente aplicável – art. 3º do Código Comercial. V - Um vez os bens vendidos “os
“stand posts” em causa seriam montados junto a uma ilha de enchimento de químicos (tóxicos,
aromáticos e inflamáveis), e iriam servir não só para suportar o peso de um braço de carga
(também fornecido pela Autora), mas também como um dos pontos de circulação dos produtos
químicos”, não era exigível ao comprador que verificasse possíveis defeitos no acto de entrega, nem
no prazo e oito dias, por não ter sido estipulado prazo para a montagem. VI - Se no contrato consta uma
cláusula que estatui – “o fornecimento será garantido contra defeitos de fabrico, por um prazo de
12 meses desde que estes sejam comprovadamente originados por defeitos de execução”, existe
uma garantia dada pela vendedora. VII - Estando provado que a Autora fabricou com defeito os postes
recusados pela Ré, e que foi estabelecida uma garantia “contra defeitos de fabrico por um prazo
de 12 meses”, deve concluir-se que a Autora-vendedora, tendo dado aquela garantia, concedeu, em
derrogação do prazo previsto no art. 471 do Código Comercial, o prazo de um ano para a compradora
poder denunciar os defeitos de que a coisa vendida padecesse. VIII - Tendo a denúncia dos defeitos
sido feita dentro do prazo de um ano após a entrega dos “stand posts” não ocorreu caducidade.”
18 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

venda, de locação, de empreitada ou qualquer outra prestação de serviços


assenta na conformidade da coisa com o contrato.
A não-conformidade presume-se verificar uma qualquer das
circunstâncias:
- não coincidência da coisa com a descrição dela efectuada pelo
fornecedor;
- inexistência de qualidades que o fornecedor haja apresentado como
amostra ou modelo;
- inadequação ao uso específico a que a coisa se destine e a que
corresponda a adesão do fornecedor;
- inadequação aos usos habituais de coisas do estilo;
- inexistência de qualidades e de desempenhos habituais de coisas de
análogo género, espécie e tipo.
A não-conformidade, uma vez suscitada por quem se mostre por tal
afectado, obriga à reposição da coisa no estado em que, por direitas contas, se
deveria achar não fora o empeno.
A não-conformidade que se registre ao longo de dois anos, tratando-se
de coisa móvel duradoura, é susceptível de reposição ou de remédios outros,
contanto que a denúncia ocorra no lapso de dois meses após a sua detecção.
Os remédios que a lei aparelha para a reposição da coisa no statu quo
ante (no estado em que se encontraria não fora a não-conformidade) são de
duas ordens:
- reparação;
- substituição, se a coisa for obviamente fungível.
Mas há dois remédios mais, num outro plano, obviamente:
- a redução do preço;
- a extinção do contrato por meio de resolução (com a devolução da
coisa e a restituição do preço).
Os remédios são susceptíveis de operar, independentemente de culpa
do fornecedor (vendedor) ou prestador do serviço6.
Os remédios, a despeito da forma como se apresentam, não obedecem
a qualquer hierarquização, a saber, primeiro a reparação, depois, se tal não
for viável ou se revelar-se oneroso, a substituição e assim por diante. A tal
propósito, atente-se nas divergências suscitadas na jurisprudência e que
constam, exemplificativamente, da nota 19, infra.
O consumidor, contanto que não exerça o seu direito em posição de
manifesto abuso7, pode desde logo pôr termo ao contrato, não tendo obviamente
6
Ao contrário do que sucede no Código Civil, que no seu art.º 914 estabelece: “O comprador tem o
direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível,
a substituição dela; mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a
falta de qualidade de que a coisa padece.”
7
Cfr. art.º 334 do Código Civil que reza: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente
os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 19

que perseguir a via crucis que, nos termos da directiva, é susceptível de se


impor noutros países8.
A garantia pressupõe (e a lei é expressa em assegurá-lo)9 que as partes
componentes ou integrantes sejam de análogo modo cobertas10, ainda que
possa tratar-se de algo dissociável ou aparentemente destacável.
A garantia legal envolve, designadamente:
- as despesas inerentes à remoção da coisa e sua recolocação no lugar
original ou a indicar pelo consumidor, observadas as regras da transparência,
da lealdade;
- os encargos impostos pela mão-de-obra especializada ou não que a
reposição determinar;
- os sobressalentes, os acessórios ou componentes que hajam de ser
recompletados para a reposição da coisa na íntegra e na sua individualidade.
Tais encargos jamais os assumirá o consumidor. Independentemente
da responsabilidade por danos patrimoniais e não patrimoniais que no caso
couberem, de harmonia com o n.º 1 do art.º 12 da LDC.
A caducidade do exercício do direito de acção ocorrerá se o consumidor-
beneficiário, por inércia própria, não propuser acção no lapso de dois anos
contados da denúncia da não-conformidade ou se, uma vez detectada, deixar
escoar o prazo de dois meses sem a denunciar consequentemente.
A caducidade não é de conhecimento oficioso. Antes provocado, de
harmonia com o que define o n.º 2 do artigo 333 do Código Civil, que remete
para o artigo 303, em que se consagra o regime da prescrição.
O fornecedor terá de a arguir na contestação da acção proposta pelo consumidor
e destinada a fazer valer o seu direito, sob pena de a causa lograr o seu efeito.
No que toca às coisas móveis de ocasião, em segunda mão ou usadas, no
quadro das relações jurídicas de consumo, valem as considerações expendidas
nos passos precedentes, salvo no que toca ao prazo, em que é possível reduzi-
lo até a um ano (garantia anual) mediante acordo de ambos os contraentes11.

8
Em Portugal, o preâmbulo do DL 67/2003, de 8 de Abril, acautela o ponto, ao asseverar: “Preocupação
central que se procurou ter sempre em vista foi a de evitar que a transposição da directiva pudesse ter
como consequência a diminuição do nível de protecção já hoje reconhecido entre nós ao consumidor.
Assim, as soluções actualmente previstas na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, mantêm-se, designadamente o
conjunto de direitos reconhecidos ao comprador em caso de existência de defeitos na coisa.”
9
O art.º 4.º, no seu n.º 1.º, diz: “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor
tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução
adequada do preço ou à resolução do contrato”. E, no n.º 3, prescreve: “A expressão «sem encargos»,
utilizada no n.º 1, reporta-se às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o
contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material.”
10
Se um telemóvel tem a garantia de 2 anos – a garantia terá de se exprimir integralmente: a bateria não
pode ter, por exemplo, uma simples garantia de 6 meses.
11
Cfr. o acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Maio de 2002 (Ana Maria BOULAROUT) que, no quadro
da lei antiga (Lei de Defesa do Consumidor vigente, ao tempo, neste particular), estabelece a doutrina
segundo a qual: “I- O comprador de veículo usado tem sempre direito, imperativamente, à garantia de um
ano quanto ao bom estado e bom funcionamento do veículo, sendo que, aquele, conjuntamente com o
vendedor, poderão estabelecer um regime mais favorável mas o que não podem é restringir o limite imposto
20 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Se não houver acordo ou no silêncio do contrato, o prazo de dois anos12


de garantia legal subsiste.
Para as coisas novas a garantia legal de dois anos é inderrogável,
ou seja, é insusceptível de baixar, de ser inferior, ainda que por acordo dos
contraentes.

Garantias Voluntárias
1. Em que consistem
O diploma que rege em um tal domínio define a garantia voluntária
como segue13:

(…) qualquer compromisso ou declaração, de carácter gratuito


ou oneroso, assumido por um vendedor, por um produtor ou
por qualquer intermediário perante o consumidor, de reembolsar
o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo
de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às
condições enumeradas na declaração de garantia ou na respectiva
publicidade14.

S. STINJS15 conceitua a:

(...) garantia contratual ou comercial” como algo que “contém uma


protecção específica de que goza o comprador, nascida da vontade das
partes ou, ao menos, da vontade do vendedor ou do fabricante. É, pois,
facultativa e o vendedor ou o fabricante não é obrigando a oferecê-la,
apesar de a Directiva conter uma regulamentação a propósito. Pode, em
princípio, determinar a extensão da responsabilidade do vendedor ou do
fabricante, as condições e/ou os prazos dentro dos quais opera a garantia.

por lei nem afastá-lo. II- Desta sorte o consumidor a quem tenha sido vendido um veículo automóvel usado
defeituoso poderá exigir a redução do preço ou até a resolução do contrato independentemente de culpa
do vendedor salvo se este o houver informado previamente – antes da celebração do contrato – sendo
irrelevantes quaisquer declarações do comprador a renunciar à mesma por nulidade de tal renúncia. III- A
“idade” do veículo não poderá constituir sem mais, qualquer óbice à operância das exigências técnicas
para a venda a não ser que os eventuais defeitos dela decorrentes tenham sido previamente assinalados.
IV- Mesmo que a reparação do veículo seja eventualmente superior ao seu custo, sibi imputet, pois é
sobre o vendedor que impende uma especial atenção, atenta a actividade comercial desenvolvida, de
verificar a qualidade dos bens vendidos de forma a não lograr as expectativas de quem os adquire nem
ficar prejudicado pois tal dever de verificação tem um duplo objectivo.“
12
O n.º 2 do art.º 5.º da LG prescreve: “Tratando-se de coisa móvel usada, o prazo previsto no número
anterior pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes”. Ponto é que o acordo conste de documento
particular. Não pode a garantia de usado ser imposta unilateralmente pelo operador económico. O facto
implica acordo, aquiescência, manifestação de vontade nesse sentido.
13
Cfr. alínea g) do artigo 1.º do DL 67/2003, de 8 de Abril (modificado pelo DL 84/2008, de 21 de Maio,
como se assinalou).
14
A LDC – Lei de Defesa do Consumidor – estatui no nº 5 do seu artigo 7º: “As informações concretas
e objectivas contidas nas mensagens publicitárias de determinado bem, serviço ou direito consideram-
se integradas no conteúdo dos contratos que se venham a celebrar após a sua emissão, tendo-se por
não escritas as cláusulas contratuais em contrário.”
15
In “Les garanties contractuelles et les actions recursoires dans la Directive sur la vente au
consommateur”, Santiago de Compostela, 2004, p. 1.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 21

As garantias contratuais apresentam-se sob diversas formas: ou se


plasmam nas condições gerais dos contratos de compra e venda (que, em geral,
se descortinam no reverso da factura) ou surgem nas condições particulares ou
ainda em uma espécie de “declaração de garantia” em documento autónomo,
se não se acharem, aliás, integradas na própria embalagem do produto.
A garantia voluntária pode emanar tanto do fabricante, como de
qualquer dos segmentos intermédios da cadeia da produção ao consumo,
como ainda do próprio fornecedor final.
A Directiva européia num dos seus consideranda anteviu a hipótese de a
garantia voluntária se estabelecer, com vantagens recíprocas16.
As vantagens que se perspectivam revelam-se susceptíveis de se
traduzir para:
o fornecedor – a garantia constitui um instrumentos legítimo no quadro
das operações mercantis que promove: pode representar um argumento de
venda, de par com a qualidade e o preço;
o consumidor – mercê do partido que pode tirar de garantias
suplementares tanto mais que uma tal prática pode estimular a concorrência:
os direitos que se lhe outorgam avantajá-lo-ão ante o quadro, de todo mais
estreito, da garantia legal, justamente porque a garantia voluntária não pode
afectar, no seu conteúdo, a que decorre da lei.
De harmonia com a Directiva17 e a lei nacional, “a declaração pela qual o
vendedor, o fabricante ou qualquer intermediário promete reembolsar o preço pago,
substituir reparar ou ocupar-se de qualquer modo de coisa defeituosa vincula o seu
autor nas condições constantes dela e da correspondente publicidade”.

2. Forma
A garantia voluntária obedece à forma: terá de constar de documento
particular, ou de qualquer outro suporte duradouro a que o consumidor haja
acesso, se acaso se tratar de compra e venda à distância, por meio de contrato
digital, telemático ou electrónico.
Em lugar, porém, de se considerar ferida de nulidade a garantia que
não revista a forma legal prescrita, o que só favoreceria o fornecedor relapso,
a lei dispõe imperativamente que:
- a preterição da forma legal prescrita não afecta a validade da garantia,
podendo o consumidor continuar a invocá-la e a exigir a sua aplicação;
- as mensagens de publicidade que se lhe refiram vinculam
16
Cfr. o considerandum 21 que estabelece: “Considerando que, quanto a determinadas categorias de
bens, é prática corrente os vendedores e os produtores oferecerem garantias contra qualquer defeito que
possa manifestar-se durante determinado prazo; que esta prática pode estimular a concorrência; que,
constituindo embora práticas comerciais legítimas, essas garantias não devem induzir os consumidores
em erro; que, para assegurar este objectivo, as garantias devem conter determinadas informações,
incluindo uma declaração de que a garantia não afecta os direitos legais dos consumidores.”
17
Cfr. art.º 6.º.
22 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

imperativamente o anunciante-fornecedor, tanto pelo que decorre do nº 1 do


artigo 9º da LG - Lei das Garantias como pelo que consonantemente se define
no n.º 5 do artigo 7.º da LC – Lei do Consumidor;
- considera-se preenchida a forma qualquer que seja o suporte
utilizado, a saber, condições gerais apostas no documento de compra e venda,
fraseado na embalagem, documento autónomo de que conste a declaração ou
qualquer outro meio ou suporte, ínsito na comunicação social – radiotelevisão,
radiodifusão, imprensa escrita ou suporte avulso (prospectos, brochuras, ...)
em que figure eventual referência.
No que tange às condições gerais dos contratos pré-elaboradas
(maxime, pré-redigidas), realce para o facto de se aplicar o regime que em geral
se lhes quadra, definindo expressamente a LG, no seu artigo 10º, que é nulo
o acordo ou cláusula contratual (aposta em contrato singular) pelo qual antes
da denúncia da não-conformidade ao fornecedor se excluam ou limitem os
direitos do consumidor que a própria lei consigna ou confere.
A nulidade apenas pode ser invocada pelo consumidor ou por quem o
represente, como se tem por elementar.
Ao consumidor reserva a lei a faculdade de optar pela manutenção do
contrato quando algumas das suas cláusulas se acharem feridas de nulidade,
sem prejuízo da completude dos direitos que se lhe outorgam.
De registrar que os direitos de que se trata se transmitem ao adquirente
da coisa, a menos que o fornecedor emita declaração em contrário.
No que em particular se refere à compra e venda de viaturas automóveis
e veículos motorizados usados, realce para o DL 74/93, de 10 de Março, que
deve ser tido em devida conta sempre que se trate de garantias legais ou
voluntárias18.
A forma neste particular decorre tanto da declaração de compra e
venda para o contrato, como da declaração de garantia, haja ou não garantia
voluntária, conforme dispositivos que se revelam em nota.

3. Conteúdo
Do instrumento em que se plasma a garantia voluntária, deverão
18
Cfr. o diploma em epígrafe que reza o que segue: “1- Na venda de automóveis ligeiros de passageiros
e motociclos usados é obrigatória a prestação das seguintes informações: a) Matrícula; b) Preço; c)
Ano de construção, conforme o respectivo livrete;d) Data de matrícula, conforme o respectivo livrete; e)
Registos anteriores de propriedade e seu número, conforme o respectivo título; f) Garantia de fábrica:
prazo de garantia e quilómetros, ou qualquer outra garantia dada pelo fabricante, cuja validade ainda
não tenha expirado; g) Garantia de usado: prazo ou quilómetros, ou outra garantia que o vendedor
conceda. 2 - Na venda de ciclomotores usados é obrigatória a prestação das informações previstas
nas alíneas a) a d) e f) e g) do número anterior. 3 - Exceptua-se do disposto nos números anteriores a
venda feita directamente pelo proprietário indicado no título de registo de propriedade ou, no caso dos
ciclomotores, no certificado de matrícula, quando actue fora do exercício do comércio. 4 - As informações
previstas nos n.ºs 1 e 2 constarão obrigatoriamente de documento escrito, assinado pelo vendedor ou
intermediário, que será afixado no veículo, de modo visível, de forma a permitir uma fácil leitura pelo
interessado, sendo o respectivo duplicado entregue ao comprador no momento da compra e venda.”
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 23

constar imperativamente um sem número de menções, a saber:


- Declaração de que o consumidor goza dos direitos previstos no
diploma de que se trata, e na demais legislação aplicável, e de que tais direitos
não são afectados pela garantia;
- A informação sobre o carácter gratuito ou oneroso da garantia e, neste
último caso, a indicação dos encargos a suportar pelo consumidor;
- Os benefícios atribuídos ao consumidor por meio do exercício da garantia,
bem como as condições para a atribuição destes benefícios, incluindo a enumeração
de todos os encargos, nomeadamente os relativos às despesas de transporte, de
mão-de-obra e de material, e ainda os prazos e a forma de exercício da mesma;
- Duração e âmbito espacial da garantia;
- Firma ou nome e endereço postal ou, se for o caso, electrónico, do autor
da garantia que pode ser entregue para o exercício de uma tal prerrogativa
outorgada ao consumidor, para além obviamente dos estreitos limites em que
a responsabilidade emergente da lei se estrutura (vulgo, garantia legal).
A garantia voluntária (ou contratual ou comercial) só vincula quem na
cadeia da produção ao consumo a haja oferecido.
A LG é expressa em considerar que “a declaração pela qual o vendedor, o
fabricante ou qualquer intermediário promete... vincula o seu autor...”
No que se reporta à garantia voluntária assinale-se que se for oferecida
pelo produtor vincula obviamente o fornecedor (final)19.
Se, porém, o fornecedor final a oferecer, sem o suporte do fabricante ou
produtor, não é susceptível de ser invocada perante estes, vinculando só – e
tão-só – o seu autor, que não os mais, obrigados subsidiariamente aos termos
da garantia legal.
E é relevante que se retenha uma tal perspectiva para se não defraudar
os direitos do consumidor.
E a inversa também é verdadeira. Se o fabricante ou produtor oferecer
uma garantia voluntária (ou legal) que reflicta ou retire direitos ao consumidor,
o fornecedor (final) terá de assegurar as garantais que emergem da lei, ainda
que se não espelhem no documento.
Cfr. a concreta espécie de facto que nos fora suscitada recentemente por
um consulente e que revela um sem número de curiosidades, como segue:

A garantia dos electrodomésticos BRAUN, ao menos os


comercializados pela Worten, que foi onde comprei um “secador de
cabelo”, consta de um prospecto em que figura a data da aquisição,
o carimbo da empresa e a firma do responsável.
A garantia é dada ao consumidor após a efectivação da compra e
nada é esclarecido previamente.
Só que quando quis accionar a garantia, seis meses após a compra,

19
Contra, cfr. S. STINJS, op. cit., p. 5.
24 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

por se ter queimado o aparelho, exigiram-me porque, afirmam,


é de lei, a apresentação da factura ou do documento de compra
correspondente.
Ripostei que não sabia onde tinha o documento de compra e que
“aquela” era a “garantia”, devidamente autenticada por eles.
Disseram-me que não a podiam aceitar porque a data nela aposta
poderia ser facilmente falsificada e, por isso e por ser de lei, exigiam
o comprovativo da compra.

O teor da “garantia” em português é o que segue:

Braun concede a este produto 2 anos de garantia a partir da data de


compra.
Dentro do período de garantia qualquer defeito do aparelho,
devido aos materiais ou ao seu fabrico, será reparado, substituindo
peças ou trocando por um aparelho novo, segundo o nosso critério,
sem qualquer custo.
Caso a reparação não satisfaça, o utilizador tem o direito de
solicitar a substituição do produto por outro igual novo ou ao
reembolso do valor que pagou.
A garantia não cobre avarias por utilização indevida, funcionamento
a voltagem diferente da indicada, ligação a uma tomada de corrente
eléctrica incorrecta, ruptura, desgaste normal por utilização que
causem defeitos ou diminuição da qualidade de funcionamento do
produto.
A garantia perderá o seu efeito no caso de serem efectuadas
reparações por pessoas não autorizadas ou se não forem utilizados
acessórios originais Braun.
A garantia só é válida se a data de compra for confirmada pela
apresentação da factura ou documento de compra correspondente.
Esta garantia é válida para todos os países onde este produto seja
distribuído por Braun ou por um distribuidor Braun autorizado.
No caso da reclamação ao abrigo de garantia, dirija-se ao Serviços
de Assistência Técnica Oficial Braun mais próximo.
Só para Portugal
Serviço e reparação – para localizar o seu Serviço Braun mais
próximo, ligue para: 217243130
Apoio ao consumidor – No caso de surgir alguma dúvida
relativamente ao funcionamento deste produto, contacte por favor
este serviço pelo telefone: 808 20 00 33.”
Pretendo que me prestem, por favor, esclarecimentos acerca dos
meus direitos.

A garantia voluntária - convencional ou contratual e unilateral (no


caso, em rigor, não se trata de uma efectiva convenção, antes de uma imposição
unilateral do fornecedor ou seu representante) - não pode ser, quaisquer que
sejam as circunstâncias, menos favorável ao consumidor do que a garantia
legal, tal como emerge do diploma que rege em tal domínio - o DL 67/2003,
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 25

de 8 de Abril: art.º 9º.


A disposição a que se alude no passo precedente estabelece o seguinte:

1 - (Revogado)
2 - A declaração de garantia deve ser entregue ao consumidor por
escrito ou em qualquer outro suporte duradouro a que aquele tenha
acesso.
3 - A garantia, que deve ser redigida de forma clara e concisa na
língua portuguesa, contém obrigatoriamente as seguintes menções:
a) Declaração de que o consumidor goza dos direitos previstos no
presente decreto-lei, e na demais legislação aplicável, e de que tais
direitos não são afectados pela garantia;
b) A informação sobre o carácter gratuito ou oneroso da garantia
e, neste último caso, a indicação dos encargos a suportar pelo
consumidor;
c) Os benefícios atribuídos ao consumidor por meio do exercício da
garantia, bem como as condições para a atribuição destes benefícios,
incluindo a enumeração de todos os encargos, nomeadamente
aqueles relativos às despesas de transporte, de mão-de-obra e de
material, e ainda os prazos e a forma de exercício da mesma;
d) Duração e âmbito espacial da garantia;
e) Firma ou nome e endereço postal, ou, se for o caso, electrónico,
do autor da garantia que pode ser utilizado para o exercício desta.
4 - Salvo declaração em contrário, os direitos resultantes da garantia
transmitem-se para o adquirente da coisa.
5 - A violação do disposto nos n.os 2 e 3 do presente artigo não afecta
a validade da garantia, podendo o consumidor continuar a invocá-
la e a exigir a sua aplicação.

Ora, a garantia que se oferece, na circunstância, ao consumidor não é


mais favorável do que a que a lei prevê.
Em primeiro lugar, exige - por forma a que se actue a garantia - que o
consumidor anexe o talão de venda ou documento correspondente ao título
de garantia.
Tal exigência, achando-se preenchida a garantia, firmada pelo
responsável, autenticada pelo balcão em que a compra e venda se processou,
é supérflua.
Aplica-se, in casu, a Lei das Condições Gerais dos Contratos de 25 de
Outubro de 1985 (DL 446/85, com as modificações entretanto introduzidas),
já que o formulário reveste a forma de um típico contrato pré-redigido sujeito
a condições gerais.
Não foram comunicadas tais condições, nem sequer foram objecto de
informação prévia, tão pouco se colheu uma assinatura do consumidor – e,
nessa medida, as cláusulas apostas nesse contrato singular acessório do de
compra e venda serão excluídas por força do artigo 8º alíneas a), b) e d) da
invocada Lei.
26 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Ainda que excluídas, a garantia – supletivamente – reconduzir-se-ia aos


termos legais, mais a mais por serem mais gravosas as cláusulas nela apostas
que as directamente emergentes da Lei.
Ainda que no plano formal não fossem excluídas as cláusulas em cada
uma das situações singulares ocorrentes (e são-no de todo) sempre se afirmaria,
numa perspectiva material (da análise substancial), à luz das listas negras e
cinzentas da Lei das Condições Gerais dos Contratos, que tal cláusula estaria
ferida de nulidade por violar a alínea o) do nº 1 do artigo 22, a saber: são
nulas, consoante o quadro negocial padronizado, as cláusulas que “exijam,
para a prática de actos na vigência do contrato, formalidades que a lei não
revê ou vinculem as partes a comportamentos supérfluos, para o exercício dos
seus direitos contratuais”.
Ademais, os remédios em caso de não-conformidade da coisa (defeito
denunciado, como se dizia outrora) não são os que o fornecedor estabelece a seu
bel talante, antes os que servem o interesse directo e imediato do consumidor,
que não pode ser cerceado nos seus direitos. Ponto é que o consumidor não
use de conduta susceptível de se enquadrar no conceito de abuso de direito.
Nem sequer o consumidor se obriga a obedecer a qualquer hierarquia
no quadro dos direitos. Não tem, pois, em primeiro lugar, de ensaiar a
reparação, se não for possível, buscar a substituição, se a substituição se tornar
inviável, por já não haver, v.g., o modelo, passar à redução do preço e, só
em último recurso, tender a invocar fundamento para a extinção do contrato
(por meio da denominada figura da “resolução” com a devolução da coisa e a
restituição do preço)20.
O consumidor pode ante a gravidade do defeito e a perda de confiança na
marca e no fornecedor, reivindicar ou arrogar-se o direito de pôr termo ao contrato
(com a devolução da coisa e a restituição do preço ou equivalente), sem mais.
O artigo 4º da Lei das Garantias (com as alterações, entretanto,
introduzidas) diz expressamente:

1 - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o


consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por
20
Cfr. a boa doutrina, tal como emerge do acórdão da Relação de Évora de 15 de Março de 2007 (relator
Gaito das Neves), cujo sumário reza assim: “Resulta do artigo 12 n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho,
que perante a venda de uma coisa defeituosa, o consumidor pode escolher a reposição que
mais lhe convém, sem qualquer ordem sucessória: a reparação da coisa, a sua substituição, a
redução do preço, a resolução do contrato.” Ao invés do que pretende o Supremo Tribunal de Justiça
que, por acórdão de 13 de Dezembro de 2007 (relator Fonseca Ramos), sustenta, infundadamente,
quanto a nós, o que segue: “VII - O comprador de coisa defeituosa pode, por esta ordem, exigir do
fornecedor/vendedor: 1º - a reparação da coisa; 2º - a sua substituição; 3º - a redução do preço
ou a resolução do contrato, conquanto exerça esse direito, respeitando o prazo de caducidade
- art.º 12.º da LDC. VIII - Ante a manifesta impossibilidade por razões a que os AA. são alheios,
da Ré fabricante/importador por si e pelas suas concessionárias, eliminarem os defeitos que
originariamente afectavam o veículo – não proporcionando segurança, confiança e fiabilidade –
têm os AA. para protecção dos seus interesse económicos – art.º 9.º, n.º 1, da LDC – direito a ver
substituído o bem, nos termos da segunda alternativa conferida pelo n.º 1 do art. 12.º da LDC.”
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 27

meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço


ou à resolução do contrato.
2 - Tratando-se de um bem imóvel, a reparação ou a substituição
devem ser realizadas dentro de um prazo razoável, tendo em conta
a natureza do defeito, e tratando-se de um bem móvel, num prazo
máximo de 30 dias, em ambos os casos sem grave inconveniente
para o consumidor.
3 - A expressão «sem encargos», utilizada no n.º 1, reporta-se às
despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o
contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de
mão-de-obra e material.
4 - Os direitos de resolução do contrato e de redução do preço
podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha
deteriorado por motivo não imputável ao comprador.
5 - O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos
nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou
constituir abuso de direito, nos termos gerais.

Mas o artigo tem de ser lido à luz do que estabelece o preâmbulo do


normativo, no passo seguinte:

Preocupação central que se procurou ter sempre em vista foi a de


evitar que a transposição da directiva pudesse ter como consequência
a diminuição do nível de protecção já hoje reconhecido entre nós
ao consumidor. Assim, as soluções actualmente previstas na Lei
n.º 24/96, de 31 de Julho, mantêm-se, designadamente o conjunto
de direitos reconhecidos ao comprador em caso de existência de
defeitos na coisa.

E no âmbito da LDC - Lei de Defesa do Consumidor – Lei nº 24/96, de


31 de Julho, não estava o consumidor sujeito à observância em “escadinha”
dos remédios nela facultados: o consumidor poderia, por escolha sua, exigir o
que mais lhe conviesse.
Há, pois, preterição dos direitos do consumidor consubstanciados
na Garantia BRAUN, que não atende à imperatividade da lei portuguesa,
limitando ou excluindo direitos injuntivos outorgados aos consumidores.
O que se lamenta é que o diploma legal não haja sido assistido
originalmente de coimas sempre que a violação dos preceitos por parte dos
fornecedores ocorresse, tanto mais que os remédios de natureza consumerística
aparelhados (da disciplina que releva do direito do consumo) se têm por
insuficientes para que os direitos do consumidor não padeçam de qualquer
défice de observância21.
21
Conquanto ainda falho, o art.º 12.º - A veio a colmatar parcialmente a lacuna detectada ao estabelecer
a moldura contra-ordenacional para determinadas práticas que passou a considerar ilícitas, a saber:
“1 - Constituem contra-ordenações puníveis com a aplicação das seguintes coimas: a) De € 250 a €
2500 e de € 500 a € 5000, consoante o infractor seja pessoa singular ou pessoa colectiva, a violação do
disposto no n.º 2 do artigo 4.º; b) De € 250 a € 3500 e de € 3500 a € 30 000, consoante o infractor seja
28 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Já que em caso de persistência do conflito há que lançar mão das vias


jurisdicionais com o que tal postula de delongas e onerosidade, por vezes
excessivas, a despeito das isenções de preparos e custas que se mantêm
dubitativamente de pé para litígios cuja utilidade económica (dada pelo valor
da compra) caibam na alçada dos tribunais de primeira instância (+ 3 750 euros,
com maior rigor: € 3 740.98). Ou, se for o caso, e onde os houver porque não
recobrem todo o território nacional, o recurso aos julgados de paz (órgãos de
administração extrajudicial da justiça) ou aos tribunais arbitrais de conflitos de
consumo, se bem que no quadro da arbitragem voluntária institucionalizada,
o que pressupõe a adesão do agente económico ao pleito e à sua submissão à
tal estrutura de resolução alternativa de litígios.

4. Em conclusão
A garantia voluntária (convencional ou contratual e unilateral) não pode
conferir ao consumidor menos direitos do que os que se consignam na garantia legal.
Viola a Lei das Condições Gerais dos Contratos a exigência segundo
a qual a garantia só vigora se ao documento em que a própria garantia se
plasma se anexar o comprovativo da compra ou documento correspondente
- Lei das Condições Gerais dos Contratos (DL 446/85, de 25 de Setembro):
alínea o) do nº 1 do artigo 22, que comina com nulidade, por força do artigo
12, uma tal cláusula aposta em contrato singular.
Não é o fornecedor que, a seu bel talante, escolhe os remédios: tal direito
é do consumidor. E tal não pode ser precluído ou vedado por disposição
unilateral do fornecedor.
A Lei das Garantias não estabelece uma progressão hierárquica nos
remédios para a não-conformidade da coisa com o contrato: ao consumidor
cabe escolher a que melhor serve os seus interesses negociais, sem prejuízo
da invocação pelo fornecedor do abuso de direito, se o titular do direito – o
consumidor – exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos
bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito de que se trata - Lei
das Garantias nos Contratos de Consumo (DL 67/2003, de 8 de Abril): artigo
4º, nº 5; Código Civil – artigo 334.
A garantia legal é imperativa e os direitos do consumidor não poderão
ser defraudados.
Daí que se reconduza a oferta aos termos definidos na lei, como se tem
por curial, podendo invocar-se perante o fornecedor (final).
A garantia deve ser redigida de forma clara e concisa em língua
portuguesa, no que nos toca22.
pessoa singular ou pessoa colectiva, a violação do disposto no n.º 3 do artigo 9.º 2 - A negligência e a
tentativa são puníveis sendo os limites mínimo e máximo das coimas aplicáveis reduzidos a metade.”
22
Cfr. LG – Lei das Garantias – n.º 3 proémio do artigo 9.º. Cfr. ainda a LDC – alínea a) do n.º 2
do artigo 9.º, a saber: “A redacção clara e precisa, em caracteres facilmente legíveis, das cláusulas
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 29

De resto, o DL 238/86, de 19 de Agosto, com a redacção decorrente do


DL 42/88, de 6 de Fevereiro, estabelece imperativamente o emprego da língua
portuguesa neste particular23.

Exercício Efectivo dos Direitos


1. A denúncia da não-conformidade: meios
A denúncia da não-conformidade da coisa com o contrato é susceptível
de se efectuar mediante notificação por carta registrada com aviso de recepção
ou por outra forma que de modo inequívoco reflicta a sua recepção por parte
do fornecedor (final), a saber, por meio de telecópia ou por correio electrónico,
na exacta medida em que haja efectiva confirmação de que a denúncia haja
sido realizada.
A denúncia pode ainda ser efectivada por meio de notificação judicial
avulsa.
A denúncia deve ser promovida no lapso de dois meses, tratando-se de
coisa móvel duradoura, após a detecção da não-conformidade da coisa com o
contrato, na acepção que do conceito se retém.
Se a denúncia se não efectivar no lapso a que se alude, o direito (qualquer
dos direitos enunciados no nº 3 do capítulo I) caduca.
A denúncia pode ser ainda efectivada na acção declarativa de
condenação que se instaurar.
A denúncia deve precisar a factualidade em que assenta a não-
conformidade de modo absolutamente definido e discriminado, em vista
designadamente das suas características e tendo por base as hipóteses em que
o fenómeno se consubstancia, a saber:
- ante a desconformidade face à descrição oferecida pelo fornecedor
- inexistência de qualidades que o fornecedor haja apresentado como
amostra ou modelo
- inexistência de qualidades e de desempenhos habituais a coisas do
género, espécie e tipo
- inadequação ao uso específico a que se destine e a que corresponda a
adesão do fornecedor
- a inadequação aos usos habituais de coisa do estilo
A denúncia deve ser o mais pormenorizada possível, objectiva e
rigorosa por forma a não se dar o flanco ao fornecedor, que pode aproveitar
eventuais insuficiências para se eximir de modo fundado às obrigações legais
e/ou contratuais que pesam sobre si.
contratuais gerais, incluindo as inseridas em contratos singulares”.
23
Cfr. artigo 1.º que define sem margem para dúvidas que: “As informações sobre a natureza,
características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional, quer as
constantes de rótulos, embalagens, prospectos, catálogos, livros de instruções para utilização ou
outros meios informativos, quer as faculdades nos locais de venda ou divulgadas por qualquer meio
publicitário, deverão ser prestadas em língua portuguesa.”
30 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

A denúncia não deve ser temerária. Ou seja, se no momento em que for


celebrado o contrato o consumidor tiver conhecimento da não-conformidade
ou não puder razoavelmente ignorá-la, não será lícito que invoque o vício.
Como não será de análogo modo lícito se a não-conformidade decorrer dos
materiais fornecidos pelo próprio consumidor.
A não-conformidade é ainda imputável ao consumidor se a instalação, assistida
de instruções correctas de montagem, não for convenientemente efectuada.
Já a denúncia de não-conformidade procederá se a instalação integrar o
contrato de compra e venda e houver sido efectuada pelo fornecedor ou sob
sua responsabilidade.
Ou, sendo o produto instalado pelo consumidor, a não-conformidade
resultar de incorrecções existentes nas instruções de montagens.

2. A acção singular de declaração: a acção directa - a legitimatio ad causam


passiva
Notificada a não-conformidade da coisa com o contrato, e manifestado
o remédio por que opta o consumidor, uma de duas:
- ou o fornecedor convém na solução e age em conformidade com a
manifestação expressa pelo consumidor,
- ou remete-se ao silêncio não dando provimento a qualquer das
pretensões deduzidas pelo consumidor.
Se a atitude do fornecedor se conformar à primeira das hipóteses, o
consumidor respirará de alívio porque se satisfará a pretensão carreada
perante quem tem o poder-dever de o restituir ao statu quo ante, expressão
que deve ser entendida cum grano salis...
Se o fornecedor se revelar relapso, contumaz, manda a lei que o
consumidor seja diligente sob pena de se escoarem os seus direitos, perdendo-
os irremediavelmente.
A lei cominava do antecedente com caducidade - em um baixíssimo lapso de
tempo (seis meses) - a eventual inércia do consumidor. Em oposição manifesta às
prescrições da Directiva 99/44, de 25 de Maio, o que obrigou o legislador a emendar
a mão ao promover modificações no diploma original em 21 de Maio de 200824.
Certo que o decurso dos prazos se suspende durante o período de
tempo em que o consumidor se achar privado do uso da coisa em virtude das
operações de reparação a que se submeter.
Porém, se o consumidor não agir no lapso a que se alude – dois anos
– após a denúncia de não-conformidade, os remédios de que poderia lançar
mão ficam irremediavelmente comprometidos.

24
Cfr. o art.º 5.º - A que, no seu 3, prescreve: “Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da
desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo
4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo
de três anos a contar desta mesma data.”
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Ponto é saber se poderá, em termos substitutivos, lançar mão da acção


de indemnização a que se reporta o n.º 1 do artigo 12 da LDC – Lei de Defesa
do Consumidor – na sua formulação hodierna.
E afigura-se-nos obviamente que se tem de pender para a afirmativa.
Porém, importa analisar sob a perspectiva de cada um dos remédios
o que, afinal, cabe ao consumidor empreender no lapso de dois anos após a
denúncia:

2.1 A resolução do contrato


Não se nos afigura que, a tal propósito, haja o consumidor de interpor
uma acção declarativa de molde a reverter a situação em seu favor.
Tanto mais que a lei não impõe que a resolução do contrato seja
imperativamente decretada pelos tribunais.
Donde, no lapso a que se reporta a LG, poder o consumidor lançar mão
dos meios que o nº 1 do artigo 436 do Código Civil lhe confere: “a resolução do
contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte” - declaração unilateral
por meio de carta registada com aviso de recepção ou por qualquer outra via
inequívoca.
A resolução tem, como efeitos, inter partes, os que decorrem da nulidade
ou anulabilidade do negócio jurídico25, ainda que noutros aspectos comporte
especificidades que ora não importam26.
Por conseguinte, não há a este propósito necessidade de se “recorrer”
ao molde da acção de declaração a instaurar contra o fornecedor.
A substituição da coisa: se, na realidade, o remédio por que optar
o consumidor for o da substituição, exactamente porque as coisas móveis
(duradouras) têm natureza fungível, e o fornecedor tripudiar, resistindo, ao
lesado, não restará alternativa senão a interposição de uma acção declarativa
de condenação, podendo demandar a seu bel talante o fornecedor ou o
produtor, como adiante se verá.
Acresce agora o facto de se a recusa de substituição se protrair por
mais de 30 dias, a conduta do fornecedor constituir ilícito de mera ordenação
social. O que, a tratar-se de uma empresa, a sujeitará, no limite, a uma coima
susceptível de atingir 5000€.
Para tanto devendo tal recusa ser objecto de reclamação no livro
disponível, presente na empresa, para ulterior remessa do exemplar respectivo
à autoridade de supervisão do mercado para instrução dos autos e efeitos
subsequentes ou, então, de participação autónoma a apresentar à entidade
25
Cfr. art.º 289 do Código Civil, como segue: “1. Tanto a declaração de nulidade como a anulação do
negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição
em espécie não for possível, o valor correspondente. 2. Tendo alguma das partes alienado gratuitamente
coisa que devesse restituir, e não podendo tornar-se efectiva contra o alienante a restituição do valor
dela, fica o adquirente obrigado em lugar daquele, mas só na medida do seu enriquecimento.3. ...”
26
Cfr. art.os 434 e seguinte.
32 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

competente para os efeitos neste passo evidenciados.


E o lapso em que acção tiver de ser proposta ou intentada não pode ser
ultrapassado sob pena de caducidade, com as delongas que os procedimentos
judiciais poderão determinar, como oportunamente se assinalou.
A reparação da coisa: análogas considerações se poderão expender a
tal propósito, se a via por que se optar for, num quadro de regularidade e ante
o exercício normal do direito, a reparação.
Também neste particular as regras válidas para a substituição se
aplicarão por força do n.º 1 do artigo 12–A da LG: ilícito de mera ordenação
social passível de coima e sanções acessórias, se o fornecedor incumprir, como
que a apelar a que observe espontaneamente os deveres a seu cargo, repondo,
por meio da reparação, a coisa em conformidade com o contrato.
A redução do preço: nem sempre a redução do preço se tem como
remédio adequado, em particular se a coisa ante a não-conformidade com o
contrato padecer de vício que a impeça de todo de cumprir o fim a que se
destina.
A redução do preço só relevará se o vício de que a coisa padece a
desvalorizar, por lhe retirar, v. g., funções que o consumidor entendeu poder
delas prescindir sem detrimento da coisa em si mesma considerada.
Mas a via jurisdicional impor-se-á se o fornecedor primar pela
inércia, incúria, descaso ou pela contumácia em atender às reivindicações do
consumidor no que tange aos remédios ajustados que reclamar.
Donde se afigurarem despiciendas outras considerações.

3. A acção directa
Situação diversa é a que a LG ora contempla no que se refere à faculdade
de poder ser actuada directamente a responsabilidade do produtor, em lugar
da do fornecedor que se acha na ponta terminal da cadeia da produção ao
consumo e que, foi, afinal, quem negociou com o consumidor.
Trata-se da denominada acção directa, de resto já permitida no direito
português no particular da actuação da responsabilidade do produtor por
produtos defeituosos27, em decorrência do que prescreve, aliás, a Directiva
(CEE) 85/374, de 25 de Julho de 1985, do Conselho das Comunidades
Económicas Europeias.
A acção directa restringe-se, porém, a dois dos remédios mais ténues,
a saber:
- reparação
- substituição.
Dela se excluem a resolução do contrato e a redução adequada do preço da
coisa.

27
Cfr. o DL 383/89, de 6 de Novembro – art.º 1.º.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 33

A legitimatio ad causam no pólo passivo da relação jurídico-processual é


susceptível de recair sobre o produtor ou o seu representante.
Produtor é:
- o fabricante de uma coisa de consumo
- o importador na União Europeia
- qualquer outra pessoa física ou jurídica que se apresente como tal,
através do seu nome, marca ou outro sinal de identificação no produto.
Representante do produtor é:
- qualquer pessoa singular ou sociedade mercantil que actue na
qualidade de distribuidor comercial do produtor
- o centro autorizado do serviço pós-venda.
Não é representante o vendedor independente que apenas actue na
qualidade de retalhista.
A responsabilidade do produtor e do representante é solidária28. A
solidariedade resulta, neste particular, da lei: LG - nº 3 do seu artigo 6.º.
O produtor, na acepção que da figura se retém, pode, porém, impugnar
a sua legitimidade processual passiva se a não-conformidade:
- resultar exclusivamente de declaração do fornecedor sobre a coisa e /
ou seu uso ou da sua má utilização;
- não se verificar no momento em que colocou a coisa em circulação,
tendo em conta as circunstâncias do caso;
- ocorrer após mais de dez anos sobre a colocação da coisa em circulação;
- emergir do facto de não haver fabricado a coisa nem para venda, tão-
pouco para qualquer outra forma de distribuição com intuitos lucrativos;
Pode ainda suscitar a sua ilegitimidade processual se não tiver:
- colocado a coisa em circulação;
- fabricado a coisa;
- distribuído a coisa no quadro do seu mester (múnus profissional).
Por último, registe-se que parece, isso sim, haver uma não-conformidade
entre o que prescreve a directiva e o diploma legal de transposição, a saber, a
LG que ora vigora em Portugal.
Com efeito, no tocante a prazos, o artigo 5.º da Directiva 99/44/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, prescreve no seu
nº 1:

O vendedor é responsável, nos termos do artigo 3°, quando a falta


de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois anos

28
Cfr. Código Civil – art.º 512: “1. A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela
prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por
si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles. 2. A obrigação não deixa de ser
solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias,
ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar
quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores solidários.”
34 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

a contar da entrega do bem. Se, por força da legislação nacional,


os direitos previstos no n° 2 do artigo 3° estiverem sujeitos a um
prazo de caducidade, esse prazo não poderá ser inferior a dois anos
a contar da data da entrega.

Ora, os direitos cujo exercício se conclama são os que se acham descritos


no nº 2 do artigo 3º, a saber, reparação, substituição, redução do preço e
resolução do contrato.
Sucede, porém, que o legislador nacional reduziu, em oposição
manifesta à letra e ao espírito da directiva, o prazo de caducidade de dois
anos para o exercício dos invocados direitos, a seis meses, no diploma original.
Neste enquadramento houve expressa manifestação de afrontamento
às normas imperativas da directiva.
Com reacção dos tribunais, como se pôde apreciar em sucessivas
ocasiões29.
O DL 84/2008, de 21 de Maio, veio, no seu artigo 5.º-A, e no n.º 3, a
compaginar os prazos para propositura de acções com os que na Directiva se
plasmavam, pondo-se destarte cobro à violação subscrita pelo legislador na
versão original da LG.

4. O exercício do direito de regresso: seu regime


O fornecedor que haja satisfeito ao consumidor qualquer dos direitos
em que se traduz a superação da não-conformidade da coisa com o contrato
(a resolução do contrato, a substituição da coisa, a sua reparação ou a redução
do preço, a bel talante do consumidor e no quadro de um exercício normal
do direito, sem afecção nem excesso do fim económico a que visa servir) e
bem assim o sujeito contra quem houver sido exercida tal faculdade gozam do
direito de regresso contra o profissional, qualquer que seja e em qualquer elo
da cadeia da produção à distribuição, a quem tenham adquirido a coisa, de
molde a ressarcirem-se dos prejuízos causados pelo accionamento dos direitos
em causa.

29
Confira, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2010 (relator João
Camilo), que define o que segue: “I. Os prazos de caducidade previstos no art.º 917 do Código Civil
para a acção de anulação de venda de coisa defeituosa aplicam-se aos demais meios de reacção
do comprador contra aquela venda: reparação/substituição da coisa, redução do preço, resolução do
contrato ou indemnização. II. Prevendo a Directiva Comunitária n.º 1999/44/CE, de 25-05-1999, que os
meios de defesa do comprador–consumidor de coisa defeituosa ali previstos: reparação/substituição da
coisa, redução do preço e [resolução], não possam caducar antes de decorridos dois anos da entrega
da coisa em causa, não respeitou tal norma o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8/4, que declarando proceder
à transposição da Directiva, manteve o prazo de seis meses para a caducidade daqueles direitos que
já constava quer da Lei de Defesa do Consumidor – Lei n.º 24/96 de 31/7 - quer do art.º 917 do Código
Civil. III. As Directivas Comunitárias têm aplicação directa na ordem jurídica interna – mesmo entre
particulares, ou seja, têm efeito horizontal -, mesmo que não transpostas ou transpostas em termos que
as violem, desde que haja decorrido o prazo para a sua transposição e sejam suficientemente claras
e precisas, se mostrem incondicionais e não estejam dependentes da adopção de ulteriores medidas
complementares por parte dos Estados- membros.”
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 35

O demandado poderá afastar, como meio de defesa, o invocado direito


de regresso se fizer prova de que a não-conformidade inexistia no momento
em que a coisa fora entregue ou se o defeito, posterior à entrega, não tiver sido
causado por si30.
A LG, no n.º 4 do seu artigo 7.º, estabelece, porém, que o acordo pelo
qual se exclua ou limite antecipadamente o exercício do direito de regresso só
produz efeitos se for atribuída ao seu titular adequada compensação.
Claro que sem prejuízo do regime das condições gerais dos contratos –
plasmado na LCGC – Lei das Condições Gerais dos Contratos (DL 446/85, de
25 de Outubro com alterações subsequentes).
Na realidade, a LCGC prescreve imperativamente a nulidade de
cláusulas apostas em contratos singulares (e predispostas em formulários pré-
elaborados) sempre que
- excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade
por cumprimentos defeituoso
- excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade
por actos de representantes ou auxiliares, em caso de dolo ou culpa grave
- excluam a faculdade de compensação, quando admitida na lei, como
é o caso
- imponham ficções de recepção, de aceitação ou outras manifestações
de vontade com base em factos para tal insuficientes
- façam depender a garantia das qualidades da coisa cedida,
injustificadamente, do não recurso a terceiros
- consagrem, a favor do pré-disponente, a faculdade de modificar as
prestações sem compensação correspondente às alterações de valor verificadas.
E obviamente sempre que se preclua a cláusula geral da boa-fé, nas
vertentes objectiva e subjectiva por que se desdobra.
O profissional pode exercer o direito de regresso na acção que o
consumidor haja instaurado.
O meio processual idóneo, com as necessárias adaptações, é o que
decorre do Código de Processo Civil – nº 2 do artigo 329: intervenção de
terceiros, na modalidade de intervenção principal e, dentre esta, na da
intervenção provocada.

O chamamento de condevedores ou do principal devedor, suscitado


pelo demandado que nisso mostre interesse atendível, é deduzido
obrigatoriamente na contestação...

Se o demandando não pretender contestar, o chamamento ocorrerá no


30
Não se olvide que o n.º 1 do art.º 796 do Código Civil prescreve, no tocante ao risco, que “nos
contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram
um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante
corre por conta do adquirente”.
36 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

prazo em que a contestação deveria ser apresentada.


Se tratar-se de obrigação solidária, exigindo-se a globalidade da
prestação a um só dos condevedores, o chamamento poderá visar a condenação
na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir.
O profissional (fornecedor, produtor, distribuidor...) goza do direito
de regresso durante cinco anos contados da data da entrega da coisa pelo
demandado original, sob pena de caducidade de um tal direito.
O profissional deve exercer o seu direito no prazo de dois meses a
contar da data da satisfação do direito ao consumidor.
Prazo que se suspenderá durante o processo em que o fornecedor final
seja parte, se o direito de regresso for exercido autonomamente, que não na
acção declarativa de condenação instaurada pelo próprio consumidor.

Conclusões
Do que precede, afigura-se-nos poder concluir de modo breve, de sorte
a que se retenha, no essencial, o regime objecto de explanação, como segue:
Não há uma disciplina unívoca neste particular ante a diversidade
classificatória dos contratos no denominado direito privado:
- contratos civis
- contratos comerciais
- contratos de consumo
 A cada um dos contratos, o seu regime próprio: os de consumo
confortam-se com a disciplina constante do DL 67/2003, de 8 de Abril,
republicado pelo DL 84/2008, de 21 de Maio, no quadro da LDC - Lei 24/96,
de 31 de Julho.
A garantia legal, como a voluntária, se a houver, recobre as modalidades
de contratos de consumo, a saber:
- contratos de compra e venda
- contratos de locação
- contratos de empreitada
- outros contratos de prestação de serviço
 O prazo legal de garantia é de dois anos contados da data da entrega
da coisa móvel.
O prazo para denúncia da não conformidade da coisa com o contrato é
de dois meses após a sua detecção.
O prazo para o exercício do direito de acção, se for o caso, é de dois anos
contados da data em que se efectiva a denúncia.
Os remédios para a não conformidade, previstos na lei, compendiam-
se como segue:
- Reparação
- Substituição da coisa
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 37

- Redução adequada do preço


- Resolução do contrato (restituição da coisa, devolução do preço)
Os remédios, ao invés do que sustenta uma certa doutrina e conquanto
se sufrague em jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça menos
estribada, menos fundada, não obedecem a uma qualquer hierarquia: tal
resulta da LDC, na sua formulação original, e do que no preâmbulo da LG
se encerra - a salvaguarda do melhor direito reconhecido do antecedente ao
consumidor nas leis portuguesas. Não há que começar, pois, pela reparação,
seguir-se pela substituição e prosseguir a tábua dos remédios até ao mais
grave dos outorgados.
A opção, porém, por qualquer dos remédios incumbe ao consumidor
que não ao fornecedor.
O consumidor está, no entanto, limitado pelo exercício coerente do seu
direito, vale dizer, não pode lançar mão de um qualquer remédio em situação
manifesta de abuso de direito: não pode exceder manifestamente os limites
impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social de
um tal direito.
Em caso de reparação ou substituição, o lapso dentro do qual tais
operações se têm de consumar não pode exceder os trinta dias sob pena de
ilícito de mera ordenação social, passível de coima não superior a 5 000€e de
sanções acessórias.
Em caso de substituição, à coisa substituenda se abre novo prazo de
garantia legal contado da data em que a substituição se tiver operado.
  O consumidor pode exigir a garantia legal tanto do fornecedor, ou
seja, daquele com quem celebrou o contrato de consumo, como – apenas para
dois dos remédios noutro passo enunciados: a reparação e a substituição –
do produtor ou do importador na União Européia, neste particular mediante
acção directa.
O fornecedor que tiver satisfeito a garantia legal ou contratual, se
for o caso, ao consumidor, tem direito de regresso contra o distribuidor ou
o produtor, consoante as situações, caducando a acção se o não fizer nos
dois meses imediatos à satisfação da garantia ou se a coisa móvel tiver sido
adquirida há mais de cinco anos.
38 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
IMPROBIDADE POR OMISSÃO: ASPECTOS
MATERIAIS E PROCESSUAIS

PAULO JOSÉ FREIRE TEOTÔNIO1

Resumo
O presente estudo tem como objetivo analisar as implicações da inação do agente público
quanto ao exercício de funções inerentes a seu munus público.

PALAVRAS-CHAVE: Supremacia do interesse público; Lealdade institucional; Tomada


de providências.

Introdução
Atualmente muito se discute sobre os efeitos da inércia do administrador,
ou seja, sobre a prevaricação do agente público na tomada de providência que
lhe era obrigatória e peculiar ao exercício de suas funções.
Evidente que toda ação contrária à moralidade administrativa, esteja
ela ou não descrita no mandamento do art. 37 da CF, mesmo que não tenha
causado dano patrimonial ao erário, pode caracterizar ato de improbidade, ex
vi do tipificado no artigo 11, “caput”, e inciso I, da Lei n. 8.429/92.
Com efeito, estando a conduta do agente público inserida em algum
dos dispositivos da Lei. 8.429/92, mesmo que não tenha representado efetivo
dano ao erário, aplicável à espécie o disposto no artigo 21, inciso I, da Lei
8.429/92, que estabelece:

Art. 21 - A aplicação das sanções previstas nesta Lei independe:


I - da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público (...)

Assim, as práticas dos agentes que importem em graves ofensas aos


princípios constitucionais, principalmente os da legalidade e moralidade, que,
dentre outros, informam a boa administração, devem comportar as sanções
previstas na LIA, sendo necessária a utilização do instrumento da ação civil
pública de reparação de danos a que se refere à Lei de Improbidade (Lei n.
8.429/92), ferramenta jurídico-processual hábil a tutelar o patrimônio público
de forma conglobada, incluindo-se, com efeito, o patrimônio moral, de modo
a resguardar o primado do interesse coletivo sobre o do grupo ocupante do
poder.
1
Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP - turma de 1990), Pós-graduado
(especialização) pela Faculdade de Direito Municipal de Franca. Mestre pela Universidade de Ribeirão
Preto (UNAERP-SP). Foi Coordenador dos Cursos de Direito das Faculdades Unificadas de Barretos
(UNIFEB) e do Instituto Municipal de Ensino de Bebedouro (IMESB-VC). Atualmente, é Promotor de
Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, na Comarca de Ribeirão Preto, ministrando aulas
no Curso de Direito das Faculdades UNISEB-COC e UNAERP.
40 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

A Lei Federal n. 8.429, de 2 de junho de 1992, dispõe, em seu preâmbulo:


sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento
ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração
pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências.
Embora esse preâmbulo destaque o enriquecimento ilícito dos agentes
públicos no exercício de mandato, cargo, emprego ou função, é certo que
essa lei foi editada para dar efetividade ao disposto no artigo 37, § 4º, da
Constituição Federal, segundo o qual:

(...) os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão


dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade
dos bens e o ressarcimento ao erário na forma e gradação previstas
em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

A improbidade que se sujeita a sanção é caracterizada quando da


adequação ao caso concreto dos comandos normativos emergentes dos artigos
1º, 2º, 3º e 11, dentre outros, da Lei 8.429/92, assim estatuídos:

Art. 1º. Os atos de improbidade praticados por qualquer agente


público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta
ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa
incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja
criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais
de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão
punidos na forma da lei.
Parágrafo único. Estão sujeitos às penalidades desta lei os atos
de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que
receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de
órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o
erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por
cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos,
a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição
dos cofres públicos.
Art. 2º. Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo
aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração,
por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra
forma de investidura ou vinculo, mandato, cargo, emprego ou
função nas entidades mencionadas no artigo anterior.

A norma de defesa da probidade administrativa, além de trazer os


princípios acima citados, cuidou de tipificar, de forma exemplificativa, atos
que ferem a probidade administrativa, dividindo-os em três grandes grupos:
a-) dos atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento
ilícito (art. 9º), b-) dos atos de improbidade administrativa que causam prejuízo
ao erário (art. 10), e, c-) dos atos de improbidade administrativa que atentam
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 41

contra os princípios da administração pública (art. 11).


Necessário destacar, por oportuno, o texto legal pertinente à hipótese
ora em estudo, ou seja, atos contrários à moralidade, aos princípios que
regem a boa administração, que não provoquem dano efetivo ao erário.
Oportunamente, enfatizaremos as duas hipóteses ventiladas no título: o desvio
de finalidade e a omissão. Vejamos:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta


contra os princípios da administração pública qualquer ação ou
omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade,
legalidade e lealdade às instituições...

Trata-se de conduta que se amolda na infração dos princípios norteadores


da Administração, estampados no artigo 37 da Constituição, tendo como carros
chefe à legalidade e a moralidade. De se observar, no entanto, que ínsitos
ao princípio da legalidade, dentre outros, estão os princípios da finalidade e
indisponibilidade dos interesses públicos. Por certo, a finalidade pública é o bem
jurídico buscado pelo ato administrativo e o Administrador Público têm dever
jurídico de alcançá-lo, sob pena de incorrer em abuso de poder.
Ruy Cirne Lima, ao abordar os princípios de direito administrativo, bem
definiu o conceito de Administração, enfatizando que a palavra administração,
tanto sob a ótica do direito privado como do direito público, designa atividade
do que não se é proprietário. Prossegue, afirmando com muita propriedade
que:

O fim - e não a vontade - domina todas as formas de administração.


Supõe, destarte, a atividade administrativa a preexistência de
uma regra jurídica, reconhecendo-lhe uma finalidade própria.
Jaz, conseqüentemente, a administração pública debaixo da
legislação que deve enunciar e determinar a regra de direito.” ...
“Administração, segundo o nosso modo de ver, é a atividade do
que não é proprietário - do que não tem a disposição da coisa ou
do negócio administrado.”...”Opõe-se a noção de administração à
de propriedade visto que, sob administração, o bem não entende
vinculado à vontade ou personalidade do administrador, porém, à
finalidade impessoal a que essa vontade deve servir. (“Princípios de
Direito Administrativo”, Editora RT, 5ª ed., 1.982 pp. 20 e 22)

Melhor dizendo, o Administrador ou quem está encarregado de gerir


dinheiro público não pode deixar de atender a finalidade legal pretendida
pela lei. Não tem ele a disponibilidade sobre os interesses públicos confiados
à sua guarda. Estes são inapropriáveis, ao contrário do que supõem alguns
gestores pouco afetos as práticas democráticas, que agem como verdadeiros
donos da coisa pública, o que evidentemente não se pode permitir.
O Princípio da Moralidade, previsto no caput, do artigo 37, da
42 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Constituição Federal, incontestavelmente, constitui pressuposto de validade


de toda atividade administrativa. A respeito do alcance desse princípio e
citando lição de Maurice Hauriou, Hely Lopes Meirelles ressaltou que:

A moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto de


validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput).
Não se trata - diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito - da
moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como
“o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da
Administração.
[...]
O certo é que a moralidade do ato administrativo juntamente com
sua legalidade e finalidade constituem pressupostos de validade
sem os quais toda atividade pública será ilegítima.

O exame da moralidade do ato, outrossim, contém um decisivo


componente ético. O administrador não deve cingir-se apenas à legalidade ou
ilegalidade, justiça ou injustiça e à conveniência e oportunidade do ato. Deve,
também, ajustar sua conduta aos parâmetros da moralidade. Analisando a
moral em relação ao objeto do ato administrativo, Maria Sylvia Zanella Di
Pietro afirma que:

Não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio


objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo
do determinado ato contrariar o senso comum de honestidade,
retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano,
à boa fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige
proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir; entre os
sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos;
entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os
encargos impostos à maioria dos cidadãos.
Não é preciso, para invalidar despesas desse tipo, entrar na difícil
análise dos fins que inspiraram a autoridade; o ato em si, o seu objeto,
o seu conteúdo, contraria a ética da instituição, afronta a norma de
conduta aceita como legítima pela coletividade administrada. Na
aferição da imoralidade administrativa, é essencial o princípio da
razoabilidade.

José Augusto Delgado, por seu turno, enfatiza que:

(...) a elevação da dignidade do princípio da moralidade


administrativa, a nível constitucional, embora desnecessária, porque
no fundo o Estado possui uma só personalidade, que é a moral,
consubstancia uma conquista da Nação que, necessariamente,
por todos os seus segmentos estava a exigir uma providência
mais eficaz contra a prática de atos administrativos violadores do
princípio da moralidade. Insurge-se, assim, o administrado, com
base em princípio constitucional, contra o erro, o dolo, a violência, a
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 43

arbitrariedade e o interesse pessoal quando presentes na prática da


ação administrativa pública.

Ainda respeitante ao princípio da moralidade administrativa, José


Afonso da Silva afirma o seguinte:

Pode-se pensar na dificuldade que será desfazer um ato, produzido


conforme a lei, sob o fundamento do vício da imoralidade. Mas isso
é possível porque a moralidade administrativa não é meramente
subjetiva, porque não é meramente formal, porque tem conteúdo
jurídico a partir de regras de princípios da Administração. A lei pode
ser cumprida moralmente ou imoralmente, quando sua execução é
feita, p. ex., com intuito de prejudicar alguém deliberadamente, ou
com intuito de favorecer alguém, por certo que se está produzindo
um ato formalmente legal, mas materialmente comprometido com
a moralidade administrativa.

Diante de tal quadro, infere-se que os agentes públicos, além de


obedecer à norma jurídica, devem nortear suas condutas pelo ingrediente
ético, posto que, ferido o princípio da moralidade, com evidente conteúdo
ético, o ato praticado estará maculado com o vício da ilegalidade.
Como assevera Márcio Luiz Chila Freyesleben (A Improbidade
Administrativa - Comentários à Lei nº 8.429/92):

Os agentes públicos devem observar deveres que lhes são impostos


pela Lei e pela ética jurídico-administrativa, bem como aqueles que
lhes são exigidos pelo interesse público. Os deveres são estabelecidos
no ordenamento jurídico, em especial na Constituição e nas leis
administrativas. O conjunto dos deveres forma o que se poderá
chamar de ordenamento ético. (JUS, nº 17/Ministério Público de
Minas Gerais Ano XXIV).

Da Obrigação da Tomada de Providências em Face de Representações


Formalizadas por Populares
Para demonstrar o espírito desviante da conduta proba, que não deixe
margem à dúvida, muitas vezes o intérprete deve valer-se das circunstâncias
que estiveram presentes quando da prática de ato administrativo ou omissão
daquele que obrigatoriamente deveria ser tomado.
Com efeito, algumas atitudes e condutas, que revelam um modo
profano de fazer política e administrar o bem público, denotam a clara intenção
do agente em prostrar-se inerte, de forma conveniente com os interesses dos
aliados, em ocasião em que, paralelamente, pratica outros variados atos
administrativos, com o condão exclusivo de desviar o foco do embate acerca
da má administração ou de malversação do erário, fazendo imputações aos
representantes ou delatores, bem como invocando questões dispersas do tema
44 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

em debate, para que se crie, artificialmente, uma nova discussão, esquecendo-


se a anterior.
Desta forma, por vezes, deixa o agente público de praticar ato que a
lei e os regulamentos atinentes ao seu ofício ditavam que deveria ser tomado,
independentemente de quem tenha sido o seu causador, pelo princípio da
impessoalidade, merecendo o mais forte repúdio e a intervenção da mão forte
do Poder Judiciário, guardião da Constituição e das Leis, último refúgio do
cidadão de bem diante das arbitrariedades, independentemente de partido
político, das pessoas que ocupam os cargos referidos, da influência de seus
aliados e de suas bravatas.
A representação formulada perante autoridade competente, por
evidente, deve merecer crédito de parte dos agentes públicos, que devem levá-
la a bom termo, independentemente de quem seja o representado, desde que
preencha aos requisitos legais e formais, sendo idônea a finalidade cotejada
pelo representante.
Em certas ocasiões, demais disso, em razão de ocupar cargo, função ou
emprego de relevo, ou seja, também nas condições estipuladas no art.2º, da
Lei 9.429/92, independentemente das relações que mantenha com a pessoa
do representante ou do representado, deve o agente, na elevada e prestigiosa
condição que exerce, afastando qualquer convicção ideológica, relação de
amizade ou parentesco, deve proceder à rigorosa apuração dos fatos ou de
determinar providências, inclusive judiciais, que lhe competiam, a menos que
se declare suspeito ou impedido, caso em que será substituído por outrem,
vez que não pode ser conivente com a situação de eventual ilegalidade ou
imoralidade.
O agente que, desta forma, estiver consciente da prática de conduta que
afronte a moralidade administrativa, não pode deixar de determinar, como
manda a lei e os regulamentos próprios da função ou profissão determinam,
em momento oportuno, a instauração de procedimento apuratório, nem
deixar de adotar as providências judiciais, regulamentares ou administrativas
pertinentes, principalmente quando estão elas descritas em representação
formal e instruídas com os devidos documentos de comprovação.
A demonstrar a obrigação de adotar as medidas pertinentes, recomenda-
se, a título de exemplo, verificar a redação do parágrafo 3º, do art. 14, da lei
8.429/92, que dispõe:

Atendidos os requisitos da representação, a autoridade determinará


a imediata apuração dos fatos que, em se tratando de servidores
federais, será processada na forma prevista nos arts. 148 a 182, da
Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990 e, em se tratando de serviço
militar, de acordo com os respectivos regulamentos disciplinares.

Verifica-se, assim, ser imperioso ao detentor de munus público a


Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 45

determinação da instauração de procedimento apuratório para a investigação


de fatos que possam caracterizar atos de improbidade administrativa, quando
deles tiver conhecimento, através de representações que preencham as
formalidades legais (parágrafo 1º, do art. 14).
Uma vez que a representação formulada tenha atendido a todas as
prescrições legais, conforme acima anotado, passa a ser dever funcional e
legal do agente a determinação da instauração do procedimento apuratório
das irregularidades apontadas.
Eventual outra representação formulada perante o Ministério
Público, demais disso, não tem o condão de isentar o agente das sanções
da Lei de Improbidade, posto que, para cada esfera de apuração, existe um
procedimento e uma sanção correspondentes, sendo uma dissociada de outra.
Por vezes, inclusive, a direção de nova representação ao “Parquet” deriva
exclusivamente da inércia do Agente Político, o que evidencia, ao contrário
do que normalmente se apregoa, prática de improbidade por omissão,
mormente quando se comprova, o que não é fácil, que o agente, quando do
recebimento da anterior representação de popular, se pôs renitente e com
descaso evidente na apuração que lhe competia, mormente quando pretende
justificar a omissão com a alegação de falta de tempo ou estar tratando de
fatos mais importantes para o interesse da comunidade, expediente com o
qual tenta ludibriar a população e desviar o foco do assunto constante na
representação, permanecendo inerte e passível diante das imoralidades
narradas, DEIXANDO, DESLEALMENTE, DE ADOTAR QUAISQUER
MEDIDAS APTAS A COIBIR A IMORALIDADE.
De outro lado, conforme tem demonstrado a experiência cotidiana,
equipara-se à omissão a simples emissão resposta negativa ou de indeferimento
da representação por parte do agente, sem o mínimo de fundamentação,
conforme determina o art. 93, X, da CF, mormente porque contam tais agentes
com ampla assessoria, nomeada para essa específica função, não apenas para
receber remuneração ao final do mês. O mesmo pode ser dito a respeito da
conduta que simplesmente declara a existência de outros órgãos de apuração,
para quem entende o agente que deva ser remetida a reclamação, com o
simples e não fundamentado encaminhamento dos documentos a Polícia, ao
Ministério Público, ao Tribunal de Contas ou outro órgão estatal qualquer,
posto que, em tais condições, o agente, por evidente, DEIXARÁ DE TOMAR
QUALQUER PROVIDÊNCIA CORRESPONDENTE A SUA FUNÇÃO,
CARGO, EMPREGO OU PROFISSÃO.
A propósito, Lúcia Valle Figueiredo, escrevendo sobre a responsabilidade
dos agentes políticos e dos servidores, nos quais se inclui o Presidente da Casa
de Leis, obtemperou:

A apuração das irregularidades, a meu ver, é absolutamente


46 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

obrigatória. Não existe qualquer disponibilidade para a


Administração Pública. Se a Administração Pública receber
denúncia em virtude do direito de representação (que se encontra
no art. 5o., inciso XXX, IV, letra “a”), enfatizo, se algo chegar ao
conhecimento da Administração Pública e for instaurado processo
administrativo, ainda que o representante desista, não pode a
Administração eximir-se de levar este processo administrativo
adiante. Deverá fazer toda a apuração, até que se convença de que
o fato denunciado não existiu e arquive o processo. Ou, então, puna
administrativamente o responsável.

E a jurisprudência vem ao encontro desse entendimento:

Impossibilidade da autoridade administrativa suspender o curso


de processo administrativo, por vontade própria, sob a alegação
de que o mesmo assunto está sendo discutido na via judiciária.
Independência da atividade administrativa. (TRF da 5a. R. REO
n.500368, j. 16.10.89, rel. Juiz José Delgado).
A administração não se obriga a aguardar o pronunciamento
judicial, em vista da independência, conquanto não absoluta, das
esferas civil, penal e administrativa. (STJ- ROMS n. 00732, j. 19.08.91,
rel. Min. Demócrito Reinaldo).

Por vezes, conforme demonstra também à experiência administrativa, o


agente simplesmente “arquiva” informalmente, depositando em um armário
ou gaveta a representação e os documentos anexados, deixando de tomar
quaisquer medidas protetivas ao interesse público, pela singela alegação de
que os fatos comportariam maior detimento e aprofundamento de análise,
quando, com todo respeito, tal poderia e deveria ser realizado, de fato,
após a instauração do procedimento, conduta que demonstra estar o agente
prevaricando em seu dever funcional de agir, sem guardar qualquer zelo pelo
resguardo da Constituição e das Leis.
Procedendo de qualquer das formas acima descritas, o estará retardando
ou deixando de praticar, indevidamente, ato de ofício, por mero interesse
particularizado, pelo que violou o preceito primário da norma incriminadora
contida no art. 11, da Lei 8.429/92, sujeitando-se, pois, também às penalidades
previstas pelo art. 12, inciso III, da mesma lei.
Segundo lição de Marcelo Caetano, o funcionário deve:

(...) servir à Administração com honestidade, procedendo no


exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades
deles decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem
queira favorecer (apud José Afonso da Silva, Curso de Direito
Constitucional Positivo, pg. 571, Malheiros Editores, 9ª ed.).

Na vigência da Lei Federal 8.429/92, necessário consignar, a omissão


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propositada (prestação negativa) também é fórmula de enriquecimento ilícito,


de vantagem econômica indevida. Francisco Bilac Moreira Pinto, em análise
sobre o tema, assinalava que:

A vantagem econômica, sob forma de prestação negativa, é aquela


que nada acrescenta, diretamente, à fortuna do agente passivo da
corrupção.
Ela representa, porém, para o servidor público, enriquecimento
ilícito indireto, porque corresponde à poupança de despesas a que
se obrigou (in “Enriquecimento ilícito no exercício de cargos públicos”,
p. 269, Ed. Forense).

Agindo desta forma, a conduta do agente só poder ser compreendida


e interpretada como desídia propositada, com o intuito de favorecer o
representado, posto que com motivação que não deveria provocar a sua inércia
e omissão, as quais, evidentemente, estão a caracterizar ato de improbidade
por desvio de finalidade e descumprimento dos demais preceitos esculpidos
no art.37 da Constituição Federal, fazendo tabula rasa do primado do interesse
público.
Para que se chegue à conclusão de que o agente agiu com omissão
propositada, o que, sem dúvida, não é fácil, basta atentar para os antecedentes,
as circunstâncias da ocasião, bem como os fatos posteriores, sendo inúmeros os
indicativos, indícios e elementos que poderão apontar para a conduta dolosa
do agente desidioso.
Assim, a falta ao cumprimento do dever; o abuso no exercício das
funções, a ausência de responsabilidade social na não execução de ato que
deveria ser praticado obrigatoriamente por agente público é o que caracteriza,
nestas hipóteses, a conduta ímproba (omissão prevaricadora). De se observar
que, tradicionalmente, quem prevarica, omitindo-se no dever legal de agir, é
comodista, podendo ser conceituado como aquele que visa somente a atender
o próprio bem-estar, em detrimento do interesse coletivo.
Quando uma pessoa que exerce cargo, emprego ou função pública,
usa sua “amizade” ou “parentesco”, sendo conivente e conveniente com a
prática de atos ilegais ou imorais, em prejuízo do interesse coletivo, ficamos
convictos que se trata de omissão dolosa e, portanto, passível de punição. A
condescendência, nessas hipóteses, implica relações funcionais: deixar, por
indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício
do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento
da autoridade competente.
Na maioria das vezes, o funcionário tem notícia ou é testemunha de fato
grave ou delituoso ou, ainda, é comunicado de irregularidade na administração,
permanecendo, todavia, no silêncio e na omissão delituosa, o que importa em
quebra do dever de agir, consubstanciando-se em improbidade, cuja prova,
48 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

apesar de ser por demais difícil, por vezes deixa rastro documental, o que, sem
dúvida, serve de base para a imputação de improbidade.
Para o não agir, pouco importa a natureza do interesse ou sentimento
pessoal, nem o seu conteúdo: amizade, medo, conivência, proteção dos
envolvidos, dividendos políticos, chantagem, temor reverencial, instrumento
para troca e tráfico de influências, juízos pessoais. Será sempre prevaricação.
O funcionário público tem a responsabilidade mais agravada quanto mais
estiver em posição hierárquica de relevo, sobretudo dos altos escalões.
A prova da prevaricação, que costumeiramente é difícil, em alguns
casos, conforme acima exposto, pode ficar estreme de dúvida a respeito da sua
improbidade, uma vez que demonstrada por documentos, gravações, escutas,
vídeos e pela própria confissão do agente.
O homem de espírito público, voltado ao interesse coletivo, deve ter a
capacidade de fazer com que as pessoas que convivam com ele experimentem
a felicidade, não devendo, pois, pensar, egoisticamente, na sua própria
felicidade, preterindo a dos demais, sejam amigos, inimigos ou indiferentes.
Não se pode incorrer, vale destacar, no equívoco da prática de olhar
para os outros com reprovação, quando era de seu interesse, praticando,
contudo, conduta idêntica a do reprovado, do tipo “faça o que eu digo, não
faça o que eu faço”. É como se dissesse: quero ética, mas para os outros, posto
que o seu interesse, para ser alcançado, foi buscado a qualquer preço, até
mesmo relegando a moral, que, por tal razão, continua a ser cobrada só dos
outros, daqueles que não são próximos ou com os quais não guardam relação
de reciprocidade e interesse.
Enfim, não podemos aceitar a prática paradoxal adotada, que preceitua
que, para os outros, vale o “doa a quem doer”, mas para os aliados, um dos
seus, não é bem assim, é relativo, é perfeitamente compreensível. A conduta,
para os inimigos, é a de cobrança, enquanto que, para os aliados, haveria
sempre uma explicação, um motivo justificável ou, não havendo nenhuma
motivação mendaz, saem com o famoso “não tenho nada a ver com isso” ou
“temos assuntos mais importantes a serem tratados”.
Ao longo da história a exigência da moral somente para os outros é
uma constante, transmudando quase todas as comunidades já estudadas,
sendo corriqueiro, mas não normal, taxar os fatos de acordo com as posições e
sentimentos pessoais e ideológicos. Poucos são os indivíduos que tem a retidão
de defender o inimigo de uma injustiça ou mesmo repudiar o amigo quando
pratica um ato leviano, assim como fazia o ilustrado Max Weber, embora seja
esse o nosso dever como seres humanos dotados de inteligência e guiados
pelos preceitos éticos.
Tais pessoas tratam os amigos do inimigo como inimigos, mesmo que
não as conheçam, assim como tratam até verdadeiros marginais, criminosos
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 49

contumazes, como heróis, apenas porque se dedicam a bajular os “amigos”.


Alguns, entretanto, chegam ao extremo de defender uma bandeira durante
anos, vindo, depois, a ostentar bandeira radicalmente oposta, não por
ideologia, mas por mero interesse particularizado.
O discurso exuberante, assim, quando estiver desacompanhado da
ação, sendo prática corriqueira no atual Brasil de tantos contrastes, denota
a ocorrência da improbidade, mormente quando a conduta do funcionário
estiver voltada a não mover uma palha pela emancipação da participação
cidadão, não dando qualquer chance de participação popular nos atos do
poder público.
Sempre quando cobrados, além das promessas, ademais, tais agentes
(tradicionalmente políticos de grande naipe) têm ofertado, como fonte de
desculpa para a falta de ação, a surrada tese da falta de recursos. Todavia, o
começo de tudo é a corrupção. O seu combate, ao contrário do que é feito, geraria
uma montanha de recursos capazes de permitir investimentos consideráveis
em qualquer setor. No entanto, os gestores públicos ainda não aprenderam
outro meio de acudir as crises e remover os déficits senão endividar-se e
tributar os cidadãos de bem. Se combatessem a endêmica doença da corrupção,
por certo, trariam impostos de quem não os paga, diminuiria os custos de
quaisquer projetos, incrementaria a capacidade de emprego das empresas
privadas sérias, expurgando as de fachada, fortaleceria o serviço público, não
propiciando que empresas façam loteamento de serviços rendosos e essenciais
para a comunidade.
Antes de qualquer resposta, precisamos perquirir quem são os nossos
gestores, posto que, num mundo onde a primazia da informação e da
especialização é um mote indiscutível, não podemos mais ter nos cargos de
chefia pessoas incapazes de discernir conceitos elementares de administração
e moralidade.
Os homens públicos deveriam mostrar sua força pela conduta proba,
voltada ao bem comum, não pela ostentação ou prerrogativas do cargo, que,
ao contrário do que se fez supor, não dá margem à atuação voltada a mero
interesse político, de grupo ou particularizada.
Hoje já não é mais suportável a utilização do brocardo: “aos amigos
tudo, aos inimigos nada, aos indiferentes a letra fria da lei”. A adoção de
critérios ou parâmetros objetivos para gerir o bem público e administrar o
interesse coletivo é uma das mais desejadas e marcantes reclamações do povo
no final do século XX e início do século XXI. Os gestores públicos não podem
mais considerar o cidadão como um mero espectador, um objeto inanimado,
um número ou dado para preencher as estatísticas, pelo que se faz necessário
romper definitivamente com a ausência de ética, com a falta de critério, com
o dualismo que impera no mundo pós-moderno, promovendo o debate e
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modificando as esferas do poder corporativo que reina no campo político.


Sempre é bom lembrar que a ética, no mundo atual, deixou de ser
apenas uma questão de conceito, passando a ser influenciada por hábitos
e costumes e a ser um problema de consciência, sobrepondo-se a padrões
de comportamento, a valores e paradigmas que variam em função de cada
cultura. 
A adoção de paradigmas não condizentes com o princípio da moralidade,
do tipo “DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS”, efetiva e comprovadamente
levados em conta pelo comportamento desidioso do agente público, sem
dúvida, caracteriza ato de improbidade.
Necessário ressaltar, por oportuno, que os atos de improbidade não
são somente aqueles que importam em enriquecimento ilícito, no recebimento
de qualquer vantagem econômica, direta ou indireta, em superfaturamento,
em lesão aos cofres públicos, sendo também caracterizados, pela prática
de qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que viole os deveres de
honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições.
Neste sentido, pode-se considerar como ato de improbidade
administrativa aquele praticado por agente público, contrário às normas
da moral, à lei e aos bons costumes, com visível falta de honradez e de
retidão de conduta no modo de agir perante a administração pública. A Lei
de Improbidade Administrativa tem como papel principal coibir e, no caso
da transgressão da norma, de fazer valer a legalidade, a impessoalidade, a
moralidade, a publicidade e a eficiência, no sentido de que a administração
pública possa cumprir sua finalidade precípua, que é o bem comum.
O diploma legal em exame é, em resumo, um importante auxiliar do
cidadão no sentido de fazer valer o controle social sobre a Administração
Pública, uma vez que obriga o agente público a respeitar os princípios
administrativos e atuar com transparência e lisura, obrigando os gestores a
postarem-se com o objetivo de alcançar o bem comum.

Primazia do Interesse Público e do Bem Comum


Desta forma, não é mais possível à sobreposição do interesse particular
sobre o bem comum, na medida em que este assume máxima importância
para elaboração da teoria social. O bem comum é um princípio objetivo, que
decorre da natureza das coisas e possui inúmeras consequências práticas para
o convívio social, nada mais sendo que o próprio bem particular enquanto
parte de um todo ou de uma comunidade, sendo interesse consensual do
grupo social, posto representar a maioria. Assim, no bem comum, o bem dos
demais não é alheio ao bem próprio.
De outro lado, comunidade é a comunhão existente entre os que
participam de um mesmo bem e possuem uma finalidade comum. Quando há
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 51

conflito entre o bem particular e o bem comum, o que existe é uma oposição
entre o interesse privado e o bem comum, que, ao contrário do primeiro, seria
afeto a todos ou, ao menos, a maioria.
Interesse público, desta forma, seria a relação entre a sociedade e o
bem comum por ela perseguido, que deve ser buscado através daqueles que,
na comunidade, têm autoridade, ou seja, governantes e administradores
públicos, sendo, portanto, obrigação daqueles que exercem cargos ou funções
de mando, consubstanciando-se a omissão em grave violação dos deveres
inerentes ao exercício de poder ou mando.
Há uma hierarquia entre os bens, tendo o bem comum primazia sobre
o bem particular, posto que o interesse coletivo deve preponderar sobre
o interesse de um único indivíduo ou de seu grupo restrito, assim o bem
particular de um indivíduo (ou de um pequeno grupo de privilegiados) não
pode ser buscado em detrimento do bem comum da sociedade.
É certo que cada indivíduo do conjunto do agrupamento social deve
cooperar para a realização do bem comum, vendo na sua consecução, o bem
próprio. Cabe, no entanto, ao governante ou administrador público, numa
sociedade politicamente organizada, promover o bem comum, externando,
através de suas ações e comandos, o interesse público. A não implementação
de políticas públicas e condutas que busquem a finalidade do bem comum,
acarreta, inexoravelmente, na deterioração da sociedade em aspectos
fundamentais de sua existência, causando desagregação comunitária, perda
de credibilidade dos gestores, bem como o sentimento de injustiça e frustração.

O Serviço Público e o Dever de Lealdade Institucional


O dever de probidade dos agentes públicos e particulares é definido, em
seus contornos básicos, pelo Direito Administrativo, sendo administrativas,
reitera-se, as sanções cominadas aos ímprobos na Lei de Improbidade. Esse
dever de probidade está ligado a dois deveres fundamentais: (a) honestidade
profissional e (b) eficiência funcional mínima. Os atos de improbidade podem
ser comissivos ou omissivos.
Não há dúvidas de que deveres públicos emergem do estatuto dos
funcionários públicos, o qual projeta suas normas no âmbito administrativo.
Nesse universo, emerge o chamado dever de probidade das decisões
e ponderações administrativas, traduzindo exigências de honestidade
profissional e de eficiência funcional mínima, como é o caso da apuração
de infrações funcionais, gestão pública que implica na prática de atos
administrativos.
De se ponderar, inclusive, que o dever de probidade implica deveres
de abstenção de condutas lesivas aos funcionários, posto que condutas
sancionatórias só podem ser adotadas, sob pena de improbidade administrativa
52 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

manifesta, quando as razões invocadas para o ato não suportarem uma análise
crítica da razoabilidade e proporcionalidade, tarefa que pode levar a conclusão
de desvio de finalidade, máxime quando confrontado com os princípios
constitucionais, não sendo proporcional e muito menos razoável.
A Lei 8.429/92 se aplica, por evidente, a todos os agentes públicos que,
enquadrados como sujeitos ativos, praticarem qualquer das condutas típicas
previstas na legislação em detrimento direto ou indireto dos sujeitos passivos.
Para que a sanção seja aplicada, desta forma, é bastante que ocorra indevida
utilização de poderes públicos e lesão ao dever de probidade administrativa.
Os preceitos (tipos) sancionadores da Lei de Improbidade, vale registrar,
são abertos, compondo-se de elementos normativos semanticamente vagos.
Trata-se, desta forma, de típicas normas em branco, que se complementam
por outras normas oriundas de legislações específicas, como, “verbi gratia”
é o Estatuto dos Funcionários Públicos, Regulamentos Profissionais, a Lei
Orgânica, a Lei de Diretrizes e Bases, o Regimento Interno, As normas de
segurança de categoria profissional etc.
Destaca-se, desta forma, a natureza aberta e permeável das normas
sancionadoras de improbidade constantes da Lei 8429/92, que tem o condão
de facilitar o trabalho dos operadores do Direito. Assim, ao jurista se reserva
o socorro a instrumentos capazes de acompanhar a veloz dinâmica da
improbidade. O legislador, com as previsões contidas na lei em referência,
com a adoção de princípios jurídicos que empregam termos e noções vagos
e elásticos, abriu espaço amplo para a hermenêutica e consequente atuação
dos juristas, permitindo aos intérpretes o exercício, facultando-lhes espaços
para adequar os comandos normativos a dinâmica dos fatos sociais, ou seja,
a realidade social, de modo a propiciar efetividade a Justiça. Desse modo, o
legislador, ao invés de tentar prever todos os comportamentos ilícitos possíveis,
estipulou normas elásticas, com permissão de extensão interpretativa, o que,
apesar de afrontar a bisonha cultura positivista, é extremamente benéfica para
a finalidade que se propõe, ou seja, coibir atos contrários à razão, ao bom
senso, ao dever de honestidade e lealdade institucional.
O ‘patrimônio público’, objeto de proteção da Lei 8.429/92, por tal
padrão interpretativo, não se reduz ao patrimônio material das entidades
públicas, mas alcança, também, o patrimônio moral dessas entidades e da
própria sociedade. Os servidores públicos, nesse sentido, estão inseridos
nessa noção de “patrimônio público”, porquanto estão integrados à idéia
de patrimônio da coletividade, do público, da sociedade, tendo-se em
consideração o direcionamento dos serviços por eles prestados e a vinculação
das suas atividades, assim como dos seus comandantes, ao primado da lei e
da honestidade. 
Assim, independentemente de lesão ao erário, com uma nova definição
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 53

do objeto da proteção desses tipos sancionadores, os funcionários públicos,


por pertencerem ao serviço público e terem direcionamento do seu trabalho
para satisfação do bem comum, também seriam alcançados pela proteção da
lei, posto que inseridos no patrimônio moral da coletividade.
Emérson GARCIA, acompanhado de Rogério PACHECO ALVES,
ambos membros do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, ao
ponderarem sobre improbidade administrativa, em obra das mais modernas e
atualizadas, sustentam que a expressão ‘erário”, empregada no aludido art. 10
da Lei 8429/92, não pode merecer interpretação literal, comportando, segundo
profetizam, a expressão “patrimônio público”, noção e interpretação segundo
a qual erário se integra e da qual é uma espécie. Assim, a rigor, erário e
patrimônio público não designariam objetos idênticos, sendo este mais amplo
do que aquele.
E complementam: “Entendemos por erário o conjunto de bens e interesses
de natureza econômico-financeira pertencentes ao Poder Público. Patrimônio público,
por sua vez, é o conjunto de bens e interesses de natureza moral, econômica, estética,
artística, histórica, ambiental e turística pertencentes ao Poder Público (...).
O patrimônio moral das entidades públicas está sempre e invariavelmente
protegido na categoria do dever de probidade administrativa, eis que todo ato
de improbidade implica mais do que uma agressão patrimonial ou puramente
material ao setor público, na medida em que deve revelar-se sempre nocivo
aos valores e princípios fundamentais da administração pública (art. 37, caput,
CF).
A Lei 8.429/92, de outro lado, em várias passagens, utiliza a expressão
“patrimônio público” e não erário, o que significa que esteja a incluir outras
modalidades de patrimônio público, como é o caso do servidor público, que
deve ser tratado com lisura, de forma isonômica e equânime, sem perseguições
e chantagens, posto que, ao proteger o servidor, se estará protegendo, por
extensão, o serviço público.
Assim, a possibilidade de sequestro dos bens daquele que cause dano
ao patrimônio público, certamente está a alcançar os casos de enriquecimento
ilícito, além dos danos morais passíveis de ocorrerem ante a violação dos tipos
do art. 11 da Lei 8429/92.
A redação do art. 11 do diploma repressivo, conforme tem enfatizado
a doutrina, veio a permitir a vigilância de um dever público da maior
relevância, qual seja, a exigência de lealdade institucional. Nesse diapasão,
o art. 11, caput, da Lei 8429/92, que tipifica como ato de improbidade qualquer
ação ou omissão que atente contra os princípios da administração pública,
violando deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às
instituições, constitui poderoso instrumento coibidor e, portanto, inibidor de
práticas ilícitas, servindo para excluir da vida pública políticos e agentes que
54 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

desprezam a boa gestão, premiando, assim, ações eficientes e responsáveis em


detrimento das condutas ilegais e ilícitas.
Necessário anotar a distinção entre o dolo motivador da improbidade
com o dolo norteador do ilícito penal, eis que o primeiro, para estar
caracterizado, não exige a presença de tantos requisitos como o segundo.
O Direito Administrativo pode e deve dar ao “dolo administrativo”
um tratamento diferenciado, bem distinto daquele dispensado ao “dolo
penal”. As noções de dolo penal e administrativo não são convergentes, até
porque há todo um rigor formalista no campo penal que não subsiste na esfera
administrativa. Daí porque se permite concluir pelo dolo administrativo,
passível da aplicação da Lei 8429/92, sem que se possa ter a mesma conclusão
da presença do dolo do crime de prevaricação. As intenções, desta forma,
podem e devem ser analisadas em consonância com seus objetos.
A responsabilidade, em matéria de improbidade administrativa,
é subjetiva. Porém, isso não significa que haja extremo rigor na apuração
e conceituação do dolo. Esquemas flexíveis e abertos são perfeitamente
compatíveis com o princípio da responsabilidade subjetiva.
O legislador instituiu como ato de improbidade a conduta omissiva de
deixar de tomar as providências obrigatórias referentes ao cargo ou função que
o agente público ocupa. Nesse passo, a obrigação pode estender-se a qualquer
agente público que esteja incumbido de adotar providências necessárias e não
as tenha adotado. A legislação, assim, trata de tipificar, de modo automático,
a improbidade daqueles que não cumprem seus deveres funcionais.
Note-se que tanto a imparcialidade quanto à honestidade não constituem
os únicos deveres públicos em jogo, quando se trata de analisar improbidade
administrativa. Ao contrário, verifica-se que deveres como o de lealdade
institucional, abarcando a exigência de eficiência funcional mínima, também
incidem na formatação da improbidade do aludido art. 11 da Lei 8.429/92.
A lealdade institucional pressupõe atendimento aos objetivos gerais
da administração pública e exige preparo funcional mínimo dos servidores
públicos e daqueles que são chamados a colaborar com o Poder Público, no
desempenho de tarefas públicas, embora transitórias.
O servidor não é leal à instituição quando atua com manifesta desídia
ou intolerável incompetência administrativa, agindo, nesse sentido, com dolo
quando pratica condutas objetivamente perceptíveis como potencialmente
lesivas ao patrimônio moral da coletividade. Desta forma, age dolosamente
o agente público que decide não fiscalizar nem reprimir condutas lesivas
a atuação própria e constitucional da função por ele exercida, deixando de
adotar providências legalmente obrigatórias para defesa dos bens jurídicos
funcionais.
Assim, o dever de lealdade institucional, previsto no art.11, II, é
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 55

infringido pela conduta de retardar ou deixar de praticar, indevidamente,


ato de ofício. Basta examinar quais os atos de ofício que o agente deveria
praticar, até para resguardo do cumprimento das funções ou da continuidade
do serviço público, para que se constate a improbidade, podendo a omissão
dolosa, por exemplo, decorrer de vínculo partidário ou político, de parentesco
ou amizade, dentre outros.
Considerando-se que poderá, diante de quadro fático do cotidiano,
eventos ímprobos ligados entre si, com o mesmo liame causal e com unidade
fática, como, por exemplo, um ato ímprobo por ação e outro por omissão,
perfeitamente possível e recomendável o ajuizamento de uma só demanda,
com variados pedidos, posto ser a ação civil pública o instrumento hábil à
proteção do patrimônio moral da coletividade, além de eventual proteção
do erário, ambos dimensões do patrimônio público constitucionalmente
protegido.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Improbidade administrativa - A regra


de reserva (artigo 11 da Lei Federal n. 8.429/1992) não exige dano
material para o Erário, nem enriquecimento do administrador
público - Basta a simples infração aos princípios que devem
nortear a atividade administrativa pública (artigo 37, caput, da
Constituição Federal/88) para configurar a ilicitude - A lei tutela
a probidade na vida pública e a simples inobservância desses
preceitos, por si só, implica em improbidade na administração,
passível de punição, independentemente de que ocorra, repita-se,
diminuição material do patrimônio público ou enriquecimento de
seu administrador - Os artigos 9º e 10 da Lei Federal n. 8.429/1992
exigem a diminuição patrimonial do Poder Público, mas o artigo 11
do mesmo diploma não contém essa exigência - É que se o agente
público, por ação ou omissão, violar os deveres de honestidade,
imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, comentará
a licitude, sendo o elenco ali contido de natureza “numerus
apertus”, pois o legislador usou a expressão “notadamente” -
Regra de reserva - Artigo 11, Lei Federal n. 8.429/1992 (Apelação
Cível n. 214.225-5/0-00 - Tribunal de Justiça de São Paulo) - No
caso concreto, o apelante-réu, na qualidade de Prefeito Municipal
declarou no verso da Nota Fiscal Fatura que o serviço estava
“autorizado, executado e conferido”, determinando o empenho e
pagamento e ao depois que “não ocorreu a execução dessas obras,
em face da absoluta falta de recursos necessários”, configurando
a falsidade declarativa inicial para depois, ele próprio, admitir o
cometimento da improbidade administrativa que maculou seu
governo - Posteriormente e prosseguindo em sua conduta ilícita,
o apelante utilizou essa Nota Fiscal Fatura na prestação de contas
perante o Egrégio Tribunal de Contas do Estado de São Paulo,
incluindo como se verdade fosse a importância supostamente
gasta para atingir fraudulentamente o percentual de 25% de
previsão orçamentária destinada à educação - O Egrégio Tribunal
56 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

de Contas de São Paulo, entretanto, detectou a fraude e excluiu a


importância falsamente declarada na prestação de contas, ensejando
a descoberta da improbidade administrativa do ex-Alcaide - Por
outro lado, não vinga a afirmação do apelante no sentido de que
a apuração do percentual aplicado em ensino e seu lançamento
forma efetuados pelo Setor de Contabilidade, pois as contas são
prestadas pelo Chefe do Poder Executivo que previamente sabia
ser falsa a declaração, pois tanto a primitiva falsa como a posterior
foram assinadas de próprio punho pelo réu-apelante - Procurou
este eximir-se de responsabilidade funcional e civil que de pronto
é sua para transferi-la aos seus subalternos, sem, contudo, nenhum
respaldo legal - Todavia, eventual responsabilidade também desses
auxiliares poderá ser apurada em procedimento autônomo - O certo
é que, comprovada documentalmente a ilicitude cometida pelo réu,
os princípios alinhados no caput do artigo 11 da mencionada Lei
Federal n. 8.429/1992 e seu inciso I - 1ª parte - foram violados, pelo
que, as sanções legais foram bem aplicadas - Apelo não provido.
(Apelação Cível n. 237.754-5/2 - Junqueirópolis - 9ª Câmara de
Direito Público - Relator: Geraldo Lucena - 10.03.04 - V.U.).

Ademais, de acordo com o ensinamento de DI PIETRO, tem-se o


seguinte sobre a aplicação do artigo 11 da Lei citada: 

(...) as sanções podem ser aplicadas mesmo que não ocorra dano ao
patrimônio econômico. É exatamente o que ocorre ou pode ocorrer
com os atos de improbidade previstos no artigo 11, por atentado
aos princípio da Administração Pública. A autoridade pode , por
exemplo, praticar ato visando fim proibido em lei ou diverso
daquele previsto na regra de competência (inciso I do art. 11); esse
ato pode não resultar em qualquer prejuízo para o patrimônio
público, mas ainda assim constituir ato de improbidade, porque
fere o patrimônio moral da instituição, que abrange as idéias de
honestidade, boa-fé, lealdade, imparcialidade(...).

Da Violação aos Princípios da Supremacia do Interesse Público, da Eficiência


e da Razoabilidade:
Os atos administrativos praticados pelos agentes públicos, de outro
lado, não podem servir ao pretexto de instrumento de barganha e extorsão
política, de modo a criar simulado demérito pessoal a alguém, com o propósito
exclusivo de facilitar ou impedir algo que interesse a administração, posto que
o gestor deve adotar, em sua conduta cotidiana, postura condizente com a lei e
a moral, mantendo-se fiel aos princípios elencados pelo art. 37, da Constituição
Federal.
De todo reprimível, imoral, leviano e mesmo torpe, o ato que visa
beneficiar um grupo político ou mesmo pessoas determinadas, ao passo que
se pretenda humilhar o opositor, adversário ou mesmo indiferente, com a
adoção de requisitos, critérios, meios e modos subjetivos para atingirem o fim
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 57

almejado, o que evidencia violação do princípio da moralidade administrativa,


conforme acima ficou exposto.
O ato administrativo, assim, deve guardar correlação com os necessários
requisitos e formalidades, tendo como finalidade aqueles exatos fins declarados
pela norma, sob pena de estar evidenciado o desvio de finalidade.
Os agentes que, contrário senso, fugirem da forma acima mencionada,
estarão indubitavelmente violando as regras de probidade, além de poderem
estar a infringir, em cada caso concreto, a idéia de justiça, de equidade, de
decência e da razão humana.
A respeito do alcance deste princípio, citando lição de Maurice Hauriou,
o saudoso Hely Lopes Meirelles ressaltou que:

A moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto


de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37,
caput). Não se trata – diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito
– da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como
‘o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da
Administração.’ ... O certo é que a moralidade do ato administrativo
juntamente com sua legalidade e finalidade constituem pressupostos
de validade sem os quais toda atividade pública será ilegítima.

Outrossim, nas hipóteses acima mencionadas, por certo, quase sempre


o funcionário estará incorrendo em clara e notória a insurgência contra outro
princípio norteador da Administração Pública, qual seja, o princípio da
impessoalidade.
Este deve ser entendido como substrato da igualdade de todos os
administrados perante a lei. E assim o é justamente porque o administrador
só pode agir autorizado por lei, sendo-lhe vedado priorizar pessoas ou criar
indevido demérito a outras, segundo suas preferências subjetivas, convicções
políticas ou interesses de grupo. Na lição de Hely Lopes Meirelles:

(...) nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe


ao administrador que só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim
legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa
ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal.

Os agentes públicos, ademais, não podem agir com descaso na busca


do atendimento da melhor opção para a Administração e com o objetivo
social que deve nortear as ações administrativas, apenas tomando o caminho
do empirismo, do pragmatismo político, sem o menor compromisso com os
princípios da supremacia do interesse público, da eficiência e da razoabilidade.
Assim é que, até mesmo de simples leitura que se faça da definição dada
pelo insigne Hely Lopes Meirelles ao princípio da impessoalidade, pode-se
observar que também o princípio da supremacia do interesse público (ou da
58 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

finalidade) foi violado.


O interesse público a ser obedecido é o primário, que se refere ao o
bem-estar da coletividade como um todo, e não eventualmente somente
o secundário, que atenderia o interesse de algum órgão específico ou de
governante de ocasião. Por conseguinte, o interesse público deverá ser sempre
a finalidade do ato dos agentes públicos, posto que atendendo a outros
interesses que não aquele, consagrado estará o desvio de finalidade, uma das
formas de abuso de poder; o que enseja a nulidade do ato administrativo.
Ao comentar sobre a supremacia do interesse público, leciona nossa
querida professora Maria a Sylvia Zanella Di Pietro que:

(...) esse princípio, também chamado princípio da finalidade


pública, está presente tanto no momento da elaboração da lei como
na execução em concreto pela Administração Pública. Ele inspira
o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua
atuação (...) Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar,
de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em
vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do
interesse individual. Em conseqüência, se, ao usar de tais poderes, a
autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político,
beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para
terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre
o interesse público, e, em conseqüência, estará se desviando da
finalidade pública prevista na lei. Daí o vício do desvio do poder ou
desvio de finalidade, que torna o ato ilegal.

De fato, se determinado procedimento administrativo, ainda que atenda


às formalidades legalmente fixadas, não servir para a finalidade cotejada
em lei, não será materialmente um procedimento válido e regular, mas tão-
somente aparência de procedimento administrativo, suscetível de caracterizar
desvio de finalidade.
Desta feita, é nesse mesmo afastamento do interesse público ou da a
ausência da supremacia do interesse deste, e não apenas através do desvio de
finalidade, mas preponderantemente neste, é que encontraremos ofensa aos
princípios da eficiência e da razoabilidade.
Em doutrina, leciona nosso colega de turma e concurso, o fantástico
doutrinador Alexandre de Moraes, que:

(...) princípio da eficiência é o que impõe à administração pública


direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por
meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra,
transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em
busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e
morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos
públicos, de maneira a evitarem-se desperdícios e garantir-se maior
rentabilidade social.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 59

Mais adiante, agora discorrendo sobre as características do princípio


da eficiência, mais especificamente sobre a busca da qualidade, prossegue o
eminente membro do Conselho Nacional de Justiça, que deve ser ressaltada:

(...) a definição dada pela Secretaria Geral da Presidência, de que


‘qualidade de serviço público é, antes de tudo, qualidade de um
serviço, sem distinção se prestado por instituição de caráter público
ou privado; busca-se a otimização dos resultados pela aplicação
de certa quantidade de recursos e esforços, incluída, no resultado,
primordialmente, a satisfação ao consumidor, cliente ou usuário.
(....) Outra característica básica da qualidade total é a melhoria
permanente, ou seja, no dia seguinte, a qualidade será ainda melhor.

É sabido e incontroverso que ao Estado cabe o poder indeclinável de


regulamentar e controlar os serviços públicos, exigindo sempre sua atualização
e eficiência, de par com o exato cumprimento das condições impostas para sua
prestação ao público, devendo haver, por tal razão, compromisso com a busca
da qualidade ou com o controle da eficiência do serviço público.
Qualquer procedimento administrativo a ser instaurado, verbi gratia,
deve guardar fiel obediência aos ditames e interesses preceituados pela
Lei Maior, com a adoção de critério objetivo e legal. Se adotado juízo de
conveniência política ou direcionamento subjetivo, violadores da garantia da
eficiência, da moralidade e aperfeiçoamento do serviço público, que afronta
interesse público, maculado estará o princípio da eficiência, porquanto
desnorteada uma diretriz administrativa.
Além do mais, os atos administrativos também devem estar
acompanhados dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Seguindo os sábios ensinamentos de Gordillo, citado por Di Pietro, “a
decisão discricionária do funcionário será ilegítima, apesar de não transgredir
nenhuma norma concreta e expressa, se é ‘irrazoável’, o que pode ocorrer,
principalmente, quando:

1. não dê os fundamentos de fato ou de direito que a sustentam


ou;
2. não leve em conta os fatos constantes do expediente ou
públicos e notórios; ou
3. não guarde uma proporção adequada entre os meios que
emprega e o fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que se trate de
uma medida desproporcionada, excessiva em relação ao que se
deseja alcançar.
 
Prossegue aquela mesma autora, colacionando, agora, lição emprestada
por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que:

(...) a razoabilidade, agindo como um limite à discrição na avaliação


60 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

dos motivos, exige que sejam eles adequáveis, compatíveis e


proporcionais, de modo a que o ato atenda a sua finalidade pública
específica; agindo também como um limite à discrição na escolha do
objeto, exige que ele se conforme fielmente à finalidade e contribua
eficientemente para que ela seja atingida.

Conclusão
Por tudo que ficou exposto, o desatendimento da finalidade preconizada
em lei por parte do administrador, bem como a ausência de ação por parte
daquele que estava incumbido de tomá-la, por imposição do interesse
público, geram infringência da Lei de Improbidade, submetendo os infratores
as rigorosas sanções cominadas no diploma legal em exame, posto que se
adéquam ao tipo discriminado: “Retardar ou deixar de pratica indevidamente ato
de ofício” (art. 11, II, da Lei de Improbidade Administrativa).
A finalidade da existência da separação de poderes e da teoria dos
freios e contrapesos, como é de conhecimento geral, é a de propiciar que os
poderes (funções) atuem legitimamente, em colaboração, uns fiscalizando as
condutas dos outros, de modo a permitir o equilíbrio e a ponderação entre
todas as atuações funcionais.
Dentro desses deveres esta, dentre outras, o poder de requisição de
informações dos órgãos administrativos. Não pode o homem público de bem,
em afronta o que se espera de uma Autoridade Pública, prostrar-se de modo
conveniente e conivente com as práticas abusivas e reconhecidamente ilegais
dos membros de outro Poder ou Função.
Toda prática administrativa, que viola uma determinação legal
torna-se, ipso iure, ilegal, gerando por parte da autoridade responsável pela
fiscalização desse sistema, o dever de reprimi-la. Assim, evidente que quando
o agente público não usa das prerrogativas que lhe são inerentes ao propósito
de defender os interesses da coletividade, omitindo-se na prática de atos
obrigatórios em decorrência da legislação, poderá ocorrer o enquadramento
direto no inciso II do art. 11, da Lei de Improbidade, cuja extensão do ato pode
caracterizar também a conduta prevista no art. 319 do Código Penal, assunto
bem explicitado por Marcelo Figueiredo, no seguinte texto:

Art. 11, II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato


de ofício; Vide art. 319 do CP.
O agente deve exercer sua atividade com zelo e dedicação às
atribuições de seu cargo, emprego, função, etc. É seu dever funcional
(art. 116 da Lei 8.112, de 1990). O retardamento injustificado, ilógico,
ausente qualquer motivo plausível e demonstrável – como, por
exemplo, excesso de serviço-, é indício forte de conduta contrária
ao Direito, podendo ensejar a responsabilidade penal. Vide os arts.
317 e 319 do CP.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. Rio de
Janeiro: Forense, 1977.
DELGADO, José Augusto. Reflexões sobre o ordenamento jurídico Administrativo.
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 819. ed. São Paulo:
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FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo:
Malheiros, 2006.
FREYESLEBEN, Márcio Luiz Chila. A Improbidade Administrativa. Comentários
à Lei nº 8.429/92. nº 17. Ministério Público de Minas Gerais: JUS, Ano XXIV.
GARCIA, Émerson; e ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3.
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GORDILLO, Augustín. Introdución al Derecho Administrativo. Buenos Aires:
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WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
62 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: REFLEXÕES
SOBRE A SUA EFICÁCIA E APLICABILIDADE

MICHEL FERNANDES ROSA1

Resumo
O presente ensaio busca analisar questões relativas à efetivação do direito fundamental à saúde.
Para tanto, em um primeiro momento realizamos uma abordagem abrangente, acerca dos
direitos fundamentais, historicamente considerados. Em um segundo momento, realizou-se
uma análise das dificuldades encontradas ao estudar a aplicabilidade do direito fundamental à
saúde, tendo em vista suas características normativas de cunho eminentemente programático.

PALAVRAS-CHAVES: Direito Fundamental – Normas – Aplicabilidade.

Introdução
Os direitos fundamentais são tema de extrema importância, tendo sido,
cada vez mais, objeto de relevantes estudos, no campo da doutrina nacional
e, principalmente, internacional. Atualmente, praticamente inexiste país que
não tenha reconhecido ao menos um núcleo de direitos fundamentais, o que é
demonstrado pela história da humanidade e do reconhecimento dos direitos
humanos.
A partir disso é que surge o interesse na elaboração de um ensaio
relacionado a este assunto. Cumpre, no entanto, considerar a amplitude do
tema, e, desse modo delimitar o assunto a ser tratado.
Nosso objetivo neste texto é abordar algumas questões referentes à
constitucionalização dos direitos fundamentais bem como à sua aplicabilidade
e para tanto vamos trabalhar com o direito à saúde. Sabe-se que o direito à
saúde, consagrado nos arts. 6.º e 196 da Constituição da República Federativa
do Brasil, é norma instituidora de direito fundamental, decorrente dos
princípios maiores do direito à vida (art. 5 º. Caput) e da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III). Necessita-se, todavia, saber como é e como deve ser a
aplicabilidade destas normas.
Para tanto, realizou-se um estudo acerca da natureza destas normas
constitucionais, de modo a estabelecer características pertinentes a elas. Ao
verificar que o direito à saúde se trata de um princípio constitucional, e, por
isso, nos remete à idéia de um estado de coisas a ser atingido, notamos a
dificuldade de saber quais as condutas necessárias para que se possa atingir
tal estado almejado. Mais, a quem cumpre realizar tais condutas? Certamente
a obrigação é, principalmente, do Poder Público, incluindo, desse modo, todas

1
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra; Mestre em Sociologia pela Universidade
de Coimbra (2012); especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(2009); Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (2004). Advogado inscrito na OAB/RS. E-mail: fernnandesmichel@hotmail.com.
64 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

as esferas de poder relacionadas com o estado de coisas a ser atingido.

Antecedentes à constitucionalização dos direitos fundamentais


Convém iniciar por uma breve abordagem acerca da história da
constitucionalização dos direitos humanos/fundamentais. A relevância
de tal perspectiva não se encontra apenas como mecanismo hermenêutico,
mas de forma substancial pela circunstância de que a: “história dos direitos
fundamentais é também uma história que desemboca no surgimento do moderno
Estado constitucional” (Sarlet, 2004, p. 38).
A primeira noção de se formular e defender os direitos humanos remonta
à Antiguidade. Já no direito romano, se via que os princípios referentes ao
direito e à justiça, mesmo que não sistematizados, foram verdadeiros pontos
fundamentais de apoio do direito romano (Engelmann, 2001).
Um documento destacado como um passo importante rumo à
positivação surge na Idade Média, mais precisamente na Inglaterra. Trata-se
da Magna Charta Libertatum, pacto firmado em 1215 pelo Rei João Sem Terra
e pelos bispos e barões ingleses. Inobstante este documento: “tenha apenas
servido para garantir aos nobres ingleses alguns privilégios feudais, alijando, em
princípio, a população do acesso aos ‘direitos’ consagrados no pacto” (Sarlet, 2004,
p. 44), foi importante referência para direitos e liberdades civis como o habeas
corpus, o direito à propriedade e o devido processo legal, por exemplo. Ainda
assim, não podemos considerar tal documento como o marco inicial da
constitucionalização dos direitos fundamentais.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na
França, assim como a Declaração Americana do Estado da Virgínia, de
1776, são consideradas como principais marcos da positivação dos direitos
fundamentais. Embora a Declaração Francesa tenha vindo a lume após a
Declaração Americana, é considerada a mais célebre, pelo seu caráter universal.
Enquanto as declarações anglo-saxônicas estavam vinculadas a circunstâncias
históricas que as precederam, seu alcance era também limitado aos locais em
que vigoravam.
Há que se destacar ainda a profunda inspiração jusnaturalista, tanto
na declaração francesa quanto na americana, eis que reconheceram ao ser
humano direitos naturais inalienáveis, invioláveis e imprescritíveis. Direitos
esses conferidos a todos os homens, e não apenas a uma casta ou estamento.
A ideia de bem comum está na origem tanto no direito natural como
nas formulações acerca da existência do contrato social. Entretanto, buscando
a racionalização de um corpo legislativo tornado obrigatório a todos, inclusive
ao Estado (Estado de Direito), o direito acaba por instrumentalizar-se em
poder do Estado, que é exposto à sociedade sob a forma de legislação escrita;
ou seja, o direito positivo.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 65

Das diversas dimensões dos direitos fundamentais


De modo cumulativo e complementar, os direitos fundamentais vêm
sendo reconhecidos progressivamente no decorrer dos tempos. Pode-se
dividir em três, ou até quatro dimensões os direitos fundamentais, em função
do rol desses direitos no desenvolvimento das constituições, sempre buscando
uma adequação ao momento vivido pela sociedade, sendo também sempre
considerado o contexto internacional.
Os direitos fundamentais da primeira dimensão têm suas raízes na
doutrina iluminista e jusnaturalista dos séculos XXVII e XVIII, e ao menos
no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são
o produto peculiar do pensamento liberal-burguês do século XVIII (Sarlet,
2004). Trata-se dos direitos civis e políticos, do direito à vida, à segurança, à
igualdade de tratamento perante a lei, à propriedade e o direito de ir e vir. São
os chamados direitos individuais clássicos. São direitos que exigem do Estado
uma abstenção, no sentido de não-intervenção a uma esfera de autonomia
individual, preservando assim especialmente a liberdade, valor primordial
para esses direitos. São, portanto, direitos de resistência ou oposição perante
o Estado (Bonavides, 1988).
A segunda dimensão refere-se aos direitos sociais, culturais e
econômicos, tais como direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia,
direitos trabalhistas e lazer. Decorrentes dos problemas sociais do século XX,
surgem com muita força nas Constituições do segundo pós-guerra. Nasceram
abraçados ao princípio da igualdade (Bonavides, 1988). Neste momento não
se está a se evitar a intervenção do Estado na esfera individual, não se cuida
mais, portanto, de liberdade do cidadão perante o Estado, e sim de liberdade
por intermédio do Estado (Sarlet, 2004).

Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante


quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção
clássica dos direitos da liberdade, era proteger a instituição, uma
realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa e
à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão
individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato
e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que
unicamente o social proporciona em toda a plenitude (Bonavides,
1988, p. 519).

Surgiam neste momento, como um novo conteúdo dos direitos


fundamentais, as garantias institucionais, que vêm com o intuito de proteger
instituições como autonomia municipal, o funcionalismo público e a
independência de juízes, e são instrumentos de proteção dessas instituições
contra intervenções do legislador ordinário.
A terceira dimensão de direitos fundamentais trata dos direitos
66 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

considerados de fraternidade e solidariedade. É ainda uma categoria muito


heterogênea e abstrata, desprovida de classificação taxativa. O seu principal
destinatário é o gênero humano (Bonavides, 1988), sendo de titularidade
difusa ou coletiva, nesse sentido. O direito à paz, à autodeterminação dos
povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como
os direitos à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural são
alguns dos direitos desta dimensão. Decorrem estes direitos do sentimento
de fraternidade, que nasce de um cenário mundial dividido entre nações
em precário estado de desenvolvimento e nações altamente desenvolvidas
econômica e tecnologicamente. Daí a necessidade desses direitos de ordem
coletiva, como uma forma de proteger esses interesses em comum, tanto aos
pobres quantos aos ricos e desenvolvidos.
Ainda nesta seara, merece referência a tendência ao reconhecimento
a uma quarta dimensão de direitos fundamentais. Seria esta dimensão de
direitos decorrentes da globalização dos direitos fundamentais. A globalização
política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta
geração. Seriam esses, os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo
(Bonavides, 1988).

Os Direitos Fundamentais e o Estado Democrático e Social de Direito


Os direitos fundamentais são, por certo, elementos essenciais ao Estado
constitucional. O que se pretende aqui é, em poucas palavras, demonstrar o
nexo de interdependência entre os direitos fundamentais e o Estado de Direito.
O artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, segundo o qual: “toda sociedade na qual a garantia dos diretos
não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada não possui Constituição”
(Sarlet, 2004, p. 67).
Tal formulação paradigmática trata-se, em verdade, das bases do que
passou a ser o núcleo material das primeiras Constituições escritas de matriz
liberal-burguesa, sendo, a limitação jurídica do poder estatal, mediante a
garantia de alguns direitos fundamentais e do princípio da separação dos
poderes (Sarlet, 2004).
No constitucionalismo pátrio, o princípio da dignidade da pessoa
humana, insculpido no art. 1º, III, da Constituição de 1988, é um valor
supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem,
desde o direito à vida (Silva, 1999). O Estado brasileiro tem por fundamentos
a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
No Estado Democrático e Social de Direito os direitos fundamentais
passam a ser, nessa esteira, integrantes de um sistema axiológico que serve de
fundamento de validade da Constituição, passando a ser também fundamento
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 67

material de todo o ordenamento jurídico, além de instrumentos de defesa da


liberdade individual, sua função originária.
A Constituição de 1988 inovou no Brasil ao colocar os direitos
fundamentais no seu Título II. Em que pese ser extenso o rol dos direitos
fundamentais contidos nos artigos deste Título, cabe aqui salientar que não se
esgotam aí, tendo o legislador aberto a possibilidade para o reconhecimento
de outros direitos também fundamentais, ainda que não positivados. É o que
se verifica no parágrafo segundo do artigo quinto de nossa Constituição,
segundo o qual: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Esta matéria jamais havia sido tratada com tamanha relevância no
constitucionalismo brasileiro valendo ainda outro destaque, para o parágrafo
primeiro do artigo quinto, segundo o qual todos os direitos e garantias
fundamentais são normas jurídicas diretamente aplicáveis, capazes de gerar
efeitos jurídicos.

O Direito Fundamental à Saúde na Constituição Federal de 1988


O direito fundamental à saúde, assim como os demais direitos
fundamentais, localiza-se no Título II da nossa Lei Fundamental. No capítulo
constitucional que aborda os direitos sociais, está insculpido no artigo. 6º
e, como já referido, faz parte da chamada segunda dimensão dos direitos
fundamentais. Trata-se daqueles direitos que necessitam de ações positivas
do Estado para terem garantida a sua efetivação.
Assim como a maioria dos direitos fundamentais, o direito à saúde
decorre logicamente do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito
à vida. O legislador constituinte não se limitou a tratar da matéria tão somente
no título dos direitos e garantias fundamentais, incluindo ainda, na seção II
do capítulo dois (que trata da seguridade social) do título VIII da Constituição
de 1988 o artigo 196, que trata especificamente do direito à saúde como um
direito de todos e um dever do Estado.

O Direito à Saúde Como Cláusula Pétrea


O direito fundamental à saúde está na CF/88, conforme já demonstramos,
entre os pontos basilares do Estado Democrático e Social de Direito, situado
entre os direitos e garantias fundamentais no capítulo II. Existe, no entanto,
discussão acerca da sua condição de cláusula pétrea, eis que o art. 60, IV,
da Constituição Federal de 1988 refere-se somente aos direitos e garantias
individuais.
Uma interpretação literal do referido dispositivo constitucional nos
levaria à conclusão de que os direitos sociais, dentre eles o direito fundamental
68 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

à saúde, não seriam cláusulas pétreas, estando assim desprotegidos de uma


possível modificação através de uma emenda constitucional. Entendemos,
todavia, precipitada essa forma de interpretação.
Evidente é, pois, a necessidade de uma interpretação sistemática do
texto constitucional (Freitas, 2004), buscando dessa forma, ao analisar outros
dispositivos de nossa Lei Fundamental, como o seu preâmbulo, entre outros,
nos aproximar o máximo possível da intenção do legislador originário.
Somente após essa análise é que poderemos chegar a algum tipo de conclusão
sobre a condição do direito social à saúde como cláusula pétrea ou não.
De início surgem, a partir do momento em que buscamos refletir sobre
as circunstâncias que envolvem a natureza do direito à saúde, assim como dos
demais direitos sociais, alguns necessários questionamentos. Temos que este
direito fundamental, que é atrelado intimamente ao princípio da dignidade da
pessoa humana e ao direito à vida, se trata, indubitavelmente, de um direito
coletivo, de natureza prestacional do Estado para com toda a população do
país.
Não pode, porém, cada cidadão que se sinta aviltado em sua dignidade
pela falta de uma prestação estatal que lhe garanta condições mínimas de
saúde, exigir do Estado o cumprimento desta obrigação prestacional?
Portanto, esse direito à saúde e a uma vida digna, que é obrigação
estatal para com cada cidadão, em última análise, não seria também um direito
individual de cada cidadão brasileiro?
Sob esta ótica, então, entendemos que, em última análise, o direito
fundamental à saúde é também um direito individual. Ainda, há o princípio
da proibição do retrocesso social, segundo o qual, uma vez que o legislador
reconheça um direito social, não pode eliminá-lo, nem posteriormente regredir
sobre aquilo que foi concedido (Sarlet, 2004).
Outro relevante elemento para uma interpretação sistemática está no
preâmbulo da Constituição Federal de 1988, que constitui em elemento formal
de aplicabilidade, estabelecendo regras de aplicação da Constituição (Silva,
1999). Conforme o preâmbulo da Constituição brasileira é objetivo permanente
de nosso Estado: “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça com valores
supremos de uma sociedade fraterna”.
Diante deste contexto, somado à necessidade de proteção ao núcleo
essencial da Constituição, temos a convicção de que a proteção outorgada
pelo legislador constituinte às cláusulas pétreas estende-se aos direitos sociais,
especialmente ao direito fundamental à saúde.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 69

Distinção entre Princípios e Regras e sua Importância para a Análise do


Problema de Efetivação do Direito Fundamental à Saúde
Convém aqui realizar uma análise conceitual das espécies normativas,
regras e princípios. A distinção entre estas espécies normativas, da mesma
maneira que a caracterização deste direito fundamental como norma da
espécie princípios é de fundamental importância para que possamos realizar
o processo de interpretação e aplicação do direito.
Sabendo qual o tipo de norma e conhecendo as características que lhe
sejam peculiares poderemos determinar alguns elementos indispensáveis à sua
efetivação. A melhor forma que entendemos de fazer esta análise é, demonstrar,
através de um panorama doutrinário, algumas concepções relevantes acerca
do assunto. O tema é centro de muitas divergências, e somente desse modo
poderemos demonstrar a evolução dos conceitos.
A primeira conceituação que trazemos é a apresentada por Josef Esser,
na obra Principio Y Norma en la Elaboración del Derecho Privado (1961), segundo
o qual os princípios, por possuírem conteúdo axiológico, são normas que
estabelecem fundamentos para a interpretação do direito. Segundo este autor
os princípios fazem parte do ordenamento jurídico, quer sejam eles codificados
ou não, sendo que se manifestam no ato de interpretação do direito vigente.
Para Ronald Dworkin, as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada,
isto é, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou a regra é
válida e a conseqüência normativa deve ser aceita, ou ela não é válida. Já os
princípios possuem o que ele chama de dimensão de peso, demonstrável na
hipótese de colisão entre eles, em que um se sobrepõe ao outro, sem que este
perca sua validade (Ávila, 2004).
Podemos dizer que Robert Alexy, ao estudar uma teoria material dos
direitos fundamentais, na obra Teoria de los Derechos Fundamentales (1997),
avançou os estudos no caminho trilhado por Dworkin. Para o jus-filósofo
alemão, princípios e regras são espécies do gênero norma, pois ainda que
guardem grandes diferenças entre si, ambos são razões para juízos concretos
de dever-ser. Os princípios são considerados mandatos de otimização, que
podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida de seu cumprimento
não depende apenas das condições reais, mas também das jurídicas (Alexy,
1997).
Já as regras são mandatos definitivos, pois possuem um campo de
aplicação mais definido do que os princípios. Podem ser cumpridas ou não,
dessa forma, se uma regra é válida deve ser respeitada na exata dimensão
de suas palavras. Daí a afirmação de Alexy, de que a diferença entre regras e
princípios é qualitativa e não de grau (Alexy, 1997, p. 87).
Compreende dois fatores fundamentais para a distinção entre regras e
princípios. O primeiro fator determinante para tal diferenciação é quando da
70 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

colisão. Enquanto em um conflito entre regras reciprocamente contraditórias


a solução passa pela abertura de uma exceção que possa excluir a antinomia
ou, não sendo isto possível, a decretação de invalidade de uma das regras. Um
conflito entre princípios deve ser solucionado de maneira totalmente diversa.
Princípios colidentes têm sua realização normativa limitada reciprocamente
pelo caso concreto. Nesses casos a solução não está na dimensão de validade
da norma, pois os princípios para entrar em colisão precisam ser válidos, mas
sim na dimensão de peso (Alexy, 1997).
Outro fator importante para que se faça tal distinção entre estas
espécies normativas, se trata das diferenças quanto ao caráter da obrigação
que instituem. As regras instituem obrigação de caráter absoluto, exigem,
pois, que se cumpra exatamente o que elas ordenam. Neste ponto é possível
visualizar a relação da conceituação proposta por Alexy com os estudos de
Dworkin, quando este nos diz sobre a aplicação das regras do modo tudo ou
nada. Já os princípios, levando em conta as possibilidades jurídicas e fáticas,
instituem obrigações não absolutas, mas prima prima facie, ao passo que podem
ser superadas ou derrogadas por outras instituídas por princípios colidentes
(Alexy, 1997).
Por fim, trazemos a distinção conceitual proposta por Humberto Ávila,
que em sua obra Teoria dos Princípios (2004) define as regras da seguinte forma:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente


retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência,
para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre
centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que
axiológicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da
descrição normativa e a construção conceitual dos fatos (Ávila,
2004, p. 70).

São consideradas imediatamente descritivas porque estabelecem


obrigações, proibições e permissões mediante a descrição da conduta a ser
adotada. Deve-se, dessa forma, em uma regra haver correspondência entre a
construção factual e a finalidade que dá suporte e a conduta prevista, de modo
a que se possa aplicá-la. Por isso, as regras têm a pretensão de abranger todos
os aspectos relevantes para a tomada da decisão.
Já os princípios, para Ávila:

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente


prospectivas e com pretensão de complementaridade e de
parcialidade, para cuja aplicação se demanda de uma avaliação
da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos
decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção
(Ávila, 2004, p. 70)
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 71

Os princípios, pela sua natureza, estabelecem um estado ideal de coisas a


ser atingido como finalidade. Para tanto, são necessárias condutas condizentes
com os valores relacionados com a realização desse fim, por isso seu caráter é
primariamente prospectivo. Quanto à pretensão de decidibilidade, estes não
pretendem gerar uma decisão específica, mas sim contribuir, juntamente com
outros motivos, para a tomada da decisão.
O importante de se fazer tal distinção conceitual é para que possamos,
ao enquadrar a norma em análise em uma das espécies normativas aqui
referidas, antecipar as características da mesma, facilitando assim o trabalho
do intérprete/aplicador do direito. Feito isso, pois, fica o ônus argumentativo
do intérprete restrito àquelas características já destacadas antecipadamente.
Não pode, todavia, jamais ser eliminado totalmente esse ônus argumentativo,
uma vez que é indispensável o processo de interpretação e argumentação do
direito de modo a proporcionar uma aplicação com maior segurança.

Considerações Finais
Frente ao exposto, vê-se que o direito fundamental à saúde, além de ser
um direito social de cunho prestacional positivado em nossa Constituição sob
a forma de princípio programático, é também um direito subjetivo individual,
de aplicabilidade imediata e de eficácia plena.
Ao refletirmos acerca do problema da efetivação do direito fundamental
à saúde, podemos ainda observar atitudes necessárias para que se atinja tal
objetivo, a serem realizadas pelo Poder Público, em todas as suas esferas.
O Poder Legislativo, ao criar leis infraconstitucionais para assuntos
pontuais procura adequar tais leis aos princípios constitucionais norteadores do
nosso sistema. O Poder Executivo tem o dever de promover políticas públicas
objetivando a promoção da saúde a toda a população. No entanto, quando
algum cidadão não se sente contemplado com o serviço que é oferecido pela
Administração Pública, resta a ele buscar tutela perante o Poder Judiciário,
que tem a tarefa de, além de analisar a constitucionalidade das normas criadas
pelo legislador, verificar se a Administração está a cumprir seu dever de
promover a saúde à população de modo adequado com o prescrito na Carta
Magna.
O direito fundamental à saúde, por certo, engloba muito mais do que se
viu aqui, sendo nossa pretensão tão somente destacar alguns pontos teóricos
dos quais se podem aprofundar para a análise a partir do estudo de casos
concretos, tanto no que tange à elaboração de leis infraconstitucionais como à
sua aplicação e interpretação pelos Tribunais Superiores.
Em se tratando da busca pela efetividade do direito à saúde, a
responsabilidade é de todos os Poderes Públicos, dentro, por óbvio, de suas
respectivas esferas de atribuições e competência, e este ensaio procurou
72 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

apenas delinear alguns aspectos da questão com uma abordagem teórica no


que diz respeito à sua dimensão normativa e à sua aplicabilidade em matéria
de direito constitucional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alexy, R. (1997). Teoria de Los Derechos Fundamentales. (E. G. Valdés, Trad.)
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales.
Ávila, H. B. (2004). Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. São Paulo: Malheiros.
Bonavides, P. (1988). Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Malheiros.
Engelmann, W. (2001). Crítica ao Positivismo Jurídico: princípios, regras e o conceito
de direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris.
Esser, J. (1961). Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho
privado. Barcelona: Bosch.
Freitas, J. (2004). A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros.
Sarlet, I. W. (2004). A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria
do Advogado.
Silva, J. A. (1999). Aplicabilidade das Normas Constitucionais (3ª ed.). São Paulo:
Malheiros.
A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS APÓS A EC 15/96:
UMA ANÁLISE EM BUSCA DA EFETIVIDADE DO
TEXTO CONSTITUCIONAL

ALEX PIRES ANDRADE1


Resumo
O artigo procurou compreender a luz da filosofia do Direito a possibilidade de criação de
novos municípios após a edição da emenda constitucional 15/96. Nesse sentido, procurou-se a
priori ponderar as teorias, positivista e pós-positivista, entendendo ser admissível a conjunção
dessas teorias para melhor prestação do serviço jurisdicional em casos concretos de maior
complexidade. Em segundo momento, foi elencado as opções que o Supremo Tribunal Federal
detinha para julgar o mérito da ação direta de inconstitucionalidade 2240 que impugnou
a criação de municípios após a EC15/96. Por último, a pesquisa avaliou a lei 2.264/10 que
criou o município de Extrema de Rondônia, assim como a inércia do Congresso Nacional ao
não elaborar a Lei Complementar Federal regulamentando a criação de novos municípios,
conforme previsão do artigo 18, §4º, da Constituição da República Federativa do Brasil. Esta
análise permitiu concluir que a criação de municípios pode ser feita mediante lei estadual,
enquanto não elaborada a Lei Complementar Federal em razão da busca de efetividade da Carta
Magna verificada na densidade normativa dos princípios correlatos a hard case estudada.

PALAVRAS-CHAVE: Municípios putativos; Técnicas de interpretação; Norma


impugnada; Densidade normativa dos princípios; Constitucionalidade.

Introdução
A criação de municípios, atualmente, é assunto que encontra-se em
evidência no Direito da terra brasilis. Isto por que, após a edição da emenda
constitucional 15/96, a competência para criação, fusão, incorporação e
desmembramento de municípios passou a depender de Lei Complementar
Federal, ainda não editada.
Contudo, muitos municípios foram criados às margens do texto
constitucional, sendo preciso inclusive à edição da Emenda Constitucional
57/08 convalidando os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento
de municípios ocorridos após a emenda constitucional 15/96 até o dia 31 de
dezembro do ano de 2006.
Hodiernamente, diante da inércia do Congresso Nacional em não
elaborar a Lei Complementar Federal, percebe-se que diversos municípios
continuam sendo criados às margens do artigo 18, §4º da Constituição da
República Federativa do Brasil.
Nesse sentido, o artigo em tela tem o escopo de demonstrar a luz
da filosofia do Direito que a criação de novos municípios após a edição da
emenda constitucional 15/96 é possível, ainda que sem a Lei Complementar
Federal regulamentando o artigo 18, §4º, da CRFB e mesmo posterior a emenda

1
Advogado. Graduado em Direito pelo UNISEB. Graduado em Matemática pela UEMG. Email:
alxpires@hotmail.com.
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constitucional 57/08. Para tanto, foi analisada a lei 2.264/2010 que criou o
município de Extrema de Rondônia.
Sobeje dizer, que o artigo foi articulado em três tópicos: Em primeiro
momento uma análise filosófica em torno das teorias positivista e pós-
positivista, responsáveis para dar sustentação aos argumentos apresentados
em sede de conclusão. Por sua vez, em segundo momento foi priorizada uma
análise de um caso concreto, permitindo pelo método indutivo, concluir no
sentido da possibilidade de realizar o controle incidental da norma paradigma
de confronto antes de analisar o pleito principal. Por fim, foi perquirida a
criação de novos municípios no cenário nacional, dando ênfase à criação do
município de Extrema de Rondônia.

A adequada aplicação do Direito: As teorias positivista e pós-positivista no


processo de solução de casos difíceis em nosso ordenamento jurídico
A priori, podemos dizer que tanto a teoria positivista quanto a teoria
pós-positivista apresentam argumentos e construções lógicas bastante sólidas.
Para exemplificar, a teoria positivista é relevante pelo desenvolvimento do
sistema escalonado e pelo fato do Direito estar sempre positivado, diminuindo
o espaço para alegar desconhecimento das normas, principalmente em um
período em que grandes mudanças de valores acabam ocorrendo.
Por sua vez, a teoria pós-positivista é fundamental, uma vez que resta
transparente que um sistema unicamente constituído sobre a égide de regras
normatizadas acaba dificultando uma prestação jurisdicional adequada. Além
disso, não há dúvida que pela conjuntura de organização da nossa sociedade
a teoria positivista se mostra de difícil superação.
Nesse sentido, explicita Antônio Alberto Machado no artigo “A
superação do positivismo jurídico”:

Creio que a superação da metodologia e da ideologia jurídico-


positivista, conforme apregoam algumas teorias do direito,
é uma proposta ambiciosa demais. É muito difícil, talvez até
impossível, superar os paradigmas do positivismo jurídico dentro
do atual projeto sócio-cultural de modernidade capitalista e liberal
(MACHADO, 2012).

Dessa maneira, o que parece correto hodiernamente seja conjugar


as teorias, aplicando-as dentro de suas possibilidades e concomitante a um
mesmo caso concreto, independentemente de estarmos inseridos no âmbito
dos países de origem do Common Law ou do Civil Law.
Cabe dizer, que uma vez aceita essa posição, estamos por adotar o
pós-positivismo no que tange a flexibilização dos princípios correlatos, mas
por outro lado, conservando a teoria positivista no que se refere ao sistema
escalonado das normas.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 75

Uma solução alternativa para a criação de municípios após a EC 15/96: o


desapego ao procedimento diante da sobreposição do direito material e a
criação do município de extrema de Rondônia
No dia 06 de julho do ano de 2000, o Partido dos Trabalhadores ingressou
no Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de inconstitucionalidade
com pedido liminar, pleiteando a declaração de inconstitucionalidade da lei
do Estado da Bahia n. 7.619, de 30.03.2000, publicada no Diário Oficial do
Estado em 31.03.2000, que criou o Município de Luis Eduardo Magalhães, até
então, distrito do município de Barreiras.
O Partido dos Trabalhadores, legitimado universal para propositura de
ações abstratas do controle de constitucionalidade, conforme artigo 103, VIII
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, alegou em síntese
que a lei baiana violava o artigo 18, §4º da Carta Magna, uma vez que não
existe Lei Complementar Federal regulamentando este dispositivo.
Diante da provocação formulada, o Supremo Tribunal Federal decidiu
em 03.08.2007 que a norma impugnada era inconstitucional, pois afrontava
o artigo 18, §4º da Constituição Federal, posto que diante da ausência de Lei
Complementar Federal não poderia o Esta baiano criar o referido município.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal não declarou a pronúncia de
nulidade da norma impugnada pelos próximos 24 (vinte quatro) meses, prazo
este que o Congresso Nacional deveria sanar a omissão do artigo 18, § 4º da
CRFB/88, conforme decisão em sede do MI n. 725.
Porém, diante da decisão podemos retirar vários questionamentos,
como por exemplo: o que ocorrerá com o município de Luís Eduardo
Magalhães se o Congresso Nacional não elaborar a Lei Complementar Federal
disciplinando a criação, a fusão, desmembramento e a incorporação dos
municípios, consoante decisão no MI. n. 725? Além disso, para tornar a questão
mais complexa, o Congresso Nacional publicou no Diário Oficial da União em
18.12.2008 a Emenda Constitucional 57/08, convalidando “os atos de criação,
fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido
publicada até 31 de dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos
na legislação do respectivo Estado à época de sua criação”.
Diante deste ponto, é de se questionar se a referida Emenda
Constitucional 57/2008, por si só, dispensaria a regulamentação do artigo 18,
§4º para fins de declaração de constitucionalidade da lei baiana 7.619/2000.

Do leque de opções para decidir no mérito o caso dos “municípios putativos”


e dos fundamentos que tornam equivocada a decisão tomada em sede da
ADI 2240
Não há dúvidas de que o caso em tela é bastante interessante do ponto
de vista da aplicação do Direito. Destarte, frente ao problema apresentado os
76 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Ministros do Supremo Tribunal Federal possuíam diversas maneiras de decidir


a questão com fundamentos consistentes em cada uma delas. Com efeito,
em acordo a melhor hermenêutica sobre a matéria, torna-se pontual extrair
as principais maneiras de decidir a hard case em estudo, o que sem dúvida
nos leva, ao final, a coadunar com a possibilidade de inconstitucionalidade
por omissão com redução de texto do paradigma de confronto da norma
impugnada enquanto medida para suplantar a questão dos “municípios
putativos.”
Nesse sentido, a primeira decisão que poderia ter sido tomada refere-
se à procedência do pedido formulado na ADI 2240, qual seja, a de declarar
a lei 7619/2000 inconstitucional. Neste caso, a lei baiana seria declarada
inconstitucional podendo receber efeitos ex tunc, em caso de pronúncia de
nulidade. Contudo, não parece muito acertado este posicionamento, muito
embora o Ministro Marco Aurélio, em seu voto de fls. 337 e 338, tenha se
manifestado nesse sentido ao argumento de que: “Placitada a criação desse
município ao arrepio do que contém na Constituição Federal, a porta ficará aberta
para endossarmos, em conflito evidente com a Carta da República.” (ADI 2240, fls.
337-338).
Entendo que o equivoco dessa posição concentra-se, principalmente,
no fato de utilizar uma interpretação literal do texto constitucional enquanto
ferramenta única para aplicação do Direito. Sem mencionar o apego exacerbado
ao modelo positivista. Não é porque a Constituição da República dispõe de
necessidade de Lei Complementar Federal para criação de municípios que se
pode desprezar os princípios intrínsecos a Constituição da República.
Ora, é necessária uma interpretação teleológica e sistemática da
Constituição da República. Além do mais, uma decisão que anulasse desde o
início a criação de todos os municípios criados às margens da Constituição da
República poderia gerar verdadeira insegurança jurídica para os munícipes
atingidos pela decisão. Afinal, como ficaria a relação jurídica estabelecida em
razão da elaboração de leis municipais aprovadas? E em relação à cobrança de
tributos municipais, poderia o contribuinte reaver os valores pagos no período
da putatividade do município?
Enfim, quero ressaltar que esta decisão recairia na necessidade de
um verdadeiro arsenal de disposições para regulamentar o período em
que o município teve a aparência de legitimidade. Ademais, estaria este
posicionamento se eximindo de realizar a modulação de efeitos do controle de
constitucionalidade, cuja previsão esta expressa na lei 9868/99 em seu artigo
27.
Portanto, considerando a peculiaridade do caso, beira a “insensatez”
pensar no desfazimento do princípio da continuidade do Estado sem procurar
outra medida que melhor se adequasse ao caso em análise. Por outro lado, o
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 77

argumento apresentado pelo Ministro Marco Aurélio não é dotado de solidez,


uma vez que placitada a criação do município este permanece em harmonia
aos princípios constitucionais, como, por exemplo, os princípios da segurança
jurídica e da continuidade do Estado.
Resta cristalino, nesses termos, que a declaração de inconstitucionalidade
com efeitos ex tunc não se adéqua ao caso concreto in fine. Do mesmo modo,
com alicerce na mesma hermenêutica, não faz sentido pensar ainda na
declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc ou pró-futuro. Ora,
nesta situação é compreensível e aceitável a modulação dos efeitos do controle
de constitucionalidade nos termos da disciplina dada pela lei que regulamenta
a ação direta de inconstitucionalidade.
É ainda plausível que nesta situação haja uma aproximação com
o modelo pós-positivista, uma vez que há a valoração dos princípios em
detrimento a norma, por meio do juízo de ponderação. Porém, tornar os efeitos
da inconstitucionalidade para o futuro não resolve a questão da segurança
jurídica, uma vez que os “municípios putativos” necessitariam ser extintos
após a publicação da decisão.
Nesse prisma, restaria à mesma insegurança jurídica, pois precisaria
de normas regulamentando a incorporação do “município putativo” ao
município-mãe. Assim, sobeje transparente que a segunda opção, declaração
de inconstitucionalidade com efeitos pró-futuro, não logra êxito suficiente para
superar a questão.
Ainda na linha da declaração de inconstitucionalidade, poderia o caso
em tela ser decidido tal qual foi à posição majoritária adotada pela Suprema
Corte brasileira no caso em tela, isto é, dando procedência ao pleito formulado
na ADI 2240, porém dando uma sobrevida de 24 (vinte e quatro meses)
para que o Congresso Nacional elaborasse a Lei Complementar Federal. No
entanto, com base na literatura jurídica adotada, não nos parece que a decisão
de mérito tomada pelo Supremo Tribunal Federal seja a mais acertada em
razão de sua ineficácia prática, posto que os municípios continuam em pleno
desenvolvimento do mesmo modo que ocorria antes da pretória.
Ora, por mais que a decisão do Supremo Tribunal Federal tenha afastado
a interpretação literal da norma, buscando compreender a luz dos princípios
constitucionais e dos princípios peculiares da relação jurídica existente no
caso dos “municípios putativos”, a mesma não possui efeito concreto capaz de
oferecer segurança jurídica as pessoas atingidas pela decisão. Chamo a atenção
que a atual condição dos “municípios putativos” ainda não esta resolvida, o
que reforça o argumento de que não houve eficácia prática na decisão.
Isso se justifica, pois a Lei Complementar Federal não foi elaborada
dentro do prazo, motivo pelo qual a criação do município de Luis Eduardo
Magalhães não se encontra consolidada. Nesse caso, ficou decidido que “ação
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direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade, mas não


pronunciar a nulidade pelo prazo de 24 meses, da Lei n. 7.619, de 30 de março
de 2000, do Estado da Bahia (ADI 2240, GRAU, PP-00279).
Assim, pela decisão pode-se extrair que caso não tivesse sido aprovada a
emenda constitucional 57/08, estaria o município de Luiz Eduardo Magalhães
hodiernamente extinto, posto que a pronúncia de nulidade tão somente não
ocorreria se a Lei Complementar Federal fosse elaborada dentro do prazo
concedido. Contudo, já ficou claro que a emenda constitucional 57/08 padece
de vício material, uma vez que “atalha” o texto constitucional e inaugura o
fenômeno da constitucionalidade superveniente o que ofusca o princípio da
contemporaneidade no ato da realização do controle de constitucionalidade.
Ainda não se mostra adequada à decisão, pois o prazo concedido para o
Congresso Nacional elaborar a norma omissa não vincula o Poder Legislativo,
sob a pena de ofender o princípio da separação dos poderes e provocar o
fenômeno da fossilização da Constituição. Ante as ponderações formuladas,
percebe-se claramente que a decisão não supera a questão, muito embora
tenha construído de maneira inteligente do ponto de vista da modulação dos
efeitos e da observância aos princípios da reserva do impossível, continuidade
do estado e segurança jurídica.
Destarte, interessante delinear em seguida, a possibilidade de
inconstitucionalidade por omissão com redução de texto do paradigma de
confronto da norma impugnada enquanto medida para suplantar a questão
dos “municípios putativos” que se verifica a partir da conjunção entre as
correntes filosóficas acerca da teoria geral do Direito e da preservação da
supremacia da Constituição.

Da decisão mais adequada para o in casu: A Possibilidade de


inconstitucionalidade por omissão com redução de texto do paradigma
de confronto da norma impugnada diante dos princípios da reserva do
impossível e da situação excepcional consolidada enquanto medida para
superar a questão dos “municípios putativos”
A hermenêutica do pós-positivista Ronald Dworkin nos ajuda a superar
a questão dos “municípios putativos” conservando o sistema escalonado de
normas desenvolvido por Hans Kelsen. Na linha de Dworkin, o apego à lei
percebido no modelo positivista de Hans Kelsen ou na necessidade de uma
norma de reconhecimento vislumbrado no entendimento de Hart, dificulta
a aplicação do Direito por parte do magistrado em casos difíceis. Isso se
dá, segundo a sua interpretação, pois nos casos difíceis, had case, o Direito
é aplicado na base do “tudo ou nada”. Não existe um meio termo, ou uma
ponderação feita entre a lei, princípios e diretrizes, o que faz com que a decisão
não seja a mais acertada.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 79

Por amor a completude, aplicando esta interpretação, para exemplificar,


a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc da lei baiana diante
do artigo 18, §4º da CRFB significaria o “nada” para Dworkin, uma vez que
observaria exclusivamente a norma paradigma de confronto eximindo de
observar as diretrizes e princípios correlatos à norma impugnada.
Além do mais, na lição de Ronald Dworkin, o Direito é visto como
integridade e no seu entendimento o princípio judiciário de integridade faz
com que os magistrados observem, examinem e interpretem exaustivamente
as leis, princípios e diretrizes, para ao final aplicar adequadamente o direito,
cumprindo assim em sua visão, com o exercício regular de jurisdição.
Não obstante, a densidade normativa dos princípios, preceitua que os
princípios, ao realizarem a função normativa podem prover as lacunas da lei
como fonte supletiva do Direito. Com efeito, no caso da ADI 2240 o princípio
judiciário de integridade poderia ter sido mais bem explorado.
Ora, é incontroverso que a situação do município de Luis Eduardo
Magalhães pairava a insegurança jurídica, pois poderia ser extinto tendo que
se incorporar ao município de Barrinha (município-mãe). Do mesmo modo,
é claro que a situação deste município, assim como dos demais municípios
em mesma situação configura uma situação excepcional que havia sido
consolidada (do ponto de vista prático).
Destarte, não resta dúvidas de que se deve buscar ao máximo a
efetividade do princípio da continuidade. Ademais, recorrendo a teoria tópica
podemos registrar ainda que o pensamento jurídico acaba sendo fundado nos
problemas que surgem da análise dos casos concretos, consistindo em uma
forma de pensar casuística e problemática, motivo pelo qual o judiciário deve
buscar dar efetividade na prestação jurisdicional.
Diante destes fatores, ao receber a petição inicial da ação direta de
inconstitucionalidade e deferi-la, faltou ao Ministro relator o exame completo
da questão, isto é, de analisar, primeiro, se a lei impugnada atendia ao princípio
da contemporaneidade e, segundo, se o paradigma de constitucionalidade
possuía “presunção absoluta” de constitucionalidade. É merecido dizer,
que essa análise não seria necessária pelos mesmos motivos que dispensa a
aplicação da cláusula reserva de plenário, isto é, quando houver precedente
no Supremo Tribunal Federal.
Havendo caso de ausência destes requisitos, tornaria imprescindível
um julgamento incidental (artigo 18 §4º da CRFB X CRFB) antes do julgamento
do pleito principal (lei baiana x artigo 18 §4º as CRFB). Porém, esta análise
não foi feita, pois no que tange a verificação da presunção absoluta da norma
paradigma de confronto, isto é, do artigo 18, §4º do texto constitucional
percebe que o mesmo foi introduzido na Carta Magna mediante Emenda
a Constituição 15/96, razão pela qual havia, apenas, presunção relativa de
80 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

constitucionalidade da norma constitucional.


Dessa maneira, poderia, em tese, por meio da ponderação dos
princípios envolvidos, isto é, princípio do devido processo legal x
princípios da continuidade do Estado e da reserva do impossível, verificar
a constitucionalidade do artigo 18, §4 º da CRFB antes de apurar a harmonia
entre a lei baiana e o paradigma de constitucionalidade do caso. Com efeito,
restaria claro que o paradigma de confronto (artigo 18, §4 da Constituição
da República Federativa do Brasil) sofre da “síndrome da inefetividade da
norma”, isto porque é: “norma de eficácia limitada carecedora de regulamentação,
razão pela qual sua aplicabilidade é indireta, mediata e reduzida”. (MORAES, 2003,
p.41).
Assim, diante da inércia do Poder Legislativo poderia declarar a
inconstitucionalidade por omissão com redução de texto do artigo 18, § 4º
da Constituição da República Federativa do Brasil, suprimindo a expressão
“dentro do período determinado por Lei Complementar Federal” e na “forma
da lei”. A titulo de curiosidade, a proposta de inconstitucionalidade por
omissão com redução de texto faria com que o artigo 18, §4º voltasse a ter os
mesmos requisitos à época da promulgação da Constituição da República.
É válido dizer, no que se refere aos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade da norma paradigma de confronto que estes seriam:
vinculante, inter partes e ex tunc (podendo ser modulado). Seria vinculante,
pois a decisão impediria o descumprimento por parte do Poder Executivo,
assim como do Poder Judiciário neste caso analisado. Por sua vez, sem margem
para discussão, produziria efeitos inter partes, uma vez que a declaração da
inconstitucionalidade da norma paradigma de confronto se dá de maneira
incidental e exclusivamente na análise de um caso concreto.
Porém, a nosso ver, em uma interpretação mais avançada e até aplicando
a mesma linha de raciocínio já adotada pelo Supremo Tribunal Federal no
caso da objetivação do Recurso Extraordinário, seria possível afirmarmos que
a decisão de inconstitucionalidade da norma paradigma de confronto poderia
provocar efeitos erga omnes.
Ora, é sabido que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem
se inclinando no sentido de dilatar os efeitos das decisões proferidas no
controle difuso para além das partes envolvidas no processo. Essa situação
preceitua-se o que se denomina de objetivação do Recurso Extraordinário,
isto é, o mecanismo usado pela Suprema Corte dispensando o Senado Federal
(prerrogativa do art. 52, X da CRFB) de sustar os efeitos da norma declarada
inconstitucional no controle difuso para que produza efeitos erga omnes.
Nesse prisma, Gilmar Ferreira Mendes, no processo administrativo nº
318.715/STF, que repercutiu na edição da emenda nº 12 ao Regimento Interno
do Supremo Tribunal Federal. O RISTF destaca que: “o Recurso Extraordinário
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deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesses das partes, para
assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-
se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm adotando.”
(MENDES, p. 71).
Diante deste cenário e por uma interpretação analógica, não há que
se ouvidar que a declaração de inconstitucionalidade da norma paradigma
de confronto pode produzir, pelas mesmas razões da objetivação do Recurso
Extraordinário, efeitos erga omnes.
Por sua vez, no que se refere aos efeitos ex tunc, merecido dizer que
a declaração de inconstitucionalidade por omissão com redução de texto
da norma paradigma de confronto poderia ter no, in casu, os seus efeitos
modulados, tomando por base o artigo 27 da lei 9868/99, ao ponto de conceder
os mesmos 18 (dezoito meses) para que o Congresso Nacional venha elaborar
a Lei Complementar Federal sob pena de conceder efeitos ex tunc à decisão.
A referida modulação, neste caso, poderia facilmente ser cominada com
o artigo 12-H, § 1º da própria lei, afastando assim qualquer receio de ofensa
ao princípio da separação dos poderes. Neste caso, ao adotar a declaração de
inconstitucionalidade por omissão com redução de texto sem pronúncia de
nulidade seria possível a suspensão do processo no pleito principal.
Explica-se: suspenderia a ação direta de inconstitucionalidade com o
objetivo de declarar a lei baiana inconstitucional pelo prazo de 24 (vinte e
quatro) meses, que seria o tempo razoável dado ao Congresso Nacional para
a elaboração da Lei Complementar Federal regulando o artigo 18 § 4º da
CRFB e para que o Estado da Bahia e o município se adéque aos dispositivos
regulamentados na lei complementar.
Contudo, caso o Congresso Nacional não elabore a lei no prazo
dado aplicar-se-ia efeitos ex tunc a declaração de inconstitucionalidade
incidental (análise da norma paradigma de confronto), passando o município
imediatamente a figurar em estado de constitucionalidade, ou seja, em
harmonia ao texto constitucional. Por sua vez, caso o Congresso Nacional
regulamentasse a omissão, teria o Estado e o Município o prazo de 6 (seis)
meses para se adequar ao regramento contido na Lei Complementar Federal.
Importante dizer, que na decisão incidente, seria necessário que o
Supremo Tribunal Federal fixasse parâmetros para a elaboração da norma
complementar, isto porque, evitaria que a norma elaborada pelo Poder
Legislativo criasse obstáculos para a adequação da lei estadual baiana à
Lei Complementar Federal. Por consequência, a aplicação de decisão nessa
natureza evitaria o “atalhamento Constitucional” por parte do Congresso
Nacional, como ocorreu com a edição da EC 57/08.
Ademais, é importante frisar que a solução apresentada nada mais
representa que uma interpretação do processo constitucional à luz dos
82 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

princípios da integridade, da economia processual, da finalidade do processo,


da reserva do impossível e da situação excepcional consolidada. Isso se
justifica, pois ao receber a petição da ação direta de inconstitucionalidade e
estando preenchido os requisitos do artigo 282 do Código de Processo Civil
o juiz deve deferi-la, a partir desse momento, o que se propõe é uma análise
geral do processo, analisando: primeiro o princípio da contemporaneidade e
segundo se a norma paradigma de confronto é constitucional, para somente
depois dar prosseguimento ao pleito principal.
Em outras palavras, caso não haja os pressupostos instalar-se-ia uma
questão prejudicial para apurar a inconstitucionalidade da norma paradigma
de confronto. Vale dizer, nesse prisma que essa medida poderia ser adotada
em todas as ações do controle abstrato, uma vez que não ofusca o princípio
do contraditório, pois ao analisar a norma paradigma de confronto poderia
o Ministro relator, em tese, conceder prazo para Advocacia Geral da União
defender a constitucionalidade da norma.
Por essa razão, o ângulo de análise da constitucionalidade recai sobre
o paradigma de confronto e não sobre a norma impugnada, motivo pelo qual
a lei baiana possui status constitucional em qualquer hipótese. É relevante
pontuar, por outro lado, que a interpretação processual dada não “cega” o
princípio da adstrição do pedido. Isso porque, o pedido formulado na ação
direta de inconstitucionalidade foi analisado, porém após superar o exame da
(in) constitucionalidade da norma paradigma.
Destarte, não se apresenta contrário ao princípio do devido processo
legal. Ora, em conformidade a Humberto Ávila (2010), o devido processo legal
pode ser divido em substancial (material) e formal. Pelo primeiro, busca-se
por meio de um juízo de ponderação conceder uma tutela jurisdicional justa,
proporcional e razoável, razão pela qual poderia facilmente ser justificada
nesta situação. Em mesmo sentido, a teoria perelmaniana concebe que a
argumentação no julgamento é fundamental, uma vez que não se pode ficar
preso ao formalismo existente no modelo positivista.
Do mesmo modo, não ofusca o princípio da inércia do Poder Judiciário,
pois este só pode atuar mediante provocação. Isso é facilmente superado, pois
a norma paradigma deve ser analisada antes mesmo de se verificar a norma
impugnada. Este raciocínio é o inverso do conferido a declaração de perda de
objeto da ação direta de inconstitucionalidade quando a norma paradigma é
alterada, por exemplo.
Por amor a argumentação, ainda que fosse entendido que a maneira
adotada para suprir a questão dos “municípios putativos” ofendesse o
princípio da inércia do Poder Judiciário, poderíamos mais uma vez recorrer
ao juízo da ponderação das normas desenvolvido por Ronald Dworkin.
Com certeza ao balizar os princípios envolvidos: Princípio da Inércia
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 83

do Poder Judiciário x Princípios da economia processual (poderia evitar uma


demanda futura) e finalidade (atenderia a questão material pretendida),
percebe-se maior importância em privilegiar o procedimento adotado para
declarar constitucional a lei baiana, ainda que ofuscasse de algum modo o
princípio da inércia do judiciário. Diante destas pontuações em torno da (im)
possibilidade de declarar inconstitucional a norma paradigma de confronto,
podemos sem sombra de dúvidas afirmar que a medida para suplantar a
questão dos “municípios putativos” conserva de maneira evidente o sistema
escalonado elaborado por Hans Kelsen.
Na linha de raciocínio usada, portanto, é guardada a estrutura de
organização das normas, ou seja, as normas estatais deparam-se organizadas
em camadas normativas que se sobrepõe umas as outras tirando validade no
texto constitucional. Em outras palavras, nessa proposta para suprir à questão
dos “municípios putativos” a interpretação da teoria geral do Direito à luz da
filosofia pós-positivista preserva a Supremacia do texto constitucional e, por
conseguinte a natureza jurídica do nosso ordenamento jurídico.
Com efeito, é de se reconhecer que o ordenamento jurídico não deve ser
analisado de modo estanque, em razão das constantes mudanças que ocorrem
na sociedade, motivo que justifica a aplicação de novas linhas de interpretação
como é o caso do modelo pós-positivista. Porém, não significa abandonar o
Direito positivo. Quero dizer, portanto, que a conjunção das linhas filosóficas
(positivismo x pós-positivismo) pode oferecer resultados mais interessantes
para o desenvolvimento da ciência jurídica.
No caso apurado, por exemplo, é possível extrair que as normas
procedimentais ou o formalismo processual Kelseniano, isto é, que se referem
à condução do processo podem ser abrandadas se contrárias a aplicação
material do direito, desde que em um juízo de ponderação o direito material
se sobreponha.

O surgimento de novos municípios: Uma análise em torno da lei 2.264/2010


que cria o município de Extrema de Rondônia.
Não obstante a questão já posta, diversas leis estaduais já foram
produzidas após a Emenda Constitucional 57/08, no sentido de criar novos
municípios. Nesse Sentido, verifica-se a tabela a seguir:
84 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Com efeito, para exemplificação, a Assembléia Legislativa do Estado


de Rondônia publicou em 17 de março de 2010 a lei 2.264/2010 que cria o
município de Extrema de Rondônia. É de se notar, que após a publicação da
referida lei o Superior Tribunal Eleitoral conforme processo administrativo
672-53.2010.6.00.0000/RO deferiu o pedido para realização de consulta
plebiscitária nos municípios envolvidos, com base no art. 5º da lei 9.709/98.
Já no dia 28/02/2010, o Senhor Ministro Hamilton Carvalho, em sede
de fl. 3, com fulcro no art. 10 da lei 9709/98, homologou o plebiscito ocorrido
no município de Porto Velho (município-mãe que daria ensejo a criação
de Extrema de Rondônia). Vale dizer, que na oportunidade compareceram
196.103 eleitores, sendo que destes 170.004 votaram favoráveis a criação do
Município de Extrema de Rondônia. Contudo, embora tenha sido publicada
a lei 2.264/10 e homologado o resultado da consulta plebiscitária, o Tribunal
Superior Eleitoral acompanhando o voto da relatora Nancy Andrighi negou
possibilidade de ocorrência de eleições municipais no ano de 2012.
Por enquanto, parece abortada a criação efetiva de Extrema de Rondônia.
Porém, é oportuno lembrar que os municípios que haviam sido instituídos no
ano de 2003, como são os casos de Pescaria Brava e Balneário Rincão (SC),
Paraíso das Águas (MS), Mojuí dos Campos (PA) e Pinto Bandeira (RS),
conseguiram realizar suas eleições tão somente agora no ano de 2012. Ora,
não nos parece acertada a decisão sob o prisma de uma adequada prestação
jurisdicional.
Ora, no caso da lei 2.264/10 que criou o município de Extrema de
Rondônia, caso o Supremo Tribunal Federal tivesse adotado a opção de
declarar a inconstitucionalidade incidental do artigo 18, §4º da Constituição da
República Federativa do Brasil por sua omissão, no julgamento da ADI 2240,
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 85

não haveria qualquer inconstitucionalidade com a lei do Estado de Rondônia.


Ainda que o Supremo Tribunal Federal não tenha decidido dessa
maneira, nos parece clara a possibilidade de arguir a inconstitucionalidade por
omissão do artigo 18, §4º da Constituição da República Federativa do Brasil
pelo controle difuso ou abstrato. Em caso de controle concentrado, a meu ver,
parece cristalino a possibilidade de propor ação direta de inconstitucionalidade
por omissão, pleiteando por analogia, efeito concretista, de tal forma como é
concedido em diversos Mandados de Injunção.
Nesse sentido, Gilmar Mendes preceitua que: “a omissão inconstitucional
pressupõe um dever constitucional de legislar, que tanto pode ser derivado de ordens
concretas contidas na Lei Fundamental quanto de princípios desenvolvidos mediante
interpretação.” (MENDES, 2005, p. 274).
Nessa situação, caso o Congresso Nacional não venha elaborar
a Lei Complementar Federal, o efeito concretista da ação direta de
inconstitucionalidade por omissão ocorreria com a aplicação imediata das
normas de competência dos Estados-Membros. Cabe dizer, que os municípios
que ambicionam a emancipação, desmembramento ou a incorporação, não
merecem aguardar a inércia do Poder Legislativo que não elabora a Lei
Complementar Federal.
Ora, desde que cumprido os demais requisitos previstos na Constituição
da República e ainda que fique claro que a criação de municípios pode resultar
em ganhos para o interesse público, a inércia do Congresso Nacional ofusca as
garantias fundamentais do individuo e a autonomia dos membros-federativos.
Ainda nessa linha, o Congresso Nacional esta a mais de 10 (dez) anos
com a Lei Complementar Federal engavetada, inviabilizando a discussão
quanto à criação de novos municípios. Destarte, o Poder Judiciário para
conceder uma tutela jurisdicional adequada deve fazer uma interpretação
conforme a Constituição, de modo que não haja prejuízos para a organização
federativa
Além disso, não resta dúvida de que conceder efeito concretista a
ação direta de inconstitucionalidade por omissão não afronta o princípio
da separação de poderes. Nessa concepção, como apontado a partir da lição
de Ronald Dworkin, em dias atuais deve haver a ponderação de princípios
correlatos a demanda e neste caso, a ocorrência de efeito concretista não ofusca
em malefício maior ao ordenamento jurídico do que a não concessão.
Não obstante a ponderação de princípios, em diversas outras
oportunidades2 a Suprema Corte já se manifestou no sentido da mora do
Congresso Nacional em elaborar a Lei Complementar Federal. Portanto,
conceder efeito concretista representaria tão somente fazer uma leitura
sistemática do texto constitucional, permitindo uma prestação jurisdicional

2
Nesse sentido: ADI 2381-1/RS, ADI 1.616/PE , ADI 3.660/MS e ADI 2.1 01/MS.
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adequada e eficaz.
Ora, como já frisado, conceder uma prestação jurisdicional que preze
a efetividade do texto Constitucional, como é o caso de decidir uma omissão
legislativa impondo efeito concretista, não ofusca o princípio constitucional
da separação dos poderes. Muito pelo contrário. O disposto no artigo 2º da
Constituição da República estabelece que “são Poderes da União, independentes
e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, infere-se que
cada um possui função específica, considerando a sua independência. Do
mesmo modo, o próprio texto Constitucional introduz a estrutura de controle
mútuo entre os Poderes objetivando o estabelecimento de equilíbrio entre o
Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.
Assim, não há espaço para a inefetividade da Carta cidadã de 1988,
como ainda acabamos vendo no in casu. Para se ter uma idéia, consultando
o sitio eletrônico do Supremo Tribunal Federal em julgamentos de Mandado
de Injunção e ações diretas de inconstitucionalidade ocorrido até o ano de
2009, percebe-se uma grande quantidade de matérias que ainda encontra-se
omissas.
Percebe-se neste cenário, a inefetividade das decisões por consequência
da inércia do Poder Legislativo. Nessa linha de discussão, mostra-se de maneira
evidente que o Poder Judiciário não pode continuar às margens de decisões
efetivas. Até mesmo porque, existe a partir da exegese do nosso ordenamento
jurídico a possibilidade de sanar a questão. Ora, a criação de novos municípios
é possível, diante das circunstâncias, ainda que sem lei Complementar Federal.
Isso se justifica, por algumas razões: Primeiro, pois recorrendo a
Ronald Dworkin, o direito não pode ser visto na base do “tudo ou nada”.
Nesse sentido, é preciso realizar uma ponderação de valores que alicerça a
criação de municípios em face à inércia do Poder Legislativo. Nessa análise,
certamente será possível perceber que os motivos que balizam a criação
de novos municípios são mais relevantes do que a tentativa clara do Poder
Legislativo em não regulamentar a questão.
Segundo, pois tomando por base o tridimensionalismo jurídico de
Miguel Reale ordenamento jurídico decorre da relação fato, valor e norma.
E neste caso, a valoração seria no sentido da efetividade da norma, razão
pela qual a norma esculpida no art. 18 §4º da CRFB não esta em consonância
ao escopo da promulgação da Constituição da República, qual seja; o de
efetividade.
Terceiro, pois a possibilidade de criação de novos municípios, ainda
que sem Lei Complementar Federal não causará nenhum prejuízo para
a organização administrativa da Federação. Se assim não fosse, não teria o
Poder Constituinte Originário pretendido a priori que a criação de municípios
ficasse na competência dos Estados.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 87

Quarto, pois a Carta Cidadã não veda a criação de novos municípios.


Dessa maneira, ao passo que a Emenda Constitucional 15/96 foi elaborada
atribuindo a competência do Congresso Nacional para elaborar a Lei
Complementar Federal e diante da não elaboração da lei a mais de 14 (
quatorze) anos não, verifica-se uma tentativa legal de impedir a criação de
novos municípios.
Por fim, a impossibilidade de criação de novos municípios poderia
causar prejuízos ao interesse público, a partir do instante em que houvesse
dificuldades da administração presente no município-mãe atender as
especificidades da localidade que pleiteia a autonomia administrativa.
Assim, chega-se a conclusão à luz das Emendas Constitucionais 15/96
e 57/08 que é possível hodiernamente a criação de novos municípios, uma
vez respeitado os pressupostos previstos nas Constituições Estaduais e da
própria Constituição da República, ainda que sem lei complementar federal,
consoante previsão do artigo 18 §4º da CRFB, desde que o Poder Judiciário
declare a inconstitucionalidade por omissão do mencionado artigo.

Como pleitear a criação, fusão, incorporação e desmembramento de novos


municípios?
Por todo o exposto, a meu ver, não resta nenhuma dúvida quanto à
possibilidade de criação de novos municípios após a EC 15/96, ainda que
sem a regulamentação feita por Lei Complementar Federal conforme dispõe
o artigo 18, §4º da CRFB, pelas razões já apontadas. Diante dessa assertiva,
cabe aos interessados na criação, fusão, incorporação ou desmembramento de
municípios pleitearem, com base nos argumentos já apresentados, as medidas
necessárias para que sejam instituídos sob o prisma da legalidade.
Assim, embora não seja objeto da pesquisa, listo três maneiras de pleitear
a criação, fusão, desmembramento, incorporação e fusão de municípios, quais
sejam: controle concentrado, pedindo a inconstitucionalidade por omissão do
artigo 18, §4º da CRFB, pedido administrativo dirigido ao TSE e impetração
de Mandado de Segurança.
A primeira solução foi bastante discutida ao longo do artigo e consiste
em pedir a inconstitucionalidade por omissão do artigo 18 §4º da Constituição
da República, uma vez que a norma constitucional é de eficácia limitada.
Contudo, por tratar de ação do controle concentrado de constitucionalidade,
somente as pessoas listadas no artigo 103 da CRFB possui legitimidade para a
propositura da ação.
A segunda solução consiste no pedido administrativo, como foi feito
no caso de Extrema de Rondônia. Neste caso, após a homologação da consulta
plebiscitária cabe o pedido dirigido ao TSE para a realização de eleições
municipais. A terceira opção consiste em impetrar Mandado de Segurança
88 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

pleiteando a criação, fusão, incorporação e desdobramento de municípios.


Ora, o direito liquido e certo exigidos pela lei 12.016/09 resta
presente quando há uma lei, ainda que estadual, criando, desmembrando
ou incorporando determinado município e quando respeitado todo o
procedimento necessário. Para exemplificar, pode ser listado a lei 2.264/10
que criou o município de Extrema de Rondônia. Neste caso, houve uma lei
estadual aprovada e sancionada nos termos do processo legislativo, além
disso, todos os demais requisitos previstos na Constituição da República que
possui eficácia plena foram superados, como é o caso da consulta plebiscitária
que inclusive foi homologada.
No que tange a legitimidade para impetrar o Mandado de Segurança
pleiteando a criação, fusão e incorporação de municípios não há problema.
Ora, tomando novamente o caso de Extrema de Rondônia, após a homologação
da consulta plebiscitária, qualquer pessoa diretamente interessada poderia
impetrar o Mandado de Segurança individual. Isso porque, após a homologação
todas as pessoas atingidas pela criação do município possuem o interesse
que haja eficácia jurídica e eficácia prática na criação da lei que instituiu o
município.
Nessa linha, seria perfeitamente possível que o legitimado a impetrar
o writ constitucional, seja, por exemplo, uma associação nos termos da lei.
Cabendo, assim, o Mandado de Segurança Coletivo, para o in casu, pois do
mesmo modo, é parte interessada para que a norma de criação do município
possua eficácia. Conclui-se assim que as três vias são perfeitamente possíveis
para pleitear a criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios,
diante das argüições formuladas neste trabalho de pesquisa.

Conclusão
Conforme foi possível verificar na pesquisa, a questão dos municípios
criados sem a observância do artigo 18, § 4º da Constituição da República
permanece hodiernamente incerta, em razão da ineficácia prática da
decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em sede da ação direta de
inconstitucionalidade - ADI 2240.
Destarte, verifica-se que a Lei Complementar Federal não foi editada
pelo Congresso Nacional dentro do prazo concedido pelo Supremo Tribunal
Federal. Ao contrário, foi elaborado pelo Poder Legislativo a Emenda
Constitucional 57/08 que convalidou os atos de criação, fusão, incorporação e
desmembramento dos municípios sem a Lei Complementar Federal.
Contudo, não paira qualquer dúvida de que a Emenda Constitucional
57/08 deve ser declarada inconstitucional com pronúncia de nulidade, efeitos
ex tunc, uma vez que o nosso ordenamento jurídico não permite a figura
da constitucionalidade superveniente. Além disso, em sede de decisão de
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 89

mérito da ADI 2240 a Suprema Corte brasileira impediu a declaração de


inconstitucionalidade, apenas, no período de 24 (vinte e quatro) meses, período
em que o Congresso Nacional poderia regulamentar a Lei Complementar
Federal, permitindo dessa maneira que os “municípios putativos” (criados as
margens do texto constitucional) ficassem em harmonia a Carta Magna de
1988.
Com efeito, percebe-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal não
surtiu os efeitos que se esperam de uma adequada prestação jurisdicional,
pois em caso da declaração de inconstitucionalidade da emenda constitucional
57/08 haverá uma nova insegurança jurídica em torno dos “municípios
putativos”.
Por essas razões, podemos afirmar a priori, que a decisão do Supremo
Tribunal Federal não foi a mais adequada para o caso concreto, embora tenha
sido pautado na realização da modulação dos efeitos ao levar em consideração
os princípios que balizavam o município de Luis Eduardo Magalhães e dos
demais “municípios putativos”.
Em mesmo sentido, podemos destacar que a Suprema Corte
possuía um leque de opções para decidir a questão, podendo buscar uma
pretória que se enquadrasse melhor ao modelo positivista (declarando
a inconstitucionalidade com pronúncia de nulidade) ou pós-positivista
(declarando a constitucionalidade diante dos princípios que norteavam a
questão).
Neste prisma, podemos dizer que ao contrário de fazer a opção por
uma corrente filosófica é plenamente possível e viável uma conjunção entre
as teorias positivista e pós-positivista objetivando uma adequada prestação
jurisdicional.
Além disso, a pesquisa em tela nos permite concluir que seria possível
pela densidade normativa dos princípios a declaração de inconstitucionalidade
incidental da norma paradigma de confronto antes da análise do pleito
principal enquanto medida mais viável do ponto de vista jurídico e prático,
capaz de findar a questão.
Não obstante, pelo método indutivo e pela densidade normativa
dos princípios, é ainda permitido concluir que o processamento das ações
do controle abstrato devem buscar analisar primeiro se há o princípio
da contemporaneidade e segundo, se a norma paradigma de confronto é
constitucional, isso claro, quando deferida a ação por preencher os requisitos
do artigo 282 do Código de Processo Civil. Nesse ângulo, portanto, não paira
nenhuma dúvida de que a norma paradigma de confronto, após uma análise
do caso concreto, pode vir a ser incidentalmente declarada inconstitucional
produzindo efeitos vinculantes, ex tunc e erga omnes.
Por fim, mas não menos importante é mister dizer que as normas
90 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

procedimentais podem ser abrandadas ou inaplicadas para que haja uma


tutela jurisdicional justa, proporcional e razoável, ou ainda, quando a norma
de direito material se sobreponha, em uma análise de ponderação de valores,
sobre a norma processual.
Por essas razões levantadas, a densidade normativa dos princípios
constitucionais torna possível a declaração de inconstitucionalidade da norma
paradigma de confronto e serve de medida adequada para superar a questão
dos “municípios putativos” do ponto de vista prático e da efetividade da
tutela jurisdicional.
No que tange a criação de municípios após as emendas constitucionais
15/96 e 57/08, como é o caso do município de Extrema de Rondônia instituído
pela lei 2.264/10, a pesquisa em tela permite concluir, que é possível a criação,
fusão, incorporação e desmembramento de municípios, ainda que sem a Lei
Complementar Federal regulando o artigo 18 §4º da CRFB, sendo pleiteada
de maneira administrativa, pelo controle concentrado ou por impetração de
Mandado de Segurança.
Essa assertiva se justifica por uma série de razões. Em apertada síntese,
podemos dizer que a criação de novos municípios atualmente permite a
efetividade do texto constitucional, atende as especificidades de cada unidade
federativa e vai ao encontro da vontade do constituinte originário. Não
obstante, cessa a tentativa flagrante do Congresso Nacional de impedir a
criação de novos municípios.
Por outro lado, não contraria o texto constitucional desde que remetamos
a uma análise filosófica a partir das teorias de Dworkin (ponderação de
princípios correlatos ao caso) e Miguel Real (tridimensionalismo do Direito).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DIREITO PENAL DO INIMIGO E A LEI DE CRIMES
HEDIONDOS NO BRASIL

MARINA DRUZIANI ARAUJO1


Resumo
O ordenamento jurídico garante segurança e pacificação entre os indivíduos no convívio em
sociedade. No entanto, deve-se analisar os limites do poder exercido pelo direito diante dos
diferentes níveis sociais, não devendo confundir-se pacificação social com repressão penal.
Neste contexto, diferentes sistemas jurídicos atuam no combate ao inimigo do Estado sem
políticas efetivas para evitar a violência e práticas delituosas, perpetuam os estereótipos do
preconceito e exclusão social. Este estudo busca expor as bases da teoria do Direito Penal
do Inimigo e sua correlação na Lei de Crimes Hediondos brasileira, com uma visão social da
ciência do direito penal em conformidade com a dignidade da pessoa humana.

PALAVRAS-CHAVE: Direito penal do inimigo; Lei de crimes hediondos; Direito Penal;


Direitos Humanos; Repressão penal.

Direitos Humanos:
Histórico
Manifestações filosóficas sobre os direitos humanos precederam o
embasamento jurídico. As antigas civilizações visavam à proteção humana
através de uma leitura religiosa, com influência do humanismo ocidental
e oriental. O reconhecimento da igualdade entre os homens e a elaboração
de direitos abrangentes aos que pertencem à mesma espécie remonta a
Antiguidade Clássica. Neste período, na Grécia, o ser humano foi foco no que
diz respeito ao discurso filosófico, quando as explicações deixaram de ter bases
mitológicas, caminhando para o segmento antropológico. Como exemplo, a
peça “Antígona” de Aristóteles formulada na Grécia Antiga apresenta a ideia
de direitos superiores e intrínsecos ao ser humano. Surge então a doutrina do
jus naturalismo, defendendo certos direitos básicos à condição humana, acima
das leis positivas.
Mais adiante, pressões populares contra violação de leis e costumes
conquistaram direitos pela Carta Magna, assinada pelo Rei João da Inglaterra,
em 1215. No período do feudalismo, o direito divino regulava a política e a
sociedade, sendo os indivíduos subordinados à vontade do soberano, cujo
poder absoluto era expressão da vontade de Deus.
A diversidade político-ideológica molda diferentes conceitos de Direitos
Humanos. As diferentes culturas e organizações sociais existentes no mundo
definem as diretrizes dos estudos neste campo. As três grandes concepções
são a idealista – defende que os direitos humanos são inerentes à natureza do
homem e não dependem de reconhecimento pelo Estado; positivista – acredita
que os direitos devem ser reconhecidos pela ordem jurídica estatal, através de
1
Discente na Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais.
96 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

sua legitimidade; crítico-materialista – critica o processo de elaboração dos


direitos humanos por ser expressão formal do processo de lutas sociais diante
da ascensão burguesa no âmbito político e tem como principal pensador o
alemão Karl Marx.
A Revolução Francesa foi o marco inicial do que conhecemos hoje
como Direitos Humanos. Mesmo que ainda primitivos, os direitos nesta fase
consolidaram o Estado liberal e derrotaram a concentração de poderes nas
mãos do monarca com alicerce nos ideais iluministas, ávidos pela conquista de
liberdade, igualdade e fraternidade. Com o fim desta Revolução, novos direitos
foram agregados ao longo dos séculos, com as contribuições promovidas pelas
mudanças na realidade social, política e econômica.
Os autores Norberto Bobbio,Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino
(1998) afirmam:

[...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam,


são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas.

Apenas com a evolução do panorama social subalterno para uma


sociedade como instrumento de equilíbrio e pacificação e consequentes
transformações no sistema político, foi possível o desenvolvimento gradual da
ciência jurídica dos Direitos Humanos, consequência da luta e da ação social
de cunho emancipatório.

Estado Democrático de Direito


O perfil do direito penal depende do regime político adotado. Um Estado
Totalitário tende a assumir uma postura de maximização do direito penal,
enquanto o Estado Democrático é pautado pela tolerância e tende a minimizar
o direito penal, ou seja, reduzir sua abrangência. O Estado de Direito prevê a
limitação do poder de governo, sendo oposto ao regime absolutista, enquanto
o Estado Mínimo determina a limitação das funções estatais. Um exemplo de
Estado de Direito sem respaldo do direito penal mínimo é apresentado na
obra “O Leviatã”, de Thomas Hobbes.
O Estado adquiriu uma nova forma jurídica com a Paz de Westefália,
em 1648, constituindo o Estado político de base Constitucional. Atualmente
existem sistemas políticos que são democráticos sem se submeterem às
leis estabelecidas, chamados de Estados Democráticos apenas, e os que
se submetem ao Direito sem legitimação da democracia, sendo chamados
de Estado de Direito. A síntese dos dois sistemas é o que conhecemos
no Constitucionalismo moderno como Estado Democrático de Direito,
apresentando perfil democrático com submissão ao Direito.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 97

A Constituição tem a função de impedir arbitrariedades por parte do


governo e estruturar o ordenamento jurídico e a organização social. O Estado
Social Democrático de Direito, ou apenas Estado Democrático de Direito,
determina a real aplicação dos preceitos de legalidade e igualdade, os quais
exigem a interação dos setores econômico, social e cultural com a atuação
política de um Estado (CANOTILHO apud BORGES, 2005, p. 51).
A Constituição Federal brasileira de 1988 se submete ao Estado
Democrático de Direito em seu artigo 1º e expõe os objetivos e os fundamentos
que admitem a intervenção do Estado para que as normas obtenham caráter
material e supere o caráter formal presente no Estado burguês e liberal. A
dignidade da pessoa humana é parâmetro principal a ser seguido pelo Estado
Democrático de Direito, sendo o direito penal responsável pela preservação
deste principio e regulação da vida em sociedade.

Proteção Internacional
O século XIX foi marcado pelo reconhecimento dos Direitos Humanos
no panorama interno dos Estados, em sua carta constitucional, garantindo
à população, direitos coletivos. A Constituição de cada país teria a função
de regulamentação interna das garantias sociais e suas formas de aplicação.
Durante o século XX, estes direitos passaram a se inserir no panorama
internacional, devido à legitimidade destes interesses diante de conflitos
internos de um Estado. Esforços foram realizados para que fossem criadas
comunidades organizadas supranacionais que estariam acima da soberania
estatal e a fim de evitar genocídios e violações aos Direitos Humanos.
Neste sentido, a legislação internacional apresentava vasta
regulamentação para atos de afronta aos Direitos Humanos, iniciando uma
fase de exigência da aplicação desta proteção. De acordo com Bobbio (apud
PIOVESAN, 2011, p. 129), devemos proteger estes direitos na fase atual, uma
vez que o processo histórico auxiliou na sua fundamentação completa e na
visualização dos indivíduos como sujeitos de direitos internacionais.
Para tornar viável a proteção supranacional dos direitos, foi necessária a
organização, em primeiro plano, do Direito Humanitário, da Liga das Nações
e da Organização Internacional do Trabalho. Estes grupos foram criados com
a finalidade de regular a soberania estatal por meio de Tratados e Convenções
internacionais, os quais, uma vez assinados por diferentes países, obrigavam
seus signatários a manter um padrão de tratamento diante de seus cidadãos.
Contudo, apenas com o fim da Segunda Guerra Mundial, a proteção
internacional dos Direitos Humanos recebeu a devida atenção, materializada
pela Carta das Nações Unidas, assinada em 1945, e suas instituições, bem como
da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, a qual apresenta
força de lei vinculada a Carta da ONU. Acredita-se que uma base sólida teria
98 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

impedido a ocorrência das atrocidades perpetradas na Guerra de Adolf Hitler.


Enquanto a normatização anterior permitiu a interpretação condicional à raça
e viabilizou a atuação nazista em defesa da “raça pura ariana”, a Declaração
Universal visava amparar a universalidade dos direitos.
A Organização das Nações Unidas introduziu uma nova ordem de
condutas, exigindo a criação de diferentes órgãos internos, abrangendo
todos os tópicos propostos para a manutenção da paz e respeito aos direitos
internacionais. Este modelo recém-organizado dispõe do Conselho de Direitos
Humanos, no entanto, a primeira reunião foi realizada apenas no ano de 2006
e tem apresentado graves conflitos internos, pois os Estados que são membros
deste organismo tendem a privilegiar suas próprias Nações. A Instituição
apresenta muitos problemas na aplicação de suas propostas devido à postura
defensiva de Estados-membros, os quais, muitas vezes, atuam em defesa de
interesses internos, o que revela a fragilidade atual dos meios de proteção
supranacional.
Outro debate acerca da existência do órgão regulador internacional
aborda o multiculturalismo e a existência de critérios diversos para as
concepções de moral, religião e direito, os quais relativizam a aplicabilidade
do amparo jurídico global. A ausência de respeito à diversidade denuncia a
pretensão imperialista em prol da cultural ocidental. Apesar da recepção da
diversidade cultural e religiosa na Declaração de Viena em 1993, em seu § 5º,
o equilíbrio universal ainda se depara com muitos entraves. Um desses pode
ser exemplificado pelo poder de veto do Conselho de Segurança da ONU
ser prerrogativa de Estados-membros, majoritariamente, ricos ocidentais,
dificultando o diálogo pluralista.
A Constituição Federal brasileira apresenta caráter formal no que diz
respeito ao privilegio da norma interna diante da legislação internacional:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a


guarda da Constituição, cabendo-lhe:
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em
única ou última instância, quando a decisão recorrida:
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (art.
102, III, b, CF).

No entanto, o posicionamento brasileiro não se encontra definido,


pois apesar da possibilidade de um tratado internacional ser rejeitado por
inconstitucionalidade, a Emenda Constitucional 45/2004 inseriu no artigo 5º os
§§ 2º e 3º com o intuito de recepcionar os tratados e convenções internacionais,
prejudicando a legitimidade do ordenamento jurídico na questão dos Direitos
Humanos.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 99

A repressão penal:
A Inquisição
No período entre o século XIII e século XVIII a Igreja Católica dizimou
milhões de pessoas que discordavam de seus dogmas com o auxílio do
Tribunal do Santo Ofício, o qual foi criado para perseguir, torturar e condenar
à morte aqueles que praticassem atos de bruxaria, heresia ou por seguirem
religião diversa do catolicismo. O Tribunal não permitia qualquer defesa
do acusado e não informava o motivo da condenação. O inimigo da Igreja
deveria ser eliminado diante da ameaça ao poderio soberano do catolicismo.
Neste momento da Idade Média nomes como o de Galileu Galilei estão entre
os perseguidos e personagens como Giordano Bruno e Joana D’Arc foram
mortos.
Ocorreu também a censura e queima de diversos livros de ideais
contrários aos impostos pela Igreja. A lista é conhecida como “Index Librorum
Prohibitorum”.

A Revolução Francesa
A França do século XVIII enfrentava graves problemas socioeconômicos
devido ao exaustivo sustendo da nobreza e clero financiado pelo Estado,
além da participação na guerra de independência dos Estados Unidos. A
Revolução teve inicio diante das insatisfações da população camponesa,
intensamente explorada por rotinas exaustivas de trabalho e elevadas taxas
de impostos para financiar o luxo ostentado pelas classes superiores. Diante
da revolta camponesa, a classe burguesa assumiu o controle para realização
das modificações.
Para que houvesse a derrubada do Regime Absolutista e a aprovação
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, muito sangue
foi derramado em nome da liberdade, igualdade e fraternidade. Uma das
passagens mais violentas da história, inclusive momento em que foi criada
a guilhotina, a Revolução Francesa foi marcada pela intolerância, prisões
arbitrarias e extermínio sumário.

O Nazismo
A Alemanha encontra-se em profunda crise com o termino da Primeira
Guerra Mundial e, nesta ocasião, Adolf Hitler se propôs a recuperar o orgulho
alemão. Seu ideal político defendia a hegemonia ariana e a união “num só povo,
num só império, num só líder”. Deveria ser eliminada qualquer outra raça, além
dos homossexuais. Para executar suas ordens, foram organizadas as Seções de
Assalto, as Seções de Segurança e a Gestapo. Os inimigos perseguidos neste
regime foram os judeus, os negros, os comunistas, as Testemunhas de Jeová e os
homossexuais. Dizimados pelas formas mais cruéis já documentadas na história.
100 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

O Terrorismo e o ataque de 11 de setembro de 2001


O ataque ocorrido aos Estados Unidos desestabilizou o país que acabava
de se consolidar como potencia econômica mundial. Como alvo, as torres do
World Trade Center em Nova York, símbolo da sólida economia, e o prédio do
Pentágono em Washington, como símbolo da defesa. As medidas de urgência
adotadas pelo então presidente George W. Bush foram desproporcionais ao
ataque sofrido, pois no Afeganistão derrubaram o regime Talibã, prejudicando
a Al-Qaeda, invadiram e iniciaram uma guerra no Iraque.
Os EUA iniciaram a “Guerra ao Terror”, permitindo a defesa preventiva,
ou seja, o direito de atacar caso se sintam ameaçados. Com a assinatura da Lei
Patriota em outubro de 2001, houve o fortalecimento do poder de polícia e a
rigidez na ocupação militar no Afeganistão, no Iraque e na base naval norte-
americana de Guantánamo, em Cuba. A lei foi aplicada de maneira extrema,
violando a Constituição dos Estados Unidos e provocando atos de massacre,
tortura e tratamentos desumanos.

Velocidades do Direito Penal


A classificação do Direito Penal em velocidades representa uma
maneira de analisar os problemas atuais desta ciência jurídica. A sociedade
civil se depara com a pluralidade de delitos organizados de um lado e com o
aparato estatal fortemente armado para eliminar o sentimento de insegurança
de outro. Diante da crescente criminalidade, o Estado recorre ao Direito
Penal para proporcionar a tranquilidade social, desenvolvendo penas rígidas
e sérias atitudes punitivas. No entanto, esta nova face do Direito Penal é
simbólica e parcial, objetivando a eliminação da ameaça social e não busca
corrigir as causas da criminalidade. Não ocorre apenas a identificação do fato
a ser punido, mas, principalmente, a tipificação do autor, perigo em potencial
à sociedade, portanto “inimigo”.
Para a teoria de Jesús-María Silva Sánchez, catedrático da Universidade
Pompeu Fabra de Barcelona e destacado autor espanhol do direito penal
contemporâneo, o direito penal não é homogêneo e se divide em diferentes
velocidades de acordo com os diferentes ilícitos penais cometidos. A pena
privativa de liberdade e as penas alternativas compõem formas de ilícitos
penais distintas, exigindo a utilização de processos judiciais diferenciados.
A primeira deve ser embasada por princípios de garantias individuais no
processual penal, tratando-se de penalização com a privação da liberdade,
atualmente a medida mais severa imposta ao infrator. Enquanto a decisão de
penas alternativas condiz com uma possível flexibilidade processual.
Neste sentido, o formalismo do Direito penal liberal-clássico,
originalmente responsável pela defesa de direitos fundamentais diante do
despotismo, enquadra as penas privativas de liberdade na dimensão de
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 101

primeira velocidade no âmbito penal, enquanto as penas alternativas, portanto


menos rigorosas, estariam classificadas como de segunda velocidade.
Na visão do autor, existiria uma terceira velocidade, pautada pelo
rigor das penas de encarceramento utilizando-se de um processo penal sem
a formalidade exigida. Este seria chamado de Direito Penal do Inimigo, onde
os infratores seriam vistos de maneira diferenciada, não seriam considerados
cidadãos, mas sim, ameaça em potencial as Estado de Direito.
O modelo da segunda velocidade foi introduzido no sistema penal
brasileiro com a Reforma Penal de 1984 e esteve presente na edição da Lei
n. 9.099/1995, chamada de Lei dos Juizados Especiais. Composto por penas
restritivas de direitos ou pecuniárias, as penas alternativas são formas de
flexibilização da imputação de responsabilidade e do rigor punitivo diante da
pratica de atos que não atentam contra o sistema social.
A terceira velocidade, por sua vez, pretende punir indivíduos que
representam ameaça ao Estado, levando em consideração o potencial punitivo
para atos futuros, por isso as penas privativas de liberdade se estendem por
anos. No Brasil, verifica-se esta tendência na Lei do Crime Organizado, Lei nº.
9.034/1995, e na Lei de Crimes Hediondos, Lei n. 8.072/1990 (JESUS, 2008,
online)

Direito Penal do Inimigo


A teoria do Direito Penal do Inimigo é de Günther Jakobs, professor
catedrático de Direito Penal e Filosofia do direito na Universidade de Bonn na
Alemanha. Este conceito é de 1985, mas o voltou a ser utilizado em 2003, após
os ataques terroristas aos EUA. A teoria defende a existência da diferenciação
no tratamento de indivíduos que infringem normas, existindo dois papéis: o
papel do cidadão, que cumpre as normas ditadas pelo ordenamento jurídico,
e o papel do inimigo, que ameaça o Estado Democrático de Direito com o
sucessivo descumprimento das normas.
O cidadão que viola norma jurídica tem direito as garantias processuais
penais, como o devido processo legal e o in dubio pro reo, além do respeito aos
preceitos de Direitos Humanos. O cidadão é visto como autor de fato ilícito
que deve ser punido para afirmação de validade da lei, revelando o caráter
simbólico do Direito Penal.
Nesse sentido, Jakobs recorre à teoria contratualista, desenvolvida
por Rousseau, Kant, Fitche e Hobbes, ao considerar como delito atos que
afrontam o contrato social. Os agentes desses delitos não deveriam receber
amparo do Estado, pois agem contra ele. Para Hobbes, apenas os delitos que
representassem a negação da submissão ao Estado, chamados de “alta traição”,
devem desconsiderar o status de cidadão do agente, pois este ao abrir mão
do contrato retrocederia ao estado de guerra do estado natural. (ALENCAR,
102 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

2010, p. 476)
Como consequência do contrato, é responsabilidade do Estado zelar
pela segurança social, justificando a aplicação da pena ao inimigo como
medida de segurança, sem amparo das garantias processuais penais ou de
Direitos Humanos, pois não se submete ao Estado de Direito aquele que o
ameaça.
A custódia penal reservada ao inimigo pretende evitar o cometimento
de delito futuro, de modo preventivo visualizando a reincidência. Esta
antecipação e oriunda da aplicação da pena de acordo com o autor, e não com
o ato ilícito praticado, ou seja, de acordo com a culpabilidade.

O advento da globalização
A nova ordem econômica instituída pela hegemonia capitalista valoriza
a produção industrial e as trocas comerciais, sendo que a pressão neoliberal
para que os Estados cortem os gastos com políticas sociais pôs fim ao Estado
de bem-estar social. O desmantelamento do amparo social aliado ao acúmulo
de riqueza nas mãos de poucos criou uma nova divisão mundial em Primeiro
e Terceiro Mundo. Houve a intensificação da desigualdade e exclusão social,
bem como da criminalidade, nas áreas periféricas.
Como reação a invisibilidade social, novos delitos surgiram, como
o crime organizado, e a reação imediata estatal é de criar mais normas
penais com a falsa ideia de reduzir a criminalidade. Considera-se também
a inconstitucionalidade desta atividade legislativa penal, visto que as penas
prevêem rígidas punições, inclusive a incriminação de atos preparatórios,
atuando em contradição com o sistema jurídico democrático. O fracasso do
fomento legislativo faz necessária a retomada de teorias ultrapassadas para
explicar a atividade criminosa crescente, assim como a teoria do Contrato
Social, a qual fundamenta a existência de um Estado absoluto.
De acordo com Silva Sánchez (2002), o Direito Penal do Inimigo é uma
medida de extrema necessidade adotada diante da ineficiência do Direito
Penal, que visa antecipar a pena. Os institutos legais, como o Processo Penal,
são ignorados para que o inimigo seja eliminado, mas este procedimento torna
a segurança jurídica instável pela restrição de diversos direitos, entre eles os
Direitos Humanos.

Crimes Hediondos no Brasil


A lei brasileira de crimes hediondos e equiparados (Lei n. 8.072 de
25 de julho de 1990) determinou os crimes que devem ser considerados,
assim como seu regime jurídico. Ocorre que foi determinado também o
cumprimento integral da pena em regime fechado e a ausência de aplicação
de penas alternativas, sendo que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 103

não prevê nenhuma espécie de pena, apenas determina que sejam de caráter
“inafiançáveis, insuscetíveis de graça ou anistia” ao tratar de crimes hediondos.
No mesmo sentido, a Lei n. 9.714 de 1998, ao regular a sistemática de penas
alternativas, não fez referencia aos tipos de delitos, de modo a restringi-los.
Desse modo, determinar o encarceramento considerando apenas a
natureza do crime, sem análise dos fatos específicos ou suas circunstancias, é
inconstitucional, visto que não se aplicaram as garantias da proporcionalidade,
individualização da pena e desconsideram a dignidade da pessoa humana
(JESUS, 2001, p. 29).
O instituto do livramento condicional extraordinário foi criado pela
referida Lei em seu art. 5º e inseriu o inciso V ao art. 83 do Código Penal.
Poderá ser aplicado após o cumprimento de mais de dois terços da pena,
apenas se não houver reincidência nos crimes de natureza hedionda. A
vedação ao livramento condicional ordinário é mais indicio do caráter severo
e desumano da Lei de Crimes Hediondos, sendo expressão do Direito Penal
do Inimigo. Apesar de considerar o principio de individualização da pena, o
cumprimento de mais de dois terços da pena em regime fechado configura
afronta a dignidade, sendo, neste aspecto, inconstitucional (VEIGA, 2003,
online).

A progressão de regimes
A primeira mudança na rigidez da progressão de regimes para crimes
hediondos ocorreu com a Lei n. 9.455 de 1997, conhecida como lei de tortura,
por permitir a progressão nos casos de crimes dessa natureza. No ano de 2005,
o STF decidiu pela inconstitucionalidade da Lei de crimes hediondos, em seu
§ 1º do art. 2º, em decisão proferida em 23/02/2006, rel. Min. Marco Aurélio
(HC 82.959).
No entanto, a decisão proferida não teria efeito erga omnes devido ao
reconhecimento da inconstitucionalidade em um caso concreto especifico.
Entende-se que, diante das liminares anteriormente concedidas pelo STF,
deve ser reconhecido o efeito erga omnes e vinculante. Fredie Didier Júnior
utiliza a expressão “transformações do recurso extraordinário” ao tratar do
tratamento abstrato do controle difuso de constitucionalidade. (DIDIER apud
GOMES, 2006).
Os requisitos para generalizar a decisão proferida foram preenchidos,
pois a decisão foi do Pleno do STF, a discussão envolveu a lei de crimes
hediondos e não apenas o caso concreto, além da discussão dos efeitos para
permitir maior abrangência da decisão preferida (GOMES, 2006, online).
Com a decisão, os apenados por crime hediondos têm direito à análise da
progressão de regimes. Porém, a inconstitucionalidade foi reconhecida com
o efeito ex nunc, ou seja, não retroage às condenações anteriores à decisão de
104 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

modo a evitar possíveis pedidos de indenização por aqueles que cumpriram a


pena em regime integralmente fechado.
O juiz assume a responsabilidade de decidir sobre a progressão de
regimes ou não, devendo fundamentar sua decisão de acordo com cada caso,
visando à presença dos requisitos de cumprimento mínimo de um sexto
da pena e de bom comportamento carcerário. Esta postura do magistrado
possibilita a individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF) e desmistificação do
apenado por crime hediondo como inimigo.

Livramento Condicional Extraordinário


O inciso V do art. 83, CP, foi acrescido pela Lei de Crimes Hediondos,
conforme seu art. 5º, criando o Livramento Condicional Extraordinário. Este
instituto permite a substituição da pena caso o apenado tenha cumprido o
mínimo de dois terços da pena e se não for reincidente em crime hediondo.
Conforme determinação da Constituição Federal, a lei deve regular a
individualização da pena, o que enquadra o instituto criado como alternativa
à pena privativa de liberdade considerando o caso concreto.
Apesar de ser mais rigoroso que o Livramento Condicional Ordinário,
o qual exige o cumprimento mínimo de um sexto da pena além do bom
comportamento, o instituto criado não é considerado inconstitucional do ponto
de vista da individualização. No entanto, uma visão humana das condições
do cárcere possibilita a determinação da inconstitucionalidade de acordo com
o princípio da humanidade. Ocorre que a ausência de posicionamento sobre
este princípio impede a análise objetiva de sua inobservância (VEIGA, 2003,
online).

Análise social:
A origem da violência
A desestruturação do Estado de bem-estar social intensificou a
exclusão social, principalmente nos países subdesenvolvidos, gerando bolsões
de pobreza. Os cortes nos gastos públicos atingiram programas de cunho
assistencial, como saúde e educação pública. Sem o devido amparo estatal,
as classes menos abastadas vivem à margem das relações empregatícias
sólidas, sem garantias para uma vida digna e estável. Dessa forma, houve
o aumento da criminalidade organizada, financeira, terrorismo e tráfico de
armas e pessoas, por exemplo, gerando tipos penais que afetam outros países
(ALENCAR, 2010, p. 8).
A atitude estatal diante do quadro de aumento da criminalidade revela
o caráter de Estado de Policia, com forte atuação punitiva. Busca-se nas
penas rígidas, em especial na privativa de liberdade, a solução para a questão
de segurança pública. Não há uma visão completa do sistema punitivo e
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 105

carcerário, pois não ocorre a recuperação e reinserção do marginalizado na


sociedade.
Considerando a teoria de Jakobs, o individuo marginalizado é visto
como sujeito incapaz de atender às expectativas normativas, portanto são
“inimigos” e perdem o direito de serem julgados pelo ato praticado (direito
penal do fato), sendo julgados pela personalidade criminosa, em outras
palavras, são amparados pelo direito penal do autor. As penas cruéis ou
prolongadas atendem ao clamor da sociedade ávida por repressão com o
escopo de inibir a violência e criminalidade. A atividade legislativa passou
a atuar como instrumento de opressão à criminalidade e logo se tornou
simbólico, pois o que poderia realmente impedi-la é a elaboração de políticas
públicas para melhoria social.
O Estado busca atingir as consequências da criminalidade para sua
contenção e não busca atuar em suas causas, as quais podem ser enumeradas
como miséria, exclusão social, abandono jurídico-social, entre outras que
geram a marginalização do individuo oprimido e seu estereótipo como
bandido, antes mesmo de agir neste sentido.

O sistema carcerário
O Direito Penal é instrumento estatal de combate à criminalidade,
devendo zelar pelas garantias constitucionais e pelo principio da legalidade
formal e material, submetendo-se sempre ao que determina o ordenamento
jurídico (TOLEDO, 2007, p.105). No entanto, a intervenção penal deve ocorrer
quando estritamente necessária e deve estar aliada a uma política social.
A pena é pautada pelo principio da igualdade formal e material e tem
o escopo de recuperar, reeducar e reinserir na sociedade o indivíduo que
comete ilícito penal, apresentando função social, política e jurídica. Estes são
os objetivos que apresentam claro caráter formal normativo, inexistindo a
aplicabilidade concreta nos sistemas carcerários brasileiros.
As penitenciárias são ambientes de insegurança jurídica e desrespeito
a dignidade da pessoa humana, que atuam no sentido de manutenção das
desigualdades econômico-sociais no âmbito jurídico pelo sistema penal. Como
instrumento de atividade estatal, o sistema penal promove a desigualdade
com a legitimação do Estado, pois as práticas judiciárias tendem a separar,
diferenciar, e não de promoção de igualdade penal (FACURI, 2007, p. 331).
A exclusão cotidiana dos negros e pobres na sociedade se perpetua
em um sistema carcerário ineficaz, que não cumpre sua função social e que
se traduz como consequência do aparato judiciário injusto, cujas sentenças
muitas vezes penalizam inocentes pela falha do devido processo legal. Esta
atuação remonta à ciência penal lombrosiana do século XIX, estigmatizando
o marginalizado e dando tratamento diverso de acordo com sua classe social.
106 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Conclusão
A sociedade pós-industrial tem exigido cada vez mais segurança,
tanto pública quanto privada, o que interfere na garantia de liberdade, pois,
na visão distorcida de muitos, o cerceamento da liberdade é necessário para
uma melhor segurança (SANTOS, 2009, P. 77). Sem questionar as causas para
a marginalidade e criminalidade, apenas buscam no Direito Penal formas
desumanas e cruéis de conquistarem a sensação (falsa) de segurança, como
esta ciência jurídica fosse de pedagogia social. No mesmo sentido, a aplicação
das normas penais passa a se distanciar das garantias constitucionais e
processuais previstas para qualquer infrator.
O Direito Penal do Inimigo está inserido neste contexto de repressão
à criminalidade desconsiderando o individuo como sujeito de direitos com
respaldo na teoria contratualista dos séculos XVI ao XVIII. Totalmente em
descompasso com o Estado Democrático de Direito e com o princípio da
legalidade, a atuação do sistema judiciário de diferenciar indivíduos de
acordo com a personalidade criminal apenas prejudica a sociedade e o aparato
estatal, pois não há preocupação com as causas da violência e criminalidade,
que tende a aumentar diante do tratamento marginalizado perpetuado pelo
sistema processual e sistema carcerário.
O Direito Penal deve retomar seus devidos fins de reeducação do
apenado e sua posterior reinserção na sociedade, aliado aos princípios
de proporcionalidade e humanidade garantidos pela Carta Maior. Deve
desvincular-se de teorias arcaicas e estigmatizantes, passando a se comprometer
com as garantias democráticas e humanitárias do século XXI.
Embora alguns crimes provoquem repulsa pela sociedade, não se
deve diferenciar o tratamento dos infratores de acordo com a personalidade
criminosa, pois parte-se do principio que a dignidade da pessoa humana está
acima do sistema normativo penal e deve ser observado nas fases judiciais e
de cumprimento da pena.
Apenas a preocupação solidaria com as classes marginalizadas pode
conter a criminalidade de modo a evitar que os indivíduos pratiquem atos
delituosos. O Direito Penal deve ser utilizado como ferramenta de pacificação
social a serviço de todos os cidadãos e não meio de perpetuar dos estigmas da
opressão e intensificar a marginalização.

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diante da principiologia constitucional democrática. Revista dos Tribunais, São
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108 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
DIRETO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS –
CASO SOMÁLIA E A TUTELA UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS

RITA SILVANA ANDREOLLI1


Resumo
Este trabalho buscou pesquisar o caso Somália, a saber, o indivíduo somali, o refugiado
somali, as organizações internacionais de assistência humanitária e a violação dos direitos
humanos. O simples fato de um povo ter que se afastar de sua terra, cultura, raízes, como
é o caso do refugiado, já merece “per si” a atenção do mundo, por se tratar de desrespeito
básico ao ser humano. Além disso, tais pessoas são expostas a violências de toda sorte, o
que afronta os direitos humanos. Para a efetivação desse trabalho buscou-se, através da
revisão bibliográfica, analisar a efetividade dos direitos humanos dos refugiados sob a ótica
internacional, confrontando o Direito Internacional dos Direitos Humanos e a realidade na
tão devastada Somália, além de compreender o multiculturalismo e a intolerância praticada
neste país, frente aos direitos humanos. Em um mundo contemporâneo, onde já se fala em
direitos de quarta dimensão, ainda se vê povos afastados, não apenas das invenções técnico-
científicas, mas também do suprimento básico para a sobrevivência. A ação internacional
que deveria estar embasada numa política de compromisso com a justiça social, permite a
existência de campos de refugiados sem a menor condição de uma vida digna, verdadeiros
depósitos humanos. Assim, questionam-se quais os interesses que permeiam a história para
que este fato ocorra sem que nenhum Estado ou a Organizações das Nações Unidas resolva
enfrentá-lo diretamente. A tolerância, de alguns, às injustiças sociais com graves violações aos
direitos humanos levam a posturas degradantes de todo um povo e de toda a humanidade. É
imprescindível analisar e divulgar o tema dos refugiados, para uma ação eficaz da comunidade
internacional na efetivação dos direitos humanos.

PALAVRAS-CHAVE: Refugiados; Somália; Direito Internacional dos Diretos Humanos.

Introdução
A “busca da felicidade”, presente na Declaração da Virgínia de 1776 e
repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos, é a razão de ser
dos direitos humanos. A idéia de liberdade e igualdade dos seres humanos
é reafirmada e reforçada na Revolução Francesa. As declarações de direitos
norte-americana e francesa corresponderam ao reconhecimento do indivíduo
como titular de direitos, embora o exercício dos direitos individuais requeira
uma isonomia social (COMPARATO, 2005).
A história da rede internacional de tutela dos direitos humanos é recente
na sociedade internacional. Somente no último século foi criada a primeira
organização internacional visando o reconhecimento da universalidade dos
direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948
estabelece que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos
(RAO, 1999). A internacionalização dos direitos humanos iniciou-se na segunda

1 Bacharel em Direito pela Unisebcoc, formada em Ciências Farmacêuticas pala Universidade de São
Paulo, Mestre em fármacos e medicamentos, Especialista em Saúde Pública pela Fundação Educacional
de Fernandópolis e Manipulação Alopáticapa pela Associação dos Farmacêuticos Magistrais de São
Paulo. Atualmente atua como servidora pública na Farmácia Popular do Brasil de Bonfim Paulista.
Email: rita_andreolli@hotmail.com.
110 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

metade do século XIX. Na Segunda Guerra Mundial a sociedade internacional


se depara com as ideologias políticas que representaram verdadeiras máquinas
de despersonalização de seres humanos. Várias atrocidades cometidas nessa
época levam a humanidade a repensar suas atitudes e a buscar novas maneiras
de se relacionarem internacionalmente: a humanidade compreendeu o valor
supremo da dignidade humana (COMPARATO, 2005).
Vinte e uma convenções internacionais foram celebradas no âmbito das
Organizações das Nações Unidas e, entre 1945 e 1998, outras 114 convenções
foram aprovadas no âmbito da Organização Internacional do Trabalho. Não
apenas os direitos individuais, de natureza civil e política, ou os direitos de
conteúdo econômico e social foram assentados no plano internacional, além
de afirmarem-se, também, novas espécies de direitos humanos, o dos povos e
da humanidade. Incluíram, ainda, os direitos de preservação, conservação do
patrimônio cultural e do meio-ambiente (COMPARATO, 2005).
Em um mundo contemporâneo, onde já se fala em direitos de quarta
dimensão, ainda se encontram povos afastados, não apenas das invenções
técnico-científicas, mas também do suprimento básico para sobrevivência,
permitindo analisar-se a inefetividade dos direitos humanos dos refugiados,
fundamentalmente no caso Somália sob a ótica internacional, confrontando
o direito e a realidade, além de averiguar o comportamento da comunidade
internacional frente aos direitos humanos, dentro de uma realidade
multiculturalista, relativista e tolerante diante da violação desses direitos. A
igualdade humana reconhecida internacionalmente, como regra “erga omnes”,
muitas vezes se choca com a questão dos interesses culturais e econômicos
existentes no mundo, que impede uma universalidade dos direitos humanos
(RAO, 1999).

A Conquista dos Direitos Humanos


Conhecendo e introgetando o conceito de dignidade da pessoa humana
é que se preservará a igualdade entre todos os seres humanos. Isso, pois, a
dignidade é qualidade própria do ser humano, capaz de distingui-lo dos
demais e, ao mesmo tempo, tornando-o parte do todo, seja a comunidade
em que vive ou o Estado a que esteja juridicamente ligado. Para tal, faz-se
necessário o cumprimento de deveres e o exercício de direitos, de modo a
tornar o homem responsável por si e pelos demais seres humanos (SARLET,
2002).
A espiritualidade e a própria racionalidade humanas justificam a defesa
da dignidade humana. Pela espiritualidade, manifesta sob as mais diferentes
religiões, aponta-se o homem como o ápice do interesse divino já que foi criado
à imagem e semelhança de Deus e, portanto, um ser que busca a perfeição, a
harmonia, a paz e o amor. Assim também, pela racionalidade, a igualdade
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 111

humana essencial manifesta-se na liberdade, igualdade e fraternidade entre os


homens (COMPARATO, 2005).
Segundo Kant só o ser racional possui a faculdade de agir segundo a
representação de leis e princípios; só um ser racional tem vontade e existe
como um fim em si mesmo, podendo, portanto, exercer seu livre arbítrio.
Daí pensar-se na racionalidade como meio para a efetivação da dignidade
humana: um ser considerado e tratado como fim em si não se presta como
meio ou artifício para alcançar certo resultado; um ser racional tem autonomia
para viver segundo suas próprias leis (KANT apud QUINTANELA, 1986).
Na contramão dessa evolução surgem os interesses político-pessoais
que, ao inverterem tais conceitos de igualdade, fazem da coisificação humana
motivo de orgulho e rentabilidade para uns e desgraça e morte para outros.
Verificou-se tal coisificação nos campos de concentração soviéticos e nazistas
onde a perda dos valores éticos e morais fizeram com que se priorizasse o
ganho em detrimento da vida. Houve, à época, franca despersonalização de
milhares de seres humanos. A dignidade da pessoa humana desautoriza a
que o homem torne-se objeto do Estado ou mesmo de terceiros, através da
vedação da coisificação da pessoa humana (CALCAGNO, RKL advocacia,
acessado em 12.03.2012).
Pela constitucionalização dos Estados, principalmente a Norte-
Americana e Francesa é que as garantias dos direitos do homem passaram
a integrar as demais constituições democráticas, fazendo com isso que se
pensasse em direitos fundamentais, não apenas os individuais, mas também
os direitos sociais, sendo mais adiante preconizados direitos que pudessem
levar à paz mundial (RAO, 2005).
Até 1945, quando se fundou a Organização das Nações Unidas, não
se podia afirmar categoricamente que houvesse, ao menos, a preocupação
sobre os direitos humanos. Os direitos a uma nova ordem social definem que,
para serem atendidos os direitos já e anteriormente previstos, é preciso que se
instituam outros de natureza coletiva como o direito à paz, ao desenvolvimento,
a um meio ambiente saudável, a uma preservação do patrimônio histórico e
cultural de um povo que se torne comum a toda humanidade. Tais direitos
fundamentam-se na idéia de solidariedade entre os povos (MACHADO
NETO, 1987).
Assim nasce, na órbita mundial, o direito internacional que se traduz
como um sistema de princípios e normas, impostas a todos através de
convenções ou tratados e sancionado por organizações constituídas entre
os povos livres, capaz de atribuir reciprocidade de obrigações e direitos,
estabelecendo as condições para a comunhão universal (RAO, 2005).
112 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Direitos Humanos
O ser humano tem duas formas de se apresentar frente ao direito:
“direito que se tem” e “direito que se gostaria de ter”. Quanto ao primeiro
caso, fala-se em direito positivado, direito já estabelecido dentro da sociedade
em que se vive; quanto ao direito que se gostaria de ter, fala-se em buscar
legitimidade para alcançar o que se pretende. Daí o surgimento da dúvida
sobre o quê e quais são os direitos do homem. Já se compreende como direitos
do homem> “aqueles que pertencem ou deveriam pertencer a todos os homens, ou
dos quais nenhum homem pode ser despojado”. A comunidade internacional tem,
atualmente, o dever de fornecer garantias capazes de validarem os direitos
humanos, além de aperfeiçoá-los continuamente para que não enrijeçam
diante das mudanças contemporâneas de um mundo globalizado, tornando-
se letra morta (BOBBIO, 1990).
Por isso, Bobbio (1990) afirma ser mais importante proteger os direitos
do homem do que fundamentá-los, proclamá-los. Assim, atividades de
promoção, controle e garantia são fundamentais para tais objetivos, além de
se ter em mente que o progresso técnico e científico deve ser acompanhado de
progresso moral, caso contrário, poderíamos abolir a escravidão pessoal, mas
manteríamos escravos toda uma nação subjugada pelo poder econômico e
político de outra melhor sucedida. Uma das razões que permite a afirmação e
propagação dos direitos humanos é a tolerância que teve seu principal teórico
John Locke, quando afirmou que a verdade não precisa de violência para ser
ouvida pelo espírito dos homens e não se pode ensiná-la pela lei (BOBBIO,
1990).
Os novos processos produtivos, o comércio transnacional e a frugalidade
dos capitais financeiros, não apenas afetam negativamente a efetividade
da democracia, como também comprometem as instituições jurídicas em
assegurar a liberdade e preservar as garantias fundamentais. Com isso, os
Estados enfraquecidos, sejam por questões econômicas, políticas ou sociais
não conseguem proteger seus direitos essenciais (AMARAL, 1999). Apesar das
profundas diferenças culturais, sociais e políticas existentes entre os povos,
a DUDH apresentou consenso quanto à matéria de proteção aos direitos
humanos, pois estes independem de posições culturais, evolutivas ou político-
partidárias. Portanto, mesmo num mundo divido, como no pós-guerra ou
durante a guerra fria, ou mundo socialista versus capitalista e, por fim, países
com pronunciado desenvolvimento frente outros cujo desenvolvimento nem
mesmo se instalou, é possível ter uma linguagem única, universal com relação
aos direitos humanos (AMARAL, 1999).

Rede Internacional de Tutela dos Direitos Humanos


Segundo Santos Boaventura (2005) uma concepção multiculturalista
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 113

de direitos humanos corresponde ao diálogo entre as diferentes culturas


existentes e será condição básica e necessária para uma relação equilibrada
entre a competência global e a legitimidade local, com relação aos direitos
humanos. Concluem, Cançado Trindade (2003) e Flávia Piovesan (2007),
que a universalidade dos direitos humanos é enriquecida pela diversidade
cultural. A Carta da ONU quanto a DUDH incentivou a existência de um
espaço público internacional que salvaguardasse os direitos do homem, pois
se entende o vínculo existente entre direitos humanos, democracia e paz. Sem
direitos humanos não há democracia e, sem esta, não há solução pacífica de
conflitos (AMARAL, 1999).
Os direitos humanos resultam de lutas e conquistas em busca da
dignidade humana. Eles nascem como direitos naturais desenvolvem-se
como direitos positivados privados e se realizam como direitos positivados
universais, conforme dizeres de Bobbio. E, para que os direitos humanos
se internacionalizassem, foi preciso conceituar e estabelecer os limites da
soberania estatal. Portanto, a soberania estatal passa a ter compromissos e
obrigações na órbita internacional (PIOVESAN, 2007).
A internacionalização dos direitos humanos tem como fundamento o
Direito Humanitário, a Liga das Nações e a OIT. São assim explicados tais
componentes: Direito Humanitário corresponde ao direito humano exercido
em época de guerra, a fim de limitar a atuação do Estado e preservar os
direitos fundamentais em tempos de conflito armado; a Liga das Nações busca
relativizar a soberania do Estado promovendo a cooperação, paz e segurança
internacional; pela OIT busca-se condições justas e dignas de trabalho.
A Segunda Guerra Mundial fez nascer uma verdadeira multidão de
refugiados, espalhados por toda a Europa, inclusive os judeus sobreviventes
do holocausto que se tornaram verdadeiros apátridas já que o Estado alemão os
havia desnacionalizados (COMPARATO, 2005). A DUDH de 1948 reconhece
o direito de asilo e de proteção das vítimas de perseguição em seu artigo XIV,
declara também que toda pessoa tem direito a uma nacionalidade em seu
artigo XV.
Duas Convenções Internacionais deram proteção jurídica às pessoas sem
nacionalidade: Estatuto dos Apátridas de 1958 e a Convenção sobre a Redução
da Condição de Apátrida de1961, mas nos Pactos de 1966, tais direitos não
foram mencionados. (COMPARATO, 2005) Para Piovesan (2009), conforme
harmonia dos instrumentos de integração dos direitos humanos, se poderá
tornar efetiva a proteção da pessoa humana, não importando, portanto, se ela
se configure como refugiado ou não.

O Caso Somália
A Somália localiza-se na África Oriental, a leste da Etiópia, fazendo
114 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

fronteira também com Quênia, Djibuti, Golfo de Aden, Iêmen e Oceano Índico.
Tem área total de 637.657 Km2 em terreno característico de planície, cujos
recursos naturais são praticamente inexplorados, tais como,:urânio, petróleo,
minérios de ferro, estanho, bauxita, cobre, assim como reservas naturais de
gesso, gás natural e sal. Cultiva apenas 1,64% de suas terras aproveitáveis
(dados de 2005). Seu clima é predominantemente desértico com monções
em diferentes épocas do ano. O constante, descontrolado e desenfreado
desmatamento faz com que se tenha erosão do solo e desertificação, As guerras
civis incessantes, os interesses políticos e particulares de alguns governantes
locais e a própria tolerância mundial frente à violação dos direitos humanos
propiciam a fuga maciça de pessoas para os chamados campos de refugiados
onde nos depararemos com uma nova situação de violação dos direitos
humanos, pois apesar da ajuda de organismos internacionais, as mortes
suplantam os nascimentos e a fome e desesperança superam os sonhos de
voltarem ao seu território e às suas tradições (Disponível em INFOPEDIA
acessado em 21/01/2012).
A falta de saneamento básico, a escassez de água “per capita”, o grau
acentuado de desnutrição quando chegam ao campo, além da própria condição
de refugiado, com seus temores, angústias e incertezas, faz com que as doenças
se alastrem com rapidez assombrosa, de modo que os recém-chegados devem
ser imediatamente vacinados e avaliados quanto ao grau de desnutrição que
apresentam para, somente após essa prévia avaliação, serem encaminhados
para a aquisição de uma cesta básica que deverá durar por 21 dias. Mais de 970
mil somalis vivem como refugiados em países vizinhos estando distribuídos
entre o Quênia, Iêmen e Etiópia e, quando se fala em campo de refugiado de
Dadaab, estende-se a problemática para todos os demais campos existentes
nesses outros países.
O desinteresse internacional foi tamanho frente à morte anunciada
de 1,5 milhão de somalis por inanição, que o próprio Secretário Geral da
ONU denunciou publicamente, em julho de 1992, a inação da organização
com acusações aos componentes do Conselho de Segurança de estarem mais
interessados na guerra da Bósnia, fingindo não ver o que acontecia na Somália.
O definitivo envolvimento da comunidade internacional deu-se após a vitória
de Bill Clinton para as eleições presidenciais dos EUA, quando o presidente
Bush aproveitou para engrandecer sua imagem perante a sociedade mundial,
no tempo que lhe restava na presidência, e defender a participação dos EUA
na Somália (PUC-RIO, 2012).
Em fevereiro deste ano Dadaab, maior campo de refugiados somali e
maior do mundo, completou 20 anos de existência e, contrário do que se possa
pensar, continua crescendo, pois quando de sua instalação, pelo ACNUR,
pensou-se em receber 90.000 refugiados, embora acolha, atualmente, cerca
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 115

de 463.000 deles. Dadaab situa-se a nordeste do Quênia e foi assistido pelo


ACNUR, desde 1991, para receber os refugiados que fugiam da guerra civil,
porém, além dos conflitos internos não haverem cessado, houve o agravante
da crise de alimentos e fome decorrentes da seca que assolou ainda mais esse
país tão castigado (SANTOS, 2012).
Um grave equívoco ocorrido nos mais de quatro encontros entre líderes
de facções clânicas e representantes da ONU foi que esta, ao chamar tais
facções e não convocar nenhum representante da sociedade civil, para discutir
sobre os possíveis caminhos de se alcançar paz e harmonia na política interna
da Somália, acabou por declará-los como verdadeiros partidos políticos em
disputa e não facções tribais, o que lhes garantiu poder para persistirem em
seus desatinos. A sociedade civil, por sua vez, sentiu-se alijada do processo
de reconciliação no seu país e o resultado de tais encontros foi o total
descomprometimento dos líderes clânicos com a restauração política nacional.
É o que se verifica na afirmação:

A tentativa de reconstrução do Estado somali esbarrou numa


decisão equivocada da ONU de prestigiar os líderes clânicos, em
detrimento dos representantes da sociedade civil, nas discussões de
paz e de formação do governo interino do país. Em vez disso, os
lideres armados e beligerantes foram alçados à condição de políticos
e a eles foram dadas as prerrogativas de decidir sobre o futuro do
país (BIILL, 2006).

Muitas vezes o remédio adoece mais o doente, conforme declara a


autora:

Os Estados africanos revelam suas fragilidades na medida em que


projetos de desenvolvimento multinacionais não são capazes de
serem administrados internamente. Não importa que os estados
africanos larguem muito atrás na corrida da globalização. As
doações para fins humanitários dos países ricos impedem a África
de se firmar por conta própria. Isso pode ser bom para os países
ricos como manobra de relações públicas, mas o que a África
realmente necessita é de uma chance para ser capaz de administrar
e comercializar suas próprias riquezas (BIILL, 2006).

Existem organizações que prestam auxílio fundamental na proteção


à população em risco, principalmente durante conflitos armados: A Cruz
Vermelha e os Médicos Sem Fronteiras, por exemplo, que embasam o
Direito Humanitário Internacional como instrumento de garantia da vida,
da liberdade, da saúde e de tantos outros direitos fundamentais. Protegem
os civis a fim de amenizar seu sofrimento fornecendo alimentação, vestuário,
medicamentos e assistência médica e psicológica (AMARAL, 1999).
É notória a devastação sofrida pela Somália, tanto no âmbito estrutural,
116 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

político, econômico, quanto social, seja pela guerra civil instalada nesse país
a décadas, seja pela seca que assolou o que restava de esperança alimentícia
e de sobrevivência para o povo somali. Quando um povo se depara com
situações de total desprovimento para sua própria sobrevivência e a de seus
descendentes, acaba por se submeter a diversas situações tão deploráveis
quanto à miséria em que já se encontra, como no caso do povo somali que
buscou no campo de refugiados a chance de, efetivamente, não sucumbir às
vicissitudes da vida.
Muitas vezes, o que pode parecer ajuda, nada mais foi que interesse
intrínseco dos países envolvidos nas chamadas ações humanitárias para,
em verdade, escamotear os desejos políticos e econômicos desses países.
Embora seja inegável a postura humanitária dos países dispostos a atuarem
favoravelmente, com a aquiescência da ONU, para reverter a fome e a miséria
do povo somali, esquecem-se de que este mesmo povo, ainda que vitimizado,
tem suas tradições, anseios e cultura próprios, que indubitavelmente deveriam
ser respeitados.
A condição de refugiado a que se vê sujeito o indivíduo obrigado a
abandonar sua pátria, já traz em si, a violação de direito humano essencial e,
decorrente disso, mereceu a atenção do mundo que não suportava mais assistir
as atrocidades que ocorriam no chifre da África, cobrando da comunidade
internacional o cumprimento de seus objetivos enquanto guardiões da paz
e da ordem. E, por esse clamor é que as primeiras ajudas alcançaram o povo
somali, mas longe de serem efetivas ou eficazes, pois os refugiados apenas têm
sido mantidos vivos (alguns, aliás), mas não são reconhecidos no país onde se
refugiam, não têm direito a trabalho, não habitam com decência e higiene,
não têm trânsito livre, nem mesmo entre os campos e apenas simbolizam a
degradação dos direitos humanos.
A intolerância das pessoas em todo o mundo que repudiam tudo o que
acontece na Somália se contrapõe à tolerância da comunidade internacional
em definitiva e eficazmente dar cabo à situação imposta naquele Estado,
em nome da soberania que garantiria independência de ação dentro de seu
território. Mas, como estudado, não há que se falar em soberania quando se
afronta direitos humanos. Um povo refugiado, aliás na terceira geração dentro
dos campos de Dadaab, não tem como expressar seus anseios, opiniões,
necessidades, pois nem cidadão o é. Apenas existe pela misericórdia de quem
os mantêm vivos, ainda que não na condição de humanos, mas como uma
espécie sem nome, sem endereço, sem tradição e doente.
Em um mundo contemporâneo, onde já se fala em direitos de quarta
dimensão, ainda se vê povos afastados, não apenas das invenções técnico-
científicas, mas também do suprimento básico para a sobrevivência. A ação
internacional que deveria estar embasada numa política de compromisso com
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 117

a justiça social, permite a existência de campos de refugiados sem a menor


condição de uma vida digna, verdadeiros depósitos humanos. Por isso, este
estudo questionou quais os interesses que permeiam a história para que este
fato ocorra sem que nenhum Estado ou a Organizações das Nações Unidas
resolva enfrentá-lo diretamente. A tolerância, de alguns, às injustiças sociais
com graves violações aos direitos humanos levam a posturas degradantes de
todo um povo e de toda a humanidade.
Os direitos humanos mereciam estar inseridos nos interesses
internacionais e não, apenas integrarem, um Tratado ou Declaração como se
o papel pudesse falar por si e resolver a vergonha que se vê quando um ser
humano espera pela morte sob o olhar impune de uma ave necrófaga.

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O PROBLEMA DO JUSTO NA ANTIGUIDADE
DA HÉLADE: OS APORTES EPISTEMOLÓGICOS
DA FILOSOFIA E DA LITERATURA DA PAIDEIA
GREGA

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES1


Resumo
Somos herdeiros da filosofia grega e sua capacidade de inquietação acerca de uma aceitação
acrítica da vida, no afã de buscar as respostas para uma vida racionalmente significativa,
plena de sentido e em harmonia com o mundo, alcançou o problema do justo.  Como os gregos
puderam compreender e criticar o próprio modus vivendi e a ideia de justiça nele havida? A
literatura e a filosofia procuraram desenvolver algumas respostas que foram além do senso
comum e, nesse sentido, forneceram as bases para a constituição posterior de uma episteme da
justiça em Roma. No mundo grego, literatura e filosofia pareciam refletir as divisões essenciais
do espírito humano: aceitação e rejeição do status quo, desejo de ordem e de transgressão,
relações de imanência e de transcendência, defesa de padrões convencionais e ceticismo diante
deles, aquiescência do papel social e refutação deste. A polis grega já tinha uma certa intuição
de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos
valores de convivência social, porque já se percebia que um justo natural antecedia um justo
legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega e, em virtude do modo de
sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e força, sempre ressurge ao longo da história
e jamais foi superada.

PALAVRAS-CHAVE: Antiguidade; Epistemologia; filosofia; Paideia; Justo.

Introdução
Qualquer discussão sobre os conceitos relativos à ideia de justiça deve
ser feita dentro da esfera de um modus vivendi que indique não apenas as chaves
de interpretação, mas também o contexto existencial de sua especulação.
Somos tributários da herança filosófica grega e um de seus mais importantes
atributos está em transcender a aceitação acrítica da vida convencional: buscar
e identificar condições para uma existência racionalmente significativa, plena
de sentido e em harmonia com o mundo que nos circunda.
Essa tarefa não é fácil. Passaram-se séculos e o homem ainda se debruça
sobre ela. Várias soluções – algumas mais duradouras que as outras, mas
todas limitadas no tempo histórico – foram apresentadas. Independentemente
da solução proposta, a questão da justiça sempre tem um lugar proeminente,
porque o homem não quer apenas viver, mas viver bem: “os homens sempre
atuam tendo em vista o que lhes parece bom” (ARISTÓTELES, 2005: 1252 a).
Foi na Grécia, entre os séculos V e III a.C., que a questão da justiça
aflorou pela primeira vez. Mas como os gregos puderam compreender e

1
Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Pós-
graduando em filosofia e história da educação (UNICAMP). Pesquisador do grupo Paideia (UNICAMP)
e professor da Escola do Pensamento em Filosofia do Direito do Instituto Internacional de Ciências
Sociais (IICS). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré. Articulista da Escola
Paulista da Magistratura. Membro da Associação Paulista de Magistrados.
120 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

criticar o próprio modus vivendi e a ideia de justiça nele havida? A literatura


e a filosofia procuraram desenvolver algumas respostas que foram além do
senso comum e, nesse sentido, contribuíram para a formação posterior de
uma perene episteme acerca da justiça2.
No mundo grego, literatura e filosofia pareciam refletir as divisões
essenciais do espírito humano. Divisões entre aceitação e rejeição do status quo,
desejo de ordem e de transgressão, relações de imanência e de transcendência,
defesa de padrões convencionais e ceticismo diante deles, aquiescência do
papel social e refutação deste.
Nesse trabalho analítico de compreensão e crítica, os gregos souberam,
de maneira então inédita, manejar dois mecanismos que marcaram o universo
espiritual da polis: a preeminência da palavra sobre outros instrumentos de
poder e a plena publicidade das manifestações mais importantes da vida
social, dentre as quais estavam as leis da polis, as quais motivaram exegeses e
interpretações que eram costumeiramente veiculadas justamente pelo uso da
palavra por parte dos filósofos e dramaturgos gregos.
Morrison (2006: 24) lembra que:

(...) muitos dos filhos de Zeus e Têmis tornaram-se fiadores das


leis e da estabilidade social, em particular Dike, Eunomia e Irene.
Dike passou a personificar o ideal de justiça que colocava o homem
acima do mundo animal (...). Como deusa, Dike levava os juízes a
se empenhar em deliberar com integridade lógica em vez de tomar
decisões arbitrárias; sua irmã Eunomia representava a harmonia
social e jurídica que resulta desse comportamento racional e Irene
expressava a paz. Em conjunto, configuravam a ideia social de
homonoia, ou o ideal de uma comunidade urbana harmoniosa.

Os Sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, na filosofia, e Sófocles, com


sua célebre “Antígona”, na literatura, assumiram a tarefa de compreender esse
ideal, correlacionando-o ao problema do justo. Porque os gregos já tinham
certa intuição de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária
e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social.
A justiça deveria ser o verdadeiro pressuposto de toda ordem jurídica
no mundo espiritual da polis, onde já se percebia que um justo natural antecedia

2
Reale (1993:628) destaca que “em primeiro lugar, devemos reconhecer que em Roma já se fundava
uma autônoma ciência do direito. O Direito não é cultivado apenas por moralistas, por filósofos,
teólogos ou sacerdotes. Já surge a figura do jurisconsulto, que tem consciência do objeto próprio de
sua indagação, e, aos poucos, se converte em um especialista ou profissional de uma nova Ciência ou
Arte, cultivando a justiça em seu sentido prático, como voluntas, e não como um dos aspectos teóricos
da sabedoria. O Direito Romano é, efetivamente, uma criação nova, que pressupõe em quem cultiva a
convicção de que a experiência humana, por ele estudada, se subordina a categorias próprias, sendo
suscetível de ordenação em um todo unitário, sistêmico e coerente. (...) Por outro lado, sabemos que
os romanos não foram grandes apaixonados pelos estudos filosóficos, como os gregos, dos quais
herdaram a especulação para a justiça, nem pelos pressupostos gerais da vida jurídica, atraídos de
preferência pelo plano da atividade prática”.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 121

um justo legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega


e, em virtude do modo de sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e
força, sempre ressurge ao longo da história e jamais foi superada.
Frise-se que a importância do contributo grego para a noção de um justo
natural decorre justamente do fato de, pela primeira vez na história, o homem
ter despertado para a consciência do problema. Não houve uma proposta
deliberada de composição epistêmica de critérios capazes de distinguir a
juridicidade da legalidade, o justo natural do justo legal. Até porque, como
a polis era a expressão mais alta da vida ética na Hélade e tudo convergia
para a manifestação do indivíduo na vida política, de certa forma, não havia a
necessidade daquela distinção.

Mecanismos do universo espiritual da polis.


O advento da polis, entre os séculos VIII e VII a. C., é um fato decisivo
na história do pensamento grego: por intermédio dela, a vida social e as
relações entre os homens tomam um novo rumo, cuja originalidade, os ônus e
o bônus serão plenamente percebidos pelos gregos. Neste novo sistema social,
a palavra transforma-se no instrumento político por excelência, a chave de
toda autoridade estatal e o meio de comando sobre a coletividade.
A palavra deixa o campo do rito ou da fórmula justa e migra para a
seara do debate contraditório, da discussão e da argumentação. Supõe uma
plateia de ouvintes à qual a palavra é dirigida e, na posição de magistrado
soberano, essa mesma platéia, persuadida racionalmente, elegerá um discurso
em detrimento dos demais. Vernant (2011:54) afirma que:

(...) as questões de interesse geral que o Soberano tinha por função


regularizar e que definem o campo da arché são agora submetidas
à arte oratória e deverão resolver-se na conclusão de um debate; é
preciso, pois, que possam ser formuladas em discursos, amoldadas
às demonstrações antitéticas e às argumentações opostas. Entre
a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A
arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos,
na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua
eficácia, por intermédio de sua função política. Historicamente, são
a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das formas
do discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembléia e
do tribunal, abrem caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir,
ao lado de uma técnica da persuasão, regras da demonstração e ao
por uma lógica do verdadeiro, própria do saber teórico, em face
da lógica do verossímil ou do provável, que preside aos debates
arriscados na prática.

Ao lado da palavra, outro mecanismo típico da polis reside na plena


publicidade outorgada às manifestações mais destacadas da vida social. Aliás,
122 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

a polis existe apenas na medida em que surgiu um domínio público, em dois


sentidos diferentes, porém complementares: um setor de interesse comum,
oposto ao privado, e um âmbito de práticas abertas, em oposição aos processos
e rituais secretos.
Essa exigência de publicidade faz com que todas as condutas, processos
e conhecimentos submetam-se ao olhar alheio o que, na gênese, era um
privilégio do basileus. No plano intelectual, esse movimento acarretará efeitos
decisivos. Vernant (2011:55) afirma que:

(...) a cultura grega constitui-se, dando-se a um círculo sempre mais


amplo – finalmente ao demos todo – o acesso do mundo espiritual,
reservado ao início a uma aristocracia de caráter guerreiro e
sacerdotal (a epopeia homérica é um primeiro exemplo desse
processo: uma poesia de corte, cantada primeiramente na sala dos
palácios; depois sai deles, desenvolve-se e transpõe-se em poesia
de festa). Mas esse desenvolvimento comporta uma profunda
transformação. Tornando-se elementos de uma cultura comum, os
conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levados à praça
pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados,
como garantia de poder, no recesso de tradições familiares.

Assim, tais conhecimentos, saberes e valores, ao serem submetidos
aos processos de publicização na polis, motivarão exegeses, interpretações,
ilações, oposições, contraditórios e debates acirrados. Doravante, a retórica
e a argumentação serão alçadas à condição de armas na arena intelectual e
política.
A comunidade passa a ter controle sobre as criações do espírito,
mediante aferição da retidão por instrumentos de natureza dialética. E, nesse
ponto, as leis não escaparão. Ao serem escritas, assegura-lhes vigência e
eficácia. Subtraem-se à autoridade privada e ao saber oculto do basileus, cuja
principal função era jurisdicional, ou seja, a de dizer o direito.
Demóstenes (GILISSEN, 1988:78), no Discurso contra Timócrates (353
a. C.), diz como pode ser proposta e aprovada uma lei em Atenas:

Nas leis que nos regem, Atenienses, contêm-se prescrições tão


precisas como claras sobre todo o processo a seguir na propositura
das leis. Antes de mais, fixam a época em que a ação legislativa é
admitida. Em segundo lugar, mesmo então, não permitem a todo
o cidadão exercê-lo à sua fantasia. É necessário por um lado, que o
texto seja transcrito e fixado à vista de todos perante os Epónimos;
por outro lado, que a lei proposta se aplique igualmente a todos os
cidadãos; enfim que as leis contrárias sejam derrogadas; sem falar
de outras prescrições, cuja exposição, parece-me, não teria interesse
para nós neste momento. Em caso de infração a uma só destas
regras, qualquer cidadão pode denunciá-la.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 123

Com o fenômeno da publicização, as leis tornam-se bem comum e


regra geral aplicável a todos os cidadãos da polis. E a dike, sem prejuízo de
ainda permanecer como um valor sagrado, poderá, por meio da lei3, encarnar-
se num plano propriamente humano e ser submetida ao debate – literário e
filosófico – acerca de sua essência.

Sófocles e o dilema de Antígona.


Antígona é a última peça da trilogia tebana de Sófocles, escrita no
século V. a. C., e deve ser analisada no contexto trinitário que o próprio autor
criou: “Édipo”, “Édipo em Colona” e “Antígona”. É uma trilogia trágica sobre
a qual se debruçaram muitos estudiosos ao longo da história. Antígona era
uma das filhas de Édipo, essa figura funesta do poder masculino que havia
sido amaldiçoada pelos deuses, por ter assassinado seu pai, o rei de Tebas,
por engano e, em seguida, casado com sua mãe e assumido o trono do reino4.
Com a morte de Édipo, irrompeu uma guerra civil entre seus dois
filhos, Polínicles e Etéocles, os quais disputam entre si o comando da cidade
que, em princípio, haviam concordado em comandar alternadamente. Por trás
da disputa entre os irmãos, temos a figura do tio, interessado em que ambos
se destruam e assim ele, Creonte, ficaria com o poder inconteste. Este é um
dos lamentos que está presente no enredo da peça: a ambição e a manipulação
pelo poder.
Antígona e sua irmã Ismênia vêem a disputa acontecer e nada podem
fazer para impedir que seus irmãos Etéocles e Polínicles se destruam. Mas,
após a guerra, Etéocles é morto em combate e recebe um enterro digno, com
honras militares, enquanto Polínicles, que também faleceu, é condenado por
um decreto de Creonte a permanecer insepulto para que os animais comessem
suas carnes, porque tinha lutado contra ele.
A pena é promulgada para conhecimento de todos, como decorrente
do legítimo poder civil que detém o governante de uma cidade. A infração ao
decreto acarretaria ao autor a sumária aplicação da pena de morte. Um edito
cruel, porque pune o defunto com uma morte eterna, sem sepultamento e a ser
comido pelos abutres.

3
“Para os pensadores gregos, a fonte do direito é o nomos, que se traduz geralmente por lei. A noção,
desconhecida nos poemas homéricos, aparece em Hesíodo (século VII a. C.). Píndaro (século V a.
C.) dirá que “a lei é a rainha de todas as coisas”. Um autor posterior, o Pseudo-Demóstenes, dá uma
definição: “Os nomói são uma coisa comum, regulada, idêntica para todos, querendo o justo, o belo, o
útil; chama-se nomos o que é erigido em disposição geral, uniforme e igual para todos. O nomos
é sobretudo o meio de limitar o poder da autoridade, porque a liberdade política consiste em não
ter que obedecer senão à lei. Mas a lei é humana e laica; já não tem nada de religioso, de divino”
(GILISSEN, 1988:75-76) (grifos nossos).
4
A tragicidade marca a vida de Antígona, do nascimento à morte: Em “Édipo Rei”, Édipo tem em conta
o terrível dilema de identidade de seus filhos com Jocasta, sua mãe biológica. Antígona é, ao mesmo
tempo, sua irmã e filha. As regras não escritas de parentesco e atribuição de identidade haviam sido
infringidas e todos os efeitos da hybris grega recairiam sobre sua família mais cedo ou mais tarde.
124 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

A peça inicia com o diálogo entre Ismênia e sua irmã, Antígona, a qual
não aceita a determinação de seu tio Creonte e, em segredo, planeja sepultar
seu irmão. Antígona sente-se atrelada a um dever normativo que transcende
sua posição de súdita do tio. Ismênia, invocando os horrores já sofridos pela
família, apela que Antígona respeite o decreto real.
Antígona permanece firme em seu intento e libera a irmã de auxiliá-
la, porque o dilema que sofre é pessoal: um dilema que antagoniza dois
conjuntos de obrigações e leis. Por um lado, vê-se adstrita às leis divinas que
prescrevem o sepultamento do irmão; por outro, a lei tebana (ou o decreto de
Creonte) determina a deixá-lo insepulto. Ismênia também reconhece o conflito
de normas, quando resolve não desafiar o rei por não se sentir “forte o bastante
para ir contra o poder do Estado” 5.
Antígona parte para sepultar o irmão, resignada com a punição que a
aguarda, uma morte honrosa para uma existência digna, pois, para ela, seria
melhor assim do que continuar a viver sem um sentido, decorrente de sua
incapacidade de agir contra o edito de Creonte. Depois de um sepultamento
simbólico, algum tempo depois, ela é descoberta e confessa o que fez.
Questionada por Creonte sobre seus atos, ela declara que não aceitava o
decreto e acreditava ter feito o que era certo.

CREONTE: E tiveste a ousadia de infringir a lei?


ANTÍGONA: Sim, essa ordem não veio de Zeus. A justiça que
emana dos deuses não conhece essa lei. Não considero que tuas leis
sejam fortes o bastante para revogar as leis não escritas e inalteráveis
dos deuses, uma vez que não passas de um homem. Elas não são
de ontem nem de hoje, mas eternas, ainda que ninguém conheça
suas origens. Nenhum mortal poderá culpar-me por transgressão
perante os deuses. Por certo, sabia que teria de morrer, com ou sem
o teu decreto. E, se minha morte é iminente, tanto melhor para mim.
Quem, como eu, vive em meio a tantos tormentos, só tem a ganhar
com ela6.

Creonte, nessa altura dos acontecimentos, percebe a gravidade da


situação e a necessidade de levar a sanção pelo descumprimento de seu edito
às últimas consequências:

CREONTE: Aquele a quem o Estado confere o poder deve ser


obedecido até as mínimas coisas, sejam elas justas ou injustas. E, sem
dúvida, aquele que sabe governar sua casa irá tornar-se o mais sábio
dos reis ou o mais fiel dos súditos. Será ele o homem com o qual
todos poderão contar na tempestade da guerra (...). Não existe maior
desgraça do que a desobediência: ela destrói os Estados, leva os lares
à ruína e, nos combates, traz consigo a derrotas dos exércitos. Por

5
Antígona, Prólogo, 78-79.
6
Antígona, 1º, II, 449-464.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 125

outro lado, a simples obediência salva as vidas de centenas de pessoas


honestas. É preciso, pois, apegar-se às leis com total lealdade7.

Antígona é condenada a uma morte cruel, será emparedada numa


espécie de muro onde permanecerá até morrer de inanição. Ela aceita sua pena,
pois reconhece haver desafiado as leis do Estado, embora não as aceitasse.
Em linhas gerais, a obra, sob o ângulo estritamente jurídico, debate o
conflito entre as exigências do justo natural (Direito Natural) e o justo legal
(Direito Positivo). Sófocles expõe esse conflito normativo ao colocar em
oposição o edito de Creonte, a lei do Estado, e o dever de sepultamento dos
mortos, a lei dos deuses.
Acreditamos que o decreto do novo rei de Tebas, impedindo apenas e
tão somente o funeral de Polínicles e cominando a pena de morte para quem
lhe desse uma sepultura, é uma lei injusta, porque carece da generalidade e da
permanência que sempre caracterizam qualquer lei positiva no momento de
sua integração ao ordenamento normativo8.
Além da falta desses atributos essenciais, foi um decreto promulgado
ex post facto, o que, no mínimo, macula a idoneidade de sua ratio legis. E lex
iniusta non est lex, a lei injusta não é lei, como afirmou, com acerto, muitos
séculos depois de Sófocles, Tomás de Aquino. Assim, Antígona, ao respeitar a
lei dos deuses, fez prevalecer o justo por natureza, ainda que com o preço de
seu sangue.

Os Filósofos Pré-Socráticos, os Sofistas, Sócrates e Platão.


O advento de sucessivas poleis gregas, a partir do século VIII a. C.,
proporcionou alguns problemas de convívio e de cooperação entre seus
habitantes. Até então, o paradigma ético residia no legado histórico-literário
homérico (composto no século IX a. C.), com um ideal de homem virtuoso que
já não mais atendia aos anseios do cidadão grego. O ethos da obra homérica

7
Antígona, 2º, III, 661-676.
8
Hervada (2008: 264-265) afirma que: “a lei não é estabelecida para pessoas singulares – físicas ou
morais – mas para a generalidade delas. Nessa afirmação estão envolvidas duas questões: uma, a
oposição à existência de privilégios, que seriam contrários ao princípio de igualdade que vigora em
nossas comunidades políticas (...). A marca da generalidade da lei já foi destacada (...) por Ulpiano: ‘Iura
non in singulas personas, sed generaliter constituuntur’. Os direitos não se estabelecem levando em
conta os indivíduos, e sim em geral. Com mais exatidão, Papiniano classificou a lei como praeceptum
commune, como um preceito comum (...). Ao ser direcionada para a comunidade, a lei é norma comum
ou geral, no sentido de compreender por si só quantos casos iguais ou semelhantes foram produzidos
na comunidade, porquanto ficam englobados no fato hipotético da lei que abrange uma generalidade
de casos; por isso, o fato hipotético da lei não poder ser singular, mas deve ser redigido com aquele
grau de abstração suficiente para compreender uma multiplicidade de casos concretos”. Silva Pereira
(2011:53) assinala a permanência como outra característica da lei, pois: “é próprio da lei a duração, a
extensão no tempo (...) toda lei, como elaboração humana, é contingente. Nasce, vive e morre, como
o homem que a concebe. Pode ter existência mais ou menos longa, pode destinar-se a regular uma
situação que perdure mais ou menos extensamente, pode ter vigência indeterminada (...). Mas não se
pode destinar a uma única aplicação”.
126 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

lastreava-se na areté ou excelência dos chefes das famílias aristocráticas,


consistente na aptidão retórica e guerreira geradora de honra e prestígio
sociais.
Para reverter o quadro de litigiosidade, foi introduzido o nomos ou lei, a
fim de que novas formas de capacidade e de virtudes ganhassem corpo social,
em superação das antigas aretai em estado de agonia, no contexto racional
da polis e de seu equilíbrio proporcionado pela boa lei. O desenho teórico e
empírico da nova areté visava justamente à capacidade de moderar os desejos
individuais, a irascibilidade (típica do guerreiro) e as emoções particulares em
prol dos ditames legais.
Uma noção rudimentar de justiça já se faz presente nos primórdios
da cultura grega. O relato homérico sobre a guerra de Tróia assenta-se na
fundação de um ethos voltado para o ideal da reparação de uma injustiça. Os
ensinamentos e as leis de Sólon (século VI a. C.) tomam parte nesta comunhão
entre a visão grega do universo e a busca de condutas e normas voltadas para
a prática da justiça.
No campo filosófico, aquela noção rudimentar começa a tomar uma
certa forma teórica. O filósofo pré-socrático Anaximandro (século VI a. C.)
referira-se à “injustiça” que existe quando há conflitos durante os movimentos
naturais dos corpos. Mais tarde, outro filósofo pré-socrático, Heráclito (século
V a. C.), dele divergira, ao afirmar que todo conflito que provoca injustiça é
inerente ao império de um processo universal ordenado.
Segundo Heráclito, o devir não é anárquico, está dominado por uma
medida, um logos e um sentido, à qual o homem deveria amoldar seu agir,
advindo, dessa correlação, alguns princípios de conduta ou normas naturais.
Cuida-se, pois, de um ponto de vista metafísico, restrito à mera cogitação, sem
a formação de uma doutrina acerca da justiça.
Mais tarde, os sofistas logo submeteram o nomos ou a lei a uma crítica
acertada, de tal sorte que a solução legal – o justo legal – logo pareceu
inconsistente: como mestres da retórica e pessoas com uma visão cosmopolita,
acusaram a diversidade desse paradigma legal, reduzindo-o ao campo do
estritamente convencional, o que fomentaria a canalização exclusiva das
demandas decorrentes do poder dos mais fortes.
Sob a ótica dos sofistas, o justo legal, representado pelo direito positivo,
era dotado de relatividade. Não haveria um justo natural fundado num direito
natural, porquanto, por natureza, nada seria verdadeiro e tudo derivaria do
homem, o sentido último de todas as coisas, na expressão de Protágoras. Por
conseguinte, os sofistas realizaram um giro copernicano na visão de mundo
de Heráclito.
Daí a importância atribuída à techne retórica por eles ensinada, de
maneira que uma argumentação mais convincente pudesse fazer impor, pelo
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 127

consenso, os interesses diretamente buscados. Inclusive, a questão do justo


legal desatrelada de qualquer lastro no justo natural fora tratada por Sófocles
em Antígona (século IV a. C.), obra contemporânea ao período aqui enfocado e
já abordada no tópico anterior.
Por outro lado, Sócrates (469-399 a. C.) foi um incansável adversário
da proposta sofista, a qual, segundo o filósofo, correspondia a um saber falso
e aparente (a opinião, doxa) que se camufla na argumentação retórica. Nessa
empreitada que lhe custou a vida depois de uma dose de cicuta, Sócrates
atuou em duas frentes: refutou a pretensão sofista de possuir pela via da techne
retórica o saber sobre as virtudes cívicas da polis e propôs uma alternativa de
saber verdadeiro e universal acerca da justiça, na qual a validade do justo legal
derivaria diretamente de sua justaposição aos princípios do justo natural.
Na primeira frente, Sócrates tentou demonstrar que a techne sofista
era ambivalente, na medida em que era apta a produzir injustiça natural. Na
segunda frente, no afã de tentar resolver o problema prático do equilíbrio
entre o individual e o social – fundamentado na premissa de que o justo
legal deveria justamente provocar a moderação dos desejos que muitas vezes
se sobrepunham aos requerimentos da vida em sociedade – questionou o
modo de vida desmedido, inspirado na hybris, que, segundo ele, por estar
divorciada do justo natural, não proporcionaria a eudaimonia da comunidade
e, indiretamente, de seus membros.
A saída socrática consistiu na apropriação do cuidado da alma,
influenciado pelo orfismo e pelo pitagorismo: extraiu do contexto religioso o
pensamento da alma, colocando-o no centro e no fim de seu discurso moral,
para “fundar sobre a concepção da alma como ‘verdadeiro eu’ aquela equação de justiça
e felicidade que, sem esse suplemento, como se viu, parecia não poder com os golpes da
crítica sofista” (VEGETTI, 1989: 91).
A justiça realizar-se-ia, então, somente na alma, como fruto de uma
vida examinada, regulada por uma episteme, uma ciência de justiça que sabe
discernir o certo e o errado, o justo natural. A equação formada por justiça,
felicidade, ciência e virtude na alma era uma conclusão que podia ser válida
para Sócrates, que reputava a alma como imortal e atemporal. Entretanto,
seu zelo pela vida refletida portava uma aporia interna que a investigação
platônica não só não resolveu como acentuou ainda mais: entre Sócrates e a
polis foi aberto um dissídio, porque a polis rejeitou a mediação socrática entre
a alma e a polis, culminada com a condenação do filósofo numa sociedade em
que não havia espaço para seu saber inovador.
Platão herdou o problema acerca da episteme da justiça natural,
que assegura ordem à alma individual e à comunidade9. Nos diálogos “A
9
A força é a negação da justiça. Contudo, sem o manejo da força, paradoxalmente, a humanidade
jamais teria sido capaz de descobrir o que é a justiça e como se deve agir para ser justo. “Este foi,
sem dúvida, o ponto de partida de Platão. Não apenas seu ponto da partida na obra mais diretamente
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República” (L. I, 338-340), “Górgias” (482-484) e “Protágoras” (337d), Platão


afirma que os sofistas buscavam muitas perspectivas de compreensão da lei
e da justiça, oscilando entre a conveniência do mais forte, o resultado de uma
convenção e a expressão de tendências naturais contra os abusos da legalidade
positiva.
Trasímaco identifica a justiça como a vantagem do mais forte ou
superior; Cálicles antepõe o direito natural dos mais fortes à tática das leis
defensivas a que recorrem os mais débeis, que se satisfazem com a igualdade;
Hípias escolhe as leis não-escritas, pois a lei positiva, tirana dos homens,
obriga a muitas coisas contrárias à natureza.
Na República, Platão procurou superar as dificuldades internas da
filosofia socrática, a fim de superar as ambiguidades sofistas. Para ele, a
postura socrática não considerava dois conflitos internos, o da polis, revelado
pela constante oposição entre abastados e pobres, e o da alma, dramatizado na
tragédia do teatro grego, como no caso de Antígona.
Sua proposta de episteme deveria, então, criar condições para o império
simultâneo do justo natural tanto na polis quanto na alma, pois a sociedade é
homem escrito com letras maiúsculas: “não há indivíduo justo a não ser numa
sociedade justa, mas não há sociedade justa se não o são, desse ponto de vista, os seus
membros singulares. Parece, aliás, que, desse ponto de vista, a moral individual tem
prioridade: os costumes da polis são os dos seus cidadãos”. (VEGETTI, 1989:117).
Por isso, na República, Platão inicia com a justiça da cidade (Livros II e III) e
passa para a justiça da alma (Livro IV).
Nos dois âmbitos, as partes distintas do conflito são reconduzidas a um
todo ordenado a um fim único: a felicidade na polis como corolário da felicidade
de cada alma, por intermédio da atuação do justo natural, caracterizado como
aquela ordem em que cada parte desenvolve uma função específica no todo,
segundo uma específica excelência ou virtude.
E a ordem é estabelecida por uma ciência em cada segmento social: a
sophia, restrita dos governantes da cidade; para os guerreiros, era a coragem
e, para os produtores, a temperança. Cada uma delas atuando dentro de

voltada para a reflexão sobre a justiça – o diálogo que adquiriu um nome impróprio de “República” –
mas também foi o ponto de partida que orientou toda sua reflexão filosófica, cujo ato inaugural está na
indignação perante uma injustiça que marcou sua juventude. Ao assistir à condenação de Sócrates, que
era, em sua opinião, ‘o mais justo dos homens de meu tempo’ (Platão, Carta VII), sua vida tomou um
novo rumo: a busca de uma reflexão a partir da qual fosse possível encontrar o significado teórico e a
aplicação prática do conceito de justiça: significado teórico no sentido de encontrar o conteúdo da ideia
de justiça, mas também significado prático, no sentido de encontrar um modo pelo qual fosse possível
uma nova ordem política que restituísse a justiça às sociedades humanas. Platão não foi o primeiro,
entre os gregos antigos, a procurar entender o significado da justiça. Foi, sem dúvida, um dos que mais
intensamente investigaram o tema e, principalmente, um dos primeiros cujos textos tiveram a sorte de
serem conservados para a leitura das gerações futuras. Mais ainda: sua obra sobre justiça se tornou
referência para tudo quanto, depois dele, foi escrito sobre o tema. Se a morte de Sócrates ensinou a
Platão de que modo a vida humana está vinculada ao conceito de justiça, a vida lhe ensinou que não é
possível à condição humana viver sem uma reflexão inerente à prática da justiça” (FABBRINI, 2007: 17).
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 129

seu respectivo âmbito de destinatários. Paralelamente, no interior da alma,


inovando na tradição de então, surge a tripartição da alma platônica. A parte
racional era governada pela sophia, a parte irascível pela coragem e a parte
concupiscível pela temperança.
A ordem das partes no todo decorre de um saber específico, que abarca a
ideia das inúmeras partes num todo à luz da ideia suprema de uma totalidade
ordenada segundo uma ideia de Bem. Tal fato não decorre da experiência e
não é dedutível a partir dos fenômenos mutáveis do mundo sensível. É inato
e provém da anamnese, deduz-se da visão das ideias que foram previamente
inscritas na alma de cada homem.
Assim, para Platão, o fundamento ontológico do justo natural está no
arquétipo, ao qual todas as coisas deveriam se conformar. A ideia de justo
natural deriva da ideia de bem, a qual se submete à ideia divina da ordem
jurídica universal. O justo natural platônico é um justo natural ideal, efeito
direto da contemplação das ideias. As ideias eternas estão preordenadas pela
mente divina e a elas vinculam-se todo o conhecimento do justo e do injusto
natural.

Aristóteles
Entra em cena Aristóteles. O Estagirita herdou o legado platônico e
continuou na busca do saber sobre a ordem na alma e na polis, mas a submeteu a
partir de outro método, a fim de vencer as vicissitudes subjacentes na resposta
platônica. E suas ideias não só marcariam sua época, mas seus influxos
constituiriam um imponente substrato do pensamento moral ocidental até os
dias atuais.
Aristóteles logo notou a principal aporia no ideário platônico: a
separação (chorismós) entre mundo inteligível e mundo sensível, cuja relação
era fundada pela correspondência das coisas às ideias. Sob o ângulo da polis,
tal cisão demandava o conhecimento das ideias por via da reminiscência
(anamnese), o que provocava um choque radical com o senso comum, segundo
o qual o acesso ao saber era fruto do embate entre as opiniões dos cidadãos.
Como efeito, as relações entre o governante-filósofo e a polis seriam
um tanto dissonantes, aporia essa que, segundo Thomsen (1990:225-236),
permanece insuperável no pensamento platônico. Rejeitando o chorismós e
introduzindo as ideias nas realidades sensíveis, ou seja, descendo com as ideias
do mundo inteligível ao mundo sensível – as formas da matéria – Aristóteles
abriu uma nova senda para a ontologia.
Sob o ângulo do sujeito na relação de conhecimento com o objeto, o
homem é visto como um ser capaz de conhecer a natureza das coisas, isto
é, a verdade intrínseca de cada uma delas. Do ponto de vista do objeto, as
realidades sensíveis, em virtude da forma nelas subjacentes, são naturalmente
130 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

cognoscíveis. Para a vida na polis, abre-se a possibilidade de que os


cidadãos tenham opiniões verdadeiras sobre os assuntos da polis – desde
que correspondam à natureza da coisa opinada – e, assim, o filósofo pode e
deve tomar as opiniões práticas como ponto de partida de sua investigação
especulativa.
Sem dúvida, uma inversão completa do caminho do modelo platônico.
O homem aristotélico não vai mais buscar na teoria da reminiscência o acesso
ao conhecimento das realidades físicas e dos assuntos da polis, mas no caminho
da abstração da experiência sensível. Isto é, a forma (a ideia platônica) está na
substância de cada ser (no mundo sensível e não mais no mundo inteligível).
E também no ser das ações humanas multifacetadas que tomam parte na vida
da polis.
A investigação filosófica aristotélica rompe com a unicidade do saber
platônico: um conhecimento das ideias incindivelmente teórico e prático, posto
que as ideias, situadas no mundo inteligível, constituem o substrato sobre o
qual são formadas as realidades do mundo sensível. Uma investigação do
saber que contempla as ideias e que, por isso, configura-se num saber infalível,
na ótica platônica, porque forma as coisas segundo as ideias.
Aristóteles, inspirado pela episteme do conhecimento platônico, que
tentou conciliar a primeira crise histórica da filosofia, desencadeada pela
questão da mutabilidade entre Parmênides (mundo imutável) e Heráclito
(devir constante e perpétuo), propõe que, no âmbito do saber humano, a
realidade sensível, objeto de estudo da física e da metafísica, tem, em si mesma,
o princípio (ou o motor) de seus movimentos. E as ações humanas (tanto
aquelas voltadas para o agir ou para o fazer) têm seu princípio no homem.
O resultado de uma arte (como a escultura ou a pintura) tem seu
princípio na arte (techne) de quem a produz. A ação humana que se encerra em
si mesma (como o ajudar alguém ou se omitir a fazê-lo) tem seu princípio na
escolha. Assim, para Aristóteles, o saber com relação ao puro saber é teórico.
No que toca às coisas feitas ou produzidas externamente (como o labor de um
artesão), é um saber poiético. No que concerne ao agir, é prático.
A diversidade nos objetos e na relação dos respectivos saberes com
os objetos volta ao ponto de partida, sob a denominação aristotélica de
filosofia teórica e filosofia prática: ambas investigam a verdade e a causa que
proporciona essa realidade. E, logo, são episteme. Todavia, a filosofia teórica
busca a verdade como um fim em si mesma. A filosofia prática busca a verdade
que é posteriormente ordenada à obra a ser feita aqui e agora10. O saber prático
não é um fim em si mesmo, como o saber teórico, mas sempre tem em vista o
horizonte de outro fim11, ou seja, da ação.

10
Metafísica, L. II 1, 993 b 19-23.
11
Da Alma, L. I 3, 407 a 23-25.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 131

Na investigação ética e política – os campos por excelência da filosofia


prática – o objeto é conhecido de molde a poder ser posto em obra pelo agente
da ação12. A partir de então, a ética passa a ser encarada como uma disciplina
filosófica específica, com objeto, método e conceitos próprios. Para a vida na
polis, essa revolução no campo das ideias significou uma revolução no campo
da praxis: no seio da polis, as ações deixam de conduzidas pelo saber teórico
do filósofo, o justo e o político platônicos, e passam a ser regidas pelo saber
prático do bom político, iluminada pela phrónesis13.
A filosofia prática aristotélica investiga o modo pelo qual a phrónesis é o
princípio das escolhas e ações humanas que são tidas como virtuosas no ethos
da polis. Ensina Giuseppe Abbà (2011, p.74) que:

(...) o ponto de partida da filosofia prática são as “aparências” do


sábio (phrónimos), do virtuoso (spoudaios) no ethos da polis: isto é, os
seus juízos sobre a excelência de determinar as ações concretas e,
de modo mais geral, os éndoxa, as opiniões de autoridade acerca
do modo conveniente e nobre de viver e de agir. Ademais, o
filósofo prático começa sua investigação, mais em geral, a partir dos
legómena, as opiniões correntes acerca dos assuntos humanos, das
excelências e dos bens humanos. O filósofo prático visa a dar razão
dessas opiniões mediante processo diaporético: isto é, examina as
eventuais aporias às quais as opiniões conduzem e busca resolver as
aporias explicando a parte de verdade e a parte de erro contida nas
opiniões. Mais em geral, o filósofo prático procede dialeticamente:
examina as opiniões possíveis acerca de um problema prático,
descarta, com argumentação contra-interrogativa ou refutatória,
aquelas que levam a aporias ou que incorrem em contradição ou
que contravêm os éndoxa. As opiniões que resistem ao exame ele
as considera verdadeiras e mostra a sua compatibilidade. Assim
procedendo, o filósofo prático parte do ‘quê’, isto é, das opiniões
sobre as ações justas, boas, convenientes e remonta aos seu
‘porque’, isto é, à razão (logos) que as justifica. Este procedimento
não é exclusivo da filosofia prática, pois também se acha na filosofia
teórica (física e metafísica): é a via para se recobrar o conhecimento
dos princípios próprios de uma ciência, princípios dos quais parte,
então, a argumentação apodítica para explicar por que certas
propriedades pertencem necessariamente ao objeto específico
estudado por aquela ciência. O que diferencia a filosofia prática é

12
Ética a Nicômaco L. I 3, 1095 a 5-6; L. II 2, 1103 b 26-30; L. X 10, 1179 a 35-b 2.
13
A prudência é tratada ex professo no livro VI da “Ética a Nicômaco”, que trata das virtudes dianoéticas,
e no capítulo 34 do Livro I da Magna Moralia. Segundo Pierre Aubenque, “a tradição moral do Ocidente
pouco reteve da definição aristotélica de prudência. Enquanto as definições estóicas de phronêsis como
‘ciência das coisas a fazer e a não fazer’ ou ‘ciência dos bens e dos males, assim como das coisas
indiferentes’, facilmente se impuseram à posteridade, a definição dada por Aristóteles no livro VI da
Ética Nicomaquéia apresenta um caráter demasiado elaborado ou, se se prefere, demasiado técnico
para poder conhecer a mesma fortuna. Ali, a prudência é definida como uma ‘disposição prática
acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau para o homem (L. VI, 5, 1140
b 20 e 1140 b 5)” (AUBENQUE, 2003: 59-60).
132 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

o fato de que o ‘quê’ do qual ela parte é-lhe fornecido pelo ethos da
polis, ethos que, por via da educação e da disciplina, tornou-se çthos
ou caráter do indivíduo que age bem. Assim, o ponto de partida da
investigação filosófica ‘ética’ é o mesmo a partir do qual tem início
o raciocínio prático do phrónimos.

Ademais, a filosofia ética diferencia-se pelos motivos pelos quais alcança


o procedimento dialético. Tal justificativa reside numa concepção normativa
da vida boa e das excelências que a constituem. Superada esta etapa, o filósofo
prático pode estipular e fundamentar normas gerais de como se deve agir em
vários planos práticos para realizar a vida boa.
Concomitantemente, a filosofia ética assume um perfil tipológico,
porquanto não indica uma concepção absolutamente delimitada e rigorosa
da vida boa e das excelências para o homem, bem como dos meios ou das
ações necessárias para tanto. A ética limita-se a informar os postulados gerais
(typos) do bem supremo realizável pelo homem, sem fazê-lo de maneira certa
e determinada.
O procedimento tipológico confere-lhe o caráter de ciência e diferencia-
se da phrónesis, que não pode ser uma ciência, na medida em que extrai do
ethos os princípios do raciocínio prático para determinar, no caso concreto,
a ação que convém ser feita para viver bem nas circunstâncias contingentes.
Ao passo que a filosofia prática procura justificar os fins das virtudes éticas,
refluindo-os a uma concepção normativa da vida boa e descreve os atributos
do raciocínio prático com o qual o sábio aplica às situações os fins virtuosos
que definem a vida boa.
Logo, conclui-se facilmente que a filosofia prática aristotélica, ao
contrário da filosofia platônica do Bem, é perfeitamente compatível com
o ethos da polis e os éndoxa. E o filósofo prático não se limita a observar a
realidade empírica e comentá-la, digamos, como um sociólogo nos dias atuais:
ele vai além, pois compreende o ethos da polis, submete-o a uma argumentação
dialética e diaporética, identifica uma concepção normativa de vida boa e,
nessa tarefa, acaba por ser um crítico do mesmo ethos, buscando aprimorá-lo.
A distinção entre sabedoria prática (phrónesis) e filosofia ética requeria
um giro copernicano em relação à posição platônica: se a justiça era considerada
primeiro na polis e depois na alma, Aristóteles, ainda que concordasse com
a máxima platônica de que o regime da polis e de suas leis educavam o
caráter moral e as excelências do cidadão, inverte a mão de direção e inicia a
consideração da justiça pela vida boa dos cidadãos, prescindindo-a do regime
político ao qual estava afeta, a despeito do benefício decorrente de seus efeitos
pedagógicos na situação singular de cada cidadão.
Nessa consideração, a ideia de justo natural foi posta sobre a essência
imutável dos seres. Essa ideia, segundo já exposto, não é transcendente, mas
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 133

imanente e a forma, na visão aristotélica, era o princípio que determinava o


modo de ser, o fim ao qual tende o ser, sua essência. Se há uma essência comum
a uma dada categoria de seres, como o homem, a universalidade dessa essência
demanda um comportamento definido, expresso em imperativos naturais e,
no que toca ao agir social, em imperativos moldados por um justo natural.
É o conceito teleológico de natureza. Por conseguinte, ao lado de um
direito – universal e imutável – ligado às exigências naturais do homem,
Aristóteles propôs um outro âmbito normativo humano: o direito da cidade,
de caráter contingente e variável, com a função de prescrever o direito positivo
relativo às coisas e às relações entre os homens no seio da polis. Aquele direito
correspondia ao justo por natureza; este, por sua vez, consistia na representação
do justo legal e, necessariamente, por aquele devia ser balizado14.
Nessa mesma consideração, Aristóteles situou o problema do justo
natural no campo da vida boa cm si mesma, entendida como vida humana
virtuosa, o locus, por excelência, da phrónesis, o saber prático exercitado pelo
indivíduo na condução de uma vida boa e feliz: uma ética que é vista sob
o ângulo do agente na direção do fim por ele realizado, exercitando sua
sabedoria prática.
Como consequência, na filosofia aristotélica, a justiça, a ética, a prudência
e a vida boa são conceitos entrelaçados que desembocam na felicidade. E onde?
No mundo da polis, um mundo em que a política representa a expressão mais
existencial do homem, enquanto se dedica ao plano do agir.
Na tarefa de condução dos destinos da polis, o homem grego vê-se
inserido no meio das relações entre filosofia prática e filosofia política. Para
Aristóteles, a ética assume uma função normativa, pois estabelece o fim em
ordem do qual devem ser constituídos os regimes políticos e as leis e, como
somente pode ser realizado no âmbito da polis, a especulação ética deve
ser complementada por uma investigação sobre uma constituição da polis
que propicie efeito pedagógico junto à tarefa singular de cada cidadão em
auferir as virtudes necessárias para aquele mesmo fim. E, qualquer que fosse
a constituição, ela deveria assegurar um campo fértil para a realização dos
ditames de um justo natural por intermédio do justo legal.
E Aristóteles resolve escrever A Política, um verdadeiro tratado sobre
teoria geral do Estado, no qual o Direito assume uma posição de destaque,

14
Essa antinomia foi expressa por Aristóteles em “Ética a Nicômaco” (L. V, 7, 1134 b 18-23 e 24-28):
“O justo vivido na comunidade política (politikon dikaíon), ou é por natureza, ou é por lei. É justo por
natureza (fysikon dikaíon), o que tem validade em toda parte e ninguém está em condições de o aceitar
ou rejeitar. O justo legal (nomikón dikaíon) é indiferente se, no princípio, admite diversos modos de
formulação, mas, uma vez estabelecido seu conteúdo, ordena-se como tal e não é mais indiferente
(...) Alguns pensam que a justiça é só por convenção, porque o que é por natureza é imutável e tem o
mesmo poder em toda parte – por exemplo, o fogo que arde aqui e na Pérsia - , por outro lado, veem a
justiça sempre a alterar-se”. Em “A Retórica” (L. I, 1368 b-1377), Aristóteles retoma, com outro enfoque,
a mesma antinomia.
134 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

ainda que, naquela época, não existisse uma palavra própria para mencioná-
la, porque o conceito fundia-se, essencial e intuitivamente, na noção universal
de justo: como o fogo que arde na Grécia e na Pérsia.

Conclusão
O problema do justo é uma herança da antiguidade grega, cuja sociedade
era dominada pelo pensamento de que existência humana se baseia numa lei
natural, precedente, universal e de validade perene. As palavras de Antígona,
diante de um inquisitivo Creonte, no seio de uma obra de literatura, de que
existem leis não escritas e imutáveis, que não são nem de ontem, nem de hoje,
mas têm uma origem imemorial, é um sinal inequívoco da consciência desse
problema.
Em que pese a particular posição dos sofistas, pensamos que a
afirmação de Antígona define magistralmente o modo de sentir a tradição
da Hélade quanto ao problema da justiça, cujos influxos, mais tarde, não só
repercutiriam, mas influenciaram decisivamente a análise do mesmo problema
pelos jurisconsultos romanos, pelos padres da Patrística e, alguns séculos mais
tarde, pelos filósofos da Escolástica.
No pensamento contemporâneo, a tradição grega, ao lado do legado do
Direito Romano, pensamos, poderia ser um virtuoso e fecundo caminho para a
inquisição do problema da justiça nos dias atuais. O aporte epistemológico do
justo natural serviria de firme ponto de apoio axiológico para a sustentação do
edifício do Direito, porque as outras vias de compreensão do mesmo problema
estão chegando ao limite da inoperância.

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136 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
PRINCÍPIO DA SIMETRIA: A RESTRIÇÃO DO
PODER CONSTITUINTE DOS ESTADOS MEMBROS
FACE A SUA APLICAÇÃO NÃO PONDERADA

RAISA DUARTE DA SILVA RIBEIRO1


Resumo
O princípio da simetria alimenta um conceito de caráter genérico que se funda na Constituição
Federal como parâmetro de validade para a autoridade constituinte decorrente e para os atos
normativos estaduais, assim como para a Lei Orgânica e a legislação municipal. Qualquer
norma legislativa que cause um distanciamento do equilíbrio federativo regulado pela
Constituição Federal importa em um desvio do princípio da simetria. O presente trabalho
tem como escopo analisar a Teoria do Poder Constituinte, demonstrando como a aplicação
desmedida do Princípio da Simetria aplicado na construção das Constituições Estaduais acaba
enrijecendo o seu núcleo central, padronizando os seus textos.

PALAVRAS-CHAVE: Federação; Poder Constituinte; Limitações; Simetria.

Poder Constituinte e Poder Constituído


Desde tempos remotos, a sociedade sentia a necessidade de se organizar
através de leis estruturais de organização do poder, que se diferenciavam
das outras normativas por sua superioridade. A idéia de um poder capaz de
organizar a vida social e política, superior as demais normativas do Estado,
que o institui e modifica, foi teorizada apenas na Idade Moderna, sendo
denominada como Teoria do Poder Constituinte.
Segundo Paulo Bonavides:

O poder constituinte e a sua teoria são coisas distintas. Poder


constituinte sempre houve, porque jamais deixou de haver o ato
de uma sociedade estabelecendo os fundamentos de sua própria
organização. O que nem sempre houve, porém, foi uma teoria desse
poder (BONAVIDES, Paulo, 2003, p. 12.)

O abade Emmanuel Joseph Sièyes foi o precursor da teorização do


Poder Constituinte. No curso da Revolução Francesa, Sièyes escreveu o
opúsculo clássico Qu’est-ce que Le Tiers État?, no qual apresentou os anseios do
Terceiro Estado, classe socialmente oprimida e politicamente desprestigiada,
identificando-a como Nação. Ao desenvolver a teoria, Sièyes realiza a distinção
básica entre poder constituinte e poder constituído. O poder constituinte,
sendo a vontade da Nação, seria ilimitado e incondicionado, devendo-se
pautar apenas no direito natural; enquanto o poder constituído seria limitado
e condicionado pelo primeiro.

1
Estudante de Direito do 11º Período na Universidade Federal Fluminense, ex-bolsista de iniciação
científica da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), orientada pelo
professor Gustavo Sampaio Telles Ferreira.
138 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

O poder constituinte consiste no poder de gerar e manter a Constituição


e o poder constituído, de modificar a Constituição, através de mecanismos
formais ou informais de alteração do texto. Neste passo, denomina-se Poder
Constituinte, o Originário, que possui as competências de gerar, criar e manter
a vigência da Constituição, originando um novo ordenamento jurídico, que
se diferencia das outras modalidades de poderes pelas suas características
superiores. Diz-se que o poder constituinte é inicial, permanente, ilimitado,
soberano e incondicionado.
O poder constituinte originário é inicial porque inaugura uma nova
ordem jurídica com a criação de uma nova Constituição. A normativa que
antes existia, se for contrária a nova ordem jurídica inaugurada, será revogada;
enquanto a normativa que não conflita com a nova ordem constitucional será
recepcionada2. Dele derivam todos os demais poderes de direito positivo.
É permanente porque o poder constituinte não se basta com a sua obra,
permanecendo latente dentro do novo ordenamento jurídico. É ilimitado
porque não está sujeito a nenhum limite imposto pelo direito anterior ou por
qualquer outra normativa. É soberano porque não é subordinado a nenhum
fator externo para a sua manifestação. E é incondicionado porque o seu exercício
não se condiciona a formas pré-fixadas ou procedimentos pré-estabelecidos.
Já o poder constituído é classificado em derivado, difuso e decorrente. As
competências destes poderes são reguladas pelo poder constituinte originário,
por ele limitado, sendo, portanto, poderes de direito. O poder constituinte
derivado consagra a alteração formal do texto constitucional, consistindo
no poder de modificar a Constituição para adaptá-la às novas realidades,
de forma a evitar que suas disposições tornem-se obsoletas, podendo se
manifestar através do poder de reforma e do poder revisão constitucionais,
ambos efetivados por meio de emendas à Constituição.
O poder constituinte derivado é secundário, limitado e condicionado.
Secundário porque deriva do poder constituinte originário, sendo ele seu
parâmetro de validade. Limitado porque deve se guiar pelo que dispõe a
Constituição Federal, não podendo dispor de forma contrária a ela nem
modificar o que lhe é vedado. E condicionado porque o seu exercício está sujeito
as normas fixadas na Constituição Federal. As emendas à Constituição somente
podem ser feitas obedecendo às formas e os parâmetros estabelecidos pelo
constituinte originário. A doutrina costuma a sistematizar quatro limitações
ao poder de emenda constitucional: limitação temporal, circunstancial, formal
e material.
As limitações temporais são realizadas com o objetivo de conferir

2
As normas recepcionadas ganham sempre um novo fundamento de validade, no caso a nova
Constituição, e, em determinados casos, podem ganhar uma nova natureza jurídica. Por exemplo, a Lei
Complementar nº. 40/85 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com a natureza jurídica de
lei ordinária. Dá-se a este fenômeno o nome de “descomplementarização”.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 139

estabilidade ao texto constitucional por um determinado tempo, vedando a


sua alteração antes do período mínimo permitido. Os limites temporais: “se
destinam, normalmente, a conter reações imediatistas à nova configuração institucional
e a permitir que a nova Carta possa ser testada na prática por um tempo razoável”
(BARROSO, 2009, p. 148).
Nesta mesma perspectiva, Cármen Lúcia Antunes Rocha defende:

É que as mudanças normativas de base introduzidas por uma


Constituição podem sofrer insatisfações e até mesmo sobressaltos
que, no calor da hora, podem facilitar manifestações de apoio à
reforma, sem que isto indique que ela se produzirá em benefício de
toda a sociedade. É preciso, então, que as normas constitucionais
se apliquem, que os seus resultados sejam avaliados, para que
somente então sobrevenha o seu aperfeiçoamento (ROCHA, 1993,
p. 173-174).

As limitações circunstanciais são aquelas realizadas com o objetivo de


evitar que o texto constitucional seja modificado em certas circunstâncias de
anormalidade institucional ou em momentos de crise.
As limitações formais são aquelas que impedem a modificação do texto
constitucional sem a observância do procedimento necessário. As limitações
formais englobam, normalmente, regras diferenciadas em relação à iniciativa
de propositura da emenda, ao quorum de votação das propostas e às instâncias
de deliberação3.
Já as limitações materiais são aquelas que, tendo em vista o núcleo
essencial, os princípios basilares e estrutura da Constituição, impedem a
alteração de certas matérias. Os limites materiais podem ser explícitos ou
implícitos. Os primeiros referem-se aquelas matérias nas quais a Constituição
explicitamente diz expressamente que não podem ser modificadas; enquanto
os segundos remetem as matérias que não estão expressamente previstas
pela Constituição, mas que tem sua alteração vedada, como é o caso da
possibilidade de emenda que altere o próprio processo revisional, o titular do
poder constituinte, a alteração ou supressão dos limites matérias explícitos
(FERRARI, 2003, p. 26-31).
O poder constituinte difuso refere-se às alterações informais da
Constituição, que consistem na modificação do sentido do seu texto, sem, no
entanto, alterar a sua redação. A alteração informal da Constituição ocorre
pela Mutação Constitucional, sendo esta, segundo a classificação realizada
por George Burdeau, outra modalidade de poder constituído:

Se o poder constituinte é um poder que faz ou transforma as


constituições, deve-se admitir que sua atuação não se limita às

3
Vide Barroso, Luís Roberto, 2009, p. 157.
140 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

modalidades juridicamente disciplinadas de seu exercício.(...)


Há um exercício quotidiano do poder constituinte que, embora
não esteja previsto pelos mecanismos constitucionais ou pelos
sismógrafos das revoluções, nem por isso é menos real. (...) Parece-
me, de todo modo, que a ciência política deva mencionar a existência
desse poder constituinte difuso, que não é consagrado em nenhum
procedimento, mas sem o qual, no entanto, a constituição oficial
é visível e não teria outro sabor que o dos registros de arquivo
(BURDEAU apud BARROSO, 2009, p. 127).

A mutação constitucional, por ser um mecanismo de alteração da


Constituição, assim como a Reforma Constitucional, tem limites que devem
ser obedecidos, tais como: o alcance semântico da norma constitucional, o
respeito aos princípios fundamentais que estruturam o Estado, e a ocorrência
de lapso temporal suficiente para que se visualize que a alteração da realidade
tornou-se impositiva para a mudança da norma constitucional.
Já o poder constituinte decorrente é uma modalidade anfíbia de Poder
Constituinte concedida aos Estados Membros para a elaboração de suas
Constituições, possuindo grandes peculiaridades.

Poder Constituinte dos Estados Membros


Aspectos Fundamentais do Poder Constituinte Decorrente na Federação
Brasileira.
No Estado Federal, por sua estrutura dimensional e por seu elevado
grau de descentralização, surge uma forma peculiar de poder constituinte,
destinado a organizar os Estados Federados. Os Estados Federados, dotados
de autonomia, necessitam se organizar política e administrativamente, de
forma a corresponder os anseios da sua população local.
Neste sentido, Ana Cândida da Cunha Ferraz:

Um Estado pressupõe, como decorrência lógica, a auto-organização


através de uma Constituição; e uma Constituição supõe um poder
capaz de elaborá-la. Isso significa que tudo quanto for matéria de
uma Constituição requer o exercício do Poder Constituinte me
qualquer tempo ou circunstância (FERRAZ, 1979, p. 60).

Este poder constituinte capacitado para organizar a estrutura dos Estados


Federados, instituído pelo Poder Constituinte Originário, é denominado como
Poder Constituinte Decorrente ou Poder Constituinte dos Estados Membros.
A titularidade do Poder Constituinte Decorrente, assim como a do Poder
Constituinte Originário e Decorrente, segundo a teoria moderna, é dada ao
povo. No entanto, neste caso, o povo é restringido à população que reside e
exerce a sua cidadania dentro da circunscrição do referido Estado Membro.
No Brasil, a nossa Federação é multidimensional, sendo constituída por
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 141

União Federal, Estados Federados, Distrito Federal e Municípios, conforme


previsto nos artigos 1° e 18 da Constituição Federal de 1988. Todos os entes da
nossa Federação são dotados de autonomia, sendo esta um conjunto formado
pela auto-organização, auto-legislação, auto-administração e de autogoverno.
O art. 25 da nossa Carta Maior, ao dispor que: “os Estados organizam-
se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios
desta Constituição”, está prevendo as características da auto-organização e
da auto-legislação. Assim, a capacidade auto-organização se dá através da
elaboração de uma Constituição, nos casos da União e dos Estados Federados,
ou de Lei Orgânica, no caso do Distrito Federal e dos Municípios. Segundo
Anna Cândida da Cunha Ferraz: “o primeiro elemento da autonomia estadual é
a capacidade atribuída a unidade federada para dar-se uma Constituição particular”
(FERRAZ, 1979, p. 54). Assim, o poder de auto-organização nada mais é que o
exercício do poder constituinte decorrente4.
Por fim, os princípios de organização dos poderes estaduais,
especialmente os constantes nos artigos 27, 28 e 125 da Constituição Federal,
que consagram o Poder Legislativo, a ser organizado pelas Assembléias
Legislativas, o Poder Executivo, a ser exercido pelo Governador, e o Poder
Judiciário, a ser exercido pelos Tribunais de Justiça e magistrados respectivos,
consagram a capacidade de autogoverno (SILVA, 2005, p. 608-609).
No caso do Distrito Federal, a sua Lei Orgânica tem como parâmetro
de validade a Constituição Federal e é considerada com natureza de
verdadeira constituição local5. Desta forma, o poder constituinte decorrente
também é atribuído à Lei Orgânica do Distrito Federal. Diferente disto
ocorre nos Municípios, que, apesar de terem passado a categoria de entes
federativos com a Constituição Federal de 1988, devem obedecer dois graus
de hierarquia, quais sejam, obedecer às disposições da Constituição Estadual e
da Constituição Federal, não havendo consagrado então, na órbita municipal,
o que denominamos poder constituinte decorrente.
Quanto aos Territórios Federais, apesar de não mais existirem na nossa
Federação, apesar de passiveis de serem criados, também não lhes é dado o poder
constituinte decorrente. Os Territórios Federais não são entes da Federação, não
sendo dotados de autonomia nem de poder constituinte decorrente.
No Brasil, quem exerce a titularidade do Poder Constituinte Decorrente

4
FERRARI, Sérgio, 2003, p.122-123, faz uma interessante observação acerca dos momentos históricos
em que o poder de auto-organização foi efetivamente exercido pelos Estados Membros: somente em
três períodos históricos a capacidade de autoconstituição foi de fato exercida no Brasil, quais sejam, de
1891 a 1930, de 1947 a 1964 e desde a promulgação da Constituição de 1988. Conclui ele que dos 110
anos de República, mais de 37 decorreram sem constituições estaduais. Este dado serve para nos fazer
refletir acerca da autonomia dos Estados Membros no desenrolar do nosso federalismo.
5
Segundo o voto do Relator Ministro Ricardo Lewandowski, no Recurso Extraordinário 577.025,
Plenário, DJE 06.03.2009.
142 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

é a Assembléia ou Convenção Constituinte criada para tal finalidade6.

Modalidades
O Poder Constituinte Decorrente, que é o poder de organização dos
Estados Federados, possui duas modalidades: Poder Constituinte Decorrente
Inicial ou Institucionalizador e Poder Constituinte Decorrente de Reforma
Estadual ou de Segundo Grau. Estas duas modalidades se diferenciam pela
finalidade na qual se destinam. O Poder Constituinte Decorrente Inicial possui
como finalidade instituir, criar a Constituição Estadual, enquanto o Poder
Constituinte Decorrente de Segundo Grau se destina a modificar, reformar,
total ou parcialmente, a Constituição Estadual.
Note que, diferente do Poder Constituinte Originário e Derivado,
não há hierarquia entre o Poder Constituinte Decorrente Institucionalizador
e o Poder Constituinte Decorrente de Segundo Grau, pois ambos estão
localizados dentro do Poder Constituinte Decorrente, possuindo, ambos,
como fundamento de validade, a Constituição Federal.

Características
São características básicas de qualquer modalidade de Poder Constituinte
Decorrente: a derivação, a subordinação, a limitação e o condicionamento. A
derivação decorre do fato das modalidades do Poder Constituinte dos Estados
Membros resultarem do Poder Constituinte Originário, tendo nele o seu
fundamento de validade. Sendo, por isto, um poder instituído ou poder de
direito.
Segundo Guilherme Peña de Moraes,

(…) a derivação denomina que a Constituição da República


estabelece o modo de elaboração da Constituição do Estado,
mediante a definição do órgão competente, procedimento adequado
e declaração prescritiva a ser veiculada pelas normas constitucionais
estaduais (MORAES, 2008, p. 43).

A subordinação deriva da necessidade de obediência as normativas


previstas na Constituição Federal. O Poder Constituinte Decorrente é
subordinado à obra do Poder Constituinte Originário, devendo observar
quando da criação e da alteração do seu texto constitucional estadual as regras
previstas na Constituição Federal.
A limitação decorre das imposições realizadas pela Carta Federal ao
poder de instituição e de alteração do texto constitucional estadual. O Poder
Constituinte Decorrente Institucionalizar possui limites fixados através
dos princípios constitucionais sensíveis ou enumerados, dos princípios
6
Para uma melhor visualização sobre os sistemas de Revisão Constitucional Estadual, vide FERRAZ,
Ana Cândida da Cunha, 1979.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 143

constitucionais estabelecidos e dos princípios constitucionais extensíveis


(SILVA, 2005, p. 611-617), enquanto o Poder Constituinte Decorrente de
Reforma Estadual se submete, por simetria, aos princípios constantes no artigo
60, nos parágrafos primeiro e quarto da Constituição Federal.
O condicionamento decorre do fato do seu exercício depender da
obediência às formas ou condições fixadas pela Constituição Federal para
sua manifestação, conforme previsto pelo art. 11 do ADCT e, por similitude,
ao previsto no art. 60, parágrafos segundo, terceiro e quinto da Constituição
Federal.

Supremacia da Constituição Estadual


Assim como o Poder Constituinte Originário institui uma nova ordem
jurídica dentro do Estado Federativo, o Poder Constituinte Decorrente Inicial
institui uma nova ordem jurídica interna no Estado Federado, o que implica
na supremacia da Constituição Estadual frente às demais normas internas. A
supremacia constitucional, segundo Sérgio Ferrari: “traduz a concepção de que
a Constituição está no ápice do ordenamento jurídico, sendo superior aos demais atos
normativos” (FERRARI, 2003, p. 207).
Assim Poder Constituinte Decorrente Institucionalizador, apesar de
ser subordinado à Constituição Federal, é também inicial, pois inaugura uma
nova ordem jurídica dentro do Estado-Membro, devendo as demais normas
infralegais criadas dentro de este âmbito territorial estadual obedecer a sua
normativa, retirando da Constituição Estadual o seu fundamento de validade.
Devido à supremacia da constitucional estadual, quando do advento de
uma carta constitucional estadual, as normas internas que forem condizentes
com os valores, preceitos, dispositivos e princípios da nova Constituição
são recepcionados; enquanto as normas contrárias materialmente à nova
Constituição são revogadas. A supremacia da Constituição Estadual está
consagrada no artigo 125, § 2º, da nossa Constituição Federal, nos seguintes
termos:

Art. 125. (...)


§ 2º - Cabe aos Estados a instituição de representação de
inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou
municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição
da legitimação para agir a um único órgão.

Teoricamente, a supremacia constitucional estadual é consagrada pelo


instituto da representação de inconstitucionalidade, na medida em que as
diversas normas estaduais e municipais oriundas na circunscrição territorial
na qual o texto constitucional estadual tem aplicação devem ser criadas em
conformidade com as disposições da Carta Estadual, sob pena de ser declarada
a sua inconstitucionalidade.
144 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Na prática, no entanto, a representação de inconstitucionalidade


demonstra os grandes problemas, não só da supremacia da constituição
estadual, como também da própria aplicação do poder constituinte decorrente,
limitado, muitas vezes, por diversos princípios e normas impostas pela nossa
Carta Maior.
Na doutrina de Sérgio Ferraz:

A aplicação do princípio da supremacia da Constituição à


constituição estadual revela duas dificuldades de razoável monta:
a possibilidade de declarar a inconstitucionalidade da própria
constituição estadual, ou parte dela, inclusive por vício formal
do seu texto originário, e o condicionamento de seu conteúdo às
normas legislativas do Estado-Membro (FERRARI, 2003, p. 209).

Aliado a este fato, o princípio da supremacia aplicado à constituição


estadual encontra empecilhos na concorrência dos parâmetros de controle
estadual e federal, pois há situações em que há concorrência concorrente de
controle de constitucionalidade por órgãos federais e estaduais.
Neste passo, duas questões, derivadas da tramitação paralela de ações
diretas perante o Tribunal de Justiça e a Suprema Corte, associadas à questão
das normas constitucionais federais de reprodução obrigatória pelos Estados-
membros, tomam importante relevo: a suspensão do processo no âmbito da
Justiça Estadual até a deliberação do assunto pelo STF e a possibilidade de
impetração de recurso extraordinário em decisão do Tribunal de Justiça, em
sede de representação de inconstitucionalidade, que aborde sobre norma de
reprodução obrigatória de forma incompatível com o que prevê a Constituição
Federal.
Quanto à primeira questão, o STF decidiu, através da orientação
manifestada na ADI-MC 1.423, que em caso de propositura de ação direta
de inconstitucionalidade perante o STF e impetração de representação de
inconstitucionalidade perante o TJ do Estado-membro, tendo por base norma
constitucional federal de reprodução obrigatória no plano estadual, o processo
na Justiça Estadual deverá ser suspenso até a deliberação do assunto pela
Corte Constitucional Federal.
Quanto à segunda questão, o STF, através da Reclamação 3837,
decidiu que quando a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado-
membro, que aborde sobre normas de reprodução obrigatória, não estiver
em consonância com o que dispõe a Carta Constitucional Federal, poderá
7
Sobre esta decisão, Gilmar Ferreira Mendes aponta que ela: “forneceu as novas bases do sistema
de controle direto de constitucionalidade do direito estadual e municipal perante o Tribunal de Justiça,
assentando a autonomia dos parâmetros de controle e a possibilidade de que a questão suscitada
perante o Tribunal local se converta numa questão constitucional federal, especialmente nos casos de
aplicação das chamadas normas de reprodução obrigatória por parte do Estado-membro” (MENDES;
COELHO; BRANCO, 2009, p. 1369).
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 145

ser submetida a questão constitucional estadual à Suprema Corte, através do


mecanismo do recurso extraordinário.
Desta forma, nota-se que a supremacia das Constituições Estaduais
ocorre com reservas, devido ao fato do próprio poder constituinte decorrente
ser limitado, de diversas maneiras e por diferentes institutos, pela Constituição
Federal8.

Limites ao Poder Constituinte Dos Estados Membros


O Poder Constituinte Decorrente Institucionalizador e o de Reforma
Estadual, por serem criações do Poder Constituinte Originário, sofrem
limitações impostas pela Constituição Federal. De acordo com Ana Cândida
da Cunha Ferraz: “(…) o Poder Decorrente é um Poder juridicamente limitado.
Nasce, vive e atua com fundamento na Constituição Federal que lhe dá supedâneo;
é um poder, portanto, sujeito a limites jurídicos, impostos pela Constituição Maior”
(FERRAZ, 1979, p. 130).

Limitações decorrentes dos princípios constitucionais sensíveis, dos


princípios constitucionais estabelecidos e dos princípios constitucionais
extensíveis
Ana Cândida da Cunha Ferraz analisa duas limitações – uma de ordem
negativa e outra de ordem positiva - do Poder Constituinte Decorrente, que
derivam do fato das Constituições Estaduais estarem em consonância com
a Constituição Federal. A limitação negativa para o Poder Constituinte
Decorrente deriva do fato das Constituições Estaduais não poderem contrariar
as disposições da Constituição Federal; já a limitação positiva é oriunda do fato
de que as Constituições Estaduais, dentro de seus âmbitos territoriais, devem
aplicar os preceitos, os fins e o espírito da Constituição Federal (FERRAZ,
1979, p. 133).
Seguindo a doutrina de José Afonso da Silva, podemos dizer as
limitações impostas à instituição da Constituição Estadual são provenientes
dos princípios constitucionais sensíveis, dos princípios constitucionais
estabelecidos e dos princípios constitucionais extensíveis (SILVA, 2005,
p.611-617). Os princípios constitucionais sensíveis são aqueles apontados,
demonstrados explicitamente pela Constituição Federal nas alíneas do inciso
VII do art.34, cuja sua não observância é capaz de suscitar a intervenção federal
nos Estados.
Qualquer Constituição Estadual que institua normas em
desconformidade com estes princípios poderá ensejar a representação do
Procurador-Geral da República para a decretação da intervenção federal e para

8
Para uma visão crítica acerca do princípio da supremacia da constituição estadual, vide FERRARI,
Sérgio, 2003, pp.207-219.
146 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

a impetração de ação interventiva, nos termos no art. 36, III, CF. Os princípios
constitucionais estabelecidos são, nas palavras de mencionado doutrinador,
aqueles que:

(…) limitam a autonomia organizatória dos Estados; são aquelas


regras que revelam, previamente, a matéria de sua organização e as
normas constitucionais de caráter vedatório, bem como os princípios
de organização política, social e econômica, que determinam o
retraimento da autonomia estadual, cuja identificação reclama
pesquisa no texto da Constituição (SILVA, 2005, p. 613).

Estes princípios constitucionais estabelecidos podem gerar três espécies


de limitações: expressas, implícitas e decorrentes do sistema constitucional9. As
limitações expressas ao Constituinte Estadual são aquelas que explicitamente
proíbem certos atos ou procedimentos a serem adotados pelos Estados
(natureza vedatória) ou determinam a inclusão de determinadas normas no
texto constitucional estadual (natureza mandatória).
As limitações implícitas podem ter também natureza vedatória ou
mandatória, sendo que em ambas sua expressão na Carta Constitucional não
é determinada de forma clara, devendo-se analisar em pormenores o texto
constitucional federal para desvendá-las. Assim, simetricamente, se não pode
haver determinadas alterações na Constituição Federal (limitações temporais,
circunstanciais, formais e materiais), de forma a assegurar o núcleo central
de suas normas, também não pode havê-la nas Constituições Estaduais. Já as
limitações decorrentes do sistema constitucional são oriundas pelos princípios
derivados do sistema constitucional adotado.
Por fim, os princípios constitucionais extensíveis são aqueles que
demonstram as regras de organização da União cuja aplicação seja obrigatória
pelos Estados Membros. O princípio da simetria é um desdobramento dos
princípios constitucionais extensíveis10. Neste contexto, cabe ressaltar a
elaboração do doutrinador Raul Machado Horta, que realizou a distinção entre
as normas de reprodução e as normas de imitação (HORTA apud FERRARI,
2003, p. 132-133).
Segundo o doutrinador, as normas centrais:

(…) designam um conjunto de normas constitucionais vinculadas


à organização da forma federal de Estado, com missão de manter
e preservar a homogeneidade dentro da pluralidade das pessoas
jurídicas, dos entes dotados de soberania na União e de autonomia

9
Em seu livro, José Afonso da Silva, 2005, p.613-617, colhe vários exemplos no texto constitucional
federal de aplicação dos princípios constitucionais estabelecidos.
10
Em posição oposta: José Afonso da Silva entende que estes princípios teriam sido praticamente
eliminados pela CF/88, de forma a prestigiar o nosso federalismo, restando apenas à regra do art. 93,
V. SILVA, José Afonso, 2005, p.611-612.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 147

nos Estados-membros e nos Municípios, que compõem a figura


complexa do Estado Federal
(…) servem aos fins da participação, da coordenação e da autonomia
das partes constitutivas do Estado Federal. Distribuem- se em
círculos normativos, configurados na Constituição Federal, para
ulterior projeção nas Constituições dos Estados (HORTA, 1997, p.
175-178).

As normas de reprodução são aquelas que reproduzem no texto


constitucional estadual as normas centrais da Carta Constitucional Federal
de forma compulsória, sendo obrigatória a sua observância pelos Estados
Membros. Neste sentido, já se pronunciou o STF:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO.


NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais
da Constituição Federal: essas normas são de reprodução
obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque,
reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações
370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não
constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata
de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não
tendo força normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade
julgada improcedente.
(grifei - STF – ADI 2076/AC, Tribunal Pleno, Relator Ministro
Carlos Velloso, Julgamento: 15/08/2002, Publicação: DJ 08-08-2003
PP-00086 EMENT VOL-02118-01 PP-00218)

Já as normas de imitação são aquelas adotadas de forma voluntária


pelo constituinte estadual da Carta Federal, copiando determinadas normas
constitucionais federais no texto constitucional estadual por iniciativa e
vontade próprias. Ademais, é importante frisar que, por serem oriundos do
Poder Constituinte Originário, as duas modalidades do Poder Constituinte
Decorrente estão localizadas no mesmo patamar hierárquico.
Neste sentido, cabe ressaltar que a jurisprudência do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro vem firmando o entendimento de ser inadmissível o
controle de constitucionalidade de reforma estadual em face da Constituição
do próprio Estado, por não haver hierarquia normativa entre eles11.
Conforme a doutrina de Georges Burdeau: “(...) este termo poder de revisão
não implica dizer que a autoridade dele revestida não é competente a não ser para
certas disposições. Ela pode, igualmente, estabelecer uma Constituição inteiramente
nova” (BURDEAU apud FERRAZ, 1979, p. 221).
Assim, por não haver hierarquia, o Poder Constituinte de Segundo

11
Vide: TJRJ, Processo nº 1999.007.00024, Relator Desembargador Sylvio Capanema de Souza, J.
16.08.1999, DORJ 28.08.1999.
148 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Grau pode modificar integralmente a Constituição Estadual, devendo apenas


se pautar pelos limites impostos pela Constituição Federal.

Limitações decorrentes do princípio da simetria


Conceito e Origem
O princípio da simetria, desdobramento dos princípios constitucionais
extensíveis, se traduz em um conceito de caráter genérico, no qual vislumbra
a Constituição Federal como parâmetro de validade para a autoridade
constituinte decorrente e para os demais atos normativos estaduais, assim
como para a Lei Orgânica e a legislação municipal. Através dele: “os Poderes
dos Estados, Municípios e Distrito Federal estão subordinados a regras de organização
da União extensíveis, de modo simétrico, às entidades federativas” (MORAES, 2008,
p.478). Assim: “o princípio da simetria grosso modo significa que a Constituição
federal serve de moldura de validade para a Constituição e para certos atos normativos
estaduais” (FERREIRA, 2010, p.12).
O princípio da simetria antecede a nossa Carta Constitucional atual,
sendo concebido no seio da Constituição de 1967, que em seu artigo 13, III
dispunha:

Art. 13 - Os Estados se organizam e se regem pelas Constituições


e pelas leis que adotarem, respeitados, dentre outros princípios
estabelecidos nesta Constituição, os seguintes: (…)III - o processo
legislativo;

Pela análise deste dispositivo, pode-se extrair que as regras relativas ao


processo legislativo federal deveriam ser aplicadas por simetria ao processo
legislativo estadual, surgindo aí o berço do princípio da simetria. Desta
forma, se a Constituição Federal atribuísse, por exemplo, ao Presidente da
República a iniciativa de propor medidas provisórias, ao nível estadual, deve
o Governador do Estado fazê-lo.
A Constituição Federal, no entanto, não realizou a mesma exigência de
aplicação obrigatória do processo legislativo federal pelos Estados. No entanto,
apesar de não ocorrer previsão constitucional, o STF continuou aplicando o
princípio da simetria, nesta e em outras matérias, como parâmetro (NETO,
2008).

Aplicação do Princípio da Simetria após o advento da CF/88.


Segundo Cláudio Pereira de Souza Neto, o princípio da simetria passou
a ser extraído, na nossa Carta Maior em vigor, do princípio da separação de
poderes, salientando que: “como limite ao poder constituinte decorrente, a separação
de poderes tem funcionado não como princípio, mas como sistema” (NETO, 2008).
A aplicação do princípio da simetria, em regra, deve ser feita de forma
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 149

ponderada e excepcional, devido ao fato do seu emprego demasiado restringir


a autonomia dos Estados e do Município, centralizando grande parte do poder
federativo na União Federal. Assim, princípio da simetria deve ser utilizado
sempre que a aplicação de normas diversificadas entre os entes da federação
causem um desvio no equilíbrio federativo.
Todavia, apesar da aplicação deste princípio dever ser realizada de
forma restrita, excepcional, o STF tem o aplicado como regra. Guilherme Peña
de Moraes, esquematizando a jurisprudência do STF, exemplifica as regras
constitucionais que, por simetria, são extensíveis aos Estados, Municípios e
Distrito Federal, no que tange ao Poder Legislativo, ao Poder Executivo e ao
Poder Judiciário (MORAES, 2008, p. 478-480).
Com relação ao Poder Legislativo, menciona as regras pertinentes ao
processo legislativo, a perda de mandado eletivo, a instituição de Comissão
Parlamentar de Inquérito e o controle externo, com o auxílio dos Tribunais de
Contas. No que tange ao Poder Executivo, relaciona a expedição de decretos, o
provimento de cargos públicos, a autorização prévia do Governador e do Vice-
Governador para a ausência do País e a submissão da persecução criminal a
controle legislativo.
E no que atenta ao Poder Judiciário, relata a eleição dos órgãos diretivos, a
reclamação para a preservação da competência dos Tribunais, as prerrogativas
funcionais e as garantias dos membros da Magistratura e a inamovibilidade,
irredutibilidade de subsídio e a vitaliciedade do cargo de juiz.
Pela rápida visualização das matérias submetidas à simetria ao
constituinte decorrente, podemos perceber que o campo de competência da
constituição estadual é restrito, tendo um estreito espaço para inovar, o que
acaba restringindo a autonomia dos Estados e dos Municípios em prol da
União Federal, tornando o nosso federalismo assimétrico12.

Problema das Constituições Estaduais Brasileiras: A padronização dos


Textos.
A pseudo-autonomia dos Estados Membros, ocasionada pelas limitações
impostas pelo constituinte originário, assim como pela aplicação não ponderada
do princípio da simetria, e pela centralização do nosso federalismo em torno
da União, é bem visualizada ao fazermos um estudo comparativo entre as
Constituições Estaduais em vigor e dos julgados do Supremo Tribunal Federal.
As Constituições Estaduais em vigor são praticamente uma cópia fiel uma das
outras, obedecendo à risca os dispositivos da Constituição Federal, tendo o
seu poder de criação praticamente petrificado. As inovações realizadas pelo
poder constituinte decorrente, em um número expressivo de casos, acabam
sendo declaradas inconstitucionais, sob o fundamento do desvio de simetria.

12
Acerca do nosso federalismo vide: RAMOS, Dircêo Torrecillas, 2000.
150 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Este fenômeno de padronização dos textos pelo Constituinte Decorrente


ocorre, em geral, nos Estados que possuem uma tendência federalista
centralizadora, como é o caso do nosso país. O Brasil, na época do Império,
era um Estado Unitário, passando adotar, posteriormente, o federalismo. Os
Estados Federados, agregados uns aos outros, com a adoção do federalismo,
se desagregaram. Todavia, o Estado Brasileiro não conseguiu se desagregar
no ponto exato para o bom funcionamento do federalismo, mantendo até hoje
a sua tendência centralizadora em torno do ente federal13.
Ao observar as 27 constituições oriundas do Poder Constituinte
Decorrente no campo da repartição das competências federativas, percebe-
se que apenas foram reproduzidas as normas sobre competências comuns e
concorrentes constantes na Constituição Federal, em raros casos estabelecendo
as suas competências privativas e gerais.
Conforme salientou Sérgio Ferrari: “(…) da Constituição Federal já se
extrai um modelo de Estado-membro totalmente constituído e quase integralmente
organizado. Se, hipoteticamente, um de nossos Estados-membros não tivesse elaborado
a sua constituição, seu funcionamento, além de possível, seria praticamente idêntico ao
dos demais” (FERRARI, 2003, p. 264).
A leitura de apenas uma constituição estadual de cada região já traduz
o que ocorre com os textos constitucionais federais em tema de repartição de
competências: a reprodução fiel das normas constitucionais federais e a sua
padronização.
Conforme manifestou-se Fernanda Dias Menezes de Almeida: “Ora, a
simplesmente reproduzir a Constituição da República – que a tanto quase se limitam
os Estados – seria preferível adotá-la de vez, sem perder tempo em aprovar suas cópias
fiéis” (ALMEIDA, 1987, p. 182). Assim, melhor foi a escolha foi a realizada
pelos constituintes decorrentes dos Estados de São Paulo, Mato Grosso,
Rio Grande do Sul e Alagoas que não abordaram as competências político-
administrativas, já que as mesmas estão elencadas na Carta Federal.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nos mostra que o
Estado, ao legislar em matérias político-administrativas que envolvam
também atribuição da União, tem suas leis declaradas inconstitucionais, sob o
fundamento de violar a Carta Federal neste tema14.

13
Por exemplo, o art. 22, I da Constituição Brasileira em vigor, que dispõe: “Art. 22. Compete
privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral,
agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; (...)”, demonstra uma tendência
bastante centralizadora da União Federal para dispor acerca de matérias jurídicas, deixando
a competência constituinte decorrente dos Estados Federados reservada poucas áreas do
Direito.

Neste sentido: ADI 3.251, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento 18-6-2007, Plenário, DJ de 19-10-2007;
14

ADI 2.257, Rel. Min. Eros Grau, julgamento 6-4-2005, Plenário, DJ de 26-8-2005; ADI 3.055, Rel.
Min. Carlos Velloso, julgamento 24-11-2005, Plenário, DJ de 3-2-2006; ADI 3.148, Rel. Min. Celso de
Mello, julgamento em 13-12-2006, Plenário, DJ de 28-9-2007; ADI 2.690, Rel. Min. Gilmar Mendes,
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 151

No que tange ao processo legislativo, a análise não é diferente. Neste


tema, inclusive, concentra-se a maior parte da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal na matéria de violação à simetria15. As cartas constitucionais
federais também são padronizadas, reproduzindo os ditames do constituinte
originário, sendo que qualquer alteração das normativas da Constituição
Federal é considerada desvio de simetria.
Apesar do artigo 13, III da antiga Constituição Federal, que previa a
reprodução obrigatória pelos Estados do processo legislativo federal, não ter
mais vigência, este dispositivo continua, na prática, sendo aplicado. Nota-se
que “inúmeras normas estaduais são declaradas inconstitucionais e as Constituições
dos Estados-Membros, em regra, não passam de uma imitação do modelo federal”
(FERREIRA, 2010, p. 2.).
No tema da fiscalização interna e externa, o problema é mais agravado
ainda. O constituinte decorrente reproduziu fielmente o disposto na
Constituição Federal, especialmente no que tange ao número de Conselheiros,
ao modo de sua aprovação e designação.

Conclusão
A teoria do Poder Constituinte consiste na divisão entre o poder
constituinte e os poderes constituídos, sendo o primeiro o poder de gerar uma
nova Constituição Federal enquanto o segundo se caracteriza e subdivide em os
poderes de modificar formal ou informalmente a Constituição e, na Federação,
os poderes de criar e alterar as constituições dos Estados Federados. Com o
advento da Constituição Federal de 1988, os Estados-Membros passaram a
autonomamente se organizarem, criando e alterando as suas constituições, de
forma a exercer o poder constituinte decorrente nas suas duas vertentes.
No entanto, pelas peculiaridades da teoria do Poder Constituinte
Decorrente, os Estados-Membros sofrem limitações na sua autonomia
federativa para a criação e modificação das matérias constitucionais. Estas
limitações são decorrentes dos princípios constitucionais sensíveis, dos
princípios constitucionais estabelecidos e dos princípios constitucionais
extensíveis, especialmente pela aplicação desmoderada do princípio da
simetria.

julgamento em 7-6-2006, Plenário, DJ de 7-6-2006; ADI 3.098, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento
em 24-11-2005, Plenário, DJ de 10-3-2006.
15
Ver: ADI 425/TO, Rel.  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Julgamento:  04/09/2002, Órgão Julgador: 
Tribunal Pleno, Publicação DJ 19-12-2003; ADI 3295/AM, Rel.  Min. CEZAR PELUSO,
Julgamento:  30/06/2011, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, PUBLIC 05-08-2011; ADI 1353/RN,
Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Julgamento:  20/03/2003, Órgão Julgador:  Tribunal
Pleno, Publicação DJ 16-05-2003; ADI 102/RO, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA,
Julgamento:  08/08/2002, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, Publicação DJ 29-11-2002; RE
396970 AgR/SP, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Julgamento:  15/09/2009, Órgão Julgador: 
Segunda Turma, Publicação DJe-191; ADI 2417/SP, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA;
Julgamento:  03/09/2003, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação DJ 05-12-2003.
152 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Pela análise das constituições estaduais dos 26 Estados e do Distrito


Federal, percebemos a aplicação de muitas normas de reprodução obrigatórias
e também não obrigatórias da Constituição Federal nos textos constitucionais
estaduais, o que acarreta na petrificação da autonomia estadual, especialmente
no que tange a repartição de competências político-administrativas, ao
processo legislativo e a organização do Tribunal de Contas da União.
Em muitos casos, quando não acontece a reprodução de normas da
Carta Federal nos textos estaduais, o STF se posiciona no sentido de julgar
a inconstitucionalidade dos dispositivos estaduais que não estejam em
consonância as normativas constitucionais federais, sob o argumento de
violação ao princípio da simetria. Assim, o princípio da simetria, que deveria
ser aplicado de forma excepcional e ponderada, passa a ser utilizado de forma
geral e irrestrita pelo STF, de forma a reduzir – quase impossibilitando – o
poder de auto-organização dos Estados-Membros.
Desta forma, percebe-se que o Poder Constituinte Decorrente, apesar de
toda a sua teorização, não exerce sua atividade com soberania, na medida em
que seus dispositivos são, em grande parte, reproduções fiéis da Constituição
Federal. Constata-se a reprodução das normas federais e a padronização dos
textos constitucionais estaduais em várias matérias. A Carta Federal, com suas
extensas e minuciosas determinações, estruturou todos os princípios básicos
e as regras fundamentais dos Estados-membros, ficando o Poder Constituinte
Decorrente com um restrito espaço de atuação.
Assim, a nossa Federação ainda precisa trilhar um longo caminho até
atingir uma plenitude na aplicação da Teoria do Poder Constituinte Decorrente,
que está engessada devido à padronização dos textos constitucionais estaduais
decorrentes da falta de competência para inovar nas matérias previstas na
Carta Federal.

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SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª Edição. São
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154 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS ACERCA DA
PENHORA “ON LINE”

JOSÉ ANTÔNIO CREMASCO1


Resumo
Estudo bibliográfico jurídico que investiga as mudanças culturais provocadas no âmbito da
prática do Direito do Trabalho, tendo em vista a criação e o aprimoramento da ferramenta
de execução de quantias certas denominada de penhora “on line”. Analise os efeitos gerados
no âmbito da própria legislação correspondente a execução da Justiça do Trabalho, assim
como os debates e posições defendidas por profissionais da área, juristas e demais operadores
do Direito. Problematiza a atual conjuntura sobrecarregada do Poder Judiciário brasileiro,
com intuito de expor todas as potencialidades e benefícios que podem ser alcançadas a partir
de decisões administrativas arrojadas e comprometidas com os princípios da celeridade
processual, dignidade humana e acesso a justiça, em especial aquelas que se desenvolvem no
curso do desenvolvimento tecnológico da sociedade contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Direito do Trabalho; Execução Judicial; Penhora “On Line”;


Princípio de Celeridade; Código de Processo Civil.

Após anos de tramitação do processo de conhecimento de uma ação


trabalhista chegamos a chamada fase de execução. Tem-se, nesta fase, a
definição do crédito (quantum) a ser recebido pelo autor assim como a devida
citação do réu para que pague a quantia determinada pela condenação do juiz.
Essa fase de execução, por sua vez, nem sempre é necessariamente uma fase
mais rápida dentro do amplo processo trabalhista, ainda que reconheçamos
a menor complexidade desta em relação ao processo de conhecimento.
Conforme pode se observar nas Varas do Trabalho espalhadas pelo Brasil, toda
a tramitação processual executiva depende do posicionamento do magistrado
responsável pela sua presidência, conforme prescrição legal do art. 620 do
Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente à Justiça do Trabalho2,
que diz: “Art. 620. Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o
juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor” (BRASIL, 1973).
Ocorre, no entanto, que se seguido à risca pelo juiz tal dispositivo pode ensejar

1
Bacharel pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-
CAMPINAS) em 1979, advogado inscrito na OAB/SP sob o n.º 59.298. Foi Diretor-Tesoureiro da Ordem
dos Advogados do Brasil em Campinas. Foi Presidente e Fundador da Associação dos Advogados
Trabalhistas de Campinas. Foi Diretor Regional da CAASP (Caixa de Assistência aos Advogados de
São Paulo). É Professor de Direito do Trabalho da Pós Graduação da Faculdade de Direito Metrocamp
e da Escola Superior de Advocacia. É professor de Prática de Direito do Trabalho na Graduação da
Faculdade de Direito da Policamp. É professor de Ética Profissional das Faculdades de Campinas
(FACAMP). Integrante da Banca Examinadora de Concursos para Ingresso na Magistratura do Trabalho
da 15ª Região (Campinas). É Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo
e profere palestras em Congressos e Seminários. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do
Trabalho pela Escola Paulista de Direito Social. É Presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas
de Campinas-AATC (2008-2010).
2
Conforme determina o art. 769 da CLT: “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte
subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas
deste Título” (BRASIL, 1943).
156 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

um alongamento substancial no ritmo dos processos de execução trabalhista,


uma vez que evidente se faz o caráter protetivo dado ao empregador por esse
artigo.
Ainda assim, a regra da execução menos gravosa do art. 620 do CPC não
pode ser usado como escusa à subversão da ordem de graduação imposta pela
lei em favor do exeqüente, assim como empecilho a efetividade da execução
judicial. Isso porque a ordem disposta em lei é de natureza preferencial, não
admitindo, portanto, sua disposição pelo executado. Deve-se ter como regra
que somente ao juízo da execução, através de seu oficial de justiça, e ao credor
da ação é que cabem a autorização de inversão da ordem de penhora, sempre
respeitando-se as necessidades de celeridade processual.
Sobre o tema, são esclarecedoras as ideias de Giordani:

Apesar da indiscutível relevância de se tornar concreta/completa


a satisfação do direito reconhecido ao credor, a situação mais
confortável fica com o devedor, nomeadamente com aquele que
não pretende cumprir com suas obrigações, mormente nos dias
que correm, nos quais parece que estar in é não pagar o que se
deve, atitude que, para alguns e infelizmente, até parece motivo de
orgulho e satisfação, diploma de “esperteza” (em certas situações,
com pós-graduação), enquanto que pagar o que é devido, pode
encaixar homens probos, na visão dos que se enquadram no perfil
que acabei de traçar, de “out”. E, de frisar, não se cuida de quadros
pintados com cores demasiado fortes para a cena que retrata, tanto
que prestigiados processualistas estão denunciando essa realidade;
assim, Roger Perrot, mencionado pelo festejado Leonardo Greco, assim
se expressou: “há um novo ambiente sociológico. Ser devedor não
é mais uma verginha e não pagar os débitos não é mais um sinal
de desonra. A exacerbação do respeito à liberdade individual e à
vida privada tornaram vantajosa a de devedor (GIORDANI, 2007,
p. 156).


Ademais, considerando-se, principalmente, os princípios
caracterizadores desse ramo particular de Direito Privado, os quais apelam
para a necessidade de se corrigir as nítidas desigualdades reais entre
empregador e empregado no âmbito de uma relação jurídica laboral, e ainda,
a natureza alimentar que prevalece em muitas ações da Justiça do Trabalho,
resta-nos inevitável afirmar o quanto o esse artigo do CPC favorece aquelas
práticas inadmissíveis de empresas que se tornam devedoras de verbas
trabalhistas. Nesse sentido, cabe recordar que uma das justificativas ao
Projeto de Lei que deu origem a Lei nº. 12.440/2011, a qual pretende imprimir
maior garantia à efetividade dos Direitos Sociais previstos na Constituição
Federal e na legislação ordinária trabalhista, era reduzir a elevada taxa de
congestionamento da execução na Justiça do Trabalho, naquele ano na ordem
de 69% (sessenta e nove por cento). Em outras palavras, de cada 100 novas
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 157

ações trabalhistas apenas 31 resultam em êxito ao trabalhador.


De fato, nunca deixa de ser necessário recordar que o crédito trabalhista
tem natureza distinta dos demais créditos tratados pelo Direito, inclusive
assumindo este uma posição privilegiada em relação aos outros, conforme
tradicional Doutrina que versa sobre o caráter alimentar da verba recebida
como contraprestação ao trabalho realizado em favor de outra pessoa. Deve-
se considerar, neste sentido, que o salário constitui-se como o principal, senão
o único, meio de sustento do trabalhador e de sua família, sendo certo que a
própria Constituição Federal (Art. 7º, VI)3, seguindo orientações traçadas pelas
Convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT, determinou a
sua irredutibilidade, salvo os casos de negociação coletiva.
Por outro lado, em se tratando de execução por quantia certa contra
devedor solvente (Capítulo IV do CPC), cujo objetivo é expropriar bens do
devedor, a fim de satisfazer o direito do credor, o nosso ordenamento jurídico
determina que seja o executado citado para, no prazo de 3 (três) dias, efetuar
o pagamento da dívida. Entretanto, se não executado o devido pagamento
pelo devedor, pode o oficial de justiça proceder de imediato à penhora de
bens, inclusive aqueles que tenham sido indicados pelo credor no início da
execução. Tal ato de penhora, por sua vez, deve seguir a denominada ordem de
preferência de bens a serem penhorados, estabelecida pela Lei nº. 11.382/2006,
norma esta que alterou o Art. 655 do CPC. Diz o dispositivo (BRASIL, 1973):

Art. 655.  A penhora observará, preferencialmente, a seguinte


ordem:
I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição
financeira;
II - veículos de via terrestre;
III - bens móveis em geral;
IV - bens imóveis;
V - navios e aeronaves;
VI - ações e quotas de sociedades empresárias;
VII - percentual do faturamento de empresa devedora;
VIII - pedras e metais preciosos;
IX - títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal
com cotação em mercado;
X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;
XI - outros direitos.

Nesse diapasão, tornam-se cada vez mais infundados e até mesmo


superados os argumentos usados por alguns devedores, no sentido de que
o a referida Lei de alteração do Código de Processo Civil não revogou o art.

3
Define a Constituição Federal brasileira: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além
de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) VI - irredutibilidade do salário, salvo o
disposto em convenção ou acordo coletivo”. (BRASIL, 1988)
158 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

620 da mesma norma processual, cuja redação classifica a penhora eletrônica


como medida excepcional de execução de quantia certa, devendo esta ser
utilizada após o esgotamento das diligências para localização de bens do
devedor. Coaduna com esse entendimento a manifestação do Ministro do
Superior Tribunal de Justiça STJ, Dr. Herman Benjamin4, que em decisão
recente destacou as condições atuais de nossa sociedade, reconhecidamente
dependente da circulação não mais em espécie do dinheiro, mas sim em meios
eletrônicos – cartão de crédito, débitos automáticos e operações financeiras
pela internet. Some-se a isto, por exemplo, o crescimento no número de
empresas estabelecidas em imóveis alugados, às vezes equipado com móveis
adquiridos a partir de contratos de leasing.
Vê-se, portanto, que o entendimento legal preferido pelo legislador
do Processo Civil brasileiro optou por determinar como primeiro bem a ser
penhorado o dinheiro, em espécie ou em depósito ou ainda em aplicação
financeira. Diante da previsão, é certo que os juízes de toda a Justiça do
Trabalho passaram a adotar, sistematicamente, a realização da penhora junto
às contas correntes de devedores, utilizando para isso o novo sistema “on
line” criado pelo Banco Central brasileiro. Este procedimento, no início, não
alcançou os resultados muito satisfatórios para os propósitos a que fora criado,
pois não se conseguia superar a demora nos trâmites burocráticos que ainda
necessitavam ser cumpridos e que duravam até o momento de verificação da
quantia guardada em conta corrente. Assim, por conta do atraso na prestação
das informações, quase sempre desenvolvida por meio de ofícios impressos
enviados pelo correio, tornava-se difícil obter êxito nos procedimentos de
penhora determinados pelo juiz responsável pela execução.
Tempos mais tarde, com o aprimoramento do sistema “on line” que
ficou designado como BACEN JUD 2, ficou conveniado entre o Banco Central
do Brasil e o Poder Judiciário a operacionalização de uma ferramenta eletrônica
que permite aos juízes, a partir de uma senha previamente cadastrada,
preencher formulários na internet solicitando as informações necessárias a
determinado processo, com o objetivo de promover a penhora “on line” ou
outros procedimentos judiciais previamente combinados. Em outras palavras,
tornou-se possível aos magistrados do Brasil protocolizar ordens judiciais de
requisição de informações, bloqueio, desbloqueio e transferência de valores
bloqueados, sendo todas elas transmitidas às instituições bancárias para
cumprimento e resposta. Estas medidas, sem sombra de dúvidas, reduziram
efetivamente o tempo de tramitação do pedido de informação ou bloqueio
de contas correntes de devedores. Tem-se, atualmente, a possibilidade de dar
ciência ao Poder Judiciário em até 48 horas quanto às medidas tomadas pela
4
Cf. Notícia Eletrônica: “Penhora deve recair preferencialmente sobre dinheiro em espécie,
em depósito ou aplicado”, disponível em http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.
wsp?tmp .area=398&tmp.texto=91812. Acessado em maio de 2012.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 159

instituição financeira responsável por realizar a penhora “on line”.


Em termos de repercussão, podemos dizer que o Bacen Jud logrou
êxito quando desenvolvido para o seu sistema 2,0, tamanha as discussões
que se observaram em seguida ao seu uso mais compulsório pelos Juízes
de todo o Brasil. Hoje, o Banco Central mantém convênio assinado com
Superior Tribunal de Justiça – STJ, Justiça Federal – JF e Tribunal Superior
do Trabalho – TST. Segundo informações estatísticas fornecidas pelo próprio
Banco Central, no total de solicitações do Poder Judiciário via Bacen Jud 2,0
de 2005 a 20125, já são contabilizados 23.803.968 pedidos. Em 27 de fevereiro
de 2008, por exemplo, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça julgou por
unanimidade o pedido de providências que concedia 60 dias aos Tribunais
Superiores do Brasil para que informassem aos magistrados a obrigatoriedade
de cadastramento no sistema Bacen Jud 2,0, fundamentando tal decisão sob o
argumento de que qualquer sistema de agilidade ao andamento dos processos
deveria ser usado compulsoriamente pelos magistrados.
Até mesmo a legislação ordinária nacional passou a incorporar nos
últimos anos, em parte de seu arcabouço de regras de execução localizadas no
Código Civil, a novidade da incorporação de tecnologias e procedimentos mais
eficientes para o cumprimento de ordens judiciais, merecendo destaque a Lei
n. 11.382/2006, que acrescentou o seguinte dispositivo legal, possibilitando a
penhora de dinheiro em depósito bancário ou aplicação financeira:

Art. 655-A. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou


aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exeqüente, requisitará
à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente
por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos
em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua
indisponibilidade, até o valor indicado na execução (grifos nossos)
(BRASIL, 1973).

Por outro lado, entendem alguns juristas que a adoção de tal sistema
informatizado de cobrança pode se constituir como um flagrante ato de ataque
a segurança jurídica dos meios empresariais, isto porque, na prática, cabe ao
devedor, quando pretendendo impugnar os cálculos da Reclamação, garantir
a execução mediante, por exemplo, a nomeação de bens à penhora (Art. 882
da CLT). Esta nomeação, porém, deve sempre observar ordem preferencial
estabelecida no art. 665 do Código de Processo Civil. Nesses casos pode
ocorrer, muitas vezes, a recusa por parte do credor em relação à nomeação
de bem feita pelo devedor, uma vez que prefere aquele o pagamento feito em
dinheiro que se encontra em contas de bancos em nome deste último. Essas
contas, no âmbito do Direito do Trabalho, quase sempre são as contas onde
5
Os dados são referentes até o mês de agosto de 2012. Disponível em http://www.bcb.gov.br/?bcjud.
Acessado em abril de 2012.
160 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

se encontram os capitais de giro das empresas que litigam com trabalhadores,


necessário, portanto, a sobrevivência real de qualquer atividade empresarial.
Desse modo, alegam aqueles que são contrários a penhora “on line” de contas,
que poderiam ser bloqueados valores destinados ao pagamento de salários
de outros funcionários, lucros a serem destinados a acionistas, quantias
reservadas para pagamento de terceiros, impostos, etc. Em suma, tal medida
significaria um prejuízo enorme para a atividade empresarial, uma vez que
não observada a segurança jurídica referida anteriormente.
Ademais, ainda que estejam sendo bloqueados valores de aplicações
como poupanças, por exemplo, é de se atentar ao fato que estas contas
deixarão de render ao titular, considerando-se, sempre, a forma como são
aplicados os índices de correção. Ora, diante de tal situação que buscamos
apresentar sucintamente, como definir o discutível instituto da penhora “on
line”. Trata-se de um ilícito eficaz ou de uma medida de agilidade jurisdicional
necessária? De antemão, devemos recordar que toda penhora “on line” realiza-
se em fase processual que já ultrapassou todo o processo de conhecimento,
assim como as etapas recursais e de liquidação. Quer dizer, o devedor já teve
todas as hipóteses legais possíveis de discutir o mérito da ação, não restando
mais oportunidade de alegar a inexistência da dívida. Além do mais, em
nenhuma hipótese é permitido ao operador desta ferramenta de execução o
cometimento de abusos e ilegalidades, pois não são afastados nesses casos os
chamados princípios da proporcionalidade6 e da supremacia constitucional.
Nesse sentido, nunca é dispensável recordar que a Constituição Federal
de 1988, através de Emenda Constitucional de número 45, promulgada no ano
de 2004, acrescentou ao art. 5º dos direitos e das garantias fundamentais o
famoso inciso LXXVIII, segundo o qual: “a todos, no âmbito judicial e administrativo,
são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade
de sua tramitação” (BRASIL, 1988). Ora, não se vislumbra mais elementos
argumentativos que possam contrariar a noção de que a celeridade pressupõe
uma racionalidade na condução do processo, e que, portanto, a protelação de
atos processuais não coaduna com esta determinação constitucional. A própria
ótica da teorização do Direito Constitucional vigente é clara, no sentido de
que é inadmissível a sobreposição do princípio da menor onerosidade a parte
em face do princípio da celeridade processual. A nosso ver, justificar em
sentido contrário a este argumento é sinônimo de afronta a Carta Magna e de
favorecimento a compulsividade dos devedores contumazes.
Hoje, no conjunto do pensamento jurídico moderno e inovador,
existe uma unanimidade em se reconhecer os princípios jurídicos com
status conceitual igual ao das garantido às normas positivas, razão pela
6 O princípio da proporcionalidade ordena que a relação entre o fim que se busca e o meio utilizado
deva ser proporcional, não-excessiva. Deve haver uma relação adequada entre eles, ou seja, a satisfação
do direito (pagamento de verbas trabalhistas) e a condição financeira do devedor.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 161

qual definimo-los até como norma jurídica. Por conta desta teorização, estes
princípios referidos ganham positividade e vinculatividade, ou seja, obrigam
as partes e geram efeitos sobre os comportamentos públicos ou privados.
Portanto, não há que se negar ao princípio constitucional a sua natureza de
norma, ou mais especificamente, de lei de preceito jurídico, ainda que composta
com características estruturais e funcionais bem diferentes das outras normas.
Nas palavras sábias de Francisco Alberto M. P. Giordani:

A importância que, hodiernamente, se atribui aos princípios, leva


a que se reconheça que a antiga primazia da lei não existe mais, e
só existiu porque interessava a certos segmentos da sociedade que
assim fosse, cabendo hoje a proeminência aos princípios, que hão de
ser considerados uma espécie de norma, a outra representada pelas
regras, leis, ou seja, há o gênero norma, que tem como espécies os
princípios e regras, e, havendo colisão entre princípios e regras,
aqueles hão de prevalecer, por materializarem, como já asseverado,
valores caros à sociedade (GIORDANI, 2008, p. 173).

Em síntese, enquanto a lei pode ser vista como produção que atende
ao interesse do homem, ou dos homens que compõe a classe dominante, o
princípio pode ser visto como produção que atende a natureza humana.

Considerações Finais
Diante de todo o exposto, consideramos a inovação trazida pela
introdução das ferramentas de penhora “on line” como uma das mais efetivas
possibilidades de satisfação e sucesso da execução processual, fato que se
justifica na sua capacidade de tornar real o direito anteriormente reconhecido
na sentença, e não apenas uma mera expectativa de direito como ocorrem nos
chamados processos “ganha mais não leva”. Apesar das críticas que ainda
pairam sobre esta possibilidade, é perfeitamente possível ao Poder Judiciário
em toda a sua organização corrigir as eventuais distorções, tal como o excesso
de bloqueios, de modo a prevalecer nos processos de execução apenas os
resultados mais eficazes, aqueles cujo benefício atende, sem sombra de
dúvidas, os princípios da justiça e da celeridade.
Mais do que isto, podemos considerar essa modalidade de penhora
eletrônica ainda que polêmica, não só uma possibilidade de execução de títulos
judiciais, mas também uma alternativa viável e efetiva para a execução dos
títulos extra-judiciais, ampliando, assim, o alcance de suas potencialidades sem
prejuízo, como já defendido, dos princípios constitucionais do contraditório e
da ampla defesa. Ademais, cumpre observar, sempre, que além do respeito
aos princípios trazidos pela Carta Magna que a penhora realizada sobre os
vencimentos, subsídios, soldos salariais entre outras naturezas de verbas
(previsão do art. 649, IV do Código de Processo Civil) não devem ser
162 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

apropriadas em hipótese alguma por esta ferramenta, cabendo ao Magistrado


o controle de todas estas situações administrativas7.
Como ensina o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho – TST, Dr.
Maurício Godinho Delgado, a impenhorabilidade dos salários constitui-se
como garantia expressa do referido dispositivo do CPC, cabendo, portanto, o
entendimento jurisprudencial e doutrinário, no sentido de que:

(...) o salário não pode sofrer constrição extrajudicial ou judicial,


não podendo cumprir papel de lastro a qualquer crédito contra o
obreiro, em receber restrições a seu recebimento direto pelo próprio
trabalhador.
A amplitude dessa garantia conduz a obvia conclusão de ser inviável,
do ponto de vista jurídico, até mesmo a penhora no rosto de autos
trabalhistas em decorrência de ação proposta contra o trabalhador
no âmbito de outro segmento do judiciário (DELGADO, 2008, p.
824).

Em decisão apresentada no Acórdão que julgou Agravo de Petição


no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, o Desembargador Lorival
Ferreira dos Santos, muito lucidamente recordou os ensinamentos de Arnaldo
Sussekind sobre o tema:

Arnaldo Sussekind igualmente assinala que a proteção ao salário,


não só no que tange a possíveis abusos por parte da empresa,
como no que se relaciona aos credores do próprio empregado e do
respectivo empregador, bem como com a insolvência desse, constitui
princípio universalmente consagrado pelo direito comparado. A já
mencionada Convenção nº. 95, adotada na 32ª sessão da Conferência
Internacional do Trabalho em 1949, assegurou que “salário não
poderá ser embargado ou cedido senão na forma e dentro dos
limites fixados pela legislação nacional, devendo estar protegido
contra o seu embargo ou cessão na proporção que se considere
necessário para garantir a manutenção do trabalhador e de sua
família” (Processo TRT/15ª Região Nº. 01482-2001-059-15-00-6).

Contra a crítica de que a penhora eletrônica pode se transformar numa


execução muito gravosa ao devedor, não se pode esquecer que do outro lado
temos a busca pela satisfação de um direito ao recebimento de verba salarial,
cuja necessidade é de primeira ordem ao trabalhador8. O devedor, por sua
7
Em que pese a proibição legal de realização de penhora sobre verbas de natureza salarial, torna-se
imperioso registrar que já foi proposto, e logo depois vetado, um projeto em nosso país cujo objetivo era
permitir a penhora de até 40% do total recebido mensalmente acima de 20 salários mínimos, calculados
sobre o montante líquido recebido pelo trabalhador. Ademais, este projeto propôs ainda a penhora de
bem de família com valor superior a mil salários mínimos, que seria entregue ao executado mediante o
estabelecimento da condição de impenhorabilidade. Trata-se, portanto, de um indicativo da discussão
que ainda esta longe de ser uma unanimidade entre os juristas brasileiros.
8
No Direito comparado, encontramos disposições legais que determinam a penhora no limite do valor
aplicado ao chamado salário profissional (Espanha), o limite de 2/3 dos salários, aposentadorias
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 163

vez, terá os seus bens “atacados” pela execução judicial, forma de execução
que ainda não se equivale, por exemplo, as possibilidades de prisão civil que
existem no Direito de Família, ou seja, uma execução de dívida mais prejudicial
ainda aquela que sofre o devedor da Justiça do Trabalho.
Outro ponto que chama a atenção no surgimento e desenvolvimento
da penhora “on line” no âmbito da Justiça Laboral corresponde ao fato
desta ser fruto de iniciativas administrativas, cuidadosamente negociadas e
executadas pelo Poder Judiciário e pelo Banco do Brasil. Não houve, portanto,
um comando legal determinante para a sua criação, situação esta que revela
o quanto tem sido importante para este ramo do judiciário a conjugação de
esforços para encontrar soluções mais racionais aos problemas que deixam os
processos trabalhistas reféns do Direito Positivo.
Por fim, podemos considerar que o instituto da penhora “on line” tem se
constituído, de antemão, como um novo paradigma jurídico a orientar as regras
e procedimentos atinentes ao processo de execução de verbas trabalhistas, hoje
necessitados de uma atualização e de uma reformulação face às novidades
eletrônicas e, mais ainda, econômicas vividas pela sociedade contemporânea.
Não obstante, mostra-se perceptível também a eficiência gerada a satisfação
de verbas salariais devidas a inúmeros trabalhadores deste território, na
maioria dos casos descontentes e sem esperança de ter o seu direito realmente
garantido pelo Poder Judiciário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei nº 5.452, de 1º de Maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do
Trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 de Ago. 1943.
BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de Janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 de Jan. 1973.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo. Ed. Ltr.
7ª ed. 2008.
GIORDANI, Francisco Alberto M. P. O Princípio da proporcionalidade e a penhora
de salários – Algumas outras considerações. Revista LTr, Volume 71, nº. 02,
Fevereiro de 2007.
_______________. O Princípio da proporcionalidade e a penhora de salários – novas
ponderações (água mole em pedra dura, tanto bate até que fura...). Revista LTr,
Volume 72, nº. 02, Fevereiro de 2008.

ou pensões impenhoráveis (Portugal), assim como o limite de 20% do salário que exceder o valor
necessário ao sustento do alimentante (Argentina).
164 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
O JUÍZO SINTÉTICO A PRIORI COMO CONDIÇÃO
CIENTÍFICA DA METAFÍSICA EM IMMANUEL
KANT: OS LIMITES DA RAZÃO REGULADORA
REGINALDO ARTHUS1
Resumo
O presente artigo trata de compreender a problemática da Metafísica, exposta por Immanuel
Kant, em sua “Crítica da Razão Pura”, concebendo-a no âmbito dos juízos
sintéticos a priori, e confrontando-a como possibilidade de vir a ser reconhecida como uma
ciência de conhecimento seguro e não especulativo. Procuramos caracterizar os principais
matizes e distinções, desenvolvidos por Kant, em sua caminhada para fundamentar o ponto
de partida do conhecimento sensível, que tanto o inquietou em sua tentativa de transpor a
Metafísica como Ciência, na busca por um conhecimento certo e seguro para aquela. Seu
compromisso com a Metafísica levou-o a fundar o Criticismo como síntese entre o Racionalismo
e o Empirismo, através da arquitetura, por ele desenvolvida, dos juízos sintéticos a priori.

PALAVRAS-CHAVE: Juízo sintético a priori; Criticismo; Metafísica; Ciência.

Introdução
Immanuel Kant (1724 - 1804) representa, através de sua produção
filosófica, o acabamento da Teoria Clássica do Conhecimento, constituindo-se
na grande síntese entre o conhecimento moderno anterior (que emerge dos
crepúsculos da idade média), baseado no racionalismo e no empirismo, e a
fonte do conhecimento contemporâneo, em base crítica, tendo influenciado
muitos pensadores.
Nesse artigo de revisão bibliográfica, abordaremos sua obra principal,
Crítica da Razão Pura (1781), fruto de longos 12 anos de estudos, investigações
e reflexões, tendo sido escrita em cerca de 5 meses. Sobre seus escritos
fundamentais, Kant dizia que sua revolução consistiu, no campo da filosofia
do conhecimento, tal qual a revolução que Copérnico realizou na Ciência,
deslocando a noção de movimento da Terra, concebendo o heliocentrismo em
substituição ao geocentrismo2.

Desenvolvimento
Antes de Copérnico entendia-se que a Terra encontrava-se como
um ponto fixo e que os astros constituintes do sistema solar orbitavam em
seu redor (geocentrismo – a Terra como centro de referência). A partir de
Copérnico, esse ponto fixo é deslocado, é a Terra que passa a girar em torno do
1
Bacharel em ciências Econômicas, Licenciado em Filosofia, Mestre em Economia Social e do Trabalho
pelo instituto de Economia da UNICAMP e Doutor em Filosofia e História da Educação pela Faculdade
de Educação da UNICAMP. Participa do grupo de pesquisa institucionalizado que investiga as políticas
educacionais para o ensino superior no Grupo Paidéia/FE-UNICAMP. Atualmente é Professor do Centro
Universitário UniSEB de Ribeirão Preto, atuando ainda como Vice –Reitor.
2
A respeito da temática da física copernicana ver Koyré, A.(2010) – Do Mundo Fechado ao
Universo Infinito – Capítulos 1 e 2 – pp. 9 a 53.
166 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Sol (sistema heliocêntrico – o sol como centro). Copérnico levanta a hipótese


heliocêntrica a partir de si próprio, de sua própria imaginação, pois não tinha
como observar esse fato na natureza. FERRY (2009:19) afirma que:

Nasce uma nova era, da qual Kant provavelmente é o primeiro


filósofo a tomar consciência. Não é apenas o homem, como às vezes
disseram, que ‘perdeu seu lugar no mundo’, e sim o próprio mundo,
pelo menos aquele que formava o âmbito fechado e harmonioso de
sua existência desde a Antiguidade, que pura e simplesmente se
volatilizou. A cosmologia dos antigos já não é a nossa, e, para Kant,
é evidente que o horizonte da física moderna passa a ser o único
verdadeiro.

Seguindo a trajetória imaginativa de Copérnico, também Kant o faz,


de forma semelhante: se antes dele prevalecia uma compreensão de que só
se poderia conhecer a natureza através de seus objetos e daquilo que eles
impõem à consciência (ao sujeito), a partir dele, só se pode conhecer a natureza
(e os objetos) quando se coloca algo de próprio do sujeito cognoscente nela
(nos objetos). O próprio sujeito formula uma razão que ele próprio produziu.
Invertem-se os vetores do conhecimento. Escreveu Kant (2005:39):

Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha que se


regular pelos objetos; porém todas as tentativas de mediante
conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do
que o nosso conhecimento seria ampliado, fracassaram sobre esta
pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos
melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm
que se regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda
melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori
dos mesmos que deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos
serem dados.

O modelo de conhecimento anterior a Kant, de base antiga e medieval,


pressupunha que o sujeito era uma figura contemplativa das leis imanentes
da natureza, cuja reprodução mental, através de conceitos, revelava o método
constante da natureza. Havia uma certa ordem no mundo, um cosmos (que
por si já pressupõe ordem), e que se bastava conhecer essa ordem. O universo
já se encontraria escrito, não restando à mente humana senão (d)escrevê-la. A
mente era considerada como um pólo passivo dos objetos com suas ordens e
leis.
Kant inverte toda essa dimensão afirmando que quem produz a ordem
do mundo é o homem. A mente é ativa e não passiva (de conduta meramente
depositória-receptora). Além disso, o mundo em si seria o caos (desordem,
dispersão) e não um cosmos (ordenado), e quem colocaria ordem nesse caos,
segundo o autor, seria a razão humana, que ao conhecer o real, organizá-
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 167

lo-ia. O sujeito organiza-o mediante certos critérios ordenadores, aqueles


postos pelas leis e teorias científicas. Para ele, o conhecimento científico não
trata de revelar os conhecimentos já existentes na natureza, mas sim de criar
racionalmente o conhecimento: a ciência organiza racionalmente ao mundo. E
o faz através da razão humana que organiza o mundo: não é o próprio mundo
que se auto-organiza através de seus objetos.
As leis matemáticas não se encontram inscritas na natureza, elas são
formuladas pelo sujeito que as conhece. Abandonadas na natureza, elas
seriam uma grande mistura, um caos. Quem organiza, promove as divisões,
junta, separa, agrupa, é o homem, na condição de sujeito cognoscente, e o
faz adotando certas categorias próprias do sujeito: ele escolhe seus esquemas
explicativos sobre o mundo real. Mesmo reconhecendo que se mudam
constantemente esses esquemas mentais explicativos, eles nunca deixam de
ser construídos pelos homens.
Essa revolução kantiana na dimensão da Teoria do Conhecimento
significa, na prática, que a razão (o homem, o sujeito cognoscente) deposita algo
na natureza: seus esquemas a priori. Se os racionalistas excluíam o a posteriori
e os empiristas excluíam o a priori, Kant irá, pois, reuni-los, sintetizá-los.
Anteriormente a Kant, conhecer a verdade significava adequar a inteligência
à coisa, indicando que o objeto regulava o conhecimento, e a verdade objetiva
estaria estampada no próprio real, independentemente do sujeito. Kant inverte
tal propositura: é o objeto que deve adequar-se aos modelos mentais. O objeto
gira em torno da razão e não o contrário. Os cientistas formulam categorias,
modelos e conceitos, encaixando os fenômenos dentro deles, colocando a
natureza neles. Nesse raciocínio, Kant explicita sua ênfase no conhecimento
a priori.
Ele afirma que nem mesmo a experiência é possível se não se leva algo
a priori quando nos dirigimos a ela. É a condição do a priori que garante o
conhecimento possível. Contrariando Hume (que segundo Kant despertou-o
de seu sono dogmático), a experiência não dá (não fornece) os objetos
organizados. Ela simplesmente oferece, na verdade, o caos dos sentidos e não
dá nem mesmo a forma. Kant entende que a forma provém do sujeito, ou seja,
é a priori. Ele afirma (2005:56):

Muito mais significativo que todo o precedente [o conhecimento


empírico] é o fato de que certos conhecimentos abandonam mesmo
o campo de todas as experiências possíveis e parecem estender o
âmbito dos nossos juízos acima de todos os limites da experiência
mediante conceitos aos quais em parte alguma pode ser dado um
objeto correspondente na experiência.

PASCAL (2008:51), corroborando a compreensão do pensamento de


Kant, afirma:
168 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Portanto, a razão é a fonte única de proposições universais


e absolutamente necessárias. E, inversamente, não haveria
proposições universais e necessárias, isto é, a priori, se a razão não
fosse, por si mesma, fonte do conhecimento.

Os sentidos humanos são apropriados na razão a partir do que já existe


nela. Aplicam-se esquemas mentais nos objetos, esquemas esses que são
apriorísticos. Concebe-se associações sobre esquemas mentais prévios que
permitem identificar e conhecer qualquer novo objeto. Se para Hume, conhecer
sensivelmente significava ver um objeto para se chegar ao seu conceito, ou
seja, o conhecimento provinha pelo caminho da experiência sensorial, para
Kant a visão não nos dá um mundo organizado, de conhecimento verdadeiro
e certo. Somente se chega a ele através de esquemas mentais que decifram os
objetos, pois a experiência sensória é o caos e esses esquemas apriorísticos não
são inatos para Kant. Eles se compõem de forma e conteúdo. Apenas algumas
formas são inatas, representadas a partir das experiências sensoriais.
Kant ensina-nos que o conhecimento da experiência não depende,
ele todo, da própria experiência, mas que há uma anterioridade. Nascemos
dotados de razão e sensibilidade e todos nós temos estruturas racionais
ou esquemas organizativos que se constituem de uma parte daquilo que
permitirá a construção do conhecimento. Mas, segundo Kant, as formas são
vazias, não sendo conhecimento. Tanto a forma quanto a matéria são caóticas.
Só há conhecimento quando ocorre a síntese entre forma e matéria. Espaço e
tempo, na condição de formas puras, têm que preencher-se de matéria para se
converterem em conhecimento.
Todos nós nascemos com forma e matéria que só serão preenchidas
com a experiência, atingindo-se o conhecimento: junta-se o a priori racionalista
com o a posteriori empirista. O a priori kantiano significa a estrutura da razão,
sendo intrínseco a ela. O apriorismo é comum a todos os sujeitos cognoscentes,
representando as condições possíveis para todas as experiências: obtém-se,
assim, a dupla categoria da necessidade e da universalidade exigidas pelo
conhecimento. PASCAL (2008:37) detalha a compreensão do conhecimento a
priori e do conhecimento a posteriori em Kant:

Conhecer é dar forma a uma matéria dada, e é claro que a matéria é a


posteriori, e a forma, a priori. Com efeito, a matéria do conhecimento
é variável de um objeto a outro, visto depender do objeto; mas a
forma, sendo imposta ao objeto pelo sujeito, será reencontrada
invariavelmente em todos os objetos por todos os sujeitos. Existem,
pois, conhecimentos a priori e conhecimentos a posteriori.

Esta solução sintética de Kant foi por ele construída através de sua dupla
crítica ao racionalismo e ao empirismo. Kant aceita o conhecimento a priori
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 169

proposto pelos racionalistas, porque ele abrange conhecimentos necessários


e universais. Mas o ponto negativo do racionalismo é que ele admite apenas
juízos analíticos a priori, ou seja, a situação na qual o predicado explicita o que
já está contido no sujeito: a verdade como conhecimento formulado pela razão
independentemente da experiência. Assim compreendido, os juízos analíticos
são apenas explicitadores e não nos permitem avançar no conhecimento.
O conhecimento fecha-se na análise e torna-se repetitivo porque impede o
avanço do próprio conhecer.
Por outro lado, Kant aceita o a posteriori do empirismo porque ele
permite que se acrescente dados ao sujeito, já que os juízos verdadeiros da
experiência são os juízos sintéticos, ou seja, o predicado adiciona qualidades ao
sujeito, o que para Kant significa que eles permitem o avanço do conhecimento.
Mas o empirismo fica restrito ao juízo sintético a posteriori, que não é nem um
conhecimento universal e nem necessário, sendo, na verdade, contingente e
particular, o que limita a obtenção da verdade.
Kant promove a síntese do racionalismo com o empirismo, fundando
o criticismo, ou seja, agregando os juízos sintéticos empiristas ao fundamento
racionalista aprioristíco, chegando ao que ele define como juízos sintéticos a
priori. Ele afirma que todos os conhecimentos começam com a experiência,
mas não se originam dela, havendo a necessidade de se buscar o estado a priori
(dos racionalistas) para se organizar o juízo sintético (extraído dos empiristas).

Figura 1: Construção do Criticismo Kantiano

Matrizes Conhecimento Juízos Predominantes Estado do


conhecimento
Racionalismo Juízos Analíticos a priori
Empirismo Juízos Sintéticos a posteriori
Criticismo Kantiano Juízos Sintéticos a priori
Nota: Elaborado pelo autor.

Com a junção do juízo sintético com o conhecimento a priori, Kant


anuncia que o conhecimento se limita aos fenômenos (que são as coisas assim
como nós as conhecemos), não sendo possível conhecer a essência da coisa em
si (que seriam os númenos), como pretendia a metafísica. As coisas encontram-
se no espaço e no tempo, desde que dentro do sujeito, inexistindo-os fora dele.
Acerca da importância dos juízos analíticos e sintéticos na teoria do
conhecimento de Kant, MORENTE (1999; 218) afirma:

Estes juízos são o ponto de partida de todo o pensamento de Kant;


sobre esses juízos vai assentar-se toda a sua teoria do conhecimento;
170 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

e não esqueçamos nem um só instante, antes lembremos


constantemente, que estes juízos não são vivências psicológicas.
Não. Não são algo que acontece a nós, não são fatos da consciência
subjetiva, mas antes enunciações objetivas acerca de algo, teses de
caráter lógico que, por conseguinte, são verdade ou erro.

Os juízos são compostos por teses, afirmações, proposições, condições


das quais a partir de algo se diz algo, nas quais há um sujeito que emite
afirmações ou negações. A ciência estaria, pois, segundo Kant, constituída por
juízos sintéticos a priori.
Nessa trajetória, Kant ascende à sua principal preocupação e desafio
que é a discussão temática da metafísica, já que Hume afirmara que ela seria
impossível como ciência. Sua intencionalidade em resgatar a metafísica de seu
caráter especulativo e incerto, resultará numa tentativa de reposicionamento
das dimensões do campo de referência de constituição e compreensão da
mesma, propondo-lhe assemelhá-la à ciência, pois até então ela encontrava-se
vinculada ao campo filosófico-especulativo; ou seja, tentando compreender se
os juízos sintéticos a priori se aplicam e validam os da metafísica.
Sua busca no resgate da metafísica leva-o a investigar a razão como
fundamento radical da metafísica. Kant parte do conhecimento seguro e
certo da ciência, examinando os conhecimentos da razão que conseguiram se
constituir em ciência. Desse exame das ciências de seu tempo, ele desenvolve
uma cientificidade que será absorvida como parâmetro para se estudar a
metafísica.
Kant inicia argumentando que são os resultados de uma ciência que a
consolidam como tal, e que ela (a ciência em geral) avançou tendo como base o
conhecimento experimental. Ele se pergunta: como é possível, à ciência, obter
resultados certos e seguros? Pergunta, também, como um conhecimento não
consegue tornar-se ciência. Responde, no campo dessa última indagação, que
um conhecimento não consegue tornar-se ciência quando ela, necessitando
retornar seu caminho, incorre numa discordância sobre os métodos adotados
pelos diversos investigadores.
A discordância, o desacordo é considerado por Kant como um
“índice de fracasso”. Ele definirá, portanto, que a ciência é o conhecimento
formulado pela razão a priori, amparada pelas categorias da necessidade e
da universalidade. Nesse campo da ciência universal e necessária, ele insere
os conhecimentos da Lógica, da Matemática e da Física. PASCAL (2008:40)
afirma, seguindo Kant, que o que dá certeza à Matemática e à Física são os
juízos sintéticos a priori.
A Lógica tem a vantagem de abstrair todos os conteúdos do conhecimento:
o entendimento relaciona-se somente consigo mesmo e suas formas. São
regras que se aplicam a qualquer conteúdo (categoria da universalidade) e
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 171

independem de experiência (categoria da necessidade). A Lógica absorve,


portanto, as regras que o pensamento segue para analisar qualquer objeto; seu
aspecto formal ou material trata de formas representativas, afetando todos os
objetos e conceitos. A lógica encadeia os pensamentos, embora não produza
resultados objetivos, ocupando-se apenas de si mesma e de sua forma.
Já a Matemática, segundo Kant (2005:62-64), constrói conceitos a priori
que depois serão utilizados/aplicados e conhecidos na experiência (no mundo
sensível). São conhecimentos racionais e objetivos. Ele vai buscar, na razão,
a formalidade da experiência, diferentemente de Hume, que dizia dever-se
partir da experiência para se chegar aos conceitos. Para Kant os conceitos
estão na razão e não na natureza (na empiria).
A Matemática constrói um conceito a priori e procura ver nas coisas do
mundo sensível aquilo que se realiza como conceito. No caso dos estudos da
geometria dos triângulos, Kant afirma que primeiro desenvolve-se os conceitos
de ângulos (universalidade) e só depois a noção da figura (necessidade),
reforçando a idéia de que o conceito é apriorístico e independente da matéria.
No caso da Matemática, ele entende que a figura do triângulo e os números não
existem na realidade, inexistem na experiência (no mundo sensível), sendo que
os números são a aplicação formal de sinais sobre o mundo sensível. Define-se
o conceito e depois se busca consolidá-lo com a experiência.
Já a Física, segundo Kant (idem, pp. 61-62), foi revolucionada
principalmente por Galileu e Torricelli, através de seus experimentos que
a consolidaram como ciência racional e objetiva. Segundo Kant, Galileu e
Torricelli compreenderam, nesse campo de estudos científicos, que a razão só
discerne aquilo que ela produz segundo seu projeto; que ela tem de ir à frente
com princípios extraídos de seus próprios juízos segundo leis constantes,
obrigando a natureza (a experiência) a responder às suas perguntas, mas sem
ter de deixar-se conduzir somente por elas. Os dados da experiência precisam
ser interpretados e aí há vários esquemas mentais que podem ser utilizados,
fazendo com que a razão opere. Kant afirma que a mente já leva esquemas
explicativos antes de se relacionar com os objetos, interpretando-os a partir da
relação entre razão-objeto-razão.
A razão vai à natureza levando seus princípios que são os únicos que
podem converter as constantes em lei. A razão tem que ir obrigatoriamente
à natureza. É a razão que transforma as constantes da natureza em leis. A
experiência fornece as repetições (constantes), mas não as converte em leis. É
a razão quem o faz. Esse é o conhecimento científico para Kant: conversão das
constantes (repetições) em leis. Se a natureza tem suas constantes, só a razão
humana é que as transforma em leis. Segundo ele, as experiências respondem
a certas perguntas formuladas pela razão.
A Física, portanto, encontrou seu caminho como fonte de conhecimento
172 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

seguro e certo, como Ciência da Natureza, através da razão a priori limitada


pela experiência, orientadas por categorias também universais e necessárias.
A Lógica, a Matemática e a Física firmam-se como ciências seguras produtoras
de conhecimentos certos. Mas e a Metafísica, pergunta Kant (ibidem, p. 64):
“como é possível a Metafísica como ciência?” Ela, segundo ele, estaria enredada
num conhecimento racional inteiramente isolado e de constituição teórico-
especulativa que, através de simples conceitos, eleva-a completamente
acima do ensinamento da experiência. A metafísica estaria imersa e presa no
fundamento segundo o qual a razão deve ser aluna de si mesma, não tendo
obtido um destino tão favorável que lhe permitisse encetar o caminho seguro
de uma ciência.
Tratando de comparar a ciência e a pura razão, de acordo com o
pensamento de Kant, MORENTE (1999:222) atesta:

Se a ciência estivesse constituída por juízos analíticos; se a ciência


fosse, como queria Leibniz, verdades de razão; se a ciência estivesse
constituída por juízos de pura razão, a ciência seria vã; seria pura
tautologia, uma repetição do já contido nos conceitos sujeitos. Não
seria nada, seria simplesmente o resultado de uma mera dissecção
conceitual.
(...) Porém, a ciência, a física, a lei da gravitação universal, que se
pode escrever numa fórmula matemática, a física de Newton, não é
nenhuma tautologia, como seria se fossem os juízos simplesmente
analíticos, nem um hábito e nem um costume sem fundamento
lógico, como seria se seus juízos fossem puros atos de consciência....
(...) Então é absolutamente indispensável que essa ciência de
Newton, que não é juízo analítico e nem é juízo sintético, tenha um
tipo de juízo que lhe seja próprio.

E o juízo próprio da ciência, a que se refere MORENTE, seguindo o


pensamento de Kant, são os juízos sintéticos a priori. Kant entende que a razão
emperra continuamente a metafísica, mesmo quando se pretende discernir, a
priori, aquelas leis que a experiência mais comum confirma. Ele observa ainda
que a Metafísica é mais antiga que a Lógica, a Matemática e a Física, mas
ainda assim não conseguiu se constituir como ciência, isso porque a metafísica
abandona a experiência e faz uso apenas da razão, tratando de Deus, da alma,
da imortalidade, da transcendência etc.
Kant se convence de que a metafísica não se tornou ciência porque
talvez ela tenha se enganado no método que trilhou. Ele pretende inaugurar,
fundar, uma concepção de metafísica como ciência, através de sua revolução
copernicana na filosofia. Propõe imitar os procedimentos das ciências
já instituídas (Lógica, Matemática e Física) para o campo da Metafísica.
Cuidadoso e sistemático, Kant perguntará se será possível essa extrapolação
metodológica, respondendo que sim, através de uma analogia entre ciência e
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 173

metafísica.
Segundo ele, do ponto de vista epistemológico, há algo de comum
entre filosofia e ciência: a razão. Além disso, o que permitiu o caminho seguro
da ciência também deverá permitir à Metafísica que assim também o seja,
transpondo a ciência para a filosofia. Ele propõe a transposição da ciência para
a metafísica através de uma inversão/revolução (como Copérnico) à concepção
tradicional de conhecimento: se até agora supôs-se que todo conhecimento
teria de se regular pelos objetos, a partir de agora os objetos é que devem se
regular pelo nosso conhecimento. Para Kant, a situação pretérita, na qual o
pólo objeto do conhecimento é que era determinante no processo cognitivo,
impediu que a Metafísica se assentasse como ciência.
O progresso da Metafísica como ciência somente poderá ser alcançado
no caminho da adequação do objeto à mente humana, ao sujeito cognoscente,
ou seja, através da mudança do ponto fixo de referência (para o sujeito) e da
adoção do apriorismo, já que esse é o único que é universal e necessário: se a
intuição tivesse que se realizar pela natureza dos objetos, não haveria como se
atingir o a priori, mas ao contrário, o objeto que se regularia pela natureza de
nossa faculdade de intuição (a priori). Isso porque o conhecimento a posteriori
é sempre particular e contingente.
Segundo Kant, os esquemas a priori são a regulação das experiências e a
ciência caminha munida desse conhecimento a priori. O sujeito tem um papel
ativo, pois a idéia pertence ao ser. O objetivo fiel da ciência não é demonstrar
a realidade ao objeto, mas anunciar os esquemas a priori construídos pelo
sujeito. As experiências são realizadas não para se conhecer a essência dos seus
objetos, mas sim suas constantes (repetições) e, assim, tendo como finalidade
construir leis, que se encontram formuladas a priori na razão humana. As
coisas não falam por si, elas são percebidas a partir de certos referenciais
formulados a priori. Os significados não são dados (entregues) prontos.
Assim, o ponto central da revolução kantiana é o de que o conhecimento
da natureza só é possível a partir daquilo mesmo que nós produzimos a priori
na razão. Mas como Kant transpõe tal raciocínio para a Metafísica? Inicialmente
ele afirma que até então:

Todas as tentativas feitas até agora para realizar dogmaticamente


uma metafísica podem e têm que ser encaradas como não ocorridas.
Com efeito, o que numa ou noutra há de analítico, isto é, um simples
desmembramento dos conceitos que residem a priori em nossa
razão, não chega a constituir ainda o fim, mas apenas uma promoção
com vistas à verdadeira Metafísica, isto é, ampliar sinteticamente o
seu conhecimento a priori... (2005:64).

A condição primeira deveria ser uma análise crítica sobre nossa


capacidade de conhecer a priori, encontrando-se os limites desse conhecimento
174 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

apriorístico. Deve-se romper com o dogmatismo no qual a razão pode conhecer


objetos independentemente deles. O exame dessa condição é essencialmente
necessário para a constituição da Metafísica como Ciência.
Para Kant, os esquemas a priori têm limites. Aplicam-se apenas aos
objetos da experiência, conhecendo apenas fenômenos e não a coisa em si.
Conhecem-se apenas representações (fenômenos) e não a essência da coisa em
si; e fenômeno significa a coisa como ela se apresenta para o sujeito segundo
seus esquemas explicativos (e não como falseamento ou ilusão). Embora nossa
faculdade de conhecer a priori aplique-se a objetos da experiência, constituindo-
se em limite, de acordo com Kant, nossa razão exige conhecimentos que
ultrapassem esses limites, essas experiências. O incondicionado, ou seja,
aquilo que não está submetido a relações causais, não pode ser conhecido –
caso de Deus, liberdade, imortalidade da alma etc. – porque ele não é objeto de
experimentação. Contudo, esse incondicionado pode ser pensado, formulado,
levando Kant a propor a distinção, a separação, entre o que é pensar e o que é
conhecer.
Conhecer significa que a coisa precisa existir realmente e ser objeto da
experiência. Embora para Kant todo conhecimento comece com a experiência,
o incondicionado não é objeto de experiência e exatamente por isso não pode
ser conhecido. Mas o homem é sensível e inteligível. Pensar é possível sem
que o objeto exista. Eis o princípio de contradição, do círculo perfeito - escreve
Kant - que não existe na natureza. A Matemática, por exemplo, rege-se pelo
pensamento sem contradição: pensa-se apenas baseado em conceitos e idéias,
independentes da experiência.
A segunda condição kantiana acerca da transposição da Metafísica
como ciência é a investigação dos objetos incondicionados, que só se efetivam
no campo da Moral e não no campo da Razão teórico-especulativa.
Para Kant os objetos da Metafísica não podem ser conhecidos, mas só
pensados, não se situando no campo da razão teórica, mas sim no campo da
razão prática (da Moral). Mas o procedimento dogmático da razão é típico
da ciência porque ela e a religião afirmam-se como dogmas (como verdades
absolutas), sejam na expressão da fé ou pelo estabelecimento dos princípios
a priori da razão. Kant opõe-se ao dogmatismo - mas não ao pensamento
dogmático -, que consiste na pretensão de progredir-se no conhecimento com
base num conhecimento puro (a priori, sem experiências), seguindo princípios
usados pela razão, sem se perguntar de que modo e com qual direito se
chegou a eles. Esses 12 princípios são afirmados como verdadeiros sem se
realizar qualquer exame. De acordo com Kant os princípios que fundamentam
o conhecimento devem ser examinados, criticados.
Kant dirige sua crítica aos racionalistas, dizendo que com a razão pura
pode-se conhecer, desde que se examinem suas capacidades de afirmação da
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 175

verdade, de seus absolutismos. O dogmatismo passa a assumir um sentido


pejorativo com Kant, na medida em que ele o opõe ao procedimento da crítica
(do exame). Os dogmáticos acreditariam que as verdades dos conhecimentos
dependem exclusivamente da razão pura, sem nenhum apoio na experiência.
As idéias inatas racionalistas pretendiam constituir-se em verdades absolutas
e sustentar a Metafísica; e Kant, com seu criticismo, romperá com esse
dogmatismo racional que predominava na Metafísica.
O criticismo, no sentido kantiano, significa a oposição ao racionalismo
dogmático. Enquanto esse explica o conhecimento somente através da razão, a
filosofia crítica procura examinar a possibilidade de submeter a razão a priori
a um exame, a uma crítica: segundo Kant, deve-se interrogar a razão, fazendo
afirmações somente após submetê-las a interrogatórios.
Essa postura kantiana introduziu a crítica no âmbito da própria filosofia,
criando uma filosofia crítica, indicando-lhe suas potencialidades e limites. Tal
criação encerra o reinado do racionalismo (dogmas da razão) e do empirismo,
fundando a síntese entre eles, que é o criticismo, renascendo novas perguntas
acerca do sujeito que conhece: quem é ele? O que é subjetividade? Qual o
papel de quem pensa?
Para Kant, até antes de sua revolução copernicana, a Metafísica estava
envolvida numa grande confusão porque estava confinada apenas na razão
e não podia ser questionada pela experiência. A razão necessita do teste da
experiência, porque ela precisa de limites. Ainda nas definições de Kant, ele
afirma que essa Metafísica não distingue juízo analítico dos juízos sintéticos.
Ele define juízo como sendo a relação entre o sujeito e o predicado.
Os juízos analíticos (que são a priori) prescindem da experiência e os juízos
sintéticos (que são a posteriori) são obtidos da experiência. O juízo que tem
objetividade é o juízo sintético. Ele inova ao criar os juízos sintéticos a priori,
que são juízos de ampliação (fazem o conhecimento avançar) e são universais
e necessários. Para Kant essa é a investigação fundamental: descobrir como
esses juízos são possíveis. Para ele todas as ciências estão envolvidas com
juízos sintéticos a priori. Cabe agora, compreendê-los na Metafísica e, assim,
resgatá-la de seu dogma ancestral.
Kant anuncia que o conhecimento começa com a experiência, mas não
se origina dela. Sua ruptura com o racionalismo torna-se bastante clara, pois
se para os racionalistas algumas idéias são inatas (embora nem todas), para
ele não se admite a regular e freqüente existência desses tipos de idéias. Para
ele, tudo começa com a experiência: os objetos tocam os sentidos, que por
sua vez produzem representações (empíricas), que acionam nossa capacidade
de entendimento (conhecimento), com a finalidade de compará-las, conectá-
las ou mesmo separá-las. De acordo com o tempo, segundo Kant, nenhum
conhecimento em nós precede a experiência, tudo começa exatamente com
176 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

ela, mas a origem do conhecimento não reside na experiência: aquele apenas


começa com esta.
No raciocínio kantiano, há que se distinguir o significado de “começo
de algo” do significado de “origem de algo”. O “começo de algo” tem a ver
com a temporalidade, com o tempo cronológico, não havendo conhecimento
inato. Já a “origem de algo” não coincide com a temporalidade cronológica,
relacionando-se com sua causa racional, com sua fonte, que nem sempre
coincide com o tempo cronológico. A “origem” relaciona com causa e é
conhecida através da razão: a criança nasce cronologicamente, mas sua origem
está no processo de fecundação.
Para Kant, o conhecimento seria um composto de dois elementos:
1-) experiência (algo que recebemos por meio de impressões sensíveis) e 2-)
faculdade de conhecimento própria do sujeito (aquilo que o sujeito traz para o
conhecimento a partir de sua razão). Escreveu ele (2005:91):

Nosso conhecimento surge de duas fontes principais da mente,


cuja primeira é a de receber as representações (a receptividade
das impressões) e a segunda a faculdade de conhecer um objeto
por estas representações (espontaneidade dos conceitos); pela
primeira um objeto nos é dado, pela segunda é pensado em relação
com essa representação (como simples determinação da mente).
Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso
conhecimento...

Ele argumenta que a experiência não fornece nada pronto, organizado,


ao contrário dos empiristas, que afirmavam que o conhecimento é o registro
da experiência sensível na idéia (na memória). Para os empiristas a idéia
representa uma simples caixa de memória, onde se processam os registros
através de associações, comparações etc. O objeto predominaria sobre o sujeito,
que se torna passivo, mero receptor. Em Kant, é o sujeito e não o objeto quem
organiza os elementos numa certa direção. Ele entende que o conjunto de um
objeto é um caos e não organização.
Os empiristas partem dos objetos que, ao provocarem percepções
(sensações), produzem representações mentais, afetando as idéias (a razão) e
atingindo-se o conhecimento. O objeto é ativo e o sujeito, passivo, no alcance
do conhecimento. Kant inverte essa equação: reconhece que tudo começa
com as sensações, as impressões sensíveis provocadas pelo objeto, mas o
sujeito adiciona algo a essas impressões, que são as formas de organização da
experiência, atingindo-se assim, na forma de síntese (juntando experiência e
razão), o conhecimento.
O conhecimento é um composto, formado pelo somatório (ou síntese)
entre impressões sensíveis extraídas do objeto e algo que o sujeito acrescenta
às referidas impressões, com vistas a organizar o caos frente ao conjunto inicial
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 177

extraído diretamente das impressões sensíveis. Portanto, não há conhecimento


sem sujeito. Kant afirma que o espaço e o tempo são as formas da sensibilidade,
ou seja a faculdade de ter percepções. O espaço é a forma da experiência ou
percepções externas ao sujeito e o tempo é a forma das vivências e percepções
internas ao sujeito, o que lhes assegura, ao sujeito, a edificação de impressões
sensíveis (KANT, 2005:80-81).
Além disso, o conhecimento é exatamente a construção do sujeito,
mas aquilo que o sujeito acrescenta aos objetos (forma e organização) não é
fácil de ser identificado. Pois, como distinguir o que vem do objeto e o que
vem do sujeito ? Kant indicará a necessidade de se abstrair, analisar (separar,
decompor) esse composto do conhecimento, para que se possa entender como
cada parte funciona: ele fará uma “cirurgia no ato cognitivo”.
Para ele, qualquer conhecimento humano é uma síntese de um
composto, do mais vulgar ao mais complexo. Só é possível entender o
conhecimento separando os compostos, elucidando cada um dos elementos.
Há que se filtrar a relação entre sujeito e objeto. Deve-se decompor o caos que
representa o objeto da experiência, cabendo ao sujeito quebrar aquele conjunto
objetivo acrescentando-lhe algo. Para isso, Kant anuncia seu próximo passo:
distinguir o conhecimento empírico (que é o 1º elemento da composição) do
conhecimento puro (2º elemento da composição); lembrando que para Kant,
o conhecimento puro independe da experiência (das impressões sensíveis),
sendo, portanto, o conhecimento a priori.
Em Kant, o a priori é apenas a forma do conhecimento, que é vazia e
que não se constitui, sozinha, do conhecimento (já que esse é uma síntese –
um composto). O a priori pertence ao sujeito que nasce com certas estruturas
formais que permitem apreender as impressões sensíveis. A razão humana
já nasceria com certas estruturas que já contém categorias em formas vazias.
Nascemos com as condições formais (formas vazias) e não com o conhecimento.
Só chegamos ao conhecimento através da síntese: a experiência (impressões
sensíveis) preenche as formas vazias do apriorismo do sujeito. Eis o composto
de Kant, que nos leva verdadeiramente ao conhecimento possível. Uma de
suas frases mais famosas a respeito da relação entre forma e conteúdo é:
“intuições sem conceitos são cegas; conceitos sem matérias são vazios” (apud
PASCAL, 2005:75).
O homem precisa de interpretações para dar sentido às coisas e essas
interpretações são organizadas pelo sujeito, através de esquemas explicativos,
esquemas estes que são necessários, como referências anteriores, para que
possamos processar as novas experiências.
Embora Kant faça a distinção entre conhecimento puro e empírico,
ele ainda faz a distinção entre conhecimento puro e conhecimento a priori.
Para ele, um conhecimento a priori pode ser não puro, contendo um conceito
178 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

com a experiência. O conhecimento puro não guarda qualquer relação com a


experiência, na verdade independe dela. Já o conhecimento a priori não puro
utiliza juízos que encontramos na experiência.
Enquanto os conceitos remetem ao “o que é do objeto”, os juízos são
afirmações baseadas na conexão dos conceitos. Ao conectarmos conceitos,
formamos juízos que carregam valores extraídos das impressões sensíveis (da
experiência), sem a necessidade de realizar as referidas experiências: antes
de mergulharmos na água sabemos que podemos morrer afogados, porque
já percebemos essa relação de causa e efeito. Esse tipo de juízo extraído da
experiência, mas que independe dela para que se alcance o conhecimento,
é definido por Kant como sendo o conhecimento a priori não puro. Ele não
provém exclusivamente da razão. Mas depende essencialmente do sujeito.
Tal fundamentação permitirá a Kant anunciar que só conhecemos
fenômenos, que são imagens e formas. Não conhecemos a coisa em si, pois
ela não contém o sujeito. Kant relacionará os fenômenos ao sujeito (ao “para
si” e não ao “em si” característico dos objetos da metafísica - que significava a
“coisa em si” - nos objetos).
Portanto, no raciocínio kantiano, todo sujeito (toda subjetividade) é
composto de razão (entendimento) e sensibilidade. O que irá diferenciar será
qual o elemento que presidirá esse sujeito ou, então, como eles se articularão
na construção do objeto. Os racionalistas e os empiristas entendem que todo
conhecimento é objetivo (do objeto), mas discordarão sobre como isso ocorre.
Em Kant, também há a compreensão da objetividade, mas baseada no sujeito
e não no objeto.
Retomando a diferença entre conhecimento puro ou empírico, Kant
anuncia que há dois critérios para que os identifiquemos: são os critérios da
universalidade (aplicação universal do critério para todos os objetos) e da
necessidade (critério que independente de provações, transcende). A rigor, a
universalidade e a necessidade permitem o conhecimento a priori, já que na
experiência tudo é contingente (não se aplica a todos) e particular (necessita
de prova, é específico, único). A necessidade (como a relação de causa e efeito)
e a universalidade são características seguras de um conhecimento a priori.
Há que se perguntar, então: como a razão conhece além da experiência?
Particularmente sobre o “como conhecer”, quando não temos objetos da
experiência, como é o caso da Metafísica? Kant responde que isso seria possível
somente através da construção de uma avaliação crítica da razão que só pode
ser feita por ela mesma.
Certos conhecimentos, como os metafísicos, estão acima dos limites
da experiência e não se pode atribuir-lhes objeto, sendo eles: Deus, liberdade
e imortalidade, por exemplo. Sobre esses conhecimentos, repousariam
investigações de nossa razão, que são muito mais sublimes do que as
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 179

investigações dos fenômenos. Mas qual a ciência que estuda esses “objetos”
sublimes? É, a Metafísica e segundo Kant, ela seria dogmática, porque não faz
um exame prévio sobre sua capacidade humana de conhecer objetos que estão
além da experiência. Como seria possível conhecê-los? Kant afirma, ainda,
que quando se está acima da esfera da experiência, se está seguro de não ser
contestado pela própria experiência. Ele criticará essa Metafísica tradicional,
dogmática, dizendo que nessa, o conhecimento não evolui e nem avança, pois
esta Metafísica não distingue juízo analítico de juízo sintético.
Para ele, o juízo é a relação entre sujeito e predicado. Juízo, portanto,
é diferente de conceito (que explica o que é a coisa em si). Para ele, os juízos
analíticos prescindem da experiência e os juízos sintéticos são obtidos na
experiência, sendo os juízos que apresentam objetividade.
Ele inova ao criar os juízos sintéticos a priori (quando só se conhecia
os juízos sintéticos a posteriori). Os juízos sintéticos a priori são os juízos
de ampliação (fazem o conhecimento avançar) e são também universais e
necessários. No raciocínio kantiano, essa é uma questão importante: descobrir
como esses conhecimentos são possíveis, retirando a Metafísica de seu sono
dogmático, dotando-a de avanços em sua capacidade de conhecimento. Para
Kant, todas as ciências estão envolvidas com juízos sintéticos a priori.
Como a Metafísica adotará os juízos sintéticos a priori? Ou seja, como
a metafísica é possível como ciência, sabendo-se que o objeto de estudo da
Metafísica é a própria razão? Há que se debruçar e compreender como a razão
atinge os juízos sintéticos a priori.
Quais são a próprias possibilidades da razão? Trata-se de realizar um
exame crítico da razão, discernindo o que a razão pode fazer e o que é incapaz
de fazer, para saber o quanto podemos confiar nela. Para Kant a razão não
percebe senão aquilo que ela mesma produz segundo seu próprio projeto.
Ele afirma que a Matemática e a Física desenvolveram-se com base
em juízos sintéticos a priori, enquanto a Metafísica paralisou-se baseada em
juízos analíticos; ou seja, os juízos analíticos se limitam a descrever conceitos e
analisar conteúdos, não trazendo qualquer elemento novo (nenhum predicado
novo que se ligue ao sujeito); enquanto os juízos sintéticos, ao contrário, são
juízos que adicionam novos predicados ao sujeito.
Os juízos analíticos são a priori e os juízos sintéticos, originários da
experiência, são considerados a posteriori. Kant cria uma terceira classe de
juízos: os juízos sintéticos a priori. Eles são universais e necessários tais quais
as características encontradas nos juízos analíticos, mas, além disso, permitem
ampliar os conhecimentos. Mas seriam eles possíveis no campo da Metafísica?
O caminho se inicia com a compreensão do significado das formas a
priori do espírito, enquanto faculdade de conhecimento. Essas formas a priori
são os quadros universais e necessários através dos quais o espírito humano
180 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

percebe o mundo. No âmbito da faculdade humana de conhecimento, faz-se


necessário distinguir duas situações: uma receptiva, dada pela sensibilidade
ou faculdade das intuições; e uma espontânea, dada pelo entendimento ou
faculdade dos conceitos. O objeto, dado à sensibilidade em suas intuições
sensíveis, é pensado pelo entendimento e seus conceitos. Conhecer, portanto,
significa ligar em conceitos a multiplicidade sensível. A matéria a ser conhecida
é, ao mesmo tempo, dada e ligada no interior das formas a priori, havendo,
enfim, formas a priori da sensibilidade e formas a priori do entendimento.
As formas a priori da sensibilidade, ou intuições puras, são o espaço e o
tempo. É através deles que o espírito humano vê ou percebe as coisas. Espaço
e tempo são os cenários necessários e universais nos quais encontramos as
intuições empíricas (como os cinco sentidos, os sentimentos, a dor etc.). O espaço
é a forma do sentido externo, e o tempo é a forma do sentido interno. Antes de
tudo, sabemos que no mundo há 3 dimensões (comprimento/profundidade,
altura e largura) – que configuram o espaço – e uma temporalidade de espírito
- dimensão do tempo em nosso interior, em nossas mentes.
Por outro lado, as formas a priori do entendimento (conhecidas como
conceitos puros) são as maneiras próprias que o espírito humano tem em
conceber as coisas, ou seja, organizar e ordenar o múltiplo dado na intuição.
Reconhece-se que as qualidades e atributos sensíveis, das coisas e objetos,
encontram-se inerentes às substâncias (ou às coisas em geral) assim como uma
sucessão de fenômenos só pode ocorrer como uma sucessão causal. Nesses
casos, há como que um ponto imutável, conservado, quer seja nas substâncias
ou nos fenômenos, quando estes sofrem quaisquer tipos de mutações; mas
aquilo que permanece estável, imutável, é o que permite, como ponto de
partida, conceber qualquer coisa. Essa imagem imutável, permanente,
conservada, dos fenômenos nada mais é do que aquilo que o espírito exige das
coisas para que elas possam ser conhecidas. Para Kant, lembremos que a razão
não percebe senão aquilo que ela mesma produz segundo seu próprio projeto.
Mas essas categorias (substâncias ou fenômenos) não são mais do que
formas, maneiras de ligar as coisas. Como formas, por si mesmas, nada nos
dão a conhecer. Somente a intuição sensível pode fornecer-lhes um conteúdo,
uma multiplicidade a ser ligada:

Em síntese, a metafísica ultrapassaria todas as limitações inerentes


aos atos de conhecer, fazendo afirmações inteiramente ilegítimas.
Ela aplica as categorias a priori do entendimento fora dos limites da
intuição sensível; os juízos sintéticos com os quais se apresenta são na
verdade falsos, porque são sínteses no vazio. A metafísica pretende
conhecer as coisas-em-si e essa é uma pretensão contraditória: o
ato de conhecer, pela sua própria natureza, transforma as supostas
coisas-em-si em fenômenos, isto é, aparências (KANT, 2005: 14).
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 181

Kant afirma que no mundo do sensível, não percebemos senão relações;


mas no caso do espírito, ele aspira ao absoluto, ao incondicionado, a algo que
o leve a compreender as sucessões de condições, devendo chamar-se razão ao
entendimento enquanto pretende captar o incondicionado e, chamar de idéias,
os conceitos obtidos nesse processo incondicional. Nesse raciocínio, o mundo
como um todo seria uma idéia da razão, como a alma, considerada como
substância existente em si mesma. Mesmo Deus, substância das substâncias e
causa das causas, enquadra-se como idéia da razão.

Considerações finais
O problema a que Kant se dedicou foi verificar a possibilidade de
assegurar garantias científicas para o conhecimento Metafísico através
da aplicação, a essa última, dos juízos sintéticos a priori, característicos da
Ciência. Para tanto, ele analisa as categorias envolvidas em ambas as formas
de conhecimento. Contudo, segundo Kant, as categorias de conhecimento
tornam entendimento constitutivo, uma vez que é ele quem dá forma ás
experiências. Como tais categorias são preenchidas com os conteúdos das
intuições sensíveis, a razão tem uma função simplesmente reguladora: suas
idéias organizam e orientam o caminho do pensamento para o absoluto, mas
nunca conseguem atingi-lo. Para Kant, então, isso torna a Metafísica uma
ilusão inevitável, pois podemos formular e pensar a alma, a liberdade, Deus,
o mundo, entre outros, mas nunca poderemos alcançá-los e nem conhecê-los,
não sendo possível, portanto, aplicar os juízos sintéticos a priori na Metafísica,
assim como se faz nas Ciências.
Como alternativa ao filósofo, restará o campo da Moral, no âmbito
da razão prática, portanto fora do campo da Crítica da Razão Pura, para se
ancorar a compreensão da Metafísica. Por fim, concluímos, com Kant, que os
juízos sintéticos a priori não asseguram cientificidade à Metafísica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2000.
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Jou. Capítulos XVII e XVIII, pp. 215-260, 1998.


PASCAL, Georges. O Pensamento de Kant. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1983.
_______________. Compreender Kant. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 4ª. Edição,
1988.
SILVEIRA, F. L. de. A teoria do conhecimento de Kant: o idealismo transcendental.
Caderno Brasileiro de Ensino de Física. V.19, número especial, pp. 28-51 –
junho. Florianópolis/SC: Universidade Federal de Santa Catarina, 2002.
A MOTIVAÇÃO PARA DEMISSÃO DE
EMPREGADOS PÚBLICOS

JOÃO ANTONIO FACCIOLI1


Resumo
O presente trabalho tem como objetivo o estudo e discussão quanto à necessidade de
apresentação dos motivos da dispensa dos empregados públicos de empresas públicas e
sociedades de economia mista, mesmo quando se afigura a rescisão contratual como sendo
por dispensa sem justa causa por iniciativa do empregador. Para o devido enquadramento
e reflexão quanto ao tema, torna-se imprescindível a análise dos conceitos de administração
pública e seus entes de composição, princípios que a regem e ramo do Direito que se aplicam
às suas relações jurídicas. Além disso, necessária uma análise da jurisprudência existente e
sua tendência contemporânea e futura. Da análise ponderada dos diversos entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais, conclui-se pela existência da necessidade de motivação do
ato administrativo no sentido de possibilitar a rescisão do contrato de trabalho, garantindo a
aplicação dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública em nosso país,
impedindo a utilização da discricionariedade do administrador público no ato demissional.

PALAVRAS-CHAVE: Empregado público; Empresa Pública; Motivação; Rescisão;


Sociedade de Economia Mista.

Introdução
A importância científica do tema se mostra clara, na medida em que a
legislação constitucional e infra-constitucional exigem certame público para
a admissão de empregados em empresas públicas e sociedades de economia
mista, tudo com o objetivo de evitar fraudes ou apadrinhamentos de pessoas,
desafiando o princípio da impessoalidade da administração pública, contudo,
negam a tais empregados o direito a terem conhecimento dos motivos que
ensejaram sua demissão.
Não obstante o Colendo Tribunal Superior do Trabalho ter editado
a Súmula nº. 390 de sua jurisprudência negando direito à estabilidade no
emprego, contudo, deixou de apreciar a questão aqui discutida, no sentido de
necessidade de justificar-se a demissão de empregado público concursado. A
oportunidade do presente trabalho se mostra pertinente em face da existência
de inúmeros julgados contrariando a jurisprudência sumulada e a criação de
situações constrangedoras em empresas públicas e sociedades de economia
mista que, por interesses de poderosos, se preterem empregados em detrimento
de outros com merecimento duvidoso. Sendo assim, mostra-se oportuno
1
Bacharel pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-
CAMPINAS) em 1986, advogado inscrito na OAB/SP sob o n.º 92.611. Foi Coordenador do Exame
da Ordem (OAB) em Campinas. Integrante da Banca Examinadora de Concursos para Ingresso na
Magistratura do Trabalho da 15ª Região (Campinas). É Professor de Direito e Processo do Trabalho da
Escola Superior de Advocacia, Examinador do Exame de Ordem da Ordem dos Advogados do Brasil.
Foi Diretor-Tesoureiro da Associação dos Advogados Trabalhistas de Campinas. Participa e profere
palestras em Congressos e Seminários. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho
pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É membro suplente do Conselho Fiscal da Associação dos
Advogados Trabalhistas de Campinas-AATC (2008-2010).
184 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

o debate acerca de matéria tão fascinante que envolve, além da ciência do


Direito, a ciência Política, já que não são poucos os escândalos atualmente
veiculados na mídia acerca de favorecimento de parentes de poderosos, em
desrespeito aos princípios que norteiam a administração pública.
Em pesquisa bibliográfica ficou claro que a orientação da Súmula nº.
390 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho não se presta para aplicação
aos casos concretos que vêm sendo submetidos à apreciação do Poder
Judiciário. Encontram-se situações em que o empregado de empresas públicas
e de sociedades de economia mista tem seu contrato de trabalho rescindido
por mero capricho de seus superiores hierárquicos, utilizando-se de critérios
eminentemente subjetivos para justificarem a demissão, quando é certo
que, pelos princípios norteadores da administração pública, em especial da
motivação, os critérios devem ser objetivos, os quais são passíveis de apreciação
quanto à correção ou não da atitude tomada pelo administrador público.
Ante a omissão do Poder Judiciário em garantir transparência para a
administração pública, em se tratando dos motivos ensejadores da demissão
de empregados públicos, há casos de entidades sindicais que firmaram acordos
coletivos de trabalho prevendo vedação à demissão de tais empregados
quando não presentes motivos técnicos, econômicos ou disciplinares,
demonstrando de forma clara a necessidade de proteção a tais trabalhadores,
já que lhe é exigido concurso público para admissão, verdadeira maratona
de provas e testes, e para sua demissão basta que um administrador público
pretenda demiti-lo e não terá necessidade de apresentar motivação. Parece-
nos bastante singular a situação, já que a admissão por concurso público visa
proteger o erário público e a demissão também, já que implica em gastos para
o pagamento das verbas rescisórias, bem como no treinamento dado a este
trabalhador, fruto de custos, e que não será aproveitado.

Conceito de Servidor Público e de Empregado Público
Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, dentro do gênero Agentes
Públicos se inclui uma espécie chamada de Servidor Público que se constitui
em servidor ocupante de cargo público e servidor empregado público e pode
ser definido da seguinte forma:

8. Servidor público, como se pode depreender da Lei Maior, é a


designação genérica ali utilizada para englobar, de modo abrangente,
todos aqueles que mantêm vínculos de trabalho profissional com
as entidades governamentais, integrados em cargos ou empregos da
União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias
e fundações de Direito Público. Em suma: são os que entretêm com
o Estado e com as pessoas de Direito Público da Administração indireta,
relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual sob
vínculo de dependência. (Bandeira de Mello, 2007, p. 240).
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 185

Já Maria Sylvia Zanella Di Pietro coloca servidor público como gênero


e o empregado público como sendo espécie deste, caracterizando-se por
manter vínculo de emprego regido pelas normas da Consolidação das Leis do
Trabalho. A distinção entre ambos ficaria da seguinte forma:

Quando se passou a aceitar a possibilidade de contratação de


servidores sob o regime da legislação trabalhista, a expressão
emprego público passou a ser utilizada, paralelamente a cargo público,
também para designar uma unidade de atribuições, distinguindo-se
uma da outra pelo tipo de vínculo que liga o servidor ao Estado;
o ocupante de emprego público tem um vínculo contratual, sob a
regência da CLT, enquanto que o ocupante do cargo público tem
um vínculo estatutário, regido pelo Estatuto dos Funcionários
Públicos que, na União, está contida na lei que instituiu o regime
jurídico único (Lei n.º 8.112/90). (Di Pietro, 2006, p. 450/451).

Empregado público, portanto, não possui uma definição pacífica na


jurisprudência, contudo, pode ser conceituado como sendo o servidor que
mantêm, com a administração pública, relação contratual regida pelas normas
da Consolidação das Leis do Trabalho, ocupando um emprego público e, pois,
admitido mediante concurso de provas e títulos, podendo sua relação de trabalho
ser feita por contrato de trabalho por prazo determinado ou indeterminado.

Conceito de Empresa Pública e Sociedade de Economia Mista


Pela facilidade e didática das definições feitas pelo autor Celso Antonio
Bandeira Mello, serão utilizados seus conceitos quanto à empresa pública e
sociedade de economia mista, como a seguir transcrito:

Deve-se entender que empresa pública federal é a pessoa jurídica


criada por força de autorização legal como instrumento de ação
do Estado, dotada de personalidade de Direito Privado, mas
submetida a certas regras especiais decorrentes de ser coadjuvante
da ação governamental, constituída sob quaisquer das formas
admitidas em Direito e cujo capital seja formado unicamente por
recursos de pessoas de Direito Público interno ou de pessoas de suas
Administrações indiretas, com predominância acionária residente
na esfera federal (Bandeira de Mello, 2007, p. 179).

Sociedade de economia mista federal há de ser entendida como


a pessoa jurídica cuja criação é autorizada por lei, como um
instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade jurídica
de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais
decorrentes desta sua natureza auxiliar da atuação governamental,
constituída sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com
direito a voto pertençam em sua maioria à União ou entidade de
sua Administração indireta, sobre remanescente acionário de
propriedade particular. (Bandeira de Mello, 2007, p. 183/184).
186 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Por conseguinte, tem-se que as empresas públicas e as sociedades


de economia mista sujeitam-se à legislação aplicável aos entes públicos da
administração e também à legislação aplicável às empresas privadas em geral.
Tem-se, pois, que existem dois tipos específicos e fundamentais de empresas
públicas e sociedades de economia mista, quais sejam: a) prestadoras de
serviços públicos ou administradoras de obras públicas e afins; b) aquelas que
exploram atividade econômica.
Necessário frisar que, no Brasil, há domínio da legislação pública
em detrimento da privada no caso das empresas públicas e sociedades de
economia mista, como bem analisa Celso Ribeiro Bastos, a seguir:

Há, portanto, uma utilização do direito privado, que cede, contudo,


nos pontos em que a força dominante da natureza estatal impõe,
sem dúvida nenhuma, a derrogação das regras privatísticas. No
caso brasileiro houve um outro fator que em boa parte tornou-se
responsável pela não-submissão de maneira plena das sociedades de
economia mista e empresas públicas ao regime de direito privado.
É que a maior parte dessas entidades não são, a rigor, interventoras
no domínio econômico, isto é, gestoras de uma área comercial ou
industrial da alçada privativa dos particulares, na qual o Estado
estivesse ingressando a título excepcional e nos limites impostos
pela Constituição (Bastos, 2002, p. 122).

As empresas públicas, em desiderato, por desenvolverem atividades que


envolvem uma característica tipicamente pública, acabam por ser reguladas
mais diretamente e de perto pelas regras do Direito Público, enquanto que as
sociedades de economia mista, por desenvolverem a exploração de atividade
econômica necessitam de uma maior dinâmica em decisões e atitudes, de sorte
que se sujeitam mais às regras de Direito Privado. No entanto, o certo é que
ambas sujeitam-se, seja com maior ou menor intensidade, às regras do Direito
Público.

Regime de trabalho de seus empregados


Na Administração Pública são vários os regimes de trabalho dos
servidores, não obstante haja uma polarização entre os ocupantes de cargos
públicos (regime estatutário) e os ocupantes de empregos públicos (regime da
CLT). Considerando que a sociedade de economia mista se trata de empresa
pública constituída por capital público e também por capital privado e que,
em muitos casos executa atividades econômicas próprias da iniciativa privada,
explorando atividade econômica, se sujeita à legislação aplicável às pessoas
jurídicas de direito privado (art. 173, § 1º, II, Constituição Federal).
Não obstante as empresas públicas sejam constituídas apenas de capital
público, é certo que às mesmas também se aplicam as regras estabelecidas no
art. 173 da Constituição Federal. Decorre daí que a relação de trabalho dos
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 187

empregados das empresas públicas e das sociedades de economia mista é


regulada pelo regime próprio das empresas privadas, ou seja, pelas regras da
Consolidação das Leis do Trabalho.

Forma de contratação de empregados e trabalhadores


Antes da Constituição Federal de 1988, as empresas públicas e as
sociedades de economia mista poderiam promover a contratação de seus
empregados sem qualquer formalidade, bastando simples contratação como
qualquer outra empresa privada. Não havia necessidade de concurso público.
A partir da Constituição Federal de 1988, apesar de a relação de trabalho
entre de seus empregados ser regida pelas normas da Consolidação das Leis
do Trabalho, a forma de contratação passou a ser prevista de forma diversa,
isto é, exigindo “aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e
títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma
prevista em lei” (art. 37, II, CF/88), sem o que o empregado público não pode
ser contratado.
A contratação dos empregados públicos, portanto, não está mais sujeita
ao poder discricionário do administrador público, na medida em que a lei
impede que a contratação dos trabalhadores se dê na forma da legislação
privada, salvo exceções próprias em lei, sem o que o empregado público não
pode ser contratado (Art. 37, I, II, XVI e XVII, Constituição Federal). Pelas
disposições constitucionais verifica-se que, apesar de o regime jurídico
adotado ser pelas regras da CLT, a contratação do empregado público
depende de aprovação em concurso público de provas e títulos com vedação
de acumulação remunerada de empregos públicos, salvo as exceções legais.
Comentando acerca da intervenção do direito público na relação de
trabalho dos empregados públicos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, discorre:

O artigo 173, § 1.º, II, (na redação dada pela Emenda Constitucional
n.º 19/98), impõe a sujeição às normas trabalhistas aos empregados
das empresas públicas, sociedades de economia mista e suas
subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou
comercialização de bens ou de prestação de serviços. No entanto,
a própria Constituição, no capítulo concernente à Administração
Pública (art. 37), derroga parcialmente a legislação trabalhista, ao
dispor normas que se aplicam a todos os servidores da Administração
Pública Direta ou Indireta, merecendo realce: a exigência de
concurso público para ingresso; proibição de acumulação de
cargos, empregos e funções (com as exceções previstas na própria
Constituição) (Di Pietro, 2005, p. 403).

Existe exceção relativa aos cargos em comissão de livre nomeação


e exoneração com previsão expressa em lei, contudo, a regra geral exige a
realização de certame público. Nesse diapasão pode-se citar como exemplo o
188 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

diretor de uma estatal. Também há exceção no sentido de garantir à empresa


pública a competitividade no mercado em que atua, notadamente quando
explore atividade econômica. O autor Celso Antonio Bandeira de Mello aborda
a questão da seguinte forma:

Posto que as normas sobre acessibilidade e concurso público são


impositivas para todo o universo da Administração, sociedades
de economia mista e empresas públicas também estão sujeitas e
elas. Ressalve-se, todavia, que as pessoas estatais constituídas para
exploração de atividade econômica disporão de liberdade para
contratar diretamente seus empregados nas hipóteses em que (a)
a adoção de concurso público tolheria a possibilidade de atraírem
e captarem profissionais especializados que o mercado absorve
com grande presteza e interesse ou (b) nos casos em que o recurso
a tal procedimento bloquearia o desenvolvimento de suas normais
atividades no setor (Bandeira de Mello, 2007, p. 269/270).

Um aspecto que traz curiosidade é que o empregado público, depois


de aprovado em concurso de provas e títulos, se sujeita a um período de
experiência de noventa dias como previsto na CLT, findo o qual o contrato de
trabalho passa a ser por prazo indeterminado, o que o diferencia dos demais
servidores públicos (estatutários) que se sujeitam a um período de três anos
de estágio probatório.
Já na contratação de trabalhadores, e nesse sentido a contratação de
pessoas para prestarem serviços na qualidade de terceirizados, também
a autonomia das empresas públicas e das sociedades de economia mista
esbarra no Direito Público, conforme disciplina do Art. 1º, parágrafo único,
da Lei 8666/93. Desse modo, a contratação de trabalhadores terceirizados, nas
empresas públicas e sociedades de economia mista, obedecem às disposições
da Lei 8666/93, sendo necessário prévio processo de licitação, sem o que a
contratação se torna nula de pleno direito não surtindo efeitos jurídicos.
Vê-se, pois, que as empresas públicas e sociedades de economia mista
necessitam, seja para contratação de empregados diretamente, seja para
contratação de trabalhadores para prestarem serviços através de interposta
pessoa, de prévio processo público que deve atender aos requisitos legais,
portanto, aos princípios que regem a Administração Pública.

Natureza jurídica da relação de trabalho dos empregados públicos


Para o presente artigo é de importância vital a verificação da natureza
jurídica da relação de trabalho dos empregados das empresas públicas, no
caso específico, das sociedades de economia mista. Já foi visto que a sociedade
de economia mista é constituída de capital público e de capital privado,
explorando atividade econômica que, por vezes são tipicamente da iniciativa
privada, inclusive com a sujeição das normas e legislação privada para fins
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 189

trabalhistas, civis, comerciais e tributários.


Porém, verificou-se que tal espécie de empresa pública está sujeita ao
controle e fiscalização estatal, seja por parte do Poder Executivo, seja por parte
do Poder Legislativo, respondendo seu administrador pela forma de utilização
dos recursos considerados públicos por lei. A sujeição ao controle estatal é
de tal grandeza que a Constituição Federal prevê expressamente uma forma
determinada de contratação de empregados e forma de remuneração, vedando
acumulação de funções remuneradas. Contudo, a forma de contratação se dá
através de um contrato individual de trabalho regido pelas normas da CLT, de
tal sorte que a relação tem cunho contratual, como bem ensina Celso Antonio
Bandeira de Mello, com a seguir:

Sobre a natureza da relação entre Poder Público e seus empregados,


já tendo sido esclarecido que é contratual e basicamente regida pela
Consolidação das Leis do Trabalho, nada é necessário dizer, bastando
referir, como se fará mais além, as disposições constitucionais que,
por dizerem respeito a quaisquer servidores públicos, introduzem
particularidades no regime trabalhista aplicável aos empregados do
Poder Público. (Bandeira de Mello, 2007, p. 245).

Assim, a natureza jurídica da relação entre a sociedade de economia mista


e seus empregados é contratual, no entanto, mesclada com particularidades
relativas a qualquer servidor público, levando a uma possível conclusão pela
natureza jurídica mista de tal relação, já que o interesse público encontra-se
protegido e os princípios norteadores da administração pública devem ser
respeitados em todos os atos e acontecimentos de tal relação de trabalho.

A Rescisão do Contrato de Trabalho


O contrato individual de trabalho pode ser celebrado por prazo
determinado ou indeterminado, valendo dizer que naquele há uma data ou
fato determinado para o fim da relação de trabalho, enquanto que neste último
não há data ou fato já determinado para a extinção de seu tempo de duração.
Regra geral o contrato por prazo indeterminado surge da prorrogação tácita
de um contrato a termo (contrato de experiência).
Na Administração Pública, como abordado anteriormente, o empregado
é admitido mediante concurso de provas e títulos e passa por um período de
experiência de noventa dias ou mesmo de um estágio probatório de três anos
e, portanto, mantém relação de trabalho através de um contrato de trabalho
por prazo indeterminado. A doutrina faz distinção entre os vários termos
utilizados para designar a extinção do contrato de trabalho: a) resilição; b)
resolução; c) rescisão. A resilição contratual seria a extinção lícita do contrato
por exercício da vontade das partes, enquanto que a resolução contratual
seria por motivo justificado (justa causa) e, por fim, a rescisão contratual que
190 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

decorreria da nulidade do pacto laboral. Contudo, apesar da distinção feita


pela doutrina, é certo que a CLT se utiliza do termo rescisão para as várias
formas e modalidades de extinção do contrato individual de trabalho, de tal
sorte que neste artigo será utilizado o termo rescisão.
Dentre as várias modalidades de rescisão do contrato individual de
trabalho destacam-se a dispensa sem justa causa e a dispensa por justa causa,
ambas por iniciativa do empregador. No caso da dispensa por justa causa, pela
própria denominação, a rescisão contratual se dá com motivação, devendo
o empregador narrar os fatos e atos acontecidos e que justificam a dispensa
dentro do enquadramento previsto no art. 482 e alíneas da CLT.
Para o presente trabalho nos interessa o estudo da rescisão do contrato
individual de trabalho por prazo indeterminado por dispensa sem justa por
iniciativa do empregador, eis que em tais hipóteses as empresas públicas e
sociedades de economia mista não apresentam os motivos da demissão,
utilizando-se do poder potestativo outorgado ao empregador privado pela
legislação trabalhista. Por essa modalidade de dispensa o empregador apenas
comunica o empregado quanto à rescisão contratual e a data em que será feita
a homologação da rescisão e o pagamento das verbas decorrentes, ficando o
trabalhador sem qualquer informação acerca dos motivos que redundaram na
ruptura contratual.
Sequer há previsão na legislação trabalhista obrigando ao empregador
informar os motivos da rescisão contratual.

A inadequação da aplicação e da orientação da Súmula nº. 390 do TST


O Colendo Tribunal Superior do Trabalho editou sua Súmula nº. 390
com dois itens, sendo de importância para o nosso estudo o item II, com a
seguinte redação:

II – Ao empregado de empresa pública ou de sociedade de economia


mista, ainda que admitido mediante aprovação em concurso
público, não é garantida a estabilidade prevista no art. 41 da CF/88.

Pois bem, segundo a orientação da Súmula de jurisprudência do TST,


os empregados de empresas públicas e de sociedades de economia mista não
gozam da estabilidade no emprego prevista no artigo 41 da Constituição
Federal sem, contudo, abordar a questão relativa à necessidade de motivação
para a demissão de tais empregados, sem o que sua dispensa não é possível
e, por conseqüência do ato administrativo praticado sem respeito ao princípio
da motivação, se torna nula de pleno direito não surtindo efeitos jurídicos e
gerando o direito à reintegração.
Na verdade a edição da Súmula apenas “choveu no molhado”, eis que
não há dúvidas de que os empregados públicos, mesmo que contratados por
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 191

concurso público, não são detentores de estabilidade no emprego. Quanto à


estabilidade decorrente do art. 47 da Constituição Federal, desde há muito
tempo que a Doutrina outorga tal garantia somente aos servidores públicos
considerados aqueles ocupantes de cargo público. Hely Lopes Meirelles já
afirmava:

Estabilidade é a garantia constitucional de permanência no serviço


público outorgada ao servidor que, nomeado por concurso em
caráter efetivo, tenha transposto o estágio probatório de dois anos
(CF, art. 41). A nomeação em caráter efetivo é a condição primeira
para a aquisição da estabilidade. A efetividade, embora se refira
o servidor, é apenas um atributo do cargo, concernente à sua
forma de provimento, e, como tal, deve ser declarada no decreto
de nomeação e no título respectivo, porque um servidor pode
ocupar transitoriamente um cargo de provimento efetivo (casos
de substituição, p. ex.), sem que essa qualidade se transmita ao seu
ocupante eventual. (Meirelles, 1996, p. 386).

O assunto de grande importante à discussão, qual seja, se há


necessidade ou não de motivação para a dispensa de tais empregados e, se
não for apresentada tal motivação é possível o retorno do emprego na função
e emprego habituais, em face da nulidade do ato administrativo demissional,
não foi objeto de análise. As respostas mais esperadas do não foram dadas
pelo Poder Judiciário Trabalhista que, talvez, pelo acúmulo de processos e
aumento de sua competência material, tenha ficado impossibilitado de analisar
a questão com profundidade. Mas há magistrados pensando sobre o assunto,
como é o caso do de Ney José de Freitas que, sobre o tema, afirma:

O poder potestativo, como concebido no direito do trabalho, não


cabe onde comanda a denominada relação de administração. O
administrador público, na condição de gestor da res publica, não
detém liberdade para agir de acordo com sua vontade que, aliás,
é irrelevante no que se refere aos empregados públicos, pois estes
são servidores do Estado e não da pessoa do administrador público,
como ocorreria numa relação de natureza privada. Não há que se
falar, portanto, em poder potestativo do empregador, já que tal
figura somente existe (e dentro de limites razoáveis) no âmbito
de aplicação da norma trabalhista em sua pureza de conteúdo, o
que significa dizer que, no sítio de um regime híbrido, a hipótese
jamais ocorre. (...) Resulta claro, pois, que o ato administrativo
de despedimento do empregado público necessita, sob pena de
invalidade, de motivação suficiente, inexistindo espaço para
apreciação discricionária, como demonstrado anteriormente
(Freitas, 2006, p. 138).

Caberia, portanto, ao Poder Judiciário Trabalhista, mais precisamente


o Colendo TST, analisar a questão do empregado público sob o prisma da
192 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

necessidade de motivação para sua demissão, já que necessitou de concurso


público para sua admissão, não sendo possível o total desprezo aos princípios
insculpidos na Constituição Federal a respeito da Administração Pública. Não
se trata de negar à Administração Pública, mais precisamente às empresas
públicas e sociedades de economia mista, o livre exercício do poder potestativo
que é garantido pela legislação trabalhista privada, contudo, por se submeter
ao direito público, devem ser apresentadas as razões motivadoras da dispensa.

Decisões de Tribunais que desafiam a Súmula nº. 390 do TST


De grande importância se apresentam as decisões de Tribunais
Regionais do Trabalho em sentido contrário à orientação da Súmula nº. 390
do TST, na medida em que mantém a discussão relativa à necessidade ou
não de motivação da demissão sem justa causa do empregado de empresas
públicas e sociedades de economia mista, vindo a determinar a reintegração
ou retorno do empregado público demitido sem justa causa sem a oferta dos
motivos que redundaram na rescisão contratual. As decisões contrárias à
Súmula geram a possibilidade de aviamento de recurso de revista por parte
da Administração Pública, levando novamente a discussão para debates junto
ao TST e possibilitando eventual revisão da orientação jurisprudencial, o que
é muito positivo.
A seguir são transcritas algumas decisões regionais que rejeitaram
a aplicação da orientação contida no item II da Súmula nº. 390 do TST,
reconhecendo a limitação ao direito potestativo no caso de dispensa sem
justa causa de empregados públicos, adotando entendimento no sentido de
ser necessária a apresentação dos motivos que redundaram ou que levaram à
rescisão contratual.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA – DISPENSA DO
EMPREGADO – NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DO ATO – A
administração pública indireta (empresas públicas e sociedades de
economia mista), subordina-se às normas de direito público (art.
37 da CF/88), vinculada à motivação da dispensa do empregado
público.” (TRT 9ª R. – IUJ 0007/2000 – Ac. TP 12835/2001 – Rel. Juiz
Luiz Celso Napp).
Processo RO-VES 01078-2006-017-12-00-1
Origem: VARA DO TRABALHO DE MAFRA
Relatora: Juíza VIVIANE COLUCCI
RECORRENTE(s): ELCIO CLAUMIR TEIXEIRA
RECORRIDO (s): CELESC DISTRIBUIÇÃO S/A
...(omissis)...
São estes os fundamentos: os empregados das sociedades de
economia mista estão sujeitos a um regime jurídico “híbrido”, no
qual serão observadas as normas próprias das empresas privadas,
bem como as exigências e as limitações impostas aos órgãos da
administração pública. Portanto, não se justifica a dispensa do autor
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 193

promovida pela ré sem sujeitá-lo a procedimento administrativo ou


inquérito judicial visando à averiguação de motivos suficientes a
ensejar seu desligamento da empresa, sobretudo considerando o fato
de ele ter se submetido à prestação e aprovação em concurso público.
Portanto, declara-se nula a dispensa efetivada, determinando a
reintegração do autor com o pagamento dos salários e consectários
legais do período de afastamento até sua efetiva reintegração.

A influência dos princípios da administração pública no direito de rescindir


A jurisprudência que se afigura contrária à estabilidade no emprego aos
empregados públicos ou mesmo o oferecimento de motivação para a dispensa
sem justa causa apóiam-se, em parte, no princípio da prevalência do interesse
público, afirmando que as empresas públicas e sociedades de economia mista
devem cumprir o interesse público e este supera o interesse do empregado
que seria de natureza privada. Mas olvidam-se de que o fundamento para
o princípio da motivação do ato administrativo encontra respaldo em
cláusula pétrea da Constituição Federal que garante a cidadania como um
dos fundamentos da República do Brasil. Vale a transcrição da abordagem de
Celso Antonio Bandeira de Mello sobre o assunto:

O fundamento constitucional da obrigação de motivar está – como


se esclarece de seguida – implícito tanto no art. 1.º, II, que indica
a cidadania como um dos fundamentos da República, quanto no
parágrafo único deste preceptivo, segundo o qual todo o poder
emana do povo, como ainda no art. 5.º, XXXV, que assegura o
direito à apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito.
É que o princípio da motivação é reclamado quer como afirmação
do direito político dos cidadãos ao esclarecimento do “porquê”
das ações de quem gere negócios que lhe dizem respeito por serem
titulares últimos do poder, quer como direito individual a não se as
sujeitarem a decisões arbitrárias, pois só têm que se conformar às
que forem ajustadas às leis.
Por isso Ramón Real disse que o dever de motivar é exigência de
uma administração democrática – e outra não se concebe em um
Estado que se declara “Estado Democrático de Direito” (art. 1.º,
caput) –, pois o mínimo que os cidadãos podem pretender é saber
as razões pelas quais são tomadas as decisões expedidas por quem
tem de servi-los. (Bandeira de Mello, 2007, p. 109).

Não há como se afastar a influência dos princípios constitucionais


da administração pública no direito de rescindir o contrato de trabalho de
empregados de empresas estatais e sociedades de economia mista, pois o
administrador público está atrelado à necessidade legal de oferecer meios
ao cidadão para tomar conhecimento dos atos administrativos (princípio da
publicidade) e deve oferecer os motivos para a prática do ato (princípio da
motivação) para possibilitar a verificação por parte do cidadão e do Poder
194 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Judiciário, em eventual demanda, se o ato administrativo é legítimo, válido e


eficaz. Novamente, invoca-se o autor Celso Antonio Bandeira de Mello, para
justificar tal entendimento:

De outra parte, não haveria como assegurar confiavelmente o


contraste judicial eficaz das condutas administrativas com os
princípios da legalidade, da finalidade, da razoabilidade e da
proporcionalidade se não fossem contemporaneamente a elas
conhecidos e explicados os motivos que permitiriam reconhecer
seu afinamento ou desafinamento com aqueles mesmos princípios.
Assim, o administrado, para insurgir-se ou para ter elementos
de insurgência contra atos que o afetem pessoalmente, necessita
conhecer as razões de tais atos na ocasião em que são expedidos.
Igualmente, o Judiciário não poderia conferir-lhes a real justeza se a
Administração se omitisse em enunciá-las quando da prática do ato.
É que, se fosse dado ao Poder Público aduzi-los apenas serodiamente,
depois de impugnada a conduta em juízo, poderia fabricar razões
ad hoc, “construir” motivos que jamais ou dificilmente se saberia
se eram realmente existentes e/ou se foram deveras sopesados à
época em que se expediu o ato questionado. (Bandeira de Mello,
2007, p. 109).

Constata-se, assim, que tanto o administrador público quanto o ato


administrativo encontram-se atrelados à necessidade de cumprimento dos
princípios que regem a administração pública. Descumpridos tais princípios
quando da prática do ato administrativo, este fica eivado de nulidade e pode
ser considerado nulo de pleno direito possibilitando a quem for pelo ato
prejudicado socorrer-se do Poder Judiciário.

A necessidade de justificar as demissões de empregados públicos


No Direito do Trabalho brasileiro ainda não se incorporou a regra
pela necessidade de motivação para a rescisão do contrato de trabalho na
iniciativa privada, porém, já há movimentação doutrinária para a inclusão de
tal sistema de dispensa, como também recente iniciativa do Poder Executivo
em dar sinais de que apresentará proposta legislativa para que a motivação
seja obrigatória para a dispensa do empregado. Por um curto período de
tempo vigorou a Convenção Internacional nº. 158 da OIT, no entanto, o
Excelso Supremo Tribunal Federal declarou-a não executável. A transcrição
de Maurício Godinho Delgado ilustra a questão:

Conforme já explicitado, por curtíssimo período, com a incorporação


pelo Direito pátrio das regras da Convenção Internacional 158, da
OIT (o que teria ocorrido em 5 de janeiro de 1996), o Direito do
Trabalho do país teria ingressado em fase jurídica diferenciada. É
que a Convenção 158 estipulava, como regra geral de conduta no
tocante às rupturas contratuais por ato empresarial, a observância do
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 195

critério da motivação da dispensa. Eliminava, assim, a possibilidade


jurídica da denúncia vazia do contrato pelo empregador, dando
origem a uma figura nova de ruptura do contrato de trabalho – a
dispensa motivada sem justa causa celetista.
Para esse diploma internacional, não se daria “término à relação
de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso
uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu
comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da
empresa, estabelecimento ou serviço” (art. 4, Convenção 158, OIT).
O mesmo diploma normativo fazia também referência, como causas
justificadoras da dispensa motivada, embora sem justa causa, a
“motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos” (art.
13 da Convenção).
A jurisprudência trabalhista pátria não chegou a se pacificar no
tocante ao conteúdo, efeitos e à própria eficácia jurídica interna
do diploma internacional mencionado; sequer chegou a se tornar
dominante, nos Tribunais do Trabalho, a tendência compreensiva
de que, efetivamente, estivesse a Convenção 158 da OIT produzindo
repercussões jurídicas na ordem interna brasileira. Nesse quadro, o
Supremo Tribunal Federal, em setembro de 1997 (pouco mais de
um ano após o suposto início de vigência interna da Convenção,
portanto), acolheu a argüição de inconstitucionalidade da
Convenção 158, por considerar não auto-executável a regra do art.
7.º, I, da Carta Magna, até que surgisse a lei complementar referida
no preceito constitucional (preceito que teria dado suporte interno
à Convenção Internacional ratificada). Sepultou a Corte Suprema,
em conseqüência, qualquer possibilidade de eficácia jurídica ao
diploma convencional no território do Brasil. (Delgado, 2006, p.
1165/1166).

Entretanto, no caso das empresas públicas e sociedades de economia


mista, por se sujeitarem aos princípios que regem a administração pública,
afigura-se necessária a apresentação de motivação para a dispensa de
seus empregados. Para Celso Antonio Bandeira de Mello a necessidade de
motivação apresenta-se de forma clara e cristalina:

Assim como não é livre a admissão de pessoal, também não se pode


admitir que os dirigentes da pessoa tenham o poder de desligar seus
empregados com a mesma liberdade com que o faria o dirigente de
uma empresa particular. É preciso que haja uma razão prestante
para fazê-lo, não se admitindo caprichos pessoais, vinganças ou
quaisquer decisões movidas por mero subjetivismo e, muito menos,
por sectarismo político ou partidário. Com efeito, a empresa estatal
é entidade preposta a objetivos de interesse de toda a coletividade.
Quem tenha a responsabilidade de geri-la exerce função, isto é,
poder teleologicamente orientado para o cumprimento de fins que
são impositivos para quem o detém. Em rigor, o que dispõe é de
um dever-poder. O dever de bem curar um interesse que não é
próprio, mas da coletividade, e em nome do qual lhe foi atribuído
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o poder, meramente instrumental, de bem servi-la. Logo, para


despedir um empregado é preciso que tenha havido um processo
regular, com direito à defesa, para apuração da falta cometida ou
de sua inadequação às atividades que lhe concernem. Desligamento
efetuado fora das condições indicadas é nulo (Bandeira de Melo,
2007, p. 213/214).

Prossegue o autor dando a solução para os casos em que a dispensa


injusta aconteceu sem a apresentação da devida motivação e sem um processo
regular com direito à defesa: O empregado, se necessário, recorrerá às vias
judiciais trabalhistas, devendo-lhe ser reconhecido o direito à reintegração, e
não meramente à compensação indenizatória por despedida injusta (Bandeira
de Mello, 2007, p. 214).
Decorre que, dispensado o empregado público (concursado), tem o
direito de ter conhecimento dos motivos que redundaram seu desligamento,
sejam eles de ordem econômica, disciplinar ou técnica, posto que o princípio
da motivação impõe ao administrador público tal encargo, sob pena de
tornar o ato demissional nulo de pleno direito com perda de sua validade e
conseqüente eficácia.

O retorno da situação contratual ao status quo ante


Promovida a dispensa do empregado púbico, entendido como aquele
admitido através de certame público, das empresas públicas ou das sociedades
de economia mista, sem a devida justificativa ou apresentação dos motivos
que redundaram na rescisão contratual, é possível o questionamento quanto
à validade do ato demissional perante a Justiça do Trabalho, pleiteando a
declaração de sua nulidade. Declarada tal nulidade em processo judicial, tem-
se que o retorno do empregado público ao seu emprego e funções habituais
é decorrência, na medida em que a nulidade do ato demissional determina
o retorno da relação de trabalho desse empregado ao status quo ante, isto é, à
situação que se encontrava antes da demissão.
O administrador público não poderia ter promovido a demissão do
empregado público sem a apresentação da devida motivação e tal motivação
não pode ser ofertada em juízo, motivo pelo qual o retorno do empregado ao
trabalho é conseqüência lógica. Não seria o caso de fixação de indenização,
na medida em que a relação de trabalho não sofreu qualquer solução de
continuidade, não obstante o trabalhador tenha ficado sem prestar serviços.
Na verdade, como o ato administrativo nulo não surte efeitos jurídicos a
rescisão contratual não se operou e o tempo de afastamento em nada altera a
situação, sendo possível a determinação do retorno do empregado.
Não se trata aqui de retorno ao trabalho em decorrência de estabilidade,
eis que esta o empregado público não possui, tanto é que pode ser demitido
sem justa causa, mas, sim, se trata de direito à manutenção da relação de
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trabalho cujo direito adquiriu no momento em que foi aprovado em concurso


público e se efetivou através do cumprimento do período de experiência e/ou
estágio probatório. Trata-se de direito ao retorno em decorrência da nulidade
do ato demissional.

Conclusão
Do quanto foi abordado e exposto é possível chegar-se a algumas
conclusões:
- As sociedades de economia mista e as empresas públicas são reguladas
por normas de direito público e de direito privado, sujeitando-se aos princípios
que regem a Administração Pública;
- A contratação de empregados públicos por tais entes da Administração
Pública se dá através de contrato individual de trabalho regulado pela
Consolidação das Leis do Trabalho e deve ser feita mediante concurso público,
salvo as exceções previstas em lei;
- Apesar de a contratação desses empregados públicos ser feita através
de concurso público, ou seja, em respeito aos princípios reguladores da
administração pública, isto não lhes assegura a estabilidade no emprego,
porém, a sua demissão deve sempre ser motivada, mesmo quando não se dê
por dispensa por justa causa;
- A Súmula 390 do Tribunal Superior do Trabalho não esgotou a
discussão acerca dos empregados públicos, eis que somente abordou a questão
da estabilidade;
- Os princípios da motivação e da impessoalidade dão apoio para
justificar a necessidade do administrador público de motivar a demissão sem
justa causa de empregado público;
- A ausência de oferecimento dos motivos, por parte do administrador
público, para a demissão do empregado público torna o ato demissional nulo
de pleno direito, de tal sorte que não surte seus efeitos no mundo jurídico;
- Essa nulidade do ato administrativo pode ser feita mediante processo
judicial perante a Justiça do Trabalho, a qual possui o controle jurisdicional;
- A nulidade do ato administrativo demissional implica na ausência
de seus efeitos no mundo jurídico e logo traz a conclusão no sentido de ser
possível e necessário o retorno do empregado público ao emprego e função
habitual, retornando a situação contratual ao status quo ante.
Longe de pretender esgotar o assunto, o presente artigo visa renovar
e reacender a discussão acerca da questão central da demissão sem justa
causa dos empregados públicos. A Justiça do Trabalho, através da edição da
Súmula nº. 390 do TST, açodou-se e de forma equivocada somente declarou
a inexistência de estabilidade ao empregado público, olvidando-se que o
ato administrativo deve ser cercado de requisitos essenciais, sem os quais
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sua nulidade é irretorquível. Essa precipitação fez com que a maioria dos
julgados indefira a reintegração ou retorno do empregado público ao trabalho
pela justificativa simplista de inexistência de estabilidade, deixando de
analisar se o ato demissional encontra-se válido e eficaz, possibilitando ao
administrador público um poder discricionário sem os limites impostos pela
Constituição Federal. Repita-se que, talvez pelo assoberbamento do Poder
Judiciário Trabalhista, notadamente pela ampliação de sua competência
material, não tenha sido possível aos Magistrados atualizarem-se acerca dos
princípios que regem a Administração Pública e suas conseqüências para com
os administrados, por vezes confundindo estabilidade com manutenção do
contrato de trabalho por ausência de ato administrativo válido e eficaz para
sua rescisão.
É chegado o momento de promover-se a redução do poder discricionário
do administrador público, não lhe permitindo promover perseguições ou
favorecimentos sob o argumento de poder discricionário, principalmente
quando se está em jogo o futuro de um trabalhador que prestou concurso
público sem quaisquer favorecimentos e foi admitido como empregado
público, cabendo-lhe e sendo-lhe garantido o direito a ter conhecimento
quanto aos motivos que, porventura, redundaram em sua demissão.

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200 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
HISTÓRIA DO DIREITO DO TRABALHO NO
BRASIL: DO SURGIMENTO AS MEDIDAS DE
FLEXIBILIZAÇÃO DA CLT

CÉSAR AUGUSTO R. NUNES1


Resumo
Estudo histórico-crítico, a partir de fontes bibliográficas sobre Direito do Trabalho, sociedade
e economia. Investiga as origens econômicas, políticas e sociais da formação do Direito do
Trabalho brasileiro, a partir da intrínseca relação existente entre o processo de modernização
do modo de produção e a contraditória criação dos marcos regulatórios correspondentes,
próprios da natureza da sociedade capitalista. Recupera os determinantes da estruturação
capitalista no Brasil para caracterizar a contradição na regulamentação legal das relações de
trabalho. Descreve os contextos históricos da implantação da CLT (1943) e suas contradições,
bem como analisa o processo histórico neoliberal e globalizante e suas determinações sobre a
flexibilização de direitos sociais e trabalhistas ao longo dos últimos 70 anos. Aponta.

PALAVRAS-CHAVE: História do Direito do Trabalho; CLT; Globalização; Flexibilização


dos Direitos Trabalhistas.

Introdução
O Direito pode ser entendido como uma instituição ou conhecimento
criado pelo homem e, como tal, guarda intrínseca relação ao modo de produção
material dos grupos sociais. Portanto, em toda etapa da história dos homens, o
Direito pode ser entendido como um mecanismo de legitimação e controle das
relações de produção dominantes, no constante processo de desenvolvimento
das forças produtivas.
O Direito do Trabalho, tal como aprendemos nas atividades acadêmicas,
na sua forma legal e institucional, surge no seio da sociedade moderna. Por
sociedade moderna entendemos a sociedade burguesa, em suas determinações
históricas e sociológicas. Este período de consolidação da modernidade definiu-
se como o momento de organização social decorrente da união estrutural entre
o desenvolvimento das forças produtivas e a original legitimação das relações
de produção e suas consequentes relações sociais. Dizemos também que a
sociedade moderna é a sociedade do trabalho, tendo em vista as significações
jurídicas e filosóficas desprendidas sobre essa condição humana e social
fundamental. Todas as sociedades modernas buscaram ajustar o processo
de desenvolvimento das forças produtivas a adequados mecanismos de
legitimação e controle das relações de produção hegemônicas.
A trajetória histórica da organização econômica, social e jurídica do
Brasil não foi diferente. Ocorre, entretanto, que ela revela uma desafiadora
1
Advogado. Professor Universitário da Faculdade de Direito do Centro Universitário UniSEB. Especialista
em Direitos Humanos e Democracia pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal).
Mestre em Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo pela Faculdade de Sociologia
da Universidade de Coimbra (Portugal). Coordenador Acadêmico do Centro Judiciário de Solução de
Conflitos e Cidadania – CEJUSC/UniSEB de Ribeirão Preto-SP. Email: cesar.nunes@uniseb.com.br.
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identidade que necessita ser assumida: o processo tardio de industrialização


e urbanização, reconhecido a partir da década de 1930, configurou uma
contraditória constituição de uma grade regulatória de normas e disposições
jurídicas em articulação a essa estrutura produtiva. A história social e
econômica do Brasil, em suas matrizes ou referenciais basilares, reconhece a
simbiótica relação entre a tardia modernização das relações de produção com
a contraditória e anacrônica legislação reguladora desses processos. Podemos
assumir como premissa o reconhecimento de que as relações de produção
capitalistas do Brasil tomam corpo e identidade a partir dos anos de 1930. O
capitalismo no Brasil se implanta e consolida a partir da vitória da fração de
classe urbana industrial no poder, materializada na figura e simbologia de
Getúlio Dornelles Vargas e sua significação na história econômica e política
brasileira.
Dois são os marcos regulatórios que frequentemente embasam
argumentos e proposições trabalhistas no cotidiano, uma vez que explicitam
de forma marcante a sincrética relação entre modernização das relações de
produção e a contraditória legislação reguladora dos processos conflitivos
delas decorrentes: de um lado a Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT
(1943) e seus dispositivos reguladores e de outro o conjunto de novas situações
reais postas pela dinâmica das forças produtivas atuais e a lacunar contradição
de direitos e normas para essa situação.
É precisamente na intenção de compreender esses deslocamentos que
empreenderemos o presente trabalho científico recuperando, criticamente,
os marcos históricos da organização da economia, sociedade e configuração
jurídica do capitalismo no Brasil. Para tanto, efetuamos uma divisão didática
no tempo para formar cinco ciclos e tratar os diferentes aspectos de estruturação
do capitalismo no Brasil, identificando-o desde o seu surgimento na década de
1930 (implantação do capitalismo de base) até o seu estágio atual (capitalismo
globalizante). Nesse sentido apresentamos argumentos que visam demonstrar
as mudanças ocorridas no modo de produção e os limites de atuação da CLT,
tendo em vista o surgimento de medidas flexiblizadoras da relação de trabalho.

Primeiro ciclo: Capitalismo de base e nacional desenvolvimentismo (1930-


1954)
O período histórico que vai de 1930 a 1954 não representa uma escolha
aleatória de datas, mas sim a opção de definir marcos históricos que indicam um
período peculiar na política brasileira e, consequentemente, para a formação
do capitalismo de base em nosso país. Como dito, 1930 foi o ano que Getúlio
Vargas chegou ao poder por meio de um processo histórico definido como a
Revolução de 1930, desencadeada a partir do assassinato de João Pessoa e a
ruptura da aliança entre as oligarquias regionais que mantinham a política do
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 203

“café com leite”, representada pela Primeira República (1889-1930).


Em seu governo, Vargas foi criando condições para o estabelecimento
do capitalismo no Brasil. Em 1933, por exemplo, ele criou o Instituto do
Açúcar e do Álcool (IAA), com objetivo de prestar amparos aos usineiros
que tinham sofrido significativas perdas econômicas após a crise de 1929,
além de desvalorizar o câmbio nacional com evidente objetivo de diminuir a
dependência das importações. Tal política de desenvolvimento também incluiu
investimentos no setor de transportes, de cargas, na produção e distribuição de
energias e na criação de uma indústria de base. Vargas defendia que a indústria
de base fosse criada sem a entrada de capital ou fornecimento de matéria prima
estrangeira. Tamanha foi a empreitada política de Getúlio para promover o
nacional desenvolvimentismo que nos dez primeiros anos de seu Governo
foram criadas trinta e cinco mil empresas no Brasil. No final de seu Governo,
o Brasil contava com o Conselho Nacional do Petróleo, a Companhia do Vale
do Rio Doce, a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Hidroelétrica do
São Francisco.
No campo legal, foi em seu governo que a primeira Constituição
Nacional abordou o tema do Direito do Trabalho, uma vez que se incorporaram
a nova Carta, no ano de 1934, a garantia de liberdade sindical (art. 120), a
isonomia salarial, o salário mínimo, a jornada de oito horas diárias de trabalho,
a proteção das mulheres e dos menores, o repouso semanal, além das férias
anuais remuneradas (§ 1º. Do art. 121) (MARTINS, 2012). Já em 1943, diante
da necessidade formal e institucional de sistematizar as diversas normas de
Direito de Trabalho, tratou de ser aprovado pelo Presidente o Decreto-Lei nº.
5.452, de 1º de maio de 1943, mais conhecido como Consolidação das Leis do
Trabalho – CLT.
Em seu segundo Governo (1951-1954) Getúlio Vargas assume em plena
campanha a defesa da nacionalização do petróleo. Getúlio, na época, era a
imagem do nacionalismo industrial e o petróleo, igualmente, seu penhor e
fiador. Em 1953, após uma ampla campanha intitulada “o petróleo é nosso” foi
criada a Petrobrás, com finalidade de garantir o monopólio estatal na exploração
desse bem natural. Acerca da legislação do trabalho, após a criação da CLT,
no período de 1943 a 1954, poucas Leis foram criadas em complementação
ao texto da CLT. Somente a Lei nº 605, de 1949, foi criada dispondo sobre o
repouso semanal remunerado e feriados, bem como o Decreto nº 31.546, do
ano 1952, expedido para regular o trabalho dos menores aprendizes.

Segundo ciclo: incorporação evolutiva da indústria automobilística, o
governo de JK e a abertura ao capital internacional (1955-1964)
Em 1955, após o movimento pela legalidade defendida por Café Filho,
vice-presidente de Getúlio que assumira seu posto, foram realizadas eleições
204 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

no país com a vitória do mineiro Juscelino Kubitschek, candidato da dobra


PSD-PTB. O novo presidente cumpriu integralmente seu mandato e esforçou-
se para resolver os conflitos políticos que persistiam. Aos poucos foi criada
uma estabilidade político-institucional no país que proporcionaram um
crescimento em média de 7% na economia. O nacional desenvolvimentismo
continuou sendo o traço da economia, entretanto começou a ser incentivada
e desenvolvida pelo capital externo. Sob o lema de fazer “cinqüenta anos
em cinco”, Juscelino criou o Plano de Metas, cujo objetivo era aumentar a
acumulação de capital e, por consequência, investir em setores básicos da
economia. Por esse plano, pretendia-se gerar empregos e aumentar o consumo
do país. Tem-se que em cinco anos de governo a produção industrial do Brasil
cresceu 80%, sendo o grande símbolo desse processo a construção da nova
capital federal – Brasília.
Juscelino, no entanto, não conseguiu segurar o crescimento inflacionário
que se agravou no fim de seu mandato. Em 1959 o índice de inflação atingiu
39,5% e o déficit público estourava por causa dos altos investimentos na
modernização do Estado. Francisco de Oliveira (OLIVEIRA, 1988, p. 59)
resume:

Concretamente, no período assinalado, tem-se compulsão da


mercantilização do custo de reprodução da força de trabalho – e
nessa compulsão a substituição de certos bens por outros indicava
o sentido geral da mercantilização, da industrialização do custo de
reprodução – com um estancamento e deteriorização dos salários
reais.

A contradição política exposta configurou-se como a crise que


desemboca no golpe de 1964. A luta que se desencadeia passa a ocorrer no
seio das relações de produção. Por consequência, as bandeiras reivindicatórias
unificam as classes trabalhadoras que, além de contar com os operários,
passa a agrupar os funcionários públicos e os trabalhadores rurais. A união
operária refletiu conquistas no que diz respeito a direitos trabalhistas, tanto
que observamos nesse período de 1955 a 1964 o surgimento da Lei nº 2.573,
de 15 de agosto de 1955, que tratou do adicional de periculosidade a ser paga
para os trabalhadores que se submetessem às condições de perigo, ainda a
Lei nº 2.959, de 1956, que dispunha sobre o contrato por obra certa, a de nº
3.207, de 1957, que disciplinava as relações de emprego do vendedor viajante
e pracista, a Lei nº 4.090, de 1962 que criou o 13º salário, bem como as Leis nº
4.214 e nº 4.266, ambas de 1963, que tratava de trabalho rural e salário-família,
respectivamente, tal como atestam os arquivos jurídicos históricos sobre o
tema (NASCIMENTO, 2004).
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 205

Terceiro ciclo: A ditadura militar e o milagre brasileiro (1964-1985)


O golpe militar de 31 de março de 1964 fechava um ciclo de instabilidade
política e crise econômica sem precedentes. No intuito de abrir caminho para
a entrada do capital estrangeiro no Brasil, um de seus Generais Presidentes,
Castelo Branco, revogou a Lei de Remessa e Lucros (Lei nº 4.131 de 1962)
e fomentaria a promulgação da Lei 4.390, de agosto de 1964, que abria o
mercado brasileiro às nações amigas. Pela nova disposição legal, não existia
mais limites à percentagem de capital registrado que poderia ser enviado
ao exterior na forma de lucro. Isso, por outro lado, requeria alterações na
legislação trabalhista, uma vez que tornava-se imprescindível controlar as
contradições sociais e elevar os lucros dos empresários.
A Lei de Greve (lei nº 4.330, de junho de 1964), concedia amplos poderes
para o Governo Militar estabelecer o que significava uma greve política. Pela
Lei, não eram permitidas greves de cunho político, social ou religiosa, e ainda,
as greves que atingissem serviços essenciais ou de solidariedade. A Lei vinha
ao encontro do que dispunha a CLT em seu artigo 723 (revogado pela Lei
9.842, de 07.10.1999):

Art. 723. Os empregados que, coletivamente e sem prévia autorização


do tribunal competente, abandonarem o serviço, ou desobedecerem
a qualquer decisão proferida em dissídio, incorrerão nas seguintes
penalidades:
a) suspensão do emprego até seis meses, ou dispensa do mesmo;
b) perda do cargo de representação profissional ou cujo desempenho
estiverem;
c) suspensão, pelo prazo de dois anos a cinco anos, di direito de
serem eleitos para cargos de representação profissional.


Na prática, as greves passaram a ser ilegais, sendo que até os
funcionários públicos estavam proibidos de pararem o serviço. O reflexo da
medida satisfez os planos do Governo, enquanto em 1962 haviam ocorrido
154 greves em 1966 esse número não passou de 15. Mesmo o controle salarial,
retratado na política de arrocho dos valores, extrapolou o plano de atuação
do Governo que somente atingia empresas públicas e atingiu o mercado de
mão-de-obra, sendo certo que a Lei nº 4.725, de julho de 1965, causava arrocho
salarial no setor privado. Evaldo Vieira (VIEIRA, 1985, p. 19) acrescenta:

A orientação decorrente da fórmula, usada para calcular os reajustes


salariais, sofreu modificação quando se introduziram nela as taxas
imaginárias da inflação. Em 1966 o controle dos salários tornou-se
ainda mais rígido. Os Decretos-Leis nº 15 e nº 17, de 1966, estabeleceram
que os índices de reajustes salariais seriam decretados pelo Poder
Executivo. As negociações entre patrões e empregados reduziram-se
principalmente a discussão em torno de férias, transporte, condições
de trabalho e elevação das taxas de produtividade.
206 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Em suma, as transformações causadas no Direito do Trabalho pelos


Governos Militares eliminaram a estabilidade do emprego até aquele
momento existente. Isso ocorreu a tal ponto que a substituição da estabilidade
do trabalho pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, criado em
1966 através da Lei nº 5.107, representava uma valiosa vantagem para os donos
de empresas. Foi permitido aos patrões, portanto, criar uma rotatividade da
mão-de-obra, contratando empregados por salários sempre mais baixos e
previsíveis.
Costa e Silva em 1967 assume o maior cargo executivo do país apoiado
pela compreensão da opinião pública, pelo forte apoio político e pela garantia
dada pelas forças armadas. Através de do Decreto-Lei nº 5.451, de 12 de
junho de 1967, ficou permanente o controle salarial de todos os empregados
via mecanismos estatais. No mês de novembro do ano de 1967 eclode uma
enorme greve na cidade de Osasco no Estado de São Paulo, cuja organização
e repercussão fez com que o Ministério do Trabalho interviesse para afastar
todos os dirigentes sindicais envolvidos. As medidas abusivas continuaram
até que em dezembro do mesmo ano Costa e Silva assina o Ato Institucional
nº 5, que permitia em todo o território a realização de prisões sem a prévia
acusação formal e sem a prévia assinatura do mandado, bem como torturas a
presos e outras formas de abuso de poder.
De 1968 a 1974 seguiu-se o chamado “milagre brasileiro”, durante o
qual a economia do país cresceu uma média anual de 11% com a inflação
estabilizada perto de 20 % ao ano. O General Garrastazu Médici foi elevado
ao cargo de Presidente da República em 1969, em evidente continuísmo da
política antiinflacionária de seus antecessores. Dessa forma, a condição do
assalariado praticamente não sofreu qualquer modificação para melhor.
Aumentou, outrossim, a repressão governamental aos atos oposicionistas.
A repressão política e a racionalização econômica explicam o milagre
brasileiro. No ano de 1972 a situação econômica do país encontrava-se estável
e já era possível realizar medidas audaciosas. Existia alto nível no crescimento
da produção, tinha-se gerado uma poupança e estava assegurada uma
razoável estabilidade monetária. O crescimento econômico brasileiro estava
localizado, principalmente, no desempenho do setor industrial. No entanto,
houve também significativo aumento do total de investimentos estrangeiros
e estatais, mas esse fato também fazia crescer a dívida externo do Brasil.
O “milagre brasileiro” trouxe o desenvolvimento, porém a condição do
trabalhador assalariado piorou.
Diante de todos os planos e promessas a economia brasileira não trazia
esperança para as camadas mais populares. Ao contrário, a concentração de
renda aumentou com o passar dos anos. Dados quantitativos retirados do texto
de Evaldo Vieira (VIEIRA, 1985) mostram que 50% do número de pessoas
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 207

mais pobres da população economicamente ativa caiu de 17,71% em 1960 para


14,91% em 1970, chegando a 11,8% em 1976.
A CLT nesse período também sofreu modificações. No ano de 1975,
por iniciativa do Governo, foi composta uma comissão presidida pelo
Min. Arnaldo Sussekind para estudo e viabilização de atualização do texto
consolidado. Amauri Mascaro Nascimento (NASCIMENTO, 2004, p. 78/79)
expôs os seguintes objetivos na proposta de criação de um novo ante-projeto
de Lei:

(...) a) ordenar, num texto único, de forma sistematizada, todas


as leis e diversos decretos normativos referentes às matérias que
devem compor a nova CLT; b) clarificar normas e solucionar
dúvidas surgidas na aplicação das disposições legais vigentes; c)
aprimorar conceitos, tendo em vista a doutrina contemporânea
prevalente, compatível com o sistema jurídico consubstanciado
na Constituição brasileira; d) introduzir disposições inseridas em
convenções internacionais ratificadas pelo Brasil; e) aperfeiçoar
regimes e instituições jurídico-trabalhistas, alterando para esse fim
em caráter excepcional, disposições legais em vigor.

Por fim, o autor ainda acrescenta que no ano de 1977, a Lei nº 6.514
alterou o Capítulo V, Título II da CLT, que tratava sobre Segurança e Medicina
do Trabalho, a partir de uma enorme regulamentação do tema, e o Decreto-Lei
nº 1.535 foi criado para dar novas regras sobre as férias.

Quarto ciclo: Globalização e as greves no ABC paulista (1985-1993)


O Brasil entrou na década de 1980 endividado pelo fracasso e pelo
passivo social do “milagre brasileiro”, pois ao mesmo tempo em que
promoveu o crescimento da economia fora dos padrões normais o fez partir
da entrada de capital externo, com a aquisição de crédito em instituições
financeiras internacionais que, passadas as disposições políticas oportunistas,
cobrariam suas intrínsecas intenções especulativas. Em contrapartida, com a
agudização da derrocada econômica ampliavam-se os movimentos sociais de
reivindicação e proposição do fim da ditadura e redemocratização do país.
Da mesma forma, os grupos de trabalhadores urbanos retomavam as
bandeiras de reivindicação e formavam oposição ao sistema. O grupo de maior
destaque nesse sentido foi o de trabalhadores do setor automobilístico da região
do ABC paulista. Os metalúrgicos daquelas empresas, sob a liderança de Luiz
Inácio da Silva, apelidado de “Lula”, até então presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, promoviam a realização de grandes
assembléias e greves pela reposição do valor de salários, reconhecimento das
organizações sindicais e retorno do regime democrático. Podemos acrescentar
que o movimento operário também ganhou força após 1979, com a reforma
208 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

partidária, tendo em vista que esta possibilitou a criação de mais partidos no


país, com destaque para a criação do primeiro partido político nascido dentro
da dinâmica e determinação da classe operária: o Partido dos Trabalhadores
(PT).
Quanto ao modo de produção, é possível identificar que o Regime Militar
decreta o fim do processo de industrialização de base, iniciado por Getúlio
Vargas. O cenário político da década de 1980 marca o estabelecimento de uma
nova ordem mundial, construída a partir do fim da Guerra Fria e baseado
na globalização da economia. A globalização implanta, na esfera produtiva
e de serviço do país, uma reestruturação do capital, bem como desencadeia
o uso maciço de novas tecnologias. Observa Ricardo Antunes (ANTUNES,
2004, p. 17) que a década de 1980 pode ser vista em dois momentos quanto à
reestruturação produtiva:

Inicialmente, ainda nos primeiros anos da década de 1980, a


reestruturação produtiva caracterizou-se pela redução de custos
através da redução da força de trabalho, de que foram exemplo os
setores automobilístico e o de autopeças e, posteriormente, os ramos
têxtil e bancário, dentre outros. De modo sintético, pode-se dizer
que a necessidade de elevação da produtividades ocorreu através de
reorganização da produção, redução do número de trabalhadores,
intensificação da jornada de trabalho dos empregados, surgimento
dos CCQ’s (Círculos de Controle de Qualidade) e dos sistemas de
produção just-in-time e kan-ban, dentre os principais elementos. (...)
Durante a segunda metade de década de 1980, com a recuperação
parcial da economia brasileira, ampliaram-se as inovações
tecnológicas, através da introdução da automação industrial de
base, microeletrônica nos setores metal-mecânico, automobilístico,
petroquímico e siderúrgico.

Os desdobramentos dessa nova ordem global podem ser observados,


principalmente, pela expansão de um modo de vida baseado no consumo
de massas e, ainda, na queda do número de trabalhadores industriais e a
conseqüente expansão do setor de serviços. Sendo assim, o crescimento do
desemprego global torna-se problema estrutural dos países capitalistas, até
mesmos nos países centrais, tendo em vista o agravamento social que isso
provoca. O grande contingente de desempregados, de modo geral, passa a
formar os grupos de sem tetos, de imigrantes ilegais e de mendigos.
Nesse novo quadro político internacional, novas instituições ganham
destaque. EUA, Japão e a Europa unificada transformam-se em três
grandes pólos econômicos, alterando a disposição de existência de Estados
independentes para a disposição de blocos econômicos, que centralizam as
atividades econômicas e tecnológicas. Como conseqüência, vemos aumentar a
concentração de renda nos países mais ricos e se agravar o estado de pobreza
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 209

nos países mais pobres. Conforme descreve Vinci de Moraes (MORAES, 1998,
p. 504):

O planeta rapidamente tornava-se diferente daquele da primeira


metade do século, implicando principalmente na “crise do Estado
moderno”, que ganhou densidade a partir do final da década de
1980: a economia transnacional apoiada nas grandes empresas sem
face nacional; o crescimento exagerado, inviabilidade e desmonte do
Estado previdenciário; internacionalização das relações culturais,
que ultrapassam as fronteiras nacionais através dos avançados
meios de comunicação. Os limites e fronteiras do Estado-Nação
tornavam-se cada vez mais difíceis de identificar.

Contraditoriamente ao movimento internacional, no ano de 1988 o


Brasil viu ser promulgada a sua 8ª Constituição Federal. A nova Carta Magna,
em vigor até os tempos atuais, foi a primeira a consagrar os direitos sociais e
a assegurar os direitos individuais dos cidadãos. Por isso, recebeu o apelido
de Carta Cidadã. O Art. 1º da Constituição, ao enumerar os fundamentos da
República Federativa do Brasil, trouxe como princípio imutável a dignidade
do ser humano (inciso III) e os valores sociais do trabalho (inciso IV). Por
conseguinte, nos termos do art. 7º, caput, da atual Constituição, os trabalhadores
urbanos e rurais possuem direitos de natureza social além de outros que visem
à melhoria de sua condição social.
Cumpre destacar, porém, que a elevação do direito do trabalho a norma
constitucional provoca efeitos nas relações sociais produtivas, pois de um
lado ela se torna um pesado fardo para as médias e pequenas empresas, e de
outro ela afeta muito pouco os lucros e rendas das grandes empresas. Dessa
forma, a partir de 1988 surgiu a tendência de pequenos e médios empresários
modernizarem e racionalizarem a produção com intuito de diminuir os custos.
Na visão de Tarso Genro (GENRO, 2008, p. 397), no entanto, uma crítica se
faz necessária. Para o jurista a legislação trabalhista de cunho protecionista
estampada na Constituição:

(...) é boa para o capitalismo e é boa para promover melhores


condições de convívio entre o capital e o trabalho assalariado.
Mas ela é impotente sem a presença de instituições estatais fortes
e capazes de interferir na “espontaneidade” do mercado, para
promover a redução das desigualdades de renda, inclusive aquelas
internas às classes trabalhadoras. É, também, impotente para
oferecer condições de equivalência entre os sujeitos políticos que
representam o capital e o trabalho, para produzir novas legalidades:
o sindicalismo, mesmo aquele que transcende para a luta política aberta,
é sempre datado, curto e corporativo, por mais “combativo” que ele seja.

Acerca do direito do trabalho, algumas outras mudanças expressivas


210 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

foram feitas pela nova Constituição, no sentido de dar mais autonomia as


relações privadas coletivas. A proposta democrática de formação do Estado
determinou a redução da jornada de trabalho semanal de 48 horas para 44,
generalizou o regime do fundo de garantia e suprimiu a estabilidade decenal,
criou uma indenização a ser paga pelo empregador em casos de dispensa
arbitrária do empregado, elevou o índice do adicional de horas extras para
o mínimo de 50%, aumentou em 1/3 da remuneração das férias, ampliou a
licença da gestante para 120 dias, criou a licença paternidade, elevou a idade
mínima para admissão para 14 anos, dentre outras medidas. Quanto à política
salarial foi editada a Lei nº 7.788 e sobre salário mínimo a Lei nº 7.789, ambas
de 1989, conforme encontramos nos registros institucionais recentes.

Quinto ciclo: A dinâmica neoliberal e suas mudanças conjunturais (1994-


2010)
Em 1994, Fernando Henrique Cardoso tomou posse ao poder e
governou o país por 8 anos, uma vez que após manobras políticas conseguiu
aprovar no Congresso uma Emenda à Constituição permitindo a sua
reeleição. De 1994 a 2002 o Brasil enfrentou algumas significativas mudanças,
a partir da implantação de uma política neoliberal, que afastou o Estado das
relações econômicas. O novo Presidente da República foi responsável por
integrar, subservientemente, o Brasil as diretrizes elaboradas pelo Consenso
de Washington, realizado no ano de 1989, por economistas de instituições
baseadas na capital americana, como o FMI (Fundo Monetário Internacional),
o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Podemos
dizer que o Consenso de Washington corresponde ao receituário econômico
de caráter neoliberal, adotado mundialmente nos anos 1990, a partir da adesão
de Pinochet (Chile) seguido por Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald
Reagan (EUA).
Ao aderir aos mandamentos do FMI e do Banco Mundial, FHC termina
o seu mandato com o seguinte saldo: a recessão imperava, o trabalho fora
precarizado até seu pior estágio, o desemprego atingia índices muito altos, o
país se desindustrializava e os direitos sociais eram cada vez mais destruídos.
Na opinião de Ricardo Antunes (ANTUNES, 2005, p. 38):

FHC foi servil para os de fora e truculento para os de baixo aqui


de dentro, para lembrar a expressão de Florestan Fernandes.
Desemprego em escala explosiva, que só em São Paulo chega a
quase 20% da sua força de trabalho, precarização dos direitos (já
bastante restritos) do trabalho num país que sempre cuidou bem
do seu capital, desmontagem da previdência dos assalariados etc.
Deslanchava, então, o processo de desregulamentação do trabalho,
coerente com a flexibilização produtiva, a reengenharia, a lean
production, este ideário e esta pragmática que quanto mais beneficia
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 211

os capitais, mais destrói ou precariza os homens e mulheres que


vivem do trabalho.

Assim como pregava a ideologia neoliberal, o Direito do Trabalho


assumiu nesse período de subordinação a nova ordem mundial a tendência
flexibilizadora das relações de trabalho. Em razão disso, todo o ordenamento
jurídico brasileiro passa a priorizar a negociação coletiva como amplo e
efetivo processo de autocomposição dos interesses, para tornar possível o
ajuste de cláusulas normativas ente empregado e empregador, destinadas a
estabelecer regras nos contratos individuais de trabalho. Basta recordarmos
que a própria Constituição Federal, em 1988, apesar de trazer o princípio da
irredutibilidade dos salários também permitiu exceções a essa regra, tendo em
vista a ocorrência de acordo ou convenção coletiva nesse sentido (Art. 7º, VI).
Ainda como medidas de desregulamentação da relação de trabalho,
destacamos o acréscimo do parágrafo único ao art. 442 da CLT, por força
da promulgação da Lei nº 8.949/1994. Diante disso, o dispositivo legal
passou a ter a seguinte redação: “Parágrafo único - Qualquer que seja o ramo de
atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus
associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”. No mesmo sentido
desregulamentador, a criação pelo Tribunal Superior do Trabalho – TST,
maior Corte de julgamentos do Direito do Trabalho no Brasil, da Súmula nº
3312, a aprovação da Lei nº 9.601/1998 que dispõe sobre o contrato de trabalho
a prazo determinado com a redução de encargos e obrigações trabalhistas às
empresas, bem como a alteração do Art. 59, § 2º, da CLT, que passou a permitir
a compensação quadrimestral/anual de horas trabalhadas além da jornada
normal, quando antes se limitava à semana.
O cenário que rapidamente descrevemos tem sido chamado por teóricos
das diversas áreas das ciências humanas como tempos de “crise do trabalho”.
Os aspectos de mudanças nas relações de trabalho que destacamos em três

2
SÚMULA nº 331 do TST - CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE
I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo
diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019,
de 03.01.1974).
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de
emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II,
da CF/1988).
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei
nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados
ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação
direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a
responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive
quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das
empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da
relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de
21.06.1993).
212 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

pontos correspondem a formas encontradas pelo capital de reestruturar o


seu modo de produção, uma vez que este foi abalado após a crise econômica
de década de 1970. Como consequência da crise a classe operária tem sido
prejudicada em seus direitos e garantias pelas medidas novas adotadas no
mundo do trabalho que promovem a desregulação e a flexibilização da relação
laboral.

Considerações Finais
Por fim, questão que se põe aos autores e pesquisadores nesse momento,
por consequência da crise econômica do modelo econômico capitalista, é a
seguinte: qual seria o futuro das relações de trabalho e do direito do trabalho?
Para um grupo de teóricos os esforços devem se concentrar na elaboração
de uma legislação de proteção aos direitos sociais, que mantenha uma tutela
mínima indispensável para a relação de emprego, tendo em vista as medidas
flexíveis que retiram dos trabalhadores os seus direitos. Nesse sentido as
considerações de Otávio Pinto e Silva (SILVA, 2007, p. 153):

A importância da tutela aos mais fracos é constatada até mesmo fora


do campo do Direito do Trabalho: o desenvolvimento do Direito do
Consumidor bem demonstra que o Estado deve necessariamente
intervir na vida social para buscar equilibrar as relações jurídicas
entre partes iguais.
Paralelamente, é fundamental que sejam abertos espaços para a
negociação coletiva no que se refere à própria aplicação do Direito,
permitindo-se alternativas de execução que não o desnaturam.
Vale dizer, a legislação deve definir os parâmetros mínimos de
regulamentação de qualquer tipo de trabalho, seja este autônomo,
subordinado ou parassubordinado; mas o detalhamento do sistema
de tutela dos trabalhadores deve se dar por meio da autonomia dos
particulares, mediante o incremento da negociação coletiva, em
uma perspectiva de modernização promocional.

Acreditamos ser a politização dos espaços de produção o grande


desafio para que a sociedade brasileira possa alcançar os ideais emancipatórios
propostos. Nesse sentido será preciso que continuamos com os processos de
revitalização dos movimentos sociais populares, a retomada das utopias em
torno de um projeto de sociedade emancipatório.
E, no corolário dessas possibilidades, como pensar a função política
do Direito do Trabalho? O Direito do trabalho, a nosso ver, deve atender aos
anseios da sociedade que pretende superar as dominações históricas. Devemos
associá-lo diretamente ao conhecimento e a prática, pois somente dessa forma
exercitamos sua potencialidade emancipadora de produzir justiça social
e equidade política. A legislação trabalhista, como fruto do processo legal,
deve ser determinado pela ancoragem das lutas e potencialidades sociais e
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 213

políticas, logo, se prevalecer no Brasil um ciclo de crescimento das forças dos


movimentos sociais que almejam a distribuição de direitos haveremos de
criar, definir, sustentar e acreditar numa expansão dos direitos trabalhistas
e para os trabalhadores, por outro lado, se prevalecer a lógica de reprodução
do capital defendida pelo neoliberalismo globalizante, teremos a manutenção
das propostas flexibilizadoras que desagregam as classes trabalhadoras e que
aviltam as suas condições laborais. Por conseqüência, defendemos que haja sim
a revisão de leis e, especialmente da CLT, porém que ela seja feita sempre em
defesa dos trabalhadores. Essa tessitura deverá ser ancorada na proporcional
e esclarecida representação política dos trabalhadores nas esferas legislativas
estruturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, Ricardo; SILVA, Maria Aparecida Moraes (Orgs.). O Avesso do
Trabalho. São Paulo: Editora Expressão Popular. 2004.
ANTUNES, Ricardo. A Desertificação Neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula).
Campinas-SP: Editora Autores Associados, 2ª Ed, 2005.
BRASIL. Lei nº 5.452, de 1º de Maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis
do Trabalho. Diário Oficial da União. Brasília-DF, 9 de Ago. 1943.
GENRO, Tarso. Constituição Social e Direitos Efetivos. in Vários autores. Direitos
Sociais na Constituição de 1988: uma análise crítica 20 anos depois. São Paulo:
Editora LTr., 2008.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Editora Atlas, 29ª
Edição, 2012.
MORAES, Vince de. Caminhos das Civilizações: História Integrada Geral e Brasil.
São Paulo: Editora Atual. 1998.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria
geral do direito do trabalho. São Paulo: Editora Saraiva, 19º Edição, 2004.
OLIVEIRA, Francisco de. A Economia Brasileira: crítica à razão Dualista.
Petrópolis-RJ: Ed. Vozes Ltda., 6ª Edição, 1988.
SILVA, Otávio Pinto. A Função do Direito do Trabalho no Mundo Atual. in
CORREIA, M. O. G. (Org.). Curso de Direito do Trabalho – Vol. 1: Teoria Geral do
Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr., 2007.
VIEIRA, Evaldo. A República Brasileira: 1964-1984. São Paulo: Editora Moderna,
5ª Ed. 1985.
214 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: OS
DESAFIOS E POTENCIALIDADES PARA A
EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DAS
MULHERES
BEATRIZ RIGOLETO CAMPOY1
Resumo
O presente estudo situa-se no campo temático dos Direitos Humanos das Mulheres e
relaciona-se com o debate acerca do direito à saúde, mais especificamente, dos desafios e
potencialidades das políticas públicas para a igualdade sexual na área da saúde. Partindo do
pressuposto de que as relações entre os sexos desenvolvem-se de maneira desigual, procura-se
compreender como esta relação de poder traduz-se nas políticas públicas para a saúde e de que
forma é possível efetivar a igualdade no acesso ao direito à saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Humanos; Mainstreaming; Direito à Saúde; Igualdade


Sexual; Políticas Públicas.

Introdução
Embora as mulheres sejam detentoras do direito à saúde, como todo
ser humano, algumas questões devem ser levantadas. Em primeiro lugar,
pode se considerar que homens e mulheres comungam do mesmo padrão de
saúde? Defenderei que não, uma vez que homens e mulheres não possuem
as mesmas características biológicas e sociais. Em segundo lugar, se não
possuem as mesmas características biossociais, tais diferenças são levadas em
conta tanto na área científica quanto para o desenvolvimento de políticas de
saúde? Neste ponto também defenderei que não, ou quando o são, isso ocorre
de forma discriminatória pelo fato do masculino ser reconhecido como padrão
referencial em relação ao feminino.
Importa observar, ainda, como o não reconhecimento das diferenças
entre os sexos relacionadas aos padrões de saúde traduz-se em desigualdades
discriminatórias, bem como quais são os mecanismos existentes para
combater tais desigualdades? Para isso, utilizarei conceitos referencias sobre a
temática proposta além de alguns documentos, nomeadamente relatórios da
Organização Mundial da Saúde - OMS e do Governo de Portugal.
Na primeira parte do texto buscarei compreender a questão do
tratamento desigual entre homens e mulheres e de que forma o reconhecimento
destas desigualdades como um problema estrutural pelo movimento feminista
desencadeou o surgimento do Feminismo de Estado. Em seguida, serão
abordadas as três principais estratégias de intervenção das políticas públicas

1
Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/
SP, Especialista em Direitos Humanos e Democracia pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra (Portugal), Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(Portugal). Email: beatriz.rigo25@gmail.com.
216 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

para a igualdade, bem como os problemas inerentes a efetivação do direito à


saúde das mulheres. Por fim, abordarei a estratégia utilizada para a efetivação
das políticas de igualdade na saúde, nomeadamente o mainstreaming.

Desigualdades entre os sexos e Feminismo de Estado.


Antes de iniciar as ponderações acerca do direito à saúde das mulheres
é importante retomar alguns conceitos acerca das desigualdades entre os
sexos, bem como da sua relação com o advento do Feminismo de Estado. Para
tanto, utilizarei o conceito de sexo biossocial e, em seguida, tentarei traçar
uma relação entre este e as desigualdades entre os sexos com base em obras
referenciais. Ao contrário dos conceitos de sexo e gênero, entendendo-se o
primeiro como as diferenças biológicas entre homens e mulheres e o segundo
como construções sociais acerca do primeiro, o conceito de sexo biossocial
visa definir a relação de interação existente entre o biológico e o social.
Segundo Ferreira (2003, p. 157): “(...) as relações sociais não podem ser separadas da
corporalização sexual. No sentido que confiro a esta afirmação, não se trata de reduzir
a dimensão sexual ao desejo sexual, mas a de chamar atenção para a centralidade da
reprodução, na sucessão das gerações”.
O sexo biológico condicionou ao longo da história importantes
divisões sociais e culturais entre homens e mulheres. Por conta de sua função
reprodutora as mulheres foram relegadas à esfera privada, dos cuidados,
enquanto aos homens couberam as funções públicas. Mas, esta atribuição de
papéis não é apenas fruto de questões biológicas, está estritamente relacionada
a uma perspectiva social, uma vez que se imputam valores a estas funções. Por
isso, há a necessidade de se tratar o sexo como uma interação entre o fator
biológico e o social. Segundo Ferreira mais uma vez (2003, p. 158):
Não postulemos qualquer destas instâncias como um dado de
partida que num determinado momento se articula com a outra, mas
como as duas faces da mesma moeda. Pensemos antes as diferenças
entre os sexos como pertencentes à ordem biosocial, constituídas em
constante relação dinâmica e permanente redefinição, mas sendo
sempre salientes, e não tenhamos receio de sermos essencialista
nestes termos.

O fato é: o relacionamento entre os sexos, fundado na interação das


perspectivas acima tratadas, está moldado segundo uma relação desigual
de poder, em que o padrão masculino (tarefas, papéis, funções e valores
relacionados aos homens) é considerado como a norma para todo o restante
da sociedade (Bustelo & Lombardo, 2007). Uma vez que o padrão masculino é
entendido como a norma, ou como o que é normal, o feminino passa a ser visto
como o peculiar, ou como o invisível. Estas duas dimensões são importantes
para a compreensão da questão do direito à saúde das mulheres. Quando
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 217

se adota o masculino como padrão, o neutro torna-se automaticamente


masculino. Segundo a autora (Ferreira, 2003, p.91):

Como sugere Derrida, a neutralização das marcas sexuais tem


o efeito de conferir poder aos homens. Quando nos referimos
a uma fórmula neutra, como o self, já estamos a adoptar como
referente o masculino, porque na actual sistema ‘falogocêntrico`,
a universalização só funciona enquanto neutralização do pólo
feminino.

A outra dimensão é a do feminino como o que é peculiar, no momento


em que se ultrapassa a invisibilidade do feminino nos padrões neutros. Nesses
casos o feminino passa a ser visto como singular, como peculiar em relação
ao padrão que é masculino. Em suma, estas duas dimensões explicitam não
apenas as diferenças entre os sexos, mas as desigualdades fruto desta relação
de poder. Esta realidade permaneceu pouco contestada por muito tempo,
porém nas décadas de 1960 e 1970 as integrantes do movimento feminista da
segunda voga passaram a compreender a questão das desigualdades sexuais
de uma maneira mais abrangente. Para além da reivindicação do movimento
feminista de primeira voga, ou sufragista pela igualdade formal entre os
sexos, o movimento feminista de segunda voga trouxe para a discussão a
necessidade de mudanças estruturais. Tratava-se, na verdade, da luta contra a
imposição de um sistema patriarcal onde o masculino era o padrão, a norma,
o poder a qual o feminino deveria se sujeitar (Ruesta, 2004).
Neste ponto, parte do movimento feminista considerava o Estado um
mecanismo de reprodução e manutenção do sistema patriarcal, portanto, sem
utilidade para a consolidação das demandas do movimento. Porém, outra parte
do movimento considerava o Estado um aliado na promoção da igualdade
entre homens e mulheres. Do relacionamento desta parte do movimento
feminista com o Estado, nomeadamente através da inserção na agenda
estatal das demandas feministas e da posterior criação de um maquinário
institucional para o cumprimento destas demandas, surge o Feminismo de
Estado. Este conceito não esta relacionado apenas com a criação de instituições
dentro do Estado que buscam efetivar a igualdade entre homens e mulheres,
mas ao relacionamento do movimento feminista com o Estado na criação e
manutenção destas ações (Ruesta, 2004).
Portanto, com o intuito de combater o sistema patriarcal fomentador das
desigualdades sexuais e vendo o Estado como potencial aliado, o movimento
feminista passou a reivindicar a integração na agenda estatal das demandas
feministas, bem como a criação de políticas públicas para a igualdade sexual.
A seguir, busca-se compreender o que são as políticas para a igualdade
sexual e como estas se desenvolveram especificamente na área do direito à
saúde.
218 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

As políticas públicas para a igualdade sexual e seus desafios no âmbito do


direito à saúde
Através da integração das reivindicações do movimento feminista na
agenda estatal e da criação de políticas públicas promotoras da igualdade
entre os sexos nasce o Feminismo de Estado. Neste sentido, as políticas para
a igualdade sexual utilizam, principalmente, três estratégias de intervenção:
a igualdade de oportunidades; as ações positivas; e a transversalidade ou
mainstreaming (Astelarra, 2005). Não obstante a importância de todas elas, mas
devido à limitação espacial do presente artigo, este ficará restrito a descrição
das estratégias da igualdade de oportunidades e do mainstreaming, abordadas
mais adiante.
O princípio da igualdade de oportunidades está declarado nos principais
documentos internacionais, bem como na maioria dos ordenamentos jurídicos
nacionais. Ocorre que a igualdade meramente formal, ao desconsiderar certas
condições que afetam alguns grupos, funciona como um mecanismo gerador
de desigualdades. É neste aspecto que atuam as políticas de igualdade
de oportunidades, partindo do pressuposto que as mulheres possuem
características históricas, sociais e culturais que as excluem e limitam o
exercício da sua cidadania (Astelarra, 2005).
As primeiras ações neste sentido recorreram, sobretudo, à intervenção
legislativa, nomeadamente a exclusão de normas que geram descriminação
e a inclusão de normas no ordenamento jurídico baseadas no princípio da
igualdade. Tais ações, por si só, não levam ao real desaparecimento das
desigualdades. Considerando as desigualdades entre os sexos uma questão
estrutural, um dos fatores que impedem a concretização da igualdade é a
falta de acesso das mulheres à esfera pública e o seu fechamento e isolamento
na esfera privada. Tal fato impede seu conhecimento, empoderamento e
participação nas transformações ocorridas. Neste ponto, surgem as políticas
de ação positiva que visam integrar das mulheres na arena pública e o jpa
referido mainstreaming (Astelarra, 2005).
Em relação especificamente às políticas para a igualdade na
saúde, o direito à saúde foi reconhecido como direito da pessoa humana
no ordenamento jurídico internacional com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 19482. Apesar de garantido de forma neutra, tanto
internacionalmente quanto nacionalmente, o direito à saúde deve ser visto
sob a perspectiva das desigualdades sexuais. Em 1995, esta perspectiva foi
reconhecida internacionalmente pela Plataforma da Quarta Conferência
Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres ou Plataforma de Ação de
Beijing. Trata-se de um documento importante que em seu texto declara cinco
objetivos estratégicos para a promoção da saúde das mulheres, dentre eles:

2
Artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 219

Aumentar o acesso das mulheres ao longo do seu ciclo de vida a


informação, aos cuidados e serviços de saúde adequados, acessíveis
e de boa qualidade; Reforçar os programas de prevenção que
promovam a saúde das mulheres; desenvolver iniciativas que
tenham em conta o gênero para fazer face às doenças sexualmente
transmissíveis, ao HIV/SIDA, e a outras questões de saúde sexual
e reprodutiva; promover a investigação e difundir informação
sobre a saúde das mulheres; aumentar os recursos e acompanhar a
evolução da saúde das mulheres.

Este documento demonstra o enfoque dado nos anos 1990,


nomeadamente pela Organização das Nações Unidas, a problemática dos
direitos humanos das mulheres, que foi posteriormente integrada nas agendas
dos governos nacionais, bem como em suas políticas públicas (Astelarra, 2005).
Quanto ao direito à saúde da mulher e as políticas públicas desenvolvidas nesta
órbita questiona-se no presente artigo, como referido introdutoriamente, se as
diferenças biológicas e sociais entre os sexos são tidas em conta na abordagem
dos conceitos de saúde e doença, e, consequentemente, na elaboração das
políticas correlatas. Buscarei, com base em textos referenciais e em documentos
produzidos pela Organização Mundial de Saúde e pelo Governo de Portugal,
compreender como estas duas dimensões a biológica e a social vêm sendo
tratadas nas esferas política e científica.
A despeito da questão científica, no século XVIII reconheceu-se
cientificamente a existência de órgãos reprodutivos distintos de homens e
mulheres, os quais passaram a ter uma denominação específica. A partir disto
as diferenças biológicas entre os sexos passaram a possuir uma dimensão
científica, entretanto, carregada de uma série de estereótipos. O sexo masculino
considerado o modelo de ser humano passou a ser objeto dos mais variados
estudos relacionados à saúde humana, enquanto o sexo feminino permaneceu
no âmbito de uma perspectiva materno-infantil, considerando a mulher mãe
ou potencial grávida (Aquino, 2006).
Nos anos 1980, por influência do movimento feminista de segunda
voga, passou a haver pelo menos em parte do meio científico a preocupação
de se integrar uma perspectiva de gênero3 às pesquisas científicas, incluindo
as relacionadas à saúde. Apesar das mudanças ocorridas no meio científico
desde então, Estela Aquino (2006, p.128), em uma pesquisa acerca da produção
científica no Brasil sob uma perspectiva de gênero, concluiu o seguinte:

Há muito o que se fazer do ponto de visto teórico, e para tanto


dois desafios são postos. Em primeiro lugar estão as dificuldades
envolvidas na integração de conhecimento advindo das ciências
biomédicas e sociais. Isso porque, em que pese a necessidade

3
Faz-se aqui uma divisão tradicional entre sexo e gênero.
220 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

de desneutralizar os fenômenos de interesse e desvendar as


representações de gênero que orientam a produção do conhecimento,
os aspectos biológicos não podem ser tratados tão-somente em sua
dimensão simbólica na investigação de muitas questões na área da
saúde.

O fato é que há no meio científico certa resistência no reconhecimento


não só das diferenças sociais, mas fisiológicas entre os sexos. Existem uma
série de fatores típicos do funcionamento do corpo feminino capazes de
alterar substancialmente o impacto de certos medicamentos, por exemplo. Em
uma reportagem publicada em 2003 acerca dos diferentes impactos de certos
medicamentos nas mulheres na Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, a
farmacêutica Maria Regina Torqueti da Faculdade de Ciências Farmacêuticas
da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto-SP declarou que:

A diferença de se trabalhar com o corpo feminino é que as mulheres


são regidas pelos hormônios, que controlam o ciclo menstrual. As
pesquisas que envolvem mulheres não podem subestimar a parte
hormonal, porque é o que as controla todos os dias. Se o estudo
for feito na fase reprodutiva, não se pode ignorar o estrógeno e a
progesterona, que regem a harmonia do organismo feminino.

O outro desafio citado pela autora está no reconhecimento da


interseccionalidade da questão das desigualdades entre os sexos nas pesquisas
científicas a fim de torná-las mais sensíveis a uma realidade social complexa
(Aquino, 2006). O que devemos considerar é que, como defendido no primeiro
tópico deste artigo, o sexo é fruto de uma integração dinâmica entre o que é
fisiológico e o que é social. Já o social constrói-se através da integração de vários
fatores que combinados dão origem a diferentes formas de desigualdades. Esta
é a questão da interseccionalidade, tratada por Aquino, que tem forte relação
com a problemática da saúde das mulheres. Para Alba Alonso (2010, p. 25):

Durante as últimas décadas, os estudos de género passaram a


considerar a sua combinação com outros tipos de critérios de
diferenças, como a classe, a raça, ou a orientação sexual, sublinhando
a relevância de todos eles para entender as desigualdades sofridas
pelas mulheres.

Segundo a autora a perspectiva da interseccionalidade deve ser


integrada nas políticas públicas a fim de evitar uma superinclusão, ao considerar
o problema de um determinado grupo como se fosse um grupo geral, bem
como a subinclusão, quando se aborda um problema geral como se pertencente
a um grupo concreto (Alonso, 2010). São estas as duas grandes questões
referentes à saúde da mulher com destacada relevância na abordagem das
políticas públicas: a dificuldade da integração de uma perspectiva que leve
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 221

em conta as desigualdades entre os sexos nas análises científicas, bem como


a abordagem interseccional das questões sociais relativas às desigualdades
entre homens e mulheres.
Em relação à primeira questão, em 2007, o relatório produzido pela
Direção Geral de Saúde, sob a coordenação de Vasco Prazeres, denominado
“Saúde, Sexo e Gênero” apontou alguns dos principais desafios para a
integração plena de uma perspectiva de gênero nas políticas de saúde em
Portugal. O referido relatório critica a produção científica na área da saúde
dos últimos anos que tendeu a incorporar terminologias sexualmente neutras,
não obstante a reprodução dos estereótipos persistisse de outras formas, como
por exemplo, na adoção do masculino como padrão (Prazeres et al, 2007).
Nas críticas realizadas especificamente ao Plano Nacional de Saúde
2004-2010, destaca-se que há um déficit de estatísticas desagregadas por gênero,
que são de extrema importância para a compreensão da realidade social, uma
vez que analisam o sexo feminino desagregado do masculino, evitando que
a neutralidade mascare a realidade. Entretanto, quando existem, apontam-se
apenas as diferenças entre os sexos e não suas motivações sociais.
Em relação à interseccionalidade na área da saúde, é necessário perceber
que as questões envolvendo a saúde das mulheres estão diretamente ligadas
à divisão sexual do trabalho, à classe social, ao nível de escolaridade, ao país
de origem, entre outras causas. Foi o que constatou o relatório “Women and
Health: Today’s Evidence Tomorow’s Agenda” da Organização Mundial de Saúde
que teve por objetivo identificar quais os principais problemas relacionados
ao direito à saúde da mulher em escala mundial. O nível de desenvolvimento
econômico dos países é um dos fatores mais significativos na questão da saúde
da mulher. Enquanto nos países com baixo desenvolvimento econômico as
principais causas de morte deste grupo são as doenças transmissíveis como
a AIDS, doenças pulmonares e infecciosas, nos países em desenvolvimento
há uma progressiva redução destas doenças, em contrapartida assiste-se ao
aumento de doenças causadas por fatores como a poluição urbana. Já os países
desenvolvidos alcançaram altos índices de expectativa de vida e de saúde das
mulheres, sendo que os problemas enfrentados atualmente são o aumento
do consumo de álcool e tabaco neste grupo, a obesidade mórbida, bem como
outros distúrbios alimentares (WHO, 2009, p.1-13).
Outro ponto que deve ser citado relaciona-se com a percepção da saúde/
doença. Esta é vista de modo diferente entre as mulheres de distintas classes
sociais e graus de instrução, conforme constatou um estudo realizado por Luísa
Ferreira da Silva e Fátima Alves (2002). Às mulheres tendem a relacionar mais
a questão do mal estar com fatores subjetivos como tristeza, nervoso, cansaço,
dores de cabeça, o que pode estar relacionado ao fato da divisão sexual do
trabalho relegar as mulheres as tarefas domésticas, o que é um fator de tensão,
222 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

acúmulo e, muitas vezes, impede sua plena realização pessoal. Quanto à


diferença na percepção da saúde dentre as próprias mulheres, constatou-se
que quanto mais escolarizadas maior é a sensação de ter uma boa saúde (Silva
& Alves, 2002), o que reforça a idéia de que a saúde é, sobretudo, uma questão
interseccional e deve ser tratada como tal.
Busquei demonstrar neste tópico o que são as principais estratégias de
intervenção das políticas para a igualdade sexual, bem como os principais
problemas relacionados à efetivação do direito à saúde das mulheres.
Identificou-se a ausência de uma perspectiva das desigualdades sexuais
tanto nas pesquisas científicas como na elaboração das políticas públicas, e
a necessidade de uma abordagem interseccional das desigualdades, bem
como da integração destas nas políticas públicas. No próximo capítulo será
destacada uma estratégia em especial, a do mainstreaming.

O mainstreaming como estratégia de promoção do direito à saúde das


mulheres.
Não obstante a existência de inúmeros obstáculos à efetivação do
acesso igualitário de mulheres e homens à saúde, presencia-se nos últimos
anos avanços importantes na busca deste objetivo. Apresenta-se, neste artigo,
uma estratégia indispensável às políticas para a igualdade sexual na área da
saúde, qual seja o mainstreaming.
O mainstreaming foi adotado definitivamente como uma estratégia pelas
organizações internacionais com a 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres,
de 1995, que em sua Plataforma de Ação acorda o comprometimento dos
Estados subscritores a institucionalizar as perspectivas das relações sociais de
sexo em todas as esferas de intervenção. Segundo o Grupo de Especialistas em
Mainstreaming do Conselho da Europa (Lombardo, 2003, p. 06):

O mainstreaming de género é a organização (a reorganização), a


melhora, o desenvolvimento e a evolução dos processos políticos,
de modo que una perspectiva de igualdade de género se incorpore
em todas as políticas, em todos os níveis e em todas as etapas, pelos
atores normalmente envolvidos na elaboração de medidas políticas.

Ou seja, partindo do pressuposto de que as desigualdades de gênero


são estruturais e interseccionais, a estratégia do mainstreaming visa estender as
práticas administrativas públicas e privadas uma perspectiva de gênero, a fim
de tornar a luta pelas desigualdades mais eficaz. Além disso, o mainstreaming
visa uma ampliação do conceito de igualdade de gênero, onde não se objetiva
apenas a melhoria das condições de vida das mulheres, mas uma abordagem
mais ampla da relação entre os dois sexos, com propósito de se erradicarem as
desigualdades presentes nesta relação (Lombardo, 2003). Ainda em relação a
esta questão, e antes de tratarmos especificamente do mainstreaming de gênero
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 223

na saúde, é necessário compreendermos que a sua adoção como estratégia não


significa a extinção de outras políticas mais pontuais voltadas para a igualdade
entre homens e mulheres, pelo contrário, ela visa ampliar as políticas para a
igualdade a todos os níveis, convivendo com outras políticas específicas.
Em relação às políticas de saúde, o mainstreaming apresenta-se como
uma importante forma de promoção do amplo acesso das mulheres a este
direito. Daremos aqui o exemplo da atuação do Estado português. Em 2005,
a antiga Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, atual
Comissão para a Cidadania e Igualdade de Gênero, lançou uma série de
guias setoriais para o mainstreaming de gênero, um deles no sector da saúde.
Nele busca-se fomentar práticas que incluam a perspectiva de gênero em
toda a Administração Pública, bem como no sector privado ligado à área da
saúde, através da divulgação de pistas de intervenções possíveis com base
nas medidas definidas pelo Plano Nacional para a Igualdade. Podemos aqui
exemplificar algumas medidas como a sensibilização para a maternidade e
paternidade responsáveis, o incentivo a criação nos Hospitais e Centros de
Saúde de gabinetes de apoio às vítimas de violência doméstica e o reforço
dos programas de prevenção da saúde tendo em atenção os aspectos
específicos de mulheres e de homens. Contém ainda um conjunto de boas
práticas internacionais no plano de saúde e gênero, além de uma bibliografia
de referência sobre o assunto. Trata da importância de formação do pessoal
médico e de enfermagem segundo as perspectivas de gênero, bem como da
integração desta nas investigações científicas e médicas, nas campanhas de
prevenção e certamente na elaboração das políticas de saúde (Perista & Silva,
2005).
Porque considerar o mainstreaming uma importante estratégia para
a efetivação das políticas de igualdade sexual no âmbito da saúde? Dentro
da perspectiva abordada neste trabalho, segundo a qual as dificuldades
de garantia do direito à saúde da mulher residem na omissão relativa às
desigualdades e diferenças sexuais tanto nas políticas de saúde quanto nas
pesquisas científicas, o mainstraming visa justamente levar esta abordagem a
todos os âmbitos da atuação Estatal e privada, o que abrange além das suas
políticas as pesquisas científicas na área da saúde. Outro ponto é que através da
abordagem estrutural a qual se propõe a estratégia do maistreaming permite-se
a inserção de uma perspectiva interseccional à questão da saúde das mulheres.

Considerações Finais
A temática proposta no presente artigo teve como objetivo compreender
quais os principais obstáculos relativos ao acesso efetivo das mulheres ao seu
direito à saúde, bem como qual o papel das políticas públicas para a igualdade
sexual neste contexto. Destacam-se assim dois obstáculos; o primeiro, relativo
224 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

à área científica da saúde, diz respeito à questão da utilização do masculino


como padrão de ser humano. Através da adoção do conceito do sexo biossocial
com ênfase na interação das características físicas e sociais do indivíduo
é possível perceber que as diferenças físicas entre homens e mulheres são
condicionadas e condicionam estereótipos sociais. Sendo assim, o fato do
masculino ser o padrão diz respeito às relações de poder entre os sexos onde
o feminino submete-se à dominação do masculino.
O segundo obstáculo diz respeito à questão da interseccionalidade
ligada às desigualdades entre homens e mulheres. A desigualdade sexual
é uma questão estrutural e por isso relaciona-se com uma série de outras
perspectivas como a econômica, religiosa, étnica, cultural. Deste modo, deve
ser tratada levando-se em consideração todas estas perspectivas, tanto no
campo científico, quanto das políticas públicas.
Analisando estas problemáticas com ênfase nas políticas públicas para
a igualdade sexual, tidas pelo Feminismo de Estado como um instrumento
de promoção da igualdade, dá-se conta que as políticas públicas para a
saúde raramente levam em consideração a questão das diferenças físicas
e sociais entre homens e mulheres na saúde, sendo que quando o fazem, o
fazem de forma superficial. As políticas públicas para a igualdade na área da
saúde também encontram dificuldade de realizar uma análise interseccional
das desigualdades, o que afeta sua eficácia. Dentro deste contexto uma
estratégia estrutural no combate das desigualdades apresenta-se como uma
potencialidade. O mainstreaming ao envolver todos os setores públicos e
privados no desenvolvimento de políticas para a igualdade, traduz-se em
uma solução global capaz que abordar os temas de forma interseccional e
transversal.
O presente trabalho buscou problematizar a questão do direito à
saúde da mulher com base em conceitos como o sexo biossocial, o Feminismo
de Estado, a interseccionalidade, as políticas públicas para a igualdade e o
maisntreaming, a fim de se esclarecer como constroem-se as desigualdades
sexuais no âmbito do direito à saúde. Abordou-se ainda a atuação das políticas
para a igualdade na área da saúde com ênfase na estratégia do mainstreaming
como potencialidade política de combate as desigualdades entre homens e
mulheres no seu direito de acesso à saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de igualdade(s). Revista Crítica de Ciências Sociais, 90, p. 25-43. 2010.
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Perista, Heloísa & Silva, Alexandra. Guia para o mainstreaming de género na
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Prazeres, Vasco. Saúde, Sexo e Género: Factos, representações e desafios, Direção
Geral de Saúde. 2007.
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sociais. Atas do Colóquio Internacional “Família, Género e Sexualidade nas
Sociedades Contemporâneas”, Associação Portuguesa de Sociologia, p.311-
320. 2002.
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agenda, Geneve, WHO Press. 2009.
226 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
PROTEÇÃO JURÍDICA DA SAÚDE DO
TRABALHADOR NO SISTEMA JURÍDICO
BRASILEIRO SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS
HUMANOS FUNDAMENTAIS

MARIO AUGUSTO CARBONI1


Resumo
O presente artigo tem por escopo apresentar panorama das normas e institutos do sistema
jurídico brasileiro que se ocupam da tutela da saúde do trabalhador como direito fundamental.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde; Trabalhador; Tutela; Direito Fundamental.

Introdução
No plano do direito internacional diversos diplomas normativos
consagram o direito à vida e à saúde como direitos humanos fundamentais,
destacando-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, o
Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos de 1966, o Pacto Internacional
dos Direitos Culturais e Sociais de 1966, a Convenção Americana de Direitos
Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, assim como a Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948.
O presente artigo busca traçar as diretrizes normativas da tutela da
saúde do trabalhador no ordenamento jurídico brasileiro, tomando-se por
vetor sua natureza de direito fundamental cuja proteção jurídica se reconhece
como universal a partir do plano das normas dos sistemas internacionais de
proteção dos direitos humanos.

Proteção da saúde do trabalhador como direito fundamental


A relação entre o trabalho e a saúde ou doença constituiu em foco de
atenção a partir da Revolução Industrial, pois no trabalho escravo ou no regime
servil inexistia a preocupação em preservar a saúde dos que eram submetidos
ao trabalho, interpretado como castigo ou estigma: o “tripalium”, instrumento
de tortura. Marx já identificava os problemas que a sobrejornada de trabalho
acarreta à saúde do trabalhador, quando nos seus escritos “O Capital”, alertou:

1
Procurador-Seccional da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto-SP. Mestre e Doutorando
em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Especialista
em Direito Público pela Universidade de Brasília-UnB. Especialista em Direito Processual
Civil pelo Instituto de Ensino Superior COC. Pós-graduação em Administração Pública pela
Fundação Getúlio Vargas - FGV-SP. Professor na Pós-graduação em Direito da Fundação
Armando Álvares Penteado – FAAP. Professor na Faculdade de Direito do Centro Universitário
UniSEB-Ribeirão Preto-SP. Formação complementar: Corso di Specializzazione en Diritto
Italiano pela Università degli studi di Modena i Reggio Emilia – Facoltà di Giurisprudenza -
Modena - Itália; e Las relaciones laborales en Europa en la actual situación de crisis económica
- Departament de Dret Mercantil, Dret del Treball i de la Seguretat Social pela Univesitat de
Barcelona – Espanha.
228 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

(...) em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por mais-


trabalho, (...) atropela não apenas os limites máximos morais, mas
também os puramente físicos da jornada de trabalho. Usurpa o
tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção sadia
do corpo. Rouba o tempo necessário para o consumo de ar puro e
luz solar. Escamoteia tempo destinado às refeições para incorporá-
lo onde possível ao próprio processo de produção, suprindo o
trabalhador, enquanto mero meio de produção de alimentos, como
caldeira de carvão, e a maquinaria, de graxa ou óleo2.

Não é apenas a jornada excessiva de trabalho que se constitui como


causa agressiva à saúde do trabalhador, mas toda condição adversa afeta o
meio ambiente do trabalho suscetível de qualificação como insegura, insalubre,
perigosa, albergando inclusive práticas denominadas de assédio moral, que
atinge a saúde psíquica do trabalhador. Muitas vezes a questão da saúde do
trabalhador ultrapassa o meio ambiente do trabalho e atinge a esfera mais
ampla de saúde pública, além das delimitações físicas das fábricas.
O ordenamento jurídico brasileiro na perspectiva de proteção da
saúde do trabalhador apresenta diversas normas positivadas que reconhecem
direitos e impõem obrigações aos empregadores e tomadores de serviços
para garantir, prevenir e restaurar a higidez e segurança do trabalho. As
medidas garantidoras da proteção da saúde do trabalhador encontram-se no
desdobramento de um cenário mais alargado de proteção da saúde do ser
humano como sujeito de direito.
Por óbvio que a tutela da saúde humana conecta-se ao conceito de
direitos humanos e está intimamente ligada e se apresenta indissociável da
proteção ao direito fundamental à vida e à dignidade da pessoa, sendo que
esta, no escólio de Habermas: “forma algo como o portal por meio do qual o conteúdo
igualitário-universalista da moral é importado ao direito”, formando uma espécie
de “dobradiça conceitual que conecta a moral do respeito igual por cada um com o
direito positivo e com a legislação democrática”3, e que propiciou a construção de
uma ordem política que deita raízes nos direitos humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos que, segundo
ensinamentos de Celso Lafer4, a partir da sua gênese como vis diretiva de um
conselho a ser adotado pelas nações adquire contornos normativos pelo seu
caráter interpretativo autêntico da Carta das Nações Unidas e das sucessivas
invocações como prática geral caracterizadora de costume internacional,
trouxe expressamente em seu texto a proteção da saúde como direito humano,

2
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo I. Trad. Regis Barbosa e
Flávio R. Kothe. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1983, p. 211.
3
HABERMAS, Jürgen. Sobre a constituição da Europa. Um ensaio. Trad. Denílson Luis Werle, Luiz
Repa e Rurion Melo. São Paulo: Editora UNESP, 2012, p. 17-18.
4
LAFER, Celso. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). In MAGNOLI, Demétrio
(organizador). História da Paz. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 297 a 329.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 229

o que se extrai da parte inicial do seu artigo XXV, segundo o qual: “Todo ser
humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde
e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis...” (ONU, 1948).
Em correspondência à proteção internacional deferida pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, o art. 6º da Constituição Federal brasileira,
promulgada em 1988, determina que a saúde é um direito social, havendo
tratamento específico do direito à saúde em outros dispositivos do texto
constitucional, como nos artigos 196 a 200, que tratam especificamente sobre
o direito social à saúde e o sistema único de saúde, bem como no art. 225 que
trata da proteção do meio ambiente equilibrado essencial à sadia qualidade
de vida.
Importa destacar que a saúde é um bem tutelado a partir do plano
constitucional em sua dimensão coletiva ou metaindividual, como direito social
que ultrapassa os limites do direito subjetivo individualmente considerado,
classificando-se como interesse difuso, cuja relação de proteção se estabelece
entre a saúde humana como bem da vida difuso e a coletividade como sujeito5.
Nesse sentido, o art. 196 da Constituição Federal afirma que a saúde
é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação. Desse modo, o texto constitucional reconhece como titular do
direito à saúde todo ser humano, toda a coletividade, e determina que o Estado
implemente políticas sociais e econômicas para sua proteção, promoção e
recuperação.
O direito à saúde também é referenciado na Constituição Federal em
compasso com a proteção deferida ao meio ambiente, eis que seu artigo 225
determina que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, de modo que se impõe
ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações. Dessa forma a sadia qualidade de vida é bem
tutelado constitucionalmente também pela proteção ambiental.
O texto constitucional também defere especial proteção à saúde do ser
humano na condição de trabalhador, seja ao tutelar a sadia qualidade de vida
pela proteção ambiental, a qual envolve o meio ambiente natural, cultural,
artificial e do trabalho6, seja ao determinar o patamar mínimo de direitos
trabalhistas no seu art. 7º. Dentre o rol de direitos trabalhistas albergados no
art. 7º da Constituição Federal identificam-se normas de proteção da saúde

5
OLIVEIRA, Franciso Antônio de. Ação civil pública - enfoques trabalhistas - doutrina,
jurisprudência, legislação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 30.
6
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental no
Brasil. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 53 e ss.
230 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

do trabalhador por meio da limitação da jornada de trabalho, maior oneração


do trabalho em condições prejudiciais à saúde e segurança, deferimento de
descansos, dentre outros.
Portanto, são normas constitucionais tuitivas da saúde do trabalhador
as que determinam: remuneração do trabalho noturno superior à do diurno;
duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e
quatro semanais; possibilidade de compensação de horários e redução da
jornada mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; jornada de seis
horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento;
repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; remuneração
do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do
normal; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais
do que o salário normal; redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio
de normas de saúde, higiene e segurança; adicional de remuneração para as
atividades penosas, insalubres ou perigosas; e seguro contra acidentes de
trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está
obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.
À guisa de correlação entre as normas internas e a tutela internacional de
caráter universalizante, destaque-se que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos também defere proteção especial da saúde ao sujeito de direito na
condição de trabalhador ao determinar em seu artigo XXIV que: “Toda pessoa
tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e
férias periódicas remuneradas” (ONU, 1948).
No campo do sistema jurídico brasileiro, como visto, a saúde humana
encontra tutela normativa no próprio texto constitucional, em reconhecimento
político de sua natureza de direito fundamental, e quanto à saúde sob a ótica
do ser humano na condição de trabalhador, a proteção jurídica se estende
além das normas constitucionais, encontrando-se disposições normativas
a ela relacionadas direta ou indiretamente em diversos ramos do Direito
positivo nacional, em especial no Direito do Trabalho, no Direito Ambiental
do Trabalho, no Direito da Seguridade Social e no Direito Tributário. No
Direito do Trabalho encontram-se também disposições infraconstitucionais
relacionadas com a proteção da saúde do trabalhador como sujeito da relação
de emprego, sendo que a CLT dedica seus artigos 154 a 201 às normas de
segurança e medicina do trabalho.
Nesse assunto são referências de imposições normativas de proteção
da saúde e segurança no trabalho as normas regulamentadoras, conhecidas
sob as siglas abreviativas NR, as quais se encontram fixadas pela Portaria
MTE nº 3.214/78. Esta Portaria, em que pese originária do Poder Executivo
e qualificada como ato infralegal na escala normativa do direito positivo
brasileiro, representa um arcabouço importante de normas técnicas de proteção
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 231

ao meio ambiente do trabalho e à saúde e segurança do trabalhador. Podemos


entender que partir dos ditames da hermenêutica do sistema jurídico: “verifica-
se que tanto a lei (art. 200 da CLT) quanto a Constituição Federal (art. 7º, XXII)
inspiram, referendam e impulsionam as aludidas NRs, conferindo-lhes indubitável e
autêntica normatividade”7.
Anote-se que o Supremo Tribunal Federal adota este mesmo
entendimento, posto que fixou por meio da Súmula nº 194 a competência
do Ministério do Trabalho e Emprego para especificações das atividades
insalubres. Em arremate, este entendimento está umbilicalmente atrelado
à determinação constitucional de que a saúde é dever do Estado, e assim
deve inspirar o exercício das ações e programas de todo Poder Público, seja
Legislativo, Executivo e Judiciário, de modo que são plenamente válidas as
normas regulamentadoras que identificam e estipulam os ditames básicos que
devem ser observados pelos tomadores de serviço para reduzir ou eliminar os
riscos e agentes nocivos à saúde e à segurança do trabalhador.
Além das disposições do Direito do Trabalho e Direito Ambiental do
Trabalho, encontram-se também no Direito da Seguridade Social normas
que tutelam a saúde do trabalhador, em especial as que cuidam de regular
os acidentes do trabalho e seus efeitos jurídicos. Nesse aspecto sobreleva
registrar, além da previsão legal dos benefícios acidentários ligados ao
afastamento do trabalhador por acidentes típicos ou doenças ocupacionais, as
determinações legais sobre responsabilização das empresas e ações regressivas
como mecanismos coibidores das práticas afrontosas às normas de proteção
ao meio ambiente do trabalho e à saúde e segurança do trabalhador.
No campo do Direito Tributário, em específico no delineamento do
custeio da Seguridade Social, é possível também identificar normas impositivas
de natureza extrafiscal indutoras da proteção da saúde e segurança do
trabalhador, a exemplo da contribuição social sobre os riscos ambientais do
trabalho e o correspondente fator acidentário de prevenção como modulador
de suas alíquotas em relação ao índice de registro de acidentes do trabalho
pelos tomadores de serviço.
Nos tópicos seguintes serão analisadas as principais e mais relevantes
normas jurídicas adotadas pelo ordenamento jurídico brasileiro que cuidam
de tutelar a saúde do trabalhador, reconhecendo-o como sujeito desse direito
intrinsecamente ligado ao direito à vida e à dignidade humana, na linha dos
vetores do sistema jurídico internacional de proteção aos direitos humanos.

7
DALLEGRAVE NETO, José Affonso. A força vinculante das Normas Regulamentadoras do
Ministério do Trabalho e Emprego (NRs do MTE) e o Anexo II da NR-17. Rio de Janeiro:
Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, nº 48, 2010, p. 119-120.
232 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Normas de proteção à saúde do trabalhador no direito positivo brasileiro


De início cumpre estabelecer um escorço histórico sobre a legislação
brasileira protetiva da saúde do trabalhador. Existem referências legais à
Inspeção do Trabalho no Brasil que remontam ao século XIX, como o Decreto
n.º 1.313 de 17/01/1891, que tratava e normas relativas ao trabalho de crianças
no Distrito Federal. Em 1921 foi criada a Inspeção do Trabalho, circunscrita
ao Distrito Federal (Rio de Janeiro). Com a reforma constitucional de 1926
estabeleceu-se a competência da União para legislar sobre o trabalho, antes
dos Estados.
Em 1918 criou-se, por meio do Decreto 3.350, o Departamento Nacional
do Trabalho para fiscalização do cumprimento de leis sobre acidentes do
trabalho, jornada, férias, trabalho de mulheres e menores e organização
sindical, sendo que o Decreto n.º 21690, de 01/08/1932 criou as Inspetorias
Regionais nos Estados da federação, posteriormente transformadas em
Delegacias Regionais do Trabalho, pelo Decreto n.º 2168, de 06/05/1940. As
Delegacias do Trabalho Marítimo foram criadas pelo Decreto n.º 23259, de
20/10/1933, posteriormente extintas.
A obrigatoriedade de comunicação de acidentes do trabalho à autoridade
policial foi estabelecida pelo Decreto n.º 24637, de 10/07/1934, o qual também
previa a imposição de multas administrativas, pelo Departamento Nacional
do Trabalho.
As Leis de proteção do trabalho foram agrupadas na Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, pelo Decreto-lei n.º 5.452, de 01/05/1943. Em
19/07/1947 a Organização Internacional do Trabalho - OIT adota a Convenção
n.º 81, que estabelece que cada Membro da OIT, para o qual a referida
Convenção está em vigor, deve ter um sistema de inspeção do trabalho nos
estabelecimentos industriais e Comerciais. O Brasil ratificou a Convenção n.º
81 da OIT, pelo Decreto Legislativo n.º 24, de 29/05/1956, promulgado pelo
Decreto n.º 41.721, de 25/06/1957, posteriormente denunciada e rerratificada
pelo Decreto n.º 95.461, de 11/12/1987.
A Portaria n. 32, de 29 de novembro de 1968, do DNSHT - Departamento
Nacional de Segurança e Higiene do Trabalho, dispôs sobre a organização
de CIPAs, regulamentando os artigos 158 e 164 da CLT e a Portaria n.º
3.237/72 tornou obrigatória a existência de serviços de medicina do trabalho e
engenharia de segurança do trabalho em todas as empresas com um ou mais
trabalhadores. A Lei n.º 6.514/77 alterou o Capítulo V, do Título II, da CLT,
relativo à Segurança e Medicina do Trabalho - artigos 154 a 201. Por sua vez,
a Portaria n.º 3.214, de 08/06/1978, aprova as Normas Regulamentadoras de
Segurança e Medicina do Trabalho - NR.
Ainda em relação à evolução histórica podemos citar a Lei n.º 5.161/66,
que autoriza a criação da Fundação Centro Nacional de Segurança, Higiene e
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 233

Medicina do Trabalho - FUNDACENTRO, cuja denominação foi alterada pela


Lei n.º 7.133, de 26/10/1983, para Fundação Centro Nacional Jorge Duprat
Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho.
O atual ordenamento jurídico brasileiro alçou a segurança, higiene e
medicina do trabalho ao campo constitucional, sendo direito social indisponível
dos trabalhadores, isto é, direito público subjetivo dos trabalhadores exercerem
suas funções em ambiente de trabalho seguro e sadio, cabendo ao empregador
tomar as medidas necessárias no sentido de reduzir os riscos inerentes ao
trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (inciso XXII do
art. 7º).
O direito à saúde, ao trabalho, à segurança e à previdência social estão
previstos no art. 6º da Constituição da República, sendo que os arts. 196 a 200
da Constituição Federal dispõem especificamente sobre o sistema único de
saúde - SUS.
O SUS engloba também atenção à saúde do trabalhador, sendo que
a Portaria do Ministério da Saúde nº 1.125/GM de 06 de julho de 2005,
considerando a necessidade de implementação de ações em saúde do
trabalhador em todos os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde – SUS,
dispõe sobre os propósitos da política de saúde do trabalhador. Referida
norma estabelece que toda política de saúde do trabalhador para o SUS tenha
por propósito a promoção da saúde e a redução da morbimortalidade dos
trabalhadores, mediante ações integradas, intra e intersetorialmente, de forma
contínua, sobre os determinantes dos agravos decorrentes dos modelos de
desenvolvimento e processos produtivos, com a participação de todos os
sujeitos sociais envolvidos.
Por sua vez, a CLT contém regras sobre proteção da saúde e segurança
do trabalhador, as quais se encontram no capítulo V do seu Titulo II, nomeado
como “Da segurança e da medicina do trabalho”, nos artigos 154 a 201.
Segundo expressa disposição do art. 154 da CLT, as normas de segurança
e medicina do trabalho devem ser observadas em todos os locais de trabalho
e não desobriga as empresas do cumprimento de outras disposições que,
com relação à matéria, sejam incluídas em códigos de obras ou regulamentos
sanitários dos Estados ou Municípios em que se situem os respectivos
estabelecimentos, bem como daquelas oriundas de convenções coletivas de
trabalho.
As regras constantes da CLT quanto à saúde e segurança do trabalho
não esgotam, pois, o campo normativo a ser observado pelos empregadores,
uma vez que devem ser observadas também as regras locais estaduais e
municipais sobre o tema. E mais, também devem ser observadas as regras
decorrentes da normatização autônoma por meio das negociações coletivas.
Diversas são as regras determinadas pela CLT quanto ao tema da
234 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

medicina e segurança do trabalho, encontrando-se no seu rol determinações


sobre a inspeção prévia dos estabelecimentos, a possibilidade de embargos
e interdições pela fiscalização do trabalho, a previsão de obrigatoriedade de
manutenção pelos empregadores de serviços especializados em medicina
e segurança do trabalho, instituição de comissão interna de prevenção de
acidentes (CIPA), fornecimento pelos empregadores de equipamentos de
proteção individual (EPI) adequado ao risco, exames médicos admissional,
periódicos e demissional, requisitos técnicos de segurança das edificações,
iluminação adequada, conforto térmico, instalações elétricas, segurança dos
equipamentos, máquinas, fornos, caldeiras e recipientes sob pressão, além de
normas a respeito do trabalho insalubre e perigoso e da prevenção da fadiga.
Quanto ao trabalho em atividades insalubres, consideradas aquelas que,
por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados
a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da
natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos,
a CLT não esgota o tratamento da matéria e atribui ao Ministério do Trabalho
competência para aprovar o quadro das atividades e operações insalubres e
adotar normas sobre os critérios de caracterização da insalubridade, os limites
de tolerância aos agentes agressivos, meios de proteção e o tempo máximo de
exposição do empregado a esses agentes. Aqui cabe pontuar novamente que
o Supremo Tribunal Federal fixou por meio da Súmula nº 194 a competência
do Ministério do Trabalho e Emprego para especificações das atividades
insalubres.
A Lei 6.514/77, tendo em vista as peculiaridades de cada atividade
ou setor de trabalho, e levando em conta a potencial gama de atividades
econômicas bem com as diversas especificidades de cada qual, determinou
ao órgão do Poder Executivo Federal, o Ministério do Trabalho e Emprego
(art. 200 da CLT), competência para estabelecer disposições complementares
às normas de que trata o Capítulo V, do Título II da CLT.
A regulamentação administrativa foi editada pelo Ministério do
Trabalho e Emprego, por meio da Portaria MTE nº 3.214/78, a qual traz em seu
texto as Normas Regulamentadoras - NR, relativas à segurança e medicina do
trabalho, de observância obrigatória pelas empresas privadas e públicas e pelos
órgãos públicos da administração direta e indireta, bem como pelos órgãos
dos Poderes Legislativo e Judiciário, que possuam empregados celetistas,
aplicando-se também, no que couber, aos trabalhadores avulsos, às entidades
ou empresas que lhes tomem o serviço e aos sindicatos representativos das
respectivas categorias profissionais.
A norma administrativa citada contempla uma gama de normas
regulamentadoras sobre diversos temas ligados à saúde e segurança do trabalho,
conforme referenciado na CLT, sendo as seguintes: NR- 2 - Inspeção Prévia;
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 235

NR- 3 - Embargo e Interdição; NR- 4 - Serviço Especializado em Segurança e


Medicina do Trabalho - SESMT; NR- 5 - Comissão Interna de Prevenção de
Acidentes - CIPA; NR- 6 - Equipamento de Proteção Individual - EPI; NR-
7 - Exames Médicos; NR- 8 - Edificações; NR- 9 - Riscos Ambientais; NR- 10
- Instalações e Serviços de Eletricidade; NR- 11- Transporte, Movimentação,
Armazenagem e Manuseio de Materiais; NR- 12- Máquinas e Equipamentos;
NR- 13- Vasos Sob Pressão; NR- 14- Fornos; NR- 15- Atividades e Operações
Insalubre; NR- 16- Atividades e Operações Perigosas; NR- 17- Ergonomia;
NR- 18- Obras de Construção, Demolição, e Reparos; NR- 19- Explosivos; NR-
20- Combustíveis Líquidos e Inflamáveis; NR- 21- Trabalhos a Céu Aberto;
NR- 22- Trabalhos Subterrâneos; NR- 23- Proteção Contra Incêndios; NR- 24-
Condições Sanitárias dos Locais de Trabalho; NR- 25- Resíduos Industriais;
NR- 26- Sinalização de Segurança; NR- 27- Registro de Profissionais; NR- 28-
Fiscalização e Penalidades.
Ressalte-se que no âmbito do trabalho rural, a Portaria do Ministério do
Trabalho nº 3.067/88, aprova as Normas Regulamentadoras Rurais – NRR, nos
termos do art. 13 da Lei n.º 5.889/73, relativas à segurança e higiene do trabalho
rural, as quais tratam dos seguintes temas: NRR-2 - Serviço Especializado em
Prevenção de Acidentes do Trabalho Rural - SEPATR; NRR-3 - Comissão
Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho Rural - CIPATR; NRR-4 -
Equipamento de Proteção Individual - EPI; e NRR-5 - Produtos Químicos.
A garantia do cumprimento das citadas normas sobre medicina e
segurança no trabalho depende da atuação proativa do Ministério do Trabalho
e Emprego no seu papel de fiscalização administrativa, inclusive como meio de
inibição à desatenção às regras postas à tutelar a saúde e a vida do trabalhador.
A fiscalização do trabalho visa a garantir o cumprimento da legislação
de proteção ao trabalhador, com objetivo de combater a informalidade
no mercado de trabalho e garantir observância da legislação trabalhista. A
eficácia das leis trabalhistas, como as leis de proteção em geral, depende da
fiscalização exercida quanto ao fiel cumprimento dos deveres impostos aos
empregadores8.
O descumprimento das normas de saúde e segurança do trabalho
acarreta a imposição de penalidade pela fiscalização do trabalho. O artigo 628,
da Consolidação das Leis do Trabalho, no capítulo intitulado “Da Fiscalização,
Da Autuação e Da Imposição de Multas”, dispõe que a toda verificação em que
o auditor fiscal do trabalho concluir pela existência de violação de preceito
legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a
lavratura de auto de infração.
Dessa forma, os tomadores de serviço que não observarem e

8
RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. Curitiba: Juruá Editora,
2009. p. 463.
236 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

regulamentação normativa sobre proteção do meio ambiente do trabalho e


da saúde e segurança dos trabalhadores ficam sujeitos à penalidade imposta
pela fiscalização do trabalho, cujo procedimento administrativo encontra-se
previsto nas disposições da Portaria MTE nº 148/96, que aprova normas para
a organização e tramitação dos processos de multas administrativas.

Mecanismos de tutela da saúde do trabalhador no sistema jurídico nacional


A sadia qualidade de vida é bem juridicamente tutelado pela
Constituição Federal brasileira, que determina em seu art. 225 que todos
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual se qualifica
como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, de
modo que se impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
A tutela da sadia qualidade de vida decorre da proteção deferida ao
meio ambiente, cujo caráter unitário é afirmado pela doutrina constitucional9,
e segundo Celso Antônio Pacheco Fiorillo, esse todo unitário pode ser
classificado em meio ambiente natural, cultural, artificial e do trabalho10.
O meio ambiente do trabalho é:

(...) o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais,


sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na
salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a
incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independentemente
da condição que ostentem (homens ou mulheres, maiores ou
menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos etc.)11

O resultado da degradação ao meio ambiente do trabalho são os


acidentes do trabalho, incluídas as doenças ocupacionais, os quais atingem
diretamente o trabalhador em seus direitos fundamentais à vida e à saúde.
Assim, em síntese: “meio ambiente do trabalho não é algo diferente do conjunto de
condições de segurança e medicina do trabalho”12.
A Organização Internacional do Trabalho - OIT, na linda de proteção
dos direitos humanos estampados na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, preocupa-se com o tema do meio ambiente do trabalho e prevenção
de acidentes do trabalho, sendo destaque a Convenção nº. 155, por meio da
qual estabelece o papel do Estado, que mediante consulta com as organizações
mais representativas de empregadores e de trabalhadores interessadas e
tendo em conta as condições e prática nacionais, deve formular, colocar em
9
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional.
São Paulo: Editora Saraiva, 2ª rev., 1999, p. 371.
10
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Op. cit., p. 53 e ss.
11
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Op. cit., p. 21.
12
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora Saraiva,
2012, p. 870.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 237

prática e reexaminar periodicamente política nacional coerente em matéria de


segurança e saúde dos trabalhadores e meio ambiente de trabalho.
O texto convencional estipula ainda que referida política nacional
tem por objetivo prevenir os acidentes e os danos para a saúde que sejam
consequência do trabalho, guardem relação com a atividade de trabalho ou
sobrevenham durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida em que
seja razoável e factível, as causas dos riscos inerentes ao meio ambiente de
trabalho. No mesmo sentido a Convenção 161 da OIT estabelece princípios de
uma política nacional de proteção à saúde do trabalhador.
Por sua vez, no plano do direito interno brasileiro, consoante fixou-se
alhures, a proteção à saúde e segurança do trabalhador e ao meio ambiente do
trabalho têm estatura constitucional (artigos 7º, XXII, 200, VIII, 225) e é objeto
de regulamentação pela legislação infraconstitucional, a exemplo dos artigos
154 a 201 da CLT, e por normas administrativas editadas pelo Ministério do
Trabalho, das quais sobressaem as normas regulamentadoras estampadas
nas Portarias MTE nº 3.214/78 e 3.067/88, além dos códigos de obras ou
regulamentos sanitários dos Estados ou Municípios em que se situem os
respectivos estabelecimentos, bem como das normas oriundas de convenções
coletivas de trabalho.
No que diz respeito aos acidentes do trabalho, fruto da degradação
ambiental do trabalho, a legislação da seguridade social cuida de estabelecer
seus conceitos normativos. O artigo 19, da Lei de Benefícios do Regime Geral
da Previdência Social (Lei 8.213/91), conceitua acidente do trabalho como
aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo
exercício do trabalho dos segurados especiais, provocando lesão corporal ou
perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente
ou temporária, da capacidade para o trabalho.
Os acidentes do trabalho podem ser classificados de forma ampla, em
acidentes típicos, doenças ocupacionais e acidentes equiparados. O acidente
do trabalho típico apresenta como características a exterioridade da causa
do acidente, a violência, a forma súbita e a relação com a atividade laboral13.
Assim, o acidente típico pode ser enquadrado no conceito doutrinário dado por
Russomano, o qual ensina que: “o acidente do trabalho, pois, é um acontecimento
em geral súbito, violento e fortuito, vinculado ao serviço prestado a outrem pela vítima
que lhe determina lesão corporal”.14 É o caso, por exemplo, das mutilações ou
mesmo morte decorrentes de tais acidentes por ferimentos ou lesões graves e
fatais.
Por sua vez, também se qualificam como acidentes do trabalho as

13
CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário.
8. ed. Florianópolis: Editora Conceito, 2007, p. 448.
14
RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis da Previdência Social.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 395
238 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

doenças ocupacionais, as quais são classificadas pelo art. 20, da Lei 8.213/91,
em entidades mórbidas como doenças do trabalho e doenças profissionais. A
doença profissional é aquela produzida ou desencadeada pelo exercício do
trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação
elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social.
De seu turno, a doença do trabalho é aquela adquirida ou desencadeada
em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se
relacione diretamente. A legislação previdenciária citada não considera como
doença do trabalho a doença degenerativa, a inerente a grupo etário, a que não
produza incapacidade laborativa, tampouco a doença endêmica adquirida por
segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação
de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza
do trabalho.
Por fim, os acidentes de trabalho equiparados encontram-se
relacionados no art. 21 da Lei 8.213/91. Nessa classe de acidentes encontram-
se: o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja
contribuído diretamente para a morte do segurado, para redução ou perda da
sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica
para a sua recuperação; o acidente sofrido pelo segurado no local e no horário
do trabalho, em consequência de ato de agressão, sabotagem ou terrorismo
praticado por terceiro ou companheiro de trabalho, ofensa física intencional,
inclusive de terceiro, por motivo de disputa relacionada ao trabalho, ato de
imprudência, de negligência ou de imperícia de terceiro ou de companheiro
de trabalho, ato de pessoa privada do uso da razão, desabamento, inundação,
incêndio e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior; a doença
proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua
atividade; o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário
de trabalho na execução de ordem ou na realização de serviço sob a autoridade
da empresa, na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe
evitar prejuízo ou proporcionar proveito, em viagem a serviço da empresa,
inclusive para estudo quando financiada por esta dentro de seus planos
para melhor capacitação da mão-de-obra, independentemente do meio de
locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do segurado, e no
percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer
que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado.
Dentre o rol de situações seguradas pela Previdência Social estão as
incapacidades decorrentes dos acidentes do trabalho. O Seguro Social, por
meio do Regime Geral da Previdência Social, defere ao trabalhador segurado
que se incapacite total ou parcialmente, definitiva ou provisoriamente, em
decorrência de acidentes do trabalho os benéficos previdenciários de natureza
acidentária auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-acidente,
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 239

além da pensão por morte deferida aos dependentes em razão da morte do


segurado decorrente de acidente do trabalho. Cabe registrar que os diversos
regimes previdenciários obrigatórios próprios dos entes federativos também
prevêem proteção aos segurados e benefícios em razão de acidentes do
trabalho.
Um grande problema no deferimento dos benefícios acidentários pela
Previdência Social relaciona-se com a necessidade de caracterização o nexo
causal, ou seja, o vínculo fático que liga a incapacidade para o trabalho ou
morte ao acidente do trabalho ou doenças ocupacionais.
A Lei 8213/91 e o Decreto 3.048/99 estabelecem a obrigatoriedade
dos tomadores de serviços em comunicar os acidentes do trabalho, por meio
de formulário próprio de Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT), ao
Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, de forma que a caracterização de
um benefício acidentário decorreria da emissão da referida CAT, de forma a
não transferir ao trabalhador segurado a demonstração do nexo de causalidade
entre o acidente e a sua incapacidade.
Entretanto, diante da enorme estatística de subnotificação dos acidentes
de trabalho e da dificuldade em especial de fixação do nexo de causalidade nas
hipóteses de doenças ocupacionais, o que acarretava a incorreta qualificação
dos benefícios concedidos, foi incluído o art. 21-A na Lei 8.213/91, por força da
Medida Provisória 316/2006, convertida na Lei 11.430/2006, o qual estabelece
que, no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, a perícia médica
do INSS considerará caracterizada a natureza acidentária da incapacidade
quando constatar ocorrência de nexo técnico epidemiológico entre o trabalho
e o agravo, decorrente da relação entre a atividade da empresa e a entidade
mórbida motivadora da incapacidade elencada na Classificação Internacional
de Doenças - CID. Este é o chamado Nexo Técnico Epidemiológico
Previdenciário - NTEP.
O NTEP, a partir do cruzamento das informações de código da
Classificação Internacional de Doenças – CID e de código da Classificação
Nacional de Atividade Econômica – CNAE, aponta a existência de uma
relação entre a lesão ou agravo e a atividade desenvolvida pelo trabalhador.
A indicação de NTEP embasa-se em estudos científicos alinhados com os
fundamentos da estatística e epidemiologia. A partir dessa referência a
medicina pericial do INSS conta com ferramenta auxiliar em suas análises
para conclusão sobre a natureza da incapacidade ao trabalho apresentada, se
de natureza previdenciária ou acidentária.
Segundo fontes do Ministério da Previdência e Assistência Social15, o
NTEP foi implementado nos sistemas informatizados do INSS para concessão
de benefícios em abril/2007 e de imediato provocou uma mudança radical
15
Disponível em www.mpas.gov.br. Acessado em 25 de junho de 2013.
240 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

no perfil da concessão de auxílios-doença de natureza acidentária, uma vez


que houve incremento da ordem de 148%, o que comprovou que havia um
mascaramento na notificação de acidentes e doenças do trabalho.
A concessão de benefício previdenciário de natureza acidentária
encontra mecanismos normativos no sistema jurídico brasileiro dos quais
decorrem impactos diretos de proteção ao trabalhador vitimizado pelo
acidente do trabalho, bem como desestimulam o descumprimento das normas
de tutela da saúde e segurança do trabalhador pelos tomadores de serviço.
Podem ser apontados como reflexos da concessão de benefícios
acidentários ou efeitos jurídicos dos acidentes do trabalho com natureza
protetiva do trabalhador e de oneração aos empregadores: a interrupção do
contrato de trabalho nos primeiros quinze dias de afastamento do trabalhador
empregado e sua suspensão a partir do décimo sexto dia; a obrigatoriedade
do empregador continuar a depositar durante todo o período de afastamento
as contribuições para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS; a
estabilidade provisória do empregado em 12 meses após a cessação do
benefício acidentário; aplicação de multas pela fiscalização do trabalho
por descumprimento às normas de medicina e segurança do trabalho; a
possibilidade de que sejam buscadas as indenizações correspondentes aos
danos patrimoniais, morais e estéticos pelas vítimas, além da possibilidade
de atuação do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho
para recomposição e aplicação de sanções relativas à degradação do meio
ambiente do trabalho; as ações regressivas do INSS para cobrar ressarcimento
dos empregadores em relação os valores despendidos pela Previdência Social
com a concessão de benefícios por acidentes do trabalho de seus trabalhadores;
bem como, a elevação das alíquotas da contribuição tributária sobre os riscos
ambientais do trabalho pela modulação do fator acidentário de prevenção em
razão do índices de acidentes de trabalho registrados.
Segundo Raimundo Simão de Melo os acidentes do trabalho e as
doenças ocupacionais podem custar caro para o empreendedor que não atenda
às normas de saúde e segurança dos seus trabalhadores, haja vista que além
da responsabilização criminal, responde pelo pagamento de insalubridade,
garantias de emprego, indenizações por danos morais, estéticos e patrimoniais,
o que pode inviabilizar o negócio diante do enorme passivo trabalhista e social
gerado16.
No campo das medidas legais de proteção à saúde do trabalhador tem
papel importante as contribuições sociais relativas aos riscos ambientais do
trabalho e seu correspondente fator acidentário de prevenção. O artigo 22, II,
da Lei de Custeio da Seguridade Social, Lei 8.212/91, com esteio no art. 195,

16
MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador - responsabilidades
legais, dano material, dano moral, dano estético. São Paulo: LTr, 2004, p. 76.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 241

I, da Constituição Federal, estabelece a contribuição da empresa destinada


à Seguridade Social para o financiamento do benefício de aposentadoria
especial17 e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de
incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho. Essa
contribuição social é conhecida como RAT (Riscos Ambientais do Trabalho),
que no passado já se denominou SAT (Seguro de Acidentes do Trabalho).
Referida contribuição social, de natureza tributária, incide sobre o total
das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados
empregados e trabalhadores avulsos, à razão de 1% (um por cento) para as
empresas em cuja atividade preponderante o risco de acidentes do trabalho
seja considerado leve, 2% (dois por cento) para as empresas em cuja atividade
preponderante o risco seja considerado médio e 3% (três por cento) para as
empresas em cuja atividade preponderante o risco seja considerado grave.
No caso do empregador rural pessoa física, do segurado especial e
da agroindústria, acresce-se às respectivas alíquotas das suas contribuições
previdenciárias mais 0,1% sobre a receita bruta proveniente da comercialização
da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho.
No campo tributário encontram-se no gênero da extrafiscalidade18
normas regulatórias de comportamentos em matéria econômica, social ou
política. As normas tributárias denominadas de indutoras são uma espécie
dessas normas regulatórias com sentido extrafiscal. No âmbito normativo
pode ser vista como uma norma pela qual o legislador vincula a determinado
comportamento um consequente que pode constituir em vantagem (estímulo)
ou agravamento de natureza tributária.
Em estudo aprofundado sobre a matéria Luís Eduardo Schoueri
aponta que as normas tributárias indutoras correspondem ao instrumento de
intervenção indireta do Estado sobre o Domínio Econômico (intervencionismo
ou dirigismo: preservação do mercado econômico e conformação aos ditames
constitucionais)19.
Segundo o citado autor, na intervenção sobre o domínio econômico
as possibilidades de atuação das normas tributarias indutoras ocorrem num

17
A aposentadoria especial é concedida ao segurado do Regime Geral da Previdência Social
que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade
física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme disposto em lei.
18
“O uso extrafiscal do tributo significa o alcance de fins distintos dos meramente arrecadatórios
mediante o exercício das competências tributárias (poder de criar e alterar tributos) outorgadas
pela Constituição Federal às pessoas políticas União, Estados-membros, Distrito Federal e
Municípios. Neste sentido, será possível através do exercício das competências (poderes
limitados, prerrogativas) tributárias outorgadas às pessoas jurídicas de direito público
mencionadas, atingir objetivos relevantes de natureza social, econômica e até mesmo
política.” In: BERTI, Flavio de Azambuja. Impostos: extrafiscalidade e não-confisco. Curitiba:
Juruá, 2003, p. 34.
19
SCHOEURI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de
Janeiro: Forense, 2005, p. 54 e ss.
242 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

sentido negativo de supressão de deficiências do mercado (mobilidade de


fatores, acesso à informação, concentração econômica, externalidades, falha de
incentivo), bem como num sentido positivo de implementação dos princípios
da Ordem Econômica ou Constituição Econômica (soberania econômica,
propriedade privada, função social da propriedade, livre-concorrência,
defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades
regionais ou setoriais, busca do pleno emprego, tratamento favorecido para
empresas de pequeno porte, livre exercício de qualquer atividade econômica).
Assim, no que toca ao tema da proteção da saúde do trabalhador, as
normas tributárias apresentam papel relevante ao dotar o Estado do poder de
intervir no processo econômico para garantir o direito fundamental à sadia
qualidade de vida ligada à tutela meio ambiente em suas diversas perspectivas,
inclusive do meio ambiente do trabalho, de forma mais eficaz e menos onerosa
ao Poder Público e aos direitos fundamentais. Segundo Schoueri:

Constitui a defesa do meio ambiente campo fértil para o emprego


de normas tributárias indutoras. Como já foi mencionad o acima, o
tributo serve de mecanismo para internalizar os custos ambientais,
gerando o que Gawel denomina uma correção na alocação
(Allokationskorrektur), que ele apresenta como uma mudança
comportamental no emprego de bens ambientais, sendo tal objetivo
alcançado mediante uma retirada dirigida de recursos no setor
privado20.

Verifica-se, portanto que a imposição tributária de caráter extrafiscal é


um mecanismo eficaz que se insere também na proteção ao meio ambiente do
trabalho e à saúde do trabalhador.
Com vistas a incentivar a diuturna observância das normas de
medicina e segurança no trabalho e desestimular a ocorrência de acidentes
do trabalho e doenças ocupacionais, a legislação instituiu o Fator Acidentário
de Prevenção - FAP, como modulador das alíquotas do RAT, de modo que
com base nas estatísticas de acidentes do trabalho, as empresas serão oneradas
ou desoneradas progressivamente no que tange às contribuições quanto aos
riscos ambientais do trabalho.
O FAP foi criado pela Lei 10.666/03 e se encontra normatizado no
Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto 3.048/1999,
atualizado pelo Decreto 6.957/200921.
O Fator Acidentário de Prevenção afere o desempenho da empresa,
20
SCHOEURI, Luís Eduardo. Op. cit., p. 97.
21
Impõe registrar em ponto que refoge às reflexões deste trabalho, que há discussões
doutrinárias e jurisprudenciais sobre a inconstitucionalidade do art. 10 da Lei 10.666/03 que
instituiu o FAP, sob o principal argumento de que ao permitir criar flutuações na alíquota
conforme discricionariedade do Poder Executivo restaria violado o princípio da legalidade
tributária, que exige que as alíquotas sejam estabelecidas em lei.
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 243

dentro da respectiva atividade econômica, relativamente aos acidentes


de trabalho ocorridos num determinado período. O FAP consiste num
multiplicador variável num intervalo contínuo de cinco décimos (0,5000) a
dois inteiros (2,0000), aplicado com quatro casas decimais sobre a alíquota
RAT, de modo que esta pode ser reduzida à metade ou elevada ao dobro
conforme a incidência de acidentes do trabalho.
Por fim, o ordenamento jurídico brasileiro, com espeque na
inafastabilidade da jurisdição que garante que a lei não se excluirá da
apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direitos (artigo
5º, XXXV, da Constituição Federal), encontra-se aberto o caminho para fins
de que se busque provimento jurisdicional seja no sentido da prevenção da
ocorrência de afronta aos direitos à sadia qualidade de vida do trabalhador
no meio ambiente do trabalho, seja no sentido da condenação à reparação ou
ao ressarcimento dos danos individuais ou coletivos, morais, patrimoniais ou
estéticos decorrentes de acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais, frutos
da degradação ambiental do trabalho.
No que toca à responsabilidade pelo dano ambiental genericamente
considerado a responsabilidade é objetiva, consoante determinação do art. 225
da Constituição Federal, sob a tônica da teoria do risco integral fundamentada
no risco da atividade de modo que o poluidor deve assumir os riscos inerentes
às suas atividades22.
De outro lado, quanto à hipótese de indenização do trabalhador vitima
dos acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais nos termos do parágrafo
único do artigo 927, do Código Civil, deve ser considerado que a partir da
institucionalização normativa do NTEP entre o ramo da atividade econômica
(CNAE) e a entidade mórbida motivadora da incapacidade relacionada na
CID há presunção juris tantum da relação de causalidade entre a conduta
afrontosa ao direito à sadia qualidade de vida no ambiente de trabalho e o
dano ocasionado.
Nesse sentido é o escólio de Dallegrave Neto, segundo o qual:

(...) pode-se dizer que em todos os casos em que se presumir que a


doença seja ocupacional pela adoção do NTEP, estar-se-á diante de
“atividade normal de risco”, aplicando-se a responsabilidade civil
do empregador independente de investigação de culpa patronal.23

E ainda, na esfera das ações indenizatórias, o artigo 120 da Lei 8.213/91,


estabelece que nos casos de negligência quanto às normas padrão de segurança
e higiene do trabalho indicados para a proteção individual e coletiva, a

22
MELO, Raimundo Simão de. Op.cit., p. 224-226.
23
DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Nexo técnico epidemiológico e seus efeitos sobre a
ação trabalhista indenizatória. Belo Horizonte: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da
3ª Região, v. 46, n. 76, p.143-153, jul./dez. 2007, p. 149.
244 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis.

Considerações finais
Em conclusão, verifica-se que o direito à saúde do trabalhador
encontra-se tutelado pelo ordenamento jurídico brasileiro, consoante vetores
universalizantes de proteção aos direitos humanos no plano internacional,
sendo que a ordem jurídica interna dispõe dos diversos mecanismos e diretrizes
legais analisados que orientam a observância pelos tomadores de serviços das
normas sobre saúde e segurança no trabalho com vistas à garantia da sadia
qualidade de vida no meio ambiente laboral atrelada ao reconhecimento do
direito à vida e da dignidade da pessoa na qualidade de trabalhador.
Como alerta, com espeque em Hans Joas pode-se concluir que o direito à
saúde do trabalhador tutelado no ordenamento jurídico interno e internacional,
caracterizado no quadro dos direitos humanos de viés universalizante, somente
será bem sucedido como fruto da estabilização das conquistas alcançadas no
processo de sacralização da pessoa se tiverem suporte das instituições e da
sociedade civil e forem defendidos argumentativamente e se amalgamarem
nas práticas da vida cotidiana24.

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JOAS, Hans. A sacralidade da pessoa - nova genealogia dos direitos humanos. São Paulo:
24

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246 Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB
Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB 247

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