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Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal Ano 6, Nº 27

Elas no Front com


Clarissa Diniz Guedes:
"Sobre a aptidão
epistêmica do vídeo:
narrativas audiovisuais
e interpretação indireta
pelos tribunais" P. 10

Reconhecimento facial
automático para fins
de persecução penal:
entre o visível e o
oculto - Giulia Alves
Fardim P. 22

Múltiplos Olhares com


Gustavo Badaró P. 26

Fotografia de Capa Milena Palladino


ISSN 2675-2689 (Impresso) ISSN 2675-3189 (Online)
Ano 6 - N.º 27, Junho/2023
ISSN: 2675-2689 (impresso)
Boletim Revista do Instituto Baiano ISSN: 2675-3189 (online)
de Direito Processual Penal

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EDITORIAL
Democracia, direito e (necessárias) metamorfoses

A porta da verdade estava aberta, identificou-se apenas 13 reconhecimentos realiza-


mas só deixava passar dos presencialmente, ao passo que os outros 76 fo-
meia pessoa de cada vez. ram feitos a partir de fotografia(s) estampada(s) em
álbum de suspeitos da própria unidade policial ou
Assim não era possível atingir toda a verdade, simplesmente extraídas de redes sociais e exibidas
porque a meia pessoa que entrava à vítima (SCHIETTI CRUZ, 2022, p. 575-576).
só trazia o perfil de meia verdade. Em que pese o limitado espectro da pes-
quisa, a realidade que se verifica no Brasil é a de
E sua segunda metade que erros investigativos são frequentes no siste-
voltava igualmente com meio perfil. ma criminal. O caso de Paulo Roberto é exemplo
E os dois meios perfis não coincidiam. concreto dessa vergonhosa constatação: mesmo
sem possuir antecedentes criminais, fotografias
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. suas, retiradas de redes sociais, foram incluídas
Chegaram a um lugar luminoso no mural de suspeitos do Distrito Policial de Bel-
onde a verdade esplendia seus fogos. ford Roxo/RJ. Diversas vítimas o apontaram como
Era dividida em duas metades, autor de crimes de roubo ao supostamente reco-
diferentes uma da outra. nhecerem a sua imagem em sede de delegacia. Não
houve, na fase policial ou em juízo, a realização de
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. diligências ou a juntada de outros elementos de
As duas eram totalmente belas. prova para inferência. Em decorrência de sucessi-
Mas carecia optar. Cada um optou conforme vos erros, Paulo Roberto ficou preso entre os anos
seu capricho, sua ilusão, sua miopia. de 2020 e 2023. Somente em maio, no julgamen-
to do HC n.º 769.783/RJ, a Terceira Seção do STJ
(Verdade - Carlos Drummond de Andrade) concedeu ordem de habeas corpus para absolvê-lo
no âmbito de uma ação penal e determinar a sua
Em sua opinião, quantas vezes uma pessoa soltura imediata em relação a todos os processos.
pode ser injustiçada pelo sistema de justiça penal Ademais, estabeleceu-se que os Juízos e Tribunais,
brasileiro? Sem muito pensar, se chega à única res- nas ações em curso, e os Juízos da Execução Penal,
posta desejada: zero. Ocorre que no caso de Paulo nas ações transitadas em julgado, realizem a devi-
Alberto da Silva Costa, homem preto da periferia da aferição sobre a dinâmica probatória repelida
carioca, a resposta foi outra: 62 vezes (STJ, 2022). àqueles autos.
Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) Frente a tal inquietação, a proposta da presen-
realizou levantamento sobre vícios no ato de reco- te edição é voltar os olhares à temática do raciocínio
nhecimento de pessoas a partir da coleta de dados probatório na investigação criminal, berço da es-
oficiais de processos da Seção Criminal, especial- trutura persecutória, sob diversas perspectivas. Por
mente os de habeas corpus e de recursos em ha- carregar em si papel intrínseco ao processo penal, a
beas corpus que tramitaram na Corte Superior no investigação criminal reclama por orientações epis-
período de 27/10/2020 a 19/12/2021. Entre deci- têmicas alinhadas a limites normativos inseridos em
sões colegiadas e monocráticas, a análise verifi- um verdadeiro Estado Constitucional Democrático.
cou 89 concessões da ordem postulada diante da A defesa da Constituição e da democracia,
constatação de falha, vício ou inexistência do ato de que, no Brasil e em especial nos últimos anos, têm
reconhecimento formal do acusado. Nesse grupo, enfrentado desafios decorrentes de movimentos
autoritários, exige uma corporificação sob conver- com base em provas absolutamente carentes de fia-
gentes olhares. É justamente nessa conjuntura que, bilidade. Daí se cristaliza a importância de que, cada
como revela o seu próprio nome, o Boletim Trin- vez mais, estudemos sobre o raciocínio probatório
cheira Democrática, por meio de suas 26 edições, na investigação criminal: evidentemente, para além
busca oferecer um espaço de descobertas e refle- da questão sobre erros no procedimento de reco-
xões essencialmente conectadas à defesa da de- nhecimento de pessoas, muitos outros vícios advêm
mocracia. Os vestígios cravejados na história se er- da fase pré-processual.
guem às páginas da revista e fomentam discussões Um fruto dos estudos epistemológicos, nem
com singular relevância a cada debate proposto. sempre presente aos juristas, mas que já se tornou
Ronald Dworkin (2012) entende o direito patrimônio geral da cultura filosófico-científica con-
como um ramo, uma subdivisão da moral política, temporânea, é a percepção de que qualquer resulta-
que decorre da moral pessoal: não dá para pensar do de uma investigação factual depende do contexto
em direito sem mencionar a moral e, no contexto em que ocorre, da metodologia seguida e das metas
da moral política, o que interessa à organização da definidas (UBERTIS, 1992, p. 01). Os erros probató-
sociedade. A partir dessa interseção, surgem refle- rios oriundos da etapa investigativa, portanto, rela-
xões que nos levam a concluir sobre a necessidade cionam-se diretamente à conjuntura, à técnica e aos
de metamorfoses ao incipiente sistema de justiça objetivos estabelecidos naquele cenário.
penal brasileiro. Sob essa ótica, apesar de recorrente a afir-
Muito embora, aqui, não se pretenda negar a in- mação de que os vícios do inquérito policial não se
dispensabilidade de discussão sobre o protagonismo projetam e, muito menos, acarretam nulidade da
dado à atividade instrutória em juízo, seja por doutri- ação penal, a realidade revela certa limitação do al-
nadores, seja no âmbito da jurisprudência nacional, é cance dessa conclusão (BADARÓ, 2023, p. 150), so-
preciso relembrar que os mesmos olhares deverão ser bretudo quando falamos de irregularidades de atos
voltados à etapa investigativa, à luz dos compromis- que não podem ser sanadas justamente pelo fato de
sos epistêmicos já assumidos pelo processo penal. O não serem repetíveis.
objetivo comum é que as decisões sejam fundamen- Por essas razões e a partir da coletânea pre-
tadamente motivadas a partir do conjunto probatório sente nesta edição da Trincheira Democrática, in-
produzido em toda a persecução penal. dene de dúvidas que o sistema de justiça criminal
Nessa linha, pertinente o escrito de Magalhães brasileiro ainda precisa passar por algumas meta-
Gomes Filho (2011) no Relatório sobre “Métodos proi- morfoses, isto é, por processos de transformações
bidos e prova obtida ilicitamente” para o XIV Con- pacientes, que demandam longas mudanças obriga-
gresso Mundial em Heidelberg (Alemanha), no qual tórias em direção a uma mentalidade não inquisitó-
destacou o caráter social dos procedimentos proba- ria, para que seja enfim reconhecido enquanto um
tórios e o que se objetiva com o resultado das provas. instrumento maduro e democrático.
Para além da questão da verdade sobre os fatos dis-
cutidos no processo, o Professor também ressalta a Flávia Silva Pinto Amorim
necessidade de justificação, perante a sociedade, da
decisão que vier a ser adotada, cujas razões se espe-
lham nas provas produzidas no processo.
A prova, portanto, pode ser entendida como
uma atividade destinada a conhecer ou apurar a
verdade sobre fatos controvertidos ou litigiosos,
de maneira a ser um instrumento de conhecimen-
to, baseada no saber e não no poder. No entanto, o
caráter frágil e relativo da prova judicial deve ser
considerado, pois, apesar de a verdade processual
pôr fim à controvérsia, isso não significa que, efeti-
vamente, o enunciado fático em questão seja verda-
deiro (ABELLÁN, 2022, p. 19-21).
O caso de Paulo Roberto invoca o caráter falí-
vel do resultado obtido por intermédio da prova judi-
cial, eis que, mesmo sendo inocente, aquele homem
foi condenado ao cumprimento de reprimenda penal
REFERÊNCIAS de pessoas e erros judiciais: considerações em torno da nova
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista
ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita. Brasileira de Direito Processual Penal. Volume 8, n.º 02, mai./
Belo Horizonte: Letramento, 2021. ago, p. 567-600. Disponível em: <https://doi.org/10.22197/
ABELLÁN, Marina Gascón. O problema de provar. Tradução: rbdpp.v8i2>. Acesso em: 05 jun. 2023.
Lívia Moscatelli e Caio Badaró Massena. Coordenação DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Tradução: Pedro
científica da tradução: Janaína Matida. Rio de Janeiro: Elói Duarte. Coimbra: Almedina, 2012.
Marcial Pons, 2022. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Méthodes interdites
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: et preuves de façon illicite. In: Procedural Justice - XIV
Thomson Reuters Brasil, 2023. Congresso Mundial em Heidelberg (Alemanha), p. 700-716.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n.º UBERTIS, Giulio. La ricerca della verità giudiziale. In: La
769.783/RJ. Relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, conoscenza del fatto nel processo penale. Milano: Giuffrè
j. 10/05/2023, p. 01/06/2023. Editore, 1992, p. 1-38.
CRUZ, Rogerio Schietti. Investigação criminal, reconhecimento

Indicações da Edição:

O livro “O problema de provar”, A série “Olhos que condenam”, O podcast “Prove sua inocência”
de Marina Gascón Abellán criada por Ava DuVernay (disponível no Spotify)
SUMÁRIO

7 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO POR RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA


A DECISÃO DE PRONÚNCIA E O PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO

10 ELAS NO FRONT COM CLARISSA DINIZ GUEDES


SOBRE A APTIDÃO EPISTÊMICA DO VÍDEO: NARRATIVAS AUDIOVISUAIS E INTERPRETAÇÃO INDIRETA
PELOS TRIBUNAIS

13 LIRISMOS INSURGENTES

ARTIGOS

14 “VOU APRENDER A LER PRA ENSINAR MEUS CAMARADAS”: AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA, EDUCAÇÃO JURÍDICA
POPULAR E PROGRAMA CORRA PRO ABRAÇO

16 GUERRA DE ESPADAS OU GUERRA ÀS ESPADAS: UMA MANIFESTAÇÃO CULTURAL OU UMA MANIFESTAÇÃO


CRIMINOSA?

18 A PEDAGOGIA DA MAGISTRATURA: A ATUAÇÃO DE JUÍZES/AS NAS VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE

20 INQUÉRITO POLICIAL: DA INQUISITORIEDADE ESCRITA À ORALIDADE GARANTISTA?

22 RECONHECIMENTO FACIAL AUTOMÁTICO PARA FINS DE PERSECUÇÃO PENAL: ENTRE O VISÍVEL E O OCULTO

24 A EMENDATIO LIBELLI E A MUTATIO LIBELLI EVIDENTEMENTE INCONSTITUCIONAIS

26 MÚLTIPLOS OLHARES COM GUSTAVO BADARÓ

30 WALKIE-TALKIE
Pont
Coluna

e
.CONTRAPONTO Por Rômulo de Andrade Moreira

A decisão de pronúncia e o
princípio do in dubio pro reo
O ministro Gilmar Mendes, em decisão pro- Justiça não tem amparo constitucional
ferida nos autos do Habeas Corpus n.º 227.328, ou legal e acarreta o desvirtuamento
impetrado pela Defensoria Pública do Paraná, das premissas racionais de valoração da
prova, afirmou, ressaltando que a im-
restabeleceu sentença de impronúncia que não
pronúncia não impede o oferecimento
constatou indícios suficientes de autoria para de nova denúncia, se surgirem novas
submeter ao Tribunal do Júri um homem acusado provas. (BRASIL, 2023)
de homicídio.
O juízo singular havia decidido pela impro- Correto o pronunciamento judicial do mi-
núncia do réu, ao verificar que a denúncia do Mi- nistro Gilmar Mendes, pois, efetivamente, não se
nistério Público paranaense estava amparada ape- pode admitir decisão, ainda que se trate de pro-
nas em depoimentos de testemunhas que “ouviram núncia, com base apenas no chamado testemunho
falar” que o acusado teria sido o autor do crime. indireto, muito menos invocar, como fundamento,
Houve recurso de apelação interposto pelo o princípio do in dubio pro societate.
Ministério Público, julgado procedente pelo Tri- Sobre a prova indireta (as chamadas teste-
bunal de Justiça do Paraná, determinando-se munhas de auditu), Aury Lopes Jr. afirma que:
que o acusado fosse submetido ao Tribunal do
Júri, sob o argumento de que, nessa fase pro- A testemunha narra hoje um fato pre-
cessual, prevalece o princípio do qual a dúvida, senciado no passado, a partir da memó-
ria (com todo peso de contaminação e
ainda que mínima, deve se resolver em favor da
fantasia que isso acarreta), numa narra-
sociedade, acórdão que foi confirmado pelo Su- tiva retrospectiva. A atividade do juiz é
perior Tribunal de Justiça. recognitiva (conhece através do conhe-
A Defensoria Pública, então, impetrou habe- cimento de outro) e o papel da testemu-
as corpus perante o Supremo Tribunal Federal, en- nha é o de narrador da historicidade do
fatizando que as testemunhas arroladas pelo Mi- crime. Não existe função prospectiva le-
gítima no testemunho, pois seu olhar só
nistério Público não haviam presenciado o crime.
está autorizado quando voltado ao pas-
Ao conceder a ordem, o ministro Gilmar Mendes sado. Daí por que não cabe à testemu-
verificou que a impronúncia apontara a ausência nha um papel de vidente, nem exercícios
de outros elementos de prova que pudessem ca- de futurologia. Nesse contexto, o cha-
racterizar indícios suficientes de autoria do crime, mado hearsay testimony é a testemunha
além de o “ouvir falar” de terceiros. Ademais, des- do 'ouvi dizer', ou seja, aquela pessoa que
não viu ou presenciou o fato e tampou-
tacou que, no processo penal, a dúvida sempre se
co teve contato direto com o que estava
resolve em favor do réu, e não da sociedade: ocorrendo, senão que sabe através de
alguém, por ter ouvido alguém narrando
O suposto princípio invocado pelo Mi- ou contando o fato. No nosso sistema,
nistério Público local e pelo Tribunal de esse tipo de depoimento não é proibido,

7
Coluna: Ponto e Contraponto

mas deveria ser considerado imprestá- cios suficientes de autoria ou de partici-


vel em termos de valoração, na medida pação, de modo algum está dizendo que
em que é frágil e com pouca credibili- o juiz deve pronunciar o acusado quando
dade. É ainda bastante manipulável e tiver dúvida acerca de sua concorrência
pode representar uma violação do con- para a prática delituosa. Na verdade, ao
traditório, eis que quando submetida ao fazer uso da expressão indícios, referiu-
exame cruzado (cross examination) na -se o legislador à prova semiplena, ou
audiência, não permite a plena confron- seja, àquela prova de valor mais tênue,
tação, afinal, sobre o fato, ela nada sabe, de menor valor persuasivo. Dessa forma,
apenas se limita a repetir o que ouviu e, conquanto não se exija certeza quanto à
eventualmente, fazer juízos de valor so- autoria para pronúncia, tal qual se exige
bre isso (o que é vedado pela objetivida- em relação à materialidade do crime, é
de). Há ainda o imenso risco de existir necessário um conjunto de provas que
uma verbalização ampliada, até para va- autorizem um juízo de probabilidade
lorização do papel assumido. Ademais, a de autoria ou de participação. Destarte,
testemunha de 'ouvi dizer' nada presen- a nosso ver, havendo dúvidas quanto à
ciou e, portanto, não corresponde aos existência do crime ou quanto à presen-
requisitos de objetividade e retrospec- ça de indícios suficientes, deve o juiz Su-
tividade, na medida em que não teve a mariante impronunciar o acusado, apli-
'experiência probatória', não conheceu cando o in dubio pro reo.
diretamente do fato objeto da discussão
na dimensão de caso penal. A título de Ada, Scarance e Gomes Filho (2005, p. 332),
curiosidade, no sistema inglês existem
ainda que tratando da revisão criminal, afirmam:
três provas passíveis de exclusão (exclu-
sionary rules) e proibição valoratória: a)
hearsay: testemunha de ‘ouvi dizer’; b) Costuma-se encontrar, aqui ou acolá,
Bad character: prova sobre o mau ca- a afirmação de que na revisão criminal
ráter. Importante para evitar o direito militaria o princípio in dubio pro socie-
penal do autor (eis outra proibição de tate, substituindo o in dubio pro reo do
prova que poderíamos adotar, especial- processo penal condenatório. Nada me-
mente no tribunal do júri); c) Prova ile- nos acertado. Em todo e qualquer tipo
gal: concepção tradicional de proibição de processo penal, nenhuma presunção
de valoração probatória da prova ilícita. pode superar as estabelecidas em favor
Enfim, a testemunha de 'ouvi dizer' (he- do acusado ou até mesmo do condenado.
arsay) não é propriamente uma prova
ilícita, mas deveria ser evitada pelos ris- Por fim, importante citar a lição de Gustavo
cos a ela inerentes e, quando produzida,
Badaró (2003, p. 342):
valorada com bastante cautela ou mes-
mo não valorada. Existe uma insuperável
restrição de cognição, pois não se trata Na presunção relativa há uma alteração
de uma testemunha presencial, daí de- da regra geral de distribuição do ônus
correndo o completo desconhecimento da prova, ficando o sujeito beneficiado
do fato e, portanto, um elevadíssimo ris- pela presunção, dispensado da prova do
co de indução, deturpação e contamina- fato que normalmente lhe incumbia, ca-
ção, pois ela acaba sendo mera 'repeti- bendo à parte contrária a prova da ino-
dora' de discurso alheio. corrência do fato presumido. A garantia
constitucional do in dubio pro reo impli-
Com efeito, trata-se de um equívoco grave, ca que todos os elementos do delito de-
vem ser provados pela acusação, pois a
nada obstante reiterado por parte significativa da
dúvida sobre sua ocorrência levará à ab-
jurisprudência brasileira, invocar o princípio do solvição do acusado. Admitir a existên-
in dubio pro societate como fundamento de uma cia de uma presunção relativa em favor
decisão judicial, pois inteiramente inaplicável ao da acusação significará que o Ministério
processo penal, ainda mais, e principalmente, em Público ou o querelante estarão dispen-
razão do princípio constitucional da presunção de sados do ônus da prova de um dos ele-
mentos do delito ou de sua autoria. Em
inocência; assim, no processo penal, o princípio a
contrapartida, será o acusado quem terá
ser obedecido, sempre e obrigatoriamente (como o ônus de demonstrar a inocorrência de
deveria parecer óbvio), é o do in dubio pro reo. tal elemento ou de que não é o seu autor.
Nesse sentido, trazemos à colação o ensina- Em outras palavras, com relação ao ele-
mento de Renato Brasileiro de Lima (2016, p. 1338): mento presumido a regra passará a ser
Quando a lei impõe a presença de indí- in dubio contra reum. Haverá, pois, fla-

8
Coluna: Ponto e Contraponto

grante violação da regra constitucional BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus n.º
de presunção de inocência.
227.328/PR. Relator Ministro Gilmar Mendes, j. 10/05/2023.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio
Assim, concluímos que para uma decisão de Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no
pronúncia não se pode admitir, tão-somente, a Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
prova indireta, mas indícios suficientes da autoria; LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal.
tampouco, invocar que a dúvida favorece a socie- Salvador: Juspodivm, 2016.
dade ou a acusação, afastando o princípio segundo LOPES JR., Aury. Testemunho ´hearsay` não é prova ilícita,
o qual a dúvida deve sempre beneficiar o acusado. mas deve ser evitada. Disponível em: <http://www.conjur.
com.br/2015-out-30/limite-penal-testemunho-hearsay-
nao-prova-ilicita-evitada2"http://www.conjur.com.
REFERÊNCIAS
br/2015-out-30/limite-penal-testemunho-hearsay-nao-
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no prova-ilicita-evitada2>. Acesso em: 16 jul. 2016.
processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito


Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador - UNIFACS.

Respiro

Charge por: André Dahmer @andredahmer

9
Coluna

ELAS
NO FRONT
Sobre a aptidão epistêmica do vídeo:
narrativas audiovisuais e interpretação indireta pelos tribu
Por Clarissa Diniz Guedes

Tema pouco explorado na atualidade diz um viés de perspectiva típico das body-worn
respeito à aptidão epistêmica da prova em ví- cameras (BIRCK, p. 169).1
deo. O cérebro humano capta a imagem de for- Jéssica Silbey (2008, p. 34) lembra que o vídeo
ma muito mais eficiente que o texto (MEDINA, revela sempre “mais de uma história e menos que
2008, p. 222); logo, o impacto emocional produ- toda a história”. A autora reflete sobre a utilidade de
zido pelo vídeo induz o observador a acreditar adoção, no âmbito probatório judicial, de algumas
que as cenas nele contidas correspondem ob- técnicas e conhecimentos cinematográficos (SILBEY,
jetivamente à realidade. Ainda assim, pouco se 2004). Sugere que alguns recursos utilizados na ficção
tem dito sobre a prova em vídeo no processo – tais como foco, luz, posição do cinegrafista, pers-
penal brasileiro. pectiva da câmera, movimento, nitidez ou opacidade
Um beijo cinematográfico. Uma cena de – influem também na interpretação das filmagens de
um motociclista perseguindo uma mulher que, eventos criminosos. As imagens invocam, no espec-
horas depois, é encontrada morta num gueto tador, uma sensação de realidade intensa, indepen-
próximo dali. Uma imagem trêmula, captada por dentemente da qualidade do vídeo. Por vezes, o fato
câmera acoplada ao uniforme policial, de um de a imagem estar embaçada ou distante, de o ângulo
homem que gesticula, aproxima-se rapidamente da câmera ser distinto da perspectiva que qualquer
e retira um objeto do bolso. Esta cena, filmada ser humano poderia enxergar (por exemplo, se uma
em movimento, termina com o homem alvejado câmera é situada no teto), reforça, no intérprete, a
com um tiro na perna. impressão de estar diante do fato em si, porque a rea-
O que essas filmagens têm em comum? lidade é sempre menos elaborada que a ficção.
Não é possível apreender toda a realidade, em
riqueza de detalhes. A beldade que beija o galã 1
Explica a autora: “A perspectiva do oficial, conforme mos-
está de pé sobre uma banqueta, de modo a pa- trada pela filmagem da câmera corporal, é severamente li-
recer mais alta do que realmente é; as circuns- mitada tanto em alcance quanto em direção. O vídeo não
tâncias da morte da mulher não foram captadas consegue captar todos os detalhes de uma situação, tais
na integralidade, mas é possível que outras câ- como movimentos periféricos ou o que o policial está fa-
zendo com as mãos abaixo da visão da câmera. Além disso,
meras de segurança tenham registrado a sequ-
a câmera pode parecer imparcial, mas o posicionamento
ência da perseguição ou, mesmo, o momento e a perspectiva da câmera podem enquadrar como o es-
exato do crime; a aparente agressão ao policial pectador analisa o vídeo sem que o espectador perceba o
pode ser explicada pela sensação causada por impacto da perspectiva.”

10
Coluna: Elas no front

Entre nós, Paula Ramos (2023, p. 41-53 e passim) Ora, se o vídeo é o registro principal de um
considera superada a dicotomia clássica entre a pro- fato incriminador – ou de fatos circunstanciais –,
va documental indireta (geralmente consubstanciada e se não há referência direta dos julgadores às ce-
em narrativas escritas) e direta (categoria em que se nas das filmagens, na condição de espectadores,
inserem as fotografias, áudios e, também, os vídeos), elevam-se consideravelmente os riscos de sobre-
por reputar ilusória a ideia de objetividade destes. valorização desta prova para fins incriminatórios e,
Alerta para a necessidade de se distinguir entre o ob- com isso, também os riscos de falsas condenações.
jeto e suas formas de representação, pois estas nunca Desse modo, o avanço das tecnologias de
prescindem do intérprete (2023, p. 153 e s.). captação de sons e imagens que, em tese, pode-
Por outro lado, os tribunais brasileiros enxer- riam gerar elementos probatórios extremamente
gam no vídeo uma aura de infalibilidade dificilmente relevantes à persecução criminal, fica comprometi-
afastada. Em recente pesquisa de pós-doutoramen- do pela falta de consciência de que, como qualquer
to2, analisamos o conteúdo de acórdãos criminais documento ou registro, as narrativas audiovisuais
proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado de São não refletem a realidade objetiva e integral.
Paulo (TJSP) nos quais o vídeo foi identificado como Em síntese, enquanto a literatura sobre o
elemento probatório, e constatamos ser de 88% o tema demonstra que o conteúdo do vídeo reflete,
percentual de decisões desfavoráveis ao réu (con- afinal, visão do cinegrafista, os tribunais parecem
denações, HCs denegados, pronúncias e revisões não se dar conta da natureza narrativa dos docu-
criminais indeferidas)3. A análise do mesmo universo mentos audiovisuais, limitando-se a acolher, de
de acórdãos também permitiu concluir que, em 84% forma automática, a interpretação trazida por ou-
dos casos, o vídeo foi tido como fundamento princi- tras fontes de prova.
pal da decisão, por ser o elemento probatório mais
enfatizado – e, por vezes, o único – na fundamenta-
REFERÊNCIAS
ção (GUEDES, 2023, p. 58-59).
Paradoxalmente, constatou-se, em confirma- BIRCK, Morgan A. Do You See What I See: Problems with
ção a pesquisas anteriores, que, em 74,4% dos acór- Juror Bias in Viewing Body-Camera Video Evidence.
dãos examinados, os desembargadores analisam e Michigan Journal of Race & Law, vol. 24, n. 1, Fall 2018, p. 153-
valoram o conteúdo do vídeo amparando-se, ex- 176. HeinOnline.
clusivamente, na narrativa de terceiros (RICCIO et. GUEDES, Clarissa Diniz; FARDIM, Giulia Alves. O testemunho
al. 2016, RICCIO; GUEDES, 2022, GUEDES; FARDIM, indireto sobre conteúdo de vídeo como prova penal: análise
2021). Ou seja, há um alto índice de julgados em que o qualitativa de acórdãos do Tribunal de Justiça de Minas
vídeo é referido – no relatório ou na fundamentação Gerais. In: 11º Congresso internacional de ciências criminais
– a partir do relato de outras fontes de prova, tais da PUC-RS, 2021, Porto Alegre. Congresso internacional de
como testemunhas (com destaque para as testemu- ciências criminais (11: 2020: Porto Alegre, RS). Anais [recurso
nhas policiais), as vítimas, documentos (fotografias eletrônico]: jurisdição constitucional e reformas penais em
de determinadas cenas – frames – do vídeo) e laudos tempos de pandemia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2021, v. 1. p.
periciais (minoritariamente) (GUEDES, 2023, p. 69). 2-17. Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/. Acesso
em: 20 abr. 2023.
2
Realizada na Universidade de São Paulo sob a supervisão GUEDES, Clarissa Diniz. Prova em vídeo no processo penal:
do Professor Gustavo Badaró. aportes epistemológicos. Madrid/Buenos Aires/São Paulo:
3
Foram analisados todos os acórdãos que continham as pa- Marcial Pons, 2023.
lavras “vídeo” e “prova”, proferidos pelo TJSP durante o mês PAULA RAMOS, Vitor de. Prova documental. Do documento
de maio de 2021, resultando num universo de 126 acórdãos aos documentos. Do suporte à informação. 3ª ed. Salvador:
em que o vídeo constitui elemento probatório tendente
Jus Podivm, 2023.
a demonstrar o crime ou as circunstâncias do crime. A
amostragem por curto período de tempo é justificada pela RICCIO, Vicente; GUEDES, Clarissa Diniz. Legal culture and
preexistência de pesquisas anteriores, realizadas no âmbi- image in the Brazilian courts. Oñati Social-Legal Series, OSLS
to do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação First Online, jan.-2022. Disponível em: <https://opo.iisj.net/
da Universidade Federal de Juiz de Fora, em projeto que index.php/osls/issue/view/113>. Acesso em: 10 mai. 2023.
chegou a analisar um espectro temporal de 10 anos (2006- RICCIO, Vicente; SILVA, Beronalda Messias da; GUEDES,
2016), relativamente a três tribunais (TJSP, TJMG e TJRJ) (v.
Clarissa Diniz; MATTOS, Rogério Silva de. A utilização
p. ex. RICCIO et. al. 2016, RICCIO; GUEDES, 2022, GUEDES;
FARDIM, 2021). A intenção da pesquisa era verificar se os da prova em vídeo nas cortes brasileiras: um estudo
resultados anteriores seriam replicados na atualidade, o exploratório a partir das decisões criminais dos tribunais
que, em grande medida, foi confirmado. de justiça de Minas Gerais e São Paulo. Revista brasileira

11
Coluna: Elas no front

de ciências criminais, v.118, ano 24, p. 273-298, São Paulo: iss1/4>. Acesso em: mai. 2023.
RT, Jan-Fev/ 2016. SILBEY, Jessica. Judges as Film Critics: New Approaches to
SILBEY, Jessica. Cross-examining film. Race, religion Filmic Evidence. University of Michigan Journal of Law
gender & class 17, v. 8, 2008, p. 17-46. Disponível em Reform, v. 37, n. 2, Winter 2004, p. 493-572. HeinOnline.
<http://digitalcommons.law.umaryland.edu/rrgc/vol8/ MEDINA, J. Brain Rules. Pear Press: Seatle, 2008.

Clarissa Diniz Guedes

Professora Associada da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre


pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora pela Univer-
sidade de São Paulo (USP).

IBADPP REALIZA

12
Lirismos Insurgentes

APORIA DAS SOMBRAS

onde nada se vê
haverá a semente
da força do porvir o click é o caos
germinada
a elidir barreiras e afoita a foto afirma
alcançar latentes ter múltiplas portas
liberdades entradas sem saídas
multidão
nas curvaturas das sombras inventadas verdades no
a fotografia seduz fluxo do inaugural desvio
convite de labirínticos infinitos
sem fio nem guia todas imagens
espreita do precipício em um catastrófico vórtice
às avessas
toda pessoa humano mistério deteriorado
é veneração nebulosa a no vago brilho da ilusão
percorrer incosciente em lampejos
eviscerados onde camufla-se o breu
o desejo fervilhado d'entremeios outra supernova assolará
impulsos próprios do ser o medo de existir
impróprio imo frustrado o escopo do niilismo
tão sufocado por a chave é viver
retrógrados cerceios

Ivã Coelho
Advogado de formação, encontrou na fotografia uma forma de expressão e experimentação
artísticas, como meio de entender o mundo sustentado por imagens. Com formação de base
autodidata, investiu mais nos estudos sobre o pensar fotográfico, seus usos e possibilidades
criativas que em cursos técnicos. Alicerça seus trabalhos em questões diuturnas através de
diálogos com as vertentes visuais contemporâneas e com as artes literárias e filosóficas.

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Artigos

“Vou aprender a ler pra ensinar meus camara-


das”: audiência de custódia, educação jurídica
popular e programa corra pro abraço
Por Daiane Ribeiro

O chão que pisamos diz muito acerca das enquanto porta de entrada do sistema prisional, o
nossas narrativas e é por isso que não há como reflete. Reflete o modo como, de maneira majori-
abrir esse trabalho sem escurecer o lugar do qual tária, tem se organizado o sistema carcerário bra-
eu falo. Antes de ser advogada, formação que me sileiro. Homens pretos e jovens. Pouca instrução
propiciou desempenhar a função de educadora ju- formal. Oriundos de bairros periféricos. Tráfico e
rídica no Programa Corra pro Abraço nos anos de crimes contra o patrimônio lideram nos Autos de
2021 e 2022, eu sou uma mulher negra, primeira Prisão em Flagrante. Do lado de fora, mas exten-
de toda uma geração com formação superior, mas sivamente penalizadas, companheiras aflitas, ma-
que, primeiramente, recebeu régua e compasso ternidades ultrajadas (ROCHA, 2017).
de ascendentes formalmente analfabetos e/ou Fazendo um gesto como quem devolve algo
semianalfabetos, embora detentores de conheci- para o ventre, num dos últimos atendimentos que
mentos que jargões jurídicos e discursos acadêmi- realizei enquanto educadora jurídica, uma mãe que
cos jamais dariam conta de traduzir. já havia perdido um filho para a guerra às drogas e
É minha trajetória que direciona a minha aguardava o caçula passar pela audiência de cus-
formação, ancorada nas experiências de educação tódia, me disse que gostaria de poder devolvê-los
popular em comunidades tradicionais e ocupa- para a barriga, e, assim protegê-los. Emudeci. “É no
ções urbanas, e é também ela que conduz a minha lombo das pretas”, já dizia Ana Flauzina (2016), para
atuação profissional, destinatários e abordagens escurecer que o Estado conta com as mulheres
utilizadas, visto que, sendo a minha formação um para a “viabilização do encarceramento masculino”.
ineditismo no âmbito familiar consanguíneo e ex- Isso porque, dentre outras responsabilida-
ceção no âmbito familiar comunitário, seria uma des, é sobre elas que, em caso de cárcere, recai o
incoerência utilizar nas trincheiras uma lingua- sustento da família e, subsidiariamente ao Estado,
gem que os meus pares não compreendessem. do apenado, além de outras atividades relacionadas
Em “A ordem do discurso” (1996), Michael ao acompanhamento judicial dos casos. Essa últi-
Foucault chama atenção para o fato de as palavras ma se inicia logo após a prisão em flagrante, através
terem uma função que vai além da comunicação, da busca por notícias, acionamento da Defensoria
mas podem representar poder social, exercendo Pública ou advogado, apresentação de documentos
controle, limitando e validando regras. Partindo que possam contribuir com a construção da defe-
desse pressuposto, pode-se dizer que discursos sa. É nesse momento, quase sempre marcado pelo
são capazes de organizar a sociedade, controlan- desespero, desinformação e violências perpetradas
do-a; controle esse exercido por uma pequena pelas agências repressivas, que a presença de pro-
parcela que os domina, gerando sistemas de ex- fissionais compromissados com a educação jurídica
clusão para os demais. popular assume um papel de suma importância.
O arcaico e rebuscado linguajar jurídico Em funcionamento desde julho de 2013, e
obedece a essa lógica de poder-exclusão, uma vez com o objetivo de promover cidadania e garantir
que sua compreensão é inacessível a boa parte dos direitos de pessoas que fazem uso abusivo de dro-
cidadãos leigos e/ou com pouca instrução formal gas em contextos de vulnerabilidade, ou afetadas
(OLIVEIRA; SANTOS, 2021). Tradição essa que, ao por problemas relacionados a criminalização das
tornar inviável aos cidadãos o conhecimento e a drogas na cidade de Salvador, o Programa Cor-
compreensão acerca de seus direitos, afronta o ra pro Abraço passou a atuar também na Vara de
princípio constitucional contido no art. 5º, XXXV, Audiência de Custódia, em 2016. Com uma equipe
visto que a ideia de acesso à justiça ultrapassa o multiprofissional composta também por psicóloga
alcance a instituições estatais, ensejando o acesso e assistente social, o programa conta com a figu-
a uma ordem jurídica justa (GRINOVER, 1996). ra do educador jurídico, cujas funções envolvem,
A Vara de Audiência de Custódia de Salvador, além de consultas e acompanhamentos proces-

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Artigos

suais, o estabelecimento de diálogo com o siste- momento da audiência de custódia, visto que há
ma de justiça, e, sobretudo, o desenvolvimento de a continuidade no acompanhamento, no cárcere
ações de educação jurídica. ou em liberdade, há articulação e parceria com
Reputo que, para além do afeto que ante- instituições, a exemplo daquelas ligadas à saúde,
cede e entremeia os atendimentos e é visível na à educação e ao desenvolvimento social, visto que
oferta do copo com água, no convite para se sen- o fenômeno do aprisionamento em massa, com o
tar um pouco, no oferecimento do biscoito com qual o país convive, não pode ser analisado, tam-
suco àqueles que estiveram ali, em jejum desde à pouco enfrentado, desapartado do enfrentamento
noite, no braço que acolhe quando o outro corpo a outras mazelas sociais.
perde a força, no olho que mareja junto, na palavra A educação jurídica popular assume a pers-
da tentativa de conforto, no silêncio, no abraço... pectiva da emancipação, ao passo que, através
o maior recurso de cuidado utilizado pelo educa- da informação acessível, propicia aos cidadãos a
dor jurídico, na Vara de Audiência de Custódia, é compreensão sobre os direitos que possuem, onde
a informação. acessá-los e o que fazer para garanti-los. Quando
A identificação do familiar na pauta do dia se democratiza conhecimentos jurídicos, históri-
para aqueles que, cotidianamente, assistem ao ca e propositalmente enclausurados em palavras
assassínio de seus pares é motivo de alívio. A incompreensíveis e jargões em latim, há a descon-
conversa, de modo acessível, sobre o que é uma centração de um poder utilizado como forma de
audiência de custódia, para que serve e quais as subjugação e manutenção de assimetrias.
possibilidades de desfecho; a fala sobre a Defen-
soria Pública enquanto um direito daquelas pes-
REFERÊNCIAS
soas que não possuem condições de arcar com os
custos de um advogado; as dúvidas tiradas, quan- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
tas vezes forem necessárias, para, em seguida, a Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
equipe passar a acompanhar as audiências, inter- constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: mai. 2023.
vindo quando solicitada. FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. O feminicídio e os embates
Terminada a audiência, cada desfecho uma das trincheiras feministas. Discursos Sediciosos (Rio De Ja-
orientação. Muitas vezes, e pelas razões já aqui le- neiro), v. 23/24, 2016, p. 95-106.
vantadas, o flagranteado deixa a audiência de cus- FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. v. 3. Edições
tódia sem compreender o procedimento ao qual Loyola: São Paulo, 1996.
foi submetido e, não raro, acredita que o fato de GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de
estar saindo em liberdade provisória significa que Janeiro: Forense Universitária, 1996.
não haverá processo. Nesses casos, há o esclare- MENDES, R; CAPINAM, J. C. Yá Yá Massemba. Intérprete: Ma-
cimento acerca da continuidade do processo, da ria Bethânia. In: Brasileirinho. [S.I]: Biscoito Fino, 2003.
importância de comparecer aos atos processuais, OLIVEIRA, Bianca Fiamengui de; SANTOS, Sandra Regina
bem como do cumprimento das medidas cautela- Vieira dos. A linguagem jurídica como obstáculo na co-
res quase sempre impostas em situações de liber- municação entre pessoas comuns e a concretização do
dade provisória. acesso à justiça. REGRAD, UNIVEM/Marília-SP, v. 14, n. 1,
Por outro lado, em situações em que o fla- novembro de 2021, p. 109-123.
granteado “desce”, ou seja, tem a prisão em fla- ROCHA, Luciane de Oliveira. Morte Íntima: A gramática do
grante convertida em prisão preventiva, há a genocídio antinegro na Baixada Fluminense. In: FLAUZINA,
compreensão de que já se trata de uma senten- Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João H. C. (organizadores). Mo-
ça, gerando desespero, sobretudo nos familiares. tim: Horizontes do genocídio antinegro na Diáspora. Brasília:
Nessas situações, é elucidado que não se trata de Brado Negro, 2017, p 37-66.
uma decisão definitiva, além de passadas as infor-
mações do itinerário institucional que o custo- DAIANE RIBEIRO
diado percorrerá até chegar à unidade prisional,
prazos estimados, procedimentos relacionados à Mulher negra. Advogada. Edu-
documentação necessária à visitação e contatos cadora Jurídica. Possui Mes-
de instituições indispensáveis ao acompanhamen- trado em Direito Público e
to processual, a exemplo da Defensoria Pública. Graduação pela UFBA.
Para além da educação popular relaciona-
da a aspectos jurídicos e que não se encerram no

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Artigos

Guerra de espadas ou guerra às espadas:


uma manifestação cultural ou uma manifestação
criminosa?
Por Osvaldo Álvaro de Jesus Neto

A tradição não é adoração às cinzas, é manu- que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar,
tenção do fogo – Gustav Mahler manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo
[...]”. Isso significa dizer que quem estiver portando,
É comum que, com o passar do tempo, algu- ou quem soltar espadas, legalmente falando, está
mas culturas, entendimentos e manifestações se- sujeito às mesmas implicações de quem estiver na
jam revistas. Evoluímos como sociedade e chega- posse ilegal de uma arma de fogo, por exemplo.
mos a um momento político e social em que atos Tentando contornar tal legislação, que ba-
são abomináveis e inaceitáveis. Entretanto, não seou a proibição da prática, houve a tentativa de
raras vezes o “inadmissível” é pautado de forma alguns Municípios de regular a queima de espa-
fria e sem levar em consideração a cultura de um das. Senhor do Bonfim, v. g., chegou a promulgar
povo e a liberdade de seus indivíduos. a Lei n.º 1.400/2017, publicada no Diário Oficial do
Neste breve artigo, será abordado o viés po- Município do dia 12 de junho, ou seja, às vésperas
lítico criminal de um tema culturalmente tão rico e dos festejos juninos, que assegurava a guerra das
que permeia diversas obras de literatura popular, espadas e constituía a prática como patrimônio
em especial, a literatura baiana: a queima/guerra cultural e imaterial de Senhor do Bonfim.
de espadas. Para quem desconhece, a “espada” é Não foi suficiente. Em poucos dias, a Justiça
um artefato feito, na grande maioria das vezes, de Estadual, provocada pelo Ministério Público, de-
bambus, pólvora, limalha de ferro, barro e cordão clarou a inconstitucionalidade incidental da Lei n.º
de sisal, e a queima desse artefato produz um espe- 1400/2017, por vício formal subjetivo. O entendi-
táculo, inexoravelmente perigoso, de luzes e cores. mento foi ratificado em diversas esferas até che-
E aqui, desde já, é importante trazer à baila gar ao Supremo Tribunal Federal, quando, já no ano
que palavras têm significados e significados não de 2019, o Ministro Luiz Fux decidiu por manter a
podem ser ignorados: ao chamar a queima das proibição à queima das espadas, indeferindo medi-
espadas de “guerra”, passa-se à ideia de algo vio- da de contracautela cujo polo ativo era composto
lento, mortal e cruel. pelo próprio Município de Senhor do Bonfim.
Essa prática – da queima / guerra das es- Apresentados ponto e contraponto, é pre-
padas – é bastante antiga e tradicional em al- ciso fazer algumas ponderações, principalmente
guns Municípios do Estado da Bahia, como Cruz quanto ao enquadramento legal atribuído a quem
das Almas e Senhor do Bonfim, que tratam a pratica a queima das espadas.
prática como sendo imprescindível para o cor- Um dos primeiros ensinamentos transmitidos
tejo junino local, e esse seja, talvez, o principal em um bacharelado em Direito, quando adentra a
motivo para que existam grupos que defendam a seara criminal, é, ou deveria ser, a necessidade de
manutenção da prática. interpretação restritiva do texto legal, bem como da
Em contraponto à manutenção desta cultu- busca por uma interpretação teleológica do mesmo,
ra, vem o Estatuto do Desarmamento, Lei Federal quando não o seja in malam partem.
n.º 10.826/2003, que, em seu artigo 16, § 1º, inciso Dito isso, faz-se necessário tecer algumas per-
III, aduz que quem “Possuir, detiver, fabricar ou guntas, cujas respostas são fundamentais para buscar
empregar artefato explosivo ou incendiário, sem entender a problemática trazida nessas breves linhas.
autorização ou em desacordo com determinação Longe da presunção de convencer alguém, o presen-
legal ou regulamentar”, é passível à pena de 3 a 6 te artigo tem uma finalidade reflexiva, somente.
anos de reclusão, além de multa.
Importante salientar que o caput do próprio Pergunta 01: Quando menciona “artefa-
artigo 16 prevê que nessas mesmas penas incide tos explosivos ou incendiários”, queria o
legislador tratar sobre artefatos utiliza-
quem “Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer,
dos nas festas juninas?
receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda

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Artigos

“É evidente que a liberdade individual não pode


Pergunta 02: Existe proporcionalidade
ser levada ao extremo, a ponto de prejudicar a li-
em enquadrar, no mesmo tipo penal,
quem participa da queima das espadas berdade de outrem ou o interesse social. Ela en-
e quem porta ilegalmente arma de fogo? contra limites na própria existência da sociedade
e do Estado, que visam assegurar o bem comum".
Pergunta 03: Por que a legislação proíbe Por outro, devemos nos recordar que, em certos
alguns “artefatos explosivos ou incen- momentos, o Poder Judiciário e o Poder Legisla-
diários”, mas permite que outros fogos
tivo já se manifestaram em prol da proibição legal
sejam comercializados sem grandes res-
trições? de práticas que são tidas, por muitos, como tradi-
cionais e culturais, como a queima das espadas, a
Pergunta 04: Por que outros festejos po- realização de rodeios e vaquejadas, e, em outros
pulares que ocasionam muito mais aci- tempos, a capoeira e o Bumba meu Boi.
dentes e acidentados são permitidos, Independentemente de ser contra ou a favor
conquanto a queima das espadas duran-
da prática da queima/guerra das espadas, cada
te o São João é proibida?
um de nós deve analisar a sua legitimidade e estar
Em verdade, quando versa sobre artefatos atento para tais movimentos de criminalização,
explosivos e incendiários, e fazendo uma interpre- sob pena de banalizarmos, tornarmos corriqueira,
tação teleológica, o que busca o Estatuto do De- a utilização do direito penal como forma de co-
sarmamento é reprimir grupos armados que explo- ação cultural e social, contrapondo-se ao que de
dem cofres, carros fortes e agências bancárias. O fato deveria ser: a ultima ratio.
legislador, acredita-se, jamais pensou em coibir a
queima das espadas, pois a guerra que se buscava,
e ainda se busca, coibir era e é outra que não essa. REFERÊNCIAS
Nas palavras do economista e filósofo Frie-
drich Hayek (2011, p. 14), “O Estado de Direito não BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
é só um ‘estado de legalidade’, mas, muito mais que Contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
isso, pressupõe o princípio da liberdade individu- BRASIL. Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Dispõe
al”, ou seja, não se trata, tão somente, de um es- sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo
tado de leis, pois, em verdade, deve-se garantir a e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas - Sinarm,
liberdade dos seus indivíduos. define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da
A intervenção do Estado, caso fosse levada a União, Brasília, 23 dez. 2003.
efeito, deveria ter o intuito de proporcionar a prá- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Liminar
tica mais segura, concedendo, por exemplo, um n.º 1225. Requerente: Município de Senhor do Bonfim. Re-
espaço específico para a prática do movimento, querido: Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal da Comarca
uma equipe de intervenções para o caso de aci- de Senhor do Bonfim. Relator: Min. Luiz Fux. DJe nº 136, de
dentes, políticas nesse sentido. A proibição, por 21/06/2019.
sua vez, para além de não resolver a situação, haja CÂMARA MUNICIPAL DE SENHOR DO BONFIM. Lei n.º
vista que a prática continua acontecendo de forma 1400, de 12 de junho de 2017. Declara a Guerra de Espa-
ilegal e clandestina, traz ainda mais insegurança a das Patrimônio Cultural Imaterial de Senhor do Bonfim
quem é adepto da queima das espadas. e dá outras providências. Diário Oficial do Município de
Esse grupo, composto em sua maioria por Senhor do Bonfim, Senhor do Bonfim, 12 jun. 2017.
pessoas do povo, é tratado e hostilizado como se Hayek, F. A. (2011). Os fundamentos da liberdade. São Pau-
seus integrantes fossem criminosos habituais. Para lo: Visão Jurídica. (Obra original publicada em 1960).
além das luzes incandescentes proporcionadas
pela queima das espadas, têm eles de, agora, fica- OSVALDO ÁLVARO DE
rem atentos ao mínimo sinal de outra luz bastante JESUS NETO
alarmante, o “giroflex”, utilizado pelas guarnições
de polícia, que, cumprindo ordens, decerto, traba- Advogado Criminalista. Pós-
lham incessantemente para coibir o movimento. -Graduando em Ciências Cri-
Por um lado, não podemos nos distanciar minais pela Faculdade Baiana
da ideia de que a liberdade do indivíduo não deve de Direito.
nunca superar a liberdade dos demais, ou, nas pa-
lavras do Ministro Roberto Barroso (2014, p. 105),

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Artigos

A pedagogia da magistratura:
a atuação de juízes/as nas varas da infância
e juventude
Por Raphael Varga Scorpião e Lucas Ribeiro Mota

Em um Estado que aspira o patamar de de- fundamental na convivência comunitária. Por tal
mocracia constitucional, qual deve ser a função razão, são fundamentais para a ordem axiológica,
do/a magistrado/a? Qual deve ser a missão cons- político-institucional e humanística, caracterís-
titucional, se não única, a principal, daquele agen- tica tanto de seu progressivo evolver, como pela
te investido em jurisdição? Tal pergunta ganha efetiva realização dos misteres a que se destinam
ainda mais complexidade se estamos pensando e aos quais deve se sujeitar a instância política.
em uma magistratura exercida nas Varas de Infân- É pertinente mencionar que o Estado De-
cia e Juventude. Afinal, qual a obrigação do Juiz ou mocrático de Direito visa, por meio da garantia
Juíza infancista? de direitos, alcançar a plenitude do ser humano,
A fim de responder estes questionamentos ou seja, assegurar, pelas leis, o mínimo necessário
iniciais, é necessário destacar que a efetivação para que alguém explore as suas potencialidades
de um Estado Democrático de Direito pressupõe e desenvolva a sua personalidade, para que possa
que os seus representantes protejam ao máxi- sentir-se inserido e hábil a viver com dignidade.
mo os direitos humanos, sejam eles positivados Partindo do pressuposto de que o direito
no plano interno ou no plano internacional. Ati- se presta a assegurar o ser humano enquanto po-
nente a esse valor máximo a ser protegido e con- tência, o/a magistrado/a deve, acima de qualquer
cretizado, os Tribunais nacionais devem buscar coisa, resguardar, cumprir e fazer cumprir os di-
sempre prestar a tutela jurisdicional, a fim de ga- reitos fundamentais do ser humano.
rantir que as normas protetoras da dignidade da Ocorre que o/a juiz/a, não raro, busca des-
pessoa humana sejam mais do que meras normas cer deste papel e ocupar um outro local: o de pro-
programáticas ou de conteúdo vazio, garantindo fessor/a, ou, ao menos, o que ele/ela acredita ser
a força normativa da Constituição Federal, bem de um/a professor/a. Dotado de um certo senso
como dos Tratados e Convenções de Direitos Hu- de iluminismo, pensa que, nos minutos destina-
manos anuídos pela República Federativa do Bra- dos à audiência de apresentação do adolescente,
sil. Essa medida pode representar uma profunda vai aplicar uma lição que mudará para sempre a
transformação na sociedade brasileira, uma vez vida do adolescente.
que amplia as garantias dos cidadãos tanto frente Importante esclarecer que, também não
ao Estado, como frente aos demais particulares, raro, a motivação do/a julgador/a é nobre. O/a
diante da eficácia horizontal dos direitos huma- magistrado/a, diante de um ato de alta comple-
nos (GUERRA FILHO, 2010, p. 276). xidade e em um cenário desafiador, como estar
Sabe-se que os direitos fundamentais cor- diante de um adolescente em conflito com a lei,
respondem a conquistas do ser humano em face acredita que deve agir para além da aplicação da
do poder, seja Estatal, econômico, político e/ou norma ao caso concreto e à salvaguarda dos di-
ideológico. O constitucionalismo, um dos nasce- reitos fundamentais do jovem. Ao se deparar com
douros dos direitos fundamentais, deu ensejo à a verdadeira expressão do absurdo em sua sala
percepção da necessidade de os direitos funda- de audiência, o/a juiz/a acredita que “educará” o
mentais serem promovidos pelo Estado e contra o adolescente, pensando que, agindo assim, suprirá
mercado e o poder econômico. Constitui, portan- a falta de dois institutos essenciais na formação da
to, patrimônio histórico e cultural construído por personalidade do infante, a família e a escola.
revoluções, insurreições e revoltas. Desta forma, Na esteira do pensamento de Paulo Freire,
tais direitos clamam compreensão e reflexão que a pedagogia nomeada como pedagogia do opri-
reconheçam a sua condição não apenas de cen- mido, que busca a restauração da intersubjetivi-
tralidade jurídica, como também de componente dade, apresenta-se como pedagogia do homem.

18
Artigos

Aduz Freire que somente ela, que se anima de RAPHAEL VARGA SCORPIÃO
generosidade autêntica, humanista e não huma-
nitarista, pode alcançar este objetivo. De outra Defensor Público do Estado
forma, a pedagogia que, partindo dos interesses da Bahia. Mestre em Filosofia
egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de do Direito pela PUC-SP. Espe-
falsa generosidade, faz dos oprimidos objeto de cialista pela PUC-MG. Gradu-
seu humanitarismo, mantém e encarna a pró- ado em Direito Pela UNESP.
pria opressão. É instrumento de desumanização
(FREIRE, 2005, p. 56).
A relação entre juiz/a e réu/representado/ LUCAS RIBEIRO MOTA
acusado pode ser considerada uma relação ho-
rizontal? Alguém que está ali “sob vara” está em Advogado. Graduado em Di-
alguma posição de troca? Por óbvio, a resposta é reito pela UNESP. Aprovado no
negativa. Travestido de boas intenções, o sermão, VIII Concurso para Defensor
lição de moral, bronca, chamado, ou qualquer ou- Público do Estado da Bahia.
tro nome que se queira dar, presta-se a um único
papel: gerar no/a julgador/a a sensação de es-
tar contribuindo para alterar a trajetória de um
adolescente e, portanto, de um ser em formação
(como somos todos nós).
Não é tarefa fácil, tampouco confortável, mas
é necessário compreender que o Direito não se
presta a educar, seja porque lhe falta legitimidade
constitucional, seja por absoluta falta de expertise.
É extremamente pretensioso se crer que,
por utilizar traje forense, utilizar linguagem pró-
pria (e por que não anacrônica?) e ter o poder de
obrigar que alguém lhe escute, sob pena de ter
a liberdade suprimida, terá a condição, em uma
conversa, de alterar a trajetória de vida de al-
guém. Um agente estatal que não trilhou a mes-
ma existência, não viveu as mesmas dores, não
sofreu as mesmas privações jamais poderá ser
alguém que “eduque” o outro.
A educação libertária pressupõe um com-
Respiro
promisso verdadeiramente humanista e uma pos-
tura genuinamente atenta ao outro. O que se vê,
cotidianamente, em Varas infancistas, é um ado-
lescente sendo constrangido, uma mãe e um pai
recebendo um olhar julgador e um/a magistra-
do/a se sentindo com a consciência aliviada, afi-
nal, exerceu sua “pedagogia” diária.

REFERÊNCIAS

ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos


fundamentais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.
Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2005.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional
Charge por: André Dahmer @andredahmer
e Direitos Fundamentais. 7. ed. Rio de Janeiro: SRS.

19
Artigos

Inquérito policial:
da inquisitoriedade escrita à oralidade garantista?
Por Anderson Giampaoli e Rafael Marcondes

O inquérito policial, autêntico procedimen- que o CPP veicula, ao delegado de polícia, ouvir ví-
to investigatório criminal do ordenamento brasi- timas em declarações (artigos 6º, IV, e 201), suspei-
leiro (CF, artigo 129, VIII; CPP, artigos 6º a 23; e Lei tos e indiciados em interrogatórios (artigos 6º, V, e
12.830/2013, artigo 2º, § 1º), constitui instrumento 185 a 196) e testemunhas em depoimentos (artigo
do Estado-investigação para a reconstrução fáti- 204), inclusive na audiência policial de apresenta-
ca imparcial, na etapa extrajudicial de um devido ção e garantias do artigo 304 do estatuto de rito
processo penal. criminal (MORAES, 2023, p. 229-251).
Em relação às questões de fato dessa fase A questão que se coloca, tal como se ope-
preliminar, o artigo 6º, III, do Código de Proces- ra com o reconhecimento de pessoas, é a forma
so Penal (CPP), incorpora o princípio da liberdade como se coleta o testemunho, que reflete a visão
probatória ou da livre inclusão (FERRER, 2021, p. tradicional das características do inquérito poli-
113), o que implica a admissibilidade de qualquer cial como suposto procedimento escrito, mantra
razão epistêmica, ainda que sujeita a ulterior con- ecoado há décadas na literatura jurídica, baseado
traditório judicial. no artigo 9º do CPP.
Nos últimos anos, por força dos aportes da Destarte, ambos os meios de prova – reco-
psicologia do testemunho, as provas dependentes nhecimento pessoal e testemunho – exigem que
da memória têm sido objeto de debates, com des- os atores do sistema de justiça saibam como fun-
taque para a mudança de abordagem do instituto ciona a memória humana, mormente as variáveis
do reconhecimento de pessoas (GIAMPAOLI; MO- a estimar e as sistêmicas, o impacto das falsas
RAES, 2022, p. 13-15). memórias na recuperação de informações codi-
Conquanto não se olvide da importância de ficadas, a interferência dos vieses cognitivos, em
outros meios de prova, o testemunho continua especial do viés de confirmação e da consequente
sendo suporte probatório central no julgamen- visão de túnel das agências de controle do fenô-
to de casos penais (GESU, 2014, p. 93), espaço de meno criminal, além das orientações prestadas
poder que denota verdadeiro reino das provas àquele que é chamado para auxiliar na reconstru-
dependentes da memória (IDDD, 2022, p. 6), cuja ção dos eventos de interesse penal.
pretensa repetibilidade tem sido cada vez mais Além dos pontos consignados, a ênfase à ne-
discutida diante dos contributos científicos ex- cessidade da gravação dos atos orais desponta como
trajurídicos, de modo a lançar sérias ponderações providência premente, já indicada para o reconhe-
acerca do critério de classificação distintiva entre cimento de pessoas na sobretida Resolução do CNJ
provas e elementos informativos (CECCONELLO; (artigo 5º, § 1º), e que viabiliza melhor análise da pro-
AVILA; STEIN, 2018, p. 1057-1073). dução da prova penal dependente da memória.
A despeito dos avanços jurisprudenciais, A gravação audiovisual consubstancia rele-
doutrinários e normativos, notadamente com o vante recurso epistêmico a ser utilizado sempre
advento da Resolução 484/2022, do Conselho Na- que possível para maior fidelidade das informações
cional de Justiça (CNJ), que estabelece diretrizes ao coligidas e está de acordo com o CPP (artigo 405,
reconhecimento de pessoas e passa a considerá- § 1º) e outras previsões legais, como na inquirição
-lo prova irrepetível (artigo 2º, § 1º), acompanhan- de vítimas e testemunhas de violência doméstica
do orientação do Superior Tribunal de Justiça (HC (Lei 11.340/2006, artigo 10-A, § 2º, III), no registro
712.781/SC, 6ª T., Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. da colaboração premiada (Lei 12.850/2013, artigo
15/03/2022, DJe 22/03/2022), há ainda muito que 4º, § 13) e na oitiva de crianças e adolescentes víti-
se evoluir quanto ao testemunho em geral. mas ou testemunhas de violência (Lei 13.431/2017,
Adota-se o vocábulo testemunho, mais am- artigo 12, VI). Trata-se de medida já implantada em
plo e comum na psicologia cognitiva, como gênero subsistemas de polícia judiciária, como na Polícia
abrangente de todas as oitivas oficiais, sem olvidar Civil de Santa Catarina (Resolução 11/2018), a ser

20
Artigos

somada às iniciativas de capacitação sobre provas CECCONELLO, William Weber; STEIN, Lilian Milnitsky (Co-
dependentes da memória dos profissionais atuan- ord.). Manual de entrevista investigativa para a Polícia Civil.
tes na investigação criminal (MATIDA, 2023). Passo Fundo-RS: Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cog-
Outrossim, pesquisas da psicologia cogniti- nição e Justiça (CogJus), 2022.
va têm evidenciado que o emprego da gravação e FERRER-BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova. Salva-
de protocolos como o PEACE (Planning and Pre- dor: JusPodivm, 2021.
paration; Engage and Explain; Account; Closure e GESU, Cristina di. Prova penal e falsas memórias. Porto Ale-
Evaluation) são imprescindíveis para aqueles que gre: Livraria do Advogado, 2014.
almejam reduzir erros do sistema de justiça, evi- GIAMPAOLI, Anderson Pires; MORAES, Rafael Francisco Mar-
tar prisões e condenações de inocentes e obter condes de. Reconhecimento de pessoas: por um olhar para o
informações confiáveis de vítimas, testemunhas chão de fábrica. Boletim Trincheira Democrática, Salvador,
e investigados (CECCONELLO; STEIN, 2022, p. 7; ano 5, n. 21, Junho/2022, p. 13-15.
MOSCATELLI, 2020, p. 384). IDDD – INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. Prova
Verifica-se, por tudo, a suplantação do adá- sob suspeita. Reconhecimento de pessoas e prova testemunhal:
gio que rotula o inquérito policial como escrito, orientações para o sistema de justiça. São Paulo: IDDD, 2022.
para que passe a ser considerado um procedimen- MATIDA, Janaína. O reconhecimento de pessoas epistemica-
to jurídico-administrativo preferencialmente oral, mente confiável chega à ACADEPOL/SP. Migalhas, Ribeirão
consentâneo com uma investigação epistemica- Preto, 24 abr. 2023. Disponível em: <www.migalhas.com.br/
mente orientada à luz da contemporânea era digi- coluna/nova-limite-penal/385216/reconhecimento-de-
tal e das realidades normativa e empírica. -pessoas-epistemicamente-confiavel-chega-a-acadepol>.
Tal guinada confere reinterpretação consti- Acesso em: 04 mai. 2023.
tucional e sistemática ao citado artigo 9º do CPP, MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR., Jai-
para que seja atrelado ao registro via gravação au- me. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação
diovisual de testemunhos estipulada no referido criminal. Salvador: JusPodivm, 2018.
artigo 405, § 1º, do mesmo diploma, sem prejuízo MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagran-
de instruir peças e atos decisórios ou de tramita- te delito constitucional. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2023.
ção formalizados, como já ocorre na esfera judicial, MOSCATELLI, Lívia. Considerações sobre a confissão e o mé-
até porque o próprio reconhecimento de pessoas todo Reid aplicado na investigação criminal. Revista Brasi-
exige lavratura de auto pormenorizado (CPP, arti- leira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 6, n.1, p.
go 226, IV; e Resolução CNJ 484/2022, artigo 10). 361–394, jan./abr. 2020.
O estudo do contexto da descoberta (UBER- PEREIRA, Eliomar da Silva. Saber e poder: o processo (de in-
TIS, 2015, p. 30), responsável pela formulação de hi- vestigação) penal. Florianópolis: Tirant no Blanch, 2019.
póteses que expliquem o acontecimento adjetivado UBERTIS, Giulio. Profili di epistemologia giudiziaria. Mi-
de delituoso, precisa superar a vetusta dicotomia lano: Giuffrè, 2015.
acusatório-inquisitório (PEREIRA, 2019, p. 116) e
a correlata mentalidade inquisitorial fundada no ANDERSON GIAMPAOLI
sigilo e na forma escrita. Ao revés, os progressos
científicos, oriundos essencialmente da psicologia Delegado de polícia do Esta-
cognitiva, demandam pensar a etapa extrajudicial do de São Paulo; professor da
a partir de uma publicidade restringível (MORAES; Academia de Polícia de São
PIMENTEL JR., 2018, p. 205-210), apta à ciência e Paulo; mestre em direito pro-
participação ativa da defesa, justa no tratamento de batório pela Universitat de
todos como sujeitos de direitos e, sobretudo, fiável Barcelona (Espanha).
na obtenção oral de conteúdo da memória dos en-
volvidos na apuração de ilícitos penais. RAFAEL FRANCISCO
MARCONDES DE MORAES

REFERÊNCIAS Delegado de polícia do Estado


CECCONELLO, William Weber; AVILA, Gustavo Noronha de; de São Paulo; professor da Aca-
STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir)repetibilidade da prova penal de- demia de Polícia de São Paulo;
pendente da memória: uma discussão com base na psicologia mestre e doutorando em pro-
do testemunho. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Bra- cesso penal pela Universidade de São Paulo (USP).
sília, v. 8, n. 2, 2018, p. 1057-1073.

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Artigos

Reconhecimento facial automático para fins


de persecução penal: entre o visível e o oculto
Por Giulia Alves Fardim

Assim, entre nossas paredes transparentes, em regra, o uso de identificação em tempo real
como se fossem tecidas de ar brilhante, vivemos sem- em espaços públicos pelo sistema legal, a não
pre em plena vista, eternamente banhados pela luz. ser por situações específicas1.
Não temos nada a esconder uns dos outros. Além do No Brasil, diversas aplicações da tecnologia
mais, isso alivia a pesada e elevada tarefa dos Guar- são constantemente anunciadas: nos bairros ou no
diões (ZAMIÁTIN, 2016, p. 26). metrô de São Paulo, no carnaval soteropolitano,
nas arenas esportivas, e nas ruas do Rio de Janeiro.
Distopias escritas no século XX, Nós, de Nesta última, foi identificada erroneamente uma
Zamiátin, e 1984, de Orwell, retratavam mo- mulher. A pessoa procurada, inclusive, já se encon-
delos de vigilância de cidadãos sob um regime trava presa (NUNES; SILVA; OLIVEIRA, 2022, p. 11).
autoritário. Nas obras, as paredes de vidro ou Nessa seara de utilização não regrada, o Pro-
as “teletelas” permitiam um controle perene e jeto de Lei (PL) 2.338/23, fruto do substitutivo ela-
incorpóreo sob os comandos do Benfeitor ou borado por uma comissão de juristas, apresenta
do Grande Irmão. Os anos passaram e, com o uma proposta de regulação. Qualifica a aplicação
advento de uma sociedade de controle (DE- da ferramenta no âmbito de atividades de seguran-
LEUZE, 2000, p. 2), as ferramentas de vigilân- ça pública, como de “risco excessivo”, mas permite
cia não fictícias se tornaram mais sofisticadas, a utilização, desde que exista lei federal específica e
com incrementos do armazenamento massivo autorização judicial em conexão com a atividade de
de dados e de seu tratamento por mecanismos persecução penal individualizada em determinadas
de inteligência artificial. situações elencadas. São elas: persecução de cri-
Dentre tais instrumentos, vislumbra-se o mes passíveis de pena máxima de reclusão superior
reconhecimento facial automático, isto é, um a dois anos; busca de vítimas de crimes ou pessoas
mecanismo de inteligência artificial que é ca- desaparecidas; verificação de crime em flagrante.
paz de gerar uma correlação biométrica, com- Sem exaurir o tema, sugere-se que alguns
binando faces não conhecidas a imagens de parâmetros existentes na proposta europeia se-
pessoas conhecidas, inseridas em um banco de jam adotados, tais como requisitos de motivação
dados (LYON, 2018, p. 88). Assim, a ferramenta
é capaz de identificar uma pessoa. Trata-se de
1
A sugestão de regulação está descrita no art. 5.1, d, e parágrafos
aplicação com usos comerciais, como indicação
seguintes (5.2, 5.3 e 5.4) do AI Act. As permissões preveem a
de pessoas presentes em fotografias em redes utilização do reconhecimento facial automático: quando da busca
sociais, ou mecanismo de autenticação de se- por vítimas de crimes, inclusive por crianças desaparecidas;
nha individual em smartphones. Há, ainda, a quando houver risco de vida ou segurança física de indivíduos,
possibilidade de aplicação estatal, principal- como em ataques terroristas; e, por fim, para detenção,
mente no que tange à finalidade de segurança localização, identificação ou persecução de suspeitos ou
condenados por um dos 32 crimes constantes em um rol, desde
pública. Sobre este último uso, as preocupa-
que exista previsão de punição nacional com penas superiores
ções se expandem. a três anos. As aplicações deverão estar sujeitas à reserva de
Diante do risco de vigilância ubíqua aos jurisdição ou à autorização de autoridade administrativa, e
cidadãos, principalmente a regiões e grupos possuírem limitação temporal, pessoal e geográfica. Apenas em
marginalizados, como também da possibilidade situações urgentes o controle poderá ser posterior.
de falsos positivos, cidades como Boston e São
2
O AI Act, no art. 5.2, a e b, exige que seja levada em
consideração a gravidade, a probabilidade e a escala de dano
Francisco, nos Estados Unidos, baniram o uso
causado na ausência da medida; assim a análise dos mesmos
do reconhecimento facial por ações policiais. Na parâmetros quanto aos danos causados para o sistema de
Europa, há proposta de regulação da tecnologia direitos e liberdade de todas as pessoas envolvidas caso
de inteligência artificial pelo AI Act, proibindo, aplicada a tecnologia, em um exame de razoabilidade

22
Artigos

mínima para deferimento da medida2 e restrições e banco de dados, verificação de confiabilidade e


temporais, geográficas e pessoais de aplicações legalidade dos mecanismos, uma vez que ao mes-
do reconhecimento pessoal automático, visando mo tempo que a tecnologia de reconhecimento
a não indeterminação da medida. Dessa maneira, facial desvela situações antes não percebidas, tra-
evita-se a potencialidade de monitorar inúmeros zendo à tona a possível identificação de suspeitos,
indivíduos em suas atividades cotidianas, poden- oculta seus vieses e omite as razões das combi-
do violar direitos como a liberdade de ir e vir, a de nações realizadas. Indaga-se: vale a pena correr o
reunião e a privacidade. risco? A resposta provavelmente depende – e não
Pontua-se: acertada a escolha redacional deveria – de não ser o alvo você.
nacional no sentido de a identificação biométrica
registrada dever ser supervisionada por decisão
humana. Nessa seara, testes realizados pela Polí- REFERÊNCIAS
cia Metropolitana de Londres e acompanhados por BUOLAMWINI, Joy; GEBRU, Timnit. Gender Shades: Inter-
pesquisadores da Universidade de Essex indicaram sectional Accuracy Disparities in Commercial Gender Clas-
que falsos positivos (38,1% dos matches examina- sification. Proceedings of Machine Learning Research, vol.
dos) eram rapidamente descartados pela equipe de 81, p. 1-15, 2018.
verificação humana (FUSSEY; MURRAY, 2019, p. 10). DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum: sobre as sociedades de
A acurácia do sistema é um tema a ser deba- controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter
tido, já que o objetivo é realizar não somente identi- Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2000.
ficações, mas identificações corretas. Buolamwini e FUSSEY, Peter; MURRAY, Daragh. Independent Report on the
Gebru (2018, p. 1) analisaram 3 sistemas de reconhe- London Metropolitan Police Service’s Trial of Love Facial Re-
cimento facial comerciais e verificaram um índice cognition Technology. Essex: Economic and Social Research
de erro máximo de 0,8% nos reconhecimentos de Council, Human Rights Centre, University of Essex, jul. 2019.
homens de pele clara. Todavia, o índice de erro má- LYON, David. The culture of surveillance: watching as a way
ximo para mulheres de pele escura alcançou 34,7%, of life. Cambridge: Polity Press, 2018.
possibilitando que ocorra discriminação algorítmi- NUNES, Pablo; SILVA, Mariah Rafaela; OLIVEIRA, Samuel R.
ca. Como confiar em um instrumento que erra siste- Um Rio de olhos seletivos: uso de reconhecimento facial pela
maticamente quando aplicável na realidade3? polícia fluminense. Rio de Janeiro: CESeC, 2022. E-book.
Ademais, há um mundo oculto de possíveis ZAMIÁTIN, Ievguêni. Nós. Tradução: Eneida Favre. São Paulo:
vieses presentes nos mecanismos, como o viés do Editora Aleph, 2016. E-book.
algoritmo (parâmetros programados à máquina) e
o viés de amostra (treinamento realizado em ban-
co de dados enviesado). Especialmente importante GIULIA ALVES FARDIM
no caso do reconhecimento facial são os dados a
serem inseridos, já que se trata de uma ferramen- Professora Assistente de Di-
ta de comparação de imagens. Assim, figuras com reito Processual na Universi-
baixa qualidade; ângulos distintos; provenientes dade Federal de Juiz de Fora
de equipamentos com regulações diferentes; com (UFJF). Doutoranda em Pro-
possibilidade de distorção de rostos; em locais cesso Penal pela Universida-
com alteração de luminosidade; distância inade- de de São Paulo (USP). Mestre em Direito e Inovação
quada do sujeito a ser reconhecido; ou elementos pela UFJF. Advogada. Bolsista CAPES.
de disfarce podem atuar diminuindo a confiabili-
dade dos resultados. Entretanto, algumas dessas
variáveis são sistemáticas e podem ser trabalhadas
para que a acurácia seja maior.
Diante dessa realidade, para além de positi-
vação de uma regulação adequada, o ideal seria a
realização de relatórios de impacto do uso da tec-
nologia, com análise de transparência de sistemas

3
Há indicações de erros em ambientes controlados
serem infinitamente menores do que aqueles relativos às
aplicações reais.

23
Artigos

A emendatio libelli e a mutatio libelli


evidentemente inconstitucionais
Por Tiago Oliveira de Castilhos

Lecionar processo penal é, sem dúvida ne- ofender o princípio da imparcialidade?


nhuma, um exercício que requer por um lado es- Quando age conforme o artigo, o juiz prolata
forço, por outro resiliência, ainda mais após o pe- sentença ultra petita,1 o que para o processo penal
ríodo da nefasta “Operação Lava-Jato”. Ela deixou deveria ser impossível, mas não é. Quando o MP
legado ruim para o processo penal em nosso país. denuncia, tem como base elementos indiciários,
Serviu para externar quão mal estamos tratando que o leva a extrair sua opinião sobre o fato em
esta matéria tão importante. tese ilícito. Após a instrução, se se profere sen-
A referida “Operação” espetaculosa, que vi- tença condenatória por outro tipo de injusto com
rou moda em um Estado democraticamente frágil pena mais grave do que aquele denunciado, isso
como o nosso, externou algo ainda maior: que o não é constitucional.
ensino jurídico, muito embora não seja o objeto do A defesa não fica inerte e rapidamente faz o
trabalho, tem ofertado para o mercado profissio- recurso pertinente para o Tribunal, que confirma
nais sem estofo constitucional (LOPES JR, 2023, p. a sentença “pelos próprios fundamentos” e usa o
28), pois ocupam os principais cargos nas insti- argumento retórico de que a defesa ataca os fa-
tuições de poder (delegados, promotores e juízes) tos narrados na exordial e não o artigo da impu-
que não valorizam a Constituição, os direitos e ga- tação. O referido argumento é de superficialidade
rantias fundamentais e as Convenções de Direitos absurda, pois a defesa não ataca apenas os “fatos
Humanos (SARLET, 2015), sem generalizações. narrados” na exordial, mas, também, a imputação
Este pequeno escrito é crítico e demonstra penal. Não é a emenda uma mera “correção” da
que a emendatio libelli e a mutatio libelli ferem o imputação (LOPES JR., 2023, p. 418), sendo que tal
sistema acusatório que tanto se busca consolidar, interpretação deixa de lado a teoria do delito bem
logo, são inconstitucionais. Precisa-se rapidez nes- sedimentada, assim como, por exemplo, “a quali-
te pequeno espaço e a resposta à hipótese é sim. ficação jurídica da conduta” (ROSA, 2017, p. 887),
prevista no já citado artigo 41 do CPP.
A emendatio libelli e sua (des)conformidade
constitucional A mutatio libelli e a mágica de tornar o ilegal em
Tal emenda tem por objetivo adequar o ina- legal
dequado. O artigo 383 do CPP, em parca síntese, diz Em razão desta emenda à inicial acusató-
que “sem alterar os fatos narrados na denúncia” o ria, que ocorreu após a instrução encerrada para
juiz poderá dar definição jurídica diferente daquela a inclusão de nova imputação e/ou mais réus no
dada ao fato pelo parquet e condenar o réu por cri- processo, em um passe de mágica a pena poderá
me com pena maior. Exatamente por isso, ocorre a ficar maior. Como brincadeira de criança2 (CASTI-
ofensa ao sistema acusatório e aos seus princípios,
como, por exemplo, o da imparcialidade, pois o juiz
poderá aplicar, por meio da referida emenda, pena 1
Ele já fez o juízo condenatório e já ultrapassa os limites
não pedida pelo Ministério Público (MP). estabelecidos pelo sistema acusatório.
2
Ao pensar neste problema lembro-me da década de 80 do
Faz parte desse sistema acusatório, inaugu-
século passado. Aqui usarei como ilustração a brincadeira
rado pela CF, o artigo 129, que trata sobre o poder/ do jogo de “bolita”, ou “bolinhas de gude”, que são esferas
dever do MP, de sua missão de “promover, privati- de vidro, em que as crianças devem jogar uma bolinha
vamente, a ação penal”. Logo, cabe ao referido órgão contra a outra, para retirar de um círculo cheio de outras
analisar cada caso em concreto e se é juridicamente bolinhas casadas pelos participantes. Na época existia
possível e necessário processar criminalmente uma técnicas, estratégias e nomenclatura própria do jogo, a
de pedir “mudes” (mudança de lugar) ou “limpes” (retirar
pessoa, acusando-a, fazendo a imputação penal ex-
um obstáculo) para poder jogar melhor. O objeto desta
traída da sua opinio delicti, respeitando o artigo 41 pesquisa trata de um verdadeiro “mudes” e “limpes”, no
do CPP. Como o Estado-Juiz, nesse sistema acusa- processo penal, como aquele com a emendatio e mutatio
tório, corrige o trabalho do Estado-Acusação sem libelli, é a “Katchanga Real” (STRECK, 2012).

24
Artigos

LHOS, 2015, p. 106), faz o Estado o que quer com a Sentença esta que já está pronta e precisa ser ade-
acusação, com a permissão de muitos juristas. quada à denúncia, dando a estética de que há con-
O juiz, ser onipotente e onipresente, perce- traditório daquilo que foi objeto da emenda. Ambas
be o que o MP não percebeu, ou seja, que há ele- afrontam as garantias constitucionais do réu.
mentos de um crime mais grave, e ordena a mu-
dança da imputação. Ao final da instrução, em um
típico “mudes”, a “katchanga real” (STRECK, 2012), REFERÊNCIAS
o juiz reabre a instrução e diz para o parquet que
ele deve emendar a inicial mudando a imputação, BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas pro-
o fato narrado na denúncia, podendo incluir réu cessuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das
(LOPES JR., 2023, p. 114), realizando a mutatio li- nulidades no processo penal. Tradução: Angela Nogueira
belli conforme o artigo 384 do CPP, e nela pode- Pessôa. Revisão: Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lu-
rá inquirir testemunhas sobre a nova imputação men Juris, 2003.
nova. Veja, o processo já acabou. CASTILHOS, Tiago Oliveira de. A forma no processo penal
A defesa perplexa e sem alternativa acaba como garantia fundamental ao réu: a inversão do contra-
por atacar o objeto da emenda e, também, indi- ditório em grau recursal e o descumprimento da garantia.
ca testemunhas, em nítida redução de danos, pois In: MENEZES, Carlos Alberto; SANTIAGO, Nestor Eduardo
não pode correr mais riscos do que o próprio jogo Araruna; BORGES, Paulo Cesar Correa (Coord.). Grupo de
proporciona (ROSA, 2017, p. 333) e tem a obriga- Trabalho. Direito penal, processo penal e constituição. XIV
ção de defender o réu. Para parte da doutrina só Encontro Nacional do CONPEDI/UFS. Florianópolis, 2015.
é caso de sentença ultra (extra) petita se não for COSTA NETO, Raimundo Silvino da. Sentença cível: estru-
aplicada a referida emenda em período anterior à tura e técnicas de elaboração. 2ª ed. rev. e atual. Rio de
sentença (LOPES JR., p. 2023, p. 374) ou no Tribu- Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016.
nal. Discorda-se porque se maquia o "prejuízo" da FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Garantias: La ley del màs débil.
decisão com a emenda. Prólogo de Perfecto Andrés Ibáñez. Traducción Perfecto An-
Tal postura dá “estética” de contraditório, drés Ibáñez y Andrea Greppi. Roma: Madri: Trotta. 2004, p. 26.
de ampla defesa, mas na verdade é uma manei- LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20ª ed. São
ra de se moldar à vontade do juiz, que já decidiu Paulo: SaraivaJur, 2023.
quando requereu o aditamento, posicionando-se ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal con-
para condenar pela emenda que sugeriu. Resta forme a teoria dos jogos. 4ed. rev. atual. e ampl. Florianó-
visivelmente comprometido o princípio da impar- polis: Empório do Direito, 2017.
cialidade que se esperava, bem como a forma no SARLET, Ingo Wolfgang. Controle de convencionalidade
processo penal, porém, “forma é garantia”, estan- dos tratados internacionais. Revista Consultor Jurídico
do ela a serviço do réu, débil (FERRAJOLI, 2004, p. - ConJur. Publicado em: 10 abr. 2015. Disponível em: <ht-
26; BINDER, 2003, p. 112; CASTILHOS, 2015, p. 113), tps://www.conjur.com.br/2015-abr-10/direitos-funda-
e não a favor do Estado. mentais-controle-convencionalidade-tratados-interna-
cionais> Acesso em: 18 mai. 2023.
Considerações finais STRECK, Lenio Luiz. A Katchanga e o bullying interpretati-
As emendas à denúncia criminal não se vo no Brasil. Revista Consultor Jurídico - ConJur. Publica-
amoldam à tradição processualista acusatória e do em: 28 jun. 2012. Disponível em: <https://www.conjur.
são institutos que ofendem princípios constitu- com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-bullyin-
cionais básicos em um Estado Democrático de g-interpretativo-brasil> Acesso em: 16 mai. 2023.
Direito, quais deles, o devido processo, a ampla
defesa, o contraditório e a imparcialidade do juiz. TIAGO OLIVEIRA
A emendatio libelli, neste sistema acusatório, DE CASTILHOS
ofende e afasta direitos fundamentais com a mera
retórica de que “a defesa atua sobre os fatos narra- Pós-Doutorando pela Univer-
dos na inicial e não sobre a imputação penal”, des- sidade Católica do Salvador/
cartando, por exemplo, a aprofundada teoria do Ba. Doutor e Mestre em Ci-
delito. No caso da mutatio libelli, após o fim da ins- ências Criminais pela PUCRS.
trução, com o juízo condenatório pronto, o juiz força Especialista em Ciências Pe-
a realização da mutação para melhor lhe convir na nais PUCRS. Professor de Direito Penal e Processo
sentença, para adequá-la ao princípio da correlação. Penal do Centro Universitário FADERGS.

25
Entrevista com: Gustavo Henrique Badaró'

Professor Titular de Direito Processual Penal pela


Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
pela qual também é Livre-Docente (2011), Doutor
(2002) e Mestre (1999) e na qual obteve o grau de
bacharel (1993). Conselheiro Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, por São Paulo.

1
Na esfera da investigação criminal, a te- o processo penal, isto é, a fase que se desen-
mática do raciocínio probatório ainda é volve da denúncia até o trânsito em julgado da
pouco tratada no Brasil, embora se con- decisão. Todavia, a investigação criminal é uma
sidere que, nos últimos anos, tanto a doutri- fase fundamental, inclusive para o êxito da fase
na1 como a jurisprudência2 têm dedicado al- subsequente. Partindo da premissa de que a ver-
guns escritos sobre a questão. Como aponta dade dos fatos importa muito para uma decisão
Dan Simon3, é durante a investigação crimi- justa, é na investigação que se busca descobrir
nal, contudo, que mais erros probatórios são fontes de prova que permitirão, posteriormen-
cometidos, razão pela qual essa etapa é con- te, na fase processual, que sejam produzidos os
siderada o toque de pedra do sistema. Em meios de prova correspondentes. Além disso,
sua opinião, qual é a importância da investi- cada vez são mais utilizados os meios de obten-
gação criminal para a correta determinação ção de prova que, por terem no fator surpresa
dos fatos no processo penal com vistas à evi- um elemento de elevadíssima importância, nor-
tação de erros probatórios? malmente são produzidos na fase da investiga-
ção, enquanto o imputado desconhece que está
GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ "De uma ma- sendo objeto de investigação. É necessário que
neira geral, o tema da investigação criminal tem passemos a desenvolver, cada vez mais, estudos
recebido pouca atenção da doutrina nacional. sobre uma teoria da investigação criminal. Sua
Costumo dizer que as “pontas” do processo pe- metodologia específica difere substancialmente
nal não receberam a atenção que mereciam. In- da metodologia da fase de produção e da de va-
quérito policial e execução penal são temas que loração da prova. A investigação criminal, assim
parecem não receber a mesma atenção do que como a generalidade das investigações, desen-

1
A título de exemplificação, podemos citar três obras escritas professores(as) brasileiros(as) que abordam aspectos probatórios
e investigação criminal: LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. São
Paulo: Saraiva Jur, 2014; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2009; PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021.
2
Nesse sentido, importantes decisões extraídas da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: STJ, HC nº 700.313/SP, Relator
Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 07/06/2022, p. 10/06/2022; STJ, RHC nº 158.580/BA, Relator Ministro Rogerio Schietti
Cruz, Sexta Turma, j. 19/04/2022, p. 25/04/2022; STJ, HC nº 712.781/RJ, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, p. 01/02/2022.
3
SIMON, Dan. In Doubt: The psychology of the criminal justice system. Cambridge: Harvard University Press, 2012 apud
MOSCATELLI, Lívia. Caso Leandro Bossi: erro investigativos que não devem ser esquecidos. Disponível em: <http://www.
ibadpp.com.br/novo/wp-content/uploads/2022/07/junho_22_web_2.pdf>. Acesso em: 20 maio 2023.

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Entrevista: Múltiplos Olhares

volve-se a partir de um método abdutivo, em processual. Somente assim é possível um contro-


que se procura formular hipóteses explicativas le intersubjetivo das decisões, o que é fundamental
de um evento, a partir de dados disponíveis. Já para legitimar o exercício do poder punitivo estatal,
a fase de produção da prova é governada por em caso de condenação. Excepcionalmente, visan-
escolhas do legislador. Ele estabelece os crité- do garantir uma melhor decisão, o legislador adota
rios legais de admissão bem como as hipóteses limitações ao livre convencimento. No sistema me-
de vedação probatória. Além disso, desenha os dieval de prova tarifada, o legislador preestabelecia
modelos legais para a produção de cada um dos o que era necessário para que um fato fosse con-
meios de prova, que são produzidos na instru- siderado provado e, portanto, verdadeiro. Diferen-
ção criminal. Por fim, a valoração da prova segue temente, os mecanismos de prova legal negativa vi-
uma metodologia racional que, diante do prin- sam estabelecer restrições, estabelecendo o que é
cípio legal do livre convencimento do juiz, deve insuficiente para que um fato possa ser considerado
ser determinada pela epistemologia. É a episte- provado. Um bom exemplo disso é a regra que impe-
mologia que deverá preencher o exercício da li- de o juiz de condenar o acusado somente com base
berdade do julgador para valorar a prova." nas declarações do colaborador premiado. Com re-
lação aos indícios, não temos no ordenamento jurí-
Na obra “La semplice verità. Il Giudice dico brasileiro uma norma semelhante à do Código
e la costruzione dei fatti”4, Michele Ta- de Processo Penal italiano, estabelecendo que o juiz
ruffo consagra um capítulo específico somente poderá considerar um fato provado por
para tratar sobre a dimensão epistêmica do meio de indícios, desde que sejam graves, precisos e
processo. Ao discorrer sobre valoração das concordantes. Essa regra me parece salutar ao siste-
provas pelo juiz, Taruffo aponta que, em al- ma, não só por permitir o desenvolvimento de uma
guns ordenamentos jurídicos, há limites sig- adequada teorização da academia sobre a prova in-
nificativos à aplicação do princípio do livre diciária, como também por impor à jurisprudência o
convencimento, dentre os quais se desta- desenvolvimento de uma hermenêutica aplicada ao
cam as normas de prova legal negativa, que caso concreto, sobre a prova indiciária. Além disso,
excluem a possibilidade de atribuir eficácia havendo um roteiro legal para a valoração dos in-
de prova a indícios ou presunções que não dícios, reforça-se a necessidade de fundamentação
sejam graves, precisas e concordantes. Em- das decisões judiciais. O julgador terá que indicar
bora o autor considere que, “prima facie, es- como extraiu do conjunto de indícios a satisfação
sas normas parecem ter uma função epistê- das características elencadas pelo legislador como
mica positiva, visto que visam a disciplinar necessárias para que um fato seja considerado pro-
a formação do convencimento do juiz as- vado. Corretamente, na reforma do Código de Pro-
segurando sua correção racional e evitan- cesso Penal há a previsão de uma regra equivalente à
do que esse incorra em supervalorizações da legislação italiana."
indevidas de elemento de prova cujo valor
parece particularmente incerto”5, também A Professora Clarissa Diniz Guedes, no li-
pondera que mesmo essas normas devem vro “Prova em vídeo no processo penal:
ser expostas a considerações críticas. Sob aportes epistemológicos”, pondera que
o prisma epistêmico, qual(is) seria(m) a(s) “Na perspectiva do contraditório, o grande
principal(ais) crítica(s) a eventuais limites à desafio diz respeito à otimização do debate
utilização de prova indiciária no sistema pro- sobre o conteúdo do vídeo; de qualquer modo,
cessual penal brasileiro? é possível afirmar que há contraditório du-
rante a produção da prova. A outra, quando
GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ "O livre conven- a prova em vídeo é meio de documentação
cimento do juiz não é um convencimento arbitrário de outro meio de prova ou de investigação –
ou sem regras. O julgador deve seguir um modelo sobretudo nesse último caso – agravam-se as
racional, segundo o modelo proposto pela episte- dificuldades. Nesse ponto, além das dificul-
mologia que se mostre mais adequado ao ambiente dades inerentes à prova em vídeo que verse

6
A obra “La semplice verità. Il Giudice e la costruzione dei fatti” (2009) foi traduzida por Vitor de Paula Ramos: TARUFFO,
Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016.
5
TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 193.

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Entrevista: Múltiplos Olhares

sobre fatos constantes da imputação, agre- de imagens registrada em bodycams de policiais


ga-se o problema – muito mais intenso – da militares, para comprovar seus depoimentos do
possível supressão do contraditório na forma- que ocorreu durante uma prisão em flagrante."

4
ção da prova.”6 Em consideração a essa refle-
xão, sob seu ponto de vista, qual é a impor- Para além da fase de investigação,
tância do debate sobre a prova em vídeo no também é preciso falarmos sobre o
âmbito da investigação criminal? contexto decisório no processo pe-
nal. Na sua obra “Epistemologia Judiciária
GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ "O tema da e Prova Penal”7, o Professor faz uma críti-
prova em vídeo no processo penal é muito rele- ca ao modelo de standard de prova ado-
vante e que só crescerá em importância no fu- tado pelo Professor Jordi Ferrer Beltrán,
turo. A excelente pesquisa da professora Claris- ao dizer que “é inviável exigir que o juiz,
sa Diniz Guedes lança luzes sobre a temática. A diante de todas as teses passíveis de se-
prova por vídeo poderá ser utilizada tanto como rem alegadas pelo defensor, fique espe-
prova, em sentido estrito, quanto como “meta- culando se alguma delas poderia ter ocor-
prova”. Na prova por vídeo em sentido estrito, rido no caso”8. No último livro escrito por
se buscará demonstrar fatos que sejam perti- Jordi Ferrer Beltrán, “Prova sem Convic-
nentes ou relevantes em relação à imputação ção”, o autor responde à crítica, ao dizer
penal. Por exemplo, um vídeo poderá demons- que analisar as hipóteses alternativas que
trar a existência de um fato, ou quem é seu au- não foram suscitadas pela defesa decorre
tor, ou ainda como se desenrolou determinada da própria “metodologia da corroboração
atividade. Embora no momento da captação de hipóteses própria do raciocínio proba-
da prova o registro em vídeo ocorra extrapro- tório”9. Afinal, sob a sua perspectiva, qual
cessualmente, isso não afasta a necessidade de modelo seria compatível com o nosso pro-
que, uma vez juntado ao processo, o conteú- cesso penal? O juiz deve ou não verificar
do da gravação das imagens seja submetido ao eventuais hipóteses alternativas não sus-
contraditório, pelas partes e na presença do jul- citadas pela defesa?
gador. Nesse ponto, tem-se algo semelhante ao
que ocorre na prova testemunha: uma pessoa GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ "O tema do
que viu algo e registrou em sua memória depois standard de prova é fundamental para dar efe-
terá que prestar o seu depoimento verbalmente, tividade ao modelo de epistemologia judiciária.
narrando, em contraditório, o conteúdo daqui- Para que juízo de fato seja realizado segundo
lo que se recorda, e será submetida a perguntas padrões racionais e intersubjetivamente con-
e reperguntas. O que a prova em vídeo registra trolável, é necessária a existência de standards
também deverá fazer parte do debate em juízo. de prova bem estabelecidos, definindo em que
Não basta que o juiz solitariamente em seu gabi- nível de suporte probatório o juiz poderá con-
nete assista o vídeo; as partes têm o direito de, siderar que um enunciado fático está suficien-
previamente à sentença, submeter o conteúdo temente demonstrado. Sem isso, a decisão judi-
do vídeo ao contraditório. Diferentemente, na cial continuará sendo algo como um “momento
segunda vertente, a prova em vídeo poderá ser- místico” do julgador, puramente subjetivo e in-
vir como “metaprova”, isto é, como um meio de controlável. No final das contas, sem um bom
prova que tem por objeto outro meio de prova, standard de prova, a presunção de inocência
visando demonstrar a autenticidade, integrida- não passará de uma folha de papel molhado.
de e fiabilidade do meio de prova principal. O Ela garante que, na dúvida, ninguém será con-
tema mereceu uma profunda e excelente aná- denado. Mas, não havendo um critério contro-
lise no livro de Daniel de Resende Salgado, “A lável do antônimo da dúvida, isto é, de em que
metaprova no processo penal”, que acaba de ser condições uma proposição será considerada
lançado. Será o caso, por exemplo, da utilização verdadeira, não há como controlar o respeito

6
GUEDES, Clarissa Diniz. Prova em vídeo no processo penal: aportes epistemológicos. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023, p. 28.
7
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
8
IBIDEM, p. 257.
9
FERRER BELTRÁN, Jordí. Prova sem convicção: Standards de prova e devido processo. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 216.

28
Entrevista: Múltiplos Olhares

ou a vulneração da presunção de inocência. Nos tista” que fica tentando falsificar a hipótese por
últimos anos, o tema dos standards de prova re- ele formulada. A criação de hipóteses alterna-
cebeu uma grande atenção da doutrina. Merece tivas, mentalmente, pelo próprio cientista, é
todos os elogios o excepcional trabalho de Jordi uma questão de método. Não tem outrem para
Ferrer Beltrán e de toda “Escola de Girona”, na o fazer. Já no caso do processo, não é necessá-
busca por um modelo racional de valoração da rio que a mesma pessoa que decide faça pre-
prova e de decisão pelo juiz. No ponto indaga- dições e formule as hipóteses alternativas para
do, a divergência é quanto ao segundo fator do submeter a teste, mediante indução eliminativa,
standard de prova necessário para a condena- a hipótese acusatória. Isso ocorre naturalmen-
ção. Considero que a hipótese fática defensiva te, existindo a defesa para contra-argumentar
(ou favorável ao acusado) que deverá ser consi- e formular uma tese defensiva alternativa. Por
derada, em confronto com a hipótese acusató- fim, gostaria de terminar essa entrevista com
ria, é uma hipótese concretamente formulada. algo pessoal e que poderá servir de estímulo
Não basta que seja puramente conjectural, ain- para quem nos lê, especialmente os jovens aca-
da que plausível, ou uma eventualidade remota, dêmicos. Para quem escreve um livro, é motivo
abstratamente formulável, mas cuja efetiva re- de grande honra ser citado por outros autores,
alização não tenha sequer sido alegada. Diver- ainda mais quando se trata de uma referência
samente, Ferrer Beltrán é mais exigente quanto mundial na matéria, como é Ferrer Beltrán. Mas,
à hipótese alternativa a ser refutada: devem ter por incrível que pareça, muito mais me orgulha
sido afastadas todas as hipóte- quando minha posição é citada
ses plausíveis compatíveis com para ser contrariada por outrem.
a inocência, tenham ou não Explico: quando um autor, da
sido alegadas pela defesa. Para
No final das contas, qualidade de Ferrer Beltrán, dá-
mim, é necessário que seja uma sem um bom standard -se ao trabalho de expor a minha
hipótese sobre fatos concretos, de prova, a presunção posição e debater academica-
efetivamente suscitados pela mente seus fundamentos, pro-
de inocência não
defesa, ou mesmo que tenham curando demonstrar por que não
surgido ao longo do processo passará de uma folha se lhe afigura correta, demonstra
(v.g., a partir da narrativa de al- de papel molhado. que meu trabalho foi efetivamen-
gumas testemunhas ou segun- Ela garante que, na te lido e, mais do que isso, mere-
do um documento juntado nos ceu atenta consideração, sendo
autos), e debatida em contra-
dúvida, ninguém será submetido à meditação crítica
ditório, sendo apta a fornecer condenado. pelo outro Professor que, embo-
uma explicação dos fatos ocor- ra divergindo, considerou minha
ridos. Com isso, evita-se que o posição suficientemente forte ou
juiz tenha que ser um criador de hipóteses, fa- relevante, ao ponto de merecer resposta e re-
zendo infindáveis elucubrações, sobre tudo que futação necessária para justificar o porquê sua
poderia ter ocorrido para justificar aquele dado posição é mais acertada que a minha. Para quem
probatório. Ferrer Beltrán considera que isso se preocupa com o desenvolvimento da ciência,
seria necessário porque não haveria uma dife- o debate e o confronto entre tese e antítese é
rença entre o raciocínio probatório do juiz e o tudo o que se faz necessário para sua contínua
dos cientistas em geral. Assim como estes, o juiz evolução, na busca de uma síntese de melhor
também deve revisar o processo de corrobora- qualidade. Mais importante do que ser citado é
ção ou confirmação da hipótese, e a sobrevivên- ser objeto da sempre respeitosa crítica acadê-
cia ou não de hipóteses alternativas que expli- mica, séria e qualificada."
quem os mesmos fatos. Divirjo por considerar
que são atividades desenvolvidas em cenários
distintos. No processo penal há uma parte con-
trária a desafiar concretamente a versão acusa-
tória, seja simplesmente negando-a, seja formu-
lando concretamente hipóteses alternativas. Já
no campo das ciências em geral, o cientista não
trabalha no laboratório com um “contra-cien-

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O QUE REVERBEROU NAS REDES SOCIAIS

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