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Reconhecimento facial
automático para fins
de persecução penal:
entre o visível e o
oculto - Giulia Alves
Fardim P. 22
Para se associar e receber as edições físicas do Boletim Trincheira Democrática é preciso ser
professor e/ou possuir artigo científico publicado na área das ciências criminais. Participe:
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O Instituto Baiano de Direito Processual Penal é uma associação civil sem fins econômicos que
tem entre as finalidades defender o respeito incondicional aos princípios, direitos e garantias
fundamentais que estruturam a Constituição Federal. O IBADPP promove o debate científico sobre o
Direito Processual Penal por meio de publicações, cursos, debates, seminários, etc., que tenham
o fenômeno criminal como tema básico.
Indicações da Edição:
O livro “O problema de provar”, A série “Olhos que condenam”, O podcast “Prove sua inocência”
de Marina Gascón Abellán criada por Ava DuVernay (disponível no Spotify)
SUMÁRIO
13 LIRISMOS INSURGENTES
ARTIGOS
14 “VOU APRENDER A LER PRA ENSINAR MEUS CAMARADAS”: AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA, EDUCAÇÃO JURÍDICA
POPULAR E PROGRAMA CORRA PRO ABRAÇO
22 RECONHECIMENTO FACIAL AUTOMÁTICO PARA FINS DE PERSECUÇÃO PENAL: ENTRE O VISÍVEL E O OCULTO
30 WALKIE-TALKIE
Pont
Coluna
e
.CONTRAPONTO Por Rômulo de Andrade Moreira
A decisão de pronúncia e o
princípio do in dubio pro reo
O ministro Gilmar Mendes, em decisão pro- Justiça não tem amparo constitucional
ferida nos autos do Habeas Corpus n.º 227.328, ou legal e acarreta o desvirtuamento
impetrado pela Defensoria Pública do Paraná, das premissas racionais de valoração da
prova, afirmou, ressaltando que a im-
restabeleceu sentença de impronúncia que não
pronúncia não impede o oferecimento
constatou indícios suficientes de autoria para de nova denúncia, se surgirem novas
submeter ao Tribunal do Júri um homem acusado provas. (BRASIL, 2023)
de homicídio.
O juízo singular havia decidido pela impro- Correto o pronunciamento judicial do mi-
núncia do réu, ao verificar que a denúncia do Mi- nistro Gilmar Mendes, pois, efetivamente, não se
nistério Público paranaense estava amparada ape- pode admitir decisão, ainda que se trate de pro-
nas em depoimentos de testemunhas que “ouviram núncia, com base apenas no chamado testemunho
falar” que o acusado teria sido o autor do crime. indireto, muito menos invocar, como fundamento,
Houve recurso de apelação interposto pelo o princípio do in dubio pro societate.
Ministério Público, julgado procedente pelo Tri- Sobre a prova indireta (as chamadas teste-
bunal de Justiça do Paraná, determinando-se munhas de auditu), Aury Lopes Jr. afirma que:
que o acusado fosse submetido ao Tribunal do
Júri, sob o argumento de que, nessa fase pro- A testemunha narra hoje um fato pre-
cessual, prevalece o princípio do qual a dúvida, senciado no passado, a partir da memó-
ria (com todo peso de contaminação e
ainda que mínima, deve se resolver em favor da
fantasia que isso acarreta), numa narra-
sociedade, acórdão que foi confirmado pelo Su- tiva retrospectiva. A atividade do juiz é
perior Tribunal de Justiça. recognitiva (conhece através do conhe-
A Defensoria Pública, então, impetrou habe- cimento de outro) e o papel da testemu-
as corpus perante o Supremo Tribunal Federal, en- nha é o de narrador da historicidade do
fatizando que as testemunhas arroladas pelo Mi- crime. Não existe função prospectiva le-
gítima no testemunho, pois seu olhar só
nistério Público não haviam presenciado o crime.
está autorizado quando voltado ao pas-
Ao conceder a ordem, o ministro Gilmar Mendes sado. Daí por que não cabe à testemu-
verificou que a impronúncia apontara a ausência nha um papel de vidente, nem exercícios
de outros elementos de prova que pudessem ca- de futurologia. Nesse contexto, o cha-
racterizar indícios suficientes de autoria do crime, mado hearsay testimony é a testemunha
além de o “ouvir falar” de terceiros. Ademais, des- do 'ouvi dizer', ou seja, aquela pessoa que
não viu ou presenciou o fato e tampou-
tacou que, no processo penal, a dúvida sempre se
co teve contato direto com o que estava
resolve em favor do réu, e não da sociedade: ocorrendo, senão que sabe através de
alguém, por ter ouvido alguém narrando
O suposto princípio invocado pelo Mi- ou contando o fato. No nosso sistema,
nistério Público local e pelo Tribunal de esse tipo de depoimento não é proibido,
7
Coluna: Ponto e Contraponto
8
Coluna: Ponto e Contraponto
grante violação da regra constitucional BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus n.º
de presunção de inocência.
227.328/PR. Relator Ministro Gilmar Mendes, j. 10/05/2023.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio
Assim, concluímos que para uma decisão de Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no
pronúncia não se pode admitir, tão-somente, a Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
prova indireta, mas indícios suficientes da autoria; LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal.
tampouco, invocar que a dúvida favorece a socie- Salvador: Juspodivm, 2016.
dade ou a acusação, afastando o princípio segundo LOPES JR., Aury. Testemunho ´hearsay` não é prova ilícita,
o qual a dúvida deve sempre beneficiar o acusado. mas deve ser evitada. Disponível em: <http://www.conjur.
com.br/2015-out-30/limite-penal-testemunho-hearsay-
nao-prova-ilicita-evitada2"http://www.conjur.com.
REFERÊNCIAS
br/2015-out-30/limite-penal-testemunho-hearsay-nao-
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no prova-ilicita-evitada2>. Acesso em: 16 jul. 2016.
processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
Respiro
9
Coluna
ELAS
NO FRONT
Sobre a aptidão epistêmica do vídeo:
narrativas audiovisuais e interpretação indireta pelos tribu
Por Clarissa Diniz Guedes
Tema pouco explorado na atualidade diz um viés de perspectiva típico das body-worn
respeito à aptidão epistêmica da prova em ví- cameras (BIRCK, p. 169).1
deo. O cérebro humano capta a imagem de for- Jéssica Silbey (2008, p. 34) lembra que o vídeo
ma muito mais eficiente que o texto (MEDINA, revela sempre “mais de uma história e menos que
2008, p. 222); logo, o impacto emocional produ- toda a história”. A autora reflete sobre a utilidade de
zido pelo vídeo induz o observador a acreditar adoção, no âmbito probatório judicial, de algumas
que as cenas nele contidas correspondem ob- técnicas e conhecimentos cinematográficos (SILBEY,
jetivamente à realidade. Ainda assim, pouco se 2004). Sugere que alguns recursos utilizados na ficção
tem dito sobre a prova em vídeo no processo – tais como foco, luz, posição do cinegrafista, pers-
penal brasileiro. pectiva da câmera, movimento, nitidez ou opacidade
Um beijo cinematográfico. Uma cena de – influem também na interpretação das filmagens de
um motociclista perseguindo uma mulher que, eventos criminosos. As imagens invocam, no espec-
horas depois, é encontrada morta num gueto tador, uma sensação de realidade intensa, indepen-
próximo dali. Uma imagem trêmula, captada por dentemente da qualidade do vídeo. Por vezes, o fato
câmera acoplada ao uniforme policial, de um de a imagem estar embaçada ou distante, de o ângulo
homem que gesticula, aproxima-se rapidamente da câmera ser distinto da perspectiva que qualquer
e retira um objeto do bolso. Esta cena, filmada ser humano poderia enxergar (por exemplo, se uma
em movimento, termina com o homem alvejado câmera é situada no teto), reforça, no intérprete, a
com um tiro na perna. impressão de estar diante do fato em si, porque a rea-
O que essas filmagens têm em comum? lidade é sempre menos elaborada que a ficção.
Não é possível apreender toda a realidade, em
riqueza de detalhes. A beldade que beija o galã 1
Explica a autora: “A perspectiva do oficial, conforme mos-
está de pé sobre uma banqueta, de modo a pa- trada pela filmagem da câmera corporal, é severamente li-
recer mais alta do que realmente é; as circuns- mitada tanto em alcance quanto em direção. O vídeo não
tâncias da morte da mulher não foram captadas consegue captar todos os detalhes de uma situação, tais
na integralidade, mas é possível que outras câ- como movimentos periféricos ou o que o policial está fa-
zendo com as mãos abaixo da visão da câmera. Além disso,
meras de segurança tenham registrado a sequ-
a câmera pode parecer imparcial, mas o posicionamento
ência da perseguição ou, mesmo, o momento e a perspectiva da câmera podem enquadrar como o es-
exato do crime; a aparente agressão ao policial pectador analisa o vídeo sem que o espectador perceba o
pode ser explicada pela sensação causada por impacto da perspectiva.”
10
Coluna: Elas no front
Entre nós, Paula Ramos (2023, p. 41-53 e passim) Ora, se o vídeo é o registro principal de um
considera superada a dicotomia clássica entre a pro- fato incriminador – ou de fatos circunstanciais –,
va documental indireta (geralmente consubstanciada e se não há referência direta dos julgadores às ce-
em narrativas escritas) e direta (categoria em que se nas das filmagens, na condição de espectadores,
inserem as fotografias, áudios e, também, os vídeos), elevam-se consideravelmente os riscos de sobre-
por reputar ilusória a ideia de objetividade destes. valorização desta prova para fins incriminatórios e,
Alerta para a necessidade de se distinguir entre o ob- com isso, também os riscos de falsas condenações.
jeto e suas formas de representação, pois estas nunca Desse modo, o avanço das tecnologias de
prescindem do intérprete (2023, p. 153 e s.). captação de sons e imagens que, em tese, pode-
Por outro lado, os tribunais brasileiros enxer- riam gerar elementos probatórios extremamente
gam no vídeo uma aura de infalibilidade dificilmente relevantes à persecução criminal, fica comprometi-
afastada. Em recente pesquisa de pós-doutoramen- do pela falta de consciência de que, como qualquer
to2, analisamos o conteúdo de acórdãos criminais documento ou registro, as narrativas audiovisuais
proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado de São não refletem a realidade objetiva e integral.
Paulo (TJSP) nos quais o vídeo foi identificado como Em síntese, enquanto a literatura sobre o
elemento probatório, e constatamos ser de 88% o tema demonstra que o conteúdo do vídeo reflete,
percentual de decisões desfavoráveis ao réu (con- afinal, visão do cinegrafista, os tribunais parecem
denações, HCs denegados, pronúncias e revisões não se dar conta da natureza narrativa dos docu-
criminais indeferidas)3. A análise do mesmo universo mentos audiovisuais, limitando-se a acolher, de
de acórdãos também permitiu concluir que, em 84% forma automática, a interpretação trazida por ou-
dos casos, o vídeo foi tido como fundamento princi- tras fontes de prova.
pal da decisão, por ser o elemento probatório mais
enfatizado – e, por vezes, o único – na fundamenta-
REFERÊNCIAS
ção (GUEDES, 2023, p. 58-59).
Paradoxalmente, constatou-se, em confirma- BIRCK, Morgan A. Do You See What I See: Problems with
ção a pesquisas anteriores, que, em 74,4% dos acór- Juror Bias in Viewing Body-Camera Video Evidence.
dãos examinados, os desembargadores analisam e Michigan Journal of Race & Law, vol. 24, n. 1, Fall 2018, p. 153-
valoram o conteúdo do vídeo amparando-se, ex- 176. HeinOnline.
clusivamente, na narrativa de terceiros (RICCIO et. GUEDES, Clarissa Diniz; FARDIM, Giulia Alves. O testemunho
al. 2016, RICCIO; GUEDES, 2022, GUEDES; FARDIM, indireto sobre conteúdo de vídeo como prova penal: análise
2021). Ou seja, há um alto índice de julgados em que o qualitativa de acórdãos do Tribunal de Justiça de Minas
vídeo é referido – no relatório ou na fundamentação Gerais. In: 11º Congresso internacional de ciências criminais
– a partir do relato de outras fontes de prova, tais da PUC-RS, 2021, Porto Alegre. Congresso internacional de
como testemunhas (com destaque para as testemu- ciências criminais (11: 2020: Porto Alegre, RS). Anais [recurso
nhas policiais), as vítimas, documentos (fotografias eletrônico]: jurisdição constitucional e reformas penais em
de determinadas cenas – frames – do vídeo) e laudos tempos de pandemia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2021, v. 1. p.
periciais (minoritariamente) (GUEDES, 2023, p. 69). 2-17. Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/. Acesso
em: 20 abr. 2023.
2
Realizada na Universidade de São Paulo sob a supervisão GUEDES, Clarissa Diniz. Prova em vídeo no processo penal:
do Professor Gustavo Badaró. aportes epistemológicos. Madrid/Buenos Aires/São Paulo:
3
Foram analisados todos os acórdãos que continham as pa- Marcial Pons, 2023.
lavras “vídeo” e “prova”, proferidos pelo TJSP durante o mês PAULA RAMOS, Vitor de. Prova documental. Do documento
de maio de 2021, resultando num universo de 126 acórdãos aos documentos. Do suporte à informação. 3ª ed. Salvador:
em que o vídeo constitui elemento probatório tendente
Jus Podivm, 2023.
a demonstrar o crime ou as circunstâncias do crime. A
amostragem por curto período de tempo é justificada pela RICCIO, Vicente; GUEDES, Clarissa Diniz. Legal culture and
preexistência de pesquisas anteriores, realizadas no âmbi- image in the Brazilian courts. Oñati Social-Legal Series, OSLS
to do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação First Online, jan.-2022. Disponível em: <https://opo.iisj.net/
da Universidade Federal de Juiz de Fora, em projeto que index.php/osls/issue/view/113>. Acesso em: 10 mai. 2023.
chegou a analisar um espectro temporal de 10 anos (2006- RICCIO, Vicente; SILVA, Beronalda Messias da; GUEDES,
2016), relativamente a três tribunais (TJSP, TJMG e TJRJ) (v.
Clarissa Diniz; MATTOS, Rogério Silva de. A utilização
p. ex. RICCIO et. al. 2016, RICCIO; GUEDES, 2022, GUEDES;
FARDIM, 2021). A intenção da pesquisa era verificar se os da prova em vídeo nas cortes brasileiras: um estudo
resultados anteriores seriam replicados na atualidade, o exploratório a partir das decisões criminais dos tribunais
que, em grande medida, foi confirmado. de justiça de Minas Gerais e São Paulo. Revista brasileira
11
Coluna: Elas no front
de ciências criminais, v.118, ano 24, p. 273-298, São Paulo: iss1/4>. Acesso em: mai. 2023.
RT, Jan-Fev/ 2016. SILBEY, Jessica. Judges as Film Critics: New Approaches to
SILBEY, Jessica. Cross-examining film. Race, religion Filmic Evidence. University of Michigan Journal of Law
gender & class 17, v. 8, 2008, p. 17-46. Disponível em Reform, v. 37, n. 2, Winter 2004, p. 493-572. HeinOnline.
<http://digitalcommons.law.umaryland.edu/rrgc/vol8/ MEDINA, J. Brain Rules. Pear Press: Seatle, 2008.
IBADPP REALIZA
12
Lirismos Insurgentes
onde nada se vê
haverá a semente
da força do porvir o click é o caos
germinada
a elidir barreiras e afoita a foto afirma
alcançar latentes ter múltiplas portas
liberdades entradas sem saídas
multidão
nas curvaturas das sombras inventadas verdades no
a fotografia seduz fluxo do inaugural desvio
convite de labirínticos infinitos
sem fio nem guia todas imagens
espreita do precipício em um catastrófico vórtice
às avessas
toda pessoa humano mistério deteriorado
é veneração nebulosa a no vago brilho da ilusão
percorrer incosciente em lampejos
eviscerados onde camufla-se o breu
o desejo fervilhado d'entremeios outra supernova assolará
impulsos próprios do ser o medo de existir
impróprio imo frustrado o escopo do niilismo
tão sufocado por a chave é viver
retrógrados cerceios
Ivã Coelho
Advogado de formação, encontrou na fotografia uma forma de expressão e experimentação
artísticas, como meio de entender o mundo sustentado por imagens. Com formação de base
autodidata, investiu mais nos estudos sobre o pensar fotográfico, seus usos e possibilidades
criativas que em cursos técnicos. Alicerça seus trabalhos em questões diuturnas através de
diálogos com as vertentes visuais contemporâneas e com as artes literárias e filosóficas.
13
Artigos
O chão que pisamos diz muito acerca das enquanto porta de entrada do sistema prisional, o
nossas narrativas e é por isso que não há como reflete. Reflete o modo como, de maneira majori-
abrir esse trabalho sem escurecer o lugar do qual tária, tem se organizado o sistema carcerário bra-
eu falo. Antes de ser advogada, formação que me sileiro. Homens pretos e jovens. Pouca instrução
propiciou desempenhar a função de educadora ju- formal. Oriundos de bairros periféricos. Tráfico e
rídica no Programa Corra pro Abraço nos anos de crimes contra o patrimônio lideram nos Autos de
2021 e 2022, eu sou uma mulher negra, primeira Prisão em Flagrante. Do lado de fora, mas exten-
de toda uma geração com formação superior, mas sivamente penalizadas, companheiras aflitas, ma-
que, primeiramente, recebeu régua e compasso ternidades ultrajadas (ROCHA, 2017).
de ascendentes formalmente analfabetos e/ou Fazendo um gesto como quem devolve algo
semianalfabetos, embora detentores de conheci- para o ventre, num dos últimos atendimentos que
mentos que jargões jurídicos e discursos acadêmi- realizei enquanto educadora jurídica, uma mãe que
cos jamais dariam conta de traduzir. já havia perdido um filho para a guerra às drogas e
É minha trajetória que direciona a minha aguardava o caçula passar pela audiência de cus-
formação, ancorada nas experiências de educação tódia, me disse que gostaria de poder devolvê-los
popular em comunidades tradicionais e ocupa- para a barriga, e, assim protegê-los. Emudeci. “É no
ções urbanas, e é também ela que conduz a minha lombo das pretas”, já dizia Ana Flauzina (2016), para
atuação profissional, destinatários e abordagens escurecer que o Estado conta com as mulheres
utilizadas, visto que, sendo a minha formação um para a “viabilização do encarceramento masculino”.
ineditismo no âmbito familiar consanguíneo e ex- Isso porque, dentre outras responsabilida-
ceção no âmbito familiar comunitário, seria uma des, é sobre elas que, em caso de cárcere, recai o
incoerência utilizar nas trincheiras uma lingua- sustento da família e, subsidiariamente ao Estado,
gem que os meus pares não compreendessem. do apenado, além de outras atividades relacionadas
Em “A ordem do discurso” (1996), Michael ao acompanhamento judicial dos casos. Essa últi-
Foucault chama atenção para o fato de as palavras ma se inicia logo após a prisão em flagrante, através
terem uma função que vai além da comunicação, da busca por notícias, acionamento da Defensoria
mas podem representar poder social, exercendo Pública ou advogado, apresentação de documentos
controle, limitando e validando regras. Partindo que possam contribuir com a construção da defe-
desse pressuposto, pode-se dizer que discursos sa. É nesse momento, quase sempre marcado pelo
são capazes de organizar a sociedade, controlan- desespero, desinformação e violências perpetradas
do-a; controle esse exercido por uma pequena pelas agências repressivas, que a presença de pro-
parcela que os domina, gerando sistemas de ex- fissionais compromissados com a educação jurídica
clusão para os demais. popular assume um papel de suma importância.
O arcaico e rebuscado linguajar jurídico Em funcionamento desde julho de 2013, e
obedece a essa lógica de poder-exclusão, uma vez com o objetivo de promover cidadania e garantir
que sua compreensão é inacessível a boa parte dos direitos de pessoas que fazem uso abusivo de dro-
cidadãos leigos e/ou com pouca instrução formal gas em contextos de vulnerabilidade, ou afetadas
(OLIVEIRA; SANTOS, 2021). Tradição essa que, ao por problemas relacionados a criminalização das
tornar inviável aos cidadãos o conhecimento e a drogas na cidade de Salvador, o Programa Cor-
compreensão acerca de seus direitos, afronta o ra pro Abraço passou a atuar também na Vara de
princípio constitucional contido no art. 5º, XXXV, Audiência de Custódia, em 2016. Com uma equipe
visto que a ideia de acesso à justiça ultrapassa o multiprofissional composta também por psicóloga
alcance a instituições estatais, ensejando o acesso e assistente social, o programa conta com a figu-
a uma ordem jurídica justa (GRINOVER, 1996). ra do educador jurídico, cujas funções envolvem,
A Vara de Audiência de Custódia de Salvador, além de consultas e acompanhamentos proces-
14
Artigos
suais, o estabelecimento de diálogo com o siste- momento da audiência de custódia, visto que há
ma de justiça, e, sobretudo, o desenvolvimento de a continuidade no acompanhamento, no cárcere
ações de educação jurídica. ou em liberdade, há articulação e parceria com
Reputo que, para além do afeto que ante- instituições, a exemplo daquelas ligadas à saúde,
cede e entremeia os atendimentos e é visível na à educação e ao desenvolvimento social, visto que
oferta do copo com água, no convite para se sen- o fenômeno do aprisionamento em massa, com o
tar um pouco, no oferecimento do biscoito com qual o país convive, não pode ser analisado, tam-
suco àqueles que estiveram ali, em jejum desde à pouco enfrentado, desapartado do enfrentamento
noite, no braço que acolhe quando o outro corpo a outras mazelas sociais.
perde a força, no olho que mareja junto, na palavra A educação jurídica popular assume a pers-
da tentativa de conforto, no silêncio, no abraço... pectiva da emancipação, ao passo que, através
o maior recurso de cuidado utilizado pelo educa- da informação acessível, propicia aos cidadãos a
dor jurídico, na Vara de Audiência de Custódia, é compreensão sobre os direitos que possuem, onde
a informação. acessá-los e o que fazer para garanti-los. Quando
A identificação do familiar na pauta do dia se democratiza conhecimentos jurídicos, históri-
para aqueles que, cotidianamente, assistem ao ca e propositalmente enclausurados em palavras
assassínio de seus pares é motivo de alívio. A incompreensíveis e jargões em latim, há a descon-
conversa, de modo acessível, sobre o que é uma centração de um poder utilizado como forma de
audiência de custódia, para que serve e quais as subjugação e manutenção de assimetrias.
possibilidades de desfecho; a fala sobre a Defen-
soria Pública enquanto um direito daquelas pes-
REFERÊNCIAS
soas que não possuem condições de arcar com os
custos de um advogado; as dúvidas tiradas, quan- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
tas vezes forem necessárias, para, em seguida, a Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
equipe passar a acompanhar as audiências, inter- constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: mai. 2023.
vindo quando solicitada. FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. O feminicídio e os embates
Terminada a audiência, cada desfecho uma das trincheiras feministas. Discursos Sediciosos (Rio De Ja-
orientação. Muitas vezes, e pelas razões já aqui le- neiro), v. 23/24, 2016, p. 95-106.
vantadas, o flagranteado deixa a audiência de cus- FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. v. 3. Edições
tódia sem compreender o procedimento ao qual Loyola: São Paulo, 1996.
foi submetido e, não raro, acredita que o fato de GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de
estar saindo em liberdade provisória significa que Janeiro: Forense Universitária, 1996.
não haverá processo. Nesses casos, há o esclare- MENDES, R; CAPINAM, J. C. Yá Yá Massemba. Intérprete: Ma-
cimento acerca da continuidade do processo, da ria Bethânia. In: Brasileirinho. [S.I]: Biscoito Fino, 2003.
importância de comparecer aos atos processuais, OLIVEIRA, Bianca Fiamengui de; SANTOS, Sandra Regina
bem como do cumprimento das medidas cautela- Vieira dos. A linguagem jurídica como obstáculo na co-
res quase sempre impostas em situações de liber- municação entre pessoas comuns e a concretização do
dade provisória. acesso à justiça. REGRAD, UNIVEM/Marília-SP, v. 14, n. 1,
Por outro lado, em situações em que o fla- novembro de 2021, p. 109-123.
granteado “desce”, ou seja, tem a prisão em fla- ROCHA, Luciane de Oliveira. Morte Íntima: A gramática do
grante convertida em prisão preventiva, há a genocídio antinegro na Baixada Fluminense. In: FLAUZINA,
compreensão de que já se trata de uma senten- Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João H. C. (organizadores). Mo-
ça, gerando desespero, sobretudo nos familiares. tim: Horizontes do genocídio antinegro na Diáspora. Brasília:
Nessas situações, é elucidado que não se trata de Brado Negro, 2017, p 37-66.
uma decisão definitiva, além de passadas as infor-
mações do itinerário institucional que o custo- DAIANE RIBEIRO
diado percorrerá até chegar à unidade prisional,
prazos estimados, procedimentos relacionados à Mulher negra. Advogada. Edu-
documentação necessária à visitação e contatos cadora Jurídica. Possui Mes-
de instituições indispensáveis ao acompanhamen- trado em Direito Público e
to processual, a exemplo da Defensoria Pública. Graduação pela UFBA.
Para além da educação popular relaciona-
da a aspectos jurídicos e que não se encerram no
15
Artigos
A tradição não é adoração às cinzas, é manu- que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar,
tenção do fogo – Gustav Mahler manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo
[...]”. Isso significa dizer que quem estiver portando,
É comum que, com o passar do tempo, algu- ou quem soltar espadas, legalmente falando, está
mas culturas, entendimentos e manifestações se- sujeito às mesmas implicações de quem estiver na
jam revistas. Evoluímos como sociedade e chega- posse ilegal de uma arma de fogo, por exemplo.
mos a um momento político e social em que atos Tentando contornar tal legislação, que ba-
são abomináveis e inaceitáveis. Entretanto, não seou a proibição da prática, houve a tentativa de
raras vezes o “inadmissível” é pautado de forma alguns Municípios de regular a queima de espa-
fria e sem levar em consideração a cultura de um das. Senhor do Bonfim, v. g., chegou a promulgar
povo e a liberdade de seus indivíduos. a Lei n.º 1.400/2017, publicada no Diário Oficial do
Neste breve artigo, será abordado o viés po- Município do dia 12 de junho, ou seja, às vésperas
lítico criminal de um tema culturalmente tão rico e dos festejos juninos, que assegurava a guerra das
que permeia diversas obras de literatura popular, espadas e constituía a prática como patrimônio
em especial, a literatura baiana: a queima/guerra cultural e imaterial de Senhor do Bonfim.
de espadas. Para quem desconhece, a “espada” é Não foi suficiente. Em poucos dias, a Justiça
um artefato feito, na grande maioria das vezes, de Estadual, provocada pelo Ministério Público, de-
bambus, pólvora, limalha de ferro, barro e cordão clarou a inconstitucionalidade incidental da Lei n.º
de sisal, e a queima desse artefato produz um espe- 1400/2017, por vício formal subjetivo. O entendi-
táculo, inexoravelmente perigoso, de luzes e cores. mento foi ratificado em diversas esferas até che-
E aqui, desde já, é importante trazer à baila gar ao Supremo Tribunal Federal, quando, já no ano
que palavras têm significados e significados não de 2019, o Ministro Luiz Fux decidiu por manter a
podem ser ignorados: ao chamar a queima das proibição à queima das espadas, indeferindo medi-
espadas de “guerra”, passa-se à ideia de algo vio- da de contracautela cujo polo ativo era composto
lento, mortal e cruel. pelo próprio Município de Senhor do Bonfim.
Essa prática – da queima / guerra das es- Apresentados ponto e contraponto, é pre-
padas – é bastante antiga e tradicional em al- ciso fazer algumas ponderações, principalmente
guns Municípios do Estado da Bahia, como Cruz quanto ao enquadramento legal atribuído a quem
das Almas e Senhor do Bonfim, que tratam a pratica a queima das espadas.
prática como sendo imprescindível para o cor- Um dos primeiros ensinamentos transmitidos
tejo junino local, e esse seja, talvez, o principal em um bacharelado em Direito, quando adentra a
motivo para que existam grupos que defendam a seara criminal, é, ou deveria ser, a necessidade de
manutenção da prática. interpretação restritiva do texto legal, bem como da
Em contraponto à manutenção desta cultu- busca por uma interpretação teleológica do mesmo,
ra, vem o Estatuto do Desarmamento, Lei Federal quando não o seja in malam partem.
n.º 10.826/2003, que, em seu artigo 16, § 1º, inciso Dito isso, faz-se necessário tecer algumas per-
III, aduz que quem “Possuir, detiver, fabricar ou guntas, cujas respostas são fundamentais para buscar
empregar artefato explosivo ou incendiário, sem entender a problemática trazida nessas breves linhas.
autorização ou em desacordo com determinação Longe da presunção de convencer alguém, o presen-
legal ou regulamentar”, é passível à pena de 3 a 6 te artigo tem uma finalidade reflexiva, somente.
anos de reclusão, além de multa.
Importante salientar que o caput do próprio Pergunta 01: Quando menciona “artefa-
artigo 16 prevê que nessas mesmas penas incide tos explosivos ou incendiários”, queria o
legislador tratar sobre artefatos utiliza-
quem “Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer,
dos nas festas juninas?
receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda
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Artigos
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Artigos
A pedagogia da magistratura:
a atuação de juízes/as nas varas da infância
e juventude
Por Raphael Varga Scorpião e Lucas Ribeiro Mota
Em um Estado que aspira o patamar de de- fundamental na convivência comunitária. Por tal
mocracia constitucional, qual deve ser a função razão, são fundamentais para a ordem axiológica,
do/a magistrado/a? Qual deve ser a missão cons- político-institucional e humanística, caracterís-
titucional, se não única, a principal, daquele agen- tica tanto de seu progressivo evolver, como pela
te investido em jurisdição? Tal pergunta ganha efetiva realização dos misteres a que se destinam
ainda mais complexidade se estamos pensando e aos quais deve se sujeitar a instância política.
em uma magistratura exercida nas Varas de Infân- É pertinente mencionar que o Estado De-
cia e Juventude. Afinal, qual a obrigação do Juiz ou mocrático de Direito visa, por meio da garantia
Juíza infancista? de direitos, alcançar a plenitude do ser humano,
A fim de responder estes questionamentos ou seja, assegurar, pelas leis, o mínimo necessário
iniciais, é necessário destacar que a efetivação para que alguém explore as suas potencialidades
de um Estado Democrático de Direito pressupõe e desenvolva a sua personalidade, para que possa
que os seus representantes protejam ao máxi- sentir-se inserido e hábil a viver com dignidade.
mo os direitos humanos, sejam eles positivados Partindo do pressuposto de que o direito
no plano interno ou no plano internacional. Ati- se presta a assegurar o ser humano enquanto po-
nente a esse valor máximo a ser protegido e con- tência, o/a magistrado/a deve, acima de qualquer
cretizado, os Tribunais nacionais devem buscar coisa, resguardar, cumprir e fazer cumprir os di-
sempre prestar a tutela jurisdicional, a fim de ga- reitos fundamentais do ser humano.
rantir que as normas protetoras da dignidade da Ocorre que o/a juiz/a, não raro, busca des-
pessoa humana sejam mais do que meras normas cer deste papel e ocupar um outro local: o de pro-
programáticas ou de conteúdo vazio, garantindo fessor/a, ou, ao menos, o que ele/ela acredita ser
a força normativa da Constituição Federal, bem de um/a professor/a. Dotado de um certo senso
como dos Tratados e Convenções de Direitos Hu- de iluminismo, pensa que, nos minutos destina-
manos anuídos pela República Federativa do Bra- dos à audiência de apresentação do adolescente,
sil. Essa medida pode representar uma profunda vai aplicar uma lição que mudará para sempre a
transformação na sociedade brasileira, uma vez vida do adolescente.
que amplia as garantias dos cidadãos tanto frente Importante esclarecer que, também não
ao Estado, como frente aos demais particulares, raro, a motivação do/a julgador/a é nobre. O/a
diante da eficácia horizontal dos direitos huma- magistrado/a, diante de um ato de alta comple-
nos (GUERRA FILHO, 2010, p. 276). xidade e em um cenário desafiador, como estar
Sabe-se que os direitos fundamentais cor- diante de um adolescente em conflito com a lei,
respondem a conquistas do ser humano em face acredita que deve agir para além da aplicação da
do poder, seja Estatal, econômico, político e/ou norma ao caso concreto e à salvaguarda dos di-
ideológico. O constitucionalismo, um dos nasce- reitos fundamentais do jovem. Ao se deparar com
douros dos direitos fundamentais, deu ensejo à a verdadeira expressão do absurdo em sua sala
percepção da necessidade de os direitos funda- de audiência, o/a juiz/a acredita que “educará” o
mentais serem promovidos pelo Estado e contra o adolescente, pensando que, agindo assim, suprirá
mercado e o poder econômico. Constitui, portan- a falta de dois institutos essenciais na formação da
to, patrimônio histórico e cultural construído por personalidade do infante, a família e a escola.
revoluções, insurreições e revoltas. Desta forma, Na esteira do pensamento de Paulo Freire,
tais direitos clamam compreensão e reflexão que a pedagogia nomeada como pedagogia do opri-
reconheçam a sua condição não apenas de cen- mido, que busca a restauração da intersubjetivi-
tralidade jurídica, como também de componente dade, apresenta-se como pedagogia do homem.
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Artigos
Aduz Freire que somente ela, que se anima de RAPHAEL VARGA SCORPIÃO
generosidade autêntica, humanista e não huma-
nitarista, pode alcançar este objetivo. De outra Defensor Público do Estado
forma, a pedagogia que, partindo dos interesses da Bahia. Mestre em Filosofia
egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de do Direito pela PUC-SP. Espe-
falsa generosidade, faz dos oprimidos objeto de cialista pela PUC-MG. Gradu-
seu humanitarismo, mantém e encarna a pró- ado em Direito Pela UNESP.
pria opressão. É instrumento de desumanização
(FREIRE, 2005, p. 56).
A relação entre juiz/a e réu/representado/ LUCAS RIBEIRO MOTA
acusado pode ser considerada uma relação ho-
rizontal? Alguém que está ali “sob vara” está em Advogado. Graduado em Di-
alguma posição de troca? Por óbvio, a resposta é reito pela UNESP. Aprovado no
negativa. Travestido de boas intenções, o sermão, VIII Concurso para Defensor
lição de moral, bronca, chamado, ou qualquer ou- Público do Estado da Bahia.
tro nome que se queira dar, presta-se a um único
papel: gerar no/a julgador/a a sensação de es-
tar contribuindo para alterar a trajetória de um
adolescente e, portanto, de um ser em formação
(como somos todos nós).
Não é tarefa fácil, tampouco confortável, mas
é necessário compreender que o Direito não se
presta a educar, seja porque lhe falta legitimidade
constitucional, seja por absoluta falta de expertise.
É extremamente pretensioso se crer que,
por utilizar traje forense, utilizar linguagem pró-
pria (e por que não anacrônica?) e ter o poder de
obrigar que alguém lhe escute, sob pena de ter
a liberdade suprimida, terá a condição, em uma
conversa, de alterar a trajetória de vida de al-
guém. Um agente estatal que não trilhou a mes-
ma existência, não viveu as mesmas dores, não
sofreu as mesmas privações jamais poderá ser
alguém que “eduque” o outro.
A educação libertária pressupõe um com-
Respiro
promisso verdadeiramente humanista e uma pos-
tura genuinamente atenta ao outro. O que se vê,
cotidianamente, em Varas infancistas, é um ado-
lescente sendo constrangido, uma mãe e um pai
recebendo um olhar julgador e um/a magistra-
do/a se sentindo com a consciência aliviada, afi-
nal, exerceu sua “pedagogia” diária.
REFERÊNCIAS
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Artigos
Inquérito policial:
da inquisitoriedade escrita à oralidade garantista?
Por Anderson Giampaoli e Rafael Marcondes
O inquérito policial, autêntico procedimen- que o CPP veicula, ao delegado de polícia, ouvir ví-
to investigatório criminal do ordenamento brasi- timas em declarações (artigos 6º, IV, e 201), suspei-
leiro (CF, artigo 129, VIII; CPP, artigos 6º a 23; e Lei tos e indiciados em interrogatórios (artigos 6º, V, e
12.830/2013, artigo 2º, § 1º), constitui instrumento 185 a 196) e testemunhas em depoimentos (artigo
do Estado-investigação para a reconstrução fáti- 204), inclusive na audiência policial de apresenta-
ca imparcial, na etapa extrajudicial de um devido ção e garantias do artigo 304 do estatuto de rito
processo penal. criminal (MORAES, 2023, p. 229-251).
Em relação às questões de fato dessa fase A questão que se coloca, tal como se ope-
preliminar, o artigo 6º, III, do Código de Proces- ra com o reconhecimento de pessoas, é a forma
so Penal (CPP), incorpora o princípio da liberdade como se coleta o testemunho, que reflete a visão
probatória ou da livre inclusão (FERRER, 2021, p. tradicional das características do inquérito poli-
113), o que implica a admissibilidade de qualquer cial como suposto procedimento escrito, mantra
razão epistêmica, ainda que sujeita a ulterior con- ecoado há décadas na literatura jurídica, baseado
traditório judicial. no artigo 9º do CPP.
Nos últimos anos, por força dos aportes da Destarte, ambos os meios de prova – reco-
psicologia do testemunho, as provas dependentes nhecimento pessoal e testemunho – exigem que
da memória têm sido objeto de debates, com des- os atores do sistema de justiça saibam como fun-
taque para a mudança de abordagem do instituto ciona a memória humana, mormente as variáveis
do reconhecimento de pessoas (GIAMPAOLI; MO- a estimar e as sistêmicas, o impacto das falsas
RAES, 2022, p. 13-15). memórias na recuperação de informações codi-
Conquanto não se olvide da importância de ficadas, a interferência dos vieses cognitivos, em
outros meios de prova, o testemunho continua especial do viés de confirmação e da consequente
sendo suporte probatório central no julgamen- visão de túnel das agências de controle do fenô-
to de casos penais (GESU, 2014, p. 93), espaço de meno criminal, além das orientações prestadas
poder que denota verdadeiro reino das provas àquele que é chamado para auxiliar na reconstru-
dependentes da memória (IDDD, 2022, p. 6), cuja ção dos eventos de interesse penal.
pretensa repetibilidade tem sido cada vez mais Além dos pontos consignados, a ênfase à ne-
discutida diante dos contributos científicos ex- cessidade da gravação dos atos orais desponta como
trajurídicos, de modo a lançar sérias ponderações providência premente, já indicada para o reconhe-
acerca do critério de classificação distintiva entre cimento de pessoas na sobretida Resolução do CNJ
provas e elementos informativos (CECCONELLO; (artigo 5º, § 1º), e que viabiliza melhor análise da pro-
AVILA; STEIN, 2018, p. 1057-1073). dução da prova penal dependente da memória.
A despeito dos avanços jurisprudenciais, A gravação audiovisual consubstancia rele-
doutrinários e normativos, notadamente com o vante recurso epistêmico a ser utilizado sempre
advento da Resolução 484/2022, do Conselho Na- que possível para maior fidelidade das informações
cional de Justiça (CNJ), que estabelece diretrizes ao coligidas e está de acordo com o CPP (artigo 405,
reconhecimento de pessoas e passa a considerá- § 1º) e outras previsões legais, como na inquirição
-lo prova irrepetível (artigo 2º, § 1º), acompanhan- de vítimas e testemunhas de violência doméstica
do orientação do Superior Tribunal de Justiça (HC (Lei 11.340/2006, artigo 10-A, § 2º, III), no registro
712.781/SC, 6ª T., Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. da colaboração premiada (Lei 12.850/2013, artigo
15/03/2022, DJe 22/03/2022), há ainda muito que 4º, § 13) e na oitiva de crianças e adolescentes víti-
se evoluir quanto ao testemunho em geral. mas ou testemunhas de violência (Lei 13.431/2017,
Adota-se o vocábulo testemunho, mais am- artigo 12, VI). Trata-se de medida já implantada em
plo e comum na psicologia cognitiva, como gênero subsistemas de polícia judiciária, como na Polícia
abrangente de todas as oitivas oficiais, sem olvidar Civil de Santa Catarina (Resolução 11/2018), a ser
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Artigos
somada às iniciativas de capacitação sobre provas CECCONELLO, William Weber; STEIN, Lilian Milnitsky (Co-
dependentes da memória dos profissionais atuan- ord.). Manual de entrevista investigativa para a Polícia Civil.
tes na investigação criminal (MATIDA, 2023). Passo Fundo-RS: Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cog-
Outrossim, pesquisas da psicologia cogniti- nição e Justiça (CogJus), 2022.
va têm evidenciado que o emprego da gravação e FERRER-BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova. Salva-
de protocolos como o PEACE (Planning and Pre- dor: JusPodivm, 2021.
paration; Engage and Explain; Account; Closure e GESU, Cristina di. Prova penal e falsas memórias. Porto Ale-
Evaluation) são imprescindíveis para aqueles que gre: Livraria do Advogado, 2014.
almejam reduzir erros do sistema de justiça, evi- GIAMPAOLI, Anderson Pires; MORAES, Rafael Francisco Mar-
tar prisões e condenações de inocentes e obter condes de. Reconhecimento de pessoas: por um olhar para o
informações confiáveis de vítimas, testemunhas chão de fábrica. Boletim Trincheira Democrática, Salvador,
e investigados (CECCONELLO; STEIN, 2022, p. 7; ano 5, n. 21, Junho/2022, p. 13-15.
MOSCATELLI, 2020, p. 384). IDDD – INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. Prova
Verifica-se, por tudo, a suplantação do adá- sob suspeita. Reconhecimento de pessoas e prova testemunhal:
gio que rotula o inquérito policial como escrito, orientações para o sistema de justiça. São Paulo: IDDD, 2022.
para que passe a ser considerado um procedimen- MATIDA, Janaína. O reconhecimento de pessoas epistemica-
to jurídico-administrativo preferencialmente oral, mente confiável chega à ACADEPOL/SP. Migalhas, Ribeirão
consentâneo com uma investigação epistemica- Preto, 24 abr. 2023. Disponível em: <www.migalhas.com.br/
mente orientada à luz da contemporânea era digi- coluna/nova-limite-penal/385216/reconhecimento-de-
tal e das realidades normativa e empírica. -pessoas-epistemicamente-confiavel-chega-a-acadepol>.
Tal guinada confere reinterpretação consti- Acesso em: 04 mai. 2023.
tucional e sistemática ao citado artigo 9º do CPP, MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR., Jai-
para que seja atrelado ao registro via gravação au- me. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação
diovisual de testemunhos estipulada no referido criminal. Salvador: JusPodivm, 2018.
artigo 405, § 1º, do mesmo diploma, sem prejuízo MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagran-
de instruir peças e atos decisórios ou de tramita- te delito constitucional. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2023.
ção formalizados, como já ocorre na esfera judicial, MOSCATELLI, Lívia. Considerações sobre a confissão e o mé-
até porque o próprio reconhecimento de pessoas todo Reid aplicado na investigação criminal. Revista Brasi-
exige lavratura de auto pormenorizado (CPP, arti- leira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 6, n.1, p.
go 226, IV; e Resolução CNJ 484/2022, artigo 10). 361–394, jan./abr. 2020.
O estudo do contexto da descoberta (UBER- PEREIRA, Eliomar da Silva. Saber e poder: o processo (de in-
TIS, 2015, p. 30), responsável pela formulação de hi- vestigação) penal. Florianópolis: Tirant no Blanch, 2019.
póteses que expliquem o acontecimento adjetivado UBERTIS, Giulio. Profili di epistemologia giudiziaria. Mi-
de delituoso, precisa superar a vetusta dicotomia lano: Giuffrè, 2015.
acusatório-inquisitório (PEREIRA, 2019, p. 116) e
a correlata mentalidade inquisitorial fundada no ANDERSON GIAMPAOLI
sigilo e na forma escrita. Ao revés, os progressos
científicos, oriundos essencialmente da psicologia Delegado de polícia do Esta-
cognitiva, demandam pensar a etapa extrajudicial do de São Paulo; professor da
a partir de uma publicidade restringível (MORAES; Academia de Polícia de São
PIMENTEL JR., 2018, p. 205-210), apta à ciência e Paulo; mestre em direito pro-
participação ativa da defesa, justa no tratamento de batório pela Universitat de
todos como sujeitos de direitos e, sobretudo, fiável Barcelona (Espanha).
na obtenção oral de conteúdo da memória dos en-
volvidos na apuração de ilícitos penais. RAFAEL FRANCISCO
MARCONDES DE MORAES
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Artigos
Assim, entre nossas paredes transparentes, em regra, o uso de identificação em tempo real
como se fossem tecidas de ar brilhante, vivemos sem- em espaços públicos pelo sistema legal, a não
pre em plena vista, eternamente banhados pela luz. ser por situações específicas1.
Não temos nada a esconder uns dos outros. Além do No Brasil, diversas aplicações da tecnologia
mais, isso alivia a pesada e elevada tarefa dos Guar- são constantemente anunciadas: nos bairros ou no
diões (ZAMIÁTIN, 2016, p. 26). metrô de São Paulo, no carnaval soteropolitano,
nas arenas esportivas, e nas ruas do Rio de Janeiro.
Distopias escritas no século XX, Nós, de Nesta última, foi identificada erroneamente uma
Zamiátin, e 1984, de Orwell, retratavam mo- mulher. A pessoa procurada, inclusive, já se encon-
delos de vigilância de cidadãos sob um regime trava presa (NUNES; SILVA; OLIVEIRA, 2022, p. 11).
autoritário. Nas obras, as paredes de vidro ou Nessa seara de utilização não regrada, o Pro-
as “teletelas” permitiam um controle perene e jeto de Lei (PL) 2.338/23, fruto do substitutivo ela-
incorpóreo sob os comandos do Benfeitor ou borado por uma comissão de juristas, apresenta
do Grande Irmão. Os anos passaram e, com o uma proposta de regulação. Qualifica a aplicação
advento de uma sociedade de controle (DE- da ferramenta no âmbito de atividades de seguran-
LEUZE, 2000, p. 2), as ferramentas de vigilân- ça pública, como de “risco excessivo”, mas permite
cia não fictícias se tornaram mais sofisticadas, a utilização, desde que exista lei federal específica e
com incrementos do armazenamento massivo autorização judicial em conexão com a atividade de
de dados e de seu tratamento por mecanismos persecução penal individualizada em determinadas
de inteligência artificial. situações elencadas. São elas: persecução de cri-
Dentre tais instrumentos, vislumbra-se o mes passíveis de pena máxima de reclusão superior
reconhecimento facial automático, isto é, um a dois anos; busca de vítimas de crimes ou pessoas
mecanismo de inteligência artificial que é ca- desaparecidas; verificação de crime em flagrante.
paz de gerar uma correlação biométrica, com- Sem exaurir o tema, sugere-se que alguns
binando faces não conhecidas a imagens de parâmetros existentes na proposta europeia se-
pessoas conhecidas, inseridas em um banco de jam adotados, tais como requisitos de motivação
dados (LYON, 2018, p. 88). Assim, a ferramenta
é capaz de identificar uma pessoa. Trata-se de
1
A sugestão de regulação está descrita no art. 5.1, d, e parágrafos
aplicação com usos comerciais, como indicação
seguintes (5.2, 5.3 e 5.4) do AI Act. As permissões preveem a
de pessoas presentes em fotografias em redes utilização do reconhecimento facial automático: quando da busca
sociais, ou mecanismo de autenticação de se- por vítimas de crimes, inclusive por crianças desaparecidas;
nha individual em smartphones. Há, ainda, a quando houver risco de vida ou segurança física de indivíduos,
possibilidade de aplicação estatal, principal- como em ataques terroristas; e, por fim, para detenção,
mente no que tange à finalidade de segurança localização, identificação ou persecução de suspeitos ou
condenados por um dos 32 crimes constantes em um rol, desde
pública. Sobre este último uso, as preocupa-
que exista previsão de punição nacional com penas superiores
ções se expandem. a três anos. As aplicações deverão estar sujeitas à reserva de
Diante do risco de vigilância ubíqua aos jurisdição ou à autorização de autoridade administrativa, e
cidadãos, principalmente a regiões e grupos possuírem limitação temporal, pessoal e geográfica. Apenas em
marginalizados, como também da possibilidade situações urgentes o controle poderá ser posterior.
de falsos positivos, cidades como Boston e São
2
O AI Act, no art. 5.2, a e b, exige que seja levada em
consideração a gravidade, a probabilidade e a escala de dano
Francisco, nos Estados Unidos, baniram o uso
causado na ausência da medida; assim a análise dos mesmos
do reconhecimento facial por ações policiais. Na parâmetros quanto aos danos causados para o sistema de
Europa, há proposta de regulação da tecnologia direitos e liberdade de todas as pessoas envolvidas caso
de inteligência artificial pelo AI Act, proibindo, aplicada a tecnologia, em um exame de razoabilidade
22
Artigos
3
Há indicações de erros em ambientes controlados
serem infinitamente menores do que aqueles relativos às
aplicações reais.
23
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Artigos
LHOS, 2015, p. 106), faz o Estado o que quer com a Sentença esta que já está pronta e precisa ser ade-
acusação, com a permissão de muitos juristas. quada à denúncia, dando a estética de que há con-
O juiz, ser onipotente e onipresente, perce- traditório daquilo que foi objeto da emenda. Ambas
be o que o MP não percebeu, ou seja, que há ele- afrontam as garantias constitucionais do réu.
mentos de um crime mais grave, e ordena a mu-
dança da imputação. Ao final da instrução, em um
típico “mudes”, a “katchanga real” (STRECK, 2012), REFERÊNCIAS
o juiz reabre a instrução e diz para o parquet que
ele deve emendar a inicial mudando a imputação, BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas pro-
o fato narrado na denúncia, podendo incluir réu cessuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das
(LOPES JR., 2023, p. 114), realizando a mutatio li- nulidades no processo penal. Tradução: Angela Nogueira
belli conforme o artigo 384 do CPP, e nela pode- Pessôa. Revisão: Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lu-
rá inquirir testemunhas sobre a nova imputação men Juris, 2003.
nova. Veja, o processo já acabou. CASTILHOS, Tiago Oliveira de. A forma no processo penal
A defesa perplexa e sem alternativa acaba como garantia fundamental ao réu: a inversão do contra-
por atacar o objeto da emenda e, também, indi- ditório em grau recursal e o descumprimento da garantia.
ca testemunhas, em nítida redução de danos, pois In: MENEZES, Carlos Alberto; SANTIAGO, Nestor Eduardo
não pode correr mais riscos do que o próprio jogo Araruna; BORGES, Paulo Cesar Correa (Coord.). Grupo de
proporciona (ROSA, 2017, p. 333) e tem a obriga- Trabalho. Direito penal, processo penal e constituição. XIV
ção de defender o réu. Para parte da doutrina só Encontro Nacional do CONPEDI/UFS. Florianópolis, 2015.
é caso de sentença ultra (extra) petita se não for COSTA NETO, Raimundo Silvino da. Sentença cível: estru-
aplicada a referida emenda em período anterior à tura e técnicas de elaboração. 2ª ed. rev. e atual. Rio de
sentença (LOPES JR., p. 2023, p. 374) ou no Tribu- Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016.
nal. Discorda-se porque se maquia o "prejuízo" da FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Garantias: La ley del màs débil.
decisão com a emenda. Prólogo de Perfecto Andrés Ibáñez. Traducción Perfecto An-
Tal postura dá “estética” de contraditório, drés Ibáñez y Andrea Greppi. Roma: Madri: Trotta. 2004, p. 26.
de ampla defesa, mas na verdade é uma manei- LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20ª ed. São
ra de se moldar à vontade do juiz, que já decidiu Paulo: SaraivaJur, 2023.
quando requereu o aditamento, posicionando-se ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal con-
para condenar pela emenda que sugeriu. Resta forme a teoria dos jogos. 4ed. rev. atual. e ampl. Florianó-
visivelmente comprometido o princípio da impar- polis: Empório do Direito, 2017.
cialidade que se esperava, bem como a forma no SARLET, Ingo Wolfgang. Controle de convencionalidade
processo penal, porém, “forma é garantia”, estan- dos tratados internacionais. Revista Consultor Jurídico
do ela a serviço do réu, débil (FERRAJOLI, 2004, p. - ConJur. Publicado em: 10 abr. 2015. Disponível em: <ht-
26; BINDER, 2003, p. 112; CASTILHOS, 2015, p. 113), tps://www.conjur.com.br/2015-abr-10/direitos-funda-
e não a favor do Estado. mentais-controle-convencionalidade-tratados-interna-
cionais> Acesso em: 18 mai. 2023.
Considerações finais STRECK, Lenio Luiz. A Katchanga e o bullying interpretati-
As emendas à denúncia criminal não se vo no Brasil. Revista Consultor Jurídico - ConJur. Publica-
amoldam à tradição processualista acusatória e do em: 28 jun. 2012. Disponível em: <https://www.conjur.
são institutos que ofendem princípios constitu- com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-bullyin-
cionais básicos em um Estado Democrático de g-interpretativo-brasil> Acesso em: 16 mai. 2023.
Direito, quais deles, o devido processo, a ampla
defesa, o contraditório e a imparcialidade do juiz. TIAGO OLIVEIRA
A emendatio libelli, neste sistema acusatório, DE CASTILHOS
ofende e afasta direitos fundamentais com a mera
retórica de que “a defesa atua sobre os fatos narra- Pós-Doutorando pela Univer-
dos na inicial e não sobre a imputação penal”, des- sidade Católica do Salvador/
cartando, por exemplo, a aprofundada teoria do Ba. Doutor e Mestre em Ci-
delito. No caso da mutatio libelli, após o fim da ins- ências Criminais pela PUCRS.
trução, com o juízo condenatório pronto, o juiz força Especialista em Ciências Pe-
a realização da mutação para melhor lhe convir na nais PUCRS. Professor de Direito Penal e Processo
sentença, para adequá-la ao princípio da correlação. Penal do Centro Universitário FADERGS.
25
Entrevista com: Gustavo Henrique Badaró'
1
Na esfera da investigação criminal, a te- o processo penal, isto é, a fase que se desen-
mática do raciocínio probatório ainda é volve da denúncia até o trânsito em julgado da
pouco tratada no Brasil, embora se con- decisão. Todavia, a investigação criminal é uma
sidere que, nos últimos anos, tanto a doutri- fase fundamental, inclusive para o êxito da fase
na1 como a jurisprudência2 têm dedicado al- subsequente. Partindo da premissa de que a ver-
guns escritos sobre a questão. Como aponta dade dos fatos importa muito para uma decisão
Dan Simon3, é durante a investigação crimi- justa, é na investigação que se busca descobrir
nal, contudo, que mais erros probatórios são fontes de prova que permitirão, posteriormen-
cometidos, razão pela qual essa etapa é con- te, na fase processual, que sejam produzidos os
siderada o toque de pedra do sistema. Em meios de prova correspondentes. Além disso,
sua opinião, qual é a importância da investi- cada vez são mais utilizados os meios de obten-
gação criminal para a correta determinação ção de prova que, por terem no fator surpresa
dos fatos no processo penal com vistas à evi- um elemento de elevadíssima importância, nor-
tação de erros probatórios? malmente são produzidos na fase da investiga-
ção, enquanto o imputado desconhece que está
GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ "De uma ma- sendo objeto de investigação. É necessário que
neira geral, o tema da investigação criminal tem passemos a desenvolver, cada vez mais, estudos
recebido pouca atenção da doutrina nacional. sobre uma teoria da investigação criminal. Sua
Costumo dizer que as “pontas” do processo pe- metodologia específica difere substancialmente
nal não receberam a atenção que mereciam. In- da metodologia da fase de produção e da de va-
quérito policial e execução penal são temas que loração da prova. A investigação criminal, assim
parecem não receber a mesma atenção do que como a generalidade das investigações, desen-
1
A título de exemplificação, podemos citar três obras escritas professores(as) brasileiros(as) que abordam aspectos probatórios
e investigação criminal: LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. São
Paulo: Saraiva Jur, 2014; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2009; PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021.
2
Nesse sentido, importantes decisões extraídas da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: STJ, HC nº 700.313/SP, Relator
Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 07/06/2022, p. 10/06/2022; STJ, RHC nº 158.580/BA, Relator Ministro Rogerio Schietti
Cruz, Sexta Turma, j. 19/04/2022, p. 25/04/2022; STJ, HC nº 712.781/RJ, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, p. 01/02/2022.
3
SIMON, Dan. In Doubt: The psychology of the criminal justice system. Cambridge: Harvard University Press, 2012 apud
MOSCATELLI, Lívia. Caso Leandro Bossi: erro investigativos que não devem ser esquecidos. Disponível em: <http://www.
ibadpp.com.br/novo/wp-content/uploads/2022/07/junho_22_web_2.pdf>. Acesso em: 20 maio 2023.
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Entrevista: Múltiplos Olhares
6
A obra “La semplice verità. Il Giudice e la costruzione dei fatti” (2009) foi traduzida por Vitor de Paula Ramos: TARUFFO,
Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016.
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TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 193.
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Entrevista: Múltiplos Olhares
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ção da prova.”6 Em consideração a essa refle-
xão, sob seu ponto de vista, qual é a impor- Para além da fase de investigação,
tância do debate sobre a prova em vídeo no também é preciso falarmos sobre o
âmbito da investigação criminal? contexto decisório no processo pe-
nal. Na sua obra “Epistemologia Judiciária
GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ "O tema da e Prova Penal”7, o Professor faz uma críti-
prova em vídeo no processo penal é muito rele- ca ao modelo de standard de prova ado-
vante e que só crescerá em importância no fu- tado pelo Professor Jordi Ferrer Beltrán,
turo. A excelente pesquisa da professora Claris- ao dizer que “é inviável exigir que o juiz,
sa Diniz Guedes lança luzes sobre a temática. A diante de todas as teses passíveis de se-
prova por vídeo poderá ser utilizada tanto como rem alegadas pelo defensor, fique espe-
prova, em sentido estrito, quanto como “meta- culando se alguma delas poderia ter ocor-
prova”. Na prova por vídeo em sentido estrito, rido no caso”8. No último livro escrito por
se buscará demonstrar fatos que sejam perti- Jordi Ferrer Beltrán, “Prova sem Convic-
nentes ou relevantes em relação à imputação ção”, o autor responde à crítica, ao dizer
penal. Por exemplo, um vídeo poderá demons- que analisar as hipóteses alternativas que
trar a existência de um fato, ou quem é seu au- não foram suscitadas pela defesa decorre
tor, ou ainda como se desenrolou determinada da própria “metodologia da corroboração
atividade. Embora no momento da captação de hipóteses própria do raciocínio proba-
da prova o registro em vídeo ocorra extrapro- tório”9. Afinal, sob a sua perspectiva, qual
cessualmente, isso não afasta a necessidade de modelo seria compatível com o nosso pro-
que, uma vez juntado ao processo, o conteú- cesso penal? O juiz deve ou não verificar
do da gravação das imagens seja submetido ao eventuais hipóteses alternativas não sus-
contraditório, pelas partes e na presença do jul- citadas pela defesa?
gador. Nesse ponto, tem-se algo semelhante ao
que ocorre na prova testemunha: uma pessoa GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ "O tema do
que viu algo e registrou em sua memória depois standard de prova é fundamental para dar efe-
terá que prestar o seu depoimento verbalmente, tividade ao modelo de epistemologia judiciária.
narrando, em contraditório, o conteúdo daqui- Para que juízo de fato seja realizado segundo
lo que se recorda, e será submetida a perguntas padrões racionais e intersubjetivamente con-
e reperguntas. O que a prova em vídeo registra trolável, é necessária a existência de standards
também deverá fazer parte do debate em juízo. de prova bem estabelecidos, definindo em que
Não basta que o juiz solitariamente em seu gabi- nível de suporte probatório o juiz poderá con-
nete assista o vídeo; as partes têm o direito de, siderar que um enunciado fático está suficien-
previamente à sentença, submeter o conteúdo temente demonstrado. Sem isso, a decisão judi-
do vídeo ao contraditório. Diferentemente, na cial continuará sendo algo como um “momento
segunda vertente, a prova em vídeo poderá ser- místico” do julgador, puramente subjetivo e in-
vir como “metaprova”, isto é, como um meio de controlável. No final das contas, sem um bom
prova que tem por objeto outro meio de prova, standard de prova, a presunção de inocência
visando demonstrar a autenticidade, integrida- não passará de uma folha de papel molhado.
de e fiabilidade do meio de prova principal. O Ela garante que, na dúvida, ninguém será con-
tema mereceu uma profunda e excelente aná- denado. Mas, não havendo um critério contro-
lise no livro de Daniel de Resende Salgado, “A lável do antônimo da dúvida, isto é, de em que
metaprova no processo penal”, que acaba de ser condições uma proposição será considerada
lançado. Será o caso, por exemplo, da utilização verdadeira, não há como controlar o respeito
6
GUEDES, Clarissa Diniz. Prova em vídeo no processo penal: aportes epistemológicos. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023, p. 28.
7
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
8
IBIDEM, p. 257.
9
FERRER BELTRÁN, Jordí. Prova sem convicção: Standards de prova e devido processo. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 216.
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Entrevista: Múltiplos Olhares
ou a vulneração da presunção de inocência. Nos tista” que fica tentando falsificar a hipótese por
últimos anos, o tema dos standards de prova re- ele formulada. A criação de hipóteses alterna-
cebeu uma grande atenção da doutrina. Merece tivas, mentalmente, pelo próprio cientista, é
todos os elogios o excepcional trabalho de Jordi uma questão de método. Não tem outrem para
Ferrer Beltrán e de toda “Escola de Girona”, na o fazer. Já no caso do processo, não é necessá-
busca por um modelo racional de valoração da rio que a mesma pessoa que decide faça pre-
prova e de decisão pelo juiz. No ponto indaga- dições e formule as hipóteses alternativas para
do, a divergência é quanto ao segundo fator do submeter a teste, mediante indução eliminativa,
standard de prova necessário para a condena- a hipótese acusatória. Isso ocorre naturalmen-
ção. Considero que a hipótese fática defensiva te, existindo a defesa para contra-argumentar
(ou favorável ao acusado) que deverá ser consi- e formular uma tese defensiva alternativa. Por
derada, em confronto com a hipótese acusató- fim, gostaria de terminar essa entrevista com
ria, é uma hipótese concretamente formulada. algo pessoal e que poderá servir de estímulo
Não basta que seja puramente conjectural, ain- para quem nos lê, especialmente os jovens aca-
da que plausível, ou uma eventualidade remota, dêmicos. Para quem escreve um livro, é motivo
abstratamente formulável, mas cuja efetiva re- de grande honra ser citado por outros autores,
alização não tenha sequer sido alegada. Diver- ainda mais quando se trata de uma referência
samente, Ferrer Beltrán é mais exigente quanto mundial na matéria, como é Ferrer Beltrán. Mas,
à hipótese alternativa a ser refutada: devem ter por incrível que pareça, muito mais me orgulha
sido afastadas todas as hipóte- quando minha posição é citada
ses plausíveis compatíveis com para ser contrariada por outrem.
a inocência, tenham ou não Explico: quando um autor, da
sido alegadas pela defesa. Para
No final das contas, qualidade de Ferrer Beltrán, dá-
mim, é necessário que seja uma sem um bom standard -se ao trabalho de expor a minha
hipótese sobre fatos concretos, de prova, a presunção posição e debater academica-
efetivamente suscitados pela mente seus fundamentos, pro-
de inocência não
defesa, ou mesmo que tenham curando demonstrar por que não
surgido ao longo do processo passará de uma folha se lhe afigura correta, demonstra
(v.g., a partir da narrativa de al- de papel molhado. que meu trabalho foi efetivamen-
gumas testemunhas ou segun- Ela garante que, na te lido e, mais do que isso, mere-
do um documento juntado nos ceu atenta consideração, sendo
autos), e debatida em contra-
dúvida, ninguém será submetido à meditação crítica
ditório, sendo apta a fornecer condenado. pelo outro Professor que, embo-
uma explicação dos fatos ocor- ra divergindo, considerou minha
ridos. Com isso, evita-se que o posição suficientemente forte ou
juiz tenha que ser um criador de hipóteses, fa- relevante, ao ponto de merecer resposta e re-
zendo infindáveis elucubrações, sobre tudo que futação necessária para justificar o porquê sua
poderia ter ocorrido para justificar aquele dado posição é mais acertada que a minha. Para quem
probatório. Ferrer Beltrán considera que isso se preocupa com o desenvolvimento da ciência,
seria necessário porque não haveria uma dife- o debate e o confronto entre tese e antítese é
rença entre o raciocínio probatório do juiz e o tudo o que se faz necessário para sua contínua
dos cientistas em geral. Assim como estes, o juiz evolução, na busca de uma síntese de melhor
também deve revisar o processo de corrobora- qualidade. Mais importante do que ser citado é
ção ou confirmação da hipótese, e a sobrevivên- ser objeto da sempre respeitosa crítica acadê-
cia ou não de hipóteses alternativas que expli- mica, séria e qualificada."
quem os mesmos fatos. Divirjo por considerar
que são atividades desenvolvidas em cenários
distintos. No processo penal há uma parte con-
trária a desafiar concretamente a versão acusa-
tória, seja simplesmente negando-a, seja formu-
lando concretamente hipóteses alternativas. Já
no campo das ciências em geral, o cientista não
trabalha no laboratório com um “contra-cien-
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