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Boletim

ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Ano 31 - nº 366 - MAIO/2023

CADERNO DE DOUTRINA 13
A instituição do Tribunal do Júri e seus reflexos na
violência perpetuada contra a população negra
Mariana Secorun Inácio
26 Uma parte geral finalista? Reflexões no marco
dos 40 anos da reforma penal de 1984
Victor C. R. S. Costa

4 A luta do movimento independente Mães de Maio: Renê Pereira da Cruz

29
se a justiça for negada, a memória não será apagada Erika Chioca Furlan
Mensagens de WhatsApp como prova no

16
Débora Maria da Silva Processo Penal: o entendimento do Superior
Valéria Aparecida de Oliveira Silva Protodefesa e proteção de dados pessoais na Tribunal de Justiça
persecução penal Hellen Luana de Souza
Juan Lopes Amaral Rocha João Pedro Barione Ayrosa
O “princípio da insignificância” como elemento de

7 19
inserção dos mandamentos político-criminais no
âmbito da tipicidade jurídico-penal Teoria negativa da pena: uma pequena observação CADERNO De Jurisprudência
Pedro Guilherme Borato para uma maior clareza TEMA: CULTIVO E IMPORTAÇÃO DE CANNABIS PARA FINS
Thiago Rocha de Rezende MEDICINAIS

10 22 32Supremo Tribunal Federal


A pessoa com deficiência e a acessibilidade no
sistema prisional brasileiro Maternidade e cárcere: organização criminosa
Júlia da Silva Ribeiro e progressão de regime especial no Superior

32Superior Tribunal de Justiça


Fabiana Zanatta Viana Tribunal de Justiça
Beatriz Ferreira de Paula
EDITORIAL

RACIAL PROFILING, NOVAS TECNOLOGIAS


E RACISMO ESTRUTURAL
Um homem parado ao lado de um carro em via pública poderia ser apenas o que estas palavras descrevem, desde
que esse homem não fosse um homem negro. Francisco Cícero dos Santos Júnior é a prova disso. Abordado pela
polícia durante um patrulhamento de rotina, foi avistado e descrito como “um indivíduo de cor negra que estava em
cena típica de tráfico de drogas”. Nenhuma outra característica foi empregada para descrever Francisco, porque a
epiderme preta é o gatilho que impulsiona e legitima o aparato repressivo estatal. Assim, ele foi conduzido e preso
para, em seguida, ser denunciado e condenado por tráfico de drogas. Em linhas gerais, esse é o pano de fundo do
julgamento que se iniciou no dia 1º de março deste ano, perante o Supremo Tribunal Federal, por força da impetração
do HC 208.240 pela Defensoria Pública de São Paulo.
Recentemente, os tribunais superiores têm avançado sobre discussões que tocam a questão racial, como se deu
em relação ao debate sobre os crimes de injúria racial e racismo e sobre o reconhecimento facial e os famigerados
“álbuns de suspeitos” (majoritariamente negros). Agora, o Supremo deve decidir sobre o chamado “perfilamento
racial”, que se caracteriza pela mobilização das agências de repressão do Estado (como sói ocorrer com as revistas
policiais) baseada em elementos de raça, cor, descendência, etnicidade ou nacionalidade. A mais alta Corte do país
está diante de um caso individual com uma dimensão coletiva e enorme importância no enfrentamento do racismo
no sistema de justiça criminal.
Os dados sobre encarceramento no Brasil são divulgados amiúde. No final de 2022, o Sisdepen contabilizou 68% de
pretos e pardos nos estabelecimentos prisionais, reiterando a inegável sobrerrepresentação de pessoas negras no
cárcere, já que elas são apenas 56% da população geral. Não são apenas números, mas o reflexo da hierarquização
artificial e violenta entre pessoas negras e não negras, cabendo àquelas a subalternização, sobretudo decorrente da
força dos agentes de Estado. É preciso apor lentes de aumento para permitir identificar que o aprisionamento não
se dá aleatoriamente; ele depende, obviamente, de uma série de práticas cotidianas, entre as quais o racial profiling.
O caso levado ao Supremo é bom para julgamento do tema, especialmente porque está escancarada, na declaração
dos policiais militares, a condição que os moveu – a cor da pele de Francisco. Num país em que o racismo ainda é
negado e omitido dos debates públicos, um contexto fático em que a atuação racista pôde ser flagrada – não tendo
sido escamoteada por outras características igualmente racistas, porém menos perceptíveis – é ideal para formar um
precedente.
O que o Estado brasileiro enxerga em um corpo negro parado ao lado de um carro na via pública? E o que enxergaria
se fosse um corpo branco parado ao lado do mesmo carro na mesma via? Essas foram questões formuladas pela
Defensoria Pública, da tribuna. Se as respostas a essas questões parecem óbvias, o desenrolar do julgamento no
Supremo Tribunal Federal, até aqui, indica quão arraigado é o racismo. Até 8 de março, quando o julgamento do
Habeas Corpus foi suspenso por pedido de vista, quatro dos 11 membros da corte divergiram do entendimento do
relator, ministro Edson Fachin, que concedia a ordem de ofício reconhecendo na motivação discriminatória dos
policiais causa de nulidade da abordagem e da prova que nela se originou.
Da escuta dos votos divergentes, dois dados relevantes podem ser extraídos: o primeiro é o reconhecimento de que
o racismo estrutural existente é um mal a ser combatido; o segundo é a negação de que, no caso concreto, ele teria
se manifestado. A busca pessoal dirigida a Francisco, “indivíduo de cor negra” (não é demais lembrar), teria ocorrido
porque outros elementos, como o local do fato, teriam suscitado a suspeita. O posicionamento é sintomático dos
tempos atuais, em que o racismo é evidente demais para ser negado, contudo é preciso encontrar argumentos para
que as consequências do seu reconhecimento não se imponham, sob pena de fazer ruir as bases do funcionamento
do sistema.
O racismo atravessa o funcionamento dos órgãos de segurança pública e, se essa é sua face mais aparente, não
devemos descuidar de como as outras instituições do fluxo da justiça criminal convalidam as más práticas que
orientam aquelas agências. O fato de pessoas brancas também serem julgadas pelo Supremo Tribunal Federal –
como sublinhou a Procuradoria Geral da República em sua manifestação – em nada altera essa realidade, sendo
urgente uma mudança de paradigma sobre a questão racial a partir da própria Suprema Corte.
Conforme o IBCCRIM destacou no editorial da edição nº 360 deste Boletim, é questão central na luta antirracista o
combate à violência institucional contra a população negra, manifestada em abordagens policiais discriminatórias,
nas grandes operações policiais em favelas, no reconhecimento direcionado de pessoas e na política de guerra às
drogas, que têm como consequências nefastas o encarceramento massivo e o genocídio de pessoas negras.
O combate a essa violência institucional se torna ainda mais relevante e urgente quando se tem em vista a adoção
de novas tecnologias no campo da segurança pública. Ao contrário do que se possa imaginar, tecnologias não são
neutras, mas produzidas a partir dos mesmos padrões e dinâmicas presentes no tecido social. Os ares de infalibilidade
das inovações que nos aproximam do futuro e prometem dar conta de problemas crônicos não devem nos cegar
à reprodução dos vieses racistas embutidos na programação desses aparatos.
Algoritmos de reconhecimento facial, por exemplo, são, em grande parte, treinados a reconhecer faces humanas a partir
de bancos de dados muitíssimo extensos de rostos de pessoas majoritariamente brancas, o que inevitavelmente faz
com que identifiquem a transgressão da lei em rostos negros. Essas tecnologias encontram-se em estágio avançado
de implementação por todo o Brasil, sem que tenham sido submetidas a um debate público amplo e transparente,

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tampouco se façam acompanhar da devida prestação de contas sobre seus usos, objetivos, erros e acertos. Mais uma ferramenta com
enorme potencial para aprofundar práticas institucionais violentas e discriminatórias contra a população negra.
Nesse cenário em que a modernidade e as práticas tradicionais se encontram, é extremamente necessário que o Supremo Tribunal Federal
reconheça e combata o racismo sob as suas mais diversas manifestações, de modo a fazer valer os mandamentos da Constituição de 1988.
O HC 208.240, como advertiu o ministro Edson Fachin, é o típico caso de policiamento por estereótipo, que se opera pela fusão do perfil
racial do criminoso à simples descrição de um local suspeito para justificar uma abordagem sem justa causa – “a diferença pode ser sutil,
mas essa sutileza transforma ou mantém o mundo”. Espera-se que, ao concluir o julgamento, o Supremo Tribunal Federal possa reconhecer
a sutil diferença, resguardando a dignidade de Franciscos, Josés, Joões e Marias pelo Brasil afora.

NOTA TÉCNICA DO IBCCRIM SOBRE O PL 1307/23


O IBCCRIM apresentou nota técnica sobre o PL 1307/23, de autoria do Senador Sergio Moro, que pretende alterar a Lei 12.694/12
(com o fim de ampliar a proteção a agentes públicos envolvidos no combate ao crime organizado) e a Lei 12.850/13 (para tipificar
a conduta de “obstrução de ações contra o crime organizado”). O Instituto opinou pela rejeição do projeto de lei, por estar “está
repleto de inconsistências técnicas, redundâncias e de violações insanáveis aos princípios norteadores do Direito Penal em um Estado
Democrático de Direito”.
Confira a íntegra da nota técnica em: https://l1nq.com/uZCkU
DENÚNCIA DO IBCCRIM PERANTE A ONU SOBRE A CRISE HUMANITÁRIA NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
O IBCCRIM e a Conectas Direitos Humanos encaminharam um “apelo urgente” à Organização das Nações Unidas (ONU), “com
o objetivo de apresentar evidências de graves violações de direitos humanos, de caráter crônico, no interior dos estabelecimentos
prisionais do estado do Rio Grande do Norte”. Após relatar os graves problemas encontrados pelo MNPCT (Mecanismo Nacional
de Prevenção e Combate à Tortura) em inspeções realizadas nas unidades prisionais do Estado, as entidades solicitaram que os
procedimentos especiais da ONU e das Relatorias Especiais instem as autoridades brasileiras a adotar providências, além de emitirem
“um comunicado de imprensa conjunto chamando a atenção para a gravidade da situação e expressando a opinião dos relatores sobre
a situação no sistema penitenciário do estado do Rio Grande do Norte e sua absoluta incompatibilidade com os direitos humanos”.
Confira a íntegra do apelo em: https://l1nq.com/bGmJ1

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais


BOLETIM
4. A luta do movimento independente Mães de Maio: se a justiça for negada, a memória não será apagada
Débora Maria da Silva e Valéria Aparecida de Oliveira Silva

O “princípio da insignificância” como elemento de inserção dos mandamentos político-criminais no âmbito


7. da tipicidade jurídico-penal
Pedro Guilherme Borato

10. A pessoa com deficiência e a acessibilidade no sistema prisional brasileiro


Júlia da Silva Ribeiro e Fabiana Zanatta Viana

13. A instituição do Tribunal do Júri e seus reflexos na violência perpetuada contra a população negra
Mariana Secorun Inácio, Renê Pereira da Cruz, Erika Chioca Furlan

16. Protodefesa e proteção de dados pessoais na persecução penal


Juan Lopes Amaral Rocha

19. Teoria negativa da pena: uma pequena observação para uma maior clareza
Thiago Rocha de Rezende

22. Maternidade e cárcere: organização criminosa e progressão de regime especial no Superior Tribunal de Justiça
Beatriz Ferreira de Paula

26. Uma parte geral finalista? Reflexões no marco dos 40 anos da reforma penal de 1984
Victor C. R. S. Costa
29. Mensagens de WhatsApp como prova no Processo Penal: o entendimento do Superior Tribunal de Justiça
Hellen Luana de Souza e João Pedro Barione Ayrosa

CADERNO DE JURISPRUDÊNCIA
32. Tema: Cultivo e importação de cannabis para fins medicinais
32. Supremo Tribunal Federal
32. Superior Tribunal de Justiça

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A LUTA DO
MOVIMENTO
INDEPENDENTE MÃES
DE MAIO: SE A JUSTIÇA
FOR NEGADA,
A MEMÓRIA NÃO SERÁ
APAGADA
THE STRUGGLE OF THE INDEPENDENT MOVEMENT MOTHERS OF MAY: IF JUSTICE IS DENIED,
MEMORY WILL NOT BE ERASED

Débora Maria da Silva Valéria Aparecida de Oliveira Silva


Fundadora e Coordenadora do Movimento Independente Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social
Mães de Maio. Pesquisadora do Centro de Antropologia e Participação Política (PRoMuSPP) pela USP. Mestra em Serviço Social
e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp. e Políticas Sociais pela Unifesp. Pesquisadora do CAAF/Unifesp.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4730944569079409 Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/7626336242155149
ORCID: https://orcid.org/0009-0004-5262-4162 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2298-0487
debi1977@gmail.com valeria.oliveira64@usp.br

Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar o contexto da violência Abstract: This article aims to address the context of state violence
estatal perpetrada pelos agentes da segurança pública, nos ataques ocorridos perpetrated by public security agents in the attacks that occurred in the state
no estado de São Paulo no ano de 2006, que deu origem ao Movimento of São Paulo in 2006, which gave rise to the Independent Movement Mothers
Independente Mães de Maio. Este movimento é composto por mães e of May. This movement is composed of mothers and relatives of the victims
familiares das vítimas que permanecem na luta resistindo pelos últimos 17 who remain in the struggle resisting for the last 17 years, seeking to maintain
anos, buscando manter a memória já que a justiça lhes é negada. the memory since justice is denied them.
Palavras-chave: Mães de Maio; Violência de Estado; Memória. Keywords: Mothers of May; State violence; Memory.

1. Introdução a violência estatal que age por meio de seu aparato repressivo – a
Polícia Militar –, considerando que a cada dia aumenta mais o índice
No Brasil é comum ouvirmos que “brasileiro não tem memória” e
de crimes cometidos por agentes da segurança pública em todo o
normalmente, o jargão está relacionado aos diferentes contextos
território nacional.
históricos, principalmente o político. Este artigo, escrito a duas mãos,
tem o intuito de rememorar os graves fatos ocorridos na história Há quem diga que esta prática violenta, esta política de morte
recente do nosso país no que diz respeito à violência, em especial, adotada pelos policiais militares foi herdada do período ditatorial,

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contudo, torna-se importante ressaltar que mesmo com a atuação Esses crimes ficaram conhecidos como os Crimes de Maio de 2006
incessante dos familiares de vítimas e das pessoas desaparecidas e, a partir disso, as mães das vítimas fatais e desaparecidas no
durante a ditadura militar na luta pelo reconhecimento dos crimes período de 12 a 20 de maio, deram início às ações do Movimento
praticados naquele período, o Estado nunca admitiu a existência de na luta por justiça e verdade sobre aqueles ataques divulgados
tortura, morte e desaparecimentos forçados. pela mídia e atribuídos pelo então governo do Estado às ações do
crime organizado. Até os dias atuais, esta informação permanece no
Essa relação entre os diferentes contextos está diretamente ligada
imaginário da sociedade como sendo os “ataques do PCC”.
com o modus operandi dos crimes praticados por policiais militares,
ainda mais porque quase nunca são investigados e acabam caindo Como resultado dos Crimes de Maio de 2006, as mães e familiares
no esquecimento. Como resultado, os autores são anistiados se das vítimas da violência se organizaram e passaram a denunciar
valendo da mesma lei que beneficiou os algozes das inúmeras especialmente a violência contra os pobres, os negros e os habitantes
práticas violentas ocorridas nos porões da ditadura. das periferias. Um dos principais objetivos do movimento foi buscar
a verdade sobre as ocorrências em
Entretanto, é fato que existe uma
maio de 2006, denunciando a versão
grande e importante diferença entre
oficial do massacre e que o Estado era
os crimes praticados na ditadura em
comparação aos crimes cometidos na
"COMO RESULTADO o principal responsável pela violência
e pelo assassinato de centenas de
democracia: as práticas exercidas nos
porões, longe dos olhos da socieda-
DOS CRIMES DE vítimas inocentes mortas pelas forças
de, ganharam as ruas das periferias e MAIO DE 2006, AS de segurança do estado de São Paulo.
favelas de todo o país – as chacinas O Movimento Mães de Maio foi dando
– que desde o início da década dos MÃES E FAMILIARES os primeiros passos, transformando o
anos 1990 passou a ter como alvo os luto individual numa luta coletiva, como
jovens pobres e pretos, que vêm sen- DAS VÍTIMAS DA refletia o título de uma das primeiras
do assassinados com claros indícios
de execução sumária e crueldade, VIOLÊNCIA SE publicações do movimento [Mães de
maio – do luto à luta]. As mães das vítimas
contabilizando também os inúmeros
desaparecimentos forçados.
ORGANIZARAM foram se reconhecendo como grupo,
amadurecendo e se transformando em
De acordo com Mingardi (2015), o E PASSARAM um coletivo independente a partir das
lutas diárias em busca de justiça.
Estado brasileiro tem sido autor de
inúmeras violações, incluindo as pra- A DENUNCIAR Desde então, uma das reivindicações
ticadas pelas forças policiais, que se
configuram na atualidade como uma
ESPECIALMENTE A fundamentais do Movimento Mães de
Maio foi o desarquivamento do pro-
das mais violentas no mundo. Corro-
borando com esta afirmação, em re-
VIOLÊNCIA CONTRA cesso relativo aos assassinatos de
seus familiares e o deslocamento de
cente reportagem divulgada1, o núme- OS POBRES, OS competência das investigações dos
ro de mortos por policiais militares no crimes para a esfera federal. Todos os
estado de São Paulo aumentou cerca NEGROS E OS processos foram encerrados por par-
de 25% no primeiro bimestre de 2023 te das autoridades do estado de São
em comparação com o mesmo perío- HABITANTES Paulo e na avaliação do movimento
do no ano de 2022.
DAS PERIFERIAS." só o deslocamento da competência
permitiria o avanço das investigações
Além disso, dados do Anuário Bra-
para identificar e julgar os responsá-
sileiro de Segurança Pública (2020)
veis pelos crimes.
apontam o considerável aumento da
letalidade policial no Brasil registrando a quantidade de mortes de- Essas mulheres se juntaram, caminharam lado a lado e ofereceram
correntes de intervenções policiais em serviço. Segundo consta, no ajuda e solidariedade a outras famílias de vítimas da violência de
ano de 2019 foram registradas 3.826 mortes e em 2020 foram 4.450 Estado. O movimento passou, pouco a pouco, a ganhar visibilidade,
casos (p. 57). Em decorrência desses índices alarmantes e cres- participando dos debates públicos sobre violência policial e fazendo
centes, o Estado brasileiro tem sofrido representações de inúmeras intervenções na mídia exigindo justiça.
denúncias em âmbito nacional e internacional, que demonstram a
Como afirmou Bruno Paes Manso: “Iniciava-se um novo movimento
violência generalizada e, mais que isso, apontam a impunidade per-
contra a violência policial, amparado e impulsionado pela dor das
petuada ao longo da história.
mães enlutadas, que eram obrigadas a se calar diante do assassinato
2. Mães de Maio: 17 anos de luta e resistência dos seus filhos” (CARAMANTE, 2016, p. 73-74).
Foi nesse contexto histórico de violência política e institucional que Como resultado das experiências de organização de mães e familiares
surgiu em maio de 2006, na região da Baixada Santista, litoral de de vítimas, o Movimento Mães de Maio começou um processo de
São Paulo, o Movimento Independente Mães de Maio após uma articulação mais amplo com a proposta de criação de uma rede
desastrosa e cruel ação da Polícia Militar em todo o estado de São nacional de mães e familiares. Assim, em 2016, aconteceu no estado
Paulo, que deu origem a quase 500 mortes de jovens civis, com claros de São Paulo o I Encontro Nacional de Mães e Familiares Vítimas de
indícios de execução sumária e alta letalidade (CARAMANTE, 2016). Violência do Estado. Como afirmavam no documento2 do Encontro:

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Hoje estamos reunidas aqui em São Paulo, nestes cinzentos dias reivindicações, mobilizações, organização de grupos para unificar
de 11 a 13 de maio de 2016, por ocasião dos 10 anos dos Crimes pautas com o intuito de articular outros coletivos e movimentos
de Maio – o maior massacre estatal da história contemporânea
do Brasil, para realizarmos, nós por nós mesmas, o “I ENCONTRO sociais, ativistas pelos Direitos Humanos e instituições ligadas à
INTERNACIONAL DE MÃES DE VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA DO defesa de direitos, o Movimento Independente Mães de Maio segue
ESTADO: POR JUSTIÇA, REPARAÇÕES E REVOLUÇÃO!”. Nós em permanente atividade atuando onde o Estado falha. Nesse sentido,
conseguimos, com muito sacrifício, realizá-lo de ponta a ponta
e aproveitar estes preciosos momentos para nos encontrar ou promove ações de fortalecimento das mães e de outras pautas
reencontrar, trocar nossas duras experiências tão semelhantes importantes, tais como, proporcionar atendimento psicológico frente
(e tão singulares), nos fortalecer psicologicamente e fortalecer a aos inúmeros casos de adoecimento e medicalização de mães que
nossa solidariedade e organização autônoma, e assim pensarmos
juntas os próximos passos da nossa difícil luta comum. E assim
tiveram seus filhos e filhas arrancados de seu convívio pela violência
chegamos também, juntas, a algumas conclusões, ou talvez algumas desse mesmo Estado que nega os crimes cometidos.
proposições que gostaríamos de, humildemente, em mais este triste
momento vivido pelo país, registrar e transmitir a toda população Além disso, nos anos de luta essas mães se reconheceram como
nesta Carta Final, especialmente ao nosso Povo Negro, Indígena, protagonistas de suas próprias histórias, reivindicando o lugar de
Pobre e Periférico. pesquisadoras e produtoras de conhecimento, também atuando à
frente da construção e elaboração de políticas de atendimento às
Nos anos seguintes – 2017, 2018 e 2019 – aconteceram outros
mães e familiares de vítimas da violência de Estado.
encontros nacionais, sendo interrompido em 2020 em razão da
pandemia da Covid-19. Nesses encontros, as mães e familiares 3. Considerações finais
discutiam como enfrentar, nas palavras delas: “essa desastrosa
Frente ao exposto, quando se trata de rememorar os caminhos que
matança nacional”, contribuindo na criação de uma rede nacional
as mães dos Crimes de Maio de 2006 percorreram, é premente
na qual o intercâmbio de experiências foi fundamental para a
observar que a sociedade em geral tende ao esquecimento sobre
consolidação dos processos de resistência contra a violência de
esses crimes e tantos outros que vêm ocorrendo nos últimos anos,
Estado no país.
corroborado pela falta de respostas da parte do Estado.
Na perspectiva de defesa dos Direitos Humanos, à custa de
Entretanto, para as mães e familiares que lutam pela verdade e pela
muito descaso e discriminação, por quase 17 anos essas mães
justiça, o resgate da memória passa a ser um elemento importante
permanecem na luta cotidiana, corajosamente, impulsionadas a
para reafirmar o contexto dos fatos ocorridos bem como narrar a
manterem a resistência, denunciando os crimes que vitimaram seus
história vivida, para que nunca seja esquecida. Embora o Movimento
filhos, a nível nacional e internacional, percorrendo uma trajetória
de Mães esteja articulado em todo país, os avanços obtidos são
de busca incansável por respostas, tornando-se referência na luta
ínfimos frente à justiça brasileira que vem demonstrando que o
pelo fim da violência policial, contra a criminalização e o genocídio
grave problema decorrente das ações da sua força coerciva está
da juventude em todo o país, fortalecendo na articulação e incentivo
longe de ser resolvido.
aos grupos de mães e familiares de outros estados brasileiros.
Um ponto a ser destacado é que com a morosidade do sistema de
Mas o que é resistir diante de reiteradas ações e práticas sangui-
justiça em objetivamente dar respostas sobre os crimes recorrentes
nárias por parte da Polícia Militar em um país que denunciar a vio-
e cada vez mais violentos, é custoso para as mães e familiares darem
lência e as atrocidades promovidas pelo Estado brasileiro não traz
continuidade às suas vidas sem alcançar a devida responsabilização,
garantias de que a justiça será finalmente alcançada?
isso porque essa incidência de violações propicia mais dor e
Um exemplo disso é que após 11 anos, desde que foi feita a denúncia sofrimento, causando o adoecimento das mães e familiares, em
dos crimes ao GAECO, recentemente, o órgão afirmou que as muitos casos levando à morte.
investigações não deram “em nada” porque as provas levantadas
Contudo, é no contexto das ações que implementam junto ao mo-
foram inconclusas e que, portanto, a única alternativa seria o
vimento social que essas mães transformam a dor e o sofrimento
arquivamento dos casos.
em potência, a partir das trocas e afeto coletivo (SILVA, 2021), com
Diante desse resultado, em relação aos crimes cometidos pelo a certeza de que não desistirão jamais, pois enquanto há vida,
Estado, o que se pode afirmar é que, mesmo após 17 anos de haverá luta.

Notas
1
A reportagem foi publicada no site do G1, em 4 de abril de 2023. Poderá ser consultada 2 A carta foi publicada no site da Justiça Global, em 13 de maio de 2016 e poderá ser
em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/04/04/mortes-cometidas-por- acessada na íntegra por meio do link: http://www.global.org.br/blog/carta-final-do-i-
policiais-sobem-25percent-em-sp-no-1o-bimestre-da-gestao-tarcisio-de-freitas.ghtml encontro-internacional-das-maes-de-vitimas-da-violencia-do-estado/
Referências
CARAMANTE, André (org.). Mães em luta: dez anos dos crimes de maio de 2006. São democracia. Mães de Maio. São Paulo: Editora Nós por nós, 2019.
Paulo: Editora Nós por nós, 2016. SILVA, Débora Maria da (org.). Do luto à luta. Mães de Maio. São Paulo: Giramundo Artes
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Gráficas, 2011.
Pública. Ano 14, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/ SILVA, Valéria Aparecida de Oliveira. A violência de estado e as mulheres/mães:
uploads/2021/02/anuario-2020-final-100221.pdf. Acesso em: 8 abr. 2023. sofrimento e reparação pela perda de familiares durante e após os crimes de maio de
MINGARDI, Guaracy. Apresentação. In: KUCINSKI, Bernardo et al. Bala perdida: a 2006 na região metropolitana da Baixada Santista (RMBS). Dissertação (Mestrado em
violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015. Serviço Social e Políticas Sociais) – Instituto de Saúde e Sociedade, Universidade Federal
SILVA, Débora Maria da (org.). Memorial dos nossos filhos vivos: as vítimas invisíveis da de São Paulo, Santos, 2021.

Autoras convidadas

BOLETIM IBCCRIM - ANO 31 - N.º 366 - MAIO DE 2023 - ISSN 1676-3661


O “PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA”
COMO ELEMENTO DE INSERÇÃO
DOS MANDAMENTOS POLÍTICO-
CRIMINAIS NO ÂMBITO DA
TIPICIDADE JURÍDICO-PENAL
THE “PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE” AS AN ELEMENT OF CRIMINAL-POLITICAL
COMMANDEMENTS INSERTION IN THE SCOPE OF CRIMINAL LEGALITY

Pedro Guilherme Borato


Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Salamanca (Espanha). Professor de Direito Penal e Teoria Geral
do Direito da Universidade Anhembi Morumbi. Orientador vinculado aos Programas de Pós-Graduação Internacional
do IBCCRIM em parceria com a Universidade de Coimbra (Portugal). Graduado e Mestre em Direito pela UNESP.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3973690400250815
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9183-7978
boratopedro@usal.es

Resumo: O presente estudo verifica como os mandamentos valorativos Abstract: The present study verifies how the political-criminal value
político-criminais se inserem na dogmática jurídico-penal, mais especificamente commandments are inserted in the criminal law dogma, more specifically
no interior da tipicidade, por meio do princípio da insignificância. Para análise do within the typicity, through the principle of insignificance. To analyze the
objeto, utiliza-se de uma combinação metodológica que conjuga os métodos object, a methodological combination is used that matches systematic,
sistemático, tópico-retórico e racional teleológico-funcional. O tema é atual, topical-rhetorical and rational teleological-functional methods. The theme is
complexo, controverso e demanda, portanto, pesquisa científica para demonstrar current, complex, controversial and demands, therefore, scientific research to
como os valores penetram a estrutura jurídica no âmbito criminal em moldes demonstrate how values penetrate the legal structure in the criminal sphere
próximos aos descritos pela corrente Funcionalista. in ways close to those described by the Functionalist theory.
Palavras-chave: Política criminal; Princípio da insignificância; Dogmática Keywords: Criminal policy; Principle of insignificance; Criminal law dogma;
jurídico-penal; Tipicidade. Typicity.

O presente estudo detém como objetivo a demonstração da forma conectados, porém, em vista do integral processo da realização do
pela qual os mandamentos políticos criminais estabelecidos nas Direito Penal, em uma unidade teleológico-funcional. É a esta unida-
finalidades da pena penetram no interior da dogmática jurídico- de que continua hoje justificadamente a convir o antigo conceito de
penal, mais especificamente no plano da tipicidade, por intermédio Liszt: “ciência conjunta do Direito Penal” (DIAS, 1999, p. 49).
do princípio da insignificância. No período da pandemia da Covid-19, o debate acerca do princípio
Para a orientação metodológica da pesquisa, emprega-se uma com- da insignificância retornou aos holofotes em razão das várias notícias
binação metódica que possibilita ampliar o nível de cientificidade e, que envolveram o furto de itens de baixo valor, principalmente
consequentemente, a solidez das conclusões edificadas. Os pensa- alimentos.
mentos sistemáticos (BÜLLESBACH, 2009, p. 409) e tópico-retórico Em 2020, por volta de 19 milhões de pessoas viviam em situação
(TEUBNER, 1989, p. 113) serão os utilizados em alinhamento ao mé- de fome no país, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança
todo racional teleológico-funcional: “[...] fundado na perspectiva de Alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil. Em
se estabelecer uma conexão direta entre os elementos integrantes 2018, eram 10,3 milhões. Ou seja, em dois anos ocorreu uma alta de
do Sistema Jurídico-Penal e a sua respectiva função” (FERNANDES, 84,4%. Muitas ações envolvendo o furto famélico estão chegando às
2003, p. 80). Política criminal, dogmática jurídico-penal e criminolo- instâncias superiores da Justiça brasileira, como o Superior Tribunal
gia são assim, do ponto de vista científico, três âmbitos autônomos, de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Desde 2004,

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existe um entendimento do STF de que, em casos como esses, criminais, sendo concebida como pura classificação formal, a
há de ser aplicado o princípio da insignificância, excludente de única saída é a 'correção valorativa'". A adoção de tal procedimento
tipicidade, colocando termo ao processo. O entendimento, que não ultrapassa a perspectiva clássica que separava de forma total a
tem efeito vinculante para o Poder Judiciário, orienta os magistrados dogmática jurídico-penal e a política-criminal, porque acaba por
a desconsiderar casos em que o valor do furto é irrisório de modo fazer penetrar valorações político-criminais na parte geral da Teoria
a não trazer prejuízo real à vítima e à sociedade. Comida, sucata, do Delito, mas tal procedimento não unifica tais ciências, apenas
produto de higiene pessoal e quantias ínfimas em dinheiro, por faz com que haja uma maior comunicação entre elas, mantendo-as
exemplo, seriam consideradas insignificantes perante o Direito desvinculadas, porém adjacentes.
Penal (MACHADO, 2021). O país assistiu, com frequência, serem No entanto, essa maior comunicação deve ser orientada de forma a
noticiadas situações em que pessoas recolhiam itens, muitas vezes atender as diretrizes do Estado de direito material contemporâneo,
de lixeiras em estabelecimentos comerciais, e eram, de alguma evitando confusões. Dessa forma, Roxin (2000, p. 20) explica que
forma, conduzidas pela polícia para prestar esclarecimentos e serem seria essa a orientação que compõe o caminho correto por onde
responsabilizadas criminalmente (ZAPATER, 2021).
só pode se deixar as decisões valorativas político-criminais se
Essas situações, como relatadas, estão sendo levadas ao Poder introduzirem no sistema do Direito Penal se estabelecidas as
Judiciário para que tenham uma solução e é importante, nesse formas em que a fundamentação legal, a clareza e a previsibilidade,
momento, esclarecer as motivações pelas quais o princípio as interações harmônicas e as consequências detalhadas deste
da insignificância necessita ter seu emprego amplificado na sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista de
hermenêutica realizada pelos julgadores desses casos. proveniência lisztiana.
Acerca do princípio da insignificância Seguindo tais assertivas é possível
aponta, Nucci (2014), que este resulta verificar que a evolução que a
de uma criação doutrinária absorvida e "O ENTENDIMENTO, Teoria Funcionalista traz, abre o
aplicada pela jurisprudência. Sustenta
que o Direito Penal, mediante o seu
QUE NÃO TEM tipo e a dogmática jurídico-penal
para verificações axiológicas e mais
caráter subsidiário, funcionando como
ultima ratio do sistema punitivo, não
EFEITO VINCULANTE condizentes com o estágio atual da
concepção de Estado e seu papel
se deve ocupar de bagatelas. Nesse PARA O PODER quando necessária sua presença
para fazer uso de sua mão punitiva.
contexto, o bem jurídico tutelado
pela norma penal há de ser levado JUDICIÁRIO, ORIENTA As finalidades da pena se consubs-
em consideração para se verificar
o âmbito de incidência do princípio OS MAGISTRADOS A tanciam em um dos elementos
de maior carga político-criminal.
e sua possível aplicação. Em um
primeiro plano, há de se analisar o DESCONSIDERAR CASOS A grande vitória de Claus Roxin,
no dizer de Jorge de Figueiredo
bem jurídico em termos concretos
para se auferir se a lesão ao valor
EM QUE O VALOR DO Dias (1999, p. 111), no que tange à
sua Teoria Dialética Unificadora
protegido é realmente reconhecida
como ínfima pelo corpo social. Em
FURTO É IRRISÓRIO DE da pena, é que ela foi a única que
conseguiu unir as finalidades da
segundo momento, o bem jurídico MODO A NÃO TRAZER pena que existiam em diversos pa-
necessita ser considerado por noramas, em uma única concep-
intermédio de uma visão global, PREJUÍZO REAL À VÍTIMA ção de fins das penas, sem cair no
promovendo-se uma ponderação erro de todas as outras teorias que
panorâmica, e não concentrada, E À SOCIEDADE." buscavam mesclar finalidades pre-
já que não se justifica suportar a ventivas gerais e especiais, essas
lesão em seu excesso. Nesse plano, chamadas Teorias da Prevenção
é importante avaliar a pessoa do autor, já que o princípio em análise Integral e também as teorias que buscavam combinar teorias retri-
não pode se configurar em um incentivo ao cometimento de delitos. butivas e teorias preventivas gerais e, em especial, as teorias mistas.
O réu reincidente, por exemplo, com vários antecedentes não deve
Assim sendo, reconhecem-se as quatro finalidades da pena que
receber o benefício da atipicidade por bagatela. Em terceira situação, hoje fundamentam a normatividade brasileira nessa seara. As
reflete-se sobre a consideração particular dos bens jurídicos finalidades da pena, portanto, dividem-se entre prevenção geral e
imateriais de expressivo valor social. O meio ambiente, por exemplo, prevenção especial, cada uma detendo uma perspectiva positiva
não tem valor traduzível em moeda ou riqueza material, assim, ao e uma negativa em seu interior. Pode-se definir que a finalidade
analisar o crime, torna-se essencial enquadrar o bem jurídico sobre preventivo-geral positiva da sanção penal é a revalidação da
o prisma social merecido. vigência da norma, um instrumento de proteção da normatividade,
Dessa forma, a jurisprudência estabeleceu quatro critérios para a da consciência social da norma (CORRÊA JÚNIOR; SHECAIRA,
possibilidade de aplicação do princípio da insignificância: a mínima 2002, p. 132). Já sua prevenção geral de caráter negativo é promover
a intimidação do corpo social por meio do sancionamento do
ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade
agente que desrespeitou o bem jurídico tutelado pela norma. Em
social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do
sua dimensão preventivo-especial, voltada à pessoa do agente, sua
comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
manifestação positiva se firma na busca pela ressocialização. Já
Contemporaneamente, sabe-se da importância da influência de sua perspectiva negativa reporta-se à exclusão do agente do corpo
mandamentos político-criminais no âmbito da dogmática jurídico- social, sua segregação (FERRARI, 2001, p. 51). Destarte, apenas seria
penal. Roxin (2000, p. 16-17) afirma que: “para uma teoria do delito merecedora de pena aquela conduta e aquele cidadão que tivesse
que, à maneira positivista, exclui todos os pontos de vista político- necessidade de sanção penal, a partir de suas finalidades.

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Ou seja, as finalidades da pena se comportam, também, como voltada à recomposição social do cidadão, ou seja, não existe
elementos político-criminais de verificação de uma lesão a bem carência em ressocializar. Percebe-se que a comunicação social do
jurídico tutelado. Apenas quando se verifica a necessidade de delito não informa sobre um agente com déficit de socialização, mas
estabelecer sanção criminal, que suas finalidades sejam úteis, é que sim uma mensagem-conduta que demonstra vulnerabilidade social.
se legitima o merecimento da pena. Não há razão em se aplicar uma
Por fim, o quarto requisito jurisprudencial, o “reduzidíssimo grau
pena quando nenhuma de suas finalidades são necessárias. Essa
de reprovabilidade do comportamento”, vincula-se à concepção da
é a orientação teleológica que se busca ao estabelecer os fins da
prevenção especial negativa. Nesse âmbito, verifica-se que se o grau
pena.
não detém reprovabilidade relevante, não há motivo para segregar
Nesse contexto, nota-se que os critérios estabelecidos para a o agente. Se o comportamento não está efetivamente afetando a
aplicação do princípio da insignificância pela jurisprudência coletividade, o hiato que a pena criaria entre o cidadão e o corpo
brasileira, nada mais são do que a racionalização e a adequação dos social para o reprovar por intermédio da sanção é desnecessário.
mandamentos político-criminais das finalidades da pena à estrutura
Dessa forma, nota-se a evidente conexão entre os critérios
dogmática da tipicidade quando está em debate uma conduta que,
jurisprudenciais desenvolvidos para a verificação da incidência do
apesar de deter tipicidade formal, materialmente não causa lesão
princípio da insignificância e as finalidades da pena que podem ser
real a bem jurídico. Ou seja, nota-se que pela baixíssima lesividade
extraídas do caput do art. 59 do Código Penal. Esse reconhecimento
da conduta a aplicação de uma pena não atingiria nenhuma de suas
demonstra como que os valores político-criminais penetram na
finalidades.
dogmática jurídico-penal, mais especificamente no interior da
Verifica-se, portanto, que os quatro critérios desenvolvidos para a tipicidade, quando se reflete sobre o princípio em tela.
incidência do princípio da insignificância consubstanciam-se nas
Observa-se, portanto, em um cenário de pós-pandemia, onde
finalidades da pena. E seu desenvolvimento se dá pela necessidade
um relevante número de pessoas se encontra em estado de
da penetração de mandamentos político-criminais no interior da
hipossuficiência econômica, que uma hermenêutica de caráter
dogmática, ampliando o fator deontológico na hermenêutica jurídica.
normativo possibilita uma ponderação alinhada às necessidades
O critério jurisprudencial “inexpressividade da lesão jurídica contemporâneas e aos critérios da intervenção jurídico-penal. O
provocada” está completamente alinhado à prevenção geral positiva. princípio da insignificância pode atuar nesse contexto avaliando
A verificação do irrelevante grau de mácula normativa se mostra a lesividade das condutas e excluindo, no âmbito da tipicidade
adequada à reflexão que se faz, no âmbito das finalidades da pena, material, a imputação de agentes que cumpram com os requisitos
da desnecessidade de tutelar a norma que prevê o comportamento estabelecidos pela jurisprudência nacional. Essa possibilidade se
delitivo mediante a pena. alinha às correntes doutrinárias atuais que reclamam uma ampliação
dos mandamentos valorativos no contexto da dogmática jurídico-
Outro requisito jurisprudencial de fácil conexão com uma das
penal, no intuito de buscar soluções condizentes com o valor da
finalidades da pena é a “ausência de periculosidade social da
dignidade humana. Assim, nota-se nos critérios jurisprudenciais do
ação”. Critério voltado ao corpo social, alinha-se com a perspectiva
princípio em análise a manifestação político-criminal das finalidades
preventivo geral negativa de intimidação por intermédio da aplicação
da pena, de forma a demonstrar que essa penetração deôntica está
da sanção criminal. Avalia-se que no âmbito do delito insignificante,
sendo gradualmente absorvida e orientada para que haja um nível
não existe razão para lançar mão da pena se não é necessária a
de controle na valoração de maneira a otimizar a forma como se dá
mensagem intimidatória direcionada à coletividade, já que sua
a intervenção penal. A abertura da dogmática aos valores político-
versão positiva também não está presente.
criminais, portanto, está acontecendo e os critérios jurisprudenciais
Terceiro elemento, já voltado à pessoa daquele que comete o ilícito- do princípio da insignificância são um exemplo disso ao excluir a
típico formal, a “mínima ofensividade da conduta do agente” se tipicidade material de furtos de pequena relevância que, infelizmente,
conecta com a prevenção especial positiva. Se a ofensividade da aumentaram no período.
conduta é irrelevante, não há razão para estabelecer uma sanção

Referências

BÜLLESBACH, Alfred. Princípios de teoria dos sistemas. In: KAUFMANN, Arthur; MACHADO, Leandro. Os brasileiros presos por furto de comida na pandemia de covid.
HASSEMER, Winfried (org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito BBC News Brasil, 18 jun. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/
contemporâneas. Trad. Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. 2. ed. Lisboa: Fundação brasil-57477601. Acesso em: 9 set. 2022.
Calouste Gulbekian, 2009. p. 409. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 10. ed. rev. atual. e ampl. Rio de
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisadas. São Paulo: Janeiro: Forense, 2014.
Revista dos Tribunais, 1999. ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro:
CORRÊA JÚNIOR, Alceu; SHECAIRA, Sergio Salomão. Teoria da pena: finalidades, direito Renovar, 2000.
positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Pref. e Trad. José Engrácia
Tribunais, 2002. Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
FERNANDES, Fernando Andrade. Sobre uma opção jurídico-política e jurídico- ZAPATER, Maíra. Crime é acusar de furto quem revira o lixo para procurar alimento.
metodológica de compreensão das ciências jurídico-criminais. In: ANDRADE, Manuel Migalhas, 29 out. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/354092/
da Costa (org.). Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Ed. Coimbra, crime-e-acusar-de-furto-quem-revira-o-lixo-para-procurar-alimento. Acesso em: 9 set.
2003. p. 53-83. 2022.
FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático
de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

Recebido em: 29.09.2022 - Aprovado em: 15.02.2023 - Versão final: 03.04.2023

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Programa IBCCRIM de Mentoria Online

A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E


A ACESSIBILIDADE NO SISTEMA
PRISIONAL BRASILEIRO
THE PERSON WITH DISABILITIES AND ACCESSIBILITY IN THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM

Júlia da Silva Ribeiro Fabiana Zanatta Viana


Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduada em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura de
aplicados pela Universidade Salvador. Bacharel em Direito São Paulo. Especializada em Direito Penal Econômico pela Faculdade de
pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Direito da Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Pós-graduada em Direito
ORCID: https://orcid.org/0009-0007-0598-428X Sistêmico pela Hellinger Schule em parceria com a Faculdade Innovare.
juliadsribeiro99@gmail.com Pós-graduada em Meios Adequados de Solução de Conflitos Hellinger
Schule em parceria com a Faculdade Innovare. Advogada.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0150609624812637
ORCID: https://orcid.org/0009-0000-5620-2072
fabianaviana@pagliuso.com.br

Resumo: O presente estudo tem como objetivo averiguar a proteção ao Abstract: This study aims to investigate the protection of the right
direito à acessibilidade das pessoas com deficiência inseridas no sistema prisional to accessibility for people with disabilities in the Brazilian prison system.
brasileiro. A acessibilidade é um direito fundamental para todas as pessoas com Accessibility is a constitutionally guaranteed fundamental right for all people
deficiência (PCDs) garantido constitucionalmente. Partindo disto, verificou-se as with disabilities. Based on this, the accessibility conditions in the Brazilian
condições de acessibilidade no sistema prisional brasileiro por meio da análise prison system were verified through the analysis of data and censuses
de dados e censos dispostos em meio eletrônico. Constatou-se que inseridas em available electronically. It was found that inserted in a precarious system and
sistema precário e em crise, as pessoas com deficiência estão marginalizadas in crisis, people with disabilities are marginalized doubly, having their basic
duplamente, tendo desrespeitados seus direitos básicos à acessibilidade, que rights to accessibility disrespected, which are not recognized in the criminal
não se encontram reconhecidos nas tutelas do ordenamento jurídico criminal. legal system.
Palavras-chave: Acessibilidade; Pessoas com deficiência; Sistema prisional brasileiro. Keywords: Accessibility; People with disabilities; Brazilian prison system.

1. Introdução das pessoas com deficiência vista como uma questão de Direitos
Humanos, em 1975, foi proclamada pela Assembleia Geral das
De acordo com o censo de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia Organizações das Nações Unidas a Declaração dos Direitos das
e Estatística (IBGE), 8,4% da população brasileira é composta por
Pessoas Deficientes. Posteriormente, nos anos 2000, foi promulgada
pessoas com deficiência (PCDs). Conforme art. 2º da Lei 13.146/2015,
a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas
a pessoa com deficiência é aquela que: “tem impedimento de longo
de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência.
prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação Atualmente, a deficiência é conceituada por meio do modelo
plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as biopsicossocial, instituído pela Organização Mundial de Saúde por
demais pessoas.” meio da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade
A deficiência, tratando-se de uma característica corporal do e Saúde (CIF), caracterizando-se como resultado da interação entre
indivíduo, era vista inicialmente como uma tragédia pessoal, sendo as condições de saúde física e psicológica do indivíduo, os fatores
conceituada pelo modelo médico como uma lesão que acarretava pessoais e externos. Assim, a deficiência passou a pertencer ao
a incapacidade física da qual o indivíduo deveria ser curado ou domínio de saúde, e não apenas ser a consequência de uma doença
tratado. Assim, a garantia de direitos da PCD era voltada a minimizar, ou lesão, mas consistindo em um aspecto relativo à saúde humana
por meio da integração e reabilitação, os efeitos da deficiência e das características físicas, mentais e sociais que compõem o bem-
em sua vida cotidiana, por meio de políticas assistencialistas, que estar do indivíduo (DINIZ, 2007).
fortaleciam o estereótipo da pessoa com deficiência necessitada de Em 2007, foi elaborada a Convenção Internacional sobre os
caridade pública (RAMOS, 2017). Direitos das Pessoas com Deficiência, visando garantir sua plena
Apenas nos anos 1970, a deficiência deixou de ser tratada como participação na sociedade, acesso a serviços, o gozo das liberdades
questão médica necessária de adaptação do indivíduo à sociedade, e reconhecimento da sua autonomia, em igualdade, às pessoas
passando a ter o papel de se adaptar, assegurando a igualdade sem deficiência. No entanto, as previsões legais existentes não são
material, eliminando as barreiras e promovendo a inclusão destes suficientes para promover a vida digna às pessoas com deficiência
indivíduos (RAMOS, 2017). Desta forma, sendo a dignidade de vida e o reconhecimento da autonomia delas ainda é um desafio para a

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sociedade. Este desafio é ainda maior quando se refere às pessoas parcialmente adaptados. A falta de acessibilidade constatada
com deficiência em situação de prisão. nos estabelecimentos prisionais se agrava quando colocadas em
contraste juntamente da precariedade em que se encontram as
Conforme dados de 2022 do Departamento Penitenciário Nacional, o prisões no Brasil.
sistema prisional brasileiro abarca um total de 837.443 pessoas sob a
custódia do Estado, encontrando-se inseridos nos estabelecimentos Constatando ser insuficiente as condições de acessibilidade nos
prisionais, no âmbito estadual, 6.528 homens e 487 mulheres que estabelecimentos prisionais, por meio do artigo 4º, inciso II da
têm algum tipo de deficiência (intelectual, física, auditiva, visual e Resolução 3, de 13 de setembro de 2019, o Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária reconheceu como essencial
múltiplas) e, em âmbito federal, apenas seis homens com deficiência.
a construção de cela destinada à Pessoa com Deficiência, bem
Apesar dos dados significativos, não há previsões legais específicas
como sanitários e demais requisitos que garantam a acessibilidade
para estipular os direitos da pessoa com deficiência durante o destes custodiados. A edição de referida Resolução contribuiu
cumprimento de medidas e penas restritivas de liberdade. para pequenos, mas importantes avanços no quantitativo de
Deste modo, com ausência de leis penal/execução penal sobre o estabelecimentos prisionais com total ou parcial estrutura com
tema, as pessoas com deficiência encontram-se inseridas em um acessibilidade.
sistema prisional repleto de falhas no cumprimento das finalidades A partir destes esforços, de acordo com o Levantamento Nacional
jurídico-criminais e sociais, sendo atingidas junto a outras populações de Informações Penitenciárias de 2022, houve uma diminuição
consideradas subalternas, tendo sua subjetividade apagada pelas para 73% no número de estabelecimentos prisionais cuja alas ou
próprias condições de aprisionamento (SPINIELI; MARTINS, 2021). celas não têm adaptação, o aumento para 11% de estabelecimentos
Partindo-se desse pressuposto, este artigo pretende analisar a prisionais com estruturas de módulos, alas ou celas adaptadas, e o
proteção ao direito à acessibilidade no sistema prisional brasileiro. aumento de 16% de espaços parcialmente adaptados no país.
2 . Acessibilidade, direito fundamental da pessoa com deficiência Apesar dessa pequena mudança nos números, as políticas de
dentro e fora das prisões acessibilidade no sistema prisional não contemplam a maioria dessa
população prisional, agravando-se a situação, ao analisarmos a Lei
A acessibilidade é direito reconhecido constitucionalmente e de de Execuções Penais, o Código de Processo Penal e o Código Penal,
suma importância para as pessoas com deficiência. Nos artigos 23, e nos depararmos com a ausência de normas sobre o tema e outros
inc. II e 24, inc. XIV da Constituição Federal, estabelece-se a proteção direitos das pessoas com deficiência, tampouco o estabelecimento
aos direitos das PCDs, com o intuito de garantir direitos básicos e de parâmetros para o cumprimento de penas e medidas restritivas
acesso a serviços, bem como a proteção contra a discriminação. Já de liberdade destes indivíduos em domicílio ou estabelecimentos
os artigos 227 e 244, também da Magna Carta, tratam da promoção prisionais.
deste direito (a acessibilidade) por meio da construção e adaptação 3. Esforços para a promoção da acessibilidade em estabeleci-
de edificações e logradouros de uso público. De acordo com o art. mentos prisionais
3º, inc. I, da Lei 13.146/2015, a acessibilidade consiste na promoção da:
O número de pessoas com deficiência encarceradas no Brasil
possibilidade e condição de alcance para utilização, com seguran- encontra-se em crescimento, comparando-se os dados censitários
ça e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, do Depen dos anos de 2014 a 2022, já que se verifica que nos
edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus estabelecimentos prisionais estaduais houve um acréscimo de
sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações 5.440 pessoas. Estes estabelecimentos apresentam uma série de
abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, problemas como a superlotação, ausência de condições sanitárias,
tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência insalubridade e profissionais de saúde, problemas de infraestrutura,
ou com mobilidade reduzida. de alimentação, estudo e trabalho, a inobservância de direitos
Em adição, a internalização da Convenção de Nova York por meio fundamentais, acarretando prisões desumanas que violam o direito
do Decreto 6.949/2009 se demonstrou relevante, pois atualizou e à dignidade. Tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar
reafirmou o pacto do Brasil com a proteção da pessoa com deficiência. a ADPF 347, considerou o sistema prisional brasileiro um estado de
Posteriormente, no ano de 2015, a regulamentação do Estatuto da coisas inconstitucional, por massiva dos direitos fundamentais.
Pessoa com Deficiência buscou a plena e efetiva participação e Nessa toada, levando em consideração a crise no sistema prisional
inclusão na sociedade desses indivíduos, promovendo e protegendo brasileiro e as mazelas advindas da superlotação, insalubridade e
os direitos nos mais diversos âmbitos do direito. ausência de estrutura adequada para os estabelecimentos prisionais
cumprirem o seu papel ressocializador, bem como diante da falta
Ainda no contexto do Direito Internacional, as Regras Mandela,
da ausência de leis a respeito do tema, pode-se dizer que as
estabelecidas pela ONU, que têm o intuito de garantir o cumprimento
pessoas com deficiência, privadas de liberdade, são duplamente
dos Direitos Humanos, por meio de princípios e regras sobre marginalizadas e carregarão os efeitos estigmatizantes do crime e
organização penitenciária e tratamento de presos, reconhecem a das dificuldades impostas pelo sistema diante da deficiência que
pessoa com deficiência, visando a igualdade de tratamento e acesso apresentam (OLIVEIRA; BRAGA; ATAÍDE, 2021).
à justiça, respeitando suas particularidades.
Reconhecendo as falhas do sistema prisional em proporcionar às
Contudo, no que se refere à execução da pena, a garantia de direitos pessoas com deficiência direitos básicos, o Ministério da Justiça,
se mostra relativizada. O Código de Processo Penal, em seu artigo por meio do Departamento Penitenciário Nacional, estabeleceu a
117, inciso III, da Lei de Execução Penal, prevê apenas que a pessoa a Nota Técnica 83, de 2020, com o intuito de instituir procedimentos
ser punida possa ter fixado o regime aberto, em residência particular, quanto à custódia de pessoas com deficiência no sistema prisional
caso tenha filho menor ou deficiente físico ou mental. Já o Estatuto brasileiro, atendendo aos regramentos nacionais e internacionais.
da Pessoa com Deficiência , no artigo 79, § 2º, estabelece que, para
as PCDs, devem ser garantidos e assegurados os mesmos direitos Cabe salientar que a acessibilidade não se restringe apenas à
que fazem jus aos outros presos. Mas esta garantia não encontra adaptação dos espaços físicos e a Nota Técnica 83, de 2020 trouxe,
respaldo nos dados penitenciários colhidos. além das questões em relação aos espaços físicos, recomendações
sobre procedimentos de segurança, que deverão respeitar as
De acordo com estudo do Infopen de 2019, foi constatado que 79% limitações decorrentes da deficiência, acesso à educação inclusiva
dos estabelecimentos prisionais não dispõem de alas ou celas em todos os níveis, acesso à saúde de qualidade e continuidade de
adaptadas, sendo apenas 9% dos estabelecimentos prisionais com tratamentos de habilitação e de reabilitação sempre que necessários,
estruturas de módulos, alas ou celas adaptadas, e 11% dos espaços acesso ao trabalho, devendo este ter ambiente disponível e atividades

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inclusivas, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas Contudo, apesar de formalmente garantidos, as conquistas de
encarceradas, assistência social e religiosa. Todavia, notas técnicas direitos e políticas sociais são inacabadas e não alteraram, de forma
não dispõem da força de lei, tendo caráter apenas de recomendação. estrutural, a dignidade destas pessoas. Especialmente no que refere
O artigo 4º, § 1º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, estabelece ao sistema prisional, constata-se que as pessoas com deficiência
que se considera discriminação em razão da deficiência toda se encontram neste inseridas, tendo os seus direitos humanos
forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, massivamente violados. Vale clarificar que o Estado Brasileiro é o
que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular agente diretamente responsável pela constante violação a estes
o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades direitos, mediante ações ou omissões. Especialmente no que tange
fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de a garantia de direitos de PCDs em situação de prisão, a ausência
adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas. de lei penal e execução penal específica que disponha desta tutela
Deste modo, o panorama atual da tutela das pessoas com deficiência é a principal causa para o não acolhimento e concretização de
em restrição de liberdade revela grave violação ao Estatuto da garantias. A tardia, porém, positiva elaboração da Nota Técnica do
Pessoa com Deficiência. Depen a respeito do tema, nos mostra que ainda há muito a ser feito.
Ademais, não sendo tão bem assistidos os direitos dos presos com Mas há boas práticas sobre o tema e estas merecem destaque. O
deficiência, firmou-se tese defensiva solicitando prisão domiciliar Projeto de Lei 4.008, de 2019, de autoria da Senadora Mara Gabrilli
humanitária durante a execução da pena. Neste sentido, os tribunais (PSDB/SP), é extremamente relevante, pois sugere alteração na Lei
superiores consolidaram entendimento em analogia ao art. 117 do de Execução Penal, e prevê que pessoas com deficiência cumpram
CPP de que a excepcionalidade apenas será abarcada nos casos pena em estabelecimentos adaptados à sua condição, além de
em que for comprovado que a deficiência ofereça risco naquele assegurar que os recursos para as obras de adaptação das unidades
ambiente ao réu ou não haja possibilidade de tratamento adequado,
prisionais serão providos pelo Fundo Penitenciário Nacional
conforme julgamento do RHC 95.741/SC.
(Fupen). Este projeto encontra-se no Senado Federal, aguardando
Os tribunais estaduais também discutem a temática, tendo, como designação do relator.
exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que no julgado
do HC 70.083.541.342/2019, firmou assertivamente jurisprudência Com propósito semelhante, o Ministério dos Direitos Humanos e da
com fundamento no art. 4º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, Cidadania promove ações e programas destinados às PCDs, como o
que a manutenção de preso com deficiência, no caso em tela, a visual, Cadastro Inclusão, que é o registro público eletrônico que armazena
em casa prisional despida da respectiva acessibilidade constitui informações de pessoas com deficiência, assim caracterizadas pela
efetiva violação a garantias constitucionais e legais. Apesar dos avaliação biopsicossocial, bem como de barreiras que impedem
entendimentos jurisprudenciais colacionados, não houve mudanças a realização de seus direitos. Este cadastro integra uma base de
significativas nas políticas do sistema penal brasileiro, caminhando a dados de políticas públicas relacionadas aos direitos da pessoa com
passos vagarosos a evolução para uma tutela adequada às pessoas deficiência, informações de censos nacionais e de demais pesquisas
com deficiência em privação de liberdade e respeito aos seus direitos. realizadas no país (base de dados analítica), contribuindo para o
encontro entre políticas e cidadão.
4. Conclusão

Ao longo da história, as pessoas com deficiência foram estigma- É necessário que a inclusão da pessoa com deficiência ocorra em
tizadas sendo tratadas como indivíduos frágeis, sem autonomia, todos os âmbitos da sociedade, para que a acessibilidade, igualdade
sem reconhecimento social e com discreta agenda política a elas e a dignidade sejam cada vez mais efetivadas e garantidas. Um olhar
dedicada. Com a evolução dos modelos de conceituação de defi- mais aprofundado sob o tema urge e convidamos a todos para que
ciência e as lutas por direitos, as pessoas com deficiência tiveram façam essa importante reflexão, para que mais políticas públicas
seus direitos pautados em conferências e acordos internacionais, sejam implementadas e possam, de verdade, proporcionar que
em legislação local e, claro, em debates públicos chefiados por a pessoa com deficiência possa cumprir a pena de forma digna,
lideranças da pauta. humana, sem discriminação e violência.

Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Nacional. Nota Técnica nº 83/2020/DIAMGE/CGCAP/DIRPP/DEPEN/MJ. 31 jul. 2020.
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Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/d3956.htm. Acesso tem 17,3 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. Agência de Notícias IBGE,
em: 15 abr. 2023. Estatísticas Sociais, 26 ago. 2021. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/
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da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, tem-17-3-milhoes-de-pessoas-com-algum-tipo-de-deficiencia. Acesso em: 15 abr. 2023.
Brasília, DF, 7 jul. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; BRAGA, Romulo Rhemo Palitot; ATAÍDE, Candice
2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 15 abr. 2023. Queiroga de Castro Gomes. A inclusão da pessoa com deficiência física no sistema
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Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: 12º Ciclo – Infopen. Relatório SPINIELI, André Luiz Pereira; MARTINS, Adhara Salomão. Pessoas com deficiência
Analítico Nacional, jun. 2022. https://app.powerbi.com/w?r=eyJrIjoiNWQ0ODM1OTQtM e o fenômeno do encarceramento a partir de uma abordagem de direito ítalo-
mQ2Ny00M2IyLTk4YmUtMTdhYzI4N2ExMWM3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtND brasileiro. Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa Vista, v. 5, n. 15, p. 60-66, 2021. DOI: 10.5281/
NmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 15 abr. 2023. zenodo.4569182. Disponível em: https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário article/view/230. Acesso em: 31 mar. 2023.

Recebido em: 11.08.2022 - Aprovado em: 07.12.2022 - Versão final: 20.04.2023

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A INSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI E SEUS
REFLEXOS NA VIOLÊNCIA PERPETUADA
CONTRA A POPULAÇÃO NEGRA
TRIAL BY JURY AND ITS REFLECTIONS ON THE VIOLENCE PERPETRATED AGAINST BLACK
PEOPLE

Mariana Secorun Inácio


Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professora da Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Professora da Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8476541288705102
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6160-7058
mariana.inacio@mackenzie.br

Renê Pereira da Cruz Erika Chioca Furlan


Graduado em Direito pela Universidade Mestre em Direito pela PUCSP. Professora da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Advogado. Presbiteriana Mackenzie. Advogada.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8958383006502841 Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8306775720246393
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9502-7019 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1303-3381
renepdc@gmail.com erika.furlan@mackenzie.br

Resumo: Raimundo Nina Rodrigues construiu uma criminologia racial Abstract: Raimundo Nina Rodrigues developed a racial prejudiced
preconceitusa, com suposto caráter científico. O instituto do Tribunal do Júri criminology, supposedly based on science. Trial by jury has mechanisms
prevê mecanismos para a propagação desse discurso, como a ausência de that allow the perpetration of those ideals, such as the unnecessity of
fundamentação das decisões por parte dos jurados. Tal previsão torna-se motivation of jurors’ decisions. This institute becomes a facilitator for society,
instrumento para a sociedade, contaminada com o estereótipo do criminoso contaminated with the “savage” black criminal stereotype, to perpetuate
negro “selvagem”, de perpetuar a violência racial em suas decisões. racial violence in their decisions.
Palavras-chave: Criminologia Racial; Esterótipo; Tribunal do Júri. Keywords: Racial Criminology; Stereotype; Trial by Jury.

O surgimento de uma criminologia com roupagem científica se deu consistente na figura do criminoso, assim como Lombroso, Nina
com a escola positivista, tendo como principal expoente Cesare Rodrigues se apoia no darwinismo social para justificar sua posição
Lombroso, com estudos focados no indivíduo deliquente. Seus de superioridade do homem branco. Darwin, ao traçar a árvore
estudos abrangem características anatômicas, como assimetria genealógica da humanidade, concluiu como sendo a África o ponto
facial, formato de orelhas e mandíbulas, seguido por aspectos de partida da espécie. Por meio da hereditariedade, as características
psicológicos, como sensibilidade, inteligência, uso de gírias e moral. passavam de geração em geração e, constantemente, da mistura de
Para Lombroso (2016), toda característica importava, bastando que genes diferentes, surgiam novas raças. Esse conceito permitiu aos
se identificasse o padrão correto, capaz de diferenciar os normais criminológicos da época sustentar o argumento de que a África seria,
dos selvagens. portanto, o local de menor evolução, enquanto os mais evoluídos
foram se afastando (ANITUA, 2019, p. 297-304).
Sob a ótica de Lombroso, o criminoso nato surge a partir dessa
combinação de características físicas e psicológicas, indicando Se os ideais darwinianos já serviram de suporte para a construção
um retrocesso enquanto ser humano. Na interpretação de Salo de lombrosiana do conceito de criminoso atávico – indivíduo com
Carvalho (2015, p. 228-258), a ideia lombrosiana de delinquente “falhas genéticas” provocadas por uma possível formação fetal
deriva da sua não aceitação da criminalidade como fato social, precocemente concluída, cujo estágio de desenvolvimento não
razão pela qual se dedicou a diferenciar o indivíduo civilizado do alcançou o nível evolutivo atual da sociedade, estagnando em um
bárbaro. Essa “segunda classe” de pessoas possuiria características patamar anterior –, as conclusões acerca do grau de evolução dos
físicas típicas de povos antigos, normalmente com referência ao povos africanos serviu de suporte para corroborar “cientificamente”
formato do crânio, o que os levava, cedo ou tarde, a assumirem um as conclusões de que o negro seria selvagem devido à sua
comportamento bárbaro, típico do período pré-civilizatório. inferioridade evolutiva.
Em solo brasileiro, o principal difusor dos ideais lombrosianos foi Trazendo essa concepção para o contexto brasileiro do final do
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). Ao buscar por um “outro”, século XIX, logo após a abolição da escravatura, Nina Rodrigues

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vai identificar o “inimigo” com aquilo que vinha se tornando um instituições, assim como o governo, seus órgãos e demais estruturas,
problema para a sociedade oligárquica: o negro. Apropriando-se são comandadas, em geral, por brancos, que atuam de forma a
de características físicas do delinquente lombrosiano, os estudos perpetuar o privilégio branco (NASCIMENTO, 2016, p. 57-72).
brasileiros tiveram início não com a busca pelo sujeito que se
Ademais, para além dos indivíduos e das instituições, ambos compõem
adequasse a determinadas características, mas sim, de forma
a estrutura social, historicamente pautada em princípios e valores
dirigida, fixando características típicas do sujeito predeterminado.
morais de um determinado grupo, que exerce poder sobre os
Logo de início, Nina Rodrigues rechaça qualquer possibilidade de demais, sendo justamente na manutenção dessa estrutura social
igualdade entre as raças. Seu argumento é de que a concepção que agem as instituições. Representando o nível mais abrangente
espiritualista de uma alma da mesma natureza para todos os povos da sociedade, a estrutura social foi moldada, ao longo do tempo,
em muito diverge dos conhecimentos científicos, logo que, as para servir a uma cultura escravocrata, sendo que, de tempos em
raças superiores triunfaram e evoluíram física e psicologicamente, tempos, o poder é revezado entre os brancos, enquanto a miséria
enquanto as raças inferiores estagnaram. Uma de suas maiores é a posição mais ocupada pelos negros. O racismo no Brasil é
críticas à realidade brasileira se refere à miscigenação, pois faria individual, institucional e, principalmente, estrutural, o que possibilita
o problema dos negros se alastrar e, à medida que o número de a sua manutenção.
mestiços crescia, a “pureza” ariana se perdia, impossibilitando a
A influência exercida por Nina Rodrigues na sociedade representou
correção social (RODRIGUES, 2011, p. 46-50).
um marco teórico responsável por “justificar” o racismo. Foi
Na ótica do autor, a sociedade pertence à raça superior e os responsável por impactar em políticas públicas de sua época,
legisladores deveriam trabalhar para protegê-la. Por isso, seu circulava por diversos setores de poder, propôs um código penal
discurso era sempre direcionado ao poder legislativo, que deveria especial para os negros e estimulou vários discípulos a seguirem
elaborar um novo código penal primando pela proteção da raça propagando seus ideais.
superior em detrimento das demais, transparecendo uma política de
O modo como o negro sempre foi tratado no Brasil, tanto na
extermínio dos “inferiores”.
perspectiva sociológica, quanto criminológica, culminou no seu
O fim maior das discussões propostas por Nina Rodrigues era o encarceramento em massa. Enquanto o negro representa 55,8%
controle social por meio da purificação da raça, considerando o da população total do país, ao restringir o universo de amostragem
“medo branco”, provocado pela alta propensão à criminalidade das ao sistema carcerário, em especial aos presídios estaduais, esse
raças inferiores. Emprestando o termo cunhado pelo positivismo número aumenta para 66,73%, segundo levantamento referente ao
italiano, Nina Rodrigues é direto ao definir o negro como um sujeito primeiro semestre do ano de 2021 (BRASIL, 2021).
atávico, dotado de primitividade, inferioridade e desenvolvimento
A suposta “superioridade” do branco, quase como uma hierarquia
cerebral incompleto. O negro é descrito como uma “criança grande”,
entre raças, apenas ganhou contornos diferentes, a chibata foi
carente de lei penal diferenciada (GÓES, 2016, p. 211-213).
substituída pelas algemas e, as senzalas, pelas prisões. A ideia de
As conclusões de Nina Rodrigues tendiam a direcionar a política superioridade está de tal forma entranhada na cultura nacional, que
criminal no sentido da manutenção de um regime escravagista permeia o subconsciente de qualquer pessoa.
velado. Enquanto o branco, superior, era benevolente com o negro
Se todo os atores do sistema de justiça criminal encontram-se
e permitia seu convívio social (limitado), detinha para si o poder
contaminados por essas premissas raciais, nada seria diferente para
punitivo supremo, ao qual o negro deveria se submeter. Nesse
os jurados, representados, de acordo com o texto constitucional, por
cenário, ainda que não angariasse adeptos legislativos suficientes a
pessoas do povo, ou “pares”.
favor da eugenia, conseguiria, ao menos, a continuidade da política
excludente, mantendo o negro subjugado sob a bandeira liberal Tal procedimento, responsável pelo julgamento dos crimes dolosos
legitimada por sua ciência. contra a vida, previsto na Constituição Federal, encontra respaldo
na tese de que, sendo a vida o bem jurídico o mais importante bem
Essa herança maldita ainda reflete na forma de organização da
tutelado pelo ordenamento jurídico, nada mais correto do que o seu
sociedade brasileira. Segundo dados de 2018, a população é
exercício pelos cidadãos que compõem o grupo social, existindo um
composta, em sua maioria, por pretos e pardos, na proporção de
suposto julgamento pelos “iguais”.
55,8%. Mesmo assim, o negro é mais pobre do que o branco, sendo
que, entre os 10% com menor rendimento mensal per capita, 75,2% Entretanto, é a legislação infraconstiticional a responsável pela sua
são pretos e pardos, enquanto apenas 23,7% são brancos. Por outro regulamentação. E a característica mais peculiar do julgamento
lado, entre os 10% com maiores rendimentos, somente 27,7% são perante o Tribunal do Júri é a possibilidade de decisão em razão da
negros, ante 70,6% de brancos. Essa diferença também pode ser íntima convicção de cada jurado. Essa expressão difere por completo
notada na participação política, já que, entre os deputados federais, o sistema decisório daquele referente às decisões proferidas por juiz
24,4% são pretos e pardos e, nas assembleias legislativas estaduais ou tribunal, que se atém ao livre consentimento motivado. O jurado
e distrital, essa população ocupa 28,9% das cadeiras (IBGE, 2022). se convence em sua esfera íntima, sem qualquer necessidade de
justificar os motivos que o levaram a decidir, enquanto o juiz deve
Com uma maioria de pessoas negras, o Brasil é o país com maior
fundamentar fática e legalmente as suas decisões.
população negra fora do continente africano, mas, ainda assim,
a quantidade de negros no cenário político, ou em posições de Assim, embora se sujeite às demais regras do Processo Penal, o
destaque no meio empresarial, demonstra que a sociedade se Tribunal do Júri constitui um procedimento totalmente diverso dos
movimenta em benefício do branco. A relação de poder na sociedade demais. Com julgadores “leigos” no sentido jurídico, a sua decisão
brasileira foi moldada sobre diversos preconceitos, o que levou a um é pautada em valores, convicções e nas provas que acusação e
cenário de homens brancos como grandes detentores do poder. defesa produzem em plenário. Caberá, então, a cada jurado, valorar
as provas e externar a sua decisão por meio de um singelo sim ou
A sociedade tem como pilares estruturantes as suas instituições, que
não (VALE, 2014, p. 232-233).
são responsáveis por orientar o comportamento de determinados
grupos e diminuir a incidência de conflitos. Neste ponto, importante Por se tratar de um “tribunal leigo”, a própria lei processual impede,
a divisão entre população e poder. Enquanto a maioria da população de plano, que sejam formuladas questões de conteúdo jurídico aos
é negra, quem detém o poder é o branco e, como consequência, as jurados. Porém, ao positivar tal preceito, o legislador age em direção

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ao afastamento do Tribunal do Júri do que ele, de fato, é. Em razão de ou imprecisos, moldados por experiências e convicções próprias,
ser um tribunal especial, a quem compete o julgamento dos crimes inclusive seus preconceitos.
dolosos contra a vida, não há como dissociar o conteúdo fático do
O Tribunal do Júri é referido como uma “instituição democrática”.
jurídico, já que, para decidir o caso, acerca dos pressupostos para a
Contudo, nota-se que essa representação está longe de ocorrer. Uma
consumação do crime, como a abstração do dolo, assim como para
vez que existe um perfil majoritário de pessoas que exercem a função
possibilitar o juízo de reprovação da conduta, é necessário que os
de jurado, como funcionários públicos, estudantes, aposentados,
jurados façam a correspondência do fato à norma, com todas as
etc., a representatividade se torna, na prática, inalcançável. Ainda,
suas peculiaridades.
a independência do julgador, outra garantia fundamental, fica
O julgamento realizado no Tribunal do Júri não é, portanto, prejudicada, já que os jurados não são alheios ao contexto social ao
estritamente jurídico, pois o que se busca é refletir o posicionamento qual estão inseridos (LOPES JR., 2022, p. 850-852).
da sociedade acerca do fato. Contudo, ao se transportar a sociedade Percebe-se que, embora o Tribunal do Júri seja uma garantia
para um tribunal e lhe conferir a plena autoridade para julgar fundamental, consagrada na Constituição Federal de 1988, o
a conduta de outrem, recairá sobre este todo o contexto moral e seu procedimento, definido infraconsitucionalmente, viola a
político desta mesma sociedade. independência do julgador, a transparência e a fundamentação
A depender deste contexto, o julgamento feito pela sociedade das decisões judiciais, que também são direitos fundamentais do
será moldado conforme os valores caros a ela. Enquanto a lei cidadão. E vai além, perpetuando a violência contra o povo negro,
tem o condão de promover o tratamento igualitário, não fazendo por meio da institucionalização de um mecanismo que facilita a
qualquer distinção quanto a crença, origem, raça ou condição valoração racial no momento do julgamento.
econômica, o júri não carrega tal garantia. Inclusive, a sociedade Não à toa, encontramos dados (FLAUZINA, 2006)1 apontando que,
sofre influências em vários aspectos, por lideranças religiosas e em que pese a juventude negra representar o maior grupo de risco
políticas, circunstâncias econômicas e sociais, formando um modo de morte – para a população de todos os municípios com mais de
de pensar predominante e com uma visão de mundo particular. Toda 100 mil habitantes em 2012, os adolescentes negros possuem um
essa carga valorativa e até emocional é carregada pelos jurados, que risco 2,96 vezes maior de serem assassinados do que os brancos
têm a função de espelhar o conceito da sociedade à qual pertencem (BRASIL, 2014) – o aumento do encarceramento em massa no
e, por isso, a íntima convicção pode não refletir, necessariamente, a Brasil tem visado especificamente essa população. “De 100 mil
visão do indivíduo sobre o fato. Deve-se ter sempre em conta que o habitantes brancos acima de 18 anos havia 191 encarcerados,
ser humano é um ser social e a sociedade tem grande influência em enquanto para cada grupo de 100 mil habitantes negros acima de
suas decisões. 18 anos, 292 estavam encarcerados, ou seja, proporcionalmente o
Desse modo, uma sociedade com grande carga de preconceito encarceramento de negros foi 1,5 vez maior do que o de brancos em
tenderá a produzir um Conselho de Sentença alinhado a esse 2012” (BRASIL, 2015).
ideal. Ou seja, por mais que sejam produzidas e exibidas provas A simples garantia do instituto do júri via Carta Magna não acarreta
e as partes sustentem suas versões sobre os fatos no plenário do a aceitação de tudo o que a lei ordinária lhe disciplina, pois o seu
júri, as influências sociais não podem ser filtradas pela porta de procedimento não pode se tornar instrumento de manutenção
entrada do tribunal. Assim, a íntima convicção é formada ao longo da violência. O contexto atual é de uma sociedade pendendo, em
de toda a vida em sociedade e não apenas no decorrer do plenário, partes, para uma cultura punitivista, centrada na figura do criminoso
definindo as possibilidades de condenação ou absolvição na negro “perigoso”, uma vez que “selvagem”, e que, portanto, deve
proporção em que a sociedade molda seu juízo de valor acerca do ser neutralizado e excluído o quanto antes do grupo social. Assim,
estereótipo do criminoso negro. Com um exame raso e superficial, o abismo social criado por essas premissas certamente torna a
a possibilidade de interferências se eleva, permitindo que a decisão decisão pela íntima convicção dos jurados um mecanismo facilitador
tomada pela íntima convicção seja pautada em cenários deturpados da reprodução de tal cenário.

Notas
1 Conforme Ana Luiza Pinheiro Flauzina, os dados acerca da violência cometida contra negros no Brasil são escassos, visando a institucionalização e reprodução da violência racial.

Referências
ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Trad. Sérgio de Brasília, Brasília, 2006.
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2019. GÓES, Luciano. A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Índice de base estruturante da criminologia brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016.
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VALE, Ionilton Pereira do. O Tribunal do Júri no direito brasileiro e comparado. Porto
FLAUZINA, Ana Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2014.
genocida do Estado brasileiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade

Recebido em: 08.09.2022 - Aprovado em: 21.10.2022 - Versão final: 04.01.2023

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BOLETIM IBCCRIM - ANO 31 - N.º 366 - MAIO DE 2023 - ISSN 1676-3661


PROTODEFESA
E PROTEÇÃO DE
DADOS PESSOAIS NA
PERSECUÇÃO PENAL
PROTODEFENSE AND PROTECTION OF PERSONAL DATA IN CRIMINAL PROSECUTION

Juan Lopes Amaral Rocha


Bacharelando em Direito pela PUC-SP.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/7668134598463446
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1305-6436
juanlopesamaral@gmail.com

Resumo: Dada a dinâmica processual em que os indivíduos sofrem Abstract: Given the procedural dynamics in which individuals undergo
intervenções em seus direitos e garantias sem qualquer contraponto defensivo, interventions in their rights and guarantees without any defensive counterpoint,
este artigo trata da proposta de instituição da protodefensoria, isto é, de um this article deals with the proposal for the institution of protodefense, that
departamento público, dentro da Defensoria Pública, responsável por postular is, a public department, within the Public Defender’s Office, responsible for
pela proteção dos dados pessoais, quando da persecução penal por meio de advocating for the protection of personal data, when criminal prosecution is
métodos ocultos, ou seja, de expedientes investigatórios realizados sem o carried out by means of hidden methods, that is, of investigative expedients
conhecimento das pessoas afetadas. carried out without the knowledge of the people affected.
Palavras-chave: Persecução penal; Dados pessoais; Protodefesa. Keywords: Criminal prosecution; Personal data; Protodefense.

Se saber é poder, o Estado não pode saber tudo, porque um estado existir para que haja o devido respeito ao direito de desenvolvimento
que tem conhecimentos ilimitados tem também um poder ilimitado. da personalidade, a paulatina compreensão (ainda em curso) do
O direito de proteção de dados, que começa como direito subjetivo,
mostra-se, ao menos em boa parte, como garantia institucional,
perigoso uso do processamento informatizado de dados pelo
relativa à própria estrutura da sociedade e do Estado (GRECO, L. In: Estado1 e de bases comuns a diversos órgãos estatais (em violação
WOLTER, 2018, p. 45). ao princípio da separação informacional dos poderes), para ter à
disposição amplos conhecimentos sobre aspectos privados das
1. Introdução pessoas, faz com que gradativamente se intensifiquem os debates
Se “conhecimento é poder” e muitos conhecimentos só são e reflexões acerca do dever Estatal de proteção de informações
alcançados por meio da análise de dados pessoais, com o aumento pessoais e, consequentemente, sejam tomadas relevantes iniciativas,
quantitativo e qualitativo da circulação e registro desse tipo de dados tais como as que culminaram na Emenda Constitucional 115/2022.
– levando em conta que informações que antigamente circulavam Nessa linha, a partir de investigação bibliográfica, este trabalho se
ou ficavam registradas de modo precário, hoje são intercambiadas dedica a apontar como a instituição da protodefesa contribuiria para
em poucos cliques e permanecem gravadas por custos muito o cumprimento desse dever, quando da persecução penal por meio
menores, devido à evolução tecnológica –, na atualidade é correto de métodos ocultos.
dizer que estudá-los é facilmente um meio de se obter ou exercer 2. A instituição da protodefesa e a garantia de proteção dos
poder e que, nessa medida, as balizas que envolvem seu tratamento dados pessoais na persecução penal por métodos ocultos
precisam ser delimitadas, principalmente, no campo criminal,
para que ninguém seja afetado por investigações, senão de forma Dados pessoais são informações a respeito de uma pessoa, que por
previamente justificada. suas características, em decorrência do dever Estatal de assegurar
o livre desenvolvimento das personalidades, só podem ser
Decorrente da construção de uma rede de garantias que devem tratadas, isto é, coletadas, armazenadas, circuladas e descartadas,

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especialmente pelo Estado, de modo ou em um âmbito que gera a escuta da linha telefônica de alguém envolve a escuta do telefone
legítima expectativa de privacidade para o titular e mediante, no de todas as outras pessoas para quem ele possa ligar (EUA, 1928
mínimo, prévia autorização legal e em obediência aos critérios de [tradução nossa]).
proporcionalidade.2 Isso para: “[reforçar] no indivíduo a confiança de Nessa linha, considerando que há de se prezar pela primazia do
que ele não será vigiado, em circunstâncias normais, podendo agir interesse público sem perder a garantia de delimitar a atuação
com a espontaneidade necessária para ser quem é ou quem deseja estatal: “sobretudo no marco punitivo, que é onde o Estado
ser.” (GLEIZER; MONTENEGRO; VIANA, 2021, p. 115). mostra sua face mais dura e temível” (TANGERINO, 2021), é
essencial reconhecer que: “[o]s métodos de investigação têm
Desta feita, a partir da norma expressa no art. 5º, LXXIX da CF, é
de ser concebidos a partir do direito fundamental ao sigilo das
essencial que o Estado funcione como escudeiro, tanto das formas
comunicações (Fermeldegeheimnis) e da privacidade da pessoa
pelas quais as pessoas buscam resguardar legitimamente os seus
humana; eles têm de ser limitados por instrumentos processuais de
dados pessoais, como do próprio conteúdo informacional que se
proteção ou por direitos de participação.” (WOLTER, 2018, p. 202).
pode extrair deles.
Um instrumento processual de proteção e que garante em
Isso significa que eventuais medidas investigativas só podem ser
alguma medida os direitos de participação (indireta) dos afetados
tomadas se o Estado oferecer garantias (prestações e abstenções) incientes é a protodefesa. Isso porque os protodefensores, diante
adequadas à salvaguarda do caráter sigiloso, inviolável ou mesmo da impossibilidade dos afetados se defenderem gradativamente
intocável – quando se está diante do núcleo da esfera privada ou no desenrolar das intervenções ocultas, seriam designados para
do conteúdo essencial de um direito fundamental (WOLTER, 2018) substituí-los nessa função, exercendo o contraditório e a ampla
(;GLEIZER; MONTENEGRO; VIANA, 2021, p. 67 et seq.) (;GÓES, defesa, que é assegurada aos acusados em geral (art. 5º, LV
2022, p. 413 et seq.) – de dados pessoais tratados em virtude, por da CF), por meio da verificação e eventual postulação em favor
exemplo, do uso de tecnologias essenciais3 e de relações, que por da legitimidade das medidas secretas, mas, ao mesmo tempo,
sua qualidade, obrigam os profissionais interlocutores, isto é, os obrigatoriamente, mantendo o sigilo também em relação aos
confidentes necessários, a guardar sigilo (e.g., advogados, médicos, titulares afetados, até o momento adequado (o encerramento da
etc., cf. arts. 388, II e 448, II do CPC e 207 e 343, § 2º do CPP) ou investigação), para resguardar a efetividade da persecução penal.
permitem que os interlocutores de alguém se recusem a contribuir
Dessa feita – uma vez que na mesma medida que um crime praticado
com persecução penal (direito expresso, em menor amplitude,
na privacidade de um laptop pode causar estragos, qualquer
porque adstrito à prova testemunhal, nos arts. 448, I do CPC e 206
infiltração online ilícita por parte de órgãos estatais também: “é
do CPP).4
uma preocupação evidente, não apenas para o indivíduo, mas para
Destarte, seguindo as linhas que Bobbio (2004) traça no artigo toda sociedade que opta por viver em segurança razoável e livre de
“presente e futuro dos direitos do homem”, uma vez considerado o vigilância” (EUA, 1948 [tradução nossa]) –, quando o direito ao sigilo,
dever de interpretar as normas de modo a dar amplo sentido aos por exemplo, dos dados de Internet Protocol, precisa ceder, sendo
Direitos Humanos, percebe-se que o problema grave de nosso mister que um magistrado imparcial decida (de forma previamente
tempo, com relação a eles não é mais saber quais e quantos são, justificada em lei e nos dados concretos da realidade), é necessário
mas sim buscar o modo mais seguro de garanti-los, ou seja, impedir que não apenas os agentes persecutórios – envolvidos no caso e
que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente aflitos pela responsabilização e por isso mais suscetíveis a romper
violados. os limites da estrita legalidade – se manifestem, mas também que
o protodefensor faça o contraponto a tais pedidos, apontando, por
Nesse sentido, há de se superar o argumento de que é limitado o exemplo, desvirtuamentos finalísticos ilícitos (art. 6º da LGPD) e
âmbito de incidência da proteção de dados pessoais, não sendo, irregularidades em qualquer das etapas de tratamento e custódia
portanto, aplicável quando se fala em intervenções para fins de do dado probatório (coleta, armazenamento, transferência ou
persecução penal,5 para concentrar reflexões acerca do dever de o eliminação) e assim atue na proteção dos dados pessoais, evitando,
Estado fomentar projetos complementares de proteção, tais como muitas vezes, a continuidade e as deletérias consequências de
aquele contido na inovadora proposta da instituição da protodefesa. persecuções penais até mesmo natimortas, isto é, desenvolvidas
A protodefesa, conforme apresentada por Schünemann (2013), sem justa causa, seja porque são preconceituosas, discriminatórias
sugerida por Gleizer (2021) e trabalhada por Fragoso e Rodrigues ou especulatórias (fishing expedition).
(2022), é pensada para atuar em investigações que envolvam Vale assinalar, por fim, que a implementação dessa figura, ainda
métodos ocultos de obtenção de elementos probatórios, isto é, de que não gere, necessária e diretamente, enorme gasto de dinheiro
expedientes feitos necessariamente (para não frustrar a produção público – tendo em mente a possibilidade de realocar defensores
da prova), sem o conhecimento do investigado (v.g., interceptações públicos para criação de núcleos remotos para esse fim, haja vista a
telefônicas). compatibilidade dessa instituição (art. 134 da CF) combinada com a
crescente digitalização dos processos6 –, significará relevante custo
Afinal, com o desenvolvimento de novas tecnologias, surgiram novas
político e institucional até seu estabelecimento.
formas de se obter provas. Entretanto, esses novos métodos dispõem
de grande potencial de devassa em relação aos dados pessoais de Entretanto, como a protodefensoria mitiga os riscos de exposições
indivíduos suspeitos e insuspeitos, porquanto, conforme articulou o opressivas e uso de quebras de sigilos e intimidades de modo injus-
Justice Brandeis, em notável e influente opinion dissidente, há quase tificado ou indevido, as quais todos estamos sujeitos na atual siste-
um século, em um pioneiro julgado sobre interceptação telefônica: mática processual penal brasileira7 ou estaremos submetidos com o
desenvolvimento da tecnologia,8 ela tem expressivo benefício social,
Sempre que uma linha telefônica é grampeada, a privacidade das
pessoas em ambas as extremidades da linha é invadida e todas as o qual justifica o dispêndio de recursos em prol de exercer um papel
conversas entre eles sobre qualquer assunto, ainda que apropriado, pioneiro na proteção de dados pessoais e assim, enfim: “ousar[mos]
confidencial ou privilegiado, pode ser ouvido por acaso. Além disso, mais no sentido da liberdade.” (WOLTER, 2018, p. 210).

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3. Conclusão por se manifestar, na qualidade de escudeira dos afetados, quando
da persecução penal por métodos ocultos.
Por todo o exposto, conclui-se que a proteção de dados pessoais,
por ocupar o lugar de garantia fundamental e, portanto, não poder Por fim, uma vez demonstrado que sua implementação seria um
ser limitada por interpretações e disposições contrárias à lógica modo de garantir para todos a efetiva proteção dos dados pessoais,
constitucionalmente postulada, merece ser salvaguardada conforme por meio do contraditório judicial e de eventuais proposições pela
sua importância. licitude das medidas restritivas ocultas, é indicada a possibilidade e
Nesse sentido, levando em conta a atual dinâmica processual em validade de alocar recursos para que defensores públicos cumpram
que os indivíduos sofrem intervenções secretas sem qualquer pos- esse essencial papel, colocando o Brasil na vanguarda mundial
sibilidade de defesa, foi desenvolvida a inovadora proposta da insti- quanto ao estabelecimento de uma figura protetiva no âmbito da
tuição da protodefensoria, isto é, de um departamento responsável investigação criminal.9

Notas

1
Como a Corte Constitucional alemã já assinalou “um dado irrelevante por si só pode sido objeto de deliberação e aprovação pelo Congresso, de modo que não há de se
adquirir um novo status; desse modo, já não existem mais dados ‘irrelevantes’ no falar em norma vigente e vinculativa, não se pode deixar de considerar que referida
contexto do processamento eletrônico de dados” (ALEMANHA, 1983 [tradução proposta traz relevantes diretrizes interpretativas, em especial se considerarmos que
nossa]). a proposta foi formulada com base no trabalho de um conjunto de especialistas no
2
Compõem a análise de proporcionalidade de determinada medida: a legitimidade do tema” (BRASIL, 2021); e (ii) “por se tratar de espaço no qual há potencial de resultado
fim, sua idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (GLEIZER; de privação de direitos e liberdade, a flexibilização da proteção de dados no âmbito
MONTENEGRO; VIANA, 2021, p. 58 et seq.ss.) (; GÓES, 2022, p. 419-420). penal está sujeita a parâmetros mais exigentes de justificação no curso do devido
3
Com isso em mente, deve-se assegurar, por exemplo, o sigilo da geolocalização que processo para que se torne legítima” (ALMEIDA, 2022).
6
emana de aparelhos eletrônicos, com o fim de mitigar a possibilidade de que por meio Nesse sentido, por todos, cf. as respostas de Gleizer e Badaró (2021).
7
desses dados indevidamente se tome conhecimento de que determinada pessoa tem Segundo dados apresentados por Santoro e Tavares (2019), enquanto nos EUA, por
esse ou aquele comportamento sexual, ou professa certa crença religiosa ou filosófica. exemplo, o número de interceptações, entre os anos de 2015 e 2017, não passou de
Afinal, atualmente, smartphones constituem quase uma “característica da anatomia 7.500 ao ano, no Brasil giram em torno de 300.000, sendo que entre 2015 e 2018,
humana”, levando em conta que as pessoas por necessidade os carregam o tempo estados da federação “tiveram uma taxa de interceptação em relação à sua população,
todo em vias públicas, residências privadas, consultórios médicos, sedes políticas e levando em conta o acumulado dos anos, inferior a 100. Isso significa que, em termos
outros locais, o que faz a localização de um celular geralmente ser a fiel localização de estatísticos, nesses estados a cada 100 pessoas uma é interceptada.”
8
seu proprietário, e nessa medida potencialmente revele não apenas seus movimentos Cf. a profética opinion do Justice Brandeis no sentido de que “[o] progresso da
particulares, mas por meio deles suas associações familiares, políticas, profissionais, ciência em fornecer ao governo meios de espionagem provavelmente não parará
religiosas e sexuais (EUA, 2018). com as escutas telefônicas. Algum dia poderão ser desenvolvidos meios pelos quais
4
Essas relações, assim como as intervenções, encontram-se bem tuteladas, no StPO, o Governo, sem retirar papéis das gavetas secretas, possa reproduzi-los no tribunal,
nos §§ 100a a 100c (que, seguindo o imperativo de determinação e clareza legal, e pelos quais possa expor a um júri as ocorrências mais íntimas do lar” (EUA, 1928
discriminam quais, quando, como e porque intervenções podem ser adotadas), [tradução nossa]).
9
§§ 100d I a V e 160a (que determinam a inadmissibilidade de intervenções ou de Proposta de alteração no CPP para primeira e sucinta disciplina da atuação da
seu uso ou valoração, quando afetam o núcleo central da esfera privada ou o sigilo protodefesa. “Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade
profissional), e §§ 97 e 252 (que proíbem, salvo algumas exceções, a apreensão de da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia
dados de comunicações entre o imputado e as pessoas autorizadas a se recusar tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe
contribuir com a persecução penal, bem como de objetos deixados sob a guarda especialmente: [...] IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação
dessas pessoas e também a reprodução – por meio, especificamente da leitura e, criminal e imediata nomeação de defensor público, nos termos do § 1º do art. 261
por extensão, do testemunho de ouvir dizer –, na audiência, das palavras da pessoa deste Código;” “Art. 261. Nenhuma imputação será investigada, processada ou julgada
que se vale do direito de se recusar contribuir com a persecução penal). Para uma sem defensor, ainda que o imputado esteja inciente, ausente ou foragido.
tradução de diversos desses dispositivos, mais referências e visão crítica, em especial, § 1º Durante a investigação, será nomeado defensor público para postular pela
quanto à postura jurisprudencial alemã no sentido de um crescente viés em aplicar legalidade da investigação e pela salvaguarda dos direitos dos afetados suspeitos
a ponderações para quase sempre autorizar o uso ou valoração de dados obtidos e insuspeitos.
ilicitamente, cf. Wolter (2018, p. 77 et seq.; 112 et seq.; 132 et seq.). § 2º Na hipótese do § 1º deste artigo, o defensor público é obrigado a manter o
5
É imperioso ir contra essa posição porque (i) a LGPD dá proteções gerais, que podem sigilo das investigações, também em relação a qualquer afetado, ao menos até o
e devem ser aprofundadas por leis complementares. Nesse sentido, está em discussão seu encerramento. (Descumprir essa obrigação poderia configurar o tipo do art. 325
um anteprojeto de “LGPD Penal” (para persecução penal, segurança pública e defesa do CP ou do art. 24 da Lei 13.431/2017 ou do art. 2º, § 1º da Lei 12.850/2013) Obs:
nacional), o qual, conforme raciocina o Min. Mendes, “[embora] ainda não tenha Propostas de alteração marcadas em sublinhado.

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Recebido em: 12.11.2022 - Aprovado em: 15.12.2022 - Versão final: 10.04.2023

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TEORIA NEGATIVA DA PENA:
UMA PEQUENA OBSERVAÇÃO
PARA UMA MAIOR CLAREZA
NEGATIVE THEORY OF THE PUNISHMENT: A SMALL OBSERVATION FOR A GREATER CLARITY

Thiago Rocha de Rezende


Doutorando e Mestre em Direito Penal pela UERJ. Advogado.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1955187887202661
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5053-0873
1.thiago.rocha.rezende@gmail.com

Resumo: Se a pena é tão importante para o Direito Penal que deriva dela Abstract: If punishment is so important to Criminal Law that (in Portuguese)
o seu próprio nome – penal –, parece inegável que o estudo das construções it derives its own name ‒ Penal Law ‒ from it, it seems undeniable that the study of
teóricas sobre a pena é essencial para o estudo do próprio Direito Penal. Neste the theoretical constructions on punishment is essential to the study of Criminal
âmbito, o trabalho tem como objetivo jogar luz nas teorias positivas e negativa Law. In this scope, this paper’s objective is to put a spotlight on the positive and
da pena, especialmente os contrastes entre o que os nomes delas podem dar a negative theories of punishment, especially the contrasts between what their
entender e o que os seus conteúdos realmente são, com enfoque especial na names may imply and what contents really are, focusing in the negative theory
teoria negativa da pena, a fim de esclarecer alguns pontos. of punishment, in order to clarify some issues.
Palavras-chave: Teorias positivas da pena; Hipóteses; Teoria negativa da pena; Keywords: Positive theories of punishment; Hypothesis; Negative theory of
Crítica. punishment; Critique.

1. Introdução rece ser esclarecido e este trabalho pretende abordá-lo a partir da


seguinte pergunta: o que se quer dizer exatamente com uma teoria
Quando se questiona o porquê da punição, a resposta mais
que nega as teorias positivas da pena?
conhecida faz referência às teorias positivas da pena, entendidas
como aquelas que atribuem uma função positiva à pena, ou seja, 2. Sobre a classificação como teoria
que entendem que a punição representa um bem para alguém. Tais Comece-se olhando para as próprias teorias positivas da pena.
teorias ainda podem ser divididas em: a) teorias retributivas (ou Dentre as características dos métodos científicos identificadas
absolutas) da pena, que afirmam que a pena se destina à retribuição por Lakatos e Marconi (1991, p. 114), cabe destacar um deles,
do mal praticado; e b) teorias preventivas (ou relativas) da pena, que especialmente relevante para este trabalho: a comprovação/
afirmam que a pena se destina a prevenir delitos, subdividindo-se verificação das hipóteses. A teoria científica é um sistema em que
em prevenção geral negativa, prevenção geral positiva, prevenção algumas hipóteses válidas estão comprovadas/confirmadas e quase
especial negativa e prevenção especial positiva (CARVALHO, 2013, nenhuma está não comprovada/não confirmada. A questão é que
53-90). nas teorias positivas da pena, apesar de carregarem o nome “teoria”,
É como uma reação a essas teorias positivas da pena que surge a não é possível perceber tal característica.
teoria negativa (ou agnóstica) da pena, proposta pelos professores O primeiro obstáculo para as teorias positivas da pena serem teorias
Zaffaroni e Nilo Batista. Tal teoria parte da ideia de que não se sabe científicas é a percepção de que elas são, na verdade, hipóteses.
todas as funções que a pena cumpre, porém, sabe-se que aquelas Uma hipótese é uma solução provisória para um determinado
atribuídas pelas teorias positivas da pena são falsas ou, pelo menos, problema, com caráter explicativo ou preditivo, coerente interna
não generalizáveis. Portanto, a pena é entendida como um exercício e externamente e passível de verificação empírica em suas
de poder que não tem função reparadora ou restitutiva nem é consequências (LAKATOS; MARCONI, 1991, p. 125). E é exatamente
coerção administrativa direta (ZAFFARONI; BATISTA et al., 2003, p. isso que são as teorias positivas da pena: hipóteses que respondem
99). ao questionamento acerca de como a pena funciona. A teoria da
Uma questão interessante que se pode perceber aí é que a termino- prevenção geral negativa, por exemplo, é a hipótese de que, ao
logia “teoria negativa da pena” vem de um espelhamento, mas em se ameaçar a coletividade com uma pena em caso de prática de
oposição à terminologia “teorias positivas da pena”. Entretanto, esse determinado comportamento, provoca-se uma dissuasão nela em
espelhamento pode levar a um equívoco de entendimento que me- relação a tal comportamento, evitando-o. Da mesma forma, a teoria

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da prevenção especial positiva é a hipótese de que a aplicação da que a cegueira deliberada não poderia ser chamada de teoria por
pena ressocializa os apenados. E se são, elas mesmas, hipóteses, não ter sido construída a partir da teorização acadêmica, e sim da
não são teorias, já que a teoria é um sistema que engloba diversas prática judicial. E é isso que explica o uso abundante do vocábulo
hipóteses. “teoria” na dogmática penal, como em teoria do delito, teoria do
erro, teoria da culpabilidade, teoria do dolo, entre outros. Portanto,
Esse obstáculo parece vencido quando tais hipóteses são concate-
apesar de se poder até criticar tal utilização por promover um certo
nadas. Roxin (1997, p. 95-103), por exemplo, propõe uma teoria uni-
distanciamento entre o mundo jurídico e o das demais ciências e
ficadora dialética da pena que conjuga as teorias preventivas geral
tecnologias, a realidade é que há no Direito um sentido diferente
e especial. Porém, apesar de vencido o primeiro obstáculo, ainda há
para o termo “teoria” e as teorias positivas da pena adequam-se a
mais um (o mais robusto): além de ter mais de uma hipótese, uma
ele – são pensamentos sistemáticos produzidos na literatura. Porém,
teoria se caracteriza por conter hipóteses majoritariamente confir-
não se deve perder de vista que, apesar de em termos jurídicos
madas e isso não se aplica a qualquer conjugação das ditas teorias
haver sentido em chamá-las de teorias, são efetivamente hipóteses,
positivas da pena. Nenhuma dessas hipóteses passou por uma ve-
não confirmadas e com problemas sérios de sustentação.
rificação tal que se possa dizer que foi confirmada. A bem da ver-
dade, o que tem ocorrido é que a observação do empírico, além de 3. Desfazendo a possível confusão
não confirmar tais hipóteses, vem impondo problemas graves para
O esclarecimento anterior, porém, ainda não resolve o equívoco
a sua sustentabilidade, os quais elas têm, em muito, se negado a
que pode advir do espelhamento realizado entre as teorias
considerar.
positivas da pena e a teoria negativa da pena. As teorias positivas
Tome-se a hipótese da prevenção geral negativa como exemplo.1 Para da pena consistem na afirmação de que a pena tem determinada
verificá-la, anteriormente seria necessário perceber que há diversas função (positiva). Trazendo para os termos referidos acima, elas
variáveis além da pena, que podem determinar a inibição de alguém contemplam hipóteses positivas acerca do funcionamento da
da prática de um comportamento lesivo, como motivações éticas, pena. Ao se espelhar esse conteúdo para a teoria negativa da pena,
afetivas ou religiosas. Assim, para tal verificação, seria necessário como sugere a retratação do próprio nome, pode-se acabar com o
fazer uma observação que isolasse a variável pena de todas essas seguinte resultado: a teoria negativa da pena consiste na hipótese
outras, constatando qual a efetiva dissuasão que ela produz. Até de que a pena não funciona da forma como as teorias positivas
onde este trabalho tem conhecimento, tal verificação não foi feita. dizem funcionar. E esse resultado é um equívoco.
Aliás, é até discutível se isso seria empiricamente possível de ser A chamada teoria negativa da pena não formula a hipótese de que a
verificado, o que colocaria em dúvida a própria classificação como pena não cumpre as funções que se declara que ela cumpre. O que
hipótese. ela faz, na verdade, é criticar as hipóteses que afirmam que a pena
Além da não confirmação, há um dado empírico que fragiliza muito cumpre determinadas funções (positivas), demonstrando que elas
a sustentabilidade de tal hipótese: a seletividade penal. Um ponto são, no mínimo, hipóteses não confirmadas e que não há qualquer
essencial para a prevenção geral negativa é a certeza da aplicação razão para acreditar que elas serão confirmadas. A implicação direta
da pena, afinal, é somente se o sujeito acreditar que ele será punido disso é não atribuir qualquer tipo de efeito para tais hipóteses: se
pelo comportamento que ele deixará de praticá-lo. A seletividade não há confirmação delas, o Direito Penal não deve tomá-las como
penal, porém, interfere diretamente na possibilidade real de existir fundamento de qualquer coisa.
tal certeza. Em todas as sociedades presentes e passadas de que Tome-se como exemplo a hipótese preventiva especial positiva,
se têm notícia, sempre houve um grupo de pessoas que teve a sua que propõe que a pena ressocializa os apenados. A chamada
criminalização muito menos provável do que a de outros – a certeza teoria negativa da pena não formula a hipótese de que a pena não
da punição para tal grupo é baixíssima. Tendo em vista, ainda, a ressocializa os apenados. O que ela faz é apresentar a citada hipótese
existência constante dessa seletividade nas sociedades, vê-se que e confrontá-la com as observações feitas no âmbito das ciências
ela não representa uma falha no sistema penal, mas, precisamente, sociais, as quais são claras no sentido de que a pena deteriora o
a forma como ele funciona, sendo tal seletividade um dado da criminalizado. Como apontam Zaffaroni e Nilo Batista (2003, p.
realidade, que não pode ser desconsiderado. E ainda há, como 125-126), a literatura das Ciências Sociais registra massivamente
observam Zaffaroni e Batista (2003, p. 117), uma seletividade dentro que a prisão tem um efeito deteriorante nos apenados, irreversível
da seletividade: quanto mais inábil tiver sido a prática do delito pelo a longo prazo. Com isso, impõe-se, no mínimo, séria dúvida sobre a
selecionado, mais provavelmente ela será punida. Portanto, quanto hipótese preventiva especial positiva: se o resultado da observação
maior a elaboração delituosa, menor a certeza da punição, o que dos efeitos da pena sobre os apenados é no sentido de que ela os
novamente interfere na alegada dissuasão. Mesmo nesse cenário deteriora, não há razões sérias para acreditar que a hipótese de que
– de existência real de seletividade e de interferência direta dela no a pena tem um significativo efeito ressocializador está confirmada.
efeito dissuasório –, a seletividade penal segue sendo ignorada pela Perceba-se que não se está formulando aí a hipótese de que a pena
hipótese preventiva geral negativa. não tem um efeito ressocializador, mas está-se criticando a hipótese
Com isso, parece bastante claro que as teorias positivas da pena que afirma tal efeito ressocializador, crítica essa tão contundente que
não constituem uma teoria científica, mas hipóteses acerca do não há mais sentido em levar essa hipótese a sério, não devendo o
funcionamento da pena. Porém, por uma questão de justiça, deve- Direito Penal tomá-la como um fundamento.
se registrar que o Direito, de forma geral, não utiliza a palavra Esse esclarecimento parece bastante sutil, mas não é tão sutil assim,
“teoria” nos termos de “teoria científica”. No mundo jurídico, todo ao menos se pensado metodologicamente. Como define Bunge
pensamento sistemático produzido na literatura é chamado de (2001, p. 67), o método científico é o conjunto de procedimentos
teoria, em oposição àquele produzido na prática dos tribunais. pelos quais coloca-se os problemas que as hipóteses tentam
Exemplo disso é a observação de Lucchesi (2017, p. 182-183) de resolver e põe-se à prova tais hipóteses. Sendo assim, a formulação

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de uma hipótese demanda a sua verificação – trata-se do “pôr à delas. Esse conceito, portanto, é o mesmo que já se podia extrair
prova” a hipótese. Ao se interpretar equivocadamente que a teoria das teorias positivas, mas subtraídas as hipóteses não confirmadas.
negativa da pena é, ela mesma, uma hipótese, atribui-se a ela o Sendo assim, parece claro que o elemento diferenciador da teoria
ônus de confirmar empiricamente que o funcionamento da pena negativa é exatamente a sua crítica, não sendo injusto trazê-la ao
é diferente daquele descrito pelas teorias positivas da pena. Não é nome.
o caso. A teoria negativa da pena não é uma hipótese em si, ela
De todo modo, a denominação “teoria negativa da pena” claramente
é uma crítica às hipóteses formuladas pelas teorias positivas da
não é errada, uma vez que se adequa ao que o Direito entende por
pena, ela é um conjunto de questionamentos a tais hipóteses que
teoria. Assim, a quem não parecer adequada a troca do vocábulo
elas não conseguem ultrapassar, desnudando as suas fragilidades e “teoria” pelo vocábulo “crítica”, não parece haver maiores problemas
orientando o Direito Penal para que não as tome como fundamentos em manter-se na denominação – teoria negativa da pena –, desde
de qualquer natureza. que esteja claro que essa “teoria” não traz uma hipótese negativa
A partir disso, parece interessante pensar em uma forma de resolver sobre o funcionamento da pena, mas uma crítica às hipóteses
esse possível mal-entendido. Para tanto, este trabalho oferece uma positivas, a qual as esvazia e mostra que o Direito Penal não deve
sugestão. Por teorias positivas da pena, são designadas hipóteses se orientar por elas, e sim pela redução dos danos inerentes ao
acerca do funcionamento da pena. Ao se realizar um espelhamento exercício do poder punitivo.
no nome, pode-se levar ao equívoco de retratar também o conteúdo, 4. Considerações finais
entendendo-se a teoria negativa da pena como uma hipótese sobre
o funcionamento da pena diferente do que se declara. Todavia, como O presente artigo tinha como objetivo jogar luz sobre as teorias
dito, ela não é uma hipótese, mas uma crítica às hipóteses já postas positivas e negativa da pena, especialmente no aspecto de contraste
sobre tal funcionamento. Parece coerente, então, deixar de chamá- entre os seus nomes e os seus conteúdos, o que fez em duas etapas:
la de “teoria negativa da pena” e passar a chamá-la de “crítica primeiro focando mais nas teorias positivas da pena e, a partir disso,
negativa da pena”, rompendo com o espelhamento e acentuando na teoria negativa da pena.
a diferença metodológica entre ambas – as teorias positivas, por Nesse caminho, identificou-se, primeiramente, que as teorias
serem hipóteses, contêm em si um dever de verificação; a crítica positivas da pena, apesar de adequarem-se ao que é uma teoria para
negativa se presta tão somente a questionar criticamente tais o Direito, não constituem teorias científicas, mas hipóteses acerca
hipóteses. Aliás, recorda-se que Juarez Cirino dos Santos (2020, p. do funcionamento da pena, as quais, por serem hipóteses, carregam
440) já se referiu à teoria negativa da pena dessa forma, como crítica um ônus de verificação. Em relação a tal verificação, pontuou-se
negativa da pena criminal. que a teoria negativa indica que as hipóteses positivas não estão
confirmadas e apresentam sérios problemas de sustentação.
É verdade que, quanto a essa sugestão, poderia ser feita uma
objeção no sentido de que os propositores da dita teoria negativa da Em segundo lugar, identificou-se aqui que o espelhamento de nomes
pena formulam um conceito próprio de pena: “Pena é uma coerção, entre as teorias positivas da pena e a teoria negativa da pena não deve
que impõe uma privação de direitos ou uma dor, mas não repara conduzir a uma retratação de conteúdo: a teoria negativa da pena
nem restitui, nem tampouco detém as lesões em curso ou neutraliza não é uma “hipótese negativa” acerca do funcionamento da pena,
perigos iminentes” (ZAFFARONI; BATISTA et al., 2003, p. 99). E ao ela é uma crítica às hipóteses positivas acerca do funcionamento
produzir tal conceito de pena, essa construção não poderia ficar da pena. Isso significa que a teoria negativa não tem o ônus de
reduzida somente a uma crítica. Para tal objeção, o artigo aponta confirmar uma afirmação de que a pena não cumpre as funções
que esse conceito de pena é obtido meramente por exclusão: as declaradas, o que cabe a ela é somente a crítica a essas funções
teorias positivas entendem a pena como um exercício de poder declaradas e o apontamento de que hipóteses não confirmadas não
que cumpre determinadas funções positivas; a teoria negativa, ao devem servir como fundamentos de todo o sistema jurídico-penal.
esvaziar essas funções, somente as exclui do conceito, entendendo E para evitar que se conduza a esse equívoco de espelhamento de
a pena como mero exercício de poder, que não tem ao seu lado conteúdo, sugeriu-se que a teoria negativa da pena seja chamada de
qualquer função positiva devido a não confirmação de qualquer uma crítica negativa da pena, acentuando-se a diferença metodológica.

Notas
1
No trecho, o presente trabalho tomou somente uma das hipóteses – prevenção geral ao leitor que se interesse em ver as críticas a todas as hipóteses positivas da pena,
negativa – como exemplo por questões de espaço. Na continuidade, do mesmo recomenda-se a obra dos professores Zaffaroni e Nilo Batista constante nas referências
modo, toma-se como exemplo somente a prevenção especial positiva. Entretanto, do presente artigo.

Referências

BUNGE, Mario. La ciencia: su método y su filosofia. Buenos Aires: Sudamericana, 2001. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
CARVALHO, Salo. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro: fundamentos ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I: fundamentos. Trad. Diego-Manuel
e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva, 2013. Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas,
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica. São Paulo: 1997.
Atlas, 1991. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo et al. Direito penal brasileiro, volume I. Rio de
chamada “cegueira deliberada”. 2017. 366 f. Tese (Doutorado em Direito do Estado) – Janeiro: Revan, 2003.

Recebido em: 15.11.2022 - Aprovado em: 19.12.2022 - Versão final: 09.01.2023

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MATERNIDADE E CÁRCERE: ORGANIZAÇÃO
CRIMINOSA E PROGRESSÃO DE REGIME
ESPECIAL NO SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA
MOTHERHOOD AND PRISON: CRIMINAL ORGANIZATION AND SPECIAL PRISON REGIME
PROGRESSION IN THE SUPERIOR COURT OF JUSTICE

Beatriz Ferreira de Paula


Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Membra do
Grupo de Estudos Avançados (GEA) do IBCCRIM.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6729866290161254
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0324-5006
beatrizfdepaula@usp.br

Resumo: A Lei 13.769/2018 inseriu o § 3º no art. 112 da Lei de Execução Abstract: Law 13.769/2018 inserted § 3º in art. 112 of the Penal Execution
Penal, trazendo requisitos específicos para a progressão de regime prisional Law, bringing specific requirements for prison regime progression for
para mulheres grávidas, mães ou responsáveis por crianças ou pessoas pregnant women, mothers or those responsible for children or people with
com deficiência. A nova modalidade de progressão de regime foi objeto de disabilities. The new modality of regime progression has been subject to more
interpretações mais ou menos restritivas pelos tribunais, em especial quanto or less restrictive interpretations by the Courts, especially regard to item V, §
ao inciso V, § 3º do art. 112, que prevê como requisito para a progressão de 3º of art. 112, which establishes as a requirement for regime progression that
regime que a mulher não tenha integrado organização criminosa. Nesse the woman has not joined a criminal organization. In this sense, the present
sentido, o presente trabalho analisou a jurisprudência do Superior Tribunal work analyzed the jurisprudence of the Superior Court of Justice, with the
de Justiça, com o objetivo de compreender como a Corte interpreta e aplica objective of understanding how the Court interprets and applies this device
esse dispositivo e como isso pode representar um obstáculo à efetivação da and how this may represent an obstacle to the effectiveness of the protection
proteção às maternidades encarceradas. of incarcerated mothers.
Palavras-chave: Maternidade; Encarceramento; Progressão de regime; Keywords: Motherhood; Incarceration; Prison regime progression; Criminal
Organização criminosa. organizations.

1. Introdução são necessários outros quatro requisitos cumulativos, quais sejam:


não ter cometido crime com violência ou grave ameaça; não ter
Nos últimos anos, houve uma série de alterações legislativas e cometido crime contra seu filho ou dependente; ser primária e
inovações jurisprudenciais com o intuito de criar, reconhecer e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do
reforçar mecanismos de proteção para a maternidade de mulheres estabelecimento e não ter integrado organização criminosa.
encarceradas. Dentre todas, destaca-se a Lei 13.769/2018, que
alterou dispositivos do Código de Processo Penal (CPP), da Lei A nova modalidade de progressão de regime tornou-se então
dos Crimes Hediondos e da Lei de Execução Penal (LEP), para objeto de interpretações mais restritivas ou mais ampliativas pelos
estabelecer, entre outras, a substituição da prisão preventiva por tribunais. Em outubro de 2020 e novembro de 2021, dois julgados do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) ganharam repercussão,2 em ambos
prisão domiciliar para mulheres grávidas ou mães ou responsáveis
foi discutida a interpretação do termo “organização criminosa”
por crianças ou pessoas com deficiência, e para disciplinar o regime
previsto no inc. V, § 3º do art. 112, da LEP, e, nos dois casos, a Turma
de cumprimento de pena privativa de liberdade para mulheres
julgadora entendeu que o termo “organização criminosa” deveria
condenadas que se encontrem na mesma situação.1 ser interpretado de maneira restritiva, de acordo com a definição
A partir da Lei 13.769/2018, foi incluído o § 3º no art. 112 da LEP, prevista na Lei 12.850/2013.
estabelecendo os requisitos necessários para progressão de regime Tal entendimento, no entanto, não é pacífico. As duas decisões
na modalidade conhecida como “progressão de regime especial”. mencionadas encontram-se, na verdade, isoladas em relação às
Assim, a progressão de regime para mulheres grávidas e mães demais decisões exaradas pela Corte, entre os anos de 2020 e 2022,
ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência fica que interpretam extensivamente o termo, a fim de abranger todos os
condicionada a uma fração de cumprimento de pena mais benéfica tipos de societas sceleris, em especial o tipo de associação para o
de ⅛. Nos termos do art. 112, § 3º, para além do requisito temporal, tráfico, previsto no art. 35, da Lei 11.343/2006.

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A disputa em torno do conceito de “organização criminosa” tem análise desse processo em dois momentos: no primeiro momento
grande impacto na realidade carcerária brasileira, em especial ele facilita a entrada de mulheres pobres na economia informal e
quando se considera que a maior parte das mulheres encarceradas ilegal do mercado de drogas; e, no segundo, facilita a sua seleção
no país foram condenadas por crimes relacionados ao tráfico de pelo sistema penal.
drogas.3 Nesse contexto, a interpretação e aplicação da norma
O primeiro momento está diretamente relacionado ao processo de
por parte dos tribunais pode alterar a finalidade da modalidade
intensificação da pobreza entre as mulheres, em especial, entre os
de progressão de regime especial enquanto direito executório de
núcleos familiares chefiados por mulheres. Neste sentido, Argüello
mulheres mães presas.
e Muraro (2015) relatam que para as mulheres em situação de
Assim, este artigo analisa oito acórdãos4 julgados pelo STJ entre os pobreza, o tráfico se apresenta como uma fonte de renda para a
anos de 2020 e 2022,5 referentes a pedidos de progressão de regime manutenção do mínimo de subsistência ou para complementação
amparados pelo § 3º do art. 112, da LEP e que discutem a interpretação de uma renda muito precária. Em muitos casos, o tráfico também
do termo “organização criminosa”, presente no inciso V do referido aparece como uma alternativa ao desemprego, apesar de possibilitar
dispositivo. Os acórdãos foram sistematizados e analisados com uma renda ainda muito distante daquela que seria necessária para a
o objetivo de compreender qual a interpretação conferida pela sobrevivência (ARGÜELLO; MURARO, 2015, p. 398).
Corte ao conceito de “organização
No segundo momento, por outro
criminosa” presente no art. 112, § 3º,
lado, essa mesma vulnerabilidade,
inc. V da LEP e como esse conceito
favorece a seleção dessas mulheres
é mobilizado para conceder ou negar
pedidos de progressão de regime " [...] A MAIOR pelo sistema penal, por meio de uma
criminalização da pobreza agravada
para mulheres grávidas e mães ou
responsáveis por crianças ou pessoas
com deficiência. Para isso, propôs-se
PARTE DAS pela situação de gênero. Como a
estratégia de repressão do tráfico
de drogas nos países da América
uma análise qualitativa dos acórdãos
coletados a partir do método MULHERES Latina, e no Brasil de modo especial,
volta-se para a criminalização de
de pesquisa documental, com o
objetivo de acessar os processos
de interpretação e argumentação
ENCARCERADAS pequenos traficantes, as mulheres
acabam sendo atingidas mais
profundamente por essas políticas,
produzidos pelos(as) ministros(as)
do STJ. NO PAÍS FORAM já que normalmente exercem cargos
subalternos nas redes de tráfico,
Dessa forma, o presente artigo se
divide em três capítulos principais: CONDENADAS como o microtráfico ou o transporte
de drogas (BOITEUX, 2015).
no primeiro capítulo propõe-se uma
análise do processo de encarcera-
mento de mulheres no Brasil a partir
POR CRIMES O fator econômico, portanto, é um
dos principais elementos para a aná-
lise da questão, já que, diante do pro-
RELACIONADOS
do conceito de feminização da po-
cesso de feminização da pobreza, o
breza e a sua conexão com a política
tráfico aparece para essas mulheres
de repressão ao tráfico de drogas; no
AO TRÁFICO
como uma possibilidade, em geral:
segundo, são apresentadas inova-
“de exercer simultaneamente papéis
ções legislativas e jurisprudenciais da
produtivos e reprodutivos e de cum-
DE DROGAS."
última década que orientam à uma
prir uma normativa socialmente esta-
maior proteção da maternidade en-
belecida, apesar da ilegalidade dos
carcerada, e, por fim, no terceiro capí-
meios disponíveis” (CHERNICHARO,
tulo, são apresentados os resultados
2014, p. 77).
da sistematização e análise dos acórdãos do STJ.
3. Marcos legislativos e jurisprudenciais na proteção da
2. Encarceramento feminino no Brasil: feminização da pobreza,
maternidade das mulheres encarceradas
guerra às drogas e seletividade de gênero
Na última década, houve um incremento de produções legislativas e
Ao se analisar o perfil das mulheres encarceradas no Brasil, tem-se
inovações jurisprudenciais que orientam à proteção da maternidade
que a população carcerária feminina é composta majoritariamente
de mulheres encarceradas. Destacam-se a Lei 13.257/2016 (Marco
por mulheres pretas e pardas, jovens entre 18 e 29 anos, solteiras e
Legal da Primeira Infância) e o Habeas Corpus Coletivo 143.642,
com o ensino fundamental incompleto, além de a maior parte delas
julgado pelo STF em 2017, que reforça a tese de efetividade do Marco
serem mães (BRASIL, 2018). Outro dado importante é que a grande
Legal da Primeira Infância, reconhecendo a sistemática violação de
maioria das prisões femininas decorrem de condutas relacionadas
direitos das mulheres no cárcere e apontando a maternidade como
ao tráfico de drogas. É possível observar nesse cenário um forte
um direito social das mulheres presas provisoriamente.
componente de gênero que determina as relações das mulheres
com o tráfico de drogas. Compõe essa realidade a situação de Posteriormente, o Poder Legislativo editou a Lei 13.769/2018,
pobreza, a necessidade de conciliar múltiplas jornadas de trabalho, buscando conferir maior amplitude à decisão proferida no HC
além da dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal Coletivo (REFOSCO; WURSTER, 2019, p. 18), em que foram alterados
(GOMES, 2020, p. 408-409). dispositivos do CPP, da Lei dos Crimes Hediondos e da LEP.
Nesse sentido, Chernicharo (2014) descreve um processo comum Em análise da efetividade do HC Coletivo quanto ao desencarce-
ao Brasil e aos demais países da América Latina de feminização da ramento de mulheres grávidas e mães, em especial no que tange a
pobreza, sendo este conceito uma chave de análise fundamental concessão de prisão domiciliar, Refosco e Wurster (2019) apontam
para a compreensão do processo de encarceramento de mulheres a importância da cúpula do Poder Judiciário em garantir a efetivida-
por crimes relacionados ao tráfico de drogas. A autora propõe uma de da Lei 13.769/2018: “abandonando a exagerada discricionarieda-

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de judicial na delimitação dos critérios de concessão do benefício” neutro da presença ou ausência de um elemento objetivo, sequer
(REFOSCO; WURSTER, 2019, p. 24). discutindo questões de gênero ou mesmo o direito à maternidade.
No entanto, apesar desses diversos marcos orientarem para Quanto à interpretação do termo “organização criminosa”, dentre
uma maior proteção aos direitos de mulheres grávidas e mães os oito acórdãos analisados, apenas dois acórdãos adotaram uma
encarceradas, na realidade, tais direitos e garantias não têm sido interpretação restritiva, o HC 522.651 e o AgRg no HC 679.715. O
devidamente reconhecidos pelos órgãos julgadores. Gomes e HC 522.651 foi o acórdão mais antigo analisado, julgado em agosto
Plastino (2019) denunciam o desrespeito sistemático dessas novas de 2020, cuja relatora foi a ministra Laurita Vaz. Trata-se de um HC
garantias pelos juízes em audiências de custódia. Articulando o impetrado contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que
conceito de hierarquias reprodutivas, as autoras entendem que a indeferiu o pedido de progressão ao regime semiaberto formulado
construção de juízos de valores sobre quem pode ser considerada pela mulher presa. No HC, a defesa argumenta que a paciente
mãe e como a maternidade deve ser exercida são razões pelas quais seria mãe de uma criança de seis anos de idade, por isso faria jus à
a maioria dos juízes não aplica a lei de forma pragmática (GOMES; progressão de regime nos termos do art. 112, § 3º da LEP. O pedido
PLASTINO, 2019). havia sido indeferido nas instâncias inferiores porque, uma vez que
a mulher presa cumpria pena pelo crime de associação ao tráfico
Já no âmbito da execução penal, Matos e Wurster (2018, p. 72) são
de drogas (art. 35, da Lei 11.343/2006), os magistrados entenderam
taxativas ao denunciar que: “as normas reconhecedoras de direitos
que o requisito do inc. V, § 3º, do art. 112 não estava presente. No
presentes em disposições constitucionais, convencionais e internas
voto, a ministra relatora afirma que o art. 112, § 3º e incisos da LEP
não ultrapassam os muros das prisões e constituem mera ficção
têm conteúdo material, sendo uma norma híbrida, e, porque trata de
legal”, assim como Braga (2015, p. 531), que assinala que: “[l]onge
progressão de regime prisional, relacionado ao direito à liberdade, a
da soberania da lei, o chão da prisão é feito de violações de direitos”.
norma impõe ao intérprete que se submeta aos princípios inerentes
4. Progressão de regime e controle judicial da execução penal: às normas penais, como o princípio da taxatividade. A norma prevista
análise da jurisprudência do STJ quanto ao art. 112, § 3º, inc. V
da LEP no art. 112, § 3º da LEP disporia de complemento normativo (Lei
12.850/2013, em especial os arts. 1º, § 1º e 2º), então não seria legítimo
No Brasil, o controle da progressão de regime é judicial, de modo ao juiz interpretar extensivamente o significado de “organização
que se exige a manifestação do Poder Judiciário para que seja criminosa” para abranger todos os tipos de associações criminosas,
reconhecido o direito de a pessoa presa ser transferida para um como a associação para o tráfico de drogas. A ministra relatora
regime de cumprimento de pena menos gravoso, tendo a LEP ressalta que a proibição à interpretação extensiva fica ainda mais
definido uma extensa competência do juízo da execução penal evidente quando se tem em vista que o dispositivo trata de benefício
(CACICEDO, 2018). executório que tem por finalidade aumentar o âmbito de proteção a
Em todos os acórdãos alisados no presente trabalho, a interpretação crianças e pessoas com deficiência.
do inc. V, § 3º do art. 112 da LEP foi a principal discussão presente no Já o AgRg no HC 679.715, cujo relator é o ministro Reynaldo Soares da
julgamento. Isso quer dizer que a adoção de uma interpretação mais Fonseca, foi julgado em outubro de 2021. A argumentação utilizada
ou menos ampliativa do conceito de “organização criminosa” foi o neste julgado vai ao encontro do que foi apresentado pela ministra
principal, e, em alguns casos, o único argumento mobilizado pelos Laurita Vaz no HC 522.651, que é inclusive citado como fundamento
magistrados para a concessão ou não do pedido de progressão de para a decisão.
regime.
No entanto, esses dois acórdãos encontram-se isolados em relação
Sendo assim, a discussão centra-se em um dos requisitos objetivos à jurisprudência predominante do STJ. Em relação aos demais
da progressão de regime. Esse aspecto merece destaque porque, acórdãos analisados, três deles localizam-se cronologicamente
de modo geral, têm-se observado que a presença ou ausência do entre o HC 522.651 e o AgRg no HC 679.715.6 Já os outros três são
requisito subjetivo da progressão de regime – a comprovação de posteriores ao AgRg no HC 679.715,7 o que pode indicar pouca
bom comportamento – é o principal objeto de disputa nos pleitos adesão aos precedentes com interpretação mais benéfica às
judiciais (CACICEDO, 2016; 2018; ZAMBOM, 2022). Nesse sentido, mulheres presas.
Cacicedo (2018) afirma existir uma ampla discricionariedade na
atuação dos magistrados, que realizam, muitas vezes, um julgamento Quanto aos acórdãos que conferiram interpretação extensiva ao
moral sobre a personalidade da pessoa presa, utilizando-se, por conceito de “organização criminosa”, em todos o voto do relator
exemplo, da exigência de exames criminológicos, desprovidos de manteve a decisão atacada por seus próprios fundamentos, ou
seja, houve uma manutenção da decisão proferida pela instância
qualquer valor científico, para determinar se a pessoa está ou não
inferior que denegou o pedido de progressão de regime ou de
em condições de progredir para um regime mais benéfico.
retificação do cálculo de penas conforme o art. 112, § 3º da LEP.
Em análise aos julgados do STJ, Zambom (2022) menciona que a Nesses acórdãos, é adotada uma interpretação ampliativa segundo
avaliação do bom comportamento carcerário tem um importante a qual o termo “organização criminosa” não se refere apenas ao
papel nas decisões de progressão de regime e livramento crime previsto no art. 1º, § 1º da Lei 12.850/2013, mas sim a todo
condicional. Segundo a autora, a interpretação acerca do requisito e qualquer tipo de atividade criminosa praticada em conjunto. Em
subjetivo constitui um dos principais objetos de disputa entre as especial quanto ao crime de associação para o tráfico, os julgados
diferentes instâncias do Poder Judiciário, o Ministério Público e a entenderam que este: “pressupõe a estabilidade e permanência de
defesa (ZAMBOM, 2022, p. 19). organização voltada especialmente ao cometimento do delito de
tráfico de entorpecentes, não sendo possível a utilização de fração
No entanto, nos acórdãos analisados, não está presente qualquer
diferenciada para a progressão de regime, nos termos do que dispõe
discussão sobre o comportamento da mulher presa, estando a
o art. 112, § 3º, V, da Lei de Execução”.8
argumentação adstrita ao aspecto supostamente objetivo de ter
ou não pertencido à organização criminosa. Como consequência, o Além do tipo de associação para o tráfico, previsto no art. 35 da
campo de disputa que existia em relação aos critérios que seriam ou Lei 11.343/2006, dois dos acórdãos analisados também negaram o
não admitidos para o alcance do direito de progressão de regime, pedido de progressão de regime para mulheres que haviam sido
são suprimidos para dar lugar a um julgamento supostamente condenadas pelo crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33,

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da mesma lei, em que não houve aplicação da causa de redução julgamento, os(as) ministros(as) ressaltam as violações de direitos
prevista no § 4º do dispositivo.9 Ou seja, ainda que não tenha sido sistemáticas as quais as mulheres grávidas e mães encarceradas e
condenada pelo crime de associação para o tráfico (art. 35), mas sim seus filhos e dependentes estão expostos, entendendo por um ne-
pelo crime de tráfico de drogas (art. 33), a mulher não teria direito à cessário esforço para garantir maior dignidade e proteção ao exer-
progressão de regime nos termos do art. 112, § 3º da LEP se, na sua cício da sua maternidade. A Lei 13.769/2018 se constitui, portanto,
condenação, não tiver incidido a causa de redução prevista no § 4º como a positivação desse entendimento.
do art. 33, da Lei 11.343/2006.
No entanto, a interpretação extensiva por parte do STJ do conceito
É possível observar, nesse sentido, não apenas uma interpretação de “organização criminosa” subverte a finalidade da progressão de
extensiva para abarcar outros tipos de societas sceleris, como a regime especial, introduzindo obstáculos e restrições, que sequer
associação para o tráfico, como também a adoção de outros critérios estão previstos na lei, para o acesso das mulheres a esse direito.
restritivos de direitos executórios que sequer constam na lei. Por outro lado, ainda que a nova legislação represente um avanço,
ao jogar luz sobre as violações sistemáticas de diretos das mulheres
5. Conclusão
mães encarceradas e seus filhos e dependentes, as decisões não
O presente trabalho representou um esforço para analisar a discutem questões relacionadas a gênero ou a efetivação do direito
interpretação e aplicação do STJ do conceito de “organização à maternidade. Os argumentos mobilizados se apoiam em questões
criminosa” previsto no inc. V, § 3º do art. 112 da LEP. A partir supostamente neutras sobre a presença ou ausência de requisitos
da análise de julgados recentes da Corte, observou-se que a objetivos, mas que acabam por inviabilizar a disputa pelo direito em
jurisprudência predominante – num total de seis de oito acórdãos questão.
analisados – caminha no sentido de conferir uma interpretação
Além disso, considerando o processo de feminização da pobreza
ampliativa ao conceito de “organização criminosa”, restringindo o
enquanto chave de análise proposta por Chernicharo (2014) para
acesso de mulheres grávidas e mães ou responsáveis por crianças
a compreensão do processo de encarceramento de mulheres por
ou pessoas com deficiências a direito executório previsto pela LEP.
crimes relacionados ao tráfico de drogas, seria possível propor
A Lei 13.769/2018, que alterou a LEP para inserir esta nova modali- um terceiro momento de análise, que pode ser percebido no
dade de progressão de regime, se insere em um contexto de aumen- recrudescimento da execução penal com a restrição ao acesso a
to da proteção da maternidade das mulheres encarceradas, inau- direitos executórios a partir de uma interpretação desfavorável a
gurado pelo HC Coletivo 143.641, julgado pelo STF em 2017. Neste progressão de regime de mulheres mães em privação de liberdade.

Notas

1
Esse artigo foi elaborado com o apoio da FAPESP: Processo nº 2022/06175-6, 5
Os acórdãos foram coletados por meio de múltiplos métodos, como a busca na
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). ferramenta online de pesquisa de jurisprudência do STJ (Disponível em: https://
2
STJ, HC 522.651/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz. Data de Julgamento 04.08.2020; processo.stj.jus.br/SCON/. A pesquisa foi realizada no dia 13/11/2022, com as
e AgRg no HC 679.715/MG, 5ª Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Data palavras-chave escolhidas “progressão de regime especial”) e por meio do método
de Julgamento 26/10/2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/ bola de neve, formando uma rede de referências a partir dos primeiros acórdãos
Paginas/Comunicacao/Noticias/09102020-Progressao-especial-para-maes-deve- analisados. Não se exclui a possibilidade de que haja outros acórdãos que discutam
considerar-definicao-da-Lei-de-Combate-ao-Crime-Organizado.aspx; https://www. o mesmo tema que o presente projeto não conseguiu abarcar.
stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16112021-Associacao-para- 6
Período compreendido entre agosto de 2020 e outubro de 2021.
o-trafico-nao-impede-progressao-mais-benefica-para-maes--decide-Quinta-Turma. 7
Período posterior a outubro de 2021.
aspx. Acesso em: 5 nov. 2022. 8
Trecho da decisão AgRg no HC 721.863/SP (2022/0031804-4).
3
Segundo o Infopen Mulheres (BRASIL, 2018), 62% das condenações de mulheres 9
“Art. 33 [...] § 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão
decorrem de condutas relacionadas ao tráfico de drogas. ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons
4
HC 522.651/SP (2019/0212860-0); AgRg no HC 534.836/SP (2019/0283366-2); HC antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização
645.236/SP (2021/0043530-2); AgRg no HC 607.164/SP (2020/0211173-2); AgRg no criminosa.”
HC 679.715/MG (2021/0216912-0); AgRg no HC 696.420/SP (2021/0309904-4); AgRg
no HC 649.789/RS (2021/0065722-9); AgRg no HC 721.863/SP (2022/0031804-4).

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Recebido em: 23.01.2023 - Aprovado em: 13.02.2023 - Versão final: 27.03.2023

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UMA PARTE GERAL
FINALISTA?
REFLEXÕES NO
MARCO DOS 40 ANOS
DA REFORMA PENAL
DE 1984 A FINALIST GENERAL PART OF THE BRAZILIAN PENAL CODE?
REFLECTIONS ON THE 40TH ANNIVERSARY OF THE 1984 PENAL REFORM

Victor C. R. S. Costa
Doutor em Direito pela PUC-PR. Mestre em Direito Penal pela UFMG.
Professor de Direito Penal. Advogado.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9947142424896892
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6010-6577
victorsilva.costa@yahoo.com.br

Resumo: O artigo pretende problematizar a afirmação, ainda muito Abstract: The article intends to problematize one assertion, still much
repetida na doutrina, de que a reforma da parte geral do Código Penal repeated in the doctrine, that the reform of the general part of the Brazilian
Brasileiro de 1984 teve forte inspiração finalista. Percorrendo temáticas como Penal Code of 1984 had a strong finalist inspiration. Going through themes
a disciplina do erro e do tratamento legal dos crimes omissivos impróprios, such as the discipline of error and the legal treatment of improper omissive
pretende-se concluir que sua redação final não respeitou nenhuma ordem crimes, it is intended to conclude that its final wording did not respect
sistemática e, em algumas passagens, esteve muito aquém da novidade que any systematic order and, in some passages, fell far short of the novelty it
pretendia veicular. intended to convey.
Palavras-chave: Parte geral; Dogmática penal; Finalismo. Keywords: General part; Criminal dogmatics; Finalism.

I. Desde a década de 1960 havia um sentimento de que o velho estava


Às vésperas de completar 40 anos, a reforma da parte geral do morrendo, mas o novo não podia nascer. Em 1963, Nelson Hungria
Código Penal de 1984 ainda suscita inúmeras discussões. Sem apresentou um anteprojeto de reforma que foi amplamente discutido
dúvida, em relação à disciplina da aplicação da pena, representou e reelaborado juntamente de Anibal Bruno e Heleno Fragoso.
um grande avanço em relação à legislação de 1940, em especial ao Finalmente, em 21 de outubro de 1969, o projeto foi encaminhado ao
privilegiar as sanções substitutivas e as medidas não detentivas.1 Executivo e transformado no Decreto 1.004 do mesmo ano. Deveria
No entanto, relativamente à sistemática do delito, surgem dúvidas entrar em vigor em 1º de janeiro de 1970, mas seu destino esteve
quanto à sua adaptação aos novos tempos. Estaria ela apta a à mercê de sucessivas leis protelatórias enquanto, paralelamente,
recepcionar os novos influxos da Dogmática Penal comparada, diversas outras normas modificavam o sistema penal, tornando
sobretudo quanto à teoria do tipo? A previsão legal do conceito aquele projeto atrasado aos novos tempos. Finalmente revogado o
de dolo se adequa aos recentes avanços das teorias normativas? Código de 1969, uma nova Comissão foi composta a pedido do Min.
As disposições relativas ao concurso de pessoas permitiriam sua Ibrahim Abi-Ackel, resultando na reformulação da Parte Geral e da
compatibilização com a teoria do domínio do fato?2 Lei de Execuções penais, em 1984.

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Da exposição de motivos da nova parte geral, então aprovada, a qual o resultado não teria ocorrido. Em 1969, passou-se a incluir
extraem-se seus objetivos principais: “a adoção de uma nova no parágrafo segundo do art. 13 a teoria formal do dever jurídico,
política criminal” adequada às exigências da sociedade brasileira, repetida em 1984, na forma de alíneas. Da exposição de motivos
principalmente em atenção aos altos índices de criminalidade de extrai-se o objetivo de explicitar no texto legal as hipóteses nas
então; à insistência nas medidas repressivas com um assustador quais restará caracterizado o dever de agir, com a clara identificação
aumento no número de pessoas presas (ASSIS TOLEDO, 1996); aos dos sujeitos destinatários das normas mandamentais (LUISI, 1987,
estigmas sociais impostos sobre os apenados e seus reflexos na p. 124).5
reincidência, bem como à sofisticação da tecnologia que impunha
Ocorre que a teoria formal do dever jurídico há muito já estava
nova conformação à criminalidade. Da elaboração e revisão do
superada em seu país de origem, quando das discussões de 1984
projeto participaram insignes professores do Direito Penal pátrio,
(TAVARES, 1996, p. 66 e ss). Tal concepção remonta a um princípio
tais quais, Francisco de Assis Toledo, na Presidência, Miguel
aceito na Dogmática Penal desde Nagler, segundo o qual a
Reale Júnior, Ricardo Antunes Andreucci, Rogério Lauria Tucci, Jair
punibilidade da omissão imprópria se faz depender de uma posição
Leonardo Lopes, entre outros (BRASIL, 1983). de garantidor (ROXIN, 2013, p. 304-305). A teoria formal retroage aos
II. séculos XVIII e XIX, reportando-se inicialmente à Feuerbach (a lei e o
contrato) e Stübel, fazendo com que o conteúdo desta posição legal
Havia uma necessidade declarada pelo novo. O que, em parte
se baseie em obrigações derivadas da lei, de um contrato ou de um
logrou êxito, se pensarmos especificamente na disciplina das penas.
atuar precedente. Todavia, perpassa uma despreocupação à ideia de
Por outro lado, no âmbito da teoria do delito, algumas observações lesão a um bem jurídico para a configuração do crime comissivo por
merecem ser consignadas. Do tratamento do erro é possível, à omissão (ROXIN, 2013, p. 304-305).
primeira vista, concluir uma simpatia da Comissão pela teoria
finalista, cujos resultados em muito influenciaram o debate alemão Exatamente por este motivo, desde meados do século XX, essa
entre 1930 e 1950.3 Não há dúvida de que Welzel (2001) tenha sido teoria formal encontra dificuldades na doutrina, não bastaria
o responsável por romper a tradição romanística de diferenciar a mera contravenção à norma de dever para se configurar um
erro de fato e erro de direito, incorporado ao projeto de 1940 em delito de omissão impróprio. O próprio Welzel, que não se ocupou
seu art. 17.4 O fato deste autor se filiar à teoria da culpabilidade, especificamente do delito de omissão, afirmou, no prefácio de 1960, ter
segundo a qual se separa metodologicamente o dolo natural do sido Kaufmann aquele que melhor deduziu as premissas do finalismo
potencial conhecimento da ilicitude, e com isso diferenciar o objeto aos delitos omissivos (WELSEL, 2001, p. 20). Em sua conhecida
de valoração da valoração do objeto, permite separar o erro entre monografia em 1959, Kaufmann (2006, p. 290) concebe a chamada
aquele incidente sobre os elementos do tipo (Tatbestandsirrtum) e teoria das funções, submetendo a posição de garante à ideia de bem
aquele sobre a ilicitude do fato (Verbotsirrtum) (WELZEL, 2001, p. jurídico. De um lado estaria o: “dever de proteger os bens jurídicos de
126; HORTA, 2016, p. 172). Assim, consagra-se a ideia fundamental determinadas pessoas contra perigos (posição de garante de guarda
de que o dolo pertence ao tipo, já que o erro sobre os elementos ou proteção [Obhutsgarantenstellung])”e de outro: “o dever de controlar
deste, quando inevitável, exclui o próprio dolo (LOPES, 1996, p. 124- fontes de perigo para os bens jurídicos alheios (posição de garante de
125). vigilância ou controle [Überwachungsgarantenstellung])” (ROXIN, 2013,
p. 305; KAUFMANN, 2006, p. 290-291).6 Tal contribuição passa ao
Fosse o legislador se manter fiel a Welzel, seguindo a mesma li- largo do legislador de 1984.
nha da diferenciação entre erro de tipo e erro de proibição, deveria
adotar a teoria extremada da culpabilidade quando da análise do Sem contar o desenvolvimento posterior de Schünemann (2009),
erro sobre pressupostos fáticos de uma causa de justificação (ASSIS que em 1971 apresenta outro critério, partindo da premissa de que a
TOLEDO, 2010). Para o penalista, reconhecendo adotar uma posição grande maioria dos crimes por ação se caracterizariam pelo fato de o
minoritária, um erro sobre a concorrência equivocada de uma causa sujeito ativo ter domínio do fato. Tendo em vista a equiparação entre
de justificação, tal qual ocorre em uma descriminante putativa, é erro ação e omissão, seria correto, por meio de um raciocínio analógico,
de proibição. Trata-se de um erro sobre a antijuridicidade dolosa do aproximar o critério do domínio do fato nos delitos ativos também
tipo, isto é, sobre sua valoração. Uma vez que as causas de justifica- para a omissão. É isso que faz ao propor o critério do “domínio sobre
ção não excluem a tipicidade, mas tão somente a antijuridicidade, a o fundamento do resultado”, que elege como elemento central da
convicção de que se está amparado em uma causa de justificação teoria da posição de garante (SCHÜNEMANN, 2013, p. 171; ROXIN,
excluiria a consciência da ilicitude e não o dolo (WELZEL, 2001, p. 2014, p. 852).
129-131). Assis Toledo (2010), por sua vez, demonstrou maior simpa- Para este autor, o decisivo na imputação é a relação entre o
tia à teoria limitada da culpabilidade, como ficou por fim consignada “centro pessoal de controle” e o “movimento corporal causador do
no parágrafo primeiro, do art. 20, da parte geral de 1984. Seguindo resultado”, sendo que a imputação de um resultado a alguém, como
os ensinamentos de Jescheck, ainda que o autor tenha praticado obra sua, ocorrerá nos termos nos quais exerça um domínio sobre o
um delito doloso, somente poderá ser punido a título culposo no fundamento de tal resultado (SCHÜNEMANN, 2013, p. 171). Como na
caso de sua evitabilidade. Isso para evitar a situação de que erros comissão, o domínio da vontade não se dá somente com referência
derivados exclusivamente de culpa sejam punidos como delitos do- à conduta, mas ao “acontecimento global” com referência à autoria,
losos, apenas com uma porcentagem de diminuição de pena (ASSIS assim também deveria proceder com a posição de garantidor, para
TOLEDO, 2010). que se possa fazer um paralelo com a relação com o resultado
(SCHÜNEMANN, 2013, p. 171).
Passando a outra seara, menos perceptível do que aquela atinente
ao dolo no tipo, mas com grande consequência prática, está a Assim, Schünemann (2013, p. 171-172) propõe a superação da divisão
disciplina dos crimes omissivos impróprios. A redação original clássica das posições de garantidor em deveres de proteção e
de 1940 nada previa quanto à individualização do dever de agir, responsabilidade por uma fonte de perigo, instituídas em função da
limitando-se seu art. 11 à caracterização da omissão como causa sem proteção de determinados bens jurídicos. Para o autor, as posições

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de garantia partiriam do: a) domínio sobre o desamparo de um soluções à prática jurídica, a parte geral até o momento não foi
bem jurídico; e b) domínio sobre a causa essencial do resultado. No insuficiente. É natural que novas teorias sejam incorporadas pela
primeiro caso estariam as posições de garantidor decorrentes da doutrina e pela jurisprudência, mas não necessariamente por parte
comunidade de vida e de perigo, e a assunção sobre a guarda de um da legislação. Até mesmo na Alemanha a disputa entre escolas
bem jurídico desamparado. No segundo, por sua vez, englobariam cedeu lugar a posições ecléticas com vista a problemas concretos
os deveres atinentes ao controle sobre coisas perigosas e domínio (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 14-16). Na linha de Leite (2015, p. 262), o
sobre pessoas ou funções perigosas. Trata-se de uma estrutura sentido da parte geral deve repousar, ademais, na sua estabilidade,
fundamental de autoria, tanto para os crimes de ação quanto para e não em sua constante alteração. A lei não é lugar para resolver
os de omissão, assim funcionando como critério unificador da dilemas ou incorporar conceitos modernos.
imputação, como decorrência da cláusula de equivalência.
III.
No projeto apresentado em 2012 (PLS 236 do Senado Federal),
A verdade é que a reforma de 1984, em alguns pontos, já nasceu
pouco se avançou em relação à omissão imprópria. Bem verdade
velha. É uma metonímia de toda discussão legislativa no Brasil. O
que pretendia incluir disposições da teoria da imputação objetiva
Código de 1940 foi fortemente influenciado pela codificação italiana
na epígrafe condizente ao “fato criminoso” (art. 14, parágrafo único),
de 1930, capitaneada por Alfredo Rocco, verdadeira expressão do
deixando de lado o fato de ser impossível resumir a imputação
regime político e da ideologia de então. Em 1984, veio a inspiração
objetiva a uma só teoria ou a um só autor representativo. No artigo
finalista e aquela proveniente da teoria social da ação, acabando
referente à omissão manteve a teoria formal do dever jurídico,
o legislador por mesclar o que julgava melhor de cada uma, com
afastando-se de legislações como a portuguesa (art. 10, CP) e a
continuidades do antigo diploma imbuídas de caráter estritamente
alemã (§ 13, StGB). Alterou, no entanto, a redação, modificando a
pragmático. Um verdadeiro sincretismo metodológico sob as
relevância da omissão por “imputa-se o resultado ao omitente [...]”,
auspiciosas bênçãos do novo. Em 2012, o fascínio pela inovação
confundindo desvalor da conduta com imputação, além de incluir
impeliu os membros da comissão a quererem introduzir disposições
uma dúbia cláusula de correspondência em seu parágrafo único
específicas sobre a teoria da imputação objetiva e do domínio do
(GRECO, 2015, p. 109-110).
fato no texto legal, institutos que até mesmo em seu país de origem
Note-se que tal projeto ainda se encontra em tramitação no Senado são debatidos exclusivamente pela doutrina e jurisprudência.
Federal, devendo o marco dos 40 anos da reforma da parte geral Relativamente à parte geral vale a expressão “menos é mais”, sob
de outrora servir de lembrança para repensarmos o futuro almejado pena de o legislador ou se transformar em historiador do Direito
ao Direito Penal pátrio. Bem verdade que, em termos de fornecer Penal ou criar mais impasses que soluções.

Notas
1
Vide, por todos, a obra do integrante da Comissão de 1984: Dotti (1998, p. 138 e ss). situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”.
2
Sobre a receptividade da teoria do domínio do fato na AP 470/STF, vide o estudo de 5
Luisi (1987, p. 124) declara o acerto da legislação de 1984 ao identificar os sujeitos
Greco e Leite (2015). obrigados.
3
“A teoria finalista da ação foi a adotada pela Reforma de 1984, como se poderá concluir 6
No mesmo sentido Zaffaroni et al. 2010, p. 360): “Temperando o esquematismo do critério
pela inclusão do dolo na estrutura do tipo legal de ilícito, de que são exemplos o erro formal, é indispensável que o obrigado se encontre concretamente em uma estreita e
sobre os elementos do tipo e o erro de proibição (CP, art. 20 e 21)” (DOTTI, 2010, p. especial relação vital com o bem jurídico, cuja integridade depende concretamente de
387). Assim também Luisi (1987, p. 124). sua intervenção: só no plano concreto se pode vislumbrar com clareza o garantidor
4
Erro de fato. “Art. 17. É isento de pena quem comete o crime por erro quando ao fato (enquanto o obrigado tem existência puramente normativa)”.
que o constitue, ou quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe

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Recebido em: 02.02.2023 - Aprovado em: 23.02.2023 - Versão final: 04.04.2023

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BOLETIM IBCCRIM - ANO 31 - N.º 366 - MAIO DE 2023 - ISSN 1676-3661


MENSAGENS DE WHATSAPP
COMO PROVA NO PROCESSO
PENAL: O ENTENDIMENTO DO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
WHATSAPP MESSAGES AS EVIDENCE IN CRIMINAL PROCEEDINGS: THE UNDERSTANDING OF
THE SUPERIOR COURT OF JUSTICE

Hellen Luana de Souza João Pedro Barione Ayrosa


Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela ABDConst. Graduado em Direito pela UEL. Advogado.
Graduada em Direito pela UEL. Advogada. Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4401995652899931
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3131066623005617 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7720-1252
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3472-6953 joaobayrosa@gmail.com
hellenluanas78@gmail.com

Resumo: O artigo apresenta a jurisprudência do Superior Tribunal de Abstract: The article presents the jurisprudence of the Superior Court of
Justiça (STJ) sobre o uso de mensagens de WhatsApp como prova no Processo Justice on the use of WhatsApp messages as evidence in criminal proceedings.
Penal. Para isso, adotou-se a metodologia quantitativa e qualitativa. Inicialmente, For this, the quantitative and qualitative methodology was adopted. Initially, the
explica-se a sistematização empregada; após, disserta-se sobre o entendimento systematization employed is explained; then, the predominant understanding of
predominante do STJ em relação ao tema; na sequência, por manifestarem the Superior Court of Justice on the subject is discussed; next, as they manifest
especificações ou exceções ao entendimento predominante, são abordados specifications or exceptions to the predominant understanding, four topics are
quatro tópicos, em apartado; ao final, resumem-se os achados da pesquisa. addressed and, separately; at the end, the research findings are summarized.
Palavras-chave: Jurisprudência do STJ; Mensagem de WhatsApp; Inviolabilidade; Keywords: Superior Court of Justice jurisprudence; WhatsApp message;
Corpo de delito; Espelhamento. Inviolability; Corpus delicti; Mirroring.

1. Metodologia AgRg no HC 638.935/MG; RHC 118.641/RS; Rcl 36.734/SP; REsp


Para iniciar a pesquisa, buscaram-se julgados referentes ao 1.782.386/RJ; AgRg no AgRg nos EDcl no REsp 1.842.062/RS; AgRg
WhatsApp como meio de prova no site do STJ com os comandos no HC 567.637/RS; AgRg no HC 611.762/SC; AgRg no HC 615.038/
“WhatsApp” e “prova”, bem como especificando o Código de SP; AgRg no AREsp 1.573.424/SP; HC 588.135/SP; HC 574.131/RS;
Processo Penal como norma de referência na opção “pesquisa HC 590.296/MS; REsp 1.568.445/PR; AgRg no PBAC n. 10/DF;
EDcl no HC 492.052/SP; AgRg no HC 580.795/SP; RHC 120.726/
avançada”. Sem adoção de uma data inicial para o recorte das
SP; HC 537.274/MG; HC 537.614/SC; AgRg no REsp 1.792.407/
decisões pesquisadas e sem limitação a um tipo de ação específica,
SP; RHC 108.262/MS; HC 507.484/GO; AgRg no RHC 78.065/
a busca foi encerrada no dia 30/01/2023. Julgados posteriores foram
SP; RHC 102.093/PB; RHC 116.264/DF; RHC 114.197/SP; AgRg no
desconsiderados, de modo que, caso sejam usados os mesmos
AREsp 1.375.163/ES; AgRg no HC 499.425/SC; HC 501.568/SP; RHC
comandos em data posterior, certamente surgirão novas decisões.
102.128/PA; HC 444.024/PR; REsp 1.755.974/MT; HC 450.617/MG;
Como resultado, localizaram-se 81 acórdãos (AgRg no HC 739.866/ RHC 98.250/RS; APn 885/DF; RHC 99.735/SC; RHC 101.585/MG;
RJ; AgRg no HC 752.444/SC; HC 730.721/SP; AgRg no RHC RHC 89.385/SP; HC 433.930/ES; HC 446.531/SP; RHC 92.281/SP;
166.276/PR; AgRg no HC 659.077/SP; AgRg no RHC 150.787/PE; HC 421.249/SC; RHC 73.998/SC; RHC 89.981/MG; RHC 85.605/
HC 723.664/PR; AgRg no HC 720.903/SC; AgRg no HC 694.410/RS; RJ; RHC 79.452/RR; RHC 76.324/DF; RHC 73.366/PA; RHC 67.379/
AgRg no RHC 162.777/MG; AgRg no HC 722.827/SC; HC 580.662/ RN; HC 362.622/RS; RHC 51.531/RO). Desses, 31 foram descartados
MG; AgRg no RHC 159.484/MG; AgRg no RHC 158.163/MG; AgRg por referenciarem o aplicativo apenas de forma marginal, não
no AREsp 1.622.320/MA; AgRg nos EDcl no RHC 150.385/CE; HC oferecendo qualquer conteúdo normativo à pesquisa. Além disso, o
694.083/PB; HC 697.790/SC; AgRg no AREsp 1.807.901/AM; AgRg acórdão do AgRg no AREsp 1.573.424/SP apareceu em duplicidade,
no RHC 154.529/RJ; APn 993/DF; AgRg no REsp 1.894.363/DF; restando, ao final, 49 acórdãos considerados para o presente estudo.
AgRg no HC 595.956/SP; RHC 143.733/MT; AgRg no HC 648.004/ 2. A jurisprudência predominante sobre mensagens de
SP; AgRg no RHC 144.883/MG; AgRg no AREsp 1.779.821/PR; WhatsApp

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O STJ entende que a inviolabilidade das comunicações prevista no em residências quando o morador o autoriza de forma voluntária,
art. 5º, XII, da CF, se refere à comunicação de dados. Assim, ela não livre de constrangimento ou coação, o que seria comprovado, em
alcança os dados já armazenados em aparelhos celulares frutos de caso de dúvida, por outras provas; restando suspeição, esta deve ser
SMS, programas ou aplicativos, id est, não alcança as mensagens de dirimida em favor do réu. Isto pode ser transplantado para o acesso
WhatsApp. Estas, porém, são invioláveis com base no inciso X do art. consentido aos dados do celular no momento do flagrante. Já no RHC
5º da CF, sob o fundamento de que integram a intimidade e a vida 89.385/SP, a ilicitude da prova obtida por meio do acesso aos dados
privada do indivíduo, conforme AgRg no HC 648.004/SP, AgRg no do telefone (WhatsApp) decorreu da inexistência de autorização
AgRg nos EDcl no REsp 1.842.062/RS, AgRg no HC 611.762/SC, HC judicial e da desconsideração do suposto consentimento do réu,
421.249/SC, RHC 89.981/MG, HC 588.135/SP. porque: “a afirmação do Juízo sentenciante de que a defesa não
O STJ reconhece que o acesso às mensagens só pode ocorrer em comprovou a ausência de consentimento do réu para a submissão
duas hipóteses: a) mediante decisão judicial, vide AgRg no AREsp de seu aparelho celular a exame pericial constitui indevida inversão
1.807.901/AM, HC 433.930/ES, conforme regulamentação do art. 3º do ônus da prova e, por esse motivo, deve ser desconsiderada”.
da Lei 9.472/1991 e art. 7º da Lei 12.965/2014 (HC 590.296/MS), o Portanto, caso haja dúvida quanto ao consentimento, essa deve ser
que é especialmente relevante em resolvida em favor do réu.
casos de agentes policiais que, sem
b) Celular como corpo de delito
prévia autorização judicial, aces-
sam o celular do investigado no
momento da prisão em flagrante
"[...] O FUNDAMENTO No RHC 108.262/MS, caso em que
o celular foi apreendido e encami-
(HC 580.662/MG; REsp 1.755.974/ DA INVIOLABILIDADE nhado para perícia pela autoridade
MT; HC 421.249/SC; AgRg no HC policial e que versava sobre o crime
567.637/RS; AgRg no HC 611.762/ DAS MENSAGENS do art. 241-A do Estatuto da Criança
SC; AgRg no HC 722.827/SC; HC e do Adolescente, houve divergên-
580.662/MG); e b) quando o aces- ARMAZENADAS É O ART. cia quanto à ilicitude da prova. En-
so é franqueado pelo titular dos
dados de forma consensual, con- 5º, INCISO X DA CF; SEU quanto o voto vencido a declarou
nula por violação ao direito de pri-
forme consta no HC 590.296/MS,
no EDcl no HC 492.052/SP e no HC ACESSO É AUTORIZADO vacidade ante a falta de ordem judi-
cial, o voto vencedor foi em sentido
537.274/MG. Sob “franqueado pelo
titular dos dados” compreende-se
APENAS POR DECISÃO oposto, fundamentado na distinção
entre o caso em julgamento e a ju-
a “autorização voluntária de inter-
locutor da conversa”, incluindo-se
JUDICIAL OU MEDIANTE risprudência do STJ. Isso porque o
celular é corpo de delito, já que o
aqui terceiros como testemunhas
(AgRg no HC 595.956/SP). Nos ca-
CONSENTIMENTO réu foi denunciado pela divulgação
via WhatsApp de fotografia porno-
sos em que nenhuma dessas hipó- DE UM DOS gráfica envolvendo uma adoles-
teses está presente, é reconhecida
a ilicitude da prova. Desse modo, INTERLOCUTORES." cente (art. 241-A, ECA). Portanto, a
materialidade delitiva está na pró-
pode-se resumir o entendimento
pria coisa, o que dispensa decisão
da seguinte forma: o fundamento
judicial para apreensão.
da inviolabilidade das mensagens
armazenadas é o art. 5º, inciso X da CF; seu acesso é autorizado Essa distinção de situações foi fundamentada também em duas
apenas por decisão judicial ou mediante consentimento de um dos regras do CPP: no art. 6º, que atribui à autoridade policial o dever de
interlocutores. apreender objetos que tiverem relação com o fato, bem como, entre
3. Tópicos específicos
outras medidas, colher todas as provas que servirem para o seu
esclarecimento; e no art. 240, §§ 1º, e, 2º, que diz que se procederá
a) Prova do consentimento do acusado à busca domiciliar e pessoal para descobrir objetos necessários à
Nos casos de acesso aos dados do celular por policiais durante prova da infração ou defesa do réu ou quando houver suspeita de
o flagrante em razão do consentimento do acusado, emerge a ocultação de arma proibida ou outros elementos de convicção.
discussão sobre a sua prova. Dentre os nove julgados encontrados c) Espelhamento do WhatsApp
sobre a temática, houve em dois deles ordem judicial para busca e
apreensão do celular, em um (RHC 102.093/PB) o consentimento do No julgamento do RHC 99.735/SC, o STJ enfrentou a questão se
réu e, em outro (AgRg no HC 595.956/SP), o áudio foi disponibilizado o espelhamento do WhatsApp via QR Code, bem como as provas
voluntariamente por uma testemunha. dali diretamente decorrentes, seriam nulas. Para tanto, partiu-
se de uma explicação técnica: o espelhamento ocorre no próprio
Em cinco julgados, a palavra dos policiais que fizeram o flagrante
site da empresa, o WhatsApp Web, onde se gera um código de
foi considerada suficiente para provar o consentimento do réu
quanto ao acesso ao dispositivo (AgRg no HC 648.004/SP, AgRg no barras bidimensional que só pode ser lido pelo celular do usuário
AREsp 1.779.821/PR, HC 590.296/MS, EDcl no HC 492.052/SP, HC do aplicativo, não sendo possível espelhá-lo à distância. Após, caso
537.274/MG). Com isso, afastou-se a ilicitude da prova, sendo este o se opte pela opção “mantenha-me conectado”, o emparelhamento
entendimento prevalente hoje. permanece por tempo indeterminado, até que o usuário o encerre.
No caso, a autoridade policial não informou ao recorrente do
No entanto, há julgados com fundamentação diversa. O AgRg emparelhamento e devolveu o aparelho.
no RHC 154.529/RJ faz analogia com outra linha jurisprudencial
em formação no STJ consistente no entendimento de que, para Por meio desse procedimento, os investigadores tiveram: a) acesso
flagrante de crimes permanentes, é válido o ingresso de policiais a todas as conversas (mensagens e dados anexados) já registradas

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e que viessem a ocorrer; b) a possibilidade de enviar mensagens agravante argumentava que essa prova deveria ser considerada
pelo WhatsApp Web; e c) a possibilidade de apagar mensagens ilícita, pois consistia em trechos de conversa do WhatsApp
prévias e posteriores ao espelhamento, as quais não deixariam fornecidos pela vítima, o que não estaria de acordo com as normas
quaisquer vestígios se, em se tratando de mensagens enviadas, da cadeia de custódia do art. 158-A do CPP.
fossem apagadas no modo “apagar para mim”, e as recebidas, em
qualquer caso, tudo por força da encriptação ponta a ponta, que O STJ entendeu que não houve quebra da cadeia de custódia, pois:
não guarda em servidor algum o conteúdo das conversas. Assim, a) não haveria elementos que comprovassem alterações dos prints,
a autoridade policial poderia integrar conversas como interlocutor, que manteriam uma “sequência lógico-temporal”, especialmente
bem como apagar mensagens que jamais serão recuperadas. pela última mensagem de um print aparecer como a primeira no
Na sequência, a Relatora traça diferenciações. A mais simples é que seguinte; b) o acusado alegou ter contraprova, mas, quando instado
o espelhamento não se confunde com a obtenção de conversas a apresentá-la, negou-se a entregar seu celular ou mostrar prints
já registradas para fins de perícia, admitida pelo STJ (supra 2). que contradissessem os originais. Ademais, haveria outras provas
Também não se confunde com a interceptação telefônica (art. 1º da no caso que, em conjunto, militavam a favor da versão relatada pela
Lei 9.296/1996), por não ser possível analogia entre ambas: a) na vítima.
interceptação telefônica, o policial é mero observador, enquanto, no
espelhamento, é participante tanto das conversas concluídas quanto Entretanto, há de se ressaltar a existência de entendimento do
das conversas futuras; b) ademais, não seria possível compatibilizar STJ no sentido de que, se os prints são da tela do site WhatsApp
o espelhamento, que permite a exclusão de mensagens sem Web, passam a ser prova ilícita e, por consequência, devem ser
deixar vestígios, com a presunção relativa de legitimidade dos desentranhados dos autos (AgRg no RHC 133.430/PE). Os motivos
servidores públicos aplicada à interceptação telefônica. Além disso, especificados são os mesmos mencionados para declarar nula
na interceptação, há possibilidade de perícia das gravações, de decisão que autoriza o espelhamento do WhatsApp via QR Code.
modo que a presunção pode ser desafiada; no espelhamento, pelas
alterações não deixarem rastros para uma eventual perícia, tornaria 4. Conclusão
a presunção absoluta, pois o investigado não teria como impugnar Para o STJ é preciso decisão judicial para acessar os dados do
a prova (prova diabólica); c) por fim, o espelhamento exige que haja
celular; caso contrário, a prova é ilícita. Contudo, se um dos
a apreensão física do aparelho celular por breve período de tempo,
interlocutores da conversa consente com o acesso, a falta de ordem
com posterior devolução ao investigado sem menção de que a
medida constritiva está ocorrendo, diferentemente da intercepção, judicial não implica ilicitude. Quanto à sua prova, há tanto julgados
possível de ser realizada à distância. que reconhecem a palavra do policial como prova suficiente do
consentimento, quanto outros que a reputam insuficiente, exigindo
Dessa forma, pela possibilidade de manipulação sem deixar vestígios, que sejam complementadas por outras provas; nestes casos, a
o STJ entendeu ser inadmissível a utilização do espelhamento como
dúvida deve ser dirimida a favor do réu. Quando o celular for corpo de
meio de prova e declarou nula a decisão judicial que autorizara o
delito, a ordem judicial para acesso aos dados é desnecessária. No
espelhamento do WhatsApp via QR Code, bem como as provas dali
diretamente decorrentes. espelhamento do WhatsApp Web, há a possibilidade de adulteração
das conversas, o que torna a prova imprestável. O STJ reconhece a
d) Prints validade dos prints de WhatsApp como prova, exceto se os prints
Por fim, o STJ reconheceu a validade de prints de conversa de são da tela do WhatsApp Web.
WhatsApp como prova no AgRg no HC 752.444/SC. No caso, a

Referências

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no AgRg nos EDcl no REsp Soares da Fonseca, julgado em 8/02/2018, DJe de 22/02/2018.
1.842.062/RS. Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 15/12/2020, DJe de 18/12/2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). HC 433.930/ES. Rel. Min. Reynaldo
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no AREsp 1.779.821/PR. Rel. Min. Soares da Fonseca, julgado em 19/06/2018, DJe de 29/06/2018.
Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 6/04/2021, DJe de 13/04/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). HC 537.274/MG. Rel. Min. Leopoldo de
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no AREsp 1.807.901/AM. Rel. Min. Arruda Raposo (Des. Convocado do TJ/PE), julgado em 19/11/2019, DJe de 26/11/2019.
Joel Ilan Paciornik, julgado em 19/10/2021, DJe de 25/10/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). HC 580.662/MG. Rel. Min. Laurita Vaz,
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no HC 567.637/RS. Rel. Min. Ribeiro julgado em 22/03/2022, DJe de 29/03/2022.
Dantas, julgado em 03/11/2020, DJe de 12/11/2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). HC 588.135/SP. Rel. Min. Reynaldo
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no HC 595.956/SP. Rel. Min. João Soares da Fonseca, julgado em 8/09/2020, DJe de 14/09/2020.
Otávio de Noronha, julgado em 27/04/2021, DJe de 29/04/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). HC 590.296/MS. Rel. Min. Reynaldo
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no HC 611.762/SC. Rel. Min. Felix Soares da Fonseca, julgado em 4/08/2020, DJe de 13/08/2020.
Fischer, julgado em 20/10/2020, DJe de 26/10/2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). REsp 1.755.974/MT. Rel. Min. Laurita Vaz,
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no HC 648.004/SP. Rel. Min. Felix julgado em 12/03/2019, DJe de 29/03/2019.
Fischer, julgado em 13/04/2021, DJe 19/04/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). RHC 89.385/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no HC 722.827/SC. Rel. Min. Cruz, julgado em 16/08/2018, DJe de 28/08/2018.
Jesuíno Rissato (Des. Convocado do TJDFT), julgado em 19/04/2022, DJe de 26/04/2022. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). RHC 89.981/MG. Rel. Min. Reynaldo
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no HC 752.444/SC. Rel. Min. Soares da Fonseca, julgado em 5/12/2017, DJe de 13/12/2017.
Ribeiro Dantas, julgado em 4/10/2022, DJe de 10/10/2022. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). RHC 102.093/PB. Rel. Min. Ribeiro
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). EDcl no HC 492.052/SP. Rel. Min. Rogerio Dantas, julgado em 20/08/2019, DJe de 23/08/2019.
Schietti Cruz, julgado em 16/06/2020, DJe de 26/06/2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). RHC 108.262/MS. Rel. Min. Antonio
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). HC 421.249/SC. Rel. Min. Reynaldo Saldanha Palheiro, julgado em 5/09/2019, DJe de 9/12/2019.

Recebido em: 06.02.2023 - Aprovado em: 03.03.2023 - Versão final: 04.04.2023

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BOLETIM IBCCRIM - ANO 31 - N.º 366 - MAIO DE 2023 - ISSN 1676-3661


CADERNO DE JURISPRUDÊNCIA | MAIO DE 2023
BOLETIM IBCCRIM N.º 366
TEMA:

CULTIVO E IMPORTAÇÃO DE
CANNABIS PARA FINS MEDICINAIS
(STF – Min. Rel. GILMAR MENDES – HC 144.161 – 2ª Turma – j.
Nosso comentário: A revogada Lei 6.368/76 já previa a possibilidade de 11.09.2018) (destaques nossos – Cadastro IBCCRIM 6426).
cultura de plantas com substâncias entorpecentes para “fins terapêuticos
ou científicos (...) mediante prévia autorização das autoridades
competentes” (art. 2º, § 2º). A atual Lei de Drogas possui disposição Nosso comentário: No julgamento conjunto dos HCs 144.161/SP HC
semelhante (art. 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/06), assim em 142.987/SP, no ano de 2018, a 2ª Turma fixou o entendimento de que
como o decreto que a regula, o qual dispõe que é de competência é a atípica a conduta de importar pequena quantidade de sementes
do Ministério da Saúde “autorizar o plantio, a cultura e a colheita de cannabis sativa. A posição foi replicada posteriormente, em
dos vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, casos semelhantes – entre outros: HC 149.199/SP, Min. Rel. Ricardo
exclusivamente para fins medicinais ou científicos” (art. 14, I, c, do Lewandowski, j. 18.09.18; HC 173.346/SP AgR, Min. Rel. Ricardo
Decreto 5.912/06). Lewandowski, j. 04.10.2019; HC 147.478/SP, Min. Rel. Roberto Barroso,
As convenções internacionais sobre drogas subscritas pelo Brasil ca- j. 19.12.19.
minham no mesmo sentido. A Convenção Única sobre Entorpecen- Ainda na Suprema Corte, vale mencionar a ADI 5708 (Min. Rel. Luiz
tes, de 1961 (promulgada pelo Decreto 54.216/64), reconhece, em seu Fux), ajuizada no ano de 2017, cujo objeto é “conferir interpretação
preâmbulo, que “o uso médico dos entorpecentes continua indispen- conforme a Constituição aos dispositivos supracitados [arts. 2º, caput
sável para o alívio da dor e do sofrimento e que medidas adequadas e § único; 28; 31; 33, § 1º, I, II e III; 34; e, por arrastamento lógico-
devem ser tomadas para garantir a disponibilidade de entorpecentes sistêmico, 35 e 36, todos da Lei nº 11.343/06 c/c art. 334-A do Código
para tais fins”. Da mesma maneira, a Convenção das Nações Unidas Penal], afastando entendimento, segundo o qual, seria crime plantar,
sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971 (promulgada pelo Decreto cultivar, colher, guardar, transportar, prescrever, ministrar, e adquirir
79.388/77), também reconheceu, em seu preâmbulo, que “o uso de Cannabis para fins medicinais e de bem-estar terapêutico” (p. 1 da
substâncias psicotrópicas para fins médicos e científicos é indispen- inicial). Após parecer da Procuradoria Geral de República, em 2019,
sável, e que a disponibilidade daquelas para esses fins não deve ser “pela parcial procedência da ação, a fim de que seja determinado
indevidamente restringida”. prazo à União e à Anvisa para que, no âmbito de suas respectivas
competências, editem regulamentação sobre o plantio da Cannabis
Contudo, mesmo diante dessa permissão legislativa, ainda não existe
regulamentação normativa específica no país. com finalidade medicinal”, aguarda-se o seu julgamento.
Observe-se, nesse ponto, que as normas da ANVISA sobre cannabis
não tratam, especificamente, da autorização para o seu plantio Superior Tribunal de Justiça
para fins medicinais (e subsequente extração de suas substâncias).
Especificamente: i) a RDC 327/19 versa sobre “fabricação e importação” Ementa: EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL.
e “requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o IMPORTAÇÃO DE 16 SEMENTES DE MACONHA (CANNABIS
monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins SATIVUM). DENÚNCIA POR TRÁFICO INTERNACIONAL
medicinais”; e ii) a RDC 660/22 disciplina a “importação de Produto DE DROGAS. REJEIÇÃO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO.
derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante RECLASSIFICAÇÃO PARA CONTRABANDO, COM APLICAÇÃO
prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AFASTAMENTO. RECURSO
saúde”. ESPECIAL PROVIDO. PRETENDIDO TRANCAMENTO DA AÇÃO
No ano de 2017, foi criado um Grupo de Trabalho na ANVISA (Portaria POR ATIPICIDADE. ACATAMENTO DO ENTENDIMENTO DO STF.
nº 415, de 13/03/2017) para a discussão do tema, que, inclusive, chegou EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS.
a elaborar um relatório de análise de impacto regulatório (processo
administrativo SEI nº 25351.421833/2017-76).1 Contudo, em votação 1. O conceito de “droga”, para fins penais, é aquele estabelecido no
da Diretoria Colegiada do órgão, decidiu-se pelo arquivamento do art. 1.º, parágrafo único, c.c. o art. 66, ambos da Lei n.º 11.343/2006,
processo, nos termos do voto do Diretor Antonio Barra2, para quem, norma penal em branco complementada pela Portaria SVS/MS n.º
dentre outros argumentos, o “escopo de atuação desta Agência 344, de 12 de maio de 1998. Compulsando a lista do referido ato
demandaria delegação de competência pelo Ministério da Saúde”3. administrativo, do que se pode denominar “droga”, vê-se que dela
Assim, “diante da omissão inconstitucional do poder público na não consta referência a sementes da planta Cannabis Sativum.
implementação das condições necessárias ao adequado acesso
dos brasileiros à utilização terapêutica da Cannabis e em obediência 2. O Tetrahidrocanabinol - THC é a substância psicoativa
ao dever estatal de efetivar as prestações necessárias à garantia encontrada na planta Cannabis Sativum, mas ausente na
da saúde da população (CF, art. 196), o Judiciário vem viabilizando semente, razão pela qual esta não pode ser considerada “droga”,
pessoas físicas e jurídicas a importar sementes e plantar Cannabis em para fins penais, o que afasta a subsunção do caso a qualquer
solo brasileiro como forma de tutela da vida e da saúde de pessoas uma das hipóteses do art. 33, caput, da Lei n.º 11.343/2006.
que a utilizam no tratamento de doenças”4.
3. Dos incisos I e II do § 1.º do art. 33 da mesma Lei, infere-se
que “matéria-prima” ou “insumo” é a substância utilizada “para a
Supremo Tribunal Federal preparação de drogas”. A semente não se presta a tal finalidade,
Ementa: Habeas corpus. 2. Importação de sementes de maconha. 3. porque não possui o princípio ativo (THC), tampouco serve de
Sementes não possuem a substância psicoativa (THC). 4. 26 (vinte e reagente para a produção de droga.
seis) sementes: reduzida quantidade de substâncias apreendidas. 4. No mais, a Lei de regência prevê como conduta delituosa o semeio,
5. Ausência de justa causa para autorizar a persecução penal. o cultivo ou a colheita da planta proibida (art. 33, § 1.º, inciso II; e
6. Denúncia rejeitada. 7. Ordem concedida para determinar a art. 28, § 1.º). Embora a semente seja um pressuposto necessário
manutenção da decisão do Juízo de primeiro grau. para a primeira ação, e a planta para as demais, a importação

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(ou qualquer dos demais núcleos verbais) da semente não está atuação das autoridades administrativas, tampouco substituí-las em
descrita como conduta típica na Lei de Drogas. (...) seu mister, mas, apenas, evitar que os pacientes/recorridos sejam
6. Embargos de divergência acolhidos, para determinar o alvo de atos de investigação criminal pelos órgãos de persecução
trancamento da ação penal em tela, em razão da atipicidade da penal. (...)
conduta. 17. O que pretendem os recorridos com o plantio da Cannabis não
(STJ – Min. Rel. LAURITA VAZ – EREsp 1.624.564/SP – 3ª Seção – j. é a extração de droga (maconha) com o fim de entorpecimento
14.10.20) (destaques nossos – Cadastro IBCCRIM 6427). - potencialmente causador de dependência - próprio ou alheio,
mas, tão somente, a extração das substâncias com reconhecidas
propriedades medicinais contidas na planta. Não há, portanto,
Nosso comentário: Esse é o julgado paradigmático do STJ no vontade livre e consciente de praticar o fim previsto na norma
tema de importação de pequenas quantidades de sementes de
cannabis. Seguindo o entendimento do STF (acima indicado), a Corte penal, qual seja, a extração de droga, para entorpecimento
pacificou a posição de suas duas turmas criminais para fixar a tese de pessoal ou de terceiros.
atipicidade dessa conduta, por falta de justa causa, de modo a ensejar 18. Outrossim, a hipótese dos autos também não se reveste de
o trancamento da ação penal. tipicidade penal - aqui em sua concepção material -, porque
a conduta dos recorridos, ao invés de atentar contra o bem
Ementa: RECURSO ESPECIAL. CULTIVO DOMÉSTICO DA PLANTA jurídico saúde pública, na verdade intenciona promovê-lo - e
CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. HABEAS CORPUS tem aptidão concreta para isso - a partir da extração de produtos
PREVENTIVO. RISCO PERMANENTE DE CONSTRANGIMENTO medicamentosos; isto é, a ação praticada não representa
ILEGAL. SALVO-CONDUTO. POSSIBILIDADE. REVOLVIMENTO nenhuma lesividade, nem mesmo potencial (perigo abstrato),
DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. DESNECESSIDADE. ANVISA. ao bem jurídico pretensamente tutelado pelas normas penais
AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA. ATIPICIDADE contidas na Lei n. 11.343/2006. (...)
PENAL DA CONDUTA. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE. RECURSO 22. Se o Direito Penal, por meio da “guerra às drogas”, não mostrou,
ESPECIAL NÃO PROVIDO. (...) ao longo de décadas, quase nenhuma aptidão para resolver o
3. Uma vez que é possível, ao menos em tese, que os pacientes problema relacionado ao uso abusivo de substâncias entorpecentes
(ora recorridos) tenham suas condutas enquadradas no art. - e, com isso, cumprir a finalidade de tutela da saúde pública a que
33, § 1º, da Lei n. 11.343/2006, punível com pena privativa de em tese se presta -, pelo menos que ele não atue como empecilho
liberdade, é indiscutível o cabimento de habeas corpus para para a prática de condutas efetivamente capazes de promover esse
os fins por eles almejados: concessão de salvo-conduto para bem jurídico fundamental à garantia de uma vida humana digna,
o plantio e o transporte de Cannabis sativa, da qual se pode como pretendem os recorridos com o plantio da Cannabis sativa
extrair a substância necessária para a produção artesanal dos para fins exclusivamente medicinais.
medicamentos prescritos para fins de tratamento de saúde. 23. Recurso especial do Ministério Público não provido, confirmando-
4. Também há o risco, pelo menos hipotético, de que as se o salvo-conduto já expedido em favor dos ora recorridos.
autoridades policiais tentem qualificar a pretendida importação (STJ – Min. Rel. ROGERIO SCHIETTI CRUZ – REsp n. 1.972.092/SP –
de sementes de Cannabis no tipo penal de contrabando (art. j. 14.06.2022) (destaques nossos – Cadastro IBCCRIM 6428).
334-A do CP), circunstância que reforça a possibilidade de
Ementa: PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS PRE-
que os recorridos se socorram do habeas corpus para o fim
VENTIVO. 1. UTILIZAÇÃO DO MANDAMUS COMO SUBSTITUTO
pretendido, notadamente porque receberam intimação da Polícia
RECURSAL. NÃO CABIMENTO. AFERIÇÃO DE EVENTUAL FLA-
Federal para serem ouvidos em autos de inquérito policial. Ações
GRANTE ILEGALIDADE. 2. PEDIDO DE EXPEDIÇÃO DE SALVO-
pelo rito ordinário e outros instrumentos de natureza cível podem
-CONDUTO. PLANTIO DE MACONHA PARA FINS MEDICINAIS.
até tratar dos desdobramentos administrativos da questão trazida
NECESSIDADE DE EXAME NA SEARA ADMINISTRATIVA. POSSI-
a debate, mas isso não exclui o cabimento do habeas corpus
BILIDADE DE OBTENÇÃO DO MEDICAMENTO NA SEARA CÍVEL.
para impedir ou cessar eventual constrangimento à liberdade dos
AUTO-CONTENÇÃO JUDICIAL NA SEARA PENAL. 3. SUPERA-
interessados.
ÇÃO DE ENTENDIMENTO. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO
5. Efetivamente, é adequada a via eleita pelos recorridos - habeas corpus ADMINISTRATIVA. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DO ÓRGÃO
preventivo - haja vista que há risco, ainda que mediato, à liberdade COMPETENTE. ESFERA CÍVEL. SOLUÇÃO MAIS ONEROSA E
de locomoção deles, tanto que o Juiz de primeiro grau determinou a BUROCRÁTICA. NECESSIDADE DE SE PRIVILEGIAR O ACESSO
apuração dos fatos narrados na inicial do habeas corpus pela Polícia À SAÚDE. 4. DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE (ART. 196 DA
Federal, o que acabou sendo expressamente revogado pelo Tribunal a CF). REPRESSÃO AO TRÁFICO (ART. 5º, XLIII, DA CF). NECES-
quo, ao conceder a ordem do habeas corpus lá impetrado. SIDADE DE COMPATIBILIZAÇÃO. LEI 11.343/2006 QUE PROÍBE
6. A análise da questão trazida a debate pela defesa não demanda APENAS O USO IDEVIDO E NÃO AUTORIZADO. ART. 2º, P. ÚNICO,
dilação probatória, consistente na realização de perícia médica a fim DA LEI DE DROGAS. POSSIBILIDADE DE A UNIÃO AUTORIZAR O
de averiguar se os pacientes realmente necessitam de tratamento PLANTIO. TIPOS PENAIS QUE TRAZEM ELEMENTOS NORMATI-
médico com canabidiol. A necessidade de dilação probatória - VOS. 5. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA DOS
circunstância, de fato, vedada na via mandamental - foi afastada no DIREITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO À SAÚDE. BENEFÍCIOS DA
caso concreto, tendo em vista que os recorridos apresentaram provas TERAPIA CANÁBICA. USO MEDICINAL AUTORIZADO PELA AN-
pré-constituídas de suas alegações, provas essas consideradas VISA. 6. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO.
suficientes para a concessão do writ pelo Tribunal de origem, dentre SAÚDE PÚBLICA NÃO PREJUDICADA PELO USO MEDICINAL DA
as quais a de que os pacientes estavam autorizados anteriormente MACONHA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL E CONGLO-
pela Anvisa a importar, com objetivo terapêutico, medicamento com BANTE. IMPOSSIBILIDADE DE SE CRIMINALIZAR QUEM BUSCA
base em extrato de canabidiol, para tratamento de enfermidades ACESSO AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. 7. IMPORTAÇÃO
também comprovadas por laudos médicos, devidamente acostados DE SEMENTES. AUSÊNCIA DO PRINCÍPIO ATIVO. ATIPICIDADE
aos autos. (...) NA LEI DE DROGAS. POSSIBILIDADE DE TIPIFICAR O CRIME DE
9. Não há falar que a defesa pretende, mediante o habeas corpus, CONTRABANDO. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. PRINCÍ-
tolher o poder de polícia das autoridades administrativas. Primeiro, PIO DA INSIGNIFICÂNCIA. SALVO-CONDUTO QUE DEVE ABAR-
porque a própria Anvisa, por meio de seu diretor, afirmou que CAR TAMBÉM REFERIDA CONDUTA. 8. HABEAS CORPUS NÃO
a regulação e a autorização do cultivo doméstico de plantas, CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. PARECER MINIS-
quaisquer que sejam elas, não fazem parte do seu escopo de TERIAL PELA CONCESSÃO DO WRIT. PRECEDENTES. (...)
atuação. Segundo, porque não se objetiva nesta demanda obstar a 2. No julgamento do Recurso em Habeas Corpus n. 123.402/

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RS, concluí que a autorização para plantio de maconha com fins 6. Trazendo o exame da matéria mais especificamente para
medicinais depende de critérios técnicos cujo estudo refoge à o direito penal, tem-se que o bem jurídico tutelado pela
competência do juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas Lei de Drogas é a saúde pública, a qual não é prejudicada
cuja análise incumbe aos órgãos de vigilância sanitária. pelo uso medicinal da cannabis sativa. Dessa forma, ainda
- De igual sorte, considerando que a Agência Nacional de Vigilân- que eventualmente presente a tipicidade formal, não se
cia Sanitária autoriza a importação de fármacos à base de cannabis revelaria presente a tipicidade material ou mesmo a tipicidade
sativa, considerei que o direito à saúde estaria preservado, principal- conglobante, haja vista ser do interesse do Estado, conforme
mente em razão da existência de precedentes desta Corte Superior, anteriormente destacado, o cuidado com a saúde da população.
favoráveis ao custeio de medicamentos à base de canabidiol pelo - Dessa forma, apesar da ausência de regulamentação pela via
plano de saúde (REsp n. 1.923.107/SP), bem como do Supremo Tri- administrativa, o que tornaria a conduta atípica formalmente - por
bunal Federal (RE 1.165.959/SP), que, em repercussão geral, fixou ausência de elemento normativo do tipo -, tem-se que a conduta
a tese de que “cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, de plantar para fins medicinais não preenche a tipicidade material,
medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a motivo pelo qual se faz mister a expedição de salvo-conduto, desde
sua importação autorizada”. que comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-
- Dessa forma, vinha determinando que o pedido fosse analisado se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito
administrativamente, com possibilidade de, em caso de demora fundamental à saúde.
ou de negativa, apresentar o tema ao Poder Judiciário, porém à 7. Quanto à importação das sementes para o plantio, tem-se que
jurisdição cível competente, privilegiando a auto-contenção judicial tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de
na seara penal. Justiça sedimentaram o entendimento de que a conduta não tipifica
os crimes da Lei de Drogas, porque tais sementes não contêm
3. Contudo, ao me deparar novamente com a matéria na presente
o princípio ativo inerente à cannabis sativa. Ficou assentado,
oportunidade, passados quase dois anos do julgamento do
outrossim, que a conduta não se ajustaria igualmente ao tipo penal
recurso acima indicado, verifico que o cenário não se alterou
de contrabando, em razão do princípio da insignificância.
administrativamente. De fato, a ausência de regulamentação
administrativa persiste e não tem previsão para solução breve, uma - Entretanto, considerado o potencial para tipificar o crime de
vez que a Anvisa considera que a competência para regular o cultivo contrabando, importante deixar consignado que, cuidando-se de
de plantas sujeitas a controle especial seria do Ministério da Saúde e importação de sementes para plantio com objetivo de uso medicinal,
este considera que a competência seria da Anvisa. o salvo-conduto deve abarcar referida conduta, para que não haja
restrição, por via transversa do direito à saúde. (...)
- Ademais, apesar de a matéria também poder ser resolvida na
seara cível, conforme anteriormente mencionado, observo que a 8. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício,
solução se revela mais onerosa e burocrática, com riscos, inclusive, para expedir salvo-conduto em benefício do paciente, para que
à continuidade do tratamento. Dessa forma, é inevitável evoluir na as autoridades responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas,
análise do tema na seara penal, com o objetivo de superar eventuais inclusive da forma transnacional, abstenham-se de promover
óbices indicados por mim, anteriormente, privilegiando-se, dessa qualquer medida de restrição de liberdade, bem como de apreensão
forma, o acesso à saúde, por todos os meios possíveis, ainda que e/ou destruição dos materiais destinados ao tratamento da saúde
pela concessão de salvo-conduto. do paciente, dentro dos limites da prescrição médica, incluindo a
possibilidade de transporte das plantas, partes ou preparados
4. A matéria trazida no presente mandamus diz respeito ao direito
dela, em embalagens lacradas, ao Laboratório de Toxicologia da
fundamental à saúde, constante do art. 196 da Carta Magna, que, na Universidade de Brasília, ou a qualquer outra instituição dedicada
hipótese, toca o direito penal, uma vez que o art. 5º, inciso XLIII, da à pesquisa, para análise do material. Parecer ministerial pela
Constituição Federal, determina a repressão ao tráfico e ao consumo concessão da ordem. Precedentes.
de substâncias entorpecentes e psicotrópicas, determinando
que essas condutas sejam tipificadas como crime inafiançável e (STJ – Min. Rel. REYNALDO SOARES DA FONSECA – HC 779.289/
insuscetível de graça e de anistia. (...) DF – j. 22.11.2022) (destaques nossos – Cadastro IBCCRIM 6429).

5. Como é de conhecimento, um dos pilares da dignidade da pessoa


humana é a prevalência dos direitos fundamentais, dentre os quais Nosso comentário: Esses são os casos paradigmáticos sobre a
se inclui o direito à saúde, garantido, de acordo com a Constituição atipicidade de cultivo de cannabis para fins medicinais, nas duas turmas
Federal, mediante ações que visam à redução do risco de doença criminais do STJ. Observe-se que houve mudança de entendimento na
5ª Turma, que, até então, entendia pela impossibilidade de concessão
e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e de salvo-conduto pelo Poder Judiciário, sob o argumento de que a
serviços para sua promoção, proteção e recuperação. competência seria da ANVISA. Tais precedentes atualmente guiam as
- Contudo, diante da omissão estatal em regulamentar o plantio para decisões sobre o tema na Corte – vide, por exemplo: EDcl no AgRg no
RHC 157.190/CE, Min. Rel. Jesuíno Rissato, j. 07.02.2023; e AgRg no HC
uso medicinal da maconha, não é coerente que o mesmo Estado, 754.877/SP, Min. Rel. Jesuíno Rissato, j. 14.02.2023.
que preza pela saúde da população e já reconhece os benefícios
medicinais da cannabis sativa, condicione o uso da terapia canábica
àqueles que possuem dinheiro para aquisição do medicamento, em
regra importado, ou à burocracia de se buscar judicialmente seu Compilação e curadoria científica de:
custeio pela União. (...) Fernando Gardinali e Maíra Beauchamp Salomi

Notas
1
https://acesse.one/YeD2b. Acesso em: 28 abr. 2023. 4
MARONNA, Cristiano Avila. Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade. São
2
https://l1nk.dev/xLbNr. Acesso em: 28 abr. 2023. Paulo: Contracorrente, 2022, p. 230.
3
https://l1nk.dev/piB6I. Acesso em: 28 abr. 2023.

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2.º Vice-Presidente: Vinicius de Souza Assumpção
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Argentina), Vera Malaguti Batista (UERJ – Rio de Janeiro/RJ) e Vera Regina Pereira de Andrade (UFPR – Curitiba/PR).
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