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A criminalização da homofobia: uma análise das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e no Mandado de
Injunção nº 4733, à luz do princípio da legalidade penal e seus desdobramentos.
Florianópolis/SC
2020
Ricardo Felipe Maciel Bittencourt
A criminalização da homofobia: uma análise das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e no Mandado de
Injunção nº 4733, à luz do princípio da legalidade penal e seus desdobramentos.
Florianópolis/SC
2020
AGRADECIMENTOS
1
ABREU, Caio Fernando. Aqueles dois. In: ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. Rio de Janeiro. Editora
Agir, 2005. p. 88.
RESUMO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11
2 A HOMOFOBIA E A SUA NECESSÁRIA REPRESSÃO JÚRIDICO-PENAL.......... 15
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 15
2.2 DEFINIÇÕES GERAIS ACERCA DE GÊNERO, DE SEXUALIDADE HUMANA E DE
ORIENTAÇÃO SEXUAL ....................................................................................................... 15
2.2.1 Sexualidade e gênero humano ...................................................................................... 15
2.2.2 As identidades de gênero: transexualidade e cisgeneridade ...................................... 17
2.2.3 Orientações sexuais: homossexualidade, heterossexualidade e bissexualisade........ 18
2.3 CONCEITUAÇÃO E ORIGENS HISTÓRICAS DA HOMOFOBIA .............................. 19
2.3.1 A conceituação de homofobia ....................................................................................... 19
2.3.1.1 A terminologia .............................................................................................................. 19
2.3.1.2 Espécies de homofobia ................................................................................................. 20
2.3.1.2.1 A homofobia irracional versus a homofobia cognitiva ............................................. 20
2.3.1.2.2 A homofobia geral versus a homofobia específica.................................................... 21
2.3.1.3 Caracterização e consequências da homofobia ........................................................... 22
2.3.2 As origens históricas da homofobia ............................................................................. 24
2.3.2.1 A homossexualidade na Grécia e na Roma antigas: da pederastia aos deveres de
cidadão ..................................................................................................................................... 24
2.3.2.2 A homossexualidade na Idade Média: a ideia de abominação construída a partir da
tradição judaico-cristã ............................................................................................................. 26
2.3.2.3 Do “século das luzes” até a contemporaneidade: uma breve perspectiva sobre as raízes
da tradição homofóbica judaico-cristã no Brasil e no Ocidente ............................................. 29
2.4 AS CAUSAS DA HOMOFOBIA: A CULTURA DA HEGEMONIA MASCULINA
FUNDADA NA PATOLOGIZAÇÃO DO COMPORTAMENTO HOMESSEXUAL, NA
SUBJUGAÇÃO DO FEMININO E NA CONTRARIEDADE AO DIFERENCIALISMO
SEXUAL .................................................................................................................................. 32
2.4.1 A patologização do comportamento homossexual ...................................................... 32
2.4.2 A subjugação do papel de gênero feminino ................................................................. 35
2.4.3 A contrariedade ao diferencialismo sexual ................................................................. 36
2.5 AS TRÊS FORMAS DE VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA E A SUA NECESSÁRIA
REPRESSÃO JÚRIDICO-PENAL .......................................................................................... 36
2.5.1 As três formas de violência homofóbica ...................................................................... 36
2.5.1.1 Violência homofóbica interpessoal .............................................................................. 37
2.5.1.2 Violência homofóbica institucional .............................................................................. 38
2.5.1.3 A violência homofóbica simbólica................................................................................ 39
2.5.2 A necessária repressão penal da homofobia ............................................................... 39
3 O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR
OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4377 ......................................... 41
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 41
3.2 A DEVIDA REPRESSÃO JURÍDICO-PENAL DA HOMOFOBIA ................................ 41
3.2.1 As previsões normativas e a dignidade da pessoa humana como fatores
determinantes à criminalização das condutas homofóbicas ............................................... 41
3.2.2 A inércia do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia ............................... 46
3.3 DADOS GERAIS DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR
OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733 ............................................ 47
3.3.1 A natureza jurídica da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do
mandado de injunção ............................................................................................................. 47
3.3.1.1 O mandado de injunção................................................................................................ 48
3.3.1.2 A ação direta de inconstitucionalidade por omissão ................................................... 48
3.3.2 Os pedidos formulados no MI 4733 e na ADO 26....................................................... 49
3.3.3 As diversas manifestações e os pontos de vista que exsurgiram dos autos: os
argumentos contrários e favoráveis à procedência dos pedidos ........................................ 51
3.3.3.1 Os argumentos contrários ............................................................................................ 51
3.3.3.2 Os argumentos favoráveis ............................................................................................ 52
3.3.3.3 As posições do Ministério Público Federal .................................................................. 52
3.4 O JULGAMENTO CONJUNTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
POR OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733 .................................... 53
3.4.1 A sessão do dia 13 de fevereiro de 2019: relatórios e sustentações orais .................. 53
3.4.1.1 Os relatórios ................................................................................................................. 53
3.4.1.2 As sustentações orais .................................................................................................... 54
3.4.2 As sessões dos dias 14 e 20 de fevereiro de 2019: o voto do Ministro Celso de Mello
favorável à superação da mora legislativa ........................................................................... 55
3.4.3 A sessão do dia 21 de fevereiro de 2019: votos do relator do Mandado de Injunção
nº 4733, Ministro Luiz Edson Fachin, e dos Ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto
Barroso .................................................................................................................................... 60
3.4.3.1 O voto do Ministro Luiz Edson Fachin, relator do MI 4733: pelo conhecimento do writ
e procedência das ações ........................................................................................................... 60
3.4.3.2 O voto do Ministro Alexandre de Moraes: favorável à procedência das ações .......... 62
3.4.3.3 O voto do Ministro Luís Roberto Barroso: favorável à procedência das ações .......... 63
3.4.4 A sessão do dia 23 de maio de 2019: os votos dos Ministros Rosa Weber e Luiz Fux,
consagrando-se a maioria para a procedência dos pedidos ................................................ 64
3.4.4.1 O voto da Ministra Rosa Weber: favorável à procedência das ações ......................... 64
3.4.4.2 O voto do Ministro Luiz Fux: favorável à procedência das ações ............................... 64
3.4.5 A sessão do dia 13 de junho de 2019: os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo
Lewandoswski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio de Melo e Dias Toffoli e o placar final de
8x3 a favor da criminalização da homofobia ....................................................................... 65
3.4.5.1 O voto da Ministra Cármen Lúcia: favorável à procedência das ações ...................... 65
3.4.5.2 O voto do Ministro Ricardo Lewandowski: pela parcial procedência das ações, a fim
de reconhecer, apenas, a mora legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia
.................................................................................................................................................. 66
3.4.5.3 O voto do Ministro Gilmar Mendes: favorável à procedência das ações .................... 67
3.4.5.4 O voto do Ministro Marco Aurélio Mello: pela improcedência das ações .................. 67
3.4.5.5 O voto do Ministro Dias Toffoli: pela parcial procedência das ações, a fim de
reconhecer, apenas, a mora legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia
.................................................................................................................................................. 68
3.4.6 O resultado do julgamento e a fixação da tese ............................................................ 68
4 A ANÁLISE DA DECISÕES PROFERIDAS, PELO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO Nº
26 E NO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733, QUE CRIMINALIZOU A
HOMOFOBIA, ACERCA DA SUA OBSERVÂNCIA OU NÃO DO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE PENAL ......................................................................................................... 70
4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 70
4.2 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO .................................................................................................................................. 70
4.2.1 A origem contratualista do poder punitivo ................................................................. 70
4.2.2 Origens e fundamentos políticos e jurídicos do princípio da legalidade penal
.................................................................................................................................................. 73
4.2.3 O princípio da legalidade (em sentido lato e estrito) e o Estado Democrático de
Direito ...................................................................................................................................... 76
4.2.4 Conceito e desdobramentos ou corolários do princípio da legalidade penal ........... 78
4.2.4.1 Considerações gerais ................................................................................................... 78
4.2.4.2 Lex stricta ..................................................................................................................... 79
4.2.4.3 Lex scripta .................................................................................................................... 80
4.2.4.4 Lex certa ....................................................................................................................... 81
4.2.4.5 Lex praevia ................................................................................................................... 81
4.3 AS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADO Nº 26 E NO MI Nº
4733 EM FACE DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL ............................................. 82
4.3.1 Aspectos introdutórios .................................................................................................. 82
4.3.2 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de ação direta de
inconstitucionalidade por omissão e de mandado de injunção .......................................... 83
4.3.2.1 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de ações diretas de
inconstitucionalidade por omissão ........................................................................................... 83
4.3.2.2 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de mandado de injunção .......... 85
4.3.3 Hermenêutica da lei penal versus analogia in malam partem .................................... 87
4.3.4 O conceito sociológico-constitucional de “raça” na Lei nº 7.716/1990: o Caso
Ellwanger e o entendimento por ele fixado .......................................................................... 90
4.3.5 Os corolários do princípio da legalidade penal nas decisões em análise .................. 93
4.3.5.1 O corolário da lei estrita nas decisões analisadas ....................................................... 93
4.3.5.2 O corolário da lei escrita nas decisões analisadas ...................................................... 93
4.3.5.3 O corolário da lei certa nas decisões analisadas ......................................................... 94
4.3.5.4 O corolário da lei prévia na decisões analisadas ........................................................ 94
4.3.6 A inexistência de “entraves” à futura criminalização específica da homofobia, pelo
Congresso Nacional, e uma pertinente provocação ............................................................. 95
5 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 98
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 102
11
1 INTRODUÇÃO
Portanto, o problema a ser respondido pela presente pesquisa científica foi assim
formulado: teriam as decisões proferidas, pelo Supremo Tribunal Federal, na ADO 26 e no MI
4733, no sentido de criminalizar a homofobia, respeitado o princípio constitucional da
legalidade penal e os seus desdobramentos?
Com isso, a hipótese a ser demonstrada ou refutada é a de que, na medida em que, por
não criarem um tipo penal e por não lançarem mão de analogia in malam partem, ao enquadrar
a homofobia como um tipo de racismo e, via de consequência, nas condutas descritas na Lei nº
7.716/1989, as decisões proferidas, pelo STF, na ADO 26 e no MI 4733 observam o princípio
da legalidade penal e os seus respectivos corolários.
O objetivo principal da presente monografia, portanto, é o de analisar as decisões
proferidas, pela Suprema Corte, nas já mencionadas ações e demonstrar se essas decisões, ao
conceberem a homofobia como crime de racismo, na acepção sociológica-constitucional do
termo, não deixaram de observar o princípio constitucional da legalidade penal e os seus
desdobramentos.
Mais especificamente, os objetivos a serem alcançados ao longo deste trabalho serão:
1) descrever os principais aspectos das abordagens psicológicas e sociológicas relativas ao
gênero, à heterossexualidade, à homossexualidade e à homofobia e como se desenvolveu, no
curso da história, esse preconceito, bem como demonstrar que a prática de atos de ódio e demais
formas de homofobia contra a população LGBT+ merecem a devida repressão jurídico-penal;
2) analisar o julgamento conjunto da ADO 26 e do MI 4733, pelo STF, descrevendo os votos
proferidos pelos onze ministros da Suprema Corte e expondo os pressupostos sociais e jurídicos
fundantes de suas respectivas decisões; 3) discorrer sobre o princípio constitucional da
legalidade penal em um Estado Democrático de Direito, inclusive sobre as suas origens
históricas, os seus fundamentos políticos e jurídicos, o seu conceito e os seus desdobramentos;
e, 4) demonstrar se o STF, ao proferir suas decisões na ADO 26 e no MI 4733, deixou ou não
de observar o princípio da legalidade penal e seus corolários.
Para a consecução dos objetivos elencados, será adotado, na abordagem, o método
indutivo, visto que o ponto de partida é a análise de um fenômeno específico, isto é, o
julgamento da ADO 26 e do MI 4733, que conduzirá a uma proposição mais geral, qual seja, a
de que se o referido julgado observou ou não o princípio da legalidade penal e seus
desdobramentos.
O método de procedimento preponderante será o descritivo, nos dois primeiros
capítulos e em parte do terceiro, acompanhado do argumentativo em parte do terceiro capítulo.
13
As técnicas empregadas serão a pesquisa bibliográfica e documental, tendo por base a incursão
em fontes bibliográficas, doutrinárias, legislativas, jurisprudenciais, audiovisuais e
documentais.
O marco teórico que orientará a pesquisa será a teoria dos direitos humanos, que
envolve tanto o direito à proteção da liberdade sexual e da dignidade da pessoa humana quanto
a garantia da limitação da criminalização pelo princípio da legalidade penal.
Dividido em três capítulos, o primeiro será destinado à conceituação de homofobia e
à sua necessária repressão jurídico-penal e subdividir-se-á em quatro itens, de modo que tratará
o primeiro das definições gerais acerca do gênero, da sexualidade humana, da orientação sexual
e da identidade de gênero; o segundo, da conceituação da homofobia, em que serão debatidas
a(s) terminologia(s) atinentes a esse preconceito, suas espécies, sua caracterização e suas
consequências, além de suas origens históricas; o terceiro, das causas da homofobia; e o quarto,
por fim, da temática da necessária repressão jurídico-penal da homofobia, em qualquer das
formas de violências que lhe são específicas.
O segundo capítulo, por sua vez, abordará o histórico e controverso julgamento da
ADO 26 e do MI 4377, pelo Supremo Tribunal Federal, e será dividido em três itens, de modo
que o primeiro versará sobre as previsões normativas existentes, assim como sobre a incidência
do princípio da dignidade da pessoa humana no que diz respeito ao dever de se coibir, jurídica
e penalmente, a homofobia, além do andamento de projetos de lei relacionados ao tema perante
o Congresso Nacional. O segundo item será dedicado a um panorama geral das referidas ações
perante a Suprema Corte e discutirá suas naturezas jurídicas, seus dados gerais e as principais
manifestações e pontos de vista que exsurgiram nos autos. O terceiro item conterá a síntese dos
votos de cada um dos onze ministros da referida Corte Constitucional no mencionado
julgamento.
Por fim, o terceiro capítulo terá como propósito uma análise aprofundada acerca das
decisões proferidas, pelo STF, na ADO 26 e no MI 4733, à luz do princípio da legalidade penal
e dos seus desdobramentos. Para esse fim, o capítulo será dividido em dois itens, sendo o
primeiro destinado a traçar uma abordagem histórica e conceitual do princípio da legalidade
penal e dos seus desdobramentos, bem como a destacar a sua distinção em relação ao princípio
da legalidade geral e o seu papel num Estado Democrático de Direito; e o segundo será dedicado
à análise do julgado objeto da presente monografia, por meio da qual se realizará uma
explanação acerca da natureza jurídica das decisões em sede de ação direta de
inconstitucionalidade por omissão e de mandado de injunção, serão tecidas considerações
14
acerca da hermenêutica da lei penal e do conceito sociológico de racismo e, por fim, analisar-
se-á cada um dos corolários da legalidade penal no decisum em apreço.
15
como os desejos, as experiências sensoriais proporcionadas pelo contato físico e a atração por
outras pessoas –, não mantendo, ao contrário do que comumente se pensa, uma relação de
sinonímia com o ato sexual propriamente dito (MARCONDES, 2018, p. 16). Ainda segundo
Marcondes (2018, p. 16), a sexualidade trata-se de uma característica geral da espécie,
comungada por todo ser humano, e se manifesta particularmente, sendo um dos mais
importantes aspectos de nossa singularidade.
Por sua vez, a palavra “gênero” passou a ser utilizada, inicialmente por pesquisadores
norte-americanos, para designar as origens sociais das identidades subjetivas dos homens e das
mulheres, e firmou-se como uma categoria que não apenas se refere à diferença dos sexos
biológicos (relativos às genitálias humanas), mas sim que serve para dar significado a essa
diferença (SCOTT apud GROSSI, 1998, p. 4-5). O gênero nasceria, então, na relação entre
homens e mulheres, servindo para determinar social, cultural e historicamente a forma como
age qualquer indivíduo, de acordo com o gênero (homem ou mulher) atribuído à sua genitália
(GROSSI, 1998, p. 5).
Intrínseca à conceituação de gênero é, também, a definição dos atributos de
masculinidade e feminilidade, os chamados papéis de gênero. Tudo o que é associado ao sexo
biológico, isto é, à fêmea ou ao macho, em determinada cultura, traduz-se em papel de gênero,
podendo esses papéis variarem de uma cultura para outra; dessa forma, tomando como exemplo
a sociedade Ocidental, a agressividade e a passividade são comportamentos, no geral,
conferidos, respectivamente, ao homem e à mulher, quase como uma determinação biológica
(GROSSI, 1998, p. 6).
A declaração "É uma menina!" ou "É um menino!" [...] começa uma espécie de
"viagem", ou melhor, instala um processo que, supostamente, deve seguir um
determinado rumo ou direção. A afirmativa, mais do que uma descrição, pode ser
compreendida como uma definição ou decisão sobre um corpo. Judith Butler (1993)
argumenta que essa asserção desencadeia todo um processo de "fazer" desse um corpo
feminino ou masculino. Um processo que é baseado nas características físicas que são
vistas como diferenças [genitália, compleição física, timbre da voz...] e às quais se
atribui significados culturais. Afirma-se e reitera-se uma sequência de muitos modos
já consagrada, a sequência sexo-gênero-sexualidade. (LOURO, 2004, p. 15).
Conclui-se, por conseguinte, que para ser homem, segundo a nossa cultura, é preciso,
além de possuir um pênis, performar masculinidade, da mesma forma que, para ser mulher, é
preciso, muito mais do que possuir uma vagina, exercer a feminilidade.
Nota-se que tanto as questões de gênero quanto as relativas ao sexo se sustentam num
indelével binarismo (homem/mulher, masculino/feminino), o qual é fruto de uma zona de
conforto cultural estabelecida pelo heterossexismo como um mecanismo de regulação e
17
controle social, sobretudo pela polarização entre homens e mulheres e uma institucionalização
da heteronormatividade compulsória (CARVALHO, 2012, p. 194).
No entanto, Louro (2004, p. 21) esclarece que:
2.3.1.1 A terminologia
Logo de início, Borrillo propõe a distinção apontada pelo título do presente tópico,
afirmando que
clemência dos ortodoxos em relação com os heréticos” (BORRILLO, 2010, p. 24). Conforme
discorre esse autor (2010, p. 24), sob o prisma eufemístico da homofobia cognitiva, a sociedade
não rejeita, de plano, os homotransexuais, entretanto ninguém se choca com o fato de que eles
não partilhem dos mesmos direitos conferidos aos heterossexuais cisgêneros, chegando até
mesmo a desencorajar essa almejada igualdade.
Essa segunda diferenciação busca enfatizar que a homofobia não revela a hostilidade
apenas contra os indivíduos homossexuais, mas, igualmente, contra aqueles que não se
conformam à norma sexual, imposta pelo heterossexismo (BORRILLO, 2010, p. 26).
Assimilar o enfoque geral da homofobia não é uma tarefa de todo complexa, diferente
do que se observa ao versar acerca da(s) homofobia(s) específica(s). Ao contrário daquela, esta
diz respeito à forma de intolerância que atinge, especialmente, os gays, as lésbicas, os
bissexuais, os travestis, os transsexuais... enfim, todos os segmentos desviantes à sexualidade
padrão. Alguns autores, inclusive, reportaram-se às expressões “gayfobia”, “lesbofobia”,
“bifobia” e “transfobia” a fim de descrever esses aspectos do fenômeno homofobia de maneira
22
A homofobia pode ser definida como a hostilidade geral, psicológica e social contra
aquelas e aqueles que, supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com
indivíduos de seu próprio sexo. Forma específica do sexismo, a homofobia rejeita,
igualmente, todos aqueles que não se conformam com o papel predeterminado para
seu sexo biológico. Construção ideológica que consiste na promoção constante de
uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra (homo), a homofobia
organiza uma hierarquização das sexualidades e, dessa postura, extrai consequências
políticas. (BORRILLO, 2010, p. 34).
ao homem e à mulher, respectivamente, determina uma diretriz que subordina o feminino como
complementar ao masculino – e complementar somente. É a égide do sexismo, ideologia
responsável pela naturalização da ordem entre os sexos, caracterizando o masculino por sua
vinculação às esferas social e política, enquanto ao feminino confia a intimidade e tudo que
alude à vida doméstica (BORRILLO, 2010, p. 30). O heterossexismo está para a homofobia
como o sexismo está para a misoginia e, adotando a ressalva de que esses conceitos são distintos
entre si, um não pode ser concebido sem o outro, visto que o heterossexismo pressupõe a
divergência basilar entre homo/hetero, conferindo a este último grupo um tratamento
preferencial, tal qual o masculino (homem) em detrimento do feminino (mulher) (BORRILLO,
2010, p. 34).
E quais são as consequências desse tratamento preferencial? Ora, toda forma de
preferência conduz a um sistemático mecanismo de exclusão.
Ora, se a gente tem hoje esta ideologia heteronormativa, que podemos muito bem
caracterizar, construída no ocidente, no século XIX, a gente tinha na Antiguidade, por
outro lado, uma outra sexualidade, e esta não era heteronormativa. Porém, mesmo não
sendo heteronormativa, existiu também na Antiguidade uma ideologia, uma
normativa sexual. (CERQUEIRA, 2011, p. 84).
[...] desde o Egito Antigo, como mostra o exemplo do casal de manicures do Antigo
Império, por mais que a sociedade possa construir e impor um discurso
heteronormativo hegemônico, esta mesma sociedade permite espaços de fuga, de
escape, em que os desvios a esta norma são permitidos. Dos manicures do Egito antigo
aos cabeleireiros de hoje, parece-me que há algo quase estrutural [...] que define que
profissões tais como cabeleireiros, manicures, maquiadores, estilistas, artistas, são
espaços no mundo do trabalho reservados aos homossexuais – homossexuais com
atitude afetada estereotipada! –, espaços em que certa efeminação é sempre tolerada
e, por vezes, até presumida. É como se ali fosse criado um nicho em que é permitido
que um homem ou uma mulher tenham uma conduta que fira a regra geral que
determina a virilidade (macheza) ao homem, e a feminilidade (delicadeza) à mulher.
(CERQUEIRA, 2011, p. 97).
No caso da Grécia antiga, o “nicho” mencionado por esse autor era o dos atores, pois,
não bastasse os homens terem de representar os papéis femininos por meio do uso de máscaras
– o que por si só já era considerado um desconforto –, o imaginário popular firmava a ideia de
que era geralmente entre os intérpretes que a virilidade era mais facilmente flexibilizada
(CERQUEIRA, 2011, p. 97-98). A fim de provar seu ponto de vista, Cerqueira (2011, p. 98)
faz referência ao ator grego Agaton, premiado no concurso trágico das Dionisíacas, o qual,
apesar do imenso prestígio do qual gozava, era constantemente alvo de zombaria e escárnio,
sobretudo por parte do comediógrafo Aristófanes, por conta de suas características afeminadas
(tais como fazer a barba, usar vestes transparentes, maquiar-se, gesticular e caminhar com
afetação).
A respeito das práticas homossexuais na Grécia antiga, complementa Borrillo (2010,
p. 46):
Por sua vez, na Roma Clássica, as relações homossexuais eram toleradas sob três
condições: 1) que não afastassem o cidadão de seus deveres para com a sociedade; 2) que não
se utilizassem pessoas de estrato inferior como objeto de prazer; e, 3) que se evitasse, em
absoluto, assumir o papel passivo com os subordinados. Em verdade, apenas a bissexualidade
ativa era tolerada em Roma, visto que a aspiração mais nobre de um cidadão romano deveria
ser casar-se e se tornar o pater familias (BORRILLO, 2010, p. 46).
Ressalta-se que não há relatos de agressões propriamente homofóbicas na Antiguidade
(CERQUEIRA, 2011, p. 87), pois, muito embora as sociedades grega e romana sejam marcadas
pelo acentuado sexismo e misoginia, afastam-se, e muito, do peculiar heterossexismo erigido
pela tradição judaico-cristã, pois é certo que, embora não seja possível delimitar um recorte
temporal para a origem do que hoje se conhece por homofobia, é certo que elementos
precursores da hostilidade contra lésbicas e gays emanam dali (BORRILLO, 2010, p. 43 e 46).
Se, por um lado, na Roma Clássica, a homossexualidade não era de todo desencorajada
(desde que respeitado o limite da não passividade, conforme mencionado no tópico anterior),
após a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano, as coisas começaram
a mudar. Tal mudança é devida ao fato de que a Bíblia Sagrada, cânone máximo do cristianismo,
em livros como “Gênesis”, “Levítico”, “Isaías”, “Jeremias” e “Ezequiel”, aborda diferentes
vertentes de um mesmo fenômeno: a naturalização das relações heterossexuais monogâmicas
e, em última instância, seu suposto alinhamento com a vontade divina (COELHO, 2015, p.
163).
Por conseguinte,
O poder régio, assentado no espírito dos cânones, de igual modo, não tardou a instaurar
um brutal sistema de repressão contra os sodomitas, aqui entendidos como os indivíduos
homossexuais (BORRILLO, 2010, p. 54). Destarte, conclui-se que o cristianismo, ao promover
o recrudescimento da hostilidade da Lei Judaica, situou os atos homossexuais, bem como
aqueles que os praticam, como avessos à salvação e até mesmo à ordem natural e, ao assim o
fazer, promoveu a desumanização desse grupo. Em outras palavras, o cristianismo triunfante
consolidou a marginalização quase que perpétua dos homossexuais frente à configuração social
heterossexista (BORRILLO, 2010, p. 43-44).
29
2.3.2.3 Do “século das luzes” até a contemporaneidade: uma breve perspectiva sobre as raízes
da tradição homofóbica judaico-cristã no Brasil e no Ocidente
Pode-se dizer que foram tantos séculos de repressão a incutir um costume de aversão
à homossexualidade, que, até mesmo após o denominado “século das luzes”, conforme exposto
por Borrillo (2010, p. 55), mais precisamente em 10 de outubro de 1783, ocorreu, na França
(país de origem desse autor e delimitação geográfica de seus estudos), a última condenação de
um homossexual à pena capital, o qual foi identificado como Jacques François Pascal e foi
lançado à fogueira ao ser rotulado como um devasso contra a natureza.
Anos depois, a Revolução Francesa pôs fim às condenações por sodomia, tendo em
vista que, com o advento da liberdade individual como um valor fundamental do ser humano –
aliás, um dos ideais sustentados por esse movimento histórico –, não havia mais espaço para as
ingerências do Estado na vida privada de seus cidadãos. Porém, essa tolerância, desde cedo,
assumiu contornos precários. Tanto o Código Penal Francês de 1971 quanto o de 1810 deixaram
de incriminar os ditos “costumes contra a natureza”, mas, nem por isso, a jurisprudência
abandonou o seu caráter repressivo contra as práticas homossexuais, amparada por um aparato
médico-psiquiátrico deveras coercitivo (BORRILLO, 2010, p. 55).
Ainda seguindo a linha de raciocínio de Borrillo (2010, p. 56), o direito
consuetudinário, a propósito, fez com que, em países como os Estados Unidos, as disposições
bíblicas do Levítico fossem adotadas literalmente:
Em 1786, a Pensilvânia tornou -se o primeiro Estado a aplicar a pena de morte para
os sodomitas; a última execução ocorreu na Carolina do Sul, em 1873. Atualmente,
um terço dos Estados norte-americanos continuam considerando as relações entre
homens como um delito, e, em uma decisão de 1986, a Suprema Corte dos EUA
julgava que a condenação da sodomia não estava em contradição com a Constituição
estadunidense, já que ela está enraizada nas normas morais e éticas da tradição
judaico-cristã.
No Brasil, o processo não destoou do acima exposto. Como é sabido, Portugal, durante
a colonização, transplantou para a colônia os sistemas jurídico, político e cultural da metrópole.
Foi assim que teve início a história da criminalização das relações homossexuais no território
brasileiro, mormente devido à punição do pecado-crime da sodomia (BELINI; TREVISAN
apud PRETES; VIANA, 2008, p. 331).
este compreensível visto que muitos àquela época acreditavam que a sodomia era um
'vício italiano'. (PRETES; VIANA, 2008, p. 331).
Entre as ordenações que vigoraram no país (Afonsinas, desde 1446; Manuelinas, desde
1512; e Filipinas, desde 1603), estas últimas foram as mais importantes no tocante à
criminalização da sodomia no âmbito da jurisdição secular. Tendo sua vigência perdurado por
mais de duzentos anos, mesmo após a Independência, em 1822, acabaram elas [as Ordenações
Filipinas] sendo recepcionadas pela Constituição do Império (TREVISAN apud PRETES;
VIANA, 2008, p. 342-343).
Apesar disso, foi com a promulgação do Código Criminal de 1830 que a situação
tomou novos rumos: como, na Europa, os resquícios do movimento iluminista faziam proliferar
o discurso científico de que não cabia à lei punir relações sexuais entre indivíduos do mesmo
sexo – conforme mencionado anteriormente –, o Brasil seguiu à risca esse exemplo, deixando
de incluir o delito de sodomia em sua legislação criminal (TREVISAN apud PRETES; VIANA,
2008, p. 348). A não inclusão de um tipo penal taxativo, contudo, não significou a libertação
dos preconceitos morais referentes à homossexualidade nem no Brasil nem nos demais Estados
europeus (GREEN; FRY apud PRETES; VIANA, 2008, p. 348), porquanto a sombra do
pensamento teológico ainda exercia demasiada influência na conjuntura política das nações
ocidentais – e assim perdurou por um considerável período de tempo.
Por sinal, no que se refere ao posicionamento da Igreja Católica sobre a
homossexualidade, ainda nos dias de hoje, essa instituição assume um caráter de animosidade,
embora mais comedido do que fora no passado e travestido numa espécie de tolerância
compassiva.
31
olvidar que, por outro lado, fomentaram o tom paternalista assumido por uma homofobia mais
ponderada – já mencionada, a propósito, no decorrer deste capítulo.
Por fim, acerca dos demais aspectos hodiernos da homofobia, acredita-se ser
dispensável maiores aprofundamentos no presente subitem, dado que o objetivo máxime deste
capítulo é, justamente, oferecer uma perspectiva mais abrangente sobre suas causas,
fundamentos e formas de exteriorização.
o “prazer sobre o saber”, e a autoridade que este último supostamente confere (FOUCAULT
apud LOURO, 2008, p. 21).
Nessa toada, seria possível distinguir quatro conjuntos estratégicos que permitem
estabelecer conexões específicas acerca da relação poder/saber através do sexo (FOUCAULT,
2015, p. 113).
De início, tem-se a histerização do corpo da mulher, que se refere ao processo pelo
qual esse corpo foi considerado como integralmente saturado de sexualidade, passando a ocupar
um nicho dentro do espaço familiar (do qual, aliás, é elemento substancial), em que assume
uma responsabilidade biológica e moral: a de ser – e nada mais que isso – mãe (FOUCAULT,
2015, p. 113).
Na preocupação com o sexo, que aumenta ao longo de todo o século XIX, quatro
figuras se esboçam como objetos privilegiados de saber, alvos e pontos de fixação dos
empreendimentos do saber: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal
malthusiano, o adulto perverso, cada uma correlativa de uma dessas estratégias que,
de formas diversas, percorreram e utilizaram o sexo das crianças, das mulheres e dos
homens. (FOUCAULT, 2015, p. 114).
capaz de se manifestar mesmo que tardiamente, após um longo período de atividade sexual
normal, além de exprimir que, em alguns casos, essa alteração da libido decorria de uma
experiência penosa com o objeto sexual regular (FREUD, 2016, p. 23-24). Já para Lacan (1992,
p. 39), ao reputar-se às relações homoafetivas da Grécia, por exemplo, esse autor pontua que, a
despeito de ser aceita, aprovada e, em alguns casos, “festejada”, a homossexualidade não podia
deixar de ser classificada como o que realmente era: uma perversão.
Não se pode olvidar que a busca das causas da homossexualidade configura, por si só,
uma atitude homofóbica (DORAIS apud BORRILLO, 2010, p. 71), uma vez que pressupõe, tal
como pregavam (e ainda pregam) os discursos de psiquiatrização do prazer perverso, que existe
uma sexualidade normal, acabada e plena – a heterossexualidade cisgênera –, a qual deve servir
de parâmetro a todas as outras. Qualquer enviesamento dessa natureza serve para solidificar
esse que é um dos pilares da homofobia.
Outro fator crucial que reside no cerne desse preconceito é a subjugação do [papel de
gênero] feminino. Isso ocorre porque sexismo e homofobia apresentam uma correlação
intrínseca entre si (CARVALHO, 2012, p. 155). Segundo esse autor,
A homofobia se manifesta nos mais variados espaços e lugares, sob diversas formas e
nuances.
É importante destacar que, para Carvalho (2013, p. 161), o estudo da violência
homofóbica pode ser analisado sobre três diferentes perspectivas, as quais apontam, também,
37
2
O Povo. Travesti é espancada até a morte no Bom Jardim. 2017. Disponível em:
<https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2017/03/travesti-e-espancada-ate-a-morte-no-bom-jardim.html>.
Acesso em: 28 fev. 2020.
38
executada a tiros3. O caso ganhou tamanha repercussão que, em 2019, uma escultura em sua
homenagem, de autoria do artista plástico Rubem Robierb, foi exposta em Nova Iorque4.
A violência homofóbica institucional, por seu turno, apresenta duas facetas, uma delas
ligada à aplicação sexista (misógina e homofóbica) da lei penal e a outra, na construção de
práticas sexistas violentas através das agências punitivas, como os cárceres, por exemplo
(CARVALHO, 2012, p. 161). Para Souza (2013, p. 43), essa espécie de homofobia ofende, de
maneira impessoal, os direitos do grupo LGBT+. Aqui se inserem os cartórios que ainda não
realizam uniões homoafetivas, bem como os representantes de instituições que supostamente
deveriam zelar pelo interesse público, mas que, em vez disso, obstaculizam a perfectibilização
dessas uniões5; as disposições normativas que fomentam o preconceito e a intolerância, como
a Resolução nº 153, de 14 de junho de 2004, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), que impede que homossexuais autodeclarados com vida sexual ativa possam
realizar doação de sangue – restrição esta felizmente derrubada pelo Supremo Tribunal Federal,
no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543, concluído em maio de 2020 6;
a criminalização da pederastia no Código Penal Militar7, dentre outros. Em suma, pode-se
afirmar que, até mesmo em Estados em que a lei não proscreve a homossexualidade, a
comunidade LGBT+ é frequentemente vítima de excessos e assédios, mormente por entidades
ligadas ao próprio aparato estatal (BORRILLO, 2010, p. 108) e legitimadas pela violência
homofóbica institucional.
3
G1. Polícia investiga homicídio de travesti que foi espancada até a morte no CE. 2017. Disponível em:
<http://g1.globo.com/ceara/noticia/2017/03/policia-investiga-homicidio-de-travesti-que-foi-espancada-ate-
morte-no-ce.html>. Acesso em: 28 fev. 2020.
4
G1. Escultura em Nova Iork homenageia travesti Dandara dos Santos, vítima de violência. 2019. Disponível
em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/27/escultura-em-nova-york-homenageia-travesti-dandara-dos-
santos-vitima-de-violencia.ghtml>. Acesso em: 28 fev. 2010.
5
NSC Total. Promotoria de Florianópolis contesta casamentos homoafetivos. Disponível em:
<https://www.nsctotal.com.br/noticias/promotoria-de-florianopolis-contesta-casamentos-homoafetivos>. Acesso
em: 28 fev. 2020.
6
Portal STF. Proibição de doação de sangue por homens homossexuais é inconstitucional, decide STF.
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443015&ori=1. Acesso em: 7
set. 2020.
7
Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar
sujeito a administração militar: Pena – detenção, de seis meses a um ano.
39
Por fim, a violência homofóbica simbólica, segundo Carvalho (2012, p. 161), consiste
em processos formais e informais na construção de um discurso heteronormativo. Esse autor
(2012, p. 156) aponta que o entrelaçamento entre os saberes científicos e as teorias do cotidiano
(everyday theories) é o responsável por uma espécie de senso comum homofóbico que instaura
compulsoriamente a heterossexualidade cisgênera como padrão.
8
Lado A. 100 frases homofóbicas de Jair Bolsonaro. Disponível em:
<https://revistaladoa.com.br/2016/03/noticias/100-frases-homofobicas-jair-bolsonaro/>. Acesso em: 29 fev. 2020.
40
Isso porque, apesar dos dados demonstrarem um elevado índice de notificação de casos
de homofobia, não há como ignorar, também, a subnotificação de grande parte (senão a maioria)
deles, decorrente, acima de tudo, da descaracterização formal da natureza homofóbica
específica de certos atos ou condutas (embora a violência homofóbica assuma contornos
bastante típicos), além, é claro, da expectativa de que, mesmo havendo notificação, o agressor
– ou agressores – não será punido (SILVA; BAHIA, 2015, p. 184).
Impende salientar que:
Contudo, não é demais relembrar que nenhum tipo penal jamais abarcará, na íntegra,
o conjunto de condutas que pretende reprimir, servindo, para tanto, o juízo de subsunção, ou
seja, a aplicação da norma incriminadora mais adequada ao caso concreto.
Sendo assim, a homofobia, enquanto problema social, há de ser considerada como
delito suscetível de sanção jurídica (BORRILLO, 2010, p. 106), devendo a sua criminalização
atentar-se à tutela não apenas da integridade física dos sujeitos homossexuais, mas também de
sua liberdade individual, honra e integridade psíquica. Todavia, o viés repressor é destituído de
significado se não vier acompanhado das devidas ações preventivas, especialmente a
conscientização da gravidade do fenômeno homofóbico (BORRILLO, 2010, p. 106-107).
No decorrer do presente capítulo, aprofundou-se ao menos em três causas da
homofobia – e reitera-se que esta abordagem está longe de ser exaustiva e, muito menos,
taxativa –, estando elas tão profundamente incrustradas no imaginário da sociedade que se
torna, para dizer o mínimo, inconsequente pensar que a criminalização deve ser avaliada como
o propósito final da luta contra a tradição homofóbica, quando, em verdade, é apenas o começo.
41
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”,
há, entre esses direitos, alguns que dependem de iniciativa legislativa para sua concretização. É
o caso, por exemplo, do inciso XXXII, que estatui a defesa do consumidor, asseverando que
esta será promovida pelo Estado, na forma da lei – nesse caso, a Lei nº 8.078, de 11 de setembro
de 1990, o Código de Defesa do Consumidor.
Mas, se há situações em que a efetivação dos direitos fundamentais é precisa, em
outras, não há como se proceder objetivamente, o que ocasiona as tão importantes discussões
referidas no início do presente tópico. Nesse sentido, o inciso XLI do já mencionado artigo da
Carta Magna prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e
liberdades fundamentais”. Como garantir que essa determinação seja cumprida?
É óbvio que essa pergunta não pode ser respondida simplesmente com um “por meio
de uma lei”, pois isso levaria a redarguir: “qual lei”? Qual lei seria capaz de abraçar toda a
pluralidade de indivíduos e sujeitos existentes num Estado Democrático de Direito, a fim de
que maioria e minoria fossem protegidas legalmente contra discriminações que fossem de
encontro a seus direitos e liberdades fundamentais?
Inexiste tal legislação.
Logo, a alternativa, no ordenamento jurídico brasileiro, tem sido a edição de diferentes
diplomas legais que, cada qual à sua maneira, façam valer o mandamento insculpido na
Constituição. A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, batizada de Lei do Racismo, é, talvez, a
mais paradigmática a esse respeito, porquanto, ao estipular, no caput do seu artigo 1º, que
“serão punidos [...] os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional”, institui uma forma segura de garantir aos integrantes de
grupos geralmente discriminados – pela cor de sua pele, pela sua região ou até mesmo local de
origem – que qualquer ato de segregação ou hostilidade contra eles praticados seja punido.
No entanto, quando se trata dos atos atentatórios contra os direitos ou liberdades
individuais de minorias ligadas à diversidade sexual ou identidade de gênero, há uma lacuna
que perpassa o sistema jurídico, conforme exposto no capítulo anterior.
Essa lacuna subsiste mesmo a despeito das inúmeras previsões legais relativas à
repressão a atos atentatórios aos direitos fundamentais dos integrantes de grupos
43
marginalizados, seja por não se amoldarem à sexualidade padrão ou ao gênero ao qual estão
socialmente determinados. Além do que está positivado na Constituição da República, em seu
artigo 5º, inciso XLI, citado alhures, há, a nível global, documentos que trazem e fazem valer
essa mesma determinação. A seguir, alguns deles serão indicados, sem o intento de uma
abordagem exaustiva.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada, em 10 de dezembro de
1948, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, como uma norma comum a
servir de objetivo para todas as nações, estabelece, em seu artigo 2º, subitem 1, que:
[...] todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades [...], sem
distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política
ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer
outra condição. (ONU, 1948) (Os grifos não estão na redação original).
Nesse viés, vale ressaltar, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, de 1966, recepcionado pelo Brasil por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992,
e que, em seu artigo 26, dispõe, em redação semelhante àquela da Declaração supracitada, que
todas as pessoas possuem igualdade perante a lei, tendo direito à proteção legal, e devendo ser
proibidas quaisquer formas de discriminação, independentemente da situação do indivíduo.
Com base nesse Pacto, ao examinar o caso Toonen vs. Austrália9, o próprio Comitê de Direitos
Humanos das Nações Unidas considerou ser indevida a discriminação em razão da orientação
sexual (BAHIA; SILVA, 2015, p. 193).
O Pacto de San José da Costa Rica, cognominado, ainda, de Convenção Americana de
Direitos Humanos, do qual o Brasil é signatário (Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992),
outrossim, estipula, em seu artigo 24, a igualdade de proteção da lei a todos os cidadãos, sem
discriminação. Ademais, não se pode olvidar que o Brasil aderiu à competência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, de modo que a constatação de violação aos direitos de
parcelas minoritárias, como o grupo LGBT+, por exemplo, pode ser submetida à sua
9
Em 1991, a homossexualidade era uma conduta criminalizada no estado australiano da Tasmânia. Nicholas
Toonen, um homem homossexual, enviou, então, uma notificação ao Comitê de Direitos Humanos, da ONU,
alegando que a determinação estatal, no sentido de criminalizar os atos homossexuais, era uma ofensa à
privacidade, assegurada pelo artigo 17 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, bem como violava
o artigo 26 desse mesmo documento. Como resultado, Toonen perdeu seu emprego de gerente no Conselho da
Tasmânia sobre Hepatite e Doenças Relacionadas à AIDS, sob ameaça do Governo de que as verbas repassadas
ao Conselho seriam cortadas caso ele permanecesse no cargo. O pleito de Nicholas Toonen não foi analisado pelo
Comitê de Direitos Humanos até 1994, quando uma decisão desse Comitê considerou que a criminalização da
homossexualidade, de fato, violava as obrigações do Pacto. Como resultado, a Commonwealth baixou uma
determinação extinguindo a criminalização da homossexualidade na Tasmânia (AUSTRALIAN HUMAN
RIGHTS COMMISSION, 2012, tradução nossa).
44
apreciação, como ocorreu com o caso Atalla Riffo e Filhas vs. Chile10, em 2012, ocasião em
que, através de sentença, a Corte condenou o país por discriminação motivada por orientação
sexual (BAHIA; SILVA, 2015, p. 193 e 195).
De mais a mais, tem-se a Resolução nº 2435, aprovada pela Assembleia Geral da
Organização dos Estados Americanos (OEA), em 3 de junho de 2008, que dispõe sobre Direitos
Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Fruto da iniciativa de uma delegação
brasileira e lastreada nas disposições da já aludida Declaração Universal dos Direitos Humanos,
da Declaração Americana dos Direitos do Homem e da Carta da OEA e nos princípios de
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, o documento
expressa, pela primeira vez, a preocupação desse órgão em relação à violação aos direitos
humanos e à violência perpetrada contra certos indivíduos, motivados pela orientação sexual e
identidade de gênero (VECCHIATTI; VIANA, 2014, p. 341).
A partir de 2008, houve uma sequência anual de resoluções da OEA (a de nº 2504, de
2009; a de nº 2600, de 2010; a de nº 2653, de 2011; a de nº 2721, de 2012; e a de nº 2807, de
2013), todas condenando a discriminação, nos países-membros, por orientação sexual ou
identidade de gênero, prescrevendo, a essas nações, que adotassem medidas específicas para a
coibição de tais práticas (BAHIA; SILVA, 2015, p. 194).
Por fim, em 5 de junho de 2013, na 43ª Assembleia Geral da OEA, foram aprovados
os textos relativos à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e
Formas Conexas de Intolerância e à Convenção Interamericana contra Toda Forma de
Discriminação e Intolerância, nos quais se verifica, de forma inédita em uma convenção, a
inclusão do conceito orientação sexual atrelado às minorias [que deverão ser] protegidas
(BAHIA; SILVA, 2015, p. 194).
Em linhas gerais, cada uma dessas previsões normativas tem como fundamento o
princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, aliás, também, é um elemento essencial para
10
Refere-se ao embate judicial ocorrido, em território chileno, no qual a juíza Karen Atala perdeu a guarda, bem
como o poder familiar de suas três filhas (à época com 5, 6 e 10 anos de idade) para o ex-marido, após este ter
alegado, no processo de divórcio, que a ex-mulher mantinha relação homoafetiva e vivia com sua companheira, o
que poderia causar prejuízo ao desenvolvimento sadio de sua prole. O caso chegou à Suprema Corte do país, que
manteve inalterada a decisão, sob os argumentos de que as crianças estariam numa posição de “vulnerabilidade”
em seu convício social caso ficassem sob a tutela da mãe, uma vez que o ambiente familiar no qual estariam
inseridas, díspar daquele considerado normal, expô-las-ia ao isolamento e à discriminação. Em 24 de fevereiro de
2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Chile por violação aos direitos de não-
discriminação, igualdade, vida privada e proteção da honra e dignidade, ficando o país obrigado a cumprir uma
série de determinações quanto a esse caso, tais como atendimento psicossocial às vítimas e implementação de
programas e cursos aos servidores, sobretudo os do Poder Judiciário. Foi a primeira condenação da Corte
Interamericana por violação ao direito de não-discriminação pautado na orientação sexual (VECCHIATTI;
VIANA, 2014, p. 353-354).
45
Pode-se afirmar, até, que é mais fácil dizer o que a dignidade da pessoa humana não é
do que o que ela é, por se tratar de categoria axiológica aberta, impossível de ser conceituada
de maneira fixista, estando seu conteúdo em constante processo de construção e
desenvolvimento, bem como sua concretização ficando a cargo da práxis constitucional. Um de
seus muitos aspectos, porém, é certo: a dignidade é intrínseca à condição humana, de sorte que
é irrenunciável e inalienável, devendo ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida,
sobretudo pelo Estado (SARLET, 2002, p. 39 e 41).
Portanto, a orientação sexual, e, por conseguinte, a identidade de gênero, vinculam-se
a esse atributo vital de nossa condição, constituindo uma essência indissociável do indivíduo
(VECCHIATTI; VIANA, 2014, p. 335), sendo devida a proteção desses elementos da
personalidade contra toda ação que os ameacem ou desrespeitem, por meio de iniciativas dos
entes estatais, tais como a criminalização da homofobia, como se tratará no subitem seguinte.
46
Por sua vez, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão permeia a atribuição
do chamado controle de constitucionalidade exercido pelo STF. Sua conceituação é bastante
semelhante à do mandado de injunção, sendo concebida como uma ação que objetiva permitir
que toda norma constitucional possua eficácia plena, impedindo, assim, que a inércia do
legislador impeça o exercício de direitos constitucionais (PIOVESAN apud TAVARES, 2012,
49
p. 338). Sua previsão está no artigo 103, parágrafo 2º, da Constituição Federal, sob a seguinte
redação: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma
constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências
necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
No que compete ao rito a ser adotado, tem-se que a chamada ADO segue, em linhas
gerais, os mesmos trâmites da ação de inconstitucionalidade genérica, a ela sendo aplicados, no
que couber, os dispositivos da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que não forem
contrários à natureza peculiar dessa ação (TAVARES, 2012, p. 338), ou seja, o mesmo rol de
autores, elencados no artigo 2º desse diploma legal, os mesmos requisitos da petição, indicados
no artigo 3º, e todos os demais aspectos processuais delimitados.
No polo passivo da ADO figurará o órgão constitucionalmente identificado como o
responsável pela adoção das medidas cuja ausência gerou a inconstitucionalidade. A omissão
aqui pode ser normativa (decorrente da falta de ato do Poder Legislativo ou do Poder Executivo)
ou não-normativa (decorrente da falta de ato administrativo ou de execução material), hipóteses
estas, porém, que devem versar sobre requerimentos expressos na Constituição (TAVARES,
2012, p. 341).
No que tange aos efeitos da decisão proferida, tanto em sede de mandado de injunção
quanto em sede de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, abordar-se-á a questão de
maneira mais contundente no capítulo posterior, quando da análise dos vereditos da Suprema
Corte na ADO 26 e no MI 4733, à luz do princípio da legalidade penal.
Nessa senda, é imperioso se referir, em uma única oportunidade apenas, aos pleitos
formulados na ADO 26 e no MI 4733. Em síntese, pugnou-se, nessas ações, pela criminalização
específica de todas as formas de homofobia (considerada em sua acepção geral, abarcando todas
as espécies de homofobia específicas, tais como a transfobia, a gayfobia, a lesbofobia etc.),
especialmente, mas não exclusivamente, das ofensas (individuais ou coletivas), dos homicídios,
das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero da
vítima, sob o fundamento de que houve omissão inconstitucional do Parlamento brasileiro,
tomando por base: 1) o mandamento insculpido no inciso XLII do artigo 5º da Constituição
Federal, o qual prevê que a prática do racismo – entendido em seu conceito ontológico ou
sociológico11, que abraça a homofobia como uma de suas espécies – constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; 2) subsidiariamente,
o que dispõe o inciso XLI do artigo 5º da Carta Magna, o qual estabelece que a lei punirá
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; e, 3) o princípio da
proporcionalidade, na acepção da proibição de proteção deficiente12.
Ademais, postulou-se, cumulativamente, nessas demandas: 1) a fixação de prazo
razoável para que o Congresso Nacional elabore a lei incriminadora, uma vez declarada sua
mora inconstitucional, sugerindo-se que este prazo não seja superior a 1 (um) ano; 2) em não
atendida a determinação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o Congresso
criminalize todas as formas de homofobia, que haja a superação do princípio da legalidade
estrita e exerça, a Suprema Corte, a função legislativa/normativa, geral e abstrata (ainda que de
forma atípica), a fim de criminalizar a homofobia, nos termos requeridos pela parte autora, com
base no sistema de pesos e contrapesos que funda a tripartição dos Poderes; 3) em caráter
subsidiário, a colmatação jurisdicional da omissão legislativa existente, conferindo-se
interpretação conforme para que às disposições normativas da Lei nº 7.716/1989 se subsumam
os atos de discriminação contra a população LGBT+; e, 4) o reconhecimento da
responsabilidade civil objetiva do Poder Público, com a consequente condenação do Estado a
indenizar os integrantes do grupo LGBT+ que, de alguma forma, tenham sido prejudicados pelo
comportamento omissivo a ser imputado.
11
O conceito ontológico ou sociológico de racismo foi adotado, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento
do Habeas Corpus nº 82.424, do Rio Grande do Sul (Caso Ellwanger), o qual pretendia discutir se manifestações
antissemitas constituíam ou não crime de racismo, tipificado na Lei. nº 7.716/1989.
12
Um dos braços do princípio da proporcionalidade, a proibição à proteção deficiente surge como um impedimento
à abstenção do Estado quando esse tem o dever de prevenir e reprimir, a fim de assegurar direitos fundamentais.
Juntamente com a proibição de excesso, esses institutos norteiam a atuação do Poder Público na criminalização de
condutas, assegurando o pleno gozo de liberdades fundamentais no seu duplo viés (RUDOLFO, 2012, p. 242-244).
51
Pela intrínseca correlação entre seus méritos, assim como a similitude entre os pleitos
realizados, ambas as ações foram julgadas em conjunto, ao longo de seis sessões do Pleno do
Supremo Tribunal Federal, que se estenderam de fevereiro a junho do ano de 2019. A seguir,
analisar-se-á cada uma dessas sessões, todas gravadas e disponíveis, em meio audiovisual, no
sítio eletrônico “Youtube”, e de cujas gravações extraiu-se as informações transcritas.
3.4.1.1 Os relatórios
advogado, Luigi Mateus Braga; e a Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida, por
dois de seus advogados, Cícero Gomes Lage e Walter de Paula e Silva. Ademais, ocupou a
tribuna o Advogado Rodrigo da Cunha Pereira, em nome do Instituto Brasileiro de Direito de
Família (IBDFAM), apresentando posicionamento favorável ao acolhimento dos pleitos,
corroborando a existência de mora inconstitucional e omissão do Poder Legislativo, bem como
o entendimento de que a homofobia constitui crime de racismo, no conceito sociológico-
constitucional do termo.
Por fim, teve a palavra o então Vice-Procurador-Geral da República, Luciano Mariz
Maia, que, em seu discurso, reprisou o entendimento da PGR e opinou, mais uma vez, pelo
parcial conhecimento e, na parte conhecida, pelo provimento tanto da ADO 26 quanto do MI
4733.
3.4.2 As sessões dos dias 14 e 20 de fevereiro de 2019: o voto do Ministro Celso de Mello,
favorável à superação da mora legislativa
3.4.3.1 O voto do Ministro Luiz Edson Fachin, relator do MI 4733: pelo conhecimento do writ
e procedência das ações
Artigo IV: Os Estados partes condenam toda propaganda e todas as organizações que
se inspirem em ideias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de um
grupo de pessoas de uma certa cor ou de uma certa origem ética ou que pretendem
justificar ou encorajar qualquer forma de ódio e de discriminação raciais e
comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar
qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer atos de discriminação com
este objetivo tendo em vista os princípios formulados na Declaração universal dos
direitos do homem e os direitos expressamente enunciados no artigo 5 da presente
convenção [...]. (O grifo não consta na redação original).
Referido ministro entendeu, então, que estão presentes os dois requisitos necessários
à procedência do mandado de injunção, quais sejam: a ausência de concretização legislativa de
mandamento constitucional e a mora do Parlamento em regulamentar o tema.
A respeito da possibilidade de colmatação e do imediato provimento jurisdicional a
fim de viabilizar os direitos constitucionais frustrados, salientou esse relator que é cabível ao
Poder Judiciário atuar nos casos de inatividade, mora ou omissão do Poder Legislativo, e que
essa orientação foi acolhida pelo inciso II do artigo 8º da Lei nº 13.300, de 23 de junho de 2016,
o qual dispõe que, reconhecido o estado de mora legislativa, será deferida a injunção para
“estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das
prerrogativas reclamados [...]”.
Desse modo, ainda que versando sobre matéria penal, no caso em exame, disse esse
ministro, não seria possível alegar que a injunção deveria limitar-se ao mero reconhecimento
da mora, pois, conforme já assentado em decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal,
como no Caso Ellwanger, seria possível conferir interpretação conforme aos dispositivos da Lei
do Racismo, para que sejam tipificadas as condutas homofóbicas nos tipos penais desse diploma
62
legal, sem que, com isso, haja violação ao princípio da legalidade penal, traduzido no brocardo
de que nullum crimen nulla poena sine lege.
Por todas essas razões, conheceu esse relator do mandado de injunção e o julgou
procedente, a fim de: 1) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional; e, 2)
aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a
Lei 7.716/1989, dando interpretação conforme ao termo “raça” contido nos tipos penais dessa
legislação.
Na mesma oportunidade, registra-se, o Ministro Edson Fachin acompanhou o relator
da ADO 26, acolhendo, na íntegra, as razões do voto deste.
Igualmente, ao emitir seu juízo acerca do MI 4733, o Ministro Celso de Mello seguiu
integralmente seu respectivo relator, conhecendo e julgando procedente o writ.
por si só, não seria o bastante para efetivar o mandado constitucional de criminalização dos atos
homofóbicos. Por isso, em harmonia com seu entendimento do parágrafo 2º do artigo 103 da
Carta Magna, esse ministro entendeu ser possível (e necessário) conferir interpretação conforme
ao termo “raça”, trazido pela Lei de Racismo, com a finalidade de entender que, aos tipos penais
previstos nessa lei, pode-se subsumir a homofobia, sem, com isso, estar-se diante da edição de
nova legislação penal ou de analogia in malam partem, isto é, sem ofensa ao princípio da
legalidade penal.
Esse julgador arrematou dizendo que a interpretação conforme possui o condão de
compatibilizar leis e atos normativos preexistentes com o Texto Constitucional.
3.4.3.3 O voto do Ministro Luís Roberto Barroso: favorável à procedência das ações
O Ministro Luís Roberto Barroso proferiu o seu voto no mesmo sentido dos até então
proferidos, fazendo, inicialmente, a constatação de que a lei é um ato de vontade e a
interpretação constitucional, um ato de razão e exaltando, em seguida, a função
contramajoritária da Suprema Corte, que, no caso em tela, seria observada na concretização de
direitos e liberdades fundamentais de uma minoria (o grupo LGBT+), até então ignorados pela
vontade da maioria, traduzida pela mora inconstitucional que foi imputada ao Congresso.
Diante disso, esse ministro estabeleceu duas saídas possíveis a esse estado de inércia,
quais sejam: a cientificação do Poder Legislativo ou a colmatação e superação de tal inação por
meio da atividade judicial exercida no então julgamento, acabando por adotar a segunda
alternativa ao evocar o paradigmático Caso Ellwanger para justificar a compreensão do termo
racismo em sua dimensão sociológica-constitucional e, dessa maneira, determinar que a Lei do
Racismo seja aplicada a condutas homofóbicas a fim de coibi-las.
Ainda, salientou esse julgador o caráter claramente hermenêutico dessa decisão, que
versa sobre um conceito de “raça” já existente, editado pelo Parlamento em processo legislativo
de viés estritamente legal. Portanto, o âmbito de existência da norma, a definição do crime e a
cominação da pena seriam prévios, não se tratando, assim, de inovação da ordem jurídica em
matéria penal.
Em seguida, foi suspenso o julgamento por prazo indeterminado.
64
3.4.4 A sessão do dia 23 de maio de 2019: os votos dos Ministros Rosa Weber e Luiz Fux,
consagrando-se a maioria para a procedência dos pedidos
Como primeira a votar na sessão do dia 23 de maio de 2019, a Ministra Rosa Weber
abriu o seu voto com uma breve preliminar, em que reputou impossível o conhecimento da
ADO no que diz respeito ao pleito ressarcitório formulado, e acompanhou, na íntegra, ambos
os relatores, dando procedência aos demais pedidos.
Além de reprisar os fundamentos já lançados pelos votos anteriores, em especial os
dos ministros relatores, essa ministra observou que o princípio da legalidade estrita em matéria
penal é valor estruturante da democracia, do Estado Democrático de Direito e do próprio
conceito de Justiça, constituindo garantia intangível dos jurisdicionados, razão pela qual
reiterou a inviabilidade de acolher o requerimento no sentido de que o Supremo Tribunal
Federal, em função legislativa atípica, criasse novo tipo penal a fim de criminalizar a
homofobia. Todavia, essa julgadora entendeu ser plenamente cabível conferir interpretação
conforme à Lei 7.716/1989, enquadrando as condutas homofóbicas no termo “raça” presente
nesse mesmo diploma legal, conforme a definição sociológica-constitucional de racismo.
O Ministro Luiz Fux votou nos mesmos termos dos relatores, afirmando, em síntese,
que a homofobia se tornou conduta generalizada no país, invocando o holocausto nazista e as
centenas de homossexuais mortos nos campos de concentração para acentuar a importância do
assunto. Depois disso, ao reconhecer o estado de mora do Poder Legislativo e tratar de como se
poderia proceder à sua remediação, esse ministro afirmou que a mera cientificação ao
Congresso Nacional seria medida ineficaz, pois, nem sempre, voz e voto no processo legislativo
são suficientes, tendo em vista que este pode culminar num veto.
Destarte, o caminho mais adequado a ser seguido, a seu ver, seria o de conferir
interpretação conforme à Constituição ao conceito de racismo apresentado pela Lei nº
7.716/1989, enquadrando nos tipos penais dessa legislação as condutas homofóbicas, visto que
a incitação jurisdicional, nesse caso, reclamaria uma resposta concreta e imediata do Poder
Judiciário.
65
3.4.5 A sessão do dia 13 de junho de 2019: os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo
Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e Dias Toffoli e o placar final
de 8x3 a favor da criminalização da homofobia
A sexta e última sessão teve início com o voto da Ministra Cármen Lúcia em sentido
idêntico aos votos até então proferidos.
No cerne de sua decisão, essa ministra explicitou que todo preconceito é violência e
toda discriminação é causa de sofrimento, mas alguns preconceitos impõem mais sofrimento
que outros, porque são feridas abertas em casa e que, por isso, castigam a pessoa desde o seu
lar. A homofobia seria uma dessas hostilidades que permeiam, na maioria das vezes, o próprio
seio familiar do indivíduo.
A inércia do Poder Legislativo em criminalizar as condutas homofóbicas seria um
evidente atentado às liberdades e garantias individuais dos integrantes da comunidade LGBT+,
gerando o pertinente questionamento de “onde está o Estado?”. Ante essa mora, teria de
responder legalmente o Poder Público, impedindo que os direitos se transformem, do contrário,
em temeridades.
Para essa julgadora, as normas de um Estado complementam-se a fim de ser eficientes
na finalidade determinada constitucionalmente, possuindo obrigatoriedade o seu cumprimento
pelos poderes da República, de modo que não se deixe de observar princípios fundamentais,
estruturantes da própria nação brasileira. Por isso, essa ministra votou no sentido de conhecer
parcialmente dos pedidos (à exceção do pleito ressarcitório) e, no que tange ao mérito, julgá-
los procedentes, exceto no ponto em que havia pedido de que a Suprema Corte agisse em função
legislativa atípica, tipificando, por conta própria, um novo tipo penal apto a criminalizar a
homofobia.
66
3.4.5.2 O voto do Ministro Ricardo Lewandowski: pela parcial procedência das ações, a fim
de reconhecer, apenas, a mora legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia
13
Conforme consta do acórdão proferido nos autos do Inquérito nº 3.590/DF, do qual foi relator o Ministro Marco
Aurélio: em 8 de janeiro de 2013, a Procuradoria-Geral da República ofereceu denúncia em desfavor do deputado
federal Marco Antônio Feliciano (do Partido Social Cristão à época), por suposta prática do crime previsto no
artigo 20, caput, da Lei do Racismo, em virtude de ter ele publicado manifestação discriminatória em relação a
homossexuais, na rede social Twitter. A acusação formulou seu pedido tendo por base o julgamento do Caso
Ellwanger (Habeas Corpus nº 82.424, do Rio Grande do Sul), no qual a Suprema Corte entendeu por ampliar o
67
3.4.5.4 O voto do Ministro Marco Aurélio Mello: pelo não conhecimento do MI e pela
improcedência da ADO
conceito de racismo contido no já citado diploma legal. Por unanimidade, os ministros da Primeira Turma do
Supremo rejeitaram a denúncia, classificando a conduta descrita na exordial acusatória como atípica.
68
cumprir mandado específico de criminalização das condutas homofóbicas, pois esse mandado
simplesmente inexiste no texto da Constituição.
Para esse ministro, o mandamento insculpido no inciso XLI do artigo 5º da Lei
Fundamental não diz respeito a incriminação propriamente dita de condutas, de modo que o
imperativo “punirá”, contido em sua redação, não pode ser interpretado dessa maneira.
Em consequência, segundo esse julgador, inviável seria estabelecer que a Lei nº
7.716/1989 atenderia, também, à criminalização da homofobia, de modo que um precedente
nesse sentido causaria um baque à segurança jurídica dos cidadãos, além de violar
expressamente o princípio da reserva legal em matéria penal. Argumentou, ainda, esse ministro
que, mesmo superados esses entraves, ao reconhecer-se que o termo “raça”, trazido pela referida
legislação, abarcaria a comunidade LGBT+, instaurar-se-ia um paradoxo, pois, não seria
possível afirmar que o Poder Legislativo incorrera em mora inconstitucional, já que a
criminalização da homofobia estaria implícita na Lei do Racismo desde a sua edição.
Com isso, assentado na premissa de que uma decisão nesse sentido, ao ser proferida
pela Suprema Corte, caracterizaria interferência do Poder Judiciário no Poder Legislativo, esse
ministro rechaçou as teses suscitadas nas presentes demandas, sob pena de que seu acolhimento
implicaria em óbice ao alcance de um patamar mínimo civilizatório.
3.4.5.5 O voto do Ministro Dias Toffoli: pela parcial procedência das ações, a fim de
reconhecer, apenas, a mora legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia
Por último, votou o então presidente da Corte, Ministro Dias Toffoli, que, sem
delongas, acompanhou, integralmente, o voto do Ministro Ricardo Lewandowski.
Desde os primórdios, o ser humano teve de viver em grupos para satisfazer suas
necessidades e, consequentemente, garantir sua sobrevivência.
As relações estabelecidas entre os integrantes de tais organizações e, em maior efeito,
também entre essas sociedades entre si, foram sempre das mais variadas. Beccaria (1999, p. 23)
afirma, logo na introdução de seu “Dos Delitos e das Penas”, que há uma tendência intrínseca
a uma reunião entre homens de se concentrar, no menor número possível deles, os privilégios,
o poder e a felicidade, relegando-se à maioria, em contrapartida, a miséria e a fraqueza.
71
Logo, a punição teria de ser gerida unicamente pelo Estado, evitando, dessa forma,
eventuais excessos – inevitáveis se aos indivíduos fosse concedida a autotutela. A obra de
Beccaria, dessa forma, assume jaez atemporal, por regularizar, desde sua época, toda forma de
excesso, atribuindo, inclusive, limites ao ius puniendi, como evidencia o trecho final do excerto
acima transcrito.
Já Foucault (1987, p. 41) comunga da noção de que um delito não ofende apenas sua
vítima imediata, mas, com igual efeito, o soberano (Estado), visto que a lei é uma expressão da
força de vontade deste. Portanto, a intervenção do Estado não é mera “arbitragem entre dois
adversários; é mesmo muito mais que uma ação para fazer respeitar os direitos de cada um; é
14
Não se pode olvidar, é claro, que há outros fundamentos do ius puniendi, como aquele calcado no jusnaturalismo,
defendido por Giandomenico Romagnosi, que encara a pena como um mecanismo de defesa social, instituindo,
por conseguinte, um contra-estímulo ao impulso criminoso, e, ainda, aquele sustentado por Francesco Carrara, o
qual apregoa que a função da pena e, via de consequência, do direito de punir, é a eliminação do perigo social
oriundo da impunidade do delito, o qual é entendido, por esse autor, como uma violação à lei absoluta (direito),
emanada da vontade do próprio Criador (BARATTA, 2002, p. 35-37). Optou-se, no entanto, por uma abordagem
do viés contratualista do direito de punir por constituir esta a mais aventada hipótese de seu surgimento, bem como
por constituir a obra de Beccaria “a expressão de todo um movimento de pensamento, em que conflui toda a
filosofia política do Iluminismo europeu [...]” (BARATTA, 2002, p. 33).
73
uma réplica direta àquele que a ofendeu”, isto é, àquele que ofendeu a vontade do poder
soberano.
O direito de punir, para esse autor, é, consequentemente, uma extensão do direito que
tem o Estado de guerrear contra seus inimigos, fazendo valer a execução de suas leis por meio
do ordenamento da punição do crime. Nesse sentido, pode-se encarar o ius puniendi como um
instrumento de vingança pública, uma espécie de reparação da honra estatal em defesa da
sociedade (FOUCAULT, 1987, p. 42).
Divergentes em seus conteúdos, as definições de Beccaria e Foucault, contudo,
apresentam um ponto de convergência: a preocupação com o vício do excesso atrelado à
punição.
era expressa, não satisfazia o ideal de cada indivíduo, que era, em última instância, o de se livrar
da arbitrariedade e da tirania dos mais poderosos (MOSSIN, 2014, p. 245).
É no Direito Romano, entretanto, que se pode encontrar a primeira noção de uma
legalidade incipiente, mais especificamente nas chamadas quaestiones perpetuae, no qual,
cuidando-se das crimina publica, previstas nas leges Corneliae e Juliae, estava prevista a
anterioridade da lei para a punição de determinados crimes (MOSSIN, 2014, p. 245).
Posteriormente, as mudanças operadas com o Direito romano imperial fizeram que o
princípio da legalidade rígida fosse repudiado. A instituição do processo extraordinário firmou,
como fontes do direito penal, além das antigas leis populares, um vasto conjunto de legislações
calcadas pelo consuetudinário. Permitia-se até mesmo a analogia, embora uma ação jamais
pudesse ser punida somente pelo fato de ser “merecedora” de uma sanção, devendo o tribunal,
ao fazer incidir as penas extraordinárias, consultar as fontes jurígenas, a fim de evitar abusos
(HUNGRIA, 1977, p. 37-38).
Por outro lado, durante a Idade Média, na medida em que a lei escrita foi, quase por
completo, substituída pelos costumes, seguindo os passos do processo romano extraordinário,
o despotismo do juiz ou do rei eram inigualáveis, admitindo-se, inclusive, a dispensa da
aplicação analógica na criação de novos delitos. Não existia o mínimo de segurança ao cidadão
a quem se queria punir (MOSSIN, 2014, p. 247).
Por conseguinte, em termos de legislações constitucionais, um incipiente princípio da
legalidade foi expresso, pela primeira vez, na Magna Carta da Inglaterra, em 1215, com a
redação de que “nenhum homem pode ser preso ou privado de sua propriedade a não ser pelo
julgamento de seus pares ou pela lei da terra” (MOSSIN, 2014, p. 248). Diz-se incipiente pois
a doutrina majoritária não considera que o enunciado desse documento carregasse uma
legalidade garantista, mas, pelo contrário, uma garantia meramente processual, a qual se
restringia a uma minoria muito específica, composta pela aristocracia feudal, como resposta a
uma troca de privilégios (SANTOS, 2016, p. 21).
O entendimento dominante é o de que o princípio da legalidade penal, em sua acepção
hodierna, surgiu a partir da Revolução Burguesa e em face da sua respectiva inscrição nas
legislações das colônias americanas que se tornavam independentes (Filadélfia, em 1774;
Virgínia, em 1776; e Maryland, em 1776), fruto de inspirações notadamente iluministas
(SANTOS, 2016, p. 119-120). Ainda, cumpre destacar a sua presença nas Petitions of Rights
norte-americanas e, dotado de maior ênfase, na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, documento máxime da Revolução Francesa, que, em seu artigo 8º, exprime: “A lei
75
apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido
senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada”
(MOSSIN, 2014, p. 248).
A positivação, por assim dizer, dessa garantia tão substancial à área do direito penal
encontra fundamentos políticos e jurídicos bastante delineados.
A burguesia do século XVIII demonstrava insatisfação com os excessos do poder
punitivo estatal, e buscava, em linhas gerais, a delimitação de parâmetros que pudessem prever
todo tipo de conduta punível, com base tanto na legalidade quanto no princípio retributivo, este
último calcado na correlação entre culpa e punição e também na exclusão de quaisquer
elementos teleológicos (RUSCHE; KIRCHHEIMER apud BISSOLI FILHO, 2016, p. 37).
O fundamento político do princípio da legalidade, ao contrário do fundamento do
direito de punir beccariano, por exemplo, que volve ao contratualismo de Hobbes e Rousseau,
está na teoria da supremacia da legislação, de Locke, e na teoria da separação dos poderes, de
Montesquieu, bem como atrela-se à concepção de um Estado liberal, em cujo ideário orbitam
ideais como a divisão de poderes ou funções e a garantia dos direitos e liberdades individuais
(BISSOLI FILHO, 2016, p. 37-38).
Por sua vez, o fundamento jurídico do princípio da legalidade penal consiste no fato
de que a lei liga determinada violação do direito a um mal, o qual serve como consequência
jurídica necessária, lançando-se mão, assim, de uma espécie de coação psicológica impeditiva
de crimes (BISSOLI FILHO, 2016, p. 39).
Nesse contexto, foi Feuerbach quem elaborou os termos da máxima latina nullum
crimen, nulla poena sine lege, dando contornos mais científicos ao princípio da legalidade penal
e, com isso, criando vínculos com a teoria da coação psíquica por ele defendida (MOSSIN,
2014, p. 247). Acerca disso, discorre, Bissoli Filho (2016, p. 38-39):
[...] Feuerbach deduz que “toda pena jurídica dentro do Estado é a consequência
jurídica, fundada na necessidade de preservar os direitos externos de uma lesão
jurídica e em uma lei que comine um mal sensível”. Desse princípio, Feuerbach extrai
que “toda imposição de pena pressupõe uma lei penal”; que “a imposição de uma pena
está condicionada à existência da ação cominada”; e que “o fato legalmente cominado
(o pressuposto legal) está condicionado pela pena legal”. Disso resulta a fórmula latina
nullum crimen, nulla pena sine lege, que, tradicionalmente, expressa o princípio da
legalidade penal.
Lei anterior, e na forma por ela prescrita”. Da mesma forma, o primeiro artigo do Código
Criminal do Império, de 1830, estabelecia que “Não haverá crime, ou delito sem uma Lei
anterior, que o qualifique”, possuindo este mesmo diploma legal, ainda, uma prescrição em
relação às penas especificamente, em seu artigo 33: “Nenhum crime será punido com penas,
que não estejam estabelecidas nas leis, nem com mais, ou menos daquelas, que estiverem
decretadas para punir o crime no grau máximo, médio, ou mínimo, salvo o caso, em que aos
Juízos se permitir arbítrio” (BISSOLI FILHO, 2016, p. 41).
O princípio da legalidade penal manteve-se vivo nas demais Constituições brasileiras
(1891, 1934, 1946 e 1988), exceto naquelas que vigoraram nos períodos de governos
autoritários da República (a saber, as de 1937, 1967 e 1969, a primeira referente ao Estado
Novo, de Vargas e as duas últimas, à Ditadura Militar), bem como no Código Penal do Império,
de 1832, no Código Penal de 1890, na Consolidação das Leis Penais de 1932 e, por fim, no já
mencionado Código Penal de 1940, em vigor até os dias de hoje (BISSOLI FILHO, 2016, p.
41).
Nesse viés, os Estados Nazista e Fascista, defendidos a todo custo por Hitler e
Mussolini, respectivamente, podem ser subsumidos como Estado de Direito. As
ditaduras Franquista e Salazarista, do mesmo modo. Todavia, nem por isso tais
sistemas foram democráticos. Pelo contrário: mesmo regidos pelo império de uma lei
vigente e sob a desculpa de se seguir uma ordem necessária, a forma de atuação
punitiva desses Estados desrespeitou direitos e garantias fundamentais. (SANTOS,
2016, p. 22).
77
assim como à sua própria dignidade, cimenta a fixação de diretrizes para a tipificação de
condutas e a cominação de sanções penais (MOSSIN, 2014, p. 258).
Dessa forma, esse mesmo axioma estabelece, como condição necessária, que os
diferentes tipos penais e suas respectivas cominações ocorram somente por meio de lei, a qual
deve ser estrita (lex scricta), escrita (lex scripta), certa (lex certa) e prévia (lex praevia)
(BISSOLI FILHO, 2016, p. 39), sendo estes os seus corolários.
Ao afirmar-se que a lei deve ser estrita (nullum crimen, nulla poena sine lege stricta),
pressupõe-se que deverá ser fruto de um processo legislativo em sua integralidade, que tramite
perante representantes do povo em suas respectivas Casas Legislativas, até que seja a lei
promulgada e entre em vigor. Postulando que deve ela [a lei] ser escrita (nullum crimen, nulla
poena sine lege scripta), tem-se como proibido invocar costumes e analogia para os fins já
referidos. Na dimensão que deve ser a lei penal certa (nullum crimen, nulla poena sine lege
certa), caracteriza-se a exigência de que esta exprima, com clareza e completude, tanto a
conduta a ser punida como a sanção a que será submetida, com seus limites mínimos e máximos,
bem como regras de aplicação e execução. Por fim, o caráter prévio da lei penal (nullum crimen,
nulla poena sine lege praevia) entabula que, ao tempo da conduta, deve estar vigente a lei penal
que a descreve e lhe comina a sanção (BISSOLI FILHO, 2016, p. 42).
A divisão da legalidade penal em quatro postulados é um efeito do caráter doutrinário
que adquire esse princípio, cumprindo uma função específica de cunho hermenêutico,
concernente ao modo de interpretação da lei penal, e outra de natureza metodológica (ou
sistemática), relativa ao nexo entre a legalidade penal e a teoria do tipo, pois corresponderia à
fórmula de que não há delito sem tipicidade (CUNHA apud SOARES, 2002, p. 75).
A Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso I, prevê que compete, privativamente,
à União legislar acerca de matéria penal, o que se dá por intermédio das duas câmaras que
compõem o Poder Legislativo do nosso país: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Nesse ponto, reporta-se à distinção já anteriormente consignada entre o princípio da
legalidade em sentido lato e em sentido estrito. Considerando a mera legalidade, e partindo da
premissa de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei, poderia se chegar à conclusão equivocada de que, então, qualquer documento
normativo proveniente da respectiva autoridade competente seria instrumento apto a prever
80
condutas típicas e a elas cominar sanções penais. Se assim o fosse, o instituto da medida
provisória, atribuição do Poder Executivo Federal que decorre do princípio da legalidade geral,
afigurar-se-ia como idôneo para criar leis penais ou impor penas (SANTOS, 2016, p. 122-123).
Embora a medida provisória esteja sujeita à apreciação do Congresso Nacional, sob
pena de perder sua eficácia ab initio se este não a ratificar dentro do prazo definido, a legalidade
estrita, por meio do corolário discutido neste tópico, impede, por exemplo, que o Presidente da
República legisle na esfera penal através deste ato unipessoal (SANTOS, 2016, p. 123).
A lei penal, portanto, deverá ser estritamente originada de um processo legislativo
idôneo, processo este que compreende as fases de apresentação de um projeto, sua discussão,
votação, aprovação, sanção, promulgação, publicação e, por fim, superado ainda o período de
vacacio legis, sua vigência no ordenamento jurídico, excluindo-se, via de consequência, os
decretos, resoluções, medidas provisórias e demais vias legislativas que, apesar de plenamente
legais, não se submetem ao rito legislativo ordinário, o qual se dá nas Casas Legislativas
compostas por representantes do povo, eleitos democraticamente (BISSOLI FILHO, 2016, p.
42).
O postulado nullum crimen, nulla poena sine lege scripta veda a criação de crimes e a
cominação de penas pelo costume ou por meio de interpretação extensiva e analogia in malam
partem, de modo que só a lei pode ser fonte da norma incriminadora (MOSSIN, 2014, p. 259).
Ao prever comando normativo expresso, a lex scripta não admite o uso, em nenhuma
situação, de norma semelhante para a caracterização da figura típica, ainda que a título de
função integrante. Não se ignora que, no direito processual penal, é plausível e adequado o
emprego de analogia em face de lacunas ou hiatos, conforme expresso pelo Código de Processo
Penal15, desde que haja similitude entre as normas integrante e integrada. Já, no campo do
direito penal material, não há sequer hipótese de integração, de preenchimento de vazio,
justamente por se firmar o princípio da reserva legal em lei penal uma garantia do indivíduo
(MOSSIN, 2014, p. 260-261).
Com isso, entra em voga, outrossim, a questão das normas penais em branco que
vigoram em nosso ordenamento jurídico. São elas dispositivos penais incriminadores de caráter
15
Art. 3º. A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento
dos princípios gerais de direito.
81
indeterminado ou imperfeito, uma vez que, mesmo descrevendo condutas típicas, transferem a
outro órgão a tarefa de complementação por meio da formulação de novo dispositivo normativo
(lei, regulamento, ato administrativo etc.). A justificativa para a legalidade das normas penais
em branco consiste na afirmação de que a mera regulamentação não outorga poder repressivo
às instituições responsáveis por seu incremento (SOARES JÚNIOR, 2002, p. 80).
Por fim, no que tange aos costumes, impende ressaltar que a exigência de lei escrita,
como corolário da legalidade penal, não significa a negação da importância dos costumes na
práxis do sistema jurídico-penal, sobretudo como fonte subsidiária das causas excludentes e,
mais ainda, como exegese de certas figuras típicas (SOARES JÚNIOR, 2002, p. 80).
Ao enunciar que a lei penal deverá ser certa, este corolário preconiza “a
obrigatoriedade da clareza e da precisão dos tipos penais, devendo ser evitada a redação vaga,
ambígua ou genérica, para não permitir dúvidas por parte de seus destinatários” (SOARES
JÚNIOR, 2002, p. 82).
Um fato somente poderá ser considerado criminoso em havendo uma perfeita
consonância entre ele e a norma que o prevê; portanto, a descrição da conduta e, igualmente,
da sanção atribuída, deverá ser clara, a fim de evitar influência do subjetivismo. Os tipos penais
demandam clareza sob o auspício de garantir a segurança jurídica dos cidadãos e, com isso,
evitar a discricionariedade do operador do direito – especialmente aquele a quem é dado o poder
de julgar – que, ao se deparar com conceitos elásticos, imprecisos ou muito abrangentes, poderia
efetivar interpretações convenientes (SANTOS, 2016, p. 126).
Além disso, tomando-se por base o fato de que a lei não se destina, apenas, aos
operadores do direito, mas, também, ao povo, a redação dos dispositivos penais incriminadores
deve ocorrer em linguagem apropriada à correta compreensão da população em geral, para que,
assim, desempenhe com êxito sua função de reprimir condutas criminosas (SOARES JÚNIOR,
2002, p. 83).
Este axioma determina, em síntese, que a lei que prevê a infração deve estar em vigor
no momento em que esta for levada a efeito (SANTOS, 2016, p. 126).
82
A lex praevia traduz-se num reforço à ideia de que o direito penal está calcado na letra
da lei, assomando-se esta como a fonte soberana dos crimes e das penas. Por isso, a conduta
praticada, ainda que possua contornos imorais, antissociais ou ilícitos perante toda a sociedade,
jamais poderá ser encarada como crime e, mais ainda, ser punida, sem que antes exista um
dispositivo legal que a defina como tal (SOARES JÚNIOR, 2002, p; 79).
Nesse contexto, cabe invocar o caso do controverso Tribunal de Nuremberg, o qual
tinha por objetivo punir integrantes do terceiro Reich alemão durante a Segunda Guerra
Mundial. Nada obstante não houvesse uma corte internacional formalmente competente para
tanto, nem tampouco existisse um documento escrito a versar sobre a matéria, os então
cognominados criminosos de guerra foram julgados com base nas atrocidades por eles
perpetradas e/ou autorizadas no interregno do conflito, num estado nítido de tribunal ex post
factum. Por óbvio, as barbáries cometidas pelo regime nazista constituíram um afronte à
dignidade humana em sua essência, porém o viés jurídico adotado para a punição dos culpados
suscita, ainda hoje, críticas contundentes pelos operadores do direito (SANTOS, 2016, p. 126-
127), sem contar que delimitam uma conjuntura absurda à ótica da legalidade penal.
Dessarte, dispensa maiores esclarecimentos o postulado da lex praevia, tendo em vista
que a ausência de anterioridade da norma proibitiva impediria até mesmo a liberdade de
conduta, ao passo em que propiciaria o abuso, porquanto um comportamento, de acordo com a
conveniência deste ou daquele grupo, poderia ser considerado avesso ao Direito e, por esta
razão, digno de sanção (MOSSIN, 2014, p. 249).
Entretanto, merece ser apontado que a lex praevia rege a aplicação da lei penal no
tempo tão somente no que diz respeito à lei mais severa, de modo que a retroatividade da lei
penal mais benéfica é plenamente admissível (SOARES JÚNIOR, 2002, p. 79).
Tavares (2012, p. 344) aduz que, ao ser julgada procedente uma ação direta de
inconstitucionalidade por omissão, está-se diante de duas possibilidades: a primeira, quando
84
Esse foi o caso da ADO nº 32, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República visando
a questionar a omissão do Presidente da República e do Congresso Nacional em legislar acerca
do regime especial de aposentadoria do servidor público portador de deficiência, segundo
designado pelo artigo 40, parágrafo 4º, inciso I, da Carta Constitucional. Essa omissão já era
alvo de debates em diversos mandados de injunções impetrados, individualmente, por
servidores públicos prejudicadas pela desídia, de modo que a preocupação do Ministério
Público Federal residia na insegurança jurídica originada devido à existência de várias
deliberações judiciais versando sobre o tema, sem que houvesse este sido regulamentado em
um caráter geral (SILVA; CUNHA JÚNIOR, 2018, p. 410).
A solução adotada pelo Supremo Tribunal Federal foi a de aplicar a Lei Complementar
142, de 8 de maio de 2013, para colmatar a inércia inconstitucional suscitada, seguindo a
tendência decisória dos casos particulares (SILVA; CUNHA JÚNIOR, 2018, p. 412). Não é
demais sublinhar que a referida legislação tange à aposentadoria da pessoa com deficiência
segurada pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Em arremate, ressaltam Silva e Cunha Júnior (2018, p. 416) que a Suprema Corte fará
valer sua função democrática toda vez que estiver diante do processo constitucional de controle
de constitucionalidade, mesmo não sendo um órgão que conta com a eleição direta da
população. Sua função, nesses casos [de controle de constitucionalidade], é a de evitar
ingerências de grupos econômicos ou inconsistências do Parlamento que possam obstar direitos
de natureza fundamental albergados pela Constituição.
Embora haja certo debate com relação ao decisum do MI 712, mormente se a sentença
teria características aditivas, alargando o âmbito de incidência de uma lei já existente, ou
analógicas, o que independeria, assim, do manejo de um mecanismo tão especial quanto o
mandado de injunção (TAVARES, 2012, p. 1025), salienta-se que o Supremo Tribunal Federal
procedeu à nítida integração de lacuna existente, com base na similitude entre as situações
previstas pela Lei nº 7.783/1989 e o direito à greve por parte dos servidores públicos.
A despeito do que se possa aduzir inicialmente, não foi o que ocorreu no julgamento
da ADO 26 e do MI 4733, de modo que o único ponto de convergência entre essas deliberações
e aquelas anteriormente indicadas é que, também no caso da chamada “criminalização da
homofobia”, o Supremo Tribunal Federal esquivou-se de um pronunciamento meramente
declaratório – tendência que vinha se concretizando há algum tempo, como demonstrado.
[...] por mais minudente que seja a lei, será ela formulada em termos gerais e abstratos.
Isso para que cumpra sua função de regular uma multifacetada gama de fatos e
relações sociais. E a linguagem geral e abstrata, ainda que muito clara, sempre
suscitará controvérsia, mormente quanto a seu alcance. (RIBEIRO, 2009, p. 151).
métodos literal, teleológico e sistemático16 de compreensão dos dispositivos legais, visto que
todos são admitidos sem restrições a fim de um maior esclarecimento acerca das intenções do
legislador (NUCCI, 2020, p. 121),
O mesmo não se pode dizer das formas extensiva e analógica de interpretação.
Nucci (2020, p. 121) considera que:
16
O método literal, gramatical textual ou filológico busca o sentido e alcance da norma a partir de uma simples
leitura do texto; o método teleológico ocupa-se do objetivo ou finalidade a que a lei de destina; e o sistemático
apregoa que o sentido de uma norma somente pode ser alcançado pela análise de todo o ordenamento no qual se
insere (RIBEIRO, 2009, p. 155).
89
O [seu] emprego [...] não se faz por acaso ou por puro arbítrio do intérprete; há
significado e lógica na utilização da analogia para o preenchimento de lacunas no
ordenamento jurídico. Cuida-se de uma relação qualitativa entre um fato e outro.
Entretanto, se noutros campos do Direito a analogia é perfeitamente aplicável, no
cenário do Direito Penal ela precisa ser cuidadosamente avaliada, sob pena de ferir o
princípio constitucional da legalidade (não há crime sem lei que a defina; não há pena
sem lei que a comine). Assim sendo, não se admite a analogia in malam partem, isto
é, para prejudicar o réu. Exemplo dessa espécie de analogia seria a construção do tipo
penal de assédio moral (crime inexistente) por semelhança à situação do assédio
sexual, prevista no art. 216-A [do Código Penal]. (NUCCI, 2020, p. 124) (O grifo não
consta na redação original).
[...] em recente decisão do STF, por maioria de votos (8 x 3), no Plenário, julgou-se
que a homofobia é uma espécie de racismo, razão pela qual já se encontra tipificada
em lei (Lei do Racismo). Essa sempre foi a nossa tese, defendida desde o ano de 2006,
agora aceita pelo Pretório Excelso. Não há nenhuma espécie de analogia in malam
partem. Toma-se, apenas, o termo racismo, buscando interpretar o seu significado nos
moldes contemporâneos.
Por fim, giza-se que o processo hermenêutico nasce de diversas realidades históricas,
de sorte que, se o fenômeno jurídico se configura por um complexo que compreende fato social,
valoração e normatividade, assim o deve observar o sistema de interpretação das leis (SANTOS,
2016, p. 148).
No item de número treze de seu histórico voto na ADO 26, o Ministro Celso de Mello,
relator da ação, conferiu interpretação conforme ao termo “raça”, expresso pela Lei nº
7.716/1989, entendendo que ele abarca as condutas homofóbicas como espécie de racismo, na
sua acepção sociológica-constitucional, viabilizada pela dimensão social que assume esse
termo. Posteriormente, ao proferir seu voto, o Ministro Edson Fachin, relator do MI 4733,
compartilhou do mesmo entendimento.
Malgrado possua uma origem etimológica bastante obscura, o vocábulo “raça” foi
sendo assimilado pelas mais diversas culturas ao longo dos séculos, adquirindo quase sempre
um sentido pejorativo no seu uso (LAFER, 2004, p. 67).
91
Por outro lado, a classificação dos seres humanos em raças encontra sua inspiração no
trabalho do botânico sueco Karl von Linné (Lineu), o qual estabeleceu, no século XVIII, um
sistema de divisão de plantas e animais, bem como da espécie humana, sendo esta subdividida
em seis “raças”, consideradas de acordo com um critério preponderantemente geográfico: a
europeia, a ameríndia, a asiática, a africana, a selvagem e a monstruosa (constituída por
indivíduos com deformidades físicas). Mais tarde, o evolucionismo de Darwin e o interesse na
taxonomia renovaram a preocupação da segregação dos seres humanos em conjuntos distintos,
tendo as diferenças fenotípicas (cor da pele, textura dos cabelos, formato da cabeça etc.)
preponderado nos modelos classificatórios propostos a partir do século XIX. Foi esse
pensamento, agora notadamente equivocado e condenável, que embasou alguns dos mais
conhecidos teóricos racistas, como Arthur de Gobineau e Houston Chamberlain (LAFER, 2004,
p. 68).
Indo de encontro a isso, a noção de racismo social, recepcionada pela Constituição
Federal e interpretações dela decorrentes, parte do pressuposto de que a definição biológica de
raça é ultrapassada, e de que não existem, factualmente, marcadores genéticos capazes de isolar
os seres humanos em diferentes agrupamentos biológicos (SCHUCMAN, 2010, p. 44). Se,
contudo, o racismo não pode ser justificado por parâmetros biológicos, permanece ele como
fenômeno social, orientado pela crença (e pela disseminação dessa crença) de que existem
grupos superiores a outros (LAFER, 2004, p. 70).
Nessa mesma esteira, para Souza (1983, p. 20), raça seria uma noção ideológica
instrumental à distribuição de posições numa estrutura de classes, encontrando sua definição,
no Brasil, em termos de atributos compartilhados por um mesmo grupo social, fator este que
respaldaria, por conseguinte, a própria concepção do fenômeno social do racismo.
Nucci (2014, p. 677) complementa:
Raça é termo infeliz e ambíguo para a utilização com relação a seres humanos, pois
pode representar desde um conjunto de pessoas com os mesmos caracteres somáticos,
como também um conjunto de indivíduos de mesma origem étnica, linguística ou
social. Quer dizer, ainda, meramente uma classe ou categoria de pessoas. Enfim, raça
é um grupo de pessoas que comunga de ideais comuns e se agrupa para defendê-los,
mas não se pode torná-lo evidente por caracteres físicos. [...] Se racismo é mentalidade
segregacionista não há dúvida de que se deve proteger todos os agrupamentos sociais,
independentemente de padrão físico ou ascendência comum. (Os grifos não constam
na redação original).
eleitas sem qualquer critério de aferição, cultivando, em relação aos que não têm as
referidas virtudes ou qualidades, uma cultura segregacionista, fracionando a sociedade
em camadas e estratos, “merecedores” de uma vida diferente dos que se acham
abastados e afortunados. (NUCCI apud CAETANO, 2018, p. 26).
Pelo exposto, tem-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que, embora
judeu não seja, em regra, uma raça, não há como precisar, com exatidão, o que este
vocábulo queira significar, razão pela qual a discriminação antissemita, objeto do
referido caso, foi considerada uma conduta racista, tal qual umas das previstas na Lei
n. 7.716/1989, sendo, portanto, imprescritível e inafiançável.
Do que foi evidenciado até então, conclui-se que, ao proceder a uma intepretação
conforme à Constituição do termo “raça” contido na Lei do Racismo, entendendo que ele abarca
condutas homofóbicas na extensão social do termo racismo, o STF em nada desrespeitou ou
violou o princípio da legalidade penal e seus corolários.
Tem-se que o postulado nullum crimen, nulla poena sine lege stricta foi observado,
porquanto a Lei nº 7.716/1989, que contém a norma penal incriminadora da homofobia no
termo “raça”, disposto nos artigos desse diploma legal, seguiu o devido trâmite legislativo.
Seu projeto inicial – o Projeto de Lei da Câmara nº 668, de 1988 –, de autoria do
Deputado Federal Carlos Alberto Caó (Partido Democrático Trabalhista), foi devidamente
discutido e aprovado, sendo posteriormente remetido ao Senado Federal e, via de consequência,
aprovado pelas duas Casas Legislativas do país, culminando na sua promulgação, no dia 5 de
janeiro de 1989.
Talvez o corolário da lei certa pudesse se tornar o ponto que suscitasse maiores dúvidas
quanto à observância do princípio da legalidade penal nas decisões do Supremo Tribunal
Federal em análise. É que o axioma nullum crimen, nulla poena sine lega certa prescreve que
o tipo penal deverá ser claro e preciso, com vistas a ensejar uma correta compreensão por parte
do operador do direito e, igualmente, da sociedade no geral, seus destinatários.
De acordo com o exposto alhures, no entanto, o vocábulo “raça” é impreciso devido à
sua própria natureza (inclusive etimologicamente), sendo incabível dizer, destarte, que a
Suprema Corte, ao interpretá-lo conforme à Constituição, agiu com base no subjetivismo dos
julgadores ou por mero capricho destinado a satisfazer os interesses de um grupo – no caso, a
comunidade LGBT+.
Pelo contrário, essa interpretação se deu com a finalidade de assegurar a proteção aos
direitos e às liberdades individuais dos homossexuais, imperativo conhecido pelo Texto
Constitucional, no inciso XLI do seu artigo 5º, como, a propósito, ocorreu quando do
julgamento do HC 82.424 (Caso Ellwanger), em que o Supremo Tribunal Federal protegeu os
direitos e as liberdades do povo judeu.
Da mesma forma, o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege praevia não foi
desrespeitado, na medida em que, durante o julgamento da ADO 26 e do MI 4733, designou-se
que os efeitos das decisões proferidas, isto é, da interpretação conforme do termo “raça” contido
95
na Lei nº 7.716/1989, somente passariam a ser aplicados após a data de conclusão do referido
julgamento – o que ocorreu no dia 13 de junho de 2019.
As condutas homofóbicas que se enquadram nos tipos penais previstos na Lei do
Racismo praticadas desde então, e levadas ao conhecimento da autoridade competente, são
passíveis de ser punidas criminalmente, por lei anterior que as definiu e por prévia cominação
de sanção penal.
Por mais numerosos que sejam os argumentos que se prestam a deslegitimar a decisão
do STF no tocante à criminalização da homofobia, vale tecer algumas considerações, por
derradeiro, àquele que diz respeito aos supostos “entraves” quanto à criminalização específica
da homofobia pelo Congresso Nacional no futuro.
Está comprovado que a homofobia é uma espécie de racismo, gozando por isso, das
características de imprescritibilidade e inafiançabilidade conferidas pelo inciso XLII do artigo
5º da Lei Fundamental, de modo que, em eventual ação legislativa destinada a criminalizar,
especificamente, os atos e condutas homofóbicas, tal observação deve ser levada em conta pelo
legislador ordinário.
Isso, contudo, de modo algum representará um entrave à ação do Poder Legislativo,
tampouco significará adequação de sua atividade à determinação do Poder Judiciário,
simplesmente porque a afirmação de que a homofobia é racismo social não decorre do
pronunciamento emanado pelo STF, nos autos da ADO 26 e do MI 4733, mas sim da
interpretação constitucional do termo racismo, já ocorrida nos autos do HC 82.424.
Foram, a rigor, mais de trinta anos de mora legislativa até que se reconhecesse, pelo
Poder Judiciário, que a homofobia é uma espécie de racismo social. Trinta anos de descaso com
o mandamento de criminalização contido no inciso XLI do artigo 5º da Constituição Federal e,
provavelmente, haja vista os obstáculos traduzidos, sobretudo, pelo posicionamento
intransigente da bancada evangélica parlamentar, serão mais longos anos até que as Casas
Legislativas do país promovam a “criminalização específica” da homofobia. Trinta anos de atos
de violência incomensuráveis à comunidade LGBT+, os quais culminaram na necessidade de
uma resposta imediata para fazer valer os preceitos constitucionais.
96
5 CONCLUSÃO
os integrantes do grupo LGBT+ em uma posição vulnerável perante a sociedade. Por isso,
devido aos elevados índices de atos violentos dirigidos à comunidade LGBT+, aos crimes
bárbaros e cada vez mais frequentes contra ela cometidos e às narrativas escancaradas de ódio
que lhe são dirigidas, o cenário demanda uma resposta penal a fim de se alcançar um controle
mínimo da homofobia.
Além disso, apresentaram-se previsões normativas que demonstram ser devida a
criminalização da homofobia, tais como o artigo 5º, inciso XLI, da Constituição Federal, o qual
prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais”, e o inciso XLII, que estabelece que “a prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, bem como, a nível
internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos; o Pacto de San José da Costa Rica ou Convenção Americana de
Direitos Humanos; as Resoluções nº 2435, de 2008, nº 2504, de 2009, nº 2600, de 2010, nº
2653, de 2011, nº 2721, de 2012 e nº 2807, de 2013, da Organização dos Estados Americanos;
e, ainda, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas
Conexas de Intolerância e a Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e
Intolerância.
Outrossim, demonstrou-se que o princípio da dignidade humana é o principal
norteador da criminalização da homofobia, porquanto a orientação sexual, e, por conseguinte,
a identidade de gênero, vinculam-se a esse atributo vital da condição humana, constituindo uma
essência indissociável do indivíduo e que deve ser protegida contra toda ação que a ameace ou
desrespeite.
No Brasil, no entanto, o Congresso Nacional se quedou inerte em criminalizar a
homofobia, mesmo a despeito de inúmeros projetos legislativos que tramitam nas duas Casas
Legislativas do país – como o Projeto de Lei da Câmara nº 122, arquivado em janeiro de 2015
–, o que configura omissão inconstitucional por parte do Poder Legislativo.
Foi com supedâneo nessa mora e omissão inconstitucional que foram ajuizadas a
ADO 26 e o MI 4733, ações que tinham por objetivo que a Suprema Corte determinasse ao
Congresso Nacional a criminalização específica da homofobia, e pugnavam, subsidiariamente,
que essa Corte Constitucional colmatasse a omissão legislativa existente, conferindo
interpretação conforme à Constituição para que às disposições normativas da Lei nº 7.716, de
5 de janeiro de 1989 (Lei do Racismo) se subsumissem os atos de discriminação contra a
população LGBT+.
100
noção de racismo social, recepcionada pela Constituição Federal e cimentada, pelo STF, no
julgamento do Caso Ellwanger, parte do pressuposto de que não existem, factualmente,
marcadores genéticos capazes de isolar os seres humanos em diferentes agrupamentos
biológicos (raças) e de que o racismo é um fenômeno social, orientado pela crença (e
disseminação dessa crença) de que existem grupos superiores a outros, demonstrou-se que a
homofobia é uma espécie de racismo.
Vale destacar que foi demonstrado que a Lei do Racismo descreve condutas às quais
se amoldam os diferentes tipos de preconceito, tais como a xenofobia, a intolerância religiosa
e, em última análise, a homofobia, visto que o conceito do termo raça está intimamente
conectado ao contexto histórico-social, sendo, por isso, fluido e não determinado pelas
similaridades físicas entre os integrantes do grupo tido como racializado.
Portanto, concluiu-se que as decisões proferidas, no julgamento da ADO 26 e do MI
4733, pela Corte Constitucional, observaram o princípio da legalidade penal e os seus
desdobramentos, pois: 1) a Lei nº 7.716/1989, que contém a norma penal incriminadora da
homofobia no termo “raça”, previsto nos artigos desse diploma legal, seguiu o devido trâmite
legislativo (lei estrita); 2) a Suprema Corte não incorreu em analogia in malam partem, visto
que não criou nenhum tipo penal e, sim, procedeu à interpretação conforme à Constituição do
termo “raça”, contido na Lei do Racismo (lei escrita); 3) o STF, ao interpretar o termo “raça”
conforme à Constituição, não agiu com base no subjetivismo dos julgadores ou por mero
capricho destinado a satisfazer os interesses do grupo LGBT+, tendo, somente, determinado o
alcance do vocábulo “raça”, previsto na Lei do Racismo (lei certa); e, 4) as condutas
homofóbicas, passíveis de ser punidas criminalmente, foram definidas por lei anterior e por
prévia cominação de sanção penal (lei prévia).
102
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