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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS


DEPARTAMENTO DE DIREITO
CURSO DE DIREITO

Ricardo Felipe Maciel Bittencourt

A criminalização da homofobia: uma análise das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e no Mandado de
Injunção nº 4733, à luz do princípio da legalidade penal e seus desdobramentos.

Florianópolis/SC
2020
Ricardo Felipe Maciel Bittencourt

A criminalização da homofobia: uma análise das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e no Mandado de
Injunção nº 4733, à luz do princípio da legalidade penal e seus desdobramentos.

Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em


Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção
do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Bissoli Filho

Florianópolis/SC
2020
AGRADECIMENTOS

Além de ser a mais prazerosa, agradecer certamente é a parte mais fácil.


O caminho até aqui é que foi duro.
Enquanto redijo esses agradecimentos, avalio, em retrospecto, toda minha trajetória
acadêmica, a qual começou, saliento, muito antes de eu ingressar no tão sonhado Curso de
Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. E, de plano, faço logo uma constatação: ter
chegado até aqui não foi um mérito meu, ao menos não exclusivamente. Há uma imensa gama
de pessoas e circunstâncias que me ajudaram, que guiaram meus passos, auxiliaram-me de toda
forma possível e imaginável... É a todas elas que dedico este trabalho.
Em primeiro lugar, claro, à minha mãe, Fátima, meu pai, Valdecir, e meu irmão,
Eduardo. Sem eles, não é piegas dizer, eu não existiria. Desde o início, foram o mais confiável
dos suportes; os pais mais compreensivos e bondosos que alguém pode ter, os quais sempre
apoiaram minhas decisões, desejos e, acima de tudo, quem eu sou. Parte da minha essência eu
devo a vocês, assim como parte desta monografia.
Em segundo lugar, à minha tia, Eliziane, e ao meu tio, Jeferson. Ingressar na UFSC só
foi possível graças a vocês. A uma, porque sem a inestimável contribuição de minha tia em
relação aos meus estudos, possivelmente tudo teria sido diferente. A duas, porque sem a
acolhida de meu tio em Florianópolis, as dificuldades seriam, decerto, insuperáveis. Nada
obstante, muito além de todo auxílio no campo material, o carinho que me proporcionaram
também jamais será esquecido.
À minha avó, Seloni, por ser a avó mais batalhadora, compreensiva e alegre do mundo,
sempre com um bom conselho na ponta da língua, e que me inspira, assim como a todas as
pessoas que a conhecem, diariamente. E à minha tia Cristiane, por ser minha confidente e
conselheira por tantas vezes ao longo desses anos e, não é demais dizer, por todos os demais
que virão.
De modo geral, a toda minha família.
Ao meu orientador, Francisco Bissoli Filho, o qual tenho a honra de poder encarar
como um amigo, afora um mestre excepcional e mais que atencioso chefe. Não é segredo minha
admiração pelo senhor, e o quanto sou grato por partilhar de seus tão numerosos ensinamentos.
Obrigado por aceitar ser meu orientador neste trabalho, concretizando um desejo que se
originou desde as aulas de Direito Penal II, na terceira fase.
Meus agradecimentos, também, a todos os professores do Centro de Ciências Jurídicas
da Universidade Federal de Santa Catarina, e, em maior escala, a todos aqueles que passaram
pela minha formação educacional. Cada qual à sua maneira, deixou uma marca indelével em
minha constante evolução como profissional e, por que não dizer, como ser humano.
Muito obrigado, ainda, à Alexandra, Ivana, Bianca e Fernanda, as quais conheci na 16ª
Procuradoria de Justiça Criminal, onde tenho o prazer de estagiar há mais de um ano e meio.
Vocês fizeram a diferença, não apenas por serem colegas extraordinárias e amigas leais, mas,
principalmente, por terem ouvido meus anseios quando esta monografia não estava nem mesmo
em sua fase embrionária.
Aos meus amigos: José, Ana Luíza e Vitória, por me proporcionarem um dos mais
especiais – embora bastante breve – lares que já tive em minha vida. Vocês foram minha família
nos meses em que trabalhei nesta pesquisa, impedindo-me de ser engolido por toda a onda de
desafios emocionais que surgiram desde o começo deste ano tão difícil. Cada palavra contida
aqui tem um pouco de carinho por vocês.
À Rúbia, aquela de todo o sempre, alegria das minhas férias e pedacinho do passado
que, felizmente, ainda levo comigo.
À Nicole, Adilson, Ludgero, Rodrigo, João, Victória, Thiago e Rafael, do Direito
Grego, por serem minhas companhias mais fiéis na universidade (e fora dela, é claro). Ao me
deparar com um mundo totalmente novo, quanta sorte poder contar com vocês para acompanhar
minhas descobertas. Da mesma forma, à Natália e Thais, que trouxeram um pouco mais de
felicidade para cada uma das noites passadas no CCJ.
À Pâmela, Eduarda, Duda, Yasmim e Carlos, companheiros desde o ensino médio.
Colecionadores de medalhas, é muito bom saber que tenho vocês para relembrar tempos que
agora nos parecem bastante sombrios.
À Thifany, por sempre me fazer rir e por todos os elogios gentilmente endereçados a
mim. Se eu me atrevesse colocar em palavras quantas vezes você animou os meus dias, em
nossos tão agradáveis almoços no RU, seriam poucas as quase quarenta mil que escrevi nesta
monografia.
E, por fim, não poderia deixar de agradecer ao Álvaro, pois, sem suas provocações,
este trabalho nunca teria existido. Apesar de tudo, você foi fundamental.
Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias – e tinham
planejado juntos quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro –,
ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou,
perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao
assunto: tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a
mostrá-las. Pálidos, os dois ouviram expressões como “relação
anormal e ostensiva”, “desavergonhada aberração”, “comportamento
doentio”, “psicologia deformada”, sempre assinadas por Um Atento
Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul
levantou de um salto. Parecia muito alto quando, com uma das mãos
apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar,
conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, depois de
coisas como a-reputação-de-nossa-firma ou tenho-que-zelar-pela-
moral-dos-meus-funcionários, declarasse frio: os senhores estão
despedidos.

Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala vazia na hora do


almoço, sem se olharem nos olhos.1

1
ABREU, Caio Fernando. Aqueles dois. In: ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. Rio de Janeiro. Editora
Agir, 2005. p. 88.
RESUMO

A presente monografia trata da análise, à luz do princípio da legalidade penal e seus


desdobramentos, das decisões proferidas, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento
conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e do Mandado de
Injunção (MI) nº 4733, em que essa Suprema Corte entendeu que a homofobia pode constituir
crime de racismo, em sua acepção sociológica-constitucional, quando as condutas homofóbicas
puderem ser subsumidas nos tipos penais da Lei nº 7.716/1989. De início, no primeiro capítulo,
é feita uma abordagem sobre a homofobia e sua necessária repressão jurídico-penal. Nessa parte
introdutória, são feitas considerações acerca da definição de termos essenciais à compreensão
do tema abordado, tais como “orientação sexual”, “identidade de gênero” e o próprio conceito
fenomenológico de homofobia. Além disso, é delineado um breve panorama histórico desse
preconceito, bem como são explicitadas algumas de suas causas e formas de manifestação e,
ainda, discorre-se sobre a necessidade de se coibir penalmente tais manifestações. Logo em
seguida, no segundo capítulo, apresentam-se as previsões normativas nacionais e internacionais
e os princípios que justificam a criminalização da homofobia, assim como a inércia do Poder
Legislativo brasileiro em promover essa criminalização. Depois, faz-se um exame aprofundado
a respeito da ADO 26 e do MI 4733, caracterizando-se, num primeiro momento, a natureza
jurídica dessas ações, e, depois, debruçando-se sobre os pedidos formulados no caso em apreço,
sobre as posições que exsurgiram dos autos e sobre o efetivo julgamento das demandas,
colacionando-se o voto de cada um dos onze ministros da já citada Corte Constitucional. Por
fim, o terceiro capítulo é dedicado, inicialmente, à conceituação, contextualização e previsão
do princípio da legalidade penal e seus respectivos desdobramentos ou corolários no
ordenamento jurídico brasileiro, para que, adiante, seja realizada uma avaliação das decisões
proferidas, pelo Supremo Tribunal Federal, na ADO 26 e no MI 4733, à luz do referido
princípio. Essa avaliação se dá por meio de comentários atinentes à natureza jurídica das
decisões da mencionada Corte em sede de ADO e MI, de considerações sobre a hermenêutica
da lei penal e da explanação do conceito sociológico-constitucional de racismo, o qual foi
fixado no julgamento do emblemático Caso Ellwanger, também pela Suprema Corte.

Palavras-chave: Homofobia. Orientação sexual. Identidade de gênero. Violência homofóbica.


Direito penal. Direito constitucional. Ação direita de inconstitucionalidade por omissão.
Mandado de injunção. Lei do racismo. Princípio da legalidade penal. Racismo. Interpretação
conforme.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11
2 A HOMOFOBIA E A SUA NECESSÁRIA REPRESSÃO JÚRIDICO-PENAL.......... 15
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 15
2.2 DEFINIÇÕES GERAIS ACERCA DE GÊNERO, DE SEXUALIDADE HUMANA E DE
ORIENTAÇÃO SEXUAL ....................................................................................................... 15
2.2.1 Sexualidade e gênero humano ...................................................................................... 15
2.2.2 As identidades de gênero: transexualidade e cisgeneridade ...................................... 17
2.2.3 Orientações sexuais: homossexualidade, heterossexualidade e bissexualisade........ 18
2.3 CONCEITUAÇÃO E ORIGENS HISTÓRICAS DA HOMOFOBIA .............................. 19
2.3.1 A conceituação de homofobia ....................................................................................... 19
2.3.1.1 A terminologia .............................................................................................................. 19
2.3.1.2 Espécies de homofobia ................................................................................................. 20
2.3.1.2.1 A homofobia irracional versus a homofobia cognitiva ............................................. 20
2.3.1.2.2 A homofobia geral versus a homofobia específica.................................................... 21
2.3.1.3 Caracterização e consequências da homofobia ........................................................... 22
2.3.2 As origens históricas da homofobia ............................................................................. 24
2.3.2.1 A homossexualidade na Grécia e na Roma antigas: da pederastia aos deveres de
cidadão ..................................................................................................................................... 24
2.3.2.2 A homossexualidade na Idade Média: a ideia de abominação construída a partir da
tradição judaico-cristã ............................................................................................................. 26
2.3.2.3 Do “século das luzes” até a contemporaneidade: uma breve perspectiva sobre as raízes
da tradição homofóbica judaico-cristã no Brasil e no Ocidente ............................................. 29
2.4 AS CAUSAS DA HOMOFOBIA: A CULTURA DA HEGEMONIA MASCULINA
FUNDADA NA PATOLOGIZAÇÃO DO COMPORTAMENTO HOMESSEXUAL, NA
SUBJUGAÇÃO DO FEMININO E NA CONTRARIEDADE AO DIFERENCIALISMO
SEXUAL .................................................................................................................................. 32
2.4.1 A patologização do comportamento homossexual ...................................................... 32
2.4.2 A subjugação do papel de gênero feminino ................................................................. 35
2.4.3 A contrariedade ao diferencialismo sexual ................................................................. 36
2.5 AS TRÊS FORMAS DE VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA E A SUA NECESSÁRIA
REPRESSÃO JÚRIDICO-PENAL .......................................................................................... 36
2.5.1 As três formas de violência homofóbica ...................................................................... 36
2.5.1.1 Violência homofóbica interpessoal .............................................................................. 37
2.5.1.2 Violência homofóbica institucional .............................................................................. 38
2.5.1.3 A violência homofóbica simbólica................................................................................ 39
2.5.2 A necessária repressão penal da homofobia ............................................................... 39
3 O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR
OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4377 ......................................... 41
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 41
3.2 A DEVIDA REPRESSÃO JURÍDICO-PENAL DA HOMOFOBIA ................................ 41
3.2.1 As previsões normativas e a dignidade da pessoa humana como fatores
determinantes à criminalização das condutas homofóbicas ............................................... 41
3.2.2 A inércia do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia ............................... 46
3.3 DADOS GERAIS DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR
OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733 ............................................ 47
3.3.1 A natureza jurídica da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do
mandado de injunção ............................................................................................................. 47
3.3.1.1 O mandado de injunção................................................................................................ 48
3.3.1.2 A ação direta de inconstitucionalidade por omissão ................................................... 48
3.3.2 Os pedidos formulados no MI 4733 e na ADO 26....................................................... 49
3.3.3 As diversas manifestações e os pontos de vista que exsurgiram dos autos: os
argumentos contrários e favoráveis à procedência dos pedidos ........................................ 51
3.3.3.1 Os argumentos contrários ............................................................................................ 51
3.3.3.2 Os argumentos favoráveis ............................................................................................ 52
3.3.3.3 As posições do Ministério Público Federal .................................................................. 52
3.4 O JULGAMENTO CONJUNTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
POR OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733 .................................... 53
3.4.1 A sessão do dia 13 de fevereiro de 2019: relatórios e sustentações orais .................. 53
3.4.1.1 Os relatórios ................................................................................................................. 53
3.4.1.2 As sustentações orais .................................................................................................... 54
3.4.2 As sessões dos dias 14 e 20 de fevereiro de 2019: o voto do Ministro Celso de Mello
favorável à superação da mora legislativa ........................................................................... 55
3.4.3 A sessão do dia 21 de fevereiro de 2019: votos do relator do Mandado de Injunção
nº 4733, Ministro Luiz Edson Fachin, e dos Ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto
Barroso .................................................................................................................................... 60
3.4.3.1 O voto do Ministro Luiz Edson Fachin, relator do MI 4733: pelo conhecimento do writ
e procedência das ações ........................................................................................................... 60
3.4.3.2 O voto do Ministro Alexandre de Moraes: favorável à procedência das ações .......... 62
3.4.3.3 O voto do Ministro Luís Roberto Barroso: favorável à procedência das ações .......... 63
3.4.4 A sessão do dia 23 de maio de 2019: os votos dos Ministros Rosa Weber e Luiz Fux,
consagrando-se a maioria para a procedência dos pedidos ................................................ 64
3.4.4.1 O voto da Ministra Rosa Weber: favorável à procedência das ações ......................... 64
3.4.4.2 O voto do Ministro Luiz Fux: favorável à procedência das ações ............................... 64
3.4.5 A sessão do dia 13 de junho de 2019: os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo
Lewandoswski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio de Melo e Dias Toffoli e o placar final de
8x3 a favor da criminalização da homofobia ....................................................................... 65
3.4.5.1 O voto da Ministra Cármen Lúcia: favorável à procedência das ações ...................... 65
3.4.5.2 O voto do Ministro Ricardo Lewandowski: pela parcial procedência das ações, a fim
de reconhecer, apenas, a mora legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia
.................................................................................................................................................. 66
3.4.5.3 O voto do Ministro Gilmar Mendes: favorável à procedência das ações .................... 67
3.4.5.4 O voto do Ministro Marco Aurélio Mello: pela improcedência das ações .................. 67
3.4.5.5 O voto do Ministro Dias Toffoli: pela parcial procedência das ações, a fim de
reconhecer, apenas, a mora legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia
.................................................................................................................................................. 68
3.4.6 O resultado do julgamento e a fixação da tese ............................................................ 68
4 A ANÁLISE DA DECISÕES PROFERIDAS, PELO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO Nº
26 E NO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733, QUE CRIMINALIZOU A
HOMOFOBIA, ACERCA DA SUA OBSERVÂNCIA OU NÃO DO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE PENAL ......................................................................................................... 70
4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 70
4.2 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO .................................................................................................................................. 70
4.2.1 A origem contratualista do poder punitivo ................................................................. 70
4.2.2 Origens e fundamentos políticos e jurídicos do princípio da legalidade penal
.................................................................................................................................................. 73
4.2.3 O princípio da legalidade (em sentido lato e estrito) e o Estado Democrático de
Direito ...................................................................................................................................... 76
4.2.4 Conceito e desdobramentos ou corolários do princípio da legalidade penal ........... 78
4.2.4.1 Considerações gerais ................................................................................................... 78
4.2.4.2 Lex stricta ..................................................................................................................... 79
4.2.4.3 Lex scripta .................................................................................................................... 80
4.2.4.4 Lex certa ....................................................................................................................... 81
4.2.4.5 Lex praevia ................................................................................................................... 81
4.3 AS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADO Nº 26 E NO MI Nº
4733 EM FACE DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL ............................................. 82
4.3.1 Aspectos introdutórios .................................................................................................. 82
4.3.2 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de ação direta de
inconstitucionalidade por omissão e de mandado de injunção .......................................... 83
4.3.2.1 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de ações diretas de
inconstitucionalidade por omissão ........................................................................................... 83
4.3.2.2 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de mandado de injunção .......... 85
4.3.3 Hermenêutica da lei penal versus analogia in malam partem .................................... 87
4.3.4 O conceito sociológico-constitucional de “raça” na Lei nº 7.716/1990: o Caso
Ellwanger e o entendimento por ele fixado .......................................................................... 90
4.3.5 Os corolários do princípio da legalidade penal nas decisões em análise .................. 93
4.3.5.1 O corolário da lei estrita nas decisões analisadas ....................................................... 93
4.3.5.2 O corolário da lei escrita nas decisões analisadas ...................................................... 93
4.3.5.3 O corolário da lei certa nas decisões analisadas ......................................................... 94
4.3.5.4 O corolário da lei prévia na decisões analisadas ........................................................ 94
4.3.6 A inexistência de “entraves” à futura criminalização específica da homofobia, pelo
Congresso Nacional, e uma pertinente provocação ............................................................. 95
5 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 98
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 102
11

1 INTRODUÇÃO

No início de 2019, o plenário do Supremo Tribunal Federal procedeu à abertura do


julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26, do Distrito
Federal, e do Mandado de Injunção nº 4733, também do Distrito Federal, ações as quais, pela
intrínseca correlação entre seus méritos, foram analisadas, conjuntamente, ao longo de cinco
sessões que se estenderam de fevereiro a junho desse mesmo ano.
Tanto a ADO 26 quanto o MI 4733 tinham por objetivo que a Suprema Corte
determinasse ao Congresso Nacional a criminalização específica da homofobia, ante a alegada
omissão inconstitucional do Poder Legislativo brasileiro em não ter editado, até o momento, lei
que criminalizasse as condutas de cunho homofóbico. A base jurídica dos pleitos residia: 1) no
mandamento insculpido no inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal, o qual prevê que
a prática do racismo, em seu conceito sociológico, que, conforme a argumentação das partes
autoras, abraçaria a homofobia como uma de suas espécies, constitui crime inafiançável e
imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; 2) subsidiariamente, no que dispõe
o inciso XLI do artigo 5º da Carta Magna, que estabelece que a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; e, 3) no princípio da
proporcionalidade, mais especificamente na sua acepção da proibição de proteção deficiente.
Além disso, pugnavam as referidas ações, em caráter subsidiário, que a citada Corte
Constitucional colmatasse a omissão legislativa existente, conferindo-se interpretação
conforme à Constituição para que às disposições normativas da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de
1989 (Lei do Racismo), subsumissem-se os atos de discriminação contra a população LGBT+.
Ao final do polêmico julgamento, as ações, por maioria, foram conhecidas, bem como,
vencidos os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, concedeu-se
parcial provimento aos pedidos. Logo, a prática de condutas homofóbicas em desfavor da
população LGBT+ passou, agora, a ser considera crime de racismo, considerando o conceito
sociológico-constitucional do termo, devendo as condutas homofóbicas ser enquadradas nos
tipos penais descritos pela Lei nº 7.716/1989.
O veredito do STF instaurou um acalorado debate na seara jurídica acerca do tema,
sobretudo no que diz respeito à sua (in)observância ao princípio da legalidade penal e aos seus
desdobramentos, razão pela qual o tema merece reflexão, especialmente frente à iminência dos
primeiros reflexos do julgamento na práxis forense.
12

Portanto, o problema a ser respondido pela presente pesquisa científica foi assim
formulado: teriam as decisões proferidas, pelo Supremo Tribunal Federal, na ADO 26 e no MI
4733, no sentido de criminalizar a homofobia, respeitado o princípio constitucional da
legalidade penal e os seus desdobramentos?
Com isso, a hipótese a ser demonstrada ou refutada é a de que, na medida em que, por
não criarem um tipo penal e por não lançarem mão de analogia in malam partem, ao enquadrar
a homofobia como um tipo de racismo e, via de consequência, nas condutas descritas na Lei nº
7.716/1989, as decisões proferidas, pelo STF, na ADO 26 e no MI 4733 observam o princípio
da legalidade penal e os seus respectivos corolários.
O objetivo principal da presente monografia, portanto, é o de analisar as decisões
proferidas, pela Suprema Corte, nas já mencionadas ações e demonstrar se essas decisões, ao
conceberem a homofobia como crime de racismo, na acepção sociológica-constitucional do
termo, não deixaram de observar o princípio constitucional da legalidade penal e os seus
desdobramentos.
Mais especificamente, os objetivos a serem alcançados ao longo deste trabalho serão:
1) descrever os principais aspectos das abordagens psicológicas e sociológicas relativas ao
gênero, à heterossexualidade, à homossexualidade e à homofobia e como se desenvolveu, no
curso da história, esse preconceito, bem como demonstrar que a prática de atos de ódio e demais
formas de homofobia contra a população LGBT+ merecem a devida repressão jurídico-penal;
2) analisar o julgamento conjunto da ADO 26 e do MI 4733, pelo STF, descrevendo os votos
proferidos pelos onze ministros da Suprema Corte e expondo os pressupostos sociais e jurídicos
fundantes de suas respectivas decisões; 3) discorrer sobre o princípio constitucional da
legalidade penal em um Estado Democrático de Direito, inclusive sobre as suas origens
históricas, os seus fundamentos políticos e jurídicos, o seu conceito e os seus desdobramentos;
e, 4) demonstrar se o STF, ao proferir suas decisões na ADO 26 e no MI 4733, deixou ou não
de observar o princípio da legalidade penal e seus corolários.
Para a consecução dos objetivos elencados, será adotado, na abordagem, o método
indutivo, visto que o ponto de partida é a análise de um fenômeno específico, isto é, o
julgamento da ADO 26 e do MI 4733, que conduzirá a uma proposição mais geral, qual seja, a
de que se o referido julgado observou ou não o princípio da legalidade penal e seus
desdobramentos.
O método de procedimento preponderante será o descritivo, nos dois primeiros
capítulos e em parte do terceiro, acompanhado do argumentativo em parte do terceiro capítulo.
13

As técnicas empregadas serão a pesquisa bibliográfica e documental, tendo por base a incursão
em fontes bibliográficas, doutrinárias, legislativas, jurisprudenciais, audiovisuais e
documentais.
O marco teórico que orientará a pesquisa será a teoria dos direitos humanos, que
envolve tanto o direito à proteção da liberdade sexual e da dignidade da pessoa humana quanto
a garantia da limitação da criminalização pelo princípio da legalidade penal.
Dividido em três capítulos, o primeiro será destinado à conceituação de homofobia e
à sua necessária repressão jurídico-penal e subdividir-se-á em quatro itens, de modo que tratará
o primeiro das definições gerais acerca do gênero, da sexualidade humana, da orientação sexual
e da identidade de gênero; o segundo, da conceituação da homofobia, em que serão debatidas
a(s) terminologia(s) atinentes a esse preconceito, suas espécies, sua caracterização e suas
consequências, além de suas origens históricas; o terceiro, das causas da homofobia; e o quarto,
por fim, da temática da necessária repressão jurídico-penal da homofobia, em qualquer das
formas de violências que lhe são específicas.
O segundo capítulo, por sua vez, abordará o histórico e controverso julgamento da
ADO 26 e do MI 4377, pelo Supremo Tribunal Federal, e será dividido em três itens, de modo
que o primeiro versará sobre as previsões normativas existentes, assim como sobre a incidência
do princípio da dignidade da pessoa humana no que diz respeito ao dever de se coibir, jurídica
e penalmente, a homofobia, além do andamento de projetos de lei relacionados ao tema perante
o Congresso Nacional. O segundo item será dedicado a um panorama geral das referidas ações
perante a Suprema Corte e discutirá suas naturezas jurídicas, seus dados gerais e as principais
manifestações e pontos de vista que exsurgiram nos autos. O terceiro item conterá a síntese dos
votos de cada um dos onze ministros da referida Corte Constitucional no mencionado
julgamento.
Por fim, o terceiro capítulo terá como propósito uma análise aprofundada acerca das
decisões proferidas, pelo STF, na ADO 26 e no MI 4733, à luz do princípio da legalidade penal
e dos seus desdobramentos. Para esse fim, o capítulo será dividido em dois itens, sendo o
primeiro destinado a traçar uma abordagem histórica e conceitual do princípio da legalidade
penal e dos seus desdobramentos, bem como a destacar a sua distinção em relação ao princípio
da legalidade geral e o seu papel num Estado Democrático de Direito; e o segundo será dedicado
à análise do julgado objeto da presente monografia, por meio da qual se realizará uma
explanação acerca da natureza jurídica das decisões em sede de ação direta de
inconstitucionalidade por omissão e de mandado de injunção, serão tecidas considerações
14

acerca da hermenêutica da lei penal e do conceito sociológico de racismo e, por fim, analisar-
se-á cada um dos corolários da legalidade penal no decisum em apreço.
15

2 A HOMOFOBIA E A SUA NECESSÁRIA REPRESSÃO JÚRIDICO-PENAL

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente capítulo trata da homofobia e da sua necessária repressão jurídico-penal.


Dividido em 4 (quatro) itens, tratará o primeiro das definições gerais acerca do gênero, da
sexualidade humana, da orientação sexual e identidade de gênero; o segundo, da conceituação
da homofobia, o que abrange, em um primeiro momento, a(s) terminologia(s) a respeito, as suas
espécies e a sua caracterização e consequências, e, num segundo, as suas origens históricas,
desde a Antiguidade, passando pelo Medievo, entrando na Modernidade e na Idade
Contemporânea; o terceiro, das causas da homofobia, decorrentes da cultura da hegemonia
masculina, fundada na patologização do comportamento homossexual, na subjugação do papel
do gênero feminino e na contrariedade ao diferencialismo sexual; o quarto, por fim, da
necessária repressão da homofobia, em qualquer das formas de violências que lhe são
específicas.

2.2 DEFINIÇÕES GERAIS ACERCA DE GÊNERO, DE SEXUALIDADE HUMANA E DE


ORIENTAÇÃO SEXUAL

2.2.1 Sexualidade e gênero humano

A sexualidade é um dos aspectos mais complexos e substanciais da condição humana.


Por isso, buscar uma definição objetiva desse termo não é uma tarefa simples. No Ocidente,
afirma Grossi (1998, p. 4), o conceito de sexualidade está tão atrelado ao de gênero que é difícil
ao senso comum, por exemplo, separar essas duas problemáticas. Louro (2008, p. 18)
complementa esse raciocínio argumentando que tanto a sexualidade do indivíduo quanto o seu
gênero se constroem ao longo de sua vida, num processo contínuo e infindável, que se dá por
meio de aprendizagens e práticas inseridas nas mais variadas instâncias culturais e sociais.
Sexualidade e gênero se confundem, portanto, pela característica de sua fluidez, sua
constante mutabilidade. Mas, se esse é o aspecto no qual convergem, como se pode definir o
ponto onde se distanciam – o qual permitiria uma conceituação satisfatória para cada?
Buscando responder esse questionamento, pode-se considerar que a ideia de
sexualidade comporta todos os traços que, numa pessoa, assinalam a sua busca pelo prazer –
16

como os desejos, as experiências sensoriais proporcionadas pelo contato físico e a atração por
outras pessoas –, não mantendo, ao contrário do que comumente se pensa, uma relação de
sinonímia com o ato sexual propriamente dito (MARCONDES, 2018, p. 16). Ainda segundo
Marcondes (2018, p. 16), a sexualidade trata-se de uma característica geral da espécie,
comungada por todo ser humano, e se manifesta particularmente, sendo um dos mais
importantes aspectos de nossa singularidade.
Por sua vez, a palavra “gênero” passou a ser utilizada, inicialmente por pesquisadores
norte-americanos, para designar as origens sociais das identidades subjetivas dos homens e das
mulheres, e firmou-se como uma categoria que não apenas se refere à diferença dos sexos
biológicos (relativos às genitálias humanas), mas sim que serve para dar significado a essa
diferença (SCOTT apud GROSSI, 1998, p. 4-5). O gênero nasceria, então, na relação entre
homens e mulheres, servindo para determinar social, cultural e historicamente a forma como
age qualquer indivíduo, de acordo com o gênero (homem ou mulher) atribuído à sua genitália
(GROSSI, 1998, p. 5).
Intrínseca à conceituação de gênero é, também, a definição dos atributos de
masculinidade e feminilidade, os chamados papéis de gênero. Tudo o que é associado ao sexo
biológico, isto é, à fêmea ou ao macho, em determinada cultura, traduz-se em papel de gênero,
podendo esses papéis variarem de uma cultura para outra; dessa forma, tomando como exemplo
a sociedade Ocidental, a agressividade e a passividade são comportamentos, no geral,
conferidos, respectivamente, ao homem e à mulher, quase como uma determinação biológica
(GROSSI, 1998, p. 6).

A declaração "É uma menina!" ou "É um menino!" [...] começa uma espécie de
"viagem", ou melhor, instala um processo que, supostamente, deve seguir um
determinado rumo ou direção. A afirmativa, mais do que uma descrição, pode ser
compreendida como uma definição ou decisão sobre um corpo. Judith Butler (1993)
argumenta que essa asserção desencadeia todo um processo de "fazer" desse um corpo
feminino ou masculino. Um processo que é baseado nas características físicas que são
vistas como diferenças [genitália, compleição física, timbre da voz...] e às quais se
atribui significados culturais. Afirma-se e reitera-se uma sequência de muitos modos
já consagrada, a sequência sexo-gênero-sexualidade. (LOURO, 2004, p. 15).

Conclui-se, por conseguinte, que para ser homem, segundo a nossa cultura, é preciso,
além de possuir um pênis, performar masculinidade, da mesma forma que, para ser mulher, é
preciso, muito mais do que possuir uma vagina, exercer a feminilidade.
Nota-se que tanto as questões de gênero quanto as relativas ao sexo se sustentam num
indelével binarismo (homem/mulher, masculino/feminino), o qual é fruto de uma zona de
conforto cultural estabelecida pelo heterossexismo como um mecanismo de regulação e
17

controle social, sobretudo pela polarização entre homens e mulheres e uma institucionalização
da heteronormatividade compulsória (CARVALHO, 2012, p. 194).
No entanto, Louro (2004, p. 21) esclarece que:

Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tempo,


paradoxalmente, fornece a pauta para as transgressões. É em referência a ela que se
fazem não apenas os corpos que se conformam às regras de gênero e sexuais, mas
também os corpos que a subvertem.

Consoante essa autora, o grande desafio, hoje, é encarar que as posições se


multiplicaram, de modo que se torna impossível a utilização de esquemas binários para lidar
com as questões atinentes ao gênero e à sexualidade, uma vez que existem sujeitos que transitam
entre os limiares das fronteiras sexuais e/ou de gênero (LOURO, 2008, p. 21).

2.2.2 A identidade de gênero: cisgeneridade e transexualidade

Ainda em sede de definições gerais e, sobretudo, para se compreender a homofobia,


faz-se necessário compreender o que é identidade de gênero e os conceitos que dela derivam: a
cisgeneridade e a transexualidade.
Identidade de gênero alude a uma perspectiva individual de construção de identidade.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a pessoa cuja perspectiva individual do gênero corresponde
ao sexo atribuído ao seu nascimento (sua genitália), é uma pessoa cisgênera (SIMAKAWA,
2012, p. 44), decorrendo daí o entendimento de que cisgeneridade é a correspondência entre a
identidade de gênero autopercebida àquela designada pelo sexo biológico.
A transexualidade, da mesma forma, constitui uma experiência identitária, mas que,
ao contrário da cisgeneridade, caracteriza-se pelo conflito com as normas de gênero impostas
(BENTO, 2008, p. 18); é aquela dos sujeitos que estão nos “limiares das fronteiras de gênero”,
como exposto alhures. Em outras palavras, transexual é a pessoa que reivindica uma identidade
de gênero oposta à informada por sua genitália, revelando uma divergência às normas impostas
pelo heterossexismo e pelas idealizações do que seria o gênero “correto” (aquele consonante
com a genitália) (BENTO, 2008, p. 20 e 22).
18

2.2.3 Orientações sexuais: homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade

De fundamental importância para o enfrentamento do tema em questão é, também,


entender o que é homossexualidade e no que ela difere da heteressexualidade e da
bissexualidade, o que é objeto do presente tópico.
A expressão homossexualidade e o “sujeito” homossexual foram inventados em
meados do século XIX. As relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo, que eram,
até então, encaradas sob a ótica da sodomia – uma atividade pecaminosa e digna de abominação
–, passaram a ser tratadas como a prática que definia uma categoria especial de pessoa, a qual
viria a ser marcada e reconhecida (LOURO, 2004, p. 29).
Com ênfase, Foucault (2015, p. 47-48) discorre:

O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história,


uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma
anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no
fim das contas, escapa à sua sexualidade.

Nesse sentido, a homossexualidade há de ser considerada tão legítima quanto a


heterossexualidade, tendo em vista que nada mais é do que uma variante constante e regular da
própria sexualidade humana (BORRILLO, 2010, p. 14).
Convém destacar que o sujeito não escolhe ser homo ou heterossexual, uma vez que a
orientação sexual é determinada por fatores que não se relacionam à vontade do indivíduo
(PINTO apud MARCONDES, 2018, p 18). A orientação sexual é um aspecto da sexualidade
humana, sendo o conjunto de comportamentos ligados à pulsão ou desejo sexual e como este
se concretiza. Nesse sentido, se a atração sexual é dirigida para pessoas do mesmo sexo, a
orientação é denominada “homossexualidade”; se há inclinação sexual para o sexo oposto,
trata-se de “heterossexualidade”; ainda, se indiferente o sexo do parceiro, configura-se a
“bissexualidade” (BORRILLO, 2010, p. 23).
Tomando como exemplo a distinção, especificamente, entre heterossexualidade e
homossexualidade, no dicionário, o verbete “homossexual” encontra sua definição na “pessoa
que tem afinidade ou pratica atos sexuais com indivíduos do mesmo sexo” (MICHAELIS, 2008,
p. 448), sendo classificado como seu antônimo justamente o vocábulo “heterossexual”, por seu
turno determinado como o “que se refere à afinidade, atração ou comportamento sexual entre
indivíduos de sexo diferente” ou o “indivíduo que tem essa afinidade e comportamento”
(MICHAELIS, 2008, p. 441).
Isso posto, Borrillo (2010, p. 15-16) aponta que,
19

Nos dicionários de sinônimos, nem há registro da palavra "heterossexualidade"; em


compensação, termos tais como androgamia, androfilia, homofilia, inversão,
pederastia, pedofilia, soeratismo, uranismo, androfobia, lesbianismo, safismo e
tribadismo são propostos como equivalentes ao de "homossexualidade”. E se Le Petit
Robert [dicionário consultado pelo autor] considera que um heterossexual é
simplesmente o oposto de um homossexual, este é designado por uma profusão de
vocábulos: gay, homófilo, pederasta, veado, salsinha, michê, boiola, bicha louca, tia,
sandalinha, invertido, sodomita, travesti, lésbica, maria homem, homaça,
hermafrodita, baitola, gilete, sapatão, bissexual. Essa desproporção no plano da
linguagem revela uma operação ideológica que consiste em nomear,
superabundantemente, aquilo que aparece como problemático e deixar implícito o
que, supostamente, é evidente e natural.

A disparidade mencionada no excerto acima serve, sobretudo, como um instrumento


para ordenar um regime de sexualidades em que o padrão heterossexual é o único que merece
qualificação e deve servir como referência para qualquer outra espécie de sexualidade. Destarte,
o sexo biológico (macho/fêmea) determina um desejo sexual único (hétero), que, em
consequência, traduz-se num comportamento social específico (masculino/feminino). Sexismo
e homofobia surgem, nesse contexto, como os alicerces do regime binário das sexualidades. E,
mais ainda, a homofobia se configura como a guardiã das fronteiras tanto sexuais
(hétero/homo), quanto de gênero (masculino/feminino) (BORRILLO, 2010, p. 16).

2.3 CONCEITUAÇÃO E ORIGENS HISTÓRICAS DA HOMOFOBIA

2.3.1 A conceituação de homofobia

2.3.1.1 A terminologia

O termo “homofobia” foi cunhado, pelo psicólogo Kenneth Smith, em 1971, em um


artigo no qual ele pretendia realizar um estudo acerca da personalidade homofóbica. Mais tarde,
George Weinberg apropriou-se desse termo e o conceituou como “o receio de estar com um
homossexual em um espaço fechado e, relativamente aos próprios homossexuais, o ódio por si
mesmo” (WEINBERG apud BORRILLO, 2010, p. 21).
Essa apresentação da hostilidade contra os homossexuais, sempre tangendo uma
dimensão fóbica, suscitou diversas críticas terminológicas por parte de estudiosos do tema, de
modo que “homoerotofobia”, “homossexofobia” e até mesmo “homonegatividade” foram
algumas das alternativas propostas para uma mais adequada abordagem semântica do assunto,
mas a expressão “homofobia” prevaleceu (BORRILLO, 2010, p. 21-22).
20

Não obstante em um primeiro momento o termo homofobia esteja atrelado a um


suposto temor irracional da homossexualidade, bem como à dimensão patológica do sufixo
“fobia”, a problemática nas ciências sociais contemporâneas a analisam [a homofobia] como
uma construção social, a qual é baseada na discriminação e nos estigmas que cercam a
homossexualidade e a transexualidade (RIOS apud CARVALHO, 2012, p. 156).
Por isso, ater-se à(s) terminologia(s) adequada(s) é, naturalmente, como se buscou
evidenciar desde o início deste capítulo, de vital importância para a compreensão do tema em
análise. Nesse sentido, Borrillo (2010, p. 23-24) sugere a existência de algumas subcategorias
da homofobia, sobre as quais é necessário se debruçar separadamente, a fim de que, uma vez
concatenadas em suas particularidades, possam exprimir de forma convincente a complexidade
do todo.

2.3.1.2 Espécies de homofobia

2.3.1.2.1 A homofobia irracional versus a homofobia cognitiva

Logo de início, Borrillo propõe a distinção apontada pelo título do presente tópico,
afirmando que

O termo "homofobia” designa [...] dois aspectos diferentes da mesma realidade: a


dimensão pessoal, de natureza afetiva, que se manifesta pela rejeição dos
homossexuais; e a dimensão cultural, de natureza cognitiva, em que o objeto da
rejeição não é o homossexual enquanto indivíduo, mas a homossexualidade como
fenômeno psicológico e social. (BORRILLO, 2010, p. 22).

Destarte, a aversão, a ojeriza e a repulsa caracterizam a primeira forma de violência


contra gays, lésbicas, transexuais etc., delimitando o espectro de uma homofobia irracional.
Nesse campo, está-se diante de uma verdadeira manifestação emotiva, que beira à fobia em seu
sentido literal e se equipara ao sentimento de apreensão que algumas pessoas experimentam,
por exemplo, ao se depararem com espaços fechados (claustrofobia) ou com certas espécies de
animais (zoofobia). Trata-se, acima de tudo, de uma demonstração brutal de hostilidade
(BORRILLO, 2010, p. 24).
A homofobia cognitiva, por outro lado, serve para perpetuar a diferença
homo/heterossexual e assume contornos menos grosseiros, sem, no entanto, deixar de lado a
vertente insidiosa de tal preconceito. Possui um cunho social (cognitivo), em detrimento do
caráter psicológico que assume a homofobia irracional, e preconiza uma “forma civilizada da
21

clemência dos ortodoxos em relação com os heréticos” (BORRILLO, 2010, p. 24). Conforme
discorre esse autor (2010, p. 24), sob o prisma eufemístico da homofobia cognitiva, a sociedade
não rejeita, de plano, os homotransexuais, entretanto ninguém se choca com o fato de que eles
não partilhem dos mesmos direitos conferidos aos heterossexuais cisgêneros, chegando até
mesmo a desencorajar essa almejada igualdade.

2.3.1.2.2 A homofobia geral versus a homofobia específica

Essa segunda diferenciação busca enfatizar que a homofobia não revela a hostilidade
apenas contra os indivíduos homossexuais, mas, igualmente, contra aqueles que não se
conformam à norma sexual, imposta pelo heterossexismo (BORRILLO, 2010, p. 26).

O heterossexismo [...] é a discriminação e a opressão baseadas em uma distinção feita


a propósito da orientação sexual. O heterossexismo é a promoção incessante, pelas
instituições e/ou indivíduos, da superioridade da heterossexualidade e da
subordinação simulada da homossexualidade. (WELZER-LANG, 2001, p. 467-468).

O sociólogo Daniel Welzer-Lang, a propósito, foi um dos primeiros a ampliar a noção


de homofobia e a generalizar como uma forma de combate às atitudes opostas a papéis
sociossexuais pré-estabelecidos (BORRILLO, 2010, p. 26). Para Welzer-Lang (2001, p. 465),
a homofobia seria, então, a discriminação contra as pessoas que demostram, ou às quais se
atribui, qualidades (ou defeitos) associados ao gênero oposto àquele socialmente imposto: um
verdadeiro instrumento da vigilância de gênero, que engessa as fronteiras e os limiares onde
alguns sujeitos – os desviantes da norma – se arriscam e são punidos por isso.

É assim que a homofobia geral permite denunciar os desvios e deslizes do [papel de


gênero] masculino em direção ao [papel de gênero] feminino e vice-versa, de tal modo
que se opera uma reatualização constante nos indivíduos ao lembrar-lhes sua filiação
ao "gênero correto”. Segundo parece, qualquer suspeita de homossexualidade é
sentida como uma traição suscetível de questionar a identidade mais profunda do ser.
[...] quando se trata alguém como homossexual (homem ou mulher), denuncia-se sua
condição de traidor(a) e desertor(a) do gênero ao qual ele ou ela pertence
"naturalmente”. (BORRILLO, 2010, p. 27).

Assimilar o enfoque geral da homofobia não é uma tarefa de todo complexa, diferente
do que se observa ao versar acerca da(s) homofobia(s) específica(s). Ao contrário daquela, esta
diz respeito à forma de intolerância que atinge, especialmente, os gays, as lésbicas, os
bissexuais, os travestis, os transsexuais... enfim, todos os segmentos desviantes à sexualidade
padrão. Alguns autores, inclusive, reportaram-se às expressões “gayfobia”, “lesbofobia”,
“bifobia” e “transfobia” a fim de descrever esses aspectos do fenômeno homofobia de maneira
22

particularizada. Nesse sentido, a lesbofobia, a título exemplificativo, assumiria contornos


próprios, uma vez que a mulher homossexual enfrenta uma violência específica, definida pelo
duplo desdém que experimenta em razão não só de sua orientação sexual, mas também de seu
gênero (BORRILLO, 2010, p. 27). A gayfobia, da mesma maneira, apresentaria suas próprias
características e peculiaridades, assim como a bifobia, a transfobia e, mais além, a
“travestifobia”, entre tantas outras expressões a designar as mais distintas frações do
preconceito contra os indivíduos de sexualidades desviantes.
A homofobia específica nada mais é que os elementos caracterizantes de cada espécie
de hostilidade sofrida pelos grupos que não se identificam com a heterossexualidade e a
cisgeneridade, pois, em uma verificação mais restritiva, essas hostilidades manifestam-se de
modos desiguais entre os referidos grupos.
Cabe destacar, a fim de se evitar equívocos interpretativos, que, ao longo da presente
monografia, utilizar-se-á a nomenclatura “homofobia” em sua acepção geral, isto é,
compreendendo todas as formas de homofobias específicas. Essa explicação é necessária
porquanto, a priori, o termo homofobia poderia transmitir a ideia de um preconceito voltado,
apenas, aos homossexuais. No entanto, como já destacado, a homofobia, em sua faceta
fenomenológica, é muito mais abrangente, de modo que, quando necessário se tratar de uma
das formas específicas de violência homofóbica contra determinados grupos (homens gays,
lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais etc.) eles serão devidamente identificados.

2.3.1.3 Caracterização e consequências da homofobia

Em face do exposto no tópico anterior, sobretudo o que diz respeito à conceituação da


homofobia geral, Borrillo (2010, p. 34) sintetiza assim a caracterização e as consequências da
homofobia:

A homofobia pode ser definida como a hostilidade geral, psicológica e social contra
aquelas e aqueles que, supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com
indivíduos de seu próprio sexo. Forma específica do sexismo, a homofobia rejeita,
igualmente, todos aqueles que não se conformam com o papel predeterminado para
seu sexo biológico. Construção ideológica que consiste na promoção constante de
uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra (homo), a homofobia
organiza uma hierarquização das sexualidades e, dessa postura, extrai consequências
políticas. (BORRILLO, 2010, p. 34).

Logo, é inconcebível levar em conta a homofobia sem reputar-se à ordem sexual a


partir da qual as relações sociais entre sexos e sexualidades são estruturadas. A própria origem
da justificativa social dos papéis de gênero (masculino e feminino), que os considera inerentes
23

ao homem e à mulher, respectivamente, determina uma diretriz que subordina o feminino como
complementar ao masculino – e complementar somente. É a égide do sexismo, ideologia
responsável pela naturalização da ordem entre os sexos, caracterizando o masculino por sua
vinculação às esferas social e política, enquanto ao feminino confia a intimidade e tudo que
alude à vida doméstica (BORRILLO, 2010, p. 30). O heterossexismo está para a homofobia
como o sexismo está para a misoginia e, adotando a ressalva de que esses conceitos são distintos
entre si, um não pode ser concebido sem o outro, visto que o heterossexismo pressupõe a
divergência basilar entre homo/hetero, conferindo a este último grupo um tratamento
preferencial, tal qual o masculino (homem) em detrimento do feminino (mulher) (BORRILLO,
2010, p. 34).
E quais são as consequências desse tratamento preferencial? Ora, toda forma de
preferência conduz a um sistemático mecanismo de exclusão.

Enquanto violência global caracterizada pela supervalorização de uns e pelo


menosprezo de outros, a homofobia baseia-se na mesma lógica utilizada por outras
formas de inferiorização: tratando-se da ideologia racista, classista ou antissemita, o
objetivo perseguido consiste sempre em desumanizar o outro, em torná-lo
inexoravelmente diferente. À semelhança de qualquer outra forma de intolerância, a
homofobia articula-se em torno de emoções (crenças, preconceitos, convicções,
fantasmas...), de condutas (atos, práticas, procedimentos, leis...) e de um dispositivo
ideológico (teorias, mitos, doutrinas, argumentos de autoridade...). (BORRILLO,
2010, p. 34-35).
Os homossexuais (leia-se os indivíduos que performam uma sexualidade desviante à
heterossexual cisgênera) são vistos como uma ameaça à coesão moral da sociedade em
decorrência de suas “práticas bizarras” e, até mesmo quando a hostilidade é superada, não se
deixa de adotar um tom paternalista, o qual busca submeter os homossexuais à vigilância
protetora que, no passado, destinava-se às mulheres e, atualmente, ainda pode ser observada em
relação às crianças ou portadores de deficiências físicas, enfatizando a ideia equivocada de uma
“deficiência estrutural” presente nos sujeitos dessas classes dominadas. Essa “deficiência” pode
ser identificada como a cor da pele, a ausência de pênis, determinados traços psicológicos, ou,
no caso dos homossexuais, a sua sexualidade e/ou identidade de gênero (BORRILLO, 2010, p.
36).
Para Borrillo (2010, p. 37), “o conjunto das categorias evocadas constitui uma forma
de poder gerador de desigualdades: tratando-se das categorias de raça, classe ou gênero e
sexualidade, todas elas têm o objetivo de organizar [...] a divergência ao naturalizá-la”.
Cumpre destacar que, da mesma forma que existem similitudes entre as diversas
formas de intolerância, faz-se necessário apontar, também, algumas diferenças. A primeira
24

delas é que, ao contrário de outras formas de violência e hostilidade, a homofobia visa,


sobretudo, indivíduos isolados. O homossexual sofre sozinho e é, por isso, mais facilmente
vítima de uma aversão em dobro: aquela que a sociedade inflige e aquela interiorizada, que
afeta sua percepção sobre si mesmo.

2.3.2 As origens históricas da homofobia

Há certo risco em se traçar um panorama histórico que busque evidenciar as raízes da


homofobia tal qual a sua acepção hodierna, isso porque as chances de se incorrer em
anacronismos é bastante considerável. No entanto, apesar dessa dificuldade, acredita-se ser de
fundamental importância destacar, a seguir, alguns elementos históricos que permitem
vislumbrar a forma como eram recepcionadas, pela sociedade, as práticas homossexuais em três
recortes específicos de tempo: na Grécia e Roma antigas, na Idade Média e no período posterior
ao denominado “século das luzes”, dando ênfase ao território brasileiro.

2.3.2.1 A homossexualidade na Grécia e na Roma antigas: da pederastia aos deveres de


cidadão

Conforme aponta Cerqueira (2011, p. 84-85), na Antiguidade, o tema da sexualidade


em geral, mais especificamente o homoerotismo, causa estranhamentos. Para os gregos e
romanos, o próprio termo homossexualidade estaria completamente desprovido de significado,
assim como a problematização do assunto aqui em apreço (BORRILLO, 2010, p. 43).

Ora, se a gente tem hoje esta ideologia heteronormativa, que podemos muito bem
caracterizar, construída no ocidente, no século XIX, a gente tinha na Antiguidade, por
outro lado, uma outra sexualidade, e esta não era heteronormativa. Porém, mesmo não
sendo heteronormativa, existiu também na Antiguidade uma ideologia, uma
normativa sexual. (CERQUEIRA, 2011, p. 84).

Nesse contexto, tem-se, na Grécia, a figura da pederastia. Encarada como o amor do


homem mais velho pelo rapaz mais novo, a pederastia fazia parte da construção social da
masculinidade (CERQUEIRA, 2011, p. 89). Para esse autor (2011, p. 92), as relações
homoafetivas calcadas na assimetria geracional (diferença significativa de idades que
pressupunham um homem adulto e outro jovem), bem como no caráter provisório (as práticas
tinham de cessar partir do momento em que o jovem “iniciado” adentrava a vida adulta),
25

constituíam, então, uma espécie de aprendizado inerente ao próprio estabelecimento do


indivíduo na vida social.
Por óbvio, o modelo pederástico, isto é, aquele socialmente aceito, não era a única
forma de “homossexualidade” que se manifestava no seio da civilização grega. Pelo contrário,
o espectro da sexualidade sempre foi bastante amplo, de modo que se torna reducionista analisá-
lo a partir de uma só perspectiva. Seguindo esse raciocínio, a efeminação, na Antiguidade, era
“algo condenado aos homens adultos livres” (CERQUEIRA, 2011, p. 97), uma vez que a
virilidade era um dos valores basilares na estrutura social então vigente. Isso não significa que
não existissem indivíduos que se encaixassem no perfil “efeminado”. Assim,

[...] desde o Egito Antigo, como mostra o exemplo do casal de manicures do Antigo
Império, por mais que a sociedade possa construir e impor um discurso
heteronormativo hegemônico, esta mesma sociedade permite espaços de fuga, de
escape, em que os desvios a esta norma são permitidos. Dos manicures do Egito antigo
aos cabeleireiros de hoje, parece-me que há algo quase estrutural [...] que define que
profissões tais como cabeleireiros, manicures, maquiadores, estilistas, artistas, são
espaços no mundo do trabalho reservados aos homossexuais – homossexuais com
atitude afetada estereotipada! –, espaços em que certa efeminação é sempre tolerada
e, por vezes, até presumida. É como se ali fosse criado um nicho em que é permitido
que um homem ou uma mulher tenham uma conduta que fira a regra geral que
determina a virilidade (macheza) ao homem, e a feminilidade (delicadeza) à mulher.
(CERQUEIRA, 2011, p. 97).

No caso da Grécia antiga, o “nicho” mencionado por esse autor era o dos atores, pois,
não bastasse os homens terem de representar os papéis femininos por meio do uso de máscaras
– o que por si só já era considerado um desconforto –, o imaginário popular firmava a ideia de
que era geralmente entre os intérpretes que a virilidade era mais facilmente flexibilizada
(CERQUEIRA, 2011, p. 97-98). A fim de provar seu ponto de vista, Cerqueira (2011, p. 98)
faz referência ao ator grego Agaton, premiado no concurso trágico das Dionisíacas, o qual,
apesar do imenso prestígio do qual gozava, era constantemente alvo de zombaria e escárnio,
sobretudo por parte do comediógrafo Aristófanes, por conta de suas características afeminadas
(tais como fazer a barba, usar vestes transparentes, maquiar-se, gesticular e caminhar com
afetação).
A respeito das práticas homossexuais na Grécia antiga, complementa Borrillo (2010,
p. 46):

Paralelamente à pederastia, existiam práticas homossexuais entre adultos que


correspondiam a uma necessidade, de preferência, do tipo militar: em vários Estados
gregos, o amante e o amado eram posicionados lado a lado no campo de batalha, para
que essa proximidade lhes inspirasse um comportamento heroico. Convém, todavia,
sublinhar que a pederastia era extremamente regulamentada; assim, aqueles que
mantinham práticas homossexuais exclusivas constituíam uma minoria não aceita.
26

Por sua vez, na Roma Clássica, as relações homossexuais eram toleradas sob três
condições: 1) que não afastassem o cidadão de seus deveres para com a sociedade; 2) que não
se utilizassem pessoas de estrato inferior como objeto de prazer; e, 3) que se evitasse, em
absoluto, assumir o papel passivo com os subordinados. Em verdade, apenas a bissexualidade
ativa era tolerada em Roma, visto que a aspiração mais nobre de um cidadão romano deveria
ser casar-se e se tornar o pater familias (BORRILLO, 2010, p. 46).
Ressalta-se que não há relatos de agressões propriamente homofóbicas na Antiguidade
(CERQUEIRA, 2011, p. 87), pois, muito embora as sociedades grega e romana sejam marcadas
pelo acentuado sexismo e misoginia, afastam-se, e muito, do peculiar heterossexismo erigido
pela tradição judaico-cristã, pois é certo que, embora não seja possível delimitar um recorte
temporal para a origem do que hoje se conhece por homofobia, é certo que elementos
precursores da hostilidade contra lésbicas e gays emanam dali (BORRILLO, 2010, p. 43 e 46).

2.3.2.2 A homossexualidade na Idade Média: a ideia de abominação construída a partir da


tradição judaico-cristã

Se, por um lado, na Roma Clássica, a homossexualidade não era de todo desencorajada
(desde que respeitado o limite da não passividade, conforme mencionado no tópico anterior),
após a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano, as coisas começaram
a mudar. Tal mudança é devida ao fato de que a Bíblia Sagrada, cânone máximo do cristianismo,
em livros como “Gênesis”, “Levítico”, “Isaías”, “Jeremias” e “Ezequiel”, aborda diferentes
vertentes de um mesmo fenômeno: a naturalização das relações heterossexuais monogâmicas
e, em última instância, seu suposto alinhamento com a vontade divina (COELHO, 2015, p.
163).
Por conseguinte,

A ideologia disseminada no Império Romano, cujo cerne repousava sobre a tradição


judaico-cristã, pode ser considerada uma das mais repressoras da homossexualidade.
Imbuídos dos ideais cristãos, imperadores como Teodósio I (347-395) e Teodósio II
(401- 450) prescreveram severos códigos apoiados em textos bíblicos que concebem
a heterossexualidade monogâmica como o suprassumo da moralidade e a expressão
da lei natural. À luz das santas letras, Teodósio I, no ano de 390, decreta que os
homossexuais passivos deveriam ser condenados à morte por meio das ignominiosas
fogueiras. Anos mais tarde, Teodósio II – mais precisamente em 438 –, nove anos
após a anunciação ao senado de Constantinopla do projeto de formação de um comitê
designado à formulação das diretrizes do império, outorga a publicação do
denominado Código Teodosiano. (COELHO, 2015, p. 164).
27

No que tange à condenação da homossexualidade, esse código prescrevia severas


punições aos homens que tinham “tendências” à feminilidade e à passividade, porquanto, em
uma sociedade que se baseava nos ideais patriarcais como a romana, o ato sexual entre os
indivíduos masculinos era encarado como uma ameaça à instituição do pater famílias. Por sua
vez, os subsídios teóricos aos quais recorreram as autoridades romanas para justificar essa
intolerância foram justamente as Sagradas Escrituras (COELHO, 2015, p. 165).
Consoante Borrillo (2010, p. 48-49), a Bíblia Sagrada garante esse poderoso substrato
ideológico, isso porque

[...] o Antigo Testamento fornecerá as narrativas de Sodoma e Gomorra; o Novo


Testamento, pelo viés das epístolas paulinas, vai permitir a renovação da inveterada
hostilidade contra os homossexuais. Com efeito, a história terrificante de Sodoma no
livro do Gênesis (cf. capítulos 18,20 e 19), assim como as prescrições lapidares do
Levítico, constitui a prova incontestável do ódio manifestado na Bíblia contra os
homossexuais masculinos e femininos. Sem sombra de dúvida, Sodoma, cidade
situada no sul do Mar Morto, e Gomorra permaneceram célebres como arquétipos de
comunidades dominadas pelo pecado: menosprezo pelas regras da hospitalidade,
orgulho e, sobretudo, homossexualidade são as características de seus habitantes, que
foram aniquilados por enxofre, sal e cinzas, em uma terra completamente queimada.

Também o “Levítico” é paradigmático, uma vez que estatui os atos homossexuais


masculinos como “abominação”, e estabelece, como punição a eles, a pena de morte. Esse
posicionamento tenaz das Escrituras enfatiza sua postura prescritiva e moralista, muito além do
domínio, apenas, dos comportamentos, mas, também, sob a ótica do julgamento (COELHO,
2015, p. 166-167), e foi amplamente adotado nos anos incipientes do cristianismo do Império
Romano.
Durante a Idade Média, ficou a cargo da Patrística perpetuar e cimentar, de vez, o
entendimento hostil adotado pela Igreja Católica contra a homossexualidade.
Patrística foi a denominação conferida ao pensamento filosófico-religioso que marcou
os primeiros sete séculos do cristianismo, período no qual os padres católicos sistematizaram a
doutrina cristã (BOHNEN; GILSON apud COELHO, 2015, p. 172-173). Agostinho de Hipona,
filósofo, bispo e, mais tarde, santo da Igreja, foi um dos expoentes dessa corrente do
pensamento filosófico-religioso e, em sua célebre obra intitulada “Confissões”, descreveu a
sodomia como uma afronta à natureza humana, cujas bases haviam sido estabelecidas por Deus
no momento da criação.

Nas palavras de Santo Agostinho: “[...] as devassidões contrárias à natureza, sempre


e em toda a parte se devem detestar e punir, como o foram os pecados de Sodoma”
(AGOSTINHO, 1977, p. 79). Ademais, sendo Deus o autor da vida e Aquele que
instaura a moralidade e os costumes considerados adequados, qualquer inobservância
e/ou transgressão dos preceitos divinos é um ultraje ao próprio autor da vida. Como
28

evidencia o filósofo: “Ainda que todos os povos os cometessem, cairiam na mesma


culpabilidade de pecado, segundo a lei de Deus que não fez os homens para assim
usarem dele” (AGOSTINHO, 1977, p. 79). A homossexualidade, além de concebida
como algo extra vas natura, engendrava em quem a praticava certa culpabilidade
considerada pelos teólogos digna das penas eternas. (COELHO, 2015, p. 173-174).

É no pensamento da Escolástica, porém, que a tradição homofóbica da Igreja encontra


seus mais importantes alicerces, mais especificamente na pessoa de São Tomás de Aquino
(BORRILLO, 2010, p. 53). Esse filósofo postulava que existiam sete pecados de natureza
luxuriosa, sendo eles o estupro, a fornicação, o incesto, o adultério, o sacrilégio, o rapto e, por
fim, o contra natura (CARRASCO apud COELHO, 2015, p. 174). O pecado contra natura
subdividia-se em mais quatro vertentes – a masturbação, o conúbio desordenado, a bestialidade
e a sodomia (MORA apud COELHO, 2015, p. 174) – e, a fim de dar ênfase ao caráter abjeto
que assumiam as profanações contra a natureza divina, São Tomás de Aquino debruçou-se, com
maior atenção, sobre a sodomia em sua “Suma Teleológica”.
Essa obra apregoa que o prazer sexual é legítimo, desde que não acompanhado de um
ato que impeça a reprodução, que seria o fim primordial do ato sexual em si. Fazendo tal
afirmação, Tomás de Aquino constrói uma norma que modelou a ideologia sexual no ocidente:
o coito heterossexual conjugal e a submissão da mulher; ademais, dá forma à homofobia na
medida em que compara as práticas homossexuais a toda sorte dos pecados mais ignóbeis, como
o bestialismo e até mesmo a ingestão de imundícies (BORRILLO, 2010, p. 53).
Borrillo (2010, p. 54) consigna, ainda:

A grande peste negra de 1348-1350 – que dizimou mais de um terço da população


europeia – reanimará a velha hostilidade anti-homossexual. [...] haverá quem
considere a sodomia uma ameaça direta ao repovoamento; a partir desse momento,
sobretudo, é que se instalou uma verdadeira caça aos sodomitas, de modo que centenas
de homossexuais acabaram na fogueira. [...] até o final do século XVIII, todas as
disposições penais, sem exceção, fazem referência ao mito de Sodoma para justificar
a punição de gays e lésbicas.

O poder régio, assentado no espírito dos cânones, de igual modo, não tardou a instaurar
um brutal sistema de repressão contra os sodomitas, aqui entendidos como os indivíduos
homossexuais (BORRILLO, 2010, p. 54). Destarte, conclui-se que o cristianismo, ao promover
o recrudescimento da hostilidade da Lei Judaica, situou os atos homossexuais, bem como
aqueles que os praticam, como avessos à salvação e até mesmo à ordem natural e, ao assim o
fazer, promoveu a desumanização desse grupo. Em outras palavras, o cristianismo triunfante
consolidou a marginalização quase que perpétua dos homossexuais frente à configuração social
heterossexista (BORRILLO, 2010, p. 43-44).
29

2.3.2.3 Do “século das luzes” até a contemporaneidade: uma breve perspectiva sobre as raízes
da tradição homofóbica judaico-cristã no Brasil e no Ocidente

Pode-se dizer que foram tantos séculos de repressão a incutir um costume de aversão
à homossexualidade, que, até mesmo após o denominado “século das luzes”, conforme exposto
por Borrillo (2010, p. 55), mais precisamente em 10 de outubro de 1783, ocorreu, na França
(país de origem desse autor e delimitação geográfica de seus estudos), a última condenação de
um homossexual à pena capital, o qual foi identificado como Jacques François Pascal e foi
lançado à fogueira ao ser rotulado como um devasso contra a natureza.
Anos depois, a Revolução Francesa pôs fim às condenações por sodomia, tendo em
vista que, com o advento da liberdade individual como um valor fundamental do ser humano –
aliás, um dos ideais sustentados por esse movimento histórico –, não havia mais espaço para as
ingerências do Estado na vida privada de seus cidadãos. Porém, essa tolerância, desde cedo,
assumiu contornos precários. Tanto o Código Penal Francês de 1971 quanto o de 1810 deixaram
de incriminar os ditos “costumes contra a natureza”, mas, nem por isso, a jurisprudência
abandonou o seu caráter repressivo contra as práticas homossexuais, amparada por um aparato
médico-psiquiátrico deveras coercitivo (BORRILLO, 2010, p. 55).
Ainda seguindo a linha de raciocínio de Borrillo (2010, p. 56), o direito
consuetudinário, a propósito, fez com que, em países como os Estados Unidos, as disposições
bíblicas do Levítico fossem adotadas literalmente:

Em 1786, a Pensilvânia tornou -se o primeiro Estado a aplicar a pena de morte para
os sodomitas; a última execução ocorreu na Carolina do Sul, em 1873. Atualmente,
um terço dos Estados norte-americanos continuam considerando as relações entre
homens como um delito, e, em uma decisão de 1986, a Suprema Corte dos EUA
julgava que a condenação da sodomia não estava em contradição com a Constituição
estadunidense, já que ela está enraizada nas normas morais e éticas da tradição
judaico-cristã.

No Brasil, o processo não destoou do acima exposto. Como é sabido, Portugal, durante
a colonização, transplantou para a colônia os sistemas jurídico, político e cultural da metrópole.
Foi assim que teve início a história da criminalização das relações homossexuais no território
brasileiro, mormente devido à punição do pecado-crime da sodomia (BELINI; TREVISAN
apud PRETES; VIANA, 2008, p. 331).

Ao desembarcarem em terras brasileiras, os europeus trouxeram consigo o


preconceito contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, e ficaram
espantados ao descobrir que na colónia já se praticava o "pecado" da sodomia, espanto
30

este compreensível visto que muitos àquela época acreditavam que a sodomia era um
'vício italiano'. (PRETES; VIANA, 2008, p. 331).

Nesse cenário, as relações sexuais consideradas como contrárias à natureza foram


tratadas com aversão pelo Estado português, visto que, com base na teologia cristã, seriam as
causadoras de toda sorte de males, tais como terremotos, enchentes e outras catástrofes naturais
inclusive (VAINFAS apud PRETES; VIANA, 2008, p. 334). Não é de espantar, então, que as
Ordenações Afonsinas, já no século XIII, previssem a pena de morte para esse tipo de
“atrocidade” (PRETES; VIANA, 2008, p. 334).

Assim como em Portugal, a punição da sodomia no Brasil pertenceu a três jurisdições


simultaneamente. À jurisdição secular (DEL PRIORE, p. 119-120), representada
pelas Ordenações portuguesas, à jurisdição eclesiástica, e à jurisdição do Tribunal do
Santo Ofício da Inquisição. Apesar de a colónia não ter possuído uma sede do Tribunal
Inquisitorial, o Santo Ofício se fez presente no além-mar através das Visitações
Inquisitoriais, e alguns bispos exerceram funções tipicamente do Tribunal. (PRETES;
VIANA, 2008, p. 336).

Entre as ordenações que vigoraram no país (Afonsinas, desde 1446; Manuelinas, desde
1512; e Filipinas, desde 1603), estas últimas foram as mais importantes no tocante à
criminalização da sodomia no âmbito da jurisdição secular. Tendo sua vigência perdurado por
mais de duzentos anos, mesmo após a Independência, em 1822, acabaram elas [as Ordenações
Filipinas] sendo recepcionadas pela Constituição do Império (TREVISAN apud PRETES;
VIANA, 2008, p. 342-343).
Apesar disso, foi com a promulgação do Código Criminal de 1830 que a situação
tomou novos rumos: como, na Europa, os resquícios do movimento iluminista faziam proliferar
o discurso científico de que não cabia à lei punir relações sexuais entre indivíduos do mesmo
sexo – conforme mencionado anteriormente –, o Brasil seguiu à risca esse exemplo, deixando
de incluir o delito de sodomia em sua legislação criminal (TREVISAN apud PRETES; VIANA,
2008, p. 348). A não inclusão de um tipo penal taxativo, contudo, não significou a libertação
dos preconceitos morais referentes à homossexualidade nem no Brasil nem nos demais Estados
europeus (GREEN; FRY apud PRETES; VIANA, 2008, p. 348), porquanto a sombra do
pensamento teológico ainda exercia demasiada influência na conjuntura política das nações
ocidentais – e assim perdurou por um considerável período de tempo.
Por sinal, no que se refere ao posicionamento da Igreja Católica sobre a
homossexualidade, ainda nos dias de hoje, essa instituição assume um caráter de animosidade,
embora mais comedido do que fora no passado e travestido numa espécie de tolerância
compassiva.
31

[…] assim como a condenação inapelável de qualquer política tendente a banalizar a


homossexualidade, articula o discurso da autoridade eclesiástica do Vaticano [acerca
da homossexualidade]: "Um número não negligenciável de homens e mulheres
apresentam tendências homossexuais profundamente enraizadas", constata o esmo
Catecismo. "Eles não escolhem sua condição homossexual; ela constitui, para a
maioria, uma provação. (BORRILLO, 2010, p. 58).

O catolicismo da atualidade apregoa que os homossexuais devem ser acolhidos com


respeito e compaixão. Contudo, apesar da mudança de tom, o discurso disseminado ainda é
indiscutivelmente homofóbico, pois, ao serem acolhidos pelos braços afáveis dos fiéis, os
homossexuais deverão buscar a cura para o seu desvio de conduta contrário à ordem divina ou,
na pior das hipóteses, deverão assumir uma postura de abstinência em relação às práticas
pecaminosas (BORRILLO, 2010, p. 59).
Ou seja,

[...] segundo a Igreja, se é possível pressupor que


os atos homossexuais consentidos não prejudicam a pessoa, comete-se um profundo
equívoco, porque eles são contrários a algo muito mais precioso que a liberdade de
outrem, a saber: tais atos opõem-se à ordem natural dos sexos e das sexualidades,
assim como à vontade divina, que, ao criar-nos homens e mulheres, atribuiu uma
posição preeminente, no âmago dessa ordem, à heterossexualidade (BORRILLO,
2010, p. 61).

A partir do exemplo da Igreja Católica, pode-se traçar um panorama sincrético que


permite entender o funcionamento dessa homofobia latente que percorre os estratos da
sociedade ocidental. Nesse contexto, na contemporaneidade, é paradigmático, também, o
surgimento da síndrome da imunodeficiência adquirida (da sigla, em inglês, AIDS), no início
dos anos 1980. Encarada, de início, como o “câncer gay”, a AIDS teve o efeito imediato de
intensificar a discriminação contra os indivíduos que não se encaixavam à normativa
heterossexual predominante. Posteriormente, todavia, essa doença apresentou um impacto à
primeira vista “positivo”, porquanto provocou a criação das chamadas “redes de solidariedade”,
as quais formaram alianças não necessariamente fundadas na identidade, mas sim num
sentimento de afinidade que comove os familiares e amigos da pessoa infectada, bem como os
profissionais da área da saúde e, por que não dizer, boa parte da população em geral (LOURO,
2004, p. 35).
Os homossexuais, em especial os homens gays, foram profundamente estigmatizados
como o “grupo de risco” da AIDS e, por mais que as redes de solidariedade tenham servido ao
propósito de oferecer o apoio necessário às pessoas portadoras dessa doença, não se pode
32

olvidar que, por outro lado, fomentaram o tom paternalista assumido por uma homofobia mais
ponderada – já mencionada, a propósito, no decorrer deste capítulo.
Por fim, acerca dos demais aspectos hodiernos da homofobia, acredita-se ser
dispensável maiores aprofundamentos no presente subitem, dado que o objetivo máxime deste
capítulo é, justamente, oferecer uma perspectiva mais abrangente sobre suas causas,
fundamentos e formas de exteriorização.

2.4 AS CAUSAS DA HOMOFOBIA: A CULTURA DA HEGEMONIA MASCULINA


FUNDADA NA PATOLOGIZAÇÃO DO COMPORTAMENTO HOMESSEXUAL, NA
SUBJUGAÇÃO DO FEMININO E NA CONTRARIEDADE AO DIFERENCIALISMO
SEXUAL

2.4.1 A patologização do comportamento homossexual

Em sua obra “A História da Sexualidade”, sobretudo no seu primeiro volume, “A


Vontade de Saber”, Foucault (2015, p. 13) apregoa que a repressão à sexualidade está, de
maneira intrínseca, conectada a mecanismos de poder e controle, tanto que afirmar o contrário,
para esse autor, é o mesmo que enunciar um paradoxo. Foucault (2015, p. 112) ainda reforça
que, nas relações de poder, embora a sexualidade não seja o elemento mais rígido, certamente
é o estratagema mais instrumental de todos, podendo servir de articulação às mais variadas
estratégias.
O escopo desse trabalho de Foucault (2015) é justamente o de demonstrar como se deu
a transformação do sexo em discurso ao longo dos séculos XVII e XVIII, evidenciando como
essa “incitação aos discursos” infiltrou-se nas mais diversas esferas da vida social – na privada,
na pública, na política, além de áreas como a da medicina, da psiquiatria etc. Isso, é claro, não
significa que o sexo tenha sido normalizado. O discurso, na verdade, transformou-o em um
grande segredo, sobre o qual muito se fala e pouco se admite que fala. Em outras palavras,
criou-se um verdadeiro regime de vigilância das sexualidades.
Hoje, tal como no período analisado por Foucault, a sexualidade continua recebendo
atenção privilegiada e sendo controlada pelas sociedades. Cada vez mais, ampliam-se e
diversificam-se as formas de regulação e as instâncias e instituições que detêm capacidade para
ditar normas à sexualidade. Isto é, continua-se a produzir um “saber sobre o prazer” que traduz
33

o “prazer sobre o saber”, e a autoridade que este último supostamente confere (FOUCAULT
apud LOURO, 2008, p. 21).
Nessa toada, seria possível distinguir quatro conjuntos estratégicos que permitem
estabelecer conexões específicas acerca da relação poder/saber através do sexo (FOUCAULT,
2015, p. 113).
De início, tem-se a histerização do corpo da mulher, que se refere ao processo pelo

qual esse corpo foi considerado como integralmente saturado de sexualidade, passando a ocupar

um nicho dentro do espaço familiar (do qual, aliás, é elemento substancial), em que assume

uma responsabilidade biológica e moral: a de ser – e nada mais que isso – mãe (FOUCAULT,

2015, p. 113).

Em seguida, Foucault (2015, p. 113-114) trata da pedagogização do sexo da criança.


Tendo em vista que as crianças se dedicam ou são suscetíveis à prática de uma atividade sexual
– a masturbação –, e que essa conduta indevida (ao mesmo tempo natural e contrária à natureza)
traz consigo perigos físicos e morais, positivou-se a necessidade de todos encarregarem-se de
vigiá-las com o objetivo de neutralizar ao máximo os riscos que decorrem dessa precocidade
sexual.
Já a socialização das condutas de procriação é vislumbrada em toda espécie de
incentivo ou empecilho à fecundidade humana, como as políticas de controle de nascimentos,
por exemplo (FOUCAULT, 2015, p. 114).
Enfim, a psiquiatrização do prazer perverso é a epítome do que foi exposto até o
momento, em que o instinto sexual é isolado como instinto biológico e psíquico autônomo,
sendo afetado por anomalias – como a homossexualidade –, que, encaradas pelo prisma
patológico, demandam a respectiva tecnologia corretiva (FOUCAULT, 2015, p. 114).
Em síntese,

Na preocupação com o sexo, que aumenta ao longo de todo o século XIX, quatro
figuras se esboçam como objetos privilegiados de saber, alvos e pontos de fixação dos
empreendimentos do saber: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal
malthusiano, o adulto perverso, cada uma correlativa de uma dessas estratégias que,
de formas diversas, percorreram e utilizaram o sexo das crianças, das mulheres e dos
homens. (FOUCAULT, 2015, p. 114).

Ora, as doutrinas heterossexistas, fundantes do paradigma homofóbico que permeia a


sociedade atual, tencionam promover a dominação dos “normais” sobre os “anormais” e
viabilizam tal intenção ao lançarem mão dos mais variados discursos a respeito da
34

homossexualidade (BORRILLO, 2010, p. 64), notadamente, mas longe de ser exclusivo, o da


psiquiatrização do prazer perverso, como já apontava Foucault.
A medicina, seguida pelas ciências sociais, tornou os prazeres homossexuais objetos
de uma regularização dos indivíduos. A antiga aversão promovida pela religiosidade cristã, não
mais se articulava às falas sobre pecado e salvação, mas ao cientificismo, tornando, a partir daí,
legítima a inferiorização, a marginalização e, em casos extremos, até mesmo o extermínio
daqueles que passaram a ser tratados como perversos (FOUCAULT, 2015, p. 76).
Sob essa égide, há uma tentativa de medicalização da antiga ideia de sodomia, segundo
Borrillo (2010, p. 65), na medida em que se desenvolve uma noção de que a ausência de desejo
por indivíduos do sexo oposto conduz a relações estéreis, condição manifestamente patológica.
Autores como Carl Friedrich Otto Westphal (1833-1890), Richard Freiherr von Krafft-Ebing
(1840-1902) e Arrigo Tamassia (1849-1917), precursores desse movimento de patologização,
compartilhavam o intuito de lutar a favor da descriminalização dos comportamentos
homoeróticos, mas, em vez disso, delinearam os contornos da moderna forma de hostilidade
conhecida como homofobia. Desse modo, assim como as mulheres foram relegadas à
subordinação por seu caráter biologicamente “determinado”, de acordo com as primeiras teorias
sexológicas, os homossexuais acabaram situados à margem no âmbito da hierarquia sanitária
dos sexos e das sexualidades (BORRILLO, 2010, p. 66).
O nascimento da “ciência sexual”, ou seja, a definição dos indivíduos por meio da
nova categoria psicológica que se tornou o desejo sexual, contribuiu para uma imposição, aos
homens, de um quadro heterossexual que serviu como o parâmetro natural (WELZER-LANG,
2001, 467), e, por que não dizer, saudável.

A interpretação proposta pela medicina – e, em sua esteira, pela psicanálise –


a respeito da homossexualidade será, por si só, uma forma de homofobia, já que a
diferença nunca é procurada com o objetivo de integrá-la em uma teoria pluralista da
sexualidade normal, mas, exatamente o contrário, vai situá-la nas categorias da
doença, neurose, perversão ou excentricidade. (BORRILLO, 2010, p. 66-67)

Ao longo do século XX, inicia-se um verdadeiro empreendimento de investigação das


origens psicológicas da “inversão sexual” que constitui a homossexualidade. A propósito,
Foucault (2015, p. 127-128) classifica essas inovações no campo da ciência sexual como uma
teoria de “degenerescência”, que explicava de que maneira a hereditariedade de doenças
diversas, fossem elas funcionais ou psíquicas, produzia um perverso sexual.
Sigmund Freud, em sua obra “Três Ensaios Sobre as Teorias da Sexualidade” (2016)
tratou a homossexualidade como o comportamento de um invertido, um acidente de percurso
35

capaz de se manifestar mesmo que tardiamente, após um longo período de atividade sexual
normal, além de exprimir que, em alguns casos, essa alteração da libido decorria de uma
experiência penosa com o objeto sexual regular (FREUD, 2016, p. 23-24). Já para Lacan (1992,
p. 39), ao reputar-se às relações homoafetivas da Grécia, por exemplo, esse autor pontua que, a
despeito de ser aceita, aprovada e, em alguns casos, “festejada”, a homossexualidade não podia
deixar de ser classificada como o que realmente era: uma perversão.
Não se pode olvidar que a busca das causas da homossexualidade configura, por si só,
uma atitude homofóbica (DORAIS apud BORRILLO, 2010, p. 71), uma vez que pressupõe, tal
como pregavam (e ainda pregam) os discursos de psiquiatrização do prazer perverso, que existe
uma sexualidade normal, acabada e plena – a heterossexualidade cisgênera –, a qual deve servir
de parâmetro a todas as outras. Qualquer enviesamento dessa natureza serve para solidificar
esse que é um dos pilares da homofobia.

2.4.2 A subjugação do papel de gênero feminino

Outro fator crucial que reside no cerne desse preconceito é a subjugação do [papel de
gênero] feminino. Isso ocorre porque sexismo e homofobia apresentam uma correlação
intrínseca entre si (CARVALHO, 2012, p. 155). Segundo esse autor,

[há] uma relação de interdependência entre misoginia e homofobia, pois a dominação


das mulheres e a rejeição das relações amorosas entre homens (e entre mulheres,
acrescento) se constituíram histórica e socialmente desde esta mesma lógica
falocêntrica. Maya (2008) irá aproximar o conceito de homofobia ao de ginecofobia,
indagando se efetivamente foi a homossexualidade ou o feminino que teria sido
negativado repetidamente através dos tempos. Lembra Maya que os homossexuais,
sobretudo os homens, foram frequentemente rotulados como defeituosos porque
compartilhariam certas características psíquicas com as mulheres, sempre
representadas como inferiores. (CARVALHO, 2012, p. 155-156).

Para melhor compreender essa conexão, é importante destacar que a negação do


feminino parece ser indispensável à construção do masculino: o que, inevitavelmente, conduz
à equivocada ideia de superioridade deste sobre aquele. Para Welzer-Lang (2001, p. 465), “É
verdade que, na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não ser associado a
uma mulher”. Para esse autor (2001, p. 465), o feminino, na concepção da identidade masculina,
assenta-se como o polo de rejeição central, sob pena de o homem ser assimilado a uma mulher
e, como tal, ser maltratado por seus pares.
36

De fato, o duplo paradigma naturalista que define, por um lado, a superioridade


masculina sobre as mulheres e, por outro lado, normatiza o que deve ser a sexualidade
masculina produz uma norma política andro-heterocentrada e homofóbica que nos diz
o que deve ser o verdadeiro homem, o homem normal. Este homem viril na
apresentação pessoal e em suas práticas, logo não afeminado, ativo, dominante, pode
aspirar a privilégios do gênero. Os outros, aqueles que se distinguem por uma razão
ou outra, por sua aparência, ou seus gostos sexuais por homens, representam uma
forma de não-submissão ao gênero, à normatividade heterossexual, à doxa de sexo e
são simbolicamente excluídos do grupo dos homens, por pertencerem aos “outros”,
ao grupo dos dominados/as que compreende mulheres, crianças e qualquer pessoa que
não seja um homem normal. (WELZER-LANG, 2001, p. 468).

Em remate, os binarismos homo/heterossexual e homem/mulher são pares de oposição


que só adquirem significado quando tomados em conjunto (WELZER-LANG, 2001, p. 467).

2.4.3 A contrariedade ao diferencialismo sexual

Por fim, valendo-se de uma linha de raciocínio semelhante, evidencia-se um terceiro


aspecto caracterizante do pensamento homofóbico, já brevemente abordado no início deste
capítulo. A homofobia funciona como uma espécie de guardiã do diferencialismo sexual, afinal
há uma idealização ubíqua de que a natureza biológica dos seres humanos determina formas
específicas de atribuições sociais (BORRILLO, 2010, p. 91).
Dessa forma, a crença numa natureza “feminina” e em outra, “masculina”, dissemina
a concepção de que as relações heterossexuais são as únicas aptas a promover o encontro dos
seres que, por conta de sua diferença sexuada, seriam destinados a se complementar
(BORRILLO, 2010, p. 93). Ao quebrar essa expectativa e desviar da sexualidade socialmente
predeterminada para seu sexo, o sujeito homossexual é alvo de repressão por parte da cultura
heterossexista cisgênera na qual está inserido.

2.5 AS TRÊS FORMAS DE VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA E A SUA NECESSÁRIA


REPRESSÃO JÚRIDICO-PENAL

2.5.1 As três formas de violência homofóbica

A homofobia se manifesta nos mais variados espaços e lugares, sob diversas formas e
nuances.
É importante destacar que, para Carvalho (2013, p. 161), o estudo da violência
homofóbica pode ser analisado sobre três diferentes perspectivas, as quais apontam, também,
37

especificidades no exame do problema relacionado à homofobia. São elas: a violência


homofóbica interpessoal, a violência homofóbica institucional e, por fim, a violência
homofóbica simbólica.

2.5.1.1 Violência homofóbica interpessoal

A primeira concerne ao “estudo da vulnerabilidade das masculinidades não-


hegemônicas e das feminilidades à violência física (violência contra a pessoa e violência
sexual)” (CARVALHO, 2012, p. 161). Essa espécie de violência homofóbica corresponde aos
atos brutos de agressão, ao aspecto “real” da hostilidade contra os sujeitos desviantes à norma
heterossexual imposta (CARVALHO, 2012, p. 154). São as cusparadas, os tapas, os socos, os
espancamentos, os estupros… tudo aquilo que viola, que deixa marcas nos integrantes do grupo
LGBT+.
Amplamente noticiada, a violência homofóbica interpessoal é a mais palpável forma
de homofobia. Casos emblemáticos de exteriorização dessa violência marcam a história recente
do país, tais como o do adolescente Lucas Ribeiro Pimentel, homossexual assumido, jovem de
quinze anos, cujo corpo foi encontrado flutuando num rio, em Volta Redonda, estado do Rio de
Janeiro. Espancado com pauladas, Lucas teve seus olhos arrancados, o crânio afundado e o
corpo empalado. O caso, inclusive, chegou até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(SOUZA, 2013, p. 78).
Mais recentemente, em 2017, circulou pela internet o vídeo de um grupo de homens
espancando e ridicularizando a travesti Dandara dos Santos. Proferindo ofensas, os indivíduos
que aparecem na gravação desferem socos, chutes, pontapés e ridicularizam Dandara, mesmo
que ela, já coberta de sangue, não consiga esboçar qualquer reação2. Ao final do vídeo, a vítima
ainda é colocada dentro de um carrinho de mão e empurrada para longe, acompanhada por
manifestações de orgulho e vitória por parte dos agressores. Após o linchamento, Dandara foi

2
O Povo. Travesti é espancada até a morte no Bom Jardim. 2017. Disponível em:
<https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2017/03/travesti-e-espancada-ate-a-morte-no-bom-jardim.html>.
Acesso em: 28 fev. 2020.
38

executada a tiros3. O caso ganhou tamanha repercussão que, em 2019, uma escultura em sua
homenagem, de autoria do artista plástico Rubem Robierb, foi exposta em Nova Iorque4.

2.5.1.2 Violência homofóbica institucional

A violência homofóbica institucional, por seu turno, apresenta duas facetas, uma delas
ligada à aplicação sexista (misógina e homofóbica) da lei penal e a outra, na construção de
práticas sexistas violentas através das agências punitivas, como os cárceres, por exemplo
(CARVALHO, 2012, p. 161). Para Souza (2013, p. 43), essa espécie de homofobia ofende, de
maneira impessoal, os direitos do grupo LGBT+. Aqui se inserem os cartórios que ainda não
realizam uniões homoafetivas, bem como os representantes de instituições que supostamente
deveriam zelar pelo interesse público, mas que, em vez disso, obstaculizam a perfectibilização
dessas uniões5; as disposições normativas que fomentam o preconceito e a intolerância, como
a Resolução nº 153, de 14 de junho de 2004, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), que impede que homossexuais autodeclarados com vida sexual ativa possam
realizar doação de sangue – restrição esta felizmente derrubada pelo Supremo Tribunal Federal,
no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543, concluído em maio de 2020 6;
a criminalização da pederastia no Código Penal Militar7, dentre outros. Em suma, pode-se
afirmar que, até mesmo em Estados em que a lei não proscreve a homossexualidade, a
comunidade LGBT+ é frequentemente vítima de excessos e assédios, mormente por entidades
ligadas ao próprio aparato estatal (BORRILLO, 2010, p. 108) e legitimadas pela violência
homofóbica institucional.

3
G1. Polícia investiga homicídio de travesti que foi espancada até a morte no CE. 2017. Disponível em:
<http://g1.globo.com/ceara/noticia/2017/03/policia-investiga-homicidio-de-travesti-que-foi-espancada-ate-
morte-no-ce.html>. Acesso em: 28 fev. 2020.
4
G1. Escultura em Nova Iork homenageia travesti Dandara dos Santos, vítima de violência. 2019. Disponível
em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/27/escultura-em-nova-york-homenageia-travesti-dandara-dos-
santos-vitima-de-violencia.ghtml>. Acesso em: 28 fev. 2010.
5
NSC Total. Promotoria de Florianópolis contesta casamentos homoafetivos. Disponível em:
<https://www.nsctotal.com.br/noticias/promotoria-de-florianopolis-contesta-casamentos-homoafetivos>. Acesso
em: 28 fev. 2020.
6
Portal STF. Proibição de doação de sangue por homens homossexuais é inconstitucional, decide STF.
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443015&ori=1. Acesso em: 7
set. 2020.
7
Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar
sujeito a administração militar: Pena – detenção, de seis meses a um ano.
39

2.5.1.3 A violência homofóbica simbólica

Por fim, a violência homofóbica simbólica, segundo Carvalho (2012, p. 161), consiste
em processos formais e informais na construção de um discurso heteronormativo. Esse autor
(2012, p. 156) aponta que o entrelaçamento entre os saberes científicos e as teorias do cotidiano
(everyday theories) é o responsável por uma espécie de senso comum homofóbico que instaura
compulsoriamente a heterossexualidade cisgênera como padrão.

2.5.2 A necessária repressão penal da homofobia

Sublinha-se, ainda, que a homofobia, segundo Borrillo (2010, p. 40), “permanece


como a única discriminação inscrita formalmente na ordem jurídica”. Borrillo (2010, p. 40) faz
essa afirmação sob o argumento de que nenhum outro segmento da população é excluído da
fruição de seus direitos fundamentais em razão de sua origem étnica, religião, sexo ou qualquer
outra delimitação arbitrária. Ademais, enquanto as práticas de racismo, antissemitismo,
misoginia e xenofobia são coibidas e formalmente condenadas pelas instituições, a reprovação
da homofobia prevalece no senso comum quase como uma opinião sensata.
É inimaginável proferir, atualmente, afirmações injuriosas contra outras minorias –
como ocorre abertamente em relação aos homossexuais –, entre outros motivos, porque tais
atitudes são passíveis de ser punidas pela lei. Ao passo em que a homossexualidade, nos últimos
dois séculos, foi combatida como pecado, crime e doença, ora escapando dos olhos da Igreja
para logo cair sob o jugo das clínicas médicas, a ausência de proteção jurídica contra a
homofobia submete os homossexuais a uma posição particularmente vulnerável (BORRILLO,
2010, p. 41).
A escalada da violência contra o grupo LGBT+, conforme exposto acima, sobretudo
os elevados índices de denúncias em canais criados pelo Governo, os crimes bárbaros e cada
vez mais frequentes veiculados pala mídia, as narrativas escancaradas de ódio proferidas por
determinadas personalidades e, nada obstante, por representantes da classe política8, desenham,
cada vez mais, um cenário que sugere uma resposta penal a fim de se alcançar um controle
mínimo acerca da situação (SOUZA, 2013, p. 70).

8
Lado A. 100 frases homofóbicas de Jair Bolsonaro. Disponível em:
<https://revistaladoa.com.br/2016/03/noticias/100-frases-homofobicas-jair-bolsonaro/>. Acesso em: 29 fev. 2020.
40

Isso porque, apesar dos dados demonstrarem um elevado índice de notificação de casos
de homofobia, não há como ignorar, também, a subnotificação de grande parte (senão a maioria)
deles, decorrente, acima de tudo, da descaracterização formal da natureza homofóbica
específica de certos atos ou condutas (embora a violência homofóbica assuma contornos
bastante típicos), além, é claro, da expectativa de que, mesmo havendo notificação, o agressor
– ou agressores – não será punido (SILVA; BAHIA, 2015, p. 184).
Impende salientar que:

Não existe um modus operandi da homofobia, repetitivo, maquinal, previsível. Até


porque ela pode ser um mero discurso sem externalizar ações que deixem vestígios de
um crime. Uma vez que está enraizada na sociedade e entranhada nas instituições com
o disfarce de elementos culturais, é bastante complicado contemplar num só tipo
penal, por exemplo, todas as possíveis condutas, diversos que sejam os matizes, que
possuam a finalidade comum de oprimir quem não se adéqua às normas de gênero e
de comportamento sexual dominantes. (SOUZA, 2013, p. 72).

Contudo, não é demais relembrar que nenhum tipo penal jamais abarcará, na íntegra,
o conjunto de condutas que pretende reprimir, servindo, para tanto, o juízo de subsunção, ou
seja, a aplicação da norma incriminadora mais adequada ao caso concreto.
Sendo assim, a homofobia, enquanto problema social, há de ser considerada como
delito suscetível de sanção jurídica (BORRILLO, 2010, p. 106), devendo a sua criminalização
atentar-se à tutela não apenas da integridade física dos sujeitos homossexuais, mas também de
sua liberdade individual, honra e integridade psíquica. Todavia, o viés repressor é destituído de
significado se não vier acompanhado das devidas ações preventivas, especialmente a
conscientização da gravidade do fenômeno homofóbico (BORRILLO, 2010, p. 106-107).
No decorrer do presente capítulo, aprofundou-se ao menos em três causas da
homofobia – e reitera-se que esta abordagem está longe de ser exaustiva e, muito menos,
taxativa –, estando elas tão profundamente incrustradas no imaginário da sociedade que se
torna, para dizer o mínimo, inconsequente pensar que a criminalização deve ser avaliada como
o propósito final da luta contra a tradição homofóbica, quando, em verdade, é apenas o começo.
41

3 O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR


OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4377

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente capítulo versa sobre o histórico e controverso julgamento da Ação Direta


de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e do Mandado de Injunção nº 4377, pelo Supremo
Tribunal Federal. Subdividido em três itens, o primeiro abordará as previsões normativas
existentes, assim como a incidência do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o dever
de se coibir jurídica e penalmente a homofobia, além de tratar do andamento de projetos de lei
relacionados ao tema no Congresso Nacional. O segundo item, por seu turno, é destinado a um
panorama geral das referidas ações perante a Suprema Corte, trazendo comentários a respeito
de suas naturezas jurídicas, seus dados gerais e as principais manifestações e pontos de vista
que foram trazidos aos autos pelas partes, amici curiae e Ministério Público. Por fim, o terceiro
é dedicado a uma síntese dos votos de cada um dos onze ministros, os quais decidiram, por
maioria, pela procedência das demandas.

3.2 A DEVIDA REPRESSÃO JURÍDICO-PENAL DA HOMOFOBIA

3.2.1 As previsões normativas e a dignidade da pessoa humana como fatores


determinantes à criminalização das condutas homofóbicas

Desacordos morais são a tônica da democracia e, por conseguinte, de um Estado


Democrático de Direito; se assim não o fosse, estar-se-ia diante de uma “ditadura da maioria”.
Os debates sobre questões fundamentais e a divergência acerca delas são a essência desse
modelo político, que deve primar, acima de tudo, pelo reconhecimento do pluralismo e da
diversidade, justamente para a constituição do próprio Estado e a consolidação e efetivação dos
direitos fundamentais (SILVA; BAHIA, 2015, p. 178 e 182).
Na Constituição da República Federativa do Brasil, há um rol destinado às garantias
individuais mínimas dos cidadãos, o qual se distribui pelo artigo 5º e seus setenta e oito incisos.
Esse rol, no entanto, está longe de ser taxativo e plenamente eficaz de per si. Para além da
previsão contida no parágrafo 2º desse dispositivo, o qual apregoa que a Constituição não exclui
“outros [direitos fundamentais e garantias] decorrentes do regime e dos princípios por ela
42

adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”,
há, entre esses direitos, alguns que dependem de iniciativa legislativa para sua concretização. É
o caso, por exemplo, do inciso XXXII, que estatui a defesa do consumidor, asseverando que
esta será promovida pelo Estado, na forma da lei – nesse caso, a Lei nº 8.078, de 11 de setembro
de 1990, o Código de Defesa do Consumidor.
Mas, se há situações em que a efetivação dos direitos fundamentais é precisa, em
outras, não há como se proceder objetivamente, o que ocasiona as tão importantes discussões
referidas no início do presente tópico. Nesse sentido, o inciso XLI do já mencionado artigo da
Carta Magna prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e
liberdades fundamentais”. Como garantir que essa determinação seja cumprida?
É óbvio que essa pergunta não pode ser respondida simplesmente com um “por meio
de uma lei”, pois isso levaria a redarguir: “qual lei”? Qual lei seria capaz de abraçar toda a
pluralidade de indivíduos e sujeitos existentes num Estado Democrático de Direito, a fim de
que maioria e minoria fossem protegidas legalmente contra discriminações que fossem de
encontro a seus direitos e liberdades fundamentais?
Inexiste tal legislação.
Logo, a alternativa, no ordenamento jurídico brasileiro, tem sido a edição de diferentes
diplomas legais que, cada qual à sua maneira, façam valer o mandamento insculpido na
Constituição. A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, batizada de Lei do Racismo, é, talvez, a
mais paradigmática a esse respeito, porquanto, ao estipular, no caput do seu artigo 1º, que
“serão punidos [...] os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional”, institui uma forma segura de garantir aos integrantes de
grupos geralmente discriminados – pela cor de sua pele, pela sua região ou até mesmo local de
origem – que qualquer ato de segregação ou hostilidade contra eles praticados seja punido.
No entanto, quando se trata dos atos atentatórios contra os direitos ou liberdades
individuais de minorias ligadas à diversidade sexual ou identidade de gênero, há uma lacuna
que perpassa o sistema jurídico, conforme exposto no capítulo anterior.

Tal constatação viola a Constituição de 1988, justamente aquela chamada de “cidadã”


e que tantos avanços vem proporcionando para o constitucionalismo e para a
democracia brasileiros; violam-se, e.g., o direito à não-discriminação, que é um
objetivo fundamental da República (art. 3º, IV) e o direito de igualdade (art. 5º, caput)
– compreendida esta não apenas como isonomia mas também como direito à
diversidade. (SILVA; BAHIA, 2015, p. 184).

Essa lacuna subsiste mesmo a despeito das inúmeras previsões legais relativas à
repressão a atos atentatórios aos direitos fundamentais dos integrantes de grupos
43

marginalizados, seja por não se amoldarem à sexualidade padrão ou ao gênero ao qual estão
socialmente determinados. Além do que está positivado na Constituição da República, em seu
artigo 5º, inciso XLI, citado alhures, há, a nível global, documentos que trazem e fazem valer
essa mesma determinação. A seguir, alguns deles serão indicados, sem o intento de uma
abordagem exaustiva.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada, em 10 de dezembro de
1948, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, como uma norma comum a
servir de objetivo para todas as nações, estabelece, em seu artigo 2º, subitem 1, que:

[...] todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades [...], sem
distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política
ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer
outra condição. (ONU, 1948) (Os grifos não estão na redação original).

Nesse viés, vale ressaltar, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, de 1966, recepcionado pelo Brasil por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992,
e que, em seu artigo 26, dispõe, em redação semelhante àquela da Declaração supracitada, que
todas as pessoas possuem igualdade perante a lei, tendo direito à proteção legal, e devendo ser
proibidas quaisquer formas de discriminação, independentemente da situação do indivíduo.
Com base nesse Pacto, ao examinar o caso Toonen vs. Austrália9, o próprio Comitê de Direitos
Humanos das Nações Unidas considerou ser indevida a discriminação em razão da orientação
sexual (BAHIA; SILVA, 2015, p. 193).
O Pacto de San José da Costa Rica, cognominado, ainda, de Convenção Americana de
Direitos Humanos, do qual o Brasil é signatário (Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992),
outrossim, estipula, em seu artigo 24, a igualdade de proteção da lei a todos os cidadãos, sem
discriminação. Ademais, não se pode olvidar que o Brasil aderiu à competência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, de modo que a constatação de violação aos direitos de
parcelas minoritárias, como o grupo LGBT+, por exemplo, pode ser submetida à sua

9
Em 1991, a homossexualidade era uma conduta criminalizada no estado australiano da Tasmânia. Nicholas
Toonen, um homem homossexual, enviou, então, uma notificação ao Comitê de Direitos Humanos, da ONU,
alegando que a determinação estatal, no sentido de criminalizar os atos homossexuais, era uma ofensa à
privacidade, assegurada pelo artigo 17 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, bem como violava
o artigo 26 desse mesmo documento. Como resultado, Toonen perdeu seu emprego de gerente no Conselho da
Tasmânia sobre Hepatite e Doenças Relacionadas à AIDS, sob ameaça do Governo de que as verbas repassadas
ao Conselho seriam cortadas caso ele permanecesse no cargo. O pleito de Nicholas Toonen não foi analisado pelo
Comitê de Direitos Humanos até 1994, quando uma decisão desse Comitê considerou que a criminalização da
homossexualidade, de fato, violava as obrigações do Pacto. Como resultado, a Commonwealth baixou uma
determinação extinguindo a criminalização da homossexualidade na Tasmânia (AUSTRALIAN HUMAN
RIGHTS COMMISSION, 2012, tradução nossa).
44

apreciação, como ocorreu com o caso Atalla Riffo e Filhas vs. Chile10, em 2012, ocasião em
que, através de sentença, a Corte condenou o país por discriminação motivada por orientação
sexual (BAHIA; SILVA, 2015, p. 193 e 195).
De mais a mais, tem-se a Resolução nº 2435, aprovada pela Assembleia Geral da
Organização dos Estados Americanos (OEA), em 3 de junho de 2008, que dispõe sobre Direitos
Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Fruto da iniciativa de uma delegação
brasileira e lastreada nas disposições da já aludida Declaração Universal dos Direitos Humanos,
da Declaração Americana dos Direitos do Homem e da Carta da OEA e nos princípios de
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, o documento
expressa, pela primeira vez, a preocupação desse órgão em relação à violação aos direitos
humanos e à violência perpetrada contra certos indivíduos, motivados pela orientação sexual e
identidade de gênero (VECCHIATTI; VIANA, 2014, p. 341).
A partir de 2008, houve uma sequência anual de resoluções da OEA (a de nº 2504, de
2009; a de nº 2600, de 2010; a de nº 2653, de 2011; a de nº 2721, de 2012; e a de nº 2807, de
2013), todas condenando a discriminação, nos países-membros, por orientação sexual ou
identidade de gênero, prescrevendo, a essas nações, que adotassem medidas específicas para a
coibição de tais práticas (BAHIA; SILVA, 2015, p. 194).
Por fim, em 5 de junho de 2013, na 43ª Assembleia Geral da OEA, foram aprovados
os textos relativos à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e
Formas Conexas de Intolerância e à Convenção Interamericana contra Toda Forma de
Discriminação e Intolerância, nos quais se verifica, de forma inédita em uma convenção, a
inclusão do conceito orientação sexual atrelado às minorias [que deverão ser] protegidas
(BAHIA; SILVA, 2015, p. 194).
Em linhas gerais, cada uma dessas previsões normativas tem como fundamento o
princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, aliás, também, é um elemento essencial para

10
Refere-se ao embate judicial ocorrido, em território chileno, no qual a juíza Karen Atala perdeu a guarda, bem
como o poder familiar de suas três filhas (à época com 5, 6 e 10 anos de idade) para o ex-marido, após este ter
alegado, no processo de divórcio, que a ex-mulher mantinha relação homoafetiva e vivia com sua companheira, o
que poderia causar prejuízo ao desenvolvimento sadio de sua prole. O caso chegou à Suprema Corte do país, que
manteve inalterada a decisão, sob os argumentos de que as crianças estariam numa posição de “vulnerabilidade”
em seu convício social caso ficassem sob a tutela da mãe, uma vez que o ambiente familiar no qual estariam
inseridas, díspar daquele considerado normal, expô-las-ia ao isolamento e à discriminação. Em 24 de fevereiro de
2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Chile por violação aos direitos de não-
discriminação, igualdade, vida privada e proteção da honra e dignidade, ficando o país obrigado a cumprir uma
série de determinações quanto a esse caso, tais como atendimento psicossocial às vítimas e implementação de
programas e cursos aos servidores, sobretudo os do Poder Judiciário. Foi a primeira condenação da Corte
Interamericana por violação ao direito de não-discriminação pautado na orientação sexual (VECCHIATTI;
VIANA, 2014, p. 353-354).
45

considerar devida a repressão jurídico-penal da homofobia, aqui entendida, frisa-se, como a


intolerância a todos aqueles que assumem uma sexualidade desviante à padrão ou que se
identificam com um gênero que não aquele socialmente imposto.
A dignidade humana surgiu como um valor filosófico e, em algumas searas, até mesmo
teológico, atravessando mais de dois mil anos de especulações filosóficas, nas quais assumiu
as mais diversas configurações, para, somente após a Segunda Guerra Mundial e os horrores
durante ela cometidos, transformar-se em preceito constitucional de maior estirpe,
juridicamente vinculativo (MENDES, 2013, p. 85).
Sua definição é um tanto quanto turva, pois, não raras as vezes, esse princípio é
associado levianamente a um sem número de garantias individuais, o que pode ocasionar o
esvaziamento de seu núcleo (MENDES, 2013, p. 89). Segundo Sarlet (2002, p. 39),

Uma das principais dificuldades [da definição do conceito de dignidade da pessoa


humana] [...] reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do
que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou
menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida,
propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer
ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser
habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano
como tal [...].

Pode-se afirmar, até, que é mais fácil dizer o que a dignidade da pessoa humana não é
do que o que ela é, por se tratar de categoria axiológica aberta, impossível de ser conceituada
de maneira fixista, estando seu conteúdo em constante processo de construção e
desenvolvimento, bem como sua concretização ficando a cargo da práxis constitucional. Um de
seus muitos aspectos, porém, é certo: a dignidade é intrínseca à condição humana, de sorte que
é irrenunciável e inalienável, devendo ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida,
sobretudo pelo Estado (SARLET, 2002, p. 39 e 41).
Portanto, a orientação sexual, e, por conseguinte, a identidade de gênero, vinculam-se
a esse atributo vital de nossa condição, constituindo uma essência indissociável do indivíduo
(VECCHIATTI; VIANA, 2014, p. 335), sendo devida a proteção desses elementos da
personalidade contra toda ação que os ameacem ou desrespeitem, por meio de iniciativas dos
entes estatais, tais como a criminalização da homofobia, como se tratará no subitem seguinte.
46

3.2.2 A inércia do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia

Inúmeros projetos de lei que exigem a criminalização da homofobia e propostas


atinentes à regularização e consolidação de direitos atrelados à minoria LGBT+ tramitam, hoje,
no Congresso Nacional, sem que sejam nem sequer debatidos nas duas casas legislativas do
país.
Destacam-se o Projeto de Lei nº 1151, de 1995, que visa regulamentar a parceria civil
entre indivíduos do mesmo sexo, cujo parecer favorável de uma comissão especial não impediu
que, em 2001, fosse ele retirado de pauta por meio de uma acordo de líderes políticos; as
Propostas de Emenda à Constituição nº 139, de 1995, e nº 66, de 2003, que tinham por objetivo
introduzir no inciso IV do artigo 3º da Carta Magna a proteção contra discriminação oriunda de
orientação sexual, além de garantir e regulamentar outros direitos atinentes à comunidade
LGBT+; e, ainda, o Projeto Lei nº 5003, de 2001, que versava, em termos gerais, sobre a
criminalização da homofobia e deu origem, juntamente com outras propostas legislativas de
mesmo viés, ao Projeto de Lei da Câmara nº 122, de 2006, talvez o mais comentado de todos
eles (SILVA; BAHIA, 2015, p. 189).
O PLC 122/2006 propunha a criminalização não só dos preconceitos motivados pela
orientação sexual, mas também pela identidade de gênero, equiparando-os aos demais
preconceitos que já são descritos e tipificados na Lei do Racismo, brevemente comentada no
tópico antecedente.
Seu trâmite teve início com a apresentação do Projeto Lei nº 5003/2001, elaborado
pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transsexuais (ABGLT) e outras
duzentas organizações. Posteriormente, a deputada Iara Bernardi (Partido dos Trabalhadores)
efetuou alterações na proposta original, enxugou o texto e deu origem, enfim, ao PLC nº 122,
que obteve aprovação unânime no Plenário da Câmara dos Deputados. No mesmo ano de seu
nascimento, isto é, 2006, o projeto legislativo foi encaminhado ao Senado Federal, de onde
nunca mais saiu. A senadora Marta Suplicy (Movimento Democrático Brasileiro) chegou a
pedir seu desarquivamento e sugerir um novo texto, em 2011, mas obteve êxito, apenas, em
conquistar a antipatia do próprio grupo LGBT+ (SOUSA, 2013, p. 76).

Como a senadora foi chamada para assumir o Ministério da Cultura em setembro de


2012, ela deixou a relatoria e o cargo ficou vacante durante meses. O senador
evangélico Magno Malta (PR-ES) pediu à Comissão de Direitos Humanos para ser o
relator do projeto. A senadora havia sugerido o nome de Lídice da Mata (PSB-BA).
Por fim, quem acabou assumindo a relatoria desde dezembro de 2012 foi o senador
Paulo Paim (PT-RS). (SOUSA, 2013, p. 77).
47

A resistência à concretização do PLC nº 122 vem, sobretudo, da bancada evangélica,


bem como de algumas entidades cristãs católicas e protestantes, as quais alegam que o projeto
fere a liberdade religiosa e de expressão dos grupos religiosos (MARCONDES, 2018, p. 36) e
que, se aprovado, permitirá a criação de “super direitos” para uma minoria (SILVA; BAHIA,
2015, p. 189).
Mesmo havendo diversas tentativas de acordo com seus opositores – apresentando-se
até um esboço substitutivo –, a discussão a respeito do PLC nº 122 jamais avançou. Suas últimas
movimentações levaram ao seu apensamento ao controverso Projeto de Lei sobre o Novo
Código Penal, do qual foi desvinculado, mais tarde, sem que houvesse deliberação para tanto.
Em janeiro de 2015, o Congresso Nacional arquivou o PLC 122/2006, por falta de tramitação
no Senado (SILVA; BAHIA, 2015, p. 191), o que evidencia a inércia do Poder Legislativo
brasileiro frente à proteção do direito à não-discriminação ao grupo LGBT+, fortalecendo sua
vulnerabilidade.

3.3 DADOS GERAIS DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR


OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733

Foi com supedâneo na omissão legislativa abordada anteriormente que, em 2012, a


Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transsexuais (ABGLT) impetrou, no
Supremo Tribunal Federal, o Mandado de Injunção (MI) nº 4733, do Distrito Federal,
objetivando que a Suprema Corte determinasse ao Congresso Nacional a criminalização
específica de todas as formas de homofobia e transfobia. Meses mais tarde, o Partido Popular
Socialista (PPS) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26,
também do Distrito Federal, pugnando, outrossim, que a Suprema Corte declarasse a omissão
do Poder Legislativo por não ter votado, até o momento, projeto de lei que criminalizasse ações
de cunho homofóbico.

3.3.1 A natureza jurídica da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do


mandado de injunção

Antes de analisar os pormenores da ADO 26 e do MI 4733, bem como adentrar o


mérito do seu histórico e controverso julgamento, impende tecer algumas considerações a
respeito da natureza jurídica dessas ações.
48

3.3.1.1 O mandado de injunção

Uma das novidades da Constituição de 1988, o mandado de injunção, previsto no seu


artigo 5º, inciso LXXI, é cabível sempre que a falta de norma reguladora obste o pleno exercício
de direitos constitucionais, aludindo, então à chamada “mora legislativa”. É claro que não são
todas as normas constitucionais, nem tampouco qualquer omissão do Poder Público, que
autorizam o ajuizamento do mandado de injunção (TAVARES, 2012, p. 1.019). Entretanto,
qualquer pessoa é parte legítima para figurar como parte autora, desde que atendidas as devidas
condições (TAVARES, 2012, p. 1.020).
No que diz respeito às normas visadas pelo referido writ, têm elas de ser de eficácia
limitada, isto é, não podem ser autoaplicáveis, dependendo de regulamentação para adquirir
efeitos práticos. Por outro lado, não se admite o MI por se pretender que haja nova legislação a
fim de modificar a preexistente, ainda que esta seja inconstitucional. Noutra senda, referindo-
se à omissão necessária à procedimentalidade da ação, deve ela inviabilizar direito
constitucional, de sorte que a condição de regulamentação para o exercício de legislação diversa
da constitucional não está amparada por essa alternativa judicial (TAVARES, 2012, p. 1.020-
1.029).
A competência para julgar eventual mandado de injunção ajuizado, segundo estabelece
o artigo 102, inciso I, alínea q, e o artigo 105, inciso I, alínea h, da Constituição Federal, é: 1)
do Supremo Tribunal Federal, quando a elaboração da norma regulamentadora for de
competência do Presidente da República, do Congresso Nacional e suas duas Casas
Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores ou do próprio
Supremo; e, 2) do Superior Tribunal de Justiça, quando a omissão for atribuída a órgão, entidade
ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, excetuando-se os casos onde a
competência for do STF, ou dos órgãos das Justiças Militar, Eleitoral, do Trabalho e Federal.

3.3.1.2 A ação direta de inconstitucionalidade por omissão

Por sua vez, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão permeia a atribuição
do chamado controle de constitucionalidade exercido pelo STF. Sua conceituação é bastante
semelhante à do mandado de injunção, sendo concebida como uma ação que objetiva permitir
que toda norma constitucional possua eficácia plena, impedindo, assim, que a inércia do
legislador impeça o exercício de direitos constitucionais (PIOVESAN apud TAVARES, 2012,
49

p. 338). Sua previsão está no artigo 103, parágrafo 2º, da Constituição Federal, sob a seguinte
redação: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma
constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências
necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
No que compete ao rito a ser adotado, tem-se que a chamada ADO segue, em linhas
gerais, os mesmos trâmites da ação de inconstitucionalidade genérica, a ela sendo aplicados, no
que couber, os dispositivos da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que não forem
contrários à natureza peculiar dessa ação (TAVARES, 2012, p. 338), ou seja, o mesmo rol de
autores, elencados no artigo 2º desse diploma legal, os mesmos requisitos da petição, indicados
no artigo 3º, e todos os demais aspectos processuais delimitados.
No polo passivo da ADO figurará o órgão constitucionalmente identificado como o
responsável pela adoção das medidas cuja ausência gerou a inconstitucionalidade. A omissão
aqui pode ser normativa (decorrente da falta de ato do Poder Legislativo ou do Poder Executivo)
ou não-normativa (decorrente da falta de ato administrativo ou de execução material), hipóteses
estas, porém, que devem versar sobre requerimentos expressos na Constituição (TAVARES,
2012, p. 341).
No que tange aos efeitos da decisão proferida, tanto em sede de mandado de injunção
quanto em sede de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, abordar-se-á a questão de
maneira mais contundente no capítulo posterior, quando da análise dos vereditos da Suprema
Corte na ADO 26 e no MI 4733, à luz do princípio da legalidade penal.

3.3.2 Os pedidos formulados no MI 4733 e na ADO 26

Inicialmente, destaca-se que, tanto a ADO 26 quando o MI 4733, apesar de terem em


seus polos ativos dois autores distintos – naquela, o Partido Popular Socialista, e nesta, a
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transsexuais, conforme já mencionado
alhures –, tiveram suas petições iniciais assinadas pelo mesmo signatário – Advogado Paulo
Roberto Iotti Vecchiatti –, de maneira que os argumentos lançados em uma e outra são
praticamente idênticos, tanto que se afirma, na exordial da ADO 26:

Como se sabe, a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,


Travestis e Transexuais) impetrou o Mandado de Injunção n.º 4733, também
representada pelo advogado signatário, no qual formulou os mesmos pedidos aqui
constantes pela equivalência (aqui defendida) das decisões do Mandado de Injunção
e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão.
50

Nessa senda, é imperioso se referir, em uma única oportunidade apenas, aos pleitos
formulados na ADO 26 e no MI 4733. Em síntese, pugnou-se, nessas ações, pela criminalização
específica de todas as formas de homofobia (considerada em sua acepção geral, abarcando todas
as espécies de homofobia específicas, tais como a transfobia, a gayfobia, a lesbofobia etc.),
especialmente, mas não exclusivamente, das ofensas (individuais ou coletivas), dos homicídios,
das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero da
vítima, sob o fundamento de que houve omissão inconstitucional do Parlamento brasileiro,
tomando por base: 1) o mandamento insculpido no inciso XLII do artigo 5º da Constituição
Federal, o qual prevê que a prática do racismo – entendido em seu conceito ontológico ou
sociológico11, que abraça a homofobia como uma de suas espécies – constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; 2) subsidiariamente,
o que dispõe o inciso XLI do artigo 5º da Carta Magna, o qual estabelece que a lei punirá
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; e, 3) o princípio da
proporcionalidade, na acepção da proibição de proteção deficiente12.
Ademais, postulou-se, cumulativamente, nessas demandas: 1) a fixação de prazo
razoável para que o Congresso Nacional elabore a lei incriminadora, uma vez declarada sua
mora inconstitucional, sugerindo-se que este prazo não seja superior a 1 (um) ano; 2) em não
atendida a determinação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o Congresso
criminalize todas as formas de homofobia, que haja a superação do princípio da legalidade
estrita e exerça, a Suprema Corte, a função legislativa/normativa, geral e abstrata (ainda que de
forma atípica), a fim de criminalizar a homofobia, nos termos requeridos pela parte autora, com
base no sistema de pesos e contrapesos que funda a tripartição dos Poderes; 3) em caráter
subsidiário, a colmatação jurisdicional da omissão legislativa existente, conferindo-se
interpretação conforme para que às disposições normativas da Lei nº 7.716/1989 se subsumam
os atos de discriminação contra a população LGBT+; e, 4) o reconhecimento da
responsabilidade civil objetiva do Poder Público, com a consequente condenação do Estado a
indenizar os integrantes do grupo LGBT+ que, de alguma forma, tenham sido prejudicados pelo
comportamento omissivo a ser imputado.

11
O conceito ontológico ou sociológico de racismo foi adotado, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento
do Habeas Corpus nº 82.424, do Rio Grande do Sul (Caso Ellwanger), o qual pretendia discutir se manifestações
antissemitas constituíam ou não crime de racismo, tipificado na Lei. nº 7.716/1989.
12
Um dos braços do princípio da proporcionalidade, a proibição à proteção deficiente surge como um impedimento
à abstenção do Estado quando esse tem o dever de prevenir e reprimir, a fim de assegurar direitos fundamentais.
Juntamente com a proibição de excesso, esses institutos norteiam a atuação do Poder Público na criminalização de
condutas, assegurando o pleno gozo de liberdades fundamentais no seu duplo viés (RUDOLFO, 2012, p. 242-244).
51

3.3.3 As diversas manifestações e os pontos de vista que exsurgiram dos autos: os


argumentos contrários e favoráveis à procedência dos pedidos

Sucessivamente à protocolização do MI 4733 e da ADO 26, manifestaram-se, por meio


de petições, nos autos, consoante consta no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal e
conforme se pode depreender dos relatórios proferidos, pelos ministros relatores de ambas
ações, no primeiro dia de sessão de julgamento, em gravação disponível, em meio audiovisual,
no sítio eletrônico “Youtube”:

3.3.3.1 Os argumentos contrários

a) a presidência do Senado Federal, exercida pelo Senador Renan Calheiros


(Movimento Democrático Brasileiro) à época das manifestações, por intermédio do
Advogado-Geral do Senado, pugnou pela improcedência dos pedidos formulados,
em observância ao devido resguardo do princípio da legalidade penal, da separação
dos Poderes e à independência assegurada constitucionalmente ao Poder
Legislativo. Defendeu, outrossim, a ausência de qualquer espécie de mora
inconstitucional da parte dessa Casa Legislativa, alegando que os temas atinentes à
homofobia e à discriminação estão em constante discussão no Congresso Nacional,
sendo estes assuntos que demandam debates profundos, consultas e, nada obstante,
participação popular. A presença de inúmeros projetos legislativos que versam sobre
a matéria, em trâmite perante o Senado, afastaria, portanto, a hipótese de mora
inconstitucional do Poder Legislativo.
b) a presidência da Câmara dos Deputados, exercida, à época da manifestação, no MI
4733 pelo Deputado Federal Marco Maia (Partido dos Trabalhadores), e na ADO 26
pelo Deputado Federal Henrique Eduardo Alves (Movimento Democrático
Brasileiro), por intermédio de seu Procurador Parlamentar, adotando argumentação
semelhante à utilizada pela presidência do Senado, reportou-se ao Projeto de Lei nº
5003, de 2001, aprovado por essa Casa Legislativa no ano de 2006, para reafirmar
a sua posição institucional e frisar que não há mora inconstitucional do Poder
Legislativo, tendo em vista que o assunto pertinente à criminalização das condutas
homofóbicas têm sido, sim, alvo de deliberação parlamentar.
52

c) a Advocacia-Geral da União, em manifestações subscritas pela Advogada-Geral em


exercício à época, Grace Maria Fernandes Mendonça, postulou a improcedência dos
pedidos, asseverando que não houve mora inconstitucional a ser imputada ao
Congresso Nacional, pois não há mandamento expresso na Constituição Federal que
requeira a criminalização específica da homofobia, bem como que não cabe ao
Supremo Tribunal Federal impor prazo de cumprimento obrigatório aos Poderes
competentes, nem tampouco suprir, por ato próprio, a suposta omissão do legislador,
fazendo ressalvas quanto ao manejo da via processual do mandado de injunção.
d) como amici curiae desfavoráveis à procedência dos pedidos formulados: a Frente
Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida, a Convenção Brasileira de Igrejas
Evangélicas Irmãos Menonitas (COBIM) e a Associação Nacional de Juristas
Evangélicos (ANAJURE), alegando, em síntese, que não há mandamento expresso
de criminalização da homofobia e que, se o veredito do STF fosse no sentido de dar
procedência aos pedidos, haveria clara afronta ao princípio constitucional da
separação dos poderes.

3.3.3.2 Os argumentos favoráveis

e) como amici curiae favoráveis à procedência dos pedidos formulados: o Grupo


Dignidade pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros, o Partido Socialista
dos Trabalhadores Unificados (PSTU), o Conselho Federal de Psicologia (CFP), a
Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA), a Defensoria Pública
do Distrito Federal, o Grupo Gay da Bahia (GGB), a Associação Brasileira de Gays,
Lésbicas, Travestis e Transsexuais (ABGLT) e o Grupo de Advogados pela
Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), reprisando, em síntese, os argumentos
lançados na petição inicial.

3.3.3.3 As posições do Ministério Público Federal

A Procuradoria-Geral da República, no parecer subscrito pelo Procurador-Geral da


República à época, Rodrigo Janot Monteiro de Barros, opinou, num primeiro momento, pelo
não cabimento do mandado de injunção em apreço, cujo parecer foi acolhido pelo relator
originário dessa ação, o Ministro Ricardo Lewandowski.
53

Em resposta a essa decisão, a ABGLT interpôs Agravo Regimental, no qual a


Procuradoria-Geral da República reviu seu posicionamento e opinou pelo parcial conhecimento
dos pedidos e, nessa extensão, pelo seu provimento, a fim de que a Suprema Corte conferisse
interpretação conforme ao termo “raça”, contido no artigo 1º, caput, da Lei nº 7.716/1989, a
fim de que se reconheçam, como crimes tipificados nesse diploma legal, ações discriminatórias
e/ou atentatórias contra os direitos da população LGBT+, grupo este inserido no conceito de
“raça” trazido pela legislação anteriormente mencionada, não configurando, dessa forma,
analogia in malam partem. Subsidiariamente, caso não fosse esse o entendimento adotado pelo
Supremo Tribunal Federal, que fosse, então, reconhecido o estado de mora inconstitucional por
parte do Congresso Nacional, fazendo-se imperiosa a fixação de prazo para sanar tal omissão.

3.4 O JULGAMENTO CONJUNTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE


POR OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733

Pela intrínseca correlação entre seus méritos, assim como a similitude entre os pleitos
realizados, ambas as ações foram julgadas em conjunto, ao longo de seis sessões do Pleno do
Supremo Tribunal Federal, que se estenderam de fevereiro a junho do ano de 2019. A seguir,
analisar-se-á cada uma dessas sessões, todas gravadas e disponíveis, em meio audiovisual, no
sítio eletrônico “Youtube”, e de cujas gravações extraiu-se as informações transcritas.

3.4.1 A sessão do dia 13 de fevereiro de 2019: relatórios e sustentações orais

3.4.1.1 Os relatórios

O início do julgamento se deu na quarta-feira, dia 13 de fevereiro de 2019, tendo como


marco inicial a leitura do relatório atinente à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
nº 26, efetuada pelo Ministro Celso de Mello, decano da Suprema Corte e relator da mencionada
ação.
Em seu escorço, o julgador expôs o trâmite processual da ADO perante a Corte,
tratando de reproduzir os pedidos formulados e traduzir os divergentes posicionamentos que
exsurgiram dos autos, trazidos pelos já referidos amici curiae, além de órgãos como a
Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da República e as respectivas entidades
representativas do Congresso Nacional e suas câmaras.
54

Em seguida, de igual modo, o Ministro Edson Fachin, relator do Mandado de Injunção


nº 4733, sintetizou o rito processual ao qual foi submetido o writ, dando enfoque à decisão do
relator originário, Ministro Ricardo Lewandowski, em não conhecer dessa via processual após
manifestação da Procuradoria-Geral da República, o que levou à interposição de Agravo
Regimental pela parte autora, a AGBLT. Houve, por conseguinte, a substituição da relatoria,
nos termos do artigo 38, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, além de nova
manifestação da PGR, que, dessa vez, opinou pelo parcial conhecimento da ação, bem como
pelo seu provimento, na extensão conhecida.

3.4.1.2 As sustentações orais

Concluída a leitura dos relatórios, passou-se às sustentações orais agendadas. O


primeiro a falar foi o Advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti – o qual assina as petições
iniciais da ADO 26 e do MI 4733 –, tendo ele defendido a procedência das ações, reiterando os
seus respectivos fundamentos; depois, veio à tribuna o então Advogado-Geral da União, André
Luiz de Almeida Mendonça, frisando que não há mandamento expresso na Lei Fundamental no
sentido de criminalizar a homofobia, não havendo, portanto, omissão ou mora inconstitucional
por parte do Congresso; em nome da presidência do Senado, o Advogado-Geral do Senado
Federal, Fernando Cesar Cunha, que, valendo-se de argumentação semelhante àquela aventada
pelo representante da União, insistiu na improcedência dos pedidos, defendendo que não houve
mora ou omissão do Poder Legislativo, visto que o tema pertinente à criminalização da
homofobia foi alvo de deliberação no Congresso, e que qualquer decisão no sentido da Suprema
Corte em suprir a lacuna legislativa existente, ainda que oferecendo interpretação conforme à
Lei do Racismo, seria uma visível afronta ao princípio da legalidade penal.
Além disso, sete amici curiae forneceram suas perspectivas acerca do tema em
comento. Na linha de raciocínio favorável à procedência da ADO 26 e do MI 4733,
manifestaram-se: o Grupo Gay da Bahia, por intermédio de seu Advogado Thiago Gomes
Viana; o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, através de seu Advogado
Alexandre Gustavo de Melo Franco Bahia; o Grupo Dignidade pela Cidadania de Gays,
Lésbicas e Transgêneros, falando, em seu nome, a Advogada Ananda Rodrigues; e, por fim, a
Associação Nacional de Travestis e Transsexuais, por meio de sua Advogada Maria Eduarda
Aguiar da Silva. Por outro lado, sob o viés desfavorável à procedência das ações, expuseram
seus argumentos: a Associação Nacional de Juristas Evangélicos, representada por seu
55

advogado, Luigi Mateus Braga; e a Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida, por
dois de seus advogados, Cícero Gomes Lage e Walter de Paula e Silva. Ademais, ocupou a
tribuna o Advogado Rodrigo da Cunha Pereira, em nome do Instituto Brasileiro de Direito de
Família (IBDFAM), apresentando posicionamento favorável ao acolhimento dos pleitos,
corroborando a existência de mora inconstitucional e omissão do Poder Legislativo, bem como
o entendimento de que a homofobia constitui crime de racismo, no conceito sociológico-
constitucional do termo.
Por fim, teve a palavra o então Vice-Procurador-Geral da República, Luciano Mariz
Maia, que, em seu discurso, reprisou o entendimento da PGR e opinou, mais uma vez, pelo
parcial conhecimento e, na parte conhecida, pelo provimento tanto da ADO 26 quanto do MI
4733.

3.4.2 As sessões dos dias 14 e 20 de fevereiro de 2019: o voto do Ministro Celso de Mello,
favorável à superação da mora legislativa

A segunda sessão plenária destinada a apreciar a delicada questão da criminalização


da homofobia, a qual foi realizada no dia 14 de fevereiro de 2019, principiou com a leitura do
voto do Ministro Celso de Mello, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26.
Devido à extensão da decisão, esse relator dividiu o seu voto em dezoito tópicos, os
quais serão abordados, em síntese, nos parágrafos subsequentes.
O primeiro tópico, informado como uma “brevíssima constatação”, refletiu a
importância do dissenso em um Estado Democrático de Direito, consagrando o pluralismo de
ideias e o convívio harmonioso de visões de mundo antagônicas como uma das tônicas da
sociedade democrática. Igualmente, o julgador exaltou o Supremo Tribunal Federal que, no
exercício da sua função contramajoritária, teria o dever de fazer prevalecer a autoridade e a
supremacia da Constituição e das leis da República.
No segundo tópico, o ministro versou sobre a alegada omissão inconstitucional e a
mora na qual, supostamente, incorreu o Congresso ao deixar de decidir sobre a criminalização
da homofobia, mesmo após anos de inúmeros projetos legislativos que, embora exaustivamente
debatidos, jamais foram votados. Trata-se de uma exposição de ambos os argumentos já
ventilados, trazidos tanto pela parte autora da ADO 26 quanto pelos entes representativos do
Poder Legislativo.
O terceiro tópico consistiu numa exposição dos pedidos formulados pela parte autora.
56

O quarto (e talvez mais teórico de todos) disse respeito à necessária explanação e


abordagem de algumas questões terminológicas, imprescindíveis à análise da matéria. O
ministro se debruçou sobre as definições de gênero e de sexualidade e demais premissas
norteadoras da questão a ser julgada, aludindo a previsões normativas internacionais que
consideram aspectos como a orientação sexual e a identidade de gênero intrínsecos à condição
humana.
O quinto foi dedicado, exclusivamente, às considerações atinentes à chamada
“ideologia de gênero”.
O sexto tópico tratou da impossibilidade de conhecimento de pedido ressarcitório no
âmbito do controle concentrado de constitucionalidade. O pleito condenatório, fundado na
alegada responsabilidade civil do Estado, e tendo como objetivo a reparação de danos morais
daqueles que sofreram homofobia, seria inviável, pois, em ações constitucionais de perfil
objetivo, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, não se discutem
situações individuais ou interesses subjetivos, não havendo, portanto, vinculações a situações
jurídicas de natureza concreta. Portanto, o Ministro Celso de Mello não conheceu desse pedido
em seu voto, sendo acompanhado pelos demais ministros, que, de plano, seguiram o relator.
No sétimo tópico, esse julgador tratou do indeferimento do pedido de colmatação
mediante decisão da Suprema Corte, o qual trata da tipificação penal das condutas atentatórias
aos direitos e liberdades fundamentais dos integrantes do grupo LGBT+, por meio de função
legislativa atípica do Supremo e superação do princípio da legalidade penal. Se assim
procedesse a Corte, entendeu o ministro, estaria configurada clara e inconteste transgressão ao
postulado constitucional da separação dos poderes e, nada obstante, ao sobredito princípio
previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição. Não caberia ao Poder Judiciário,
consequentemente, atuar na anômala condição de legislador positivo.
O tópico de número oito foi dedicado a um panorama histórico a respeito do tratamento
preconceituoso, excludente e discriminatório despendido à vivência e às práticas homoeróticas
no Brasil, desde a criminalização do pecado da sodomia na jurisdição secular, passando pelo
tratamento vilipendioso dispensado pela Igreja Católica e pela Inquisição.
Em seguida, em seu nono tópico, esse julgador trouxe alguns dados empíricos da
violência homofóbica, a qual estão submetidos os integrantes da comunidade LGBT+ no país,
expondo manchetes veiculadas nos principais canais da mídia, bem como relatórios
constituídos por entidades especializadas no estudo dos números das agressões contra
57

homossexuais e transsexuais. Tudo isso para enfatizar a importância da coibição a essas


atitudes.
O tópico de número dez objetivou evidenciar a ação direta de inconstitucionalidade
por omissão como o instrumento necessário à concretização de cláusulas constitucionais
frustradas, em sua eficácia, por inércia injustificada do Estado. O ministro salientou que há
certos mandamentos de criminalização expressos na Carta Magna – a exemplo, os incisos XLI
e XLII do artigo 5º –, os quais demandam uma ação do Poder Legislativo a fim de efetivá-los,
sempre com observância ao princípio da proporcionalidade, em suas dimensões da proibição
de excesso e de proibição de proteção deficiente. Dessa forma, pode, sim, haver desrespeito à
Lei Fundamental advindo da inércia governamental, mais especificamente do Poder
Legislativo, tendo em vista que a imposição constitucional de legislar sobre determinado
assunto, de um lado, e a situação de omissão no adimplemento dessa prestação legislativa, de
outro, qualificam-se como os requisitos condicionantes da declaração da inconstitucionalidade
por omissão.
Por sua vez, no décimo primeiro tópico de seu voto, o relator, enfim, entendeu que o
quadro delineado nos autos evidenciou o nexo de causalidade entre a imposição constitucional
de legislar e a configuração da ausência desse provimento legislativo, sendo ele imprescindível
à punição de atos resultantes de discriminação e/ou violência direcionada a integrantes da
comunidade LGBT+, em função de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Na visão do
Ministro Celso de Mello, não mereceu acolhimento a alegação, trazida pelos representantes das
Casas do Congresso, no sentido de que a mera proposição legislativa, isto é, os inúmeros
projetos de lei que tramitam na Câmara e no Senado, afastaria a inércia inconstitucional do
Poder Legislativo, principalmente da mora deliberandi, a qual se verifica já no estágio de
deliberação das proposições veiculadas. Para dar esteio à sua posição, o decano relembrou a
decisão proferida, pela Suprema Corte, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.682, do
Mato Grosso, na qual foi relator o Ministro Gilmar Mendes, na qual, de igual modo, entendeu-
se que é possível constatar a omissão inconstitucional do Parlamento mesmo existindo projetos
legislativos submetidos à sua apreciação.
A inércia legislativa constatada gera manifesta lesividade às pessoas tuteladas pelas
cláusulas constitucionais inadimplidas (artigo 5º, incisos XLI e XLII, da Carta Constitucional),
justificando a intervenção, como consequência, do Poder Judiciário, notadamente a do STF, o
que, em casos omissos, como o então enfrentado na ADO 26, nada mais revelaria senão um
gesto de respeito da Corte à autoridade suprema da Lei Fundamental.
58

Dito isso, suspendeu-se a sessão, em razão da extensão do voto em questão.


Retomando os trabalhos, no dia 20 de fevereiro de 2019, no tópico de número doze de
seu voto, esse relator apresentou duas possíveis soluções à colmatação da inércia legislativa
declarada. A primeira delas seria a cientificação do Congresso Nacional de seu estado de mora,
para que adotasse, em prazo razoável, as devidas medidas para fazer valer os mandamentos dos
incisos XLI e XLII do artigo 5º do Texto Constitucional. Para o ministro, no entanto, essa
solução seria inócua, levando-se em consideração a vasta lista de precedentes onde, de maneira
não impositiva, o Supremo definiu prazo para que o Parlamento sanasse determinadas
inconstitucionalidades apontadas pela Alta Corte e, contudo, aquele se quedou inerte.
Portanto, a solução mais adequada ao julgador seria o reconhecimento imediato de que
as condutas homofóbicas, independentemente das formas pelas quais se manifestem,
enquadram-se na noção conceitual de racismo prevista na Lei nº 7.716/1989, conferindo-se, à
vista disso, interpretação conforme ao termo “raça” que trazem os preceitos dos tipos penais
incriminadores dessa lei. A noção ontológica de racismo, na sua dimensão social, como foi
cimentado pelo emblemático julgamento do Caso Ellwanger, prega que o conceito de raça é
fluido e varia de acordo com o tempo e local examinados, prescindindo de manifestações
biológicas, genéticas e fenotípicas. Dessarte, à raça a que se refere a Lei nº 7.716/1989 e seus
dispositivos subsomem-se os mais variados agrupamentos sociais, que vivenciam
comportamentos discriminatórios voltados à sua inferiorização por um grupo dominante e/ou
hegemônico, como, por exemplo, os integrantes da comunidade LGBT+ em face à dominação
cultural heterossexista.
Dessa maneira, reafirmando o posicionamento já adotado pelo STF, o relator
considerou a homofobia e a transfobia como espécies do gênero “racismo”, à luz de sua
interpretação sociológica-constitucional, incluindo-se, via de consequência, nos crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de raça. Frisou, também, que não se trata de
inovação legislativa ou reconstrução jurisdicional de tipos penais, mas sim de mera
interpretação e subsunção por meio de interpretação conforme à Constituição
Mais adiante, no décimo terceiro tópico de seu discurso, o Ministro Celso de Mello
proclamou a importância do Poder Judiciário no exercício da sua atividade hermenêutica, ao
tornar efetiva a prevenção e a repressão a atos de preconceito e discriminação contra pessoas
integrantes de grupos sociais vulneráveis, consoante se vislumbra no julgamento em questão.
59

No tópico ulterior, décimo quarto, o referido ministro apontou como um desafio à


concretização de uma sociedade igualitária e inclusiva toda e qualquer forma de intolerância,
dando ênfase àquela traduzida pelas atitudes homofóbicas.
Já no tópico quinze, o citado relator chamou a atenção para o fato de que, sob nenhuma
circunstância, a criminalização das condutas homofóbicas e transfóbicas deverá obstar a
liberdade de expressão religiosa, o proselitismo e as atividades confessionais, tomando por base
que esses direitos são, outrossim, decorrentes do Texto Constitucional e se configuram como
extensão da livre expressão do pensamento. A liberdade religiosa, para esse julgador, é
pressuposto essencial à prática do regime democrático, contanto que se excetuem os abusos,
porquanto a livre atividade confessional é deslegitimada quando atinge valores e bens jurídicos
sob a tutela constitucional, tais como o patrimônio moral dos integrantes da comunidade
LGBT+. Ou seja, não haveria inconstitucionalidade ao se professar, por exemplo, que a
homossexualidade constitui um pecado, sob a ótica cristã, mas, a partir do momento que o
discurso fosse revestido de ódio e direcionado aos homossexuais ou transgêneros, haveria abuso
ilegal, o qual deve, sob qualquer hipótese, ser punido.
Em seguida, no tópico dezesseis, o ministro relator dessa ação direta de
inconstitucionalidade por omissão exaltou a função contramajoritária do STF no presente
julgamento, visto que a essa Corte incumbe, no âmbito de um Estado Democrático de Direito,
por vezes, agir contra a maioria consagrada pela democracia, em ordem de garantir os interesses
e efetivar a devida proteção às minorias. Destacou ser evidente que o princípio majoritário
desempenha fundamental importância no processo decisório das instâncias governamentais,
mas que isso não pode legitimar a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos
fundamentais de grupos minoritários, sob pena de violação à própria essência qualificadora do
Estado Democrático de Direito.
No penúltimo postulado de seu voto, o décimo sétimo, esse relator traçou uma
correlação entre a “busca da felicidade” – expressão que traduz valor canonizado pela
Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1776 – e o princípio da
dignidade da pessoa humana, declarando que o direto à essa busca pela felicidade, enquanto
ideia-força que emana da dignidade de todos os seres humanos, orientou o seu voto, no sentido
de acolher, em parte, os pleitos formulados na ADO 26.
Por fim, no décimo oitavo tópico, esse ministro reiterou o papel fulcral que detém a
Suprema Corte em guardar e fazer valer a Constituição Federal.
60

Em síntese, o Ministro Celso de Mello, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade


por Omissão nº 26, votou no sentido de conhecer parcialmente dos pedidos formulados nessa
ação e, na extensão conhecida, dar-lhes provimento, a fim de: 1) reconhecer o estado de mora
inconstitucional do Congresso Nacional ante sua inércia em cumprir os mandados de
criminalização a que se referem os incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal; 2)
declarar, via de consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder
Legislativo; 3) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o artigo
103, parágrafo 2º, da Constituição, combinado com o artigo 12-H, caput, da Lei nº 9.868, de 10
de novembro de 1999; 4) conferir interpretação conforme à Constituição, para enquadrar a
homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos
penais definidos na Lei nº 7.716/1989, até que seja editada legislação autônoma, pelo Congresso
Nacional; e, 5) declarar que os efeitos dessa interpretação conforme somente passarão a ser
aplicados a partir da data de conclusão do julgamento.

3.4.3 A sessão do dia 21 de fevereiro de 2019: votos do relator do Mandado de Injunção


nº 4733, Ministro Luiz Edson Fachin, e dos Ministros Alexandre de Moraes e Luís
Roberto Barroso

3.4.3.1 O voto do Ministro Luiz Edson Fachin, relator do MI 4733: pelo conhecimento do writ
e procedência das ações

A quarta sessão de julgamento principiou com a leitura do voto do Ministro Edson


Fachin, relator do Mandado de Injunção nº 4733, no qual esse julgador, em primeiro lugar,
conheceu da via processual adotada pela ABGLT, bem como reconheceu a imposição do dever
legislativo de criminalizar as condutas homofóbicas, prerrogativa constitucional outorgada pelo
inciso XLI do artigo 5º da Lei Fundamental. A causa de pedir teria, assim, supedâneo na própria
Constituição.
Além disso, formulou um adendo, no qual consignou que a existência de projetos
legislativos em trâmite no Parlamento não caracterizaria óbice à cognoscibilidade do writ.
Adentrando o mérito da demanda, esse ministro julgou-a procedente, pois, a seu ver,
o mencionado inciso XLI do artigo 5º da Constituição Federal conteria, também, um efetivo
mandado de criminalização contra a discriminação homofóbica, sendo esta ordem de tal forma
imprescindível ao exercício dos direitos e liberdades individuais da comunidade LGBT+ que,
61

em face da mora inconstitucional do legislador, comportaria suprimento, mediante colmatação,


pela Suprema Corte, por meio de interpretação conforme da legislação de combate à
discriminação já existente.
Esse julgador, observou, ainda, que, conquanto sejam raros os precedentes que
examinaram o conteúdo do dispositivo constitucional que apregoa que “a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, há, conforme a
jurisprudência do STF e reiteradas decisões de organizações internacionais de direitos humanos,
um nítido mandado de criminalização das manifestações homofóbicas. Mencionou, a fim de
sustentar seu posicionamento, que a interpretação do disposto no artigo 5º, inciso XLI, da Carta
Magna, deve-se fazer de modo consentâneo ao que dispõe o artigo 4º da Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, da qual,
registrou, o Brasil é signatário:

Artigo IV: Os Estados partes condenam toda propaganda e todas as organizações que
se inspirem em ideias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de um
grupo de pessoas de uma certa cor ou de uma certa origem ética ou que pretendem
justificar ou encorajar qualquer forma de ódio e de discriminação raciais e
comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar
qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer atos de discriminação com
este objetivo tendo em vista os princípios formulados na Declaração universal dos
direitos do homem e os direitos expressamente enunciados no artigo 5 da presente
convenção [...]. (O grifo não consta na redação original).

Referido ministro entendeu, então, que estão presentes os dois requisitos necessários
à procedência do mandado de injunção, quais sejam: a ausência de concretização legislativa de
mandamento constitucional e a mora do Parlamento em regulamentar o tema.
A respeito da possibilidade de colmatação e do imediato provimento jurisdicional a
fim de viabilizar os direitos constitucionais frustrados, salientou esse relator que é cabível ao
Poder Judiciário atuar nos casos de inatividade, mora ou omissão do Poder Legislativo, e que
essa orientação foi acolhida pelo inciso II do artigo 8º da Lei nº 13.300, de 23 de junho de 2016,
o qual dispõe que, reconhecido o estado de mora legislativa, será deferida a injunção para
“estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das
prerrogativas reclamados [...]”.
Desse modo, ainda que versando sobre matéria penal, no caso em exame, disse esse
ministro, não seria possível alegar que a injunção deveria limitar-se ao mero reconhecimento
da mora, pois, conforme já assentado em decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal,
como no Caso Ellwanger, seria possível conferir interpretação conforme aos dispositivos da Lei
do Racismo, para que sejam tipificadas as condutas homofóbicas nos tipos penais desse diploma
62

legal, sem que, com isso, haja violação ao princípio da legalidade penal, traduzido no brocardo
de que nullum crimen nulla poena sine lege.
Por todas essas razões, conheceu esse relator do mandado de injunção e o julgou
procedente, a fim de: 1) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional; e, 2)
aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a
Lei 7.716/1989, dando interpretação conforme ao termo “raça” contido nos tipos penais dessa
legislação.
Na mesma oportunidade, registra-se, o Ministro Edson Fachin acompanhou o relator
da ADO 26, acolhendo, na íntegra, as razões do voto deste.
Igualmente, ao emitir seu juízo acerca do MI 4733, o Ministro Celso de Mello seguiu
integralmente seu respectivo relator, conhecendo e julgando procedente o writ.

3.4.3.2 O voto do Ministro Alexandre de Moraes: favorável à procedência das ações

O Ministro Alexandre de Moraes, primeiro dos demais ministros a conclamar o seu


voto, de plano, afirmou que seguiria ambos os relatores, tanto no que tangia ao conhecimento
dos pedidos e dos pressupostos de admissibilidade da ação quanto no que tocava ao mérito
desses pleitos.
Após adiantar qual seria a linha pela qual seu voto prosseguiria, esse ministro passou
a tecer algumas considerações acerca do tema, ressaltando ser de extrema importância, em sua
opinião, que os integrantes da comunidade LGBT+ vejam seus direitos e liberdades
fundamentais assegurados pela criminalização de condutas que contra eles atentem. A seguir,
esse julgador destacou que, ao fazer valer o inciso XLI do artigo 5º da Constituição Federal, ao
longo dos mais de trinta anos desde a promulgação da Lei Fundamental, o legislador sempre
deu ampla proteção aos mais variados grupos vulneráveis por meio de legislação penal (Lei do
Racismo, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Lei Maria da Penha etc.),
excluindo dessa custódia os homossexuais e transgêneros, o que inequivocamente caracterizaria
a mora inconstitucional do Parlamento.
“Nada insufla mais o criminoso que a impunidade”, comentou esse ministro, antes de
destacar que, dentro da função jurisdicional do STF, está, por óbvio, a atribuição de conferir
eficácia ao Texto Constitucional e aos valores por ele consagrados. Nesse sentido, conquanto
não seria passível de responsabilização caso o Parlamento deixasse de cumprir o prazo
eventualmente estipulado na ADO 26 e no MI 4733, a cientificação do estado acerca da mora,
63

por si só, não seria o bastante para efetivar o mandado constitucional de criminalização dos atos
homofóbicos. Por isso, em harmonia com seu entendimento do parágrafo 2º do artigo 103 da
Carta Magna, esse ministro entendeu ser possível (e necessário) conferir interpretação conforme
ao termo “raça”, trazido pela Lei de Racismo, com a finalidade de entender que, aos tipos penais
previstos nessa lei, pode-se subsumir a homofobia, sem, com isso, estar-se diante da edição de
nova legislação penal ou de analogia in malam partem, isto é, sem ofensa ao princípio da
legalidade penal.
Esse julgador arrematou dizendo que a interpretação conforme possui o condão de
compatibilizar leis e atos normativos preexistentes com o Texto Constitucional.

3.4.3.3 O voto do Ministro Luís Roberto Barroso: favorável à procedência das ações

O Ministro Luís Roberto Barroso proferiu o seu voto no mesmo sentido dos até então
proferidos, fazendo, inicialmente, a constatação de que a lei é um ato de vontade e a
interpretação constitucional, um ato de razão e exaltando, em seguida, a função
contramajoritária da Suprema Corte, que, no caso em tela, seria observada na concretização de
direitos e liberdades fundamentais de uma minoria (o grupo LGBT+), até então ignorados pela
vontade da maioria, traduzida pela mora inconstitucional que foi imputada ao Congresso.
Diante disso, esse ministro estabeleceu duas saídas possíveis a esse estado de inércia,
quais sejam: a cientificação do Poder Legislativo ou a colmatação e superação de tal inação por
meio da atividade judicial exercida no então julgamento, acabando por adotar a segunda
alternativa ao evocar o paradigmático Caso Ellwanger para justificar a compreensão do termo
racismo em sua dimensão sociológica-constitucional e, dessa maneira, determinar que a Lei do
Racismo seja aplicada a condutas homofóbicas a fim de coibi-las.
Ainda, salientou esse julgador o caráter claramente hermenêutico dessa decisão, que
versa sobre um conceito de “raça” já existente, editado pelo Parlamento em processo legislativo
de viés estritamente legal. Portanto, o âmbito de existência da norma, a definição do crime e a
cominação da pena seriam prévios, não se tratando, assim, de inovação da ordem jurídica em
matéria penal.
Em seguida, foi suspenso o julgamento por prazo indeterminado.
64

3.4.4 A sessão do dia 23 de maio de 2019: os votos dos Ministros Rosa Weber e Luiz Fux,
consagrando-se a maioria para a procedência dos pedidos

3.4.4.1 O voto da Ministra Rosa Weber: favorável à procedência das ações

Como primeira a votar na sessão do dia 23 de maio de 2019, a Ministra Rosa Weber
abriu o seu voto com uma breve preliminar, em que reputou impossível o conhecimento da
ADO no que diz respeito ao pleito ressarcitório formulado, e acompanhou, na íntegra, ambos
os relatores, dando procedência aos demais pedidos.
Além de reprisar os fundamentos já lançados pelos votos anteriores, em especial os
dos ministros relatores, essa ministra observou que o princípio da legalidade estrita em matéria
penal é valor estruturante da democracia, do Estado Democrático de Direito e do próprio
conceito de Justiça, constituindo garantia intangível dos jurisdicionados, razão pela qual
reiterou a inviabilidade de acolher o requerimento no sentido de que o Supremo Tribunal
Federal, em função legislativa atípica, criasse novo tipo penal a fim de criminalizar a
homofobia. Todavia, essa julgadora entendeu ser plenamente cabível conferir interpretação
conforme à Lei 7.716/1989, enquadrando as condutas homofóbicas no termo “raça” presente
nesse mesmo diploma legal, conforme a definição sociológica-constitucional de racismo.

3.4.4.2 O voto do Ministro Luiz Fux: favorável à procedência das ações

O Ministro Luiz Fux votou nos mesmos termos dos relatores, afirmando, em síntese,
que a homofobia se tornou conduta generalizada no país, invocando o holocausto nazista e as
centenas de homossexuais mortos nos campos de concentração para acentuar a importância do
assunto. Depois disso, ao reconhecer o estado de mora do Poder Legislativo e tratar de como se
poderia proceder à sua remediação, esse ministro afirmou que a mera cientificação ao
Congresso Nacional seria medida ineficaz, pois, nem sempre, voz e voto no processo legislativo
são suficientes, tendo em vista que este pode culminar num veto.
Destarte, o caminho mais adequado a ser seguido, a seu ver, seria o de conferir
interpretação conforme à Constituição ao conceito de racismo apresentado pela Lei nº
7.716/1989, enquadrando nos tipos penais dessa legislação as condutas homofóbicas, visto que
a incitação jurisdicional, nesse caso, reclamaria uma resposta concreta e imediata do Poder
Judiciário.
65

Com esse veredito, consolidou-se a maioria no julgamento, de forma que à efetivação


do mandamento constitucional de criminalizar a homofobia já havia, então, uma resposta.

3.4.5 A sessão do dia 13 de junho de 2019: os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo
Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e Dias Toffoli e o placar final
de 8x3 a favor da criminalização da homofobia

3.4.5.1 O voto da Ministra Cármen Lúcia: favorável à procedência das ações

A sexta e última sessão teve início com o voto da Ministra Cármen Lúcia em sentido
idêntico aos votos até então proferidos.
No cerne de sua decisão, essa ministra explicitou que todo preconceito é violência e
toda discriminação é causa de sofrimento, mas alguns preconceitos impõem mais sofrimento
que outros, porque são feridas abertas em casa e que, por isso, castigam a pessoa desde o seu
lar. A homofobia seria uma dessas hostilidades que permeiam, na maioria das vezes, o próprio
seio familiar do indivíduo.
A inércia do Poder Legislativo em criminalizar as condutas homofóbicas seria um
evidente atentado às liberdades e garantias individuais dos integrantes da comunidade LGBT+,
gerando o pertinente questionamento de “onde está o Estado?”. Ante essa mora, teria de
responder legalmente o Poder Público, impedindo que os direitos se transformem, do contrário,
em temeridades.
Para essa julgadora, as normas de um Estado complementam-se a fim de ser eficientes
na finalidade determinada constitucionalmente, possuindo obrigatoriedade o seu cumprimento
pelos poderes da República, de modo que não se deixe de observar princípios fundamentais,
estruturantes da própria nação brasileira. Por isso, essa ministra votou no sentido de conhecer
parcialmente dos pedidos (à exceção do pleito ressarcitório) e, no que tange ao mérito, julgá-
los procedentes, exceto no ponto em que havia pedido de que a Suprema Corte agisse em função
legislativa atípica, tipificando, por conta própria, um novo tipo penal apto a criminalizar a
homofobia.
66

3.4.5.2 O voto do Ministro Ricardo Lewandowski: pela parcial procedência das ações, a fim
de reconhecer, apenas, a mora legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia

A decisão do Ministro Ricardo Lewandowski foi a primeira parcialmente contrária à


unanimidade que vinha se desenhando, pois, para ele, não haveria espaço, numa democracia,
para o preconceito e a violência, ainda mais quando direcionada às parcelas minoritárias, as
quais demandam especial proteção do Estado.
Nesse sentido, a criminalização de condutas discriminatórias contra a comunidade
LGBT+ não seria apenas um passo importante, mas também obrigatório da parte do Congresso
Nacional, uma vez que a Constituição Federal contém claro mandado de criminalização para
tanto: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais”.
Paralelamente, esse ministro foi o primeiro a reconhecer que, embora simbólica e
dotada de significativa importância, a criminalização da homofobia e da transfobia seria apenas
o primeiro passo, dado que a intolerância e o desrespeito aos indivíduos com sexualidade
desviante à padrão ou que não se encaixam no gênero a eles predeterminados é prática
profundamente arraigada na sociedade. Destarte, estar-se-ia a tratar da necessidade de
mudanças culturais complexas, que, uma vez concretizadas, serão incorporadas à práxis jurídica
e política gradativamente, sem, contudo, que essa reflexão diminua a importância de que o
primeiro passo seja dado.
Todavia, em que pese tenha reconhecido a mora legislativa do Parlamento, bem como
votado no sentido de o cientificar para que tome as providências cabíveis, esse ministro
Lewandowski não acompanhou seus demais pares no sentido de enquadrar os atos homofóbicos
na Lei do Racismo, por entender que tal atitude caracterizaria ofensa ao princípio da legalidade
penal, pois somente a lei, em sentido formal, poderia criminalizar uma conduta. Para justificar
seu entendimento, esse julgador trouxe à baila o acórdão unânime da Primeira Turma do STF,
que, ao analisar o Inquérito 3.590/DF, entendeu que a Lei nº 7.716/1989 “tipifica o crime de
discriminação ou preconceito considerada a raça, a cor, a etnia, a religião ou a procedência
nacional, não alcançando a decorrente de opção sexual”13.

13
Conforme consta do acórdão proferido nos autos do Inquérito nº 3.590/DF, do qual foi relator o Ministro Marco
Aurélio: em 8 de janeiro de 2013, a Procuradoria-Geral da República ofereceu denúncia em desfavor do deputado
federal Marco Antônio Feliciano (do Partido Social Cristão à época), por suposta prática do crime previsto no
artigo 20, caput, da Lei do Racismo, em virtude de ter ele publicado manifestação discriminatória em relação a
homossexuais, na rede social Twitter. A acusação formulou seu pedido tendo por base o julgamento do Caso
Ellwanger (Habeas Corpus nº 82.424, do Rio Grande do Sul), no qual a Suprema Corte entendeu por ampliar o
67

3.4.5.3 O voto do Ministro Gilmar Mendes: favorável à procedência das ações

Em seguida, apresentou seu voto o Ministro Gilmar Mendes, que acompanhou, na


íntegra, os relatores, pontuando a existência de um reiterado estado de exposição de minorias a
atos odiosos de desrespeito aos seus direitos, sem que haja uma resposta efetiva do Poder
Público em resguardar as esferas jurídicas individuais ameaçadas e violadas.
Sob esse prisma, referido julgador entendeu que uma leitura constitucional da Lei do
Racismo permitiria auferir que o legislador não logrou efetivar, na sua totalidade, o mandado
de criminalização imposto nos incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição, sendo a
colmatação da lacuna normativa buscada a solução para essa omissão parcial e inconstitucional.
De acordo com esse raciocínio, para esse ministro, seria plenamente possível declarar que a
norma destinada à tipificação da discriminação ou preconceito de raça, de cor, de etnia, de
religião ou de procedência nacional seja utilizada, de forma mais ampla, para que, no conceito
de raça, enquadrem-se as condutas homofóbicas.

3.4.5.4 O voto do Ministro Marco Aurélio Mello: pelo não conhecimento do MI e pela
improcedência da ADO

O voto mais discrepante de todos foi o do Ministro Marco Aurélio, penúltimo a se


manifestar, no qual, de plano, esse julgador anunciou seu entendimento de que a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão é meramente declaratória e não constitutiva, razão pela qual
não haveria de se falar em imediata resposta judicial, ou em colmatação por parte da Suprema
Corte para a efetivação dos direitos fundamentais supostamente violados.
Por outro lado, esse ministro não se furtou a mencionar a importância do combate a
quaisquer formas e espécies de discriminação, em especial, a que, in casu, foi examinada:
aquela praticada contra os integrantes da comunidade LGBT+. Essa necessidade, entretanto,
não frustrou seu entendimento de que: 1) a via eleita pela ABGLT a fim de buscar uma resposta
judicial, por meio de mandado de injunção, foi inadequada, razão pela qual não conheceu dos
pleitos nele formulados; e, 2) apesar de cabível a ação direta de inconstitucionalidade por
omissão, não merece ela ser provida, tendo em vista que não houve mora do Parlamento em

conceito de racismo contido no já citado diploma legal. Por unanimidade, os ministros da Primeira Turma do
Supremo rejeitaram a denúncia, classificando a conduta descrita na exordial acusatória como atípica.
68

cumprir mandado específico de criminalização das condutas homofóbicas, pois esse mandado
simplesmente inexiste no texto da Constituição.
Para esse ministro, o mandamento insculpido no inciso XLI do artigo 5º da Lei
Fundamental não diz respeito a incriminação propriamente dita de condutas, de modo que o
imperativo “punirá”, contido em sua redação, não pode ser interpretado dessa maneira.
Em consequência, segundo esse julgador, inviável seria estabelecer que a Lei nº
7.716/1989 atenderia, também, à criminalização da homofobia, de modo que um precedente
nesse sentido causaria um baque à segurança jurídica dos cidadãos, além de violar
expressamente o princípio da reserva legal em matéria penal. Argumentou, ainda, esse ministro
que, mesmo superados esses entraves, ao reconhecer-se que o termo “raça”, trazido pela referida
legislação, abarcaria a comunidade LGBT+, instaurar-se-ia um paradoxo, pois, não seria
possível afirmar que o Poder Legislativo incorrera em mora inconstitucional, já que a
criminalização da homofobia estaria implícita na Lei do Racismo desde a sua edição.
Com isso, assentado na premissa de que uma decisão nesse sentido, ao ser proferida
pela Suprema Corte, caracterizaria interferência do Poder Judiciário no Poder Legislativo, esse
ministro rechaçou as teses suscitadas nas presentes demandas, sob pena de que seu acolhimento
implicaria em óbice ao alcance de um patamar mínimo civilizatório.

3.4.5.5 O voto do Ministro Dias Toffoli: pela parcial procedência das ações, a fim de
reconhecer, apenas, a mora legislativa do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia

Por último, votou o então presidente da Corte, Ministro Dias Toffoli, que, sem
delongas, acompanhou, integralmente, o voto do Ministro Ricardo Lewandowski.

3.4.6 O resultado do julgamento e a fixação da tese

Após o término da votação, vencidos, em parte, os Ministros Ricardo Lewandowski e


Dias Toffoli, bem como vendido, em maior extensão, o Ministro Marco Aurélio, passou-se a
palavra ao decano do Supremo Tribunal Federal, Ministro Celso de Mello, que fixou a tese, na
ADO 26, nos termos assim dispostos: 1) até que sobrevenha lei editada pelo Congresso
Nacional, por meio de regular processo legislativo, destinado a implementar os mandados de
incriminação contidos nos incisos XLI e XLII do artigo 5º da Carta Magna, as condutas
homofóbicas, por caracterizarem expressões do racismo, em sua dimensão social, ajustam-se
69

aos tipos penais da Lei nº 7.716/1989, constituindo, na hipótese de homicídio doloso,


circunstância que o qualifica como motivo torpe; 2) a repressão penal da homofobia não
restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação
confessional, sendo assegurado o direito de pregar e divulgar o seu pensamento e suas
convicções, de acordo com seus livros e códigos sagrados, desde que tais manifestações não
caracterizem discurso de ódio, entendido aqui como toda manifestação que incite a
discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual
e/ou identidade de gênero; e, 3) por fim, o conceito de racismo, em sua dimensão social, resulta
de uma construção histórico-social, motivada pela justificação a desigualdade e destinada ao
controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade e da
dignidade dos que integram o grupo vulnerável (nesse caso, o LGBT+), projetando-se, dessa
forma, para além de aspectos biológicos ou meramente fenotípicos.
Cumpre destacar que a tese contou com a anuência do Ministro Edson Fachin, que a
estendeu para o Mandado de Injunção nº 4733, bem como foi subscrita pelos demais membros
da Suprema Corte, à exceção, por óbvio, do Ministro Marco Aurélio.
70

4 A ANÁLISE DAS DECISÕES PROFERIDAS, PELO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL, NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO Nº
26 E NO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4733, QUE CRIMINALIZOU A
HOMOFOBIA, ACERCA DA SUA OBSERVÂNCIA OU NÃO DO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE PENAL

4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste capítulo, proceder-se-á a uma análise aprofundada acerca das decisões


proferidas, pelo Supremo Tribunal Federal, na ADO 26 e no MI 4733, à luz do princípio da
legalidade penal e dos seus desdobramentos. Para isso, este capítulo está dividido em dois itens,
estando o primeiro destinado a uma abordagem histórica e conceitual do princípio da legalidade
penal e dos seus desdobramentos, bem como à sua distinção em relação ao princípio da
legalidade geral e ao seu papel num Estado Democrático de Direito; e o segundo, à análise do
julgamento objeto da presente monografia, partindo de uma explanação acerca da natureza
jurídica das decisões em sede de ação direta de inconstitucionalidade por omissão e de mandado
de injunção, passando por considerações acerca da hermenêutica da lei penal e do conceito
sociológico de racismo e, por fim, da observância de cada um dos corolários da legalidade penal
no decisum em apreço.

4.2 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE


DIREITO

4.2.1 A origem contratualista do poder punitivo

Desde os primórdios, o ser humano teve de viver em grupos para satisfazer suas
necessidades e, consequentemente, garantir sua sobrevivência.
As relações estabelecidas entre os integrantes de tais organizações e, em maior efeito,
também entre essas sociedades entre si, foram sempre das mais variadas. Beccaria (1999, p. 23)
afirma, logo na introdução de seu “Dos Delitos e das Penas”, que há uma tendência intrínseca
a uma reunião entre homens de se concentrar, no menor número possível deles, os privilégios,
o poder e a felicidade, relegando-se à maioria, em contrapartida, a miséria e a fraqueza.
71

O contratualismo, corrente filosófica cuja origem remonta ao século XVII, ocupa-se


da questão ventilada por Beccaria e busca, em linhas gerais, explicar a gênese de uma ordem
social. Por meio de um experimento mental, o indivíduo, dentro da lógica contratualista, é
isolado de seu tempo e espaço e, de posse de propriedades básicas, tais como, a racionalidade,
o autointeresse e a liberdade, é colocado em conjunto com outros indivíduos, numa interação
em que cada qual é regido pela autonomia da vontade. Como esses homens sustentam diferentes
interesses, não tardam eles a entrar em conflito por conta disso, visto que dispõem de igual
capacidade para satisfazer seus desejos (CHIAPPIN; LEISTER p. 13-14).
A ausência de um ente regulador dos diferentes interesses transforma, então, o Estado
de Natureza em que os mencionados indivíduos se encontravam em um Estado de Guerra, o
qual impede a estabilidade da cooperação entre os homens. Somente por meio de um pacto
entre eles, isto é, de um contrato social, é que surgirá o Estado Civil (CHIAPPIN; LEISTER, p.
13-14), sendo este a figura responsável por cessar o constante embate entre os desejos
individuais e cimentar a união em prol de um bem comum, ainda que isso signifique a renúncia
à liberdade total.
Do pensamento contratualista extrai-se, portanto, que o ser humano apresenta duas
formas de comportamento social: ora tencionando satisfazer-se às expensas dos demais e
buscando desmedidamente seus interesses particulares, ora aliando-se a seus iguais e trilhando
um caminho geral em função do bem-estar coletivo. Entretanto, na maioria das vezes, essa
dicotomia não é clara e jamais adquire caráter universal, de modo que nem sempre os objetivos
idôneos de uma parte da sociedade correspondem aos propósitos ímprobos de outra. Assim, o
ente soberano (Estado Civil) a que se referiam os contratualistas, serviria como um
disciplinador das relações entre os cidadãos e assumiria a função de neutralizar esses fins
considerados licenciosos e avessos à paz, bem como à estabilidade da organização social.
Séculos mais tarde, em 1919, durante uma conferência à Universidade de Munique –
posteriormente conhecida como “A Política como Vocação” –, Weber (2011, p. 56) definiria
Estado como sendo “uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado
território, reivindica o monopólio legítimo do uso da violência física”.
Esse mecanismo de coerção delineado por Weber configura-se como o principal meio
de prescrever as condutas, controlar os excessos e, sobretudo, reprovar as transgressões através
de uma punição (sanção). Trata-se do ius puniendi, isto é, o direito de punir.
Passaremos a duas análises desse conceito. A primeira exposta pelo já mencionado
Cesare Beccaria e, logo em seguida, por Michel Foucault.
72

Beccaria (1999, p. 27), seguindo o viés do contratualismo14, parte do pressuposto de


que todos os membros da sociedade, cansados de possuírem uma liberdade que, graças à
incerteza de conservação, torna-se inútil, sacrificam-na parcialmente para que possam usufruir
do restante em segurança. É justamente o depósito de todas essas liberdades o componente da
soberania de uma nação.
No entanto, seria necessário proteger esse depósito contra as usurpações dos homens,
uma vez que sua tendência para o despotismo os faria retirar do todo não apenas sua porção de
liberdade, mas também a dos restantes. A proteção contra a usurpação de que trata Beccaria
seriam as penas estabelecidas contra os infratores das leis (BECCARIA, 1999, p. 27).

A multiplicação do gênero humano, pequena por si só, mas muito superior


aos meios que a estéril e abandonada natureza oferecia para satisfazer as
necessidades que cada vez mais se entrecruzavam, é que reuniu os primeiros
selvagens. As primeiras uniões formaram necessariamente· outras para
resistir àquelas e, assim, o estado de guerra transportou-se do indivíduo para
as nações. Foi, portanto, a necessidade, que impeliu os homens a ceder parte
da própria liberdade. É certo que cada um só quer colocar no repositório
público a mínima porção possível, apenas a suficiente para induzir os outros
a defendê-lo. O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o
direito de punir. O resto é abuso e não justiça, é fato, mas não direito.
(BECCARIA, 1999, p. 28-29).

Logo, a punição teria de ser gerida unicamente pelo Estado, evitando, dessa forma,
eventuais excessos – inevitáveis se aos indivíduos fosse concedida a autotutela. A obra de
Beccaria, dessa forma, assume jaez atemporal, por regularizar, desde sua época, toda forma de
excesso, atribuindo, inclusive, limites ao ius puniendi, como evidencia o trecho final do excerto
acima transcrito.
Já Foucault (1987, p. 41) comunga da noção de que um delito não ofende apenas sua
vítima imediata, mas, com igual efeito, o soberano (Estado), visto que a lei é uma expressão da
força de vontade deste. Portanto, a intervenção do Estado não é mera “arbitragem entre dois
adversários; é mesmo muito mais que uma ação para fazer respeitar os direitos de cada um; é

14
Não se pode olvidar, é claro, que há outros fundamentos do ius puniendi, como aquele calcado no jusnaturalismo,
defendido por Giandomenico Romagnosi, que encara a pena como um mecanismo de defesa social, instituindo,
por conseguinte, um contra-estímulo ao impulso criminoso, e, ainda, aquele sustentado por Francesco Carrara, o
qual apregoa que a função da pena e, via de consequência, do direito de punir, é a eliminação do perigo social
oriundo da impunidade do delito, o qual é entendido, por esse autor, como uma violação à lei absoluta (direito),
emanada da vontade do próprio Criador (BARATTA, 2002, p. 35-37). Optou-se, no entanto, por uma abordagem
do viés contratualista do direito de punir por constituir esta a mais aventada hipótese de seu surgimento, bem como
por constituir a obra de Beccaria “a expressão de todo um movimento de pensamento, em que conflui toda a
filosofia política do Iluminismo europeu [...]” (BARATTA, 2002, p. 33).
73

uma réplica direta àquele que a ofendeu”, isto é, àquele que ofendeu a vontade do poder
soberano.
O direito de punir, para esse autor, é, consequentemente, uma extensão do direito que
tem o Estado de guerrear contra seus inimigos, fazendo valer a execução de suas leis por meio
do ordenamento da punição do crime. Nesse sentido, pode-se encarar o ius puniendi como um
instrumento de vingança pública, uma espécie de reparação da honra estatal em defesa da
sociedade (FOUCAULT, 1987, p. 42).
Divergentes em seus conteúdos, as definições de Beccaria e Foucault, contudo,
apresentam um ponto de convergência: a preocupação com o vício do excesso atrelado à
punição.

O direito de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da sociedade. Mas


ele se encontra então recomposto com elementos tão fortes, que se torna quase mais
temível. O malfeitor foi arrancado a uma ameaça, por natureza, excessiva, mas é
exposto a uma pena que não se vê o que pudesse limitar. É necessário se colocar um
princípio de moderação ao poder do castigo. (FOUCAULT, 1987, p. 76).

A primeira grande limitação à criminalização, fruto de uma conquista do Estado


moderno liberal, e também a principal salvaguarda do indivíduo frente ao poder punitivo é o
princípio da legalidade penal, o qual impede que se atribua uma conduta a determinada pessoa,
com o objetivo de aplicar-lhe uma sanção, sem que essa conduta e sua punição estejam
estabelecidas em lei escrita, estrita, certa e prévia (BISSOLI FILHO, 2016, p. 36-37). Quiçá
um dos instrumentos mais paradigmáticos na regulamentação do ius puniendi, este princípio
exsurge como uma exigência constitucional dos Estados Democráticos de Direito, bem como
serve de marco teórico para a proteção dos direitos e liberdades fundamentais (LIMA, 2012, p.
50).

4.2.2 Origens e fundamentos políticos e jurídicos do princípio da legalidade penal

Atualmente insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil em seu


artigo 5º, inciso XXXIX, sob o enunciado de que “não há crime sem lei anterior que o defina,
nem pena sem prévia cominação legal”, assim como o é na redação do artigo 1º do Código
Penal brasileiro, o princípio da legalidade penal tem o seu gérmen na Antiguidade.
A prática de uma transgressão (fosse ela delito ou “pecado”), em qualquer
agrupamento social, sempre gerou como consequência a imposição de uma sanção, muitas
vezes arbitrária. Houve quem defendesse, desde os primórdios, que tal medida punitiva, como
74

era expressa, não satisfazia o ideal de cada indivíduo, que era, em última instância, o de se livrar
da arbitrariedade e da tirania dos mais poderosos (MOSSIN, 2014, p. 245).
É no Direito Romano, entretanto, que se pode encontrar a primeira noção de uma
legalidade incipiente, mais especificamente nas chamadas quaestiones perpetuae, no qual,
cuidando-se das crimina publica, previstas nas leges Corneliae e Juliae, estava prevista a
anterioridade da lei para a punição de determinados crimes (MOSSIN, 2014, p. 245).
Posteriormente, as mudanças operadas com o Direito romano imperial fizeram que o
princípio da legalidade rígida fosse repudiado. A instituição do processo extraordinário firmou,
como fontes do direito penal, além das antigas leis populares, um vasto conjunto de legislações
calcadas pelo consuetudinário. Permitia-se até mesmo a analogia, embora uma ação jamais
pudesse ser punida somente pelo fato de ser “merecedora” de uma sanção, devendo o tribunal,
ao fazer incidir as penas extraordinárias, consultar as fontes jurígenas, a fim de evitar abusos
(HUNGRIA, 1977, p. 37-38).
Por outro lado, durante a Idade Média, na medida em que a lei escrita foi, quase por
completo, substituída pelos costumes, seguindo os passos do processo romano extraordinário,
o despotismo do juiz ou do rei eram inigualáveis, admitindo-se, inclusive, a dispensa da
aplicação analógica na criação de novos delitos. Não existia o mínimo de segurança ao cidadão
a quem se queria punir (MOSSIN, 2014, p. 247).
Por conseguinte, em termos de legislações constitucionais, um incipiente princípio da
legalidade foi expresso, pela primeira vez, na Magna Carta da Inglaterra, em 1215, com a
redação de que “nenhum homem pode ser preso ou privado de sua propriedade a não ser pelo
julgamento de seus pares ou pela lei da terra” (MOSSIN, 2014, p. 248). Diz-se incipiente pois
a doutrina majoritária não considera que o enunciado desse documento carregasse uma
legalidade garantista, mas, pelo contrário, uma garantia meramente processual, a qual se
restringia a uma minoria muito específica, composta pela aristocracia feudal, como resposta a
uma troca de privilégios (SANTOS, 2016, p. 21).
O entendimento dominante é o de que o princípio da legalidade penal, em sua acepção
hodierna, surgiu a partir da Revolução Burguesa e em face da sua respectiva inscrição nas
legislações das colônias americanas que se tornavam independentes (Filadélfia, em 1774;
Virgínia, em 1776; e Maryland, em 1776), fruto de inspirações notadamente iluministas
(SANTOS, 2016, p. 119-120). Ainda, cumpre destacar a sua presença nas Petitions of Rights
norte-americanas e, dotado de maior ênfase, na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, documento máxime da Revolução Francesa, que, em seu artigo 8º, exprime: “A lei
75

apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido
senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada”
(MOSSIN, 2014, p. 248).
A positivação, por assim dizer, dessa garantia tão substancial à área do direito penal
encontra fundamentos políticos e jurídicos bastante delineados.
A burguesia do século XVIII demonstrava insatisfação com os excessos do poder
punitivo estatal, e buscava, em linhas gerais, a delimitação de parâmetros que pudessem prever
todo tipo de conduta punível, com base tanto na legalidade quanto no princípio retributivo, este
último calcado na correlação entre culpa e punição e também na exclusão de quaisquer
elementos teleológicos (RUSCHE; KIRCHHEIMER apud BISSOLI FILHO, 2016, p. 37).
O fundamento político do princípio da legalidade, ao contrário do fundamento do
direito de punir beccariano, por exemplo, que volve ao contratualismo de Hobbes e Rousseau,
está na teoria da supremacia da legislação, de Locke, e na teoria da separação dos poderes, de
Montesquieu, bem como atrela-se à concepção de um Estado liberal, em cujo ideário orbitam
ideais como a divisão de poderes ou funções e a garantia dos direitos e liberdades individuais
(BISSOLI FILHO, 2016, p. 37-38).
Por sua vez, o fundamento jurídico do princípio da legalidade penal consiste no fato
de que a lei liga determinada violação do direito a um mal, o qual serve como consequência
jurídica necessária, lançando-se mão, assim, de uma espécie de coação psicológica impeditiva
de crimes (BISSOLI FILHO, 2016, p. 39).
Nesse contexto, foi Feuerbach quem elaborou os termos da máxima latina nullum
crimen, nulla poena sine lege, dando contornos mais científicos ao princípio da legalidade penal
e, com isso, criando vínculos com a teoria da coação psíquica por ele defendida (MOSSIN,
2014, p. 247). Acerca disso, discorre, Bissoli Filho (2016, p. 38-39):

[...] Feuerbach deduz que “toda pena jurídica dentro do Estado é a consequência
jurídica, fundada na necessidade de preservar os direitos externos de uma lesão
jurídica e em uma lei que comine um mal sensível”. Desse princípio, Feuerbach extrai
que “toda imposição de pena pressupõe uma lei penal”; que “a imposição de uma pena
está condicionada à existência da ação cominada”; e que “o fato legalmente cominado
(o pressuposto legal) está condicionado pela pena legal”. Disso resulta a fórmula latina
nullum crimen, nulla pena sine lege, que, tradicionalmente, expressa o princípio da
legalidade penal.

No ordenamento jurídico pátrio, o princípio da reserva legal foi recepcionado pela


Constituição Imperial de 1824, mais especificamente em seu artigo 179, inciso XI, o qual
dispunha que: “Ninguém será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de
76

Lei anterior, e na forma por ela prescrita”. Da mesma forma, o primeiro artigo do Código
Criminal do Império, de 1830, estabelecia que “Não haverá crime, ou delito sem uma Lei
anterior, que o qualifique”, possuindo este mesmo diploma legal, ainda, uma prescrição em
relação às penas especificamente, em seu artigo 33: “Nenhum crime será punido com penas,
que não estejam estabelecidas nas leis, nem com mais, ou menos daquelas, que estiverem
decretadas para punir o crime no grau máximo, médio, ou mínimo, salvo o caso, em que aos
Juízos se permitir arbítrio” (BISSOLI FILHO, 2016, p. 41).
O princípio da legalidade penal manteve-se vivo nas demais Constituições brasileiras
(1891, 1934, 1946 e 1988), exceto naquelas que vigoraram nos períodos de governos
autoritários da República (a saber, as de 1937, 1967 e 1969, a primeira referente ao Estado
Novo, de Vargas e as duas últimas, à Ditadura Militar), bem como no Código Penal do Império,
de 1832, no Código Penal de 1890, na Consolidação das Leis Penais de 1932 e, por fim, no já
mencionado Código Penal de 1940, em vigor até os dias de hoje (BISSOLI FILHO, 2016, p.
41).

4.2.3 O princípio da legalidade (em sentido lato e estrito) e o Estado Democrático de


Direito

Ao analisarmos o sistema político de determinado Estado, não se pode olvidar a


legitimidade de seu respectivo poder punitivo. É desse perfil político-punitivo que dependerão
determinadas garantias e é também na análise desse mesmo perfil que se poderá identificar se
o posicionamento adotado por tal Estado poderá ser considerado democrático ou não
(SANTOS, 2016, p. 21).
Santos (2016, p. 22) destaca que há diferenças entre um Estado de Direito e um Estado
Democrático de Direito e ambas as formas não se confundem. Em um estado de mera
legalidade, que se amolda à primeira opção, há uma espécie de submissão de todos ao império
da lei, por mais arbitrária e desumana que esta possa se apresentar.

Nesse viés, os Estados Nazista e Fascista, defendidos a todo custo por Hitler e
Mussolini, respectivamente, podem ser subsumidos como Estado de Direito. As
ditaduras Franquista e Salazarista, do mesmo modo. Todavia, nem por isso tais
sistemas foram democráticos. Pelo contrário: mesmo regidos pelo império de uma lei
vigente e sob a desculpa de se seguir uma ordem necessária, a forma de atuação
punitiva desses Estados desrespeitou direitos e garantias fundamentais. (SANTOS,
2016, p. 22).
77

Decorre daí a necessidade de um Estado Democrático de Direito não apenas ser


fundado sob a égide da lei, mas também que suas regras sejam pautadas em certos limites e na
efetivação das garantias fundamentais de seus cidadãos, bem como na dignidade da pessoa
humana (SANTOS, 2016, p. 22).
A tarefa de discorrer sobre as garantias ou direitos tidos como fundamentais dos
cidadãos demanda uma profunda reflexão sobre os princípios que embasam o sistema de direito
ao qual estão entrelaçados (LIMA, 2012, p. 49). Nesse contexto, emerge o princípio da
legalidade em seu sentido lato (mera legalidade) e estrito (legalidade penal).
É necessário, preliminarmente, distingui-los.
Ao passo em que o princípio da legalidade penal, do qual vinha-se tratando ao longo
deste capítulo, está disposto, como já mencionado alhures, no inciso XXXIX do artigo 5º da
Constituição Federal, a legalidade geral é expressa pela máxima de que “ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, mandamento este insculpido
no inciso II daquele mesmo dispositivo (SOARES, 2002, 62), não sendo demais ressaltar que
o primeiro axioma é decorrente deste último. A mera legalidade abarca, em última instância, a
as maneiras possíveis de se exigir (ou ainda autorizar) o indivíduo a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa (LIMA, 2012, p. 49).
Consoante Ferrajoli (2002, p. 76), um sistema penal garantista, isto é, correspondente
a um Estado Democrático de Direito, embora “tendencialmente e jamais perfeitamente
satisfatível”, resulta da adoção de dez axiomas ou princípios fundamentais: os princípios da
retributividade (ou da consequência da pena em relação ao delito), da legalidade (no sentido
lato e estrito), da necessidade (ou da economia do direito penal), da lesividade (ou ofensividade
do evento), da materialidade (ou exterioridade da ação), da culpabilidade (ou da
responsabilização pessoal); da jurisdicionariedade (também em sentido lato ou estrito);
acusatório (ou da separação entre juiz e acusação); do ônus da prova (ou da verificação); e, por
fim, do contraditório (ou da defesa/falseabilidade).
Conforme se pode perceber, a mera legalidade limita-se a exigir a lei como condição
necessária (quer seja da pena ou do delito) – nulla poena, nullum crimen sine lege –, enquanto
a legalidade estrita exige todo um conjunto de garantias como condições necessárias – nulla lex
poenallis sine necessitate, sine injuria, sine actione, sine culpa, sine judicio, sine accusatione,
sine probatione, sine defensione. Graças à legalidade lata, a lei é condicionante, mas é a
legalidade estrita que faz com que ela seja condicionada (FERRAJOLI, 2002, p. 76). Em
complemento,
78

[...] a simples legalidade da forma e da fonte é condição da vigência ou da existência


das normas que preveem penas e delitos, qualquer que seja seu conteúdo; a legalidade
estrita ou taxatividade dos conteúdos, tal como resulta de sua conformidade para as
demais garantias, por hipótese de hierarquia constitucional, é, ao revés, uma condição
de validade ou de legitimidade das leis vigentes. (FERRAJOLI, 2002, p. 76).

O princípio da legalidade, na esfera penal, e em consonância com um sistema


garantista, assume, então, uma dupla função: ao mesmo tempo vinculando a atividade
legiferante e a judicante, pois impõe ao legislador o processo a ser seguido na formulação das
leis penais, enquanto que sujeita o julgador a aplicar a lei penal apenas aos casos expressos em
(ou pela) lei (LIMA, 2012, p. 52). E, muito além de simples vinculação formal, o aludido
princípio constitui uma real limitação à interferência do Estado no âmbito das liberdades
individuais (TOLEDO apud LIMA, 2012, p. 52), justamente por tolher uma eventual
discricionariedade estatal em relação às aplicações e métodos punitivos.
É quase intuitivo, então, que este axioma se encontra albergado na cláusula
constitucional do Estado Democrático de Direito, tendo em vista que este não possuiria
condições fáticas e jurídicas de existência senão pela prevalência daquele. Em outras palavras,
o princípio da legalidade merece ser encarado como uma exigência constitucional, a qual visa
impor restrições que afetem liberdades individuais e, justamente por isso, sirva como marco
teórico para a proteção dos direitos fundamentais (LIMA, 2012, p. 49-50).

4.2.4 Conceito e desdobramentos ou corolários do princípio da legalidade penal

4.2.4.1 Considerações gerais

Por todo o exposto, entende-se que a legalidade é a base do direito penal, um


pressuposto incindível que, se não existisse, ao menos nas nações regidas pelo escopo do Estado
Democrático de Direito, faria do ius puniendi um instrumento sem significado, inapto a
produzir qualquer eficácia no campo jurídico (MOSSIN, 2014, p. 258).
O indivíduo só pode ser alvo da persecução penal se a conduta ensejadora por ele
praticada, positiva ou omissiva, estiver descrita de forma suficientemente objetiva no tipo penal
e, mais ainda, só pode ser punido em função desta conduta se a quantia de pena a lhe ser infligida
estiver contida num preceito expresso. Nessa afirmação, insere-se o conceito formal do
princípio da legalidade penal, que, em tutela à liberdade de ir, vir e permanecer do cidadão,
79

assim como à sua própria dignidade, cimenta a fixação de diretrizes para a tipificação de
condutas e a cominação de sanções penais (MOSSIN, 2014, p. 258).
Dessa forma, esse mesmo axioma estabelece, como condição necessária, que os
diferentes tipos penais e suas respectivas cominações ocorram somente por meio de lei, a qual
deve ser estrita (lex scricta), escrita (lex scripta), certa (lex certa) e prévia (lex praevia)
(BISSOLI FILHO, 2016, p. 39), sendo estes os seus corolários.
Ao afirmar-se que a lei deve ser estrita (nullum crimen, nulla poena sine lege stricta),
pressupõe-se que deverá ser fruto de um processo legislativo em sua integralidade, que tramite
perante representantes do povo em suas respectivas Casas Legislativas, até que seja a lei
promulgada e entre em vigor. Postulando que deve ela [a lei] ser escrita (nullum crimen, nulla
poena sine lege scripta), tem-se como proibido invocar costumes e analogia para os fins já
referidos. Na dimensão que deve ser a lei penal certa (nullum crimen, nulla poena sine lege
certa), caracteriza-se a exigência de que esta exprima, com clareza e completude, tanto a
conduta a ser punida como a sanção a que será submetida, com seus limites mínimos e máximos,
bem como regras de aplicação e execução. Por fim, o caráter prévio da lei penal (nullum crimen,
nulla poena sine lege praevia) entabula que, ao tempo da conduta, deve estar vigente a lei penal
que a descreve e lhe comina a sanção (BISSOLI FILHO, 2016, p. 42).
A divisão da legalidade penal em quatro postulados é um efeito do caráter doutrinário
que adquire esse princípio, cumprindo uma função específica de cunho hermenêutico,
concernente ao modo de interpretação da lei penal, e outra de natureza metodológica (ou
sistemática), relativa ao nexo entre a legalidade penal e a teoria do tipo, pois corresponderia à
fórmula de que não há delito sem tipicidade (CUNHA apud SOARES, 2002, p. 75).

4.2.4.2 Lex stricta

A Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso I, prevê que compete, privativamente,
à União legislar acerca de matéria penal, o que se dá por intermédio das duas câmaras que
compõem o Poder Legislativo do nosso país: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Nesse ponto, reporta-se à distinção já anteriormente consignada entre o princípio da
legalidade em sentido lato e em sentido estrito. Considerando a mera legalidade, e partindo da
premissa de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei, poderia se chegar à conclusão equivocada de que, então, qualquer documento
normativo proveniente da respectiva autoridade competente seria instrumento apto a prever
80

condutas típicas e a elas cominar sanções penais. Se assim o fosse, o instituto da medida
provisória, atribuição do Poder Executivo Federal que decorre do princípio da legalidade geral,
afigurar-se-ia como idôneo para criar leis penais ou impor penas (SANTOS, 2016, p. 122-123).
Embora a medida provisória esteja sujeita à apreciação do Congresso Nacional, sob
pena de perder sua eficácia ab initio se este não a ratificar dentro do prazo definido, a legalidade
estrita, por meio do corolário discutido neste tópico, impede, por exemplo, que o Presidente da
República legisle na esfera penal através deste ato unipessoal (SANTOS, 2016, p. 123).
A lei penal, portanto, deverá ser estritamente originada de um processo legislativo
idôneo, processo este que compreende as fases de apresentação de um projeto, sua discussão,
votação, aprovação, sanção, promulgação, publicação e, por fim, superado ainda o período de
vacacio legis, sua vigência no ordenamento jurídico, excluindo-se, via de consequência, os
decretos, resoluções, medidas provisórias e demais vias legislativas que, apesar de plenamente
legais, não se submetem ao rito legislativo ordinário, o qual se dá nas Casas Legislativas
compostas por representantes do povo, eleitos democraticamente (BISSOLI FILHO, 2016, p.
42).

4.2.4.3 Lex scripta

O postulado nullum crimen, nulla poena sine lege scripta veda a criação de crimes e a
cominação de penas pelo costume ou por meio de interpretação extensiva e analogia in malam
partem, de modo que só a lei pode ser fonte da norma incriminadora (MOSSIN, 2014, p. 259).
Ao prever comando normativo expresso, a lex scripta não admite o uso, em nenhuma
situação, de norma semelhante para a caracterização da figura típica, ainda que a título de
função integrante. Não se ignora que, no direito processual penal, é plausível e adequado o
emprego de analogia em face de lacunas ou hiatos, conforme expresso pelo Código de Processo
Penal15, desde que haja similitude entre as normas integrante e integrada. Já, no campo do
direito penal material, não há sequer hipótese de integração, de preenchimento de vazio,
justamente por se firmar o princípio da reserva legal em lei penal uma garantia do indivíduo
(MOSSIN, 2014, p. 260-261).
Com isso, entra em voga, outrossim, a questão das normas penais em branco que
vigoram em nosso ordenamento jurídico. São elas dispositivos penais incriminadores de caráter

15
Art. 3º. A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento
dos princípios gerais de direito.
81

indeterminado ou imperfeito, uma vez que, mesmo descrevendo condutas típicas, transferem a
outro órgão a tarefa de complementação por meio da formulação de novo dispositivo normativo
(lei, regulamento, ato administrativo etc.). A justificativa para a legalidade das normas penais
em branco consiste na afirmação de que a mera regulamentação não outorga poder repressivo
às instituições responsáveis por seu incremento (SOARES JÚNIOR, 2002, p. 80).
Por fim, no que tange aos costumes, impende ressaltar que a exigência de lei escrita,
como corolário da legalidade penal, não significa a negação da importância dos costumes na
práxis do sistema jurídico-penal, sobretudo como fonte subsidiária das causas excludentes e,
mais ainda, como exegese de certas figuras típicas (SOARES JÚNIOR, 2002, p. 80).

4.2.4.4 Lex certa

Ao enunciar que a lei penal deverá ser certa, este corolário preconiza “a
obrigatoriedade da clareza e da precisão dos tipos penais, devendo ser evitada a redação vaga,
ambígua ou genérica, para não permitir dúvidas por parte de seus destinatários” (SOARES
JÚNIOR, 2002, p. 82).
Um fato somente poderá ser considerado criminoso em havendo uma perfeita
consonância entre ele e a norma que o prevê; portanto, a descrição da conduta e, igualmente,
da sanção atribuída, deverá ser clara, a fim de evitar influência do subjetivismo. Os tipos penais
demandam clareza sob o auspício de garantir a segurança jurídica dos cidadãos e, com isso,
evitar a discricionariedade do operador do direito – especialmente aquele a quem é dado o poder
de julgar – que, ao se deparar com conceitos elásticos, imprecisos ou muito abrangentes, poderia
efetivar interpretações convenientes (SANTOS, 2016, p. 126).
Além disso, tomando-se por base o fato de que a lei não se destina, apenas, aos
operadores do direito, mas, também, ao povo, a redação dos dispositivos penais incriminadores
deve ocorrer em linguagem apropriada à correta compreensão da população em geral, para que,
assim, desempenhe com êxito sua função de reprimir condutas criminosas (SOARES JÚNIOR,
2002, p. 83).

4.2.4.5 Lex praevia

Este axioma determina, em síntese, que a lei que prevê a infração deve estar em vigor
no momento em que esta for levada a efeito (SANTOS, 2016, p. 126).
82

A lex praevia traduz-se num reforço à ideia de que o direito penal está calcado na letra
da lei, assomando-se esta como a fonte soberana dos crimes e das penas. Por isso, a conduta
praticada, ainda que possua contornos imorais, antissociais ou ilícitos perante toda a sociedade,
jamais poderá ser encarada como crime e, mais ainda, ser punida, sem que antes exista um
dispositivo legal que a defina como tal (SOARES JÚNIOR, 2002, p; 79).
Nesse contexto, cabe invocar o caso do controverso Tribunal de Nuremberg, o qual
tinha por objetivo punir integrantes do terceiro Reich alemão durante a Segunda Guerra
Mundial. Nada obstante não houvesse uma corte internacional formalmente competente para
tanto, nem tampouco existisse um documento escrito a versar sobre a matéria, os então
cognominados criminosos de guerra foram julgados com base nas atrocidades por eles
perpetradas e/ou autorizadas no interregno do conflito, num estado nítido de tribunal ex post
factum. Por óbvio, as barbáries cometidas pelo regime nazista constituíram um afronte à
dignidade humana em sua essência, porém o viés jurídico adotado para a punição dos culpados
suscita, ainda hoje, críticas contundentes pelos operadores do direito (SANTOS, 2016, p. 126-
127), sem contar que delimitam uma conjuntura absurda à ótica da legalidade penal.
Dessarte, dispensa maiores esclarecimentos o postulado da lex praevia, tendo em vista
que a ausência de anterioridade da norma proibitiva impediria até mesmo a liberdade de
conduta, ao passo em que propiciaria o abuso, porquanto um comportamento, de acordo com a
conveniência deste ou daquele grupo, poderia ser considerado avesso ao Direito e, por esta
razão, digno de sanção (MOSSIN, 2014, p. 249).
Entretanto, merece ser apontado que a lex praevia rege a aplicação da lei penal no
tempo tão somente no que diz respeito à lei mais severa, de modo que a retroatividade da lei
penal mais benéfica é plenamente admissível (SOARES JÚNIOR, 2002, p. 79).

4.3 AS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADO Nº 26 E NO MI Nº


4733 EM FACE DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL

4.3.1 Aspectos introdutórios

Tão logo, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26


e do Mandado de Injunção nº 4733, foi atingida a maioria dos votos no sentido de entender a
homofobia como crime de racismo, as críticas à decisão começaram a irromper nas mais
diversas searas da sociedade.
83

O conjunto de desaprovações ao veredito da Suprema Corte, fossem tais


desaprovações de cunho jurídico ou ideológico, tinha em comum, contudo, um apontamento
bastante específico: a suposta afronta do acórdão ao princípio da legalidade penal.
Averiguar, com a devida seriedade, se o crivo do STF está de acordo com as
delimitações de um Estado Democrático de Direito é, em última medida, um dever dos
estudiosos do Direito, de modo a evitar os excessos que o sobredito princípio tem como objetivo
coibir. Contudo, em tempos em que a expressão “ditadura do judiciário” assume uma conotação
quase que banal, é necessário, antes de mais nada, distinguir as críticas ponderadas dos
posicionamentos puramente difamatórios. Ao fazer isso, e assim, ao isolar os pontos de vista
centrados, que se valem de argumentos sólidos ao enfrentar a questão, pode-se receber um sinal
verde ao debate saudável e construtivo de ideias.
De plano, consigna-se que o objetivo do presente item é analisar se as decisões
proferidas na ADO 26 e no MI 4733 ofendem ou não o princípio da reserva legal de lei em
matéria penal. Para tanto, utilizar-se-á de todo o aporte teórico trazido até o momento, cuidando
de unir o conceito fenomenológico de homofobia à sua intrínseca relação com a acepção
sociológica de racismo, recepcionada pela Suprema Corte brasileira, assim como tenciona
demonstrar que a mera interpretação da lei penal em nada afeta o princípio da legalidade no seu
sentido estrito.

4.3.2 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de ação direta de


inconstitucionalidade por omissão e de mandado de injunção

Primeiramente, a fim de estruturação de uma linha de raciocínio coesa, faz-se


necessário tecer algumas considerações a respeito da natureza jurídica das decisões que são
proferidas, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade por
omissão, ou seja, em ato de controle concentrado de constitucionalidade, e de mandado de
injunção.

4.3.2.1 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de ações diretas de


inconstitucionalidade por omissão

Tavares (2012, p. 344) aduz que, ao ser julgada procedente uma ação direta de
inconstitucionalidade por omissão, está-se diante de duas possibilidades: a primeira, quando
84

relativa à omissão inconstitucional imputada ao Poder Legislativo (ou, em menor extensão, ao


Poder Executivo), prevê que o STF apenas a certificará, sem a possibilidade de que o Poder
Judiciário imponha ao ente omisso a feitura de um diploma normativo, pois tal ato implicaria
violação ao princípio constitucional da separação dos poderes; a segunda, sendo taxativa no
próprio texto da Constituição, apregoa que, diante de omissão inconstitucional por parte da
Administração Pública, a Corte Constitucional deverá fixar o prazo de 30 (trinta) dias para
saneamento da inconstitucionalidade, sob pena de responsabilização caso não seja cumprido o
decisum.
Depreende-se, portanto, que, ao se tratar de omissão atribuída a um dos Poderes, a
decisão da ADO assumiria, a priori, caráter meramente declaratório, enquanto quando
destinada a órgãos da Administração Pública, mediante previsão expressa, teria eficácia
mandamental.
Esse entendimento, resultante de uma interpretação bastante restritiva do artigo 103,
parágrafo 2º, da Constituição da República, é passível de questionamento à luz de uma
concepção pós-moderna da teoria da separação dos poderes, pois essa limitação interpretativa
não corresponde aos objetivos da própria natureza da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão (SILVA; CUNHA JÚNIOR, 2018, p. 403).
O modelo decisório descrito acabou se tornando o paradigma da Suprema Corte ao
longo do tempo, mormente em sua atuação embrionária, no pós-constituinte. Porém, a
interpretação sistemática, extensiva e conforme do artigo 103, parágrafo 2º, da Carta Magna
vem permitindo alguns avanços que conferem aos julgados maior efetividade na prestação
jurisdicional buscada pela ADO, com a prolação de decisões de jaez não apenas declaratório,
mas sim mandamental, aditivo e, até mesmo, normativo (SILVA; CUNHA JÚNIOR, 2018, p.
403).
Cabe destacar que:
[...] os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade por omissão dependerão
do contorno da questão específica trazida ao crivo objetivo do Supremo Tribunal
Federal. [...] [Desse modo] a limitação ou extensão destes efeitos das sentenças
proferidas em ADO dependerão da análise dos seguintes fatores ou critérios de
avaliação:
i. qual a norma constitucional parâmetro de controle e o valor/bem jurídico que ela
tutela;
ii. a medida do grau de generalidade da imposição;
iii. por quanto tempo dura a omissão;
iv. necessidade de urgência da solução;
v. quais as possibilidades materiais de cumprimento da decisão. (SILVA; CUNHA
JÚNIOR, 2018, p. 403). (O grifo não consta na redação original).
85

Esse foi o caso da ADO nº 32, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República visando
a questionar a omissão do Presidente da República e do Congresso Nacional em legislar acerca
do regime especial de aposentadoria do servidor público portador de deficiência, segundo
designado pelo artigo 40, parágrafo 4º, inciso I, da Carta Constitucional. Essa omissão já era
alvo de debates em diversos mandados de injunções impetrados, individualmente, por
servidores públicos prejudicadas pela desídia, de modo que a preocupação do Ministério
Público Federal residia na insegurança jurídica originada devido à existência de várias
deliberações judiciais versando sobre o tema, sem que houvesse este sido regulamentado em
um caráter geral (SILVA; CUNHA JÚNIOR, 2018, p. 410).
A solução adotada pelo Supremo Tribunal Federal foi a de aplicar a Lei Complementar
142, de 8 de maio de 2013, para colmatar a inércia inconstitucional suscitada, seguindo a
tendência decisória dos casos particulares (SILVA; CUNHA JÚNIOR, 2018, p. 412). Não é
demais sublinhar que a referida legislação tange à aposentadoria da pessoa com deficiência
segurada pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Em arremate, ressaltam Silva e Cunha Júnior (2018, p. 416) que a Suprema Corte fará
valer sua função democrática toda vez que estiver diante do processo constitucional de controle
de constitucionalidade, mesmo não sendo um órgão que conta com a eleição direta da
população. Sua função, nesses casos [de controle de constitucionalidade], é a de evitar
ingerências de grupos econômicos ou inconsistências do Parlamento que possam obstar direitos
de natureza fundamental albergados pela Constituição.

4.3.2.2 A natureza jurídica das decisões proferidas em sede de mandado de injunção

Quanto ao mandado de injunção, não é diferente a controvérsia que paira em torno da


natureza de seu provimento. Parte da doutrina considera-o meramente declaratório, ao passo
em que outra parte entende o MI como ação mandamental, cujo descumprimento da decisão
poderia, inclusive, ensejar crime de desobediência (TAVARES, 2012, p. 1.021-1.022).

O Supremo Tribunal Federal [...], inicialmente, [entendia] que o mandado guarda


similitude com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, com o que a
procedência leva apenas à comunicação do Poder responsável de sua omissão, e da
necessária adoção de medidas que supram a falta cometida, ou, no caso de se tratar de
órgão da Administração, a decisão imporia sua atuação em até trinta dias. [...] Mais
recentemente, a Corte Suprema tem entendido que, variando de acordo com a natureza
da norma que necessita da regulamentação legislativa, o Poder Judiciário poderá
determinar o Direito a ser aplicado para a situação concreta que lhe foi submetida [...],
ou mesmo fixar um prazo certo para a edição da medida necessária, e, em caso de
86

desatendimento deste, assegurar ao interessado direito à indenização pela


impossibilidade de exercício ou concretização de um direito que lhe é
constitucionalmente assegurado. (TAVARES, 2012, p. 1022) (Os grifos não constam
na redação original).

A inação recalcitrante do Congresso diante de inúmeros casos apreciados pela


Suprema Corte via MI foi o principal motivo da mudança no paradigma das determinações
judiciais emanadas. Nesse sentido, reporta-se ao voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio,
no MI nº 720, do Distrito Federal, no qual este julgador consignou que a inserção do mandado
de injunção no cenário jurídico-constitucional buscou tornar concretos os direitos previstos,
inarredavelmente, na Lei Maior. Para isso, a prestação jurisdicional, nesse específico remédio
constitucional, tem o condão de viabilizar, no caso concreto, o exercício de direito ou liberdade
fundamental obstado pela omissão legislativa, de modo que o pronunciamento da Corte, como
em qualquer processo subjetivo, faz lei entre as partes (TAVARES, 2012, p. 1.024-1.025).
No entanto, a fim de delinear a superação do modelo estritamente declaratório nas
sentenças prolatadas nesse tipo de writ, elenca-se o MI nº 712, do Pará, que tinha por objeto a
discussão sobre o direito de greve dos servidores públicos. O então Ministro Eros Grau
defendeu, em seu voto, a alteração da postura do STF nessas questões, reconhecendo que as
deliberações dessa Corte, até aquele momento, mostravam-se ineficazes. Concluiu afirmando
que o STF, ao aplicar supletivamente norma regulamentadora ao artigo 37, inciso VII, da
Constituição (dispositivo este que previa o direito fundamental in casu obstaculizado), estaria
exercendo função normativa, sem que isso, contudo, afrontasse a separação dos Poderes, pois
tal ideia provém do direito natural e somente existe na forma e na medida prevista na Carta
Magna (TAVARES, 2012, p. 1.024).
Assim, em 25 de outubro de 2007, a Suprema Corte, no julgamento acima mencionado,
declarou, à unanimidade, a mora do Poder Legislativo em legislar sobre o tema (greve dos
servidores públicos) e, por maioria dos votos, decidiu aplicar a lei de greve existente para o
setor privado – Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989 –, com algumas adaptações (TAVARES,
2012, p. 1.025).
Ainda discorre Tavares (2012, p. 1.025):

[...] a mudança da jurisprudência recalcitrante foi uma grande conquista para a


cidadania brasileira, especialmente por se tratar de um país cujo compromisso
constitucional é constantemente relegado a segundo plano, e a ideia de “fraude à
Constituição” uma prática rotineira de governos democraticamente eleitos, com o que
a Justiça Constitucional estaria a auxiliar decisivamente na operatividade das normas
constitucionais. O efeito didático (indireto) dessas decisões, para outras situações
semelhantes, também não é desprezível.
87

Embora haja certo debate com relação ao decisum do MI 712, mormente se a sentença
teria características aditivas, alargando o âmbito de incidência de uma lei já existente, ou
analógicas, o que independeria, assim, do manejo de um mecanismo tão especial quanto o
mandado de injunção (TAVARES, 2012, p. 1025), salienta-se que o Supremo Tribunal Federal
procedeu à nítida integração de lacuna existente, com base na similitude entre as situações
previstas pela Lei nº 7.783/1989 e o direito à greve por parte dos servidores públicos.
A despeito do que se possa aduzir inicialmente, não foi o que ocorreu no julgamento
da ADO 26 e do MI 4733, de modo que o único ponto de convergência entre essas deliberações
e aquelas anteriormente indicadas é que, também no caso da chamada “criminalização da
homofobia”, o Supremo Tribunal Federal esquivou-se de um pronunciamento meramente
declaratório – tendência que vinha se concretizando há algum tempo, como demonstrado.

4.3.3 Hermenêutica da lei penal versus analogia in malam partem

A finalidade da ordem jurídica é a busca de meios eficazes à aplicação de um direito


que se adeque aos clamores sociais e que respeite o seu constante devir. Um dos meios para se
atingir esse objetivo é o processo hermenêutico, porquanto é ele que transforma a letra inerte
da lei em validade perante seus destinatários, por meio do fenômeno interpretativo (SANTOS,
2016, p. 147).
Ao contrário do que defende o positivismo legalista, o direito penal não pode ser
calcado, com exclusividade, no formalismo legal, isto é, no que dispõem os tipos penais tais
como descritos, até porque a legislação sempre será aplicada a um caso concreto – a chamada
subsunção –, por mais claro que seja o texto legal em apreço. Dessarte, é um erro considerar a
mera formalidade da lei como superior ao seu aspecto material, tendo em vista que, nada
obstante aquela possua grande valia, não subsiste sem os valores principiológicos deste,
mormente os que aludem à liberdade e à dignidade humanas (SANTOS, 2016, p. 147).
Nesse sentido:

[...] por mais minudente que seja a lei, será ela formulada em termos gerais e abstratos.
Isso para que cumpra sua função de regular uma multifacetada gama de fatos e
relações sociais. E a linguagem geral e abstrata, ainda que muito clara, sempre
suscitará controvérsia, mormente quanto a seu alcance. (RIBEIRO, 2009, p. 151).

Em contrapartida, não se ignora que a interpretação é um processo de descoberta do


conteúdo da lei, e nunca de criação de novas normas, de modo que não causam polêmica os
88

métodos literal, teleológico e sistemático16 de compreensão dos dispositivos legais, visto que
todos são admitidos sem restrições a fim de um maior esclarecimento acerca das intenções do
legislador (NUCCI, 2020, p. 121),
O mesmo não se pode dizer das formas extensiva e analógica de interpretação.
Nucci (2020, p. 121) considera que:

A [interpretação] extensiva é o processo de extração do autêntico significado da


norma, ampliando-se o alcance das palavras legais, a fim de se atender à real
finalidade do texto. A [interpretação] analógica é o processo de averiguação do
sentido da norma jurídica, valendo-se de elementos fornecidos pela própria lei, através
do método de semelhança.

Um exemplo de interpretação extensiva é aquele encontrado no artigo 176 do Código


Penal, cujo caput enuncia ser crime “Tomar refeição em restaurante [...] sem dispor de recursos
para efetuar o pagamento”. O termo restaurante, ao ter seu conteúdo ampliado, por intermédio
de interpretação extensiva, abrange boates, bares, pensões e estabelecimentos similares. Isso
ocorre, também, em relação ao delito de bigamia, pois, numa conclusão lógica, apesar de sua
rubrica, o artigo 235 do Código Penal não só prevê como criminosa a conduta daquele que se
casa duas vezes, mas, outrossim, a daquele que contrai matrimônio três ou mais vezes
(poligamia) (NUCCI, 2020, p. 122).
Já a interpretação analógica permite ao intérprete que busque aplicar o direito com
base nas semelhanças entre situações concretas previstas no próprio texto legal, como é o caso
do inciso III do parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal, o qual qualifica o homicídio quando
o agente comete o crime “com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro
meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum”. As amostras concedidas no
texto (veneno, fogo, explosivo, asfixia e tortura) abrem espaço para que, devido à equivalência
de outro meio considerado “insidioso”, “cruel” ou “de que possa resultar perigo comum”, o
operador do direito não se limite às hipóteses inicialmente previstas (NUCCI, 2020, p. 122-
123).
Contudo, apesar de tanto a intepretação extensiva quanto a analógica serem aceitas no
direito penal pela doutrina e jurisprudência, essas hipóteses não se confundem com a analogia,
que é um processo de autointegração do ordenamento jurídico, onde se cria uma norma penal
que não existe originalmente (NUCCI, 2020, p. 77).

16
O método literal, gramatical textual ou filológico busca o sentido e alcance da norma a partir de uma simples
leitura do texto; o método teleológico ocupa-se do objetivo ou finalidade a que a lei de destina; e o sistemático
apregoa que o sentido de uma norma somente pode ser alcançado pela análise de todo o ordenamento no qual se
insere (RIBEIRO, 2009, p. 155).
89

A propósito, sobre a analogia, Nucci (2020, p. 14) afirma que:

O [seu] emprego [...] não se faz por acaso ou por puro arbítrio do intérprete; há
significado e lógica na utilização da analogia para o preenchimento de lacunas no
ordenamento jurídico. Cuida-se de uma relação qualitativa entre um fato e outro.
Entretanto, se noutros campos do Direito a analogia é perfeitamente aplicável, no
cenário do Direito Penal ela precisa ser cuidadosamente avaliada, sob pena de ferir o
princípio constitucional da legalidade (não há crime sem lei que a defina; não há pena
sem lei que a comine). Assim sendo, não se admite a analogia in malam partem, isto
é, para prejudicar o réu. Exemplo dessa espécie de analogia seria a construção do tipo
penal de assédio moral (crime inexistente) por semelhança à situação do assédio
sexual, prevista no art. 216-A [do Código Penal]. (NUCCI, 2020, p. 124) (O grifo não
consta na redação original).

A grande maioria das críticas dirigidas às decisões do Supremo Tribunal Federal, no


julgamento da ADO 26 e do MI 4733, fundamenta-se na equivocada alegação de que a Suprema
Corte lançou mão de uma espécie de analogia in malam partem ao “criminalizar a homofobia”.
E aqui utiliza-se aspas porque o que se vislumbra naquele julgado não é a criação de um novo
tipo penal por meio de qualquer semelhança entre as condutas homofóbicas e a prática do
racismo, na acepção sociológica-constitucional do termo, mas sim um exercício de
interpretação conforme à Constituição da lei penal, visto que, na realidade, a homofobia estaria
abarcada pelo termo “raça” previsto na Lei nº 7.716/1989, segundo os preceitos elencados na
Lei Fundamental.
A interpretação conforme nada mais é que uma espécie de método sistemático de
interpretação das normas jurídicas, que utiliza o Texto Constitucional como vetor hermenêutico
da legislação infraconstitucional, pois, se é a Constituição que funda todo o ordenamento
jurídico, exerce ela papel de destaque dentro do método sistemático, guiando o intérprete na
busca do sentido e do alcance das normas (RIBEIRO, 2009, p. 156).
Não se ignora o entendimento de que o papel da Constituição assume uma dupla
função: ora como vetor hermenêutico, conforme destacado, e ora como baliza no controle
constitucional exercido pelo STF. No primeiro caso, atuaria [a Constituição] no processo de
interpretação da lei, enquanto no segundo, quando o sentido e alcance da norma já estão
definidos, funcionaria como parâmetro de controle, a fim de verificar a (in)compatibilidade
entre o dispositivo examinado e o Texto Constitucional (RIBEIRO, 2009, p. 156). A despeito
de haver certa divergência doutrinária a respeito da real aplicabilidade da intepretação conforme
(isto é, se no processo interpretativo ou no controle de constitucionalidade), é pacífico, na
jurisprudência da Suprema Corte, que pode sim ser empregada como mecanismo hermenêutico,
segundo amplamente destacado, inclusive, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733.
90

Sendo assim, ao lançar mão de intepretação conforme à Constituição, a Suprema Corte


buscou amoldar o alcance do termo “raça”, disposto na Lei nº 7.716/1989, ao que dispõe o
Texto Constitucional – que o racismo é uma prática social, dissociado de qualquer elemento
biológico ou fenotípico de determinado grupo e, que, portanto, nesse conceito inclui-se a
homofobia, devendo esta ser coibida jurídico-penalmente, de acordo com mandado expresso na
própria Carta Magna.
À vista disso, o STF não “criminalizou a homofobia”, posto que esta já se encontrava
tipificada na referida legislação, tendo somente atendido à finalidade constitucional da norma
legal, expressa pela realidade material vivenciada em nosso sistema jurídico – qual seja, da
iterada violação aos direitos fundamentais da população LGBT+ por meio de atitudes, gestos,
e discursos de ódio de uma maioria heterossexista e cisgênera.
A propósito, sobre a temática, manifesta-se Nucci (2020, p. 945):

[...] em recente decisão do STF, por maioria de votos (8 x 3), no Plenário, julgou-se
que a homofobia é uma espécie de racismo, razão pela qual já se encontra tipificada
em lei (Lei do Racismo). Essa sempre foi a nossa tese, defendida desde o ano de 2006,
agora aceita pelo Pretório Excelso. Não há nenhuma espécie de analogia in malam
partem. Toma-se, apenas, o termo racismo, buscando interpretar o seu significado nos
moldes contemporâneos.

Por fim, giza-se que o processo hermenêutico nasce de diversas realidades históricas,
de sorte que, se o fenômeno jurídico se configura por um complexo que compreende fato social,
valoração e normatividade, assim o deve observar o sistema de interpretação das leis (SANTOS,
2016, p. 148).

4.3.4 O conceito sociológico-constitucional de “raça” na Lei nº 7.716/1990: o Caso


Ellwanger e o entendimento por ele fixado

No item de número treze de seu histórico voto na ADO 26, o Ministro Celso de Mello,
relator da ação, conferiu interpretação conforme ao termo “raça”, expresso pela Lei nº
7.716/1989, entendendo que ele abarca as condutas homofóbicas como espécie de racismo, na
sua acepção sociológica-constitucional, viabilizada pela dimensão social que assume esse
termo. Posteriormente, ao proferir seu voto, o Ministro Edson Fachin, relator do MI 4733,
compartilhou do mesmo entendimento.
Malgrado possua uma origem etimológica bastante obscura, o vocábulo “raça” foi
sendo assimilado pelas mais diversas culturas ao longo dos séculos, adquirindo quase sempre
um sentido pejorativo no seu uso (LAFER, 2004, p. 67).
91

Por outro lado, a classificação dos seres humanos em raças encontra sua inspiração no
trabalho do botânico sueco Karl von Linné (Lineu), o qual estabeleceu, no século XVIII, um
sistema de divisão de plantas e animais, bem como da espécie humana, sendo esta subdividida
em seis “raças”, consideradas de acordo com um critério preponderantemente geográfico: a
europeia, a ameríndia, a asiática, a africana, a selvagem e a monstruosa (constituída por
indivíduos com deformidades físicas). Mais tarde, o evolucionismo de Darwin e o interesse na
taxonomia renovaram a preocupação da segregação dos seres humanos em conjuntos distintos,
tendo as diferenças fenotípicas (cor da pele, textura dos cabelos, formato da cabeça etc.)
preponderado nos modelos classificatórios propostos a partir do século XIX. Foi esse
pensamento, agora notadamente equivocado e condenável, que embasou alguns dos mais
conhecidos teóricos racistas, como Arthur de Gobineau e Houston Chamberlain (LAFER, 2004,
p. 68).
Indo de encontro a isso, a noção de racismo social, recepcionada pela Constituição
Federal e interpretações dela decorrentes, parte do pressuposto de que a definição biológica de
raça é ultrapassada, e de que não existem, factualmente, marcadores genéticos capazes de isolar
os seres humanos em diferentes agrupamentos biológicos (SCHUCMAN, 2010, p. 44). Se,
contudo, o racismo não pode ser justificado por parâmetros biológicos, permanece ele como
fenômeno social, orientado pela crença (e pela disseminação dessa crença) de que existem
grupos superiores a outros (LAFER, 2004, p. 70).
Nessa mesma esteira, para Souza (1983, p. 20), raça seria uma noção ideológica
instrumental à distribuição de posições numa estrutura de classes, encontrando sua definição,
no Brasil, em termos de atributos compartilhados por um mesmo grupo social, fator este que
respaldaria, por conseguinte, a própria concepção do fenômeno social do racismo.
Nucci (2014, p. 677) complementa:

Raça é termo infeliz e ambíguo para a utilização com relação a seres humanos, pois
pode representar desde um conjunto de pessoas com os mesmos caracteres somáticos,
como também um conjunto de indivíduos de mesma origem étnica, linguística ou
social. Quer dizer, ainda, meramente uma classe ou categoria de pessoas. Enfim, raça
é um grupo de pessoas que comunga de ideais comuns e se agrupa para defendê-los,
mas não se pode torná-lo evidente por caracteres físicos. [...] Se racismo é mentalidade
segregacionista não há dúvida de que se deve proteger todos os agrupamentos sociais,
independentemente de padrão físico ou ascendência comum. (Os grifos não constam
na redação original).

E, quanto ao conceito sociológico de racismo, esclarece, ainda:

[...] [racismo] é a concepção voltada à existência de uma divisão entre os humanos,


acreditando alguns desses serem superiores, por qualquer virtude e/ou qualidade,
92

eleitas sem qualquer critério de aferição, cultivando, em relação aos que não têm as
referidas virtudes ou qualidades, uma cultura segregacionista, fracionando a sociedade
em camadas e estratos, “merecedores” de uma vida diferente dos que se acham
abastados e afortunados. (NUCCI apud CAETANO, 2018, p. 26).

Em conclusão lógica, tomando um viés majoritariamente jurídico acerca do tema, tem-


se que é ao fenômeno social de racismo que aludem o inciso XLII, do artigo 5º, da Constituição
e sua legislação infraconstitucional correspondente (LAFER, 2004, p. 70).
Na jurisprudência pátria, essa concepção foi consolidada por ocasião do julgamento
do emblemático Caso Ellwanger, pelo Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus nº 82.424,
do Rio Grande do Sul), precedente importantíssimo quanto aos crimes de racismo no
ordenamento jurídico brasileiro.
Siegfried Ellwanger Castan (1918-2010) foi um escritor gaúcho que granjeou
conhecimento por ter assumido, em suas publicações, uma postura nitidamente revisionista
sobre o holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial, chegando a negar, inclusive, a existência
de campos de concentração nazistas. Em 1990, o Ministério Público do Rio Grande do Sul
denunciou-o por ter ele, em tese, praticado crime de racismo contra os judeus. Em primeira
instância, Ellwanger foi absolvido, porém a sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça
daquele Estado, em face da interposição de recurso por parte da acusação (CAETANO, 2018,
p. 57).
Inconformada, a defesa do acusado impetrou, no Superior Tribunal de Justiça, um
habeas corpus, no qual, com alicerce nos mesmos argumentos da Corte estadual, isto é, no de
que existe apenas uma raça – a humana – e que, portanto, negros, indígenas, ciganos, ou
quaisquer outros grupos minoritários podem sofrer racismo, denegou-se a ordem (LAFER,
2004, p. 64). Ellwanger, então, recorreu ao Supremo Tribunal Federal, impetrando o HC
82.424, a fim de discutir, mais uma vez, se sua conduta poderia ser considerada ou não delito
de racismo, tipificado na Lei nº 7.716/1989.
Por fim, decidiu a Corte Constitucional que a divisão dos seres humanos em “raças” é
um processo majoritariamente sociopolítico e, em assim sendo, não há que se falar em divisão
biológica entre a espécie humana. O crime de racismo consistiria, então, a manifestação de
superioridade de um grupo – privilegiado – perante outro – tido como minoria –, por meio de
formas de discriminação que ocorrem em virtude de coloração da pele, da origem étnica, da
religião, dentre outras (SILVA; BAHIA, 2015, p. 197-198).
Discorre Caetano (2018, p. 61-62):
93

Pelo exposto, tem-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que, embora
judeu não seja, em regra, uma raça, não há como precisar, com exatidão, o que este
vocábulo queira significar, razão pela qual a discriminação antissemita, objeto do
referido caso, foi considerada uma conduta racista, tal qual umas das previstas na Lei
n. 7.716/1989, sendo, portanto, imprescritível e inafiançável.

No julgamento da ADO 26 e do MI 4733, a Suprema Corte minou qualquer dúvida


interpretativa que decorria da acepção de racismo adotada pelo direito brasileiro, consagrada
pela apreciação do Caso Ellwanger. Isso porque, consoante exaustivamente demonstrado no
primeiro capítulo do presente trabalho, a homofobia consiste numa ideologia que pressupõe
uma divergência essencial entre homotransexuais e heterossexuais cisgêneros, a qual conduz a
um sistemático mecanismo de exclusão daqueles por estes (BORRILLO, 2010, p. 34), o que
configura, sem sombra de dúvidas, um exemplo de racismo social.

4.3.5 Os corolários do princípio da legalidade penal nas decisões em análise

Do que foi evidenciado até então, conclui-se que, ao proceder a uma intepretação
conforme à Constituição do termo “raça” contido na Lei do Racismo, entendendo que ele abarca
condutas homofóbicas na extensão social do termo racismo, o STF em nada desrespeitou ou
violou o princípio da legalidade penal e seus corolários.

4.3.5.1 O corolário da lei estrita nas decisões analisadas

Tem-se que o postulado nullum crimen, nulla poena sine lege stricta foi observado,
porquanto a Lei nº 7.716/1989, que contém a norma penal incriminadora da homofobia no
termo “raça”, disposto nos artigos desse diploma legal, seguiu o devido trâmite legislativo.
Seu projeto inicial – o Projeto de Lei da Câmara nº 668, de 1988 –, de autoria do
Deputado Federal Carlos Alberto Caó (Partido Democrático Trabalhista), foi devidamente
discutido e aprovado, sendo posteriormente remetido ao Senado Federal e, via de consequência,
aprovado pelas duas Casas Legislativas do país, culminando na sua promulgação, no dia 5 de
janeiro de 1989.

4.3.5.2 O corolário da lei escrita nas decisões analisadas


94

Da mesma forma, as decisões proferidas, pelo STF, no julgamento conjunto da ADO


26 e no MI 4733 em nada afrontam o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege scripta,
tendo em vista que, conforme detalhadamente exposto no item 4.3.3 deste capítulo, a Corte
Constitucional não incorreu em analogia in malam partem ao entender que os atos homofóbicos
correspondem a crime de racismo, na sua concepção sociológica-constitucional, uma vez que
não criou nenhum tipo penal até então inexistente. O que ocorreu, como já abordado, foi uma
interpretação conforme à Constituição do termo “raça”, contido na Lei nº 7.716/1989.

4.3.5.3 O corolário da lei certa nas decisões analisadas

Talvez o corolário da lei certa pudesse se tornar o ponto que suscitasse maiores dúvidas
quanto à observância do princípio da legalidade penal nas decisões do Supremo Tribunal
Federal em análise. É que o axioma nullum crimen, nulla poena sine lega certa prescreve que
o tipo penal deverá ser claro e preciso, com vistas a ensejar uma correta compreensão por parte
do operador do direito e, igualmente, da sociedade no geral, seus destinatários.
De acordo com o exposto alhures, no entanto, o vocábulo “raça” é impreciso devido à
sua própria natureza (inclusive etimologicamente), sendo incabível dizer, destarte, que a
Suprema Corte, ao interpretá-lo conforme à Constituição, agiu com base no subjetivismo dos
julgadores ou por mero capricho destinado a satisfazer os interesses de um grupo – no caso, a
comunidade LGBT+.
Pelo contrário, essa interpretação se deu com a finalidade de assegurar a proteção aos
direitos e às liberdades individuais dos homossexuais, imperativo conhecido pelo Texto
Constitucional, no inciso XLI do seu artigo 5º, como, a propósito, ocorreu quando do
julgamento do HC 82.424 (Caso Ellwanger), em que o Supremo Tribunal Federal protegeu os
direitos e as liberdades do povo judeu.

4.3.5.4 O corolário da lei prévia nas decisões analisadas

Da mesma forma, o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege praevia não foi
desrespeitado, na medida em que, durante o julgamento da ADO 26 e do MI 4733, designou-se
que os efeitos das decisões proferidas, isto é, da interpretação conforme do termo “raça” contido
95

na Lei nº 7.716/1989, somente passariam a ser aplicados após a data de conclusão do referido
julgamento – o que ocorreu no dia 13 de junho de 2019.
As condutas homofóbicas que se enquadram nos tipos penais previstos na Lei do
Racismo praticadas desde então, e levadas ao conhecimento da autoridade competente, são
passíveis de ser punidas criminalmente, por lei anterior que as definiu e por prévia cominação
de sanção penal.

4.3.6 A inexistência de “entraves” à futura criminalização específica da homofobia, pelo


Congresso Nacional, e uma pertinente provocação

Por mais numerosos que sejam os argumentos que se prestam a deslegitimar a decisão
do STF no tocante à criminalização da homofobia, vale tecer algumas considerações, por
derradeiro, àquele que diz respeito aos supostos “entraves” quanto à criminalização específica
da homofobia pelo Congresso Nacional no futuro.
Está comprovado que a homofobia é uma espécie de racismo, gozando por isso, das
características de imprescritibilidade e inafiançabilidade conferidas pelo inciso XLII do artigo
5º da Lei Fundamental, de modo que, em eventual ação legislativa destinada a criminalizar,
especificamente, os atos e condutas homofóbicas, tal observação deve ser levada em conta pelo
legislador ordinário.
Isso, contudo, de modo algum representará um entrave à ação do Poder Legislativo,
tampouco significará adequação de sua atividade à determinação do Poder Judiciário,
simplesmente porque a afirmação de que a homofobia é racismo social não decorre do
pronunciamento emanado pelo STF, nos autos da ADO 26 e do MI 4733, mas sim da
interpretação constitucional do termo racismo, já ocorrida nos autos do HC 82.424.
Foram, a rigor, mais de trinta anos de mora legislativa até que se reconhecesse, pelo
Poder Judiciário, que a homofobia é uma espécie de racismo social. Trinta anos de descaso com
o mandamento de criminalização contido no inciso XLI do artigo 5º da Constituição Federal e,
provavelmente, haja vista os obstáculos traduzidos, sobretudo, pelo posicionamento
intransigente da bancada evangélica parlamentar, serão mais longos anos até que as Casas
Legislativas do país promovam a “criminalização específica” da homofobia. Trinta anos de atos
de violência incomensuráveis à comunidade LGBT+, os quais culminaram na necessidade de
uma resposta imediata para fazer valer os preceitos constitucionais.
96

Evidentemente, uma resposta imediata, a exemplo da que se vislumbra in casu, é


suscetível de críticas. Mais ainda, os questionamentos à atuação estatal, seja ela concretizada
por qualquer dos poderes, são, mais do que válidos, necessários. Parte da essência do direito é
a indagação, ou melhor, a reflexão.
Por isso, a título de uma necessária provocação, questiona-se, por que, em relação ao
já incontestavelmente paradigmático Caso Ellwanger, não houve reação parecida no meio
jurídico? Ora, ao considerar que o antissemitismo configurava um crime de racismo, embora a
noção comum não compreendesse que os judeus são uma “raça”, o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul deu margem à discussão, a qual somente foi selada com a palavra final do
Supremo Tribunal Federal: o antissemitismo é uma espécie de racismo, em sua acepção
sociológica.
Houve, no precedente assinalado, também, uma leitura de cunho hermenêutico do
termo “raça” e da própria concepção de racismo e, justamente por isso, repete-se a pergunta:
por qual motivo a Suprema Corte não foi acusada, à época, de ter proferido decisão avessa ao
princípio da legalidade penal? Pode-se argumentar, é claro, que os judeus constituem muito
mais uma “raça” do que os homotransexuais. Porém, não se pode olvidar que, tanto no Caso
Ellwanger como no julgamento da ADO 26 e do MI 4733, raça possui um significado muito
distante do biológico, ou dos caracteres étnicos e culturais de determinado grupo, bem como o
racismo, o qual é compreendido como os atos de marginalização de uma classe considerada
superior (seja esta relativa aos brancos, aos cristãos, ou aos heterossexuais) em detrimento de
outra, tida como inferior (os negros, os judeus ou os homotransexuais).
Em assim sendo, numa busca à adequada resposta a esse questionamento, traz-se à
tona um conceito já debatido no primeiro capítulo da presente monografia: a violência
homofóbica simbólica. Entremeio a comedidas opiniões contrárias àquela aqui sustentada,
despontam discordâncias que se prestam, apenas, à perpetuação de um senso comum
homofóbico, o qual exalta a heterossexualidade e a cisgeneridade como padrões, por afirmar,
implícita ou explicitamente, que, não obstante reprovável, a homofobia não merece tratamento
específico no sistema penal, nem que as minorias, pelo simples fato de constituírem minorias,
demandam uma atenção mais cuidadosa à efetivação de seus direitos e liberdades fundamentais.
Posturas que condizem à negação acima descrita atacam, em maior extensão, o
princípio constitucional da isonomia, o qual, segundo a máxima aristotélica, deve ser
interpretado como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua
desigualdade.
97

Os homossexuais sofreram séculos de rejeição e marginalização, refletida em aspectos


da vivência cotidiana do grupo LGBT+ (agressões, violência e discriminação), assim como num
âmbito institucional da esfera pública à qual estão inseridos (óbice à união civil, ao direito
hereditário e à criminalização da homofobia). Logo, ocupam uma posição jurídica vulnerável,
que deve ser corrigida por meio de instrumentos do próprio ordenamento jurídico – como
ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e do
Mandado de Injunção nº 4733.
98

5 CONCLUSÃO

A presente monografia permitiu concluir que a homossexualidade, a bissexualidade e


demais orientações sexuais desviantes à norma padrão heterossexual são tão legítimas quanto
esta e não partem de um processo de escolha, sendo determinadas por fatores alheios à vontade
do indivíduo, visto que constituem o conjunto de comportamentos ligados à pulsão ou desejo
sexual e como ele se concretiza.
Da mesma forma, consignou-se que a identidade de gênero diz respeito a uma
perspectiva particular de construção de identidade, de modo que, se tal perspectiva corresponde
ao sexo biológico do sujeito, ou seja, à sua genitália, diz-se dele uma pessoa cisgênera. Do
contrário, se a identidade de gênero de determinada pessoa é reivindicada de maneira oposta à
informada pela genitália, diz-se dela uma pessoa transexual.
Nesse sentido, chegou-se à conclusão que, tanto aqueles que apresentam orientação
sexual diversa daquela considerada “correta”, isto é, a heterossexual, quanto aqueles que se
identificam com um gênero oposto ao informado pelo seu sexo biológico, os transexuais, são
considerados sujeitos que transitam entre os limiares das fronteiras sexuais e/ou de gênero e,
por isso, são alvos de homofobia.
Constatou-se que a homofobia, em sua acepção geral – a qual abarca todos os tipos de
violências homofóbicas destinadas a grupos específicos, como a “gayfobia”, a “lesbofobia”, a
“transfobia”, entre outros –, é um fenômeno que traduz a hostilidade, psicológica e social,
contra todos que não se comportam conforme as normas impostas por um sistema heterossexista
e cisgênero, promovendo, com isso, essas formas de sexualidade e de identidade de gênero em
detrimento de outras.
Esse preconceito encontra-se fundado em causas como a patologização do
comportamento homossexual, a subjugação do papel de gênero feminino e a contrariedade ao
diferencialismo sexual, e pode se manifestar sob três formas de violência: a violência
homofóbica interpessoal, que corresponde aos atos de agressão propriamente ditos; a violência
homofóbica institucional, ligada a aparatos estatais que reforçam o padrão da
heterossexualidade cisgênera; e a violência homofóbica simbólica, que busca a criação e a
disseminação de um discurso heteronormativo.
Da mesma forma, comprovou-se que, semelhante a outras formas de preconceito,
como o racismo, o antissemitismo e a xenofobia, os quais são formalmente condenados e
coibidos, a homofobia permanece no senso comum quase como uma opinião sensata, colocando
99

os integrantes do grupo LGBT+ em uma posição vulnerável perante a sociedade. Por isso,
devido aos elevados índices de atos violentos dirigidos à comunidade LGBT+, aos crimes
bárbaros e cada vez mais frequentes contra ela cometidos e às narrativas escancaradas de ódio
que lhe são dirigidas, o cenário demanda uma resposta penal a fim de se alcançar um controle
mínimo da homofobia.
Além disso, apresentaram-se previsões normativas que demonstram ser devida a
criminalização da homofobia, tais como o artigo 5º, inciso XLI, da Constituição Federal, o qual
prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais”, e o inciso XLII, que estabelece que “a prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, bem como, a nível
internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos; o Pacto de San José da Costa Rica ou Convenção Americana de
Direitos Humanos; as Resoluções nº 2435, de 2008, nº 2504, de 2009, nº 2600, de 2010, nº
2653, de 2011, nº 2721, de 2012 e nº 2807, de 2013, da Organização dos Estados Americanos;
e, ainda, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas
Conexas de Intolerância e a Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e
Intolerância.
Outrossim, demonstrou-se que o princípio da dignidade humana é o principal
norteador da criminalização da homofobia, porquanto a orientação sexual, e, por conseguinte,
a identidade de gênero, vinculam-se a esse atributo vital da condição humana, constituindo uma
essência indissociável do indivíduo e que deve ser protegida contra toda ação que a ameace ou
desrespeite.
No Brasil, no entanto, o Congresso Nacional se quedou inerte em criminalizar a
homofobia, mesmo a despeito de inúmeros projetos legislativos que tramitam nas duas Casas
Legislativas do país – como o Projeto de Lei da Câmara nº 122, arquivado em janeiro de 2015
–, o que configura omissão inconstitucional por parte do Poder Legislativo.
Foi com supedâneo nessa mora e omissão inconstitucional que foram ajuizadas a
ADO 26 e o MI 4733, ações que tinham por objetivo que a Suprema Corte determinasse ao
Congresso Nacional a criminalização específica da homofobia, e pugnavam, subsidiariamente,
que essa Corte Constitucional colmatasse a omissão legislativa existente, conferindo
interpretação conforme à Constituição para que às disposições normativas da Lei nº 7.716, de
5 de janeiro de 1989 (Lei do Racismo) se subsumissem os atos de discriminação contra a
população LGBT+.
100

O julgamento das demandas foi concluído em junho de 2019, resultando no


conhecimento de ambas as ações e na parcial procedência de seus pedidos. Com isso, o STF
firmou entendimento no sentido de que a homofobia é uma espécie de racismo, na sua acepção
sociológica-constitucional.
Essa decisão causou comoção no meio jurídico, gerando críticas ao julgado, em
especial a de que este não teria observado o princípio constitucional da legalidade penal e os
seus desdobramentos.
Constatou-se que o princípio da legalidade penal apregoa que o indivíduo só pode
ser alvo da persecução penal se a conduta ensejadora por ele praticada estiver suficientemente
descrita no tipo penal e, mais ainda, só pode ser punido em função dessa conduta se a quantia
de pena a lhe ser infligida estiver contida num preceito expresso.
Ademais, destacou-se que o princípio da legalidade penal é um dos alicerces sobre
os quais se funda um Estado Democrático de Direito, aqui entendido como aquele que não
apenas tem seu sistema subordinado ao império da lei, mas, também, que tem suas normas
pautadas em certos limites que permitem a efetivação de um arcabouço de direitos considerados
como essenciais à liberdade e à dignidade de seus cidadãos. Previsto no artigo 5º, inciso
XXXIX, da Constituição Federal, do referido princípio também decorrem quatro
desdobramentos ou corolários: o da lei estrita, da lei escrita, da lei certa e da lei prévia.
Em seguida, demonstrou-se que as decisões proferidas, pelo STF, no julgamento da
ADO 26 e do MI 4733, não violaram o princípio constitucional da legalidade penal e nem os
seus respectivos corolários.
Isso porque, além de ter havido uma mudança de paradigma na natureza jurídica das
decisões da Suprema Corte em sede de ação direta de inconstitucionalidade por omissão e de
mandado de injunção, que deixaram de ser meramente declaratórias e passaram a assumir
caráter mandamental, aditivo e, até mesmo, normativo, o julgamento em apreço não criou
nenhum tipo penal, nem sequer se utilizou de analogia in malam partem entre as condutas
homofóbicas e a prática do racismo, previsto na Lei nº 7.716/1989, mas sim procedeu-se a um
exercício de interpretação conforme à Constituição da lei penal, visto que, na realidade, a
homofobia estaria abarcada pelo termo “raça” previsto na mencionada legislação.
Salientou-se que a interpretação conforme é uma espécie de método sistemático de
interpretação das normas jurídicas, que utiliza o Texto Constitucional como vetor hermenêutico
da legislação infraconstitucional, guiando o intérprete na busca do sentido e do alcance das
normas à luz do que dispõe a Lei Fundamental. Dessa forma, com base na concepção de que a
101

noção de racismo social, recepcionada pela Constituição Federal e cimentada, pelo STF, no
julgamento do Caso Ellwanger, parte do pressuposto de que não existem, factualmente,
marcadores genéticos capazes de isolar os seres humanos em diferentes agrupamentos
biológicos (raças) e de que o racismo é um fenômeno social, orientado pela crença (e
disseminação dessa crença) de que existem grupos superiores a outros, demonstrou-se que a
homofobia é uma espécie de racismo.
Vale destacar que foi demonstrado que a Lei do Racismo descreve condutas às quais
se amoldam os diferentes tipos de preconceito, tais como a xenofobia, a intolerância religiosa
e, em última análise, a homofobia, visto que o conceito do termo raça está intimamente
conectado ao contexto histórico-social, sendo, por isso, fluido e não determinado pelas
similaridades físicas entre os integrantes do grupo tido como racializado.
Portanto, concluiu-se que as decisões proferidas, no julgamento da ADO 26 e do MI
4733, pela Corte Constitucional, observaram o princípio da legalidade penal e os seus
desdobramentos, pois: 1) a Lei nº 7.716/1989, que contém a norma penal incriminadora da
homofobia no termo “raça”, previsto nos artigos desse diploma legal, seguiu o devido trâmite
legislativo (lei estrita); 2) a Suprema Corte não incorreu em analogia in malam partem, visto
que não criou nenhum tipo penal e, sim, procedeu à interpretação conforme à Constituição do
termo “raça”, contido na Lei do Racismo (lei escrita); 3) o STF, ao interpretar o termo “raça”
conforme à Constituição, não agiu com base no subjetivismo dos julgadores ou por mero
capricho destinado a satisfazer os interesses do grupo LGBT+, tendo, somente, determinado o
alcance do vocábulo “raça”, previsto na Lei do Racismo (lei certa); e, 4) as condutas
homofóbicas, passíveis de ser punidas criminalmente, foram definidas por lei anterior e por
prévia cominação de sanção penal (lei prévia).
102

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